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G. Reale - D.

Antiseri

HISTÓRIA
DA FILOSOFIA
Do Romantismo
ao Empiriocriticismo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reale, G.
História da filosofia, 5: do romantismo ao empiriocriticismo / G. Reale, D. Antiseri;
[tradução Ivo Storniolo]. - São Paulo: Paulus, 2005. - (Coleção história da filosofia)

ISBN 85-349-2359-0

1. Filosofia - História I. Antiseri, D. II. Título. III. Série.

05-1795 CDD-109

índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia: História 109

Título original
Storia delia filosofia - Volume III: Dal Romanticismo ai nostri glorni
© Editrice LA SCUOLA, Brescia, Itália, 1997
ISBN 88-350-9273-6

Tradução
Ivo Storniolo
Revisão
Zolferino Tonon
Impressão e acabamento
PAULUS

© PAULUS - 2005
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 •Tel. (11) 5084-3066
www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 85-349-2359-0
y\ p re.se.nfação

Existem teorias, argumentações e dis­


putas filosóficas pelo fatb de existirem pro­ A história da filosofia é a história dos
blemas filosóficos. Assim como na pesquisa
científica idéias e teorias científicas são problemas filosóficos, das teorias filosó­
respostas a problemas científicos, da mes­ ficas e das argumentações filosóficas. É
ma forma, analogicamente, na pesquisa a história das disputas entre filósofos e
filosófica as teorias filosóficas são tentativas dos erros dos filósofos. É sempre a his­
de solução dos problemas filosóficos. tória de novas tentativas de versar sobre
Os problemas filosóficos, portanto, questões inevitáveis, na esperança de
existem, são inevitáveis e irreprimíveis; conhecer sempre melhora nós mesmos e
envolvem cada homem particular que de encontrar orientações para nossa vida
não renuncie a pensar. A maioria desses e motivações menos frágeis para nossas
problemas não deixa em paz: Deus existe, escolhas.
ou existiríamos apenas nós, perdidos neste A história da filosofia ocidental é
imenso universo? O mundo é um cosmo ou a história das idéias que informaram,
um caos? A história humana tem sentido? ou seja, que deram forma à história do
E se tem, qual é? Ou, então, tudo - a gló­ Ocidente. É um patrimônio para não ser
ria e a miséria, as grandes conquistas e os dissipado, uma riqueza que não se deve
sofrimentos inocentes, vítimas e carnífíces perder. E exatamente para tal fim os pro­
- tudo acabará no absurdo, desprovido blemas, as teorias, as argumentações e
de qualquer sentido? E o homem: é livre as disputas filosóficas são analiticamente
explicados, expostos com a maior clareza
e responsável ou é um simples fragmento possível.
insignificante do universo, determinado * * *
em suas ações por rígidas leis naturais? A
ciência pode nos dar certezas? O que é a Uma explicação que pretenda ser clara
verdade? Quais são as relações entre razão e detalhada, a mais compreensível na me­
científica e fé religiosa? Quando podemos dida do possível, e que ao mesmo tempo
dizer que um Estado é democrático? E ofereça explicações exaustivas comporta,
quais são os fundamentos da democracia? todavia, um "efeito perverso", pelo fato
E possível obter uma justificação racional de que pode não raramente constituir um
dos valores mais elevados? E quando é que obstáculo à "memorização" do complexo
somos racionais? pensamento dos filósofos.
Eis, portanto, alguns dos problemas Esta é a razão pela qual os autores
filosóficos de fundo, que dizem respeito pensaram, seguindo o paradigma clás­
às escolhas e ao destino de todo homem, sico do Üeberweg, antepor à exposição
e com os quais se aventuraram as mentes analítica dos problemas e das idéias dos
mais elevadas da humanidade, deixando- diferentes filósofos uma síntese de tais
nos como herança um verdadeiro patrimô­ problemas e idéias, concebida como
nio de idéias, que constitui a identidade e instrumento didático e auxiliar para a me­
a grande riqueza do Ocidente. morização.
;A p ^ e s e s t a ç ã o

* * * * *

Afirm ou-se com justeza que, em Ao executar este complexo traçado,


linha geral, um grande filósofo é o gênio os autores se inspiraram em cânones psico
de uma grande idéia: Platão e o mundo pedagógicos precisos, a fim de agilizar a
das idéias, Aristóteles e o conceito de Ser, memorização das idéias filosóficas, que
Plotino e a concepção do Uno, Agostinho são as mais difíceis de assimilar: seguiram o
e a "terceira navegação" sobre o lenho da método da repetição de alguns conceitos-
cruz, Descartes e o "cogito", Leibniz e as chave, assim como em círculos cada vez
"mônadas", Kant e o transcendental, Hegel mais amplos, que vão justamente da síntese
e a dialética, Marx e a alienação do traba­ á análise e aos textos. Tais repetições, re­
lho, Kierkegaard e o "singular", Bergson e petidas e amplificadas de modo oportuno,
a "duração", Wittgenstein e os "jogos de ajudam, de modo extremamente eficaz, a
linguagem", Popperea "falsificabilidade" fixar na atenção e na memória os nexos
das teorias científicas, e assim por diante. fundantes e as estruturas que sustentam
Pois bem, os dois autores desta obra o pensamento ocidental.
propõem um léxico filosófico, um dicioná­ •k -k ★
rio dos conceitos fundamentais dos diversos Buscou-se também oferecerão jovem,
filósofos, apresentados de maneira didá­ atualmente educado para o pensamento
tica totalmente nova. Se as sínteses iniciais visual, tabelas que representam sinotica-
são o instrumento didático da memoriza­ mente mapas conceituais.
ção, o léxico foi idealizado e construído Além disso, julgou-se oportuno enri­
como instrumento da conceitualização; e, quecer o texto com vasta e seleta série de
juntos, uma espécie de chave que permita imagens, que apresentam, além do rosto
entrar nos escritos dos filósofos e deles dos filósofos, textos e momentos típicos da
apresentar interpretações que encontrem discussão filosófica.
pontos de apoio mais sólidos nos próprios
textos. * * *

* * * Apresentamos, portanto, um texto cien­


Sínteses, análises, léxico ligam-se, tífica e didaticamente construído, com a
portanto, ã ampla e meditada escolha dos intenção de oferecer instrumentos adequa­
textos, pois os dois autores da presente dos para introduzir nossos jovens a olhar
obra estão profundamente convencidos para a história dos problemas e das idéias
do fato de que a compreensão de um fi­ filosóficas como para a história grande,
lósofo se alcança de modo adequado não fascinante e difícil dos esforços intelectuais
só recebendo aquilo que o autor diz, mas que os mais elevados intelectos do Ociden­
lançando sondas intelectuais também nos te nos deixaram como dom, mas também
modos e nos jargões específicos dos textos como empenho.
filosóficos. G io v a n n i R e a le - D a r io A n tiseri
Õv\c\ice g em i

índice de nomes, XVII mem romântico, 11; 5. Idéias fundamentais


índice de conceitos fundamentais, X X I do romantismo, 12; 5.1. A sede do infinito,
12; 5.2. O novo sentido da natureza, 12;
5.3. O sentido de “ pânico” pela pertença
Prim eira parte ao uno-todo, 12; 5.4. A função do gênio e
da criação artística, 12; 5.5. O anseio pela
O MOVIMENTO liberdade, 13; 5.6. A reavaliação da religião,
13; 5.7. A influência do elemento clássico e
ROMÂNTICO outros temas específicos, 13; 6. A prevalên­
E A FORMAÇÃO cia do “ conteúdo” sobre a forma, 13; 7. As
ligações entre romantismo e filosofia, 13.
DO IDEALISMO
C apítulo segundo
C apítulo prim eiro Os fundadores
Gênese e características da Escola romântica:
essenciais do romantismo _____ 3 os Schlegel, Novalis,
I. O “ Sturm und Drang” _____ 3 Schleiermacher,
I. As premissas históricas, 3; 2. As idéias e o poeta Hõlderlin
as características de fundo do “ Sturm und e as posições de Schiller
D rang” , 4; 3. Gênese e difusão do movi­ e de G oeth e_________________ 15
mento, 5.
I. A constituição do círculo
II. O papel desempenhado dos românticos,
pelo classicismo em relação a revista “ Athenaeum”
ao “ Sturm und Drang” e a difusão do romantismo 15
e ao romantismo___________ 6 I. Jena e o círculo dos Schlegel, 15.
1. O “ Sturm und D rang” como prelúdio
do romantismo, 6; 2. O novo sentido do II. Friedrich Schlegel,
clássico e da imitação dos clássicos, 7; 3. A o conceito de “ ironia”
importância do renascimento do clássico na
arte e na filosofia dos românticos, 7.
e a arte
como forma suprema
III. A complexidade do espírito________________ 16
do fenômeno romântico 1. O conceito de “ ironia” em sentido român­
e suas características tico, 16; 2. A arte como síntese de finito e
essenciais ________________ 9 infinito, 17.
1. Como deve ser delineado o problema da III. Novalis:
definição do romantismo, 10; 2. A gênese do
termo “ romântico” , 10; 3. Os tempos e os do idealismo mágico
lugares em que se desenvolveu o romantis­ ao cristianismo
mo, 11; 4. A característica espiritual do ho- como religião universal_____ 18
« IJn d ice 0 e ^ a l

1. O idealismo mágico: arte e filosofia como III. Herder:


magia, 18; 2. O cristianismo como religião a concepção antiiluminista
universal, 19. da linguagem e da história — 39
IV. Schleiermacher: 1. O homem é “ criatura da língua” , a his­
a interpretação da religião, tória é obra de Deus, 39.
o relançamento de Platão IV. Humboldt
e a hermenêutica------------- 20 e o ideal de humanidade----- 41
1. A importância de Schleiermacher, 20; 2. A
1. O “ espírito da humanidade” , 41.
interpretação romântica da religião, 21; 3. O
grande relançamento de Platão, 21; 4. Ori­ V. Os debates
gens da hermenêutica filosófica, 22.
sobre as aporias
V. Hõlderlin do kantismo
e a divinização da natureza— 23 e os prelúdios do idealismo— 42
1. Um poeta tipicamente “ romântico” , 23. 1. As críticas de Reinhold ao kantismo, 42;
2. As críticas de Schulze ao kantismo, 42;
VI. Schiller: 3. As críticas de M aimon à “ coisa em si”
a concepção da “ alma bela” kantiana, 43; 4. As críticas de Beck, 43.
e da educação estética------ 24
1. Vida e obras, 24; 2. A beleza como escola
de liberdade, 24; 3. Poesia ingênua e poesia Segunda parte
sentimental, 25. FUNDAÇÃO
VII. Goethe, E ABSOLUTIZAÇÃO
suas relações
com o romantismo
ESPECULATIVA
e a concepção da natureza — 26 DO IDEALISMO
1. As relações com o “ Sturm und D rang” ,
26; 2. Natureza, Deus e arte, 26; 3. “Wilhelm
Meister” como romance de formação espiri­ C apítulo quarto
tual, 27; 4. O significado de Fausto, 28. Fichte e o idealismo ético______ 47
Te x t o s _ F. Schlegel: 1. Rum o à nova I. A vida e as o b ras__________ 47
mitologia, 29; Novalis: 2. Cristandade ou
Europa, 30; Schleiermacher: 3. A herme­ I. A leitura iluminadora de Kant, 47; 2. O
nêutica, 33. período berlinense, 48.
II. O idealismo de Fich te______ 49
Capítulo terceiro 1. A superação do pensamento kantiano, 49;
Outros pensadores 2. Do “ Eu penso” ao “ Eu puro” , 50.
que contribuíram
III. A “ doutrina da ciência” ____ 51
para a superação
e a dissolução do Iluminismo 1. O primeiro princípio do idealismo de
Fichte: o Eu põe a si mesmo, 51; 2. O segun­
e prelúdios do Idealism o-------- 35 do princípio: o Eu opõe a si um não-eu, 52;
I. Hamann: 3. O terceiro princípio: a oposição no Eu
do eu limitado ao não-eu lim itado, 52;
a revolta religiosa ' 4. Explicação idealista da atividade cog-
contra a razão ilum inista----- 35 noscitiva, 53; 5. Explicação idealista da
I. Os limites da razão dos iluministas, 35. atividade moral, 53.

