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Cadernos de Análises
da Conjuntura
APRESENTAÇÃO
O conjunto de textos deste “Caderno” pretende contribuir para que nossos associados,
cidadãos progressistas, interessados em causas sociais em geral, participem do debate
acerca da conjuntura atual e seus desdobramentos para 2018.
Ao longo de 2017 realizamos debates com associados e convidados acerca de temas
aqui refletidos e, agora, publicamos este volume com análises em diversas áreas. Em
comum, a reflexão crítica acerca da conjuntura política do Brasil e do mundo, realizada
por intelectuais e militantes de causas que estão no centro da disputa de poder, tendo o
Golpe que depôs a presidenta Dilma em 2016 como elemento de destaque para a luta
política.
Adotamos como ideia inicial a necessidade de realizarmos análise da conjuntura para
possibilitar a compreensão da realidade, as relações do momento presente com o
passado e com as perspectivas do futuro, a partir da relevância da conjuntura, entendida
como contexto que, em grande medida, define os processos socioculturais de um dado
grupo humano. Para Almeida (2017):
A partir destas premissas, a Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan
Fernandes (AAENFF) convidou amigas e amigos que atuam em diferentes frentes de
militância a refletirem, a partir de suas experiências, sobre a conjuntura e as perspectivas
para 2018.
O resultado é o que apresentamos a seguir. São textos, em sua maioria inéditos, nos
quais nossos associados apresentam reflexões sobre o contexto atual em suas áreas de
atuação. No conjunto, o que temos é uma análise abrangente sobre a realidade
brasileira e, sempre que se faz necessário, conectando-a ao que ocorre no mundo, de
maneira a apresentar ao leitor uma espécie de retrato que nos interroga e faz refletir
sobre nossa condição e as perspectivas de nossa sociedade.
São textos produzidos por militantes. A trajetória dos autores deixa suas marcas nas
metodologias de abordagem, na linguagem utilizada. Alguns têm viés mais acadêmico,
outros, menos. O que os unifica é a capacidade de explicar o Brasil a partir de uma
perspectiva progressista, antes de ser partidária. É a realidade do país analisada pelo
olhar crítico daqueles que não se conformam e lutam por mudanças. São textos,
sobretudo, militantes, e que vislumbram uma nova ordem política.
Os temas acompanham a diversidade da sociedade brasileira: povo negro, população
LGBT; educação; direito à cidade; mulheres do campo; globalização e economia.
aqueles que lutam contra as classes dominantes e suas metamorfoses, utilizadas para
permanência da situação que a elas interessa, mas que nos é desfavorável. Combater as
artimanhas dos poderosos é nossa tarefa histórica. Entender tais artimanhas é vital!
A leitura de tais textos, certamente, contribuirá para nos prepararmos para o próximo
período, conhecendo melhor os temas que definem a pauta dos movimentos sociais,
partidos políticos e dos segmentos da sociedade civil comprometidos com valores
progressistas.
Como nossa Associação está diretamente ligada a uma escola, a ENFF, finalizamos
nossa apresentação aos textos do Caderno com uma citação do texto do Prof. Dermeval
Saviani, aqui publicado:
Diante desse quadro volto a advogar a resistência ativa [...] que implica
dois requisitos: a) que seja coletiva, pois as resistências individuais não
têm força para se contrapor ao poder exercido pelo governo ilegítimo e
antipopular; b) que seja propositiva, isto é, capaz de apresentar
alternativas às medidas do governo.
Nessa resistência contamos com uma teoria pedagógica cujo
entendimento das relações entre educação e política é diametralmente
oposto àquele esposado pela “escola sem partido”. Trata-se da pedagogia
histórico-crítica que, contrapondo-se ao movimento “escola sem partido”,
postula que na sociedade de classes, portanto, na nossa sociedade, a
educação é sempre um ato político, dada a subordinação real da
educação à política.
A AAENFF, com estes textos, deseja participar da luta política mais geral e contribuir
para o avanço das lutas contra a opressão de classes no Brasil.
SUMÁRIO
CRISE DO CAPITALISMO, CRISE POLÍTICA NO BRASIL E
RETROCESSO NA EDUCAÇÃO 01
Dermeval Saviani
CRISE MUNDIAL, CRISE BRASILEIRA E O RACISMO 11
Muryatan S. Barbosa
MULHERES E RESISTÊNCIA! 25
Amelinha Teles
A LATA D’ÁGUA MAIS PESADA: mulheres do campo e a luta contra o golpe 35
Kelli Cristine de Oliveira Mafort e Ana Terra Reis
NÃO HÁ SAÍDA SEM A REVERSÃO DA FINANCEIRIZAÇÃO 47
Leda Maria Paulani
GLOBALIZAÇÃO EM XEQUE 55
Tatiana Berringer e Diego Azzi
BR CIDADES — UM PROJETO PARA AS CIDADES DO BRASIL 60
Ermínia Maricato e Carina Serra
Cadernos de Análises da Conjuntura n. 1, jan/2018.
A crise estrutural do capitalismo
Conforme Mészáros, uma crise é estrutural quando “afeta a totalidade de
um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou
subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada” (2002,
p. 797). É distinta da crise não estrutural que “afeta apenas algumas partes do
complexo em questão, e assim, não importa o grau de severidade em relação às
partes afetadas, não pode pôr em risco a sobrevivência da estrutura global”
(idem, ibidem). E o próprio Mészáros (idem, p. 796) desde 1994, quando lançou a
edição original de Para além do Capital, já considerava estrutural a atual crise
do capitalismo, tendo em vista seu caráter universal, seu alcance global, sua
escala de tempo contínua ou permanente e seu modo de desdobrar-se
rastejante, isto é, mesmo sem negar possíveis manifestações mais
espetaculares, a crise vai persistentemente se insinuando nas várias dimensões
características da estrutura, minando-a progressivamente.
Hoje os sinais da crise estrutural estão bem mais visíveis. Tendo se
estendido por toda a Terra, o capitalismo não tem mais para onde se expandir e
passa a obter uma sobrevida por meio da “produção destrutiva”. Isso porque
aquilo que é destruído pode ser reconstruído a partir das relações sociais de
produção dominantes, baseadas na propriedade privada. Mas já não é mais
possível desenvolver novas forças produtivas porque as relações sociais
privadas, que até meados do século XX impulsionaram o desenvolvimento das
forças produtivas, a partir da crise dos anos de 1970, que determinou a
reconversão produtiva com o advento do neoliberalismo, passaram a frear o
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Professor Emérito da UNICAMP, Pesquisador Emérito do CNPq, Coordenador Geral do
HISTEDBR e Professor Titular Colaborador Pleno do Programa de Pós-Graduação em Educação
da UNICAMP.
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versão de que eles teriam sido puxados para dentro das janelas e agredidos, o
que motivou sua reação. No entanto, as câmeras de segurança da entrada da
escola registraram a truculência dos policiais e o modo como acondicionaram
seus fuzis para pular a janela da guarita e entrar nas dependências da escola em
cujo interior se encontravam estudantes de 36 países, inclusive dos Estados
Unidos e do Canadá, em aulas de vários cursos que a Escola ministra
regularmente em convênio com universidades e órgãos internacionais como a
UNESCO. Tal operação expressa a tendência de criminalizar os movimentos
sociais, no caso o MST, que mantém a referida Escola Nacional.
Para não nos alongarmos sobre as muitas arbitrariedades que vêm sendo
cometidas, registro a primeira vítima fatal provocada por essa escalada de
arbítrio que tomou conta do país. Trata-se do suicídio do reitor da Universidade
Federal de Santa Catarina provocado por uma prisão injusta, sem provas, diante
de uma acusação sobre fato que sequer ocorreu em sua gestão. Conduzido à
Polícia Federal, ele foi despido, submetido a revista íntima com o ânus
inspecionado, como se estivesse escondendo algo ali, vestido com roupa de
presidiário, acorrentado e jogado numa prisão de segurança máxima, conforme
entrevista do Desembargador Lédio Rosa de Andrade à TV Floripa. Libertado no
dia seguinte, foi afastado de sua função de reitor e proibido de entrar na
universidade. Diante dessa humilhação e convencido de que, com a sanha
fascista que vem tomando conta do país numa verdadeira histeria coletiva não
teria como se defender, concluiu, como leitor assíduo de Shakespeare, que o
único recurso de que dispunha para se contrapor à ignomínia do terrorismo de
Estado e alertar a população era a tragédia. Não tendo medo da morte, o que
demonstrou em sua luta tenaz contra a ditadura, optou pelo suicídio. Deu-nos,
assim, ainda conforme o depoimento do Desembargador Lídio, sua última lição:
a tragédia da própria morte.
Todas essas arbitrariedades vêm sendo acobertadas por versões
divulgadas pelas autoridades que invertem o sentido dos fatos, com a
cumplicidade da grande mídia que não apenas transmite como verdadeiras as
versões falsas, mas esconde os fatos reais. A esse respeito é eloquente o
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suicídio do reitor coberto pela mídia com o manto de um silêncio acumpliciado.
Para esse caso vale a manifestação da estudante Ana Júlia que, diante da morte
de um estudante numa das escolas ocupadas em Curitiba, lançou aos
deputados na Assembleia Legislativa o libelo: suas mãos estão sujas de sangue.
Sim, dentre as várias mãos que empurraram o reitor para a morte encontram-se,
sem dúvida, além daquelas dos representantes do judiciário, as mãos da grande
mídia. E a população, de modo geral, fica alienada diante da grave situação que
estamos vivendo. Por esse caminho vai se escancarando o estado de ditadura e,
o que é pior, uma ditadura com a participação do próprio judiciário, o que
significa que os atingidos não terão a quem recorrer. Enfim, é preciso resistir a
essa escalada do arbítrio antes que seja tarde demais. Resta, agora, a
resistência ativa de todos os inconformados com as injustiças para buscar
restabelecer a institucionalidade democrática a duras penas conquistada após
21 anos de ditadura militar.
O grupo hoje no poder revela-se disposto a cumprir à risca a agenda
neoliberal derrotada nas urnas, submetendo o país aos interesses do mercado
financeiro internacional, o que acarreta a desindustrialização e o retorno à
chamada “vocação agrícola do Brasil”, disponibilizando não só as áreas
agricultáveis, mas também as de preservação, com o sacrifício do meio ambiente
para satisfazer os interesses dos grandes proprietários de terras nacionais e
estrangeiros. É oportuno, portanto, refletir sobre o significado do que dispõe a
Constituição Federal de 1988 em seu Art. 225: “Todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
E o que foi que a Constituição proclamou ao definir o meio ambiente
como “bem de uso comum do povo”? O que significa “bem de uso comum”?
Trata-se de algo que não é propriedade privada e nem mesmo propriedade
pública. É, sim, bem de natureza difusa e, como tal, ninguém dele pode dispor
para desfrute próprio ou de grupos, por mais numerosos que sejam.
Consequentemente, o que é facultado a toda a população em relação ao meio
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ambiente, enquanto bem de natureza difusa, é exclusivamente o direito de uso
associado ao dever de todos de assegurar esse mesmo direito às gerações
futuras.
Entretanto, não obstante a clareza da prescrição constitucional, é sobre
as terras preservadas ambientalmente que agora ocorre o avanço desenfreado
do chamado “capitalismo verde” que, embora sob roupagem ecológica e
supostamente sustentável, de fato segue o mesmo modelo imperialista e
expansionista da época do colonialismo.
Como mostra Amyra El Khalili (2017), apenas nos últimos doze anos mais
de 3,8 milhões de hectares já foram vendidos legalmente no Brasil a
estrangeiros. Não satisfeitos, procura-se agora avançar também sobre as terras
da União que, protegidas por leis nacionais e internacionais, não podem ser
negociadas. Eis a razão pela qual vêm sendo aprovadas novas leis modificando
as anteriores para beneficiar o mercado financeiro, afetando os direitos
fundamentais dos povos indígenas, dos quilombolas e dos camponeses, o
Código Florestal, os direitos trabalhistas. E para justificar essas medidas
argumenta-se que as águas e florestas só serão viáveis se tiverem valor
econômico. Mas El Khalili contra-argumenta mostrando que se trata de uma
falácia, “pois valor econômico as florestas ‘em pé’ e as águas sempre tiveram. O
que não tinham, até então, era valor financeiro, já que não há preço que pague o
valor econômico das florestas, dos bens comuns e dos ‘serviços’ que a natureza
nos proporciona gratuitamente”.
