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mento do discurso de ódio não é um fenômeno brasileiro. “contrato do fio do bigode” – o acordo que, pressupondo a
Manifestações racistas e homofóbicas têm aumentado em confiança absoluta na outra parte, abdica da formalidade do
países com uma experiência democrática bem mais longa e direito – para ilustrar o princípio da cordialidade: “Há um
estável, como Estados Unidos e França. O ódio e os precon- lado extremamente violento aí, que é o da quebra do acordo.
ceitos existem na sociedade, e a democracia se traduz na for- A cordialidade tem uma violência presente nela o tempo in-
ma como lida com esses conflitos. A internet e as redes soci- teiro. São a violência e o personalismo juntos. Mas a tese da
ais apenas revelaram opiniões que antes não eram ditas em cordialidade já não faz sentido. O Brasil ficou muito mais
público, por pudor ou por falta de meios, amplificando pola- complexo. A questão é: qual é a natureza do conservadoris-
rizações políticas, sociais e culturais que podiam passar des- mo brasileiro?”. Segundo Nobre, as divisões e polarizações
percebidas entre vizinhos ou membros de uma mesma famí- políticas da sociedade brasileira não encontram canal de ex-
lia. No Brasil, a precariedade da educação e as peculiarida- pressão na política oficial – nem nas bancadas do Legislati-
des de uma experiência democrática ainda imatura, combi- vo nem no Executivo –, devido a um fenômeno que ele cha-
nadas com uma crise política, social e econômica de dimen- ma de “peemedebismo”. “Você tem um paquiderme político
sões gravíssimas deram ao confronto um aspecto de “guerra no meio do sistema, seja qual for o governo. O paquiderme
civil”. O ódio ao governo passou a servir de pretexto não a- anda bem devagarzinho, qualquer mudança é sempre muito
penas para expulsar um ex-ministro (Guido Mantega) de um lenta. É isso o que o PMDB garante. É a expressão mais pro-
restaurante ou de um hospital de São Paulo, sob gritos de in- funda do conservadorismo da democracia brasileira”. O sis-
júria, mas também para intimidar um frentista haitiano e ne- tema político não consegue refletir nem mesmo a polariza-
gro, trabalhando legalmente em um posto de Canoas, no Rio ção das eleições. Não se pode dizer, por exemplo, que o go-
Grande do Sul, sob a justificativa de que era estrangeiro e verno do PT seja de esquerda: “O paquiderme nunca é de
estava tomando o emprego de brasileiros, graças a uma su- direita ou de esquerda. E quem ganha as eleições tem que
posta maquinação do PT. “Antes, havia uma repressão mai- levar o paquiderme consigo. The winner takes it all”. Como
or desses sentimentos. Há variáveis no Brasil que se agrava- o sistema não consegue refletir as polarizações sociais reais,
ram, ficaram mais claras. É o ônus que toda sociedade igua- elas acabam se acirrando na sociedade. O Brasil está inseri-
litária carrega”, diz o antropólogo Roberto DaMatta. “O ra- do dentro de um quadro mundial de ressurgimento dos po-
cismo surge porque existe competição por empregos. É uma pulismos. Em geral, são movimentos oportunistas que ins-
crise igualitária por demanda de igualdade. Quanto mais i- trumentalizam a insatisfação das populações diante do fra-
gualdade, mais competição. Consequentemente, ir-se-ão in- casso de projetos de governo de esquerda e centro-esquerda
ventar outros códigos, que não serão democráticos, que é e- paralisados pelas pressões e contradições da crise econômi-
xatamente o que explica o racismo americano e a segrega- ca. Na França, por exemplo, a Frente Nacional, de Marine
ção depois da Guerra Civil. Isso é agravado pela crise eco- Le Pen, se aproveita da imagem de um governo socialista
nômica. Há um ressentimento muito grande contra este go- hesitante para forjar um discurso retórico e inflamado, fa-
verno. O que está acontecendo hoje no Brasil é resultado de zendo preconceitos racistas e xenófobos passarem por solu-
um sufocamento político e ideológico de uma administração ções. No Brasil, essas soluções passam cada vez mais pelo
que aparelhou todo o Estado e que foi incompetente. O PT mito de uma moral religiosa obscurantista contra a Gomorra
dizia que não roubava e olhe no que deu. Não vejo essa crise da corrupção e do fisiologismo. É claro que um exame mais
cultural que se diz existir. Há uma crise política. Mas tam- atento e reflexivo dos fatos bastaria para desconstruir esses
bém há maior liberdade. Hoje, ficou mais tranquilo eu poder discursos e desmascarar aqueles que os proferem. “Não te-
dizer qual é a minha posição política, de uma maneira mais nho elementos para fazer uma relação entre aumento de dis-
clara do que em 1964, quando todo o Brasil que pensava era curso religioso evangélico e mais ódio político”, diz DaMat-
de esquerda”. Essa “vivência mais igualitária”, inédita na ta. “O que existe hoje no Brasil é uma crise financeira, que
história política, institucional e econômica do país, seria, se- está atingindo todo mundo, inclusive a mim, pessoalmente”.