II. Jacobi e a reavaliação da fé — 37 IV. Problemas m orais_________ 55


1. A polêmica contra Spinoza, 37; 2. O 1. Fundação idealista da ética, 55; 2. Signi­
antiintelectualismo, 37; 3. A reavaliação ficado e função do direito e do Estado, 56;
da fé, 38. 3. O papel histórico da nação alemã, 56.
Ôv\ú'\c-e. g e r a !

V. A se g u n d a fase do pensamento V. As últimas fases


de Fichte (1800-1814)__________ 57 do pensamento de Schelling__ 87
1. Relações e diferenças entre as duas fases 1. A fase da teosofia e da filosofia da liber­
da filosofia de Fichte, 57; 2. Aprofundamen­ dade (1804-1811), 87; 1.1. A natureza de
tos do idealism o em sentido m etafísico, Deus, 87; 1.2. A justificação metafísica da
57; 3. A componente místico-religiosa no luta entre o bem e o mal, 87; 2. A “ filosofia
segundo Fichte, 58. positiva” (a partir de 1815), 88.
VI. Conclusões: VI. Conclusões
Fichte e os rom ânticos_____ 59 sobre o pensamento
1.0 idealismo de Fichte é idealismo “ético” ,59. de Schelling______________ 89
M apa c o n c e i t u a l - O E u puro e os três 1. Um juízo histórico difícil, 89
princípios fundam entais da doutrina da M apa conceitual - A filosofia da identida­
ciência, 60. de, 90.
T e x t o s - J. G. Fitche: 1. Primeira introdução T e x t o s - Schelling: 1. A necessidade da
à doutrina da ciência (1797), 61. filosofia da natureza, 91; 2. Característica
da produção estética, 91; 3. O verdadeiro
órgão da filosofia: a arte, 92.
C apítulo quinto
Schelling
e a gestação romântica Capítulo sexto
do idealismo ________________ 77 Hegel e o idealismo absoluto___ 95
I. A vida, I. A vida, as obras
o desenvolvimento e a gênese do pensamento
do pensamento de H egel__________________ 95
e as obras de Schelling______ 77 I. A vida, 96; 2. Os escritos hegelianos: as
obras da juventude e as obras-primas da
I. A vida e as obras, 77.
maturidade, 97; 3. Diversas avaliações das
II. Os inícios do pensamento obras-primas de Hegel, 97.
de Schelling II. Os fundamentos do sistem a__ 99
em Fichte (1795-1796)
1. Os fundamentos do pensamento hege-
e a filosofia da natureza liano, 100; 2. A realidade como espírito:
(1797-1799)______________ 79 determinação preliminar da noção hegelia-
1. O ponto de partida: o idealismo de Fichte, na do espírito, 101; 2.1. A realidade não é
79; 2. A unidade de espírito e natureza, 80; “ substância” , mas “ sujeito” ou “ espírito” ,
3. A natureza como gradual desdobramento 101; 2.2. Crítica a Fichte, 101; 2.3. Crítica
da inteligência inconsciente, 80; 4. A alma a Schelling, 102; 2.4. A nova concepção
do mundo e a natureza do homem, 81. hegeliana do espírito como infinito; 2.5. O
espírito como processo que se autocria em
III. Idealismo transcendental sentido global, 103; 2.6. O processo triádico
e idealismo estético (1800)___ 82 do espírito em sentido “ circular” dialético,
103; 2.7. Alguns corolários essenciais do
1. Partir do subjetivo para atingir o objetivo, pensamento hegeliano, 104; 2.8. O “ nega­
82; 2. A “ atividade re a l” e a “ atividade tivo” como momento dialético que leva o
ideal” do Eu: o ideal-realismo, 83; 3. A ati­ espírito ao positivo, 104; 3. A dialética como
vidade estética, 83; 4. A atividade da arte e lei suprema do real e como processo do pen­
as características da criação artística, 84. samento filosófico, 104; 3.1. O método que
IV. A filosofia da identidade torna possível o conhecimento do absoluto,
104; 3.2. Diferenças entre a dialética he­
(1801-1804)_______________ 84 geliana e a clássica dos gregos, 105; 3.3 A
1. A razão como absoluto, 84; 2. A identi­ estrutura triádica do processo dialético, 106;
dade absoluta, 85; 3. Da identidade infinita 3.4. O primeiro momento da dialética (tese),
absoluta à realidade finita e diferenciada, 85. 106; 3.5. O segundo momento da dialética
X
ce aerai

(antítese), 107; 3.6. O terceiro momento da VI. A filosofia do espírito-------- 124


dialética ou momento especulativo (síntese), 1. O espírito e seus três momentos, 125; 2. O
108; 4. A dimensão do “ especulativo” , o espírito subjetivo, 126; 3. O espírito objetivo,
significado do “ aufheben” e a “ proposi­ 126; 3.1. A concepção hegeliana do espírito
ção especulativa” , 108; 4.1. O momento objetivo, 126; 3.2. Os três momentos do
“ especulativo” como novidade da dialética espírito objetivo, 126; 3.3. A natureza do
hegeliana, 108; 4.2. O momento “ espe­ Estado, 127; 3.4. A natureza da história e a
culativo” como “ superação” no sentido filosofia da história, 127; 3.5. A realização do
de “ retirada-conservação” dos momentos espírito objetivo na história, 128; 4 .0 espírito
precedentes, 109; 4.3. A “ proposição” ou absoluto: arte, religião e filosofia, 128; 4.1. O
“ juízo” no sentido tradicional e no novo “ retorno a si mesma” da idéia, 128; 4.2. As
sentido especulativo, 109. formas do auto-saber-se do espírito: arte, reli­
gião e filosofia, 128; 4.3. As articulações dia­
III. A “ fenomenologia léticas da arte, da religião e da filosofia, 129.
do espírito” ______________ 110
1. Significado e finalidade da “ fenomeno­ VII. Algumas reflexões
logia do espírito” , 111; 1.1. O problema conclusivas------------------- 129
da passagem da consciência comum para a 1. “ O que está vivo e o que está morto” na
razão, 111; 1.2. A passagem da consciência filosofia de Hegel, 130.
finita ao absoluto, 111; 1.3. A “ fenome­
M apa c o n c e it u a l - Necessidade da ciência
nologia” como história da consciência do
indivíduo e história do espírito, 112; 2. A do absoluto, 132; O sistema da ciência, 133.
trama e as “ figuras” da “ fenomenologia” , T e x t o s - G. W. F. Hegel: a necessidade de
112; 2.1. As etapas do itinerário fenome- que a filosofia seja ciência sistemática do
nológico, 112; 2.2. A primeira etapa: a absoluto: 1. A natureza do saber científico
consciência (certeza sensível, percepção e o absoluto como espírito, 134; 2. O papel
e intelecto), 113; 2.3. A segunda etapa: a da Fenomenologia do espírito, 136; 3. A
autoconsciência (dialética de senhor-servo, natureza da verdade filosófica, seu método
estoicismo-ceticismo e consciência infeliz), e a proposição especulativa, 138; A Lógica:
113; 2.4. A terceira etapa: a razão, 114; 4. As articulações do elemento lógico e a
2.5. A quarta etapa: o espírito, 115; 2.6. A dialética, 141; A filosofia da natureza: 5. A
quinta etapa: a religião, 115; 2.7. A etapa concepção hegeliana da natureza, 142; A
conclusiva: o saber absoluto, 116. filosofia do espírito: 6. O espírito em seus
três momentos, 145; 7. A racionalidade do
IV. A ló g ic a _________________ 116 Estado e da história, 146.
1. A nova concepção da lógica, 117; 1.1. A
lógica hegeliana vai além da lógica formal e
além da lógica transcendental, 117; 1.2. A
lógica hegeliana como “ filosofia primeira” Terceira parte
(metafísica em sentido idealista), 117; 1.3. A
lógica hegeliana como exposição de Deus
DO HEGELIANISMO
antes da criação do mundo, 118; 1.4. O des­ AO MARXISMO
dobramento dialético global da lógica he­
geliana, 118; 2. A lógica do sei; 119; 3. A lógica
da essência, 119; 4. A lógica do conceito, C apítulo sétimo
120; 4.1. A lógica “ subjetiva” , 120; 4.2. O
significado de “ conceito” , 120; 4.3. O sig­ Direita e esquerda hegeliana.
nificado de “ juízo” , 121; 4.4. O significado Feuerbach
de “ silogismo” , 121; 4.5. O significado de e o socialismo utópico________ 151
“ idéia” , 122.
I. A direita hegeliana__________ 151
V. A filosofia 1. Um problema para os discípulos de Hegel:
da n atureza_______________ 122 o cristianismo é compatível com a filosofia
1. As sugestões que determinam as caracte­ hegeliana?, 151; 2. A direita hegeliana: de­
rísticas da filosofia da natureza, 122; 2. O fesa e justificação do cristianismo por meio
esquema dialético da filosofia da natureza, da “ razão” hegeliana, 152; 3. Os expoentes
124. mais significativos da direita hegeliana, 152.
J T n d ic e c je ^ a l