Estamos, portanto, diante de uma grave ameaça à existência da
humanidade e de todo o planeta. Precisamos, pois, colocar um freio a essas
ambições desmedidas de empresários e banqueiros nacionais e estrangeiros
alinhados com o dito “capitalismo verde”.
Enfim, temos a responsabilidade de assegurar às gerações presentes e
futuras o pleno direito de uso dos bens de natureza difusa consolidando a
manutenção e melhoria de suas condições de preservação e desenvolvimento.
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A educação golpeada
Nesse contexto caracterizado como retrocesso político, a educação está
sendo fortemente afetada. As reformas educacionais regressivas do atual
governo vêm procurando desconstruir os limitados avanços dos governos Lula e
Dilma retomando o espírito autoritário que foi a marca do período da ditadura
militar. É assim que a reforma do Ensino Médio foi baixada por medida provisória
sem sequer dar conhecimento prévio às Secretarias de Educação e aos
Conselhos Estaduais de Educação que, pela Constituição e pela LDB são os
responsáveis pela oferta pública desse nível de ensino. É assim, também, que
vêm sendo tomadas as medidas relativas ao Plano Nacional de Educação e à
realização da próxima Conferência Nacional de Educação intervindo no Fórum
Nacional de Educação à revelia do que dispõe a lei 13.005, de 25 de junho de
2014, que aprovou o Plano Nacional de Educação 2014-2024. Esse caráter
autoritário se faz presente, ainda, no movimento “escola sem partido” ,
merecidamente chamado de “lei da mordaça”, pois explicita uma série de
restrições ao exercício docente negando o princípio da autonomia didática
consagrado nas normas de funcionamento do ensino.
A atual conjuntura se constitui, pois, num momento grave no qual o tema
dos desafios educacionais da democracia pode ser considerado como uma rua
de mão dupla: por um lado cabe-lhe resistir, exercendo o direito de
desobediência civil, às iniciativas de seu próprio abastardamento por parte de
um governo que se instaurou por meio da quebra do Estado Democrático de
Direito. Por outro lado, cumpre lutar para assegurar às novas gerações uma
formação que lhes possibilite o pleno exercício da cidadania tendo em vista não
apenas a restauração da democracia formal, mas avançando para sua
transformação em democracia real.
Diante desse quadro volto a advogar a resistência ativa que propus na
Conclusão do livro sobre a atual LDB, cuja 13ª edição foi lançada em 2016, ao
ensejo dos 20 anos da aprovação da LDB, atualizada e ampliada com um novo
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capítulo analisando as 39 leis que a modificaram. O que chamei de resistência
ativa implica dois requisitos: a) que seja coletiva, pois as resistências individuais
não têm força para se contrapor ao poder exercido pelo governo ilegítimo e
antipopular; b) que seja propositiva, isto é, capaz de apresentar alternativas às
medidas do governo.
Nessa resistência, contamos com uma teoria pedagógica cujo
entendimento das relações entre educação e política é diametralmente oposto
àquele esposado pela “escola sem partido”. Trata-se da pedagogia
histórico-crítica que, contrapondo-se ao movimento “escola sem partido” postula
que, na sociedade de classes, portanto, na nossa sociedade, a educação é
sempre um ato político, dada a subordinação real da educação à política. Dessa
forma, agir como se a educação fosse isenta de influência política é uma forma
eficiente de colocá-la a serviço dos interesses dominantes. E é esse o sentido
do projeto “escola sem partido”, que visa subtrair a escola do que seus adeptos
entendem como “ideologias de esquerda”, colocando-a sob a influência da
ideologia e dos partidos da direita, portanto, a serviço dos interesses
dominantes. Ao proclamar a neutralidade da educação em relação à política o
objetivo é estimular o idealismo dos professores fazendo-os acreditar na
autonomia da educação em relação à política, o que os fará atingir um resultado
inverso ao que estão buscando: em lugar de, como acreditam, estar preparando
seus alunos para atuar de forma autônoma e crítica na sociedade, estarão
formando para ajustá-los à ordem existente e aceitar as condições de
dominação às quais estão submetidos. Eis por que a “escola sem partido” se
origina de partidos situados à direita do espectro político, com destaque para o
PSC (Partido Social Cristão) e PSDB secundados pelo DEM, PP, PR, PRB e os
setores mais conservadores do PMDB. Como se vê, a “escola sem partido” é, de
fato, uma escola de partido. É a escola dos partidos da direita, os partidos
conservadores e reacionários que visam manter o estado de coisas atual com
todas as injustiças e desigualdades que caracterizam a forma da sociedade
dominante no mundo de hoje.
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CRISE MUNDIAL, CRISE BRASILEIRA E O RACISMO
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Muryatan S. Barbosa
O racismo como fato estruturador das relações de poder
Entender a relevância do racismo brasileiro hoje, como fato estruturador
do poder (Barbosa, 2009), implica um duplo olhar. O primeiro sobre sua
existência histórico-estrutural de longa duração. O segundo mais conjuntural,
observando-o desde o sistema internacional contemporâneo e da crise
brasileira, em particular. Neste ensaio, tais pontos serão analisados de forma
sucinta.
Desde a primeira perspectiva, o que se entende por racismo
histórico-estrutural é sua existência como elemento central de reprodução
social. Algo que se originou, obviamente, dos quatrocentos anos de escravidão
aqui existente. Mas que, desde o pós-abolição, continua se mantendo e
desenvolvendo como fato estruturador das relações de poder. Este tema foi
tratado por diversos pensadores e intelectuais do movimento negro brasileiro,
assim como também por intelectuais acadêmicos. Abaixo apresentamos uma
síntese dos resultados deste esforço intelectual de gerações, citando apenas
alguns autores/as pioneiros das análises referidas. Para estes, o racismo
naturaliza:
2
Agradeço aos professores Wilson do Nascimento Barbosa (USP) e Demétrio G. C. de Toledo
(UFABC) por críticas ao texto. A primeira versão deste foi apresentada no encontro da Agrarian
South Summer School, Harare (Zimbábue), Janeiro de 2016.
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Professor Adjunto do Bacharelado em Ciências e Humanidades e do Bacharelado em Relações
Internacionais da Universidade Federal do ABC (CECS/UFABC).
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defeitos quanto em suas supostas qualidades (tolerância, país do futuro,
miscigenação como valor em si etc).
Entrementes, para além desta caracterização histórico-estrutural, temos
as questões conjunturais do racismo no Brasil, e no mundo atual. Aqui deve-se
fazer um parêntese que se julga relevante. É certo que o racismo moderno é um
fenômeno derivado da escravidão atlântica contra a população
afrodescendente. No entanto, isto não significa que, com o passar das décadas,
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ele tenderia a se tornar residual no mundo . Infelizmente, vemos hoje o quanto
esta percepção está longe da realidade. E, do ponto de vista acadêmico, os
estudos sobre desigualdade racial foram decisivos nesta percepção e crítica,
desde o clássico de Carlos Hasenbalg (Discriminação e desigualdades raciais
no Brasil, 1979). O fato é que o racismo é uma poderosa forma de distinção
social. Ele nasce e se reproduz de relações hierárquicas de poder entre povos
conquistadores e outros conquistados, a partir da racialização (via
esteriotipificação sistemática e naturalização) – positiva e negativa – de
diferenças fenotípicas entre tais povos. No mundo atual, trata-se da dominação
de europeus e eurodescendentes (”brancos”) contra outros grupos
populacionais (“não brancos”, em suas variações). Todavia, a questão
fundamental não está mais na sua origem, mas na sua capacidade de
reprodução. Sociedades racistas (ontem, hoje e amanhã) são lugares de
conquista em que um grupo populacional continuam submetendo outros,
criando formas de manter e naturalizar sua exploração e dominação (Fanon,
1956). No moderno sistema mundial, trata-se de uma distinção essencial à
reprodução do capitalismo realmente existente, pois naturaliza a violência e as
disparidades sociais em um mundo idealmente igualitário (liberalismo), mas
concretamente desigual (Wallerstein, 2001).
Mas ocorre que este moderno sistema mundial não é igual para todos
sempre, nem linear. Ele depende de estruturações conjunturais do sistema
4
Aliás, como acreditavam no Brasil, autores de renome e antirracistas, como Guerreiro Ramos (A
patologia social do branco brasileiro, 1955, reeditado em Introdução crítica à sociologia
brasileira, 1957) e Florestan Fernandes (“A integração do negro na sociedade de classes”, 1964).
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Se houver citação destas teses é importante que se faça referência ao Grupo (GPENN), e não
apenas ao autor deste texto. Afinal, trata-se de trabalho coletivo. Professores e professoras
integrantes (UFABC): Valéria Lopes Ribeiro, Muryatan Santana Barbosa, Demétrio G. C. de
Toledo, Flávio Thales Ribeiro Francisco, Regimeire Maciel e Vitor Schincariol. Mais informações
no endereço eletrônico: https://gpennblog.wordpress.com/
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sintéticos aumentará a pressão sobre os termos de troca dos países
neocoloniais, agravando o quadro.
7. O racismo e o sexismo são as ideologias que tornam possível a
reprodução social do capitalismo realmente existente pois, além de
trazerem unidade ideológica à dominação (em particular, da
masculinidade eurodescendente), naturalizam a violência, a desigualdade
e a superexploração do trabalho num sistema objetivamente desigual,
mas ideologicamente igualitário (liberalismo). Isto ocorre porque, tanto do
ponto de vista quantitativo quanto qualitativo (traços fisionômicos;
sobretudo cor da pele e sexo biológico), a raça e o gênero são categorias
de fácil distinção social, com forte poder de introjeção inconsciente.
Quanto mais a industrialização clássica deixa de ser uma referência
civilizacional, mais elas serão utilizadas para naturalizar a barbárie, tanto
no centro quanto nas periferias do sistema. Estamos no início deste
processo mundial, que implicará novas formas de controle social
(encarceramento em massa, esterilização, novas tecnologias militares
para fins “civis” etc.) e de atuação política via pseudo-nacionalismos,
reacionários e protofascistas, que ressurgiram baseados em tais
ideologias. Em particular, no “Primeiro Mundo”, onde ainda existem
frações burguesas com interesse e poder de se opor à lógica globalizante
do novo neocolonialismo.
8. A transformação gradual da antiga burguesia nacional ou interna (onde
ela existiu) em burguesia intermediária, intensificada e consagrada após a
década de 1970, interdita o caminho reformista clássico. Hoje, do ponto
de vista das classes, restam como elementos potencialmente nacionais a
pequena burguesia (funcionários públicos, militares, profissionais liberais
etc.), os trabalhadores (do campo e cidade) e a massa popular,
estruturalmente desempregada ou subempregada. Construir projetos
nacional-populares coerentes neste contexto é o desafio que se coloca. A
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isto é só uma ilação, teria que se provar. Em relação às taxas gritantes de
homicídios, parte do problema colocado, sem dúvida, refere-se ao despreparo
policial. Só no Estado de São Paulo, por exemplo, a taxa de assassinatos
cometidos por estes é igual à taxa estadunidense, ou seja, de todo os EUA. Isto
poderia ser mudado, sem dúvida. Poder-se-ia prender em vez de matar.
Poder-se-ia também promover campanhas de desarmamento. Mas mesmo que a
polícia seja disciplinada, ou seja, que prenda em vez de matar, é esta a
sociedade que os brasileiros querem? É o modelo de Minas Gerais, sob
Governo Aécio Neves e correligionários? A ideia é colocar cada vez mais jovens
nos presídios, para depois forçá-los a trabalhar para corporações privadas? A
quem isto interessa?
