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HUMANOS.
Sandra Cureau1
1. Introdução
2LEUZINGER, Márcia Dieguez e CUREAU, Sandra. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier,
2008, p. 124.
4CHASTEL, André. La notion de patrimoine. In NORA, Pierre (direção). Les lieux de mémoire.
Paris: Gallimard, 1997, p. 1435 a 1437.
2. Memória e identidade
A identidade cultural e a memória coletiva, bem como as maneiras pelas
quais ambas se expressam, tanto na preservação do chamado patrimônio
material, móvel ou imóvel, como do patrimônio intangível, são extremamente
importantes para a compreensão do vínculo existente entre o patrimônio
cultural e os direitos humanos.
Memória e identidade integram a definição de patrimônio cultural,
contida no art. 216 da Constituição Federal de 1988 e na Convenção para a
Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO 7, podendo-se
afirmar que os diferentes bens imóveis, móveis e documentais, monumentos,
obras sacras, formas de expressão, modos de criar, fazer e viver estão
intimamente ligados a esses dois conceitos.
No preâmbulo da Carta de Veneza, de maio de 1964, já se afirmava que
as obras monumentais de cada povo “perduram no presente como o
testemunho vivo de suas tradições seculares.”
7Em seu artigo 2º (definições), a Convenção diz textualmente que o patrimônio cultural
imaterial, que se transmite de geração em geração, “gera um sentimento de identidade e
continuidade”, conforme http://www.unesco.org/culture/ich/doc/src/00009-PT-Brazil-PDF.pdf
Acesso em 03/02/2012.
Entre o presente e o passado, como observa João Carlos Tedesco 8,
“apresentam-se traços, vestígios, símbolos mediante os quais se pode
compreender o passado; trata-se de recordações, imagens, relíquias...” Tais
elementos são, contudo, imperfeitos, pois o passado não pode ser
reconstituído em sua forma integral. Além de se exteriorizar em um
determinado objeto, a memória nele se condensa, o que o faz adquirir um valor
simbólico. Os objetos de memória, simbolicamente, representam recordações
de um passado que não se quer esquecer e que deve conviver com a lógica de
uma sociedade que se funda na rápida substituição dos bens.
Pode parecer apressado dizer-se que todos os bens integrantes do
patrimônio cultural carregam um vínculo com a identidade e a memória dos
povos ou das comunidades em que estão inseridos. Entretanto, não é tão difícil
aceitar essa conclusão, quando se verifica que a destruição de um bem
cultural promove a passagem do material para o imaterial: é um ato de
destruição do passado e daquilo que a memória quer representar.
Simbolicamente, como ensina Jean-Michel Leniaud 9, a destruição facilita a
conscientização de que o que importa está mais ligado ao imaterial do que ao
material.
Tomemos o exemplo das catedrais.
Surgidas no século IV, as catedrais viveram a sua função como igreja e
teatro de culto, além de servirem a uma vida mítica no imaginário. A maior
parte das catedrais romanas apresentavam, no momento de sua construção,
traços que testemunhavam a originalidade de seu papel e de seu significado.
Também no momento da reconstrução levava-se em conta as tradições,
os hábitos dos fiéis e a especificidade das cerimônias. Por outro lado, nas
restaurações levadas a efeito no século XIX, em igrejas que se encontravam
abandonadas há muito tempo, detalhes que se haviam tornado
12LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2009, p.
51/52.
Toda a ordem anterior se inverte. As relíquias são restos físicos, mas um objeto
que teve contato com o corpo de um santo também é uma relíquia. Na
antiguidade greco-romana, apenas os objetos que lembravam os heróis ou os
grandes homens eram valorizados. Tal como no judaísmo, a cultura helênica
considerava uma grande mancha o contato com um cadáver. Como no
cristianismo todos ressuscitarão, o santo figurará entre os eleitos no Juízo Final
e poderá interceder pelos seus. Por isso, precisa permanecer encarnado na
comunidade. Visita-se um túmulo como se visita um padroeiro. O corpo e os
objetos do santo são o próprio santo, suscetível de obter para os fiéis
indulgências no além. Como afirma Le Goff, “até o século XI, a Europa é antes
de mais nada uma rede de santuários.” 13
Um exemplo que ilustra o que acaba de ser dito é o Caminho de
Santiago de Compostela, que começa na França e atravessa a Espanha. Em
1987, foi declarado Primeiro Itinerário Cultural Europeu pelo Conselho da
Europa e, em 1993, foi inscrito na lista do Patrimônio Mundial da UNESCO.