II. A esquerda hegeliana--------- 153 176; 9. O materialismo histórico, 177; 10. O


materialismo dialético, 178; 11. A luta de
1. David Friedrich Strauss: a humanidade
classes, 179; 11.1. O antagonismo entre
como união entre finito e infinito, 153;
burguesia e proletariado, 179; 11.2. Da
2. Bruno Bauer: a religião como “ desventura
sociedade feudal à sociedade burguesa, 180;
do m undo” , 154; 3. M ax Stirner: “ eu depo­
11.3. Da sociedade burguesa à hegemonia
sitei minha causa no nada” , 154; 4. Arnold
do proletariado, 180; 12. “ O Capital” , 180;
Ruge: “ a verdade submete em massa todo
12.1. O valor das mercadorias é determi­
o mundo” , 156.
nado pelo trabalho, 180; 12.2. O conceito
III. Ludwig Feuerbach de “ mais-valia” , 181; 12.3. O processo da
acumulação capitalista, 182; 13. O adven­
e a redução da teologia to do comunismo, 182; 13.1. A passagem
a antropologia____________ 157 necessária de uma sociedade classista para
1. Vida e obras, 157; 2. N ão é Deus que uma sociedade sem classes, 182; 13.2. A
cria o homem, mas o homem que cria Deus, ditadura do proletariado, 183.
157; 3. A teologia é antropologia, 158; 4. O M apa c o n c e it u a l _ K. M arx: Materialismo
“ humanismo” de Feuerbach, 159. e comunismo, 185.
IV. O socialismo utópico:
II. Friedrich Engels
Claude-Henri
e a fundação do “ Diamat” 186
de Saint-Simon,
1. A dialética: uma “ representação exata”
Charles Fourier
da totalidade do real, 186; 2. Engels contra
e Pierre-Joseph Proudon____ 160 Dühring, 187.
1. Saint-Simon: a ciência e a técnica como
base da nova sociedade, 161; 1.1. A lei do III. Problemas abertos_________ 188
progresso: os “ períodos orgânicos” e os “pe­ 1. C ríticas ao m aterialism o histórico e
ríodos críticos” , 161; 1.2. A era da filosofia dialético, 188; 2. Religião e estética: duas
positiva, 161; 1.3. A difusão do pensamento brechas no interior da concepção marxista,
de Saint-Simon, 162; 1.4. Desenvolvimen­ 189; 3. Os economistas contra M arx, 190.
tos místico-românticos do saintsimonismo,
163; 2. Charles Fourier e o “ mundo novo T e x t o s - K. M arx: 1. A religião é o ópio do
societário” , 163; 2.1. A racionalização das povo, 191; 2. A alienação do trabalho, 191;
paixões, 163; 2.2. A nova organização do 3. O materialismo histórico, 194; 4. As idéias
trabalho e da sociedade, 164; 3. Pierre- da classe dominante são sempre as idéias
Joseph Proudhon: a autogestação operária dominantes, 195; 5. A estrutura econômica
da produção, 165; 3.1. A propriedade é determina a superestrutura ideológica, 195;
“ um furto” , 165; 3.2. A justiça como lei 6 .0 materialismo dialético, 195; 7. A história
do progresso social, 166; 3.3. Crítica ao é história de lutas de classes, 196; F. Engels:
coletivismo e ao comunismo, 166. 8. O advento inevitável do socialismo, 197.
Te x t o s - L. Feuerbach: A teologia é antro­
pologia, 167.
Quarta parte

C apítulo oitavo OS GRANDES


Karl M arx e Friedrich Engels. CONTESTADORES
O materialismo
histórico-dialético____________ 169
DO SISTEMA
I. Karl M arx_________________ 169
HEGELIANO
1. Vida e obras, 171; 2. M arx, crítico de
Hegel, 173; 3. M arx, crítico da esquerda C apítulo nono
hegeliana, 173; 4. M arx, crítico dos econo­ Herbart e Trendelenburg.
mistas clássicos, 174; 5. M arx, crítico do
socialismo utópico, 175; 6. M arx, crítico Relançamento do realismo
de Proudhon, 175; 7. M arx e a crítica à e crítica
religião, 175; 8. A alienação do trabalho, da dialética hegeliana_________ 201
*Z7r\dice g e r a l

I. O realismo C apítulo décim o primeiro


de Johann Friedrich Herbart 201 Sõren Kierkegaard:
I. Vida e obras, 202; 2. A tarefa da filosofia, a filosofia existencial
202; 3. O ser é uno; os conhecimentos sobre do “ indivíduo”
o ser são múltiplos, 203; 4. A alma e Deus, e a “ causa do cristianismo” ____ 223
204; 5. Estética, 204.
I. Uma vida que não brincou
II. Adolf Trendelenburg, com o cristianism o_________ 225
crítico
I. A culpa secreta do pai, 225; 2. Por que
da “ dialética hegeliana” ____ 205 Kierkegaard não desposou Regina Olsen,
1. A posição de Trendelenburg, 205; 2. A 226.
“ negação” sobre a qual se fundamenta a
dialética de Hegel implica uma confusão II. A obra de Kierkegaard,
entre “ contradição” lógica e “ contrarieda­ o “poeta cristão” ,
de” real, 205. e seus temas de fundo_______ 227
1. Defesa do “ indivíduo” , 227; 2. O tema
da fé, 227; 3. Os temas da “ angústia” e do
Capítulo décimo “ desespero” , 228; 4. O caráter religioso da
Arthur Schopenhauer: obra de Kierkegaard, 228.
o mundo como
“ vontade” III. A descoberta
e “ representação” ____________ 207 kierkegaardiana
da categoria
I. Vida e obras_______________ 208 do “ indivíduo” ___________ 229
I. Schopenhauer: a vida, as obras e a influên­ 1. A categoria do “ indivíduo” , 229; 2. O
cia destas sobre a cultura sucessiva, 208. “ fundamento ridículo” do sistema hegelia-
no, 230; 3. Centralidade da categoria do
II. O mundo “ indivíduo” , 230.
como representação________ 210
1. Que o mundo seja representação é uma IV. Cristo:
verdade antiga, 210; 2. As duas componen­ irrupção do eterno
tes da representação: sujeito e objeto, 210; no tempo ________________ 230
3. Superação do materialismo e do realismo
1. A verdade cristã não deve ser demons­
e revisão do idealismo, 211; 4. As formas
trada, 230; 2. O princípio do cristianismo,
a priori do espaço e do tempo e a categoria
232.
da causalidade, 211.
III. O mundo como vontade___ 212 V. Possibilidade,
angústia e desespero________ 232
1. O mundo como fenômeno é ilusão, 212;
2. O corpo como vontade tornada visível, 1. A possibilidade como modo de ser da
212; 3. A vontade como essência de nosso existência, 232; 2. A angústia como puro
ser, 213. sentimento do possível, 232; 3. O desespero
como doença mortal, 233.
IV. Dor, libertação e redenção__ 214
VI. Kierkegaard:
1. A vida oscila entre a dor e o tédio, 214;
2. A libertação por meio da arte, 215;
a ciência
3. Ascese e redenção, 215. e o cientificismo___________ 234
M apa c o n c e i t u a l - O mundo como repre­ 1. Se é Deus que tem a precedência, a ciência
sentação, isto é, como fenômeno, 217. tem um limite intransponível, 234.
Te x t o s - A. Schopenhauer: 1. “ O mundo é VII. Kierkegaard contra
uma representação minha” , 218; 2. A vida a “ teologia científica” _____ 236
de cada indivíduo é sempre uma tragédia,
219; 3. “A base de todo querer é necessidade, 1. A teologia não é ciência, mas “ sabedoria
carência, ou seja, dor, 220. do espírito” , 236.
X III
D n d ic e q e r a l

M apa conceituai . - A filosofia existencial, 2 3 7 . Capítulo décimo terceiro


T e x t o s - S. Kierkegaard: 1. Estágio esté­ A filosofia italiana
tico, estágio ético e estágio religioso, 2 3 8 ; na época da Restauração.
2 . O indivíduo, 2 3 9 ; 3. A existência como Empenho social, milícia
possibilidade, 2 4 0 ; 4 . A escola da angústia, e revolução em Romagnosi,
2 4 0 ; 5. A única certeza é a ético-religiosa,
Cattaneo e Ferrari____________ 257
241.
I. A “ filosofia civil”
de Gian Domenico
Quinta parte Rom agnosi________________ 257
A FILOSOFIA I. A mente humana procede da síntese para
a análise, 257; 2. A “ filosofia civil” como
NA FRANÇA conhecimento do “ homem social” , 258.
E NA ITÁLIA II. A filosofia e o federalismo
NA ERA em Carlos Cattaneo________ 259
DA RESTAURAÇÃO 1. Carlos Cattaneo: “ a filosofia é uma mi­
lícia” , 260; 2. A filosofia como “ ciência”
das “ mentes associadas” , 260; 3. A teoria
política do federalismo, 260.
C apítulo décim o segundo
A filosofia na França III. Giuseppe Ferrari
na era da Restauração e a “ filosofia da revolução” __261
entre “ ideólogos” , 1. N ão à razão “ abstrata” , sim ao positivis­
“ espiritualistas” mo que instaura a “ época da ciência” , 262.
e “ tradicionalistas” ___________ 245 T e x t o s - C. Cattaneo: 1. O direito federal,
263; 2. As pátrias locais, 264.
I. Os ideólogos ______________ 245
I. As duas linhas filosóficas que caracteri­
zaram a passagem do século XVIII para o Capítulo décimo quarto
século X IX na França, 245; 2. Conceitos Os três pensadores italianos
essenciais dos ideólogos, 246; 3. Destutt de
Tracy, 246; 4. Cabanis, 246.
da era da Restauração
que propuseram um retorno
II. O espiritualismo à filosofia espiritualista
de Maine de B ira n _________ 247 e à metafísica:
1. A consciência como sentimento de exis­ Galluppi, Rosmini e Gioberti __265
tência individual, 247; 2. A consciência
como força agente e vontade, 248.
I. Pascal Galluppi
e a “filosofia da experiência” __265
III. Victor Cousin I. Vida e obras, 265; 2. A realidade do eu
e o espiritualismo e a existência do mundo exterior, 266; 3. O
eclético__________________ 249 princípio de causalidade e a dem onstra­
ção da existência de Deus, 266; 4. A fun­
1. O caminho da observação interior, 249. dação dos valores morais, 266.
IV. Os tradicionalistas ________ 251 II. Antônio Rosmini
1. C aracterísticas essenciais dos trad i­ e a filosofia do “ ser ideal” ___268
cionalistas, 251; 2. Louis de Bonald, 251; 1. A vida e as obras, 269; 2. Crítica do sen-
3. Joseph de Maistre, 252. sismo empirista e do apriorismo kantiano,
T e x t o s - L. de Bonald: 1. O catolicismo, 270; 3. A idéia do ser, sua origem e sua
princípio da sociedade civil e de conservação natureza, 270; 4. O “ sentimento corpóreo
social, 253; J. de Maistre: 2. O papado criou fundam ental” e a “ realidade do mundo
e salvou a Europa, 254. externo” , 272: 5. Pessoa, liberdade e pro­
C ó d ic e g e r a l