É neste imbróglio que o movimento negro brasileiro está entrando
quando instaurou a “Campanha Contra o Genocídio da Juventude Negra e
Periférica”, após os eventos de 2006. Em particular, com o Grupo “Mães de
Maio”. Afinal, ele tem toda a legitimidade para fazê-lo, pois são os jovens negros
as principais vítimas desta situação, seja como vítimas, seja como algozes. Se o
fizer com competência, ele estará na vanguarda de um assunto espinhoso: o da
segurança pública. Um tema que será importante para definir o que será uma
política de esquerda e de direita em breve no mundo, embora isto possa ainda
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não estar claro para todos os envolvidos .
Uma hipótese que surge deste quadro trágico é que, durante os
Governos Lula-Dilma (2003-2014), na medida em que não se enfrenta
seriamente o problema das desigualdades (além de outras questões que não
cabe assinalar), o desenvolvimento nacional sob base capitalista, em vez de
diminuir, aumenta a violência contra a população negra e pobre no Brasil. Ou
seja, a melhora da renda do trabalhador que ocorreu neste período (2003-2010)
aumentou o problema, em vez de amenizá-lo. Em particular, nas cidades
menores do país. É facilmente perceptível que as políticas neoliberais do
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Ideia originalmente exposta pelo sociólogo Uvanderson Vitor da Silva na UFABC durante Ciclo
de Palestras “O Brasil na Mira do Novo Bandung” (19/11/2014).
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movimento em si, criando um campo antirracista multiétnico em que muitos
brancos progressistas cerraram fileiras com o movimento negro, neste particular.
Trata-se de uma experiência histórica relevante que precisa ser hoje remontada,
de forma mais radical do que antes. Este é o potencial da “Campanha contra o
Genocídio da Juventude Negra e Periférica”, que está na vanguarda daqueles
que podem colocar o “dedo na ferida” do Brasil.
Ao que parece, a única alternativa viável de curto prazo é a construção de
um projeto nacional-popular para o Brasil, que consiga se opor à lógica
genocida do novo neocolonialismo. Todavia, isto depende de uma reflexão
nossa, sincera e coletiva, sem o que não se pode nem entender a realidade
estrutural do racismo aqui existente, que nos faz ser o que somos. Em outras
palavras, nosso molde de fazer cerâmica.
Por entender este fato histórico, sobretudo do ponto de vista simbólico,
muitos antropólogos se colocaram contra as ações afirmativas quando este
debate aqui se instaurou publicamente, no início do século XXI. Afinal, eles
sabiam que é o racismo que caracteriza o país, para o bem e para o mal. Mas é
preciso ter coragem de ir além desta constatação se queremos ser pessoas
progressistas. Se tivermos que mudar o Brasil, então que mudemos de verdade.
É certo que, para isto, teremos que abandonar todo o “freyrianismo” do nosso
Ser, mesmo que ele esteja lá disfarçado à lá Darcy Ribeiro do celebrado O povo
brasileiro (1995). E, nesta “descida aos infernos”, como diria o velho Guerreiro
Ramos, enxergar o país como ele é: uma sociedade racista! É o único caminho
possível para fazer avançar uma esquerda menos eurocêntrica no Brasil. E nem
falo da direita porque desta não se pode esperar mais nada.
Poderíamos terminar o texto neste ponto. Todavia, visando o diálogo mais
pragmático, vale destacar alguns elementos concretos que julgamos relevantes
a partir da análise aqui precedida. Em nossa opinião, a superação gradual deste
racismo estrutural só poderá ser encaminhada por pautas específicas num
verdadeiro projeto nacional-popular brasileiro, que poderiam incluir:
● Crescimento via desenvolvimento científico-tecnológico, e não via
superexploração do trabalho.
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● Controle da violência interna do Estado e fim do encarceramento em
massa, via legalização das drogas e desmilitarização progressiva da
polícia militar.
● Políticas antirracistas consistentes nas instituições sociais (família, escola,
fábrica, igreja, partidos, universidades etc.) contra o racismo institucional.
● Nova identidade nacional, baseada na negritude efetiva do nosso povo
(Guerreiro Ramos, 1957) e em seu caráter antropofágico (Paixão, 2013),
com a consequente desconstrução da branquidade e do eurocentrismo.
Evidentemente, trata-se aqui apenas de uma contribuição pontual para
um debate maior, coletivo, crítico e autocrítico. Vários outros elementos teriam
que contar neste projeto mais amplo, que visasse uma alternativa civilizacional e
democrática ao país. Seja como for, quiçá tenha chegado à hora do Brasil
finalmente enfrentar o seu pior demônio, o racismo, que tão secretamente
carregamos no bolso das nossas calças. Vamos falar seriamente do assunto? Ou
esperamos pelo próximo Golpe?
Referências:
BARBOSA, Wilson do N (2009). A discriminação do negro como fato estruturador do poder.
Sankofa: revista de história da África e de estudos da diáspora africana, v. 2, n. 3, pp. 71-103.
DOS SANTOS, Joel Rufino (1985). O movimento negro e a crise brasileira. Política e
Administração. Fundação Escola do Serviço Público/RJ. Vol. 2, Julho-Setembro, pp. 285-308.
FANON, Frantz. Racismo e cultura (1956). In: SANCHES, Manuela R. (org.). Malhas que os
impérios tecem: textos anticoloniais, contextos pós-coloniais. Lugar da História. Lisboa: Edições
70, 2012.
GEPENN (2017). Teses sobre o novo neocolonialismo e suas consequências. Outubro. Disponível
em: https://gpennblog.wordpress.com/. Último acesso: 27 out. 2017.
PAIXÃO, Marcelo (2013). 500 anos de solidão: ensaios sobre as desigualdades raciais no Brasil.
Curitiba: Editora Appris Ltda.
RAMOS, Alberto (1995). G. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ.
RIBEIRO, Darcy (1995). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras.
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Cadernos de Análises da Conjuntura n. 1, jan/2018.
WAISELFISZ, Julio J (2015). Mapa da violência: homicídios por armas de fogo no Brasil. São
Paulo: FLACSO.
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MULHERES E RESISTÊNCIA!
7
Maria Amélia de Almeida Teles
As mulheres não tem tido prioridade nas lutas políticas gerais, em
particular no campo macro. No entanto, nos momentos cruciais, quando as
forças mais conservadoras e de extrema-direita investem contra a democracia e
se apoderam de forma arbitrária e autoritária, com exclusividade da vida política
do país, as mulheres são o alvo principal de ameaças, ataques e sequestro de
direitos. É o que temos visto no Brasil, em diversos momentos de inflexões e
retrocessos políticos. Começam com os ataques às mulheres, principalmente as
negras, as indígenas, trabalhadoras rurais e domésticas, as imigrantes e
avançam no sentido de atingir outros segmentos, como a classe trabalhadora
das cidades e do campo, a juventude negra e periférica, a comunidade LGBT. A
população negra, com destaque para a juventude negra, é alvo histórico da
violência de estado. Não é absurdo falar em genocídio do povo negro quando
se atenta à realidade que aponta dados estarrecedores. Segundo o Atlas da
Violência 2017 (Ipea), divulgado no dia 17 de outubro, de cada 100 pessoas
vítimas de mortes violentas, 71 são negras. Em 2015, foram registrados 59.080
homicídios sendo que destes, 31.264 correspondiam a morte de pessoas entre
15 e 29 anos. Concluem que os negros têm chances 23,5% maiores de serem
assassinados em relação a brasileiros de outras raças. As mulheres, mães, irmãs,
companheiras, amigas ou namoradas, de um modo geral, são as que saem à luta
em busca de informações sobre estas mortes e seus responsáveis. Mesmo
assim, carregam sua dor solitariamente e são pouco reconhecidas. Mas as
mulheres vão mais adiante. Procuram autonomia e querem protagonizar suas
ações, suas vidas e história.
Portanto, a importância da luta das mulheres está vinculada a todo
processo que busca a transformação da sociedade numa perspectiva igualitária,
7
União de Mulheres de São Paulo e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos
Políticos.
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libertária e justa. Por isso temos que falar dos feminismos e de suas ações de
ruptura, desconstrução das práticas discriminatórias e da construção de
caminhos de visibilidade, reconhecimento e ampliação dos espaços que as
mulheres ocupam.
Os feminismos nos convocam a tomar consciência do processo histórico
pelo qual tem trilhado a humanidade na busca de uma vida justa, igualitária e
digna. Ai se encontram as denúncias dos lugares subalternos que ocuparam e
ocupam ainda as mulheres e dos papéis sociais que a elas foram impostos de
modo a impedir-lhes de serem donas de suas vidas, de suas escolhas e
decisões. Os fatos, quando deles se toma conhecimento, indicam o quanto o
movimento de mulheres e as feministas têm sido corresponsáveis e promotoras
das mudanças sociais na construção da democracia, das liberdades políticas,
coletivas e individuais, da justiça social. As mulheres resistem e se propõem a
consolidar suas pautas políticas de lutas por autonomia, independência e plena
cidadania e as demonstram em manifestações de rua, em casa e no trabalho
quase que diariamente.
Mais do que isso, argumentam de diversas formas para que haja
compreensão sobre a importância de se estabelecer a perspectiva de que uma
sociedade, como um todo, não consegue avançar no sentido progressista se
não for considerado e respeitado o protagonismo das mulheres, o segmento
mais oprimido e explorado.
Da luta pelo voto feminino, em muitas ocasiões, entrelaçada com a luta
pela abolição da escravatura negra, direito à educação, por igualdade de
direitos nas famílias, pelos direitos de escolha, pelo fim do casamento
indissolúvel, por direito ao divórcio, por direitos trabalhistas e previdenciários
para as mulheres e para toda a classe trabalhadora, pelo fim da maternidade
obrigatória, pelo direito de escolher ser ou não mãe, pelo direito de ter
condições adequadas para o exercício da maternagem e do afeto, pelo direito a
um parto com dignidade, pelo direito ao aborto seguro, pelo direito a uma
sexualidade livre, direito ao orgasmo, pelo direito ao corpo, pelo fim da violência
sexista e racista, pelo direito de decidir sobre sua própria vida e sobre as
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questões sociais e políticas, pelo fim do racismo, pelo fim da ditadura, da
repressão e do autoritarismo, pela desmilitarização da sociedade para garantir a
paz, pelo respeito à dignidade e à cidadania da população em geral, com
destaque especial para as crianças e demais segmentos da população que
precisam de cuidados especiais, pela democratização e politização da vida
privada e das relações sociais, considerando que o pessoal é político, pela
despatriarcalização da sociedade e do Estado, pela conquista dos direitos
políticos, a garantia à plena liberdade de expressão, pela erradicação do
racismo e da xenofobia, da tortura, pelos direitos humanos, as mulheres
estiveram e estão na linha de frente, ainda que a elas tenham sido negados
direitos e espaços políticos históricos de decisão.
Ainda que nem todas as mulheres estejam engajadas nestas lutas e que
muitas são manipuladas pelo sistema patriarcal/capitalista, houve e há as que
estiveram à frente das lutas antifascistas, participaram de lutas armadas contra a
opressão e as ditaduras. Foram e ainda são tratadas com discriminação,
desvalorização e a elas são reservados os lugares mais menosprezados, mais
humilhantes, de subalternidade, exploração e opressão. Recebem menores
salários que os homens quando exercem a mesma função. São vítimas de
estupro coletivo e quando são lésbicas, de “estupro corretivo”, são assassinadas
por serem mulheres, as negras proporcionalmente são mais assassinadas, e a
maior parte do trabalho não remunerado e (invisível) é realizado por elas. São as
próprias mulheres que mostram os seus rostos oprimidos e explorados, negros,
envelhecidos ou ainda muito jovens, indicando sua presença e sua disposição
de transgredir as barreiras que lhes impõe a sociedade patriarcal. São as
próprias mulheres que oportunizam um espaço de fala pública às camponesas,
indígenas, operárias, jovens, velhas, periféricas, prostitutas, pescadoras,
ribeirinhas, lésbicas, transexuais, prisioneiras, artistas, compositoras e cantoras,
dançarinas para que suas vozes se façam ouvir, uma vez que ainda são
historicamente silenciadas. Foram consideradas subversivas e ainda o são
quando vão contra a ordem patriarcal, capitalista, racista e sexista.
