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1. O autor analisa um afresco representando um macaco e uma centaura para discutir como os historiadores podem superar visões etnocêntricas e comparativas limitadas.
2. Ele defende uma abordagem de "histórias conectadas" que estude as interconexões entre diferentes regiões ao invés de compará-las separadamente.
3. Como exemplo, o autor analisa a "Monarquia Católica" dos séculos XVI-XVII como um império que uniu diferentes continentes e culturas e promoveu novas formas de dif
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Fichamento do artigo.
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RUZINSKI, Serge. O Historiador, o Macaco e a Centaura: a “História Cultural” no novo milênio (FICHAMENTO)
1. O autor analisa um afresco representando um macaco e uma centaura para discutir como os historiadores podem superar visões etnocêntricas e comparativas limitadas.
2. Ele defende uma abordagem de "histórias conectadas" que estude as interconexões entre diferentes regiões ao invés de compará-las separadamente.
3. Como exemplo, o autor analisa a "Monarquia Católica" dos séculos XVI-XVII como um império que uniu diferentes continentes e culturas e promoveu novas formas de dif
1. O autor analisa um afresco representando um macaco e uma centaura para discutir como os historiadores podem superar visões etnocêntricas e comparativas limitadas.
2. Ele defende uma abordagem de "histórias conectadas" que estude as interconexões entre diferentes regiões ao invés de compará-las separadamente.
3. Como exemplo, o autor analisa a "Monarquia Católica" dos séculos XVI-XVII como um império que uniu diferentes continentes e culturas e promoveu novas formas de dif
DISCIPLINA: HISTÓRIA DA AMÉRICA I. FICHAMENTO REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: RUZINSKI, Serge. O Historiador, o Macaco e a Centaura: a “História Cultural” no novo milênio. Estudos Avançados, ano 17, N° 49, 2003. p. 321-342. SOBRE O AUTOR: Serge Gruzinski é historiador e paleógrafo francês formado pela École de Chartes, além de atuar como professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), curador do Museu do Quai Branly, de Paris. É autor de vários artigos e ensaios e também das seguintes obras já com tradução brasileira: A Colonização do Imaginário: Sociedades Indígenas e ocidentalização no México Espanhol, sécs. XVI-XVIII; A Guerra das Imagens: de Cristovão Colombo a Blade Runner(1492-2019); O Pensamento Mestiço. Seu livro: As Quatro Partes do Mundo foi publicado pela Editora da UFMG. RESUMO: Dialogando com um macaco e uma centaura: Gruzinski apresenta o macaco Ozomatli, que possui origem pré-hispânica e era um dos signos do calendário asteca, correspondendo ao dia onze e associando-se à boa fortuna, alegria e vida licenciosa; e também a centaura Ocyrhoe, uma semideusa do paganismo grego e que revelava os segredos do destino. Os dois seres vivem sobre um afresco pintado no fim do século XVI, separados por uma flor – da qual parece ser de poyomatli, uma espécie de alucinógeno utilizado antes e depois da conquista, deveras disseminada. Através da convivência entre os dois, que tem como função anunciar o destino, e que compartilham os meios – nesse caso, a flor –, o autor afirma que será possível tecer conjecturas sobre o que deverá ser a “história cultural” neste milênio. 1. Etnocentrismos. A análise do afresco nos obriga a sair duma visão europocêntrica e etnocêntrica da História. O autor afirma que os historiadores europeus manifestam pouco interesse pelo passado e historiografia dos lugares fora da Europa – e mesmo de sua própria nação. Os especialistas em história mundial costumam ver o mundo a partir da Europa ocidental ou de problemáticas provindas da mesma. Assim, na Europa e, principalmente na França, aqueles que estudam a história da América se chamam americanistas, enquanto que os historiadores que se dedicam à história da França ou da Europa ganham o “h” maiúsculo. Desde 1980, a denúncia desse conservadorismo do europocentrismo tornou-se comum nos Estados Unidos. O foco da mesma era que se produzia uma projeção somente do Ocidente, de suas categorias e de suas ambições em relação ao resto do mundo. Segundo Gruzinski, o etnocentrismo não pode ser reduzido ao europocentrismo. Não devemos nos contentar com a análise da realidade local. Os especialistas do México, por exemplo, podem muitas vezes limitar a sua visão, esquecendo a península ibérica, a Europa e o restante do continente americano. 