gundo o antropólogo, fundamento sociológico das manifes- Cenas recentes de linchamento (ou incitação a este, qual no
tações mais agressivas: as pessoas cobram mais eficiência, caso de pedestres que pediram a morte de dois meninos ne-
acusam mais, exigem mais. Não é exatamente o que se vê gros, confundidos com bandidos, na zona sul do Rio de Ja-
no vídeo do homem que, vestindo camuflagem militar, inti- neiro) mostram como barbárie e populismo se retroalimen-
mida o frentista haitiano com seu discurso xenófobo e anti- tam. Quando se manifestou contra o linchamento de um ra-
petista e que, dias mais tarde, fugiu dum repórter do “CQC” paz que, acusado de roubo, no Maranhão, foi atado a poste
ao ter sido confrontado com os antecedentes criminais da- e espancado até a morte, deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ)
quele. Em Carnavais, malandros e heróis (1979), DaMatta se tornou vítima de uma campanha de calúnias e injúrias na
sintetizou em uma única frase – “você sabe com quem está internet, orquestrada por blogueiro que o acusava de chamar
falando”– o autoritarismo personalista do “homem cordial”, os maranhenses de “psicopatas”. “O ódio sempre existiu. A
conceito formulado por Sérgio Buarque de Holanda em Raí- novidade tem que a com as redes sociais e com a internet”,
zes do Brasil. “Hoje acabou o ‘você sabe com quem está fa- diz Wyllys. “Isso se complexifica na medida em que se arti-
lando?’. Esse é o grande problema. Há uma crise de cordia- cula com o débito educacional brasileiro e com outros pro-
lidade, mas essa crise começa com a presidente. Onde é que blemas históricos do país, como o racismo, a truculência e
está o grande articulador que nós sempre tivemos? No de- a violência. Antes, uma pessoa homofóbica ou racista ex-
senho institucional, os atores não correspondem aos papéis. pressava sua opinião num âmbito muito restrito, que tinha a
O papel requer mais dos atores do que eles são capazes de ver com seu círculo de relações. Com as redes sociais, não
dar. O que agrava a crise da cordialidade é o Executivo, que só aquela tem um alcance muito maior, mas também se co-
é comandado por uma única pessoa, e nunca se viu presiden- necta e se articula em rede com outras pessoas que pensam
te tão avesso a fazer aquilo que deve fazer o Executivo mo- como ela. E passa a ver o outro como uma alteridade radical,
derno numa república democrática. Ela tem 8% de aprova- com a qual não se estabelece diálogo. O outro virou uma a-
ção! Isso explode o campo de forças ideológicas, culturais meaça permanente. O outro é o alien, o ‘oitavo passageiro’,
e, sobretudo, simbólicas”. Marcos Nobre lembra o chamado aquele que você tem que eliminar”. Wyllys trava uma luta
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diária com as palavras na internet, onde a ignorância se con- nha? Estamos no meio da maior crise política desde a queda
funde com má-fé e manipulação: “As pessoas se plugaram da ditadura. É muito pior que o impeachment. É muito pior
sem a capacidade de distinguir entre um discurso e outro, que tudo. É a hora de propor pontes de diálogo”.
entre o que é verdadeiro e o que não é, sem distinguir o que
é ironia, metáfora, as figuras de linguagem que a gente a- (Folha de S. Paulo, “Ilustríssima”, 09.08.2015)
prendia na escola; 30% de diplomados pelo Ensino Superior
brasileiro são analfabetos funcionais. Essas pessoas não têm
habilidades fundamentais para o entendimento humano e
para a comunicação. Isso só pode gerar confusões terríveis
e ódio”. “O problema é o ‘nós contra eles’”, afirma o jurista
Wálter Fanganiello Maierovitch, presidente do Instituto Gi-
ovanni Falcone de Ciências Criminais e de Educação à Le-
galidade Democrática. “O próprio Lula – velha vítima do
preconceito de classe por parte de uma elite conservadora –
se tornou protagonista de acirramentos e confrontos odio-
sos. Com esse discurso, ele não se bate por uma sociedade
mais justa, e sim procura apenas a manutenção do poder”.
Referências de Lula, Dilma e militantes do PT ao reaciona-
rismo da “elite branca” não ajudaram a elevar o nível do de-
bate. Em fevereiro de 2013, militantes do PT chegaram a
chutar e xingar uma jornalista da Folha que cobria a entrada
de uma festa em comemoração dos dez anos do partido no Discurso de ódio não é liberdade de expressão, diz
Governo Federal. A instrumentalização política da ignorân- defensora que venceu ação contra Fidelix
cia e do preconceito não é, porém, exclusividade da internet.
Maierovitch é veemente no repúdio a qualquer tentativa de Julia Affonso
censura ou controle das mídias. Os excessos e ofensas de-
vem ser resolvidos judicialmente, qual há em todos os Esta- Era fim de setembro de 2014, quando os então candi-
dos democráticos, em termos de responsabilização criminal datos à Presidência da República Levy Fidelix (PRTB) e
por calúnia, injúria ou difamação. “O que precisamos é for- Luciana Genro (PSOL) começaram a debater a homossexu-
talecer as polícias e os ministérios públicos e reformar o Ju- alidade, na TV Record. De forma irônica, o candidato rela-
diciário, que precisa ser independente. Ainda mais em tem- cionou homossexuais à pedofilia, afirmou que nunca havia
pos em que os presidentes do Senado e da Câmara acham visto procriação entre pessoas do mesmo sexo e que preferi-
que o Executivo poderia impedir que fossem investigados”, ria perder votos a apoiar gays. Cerca de seis meses após o
diz. Exemplos que expõem, cada vez mais, o descompasso debate, Fidelix foi condenado pela Justiça de São Paulo, por
entre política institucional e sociedade não faltam. “A socie- causa das declarações homofóbicas. “A liberdade de expres-
dade se democratizou muito mais rápido que o sistema polí- são tem, sim, limites”, afirma a coordenadora do Núcleo de
tico. Deu-se voz para pessoas que antes não tinham. E esses combate à discriminação, ao racismo e ao preconceito, da
movimentos foram turbinados na internet. Ao mesmo tem- Defensoria Pública de São Paulo, Vanessa Vieira. “Todo es-
po, não há formalização da convivência para a resolução do se discurso homofóbico, transfóbico, discriminatório gera
conflito”, diz Nobre. A peculiaridade de um sistema político danos reais à sociedade. Nós vimos, no ano passado, neste
no qual noções como “direita” e “esquerda” já não esclare- ano, vemos sempre, pessoas sendo agredidas, assassinadas
cem muita coisa, tampouco ajudam como modelo ou exem- em virtude da sua orientação sexual ou da sua identidade de
plo de como lidar com o conflito e a diferença. “Como o sis- gênero”. Após o episódio, a Defensoria Pública paulista aju-
tema político não tem esse lado pedagógico, quando a coisa izou uma ação civil pública contra Fidelix. O resultado saiu
explode, ela explode de uma forma completamente desorga- nesta semana. O político foi condenado pela Justiça de São
nizada. E aí chega alguém e diz: ‘Olha, você pode organizar Paulo, em primeira instância, a pagar R$1 milhão para
o seu discurso se você odiar o outro. E você canaliza um po- ações de promoção de igualdade da população LGBT. Cabe
tencial, que é democrático, na direção de algo regressivo. O recur-so. Durante sua fala, Levy chegou a defender um
discurso de ódio é um discurso fácil de organizar’”. Antigos enfrenta-mento a “essas minorias”: “Vamos ter coragem,
centros de referência e de informação, como a mídia tradici- somos mai-oria, vamos enfrentar tais minorias”. “Instrua
onal, também já não servem de mediadores culturais. O mo- seu filho, ins-trua seu neto”, pediu o candidato ao público.
