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JORflfiU
JORNAL NACIONAL DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO Nn9- maio/junho/julho de 1991 ■ Cr$ 200,00

A magia do
Reggae: da
ao

Entrevistas
com Lélia
Gonzalez
e Bryan
Stevenson
Bob
Marley:
o mito como
metáfora
A cor da
Pena
de Morte
JORHOL

Cartas Casa do Olodum


Projeto:
Arquileto: Una Bo Bardi
Colab, Arqts,;
Marcelo Ferraz
DO OLODUM
Marcelo Suzuki
Agradeço jornal e aproveito a oportunida-
de para retribuir com material transcrito
na Assembleia Legislativa do Rio Gran-
Execução:
Prefeitura Municipal do Salvador t CONVITE
Fundação Gregório de Mattos
de do Sul sobre os últimos episódios de flagran-
te discriminação racial.
Parabéns pelo periódico do Movimento Negro
Unificado!
Flávio Koutzii — Dep. Estadual, líder do PT
na Assembleia Legislativa do RS.

arquivo
iiimvi
fotográfico
AZumvi Arquivo Fotográfico gosta-
ria de fazer contato com fotógrafos,
grupos e entidades para explicar-
mos as nossas propostas.
A Zumvi Arquivo Fotográfico surgiu da
necessidade e experiência de alguns anos
de trabalho de três fotógrafos atuantes na
área da cultura popular, que durante al-
guns anos vêm acumulando materiais para
o desfecho desta ideia.
Em razão da não existência de um arqui-
vo fotográfico, que sirva de consulta e pes-
quisa para grupos, entidades e pessoas in-
teressadas. Surge a Zumvi com mais um
instrumento de luta para contribuir no pro-
cesso de uma linguagem fotográfica volta-
da para a realidade dos oprimidos.
Endereço: Pça. Francisco Dórea, 2 — Ri-
beira - 40000 - Salvador (Bahia) - Tel.:
(071) 312-8801, das 8 às 14 horas. Contato:
Lázaro Roberto.

Compreendendo que a essência da luta


contra a exploração e a discriminação é
antes de tudo política — pois é reflexo
da ideologia forjada na estrutura económica ca-
pitalista —, reiteramos nosso apoio ao MNU em
sua luta contra todos os tipos de preconceito e Criação e Arte;
discriminação. F inarfçao Casa
Edvaldo Gomes de Souza — Diretor Presiden- EXU Pmouçôes
te do Sindicato dos Urbanitários de Pernambu- Ccftnpostçao
(" g
co. FotoWo e Impres

Estamos encaminhando as cópias dos


ofícios e matérias de jornais que foram
entregues às autoridades do município O Grupo Cultural Olodum inaugurou no dia 25 de
de Barra do Corda (MA), para tomar as devidas abril último sua nova sede. O projeto de recons-
providências, e o relatório de viagem, feito por trução do prédio de 1798 é de autoria da arquiteta
representantes de entidades de São Luís, que vi- Lina Bo Bardi e foi executado pela Prefeitura Munici-
sitaram a área para constatar as denúncias de pal de Salvador e a Fundação Gregório de Mattos. O
discriminação praticada no Sítio dos Arruda.
Os cemitérios separados (de brancos e de ne- endereço
9
da Casa do Olodum é Rua Gregório de Mat-
gros) existem mesmo; mas são apenas o fio da tos, n 22, Maciel-Pelourinho, Salvador/BA. Tel.: (071)
meada de uma estrutura secular violentamente 321-5010.
racista, onde estão presentes a exploração eco-
nómica e a violência física a que estão submeti-
dos os moradores do "Sítio". Uma senhora do
povoado afirmou que a discriminação não é só fundar a discussão, de procurar melhor com- cipalmente no que tange à manutenção de nosso
nos cemitérios, mas, principalmente, com os ne- preender a problemática dos partidos de esquer- órgão de comunicação, o jornal "A LUTA", de
gros vivos, que não são tratados como gente. da, dos movimentos sociais, dos movimentos fazer o intercâmbio de jornais: enviamos, men-
Comissão de Visita à Área de Barra do Corda negros, enfim, clarear uma série imensa de pre- salmente, um exemplar do "A LUTA", em con-
(MA). conceitos existentes na nossa sociedade. trapartida, recebemos um exemplar dessa enti-
Há, sem dúvida, uma ignorância imensa a res- dade. Se possível, gostaríamos de receber a ed.
Ao tomarmos conhecimento da 9matéria peito dos assuntos acima citados, o que provo- n- 18, pois pretendemos estudá-la com maior
publicada no Jornal MNU, ed. n 18, sob ca, na esquerda, toda uma série de melindres e profundidade.
o título "O MOVIMENTO NEGRO E sectarismos, fruto de sentimentos de "auto- Certos de que esse intercâmbio será de grande
AS IDEOLOGIAS BRANCAS", de Josafá Mo- suficiência" ideológica, o que contribui para proveito para ambas entidades, enviamos nos-
ta, através de um dos nossos militantes, quere- uma falta de visão a respeito das questões le- sas
mos expressar nosso interesse em aprofundar as vantadas no artigo de Josafá. SAUDAÇÕES SOCIALISTAS!
questões levantadas no artigo, bem como nas Gostaríamos, como proposta, devido às difi- Luís Carlos de Césaro — ls Vice-Presidente
demais. O PSB confessa a necessidade de apro- culdades financeiras por que passa o PSB, prin- do PSB/RS.
jORrtnu 3
sensibilizar os demais setores orga-

Editorial nizados para pelo menos dois as-


pectos.
1) qualquer projeto político, ela-
borado na perspectiva dos setores
oprimidos, sem levar em conta o
A situação de calamidade que papel do racismo no projeto das eli-
o país atravessa não pode tes, está fadado ao mais retumban-
ser vista apenas como re- te fracasso ou, no máximo, a ser
sultado das políticas adotadas no cúmplice da violência racial;
governo Collor, pois também é fru- 2) não é possível manter uma
to de séculos do desprezo com que ação política consequente apenas
as elites, brancas, sempre trataram respondendo aos problemas tal co-
a sociedade brasileira. mo eles são postos pelas elites.
Ao eleger o combate à inflação O MNU entende que o redirecio;
como ponto básico de sua política namento da luta política no Brasil é
económica, o governo criou condi- urgente. O movimento sindical não
ções para que os problemas estru- pode limitar sua atuação à luta an-
turais fossem secundarizados, tiinflacionária, traduzida por su-
abrindo brechas para a completa cessivas campanhas de reposição
deterioração das condições de vida salarial, cujos ganhos atingem ca-
do povo brasileiro. tegorias cada vez mais minoritá-
A escola pública faliu, os servi- rias, em relação ao conjunto da
ços de saúde estão em fase termi- classe trabalhadora. Cabe aos sin-
nal, e não se tem notícias sobre in- dicatos e às centrais sindicais
vestimentos significativos para o associar-se às amplas camadas da
transporte coletivo, as habitações população trabalhadora nas reivin-
populares e o saneamento. Em em- dicações por transportes coletivos,
prego já não se fala, pois a inflação moradia, reforma agrária, acesso à
tem que baixar às custas da reces- saúde, à alimentação, à educação,
são. Somado ao desemprego cróni- pela adoção de políticas que possi-
co, que atinge especialmente os tra- bilitem a desconcentração da ren-
balhadores negros, está aquele pro- da.
duzido pelas crescentes demissões Ás associações de moradores de
por parte das grandes e médias em- bairros pobres e favelas não podem
presas. continuar desconhecendo sua im-
No caso das grandes empresas, portância no combate à violência
nacionais ou multinacionais, é pre- racial, pelo direito à vida. Parte
ciso não perder de vista que a dis- considerável destas associações
pensa de trabalhadores não ocorre limitam-se a repassar os tickets de
apenas por efeito da recessão, mas leite fornecidos pelo governo, aco-
conjuga-se com a adoção de mudan- modadas numa parceria impossível
ças no processo de trabalho, via in- com o poderoso inimigo.
formatização, que torna dispensá- O movimento ecológico precisa
vel a mão-de-obra menos especiali- atentar para o fato de que o meio
zada. ambiente interessa, acima de tudo,
Não há lugar para o negro como A resposta a esta questão está es- tratégia mais ampla de extermínio às populações que nele vivem. Um
produtor (o emprego não será recu- treitamente relacionada com a am- do povo negro. Ás mortes parece- meio ambiente saudável pressupõe
perado aos níveis em que ocorria pla difusão das práticas de VIO- rão "naturais", ao contrário da es- o tratamento da água, dos esgotos,
em 1980, antes da "crise ), tampou- LÊNCIA RACIAL, que têm no Es- terilização maciça de mulheres ne- do destino final do lixo. Pressupõe
co haverá lugar para o negro numa tado seu principal avalista. Se ain- gras, que já vem sendo alvo de pro- terra para os trabalhadores rurais e
economia onde as empresas tende- da há dúvidas quanto a esta afir- testos e ações políticas, dentro e fo- oferta de alimentos.
rão a localizar seus investimentos mação, que se pense sobre a omis- ra do movimento negro. Decretada Fora da ação política organizada,
onde haja um mercado consumidor são do governo brasileiro na imi- nos gabinetes dos órgãos públicos com base na compreensão esboçada
para seus produtos, acossados pelo nência de uma epidemia de cólera. de "saúde", a cólera é pena de mor- anteriormente, não há saídas
aumento da concorrência interna- Uma epidemia capaz de eliminar, te: mais eficiente do que a pratica- possíveis. E preciso vencer a inér-
cional. aos milhares, exatamente os seto- da pela polícia diariamente, menos cia provocada pela perplexidade
O QUE ACONTECERÁ AO PO- res da população que não mais inte- polémica do que a legalização do que marca esta fase de transição a
VO NEGRO, NUMA SOCIEDADE ressam, que não têm e não terão es- Estado assassino proposta por nível mundial. A escolha do MNU
ONDE A EXISTÊNCIA DE UM paço nas estruturas de poder e ri- Amaral Netto. permanece inabalável, e os fatos
GRANDE NUMERO DE TRABA- queza da sociedade. Que recla- Para enfrentar as graves ques- demonstram o seu acerto: o negro é
LHADORES, POBRES E SEM mam por políticas sociais das quais tões postas pela conjuntura o o ponto de partida e o objetivo cen-
ESPECIALIZAÇÃO, TENDE A o governo quer se livrar. MNU, obviamente, não poderá tral do PROJETO POLITICO ca-
TORNAR-SE DESNECESSÁ- Deixar entrar a cólera no país é a atuar de forma isolada. Por isto, paz de resgatar a verdadeira face
RIA? solução perfeita, dentro de uma es- através de sua militância, busca da sociedade brasileira.

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Ns 19, maio/junho/julho de 1991
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Salvador-Bahia
JORflfiU