priedade, 272; 6. Estado, Igreja e o princípio III. A difusão do positivismo


da moralidade, 274. na Fran ça--------------------- 298
IlI.Vincenzo Gioberti 1. As figuras significativas de Laffitte, Littré,
Renan e Taine, 298; 2. Claude Bernard e o
e a filosofia nascimento da medicina experimental, 299.
do “ ser real” ----------------- 274
1. A vida e as obras, 275; 2. Contra o “ psi- IV. O positivismo
cologism o” da filosofia moderna, 276; 3. A utilitarista in glês__________ 300
“ fórmula ideal” , 276; 3.1. A filosofia como 1. Os principais representantes do positivis­
reflexão sobre a revelação originária de mo utilitarista inglês, 301; 2. O pensamento
Deus, 276; 3.2. Primeira parte da fórmula de Malthus, 301; 3. A economia clássica,
ideal: o ente existe necessariamente, 277; 302; 3.1. Adam Smith, 302; 3.2. David Ri­
3.3. Segunda parte da fórmula ideal: o ente cardo, 302; 4. Robert Owen: do utilitarismo
cria o existente, 277; 3.4. Terceira parte da ao socialismo utópico, 303; 5. O utilitarismo
fórmula ideal: o existente retorna ao ente, de Jeremiah Bentham, 304; 6. O utilitarismo
277; 4. O “ primado moral e civil dos ita­ de James Mill, 304.
lianos” , 278.
T extos- p. Galluppi: 1. Demonstração da V. John Stuart Mill:
existência de Deus, 279; A. Rosmini: 2. A entre lógica indutiva
idéia do ser, 279; 3. O momento privilegia­ e defesa da liberdade
do da “ilum inação” , 280; 4. A “pessoa” , do indivíduo______________ 306
281; 5. Liberdade de ensino, 282; 6. A 1. A crise dos vinte anos, 307; 2. O silogismo
benéfica influência do cristianismo sobre a é estéril: não aumenta nosso conhecimento,
sociedade civil, 282; V. Gioberti: 7. Sobre o 308; 3. O princípio de indução: a unifor­
catolicismo, 283; 8. A função do papado e midade da natureza, 308; 4. As ciências
do catolicismo na história da humanidade, morais, 309; 5. A defesa da liberdade do
284.
indivíduo, 310.
M apa c o n c e i t u a i . - Lógica, 3 1 1 .
Sexta parte T ex to s - A. Comte, 312; 1. A lei dos três está­
gios, 312; 2. A construção da sociologia como
O POSITIVISMO física social, 313; J. S. Mill: 3. Por que é neces­
NA CULTURA sário restringir a intervenção do Estado, 315.
EUROPÉIA
C apítulo décim o sexto
O positivismo evolucionista
C apítulo décim o quinto e materialista________________ 3 1 7
O positivismo sociológico
e utilitarista_________________ 287 I. O positivismo evolucionista
de Herbert Spencer_________ 3 1 7
I. O positivismo: linhas gerais_ 287 1. Religião e ciência são “ correlatas” , 318;
I. Desenvolvimentos da sociedade e pro­ 2. O papel da filosofia no pensamento de
gressos da ciência na época do positivismo, Spencer, 319; 3. A evolução do universo:
288; 2. Os pontos centrais da filosofia po­ do homogêneo ao heterogêneo, 320; 4. O
sitivista, 288. evolucionismo em biologia, 320; 5. O evo-
lucionismo em psicologia, 320; 6. O evolu-
II. Auguste Comte cionismo em sociologia e em ética, 321.
e o positivismo sociológico__ 290 M apa c o n c e i t u a l - O positivismo evolu­
1. A lei dos três estágios, 291; 2. A doutrina cionista, 322.
da ciência, 292; 3. A sociologia como física
social, 294; 4. A classificação das ciências, II. O positivismo na Itália,
295; 5. A religião da humanidade, 296. com particular atenção
M apa c o n c e i t u a i . - O positivismo socioló­ ao pensamento
gico, 297. de Roberto Ardigò_________ 323
X V
Ónd ic e a e Y c x I

1. A filo so fia deve estar ligada com o 1. O debate sobre a “ evolução” na França:
desenvolvimento das teorias científicas, Lamark, Cuvier e Saint-Hilaire, 342; 2. Char­
324; 2. A posição de Roberto Ardigò, 324; les Darwin e “ a origem das espécies” , 343;
2.1. Da sacralidade da religião à sacralidade3. A origem do homem, 344.
do “ fato” , 324; 2.2. O ignorado não é o
incognoscível, 325; 2.3. A evolução como V. A física no século X IX -------- 346
passagem do indistinto ao distinto, 325; 1. A física nos inícios do século, 346; 2. O
2.4. M oral e sociedade, 326. mecanicismo determinista como “ programa
de pesquisa” , 346; 3. Da eletrostática à ele-
III. O positivismo materialista trodinâmica, 348; 4. O eletromagnetismo e
na A lem anha_____________ 327 a nova síntese teórica, 348; 5. O desencontro
1. Contra as metafísicas da transcendência, com a mecânica de Newton, 350.
327; 2. Os principais representantes, 328.
VI. A lingüística: Humboldt,
T e x t o s _ H. Spencer: 1. N ão há antagonis­
mo entre ciência e religião, 329.
Bopp, a “ lei de Grimm”
e os “ neogramáticos” -------- 351
1. W. von Humboldt: a língua cria o pensa­
Sétima parte mento, 351; 2. A construção da “ gramática
co m p arad a” , 351; 3. O contributo dos
O DESENVOLVIMENTO “ neogramáticos” , 352.
DAS CIÊNCIAS VII. O nascimento
NO SÉCULO XIX, da psicologia
O EMPIRIOCRITICISMO experimental_____________ 353
1. A “ lei psicofísica fundamental” de Weber-
E O CONVENCIONALISMO Fechner, 353; 2. W. Wundt e o laboratório de
psicologia experimental de Leipzig, 354.

C apítulo décim o sétimo VIII. N as origens


O desenvolvimento da sociologia científica____ 355
das ciências no século X I X ____ 333 1. Emile Durkheim e as “ regras do método
sociológico” , 355; 2. O suicídio altruísta
I. Questões g e ra is____________ 333 e egoísta, 356; 3. O suicídio anômico, 357;
1. Ciência e filosofia no século X IX , 333; 4. Influências de Durkheim, 357.
2. Alguns resultados “ técnicos” da pesquisa
científica no século X IX , 334.
C apítulo décimo oitavo
II. O processo de “ rigorização” O empiriocriticismo
da matemática ____________ 335 de Richard Avenarius
1. Da “ aritmetização da análise” à “ logiciza- e Ernst Mach,
ção da aritmética” , 335; 2. George Boole e a ál­ e o convencionalismo
gebra da lógica, 335; 3. Das geometrias não- de Henri Poincaré
euclidianas ao programa de Erlangen, 336. e Pierre D uhem ______________ 359
III. As geometrias I. O empiriocriticismo _______ 359
não-euclidianas___________ 337
1. Richard Avenarius, 360; 1.1. Significado
1. A geometria euclidiana e a questão do do termo empiriocriticismo, 360; 1.2. A
quinto postulado, 337; 2. O nascimento concepção da “ experiência p u ra” , 360;
das geometrias não-euclidianas, 339; 3. O 1.3. O retorno ao conceito “ natural” de
significado filosófico da geometria não-eu- mundo, 361; 2. Ernst Mach, 362; 2.1. A
clidiana, 341. concepção biológica da ciência como adap­
tação ao ambiente, 362; 2.2. Como nascem
IV. A teoria os problemas e suas soluções, 362; 2.3. Crí­
da evolução biológica______ 342 ticas à mecânica newtoniana, 364.
XVI -í
Unaic-e- q e r a lI

II. O convencionalismo holísticos e negações do experimentum


de Henri Poincaré crucis, 369.
e Pierre Duhem____________ 365 T e x t o s - E. Mach: 1. A ciência “se tornou
1. O convencionalismo moderado de Poin­ o fator biologicamente e culturalmente mais
caré, 366; 1.1. A convenção não é arbítrio, propício” , 370; 2. A função das hipóteses
366; 1.2. A teoria institui o fato e “ a expe­ na pesquisa científica, 370; 3. A ciência
riência é a única fonte da verdade” , 367; economiza a experiência, 371; H. Poincaré:
1.3. Os axiom as da geometria como defini­ 4. O valor cognoscitivo da ciência, 372; P.
ções mascaradas, 368; 2. Pierre Duhem e a Duheim: 5. O papel da história da ciência,
natureza da teoria física, 368; 3.Controles 373.
C ódice de nomes *

B ern ard C., 28 8,298,299,334,346 C o n d illa c B., 246,247,249,257,


A Bernstein E., 188 265, 268, 270
Berzelius J. ]., 288, 334 C o n d o r c e t M.-J.-A., 291, 293
A g a z z i E., 339
Bichat X., 295 C o n r a d i K., 151, 152
A g o s t in h o d e H ip o n a , 272,
Binet A., 354 C o p é r n i c o N., 295, 343
275
BiotJ. B., 347, 369 C o r r e n s C ., 334
A l e m b e r t , J. B. L e R o n d d ’ , 291
Biran, M. de, 246, 247-248, 249 C o u l o m b , C . A. d e , 348
A m p è r e A . M . , 348
Blainville H.-M., 295 C o u s i n V., 246,247,249-250,275
A n g i u l l i A ., 323, 324
Blanc L., 163,169 C r o c e B., 13, 145
A p o r t i F., 270
A r d i g ò R., 287, 288, 324-326
Blanqui A., 163 Cuoco V., 258
B o a v e n t u r a , são, 272 C u v i e r G.,342
A r i s t ó t e l e s , 36, 51, 118, 119,
B õ h m e J., 88
120, 205, 249, 258, 268, 270,
B o l y a i J., 288, 339
313, 338
B o n a l d , L. d e , 251-252, 253­ V
A r o n R., 357
A r r h e n i u s S. A ., 334
254, 277
B o o l e G., 335, 336
A s t F.,34 D a n d o l o G., 326
B o p p F.,351, 352 D a r w i n C., 288, 317, 318, 320,
A v e n a r i u s R., 332, 359, 360-361
B r e n t a n o F., 205 333, 343-345, 354
B r e w s t e r D., 347 De Ruggiero G., 6
B r u g m a n n K., 353 D e S a n c t i s F., 207
B B r u n o G., 323 D e S a r l o F., 355
B ü c h n e r L., 327, 328
D e V r i e s H., 334
B a a d e r , F. v o n , 8 8 B u f f o n G.-L., 343 D e d e k i n d R., 288, 335, 336
B a b b a g e C., 330
D e l b r ü c k B ., 353
B a b e u f F.-N., 169
D e s c a r t e s R., 111,207,210,218,
Baccelli G., 325 O 248, 249, 262, 265, 275, 276,
B a c o n F., 290, 293
288, 290, 293, 295
B a e r , K.E. v o n , 334 C a b a n is P.-J. G., 245, 246-247 D e s t u t t d e T r a c y A.-L.-C., 245,
B a u e r B . , 153, 154, 156, 169, Calderón de la Barca P., 212 246, 248
171, 172 C a n n i z z a r o S., 334
D i d e r o t D., 291
B a u e r E., 172 C a n t o r G., 288, 335, 336
D u B o i s - R e y m o n d E., 328
Baugb A. C., 10 C a t t a n e o C ., 243,244,257,258.
D u h e m P., 331, 332, 359, 365,
B e c c a r i a C., 302, 304 259-261, 263-264, 324 366, 368-369, 373-374
B e c k J. S., 42, 43 C a t t e l l J., 354, 355
D ü h r i n g E., 187, 328
B e d s d o r f f , 351 C a u c h y L. A., 288, 335
D u r k h e i m E., 355-357
B e h r i n g , E. v o n , 334 C a y l e y A., 335
D u v i v i e r J., 248
B e n e k e F. E., 205 . C h a m p o l l i o n J.-E, 346
B e n t h a m J., 300, 301, 302, 304, C h a r c o t J.-M., 354
305, 306, 309, 321 C l a u s i u s R. J. E., 288, 347
Berchet J., 16 Coleridge S. T., 16
B e r g s o n H., 248, 249, 366 C o m t e A., 160, 285, 287, 288,
B e r k e l e y G., 70, 207, 210, 218, 289, 290-295, 297, 298, 299, Eckermann J. P., 28
269, 272 307,312-314, 321,355 E c k h a r t (M e stre ), J., 88

* Neste índice:
-reportam -se em versalete os nomes dos filósofos e dos homens de cultura ligados ao desenvolvimento
do pensamento ocidental, para os quais indicam-se em negrito as páginas em que o autor é tratado de
acordo com o tema, e em itálico as páginas dos textos;
-reportam -se em itálico os nomes dos críticos;
-reportam -se em redondo todos os nomes não pertencentes aos agrupamentos precedentes.
X V III

E h r l i c h P., 334 G o e th e J. W., 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, J o d l F., 328