nopólio dessa mediação foi pulverizado pela internet e pelas Ele disse ainda que “Aparelho excretor não reproduz”, cau-
redes sociais. Há um potencial enorme de democratização. sando indigna-ção em alguns integrantes da plateia. A rea-
O que falta, segundo Nobre, é uma formalização dessas no- ção saiu do debate televisivo e chegou aos telefones da De-
vas instituições e do espaço público como espaço de iguais, fensoria Pública de São Paulo e do Disque 100, o Departa-
onde o outro possa ser reconhecido e tratado como cidadão, mento de Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Go-
não importando quem seja. Como é possível refletir e dialo- verno Federal. Em Brasília, foram registradas 3 mil denún-
gar sem referências? “A esquerda acabou no Brasil, do pon- cias e, na capital paulista, 5 mil. Nesta entrevista, a defenso-
to de vista político. O PT vai ser dizimado. Mas o acirra- ra pública fala sobre a ação contra Levy Fidelix e diz que
mento do discurso de ódio cria polarizações artificiais que ‘discurso de ódio não é liberdade de expressão’. Ela avalia
têm consequências muito mais conservadoras do que pode- o Estatuto da Família, projeto da Câmara que define como
riam ser. Se se deixar de falar com os 87% que são a favor “família” o núcleo for-mado apenas pela união entre homem
da redução da maioridade penal, irá se falar com quem? Há e mulher. “Esse projeto é um absurdo retrocesso”, atesta.
gente que também é a favor das relações homossexuais, por “Ultimamente, parece que a gente está regredindo”.
exemplo. Vamos jogar todo mundo no colo do Eduardo Cu-
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ESTADÃO: O que essa vitória representa para o movimen- ser homossexual é pecado. Em respeito à liberdade religio-
to LGBT? sa, nós não ingressamos com nenhuma medida. No entanto,
DEFENSORA PÚBLICA VANESSA VIEIRA: Vencer na situação do Levy Fidelix, mais do que expressar sua opi-
essa ação civil pública, mesmo que na primeira instância, é nião e suas ideias religiosas ele disse que a população LGBT
uma grande vitória para a Defensoria e para o movimento deveria ser enfrentada. “Ser enfrentada” pode ser interpreta-
LGBT, porque afirma que as pessoas não estão livres para do de várias formas. Mas, provavelmente, quem assistiu ao
falarem discursos de ódio. Delimitou bem a liberdade de ex- debate pode ter interpretado como “agredir”, “discriminar”,
pressão. Assim que a gente ajuizou a ação, na época em que “desrespeitar”. Comparou a homossexualidade à pedofilia,
o Levy Fidelix proferiu esses termos, isso foi muito discuti- afirmou que as pessoas homossexuais têm que ser tratadas
do na sociedade, que o que ele tinha falado se baseava na li- bem longe da gente. Tudo isso significa desrespeito à digni-
berdade de expressão. Nós não negamos que, de fato, a li- dade da pessoa, da população LGBT. Nós tivemos denúnci-
berdade de expressão é um direito fundamental e que deve as, inclusive, da população heterossexual, que se sentiu a-
ser respeitado. Mas entendemos que, depois que esse discur- gredida, pois ele não respeitou a diversidade na sociedade.
so é proferido, cabe uma reparação no caso de aquele discur- ESTADÃO: Dizer que homossexualidade é pecado não se-
so ter incidido no discurso de ódio e ocasionado algum dano ria discriminatório?
moral. Ficou muito claro na sentença da juíza. A gente espe- VANESSA: Isso acaba sendo difícil de caracterizar. É uma
ra que essa decisão prevaleça no Tribunal, no Supremo Tri- discriminação e gera várias situações na sociedade, de vio-
bunal Federal, para que seja mantido esse entendimento de lência, de discriminação na família. Mas, no âmbito do Judi-
que discurso de ódio não é liberdade de expressão. A mani- ciário, às vezes, fica difícil comprovar que aquilo ultrapas-
festação do pensamento das pessoas tem limites sim. sou a liberdade de expressão, a liberdade religiosa.
ESTADÃO: Como ensinar a diferença entre “liberdade de ESTADÃO: Mover ação contra político é mais difícil?
expressão” e “incitação ao ódio”? VANESSA: Independentemente da pessoa, se é político ou
VANESSA: A diferença entre as duas coisas nem sempre é não, o mais difícil é identificar esse limite do que é uma me-
fácil de fazer. Muitas vezes, discurso de ódio está travestido ra opinião, uma mera concepção religiosa, ideológica, do
de liberdade de expressão, de liberdade religiosa. O critério que é um discurso de ódio. A gente procura analisar os casos
que a gente procura utilizar é que discurso de ódio é aquele de forma cautelosa, para também não desrespeitar a liberda-
que de fato incita a violência, a discriminação, coloca que de de expressão.
aquele grupo social merece menos respeito, menos direitos ESTADÃO: O que você acha da criminalização da homo-
que outros grupos. Muitas vezes, as pessoas falam coisas fobia?
discriminatórias, preconceituosas, sob o manto da liberdade VANESSA: Hoje, as pessoas investem bastante no Direito
de expressão e da liberdade religiosa. Penal. Eu acredito que o Direito Penal não é a solução para
ESTADÃO: Qual foi a estratégia usada para chegar à con- todos os problemas. O fato de ele ter sido condenado a uma
denação? indenização tão alta talvez tenha tido um efeito maior que o
VANESSA: Nós entendemos que não foram apenas as pes- Direito Penal. Mas nós sabemos que a sociedade reivindica
soas que denunciaram ou pessoas que de alguma forma re- o Direito Penal; ele tem uma função simbólica, de mostrar
clamaram para a gente as prejudicadas e lesadas, mas toda que aquelas condutas não são permitidas ou toleradas. Acho
a população LGBT. Nós baseamos nossa ação no argumen- que o Direito Penal só deve ser usado nos casos mais graves.
to de que a liberdade de expressão tem, sim, limites e afir- ESTADÃO: Em um assassinato, por exemplo.
mamos para a juíza que todo esse discurso homofóbico, VANESSA: Exatamente, numa situação mais grave. O
transfóbico, discriminatório gera danos reais à sociedade. principal é que o governo invista em políticas públicas, para
Nós vimos o ano passado, neste ano, vemos sempre, pessoas que crie uma sociedade menos preconceituosa, menos dis-
sendo agredidas, assassinadas em virtude da sua orientação criminatória, principalmente, invista na educação, na sensi-
sexual ou da sua identidade de gênero. Muitas vezes pessoas bilização de crianças e adolescentes, para que a sociedade
heterossexuais são assassinadas por serem confundidas com forme pessoas diferentes.