A magia BOB
do Reggae: MARLEY
da Jamaica Omito
ao Maranhão como
"Que palavra mágica é essa
Que veio da Jamaica
Magno Cruz (*) Foto Jorrimar de Souza
sucesso de uma radiola é basicamente a qualidade
das "pedras" que a mesma possui. Essa prática colo-
metáfora
O presente artigo tem como intenção mostrar
Enfeitiçar o coração do Mara?" ca os donos de radiola em evidência e acaba por gerar que a pretexto de se "cultuar" determinados
(Binho) um fato que alguns consideram negativo: o não surgi- símbolos míticos, espetaculares, modernos e
mento das bandas de reggae (existem apenas duas em afirmadores de identidades, vêm se desenvolvendo,
São Luís), e, consequentemente, os compositores ma- entre os jovens negros de Salvador, relações de socia-
Dia 23 de novembro de 1990 foi uma data memorá- ranhenses de reggae terminam não sendo referência
vel para a comunidade negra de São Luís. A cidade li- bilidade ao tempo em que se pratica a "nova etnicida-
teralmente parou para assistir o show ao ar livre de para o público regueiro. de baiana".
Jimmy Cliff. Centenas de milhares de pessoas — uma Em nome desses mitos se expressam relações so-
multidão jamais vista em tempo algum na capital ma- "O reggae pra mim é tudo ciais, na forma de rituais, em dois espaços culturais
ranhense — se comprimiram para participar das vi- Batendo bem lá no fundo comuns pelo entretenimento: os bares reggae e o car-
brações positivas do cantor jamaicano, que, dias an- Como um tambor envolvente naval dos blocos afro.
tes, na sua chegada à Capital Brasileira do Reggae, Quem invade a vida da gente" O mito é tratado aqui como algo "vivo". Neste sen-
driblando protocolos, seguranças e regueiros que se (Marinildes) tido ele "fornece os modelos para a conduta humana,
acotovelavam no aeroporto, pegou um táxi e foi para conferindo, por isso mesmo, significação e valor à
o Espaço Aberto (clube de reggae muito frequentado). As vibrações do reggae (tocado em quase todas existência".
Lá, pediu uma rede para deitar, e, comendo mangas, emissoras de rádios AM e FM), que congrega, cçmcen- Por sua vez o ritual "tem como'traço distintivo a
ficou ouvindo discos de reggae que desconhecia na tra e mobiliza a negrada maranhense, são, hoje, um dramatização, isto é, a condensação de algum aspec-
própria Jamaica. Por sinal, os Paralamas do Sucesso, forte instrumento de identificação racial. Os reguei- to, elemento ou relação, colocando-o em foco, em des-
em 1989, durante sua estada em São Luís, também fi- ros e as regueiras (essas na sua maioria não alisam taque, tal como ocorre nos desfiles carnavalescos e
zeram comentários semelhantes. mais os cabelos) começam a orgulha-se de sua negri- nas procissões onde certas figuras são individualiza-
tude. Isso é muito bom. Mas não é tudo. Por esse mo- das e assim adquirem um novo significado, insuspei-
"Dos alagados guetos da realidade tivo o Movimento Negro, só agora (tentando correr tado anteriormente, quando eram apenas partes de si-
atrás do prejuízo), busca delinear estrategicamente tuações, relações e contextos do quotidiano".
Uma nova identidade Embora a etnicidade — comportamento politizado
Fruto da mesma opressão" uma política de atuação — menos teórica — junto à
massa regueira para reforçar, acelerar sua tomada de de um grupo social — venha a compreender as rela-
(Carlão) consciência crítica que o faça entender e ver-se como ções sociais em discussão, é na "socialidade" que se
parte de uma sociedade racista/exploradora e como revela toda a força da coletividade humana. Diferente
Como o reggae chegou ao Maranhão e se tornou ele- agente de transformação dessa sociedade. do "social" — marcado pela pragmaticidade da
mento indissociável da cultura do povo afro- política e da economia — a "socialidade" representa
maranhense? Muitas explicações, muitas pistas: faci- a gratuidade do coletivo; o simples prazer do encon-
lidade de entrada de discos pelo corredor Caribe/Be- "Desperta nação regueira tro, sem fins utilitários, ou sem finalidades práticas
lém/São Luís; semelhança rítmica com o tambor-de- Iça a tua bandeira ou ligadas à estruturação social.
crioula e bumba-meu-boi; mesma ascendência étnica Com tua sede de um dia mudar O que caracteriza a frequência a bares reggae e o
de negros maranhenses e jamaicanos, etc. Há, porém, Desperta nação regueira carnaval dos blocos afro como ritual é, entre outros
pesquisas tentando desvendar com mais profundida- Rei Bob Marley falou fatores, que estes acontecimentos constituem-se em
de esse fenómeno que se iniciou na década de setenta, SO NÓS PODEMOS NOS LIBERTAR" relações sociais referentes ao próprio contexto social
nos bailes periféricos da Ilha, onde se tocava meren- (Tadeu de Obatalá) global, do qual procedem.
gues, lambadas caribenhas e canções bregas — som Portanto, o nosso objetivo é, embora de modo assis-
para curtir agarradinho, lenta ou aceleradamente, Mas o reggae não é apenas uma manifestação tipi- temático e fragmentário, apresentar algumas das
conforme o compasso da música. Tais clubes, fre- camente urbana (da capital), ele se estende com a múltiplas relações de sociabilidade praticadas no
quentados maioritariamente pela população negra, mesma intensidade pelo interior maranhense, princi- contexto dos bares reggae e nos blocos afro, sob a me-
eram alvo cotidianamente das "blitz" policiais, com palmente nas comunidades negras rurais que — se- táfora dos mitos espetaculares de Bob Marley e, por
correrias, pancadarias e prisões arbitrárias. Nesse gundo pesquisas de SMDDH e CCN — são mais de extensão, do reggae e da crença rastafari.
ambiente de festa e repressão começaram a rolar as quatrocentas. Lá as festas iniciam na sexta-feira com Para chegarmos às nossas apreciações colocamo-
primeiras "pedras" — "pedra", "pedrada", "tijola- o tambor-de-crioula, e só no sábado, com a chegada nos no lugar de observador e participante no contexto
da", são expressões que os regueiros usam para de- da radiola e do motor a diesel (nos povoados sem ele- sócio-cultural em questão; fundamentamo-nos em al-
signar um reggae de boa qualidade. trificação), é que acontecem os bailes de reggae, que in- gumas leituras de textos teóricos de antropologia, en-
variavelmente se prolongam até o domingo. saios e matérias jornalísticas. As observações foram
"Nos guetos de toda cidade Em 1988, visitando Cajueiro, — uma comunidade feitas no bar reggae "Cravo Rastafari", localizado,
O brilho da raça presente se faz" negra de Alcântara, — encontrei um pessoal (homens, desde 1988, à Rua Gregório de Matos, no Maciel, e no
(Tadeu de Obatalá) mulheres, crianças) torrando farinha. No meio da bloco afro Muzenza, sediado à Rua Alvarenga Peixo-
casa-de-forno um grande gravador à pilha tocando to no bairro da Liberdade.
No finais de semana, os regueiros e regueiras capri- um reggae de Bob Marley. Perguntei se ali todos gos- Em fins dos anos 70, a imagem do artista afro-
cham na indumentária, ostentam gosto refinado, ele- tavam de reggae; o rapaz que mexia a farinha no ta- jamaicano Bob Marley e a sua música. — o reggae -
gância, orgulho. São mecânicos, lavadores de carro,. cho, espantado reagiu: "O siô, qualé o preto que não popularizaram-se em Salvador, estimulando um com-
vigilantes, camelos, empregados da construção civil; gosta de reggae!?" portamento redefinidor da cultura popular dos jovens
são empregadas domésticas, mães solteiras, estudan- negros da capital. Associados aos mitos recém-
''Reggae a tua magia forjados — Marley e reggae — aqui chegaram os
tes, desempregados. Geralmente moram em palafitas E que vai predominar" princípios gerais da doutrina redencionista rastafari.
ou favelas; são (ou de pais) originários da zona rural (Paulo Henrique Akomabu)
maranhense. 0 sistema doutrinário e ritualístico rastafari crê na
Os clubes de reggae proliferam pelos bairros perifé- existência de um deus supremo (JAH); num messias
ricos e caracterizam-se pelas radiolas, — algumas de- (*) Magno Cruz e todos compositores citados são militantes (RASTAFARI) que conduzirá o "povo negro" à "ter-
las chegam à sofisticação de terem circuito interno de do CCN-MA (Centro de Cultura Negra) do Maranhão - Cx. ra prometida" (Africa = Etiópia); faz restrições a ali-
televisão, — embora o que indique o menor ou maior Postal: 430 - S. Luís mentos animais e ao corte dos cabelos; e a maconha
j|-r|C;

inteiro e fazendo os longos cabelos parecerem voar.


Em que pese estar localizado a cerca de 30 metros de
uma delegacia de polícia, pode-se notar grupinhos re-
partindo livremente um "baseado"; naqueles mo-
mentos o controle policial parece relaxar, o que talvez
se explique por ser — aquele bar — um espaço institu-
cionalizado.
Concluímos as apreciações sobre bares reggae reco-
nhecendo a fragilidade da organização social em tor-
no desses espaços. Os frequentadores mais assíduos
têm o bar principalmente como um local de proxemia.
A realidade do mundo rasta em Salvador não se
restringe aos rituais das terças e domingos nos bares
reggae. Eles não são homogéneos na interpretação do
ser rasta; alguns procuram suas identidades em ou-
tras formas de relações sociais.
O Caso Muzenza
Os blocos afro se constituem em modernas manifes-
tações culturais dos negros baianos. Dentro do espíri-
O Cravo Rastafari, to de confraternização na festa, os negros expressam
suas especificidades — sociais e culturais — enquan-
no Pelourinho to grupo distinto e inserido no contexto abrangente
em Salvador da sociedade brasileira.
O bloco afro Muzenza é o segundo caso, dos citados
Interior do Cravo Rastafari em noite de reggae neste artigo, onde o mito Bob Marley funciona como
um referencial capaz de sugerir uma visão polarizada
(kaia, ganja, etc.) funciona como um elemento de co- as cores simbólicas da Etiópia e da Jamaica (verde, da estrutura social em que vivem seus fãs. A palavra
municação entre o crente (rastaman) e o seu mundo vermelho, amarelo e preto); fotografias de líderes do Muzenza é de origem bantu (kikongo) e denomina o
místico. O Rastafarianismo foi teorizado pelo pan- nacionalismo negro; pinturas e esculturas criadas por noviço em Candomblé Angola — equivale a "iaô" dos
africanista jamaicano Marcus Garvey que, nos anos artistas rastas frequentadores do bar. nagô.
20, pensava num retorno de todos os negros ao seu lu- Nas tardes/noites das terças-feiras ocorre com Não obstante ter sido oficialmente fundado em
gar de origem (genericamente a Africa). mais originalidade o processo social e ritual e é maior março de 1981, o bloco redefiniu a sua génese, afetado
O reggae surgiu nos anos 60 e evoluiu de outros rit- o número de frequentadores. Também aos domingos, pelo impacto da morte de Bob Marley em maio daque-
mos afro-jaipaicanos; do ponto de vista técnico, o no mesmo horário, muitas pessoas rumam ao "Cra- le ano. Os fundadores "construíram ' uma mítica que
reggae se caracteriza pela forte acentuação da segun- vo". O proprietário acredita que a presença domin- relaciona o bloco ao contexto cultural afro-jamaicano
da e da quarta batida em cada compasso 4/4. Os te- gueira deve-se à influência dos ensaios do bloco Olo- no que se refere aos símbolos da cultura musical mo-
mas das canções reggae refletem as aspirações cultu- dum — realizado próximo ao bar — e às terças, ao derna: Marley, reggae, Jamaica e rastafari. Na identi-
rais do seu jovem publico negro da classe trabalhado- grande fluxo de frequentadores da "Bênção"* que dade mítica o Muzenza foi fundado no njês da morte
ra. vêem os bares reggae como uma extensão daquele ri- de Marley; a rua onde está sediado passou a ser co-
Em Bob Marley o conteúdo temático é, predomi- tual. É como se na Bahia o "sagrado" se complemen- nhecida como Av. Kingston — equivale dizer que o
nantemente, a justiça e as aspirações dos negros des- tasse no "profano". Nas palavras de Wilson: "Se ba- Muzenza localiza-se na própria capital da Jamaica.
cendentes de escravos; lembranças da escravidão, a tizam lá com o padre e depois se batizam com o cravo No imaginário do grupo, seus componentes são ti-
rebeldia da juventude negra e as críticas contra o co- aqui". dos como "os verdadeiros jamaicanos" e, não raro,
lonialismo e o sistema ocidental (a Babilónia), etc. É através do reggae que se desenvolve o processo alguém se refere ao território/bloco como a Jamaica:
Ao cantar esta temática Marley define, a si e aos das relações sociais no bar. Embora existam as variá- "Vou pra Jamaica".
demais negros, como pessoas singulares em busca de veis de classe e "status", elas não se constituem em Ao "criar" uma identidade mítica o bloco superou,
um tratamento singular, mas, não por isso, diferentes barreiras no relacionamento entre os frequentadores. magistralmente, a morte de Bob Marley e com isso
de qualquer ser humano. O reggae proporciona uma integração; no entanto, is- fortaleceu sua própria ideologia.
Na Bahia, Marley, reggae e rastafari foram absor- to não implica que seus fãs esqueçam as mensagens O momento "efervescente" na dramatização do ri-
vidos no contexto cultural moderno, numa das for- "politizadas" contidas na música, com as quais eles tual ocorre quando, por ocasião do desfile, o bloco
mas mais expressivas da comunicação negra: o entre- tanto se identificam. Nos bares reggae a música fun- apresenta-se frente ao palanque oficial: os componen-
tenimento (o lazer, a diversão,etc.). Assim, o carna- ciona como um "pólo de unidade" ou um interesse es- tes da "tribo" sentam-se no asfalto formando um
val dos blocos afro e a frequência a bares reggae se pecífico que transcende as diferenças de classe e grande círculo, enquanto que, no centro, os compo-
constituem em momentos rituais onde estes símbolos "status". Mas qual seria este interesse específico? nentes da ala rastafari dançam, ao som do reggae da
míticos são renovados e as suas "propostas" são Ao nosso ver, os encontros nos bares reggae escon- banda Muzenza, e um deles exibe um poster de Bob
comparativamente atualizadas. dem algo que foge do círculo da "politização" exis- Marley. Nesses momentos o rito cumpre a sua função
tente nestes ajuntamentos; a frequência ao "Cravo" de renovador do mito e da sua "proposta" social.
"Cravo Rastafari" justifica-se também por se constituir em uma oportu- Por outro lado, a organização política do bloco so-
nidade de comemoração coletiva, de estar próximo fre, simbolicamente, uma alteração: a ala de rastas,
Muito embora Salvador — nos dias de hoje — com- aos companheiros, sem qualquer outro objetivo que antes de presença eventual no cotidiano do bloco,
porte alguns bares especializados em reggae e sob o não seja a alegria de estarem juntos se divertindo passa a ter o papel fundamental de condutora de
aparato espetacular que o ritmo congrega, o bar num ritual de integração. Diz Wilson em relação aos ações rituais e mantenedora da ideologia do Muzenza.
reggae "Cravo Rastafari" se destaca, entre outras frequentadores do "Cravo": "Eu sinto que estão Passa a ter, inclusive, um papel mítico particular na
coisas, pela notória "homogeneidade" social (traba- mantendo uma união positiva, fraternal e amizade. dinâmica do bloco. Não é à toa que o rasta é um dos
lhadores negros) e pelo acentuado caráter de espetá- Perguntam por que o outro não veio naquele dia!..." símbolos mais reivindicados no Muzenza. O compo-
culo que marca o seu ambiente. Segundo o proprietário do bar, a música mais solici- nente do Muzenza, portanto, ao "assumir", simboli-
O "Cravo" tem 9 sua organização administrativa tada atualmente é um "reggae romântico", "Number camente, a identidade mítica, pode ver o quanto a vi-
no molde familiar. À frente está Wilson, 29 anos e sete One", do cantor Gregory Isaacs. da real está distanciada da ideal e, assim, tentar
filhos; embora até use alguns anéis nos dedos (os ras- Não obstante a predominância dos jovens trabalha- modificá-la.
tas jamaicanos usam em profusão), seus trajes e ati- dores negros entre os frequentadores do "Cravo", Os textos musicais do bloco primam por expressões
tudes distanciam-se dos estereótipos rasta local (ocorre, nesse espaço, o encontro com estrangeiros, es- que sugerem o apocalipse: "A terra tremeu", "arre-
(gírias, roupas coloridas, cabelos longos, etc). tudantes universitários e artistas locais. A integração benta Muzenza", "trovão azul", "guerrilheiros da
O bar teve o seu início na rua João de Deus, tam- permite que, vez por outra, o proprietário do "Cra- Jamaica", etc. Neste sentido, o bloco reflete muito
bém localizada no Maciel/Pelourinho. Naquele tem- vo" receba, do exterior, posters de astros do reggae, bem o conteúdo ideológico do reggae. O reggae vem
pos (de 1981 até 1988) o tipo de música negra executa- revistas, botons e correspondências remetidas por proporcionando a abertura de canais simbólicos entre
da parecia definir o grau de "politização" do ambien- grupos culturais afinados com Marley, rastafari e culturas heterogéneas. A Bahia e a Jamaica estão en-
te. Diz Wilson: "Tocava Obina Chok, músicas do Ilê, reggae. trelaçadas — no imaginário dos amantes do reggae —
Gil... Depois me incentivaram para o reggae cons- Na rua, defronte ao bar, concentra-se a maior parte por uma união mística, embora com veracidadede um
cientização e passei a tocar as músicas que vêm cons- dos frequentadores, o que é facilitado pelo diminuto passado etno-histórico comum, propiciada por Bob
cientizar a população negra: Bob Marley, Alpha tráfego de veículos naquela artéria. E do lado de fora Marley e a sua música. Marley vive!...
Blondy, Jacob Miller, Peter Tosh e outros". onde ocorre boa parte das relações sociais e simbóli-
As mudanças de mentalidade devem-se, entre ou- cas: as exposições em público, permitindo ver e ser
tros fatores, às influências das lideranças negras, a visto por um maior número de companheiros, da ori- ERICIVALDO VEIGA (BA)
exemplo do D. J. Lino Almeida, compadre de Wilson. ginalidade em ser rasta — dançando reggae de corpo É sociólogo e conselheiro cultural do Bloco Afro Muzenza
O que caracteriza os bares reggae mais tradicionais
é a especialização em executar, mecanicamente, mú-
sicas reggae e, como complemento, a venda de uma
infusão — conhecida como "cravinho — feita de ca-
chaça, cravo da índia, limão e mel. No "Cravo Rasta-
NOTA
* A "bênção" ou "bença" foi abordada, do ponto de vista
simbólica, na missa rezada nos dias de terça-feira, às 18
horas, na Igreja de São Francisco, os frequentadores se
espalham, entretendo-se, por todo território simbólico
fari" são adicionados, como querendo distinção, be- histórico e antropológico, em palestra proferida pelo Terreiro/Maciel/Pelourinho.
ringela, gengibre e beterraba. Prof. Vivaldo da Costa Lima. Atualmente, a festa da NR: O jornalista Hamilton Vieira, em diversos artigos do
A decoração do "Cravo" — às vezes chamado de bênção se constitui num dos rituais de integração da ju- jornal "A Tarde", também tenta explicar o fenómeno "A
"bar de Wilson" — é feita à base de posters de astros ventude negra de Salvador; após a presença, às vezes Bênção" das terças-feiras, em Salvador.
do reggae, especialmente Bob Marley; bandeiras com
6 JQRnflL