O Caminho de Santiago teve um papel essencial no desenvolvimento
religioso e cultural da Baixa Idade Média. A construção de prédios, nas rotas a
serem seguidas pelos peregrinos, deveria corresponder às suas necessidades
espirituais e físicas. Ligada ao local onde se encontra o túmulo do apóstolo
Tiago, o Maior, a peregrinação de Compostela conheceu seu apogeu no século
XI, quando milhares de pessoas, entre elas reis e cléricos, caminhavam longas
distâncias para orar sobre o túmulo daquele que foi um dos mais próximos
companheiros de Cristo. As peregrinações medievais eram extremamente
duras para os peregrinos, que seguidamente necessitavam de cuidados
médicos. Os raros centros de saúde ainda existentes na parte francesa do
caminho integram a Lista do Patrimônio Mundial. Numerosas pontes são
conhecidas como “pontes de peregrinos.”
13LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.
154.
Conforme o sítio da UNESCO14, o Caminho de Santiago de Compostela
é um testemunho excepcional do poder e da influência da fé cristã sobre todas
as classes sociais e sobre todos os países da Idade Média 15.
Voltando à simbologia e ao fato de que a ligação com a memória e a
identidade, de qualquer manifestação de um bem cultural, produz a
transformação do material em imaterial, diz Leniaud 16: em si, a Santa Cruz, a
coroa de espinhos e outras relíquias da Paixão de Cristo, como a pedra do
Sepulcro, não possuem qualquer importância. Entretanto, como vestígios de
um acontecimento, a Paixão de Cristo, e de uma crença, a Ressurreição, elas
possuem o inestimável valor de testemunhos. Através de sua materialidade,
elas manifestam uma imaterialidade transcendente.
Do ponto de vista da antropologia, esses mesmos vestígios assumem
outra feição: no seu campo de estudo, os restos humanos ou os sepulcros não
são vistos como objetos de culto. Os ossários podem mesmo vir a conhecer
uma notoriedade póstuma, mas em virtude de sua antiguidade. Qualquer que
seja seu valor testemunhal para a posteridade, eles constituem material
documentário: os esqueletos não possuem valor por serem sagrados ou por
terem participado de ritos religiosos.
Mesmo assim, os edifícios religiosos e os vestígios funerários, como
testemunhos dos cultos da antiguidade, têm um papel importante para o
estudo do patrimônio arqueológico.
O direito internacional relativo ao patrimônio cultural, por sua vez, não
trata dos restos humanos, a não ser na Convenção da UNESCO sobre o
patrimônio subaquático, adotada em Paris, em 2001. Seu artigo 1º define o
patrimônio cultural subaquático como sendo todos os traços da existência
17Vide, a respeito, entre outros, CHAZAUD, Guy du. Protection des objets mobiliers. Le point
de vue d´un conservateur. In BASDEVANT-GAUDEMET, Brigitte; CORNU, Marie e
FROMAGEAU, Jérôme (direction). Le patrimoine culturel religieux. Enjeux juridiques et
pratiques culturelles. Paris: L´Harmattan, 2006, p. 333/335.
20Veja-se, a respeito, NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire. La problematique des lieux. In
NORA, Pierre (direction). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1997, p. 25.
Assim, pode-se afirmar a existência de “regiões-memória”, “cidades-memória”
ou mesmo “bairros-memória”. Paisagens podem contribuir para a afirmação de
memórias compartilhadas e para influenciar o sentimento de identidade 21.
O direito ao reconhecimento da própria identidade é um dos temas
importantes no discurso intercultural. Conforme Rosa Marí Ytarte 22, “na
multiculturalidade, a identidade costuma remeter à cultura, no sentido de que o
pertencimento a uma ‘cultura’ forma uma identidade (individual e
coletivamente) determinada.” O direito à própria identidade, à sua
manifestação e à sua valoração positiva, tanto individual como de grupo, é
uma das questões mais significativas da interculturalidade.