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8
Nos anos 1970, historiadoras feministas como Michelle Perrot trouxeram
ao cenário político a história das mulheres, ignorada até então. Como nos falou
9
Simone de Beauvoir , a história das mulheres foi escrita pelos homens. E,
portanto, a participação de mulheres, quando chegou a ser registrada, foi feita
de modo distorcido e androcêntrico. Pode-se acrescentar que tal história traz um
10
conteúdo sob suspeição .
Quando não há como deixar de registrar a participação das
mulheres, o fazem como se estas agissem individualmente, como
loucas, prostitutas, enfim, desajustadas (Teles, 2017, p. 23).
Para que as mulheres chegassem ao século XXI na condição de
protagonistas de suas lutas e se fazendo visíveis e públicas, as lutas feministas
tiveram e ainda têm que transgredir e subverter a ordem patriarcal vigente.
Vejam o Brasil, arrancaram de forma arbitrária e desrespeitosa a primeira e única
mulher eleita e reeleita para Presidência da República, Dilma Rousseff, em 2016,
para colocarem em seu lugar homens brancos, ricos, de idoneidade moral
duvidosa, segundo as próprias denúncias oficiais que com frequência são
apresentadas pela mídia.
Torna-se imprescindível falar de gênero, a construção social dos sexos,
para entender as contradições, as tensões e conflitos que se dão devido à
obrigatoriedade de desempenhar papéis sociais conforme a genitália, o que
reforça o determinismo biológico em vez de possibilitar a criação de
perspectivas democráticas que consolidem a igualdade de condições,
oportunidades e direitos entre as pessoas humanas independentemente de
seus sexos. O sistema patriarcal, racista e sexista promove desigualdades
sociais e econômicas e define como paradigma da sociedade o homem branco,
8
Michelle Perrot nasceu em 1928 na França, é historiadora e professora emérita da Universidade
de Paris VII. É feminista e destaca em seu trabalho a necessidade de reconhecer a história das
mulheres.
9
Simone de Beauvoir (1908-1986), escritora, filósofa, ativista e feminista. Com o seu livro “O
Segundo Sexo”, lançado em 1949, ela contribuiu decisivamente para criar as premissas teóricas
para os feminismos dos anos de 1960 a 1970.
10
Teles, 2017.
28
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proprietário que sufoca e explora os demais setores sociais, nos quais as
mulheres têm sido as mais oprimidas. O patriarcado transforma as diferenças
sexuais em profundas desigualdades econômicas, sociais e políticas. É preciso
entender a distinção entre diferenças e desigualdades. As diferenças são de
natureza biológica ou cultural e não significam superioridade de algumas
pessoas sobre as outras. As desigualdades são o resultado de estratégias
previamente planejadas de exploração e opressão. Pautam-se na arbitrariedade
e nas injustiças sociais, dividindo a sociedade em ricos e pobres, classes sociais
11
(exploradas e exploradores), discriminação de sexo e raça .
Ao tratar das desigualdades e hierarquias de gênero, questiona-se o
lugar subalterno onde as mulheres deveriam ocupar conforme a configuração da
ordem social do patriarcado, determinada pela supremacia do masculino.
Quando Simone de Beauvoir (1949) afirmou que “não se nasce mulher, torna-se”,
mostrou o quanto não é natural ser caracterizada como frágil, incapaz, submissa,
inferiorizada. As categorias sociais mulher e homem são construídas
historicamente e assim estabelecem as relações desiguais de poder entre os
sexos.
Com o uso da categoria gênero, evidencia-se a violência a que as
mulheres são submetidas, dentro e fora de casa, pelo simples fato de serem
mulheres. As denúncias são frequentes: violência doméstica e sexual, física e
psicológica, verbal e patrimonial. É a violência praticada contra as mulheres por
serem simplesmente mulheres. Há uma misoginia (ódio às mulheres) milenar,
imbricada nas instituições públicas e privadas. O que cria obstáculos para que as
mulheres se transformem em sujeitas históricas e protagonistas de suas vidas e
de seu trabalho, com suas reivindicações, expressando seus desejos e exigindo
sua cidadania.
Precisamos do emprego de gênero na educação e em todas as áreas do
conhecimento para que sejam feitas interpretações e intervenções mais
profundas e abrangentes na sociedade. Desta forma, libera-se a potencialidade
11
Teles (2006, p. 23).
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de vários setores da população, o que se traduz em ações inovadoras e
transformadoras. Evidentemente gênero deve ser usado e articulado com outras
categorias como as desigualdades entre as classes sociais e econômicas (luta
de classes), como a opressão contra os segmentos populares devido a sua
raça/etnia, cor, tipo de cabelo (racismo), idade (geracional) e outras intersecções
(como orientação sexual e etc.).
Essas diversas formas de dominação (classe, gênero, sexualidade,
raça/etnia, geracional) ocorrem simultaneamente e não há como separá-las na
vida das pessoas, nas suas relações sociais e na sua inserção na escola, no
mercado de trabalho, nas igrejas e demais instituições, no campo e na cidade.
Daí a expressão feminismos interseccionais.
12
Kimberlé Crenshaw , feminista negra dos Estados Unidos, nos ensina que
há necessidade de se compreender que outros fatores relevantes de
discriminação, como raça/etnia, classe social, sexualidade e orientação sexual,
agem num só tempo em relação a uma pessoa ou a um grupo de pessoas.
13
Adriana Piscitelli destaca a importância de se estudar classe, gênero e raça
14
juntos. Avtar Brah adiciona que é importante estudar os diferentes fatores
juntos por causa da relação que cada um estabelece com o outro. “Não podem
ser tratadas como ‘variáveis independentes’ porque a opressão de cada uma
está inscrita dentro da outra – é constituída pela outra e é constituída dela”.
15
Heleieth Saffioti nomeia as interseccionalidades como a “teoria do nó”, sendo
que a articulação das categorias, classe social, gênero e raça e etnia que devem
ser tratadas sempre em conjunto.
12
Kimberlé Crenshaw nasceu em 1959, nos Estados Unidos. É professora de Direito na UCLA e
na Universidade de Columbia e usou pela primeira vez a teoria da interseccionalidade em 1991
para chamar a atenção dos Tribunais que aplicavam a lei antidiscriminação entendendo como
totalmente separados gênero e racismo.
13
Adriana Piscitelli é pesquisadora e professora plena do Departamento de Antropologia Social
da Unicamp — Universidade Estadual de Campinas. Integra o Núcleo de Estudos de Gênero —
PAGU.
14
Avtar Brah, professora de sociologia aposentada e membro da Academia de Estudos
Especializados para as Ciências Sociais e da Associação Sociológica Britânica. É especialista em
questões de raça, gênero e identidade étnica.
15
Heleieth Saffioti (1934-2010) foi uma das primeiras feministas acadêmicas nos anos 1960.
Brasileira, Heleieth defendeu na Universidade de São Paulo a tese pioneira no feminismo: “A
mulher na Sociedade de Classe”.
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No Brasil, tem sido longa e tortuosa a caminhada por conquistas de
direitos tanto por parte das mulheres como também pelos setores populares
explorados e oprimidos.
Vivemos um momento de inflexão. Direitos que se apresentavam como
consolidados foram cancelados ou estão na iminência de serem excluídos.
Encontram-se sob graves ameaças. Ora sob o pretexto de que estão onerando o
Estado, são sequestrados, ora porque são “imorais” e “ofensivos” aos bons
costumes e à “sagrada família”. Não querem que sejam utilizadas categorias
como gênero e racismo.
Há momentos que nos fazem pensar que vivemos em séculos passados,
quando iniciava-se o sistema capitalista e que a exploração se alastrava sem
nenhuma lei que colocasse freios na sua ganância de obter só lucros e mais
lucros. Massacrava a grande maioria do povo, inclusive as crianças proletárias
que eram enviadas às fábricas e trabalhavam dia e noite. A histórica greve geral
de 1917, iniciada pelas mulheres operárias em 10 de junho, na Fábrica Crespi, em
São Paulo, significou um momento de denúncia e revolta contra as péssimas
condições da classe trabalhadora. Esta greve foi o estopim para a greve geral
que parou São Paulo e foi vitoriosa, pois conseguiram o fim do trabalho noturno
para mulheres e crianças. Esta greve denuncia a utilização do trabalho infantil
dentro das fábricas.
Os movimentos sociais e populares acumularam, nas últimas décadas,
experiências e forças políticas que se manifestam nas diversas formas de
resistência e de protestos.
Mais uma vez, as mulheres têm sido protagonistas de lutas pioneiras, ao
colocarem de forma pública e explícita as necessidades e reivindicações
populares feministas, antirracistas, antilesbofóbicas e em defesa da dignidade
humana, nos fóruns de articulação de manifestações e lutas contra o golpismo, o
que contribui para a resistência aos desmandos de um governo golpista e
impopular e ao enfrentamento da recessão, do desemprego e da violência do
Estado e por liberdades democráticas.
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Não é por acaso que os ataques contra o governo da Presidenta eleita,
Dilma Rousseff — primeira e única mulher a ocupar o cargo máximo da
Presidência da República, pelo voto popular — que culminaram com a perda de
seu mandato, apresentaram motivações misóginas que tiveram efeitos
político-institucionais imediatos. Formou-se uma opinião pública midiática
contrária a ela, tratando-a como “histérica”, sem “habilidades políticas”,
“emocionalmente desequilibrada”, “sem condições de governar o país”. Em
seguida, forçaram e conseguiram a retirada das expressões gênero, “identidade
de gênero” e “orientação sexual” nos planos de educação e na base curricular
nacional de ensino. Ao retirar gênero, pretendem educar a sociedade para a
submissão e também sufocar os movimentos feministas e de mulheres, os
movimentos antirracistas e LGBTs, reduzindo assim o potencial de resistência de
um povo, o que interessa aos capitalistas para manter a população dominada e
alienada.
O atual governo brasileiro reduziu drasticamente o papel de políticas
públicas para enfrentar a discriminação étnico-racial e de gênero ao desmontar
a estrutura da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM) e da
Secretaria para a Igualdade Racial (SEPIR), o que afeta gravemente a maioria da
população que são as mulheres e a população negra e indígena.
Discutir gênero é abordar um conjunto de problemas estruturais
do país, como a violência contra a mulher, a cultura do estupro, a
desigualdade salarial entre homens e mulheres, os assassinatos
de travestis e transgêneros (o Brasil é o país que mais mata essa
população no mundo), o modelo predominante de estética que
desqualifica, por exemplo, as mulheres negras. Ao não discutir as
desigualdades de gênero nas escolas, quem perde com isso é a
sociedade, como um todo (Denise Carrera, coordenadora da
Ação Educativa).
Estima-se que, no Brasil, cinco mulheres são espancadas a cada dois
minutos, segundo dados da pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público
e Privado (FPA/Sesc, 2010). Em 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro
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em todo o país, segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, 2015), o que significa que uma mulher é
estuprada a cada 11 minutos. Segundo o Mapa da Violência de 2016, são mortas
13 mulheres por dia no Brasil, vítimas, em sua maioria, da violência de gênero.
Visibilizar essas e outras violências contra as mulheres, como feminicídio,
a lesbofobia, a transfobia e o racismo historicamente presentes em nossa
sociedade é garantir o espaço e o debate público, é defender uma convivência
democrática e plural. Mas tem ficado cada vez mais evidente que esta agenda
tem sido alvo dos ataques dos conservadores e fascistas que temem libertar o
potencial criativo, inovador e transformador que contém estes segmentos
organizados da população.
Por outro lado, os segmentos oprimidos insistem, por meio de
manifestações públicas, em praticar o exercício de direitos, ao adquirirem
consciência política, e assim forjam sua capacidade de sobrevivência e não mais
aceitam essa realidade desigual e injusta. Passam a ser mais inovadores e
criativos e reinventam novas formas de viver e conviver, concretizando o verso
da poeta Cecília Meireles: A vida só é possível se reinventada. Resistem a
perder direitos que sabem o quanto lhes custou e o quanto vale a pena se
apropriar deles fazendo seu uso diário.