2. A história comparada. Gruzinski afirma que “para limitar o etnocentrismo e ampliar os nossos horizontes, a história comparada pareceu uma alternativa possível. Mas as perspectivas que propõe podem ser enganosas” (GRUZINSKI, 2003, p. 322). Afinal, a seleção do que será comparado é submetida às filosofias ou teorias da história que por vezes já respondem às questões do historiador. O autor questiona como seria possível comparar, no campo da “história cultural”, culturas se tais são entidades que remetem mais à nossa tradição antropológica do que a realidades históricas atuais ou passadas. O termo “cultura”, ao longo do tempo, tomou várias formas. Contudo, ele manteve a crença “consciente ou não – de que existiria um conjunto complexo, uma totalidade coerente, estável, com limites precisos e que seria capaz de condicionar, de regular os comportamentos dos grupos e dos indivíduos” (GRUZINSKI, 2013, p. 322). Por fim, Gruzinski menciona a maneira como as empresas que inspiraram a história comparada tiveram pouca continuidade. 3. Connected histories. Seria possível o historiador sair de suas fronteiras sem recorrer a história comparada? Para tanto, Gruzinski escolhe dar uma resposta pessoal. Ao estudar os fenômenos de aculturação no México colonial, ele sempre se deparou com processos que pertenciam, ao mesmo tempo, a dois mundos distintos. Dessa forma, é preciso se distanciar das visões dualistas, que costumam colocar o Ocidente contra os outros, os espanhóis contra os índios, os vencedores contra os índios. O objetivo é a reflexão sobre a ligação entre os dois. Para Gruzinski, “parece-me que a tarefa do historiador pode ser a de exumar as ligações históricas ou, antes, para ser mais exato, a de explorar as connected histories se adotamos a expressão proposta pelo historiador do império português, Sanjay Subrahmanyam. O que implica que as histórias só podem ser múltiplas – em vez de falar de uma História única e unificada com “h” maiúsculo. Essa perspectiva permite também a observação de que estas histórias estão ligadas e que se comunicam entre elas. Diante de realidades que convêm estudar sob diversos aspectos, o historiador tem de converter-se numa espécie de eletricista encarregado de restabelecer as conexões internacionais e intercontinentais que as historiografias nacionais e as histórias culturais desligaram ou esconderam, entaipando as suas respectivas fronteiras”. (GRUZINSKI, 2003, p. 323) 4. Outros obstáculos. Essas retóricas da alteridade opõem outros desafios, como o peso das historiografias nacionais. O historiador precisa encontrar, em meio a diferenças criadas pelas tradições locais e pelas visões antropológicas, continuidades, conexões ou passagens, das quais podem estar minimizadas e excluídas. Segundo o autor, acaba se preferindo falar do Outro – existem muitos trabalhos sobre os ameríndios – do que sobre os espaços intermediários nos quais o mesmo se insere e se funde – enquanto que os grupos mestiços são pouco estudados. O afresco do macaco e da centaura apresenta um olhar duplo: Ozomatli é o passado revisitado por um pintor cristianizado, já a centaura é reinterpretada. O interesse pela micro-história igualmente influenciou o olhar do historiador, fazendo-o esquecer do contexto geral e, dessa forma, focalizar no particular. 