OMNUeas ideologias brancas (II) E por esse prisma que riqueza e miséria devem ser enfocadas. problema a apenas isso, é igualmente um erro, uma avaliação
JOSAFÁ MOTA - MNU/PE Pelo lado da Civilização Branca, o bem-estar, boas casas, pis- primária. Racismo é um sistema de dominação que tem como
cinas, carros, planos de saúde personalizados, reserva de finalidade manter povos sob seu jugo, seja no plano económi-
bons empregos garantida. Pelo lado da Civilização Negra, as co, histórico, teórico. Quando denominamos a esquerda brasi-
Causou polémica e muita discussão o artigo de Per- palafitas, o transporte caro que leva grande parte do mingua- leira de "esquerda branca", longe de ser uma gozação ou me-
nambuco que saiu no número anterior do jornal do do salário, os barracos que a polícia invade sem ordem judi- nosprezo, é uma constatação, porque só o racismo explica o
Movimento Negro Unificado. Nunca se viu tanto al- cial (coisa impensável numa mansão ou apartamento, locais fato de um movimento social que se diz revolucionário conce-
voroço, tanta gritaria. Nunca o conceito Civilização Branca onde mora a maioria esmagadora dos brancos), a quilométrica ber uma leitura do trabalho no Brasil a partir da chegada dos
ficou tão evidenciado como agora, após a publicação do citado fila do Inamps, onde o cidadão negro implora um atestado de anarquistas no início desse século, os chamados "trabalhado-
artigo, visto que as mais variadas concepções ideológicas loucura para um parente seu (por falta de referência positiva res organizados". Os quatrocentos anos restantes, em que o
brancas uniram-se em coro afinadíssimo no sentido de comba- sobre o seu passado, derrotado espiritual e socialmente, o ne- trabalho foi feito de forma "desorganizada", ela apaga com a
ter sem trégua o Movimento Negro Unificado. Foram postas gro é o grande cliente da Civilização Branca nos manicômiosl. borracha do racismo. Os companheiros negros das tendências
de lado as rixas do dia-a-dia, o embate quase antropofágico Em todos os países onde houve escravidão negra, basica- da esquerda branca têm ciência dessa acrobacia ideológica?
pelo predomínio político e ideológico nos movimentos sociais; mente no lado anglo-saxônico, a Civilização Branca, num ges- Faz-se urgente procurar o "capa" repectivo para a necessária
adotou-se, inclusive, a tática "você concorda com isso que es- to de esperteza política, permitiu que se desenvolvessem pe- explicação. Recentemente, o Movimento Negro Unificado
tá escrito aqui?", aplicada a todo militante do Movimento Ne- quenos bolsões de riqueza no interior da comunidade negra — procurou um parlamentar pedindo-lhe ajuda na confecção de
gro Unificado — PE. Independentemente da resposta, que na- a famigerada burguesia negra. Situada no meio do caminho um livro didático sobre a história do negro; ele respondeu que
turalmente era "concordo", uma saraivada de conceitos, táti- entre o movimento negro consequente e a Civilização Branca, "tudo bem, eu ajudo, mas seria melhor escrever um livro so-
cas, doutrinas vinha em seguida. a burguesia negra é sempre acionada por esta para "apazi- bre a história dos trabalhadores..." Ora, se levarmos em con-
Diante disso, resolvi escrever a segunda parte do artigo, guar os ânimos dos radicais". No Brasil, para a felicidade do ta que o povo negro tinha apenas dez anos de vida útil, é de se
não no intuito de retificar o anterior, mas para ratificá-lo, pois Movimento Negro Unificado, essa burguesia negra não exis- imaginar o grau de preconceito do parlamentar a respeito do
nossa prática política está fundamentada na História dos nos- te. O senador Bob Kenendy, quando aqui esteve em 1967, foi trabalho "desorganizado..."
sos antepassados, que deixaram exemplos a ser seguidos. protagonista de um acontecimento no mínimo cómico. Numa O Movimento Negro Unificado nunca negou que na relação
Não há lugar para desculpas quando temos o gigantesco com- entrevista coletiva, foi bombardeado pelos brancos latinos, entre patrão e operário existe o antagonismo de classes. O que
promisso de dar continuidade à luta do poyo negro na busca que acusavam os anglosaxões de serem perversos com "seus ratificamos é que o Povo Negro não é uma classe, e quem o do-
incessante do ajuste de contas histórico. negros". Esperto, o senador saiu da situação vexatória dizen- mina e explora não é "a classe dominante que aí está". È pior
do que "o racismo é um problema sério; a completa ausência do que isso. O que domina o Povo Negro é uma mentalidade
Afinal, o que é de negros na entrevista é uma prova de que o racismo não é
apenas uma questão da sociedade americana". Mudando o
escravista posta em prática pela Civilização Branca durante
todos esses séculos. Já explicamos isso um milhão de vezes.
civilização branca? que deve ser mudado, foi isso que ele disse à plateia composta Esse método que aplicamos explica tudo, até o fato de a es-
O conceito de Civilização Branca, longe de ser uma inter- de intelectuais latinos que foram à entrevista com o livro "Ca- querda branca, mesmo sem entender nada de movimento ne-
pretação "equivocada e estreita" (ouvimos muito issol, é para sa Grande & Senzala" debaixo do braço, e que apelaram, gro, continuar questionando a existência do Movimento Ne-
nós de suma importância para entendermos o processo de ex- diante do mal-estar geral, para a miscigenação, alegando que gro Unificado. E aí vale tudo, desde a infâmia "o M.N.U. ne-
ploração do trabalho no Brasil. Sustentamos que a exploração no Brasil não existia mais negros e brancos, e que, portanto, ga a questão de classe" até a união pura e simples das teses de
do trabalho está intimamente ligada à desgraça espiritual, eles estavam ali como representantes dessa fusão racial. Não Gilberto Freyre. Ora, não limitemos as mazelas sociais de um
existencial e histórica do povo negro. Para nós, nada mudou convenceu. país que somente há cem anos deixou de negociar com seres
nesses cinco séculos, contados a partir da invasão branca no Ora, longe de ser um revolucionário, o que Bob Kenendy humanos negros à mera questão de classe. O empresário car-
continente americano, seja no seu lado latino-ibérico, seja no não entendeu era como o branco brasileiro, flagrantemente niceiro que chama a polícia para reprimir uma greve justa dos
anglo-saxõnico. minoria, não criou condições para o florescimento do "meio- empregados de sua empresa é o mesmo que pratica a reserva
O Movimento Negro Unificado, por estar ciente de que o po- termo", ou seja, da burguesia negra, para usá-la no momento de emprego em benefício do trabalhador branco quando está
vo negro não é "massa", impessoal, sem rosto, sem cor, sem oportuno. Certamente chegou à conclusão de que os brancos em jogo uma vaga a ser preenchida entre este e um negro.
experiência histórica, procura conscientizá-lo de que a revolta latinos são mais radicais que os anglo-saxões... Constatem isso nas empresas aéreas, nas de turismo, nos ho-
em grande escala, que sempre foi nossa característica no Bra- Nem todo mundo conhece as gravuras de Rugendas e De- téis de luxo onde as vagas de garçom, que na Africa do Sul são
sil, é fundamental. Se usamos o termo Civilização Branca, ao bret. Eles estiveram aqui no século XIX e registraram o coti- ocupadas pelos negros, estão sempre à espera de brancos para
invés de "classe dominante", é porque estamos convictos de diano do povo negro, sendo torturado, trabalhando no eito, preenchê-las. A polícia paulista que prendeu e matou Robson
que a miséria brasileira, ou a riqueza, está fundamentalmente vendendo bugingangas nas ruas ou mesmo conversando à Silveira da Luz, negro, pobre, sob a acusação de ter roubado
ligada aos critérios raciais. Quem trouxe os imigrantes euro- porta da senzala ou mocambo. Cento e cinquenta anos depois, uma caixa de maçã, é a mesma que prendeu e jogou num cam-
peus para ocuparem as terras que por justiça seriam dos ne- as gravuras de Rugendas e Debret continuam tão atuais quan- burão o primeiro-ministro do Suriname Dersi Bouterse, igual-
gros não foi a "classe dominante", mas a Civilização Branca, to um computador de última geração. Caso alguém queira co- mente negro, porém riquíssimo, dono de castelos na Holanda.
que primeiro sentiu-se ameaçada numericamente e enxergou nhecer a realidade brasileira, basta caminhar pelos grandes Antes que baixem o nível de novo afirmando que temos o sr.
que a solução era trazê-los para fazer um "balanceamento"; centros urbanos com essas gravuras debaixo do braço. Enten- Bouterse como referência positiva do que venha ser um gover-
depois porque entendia que o papel social do negro não era o derá que só o Brasil branco mudou, com suas lojas de luxo, nante negro, afirmamos que ele não faz nem um pouco a cabe-
de pequeno proprietário de terra - mas o de subempregado com suas usinas que antes eram engenhos, com seus latifún- ça dos militantes do M.N.U. Seu nome apareceu neste texto
faminto, esfarrapado, dilacerado em sua humanidade; anos dios maiores do que muitos países, e bem distante daquilo que para que a esquerda branca explique, à luz de sua interpreta-
mais tarde, sem perspectiva, muitos foram ser subemprega- é a maior humilhação para um ser humano — passar fome. ção, essas "particularidades"...
dos dos mesmos imigrantes, que já davam sinais de enriqueci- Quanto ao Brasil negro, as gravuras falam por si só, sem re- Fidalga, aristocrática, a esquerda branca, como já disse, se
mento rápido. toques. Elas só estariam atrasadas ou envelhecidas se o povo recusa terminantemente a mergulhar na História do Brasil.
Se os critérios para se chegar ao Brasil na qualidade de imi- negro tivesse atingido o estágio de pobreza; mas como ele está Por isso, joga a culpa na "classe dominante" quando o empre-
grante não foram ditados pela Civilização Branca, então como ainda no de miséria absoluta, as gravuras continuarão servin- sário chama a polícia para reprimir uma greve de trabalhado-
explicar a interceptação feita pelo governo a um navio carre- do para medir a distância entre o Brasil negro e o Brasil bran- res, não se dando conta de que essa atitude autoritária é fruto
co. da mentalidade escravista reinante no país onde trabalho, pe-
gado de imigrantes negros vindo dos Estados Unidos, no
inicio desse século? lo menos nos primeiros quatrocentos anos contados a partir
O fato é que o povo negro vive há cinco séculos sob o jugo A Questão da da invasão branca, nunca foi sinónimo de salário. E quem vi-
veu sob essa condição de trabalhador sem salário e com sua
desse conceito feroz que o extermina fisicamente, que o enlou-
quece de forma explícita, que o mata pela fome, pelas doen- Esquerda Branca humanidade dilacerada, transformada em coisa, em objeto de
ças, que o torna vítima maior dos sucessivos "pacotes econó- Quando já estava participando ativamente da guerrilha ur- compra e venda? Parece incrível, mas a maioria dos militan-
micos", e bucha de canhão na Guerra do Paraguai. Das Capi- bana, o capitão Carlos Lamarca, numa carta escrita à esposa, tes da esquerda branca só "estudou" o negro na época do pri-
tanias Hereditárias a Fernando Collor de Mello, a Civilização usou o seguinte brado à guisa de despedida: mário e ginásio — para passar de ano. Como esses "estudos"
Branca continua implacável na sua missão de anjo da morte — Hoje é 4 de julho, aniversário dos Estados Unidos. Viva eram através dos livros didáticos escritos a partir da ótica co-
do nosso povo. A cólera que há cem anos dizimou milhares de os Panteras Negras! lonial, é comum entre eles distorções como esta: enquanto nós
negros é a mesma que hoje retorna, à beira do terceiro milé- Falar de quem já morreu não é bom; é complicado porque al- do M.N.U. afirmamos que os africanos, por serem essencial-
nio, para dizimar os descendentes daqueles que sobreviveram guém pode alegar que não há resposta, não há defesa nem ata- mente políticos, faziam greve de fome em sinal de protesto por
à sua primeira investida. Para a Civilização Branca, resolver que. Os mortos não atacam nem se defendem quando seus sua condição de escravos, esses militantes ainda sustentam a
o "problema negro" sempre foi torcer por uma epidemia. O fa- atos e palavras são julgados por quem está vivo. Por isso, lon- velha história do Banzo, aquela "doença" provocada pela
to de não ter resolvido os problemas sanitários no país prova ge de mim sepultar numa cova-rasa a coerência de Carlos La- saudade que o pobre negro sentia da Africa...
o que estamos afirmando. Problema sanitário significa alaga- marca, que abandonou tudo, vida estável, família e promo- Para encerrar esse capítulo, deixo aqui uma pergunta para
dos, palafitas, favelas, locais onde o povo negro "reside". ções para combater a ditadura militar. aqueles que consideram o Movimento Negro Unificado uma
Aliás, quanto a essa afirmação, no século XIX os negros co- A questão não é essa, mas outra, bem diferente. E im- entidade "estreita", "equivocada" e "divisora da classe ope-
meçaram a desconfiar do pouco caso que os médicos faziam possível alguém imaginar o capitão Carlos Lamarca fazendo rária": uma empregada doméstica negra pode considerar co-
da epidemia de cólera nas senzalas e mocambos; razões para esse brado: mo membros da classe dominante seus patrões brancos, cutis-
essa desconfiança não faltavam. Se eles eram uma proprieda- las e engenheiros da Petrobrás?
— Hoje é 7 de setembro, aniversário do Brasil. Viva o Movi-
de, igual a um porco, uma vaca, um cavalo, então por que o mento Negro Unificado!
pouco caso? É que nas regiões Sul e Sudeste começavam a
chegar em massa os imigrantes irlandeses (setores da Civili-
A experiência nos diz que não seria apenas impossível. Se-
ria improvável. Se hoje, doze anos depois da criação do
Os Negros e
zação Branca já preparavam o golpe do treze de maio) para
ocupar lotes de terra ou trabalhar nas lavouras de café. De
M.N.U., a esquerda branca ainda nos combate, imaginem o
que ela não faria há vinte...
as Tendências
senzala em senzala, de mocambo em mocambo, os negros fo- Então, qual o motivo da sinipatia do capitão Carlos Lamar-
ram espalhando que o pouco caso das "autoridades" era, na ca pelos Panteras Negras? È que a esquerda branca sempre No Estado de Alagoas existe um quilombo chamado Cajá
verdade, um plano sinistro para matá-los e assim resolver o teve admiração por movimento negro — desde que ele esteja dos Negros. Segundo a tradição local, esses negros são sobre-
"problema negro". fora do Brasil. Quanto mais radical for o movimento negro, viventes do massacre que as forças coloniais fizeram em Pal-
Para Fernando Collor de Mello, que tem a mesma mentali- mais admiração provoca. Panteras Negras, Muçulmanos Ne- mares. Se isso for verdade eles estão há três séculos neste lo-
dade escravista de Tomé de Sousa, a cólera será sua aliada no cal onde, naturalmente, a terra é um bem comum, socializada.
gros, Consciência Negra, tudo isso é válido e justo. Agora, imaginem um companheiro negro de uma dessas ten-
combate à miséria, mesmo porque a Civilização Branca, da É curioso como Gilberto Freyre e a esquerda branca se en- dências fazendo uma palestra em Cajá dos Negros sobre a IV
qual ele faz parte, não será atingida. Pena de morte, esterili- contram tão facilmente quando o tema é movimento negro no Internacional ou sobre a Albânia. Por aí avaliamos o grau de
zação das mulheres negras, cólera... Pronto, está resolvido. Brasil. E curioso mas ao mesmo tempo compreensível, pois distância entre esses companheiros negros e sua própria His-
Quando afirmamos que miséria e riqueza seguem à risca os ela é parte da Civilização Branca que, embora rachada nos tória. Sabemos que não é fácil tornar-se negro, politicamente
critérios de raça e de cor, não estamos cometendo nenhuma conceitos esquerda & direita, mantém seu predomínio sobre negro; é difícil tanto para um membro da Causa Operária co-
barbaridade sociológica ou histórica. O que existe no Brasil os povos não brancos das Américas. mo para um da Assembleia de Deus. Porém, fiquem certos os
são realidades sociais conflitantes baseadas na secular pen- Racismo não é só barrar um negro na porta de um elevador companheiros dessas tendências: entrar para um movimento
dência entre negro e branco, entre Civilização Negra e Civili- social, bem como movimento negro não é só fazer trança afri- negro consequente é dar um passo adiante na luta, é libertar-
zação Branca. Negar esse conflito é negar a realidade do país. cana. Se hoje há setores da esquerda branca que limitam o se por inteiro.
JORnfiL 7