E i n s t e i n A., 350 12, 15, 25, 26-28, 39, 41, 49, J o n e s W., 218, 351
E n e s í d e m o , 43 115,249 J o u l e J . P., 288, 347, 348
Enfantin B. P., 163 G õ s c h e l K . F., 151, 152 Ju v e n a l D. G., 221
E n g e l s F., 155, 169, 170, 172, G r a s s m a n n H., 336
175, 178, 180, 186-188, 196, G r a y A., 344
197-198, 328 G r im m ]., 240, 352
E r d m a n n J. E ., 152 G u illo t in J.-I., 3 K
E r n e s t i J. A., 33
E u c l i d e s , 337, 338, 339, 368
Kafka F., 207, 210
E u l e r L., 335
■H K a n t I., 24, 35, 37, 38, 39,42, 43,
Ê u t i c o , 284
48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55,
H a e c k e l E., 287, 288, 327, 328 66, 82,85,106,111,112,120,
H a l l J . S., 354, 355 202, 207, 208, 209, 212, 213,
F H a m a n n J. G., 35-36, 37 218, 258, 265, 266, 268, 270,
H a m i l t o n W ., 318, 319 276, 321, 361
H a m i l t o n W . R ., 335 K e k u l é F. A., 334
F arad ay M., 288, 348, 349
Hansen H. P., 235 K e l v i n W. T., 347
Fazzari A., 266
Hartenstein G., 203 K e p l e r J., 295, 350
F e c h n e r G ., 353-354
H a r t m a n n N . , 17 Kierkegaard P., 225
F e r r a r i G., 244, 257, 258, 261­
Hartung H., 48 K i e r k e g a a r d S., 78, 88,199,200,
262, 324
Hayez F., 273 205, 208, 223-237, 238-242
Ferrarotti F., 355
H e g e l G. W. F., 8, 13, 14, 23, 28, Klein F., 288, 336
Ferri E., 324
39, 40, 45, 46, 77, 85, 89, 95, Klinger F. M., 4, 5, 6
F e u e r b a c h L., 151,153,157-159,
92-133, 134-147, 149, 151, Klopstock F. G., 5
167-168, 172, 176, 205 K o c h R., 288, 334
F i c h t e J. G„ 13, 15, 16, 18, 20,
152, 153, 154, 156, 157, 158,
159, 169, 173, 174, 178, 179, Kolakowski L., 289
21, 23, 39, 42, 43, 46, 47-60,
195, 196, 202, 205, 206, 207, K õ l i k e r R. A., 334
61-76, 79, 82, 83, 85, 87, 89,
208, 209, 215, 223, 230, 249, K õ p p e n K . F., 171
96, 97, 99, 100, 101, 102,
274, 276, 292 K r a e p e l i n E., 354
103, 117, 120, 134, 202, 207,
H e i d e g g e r M., 23 K r o n e c k e r L., 335
209,211
Heller A., 190 Kugler K., 102
F i s c h e r K., 152
H e l m h o l t z , H . L . F. v o n , 288, K u h n T., 347, 350
F o r b e r g , 48
346, 353, 354 K ü l p e O ., 354
F o u r i e r C., 160, 161, 163-165,
169, 304 H e l v é t i u s C.-A., 304
H e n r y J . , 348
F o u r i e r J. B., 347
France A., 210 H e r á c lito , 8
L
H e r b a r t J. F., 199, 200, 201-204,
Frederico Guilherme IV, 77
F r e g e G., 335, 336 205
H e r d e r J. G., 3, 5, 7, 8, 37, 39­ L a a s E., 328
F r e s n e l A.-J., 369 L a f f i t t e P., 298
F r e u d S., 354 40, 351
H e r t z H . R ., 288, 349 L a g r a n g e J.-L., 335
Friedrich C. D., 4, 5, 8, 14, 25 L a m a r c k J.-B., 342-343
H e r w e g h G., 172
F r i e s J . B., 205
H e s s M., 172 L a m e n n a i s , R . d e , 251, 275
F ü l l e b o r n G. G., 33
H i l b e r t D., 333, 336, 341 L a p l a c e P.-S., 317, 346, 369
H õ l d e r l i n F., 1, 2, 5, 12, 15, 23, L a r o m i g u i è r e P., 249
77, 95, 96 L a v o i s i e r A., 295
H o m m e l C. F., 71 L e g e n d r e A.M., 346
H o o k e r J. D., 344 L e R o y É., 365, 366
H o r k h e i m e r M., 207, 210 L e V e r r i e r U. J. J., 350
G a b e l l i A., 323, 324 L e h m a n n , 354
H u m b o l d t , W. v o n , 39,41,351,352
G a b l e r G . A., 151, 152 L e i b n i z G. W., 83, 134, 262, 265,
H u m e D., 262, 266, 269, 272
G a l i l e i G . , 188, 295, 346 ' 268, 270, 321, 338
H u s s e r l E., 267
G a l l u p p i p., 244, 257, 258, 265­ L e n i n N., 149
H u t c h e s o n F., 304
267, 279 Lenz M. R., 4, 5, 6
H u y g e n s C., 295, 369
G a l o i s E., 335 Leroy M., 352
G a l t o n F., 355 Lesseps F.-M., 163
G a n s E., 171 L e s s i n g G. E., 5, 37, 40, 196
G a r a u d y R ., 189 5 L e v i A., 326
G a u s s K . F., 337, 339, 346 L é v y - B r u h l L ., 357
Geymonat L., 289 J a c o b i F. H., 3, 5, 6, 13, 37-39, Lhermitte L., 299
G i b b s J . W . , 347 105, 249 L i e b i g , J. v o n , 288, 334
G i o b e r t i V., 56, 243, 244, 257, J a m e s W., 309 L i m e n t a n i L ., 326
258, 265, 269, 272, 275-278, J a n e t P., 354 L i n n e o C., 342
283-284 Jefferson T., 246 L i t t r é E., 298
G i o i a M., 258 J e v o n s W. S., 336 L o b a c e w s k i j N. I., 288, 339, 340,
G õ d e l K . , 333, 341 João (evangelista), 59 341, 368
X IX

L o c k e J . , 262, 268, 270 Nestório, 284 R e n a n E., 285, 298


L o m b r o s o C ., 323, 324 N e u m a n n F. E., 348 R i b o t T . , 299, 354
L o r e n t z H. A., 350 N e w t o n I . , 160,295,301,305,338, R i c a r d o D ., 169, 174, 300, 302­
L u c r é c i o C a r o , 221 346, 347, 348, 350, 369, 370 303
L u d w i g C ., 334 N o v a l i s F., 1, 2, 5 ,1 2 ,1 3 ,1 4 ,1 5 , Richmond G., 343
Luís Filipe d’Orléans, 249 18, 19, 30-32, 120 R i e m a n n B., 340, 341
L u t e r o M ., 1 8 , 19 Robespierre M., 115, 172, 246
L y e l l C ., 334 R o k i t a n s k y K., 334
O R o m a g n o s i G. D., 244, 257, 258,
259, 260, 261
M R o s e n k r a n z K. F., 152
O e rste d H. C., 348 R o s m i n i A., 243, 244, 257, 258,
O h m G. S., 348 260, 265, 2 6 8 - 2 7 4 , 276, 279­
M ach E., 331, 332, 346, 350,359, O ls e n R., 223, 226 283
360, 362-364, 368, 370-372 O w e n R., 169, 300, 303-304 R o u s s e a u J.-J., 5, 262
Macpherson J., 5 R u g e A., 153, 154, 1 5 6 , 172
M a g e n d i e F., 334
R u s s e l l B., 188, 335, 336
M a i m o n S., 42, 43, 49, 50
M a i s t r e , J. d e , 251, 252, 254­
P
255, 275
M a l e b r a n c h e N., 276 Palladino D., 339 s
M a l t h u s R., 300, 301, 344 P a p in D., 295
Mann T., 207, 210 P a r m ê n i d e s , 116, 117
S a c c h e r i J., 3 3 9
Manzoni A., 269 P a s c a l B., 248, 249, 295, 338
S a d i C a r n o t N. L., 347
Mao Tse-tung, 149 P a s t e u r L., 288, 334
S a i n t - H i l a i r e E. G., 3 4 2 , 3 4 3
M a r c h e s i n i G., 326 P a u l H., 353
S a in t- S im o n , C . H . d e , 1 6 0 , 1 6 1 ­
M a r c u s e H., 165 P e a c o c k G., 335
163, 169, 304, 355
Maroncelli P., 258 P e a n o G., 336
S a v i g n y , F. K . v o n , 1 7 1
Marx H., 171 P e c q u e u r C., 174
S a y J.-B., 1 7 4
M a r x K., 128,149,153,154,156, P e i r c e C. S., 336
S c h e l l i n g F. W., 8 ,1 3 ,1 4 ,1 5 ,2 3 ,
157, 161, 169-185, 186, 187, Pellico S., 258, 275
188, 189, 190, 191-197, 205, Pellizza de Volpedo G., 183 46, 7 7 - 9 0 , 91-93, 95, 96, 97,
303, 355 Pestalozzi H., 202 99, 102, 103, 117, 249
S c h i l l e r F. C. S ., 2, 3,
5, 6, 8, 15,
M a u p a s s a n t G., 210 Pio IX, papa, 268
16, 2 4 - 2 5
M a x w e l l J. C., 288, 347, 349, P l a n c k M., 351
S c h l e g e l A. W., 4, 15
350 P l a t ã o , 8, 20, 21, 82, 97, 106,
S c h l e g e l F., 1, 2, 10, 11, 13, 15,
M a y e r F., 209, 288 130, 134, 146, 205, 209,212,
Mazzini J., 258 15, 16, 17, 19, 20, 2 1,29, 47,
249, 268, 270, 275
M e n d e l G.J., 334
48, 49, 77
P o i n c a r é H., 331, 332, 359, 365,
S c h l e i e r m a c h e r F., 2 ,1 3 ,1 5 , 2 0 ­
M e n d e l e j e v D. I., 288, 334 3 6 6 - 3 6 8 , 372-373
22, 33-34, 47, 48
M e n d e l s s o h n M . , 196 P o i s e u i l l e J. L. M., 346
S c h o p e n h a u e r A., 199 ,2 0 0 , 2 0 7 ­
M i c h a e l i s K., 15 P o m p o n a z z i P., 323, 324
2 1 7 , 218-222, 230
Michelangelo Buonarroti, 7 P o p p e r K. R., 188, 190
M i c h e l s o n A. A., 350 P o u c h e t F. A., 334
Schopenhauer H. F., 209
S c h r õ d e r E., 336
M i l l J . , 300,301,302, 3 0 4 - 3 0 5 , 321 Pressburg H., 171
S c h u l z e G. E., 4 2 - 4 3 , 49, 50,
M i l l J . S., 287,288,289,299,300, P r o c l o , 249
301, 302, 304, 305, 3 0 6 - 3 1 0 , P r o u d h o n P. J., 160, 161, 165,
209
S e r g i G., 355
311, 315-316, 321 166, 169, 170, 175, 355
Milritz, K. B. von, 47 Shakespeare W., 5, 36, 212
S m i t h A., 169, 174, 300, 3 0 2 ,
Mittner L., 7, 10, 11, 28
303
M o l e s c h o t t J . , 287, 288, 327,
Q Soave F., 258
328
S ó c r a t e s , 16, 36,134, 249
M o liè r e J. B., 291
Quaranta M., 324 Sófocles, 212
M o n d o l f o R., 326
Q u i n e W. V. O., 366, 369 S p a l l a n z a n i L., 334
Montalenti G., 334
S p e a r m a n n C., 355
M o r l e y E.W., 350
S p e n c e r H., 285, 287, 288, 317­
M o r s e l l i E., 324, 355
M o s s o A., 355
322, 323, 324, 325, 329-330,
R 355
M ü l l e r J . , 334
S p i n o z a B., 37,40, 47, 80, 85, 87,
M u r r i A., 323, 324
R a f a e l S a n z io , 7 134, 196
Mynster, b i s p o , 223
R a h n J . , 47 Staèl A. L., Madame de, 16, 251
R a s k R . K ., 351 S t a n l e y H a l l J., 354
R a y l e i g h J . W ., 347 S t e w a r t D., 270
N R e i d T ., 270 S t i r n e r M., 1 5 3 , 1 5 4 - 1 5 6
R e i m a r u s H . S ., 37 S t o u t G. F., 355
Napoleão, 56, 245, 246, 252, 257 R e i n h o l d K. L., 42, 43, 49, 50, S t r a t t o n G. M., 354
N e e d h a m J . T ., 3 3 4 96 S t r a u s s D. F., 151, 1 5 3 - 1 5 4
X X