5. Os mundos da Monarquia católica. O autor questiona em que mundo o macaco e a centaura foram pintados. Para ele, tal pesquisa deve ganhar horizontes amplos, tendo em vista conjuntos políticos com grandes ambições. O mundo permite o diálogo entre um macaco mexicano e uma centaura grega, sendo que esse mesmo mundo associa regiões e reinos gregos, assim como vários continentes para constituir a chamada Monarquia católica. Esse império pode ser estudado de diferentes maneiras. Uma delas é política. A Monarquia católica foi o berço da primeira “economia-mundo”, ganhando vários estudos por volta de 1970. Esses trabalhos, contudo, não deram conta de aspectos importantes, como a constituição das primeiras burocracias operando numa escala planetária, burocracias que tinham estreitas ligações com a Igreja, por causa do padroado português e do patronato espanhol. As ordens religiosas, os jesuítas e os cristãos-novos, por exemplo, formaram redes internacionais. A Europa dos Habsburgos desenvolveu uma arte, denominada maneirista, que obteve difusão internacional – sendo o primeiro estilo europeu a conseguir isso. Com isso, o autor conclui que o historiador não deve se limitar a abordar a Monarquia apenas em termos políticos ou dinásticos. Gruzinski afirma que a Monarquia católica “cobre um espaço que reúne vários continentes, aproxima ou conecta várias formas de governo, de exploração e de organização social, confronta de maneira às vezes bastante brutal tradições religiosas totalmente distintas. A Monarquia é o teatro de interações planetárias entre o cristianismo, o islã e o que os ibéricos chamavam de idolatrias, uma categoria que agrupava indistintamente os cultos americanos e africanos com as grandes religiões da Ásia.” (GRUZINSKI, 2003, p. 325) 6. A primeira mundialização e a dilatação dos horizontes europeus. A questão não é definir o território, pois ele é indissociável de uma certa problemática. Para o autor, a perspectiva da Monarquia católica torna possível abordar a questão da modernidade, pois destaca o conjunto hispano-português. Esse caminho é geralmente ignorado pela tradição intelectual europeia, porém ele remete a um espaço onde estão os processos relacionados ao o que atualmente chamamos de globalização ou mundialização. Portanto, Gruzinski propõe analisar os mundos da Monarquia a partir disso. A Monarquia católica esteve presente em lugares afastados na história e no espaço: Salvador da Bahia, México (1521), Lima (1536), Manila (1571), Macau (1557), Goa (1510) e Luanda (1576). Nessas diferentes regiões, os indivíduos tiveram de descobrir e enfrentar tradições que não possuíam qualquer ligação com a Europa ocidental. Tal fenômeno conduziu uma mudança de escala, que pode ser observada em vários âmbitos, como no urbanismo, na literatura e no direito. Por exemplo, um público internacional de leitores acabou surgindo e, assim, os livros impressos na península ibérica e na Europa começaram a cruzar os oceanos. Contudo, essa difusão mundial dos saberes e dos imaginários representa somente uma dimensão de um processo muito mais complexo. Ao mesmo tempo, acontecia o descobrimento de outras línguas, saberes e modos de expressão. Afinal, pela primeira vez, os letrados de uma monarquia europeia tiveram contato com as principais civilizações do globo. No mesmo período, as comparações planetárias cresceram. Os cronistas geralmente introduziam paralelos entre as Índias ocidentais e as orientais, além de comparações entre o Brasil e as Américas feitas por Manuel Correia de Montenegro, entre outras. A partir da dispersão dos ibéricos nos espaços da Monarquia, as perspectivas aumentaram. Novas comparações podem ser feitas por meio do ponto de vista das terras longínquas, oferecendo um novo quadro de referência. Afinal, os moradores da Nova Espanha viam a Ásia espanhola e portuguesa como uma fonte de dinheiro e possibilidade de autonomia em relação à Madri. O autor questiona, ainda, se os brasileiros igualmente não teriam desenvolvido sua própria visão sobre o continente. Dessa forma, Gruzinski conclui que “estas novas perspectivas nos ensinam a sair do velho dualismo ‘Europa versus os outros’ para pensar a Ásia ou a África a partir da América ibérica” (GRUZINSKI, 2003, p. 328). 