O Estado brasileiro está andando na contra mão da história. A
interferência do governo atual nos planos de educação e no próprio sistema
educacional, como forma de controlar parcelas significativas da população,
impedindo-as de acessar e aprofundar conhecimentos necessários para a
construção democrática, abalou a opinião pública internacional. A própria
16
Unesco se incomodou com os retrocessos no Brasil em relação ao campo
educacional. E faz um alerta ao governo brasileiro sobre os efeitos negativos de
uma educação tão restritiva e limitada, que não se pauta sob a perspectiva de
gênero e de diversidade sexual e social.
16
UNESCO é a organização da ONU (Organização das Nações Unidas) para educação, ciência e
cultura.
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As mulheres reagem de diversas formas, nas manifestações de rua, nas
ocupações nas escolas, nos espaços de moradia, na busca de serviços e
políticas públicas para enfrentar as desigualdades e a negação de direitos.
São as mulheres que têm aberto caminhos para as mudanças. Participam
da luta contra a ditadura, entraram nas guerrilhas urbanas e rurais. Lutaram pela
anistia política, contra a alta do custo de vida, por creches, por salários, por
melhorias nas periferias. Denunciaram a violência contra seus filhos e contra si
próprias.
E para finalizar, em 1917, na Rússia, foram as mulheres, as primeiras a
saírem em passeatas reivindicando pão e salários, o que criou condições para
desencadear a revolução socialista, que neste momento completa 100 anos.
Líderes revolucionários atentos já declararam que sem as mulheres não
há revolução e nós, feministas, em várias oportunidades, temos dito: sem o
feminismo não há justiça e igualdade social.
Referências:
TELES, Maria Amélia de Almeida (2017). Breve História do Feminismo no Brasil e Outros Ensaios.
Alameda Editorial, São Paulo.
TELES, Maria Amélia de Almeida (2006). O que são os direitos humanos das mulheres? São
Paulo. Editora Brasiliense.
Agência Patrícia Galvão (2017). A sociedade perde ao não discutir gênero na escola. Disponível
em:
www.agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho-2/sociedade-perde-ao-nao-discutir-genero-
na-escola/. Último acesso: 17 jan. 2018.
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Resumo
Este é um texto feito por muitas mãos, essencialmente, das mãos das
mulheres que vivem do seu trabalho quase sempre no campo, como assentadas,
acampadas e/ou assalariadas e também, no meio urbano, como empregadas
domésticas, terceirizadas, ou no mercado de trabalho informal. É um texto que
parte de reflexões coletivas e que pretende contar um pouco dos impactos
sofridos diante do golpe de Estado e dos golpes protagonizados pelos homens
do Estado sobre aquelas que buscam a emancipação da classe, com igualdade
de gênero.
Construímos a narrativa a partir da vivência de Nivalda, mulher negra e
assentada, que na luta pela terra no estado de São Paulo encontrou e construiu
um caminho coletivo de lutas e conquistas. Com Nivalda, compreendemos a
essência do Estado: lutamos, acessamos as políticas públicas, sofremos os
retrocessos do golpe e reafirmamos a necessidade de lutar com ainda mais
força pela construção da Reforma Agrária Popular.
Tiraram a trouxa e a lata d’água da cabeça
Quebraram preconceitos e rótulos
Deixaram para traz a servidão costumaz!
(Lana Alpino, Mulheres Nordestinas)
Discursaram que as mulheres são frágeis
Eu não tive tempo de exercitar fragilidades
(Jenyffer Nascimento, Antítese).
17
Coordenação Nacional do MST e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais da Unesp/Araraquara.
18
Militante do MST e Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da
Unesp/Presidente Prudente.
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Nivalda, mulher negra assentada no estado de São Paulo, 8 filhos,
separada (ou liberta como costuma dizer) recentemente de seu marido, ao qual
ela sempre se referia por “coroné”, nos ajudou a fazer este texto. Não com o seu
próprio punho, mas com sua história e suas angústias recentes. Nossa mulher
guerreira em 2013 tornou-se presidente da Cooperativa Agroecológica Mãos da
Terra, comandada por mulheres, que também admitem a participação de alguns
homens.
A sede da cooperativa foi erguida através da vontade coletiva pela
construção de uma padaria (era o que diziam aquelas mulheres animadas,
reunidas debaixo de um flamboyant), mas logo perceberam que, para fazerem
seus pães e doces, tinham que enfrentar muitas barreiras. Elas haviam acessado
19 20
o Fomento Mulher através de projetos elaborados pela equipe de ATER e
estavam prontas para executar seus projetos individuais nos lotes familiares e
também neste sonho coletivo da padaria, com vistas à geração de renda.
Mas havia algumas pedras no caminho: a maioria dos seus companheiros
não gostou da ideia e argumentava que o tempo das mulheres em casa ia
diminuir com essa tal padaria, e não sobraria tempo pra elas fazerem suas
obrigações; para fazer uma padaria, precisa de muita reunião e não queriam
suas mulheres metidas nisso, pois no acampamento até “engoliam”, mas depois
da terra ganha, não teria necessidade de tanta conversa; ou ainda, incentivavam
que as mulheres pegassem o recurso do projeto e investissem na casa, num
carro velho ou empregassem na grande produção do lote, que essa sim dava
resultados, segundo eles.
Pedras chutadas, padaria erguida! Assim foi! Enfrentaram as contradições
da decisão coletiva que tomaram, e algumas chegaram a sofrer violência, mas se
ajudaram e superaram as dificuldades. Foram se organizando e, entre os anos
21
de 2014 a 2016, entregaram cerca de 200 toneladas de alimentos para o PAA ,
19
Crédito de R$ 3.000,00 destinados à implantação de projetos produtivos sob a
responsabilidade das titulares dos lotes de reforma agrária
(http://www.incra.gov.br/novo_credito_instalacao).
20
ATER — Programa de Assistência Técnica e Extensão Rural, instituído pela Lei 12.188/2010.
21
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi instituído em 2003 pela Lei 10.696, como
parte do Programa Fome Zero.
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22
acessaram o PNAE ; em 2014 aprovaram um projeto junto à Secretaria Estadual
23
do Meio Ambiente/PDRS , fizeram mutirões e implantaram sistemas
agroflorestais; desenvolveram muitas parcerias para capacitação através da
24 25
ATER e outras com Sebrae , Senar , etc; protocolaram projeto de habitação no
26 27
PNHR (aguardando liberação dos recursos); buscaram apoio junto ao INSS e
garantiram o talão da produtora rural para as cooperadas, possibilitando o
acesso ao salário maternidade, auxílio doença e aposentadoria rural para
aquelas com mais de 55 anos de idade e muitos de labuta na agricultura.
28
Recentemente conquistaram espaço na Feira do Produtor da cidade e
estão apostando na comercialização direta de alimentos saudáveis. Em meio a
essa história de muitas conquistas, elas ainda trancaram rodovias, distribuíram
alimentos, ocuparam órgãos públicos e bancos, marcharam, discursaram em
atos públicos, fizeram negociações na capital do estado e em Brasília, ocuparam
terra com as famílias acampadas, doaram alimentos aos acampamentos,
choraram pelos assassinatos no campo e se lançaram nas lutas feministas do “8
de março” contra a violência, o agronegócio, as empresas transnacionais, os
agrotóxicos, os transgênicos e seguiram construindo a Reforma Agrária Popular
29
.
Mas por que lutavam essas mulheres? Por solidariedade sem terra, que só
entende quem esteve noites e noites num barraco de lona ou nas guaritas
improvisadas, cuidando da segurança coletiva. Pelo acesso e massificação das
políticas públicas para todas as mulheres. Pela garantia de que o assentamento
22
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) foi instituído pela Lei n. 11.497 de 16 de
junho de 2009.
23
PDRS – Projeto de Desenvolvimento Rural e Sustentável ligado ao Governo do Estado de São
Paulo.
24
SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas.
25
SENAR – Serviço Nacional de Aprendizagem Rural.
26
PNHR – Programa Nacional de Habitação Rural.
27
INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social.
28
Feira do Produtor da cidade de Ribeirão Preto / SP
(http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/J332/noticia/37904;jsessionid=fa57b26adeafdfc9c77214f892
b8).
29
Reforma Agrária Popular é o programa do MST, difundido a partir do seu VI Congresso
realizado em fevereiro de 2014, em Brasília
(http://www.mst.org.br/2014/12/11/video-oficial-sobre-o-6-congresso-nacional-do-mst.html).
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de Reforma Agrária se efetivasse e deixasse de ser tão precário, sem acesso à
água em alguns períodos do ano. Para denunciar o quanto estão insatisfeitas de
tantos privilégios e incentivos ao agronegócio, que jorra veneno com as
pulverizações aéreas nos canaviais e atingem o entorno. Para dar uns gritos
contra a violência cotidiana que as mulheres enfrentam, seja na forma de
agressão explícita ou na trouxa suja de roupa que, necessariamente, devem dar
conta, junto com todos os outros trabalhos da roça, da casa, da família e de
quem mais aparecer pelo caminho.
Para estas mulheres, lutar faz parte do próprio caminhar. Mas, em agosto
de 2016, sentiram um golpe mais profundo, que exigiu delas a construção da
luta num outro patamar. Num ritmo assustador, foram percebendo os golpes nos
direitos conquistados, não só para as mulheres do campo, mas para toda classe
trabalhadora. Além disso, uma regressão violenta tomou conta da sociedade e
muitos temas conservadores foram disseminados, atingindo em cheio estas
mulheres – estatuto do nascituro, retrocesso no entendimento do aborto como
uma questão de saúde pública, estatuto da família padronizada, excluindo a
diversidade sexual, combate à chamada “ideologia de gênero”, uma
exacerbação da cultura do estupro, projeto Escola Sem Partido, entre outras
pautas conservadoras. Quando rasgaram a Constituição do Brasil em 2016, já
era possível imaginar que os parlamentares mais conservadores da história da
democracia brasileira iam picotar cada um de seus artigos, até que não sobrasse
nada.
Direitos conquistados e os retrocessos consolidados
A constituição de relações opressivas de trabalho remonta aos tempos
coloniais. Impossível pensar o trabalho feminino no Brasil sem reconhecer a
opressão vivida pelas mulheres negras escravizadas, que foram subsumidas à
lógica da superexploração do trabalho e que não obtiveram no processo de
industrialização e urbanização no Brasil condições de livrarem-se da
necessidade de vender sua força de trabalho no meio doméstico, reproduzindo
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o que há de mais arcaico das senzalas nas casas da burguesia brasileira até a
atualidade e as mulheres assentadas e acampadas não estão isentas a
empregar sua força de trabalho nesta realidade degradante.
O direito à aposentadoria foi uma conquista dos anos de 1930, mas foi
somente nos anos de 1960 que as diferenciações de gênero começaram a ser
implementadas, no sentido de corrigir as menores oportunidades destinadas a
mulheres no mercado de trabalho, as duplas jornadas e a condição de mães.
Somente em 2013 foi possibilitado legalmente às trabalhadoras domésticas
exigir direitos quanto à jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 horas
30
semanais, horas extras, horário de almoço e acesso à multa de 40% do FGTS
em caso de demissão.
Na contramão das poucas conquistas em séculos de lutas e no contexto
do avanço da agenda neoliberal proposta pela direita conservadora e golpista,
contra os direitos dos trabalhadores, as mulheres também foram afetadas pela
terceirização: elas são a maioria em empresas terceirizadas de limpeza e asseio
31
e cerca de 1,2 milhão de mulheres (PNAD , 2013) são submetidas ao trabalho em
domicílio (confecções, por exemplo), vivendo condições cada vez mais
precarizadas e menos dignas, com jornadas extenuantes, sem direitos
trabalhistas, reproduzindo relações de trabalho análogas à escravidão.