T V W e b e r F. H., 353, 354


W eber M ax, 188, 189
W e ie r str a ss K., 288
T a i n e H., 298 V a n i n i G. C., 142 Westphalen, J. von, 171, 173
T a l e s , 129 V a t t i m o G., 2 2 Winckelmann J., 6, 7, 16
T a r o z z i G., 326 Vaux, C. de, 296 W i t t g e n s t e i n L., 207, 210
Taylor H., 306, 307 Vico G. B., 260, 275, 292 W õ h l e r F., 334
T h i e r r y A . , 161 V i l l a r i P., 323, 324 W o l f F. A., 33, 34
Thiriat H., 321 V i r c h o w R., 334 W o l f f C., 134, 265
T h o m s o n J. J., 288, 350 Vogel von Vogelstein C., 28, 252 Wordsworth W., 16
T i e c k L., 15, 47, 48 V o g t K., 327, 328 W u n d t W ., 353, 354-355, 360
Tischbein J. H. W., 27 V o l t a A., 346
T i t c h e n e r E. B., 354
Togliatti P., 189
V o l t a i r e F. M . , 2 6 2
V
Tolstoi L., 210 Y o u n g T ., 346, 347, 369
T o m m a s i S., 323, 324 w
T r e n d e l e n b u r g A., 199, 200,
205-206
T r e v e l y a n G. M., 303
W a ck e n ro d e r
Wagner R., 328
W. H., 15 z
Trosiener J. H., 209 W a l l a c e A. R., 344 Z en ã o d e E l é ia , 1 0 6 , 108
T s c h e r m a k E., 334 W a r d J., 355 Z e u t h e n C ., 2 3 4
T u r g o t A. R. J., 291 W a r r e n J. K., 354 Z o l a É ., 2 1 0
C ódice de conceitos
fund a mentais

alienação do trabalho, 177 lei dos três estágios, 292


lógica, 120

mais-valia, 182
dialética, 106 materialismo dialético, 179
materialismo histórico, 178

especulativo, 109
espírito,127 não-eu, 53
eu, 50 natureza, 124

possibilidade, 233
filosofia negativa e filosofia positiva,

utilitarismo, 302
idéia, 105
identidade absoluta, 85
incognoscível, 319
indivíduo, 229 vontade (vontade de viver), 213
DO ROMANTISMO
AO EMPIRIOCRITICISMO
O MOVIMENTO
ROMÂNTICO
E A FORMAÇÃO
DO IDEALISMO

“Um deus é o homem quando sonha, um mendigo


quando reflete”.
Friedrich Hõlderlin
“Sucedeu que alguém levantou o véu da deusa
de Sais.
E o que viu?
Viu - maravilha das maravilhas - a si mesmo”.
Novalis
“Em todas as coisas está presente o eterno”.
Wolfgang Goethe
“Pode ser artista apenas aquele que tem uma reli­
gião própria, ou seja, uma intuição do infinito”.
Friedrich Schlegel
Capítulo primeiro

Gênese e características essenciais do rom antism o ____

Capítulo segundo

O s fundadores da E scola rom ântica:


os Schlegel, N o v alis, Schleiermacher, o poeta H õlderlin
e as posições de Schiller e de G o e th e _________________

Capítulo terceiro

O utros pensadores que contribuíram p ara a superação


e a dissolução do Ilum inism o, e prelúdios do idealism o
d a p í f u l o p r im e ir o

Ciênese e cam ctensticas


essenciais do romantismo

I. 0 " S + u^m u rvd D i^ c m g

• Antes da difusão da mudança radical promovida pela Revo- Um novo cjjma


lução Francesa de 1789, na Alemanha a têmpera cultural registrou cultural
entre 1770 e 1780 as primeiras clamorosas modificações que sobre _> § 7
a passagem do século teriam levado gradualmente à superação
total do iluminismo e à afirmação do romantismo.
• O movimento que promoveu tal reviravolta foi o Sturm und Drang ("Tem­
pestade e ímpeto"), cujas posições e idéias de fundo eram:
a) a natureza, entendida como força onipotente e criadora de vida;
b) o gênio, como força originária que cria analogamente à natureza e é regra
de si mesmo;
c) o panteísmo, que começa a se contrapor à concepção ilu- O Sturm
minista da divindade como razão suprema;
d) o sentimento pátrio, expresso no ódio pelo tirano, na eund Drang
sua difusão
exaltação da liberdade e no desejo de infringir convenções e leis —>§ 2-3
exteriores;
e) a predileção pelos sentimentos fortes e pelas paixões
impetuosas.
Quem deu sentido e importância supranacional ao Sturm und Drang foram
principalmente Goethe, Schiller e os filósofos Jacobi e Herder com sua primeira
produção poética e literária.

1 „ ;A s p r e m i s s a s k is + ó r ic a s quia na França e proclamada a República.


'
Em 1793, o rei foi condenado ao patíbulo.
A partir de agosto de 1793, teve início o
Talvez nunca tenha acontecido de o grande Terror, que produziu milhares de
fim de um século e o início de outro serem vítimas. A guilhotina (antigo instrumento
marcados por mudanças tão radicais e tão de execução capital, oportunamente modi­
claras como as mudanças que caracterizam ficado pelo médico Guillotin, membro da
os últimos anos do século XVIII e os primei­ Constituinte, a fim de torná-lo mais rápido
ros anos do século XIX. e funcional) tornou-se símbolo sinistro de
N o campo sociopolítico houve aconte­ morte, que punha fim às grandes esperan­
cimentos destinados a imprimir novo rumo ças filantrópicas, humanitárias e pacifistas
à história. Em 1789, explodiu a Revolução acesas pelo século das “ luzes” . '
Francesa entre o entusiasmo dos intelectuais A ascensão napoleônica, que culminou
mais iluminados de todas as nações euro­ em 1805 com a proclamação do Império, e
péias. Rapidamente, porém, a Revolução as campanhas militares, que puseram a Eu­
apresentou reviravolta que colheu todos de ropa sob ferro e fogo e subverteram toda a
surpresa. Em 1792, foi derrubada a monar­ estrutura política e social do velho continen­
Primeira parte - O movimehfo ^omânfico e a formação do idealismo

te, instaurando novo despotismo, fizeram 2 7^s idéias


ruir por terra todos os resíduos de esperan­ e as características
ças iluministas que ainda restavam.
Todavia, antes mesmo que explodisse de fundo
a Revolução na França, na década trans­ do^Sturm und Drang”
corrida entre 1770 e 1780, a intempérie
cultural registrava na Alemanha as primeiras
modificações de vulto que, a médio prazo, Eis as posições e as idéias de fundo
na passagem do século, levariam à supera­ desse movimento:
ção total do Iluminismo. O movimento que a) A natureza é redescoberta, exaltada
produziu tais modificações nessa década como força onipotente e vital.
ficou conhecido sob o nome de Sturm und b) Relaciona-se estreitamente com a
Drang, que significa “Tempestade e assalto” natureza o “ gênio” , entendido como força
ou, melhor ainda, “ Tempestade e ímpeto” . originária; o gênio cria analogamente à na­
A denominação deriva do título de drama tureza e, portanto, não extrai suas regras do
escrito em 1776 por um dos expoentes do exterior, mas ele próprio é regra.
movimento, Friedrich Maximilian Klinger c) À concepção deísta da divindade
(1752-1831), e parece ter sido usada pela como intelecto ou razão suprema, própria
primeira vez por A. Schlegel para designar do Iluminismo, começa a se contrapor o pan-
todo o movimento no início do século XIX. teísmo, ao passo que a religiosidade assume
Os dois termos provavelmente devem novas formas que, em seus pontos extremos,
ser entendidos como hendíadis, ou seja, se expressam no titanismo paganizante do
como dois termos que expressam conceito Prometeu de Goethe ou no titanismo cristão
único com duas palavras; assim, o sentido da santidade e do martírio de certas persona­
deveria ser “ ímpeto tempestuoso” , “ tempes­ gens de Michael Reinhold Lenz (1751-1792).
tade de sentimentos” , “ efervescência caótica d) O sentimento pátrio se expressa no
de sentimentos” . (O título original dado por ódio ao tirano, na exaltação da liberdade
Klinger ao seu drama era Wirrwarr, ou seja, e no desejo de infringir convenções e leis
“ confusão caótica” .) externas.

Caspar David Friedrich (1774-1840), “Abadia no bosque de carvalhos"


(Berlim, Staatliche Schlôsser und Garten).
Este quadro apresenta bem o clima espiritual do romantismo
em seus aspectos de sentimento de “pânico ” da natureza,
predileção pelas tonalidades crepusculares e noturnas, senso do mistério, revalorização da religião.
Capítulo primeiro - Gênese e características essenciais do romantismo

Caspar David Friednch, “ Um homem e uma mulher diante da lu a” (Berlim, Staatliche Museen).
Este quadro exprime certo clima intelectual e certa atmosfera espiritual do romantismo
(em clara antítese com o Iluminismo), que trazem em primeiro plano
os misteriosos encantamentos das sombras noturnas, com suas evocações
e com a inspiradora atmosfera “lunar", juntamente com a nostalgia que suscita
(recordemos os poetas Novalis e Hõlderlin). Os dois personagens que contemplam a lua,
assim como Friedrich os representa, exprimem de modo verdadeiramente emblemático,
como os estudiosos bem salientaram, a “ romântica fuga do espírito, para além daquilo que vemos

e) Apreciam-se os sentimentos fortesde


e língua alemã, além do já citado Lessing,
as paixões calorosas e impetuosas. influenciou os Stürmer sobretudo o poeta
Friedrich Gottlieb Klopstock (1724-1803),
com sua valorização do sentimento.
O Sturm und Drang teria apresentado
3 gên ese
influência bastante escassa se houvesse sido
e d i f m s q o d o m o v im e n to constituído apenas por figuras como a de
Klinger (que terminou sua vida aventurosa
como general do exército russo) ou a de
E sse m ovim ento foi in flu en ciad o Lenz (que morreu louco na Rússia, em plena
por alguns poetas ingleses, como Jam es miséria), que deixaram herança literária de
M acpherson (1736-1796), que publicara parco valor. Quem deu sentido e relevância
Fragmentos de poesia antiga, atribuindo- histórica e supranacional ao Sturm foram
os a Ossian, bardo antigo. Além da poesia ninguém mais que Goethe, Schiller e os
o ssiân ica, tam bém houve influência da filósofos Jacobi e Herder, com sua primeira
redescoberta de Shakespeare, autor sobre o produção poética e literária. Pode-se dizer,
qual Lessing já chamara a atenção dos ale­ aliás, que as fases mais significativas do
mães. E Rousseau também causara grande movimento têm exatamente Goethe por
impressão, seja com seu novo sentimento da protagonista, primeiro em Estrasburgo e
natureza, seja com sua nova pedagogia, seja depois em Frankfurt. Com a transferência
ainda com suas idéias políticas (o Estado de Goethe para Weimar (1775), começa a
como “ contrato social” ). Entre os escritores fase de declínio do movimento.
Primeira parte - O movimento foynanYico e a formaçao do idealismo