homossexuais. Juntamos, na ação, recortes de jornal de ESTADÃO: Qual é a maior dificuldade que se tem na luta
mortes e agressões em virtude da orientação sexual e da i- contra o preconceito? Por que ainda há tanta discriminação?
dentidade de gênero. VANESSA: As pessoas têm suas ideias pré-concebidas, os
ESTADÃO: O valor de R$1 milhão foi baseado em quê? seus preconceitos, e muitas vezes é difícil desconstruir esse
VANESSA: Entendemos que esse valor é aquém do dano preconceito. Não é um trabalho fácil. É preciso, muitas ve-
causado. Esse discurso de ódio foi proferido na televisão, zes, uma educação muito completa, que a pessoa se depare
com ampla audiência, no meio de um debate político, e a ju- com essas questões, se sensibilize, para que haja uma um-
íza acatou um dos nossos argumentos que foi no sentido de dança. O mais difícil é isso, a resistência das pessoas a que-
que, se essas questões estão sendo discutidas em um debate brar seus preconceitos. Olhar para si, para os outros, verifi-
eleitoral, entre candidatos à presidência da república e algo car que existem diferenças na sociedade e tudo bem.
desse tipo é dito, dá a impressão de que aquela opinião, que ESTADÃO: Em quais casos a Defensoria é mais acionada?
aquela discriminação é algo tolerável, que é algo aceitável VANESSA: Nós somos muito acionados em casos família-
na sociedade. O que, de fato, não o é. A juíza alegou na sen- res, de pais, parentes que discriminam filhos gays. Muitas
tença que esse tema sobre orientação sexual, identidade de vezes expulsam o filho de casa, não dão a devida atenção,
gênero são temas que devem ser discutidos na sociedade e discriminam, xingam, maltratam e agridem.
devem ser debatidos. Mas há uma diferença muito grande ESTADÃO: Como você vê o chamado Estatuto da Famíli-
entre o debate dessas questões e desrespeitar o outro, agre- a, projeto da Câmara que define como “família” o núcleo
dir, incitar, dizer que o outro tem que ser perseguido, tratado formado apenas pela união entre homem e mulher?
bem longe da gente, como foi dito pelo Levy Fidelix. A gen- VANESSA: Esse projeto é um absurdo retrocesso. O STF
te respeita a liberdade de expressão. Em outros casos, envol- (Supremo Tribunal Federal) já decidiu que é possível a uni-
vendo políticos, já foram proferidos discursos dizendo que ão estável homoafetiva. Hoje a tendência do Direito é reco-
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nhecer várias formas de família, não só aquelas tradicionais, olência dos “justiceiros de classe média”, como sublinhou,
com pai, mãe e filho. Existem várias formas de organização “é compreensível”. O que Sheherazade pretende com esse
familiar. Querer impor, por concepções religiosas, a sua for- discurso maluco, criminoso e mentecapto? Para além de ga-
ma de ver as famílias é antidemocrático, totalmente incons- nhar audiência, da forma mais irracional possível (que falta
titucional, vai contra a dignidade da pessoa humana, contra lhe faz a leitura dos racionalistas do Iluminismo), o que ela
o respeito à diversidade, previsto na Constituição, a igualda- e tantos outros adeptos da bandidagem midiática ou social
de de todos. Fico muito surpresa de ver tantos avanços em querem é nossa cumplicidade. Como explica Calligaris (To-
países próximos, como a Argentina, e aqui no Brasil a gente dos os reis estão nus), “gritam seu ódio na nossa frente para
ter um Parlamento que, ao invés de avançar nos direitos, es- que, todos juntos, constituamos um grande sujeito coletivo
tá retrocedendo. [imbecil] que eles representariam: nós, que não matamos
ESTADÃO: Acha que o Brasil está progredindo, a socieda- [nem roubamos, nem furtamos, nem estupramos, nem nos
de está se tornando menos machista, menos discriminatória drogamos], nós, que amamos e respeitamos as leis e as pes-
e preconceituosa? soas de bem, nós que somos diferentes desses outros [desses
VANESSA: Ultimamente parece que a gente está regredin- negrinhos], nós temos que linchar os culpados”. Esses agita-
do. Até mesmo contra a população negra, parece que com a dores e bandidos, tanto sociais como midiáticos, querem nos
vinda do crime de racismo, tinha dado uma amenizada, as levar de arrastão para a dança da violência identitária, como
pessoas não falavam mais coisas racistas e preconceituosas, faziam “os americanos da pequena classe média, no sul dos
mas isso parece que está retrocedendo. A gente vê as pes- EUA, no século XIX, que saíam para linchar os negros pro-
soas falando coisas discriminatórias de forma aberta, sem curando uma só certeza: a de eles mesmos não serem ne-
nenhum pudor. A gente precisa trabalhar cada vez mais no gros, ou seja, a certeza da diferença social”, fala Calligaris.
enfrentamento dessas questões. Sheherazade faz na televisão a mesma inescrupulosa apolo-
gia dos alemães que saíram pelas ruas a saquear comércios
(O Estado de S. Paulo, 22.03.2015) dos indefesos judeus na “Noite dos Cristais”. O que ela, os
justiceiros da classe média, os alemães saqueadores e os pe-
quenos burgueses americanos querem ou queriam? Afirmar
a sua diferença. Eles representam uma coisa que, desgraça-
damente, está em nós, a qual não é justiça, mas vingança. A
“necessidade” tresloucada de nos diferenciar dos outros nos
leva, mentecaptamente, a massacrá-los, dando ensejo a uma
violência infinita. Barbárie ou civilização: esse, o dilema do
século XXI!