De certo modo, a ideia de identidade e de cultura nasceram juntas,
ainda que não sejam conceitos equivalentes. A identidade pode ser entendida
como efeito da cultura e, dessa forma, a identidade cultural cria, no ser
humano, um sentido de pertencimento com relação a um grupo, o qual
compartilha com os demais membros deste mesmo grupo, em um processo de
diferenciação dos demais.
Nenhuma identidade cultural aparece do nada, como salienta Edward
W. Said23: “todas são construídas de modo coletivo sobre as bases da
experiência, da memória, da tradição (que também pode ser construída e
inventada), e de uma enorme variedade de práticas e expressões culturais,
políticas e sociais.”
Sendo aquilo que, nos seres humanos, indica o pertencimento, é
também algo que se transforma constantemente e, a cada vez que isso
acontece, indica mudanças e rupturas. Tanto a identificação como a
diferenciação fazem parte da identidade cultural.
21A respeito, cite-se CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011, p. 157.
29A ONU foi criada em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, substituindo a Liga das Nações.
31Na verdade, não existe uma “raça” judaica, mas um povo judeu. O vínculo existente é de
origem religiosa e não étnica.
O que restou dos dois campos de Auschwitz I e II e Birkenau,
juntamente com sua área de proteção, foi inscrito na Lista do Patrimônio
Mundial como testemunho do esforço desumano, cruel e metódico de negação
da dignidade humana de grupos considerados inferiores pelo nazismo e de seu
assassinato nas câmaras de gás e nos fornos crematórios.
Auschwitz-Birkenau evoca o genocídio deliberado dos judeus pelo
regime nazista e a morte de inúmeras outras vítimas, sendo testemunha de um
dos maiores crimes cometidos contra a humanidade.
É um lugar de memória coletiva como símbolo do holocausto, do
racismo e da barbárie, além de um testemunho e de uma advertência para as
futuras gerações.
No mesmo sentido, pode-se citar o Memorial da Paz de Hiroshima, ou
Domo de Genbaku, que foi a única construção que restou de pé perto do local
no qual explodiu a primeira bomba atômica, no dia 6 de agosto de 1945,
matando 140.000 pessoas. Este edifício foi construído, a partir de 1914, para
servir de palácio de exposição comercial e encorajar a produção industrial da
cidade. Embora o prédio principal, que se encontrava a 150 metros da
explosão, tenha sido quase completamente destruído, as fundações da parte
central, sob a cúpula, restaram intactas. Também sobreviveram à explosão
partes da fonte, que se encontrava no jardim de estilo ocidental, ao lado do
Palácio. O edifício foi reconstruído e, atualmente, mantém a forma original. O
Domo de Genbaku foi preservado por seu sentido simbólico de esperança da
eliminação de todas as armas nucleares e da paz mundial e, em 1996, a
UNESCO incluiu-o na Lista do Patrimônio Mundial. 32
Muitos outros exemplos poderiam ser mencionados, mostrando a
resposta positiva do ser humano ao desafio lançado pela destruição causada
por outros seres humanos, trazendo consigo a ruptura com o passado.
Aleksander Gieysztor33, examinando os casos de Varsóvia e Gdansk, na
Polônia, que, sob a ocupação alemã, sofreram sucessivos bombardeios
34Declaração do ex-preso político Maurice Politi, 63, atual diretor do Núcleo de Preservação da
Memória Política, transcrita na Folha de São Paulo, que circulou no dia 10 de fevereiro de 2012,
conforme http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/1045738-governo-de-sp-estuda-tombamento-
do-antigo-predio-do-doi-codi.shtml Acesso em 21 de fevereiro de 2012.
relatório do próprio Exército. "Aqui é a sucursal do inferno", assim eram
recebidos os presos políticos ao chegarem ao local. O pedido de tombamento
considera toda a área da atual 36º Delegacia de Polícia e já encontra
resistências, certamente por simbolizar um dos mais temidos centros de
repressão na ditadura militar.
35http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/programa-lugares-da-memoria.html Acesso em
21 de fevereiro de 2012.