7. Mundialização e compressão de distâncias. Segundo o autor, é errado reduzir o espaço da Monarquia católica ao do Ocidente e vê-lo somente em termos de expansão da Europa. Através da expansão, o Ocidente integra outros aspectos, mas não os absorve. Nesse processo, observamos “uma compressão sem precedente das distâncias: o desconhecido torna-se familiar, o inacessível disponível, enquanto o longínquo aproxima-se de maneira espetacular” (GRUZINSKI, 2003, p. 328). Além disso, o consumo de produtos extra-europeus na Europa ocidental aumentou. Novas plantas e drogas começaram a circular, ganhando consumidores europeus. Nicolas Bautista Monardes, um médico de Sevilha, descreveu a chegada da “raíz de Michocan” e comentou que seu uso era comum em todo mundo. Essa circulação estabeleceu laços não só entre a Europa ocidental e a América espanhola, mas também com a Ásia. Dessa forma, “no coração editorial da Monarquia católica, ficam reunidos os novos saberes oriundos da América espanhola e da Ásia portuguesa” (GRUZINSKI, 2003, p. 329). 8. A mundialização e o choque dos tempos. O tempo ocidental e cristão foi imposto aos colonizados, apesar da história ter sido complicada: Gruzinski retorna ao afresco que retrata o encontro do macaco e da centaura, no qual ambos representam o domínio do tempo. Além de calcular dias e horas, o tempo ocidental é também uma concepção de passado e uma maneira de prever o futuro por meio da astronomia e astrologia. Tal tempo é imposto pelo calendário litúrgico. A imposição do tempo europeu aconteceu de maneira distante quando experimentado de um território americano ou asiático. No Repertorio de los tiempos, de Heinrich Martin, a cronologia da Nova Espanha é integrada à europeia e à mundial: ou seja, são calculadas diferenças horárias entre a capital do México e diferentes cidades. Sob essa visão, a cidade do México torna-se um centro geográfico por meio do qual o tempo europeu torna-se o tempo ocidental. Contudo, a vitória do tempo cristão não foi absoluta. Muitos dos povos resistiram à unificação do tempo. Os filipinos, por exemplo, continuam seguindo a hora chinesa, enquanto que os indígenas da Nova Espanha tentaram estabelecer concordâncias entre os seus calendários e o dos cristãos. Dessa forma, “tempos e espaços cruzam-se e confrontam-se no seio da Monarquia e mesmo fora dela” (GRUZINSKI, 2003, p. 330). 9. O “local” e o “global”, a pátria e o mundo. A circulação de novas drogas mostra a forma como o “local” consegue uma visibilidade na escala “global”. No centro da Monarquia, os testemunhos enxergam duas esferas de atividade, “aquela de onde se vem, e para onde por vezes se volta, e aquela na qual nos movemos. Localmente, é a ‘pátria’, o ‘pátrio ninho’ que serve de ponto de ancoragem. É o lugar para o qual se volta depois de ter percorrido os mares e os continentes, ‘como o pássaro ausente do patrio ninho’, enquanto o global seria o ‘mundo’” (GRUZINSKI, 2003, p. 330). Durante o século XVI, a relação entre o “local” (pátria) e o “global” (mundo) mudou conforme ambos ganharam outros sentidos. Tais mudanças possuem ligação com a expansão ibérica. Assim, a redefinição do “local” acompanhou a eclosão e a emergência de um “global”, que viria a se identificar cada vez mais com o espaço planetário. Nessa mesma época, surgia um espaço global, com escala planetária. A partir de Magalhães e El Cano, podia-se dar a volta ao mundo. Segundo o autor, “os progressos das técnicas de navegação, a herança da tradição imperial do Ocidente latino, o expansionismo ibérico e a realização das ambições universalistas do cristianismo, favoreceram a difusão de uma outra visão do mundo, concebido como um conjunto de terras ligadas entre elas e colocadas sob uma mesma dominação” (GRUZINSKI, 2003, p. 331). Dessa forma, os cronistas da época falavam de um mundo formado por quatro partes: Europa, América, África e Ásia, das quais estão distribuídas em dois hemisférios, com regiões conquistadas ou que deveriam ser. No século XVI, o “global” colocou-se como a sua realidade física e na sua integralidade nos mapa-mundi, nas esferas armilares e nas tapeçarias. 