Brasil, demagogia racial Em cima desses dois casos flagrantes — dentre vá- liberal, por incrível que pareça, é o suporte da políti-
rios outros — é notória a empáfia e a coragem desses ca discriminatória, racista, violentamente preconcei-
"Eu tenho parentes negros, fun- indivíduos em desafiarem a carta magna que "rege" tuosa que caracteriza a sociedade brasileira. Quando
cionários, empregados, que sem- as relações sociais do país — a Constituição Federal, se afirma que somos uma democracia racial, joga-se
pre foram tratados como gente". capítulo I, art. 5S, item XLII, que afirma ser o racis- ao mesmo tempo, sobre o segmento negro explorado e
mo um crime inafiançável. Não vamos nos deter ape- discrinado, a culpa da sua situação atual no sistema
VERA LÚCIA CERQUEIRA - nas na análise legal dos fatos, mas do ponto de vista de estratificação de classe. Porque se há iguais opor-
dona da VDL político também, e questionar até que ponto o poder tunidades para todos, o negro não se encontra no cu-
constitucional é capaz de barrar o poder racista que me da pirâmide porque não quer: dissipa seu tempo
ainda permeia as cabeças de muitos brasileiros, coor- no samba, na maconha e no álcool. A igualdade pe-
denando suas ações? rante a lei desse discurso justifica a desigualdade so-
No dia 28/03/91, a agência de Empregos VDL, Esta é uma resposta que só poderá ser dada quando cial real em que o negro brasileiro se encontra. O for-
de propriedade de Vera Lúcia Cergueira, em todas as pessoas comprometidas com as transforma- malismo jurídico, a concepção formalista do processo
Porto Alegre/RS, publicou anúncio em jor- ções estruturais deste país, e o conjunto da classe de interação social, determina, em última instância,
na local, solicitando candidatos brancos para vaga oprimida, despertarem das suas ilusões democráti- que esse discurso liberal absolva os racistas.
de gerente de oficina. cas, e começarem a ocupar os espaços que ainda estão Sem sombra de dúvidas, a questão central, que de-
Ao tomar conhecimento de tal anúncio, o Movimen- sob o domínio do poder racista. Pois é o poder racista ve nortear o Movimento Negro em sua luta contra a
to Negro de Porto Alegre e a Comissão de Justiça e que decide se tem de atirar ou matar, ou não tem de discriminação racial, e contra o "poder racista" está
Direitos Humanos tomaram imediatamente as medi- atirar em absoluto; se tem de prender ou não, se tem na sua capacidade de mobilização e ação, juntamente
das cabíveis, ou seja, ingressaram com notícia-crime que romper piquetes ou não, é o poder racista que de- com todos os setores organizados da sociedade. Com
contra a agência e, com base na Lei Orgânica do mu- cide quem pode comer e viver com a ajuda do Estado uma militância que desencadeie dentro de um proces-
nicípio, que prevê a cassação de alvará em casos de quando perde o emprego, e quem não pode comer nem so irreversível a conquista das consciências, da ver-
discriminação racial, a Secretaria Municipal da In- receber esta ajuda; quem pode utilizar os meios de dadeira sociedade igualitária, que possibilite a parti-
dústria e Comércio (SMIC) interditou a empresa. transporte e quem não pode; onde se recolhem os res- cipação efetiva no poder para que se possa de fato me-
Na mesma semana, em Rio Pardo, interior do Rio tos e onde não; quais as ruas que têm iluminação e lhorar as condições de vida do povo negro, que foi jo-
Grande do Sul, o vereador Edoli Camargo, em sessão bons passeios; e aqueles que não necessitam nem de gado às margens da sociedade como sendo o exército
da Câmara, discriminou em discurso aberto o sindi- uma coisa nem de outra; quais os bairros que se re-
calista negro Paulo Ivã Dias, atual secretário de Fi- de reserva à disposição do capitalismo selvagem. Pa-
constroem e quem poderá viver neles. E o poder racis- ra levarmos isso a bom termo, terão de ser levados em
nanças do Sindicato dos Ferroviários do R.S. Com ta que resolve qual o cidadão a ser chamado para conta quatro pressupostos básicos: utopia, vontade
base em gravação realizada na Câmara, o vereador incorporar-se ao exército, e contra que países vai lu- política, audácia e consciência de mudar.
adotou as seguintes expressões verbais: "...e aí os tar o exército e em que momento.
cuscos vira-latas tentaram tomar conta da reunião... O que se coloca na ordem do dia é a contradição en-
aí eram uns crioulos barbudos, cabelos enrolados... tre a ideologia da "democracia racial" e a prática au-
tinha um que até parecia, nem parecia gente, parecia toritária, que culmina na violência racial. LUÍS ALBERTO SILVA - RS
um macaco.,., parecia um bode, era gozação aquilo Como bem demonstra Clóvis Moura em seu livro Membro do Instituto Solano Trindade e coordenador
ali". "BRASIL: As Raízes do Protesto Negro", o discurso do projeto "Jus Populi"