36http://www.cultura.sp.gov.br/portal/site/SEC/menuitem.bb3205c597b9e36c3664eb10e2308ca
0/?
vgnextoid=91b6ffbae7ac1210VgnVCM1000002e03c80aRCRD&Id=97ffc73fb46cc010VgnVCM2
000000301a8c0 Acesso em 21 de fevereiro de 2012.
mudança ocorrida no país a partir de 1964, o presídio testemunhou
outra etapa de nossa história, quando se tornou lugar de detenção e
repressão aos primeiros opositores do regime militar. No final de
1972, o edifício foi demolido, em função das obras do Metrô,
permanecendo apenas o arco de entrada, construído na década de
1930.
37http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/antigone.pdf Acesso em 21 de
fevereiro de 2012.
A seguir, pede à irmã que a ajude a transportar o cadáver, mas esta se
nega, afirmando que estão submetidas ao soberano, a cujas ordens devem
obediência.
5.1 A tauromaquia
39HEMINGWAY, Ernest. O sol também se levanta. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009, p.
179.
40http://www.bbc.co.uk/portuguese/videos_e_fotos/2011/07/110708_videotourochifraebc.shtml
Acesso em 04 de fevereiro de 2012.
41http://eptv.globo.com/terradagente/NOT,0,0,370522,Barcelona+catalunha+esporte+touradas+
banido.aspx Acesso em 04 de fevereiro de 2012.
Em 2011, uma lei, com entrada em vigor a partir de 1º de janeiro de 2012,
proibiu, definitivamente, as corridas de touros na Catalunha.
Em Portugal, as touradas constituem patrimônio cultural desde o ano de
2010, ainda que em Sintra, cidade situada a 35 km de Lisboa, tivessem sido
proibidos os espetáculos circenses com animais e as corridas de touros, no
ano de 2009.
Em 22 de abril de 2011, a tauromaquia foi inscrita na lista do patrimônio
cultural imaterial francês, sob o protesto das associações anticorrida 42. Em
2006, a França havia ratificado a Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial, que, em seu segundo parágrafo, faz expressa
referência aos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos,
em particular à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ao Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, e ao
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966
Como é sabido, a tourada, a par de culminar com a morte por estocada
dos touros, muitas vezes leva à morte o próprio toureiro e pessoas que
assistem ao espetáculo. O caso mais conhecido é o de Joselito – José Gomez
Ortega, famoso toureiro espanhol, morto em uma corrida de touros, na tarde
de 16 de maio de 1920. Joselito, conhecido também como Gallito, considerado
por muitos como o mais perfeito toureiro de todos os tempos, havia sido
incluído, de última hora, na programação de Talavera de la Reina, uma praça
de touros considerada de terceira categoria. O quinto touro, chamado
“Bailador”, pequeno e quase cego, atingiu-o com uma chifrada no ventre, que
lhe causou a morte, aos 25 anos de idade. 43
Um sítio eletrônico espanhol, favorável às touradas, relaciona 55
matadores famosos, mortos em consequência de lesões e cornadas
produzidas pelos touros, entre os anos de 1771 e 1987. 44 Ao final da relação
dos toureiros mortos, consta: “Igualmente rendimos un sentido homenaje a
42http://www.midilibre.fr/2011/04/22/la-corrida-entre-au-patrimoine-culturel-immateriel-
francais,307709.php Acesso em 04 de fevereiro de 2012.
43http://es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_G%C3%B3mez_Ortega_(torero) Acesso em 18 de
fevereiro de 2012.
aquellos matadores, novilleros 45, picadores, banderilleros, ayudas,
rejoneadores y personal de plaza no mencionados en esta lista y que
contribuyeron con su vida a la grandeza y sentimiento de la Fiesta Brava.”
O direito fundamental à vida, como ensina Cançado Trindade 46,
“abrangendo o direito de viver, acarreta obrigações negativas assim como
positivas em favor da preservação da vida humana. O seu gozo é uma pré-
condição para o gozo de outros direitos humanos.” Como tal, pertence ao
domínio dos direitos civis, dos direitos políticos, econômicos, sociais e
culturais, demonstrando a indivisibilidade de todos os direitos humanos.
Entretanto, espetáculos como as touradas continuam a acontecer nos
países da península ibérica e em outros países de língua hispânica, como o
Peru, a Colômbia, a Venezuela, a Guatemala e o México (que abriga a maior
praça de touros do mundo – “Plaza de Toros México”, na cidade do México), e
na França.