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aberrações que vivenciamos todos os dias. Pior do que isso, racial” nos Estados Unidos e a forma como a polícia, mesmo
o simples ato de ser levantada opinião contrária à dos ofen- em Illinois, reduto eleitoral de Barack Obama, ainda prende
sores ou dos grandes meios de comunicação também acaba pessoas de forma indiscriminada e sem justificativa com ba-
resultando em ameaças, perseguições e agressões. A inter- se em elementos étnicos, muitos de que culminam na morte
net, que deveria ser o caminho da disseminação das infor- dos acusados, sempre negros, pela ação policial. Em algu-
mações transformadoras, tem sido o canal de propaganda da mas situações, observamos autovitimização do opressor co-
violência moral, da étnica, da sexual e da simbólica. Se, du- mo instrumento de pregação do preconceito e de perpetua-
rante o Iluminismo, a luta por liberdade de imprensa e de o- ção do poder dominante, como nos discursos inflamados de
pinião resultou numa conquista sem precedentes para a hu- brancos contra as políticas de cotas e de ação afirmativa, ou
manidade, criando os alicerces para a derrubada de impérios a patética conduta de alguns parlamentares e religiosos bra-
absolutistas, no mundo contemporâneo, na maior parte das sileiros defendendo o “orgulho hétero”, num claro ato de
vezes, os meios de comunicação não oferecem suporte à de- homofobia. Aliás, enquanto o direito civil caminhou duran-
mocratização da sociedade. Infelizmente, não são raros os te milhares de anos, desde a sua matriz romano-germânica,
exemplos nos quais a mídia de massa funciona como ele- para reconhecer que não existe direito “de família”, mas “de
mento de fomento a ódios, preconceitos e violência desme- famílias”, em suas diversas formas, observamos a lamentá-
dida, como no caso do nazismo, do fascismo e da islamofo- vel tentativa de retrocesso, com a tramitação, no Congresso
bia instaurada após os 11 de setembro de 2001. Os meios de Nacional brasileiro, do projeto de lei do “Estatuto da Famí-
comunicação, especialmente canais de televisão, cumprem lia”, mais um arremedo de fundamentalismo, sexismo e ho-
um papel decisivo no fomento ao preconceito, especialmen- mofobia. O uso de símbolos opressivos ainda é pouco en-
te através da construção de arquétipos, personagens em que frentado na sociedade brasileira, ainda que a violência sim-
o oprimido é sempre objeto de piadas. Portanto, os grandes bólica seja criminalizada na “Lei Maria da Penha”. Esse tipo
meios de comunicação, dominados por oligopólios e grupos de violência ainda é visto por determinados setores da socie-
conservadores, também são ponto de partida para vários cri- dade como não violência, como algo que afeta apenas a sub-
mes de ódio. Num evento pré-campanha eleitoral, em 2014, jetividade das vítimas. Logo, a violência simbólica continua
a novela Meu pedacinho de chão, da Rede Globo de televi- servindo como ponte para diversos tipos de preconceitos, ou
são, direcionada a um público infanto-juvenil, com primo- como porta de passagem para a violência física sem nenhum
roso trabalho estético e com rara qualidade de direção e in- tipo de controle. Portanto, se formos buscar a fonte da disse-
terpretação, mesmo com sua projeção atemporal, apresen- minação inconsequente dos crimes de ódio, não poderemos
tou todos os personagens negros como empregados, criticou deixar de questionar o papel dos meios de comunicação de
o direito de voto dado aos analfabetos, uma conquista demo- massa, ou da ação de alguns ocupantes de assentos nos par-
crática de 1988, sem questionar qual a origem do problema, lamentos. Enquanto aceitarmos de forma acrítica que valo-
transformando trabalhadores analfabetos em pessoas desin- res conservadores sejam impostos às nossas casas todos os
teressadas na aprendizagem, e converteu o Coronel, vilão da dias por rádio, televisão ou internet, ou que o presidente da
história, em herói redimido, num gritante retrocesso em re- Câmara vá ao púlpito do Congresso para ofender minorias,
lação ao roteiro da novela original, que foi construída sobre ou negarmos a violência simbólica, ainda continuaremos
o alicerce da crítica social. O que era para ser uma obra de convivendo com a chaga do preconceito.
arte, nos momentos citados foi palco para a disseminação de
preconceitos de forma subliminar, e reforço para a campa- (Carta Capital, “Opinião”, 01.07.2015)
nha de ódio contra formas de pensar democráticas que é e-
xercitado no dia a dia pelos telejornais da emissora. Por si- Sobre intolerância e política
nal, as novelas da Rede Globo, com raras exceções, sempre
foram instrumentos de construção de arquétipos destinados Fernando Filgueiras
ao controle dos avanços sociais. Vejam o exemplo “do bom
e do mau sem-terra”, no péssimo roteiro da reprisada nove- “Oh tempos, oh costumes!”. Com essa frase, Marco
la O rei do gado, uma “obra-prima do preconceito”. E aqui Túlio Cícero encerra o seu primeiro discurso, de um total de
nem falo de uma recente novela das 18 horas (Buggy uggy), quatro, contra Catilina, em processo de julgamento no Sena-
ambientada na década de 1970, que tinha um militar mora- do de Roma, em 63 a.C. Catilina foi julgado pelo crime de
lista como “pai de família exemplar”, e não fez qualquer re- conspiração contra a República de Roma. As Catilinárias,
ferência aos crimes praticados durante a “ditadura verde oli- que reúnem os discursos de Cícero contra Catilina, desta-
va” exercitados na mesma época. Também nem falo da rei- cam um aspecto que foi crucial à história da derrocada polí-
terada imposição da “ditadura da maternidade” pelas nove- tica de Roma. O processo contra Catilina revelava mais do
las como única forma concreta de realização feminina. Nor- que um caso isolado de conspiração. Representava um pro-
malmente, as personagens que não sonham em ser mães são cesso de corrupção daquilo que foi a República, em que, no
apresentadas como vilãs ou satirizadas; em síntese: mais u- lugar das virtudes políticas e do decoro, passou a conviver
ma forma de preconceito propagandeado. Nesses folhetins com uma luta vil pelo poder que, gradativamente, deslan-
televisivos, vemos a construção de “bons políticos” que pre- chou-se para a violência. Para Cícero, a violência significa-
gam discursos de um moralismo lamentável, enquanto pas- va a morte da política e a derrocada de qualquer possibilida-
sam o tempo todo convivendo de forma pacífica com seus de de espírito público. Não apenas nas instâncias políticas
parceiros e “bons correligionários”: latifundiários, grandes centrais, mas na sociedade como um todo. A conspiração de
empresários, jornalistas com condutas duvidosas e famílias Catilina obrigou Cícero, nobre senador romano, a juntar sua
tradicionais. Ou seja, “nas novelas globais, o bom político é legião e lutar contra a derrocada da República. Derrotou
sempre aquele que defende o ideário e os interesses da emis- Catilina, porém, mais tarde, viu a decadência da República,
sora, mesmo que estes estejam em conflito com o avanço da em 42 a.C., tendo morrido pouco tempo depois. A Repúbli-
democracia”. No ano 2011, os canais da Discovery divulga- ca esfacelou-se em guerras civis, tendo encontrado uma so-
ram um interessante documentário sobre o “perfilhamento lução para os conflitos que devastou suas conquistas apenas
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na força de um império que ascendeu. O domínio da força luta pelo poder, um fim, e da corrupção, uma forma de go-
foi a solução final e a morte da política, nas palavras de Cí- vernar. Uma sociedade intolerante não consegue ser demo-
cero. Se a República era plural porque reunia em si diversas crática, porque vê na força a solução final para os conflitos.