- II. o papel desem pervkado —


pelo classicism o
e m r e l a ç ã o a o ^ - S f u r m urvd
e a o rom antism o

• Em outra vertente, o novo classicismo surgido com Johann Winckelmann


(1717-1768) agiu como corretivo para a confusão e o caos dos Stürmer, impondo-
se pouco a pouco como um dos pólos dialéticos do romantismo. Conforme Win­
ckelmann, o único caminho para se tomar grandes é a imitação
o caminho dos antigos, que consiste em readquirir o olho dos antigos: neste
para a grandeza sentido, a imitação do "clássico" leva não só à natureza, mas
é a imitação também à idéia, que é uma "natureza superior"; o verdadeiro
dos antigos artista moderno descobre as belezas naturais, ligando-as com o
* 7-2 belo perfeito e, com o auxílio das forças sublimes nele inerentes,
toma-se regra para si mesmo. O neoclassicismo aspirava, portanto,
a mudar a natureza em forma e a vida em arte, não repetindo, mas renovando
aquilo que os gregos fizeram.
• Em perspectiva romântica, os aspectos im
Importância classicismo foram:
do renascimento 3) a medida, o limite e o equilíbrio como marca do clássico
do clássico (o movimento romântico nasceu justamente do impacto entre a
53 impetuosidade do Sturm und Drang e o limite do clássico;
b) o "renascimento" dos gregos, essencial também na filo­
sofia, além de na arte.

O *S t u r m und H V an 0/ O historiador da filosofia G. de Rug-


c o m o p re lú d io
giero expressou essa visão de modo particu­
larmente feliz: “ As manifestações do Sturm
d o ro m a n tism o und Drang apresentam, em estado fluido
e incandescente, o metal bruto que seria
forjado pela arte e pela filosofia alem ã” . E
O Sturm und Drang foi comparado por continua: “ Com efeito, a importância do
alguns estudiosos a uma espécie de revolu­ Sturm não é a de episódio isolado e circuns­
ção que antecipou verbalmente em terras crito, e sim a de uma expressão espiritual
germânicas aquilo que, pouco depois, seria a coletiva de todo um povo. N ão apenas os
Revolução Francesa no campo político. Por Klinger e os Lenz, mas também os Herder,
outros estudiosos, ao contrário, foi conside­ os Schiller e os Goethe (aos quais se poderia
rado como uma espécie de reação antecipada acrescentar o próprio Jacobi) passaram pelo
à própria Revolução, enquanto se apresen­ Sturm: os primeiros se detiveram nele e, por
tou como reação contra o Iluminismo, do isso, logo foram ultrapassados; os outros, ao
qual a Revolução Francesa foi a coroação. contrário, conseguiram dar forma ao infor­
Com efeito, como já se observou, tra­ me, ordem e disciplina ao conteúdo caótico
ta-se da reação do espírito alemão depois da própria natureza. Para nós, a experiência
de séculos de torpor, e do ressurgimento destes últimos é particularmente importante,
de algumas atitudes peculiares à alma ger­ porque nos permite estudar nos próprios
mânica. Portanto, encontramo-nos diante indivíduos duas fases sucessivas e opostas
de um prelúdio do romantismo, ainda que do mesmo processo histórico. N ão se trata
desalinhado e imaturo. apenas de um modo figurado de dizer que o
Capitulo primeiro - gênese e características essenciais do romantismo

Sturm representa a juventude desordenada, Essa idéia é “ uma natureza superior” ,


e o classicismo a composta e serena matu­ ou seja, é a verdadeira natureza. Sendo as­
ridade da alma alemã: o Sturm é realmente sim, podemos compreender muito bem estas
a juventude de Herder e de Goethe, que se importantes conclusões de Winckelmann:
ergue qual símbolo da juventude de todo o “ Se o artista se baseia em tais fundamentos
povo, e a vitória sobre ele tem significado e faz com que sua mão e seu sentimento
pessoal que dá fundamento mais íntimo e se guiem pelas normas gregas da beleza,
sólido à crise da alma coletiva” . encontra-se no caminho que o levará sem
Esse trecho acena ao classicismo, que falha à imitação da natureza. Os conceitos
agiu como corretivo da descompostura e do de unidade e de perfeição da natureza dos
caos dos Stürmer. Com efeito, o classicismo antigos purificarão suas idéias sobre a essên­
tem grande importância na form ação do cia desligada de nossa natureza e as tornarão
espírito da época que começamos a estudar mais sensíveis. Descobrindo as belezas da
e, pouco a pouco, se impõe não apenas nossa natureza, ele saberá relacioná-las com
como antecedente, mas como componente o belo perfeito e, com a ajuda das formas
do próprio romantismo ou até como um de sublimes, sempre presentes para ele, o artista
seus pólos dialéticos. Por isso, devemos falar tornar-se-á norma para si mesmo” .
dele, ainda que de modo sucinto. Esse é o ponto de partida do neoclassi-
cismo romântico. Como explica muito bem
L. Mittner (insigne historiador da literatura
O n o v o s e n t id o d o c l á s s i c o alemã), ele “ deveria ter-se formado organi­
camente da cultura alemã, como, segundo
e d a im it a ç ã o d o s c l á s s i c o s Winckelmann, se formara organicamente o
classicismo grego; ou seja, havia a aspira­
ção a um classicismo que não fosse cópia
É claro que o culto ao clássico não era e repetição, e sim misteriosa e miraculosa
estranho ao século XVIII iluminista. M as palingenesia dos valores supremos da an­
tratava-se de um “ clássico” de modismo, tiguidade” . O “ renascimento do clássico”
ou seja, de um clássico repetitivo e, por­ no espírito alemão e do espírito alemão,
tanto, privado de alma e de vida. M as, em graças à perene juventude da natureza e do
seus escritos sobre a arte antiga, publicados espírito: essa seria a suprema aspiração de
entre 1755 e 1767, Johann Winckelmann muitos escritores. Como escreve ainda M it­
(1717-1768) já lançava as premissas para a tner: “ Excetuando-se pouquíssimas de suas
superação dos limites do classicismo como realizações supremas, todo o classicismo
mera repetição passiva do antigo. alemão oscilaria entre duas tendências opos­
N a realidade, à primeira vista, uma de tas: imitação mecânica da arte grega, isto é,
suas máximas parece até afirmar o contrário: mais arte classicista do que substancialmente
“ Para nós, o único caminho para nos tor­ clássica, e aspiração a novo e genuíno clas­
narmos grandes e, se possível, inimitáveis, sicismo, inspirado pelo espírito grego, mas
é a imitação dos antigos” . surgido de evolução orgânica do espírito
M as essa “ imitação” que torna “ inimi­ alemão” . Assim, o neoclassicismo aspirava
táveis” consiste em readquirir o olhar dos a transformar a natureza em forma e a vida
antigos, aquela visão que Michelangelo e em arte, não repetindo, mas renovando o
Rafael souberam readquirir, e que lhes per­ que os gregos haviam feito.
mitiu buscar “ o bom gosto em sua fonte” e
redescobrir “ a norma perfeita da arte” .
E claro, então, que para Winckelmann 3 A i m p o r t â n c ia
a “ imitação” do clássico, entendida nesse
d o r e n a s c im e n t o
sentido, leva não apenas à natureza, mas
também além da própria natureza, ou seja, d o c lá ssic o n a a rte
à idéia: “ Os conhecedores e os imitadores e n a f ilo s o fia d o s r o m â n t ic o s
das obras gregas encontram nessas obras-
primas não somente o mais belo aspecto
da natureza, como também mais do que a Ainda há dois pontos muito importan­
natureza, isto é, certas belezas ideais dela, tes a destacar.
que [...] foram compostas por figuras cria­ Em primeiro lugar, devemos notar o
das somente no intelecto” . tipo de influência que o classicismo exerceu
Primeira purte - CD movimento romântico e a formação do idealismo

sobre os melhores representantes do Sturm, concepção da alma do mundo; Hegel elabo­


influência a que já acenamos. A marca do rará grandioso sistema precisamente graças
clássico é a “ m edida” , o “ limite” , o “ equi­ à redescoberta do antigo sentido clássico da
líbrio” . “ dialética” , com o acréscimo da novidade
Herder, Schiller e Goethe procuraram do elemento que ele chama de “ especulati­
precisam ente organizar as decom postas vo” , como veremos. E muito obteria do seu
forças do Sturm und Drang em função dessa constante colóquio com os filósofos gregos,
ordem e dessa medida. E foi precisamente não apenas do colóquio com os grandes pen­
desse impacto entre a tempestuosidade e sadores consagrados por tradição bimilenar,
impetuosidade do Sturm e o “ limite” , que é mas também do diálogo com os pré-socrá-
elemento característico do clássico, que nas­ ticos, particularmente, por exemplo, com
ceu o momento especificamente romântico. Heráclito, do qual utilizou quase todos os
Em segundo lugar, devemos notar que a fragmentos em sua Lógica.
redescoberta dos gregos, além da arte, seria Sem o componente clássico, portanto,
essencial também na filosofia: Schleierma­ não se explicariam a poesia nem a filosofia
cher traduziria os diálogos platônicos e os da nova época.
reintroduzirá no âmago do discurso filosó­ Com o que dissemos, já dispomos dos
fico; Schelling retomará de Platão conceitos elementos que nos permitem determinar os
fundamentais como a teoria das idéias e a traços essenciais do romantismo.

Caspar David Friedrich, “ Viandante sobre o mar de névoa" (Hamburgo, Kunsthalle).