O próprio Brasil teve touradas, em Porto Alegre, na praça de touros
situada no Campo da Redenção, que hoje abriga o parque do mesmo nome.
Noticiou-se no Correio do Povo, de 15 de fevereiro de 1910:
Com uma enchente á cunha, a ponto de ser esgotada a venda de
localidades, realisou-se ante-hontem, no circo do Campo da
Redempção, a corrida annunciada pela empreza Amaral, em
beneficio do habil e intelligente artista Manoel Antelo, espada da
quadrilha.
O que de mais distincto, tanto no bello sexo, como no masculino,
possue a nossa sociedade, se via no circo, que apresentava, nesse
dia, o mais attraente aspecto. A funcção foi magnifica, quer pelas
peripecias nella occorridas, quer pela excellencia da maioria dos
touros, todos muito bons. E muito melhormente apresentar-se-iam
elles ás sortes, si não estivessem um pouco enfraquecidos, ao que
46TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente. Paralelo dos
sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sérgio Augusto Fabris Editor, 1993, p. 81.
parece pela falta de conveniente alimentação. Ainda assim, alguns
dos animaes exhibidos, já pela sua braveza, já pela rapidez de suas
arremettidas, deram que fazer aos artistas. Nessa corrida, deu-se
uma circumstancia curiosa: todos os artistas, sem excepção de um
só, trabalharam com rara felicidade. Ou fosse pelo desejo que todos
nutriam de dar uma esplendida funcção, em honra ao beneficiado,
ou fosse porque todos estivessem bem dispostos, ou fosse pela
qualidade dos touros, ou por qualquer outro motivo, em summa, o
facto é que, mesmo os que até aqui se têm mostrado mais
mediocres, na arte tauromachica, postaram-se com a maior
galhardia, executando bonitos e arriscados passes. Foi um
verdadeiro desafio, em que cada qual se esmerou em bem trabalhar.
Havia, ainda, no Brasil, praças de touros em São Paulo, Santos, Cuiabá,
Curitiba, Salvador e na capital do país, que era o Rio de Janeiro. Em 1922,
durante as festividades do centenário da independência, realizaram-se
touradas na Cidade Maravilhosa, com registro cinematográfico 47.
As touradas foram proibidas por Getúlio Vargas, em 1934, por meio do
Decreto nº 24.645, juntamente com as rinhas de galo 48.
O Decreto nº 24.645/34, no parágrafo 3º do seu artigo 2º, atribuiu aos
representantes do Ministério Público, seus substitutos legais, a assistência em
juízo dos animais, assim como como às sociedades protetoras de animais.
47http://cinemateca.gov.br/cgibin/wxis.exe/iah/?
IsisScript=iah/iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=P&nextAction=search&exprSearch=ID=00249
2&format=detailed.pft Acesso em 20 de fevereiro de 2012. O curta-metragem silencioso “As
Grandes touradas do Centenário” foi exibido em São Paulo, no Cine República, no dia 6 de abril
de 1923.
48Veja-se artigo 3º do Decreto nº 24.645, de 10 de julho de 1934, em especial seu inciso XXIX.
Todos os anos, geralmente na época da Páscoa, centenas de bois são
torturados e mortos em mais de trinta comunidades do estado. Os bois são
doados por figuras proeminentes na região para a “festa”. Antes, o boi é
confinado, sem alimento, por vários dias. Para aumentar seu desespero, água
e comida são colocados em locais visíveis, mas inalcansáveis. Quando o boi é
solto, começa a Farra. O boi é perseguido por homens, mulheres e crianças,
que carregam pedaços de pau, facas, lanças de bambu, chicotes, cordas e
pedras. No desespero de escapar, o boi corre em direção ao mar e acaba se
afogando.
Segundo alguns, seria um ritual simbólico, uma encenação da Paixão de
Cristo, na qual o boi representa Satanás. Mas, segundo pesquisas em sítios
eletrônicos, como as mudanças seguem o passar do tempo, nos dias de hoje,
para as comunidades do litoral catarinense, onde acontece a barbárie, a Farra
do Boi é apenas uma oportunidade de fazer uma festa e ganhar algum dinheiro
extra.49
Essa prática foi sendo duramente combatida pelas sociedades
protetoras de animais, até que, em 3 de junho de 1997, julgando o Recurso
Extraordinário nº 153.531/SC, o Supremo Tribunal Federal proibiu-a em
território catarinense50, proferindo acórdão assim ementado:
50STF, Segunda Turma, Relator Min. FRANCISCO REZEK. Relator p/ Acórdão: Min. MARCO
AURÉLIO. Julgamento: 03/06/1997.