sociedades, o Império quis unificar a vida romana na homo- Uma sociedade intolerante é autoritária por definição e espí-
geneidade religiosa do Cristianismo. O império da lei deu rito. Impeachment, “mensalão”, “operação lava jato”, “tren-
lugar ao império da força, e a política morreu com essa luta salão”, “pixulecos” e coisas que tais são apenas cenas de u-
fratricida pelo poder. A história é importante porque nos o- ma ópera bufa, em que estereótipos e opiniões ditos e repisa-
ferece razões para a experiência e a sabedoria da prudência. dos aos prantos, à esquerda e à direita, entre progressistas e
Prudência que, no Brasil, tem faltado à elite política e tem conservadores, valem mais do que conhecimento e raciona-
contaminado a sociedade de modo devastador em nossos lidade. Tivemos um surto de esperança. Mas hoje nos resta
costumes. “Oh tempos, oh costumes!”. E resta a pergunta: apenas uma sociedade que clama pela força. Loquaz em su-
que costumes? As representações sobre o Brasil sempre nos as expressões, tendo o ódio como expressão máxima, cami-
colocaram no lugar da cordialidade e do afeto. Não é o senti- nhamos por tempos obscuros, sem direção, sem razão, sem
do inocente de uma simpatia natural do brasileiro, mas do objetivo. Pelo simples método da corrupção como forma de
fato de agirmos mais motivados com coração e menos com governar uma sociedade intolerante em seus costumes. O
razão. O Brasil de agora assemelha-se a uma Roma em ebu- desarranjo nos exigirá paciência e prudência. Mas como ser-
lição. Se o processo de democratização sinalizou para cons- mos prudentes quando querem o ódio de forma loquaz? Tal-
trução de uma sociedade democrática, plural em seus princí- vez Catilina fosse visto como herói no Brasil. Vá saber. Mas
pios, balizada no exercício da liberdade e da igualdade, nos o fato é que estamos matando a política e a capacidade de
vemos agora no desafio de afirmarmos esses princípios con- estabelecermos igualitariamente uma sociedade democráti-
tra a possibilidade da força, das conspirações e do infortúni- ca. Matando a igualdade, matamos a República. Matando a
o. O “mensalão” e a “lava jato” estão virando parcos deta- República, nos resta apenas a possibilidade da força. Com
lhes em uma sociedade que tem namorado com a força e a isso, matamos a liberdade. O cenário que ora nos avizinha é
exceção, na impossibilidade do diálogo franco e transparen- o do esgotamento e do vazio, em que o ódio e a intolerância
te, nas soluções de consenso e no império da lei. A corrup.- prosperam e crescem. Quem terá coragem de liderar um
ção que nos assola agora não afeta apenas os recursos públi- pacto pela democracia e pela República? O silêncio apenas
cos. Por essa razão, a corrupção já é perniciosa em si. Mas nos invade. “Oh tempos, oh costumes!”.
também está afetando o regime democrático. No fundo des-
se processo, está um fator oculto que tem afetado o Brasil: FERNANDO FILGUEIRAS, professor do Departamento
uma profunda intolerância política que caminha para a exce- de Ciência Política da UFMG.
ção. Racismo, machismo, preconceitos regionais, violência
crescente, desajustes políticos, vingança, conspirações, im- (Carta Capital, “Opinião”, 09.12.2015)
possibilidade do diálogo, falta de soluções comuns e um pe-
dido ainda silencioso pela força são problemas relevantes, A sociedade da intolerância
mas também são sintomas de uma política que cede ao jogo
mais vil da luta pura e simples pelo poder e uma sociedade Jairo Marques
que se torna cada vez mais ávida pela intolerância. Há de se
notar que as duas coisas andam juntas e dilaceram qualquer Na semana passada, duas deputadas federais que são
ordem republicana. Assumimos, discursivamente, os diver- cadeirantes, Mara Gabrilli (PSDB-SP) e Rosinha da Adefal
sos estereótipos da sociedade brasileira, sem qualquer tipo (PTdoB-AL), receberam uma vaia retumbante ao consegui-
de reflexão acurada sobre os nossos problemas. Dispensa- rem, após uma hora de atraso, embarcar num avião em Bra-
mos a razão e buscamos a construção de sentimentos e afe- sília. Os passageiros estavam possessos com aquela demora
tos que nos aproxima de uma das emoções mais sequazes que ocasionaria transtornos diversos em suas vidas. E tudo
para a política: o ódio. O ódio de classes, o ódio regional, o devido a duas políticas que, provavelmente, estavam tendo
ódio contra os negros, o estereótipo das “feminazis”, o ódio algum tipo de regalia, como poderiam pensar alguns, os que
oculto e não pronunciado contra os evangélicos, contra as puxaram a reprovação coletiva. Não era nada disso. As du-
religiões afrodescendentes, o ódio partidário, o ódio contra as, como qualquer pessoa com deficiência deste país, passa-
os gays. São todas expressões de uma irracionalidade que ram maus bocados para que empresa aérea e Infraero conse-
veta qualquer possibilidade de diálogo entre diferentes. Tal guissem o equipamento que garante o embarque – com al-
ódio nos adorna como costume. Somos uma sociedade acos- guma dignidade, e não como um saco de batatas – a quem
tumada à intolerância e que é cega à igualdade. Uma socie- usa cadeira de rodas ou tem movimentos restritos. Também
dade intolerante não é só incapaz de conviver com as dife- na semana passada, um adolescente negro e “bandidinho”
renças. É uma sociedade que cria hierarquias, as quais são, foi amarrado a um poste com um cadeado fixado a sua goela
constantemente, pronunciadas e criam, por sua vez, uma e- para mostrar como se faz com quem é infrator, e um homem
norme desigualdade de poder. Ódio é o sentimento que nos foi ridicularizado nas redes sociais porque estava no aero-