Além do golpe no que se refere à terceirização, vivemos no dia 11 de julho
de 2017 a aprovação da reforma trabalhista, que permitirá a divisão das férias
em até três períodos, com jornadas de trabalho de até 12 horas sem computar o
tempo de deslocamento de casa ao local de trabalho, com as trabalhadoras
tendo de arcar com as despesas, caso percam um processo contra a empresa,
sem obrigatoriedade de contribuição sindical, com rescisão do contrato
negociada na própria empresa, com permissão para a exposição de grávidas e
lactantes à ambientes insalubres.
Importante destacar também aquilo que denunciamos durante a Jornada
de Lutas de 8 de março de 2017: a reforma da previdência a ser votada pelos
30
FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
31
PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio.
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golpistas deve prejudicar mais as mulheres, pobres e negros. No caso dos
trabalhadores do meio urbano, a proposta de aumentar o tempo de contribuição
(que passará a no mínimo 25 anos) e as idades (que passarão, provavelmente, a
65 anos para homens e 62 anos para mulheres) ignora que as mulheres
trabalham em média 11 horas a mais, semanalmente, do que os homens, e que
quase 6 milhões de mulheres são empregadas domésticas.
A proposta inicial, apresentada pelo governo e combatida pelos
movimentos sociais, previa a equiparação da aposentadoria para trabalhadores
urbanos e rurais. Depois das lutas e mobilizações em 19 de abril de 2017,
apresentou-se um novo texto em relação aos trabalhadores do campo, no qual
propõe-se que homens devem se aposentar aos 60 anos e as mulheres aos 57,
com a necessidade de contribuição previdenciária por 15 anos. O direito dos
trabalhadores do campo a se aposentar com 5 anos a menos foi conquistado na
Constituição de 1988 e deve-se às condições mais penosas do trabalho no
campo, sendo garantida a aposentadoria aos 60 anos para homens e aos 55
anos para as mulheres.
A nova proposta de reforma da previdência ainda desconsidera que no
32
campo, segundo o DIEESE , as mulheres dedicam 28 horas semanais aos
trabalhos domésticos e desde muito cedo começam a trabalhar na produção
familiar. Com a proposta do governo golpista, evidencia-se que o desejo é
equiparar o tempo de aposentadoria à expectativa de vida, obrigando àquelas
que vivem de seu trabalho a serem exploradas por toda a vida. Além disso, com
a reforma da previdência, as/os produtores rurais perdem o direito de segurados
especiais, ou seja, 15 anos de contribuição é muito diferente de 15 anos de
segurado, pois neste último caso isso se refere à toda família que se ocupa do
trabalho agrícola; se passar a nova regra, cada membro da família rural terá que
contribuir, e com isso serão feitas escolhas de quem será o “contribuinte”,
devido à baixa renda no campo, e provavelmente isso ocasionará uma exclusão
de mulheres e jovens.
32
DIEESE — Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.
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Ao tratarmos das conquistas e retrocessos no que se refere às políticas
públicas é preciso observar o avanço do capital no campo travestindo o
33
latifúndio em agronegócio moderno, com intensiva exposição aos agrotóxicos ,
condições degradantes de trabalho, destruição do meio ambiente e da
biodiversidade, gerando concentração de terras e de renda na produção de
mercadorias primárias para a exportação.
Os números não são animadores: entre 2002 e 2013 foram assentadas
apenas 4.363 famílias e mais de 85% do crédito foi destinado ao agronegócio,
abandonando a política de aquisição de terras para fins de reforma agrária.
Entre as principais conquistas que tivemos antes do golpe está o
reconhecimento das mulheres camponesas enquanto público prioritário das
ações governamentais no âmbito dos programas sociais. Desde 2003, tornou-se
obrigatória a titularidade conjunta dos lotes de reforma agrária, ou seja, quando
a família conquista a terra, a Concessão de Uso é em nome da mulher e do
homem (e preferencialmente da mulher), independente do estado civil,
assegurando o direito da mulher à terra em caso de divórcio, desde que ela
detenha a guarda dos filhos. Tratou-se de um reconhecimento de que a mulher
também é protagonista da produção familiar, propiciando ainda que ela
comprove a atividade rural para fins de acesso aos benefícios previdenciários,
como salário-maternidade e aposentadoria.
As mulheres também foram beneficiadas por programas como o
Programa de Aquisição de Alimentos, criado em 2003 no âmbito do Programa
Fome Zero. Por meio deste programa, as famílias assentadas poderiam
comercializar através de suas organizações, cooperativas ou associações, até
R$ 8 mil por ano, destinando os alimentos produzidos às populações que se
encontravam em situação de insegurança alimentar. Era a possibilidade de as
mulheres comercializarem os alimentos produzidos em quintais; o que antes
33
Segundo o INCA – Instituto Nacional do Câncer, no ano de 2016 foram registrados 600 mil
novos casos de câncer, sendo a exposição à agrotóxicos ou alimentos envenenados fatores
preponderantes, já que 85% dos casos de câncer tem motivação do ambiente, contra apenas
15% de origem genética. Disponível em:
http://www.redebrasilatual.com.br/saude/2017/06/estudo-relaciona-o-uso-de-agrotoxicos-com-o-
cancer-no-sangue.
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FARINATA: farinha processada com sobras de alimentos próximos da data de vencimento para
suplemento alimentar. Projeto da prefeitura municipal de São Paulo/SP. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-10/prefeitura-de-sao-paulo-deve-in
corporar-farinata-na-merenda-escolar.
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35
MST — Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(http://www.mst.org.br/2017/07/11/mst-condena-nova-legislacao-fundiaria-aprovada-hoje-pelos-go
lpistas.html).
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Estado sobre os assentamentos e, portanto, destruir a Reforma Agrária. Ainda
são atingidos por esta lei, comunidades indígenas e quilombolas, que sofrem
com os retrocessos nos processos de demarcação de terras e reconhecimento
dos seus territórios.
Outro aspecto nefasto da lei 13.465/2007 é o incentivo ao crime da
grilagem de terras (ato de falsificação de documentos para justificar a invasão
sobre terras públicas), flexibilizando regras para regularização fundiária em áreas
de até 2.500 hectares. Com isso, o governo presenteia criminosos e inviabiliza a
arrecadação de terras públicas para a Reforma Agrária, como prevê a
Constituição brasileira. Na prática, tal medida bloqueia uma das importantes
formas de obtenção de terras para os futuros assentamentos — no Brasil,
existem cerca de 120 mil famílias acampadas, na sua maioria, mulheres e
crianças; acampamentos que em média têm 7 anos de existência, e em alguns
casos, até 15 anos de luta na lona preta.
São muitas as medidas dos golpistas que atingem as trabalhadoras do
campo. Central destacar que o golpe tem um forte protagonismo dos ruralistas –
do agronegócio e da mineração, contando com a maior bancada no Congresso
Nacional. Citemos mais alguns exemplos: o projeto de lei — PL 6299/2002 do
Veneno (em tramitação), que flexibiliza a legislação e controle atual; o bloqueio
ao PL 6670/2016, que institui a PNARA – Política Nacional de Redução de
Agrotóxicos (em tramitação); mudanças no código da mineração; renegociação
das dívidas do Funrural (cerca de R$ 50 bilhões de Reais); o PL 4059/2012, que
permite aquisição ilimitada de terras por estrangeiros (em tramitação); decreto
de outubro de 2017, que isenta os ruralistas em 60% do pagamento de multas
ambientais (R$ 4,6 bilhões); prorrogação do prazo para adesão ao Refis,
refinanciamento com descontos de até 99% aos ruralistas que devem cerca de
R$ 135 milhões para a União.
O golpe é resultante de uma disputa intracapital, articulado com a
geopolítica, e que pretende impor, num ritmo acelerado, medidas que
subordinem o Brasil aos ditames neoliberais. Os governos anteriores – Dilma e
Lula – adotaram uma política de conciliação de classes, na qual a prioridade era
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Mészáros, István (2002). Para além do capital. São Paulo: Boitempo.
37
Segundo relatório da Oxfam, 6 brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da
população mais pobre. 5% dos ricos detêm a mesma fatia de renda que outros 95%. O Brasil está
entre os 10 países mais desiguais do mundo. Mulheres receberão os mesmo salários que os
homens branco em 2047, e os negros em 2089, em ritmo progressivo (
https://www.cartacapital.com.br/economia/seis-brasileiros-tem-a-mesma-riqueza-que-os-100-milh
oes-mais-pobres).
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LGBTs – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Travestis e Transgêneros.
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NÃO HÁ SAÍDA SEM A REVERSÃO DA FINANCEIRIZAÇÃO
40
Leda Maria Paulani
Introdução
Neste momento da história brasileira, falar de saídas para a crise
econômica implica considerar duas ordens de fatores que se colocam como
pressupostos, a primeira de ordem mais geral, e a segunda mais atinente à
questão econômica ou socioeconômica propriamente dita. Farei rápida menção
à primeira nesta introdução e, na sequência, tratarei de modo mais acurado,
ainda que brevemente, da segunda.
A consumação do golpe de Estado que destituiu a presidenta eleita Dilma
Rousseff em agosto de 2016 agregou à crise econômica e social já em curso
uma crise político-institucional de largas proporções, com seguidos conflitos e
bate-cabeças entre os poderes constituídos. Àquelas alturas, já estávamos com
o sexto trimestre seguido de queda no PIB, com o desemprego se elevando em
velocidade escalar e com tensões sociais crescentes decorrentes não só da
insegurança de renda, que passa a atingir parcela substantiva da população,
mas também das dificuldades orçamentárias de estados e municípios, com
salários de servidores em atraso e colapso dos serviços públicos.
A destituição da presidenta sem efetivo crime de responsabilidade, vista
como golpe por boa parte do mundo, inclusive pela imprensa internacional
conservadora, explicitou a ilegitimidade dos novos donos do poder, de pronto
associada às seguidas e reiteradas denúncias de corrupção envolvendo não só
o mandatário mor, como praticamente todo o primeiro escalão do governo.
Diante esse quadro, a tese de que o impeachment seria a varinha mágica
capaz de restaurar expectativas, recuperar o investimento e fazer renascer o
39
Texto originalmente publicado na Revista de Estudos Avançados (USP), vol. 31, n. 89, 2017.
40
Professora titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade da USP e da pós-graduação em Economia do Instituto de Pesquisas Econômicas
(FEA-USP).
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A demora na melhora dos principais parâmetros econômicos, mesmo tendo sido bem sucedido
o impeachment, não pode, portanto, ser tomada como evidência de que esteja equivocada a
sugestiva tese de que a deterioração econômica a partir de 2013 deveu-se também a uma
espécie de greve branca do capital – que teria deixado de investir para conseguir tirar da frente
uma presidenta de poucos bofes e demasiado intervencionista (Rugitsky, 2015).
42
Milan (2016) faz apropriada análise, do ponto de vista da economia política marxista, da
interconexão entre fatores estruturais, cíclicos e conjunturais na produção daquilo que ele
denomina “crises gêmeas” (política e econômica) e das possibilidades de seus desdobramentos.
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da chamada “crise da dívida externa” nos anos 1980, depois de forma ativa,
quando tomou as providências, a partir de meados dos anos 1990, para seu
ingresso na era da financeirização como “potência financeira emergente” ou,
nos nossos termos, como “plataforma internacional de valorização financeira”
(Paulani, 2008a; 2012; Paulani; Pato, 2005).
Todo o arcabouço institucional que emoldura hoje o funcionamento do
capitalismo brasileiro foi construído a partir do princípio maior de atender com
presteza e precisão os interesses da riqueza financeira, em particular dos
credores e investidores externos. Esse traço permanece praticamente intocado
ao longo dos governos de FHC e de Lula/Dilma, a despeito das diferenças que
os separam. É dessa forma que se explicam a enorme abertura financeira, com
ausência de qualquer controle sobre os fluxos internacionais de capital, a
internacionalização do mercado brasileiro de bônus, as concessões tributárias a
proprietários de ações e a ganhos financeiros de não residentes, as alterações
legais para dar maior garantia aos credores do Estado (Lei da Responsabilidade
Fiscal) e do setor privado (reforma da Lei de Falências), as alterações no regime
43
geral previdenciário (INSS) e nos regimes próprios de servidores públicos e,
last but not least, a adoção de um receituário macroeconômico agressivamente
voltado para o benefício da riqueza financeira, baseado na austeridade fiscal e
em taxas reais de juros absurdamente elevadas, frequentemente as campeãs do
mundo.