10. As relações do global e do local. Tommaso Campanella (calabrês), Juan de Torquemada e Bernardo de Balbuena (espanhóis estabelecidos no México) foram autores da Monarquia católica com visões diferentes de global e local, mas que concordaram quanto a missão providencial da Espanha e que imaginaram o local como uma pequena sociedade ideal ou idealizada. Segundo Gruzinski, os sistemas de representação da Monarquia mostram que a unidade dinástica e religiosa combina com os vários pontos de vista que reservavam a cada região do império um papel dinâmico. Portanto, nas periferias da Monarquia, nasceram representações que articularam o “local” e o “global” sob as diferentes formas que poderiam assumir no centro dessa mesma Monarquia. Em outras palavras, “em vez de só estudar o ‘olhar europeu’ sobre o resto do mundo ou a ‘representação do Outro’, preferimos considerar olhares e representações cruzados” (GRUZINSKI, 2003, p. 332). 11. Viver entre os mundos. Além de produções intelectuais, o estudo dos indivíduos igualmente pode auxiliar no estudo e mostrar a forma como o local e o global são rearticulados. A partir dessa afirmação, o autor busca apresentar exemplos. Na Monarquia, uma das grandes características dos homens era ser nômades. Isso, no sentido de que, “como no Mediterrâneo de Braudel, o movimento dos homens é o elemento que dá unidade ao gigantesco espaço aqui considerado, como, por exemplo, o nomadismo dos pintores europeus, que introduziram o Maneirismo nas quatro partes do mundo [...]” (GRUZINSKI, 2003, p. 332). O pintor Simon Pereyns foi um desses nômades. Muitos desses homens acabaram dando a volta ao mundo e hoje, estão esquecidos. Tais deslocamentos, inclusive, não tinha sentido único: Inca Garcilaso de la Veja eram mestiços americanos enviados para a Europa, enquanto que outros visitavam cidades diferentes. Gruzinski questiona a representividade destes casos. O eurocentrismo nos leva a repelir certas figuras, como os africanos e ameríndios. Portanto, “as coisas tornam-se distintas se fazemos da Monarquia, e não da Europa ocidental, a nossa base de pesquisa e de observação” (GRUZINSKI, 2003, p. 334). A Monarquia induziu novos comportamentos através de suas dimensões planetárias, como as mobilidades intercontinentais, nomadismos, facilidade de locomoção e adaptação entre civilizações, entre outros. Esse último, inclusive, é analisado pelo autor. Nos relatos de Carletti e Ordónez de Ceballos, é possível encontrar várias informações sobre diferentes sociedades. Apesar dos estereótipos, esses olhares mostram a vontade de acumular informações sobre a Monarquia e seus vizinhos e um desejo de dominação e conquista. A adaptação pode acontecer de outras maneiras, relacionando-se à alimentação, ao clima, ao corpo, às técnicas como à penetração das redes locais feitas numa escada planetária. Tais experiências “envolveram vários europeus e não-europeus que aprenderam a viver e a sobreviver – no caso dos escravos africanos ou das massas ameríndias – entre vários mundos” (GRUZINSKI, 2003, p. 335). 12. Mundialização e ocidentalização. A mundialização ibérica abrange duas dimensões ligadas à difusão planetária da dominação ibérica: a ocidentalização e a globalização. A ocidentalização é todo um conjunto de empresas que buscam transformar a natureza, os seres, as sociedades e os imaginários dominados pela Monarquia católica. São estratégias complexas e de dominação que sucedem o século XV, tal como cristianização, a sujeição dos autóctones a uma dominação política ocidental, a urbanização de tipo europeu, a difusão do alfabeto latino, da imprensa e do livro, a exploração econômica, entre outros. Segundo Gruzinski, elas são destruidoras. Podem ser: as mestiçagens biológicas – os mestiços do México, os mamelucos do Brasil; as mestiçagens das línguas e das crenças; as mesclas dos saberes e das técnicas; a sobreposição e a imbricação das formas de organização do trabalho – o trabalho comunitário de origem pré-hispânica e as exigências do mercado espanhol; a conexão dos circuitos indígenas com os circuitos internacionais (o comércio do cacau, do anil etc.). 