A cor da pena de morte


A primeira proposta de que o projeto faz à Constitui- do primitivismo na execução
emenda à Constitui- ção. Isto porque a9 Lei Maior, primária, sem qualquer defe-
ção é de autoria do de- no seu Art. 60, § 4 , inciso IV, sa, de indivíduos socialmente
putado Amaral Netto (PDS- veda a proposição de "emen- marginalizados.
RJ) e, em apenas três artigos da tendente a abolir os direi- Com efeito, num caso a po-
"curtos e grossos", intenta pôr tos e garantias individuais". pulação desencadeia um pro-
fim à garantia constitucional Ora, se os direitos e garantias cesso de ação-reação, que só
do direito à vida. individuais têm por objeto a encontra espaço pela "ausên-
O artigo 2S do malfadado proteção de um sujeito — ser cia" do Estado; noutro, agen-
projeto prevê a "instituição da humano, cidadão — é evidente tes do Estado assumem postu-
pena de morte nos casos de a inconstitucionalidade do pro- ra ativa e promovem a chacina.
roubo, sequestro e estupro se- jeto. Como vemos, a condenação à
guidos de morte". No entanto, Por seu turno, entidades re- morte já é realidade no B: isil
buscando travestir o arbítrio presentativas da sociedade, a para os negros discriminados.
próprio e intrínseco à pena de exemplo da CNBB, OAB e ou- Assim, é evidente a "collora-
morte, o autor propõe sua ins- tras, se colocam publicamente ção" da proposta de legaliza-
tituição mediante plebiscito. contrárias à pena de morte pe- ção da pena de morte, quando
Sobre a tramitação do proje- las questões de legalidade e o que se deveria fazer é formu-
to, é importante destacar que o por defenderem a vida. Por lar projetos que efetivamente
mesmo apenas aguarda o mo- consequência, reivindicam gros nas relações de produção pusessem fim à acintosa con-
mento fatal de entrar em dis- uma ordem social justa para mo nos espaços de decisão e no centração de riquezas em pou-
todos, onde a sanção à prática e, essencialmente, das relações poder político.
cussão e votação no plenário de poder, interessa-me apontar E decorrência deste modelo quíssimas mãos; que retiras-
da Câmara dos Deputados. de delitos tenha por finalidade alguns elementos relativos ao o verdadeiro caos que hoje pre- sem das ruas, para alimentar e
Diante da incontestável gra- a recuperação e reintegração debate, a meu ver ainda pouco senciamos: são cada vez mais educar, os 25 milhões de crian-
vidade da matéria, diversos social do indivíduo, e não a avaliados. frequentes, e porque não dizer ças abandonadas; que cons-
segmentos da sociedade têm-se aplicação de castigo primário e Entendo que a ordem do dia truíssem moradias para as mi-
comprovadamente inócuo no "normais", os-Iinchamentos, lhares de famílias sem-teto.
manifestado contrariamente à deveria ser a discussão acerca chegando-se na Bahia à estar-
realização até mesmo do ple- combate à criminalidade. do modelo de sociedade im- recedora estatística de um a No entanto, em vez de en-
biscito, por sua flagrante in- Várias são as razões que plantado em nosso país, que cada três dias. frentar os grandes desafios
constitucionalidade, tanto pelo atestam a plena improcedência desde o seu "descobrimento" Por seu lado a ação direta do que possam nós levar a uma vi-
aspecto jurídico-formal quanto da instituição da pena de mor- assentou-se na discriminação Estado tem igualmente contri- da digna e justa, quer o depu-
pela falácia de sua utilização. te, destacando-se estudos rea- para "justificar e explicar" o buído na consolidação de um tado Amaral Netto impor a es-
A pretexto de ser democrático, lizados em países onde há vi- máximo alijamento e explora- quadro que insere em nosso co- colha sobre como deve o Esta-
o plebiscito, na verdade, não gência dessa extremada conde- ção de grandes contingentes tidiano o convívio com mani- do, oficialmente, matar os seus
passa de grotesca manipulação nação, que revelam sua inefi- populacionais que, não por festações de barbárie, impró- cidadãos; se por enforcamento,
de massas, especialmente nu- cácia enquanto instrumento acaso, não são brancos. prias a uma efetiva nação. fuzilamento, cadeira elétrica.
ma conjuntura em que a falên- que deveria inibir ou coibir a Foi assim com os índios e Neste caso, trazemos como Para os inimigos da vida, tais
cia moral, política e económica prática criminosa. continua a sê-lo com os negros exemplo o assassinato de 18 formas são apenas "detalhes".
do Estado é constatada por to- Considerando a significação que constituem mais da meta- homens (na maioria negros) no E lamentável.
dos. da pena de morte num país de de toda a população brasi- interior do 429 Distrito Policial
Os mais renomados juristas, com as características étnico- leira, mas que têm reduzida de São Paulo, uma evidente e
ao lado de respeitados parla- raciais do Brasil e, ainda mais, participação na riqueza nacio- paradoxal coexistência da VERA LÚCIA
mentares, ressaltam a afronta a sistemática exclusão dos ne- nalmente produzida, bem co- "modernidade" com o hodien- ARAÚJO-MNU/DF
8 JORflfiL.