5.3 A Colla Castellera
Na reunião de 2010, do Comitê da UNESCO, começou-se a discutir
questões relativas ao respeito aos direitos humanos e ao respeito recíproco
entre as comunidades.
Isso ocorreu, por exemplo, no caso da Colla Castellera, realizada na
Catalunha. Trata-se de torres humanas, formadas de castellers que sobem uns
sobre os ombros dos outros, repartindo-se em seus vários planos (entre seis e
dez). Cada nível do tronc, que é o nome dado do segundo plano para cima,
sozinho, compreende entre dois e cinco homens robustos que sustentam
rapazes ou moças mais leves e jovens. O pom de dalt – ou seja, os três níveis
superiores da torre – é composto de crianças (UNESCO doc.
ITH/10/5.COM/CONF.202/Decisões de 19 de novembro de 2010, p. 44). Por
ocasião da reunião de 2010 do Comitê foi lida uma carta na qual o Grup
d’Acció Valencianista sustentou que esta prática é contrária aos direitos dos
menores e, em particular, ao seu direito à saúde: “(…) os ‘Castellers’ são torres
humanas que representam edifícios ou castelos’. No dia 23 de julho de 2006,
Mariona Galindo, uma menina catalã de 12 anos, morreu em decorrência de
traumatismo crânio-encefálico após ter caído de um castell de nove andares,
no curso de uma exibição realizada durante a festa de Mataró. A menina, que
participava da construção dos castelos na posição de ‘dosos’, no
antepenúltimo plano da torre, lesionou as costas, caindo no momento em que
o grupo estava para completar a construção. Não é a primeira vítima menor de
idade desta tradição perigosa, pois em 1983 morrera um menino, caído em
Barbera del Vallés.51
À época, o fato foi assim noticiado 52:
52 http://www.elmundo.es/suplementos/cronica/2006/563/1155420011.html Acesso em 19 de
fevereiro de 2012.
sempre uma tradição que remonta a 1800 e na qual as crianças
sempre sobem ao nível mais alto. Quase sempre sem capacete.
Mataró está de luto. Pela morte de Mariona Galindo, pelas críticas à
tradição de fazer castelos no ar e pela dúvida de que um capacete
poderia ter salvado sua vida. Mariona, de 12 anos, que era a
“anxaneta” – a pequena que coroa a torre -, caiu no último dia 23 de
julho do antepenúltimo piso de um castelo qualificado pelos experts
como“complicado”.(......................................................).”
Ninguém o esperava. Em mais de 150 anos de tradição, só
aconteceram duas mortes de “castellers”, a primeira no século XIX.
Um quadro de Carles Quer recorda o fato. Também, um poema de
Angel Guimerá plasmou o sentimento daquela tragédia.
Ao enterro compareceram mais de 2.000 pessoas, com as mesmas
perguntas na cabeça: devem as crianças participar dessas tradições.
E, se o fazem, não deveriam portar, ao menos um capacete para
evitar tragédias como esta?
6. Conclusão
A história do patrimônio é também a história da construção do sentido
de identidade, que acompanha o movimento das memórias coletivas. O
caminho de construção da identidade é fundado sobre aqueles acontecimentos
dignos de pertencer à memória humana.
Muitas vezes, a defesa da identidade e o sentimento de pertencimento
fazem com que o peso das tragédias que abalaram o mundo seja transmitido
através de lugares de memória, que carregam consigo o papel de testemunhos
de fatos, que não desejamos sejam repetidos.
A apreensão dos bens culturais intangíveis conjuga memórias e sentido
de pertencimento de indivíduos e grupos de indivíduos e, dessa forma,
fortalece seus vínculos identitários 53.
Não obstante, é impossível dissociar o patrimônio cultural dos direitos
humanos, ou incentivar a preservação de qualquer manifestação cultural que
atente contra esses direitos. O direito à vida abrange, na parte que interessa a