Utilizando a distinção proposta por Chesnais (2016) entre finança (finance
capital) e capital financeiro (financial capital), podemos falar da existência no
Brasil, pelo menos desde os anos 1990, de uma hegemonia da finança e de sua
forma predominante de funcionamento, o capital financeiro e o setor
43
Para além da questão previdenciária em si, o objetivo maior dessas alterações é a criação de
um substantivo mercado privado nessa área. Com um regime previdenciário de repartição, como
nosso regime geral, obrigatório, universal e suficientemente abrangente, o mercado para esse
tipo de produto, uma espécie de filet mignon do sistema financeiro, ficaria, no Brasil, sempre
constrangido. Daí a necessidade de reduzir o espaço do regime geral (mais sobre isso em
Paulani, 2008b). Essa novela, como se sabe, ainda não terminou. Estamos vivenciando, talvez,
seu derradeiro capítulo. A agressividade e a crueldade da proposta enviada por Temer ao
Congresso – que condena a morrer trabalhando boa parte da população brasileira – evidencia a
força do setor bancário-financeiro e dos interesses rentistas hoje no país.
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Não inclui derivativos.
45
Tanto no primeiro quanto no segundo indicadores, as estimativas foram elaboradas pela
autora a partir de fontes oficiais como IBGE, Banco Central e IPEA, dentre outros.
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reverte da pior forma possível, ou seja, nos momentos de crise . Ademais, no
quadro de um regime de acumulação financeirizado, o próprio funcionamento
dos expedientes de valorização reforça esse movimento de sobrevalorização do
câmbio: considerando a existência no Brasil de um robusto mercado de
derivativos e a ausência de controle sobre os fluxos internacionais de capital, a
taxa de câmbio passa a integrar a carteira dos investidores financeiros, que
procuram por rápidas valorizações especulativas de suas aplicações (Bruno;
Caffé, 2015, p.56).
Ora, é evidente que com tais tendências operando continuamente, não só
a economia deixa de ter o dinamismo que poderia ter, dadas as condições de
recursos naturais e de mercado potencial do país, como o Estado vê minguar os
graus de liberdade para a elaboração de uma política econômica efetivamente
benfazeja ao investimento, à produção e ao emprego. Resta-lhe o papel de
assegurar e avalizar as condições necessárias à continuidade da valorização
financeira, abertura financeira irrestrita aí incluída.
O diferencial dos governos de Lula/Dilma em relação aos governos
abertamente neoliberais que o precederam é que, a despeito da permanência
dessas tendências e de sua pouca disposição de bulir com elas, eles lograram,
graças às boas condições internacionais do período e, em seu início, ao espaço
aberto pelo elevado nível de desvalorização do câmbio provocado pela própria
eleição de Lula, implementar um modelo conciliatório, em que os ganhos dos de
cima, em particular da elite financeirizada, puderam conviver com políticas
sociais de alto impacto e ganhos aos de baixo. Quando as condições
internacionais pioraram e o modelo interno baseado na elevação do consumo
sustentada pela expansão do crédito começou a bater em seu limite, a
conciliação foi se tornando mais e mais difícil, a disputa pelos fundos públicos foi
se acirrando e, por tabela, foi crescendo também a indisposição das elites com a
46
Com propriedade, Bresser-Pereira (2009) fala, por isso, de uma tendência à sobrevalorização
cíclica da taxa de câmbio. Vide também, a esse respeito, Paulani (2013).
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permanência do alvará político concedido a um partido em princípio de
esquerda, comandado por um líder operário.
A leitura errada feita pelo primeiro mandato de Dilma com relação ao
status quo da crise internacional e sua aposta no investimento privado ao invés
de no investimento público como variável capaz de reverter a desaceleração do
crescimento fizeram explodir a crise (Paulani, 2016b), não só do ponto de vista
econômico, mas também político, dada a piora das contas públicas, cláusula
pétrea do cânon ortodoxo-liberal que regula a política econômica
pró-valorização financeira. Isso posto, de pouco adiantou a vitória da presidenta
no pleito de 2014. A necessidade de retirá-la à força da cadeira presidencial
produziu o caos político-institucional em que ora nos encontramos e ao qual nos
referimos na introdução desta contribuição.
O governo que se instalou ilegitimamente no palácio do planalto, para
além de possibilitar que seus integrantes tentem escapar dos braços longos da
Operação Lava Jato (expectativa que, tudo indica, parece ter sido uma razão
importante para a consumação do golpe), vai ter como tarefa retomar o modelo
neoliberal puro, purgando-o dos arroubos sociais dos governos petistas (Paulani,
2016c).
A crise e as portas de saída
Não é preciso falar muito sobre a inviabilidade de se resgatar um cresci-
mento minimamente razoável, em conjunto com a redução do desemprego e a
recuperação dos salários, na permanência do modelo atual. O resultado do PIB
em 2016, recentemente divulgado, superou as piores expectativas, fechando
com uma regressão de 3,6% em relação ao já minguado PIB de 2015, que
encolhera 3,8% em relação ao alcançado em 2014.
Proliferam, com isso, à esquerda, propostas para sair da crise, da
elevação da renda dos mais pobres, salário mínimo incluído, ao recobro da
capacidade de investimento do Estado, da redução da taxa real de juros ao
estabelecimento de um target para o câmbio que garanta a competitividade do
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país, do resgate do papel público dos bancos estatais à utilização de parte do
compulsório bancário para reduzir a dívida das empresas, da redução dos
spreads bancários via atuação dos bancos públicos à redução do custo do
crédito para capital de giro e investimento, de uma reforma tributária progressiva
com elevação dos tributos diretos ao término das isenções tributárias aos
ganhos financeiros e de não residentes, do restabelecimento da CPMF e fim da
DRU à securitização da dívida ativa da união, da determinação de meta fiscal
para o crescimento econômico à reversão do caráter pró-cíclico da política fiscal,
da ampliação do período para o cumprimento de metas de inflação ao seu
estabelecimento apenas para o núcleo dos preços, da utilização dos recursos
em caixa do BNDES na criação de fundos destinados à ampliação de
infraestrutura à retomada de obras paradas por todo o país, da redução do custo
da energia elétrica à utilização de parte das reservas para reerguer a Petrobras,
e por aí vai…
Todas essas são propostas meritórias e cada uma delas tem sua razão de
ser em se tratando de reverter a atual situação. Mas o problema do país hoje é
de fundo, é de esgotamento, e crise de um modelo rentista e financeirizado, que
já causou muitos prejuízos ao Brasil e aos brasileiros, em particular aos de mais
baixa renda. Qualquer delas que se adote, sem que se toque no arranjo
institucional que têm permitido, há quase três décadas, o protagonismo da
riqueza financeira e dos imperativos de sua valorização estará fadada ao
fracasso. A adoção de uma política que não padeça desse fracionamento passa
pela necessidade de desatar o nó político-institucional a que nos referimos no
início, mas desatá-lo no sentido do estabelecimento de um projeto nacional que
liberte o país da armadilha da financeirização.
Ser bem-sucedido nessa difícil tarefa terá como resultado também o
resgate da soberania do país na condução de seus destinos, soberania que é
impossível com a continuidade de um modelo que vicia o país na poupança
externa e o obriga, como num moto contínuo, a repetir sempre os mesmo erros.
Propostas existem de modelos alternativos e soberanos – cito um, o de
Bielschowsky (2012) e seus três motores; o que não se sabe se existe é
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disposição das elites em abraçá-las. Nossa história, infelizmente, não parece
oferecer muitos motivos para um pensamento otimista a esse respeito.
Referências:
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têm sucesso e outros não. Rio de Janeiro: Campus Elsevier.
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_______ (2012). A inserção da economia brasileira no cenário mundial: uma reflexão sobre a
situação atual à luz da história. Boletim de Economia e Política Internacional (IPEA), v.3, n.10.
_______ (2013). Acumulação sistêmica, poupança externa e rentismo: observações sobre o
caso brasileiro. Estudos Avançados, São Paulo, v.77.
_______ (2016a). Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o
capitalismo contemporâneo. Revista de Economia Política, v.36, n.3.
_______ (2016b). Capitalismo e Estado no Brasil: a saga dos investimentos públicos. Politika,v.1,
n.3.
_______ (2016c). Ponte para o Abismo. In: JINKINGS, I. et al. (Org.) Por que gritamos golpe? Para
entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo.
PAULANI, L. M.; PATO, C. G. G (2005). Investimentos e servidão financeira: o Brasil no último
quarto de século. In: PAULA, J. A. (Org.) Adeus ao desenvolvimento: a opção do governo Lula.
Belo Horizonte: Autêntica.
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GLOBALIZAÇÃO EM XEQUE
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Tatiana Berringer e Diego Azzi
Importantes acontecimentos na cena internacional têm apontado que a
globalização neoliberal pode estar em xeque. Com efeito, desde 1989 e o fim da
Guerra Fria, os defensores do (neo)liberalismo celebravam a vitória do
livre-mercado sobre a centralidade do Estado no planejamento econômico —
seja o planejamento socialista da URSS; aquele capitalista dos Estados de
bem-estar social ou, ainda, do desenvolvimentismo latino-americano. Dizia-se
então que o mundo era uma “aldeia global” livre de fronteiras, de barreiras e de
protecionismos. Na era da informação a criação de redes e a comunicação entre
os povos deixaria tudo mais conectado, trazendo uma nova concepção de
sociedade em um mundo comum. Seria o fim dos nacionalismos e, sobretudo, o
fim da luta de classes — donde se poderia vislumbrar até mesmo “o fim da
história”.
Passados menos de 30 anos, a decisão de Grã-Bretanha de sair da União
Europeia e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos no ano passado
seriam uma demonstração de que entramos em um momento de guinada na
política internacional? Nacionalismo, xenofobia e protecionismo voltaram a ser
mobilizados nas arenas política e econômica. O que explica tamanha guinada?
Estará emergindo uma nova ordem internacional, de um tom conservador
extremo? A globalização está de fato em xeque?
Esses são alguns dos questionamentos que estão no contexto de fundo
48
da realização da III Semana de Relações Internacionais da UFABC-UNIFESP ,
que aconteceu nos dias 3, 4 e 5 de outubro de 2017 em São Bernardo do
Campo. A Semana teve a honra de receber o prof. Vijay Prashad (Trinity College,
EUA) e a profa. Dzodzi Tsikata (Ghana University, Gana), além de professoras e
47
Professores do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC
(UFABC). Contato: berringer.tatiana@ufabc.edu.br; diego.azzi@ufabc.edu.br.
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www.semanari2017.blogspot.com
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os extremos centros (Ali, 2015) — Partido Trabalhista na Inglaterra com Tony Blair
e Partido Democrata nos Estados Unidos com Bill Clinton — acabaram
exercendo um papel importante, assumindo governos e aplicando políticas
contraditórias para a sua tradição político partidária e para a sua base social; e a
terceira, de 2008 até o momento atual, em que há uma contraofensiva, pautada
na tentativa de garantir acordos plurilaterais de livre-comércio por fora do
multilateralismo da Organização Mundial do Comércio (OMC); nas ofertas de
privatização dos ativos e serviços públicos; nos acordos de garantia da
propriedade intelectual e dos investimentos externos, trazendo um impacto
negativo sobre as soberanias nacionais e sobre os direitos sociais, trabalhistas e
ambientais.
Essa dupla crise do neoliberalismo tem relação também com o
surgimento recente de novos polos de poder que apresentam maiores desafios
para a manutenção da hegemonia dos Estados Unidos e do tradicional status
quo centro-periferia. A ascensão da China, o reposicionamento da Rússia e o
fortalecimento de potências regionais como Índia e Turquia abrem
possibilidades para um novo equilíbrio de poder internacional, agora mais
instável e conflituoso do que no momento da hegemonia unipolar dos Estados
Unidos entre 1990 e o ínicio dos anos 2000.