D ENTREVISTA

LELIA GONZALEZ
Jornal do MNU — Lélia, em que o Movimento Negro
tem contribuído para a cidadania do negro brasileiro?
beta ou semi-analfabeta, sem preparo profissional ne-
nhum. Quais seriam as tarefas mais importantes do
Movimento Negro para a próxima década, já de olho no
estar à frente pela sua experiência, pelo que aprendeu
durante anos de luta, poderíamos estar todos juntos,
pensando e implementando. A gente percebe que existem
Gostaríamos que você fizesse um balanço do movimen-
to, dos anos setenta até aqui. século da automatização? algumas exigências éticas, para dentro do movimento,
Lélia Gonzalez — Eu acho que a contribuição foi Lélia Gonzalez — Na Africa, num desses Congressos e que o Movimento Negro ainda não tomou consciência
muito positiva, no sentido de que nós conseguimos sen- em que estive, essa questão pintou, levantada por um delas. Eu acho isso. Essa coisa da solidariedade é fun-
sibilizar a sociedade como um todo, levamos a questão companheiro do Movimento Negro dos EUA. A grande damental. Falo de uma perspectiva ética, evidentemen-
negra para o conjunto da sociedade brasileira, espe- questão levantada foi esta: "Nós estamos aqui falando te, mas estou apontando para o político. E essa solida-
cialmente na área do poder político e nas áreas relati- do passado, de glórias ou de derrotas, mas como é que riedade que vai permitir que você não se envolva com
vas à questão cultural. E aí a nossa contribuição é mui- estamos nos colocando em termos de perspectivas, em as formas de cooptação que vêm de fora. Então a gente
to mais nossa, digamos assim, produto dessa criativi- termos de futuro? O ano 2000 está aí, o mundo se auto- percebe que isso leva a essa falta de perspectiva de im-
dade que marca a comunidade negra. Estou pensando matiza cada vez mais — e nós?". Exatamente a mesma plementação de uma prática política e de um trabalho
em termos de Bahia, fundamentalmente, porque eu questão que você está fazendo agora. Essa preocupa- efetivo, concreto, visando esse futuro aí. A gente nota
acho que a Bahia é um grande fulcro nesse sentido da ção está no ar e quem está pensando a questão do negro que determinados quadros, que são pessoas assim que
emergência da identidade a partir do cultural. A Bahia, está pensando nela também. Então me parece que a têm uma competência, uma capacidade, se deixam le-
como diria o Gil, deu a régua e o compasso. E estou questão passa por aí, nós temos que estabelecer tarefas var pelas propostas de cooptação que vêm da parte do
pensando, especificamente, nos afoxés e blocos afros dentro de um campo concreto e rapidinho desenvolver sistema. Então você se vê numa espécie de beco sem
pelo papel que eles têm tido de levar essa conscientiza- uma militância muito ativa junto às próprias comuni- saída, porque, de repente, você está levando uma por-
ção para dentro da comunidade negra, embora levem dades negras espalhadas pelo Brasil. Porque não esta- rada aqui e eu não te ajudo, porque eu estou comprome-
também para fora. Eu vejo como meus alunos brancos mos mais naquele tempo (claro, quando for necessário, tida com a minha cooptação. Então eu me fecho para
estão atentos para a questão da Bahia, dos blocos tudo bem) de só ficar fazendo manifestaçãozinha de minha comunidade, para meus companheiros de Movi-
afros, do reggae. Eles vêm aqui aprender alguma coisa. rua, não. Temos que nos voltar para dentro do quilom- mento Negro, porque eu estou muito comprometida
Em termos da comunidade mesmo, acho que é necessá- bo e nos organizarmos melhor no sentido de dar um com a minha proposta de cooptação, e muitas vezes
rio aprofundarmos muito. Aqui em Salvador a gente instrumental para esses que vão chegar e vão conti- achando que estou atuando enquanto militante. O que
percebe como isso rola tranquilo. Uma tranquilidade nuar o nosso trabalho. Veja que isso é muito sério, em eu vejo é que os feitores continuam, só que se sofistica-
que a gente sente até mesmo na postura física do negro termos de nossa comunidade, essa ausência de instru- ram muito mais e nós temos que estar atentos para is-
na Bahia. Uma coisa muito interessante de a gente ob- mental que lhe possibilite se colocar em pé de igualda- so. Em termos de Movimento Negro no Brasil, a nossa
servar e tem a ver com um mínimo de consciência de de com as populações não-negras, que têm um acesso proposta não é a mesma do Movimento Negro dos Es-
suas raízps, de suas origens culturais. Tanto que o pes- extraordinário à informação. Você percebe isso nas pe- tados Unidos. Não é porque, em primeiro lugar, se nós
soal diz que os negros da Bahia são bonitos. Quando as quenas coisas, como esses videogames da vida. As nos- somos maioria efetivamente, nós temos que lutar pelos
pessoas dizem isto, não percebem que elas estão se sen- sas crianças nem sabem o que é isso, porque elas estão nossos direitos, nós não temos que ficar no gueto, temos
sibilizando é por uma postura de alguém que sabe que nas ruas, sem escola, vendendo balas. Me parece que a que partir para ocupar espaços na sociedade como um
ele é ele mesmo e não um outro, aquele outro determi- tarefa passa por aí, por essa visão prospectiva, pelo es- todo, não há dúvida. Nós temos as propostas mais de-
nado pelo poder branco. E nisso, efetivamente, os blo- tabelecimento de campos nesse sentido aí. Hoje a mili- mocráticas. E da gente que tem que partir essas pro-
cos afros tiveram uma contribuição assim extraordina- tância se diversifica, e ela é obrigada a se diversificar postas de democracia, efetivamente. 0 sistema funcio-
riamente fundamental, a ponto de sensibilizarem gran- em face dos terríveis problemas que nós temos pela na justamente no sentido de alijar a maioria, basta vo-
des estrelas da música popular, que não podem deixar frente. O pessoal da área de informática dá cursos para cê vê, por exemplo, o quadro da classe política: é a
de falar nesses blocos afros. Inclusive, a articulação do o pessoal que não conhece, senta e conversa, mostra mesma coisa desde que o Brasil é Brasil. E o cara, da-
Olodum com Paul Simon, muito interessante também como é que é. Assim você instrumentaliza, por exem- qui a pouco é o filho dele, daqui a pouco é o neto dele, o
porque levará mais adiante, como aconteceu com o reg- plo, o pessoal que vai trabalhar na área de educação. poder rola praticamente nas mesmas mãos e nós fica-
gae de Bob Marley. Me recordo uma vez que eu estava Recordo-me de um papo com Darcy Ribeiro, ele dizen- mos de fora, nós que somos o povo — o movimento ne-
numa biboca do Senegal, uma birosquinha numa área do justamente essa coisa. Eu estava defendendo a ora- gro cultural está cansado de mostrar que nós somos o
periférica, e havia lá uma caixinha cheia de discos. O lidade, a cultura oral. E ele dizia que achava válido o povo, já provou isso tranquilamente pra todo mundo,
cara vendia tudo ali na loja, gato, sapato, não sei que que eu estava dizendo, mas que não era suficiente. Por- só não vê quem é cego ou quem quer permanecer cego.
mais... e Bob Marley. E você fica pensando até onde que se não souber ler, dança. É arrancado da chamada O movimento negro na sua vertente política tem que
ele chegou e marcou. Nesse lado cultural aí acho que civilização, não tem espaço e vai ser aquele tipo de pensar isso com muito seriedade. Em primeiro lugar,
nós sempre fomos vitoriosos, a verdade é essa. Agora, massa anónima que a gente vê nos romances de ficção portanto, a proposta de gueto não tem nada a ver com a
no que diz respeito às questões político-ideológicas, a científica, não é verdade? Acho que o Movimento Ne- gente, embora haja a tentativa de nos guetizar. O siste-
coisa é séria, a meu ver. O que a gente percebe é que o gro tem que pensar seriamente nessa questão. E veja ma tenta nos guetizar, evidentemente, mas nós não po-
MNU futucou a comunidade negra no sentido de ela di- que é uma de nossas grandes bandeiras, sempre levan- demos aceitar isso, porque ele próprio se coloca pra to-
zer também qual é a dela, podendo até nem concordar tamos a questão da educação. Agora acho que nós não do mundo como uma coisa aberta, que não existe aqui
com o MNU. Hoje a gente verifica que pintou uma cer- a implementamos devidamente, a gente falava muito discriminação racial, que todos são iguais perante a
ta autonomia no que diz respeito a algumas entidades mas não desenvolvemos trabalhos concretos nesse sen- lei. Mas vamos ter que provar isso mesmo, nós vamos
aí pelo Brasil, que articulam áreas de ação que não são, tido. E temos que partir para isso urgentemente, on- brigar para provar que somos todos iguais perante a
especificamente, aquelas que ficam numa política abs- tem. lei, mesmo. A questão da democracia tem muito mais a
trata, genérica, mas áreas de ação no sentido concreto, Jornal do MNU — A tarefa é muito grande, árdua e o ver conosco, que somos excluídos, do que com os caras
dentro da comunidade, dentro das propostas e das exi- sistema não está interessado. Como é que o Movimento que estão no poder, que não estão a fim, evidentemen-
gências desta comunidade. Para dar um exemplo inte- Negro se articula, e com quem, para que esta tarefa te. E aí entra a questão dos governadores negros, que
ressante, me recordo do momento da Constituinte, em mínima que é alfabetizar o povo se concretize. O fato terão que provar a que vieram, com relação a sua pró-
Brasília, quando eu atuava enquanto mulher negra de termos hoje governadores negros teria alguma in- pria comunidade. Eu vejo os feitores do sistema como
dentro do movimento de mulheres, no Conselho Nacio- fluência, ainda que não tivessem sido eleito por voto uma questão muito complicada, porque eles são muito
nal. Havia uma passagem de informações, porque o negro explícito? sofisticados. Eles estão à frente de instituições podero-
Movimento Negro estava reunido lá para fazer suas Lélia Gonzalez — A questão dos governadores ne- sas e você tem que estar muito atento para ver até que
propostas aos constituintes. E eu me recordo que, de gros é muito importante. Eles têm um mínimo de poder ponto você está no jogo. Mas você percebe que muitos
repente, chegou uma mulher dizendo assim: "Olha, o para desenvolver esse tipo de tarefa, não há dúvida. companheiros ganham o jogo, se aliam aos feitores (co-
Movimento Negro está reunido levantando uma ques- Eu acho que o Movimento Negro tem que estar junto mo aconteceu na nossa história, para que não se pense
tão incrível, a questão do crime inafiançável com rela- desses caras, tem que pressionar. Eles não podem so- que os feitores agiam sozinhos. Eles tinham seus cúm-
ção à discriminação racial, a gente tem que trazer isso mente ficar lá dizendo: "Olha, sou o primeiro governa- plices também), e contribuem para essa dispersão, essa
também para nós". Esse tipo de troca, de contribuição, dor negro eleito". É importante que eles percebam a ta- falta de perspectiva, para a falta disso que você colo-
que para mim era uma coisa abstrata que eu lia nas his- refa, a exigência ética que eles têm com relação a sua cou, um programa mínimo de ação. Eu me lembro da
tórias, por exemplo, do Movimento de Mulheres, do comunidade. E se é uma exigência ética, tem que ser Zezé Mota, por exemplo. Ela fez uma tentativa em sua
Movimento Negro e do Movimento de Homossexuais política também, porque as duas coisas se articulam. área de criar aquele catálogo de atores negros. E o que
nos EUA. E eu verificava uma anterioridade do Movi- Jornal do MNU — Existem hoje no país algumas aconteceu? Qual foi o suporte, o apoio que o Movimen-
mento Negro na colocação de uma série de questões pa- centenas de entidades negras. Pulverizamos ideias por to Negro deu para Zezé Mota? Nenhum. O que a gente
ra o Movimento Feminista que, por sua vez, passou pa- esse Brasil afora, mas não conseguimos consolidar um viu foi crítica, crítica, crítica. E ela não quer mais sa-
ra o Movimento Homossexual e, de repente, você cons- programa mínimo não só para o próprio movimento, ber disso, quer viver no meio da comunidade artística,
tata isso a partir de sua experiência concreta. Eu acho como para ser assumido por outros setores da socieda- etc. E o trabalho dela acaba se transformando em um
que isso significa um avanço do Movimento Negro, de. Como você avalia isso? trabalho isolado, e sozinho você não tem forças. É esse
uma contribuição extremamente positiva. Quer dizer, Lélia Gonzalez — Nos faltou exatamente esse instru- estilhaçamento em face das estratégias de cooptação
nós deixamos de ser invisíveis, a verdade é essa. Não mento de trabalho, uma reflexão crítica muito profun- do sistema, essa falta de resposta aos companheiros
dá mais para se ficar escamoteando a questão das rela- da no sentido dessa articulação aí. Eu acho que nos fal- que estão numa linha de frente, na boca do sistema,
ções raciais no Brasil, pois nós estamos aí, de uma for- ta, eu falo isso através de uma vivência e experiência quando os feitores da vida chegam e o atingem. Porque
ma ou de outra. pessoal, um sentido de solidariedade enquanto movi- no momento em que neguinho me atinge, não está atin-