13. Mundialização e globalização. Em certos campos, como o filosófico, artístico e literário, tudo acontece como se o contexto fora da Europa e suas características não precisassem ser levadas em conta. Já no caso da globalização, “as idéias e as formas desenvolvem-se em esferas que parecem ser totalmente indiferentes aos lugares, impermeáveis às tradições locais e cegas às sociedades extra-européias” (GRUZINSKI, 2003, p. 336). Isso é a globalização, diferente da mundialização (que é a difusão planetária dos traços) e da ocidentalização (nascida do confronto com as realidades extra-europeias). No século XVI, os espaços essenciais da globalização são o sistema e ensino universitários, os quadros e os mecanismos conceituais, as normas jurídicas, as línguas formais e simbólicas, entre outros. Na Monarquia católica, pode-se citar a universidade do México, o sistema aristotélico e os Emblemas de Alciati. A globalização segue um esquema comum, sendo ele: “• um desdobramento planetário, uma extensão nas quatro partes do mundo, que se integra à trajetória da globalização; • um enraizamento local que acompanha as etapas da ocidentalização; • uma interação regular com as bases européias; • uma homologação contínua: as produções extra-européias devem ser constantemente validadas, legitimadas pelos centros europeus: por exemplo, a publicação em Europa dos escritos filosóficos ou literários dos europeus estabelecidos na América; • uma indiferença às idéias, às formas e às expressões de origem autóctone; • uma propensão ou uma tendência sistemática a transformar e a converter o que era europeu em ocidental: processo que corresponde a um tipo de ocidentalização distinta da anterior, já que não ocidentaliza o mundo exterior mas produz o ocidental” (GRUZINSKI, 2003, p. 337). Para Gruzinski, a globalização seria um fenômeno de hegemonia ideológica particular. Assim, qualquer forma de pensamento alternativo local deve ser erradicada. 14. Os mundos misturados da Monarquia. As terras da Monarquia são submetidas a globalização e a ocidentalização, sendo mesclas, de confrontos e conflitos, além de limites e em contatos com outros universos, como os turcos, a Índia e a China. Essas sociedades mestiças poderiam ser estudadas de várias formas: pode-se repertoriar e explorar as mestiçagens biológicas, estudar a forma como os europeus americanizam-se, africanizam-se ou orientalizam-se. Podemos, também, buscar entender o funcionamento das sociedades do México, dos Andes, do Brasil, nas Filipinas, entre outros. Por muito tempo, uma forma encontrada para deixar de lado essas realidades foi chama-las de “colônias”, colocando-as numa situação de dependência. Isso subestima suas capacidades de autonomia, reação e invenção. 15. O macaco, a centaura e o político. A mestiçagem tem uma dimensão política. Os índios pintores responsáveis pelo encontro do macaco e da centaura tinham um objetivo: queriam que seu passado religioso conquistasse estatuto privilegiado, tal como a mitologia greco-romana possuía como um culto pagão tolerado e valorizado; e também desejavam construir para si uma relação com o seu próprio passado em vez de aceitar a ruptura imposta pela cristianização. Ozomatli e Ocyrhoe mostram como o político influencia sobre as manifestações locais da mestiçagem. Gruzinski considera a dominação da Monarquia através do jogo complexo da ocidentalização e da globalização. O autor ainda adiciona a dimensão planetária e “interativa”. Afinal, a existência da Monarquia promove espaços de circulações, intercâmbios e conflitos que escapam a qualquer estratégia global. Com isso, pode-se afirmar que “a análise das mestiçagens na Monarquia católica nos obriga a superar as frágeis fronteiras das disciplinas e das áreas culturais tradicionais. Convida-nos também a buscar no contato com as ciências duras, como a teoria da complexidade, categorias e métodos novos para poder ‘pensar o mundo’” (GRUZINSKI, 2003, p. 340).
Bruna Portella. GENTIO DA TERRA, GENTIO DA GUINÉ: A TRANSIÇÃO DA MÃO DE OBRA ESCRAVA E ADMINISTRADA INDÍGENA PARA A ESCRAVIDÃO AFRICANA. (CAPITANIA DE SÃO PAULO, 1697-1780)