cega, que destrói os costumes democráticos e que impossi- porto de camiseta regata e bermuda – afinal, o calor está de
bilita a convivência dos diferentes. Uma sociedade intole- matar. Adicione a esses “fatos isolados” as surras que gays
rante é aquela em que os discursos pronunciados são aque- têm tomado, diuturnamente, nas grandes cidades, os ataques
les dos vencedores e derrotados, certos e errados, sabujos e quais os de enxame de abelhas a pessoas que externam pon-
ignorantes. Sociedades que se dividem entre o bem e o mal tos de vista avessos ao padrão dito “comum” e as ameaças
e que tomam a violência como método da política. Uma so- a grupos de piadistas. Velozmente, atitudes pouco pensadas
ciedade intolerante nega-se a si mesma. Projeta-se para fora, e questionadas, com consequências nada imaginadas e me-
rejeitando seus próprios feitos. É uma sociedade que se ape- didas, estão sendo postas em curso, doa a quem doer. O que
quena nos corações e obscurece as mentes. Uma sociedade importa é colocar para fora insatisfações ligeiras ou que in-
intolerante é aquela que faz da conspiração um método, da comodem ao ponto de gerar um beicinho, uma sensação de
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mal-estar. Tolerância com as diferenças e com a diversidade O Ministério Público do estado de São Paulo lança,
é valor em franco declínio. O pato a pagar com essa falta de na quinta-feira (7), a segunda parte da campanha “Quem se
maturidade social, que não analisa, apenas age, tende a cair dá bem com gente se dá bem na vida”. A ação, realizada em
no colo de quem não se alinha ao óbvio. Sendo o óbvio os parceria com a agência de publicidade VML, pretende aler-
atrevidos, os que compõem minorias, os que não jogam no tar, especificamente, jovens e crianças para os problemas da
meu time, os que não comem no meu restaurante e os que intolerância e do preconceito. Iniciada em setembro de 2015
“eu” considero incomuns diante do que “eu” acredito ser ba- a campanha já distribuiu 20 mil folhetos sobre o tema para
cana. O incômodo com o outro é do homem desde as caver- alunos de escolas municipais da cidade. Neste ano, ela será
nas, mas sacar as bordunas e empunhá-las na fuça alheia a retomada com uma cartilha ilustrada que usa a Declaração
troco de querer garantir o que, unilateralmente, se considera Universal dos Direitos Humanos e a própria Constituição
“justiça” ou se considera ideal é prerrogativa de tempos his- do país para explicar as formas mais comuns de intolerância
tóricos que não deixam saudade. Lá em casa, Cláudia e Mar- e suas principais consequências – como surgimento de con-
cos ficaram “grávidos” de gêmeos e estavam ansiosos para flitos e ódio direcionado a grupos sociais marginalizados. A
que seus pequenos trouxessem ainda mais confusão à famí- nova cartilha descreve, didaticamente, as características de
lia, que foi agregando gente de todos os tipos: japonês, mi- 12 tipos de intolerância: racial, sexual, religiosa, de gênero,
neiro, italiano, gordo, magro, “mal-acabados” e muitos ca- social, política, esportiva e etária, além de xenofobia, discri-
chorros. Pois não é que Luiza nasceu branquinha, como a minação de pessoa com deficiência, discriminação na inter-
mãe, e Bernardo fincou os pés na África e tem a cara do pai, net e bullying. A cartilha aponta ainda o diálogo e a denúnci-
que é negão? Motivo de orgulho, de festa e de reflexão sobre a como as melhores maneiras de combater situações de into-
que é bom ter próximo um carnaval de diferenças para tentar lerância e discriminação. O lançamento da nova publicação,
entender a multiplicidade de verdades em torno das pessoas. que será disponibilizada no site do Ministério Público pau-
Sair do quadrado daquilo que se acha correto, normal e den- lista, será acompanhada por videoclipe protagonizado pela
tro dos padrões, expondo-se a vestir uma roupa do avesso, cantora e drag queen Deena Love.
pode ajudar a diminuir o protagonismo da intolerância e am-
pliar o direito do outro de ser o que quiser e de ser mais bem (Folha de S. Paulo, “Poder”, 05.04.2016)
compreendido em suas demandas.
A intolerância social
Cláudio Bernardes
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pesquisa, feita com habitantes de 48 países, demonstrou que O veneno da intolerância
pessoas com maior nível de educação e que trabalham em
período integral são mais tolerantes. O estudo revelou, ain- Paulo Sotero
da, que, nas cidades maiores, as pessoas tendem a ser mais
tolerantes com os culturalmente diferentes. Um pequeno in- Duas cenas da tensa passagem de ano expuseram o
cremento no tamanho da cidade demonstrou um significati- clima de intolerância política que a crise atual alimenta no
vo aumento na tolerância com as diferenças. De forma geral, Brasil entre pessoas e grupos com opiniões, aparentemente,
cidades maiores, mais densas, e com baixas taxas de desem- irreconciliáveis sobre as causas de nosso infortúnio e as pos-
prego mostraram-se locais com pessoas mais tolerantes. De síveis soluções. O cisma envenena o ambiente e questiona a
qualquer maneira, se quisermos criar cidades mais justas e percepção benevolente que nós e outros temos sobre a sal-
sustentáveis, deveremos projetar e construir espaços urba- dável propensão dos brasileiros a negociar suas diferenças.
nos que possam abrigar todo tipo de diversidade social, pro- Os dois episódios aqui citados passaram-se em espaços pú-
movendo o pluralismo pragmático e disseminando a cultura blicos e envolveram figuras admiradas pela maioria pelo
da tolerância. O estímulo para que os cidadãos relacionem- que fizeram no desempenho de seus respectivos ofícios.