Jornal do MNU — Nós estamos a dez anos do século mento. A gente verifica, e isso é uma questão da maior gindo a uma pessoinha que é a Lélia, está atingindo a
XXI, com uma população negra em sua maioria analfa- importância, que determinados quadros que poderiam mulher negra, é o movimento negro que está sendo
JORflfiU
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locando. Agora, na própria fala, na postura, no ges- Jornal do MNU —Quando falamos há pouco de ética
tual, você verificava que a questão racial era... Isso a e Movimento Negro, Ficaram no ar algumas avaliações
gente já discutiu muito e a experiência mais positiva" da militância que você poderia retomar agora para con-
que eu tive foi num encontro na Bolívia promovido pe- cluir.
lo MUDAR (Mulheres por um Desenvolvimento Alter- Lélia Gonzalez — A questão ética no interior do Mo-
nativo), uma entidade internacional que foi criada um vimento Negro e também uma outra questão que se en-
pouco antes do encerramento da década da mulher em caixa aí, a da perspectiva histórica. Uma consciência
1985. Foi ali, pela primeira vez, que eu encontrei um ti- histórica que, de repente, a gente perde, na medida em
po de eco, uma maturidade por parte do movimento, no que nos jogamos com tal intensidade para dentro do
sentido de parar e refletir sobre as questões que a gente movimento, pensando como nossa contribuição é divi-
coloca enquanto mulher negra, a dimensão racial que na e maravilhosa (e aí entra a questão do narcisismo,
esta presente em tudo e você não pode fingir que ela que é preciso também exorcizar), a gente acha que vai
não existe. Mas não há dúvida de que existe um setor resolver todas as questões numa vidinha que é a nossa
do movimento de mulheres que está preocupado com a vida. E acontece que o buraco é muito mais embaixo.
questão racial. O feminismo, como uma feminista in- Estávamos falando do que a gente pode fazer nos pró-
glesa colocava, não terá cumprido sua proposta de mu- ximos dez anos em termos de comunidade negra e veja
dança dos valores antigos, se ele não levar em conta a as dificuldades que a gente tem. A perspectiva é a de
questão racial. O que eu percebo é que o nosso cultural que a gente abra alguns caminhos e a gente tem que ter
nos dá elemento muito fortes no sentido da nossa orga- aí consciência da nossa temporalidade, ou seja, a gente
nização enquanto mulheres negras. Uma história que vem e passa, vem e passa no sentido de passar mesmo e
rolou e gera uma grande luta interna com o homem ne- passa também a nossa experiência para quem está che-
gro, uma questão muito séria dentro do Movimento Ne- gando. Aí é que me parece que os africanos podem nos
gro, um ressentimento muito grande das mulheres diz ensinar muito. Precisamos ter a paciência revolucioná-
respeito à sexualidade, porque muitos homens negros ria para verificarmos o seguinte: olha, sabe, não queira
preferem as mulheres brancas. Isso é verdade, não dá abraçar o mundo com pernas e braços, porque não dá
pra você ficar escondendo o sol com a peneira. Eles in- jeito e, a partir daí, você tem a consciência histórica da
ternalizaram o valor branco como supremo, como to- temporalidade, do processo, o que vai te permitir ter
dos nós só que a gente está tentando sair dessa. Até al- muito mais tranquilidade no que diz respeito a tua in-
gumas lideranças dentro do Movimento Negro só tran- serção no movimento. Você adquire uma sabedoria.
sam com mulheres brancas e isto é uma forma de repro- Você verifica sua temporalidade, seu tempo de inser-
dução do esquema racista, sem sombra de dúvidas. ção, o que você pode fazer, e tem a humildade de dizer:
Dentro da proposta de feminismo que a gente está ten- eu posso dar essa contribuição e darei com todo o cari-
tando colocar, me parece fundamental não perder de nho, mas eu não sou o único, não sou o salvador da pá-
vista a relação homem negro/mulher negra. Não é só a tria. Porque entra muito aí aquela visão centralista, eu
gente se olhar enquanto mulher negra, mas nos vermos diria até fascista, de quem se acha dono da verdade.
na relação com o homem negro, e ele com a gente. Por- Graças a essa visão distorcida da realidade, tem ocor-
que tem que ser uma coisa dinâmica, sobretudo porque rido lutas internas terríveis, cobranças absurdas. Você
fazemos parte de uma comunidade que é discriminada exige a perfeição do seu companheiro, porque você a
pela dimensão racial. E me parece que as respostas de exige de você. Você acha que tudo tem que acontecer
parte a parte , até o momento, não são satisfatórias. De como um milagre divino, e você é o porta-voz dessas
um lado nós temos uma postura muito machista de par- coisas divinas. E o que acontece, muitas vezes, é que
te do homem negro, e eu vejo que a sua procura da mu- você sacrifica sua existência pessoal em função do mo-
lher branca passa por aí. Pela nossa experiência histó- vimento e temos verificado quantos companheiros se
rica juntos (homem negro/mulher negra) a gente se co- perderam no meio do caminho. Se perderam por falta
nhece muito bem, há toda uma cumplicidade no que diz de clareza política, evidentemente, mas também por-
respeito ao enfrentamento de uma série de questões. que se jogaram de uma forma tal que, para eles, a cons-
Mas no caso da mulher branca, ela não vivência essa trução de sua própria vida era um negócio tão secundá-
experiência da discriminação racial. Então acontece rio porque eles estavam apostando única e exclusiva-
atingido. E você constata que neguinho permanece que, muitas vezes, os homens negros vão exercer seu mente no movimento. E eu acho que não pode ser as-
num silêncio extraordinário, de cumplicidade com esse machismo junto às mulheres brancas. De certa forma, sim, não. Você tem que ter um equilíbrio. Eu vejo meu
tipo de opressão, com esse tipo de discriminação, por- o homem negro atualiza sua rivalidade com o homem próprio caso, eu fui muito assim, é uma autocrítica o
que é uma discriminação que se veste de aliada do ne- branco na disputa da mulher branca. Ele tem, portan- que eu estou fazendo também. Eu achava que tinha que
gro. E a coisa é perigosa por isso. O feitor de hoje é o to, uma afirmação muito grande como macho e se acha
grande aliado que chega e bate nas suas costas, etc. E estar em todas, me jogando loucamente, e meu projeto
então o rei da cocada branca. E a mulher negra fica jo- pessoal se perdeu muito, agora que eu estou catando os
que, de repente, está vivendo às custas de nossa comu- gada pra escanteio. O ressentimento surge por aí.
nidade, se dizendo um grande aliado que faz e aconte- pedaços para poder seguir a minha existência enquan-
Acontece que os dois são muito carentes, há uma pro- to pessoinha que sou. E a gente sai muito ferido e ma-
ce. E aparentemente faz, mas faz para dentro do siste- funda carência de parte a parte. Na medida em que, no chucado dessa história toda. Porque, evidentemente,
ma e o sistema diz: esse cara é legal. interior do movimento, nós mulheres constatamos is-
Jornal do MNU — Você aproximaria aí os conselhos seu sonho é tão grandioso e a realidade é tão... que você
so, a coisa assume uma dimensão tão forte que, muitas sai machucado. Machucado não só porque você inves-
criados já em diversos Estados? vezes, nos leva a assumir as mesmas posturas do movi-
Lélia Gonzalez — Olha, com relação aos Conselhos, tiu demais nesse tipo de projeto, mas machucado tam-
mento feminista branco. Nós não podemos reproduzir bém pelas porradas que os outros lhe dão, não há dúvi-
nem tanto. E uma arma de dois gumes. Minha expe- mecanicamente as propostas de um movimento femi- das. A questão da militância tem que ter esse sentido e
riência é com o Conselho dos Direitos da Mulher, onde nista ocidental judaico-cristão, etc. aí nós temos que aprender com os nossos antigos, os
nós fomos parar num beco sem saída, porque o Conse- Jornal do MNU — Quais são essas propostas? africanos, esse sentido da sabedoria, esse sentido de
lho engoliu a gente. Mil propostas, todo mundo queren- Lélia Gonzalez — A questão da sexualidade tem que saber a hora em que você vai interferir e como você vai
do trabalhar, fazer e acontecer, o maior entusiasmo. E, ser discutida num nível mais amplo e não no nível do interferir, fora desse lance individualista. E importan-
no entanto, bastou uma penada de um ministro da Jus- orgasmo, pura e simplesmente. Estou propondo um or- te distinguir o seguinte: projeto pessoal não quer dizer
tiça desses aí e acabou tudo. E isso que nós não pode- gasmo muito maior, um prazer e uma felicidade muito individualismo, não. E você se ver na sua dignidade de
mos perder de vista. É claro que nós temos que ter as maiores. E claro que a gente necessita ter conhecimen- ser humano. Você enquanto pessoa tem que buscar
frentes de trabalho e eu vejo o Conselho como uma to do próprio corpo, tudo bem. Mas me parece que, nes- crescer, desenvolver-se também. Agora, no Movimento
frente de trabalho. Como tal, ela é provisória, absolu- sa relação da mulher com a sua própria sexualidade, a Negro, você não vai crescer se misturar isso. Se mistu-
tamente provisória e você não pode esperar grandes re- gente pode cair em algumas armadilhas do tipo uma rou, dançou. Você vira um fanático, que ninguém
sultados dela. Frente de trabalho é isso: neguinho está exaltação exagerada de nossa própria feminilidade, aguenta, que ninguém suporta. Acho que isso é funda-
com fome, desempregado? Vamos criar uma frente porque evidentemente eu não posso deixar de reconhe- mental e vai lhe permitir essa reflexão e ainda lhe per-
aqui, botar esse pessoal. São modos que o sistema cria cer que eu tenho um lado masculino também, como vo- mitir não cair na sedução da cooptação. Você desenvol-
para botar açúcar na boca da gente, porque não está cês têm um lado feminino. Na medida em que eu exage- ve sua vida dignamente, seu projeto pessoal, e nesse jo-
abrindo no fundamental. E eu fico preocupada é com a ro a minha parte feminina, eu estou em desequilíbrio, go dialético com o movimento você vai ter a capacidade
disputa que se trava para participar dessas frentes. Aí embora não negue que uma das grandes coisas que de vislumbrar o que está acontecendo em torno. Se vo-
neguinho mata a mãe do outro e, de repente, acabou-se aconteceram no mundo nos últimos anos foi o Movi- cê mergulhar no movimento, você se afoga — e depois?
a visão de comunidade, entra a visão individualista mento de Mulheres, quanto a isso não há dúvidas. Pre- Depois vai acabar se suicidando, vai acabar um nihilis-
típica da cultura ocidental. Neguinho cai nas armadi- cisamos assumir uma posição mais equilibrada em ter- ,ta danado: "Sai fora, não quero mais saber de movi-
lhas do individualismo, briga com o outro, sacaneia, mos dessa relação homem/mulher, por que eu não sou mento negro, acabaram comigo". Vai embora cuidar do
entrega o nome na praça para conseguir um carguinho mulher sozinha, eu sou mulher com um homem, e é nes- seu projeto individual e não pessoal, e não quer mais
idiota onde ele não tem a possibilidade de fazer gran- sa relação que eu vou afirmar a minha mulheridade, saber do Movimento Negro, é capaz até de trair o movi-
des coisas. numa relação de troca com o homem, se não a gente
Jornal do MNU — Fale um pouco sobre sua trajetó- mento. Então me parece que esse equilíbrio é funda-
dança. E esses valores da cultura africana estão lá es- mental. Você constrói sua vida pessoal, você tem a pos-
ria no movimento feminista. quecidos no inconsciente da gente, e têm muito a con-
Lélia Gonzalez — No meio do movimento das mulhe- sibilidade de ser universal, humano, de entender o to-
tribuir no sentido do equilíbrio da relação homem/mu- do, de sentir esse todo dentro de você. Então você não
res brancas, eu sou a criadora de caso, porque elas lher. Se nós continuarmos muito ressentidas com nos- se sectariza, radicaliza mas não sectariza. E para isto
não conseguiram me cooptar. No interior do movimen- sos companheiros do Movimento Negro, se eles conti-
to havia um discurso estabelecido com relação às mu- tem que estar muito atento. Se não vai ser a grande
nuarem buscando uma relação de possessividade e de dançada. A gente cansa, a gente morre na praia.
lheres negras, um estereótipo. As mulheres negras são afirmação de seu machismo, nós, enquanto comunida-
agressivas, são criadoras de caso, não dá para a gente de, estamos dançados, a esquizofrenia já se instalou
dialogar com elas, etc. E eu me enquadrei legal nessa aí, tranquilamente. E nós, mulheres negras, temos que
perspectiva aí, porque para elas a mulher negra tinha ter uma visão muito crítica desse movimento feminis- Lélia Gonzalez é uma militante, pesquisadora, professora, antropóloga, de méri-
que ser, antes de tudo, uma feminista de quatro costa- ta, porque não dá para ficar reproduzindo determina- tos excepcionais. Entre muitos outros trabalhos publicou Festas Populares no
Brasil llndex. 1987). Esta entrevista foi realizada, em Salvador, por Jônatas Con-
dos, preocupada com as questões que elas estavam co- das práticas. ceição da Silva e editada por Edson Cardoso.
10 JORflRL