O novo papel do Estado chinês na política internacional está ligado ao
seu forte crescimento econômico nas últimas décadas, que gradualmente vai se
traduzindo em poder político no sistema financeiro internacional, como
evidencia a recente inclusão do Renminbi na cesta de moedas dos Direitos
Especiais de Saque do FMI (Eichengreen, 2017). A China soube tirar proveito da
globalização comercial combinando uma política que visa o alcance de um
patamar elevado de ciência, tecnologia e educação, com elevados
investimentos externos em infra-estrutura, por exemplo através da Belt and
Road Initiative (BRI) e do Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB), além de
canalizar investimentos através dos seus cinco bancos nacionais de
desenvolvimento (Cintra et alli, 2013). Soma-se a isso que o Estado chinês tem
buscado investir mais na sua capacidade militar, especialmente nas forças
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navais, o que está ligado ao conflito crescente por recursos naturais e pelo
controle estratégico dos mares do sul e do leste da China.
As relações entre Estados Unidos e China são comumente consideradas
como “siamesas”, pois pautadas pela complementariedade, pela dependência e
por conflitos que vinculam profundamente os dois países (Pinto, 2011). Não
bastasse o dado de a China ser a principal detentora dos títulos do Tesouro
americano, desde 2008 tem havido um aumento das trocas comerciais, os
investimentos externos diretos são muito altos e pautados na construção de joint
ventures e de cadeias produtivas, sobretudo regionais no sudeste asiático. Isto
tudo faz com que um conflito direto entre esses dois Estados não seja uma
opção fácil e nem próxima. Apesar disso, e de sabermos que nunca houve na
história a consolidação de uma potência sem conflitos armados, até o presente
momento não se pode afirmar que a China aja como um Estado imperialista,
dado que não tem uma prática política intervencionista sobre outros Estados e
não utiliza de bases militares para manter em segurança os seus investimentos.
Os BRICS foram muito importantes para trazer um novo equilíbrio de
poder internacional, e cumpriram um papel de destaque na crítica ao déficit
democrático em organizações internacionais como o FMI, o G7 e o Conselho de
Segurança da ONU. O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Arranjo
Contingente de Reservas (CRA) são instrumentos fundamentais como
alternativas de financiamento e de práticas políticas distintas nas relações
financeiras internacionais. A despeito da aparente mudança de perfil e ênfase
que a política externa brasileira parece estar conferindo ao bloco após o
controverso impeachment da Presidente Dilma Rousseff, nos parece evidente
que os BRICS deveriam continuar a ser uma coalizão fundamental para os
interesses e as relações internacionais do Brasil.
Neste contexto tão complexo e conflitivo que tem colocado a
globalização em xeque, a política externa de um país emergente como o Brasil
deveria estar à altura de enfrentar o desafio de projetar ao nosso modo os
valores da solidariedade, da cooperação e da justiça social, com o objetivo de
contribuir para a construção de um mundo de paz, integração e
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desenvolvimento compartilhado.
Referências:
ALI, Tariq (2015). Extreme centre: a warning. Verso: UK.
CINTRA, Marcos et alli (2013). As transformações do Sistema Monetário Internacional. O papel
do dólar e do RENMINBI no sistema monetário internacional. IPEA, Brasília.
DOWBOR, Ladislau (2017). A era do capital improdutivo — a nova arquitetura do poder. São
Paulo: Ed. Outras Palavras/Autonomia Literária.
EINCHENGREEN, Barry (2017). The RENMINBI goes global — the meaning of China’s money. In:
Foreign Affairs, 13 February.
FINANCIAL TIMES (2017). Globalization in retreat — capital flows decline since crisis. London,
Thursday, 24 August.
HARVEY, David (2008). O neoliberalismo — história e implicações. São Paulo: Ed. Loyola.
SAAD, Alfredo (2016). The end of the road: the global crises and the desintegration of
neoliberalism. Open Democracy, 06 de dezembro de 2016. Disponível em:
https://www.opendemocracy.net/alfredo-saad-filho/end-of-road-global-crisis-and-disintegration-of
-neoliberalism.
THE ECONOMIST (2017). In retreat - global companies in the era of protectionism. London,
January 28th..
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O mundo mudou, a sociedade brasileira mudou, a economia brasileira mudou,
a ocupação do território mudou e o processo de urbanização também
Diversos autores concordam que o Brasil vive o fim de um ciclo. O país
cresceu economicamente a altas taxas (PIB de mais de 7% a.a.), entre 1940 e
1980, quando o país se industrializou e se urbanizou. Esse período foi seguido
pelas chamadas décadas perdidas (1980 e 1990), marcadas pelo fim da ditadura
(1964-85) e depois pelos anos conhecidos pelo fenômeno do lulismo (Singer,
2012): crescimento econômico com alguma distribuição de renda seguido de
crise.
No contexto internacional, durante os anos 1970, vivemos a transição
entre o capitalismo do Estado-providência e a globalização neoliberal, com a
flexibilização do grande acordo entre Estado, Sindicatos e Capitais sob a
crescente hegemonia do capital financeiro. A desigualdade e a informalidade se
aprofundaram. Direitos foram flexibilizados.
Nas cidades do mundo, a globalização neoliberal escreveu vários
capítulos: o planejamento estratégico, o “urbanismo do espetáculo”, o
urbanismo dos megaeventos, a cidade global ou cidade mercadoria (que se
vende e compete com outras para atrair capitais), smart cities [conferir glossário]
e finalmente a financeirização que levou às bolhas imobiliárias [conferir
glossário] mais evidentes nos EUA e na Espanha (Arantes, 2000; Vainer, 2011;
Fix, 2011). Esses capítulos também puderam ser lidos nas cidades brasileiras
(com as especificidades decorrentes da condição capitalista periférica) com
algumas variações proporcionadas pelos movimentos democráticos
pós-ditadura de 1964.
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Ermínia Maricato é professora universitária (USP), pesquisadora acadêmica, ativista política,
ocupou cargos públicos na Prefeitura da Cidade de São Paulo e no Governo Federal.
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Carina Serra é coordenadora nacional BR Cidades.
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“urbanismo do espetáculo” – que expulsou para as periferias mais de 40.000
pessoas pobres (Faulhaber e Azevedo, 2015; Vainer et al, 2016).
Além do boom automobilístico, as cidades viveram um boom imobiliário
[conferir glossário] que fez o metro quadrado dos imóveis atingir patamares
entre os mais altos do mundo (Revista Exame, 2011). As cidades médias
passaram por um forte processo de espraiamento com a disseminação, por todo
território nacional, do loteamento fechado. O produto do mercado imobiliário
que é mais lucrativo e mais se dissemina, estendendo horizontalmente a
ocupação urbana, contraria a lei federal 6766/79 que regula o parcelamento do
solo. O Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009 pelo governo
federal, retomou de forma espetacular o investimento em moradia, com
subsídios nunca antes praticados para a população de baixa renda, mas
esqueceu-se das lições da Plataforma da Reforma Urbana: é preciso controlar o
acesso à terra ou conter a especulação imobiliária desenfreada. E isso, segundo
a CF-1988, é tarefa dos governos municipais.
Os programas habitacionais do ciclo virtuoso das “prefeituras
democráticas e populares”, a produção da habitação com assistência técnica e
participação social ficaram com apenas 2% do orçamento do PMCMV. O restante
foi orientado pelos setores de construção e do mercado imobiliário. A máquina
do crescimento tomou conta das cidades em simbiose com os financiamentos
das campanhas eleitorais.
Sobra uma constatação: no período das vacas magras, quando havia
poucos recursos para as políticas públicas havia espaço para a democracia
direta nas definições da política urbana. Quando os recursos apareceram, como
parte de um projeto desenvolvimentista para fazer frente à crise internacional de
2008, a democracia direta desapareceu. Nem a criação do Ministério das
Cidades, com seu Conselho Nacional que inclui a participação de entidades da
sociedade civil, nem as Conferências municipais, estaduais e federal
participativas, nem, finalmente, o arcabouço legal avançado conseguiram resistir
à mudança na correlação de forças que engoliu a política de coalizão (Maricato,
2011).
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não motorizados e coletivos; aplicação da função social da propriedade e da
cidade; universalização do saneamento; respeitar a participação social no
planejamento e gestão urbanos, entre outras. Que fazer para implementar o
arcabouço legal que amplia direitos? Por exemplo, que fazer para que o Estatuto
da Metrópole seja implementado garantindo racionalidade e articulação entre
governos nas metrópoles hoje desgovernadas?
Mesmo se considerarmos que a conquista dessa legislação não garantiu
direitos e que colocá-la como prioridade foi um equívoco dos movimentos
ligados à Reforma Urbana, cabe lutar por novas leis? Cabe manter a concepção
descentralizadora da CF-1988, que dá tanta autonomia aos municípios? É
necessário definir melhor o que se entende por função social da propriedade?
Sobre a questão ambiental: o ciclo que se encerra não viveu a urgência
de fatos como o aquecimento do planeta, a crise hídrica, a ameaça dos
agrotóxicos e transgênicos. Novos paradigmas devem ser introduzidos em um
projeto para as cidades como: a diminuição da viagem dos alimentos; a
agricultura urbana; a segurança alimentar; a proteção das reservas hídricas;
proteção efetiva de APPs – Áreas de Preservação Permanente, APMs – Áreas
de Preservação de Mananciais, mangues e dunas; a proteção efetiva e
despoluição de cursos de água; a despoluição do ar com a priorização do
transporte coletivo; a cidade de uso misto e compacta com garantia de
habitação social (esta é atingível apenas com o controle efetivo sobre o uso e a
ocupação do solo).
Engajar o ensino fundamental na vida da cidade combatendo o
analfabetismo urbanístico e implementar a política de extensão universitária
poderia ser uma contribuição essencial para combater a alienação e a
representação da classe dominante sobre as cidades.
Muitas das propostas do ciclo virtuoso da política urbana merecem
retornar à cena: assistência Técnica à HIS para reformas e novas moradias,
urbanização de favelas e áreas precárias, construção de CEUs e CIEPs, entre
outras, mas em especial o controle dos recursos públicos por meio do
Orçamento Participativo, merecem ser replicado.
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Boom imobiliário — aumento rápido na produção e preço dos imóveis durante
certo período seguido de queda brusca. O aumento da produção é sempre,
necessariamente, garantido pela injeção de investimentos públicos ou privados
para o financiamento. Em mercados imobiliários não regulados, acarreta o
aumento do preço da terra e de imóveis podendo, em vez de diminuir a carência
de moradia, aumentá-la. Há uma disputa entre capitais — de construção, de
incorporação, financeiro — e proprietário da terra — pelos juros, lucros e rendas
gerados nessa produção e comercialização.
Especulação rentista imobiliária — a produção de edifícios e infraestrutura
urbana, bem como a legislação urbanística, gera valorização sobre terrenos e
imóveis aumentando seu preço. Há uma disputa, na sociedade, pelos
investimentos públicos e legislação que vai permitir ganhos rentistas pelos
proprietários de imóveis ou de papéis lastreados nesses imóveis. A retenção de
terras ou imóveis vazios aguardando valorização é a forma mais comum de
especulação rentista imobiliária nas cidades brasileiras e ela contrasta com a
grande carência de moradias.
Integração modal — integração em rede das diferentes formas ou modos de
viagem: a pé, de bicicleta, de transporte coletivo (trilhos ou pneu), de transporte
motorizado individual (automóvel e moto). A mobilidade deve ser pensada como
rede integrada assim como o bilhete pago pelos transportes coletivos.
Referências:
ARANTES et al (2000). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis:
Editora Vozes.
ARAÚJO, T. B (2000). Ensaios sobre o desenvolvimento brasileiro: heranças e urgências. Rio de
Janeiro: Revan/Fase, 2000.
DINIZ, C (2001). A questão regional e as políticas governamentais no Brasil. Texto para
discussão n. 159. Belo Horizonte: CEDEPLAR/FACE/UFMG.
FAULHABER, L.; AZEVEDO, L (2015). SMH 2016. Remoções no Rio de Janeiro olímpico. Rio de
Janeiro: Mórula.
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