-se uns com os outros pode vir com a criação de espaços pú- Chico Buarque de Holanda, filho da elite que subiu o morro
blicos compartilhados, que transcendam a percepção das ne- para beber na fonte da música popular e construiu uma obra
cessidades individuais ou grupais. A convivência constante exemplar, cantando em verso e prosa nossas esperanças, a-
aumentará, paulatinamente, os níveis de tolerância. A preo- mores e aflições, foi insultado por antipetistas numa calçada
cupação em estimular, nas escolas, iniciativas que ensinem do Rio de Janeiro por ser adepto da presidente Dilma Rous-
às crianças a importância da tolerância social são também seff e crítico do impeachment que ela enfrenta no Congres-
muito bem-vindas nesse processo de tornar as cidades mais so. Exemplo de superação numa das sociedades mais desi-
justas e plurais. A intolerância pode, também, influenciar o guais do planeta, o juiz federal aposentado Joaquim Barbo-
crescimento econômico, uma vez que o fluxo de tecnologia sa, primeiro negro alçado ao Supremo Tribunal Federal, foi
e capital humano pode ser afetado pelos níveis de tolerância hostilizado por petistas ao sair de um bar em Brasília. O mo-
em determinada sociedade. Benjamim Friedman, economis- tivo da ira dirigida ao ex-presidente do STF ficou claro nos
ta de Harvard, mostra que a expansão econômica está sem- vivas que autores desses insultos deram ao ex-presidente do
pre ligada à tolerância, à mobilidade social e à preocupação Partido dos Trabalhadores José Dirceu de Oliveira, conde-
com justiça social, enquanto a contração econômica tem es- nado à prisão em 2012 por crimes de corrupção, com outros
paço em ambiente de xenofobia, protecionismo comercial e próceres do PT, em julgamento conduzido por Barbosa e
perseguição de minorias. Segundo Friedman, com a econo- que abriu caminho para a Operação Lava Jato. Em 1981, o
mia em expansão e o aumento do padrão de vida, as pessoas historiador Boris Fausto vislumbrou a divisão expressa pe-
tendem a ser expansivas, tolerantes, magnânimas e têm a los constrangimentos vividos pelos dois ícones brasileiros
sensação de que há espaço para todos, exatamente ao con- em conversa sobre desafios que viriam com democracia, já
trário do que acontece em períodos de recessão econômica. então em nosso horizonte. “O grande teste acontecerá quan-
Um dos efeitos colaterais positivos da disseminação da tole- do começarmos a mandar os bacanas para a cadeia”, previu
rância é o aumento da coesão social. Nesse cenário, os indi- Boris, que passava um período como pesquisador no Wilson
víduos tornam-se aptos a ver eles mesmos como parte do to- Center. “Mas isso vai demorar, pois cadeia no Brasil serve
do, a aceitarem e respeitarem os valores da sociedade, mes- só para uma parte da população, e seria uma violação dos
mo que não concordem integralmente com eles. Quando a direitos humanos mandar nossa gente fina para as penitenci-
coesão social está presente em uma sociedade, os cidadãos árias que temos”, acrescentou ele, sarcasticamente. Numa i-
tendem a compartilhar valores e objetivos, que se refletem ronia da História, quis o destino que coubesse a um juiz des-
em suas atitudes uns com os outros. Tolerância, abertura à cendente de escravos mandar para a prisão gente importante
diversidade e inclusão são, assim, elementos-chave na nova do partido preferido do compositor, em acontecimento que
equação do desenvolvimento econômico. revelou à Nação estarrecida crime organizado em altíssima
e vasta escala, cuja existência – desde sempre presumida –
(Folha de S. Paulo, 14.12.2015) foi confirmada por ações conduzidas por agentes da lei sob
supervisão do STF. O mesmo, aliás, vale para o processo de
impeachment, regulado pelo Supremo. Há muito a celebrar
nos fatos acima. Chico Buarque, autor censurado e perse-
guido por uma ditadura que combateu, exerce o direito cívi-
co que ajudou a conquistar ao manifestar suas opiniões e le-
aldades políticas. O fato de elas desgostarem milhões não as
invalida nem diminui a contribuição do compositor à Na-
ção. Igualmente, o desempenho de Barbosa no caso do men-
salão desagradou uma parcela da elite nacional, nela incluí-
dos os líderes e os intelectuais do PT. A realidade, porém, é
que o ex-presidente do Supremo agiu guiado por princípios
de justiça inscritos na Constituição e foi acompanhado em
seu voto condenatório por sete ministros, vários nomeados
para a Corte, como ele próprio, por presidentes petistas – fa-
to que constitui prova de maturidade democrática. As posi-
ções políticas que Barbosa assumiu desde que deixou o ser-
viço público são, a exemplo das opiniões de Chico Buarque,
as de um cidadão que tem todo o direito de manifestá-las do
púlpito privilegiado que conquistou pelos seus méritos. Da
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mesma forma, por tristes e prejudiciais que sejam para a e- chamou de “nostalgia das grandes narrativas” desaparecidas
conomia, as revelações dos crimes do “petrolão” mostram o com o colapso do comunismo soviético, a crise do Capitalis-
vigor com que uma nova geração de juízes, promotores e a- mo, “a fascinação com novos totalitarismos do século XXI”
gentes da lei formada na democracia se empenha hoje para expressos por fundamentalismos religiosos, “o novo Confu-
fazer valer o primado da lei, respondendo à demanda da so- cionismo oriental e novos populismos” na América Latina.
ciedade por justiça e decência na política – um valor que, “Vista nesta perspectiva, a crise que afeta o Brasil vai muito
vale lembrar, inspirou a mobilização cívica da qual surgiu o além de um confronto entre políticas econômicas e sociais,
PT como partido da ética e foi fator vital na transição demo- problemas de corrupção e firulas jurídicas sobre se o Gover-
crática em 1985. A discórdia trazida pela crise está evidente no cometeu ou não crime de responsabilidade […]”, escre-
em todos os espaços do debate público. Qual muitos que le- veu Simon. “Tudo isso tem sua importância, mas o que está
em estas linhas, tenho amigos em campos opostos da briga. em jogo é se o país vai conseguir, em algum momento, in-
Todos têm formação universitária. A maioria mora em bair- corporar os valores e a cultura de uma sociedade pluralista,
ros privilegiados. Alguns são vizinhos. Seus comentários no democrática e moderna, ou vai continuar atolado no pântano
Facebook vão, no entanto, muito além da expressão de dife- de ideologias degradadas e sua outra face, que é o predomí-
renças próprias do debate democrático e transmitem um mal nio dos interesses imediatos e predatórios, na economia e na
disfarçado desprezo, para não dizer “ódio”, por aqueles dos sociedade”. Eis o desafio da crise que nos assombra.
quais divergem. Aí mora o perigo. Ele não existe só no Bra-
sil. Turbinado pelas mídias sociais, ele está presente nos ata- PAULO SOTERO, jornalista, diretor do Brazil Institute do
ques que desqualificam adversários e ameaçam padrões de Woodrow Wilson International Center for Scholars, situado
convívio também em sociedades em que a democracia tem em Washington.
raízes antigas profundas. O sociólogo Simon Schwartzman
colocou o dedo na ferida em mensagem de ano-novo aos a- (O Estado de S. Paulo, “Opinião”, 08.01.2016)
migos, na qual tratou da crise brasileira no contexto do que
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