Com uma programação di- camentos e pressão psicológica.

Goianos
versificada, a I Semana Foram mantidos em cela coletiva
Goiana de Reação à Violên- junto a pessoas que se confessavam
cia Racial marcou a opinião pública marginais perigosos. Somente fo-
do Estado. "O que é MNU? Como ram soltos porque o pai de um deles
está aquele caso de racismo? Por os buscou na delegacia. Caso con-
que vocês não realizam algo em trário não se sabe — mas pode-se
imaginar — o que mais teria acon-

reagemà
nosso bairro?, são perguntas esti-
muladas por uma maior exposição tecido. O irónico em tudo isso foi
da entidade no difícil campo da rea- identificado inicialmente pelo
ção efetiva à violência racial. Não "Correio Braziliense" em sua su-
se trata de apenas denunciar os vá- cursal em Goiânia: os policiais es-
rios casos de racismo, mas de to- pancadores são do l8 DP, o mesmo
mar atitudes concretas que contri- Distrito Policial encarregado das

violência
buam para sua diminuição e futura investigações sobre o caso de racis-
extinção total, se possível. mo no mercado de trabalho sofrido
O motivo-base para a detonação por Maria Eulália Ferreira.
da I Semana Estadual foi o caso de Maria Eulália, 23 anos, foi impe-
racismo envolvendo bárbara tortu- dida de ter acesso a um emprego
ra em delegacia policial, sofrida por ser negra. Ela ficou sabendo,
por Albino de Souza, 29 anos, tra- através de um anúncio de jornal,
balhador braçal residindo há 17
anos na segunda maior cidade do
Estado, Anápolis. Somados mais
três casos — um de discriminação
no trabalho, outro também de es-
pancamento e prisão ilegal e, por
fim, um de arquivamento escuso de
um processo por crime de racismo
racial GERALDO JÚNIOR
que o restaurante "Muralha Chine-
sa" estava precisando de moças
com "boa aparência" para traba-
lhar no recinto. Surpresa ela ficou
ao constatar que a exigência de
"boa aparência" funciona como um
eufemismo para "que não seja ne-
gra", algo muito comum no dissi-
em local de moradia, a I Semana mulado e covarde racismo à brasi-
Goiana de Reação à Violência Ra- daço de ferro introduzido em seu a imprensa por meio de alguns de leira. O proprietário do restauran-
cial foi fruto de um caldo de cultura ânus, espancado com cabo de vas- seus profissionais toma para si o te, o chinês Yen Pin Jen — desco-
cujo ponto ótimo de ebulição se deu soura que chegou a se quebrar em direito de prejulgar condenando ou nhecendo os "códigos morais" da
no Congresso' Nacional do MNU, seu corpo, colocado sob eletrocho- absolvendo pessoas de acordo com sociedade brasileira — não hesitou
realizado em fins de março, no Rio que durante quatro horas consecu- vereditos desconhecidos mas sem- em afirmar sem meias palavras que
de Janeiro. tivas e finalmente ameaçado para pre imaginados. Apesar de terem Eulália não servia por ter o "cabe-
que calasse seu sofrimento. exigido e obtido o direito de respos- linho enroladinho", fato presencia-
Racismo e violência Albino só foi solto da cadeira de- ta, as entidades defensoras dos di- do por testemunhas. O proprietário
pois do quarto dia, devido à prisão reitos básicos de Albino identifica-
policial em flagrante do suposto criminoso, ram danos irreversíveis ao proces-
não quis nem fazer sua ficha de ins-
crição. O chinês só selecionou e
A violência policial contra o ne- Lorendi Ferreira de Almeida, se- so. anotou nomes de moças brancas.
gro no Brasil data do período colo- gundo Albino também vítima de Logo após a publicação da difa-
nial, quando as tropas portuguesas tortura. Flagrados em crime e erro mação. Albino teve sua prisão pre-
ostensivamente armadas manti- de cálculo, os policiais torturado- ventiva decretada com base em su-
Reagindo à violência
nham sob o império do terror todo res — que atuam no 29 DP de Aná- postas "ameaças" à família da víti- A exemplo das demais vítimas,
um povo. A herança colonial perse- polis — ainda ameaçaram o traba- ma, mesmo o rapaz não estando Maria Eulália Ferreira não deixou
gue a "elite" dirigente e faz com lhador braçal caso ele relatasse o mais na cidade e escondido de per- por menos. Reagiu à violência ra-
que ela — às vezes, contra seus pró- acontecido. Não intimidado. Albi- seguições dos policiais torturado- cial recorrendo à assistência jurídi-
prios interesses de longo prazo — no não só consultou um advogado, res. Os torturadores continuam a ca e processando o proprietário do
negue o caráter "revolucioríário" como denunciou tudo nos meios de perseguir pessoas próximas a Albi- restaurante com base no Artigo 59,
de sua classe. Neste e em outros as- comunicação de Goiânia, visto que no, pressionando-as — mesmo an- item XLIII da Constituição Fede-
pectos, o forte ranço conservador em Anápolis o delegado do 2S DP, tes da decretação da prisão — a de- ral que determina "a prática de ra-
da classe impede aquele tipo de mu- Jocely Machado, tem grande in- nunciar seu paradeiro. O clima psi- cismo constitui crime inafiançável
dança segundo o qual "perdem-se fluência política, já tendo sido can- cológico existente em Anápolis e e imprescritível, sujeito à pena de
os anéis mas mantêm-se os dedos". didato a deputado. criado artificialmente pelos crimi- reclusão nos termos da lei".
O conservadorismo brasileiro está nosos provavelmente impedirá que Foi neste clima que se deu a I Se-
cada vez mais investindo num ca- Imprensa conivente o trabalhdor retorne para o seu lar. mana Goiana de Reação à Violência
minho que mostra não querer so- O MNU-GO, em conjunto com o Racial entre os dias 09 e 13 de abril,
mente manter seus dedos e anéis Neste sentido, a ponta do iceberg Movimento Social Projeto Brasil e com uma programação que incluiu
como, violentamente, arrancar os mais visível até o momento surgiu o Movimento de Resgate da Identi- uma mostra de vídeo seguida de de-
dedos dos outros, num canibalismo na própria imprensa de Goiânia, dade Cultural, a princípio chegou a bate com o tema "A Violência Ra-
social que acaba por ser autodes- onde foi publicada no Jornal Diário ter seu direito de resposta negado cial Vista pelos Meios de Comuni-
trutivo. da Manhã uma matéria difamatória pelo editor do "Diário da Manhã", cação de Massa", entrega de Carta
E é neste contexto que ocorre o e sem levar em conta os mínimos o que acabou acontecendo pela fa- de Repúdio à Assembleia Legislati-
aumento da violência policial, ante- preceitos da ética jornalística. Pu- lha gritante no campo da ética. Mas va e à Secretaria de Segurança Pú-
cedida por atos violentos para to- blicada no dia 13.04.91, a "sacana- mesmo sendo facultado por lei e pe- blica, viagem a Anápolis numa ma-
dos os gostos: ideológicos, políti- gem" já começa pelo título, "Ara- lo Código de Ética do Jornalista, o nifestação de desagravo a Albino
cos, económicos, culturais... numa ponga e Lorendi são estuprado- direito de resposta não foi publica- de Souza e manifestação e panfleta-
lista de agressão quase interminá- res". O apelido de "Araponga" foi do com o mesmo espaço e destaque gem às portas do restaurante "Mu-
vel. O caso do trabalhador braçal cunhado pelos próprios torturado- dedicado à falsa matéria jornalísti- ralha Chinesa". Até o momento
Albino de Souza é exemplar. Man- res quando julgaram ser Albino de ca. Além de tudo, no rodapé do di- (meados de maio) sequer fomos
tido preso durante quatro dias, Souza um criminoso. Além disso, o reito de resposta sobreveio uma no- agendados pelo secretário de Segu-
acusado injustamente de estupro jornal adotou como verdade uma ta mentirosa. rança Pública do governo íris Re-
seguido de homicídio, foi colocado declaração emocional de uma pa- sende, Joaquim Tomaz. Mas o ob-
no "pau-de-arara" — instrumento rente da vítima de estupro e assas- Outras violências jetivo final foi alcançado: todos os
de tortura que consiste em uma tra- sinato que, sem prova alguma, afir- Também os jovens Roberto de processos foram pelo menos indi-
ve na qual, pelos pés e mãos, se mava que Albino era o criminoso. Sousa e Nilton da Silva, ambos ciados, seja judicialmente ou por
pendura a vítima, deixando-a à O que ocorreu foi algo tristemente com 20 anos, sofreram violência po- meio da Corregedoria de Polícia.
mercê dos torturadores —, sevicia- comum num país do Terceiro Mun- licial. Ficaram presos ilegalmente Os negros reagem à violência ra-
do sexualmente por meio de um pe- do em direção acelerada ao Quarto; por quatro horas vítimas de espan- cial.
ffià
JORflfiL. 11
Stevenson fala da pena de morte nos EUA
Bryan A. Stevenson é diretor-
executivo do Alabama Capital Re-
presentation Resource Center, nos
Estados Unidos. Há sete anos atuando
como advogado de condenados à pena de
morte, foi agraciado, em 1989, com o pré-
mio Reebok de Direitos Humanos. A en-
trevista com Bryan Stevenson foi reali-
zada em São Paulo por Milton Barbosa.
Jornal do M NU — O que significa a pena de morte
para os negros norte-americanos?
Stevenson — Nos EUA, a pena de morte é um símbo-
lo. Representa dominação, discriminação racial, como
nenhuma outra relação pode expressar tão bem. Du-
rante a escravidão a punição era a única forma de con-
trolar e de manter os escravos em seu lugar, por isso o
negro era condenado à pena de morte. Há mais de cem
anos, grupos como a Ku Klux Klan vêm conseguindo
eliminar os negros por essa ideologia da discriminação Bryan Stevenson (segundo à esquerda, ao lado de Sueli Carneiro do Geledés) com representantes do Movimento Negro de São Paulo em 24 de
racial. Setente e cinco por cento dos condenados no abril de 1991. Estiveram presentes à reunião, na sede do Geledés, representantes das seguintes entidades: MNU (Milton Barbosa, terceiro à direi-
Alabama são negros e este fato tem que ser levado em ta, na foto), Nação Cercão, Unegro, Soweto Organização Negra, Coordenadoria Especial do Negro (CONE), Conselho de Participação e Desenvol-
consideração. Representa a forma de controle que a so- vimento da Comunidade Negra e Grupo de Bancários Negros.
ciedade possui para desvalorizar a vida das pessoas.
Condenando à morte, a sociedade passa à frente a ideia criados mecanismos para que o negro se represente e negros terão direito a um representante.
de que matando as pessoas negras tudo está bem. estabeleça formas de poder. Cada reforma foi conse- Jornal do MNU — O que você pensa sobre a organi-
No Alabama, 65% dos assassinatos são cometidos guida pela organização da comunidade exigindo seus zação da população negra.
contra os negros na faixa de 18 a 35 anos de idade. O direitos. O direito ao voto não foi apenas uma decisão Stevenson — Acho que a organização da população
mais trágico é que se mata também no interior da co- da justiça, mas uma dura luta, de muita pressão sobre negra é muito importante. Muita gente pensa que o Mo-
munidade negra e, desta forma, somos oprimidos tanto cada um dos congressistas, conseguindo o negro em vimento de Direitos Civis foi um movimento espontâ-
por fora coma por dentro. 1964 o direito ao voto. Apesar das conquistas dos direi- neo, com as pessoas se juntando aqui e ali, mas natu-
Jornal do MNU — Esta situação é muito parecida tos civis, é importante ressaltar que o sistema judiciá- ralmente o que aconteceu foi uma luta de muita organi-
com a do Brasil. O que podemos fazer em conjunto para rio criminal é uma área que não tem sido afetada por zação, e que foi feita por líderes negros como vocês do
mudá-la? todas estas mudanças. Quando atacamos uma questão Movimento Negro no Brasil. Só agora as coisas estão
Stevenson — Há coisas que podemos fazer juntos. É como a pena de morte, nós estamos atacando uma área sendo escritas, e estão levando em conta esta articula-
importante que não vejamos essa luta apenas como muito difícil de ser afetada, pois a violência, como for- ção muito bem feita nos Estados Unidos.
uma luta contra a pena de morte, mas de valorização da ma de punição, é muito mais estruturada do que a edu- Estão descobrindo muitos documentos escritos so-
vida do negro em todos os sentidos. Devemos ensinar cação, a habitação e outras formas de violência racial. bre esta época, e que nos ajudarão a lutar nos dias de
aos brancos que eles também devem respeitar os ne- Jornal do MNU — A questão da pena de morte no hoje. Há um mito sobre os negros, que quando uma coi-
gros. É importante que os grupos de negros falem atra- Brasil é discutida de forma cíclica, nos momentos de sa é bem feita se diz que é magia negra, e quando é mal
vés de uma voz unificada, pois essa forma de união po- graves crises económicas e sociais. Como acontece nos feita se diz que é a maldição negra. As pessoas têm que
de ser um testemunho importante aos negros de que Estados Unidos? entender que nós do movimento não somos diferentes,
eles possuem uma força. Quando, na infância, nós vi- Stevenson — Nos EUA, também é cíclica. Os bran- somos pessoas com aspirações e desejos como todas as
mos os líderes negros enfrentarem essa opressão é que cos pobres reacionários festejam a pena de morte como outras pessoas.
passamos a acreditar que podíamos fazer alguma coi- uma forma de aproximação com o Estado, pois para Jornal do MNU — Como você vê o intercâmbio do
sa. Nos anos 60 e 70 as demonstrações de força não eles significa que o Estado está controlando a socieda- negro brasileiro com o americano?
mostravam apenas aos brancos, mas estavam ensinan- de. Há uma diferença entre a morte que resulta de Stevenson — Acho de fundamental importância, e fi-
do às crianças negras a possibilidade deste poder. E ações de grupos para-militares e a que acontece pela carei muito feliz em iniciar este intercâmbio das orga-
muito importante esta forma de ensinar aos brancos e a pena de morte. Quando nós éramos linchados, nós nizações do Movimento Negro do Brasil com as dor
nós mesmos. Nós temos que criar um canal de contato achávamos que havia uma força do Estado que consi- EUA. Vou apresentar grupos e ajudar no que for
sobre todos os problemas raciais. derava este ato ilegal. Quando somos mortos pela pena possível. Eu desenvolvo um trabalho na área específi-
Jornal do MNU — Fale-nos sobre a evolução dos di- de morte, o Estado está afirmando que este ato é legal, ca da pena de morte, dos Direitos Humanos, mas pode-
reitos civis. diminui a capacidade de defesa da comunidade, e au- rei estabelecer contatos das organizações do Movimen-
Stevenson — Vou começar falando como as pessoas menta a violência racial sobre ela. Há 2.440 pessoas no to Negro americano que atuam nos mais variados cam-
negras se sentem. Enquanto nós éramos escravos, nós corredor da morte nos EUA. Se todas fossem executa- pos, e que terão, como eu e a entidade à qual pe enço,
nos víamos como os brancos nos viam. Nós éramos das ao mesmo tempo, não diminuiria o índice de crimi- profundo interesse em se relacionar com as organiza-
"negros" (forma pejorativa nos EUA de se denominar nalidade nos Estados Unidos. Mas um fato está prova- ções negras brasileiras.
os descendentes de africanos). Depois da abolição da do, a pena de morte aumenta a violência sobre os ne-
escravatura nos víamos como "coloreds" (forma ame- gros.
nizada de se chamar os descendentes de escravos — al- Jornal do MNU — Fale sobre o poder nos Estados
go como marrom, mulato no Brasil). No princípio da lu- Unidos. u
ta dos direitos civis, éramos chamados "negros", nos
anos 60 passamos a nos chamar "black", e as outras
pessoas também passaram a nos chamar desta forma.
Stevenson — A população negra é 12% apenas da po-
pulação americana. Há algumas regiões de maior con-
Poder branco"
Hoje somos afro-americanos. Acho interessante esta
caminhada tão longa para chegarmos ao ponto de onde
centração de negros que de brancos, exemplo Washing-
ton DC, que possui uma população com 76% de negros,
onde o prefeito é negro e há vários representantes na
ameaça
As nossas companheiras do Gelédez Instituto da Mulher
viemos: a Africa. Assembleia. Há também outras concentrações urbanas
O Movimento Negro descobriu como somos, como como Filadélfia, Detroit, Nova Iorque, todas com pre- Negra, da cidade de São Paulo, vêm sofrendo ameaças de
nós pensamos sobre nós mesmos. As outras pessoas racistas que se identificam como membros do Movimento
feitos negros. Esse fato tem sido muito importante, sig- Africander Nacional. Uma foto de Nelson Mandela e
passam a pensar sobre nós. Como "negros", como "co- nificando poder político dessas concentrações, entre- Winnie, com as testas perfuradas por pontas de cigarros,
loreds", como "blacks". tanto a maioria desse poder é muito concentrado nas vem acompanhada da seguinte frase: "Acontecerá o mes-
. Jornal do MNU — Explique melhor a questão da próprias regiões. É o governo federal que tem o maior mo com todos aqueles que apoiam essa escória" (carta de
Africa e a importância da auto-estima na luta contra o poder nos EUA, e é ele que estabelece as políticas e os 02.05.91). Numa outra correspondência, policiais de
racismo? tipos de relações, inclusive com o Brasil. Charleston, Carolina do Sul (EUA), espancam um ho-
Stevenson — Nos EUA, os grupos étnicos têm uma O Senado americano é o órgão mais poderoso nos mem negro. Sobre a foto a frase: "Força para vocês, escó-
definição específica: ítalo-americano, hispano- EUA, e não há negros no Senado. O presidente, o Exe- ria do mundo" (carta de 10.04.91). Um poema de exalta-
americano, asiático-americano, e os negros não sabiam ção da Klu Klux Klan ("Vida longa à Klan") está numa
cutivo americano, constitui quase o poder total, e não correspondência de janeiro. Eis alguns versos da depri-
o que eram. Através do Movimento Negro tomaram cons- há negros no Executivo. O que nós tentamos é fortale- mente estética racista: "Negros, mestiços, judeus, seu
ciência de que o negro é bonito. O negro passou a ter or- cer os poderes localizados a fim de estabelecermos po- futuro está no laço/cavaleiro branco deixará seu corpo
gulho de sua identidade, e só depois desta descoberta é deres nacionais aos mesmos. Washington é a capital do em pedaços". E dessa forma que o "poder branco" (as-
que passou a lutar de forma decisiva. A partir da luta país, assim como Brasília. Queremos que Washington sim também se denominam) vemprocurando intimidar o
contra a segregação racial, o negro conquistou o direito seja considerada como Estado para termos dois negros SOS Racismo implantado em São Paulo pelo Instituto
do voto. Havia municípios no sul dos Estados Unidos, no Senado. Uma outra forma de conseguir poder a Geledés. O Movimento Negro Unificado solidariza-se
com 75% de negros, que não possuíam representação nível nacional é redefinir a representação percentual com as companheiras e manifesta seu mais veemente re-
negra. Com o direito de voto ao negro, houve reforma das minorias nos locais onde estamos concentrados. púdio aos covardes racistas que se escondem no anoni-
nos empregos, nas habitações, reformas em gerais. Há mato para atacar as organizações negras no Brasil e no
No estado de Nova Iorque, a maioria dos negros vive mundo.
problemas, é claro, mas cada vez mais estão sendo nas cidades, se um senador for eleito pelas cidades os
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Reaja à
violência racial*(II)
Ori (Reinaldo Santana)

Isso, me bata,
me bata
me bata...
quebre o cacetete em
minhas costas.
Agora... percebe?.
Reconhece o meuí
gemido? É. Nosso
avô gemia assim...
No seu tempo era
um perigo um
SUSPEITO negro
como eu.
Hoje não é
diferente. Você já ^o/]
se perguntou por que
hoje eu sou caçae você
caçador? Mas, se a
esperança demora a
morrer, eu só quero crer
que um dia você
sabendo do que nos une,
pode (quem sabe?) hesitar
Não bater com tanta força
ou parar pra pensar...
Poderá se libertar das
migalhas do opressor
e travar junto comigo
a luta de vovô.
*beije sua preta\ \
em praça pública\ \

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