Friedrich exprime aqui de modo emblemático a figura de um homem que encarna
a romântica Wanderung (o vagar pelo mundo),
impelido pelo desejo indefinível de aproximar-se do infinito,
de inserir-se na natureza em um abraço quase cósmico.
Cdpítulo primeiro - Gênese e características essenciais do fomantismo

:------- ÍTT. ,A c o m p l e x i d a d e
d o -fenômeno r o m â n t i c o
e suas c a r a c te r ís tic a s essen ciais

• Mesmo na complexidade extrema do fenômeno romântico, é possível dis­


tinguir em seu interior uma série de perspectivas e de categorias que definem os
traços essenciais.
• A palavra "romântico" aparece pela primeira vez na In- Aqênese
glaterra, pela metade do século XVII, para designar o fabuloso, do termo
o extravagante, o fantástico e o irreal. Gradualmente, o termo "romântico"
"romantismo" passou a indicar o renascer do instinto e da emoção, § 7-2
sufocados pelo racionalismo prevalente no século XVIII.
• Do ponto de vista historiográfico e geográfico, o romantismo designa o
movimento espiritual que, envolvendo não só a poesia e a filosofia, mas também
as artes figurativas e a música, desenvolveu-se na Europa entre o fim do século
XVIII e a primeira metade do século XIX. A partir da Inglaterra, o
movimento se expandiu em toda a Europa, na França, na Itália, o quando
na Espanha, mas a manifestação paradigmática do romantismo e o onde
foi em todo caso a que surgiu na passagem entre o século XVIII -> §3
e o século XIX na Alemanha.
• Na sensibilidade romântica dominou o amor da irresolução e das ambiva-
lências, dos sentimentos de preocupação e inquietação que se comprazem de si e
se exaurem em si mesmos. O termo mais típico para indicar esses
estados de ânimo foi Sehnsucht ("anseio"): um desejo que jamais a categoria
pode alcançar sua própria meta, porque não a conhece e não quer psicológica
ou não pode conhecê-la: um desejo de desejar, um desejo que é § 4
sentido como inextinguível e que justamente por isso encontra
em si a própria satisfação.
• Eis em síntese as idéias fundamentais do romantismo.
a) A Sehnsucht é desejo irrealizável porque aquilo que anseia é o infinito,
que é o sentido e a raiz do finito; sobre este ponto tanto a filosofia como a poe­
sia estão absolutamente de acordo: a filosofia deve captar e mostrar a ligação do
infinito com o finito, enquanto a arte deve realizá-lo: a obra de arte é o infinito
que se manifesta no finito.
b) A natureza, subtraída inteiramente da concepção meca-
nicista-iluminista, entende-se como vida que cria eternamente, Motivos
como grande organismo do todo afim ao organismo humano: a de fundo
natureza é jogo móvel de forças que gera todos os fenômenos, do romantismo
compreendendo o homem e, portanto, esta força é a própria
força do divino.
c) Estreitamente ligado a este sentido da natureza está o senso de pânico, ou
seja, o senso da pertença ao uno-todo, o sentir que se é um momento orgânico da
totalidade. No homem se reflete de algum modo o todo, assim como, vice-versa,
o homem se reflete no todo.
d) O gênio e a criação artística são elevados à expressão suprema do verda­
deiro e do absoluto. No poeta, natureza e arte se fundem junto e sobre o plano
passional, não sobre o intelectual, se tornam fenômenos musicais, poéticos.
Primeira parte - O movimento romântico e a formação do idealismo

e) Os românticos nutrem, além disso, um fortíssimo anelo pela liberdade, que


para muitos deles exprime o fundo operante de todo o ser, e o apreciam em todas
as suas manifestações.
f) A religião é, em geral, revalorizada no sentido de relação do homem com
o infinito e com o eterno, e é assim posta bem acima do plano ao qual o llumi-
nismo a reduzira. E a religião por excelência é considerada a cristã, embora com­
preendida de vários modos.
g) Sobre a esteira do elemento neoclássico, a grecidade é
a superioridade revisitada com a nova sensibilidade e amplamente idealizada.
do conteúdo
sobre a forma • A característica essencial da forma de arte tipicamente
da arte romântica consistiu na prevalência do "conteúdo" sobre a forma
->56
e, portanto, em uma revalorização expressiva do informal.
• O romantismo foi caracterizado pela saliê
Romantismo alguns sistemas filosóficos foi dada à intuição e à fantasia, em
e filosofia contraste com os sistemas baseados unicamente sobre a fria razão,
§7 entendida como único órgão da verdade. Neste sentido, todo o
idealismo é uma filosofia romântica.

j,, ( S o m o d e v e s e r d e l i n e a d o e) Em seguida, cumpre determinar a


o p ro b > lem a
forma de arte em que tudo isso se expressa.
f) Por fim, devemos nos perguntar em
d a d e fin iç ã o d o ro m a n tism o que sentido se pode falar e se fala de filosofia
romântica, o que assume grande importân­
Definir o romantismo é tarefa deveras cia neste estudo.
difícil, havendo até quem diga ser impos­ Vejamos a solução desses problemas,
sível. Alguém chegou a calcular terem sido seguindo a ordem em que os propomos.
dadas mais de cento e cinqüenta definições
diferentes desse fenômeno. Mittner recorda
que o próprio F. Schlegel, o fundador do y\ 0e n e s e d o term o
círculo dos românticos, escreveu ao seu ir­ ro m â n tic o
mão que não poderia enviar-lhe sua própria
definição da palavra “ romântico” porque
tinha “ 125 folhas de extensão” ! Deixando A palavra “ rom ântico” tem longa e
os paradoxos, podemos nos orientar com complexa história, que se inicia em período
facilidade na intricadíssima questão, dis­ anterior ao que estudamos, no qual se torna
tinguindo uma série de perspectivas e de técnica.
categorias capazes de determinar os traços A.C. Baugh (autor de conhecida histó­
essenciais do fenômeno do romantismo. ria da literatura inglesa) a resume do seguin­
a) Em primeiro lugar, seria bom expli­ te modo: “ O adjetivo ‘romântico’ aparece
car a gênese etimológica do termo, do ponto pela primeira vez na Inglaterra por volta de
de vista filosófico-lexicográfico. meados do século XVII como termo usado
b) D epois, devem os determ inar os para indicar o fabuloso, o extravagante, o
limites cronológicos e geográficos do fenô­ fantástico e o irreal (como se encontra, por
meno. exemplo, em certos romances de cavalaria).
c) Então será preciso procurar deter­ Foi resgatado dessa conotação negativa
minar sua categoria psicológica ou moral, no decorrer do século seguinte, no qual
como foi chamada, ou seja, o modo peculiar passou a ser usado para indicar cenas e situa­
de sentir e as características psicológicas ções agradáveis, do tipo das que apareciam
próprias do homem romântico. na narrativa e na poesia ‘rom ântica’ (no
d) Depois, é mister determinar qual sentido acima indicado). Gradativamente,
conteúdo ou quais conteúdos conceituais o o termo ‘romantismo’ passou a indicar o
romântico torna seus. renascimento do instinto e da emoção, que o
(Züpltulo primeiro - Genese e características essenciais do romantismo

racionalismo predominante no século XVIII mínimo denominador comum. Em primeiro


não conseguiu suprimir inteiramente” . lugar, pode ser apontado o que constitui
F. Schlegel relacionou o “ romântico” o “ estado de espírito” , o comportamento
com o romance e com aquilo que ele pouco a psicológico, o ethos ou marca espiritual do
pouco viera a significar nas expressões épicas homem romântico.
e líricas medievais, ao romance psicológico, Tal atitude romântica consiste na con­
autobiográfico e histórico moderno. Assim, dição de conflito interior, na dilaceração do
para Schlegel, “ romântica” era a moderna sentimento que nunca se sente satisfeito, que
forma de arte que, como evolução orgânica se encontra em contraste com a realidade e
da Idade Média até a sua época, possuía aspira a algo mais, que, no entanto, se lhe
marca própria, essência peculiar própria, escapa continuamente.
beleza e veracidade próprias, diferentes das A mais eficaz caracterização do roman­
que caracterizavam a grega. tismo como categoria psicológica foi dada
Isso, porém, nos leva a outros proble­ por L. Mittner e, portanto, a referimos em
mas, dos quais devemos falar adiante. suas próprias palavras: “ Entendido como
fato psicológico, o sentimento romântico
não é sentimento que se afirma acima da
3 O s te m p o s e os lu g a re s razão ou sentimento de imediatidade, in­
tensidade ou violência particulares, como
em q u e s e d es en v o lve u também não é o chamado sentimental, isto
o ro m a n tism o é, o sentimento melancólico-contemplativo;
é muito mais um dado de sensibilidade,
precisamente o fato puro e simples da sen­
Como categoria historiográfica (e geo­ sibilidade, quando ela se traduz em estado
gráfica), o romantismo designa o movimen­ de excessiva ou até permanente impres-
to espiritual que envolveu não somente a sionabilidade, irritabilidade e reatividade.
poesia e a filosofia, mas também as artes N a sensibilidade romântica, predomina o
figurativas e a música, que se desenvolveu amor pela irresolução e pelas ambivalên-
na Europa entre fins do século XVIII e a cias, a inquietude e irritabilidade que se
primeira metade do século XIX. comprazem em si mesmas e se exaurem em
Embora possam ser identificados certos si mesmas” .
pródromos desse movimento na Inglaterra, O termo que se tornou mais típico e
o certo é que o movimento apresenta forte quase técnico para indicar esses estados de
marca sobretudo do espírito e do sentimen­ espírito é “ Sehnsucht”, que pode se expres­
to germânicos. O movimento se expandiu sar melhor como “ ansiedade” (os sinônimos
por toda a Europa: na França, na Itália, “ desejo ardente” , “ anseio” ou “ anelo apai­
na Espanha e, naturalmente, na Inglaterra. xonado” são menos significativos).
Em cada um desses países, o romantismo L. Mittner também explica muito bem
assumiu características peculiares e sofreu esse termo com o conceito relativo: “ A
transformações. O momento paradigmático mais característica palavra do romantismo
do romantismo é o que se coloca a cavalo alemão, ‘Sehnsucht’, não é o ‘Heimweh’, a
entre o século XVIII e o século X IX na saudade (‘m al’, isto é, desejo, ‘do retorno’ a
Alemanha, nos círculos constituídos pelos uma felicidade antes possuída ou pelo menos
irmãos Schlegel em Jena e depois em Berlim, conhecida e determinável); ao contrário, é
como a seguir veremos melhor. desejo que nunca pode alcançar sua meta,
porque não a conhece e não quer ou não
pode conhecê-la: é o ‘mal’ (Sucht) ‘do desejo’
(Sehnen). M as o próprio ‘Sehnen’ significa
4 , 7^ c a r a c t e r í s t i c a e s p i r i t u a l com bastante freqüência desejo irrealizável
d o k o m e m ro m â n tico porque indefnível, desejar tudo e nada ao
mesmo tempo; não por acaso “ Sucht” foi
reinterpretado (...) como “ Suchen”, pro­
N o fenômeno que se verifica nesse arco curar; e a “ Sehnsucht” é verdadeiramente
de tempo e nesses países, e sobretudo na a busca do desejo, desejar o desejar, desejo
Alemanha, é possível identificar, embora que é sentido como inextinguível e que, pre­
com as devidas cautelas críticas, algumas cisamente por isso, encontra em si mesmo a
“ constantes” que constituem uma espécie de plena saciedade” .
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e o f o r m a ç ã o d o id e a lis m o

5 «U d é ias fu n d a m e n ta is intrinsecamente, gera todos os fenômenos e,


portanto, também o homem: a força da na­
d o R o m an tism o
tureza, portanto, é a própria força do divino.
Hõlderlin exclama: “ Sagrada natureza! Tu
Isso, porém, ainda não basta. A cate­ és sempre igual, em mim e fora de mim, ao
goria psicológica romântica deve ser ligada divino que está em mim” .
à categoria do conteúdo ideal e conceituai Schelling dirá que a natureza é vida que
do romantismo. Com efeito, no período dorme, é inteligência petrificada, é espírito
de que estam os falando, algum as idéias que se faz coisa visível.
e representações mostram-se no mais das O antigo sentido grego da pbysis e
vezes associadas ao sentimento a que nos da “ natureza” renascentista é retomado e
referimos, embora o romantismo não seja notavelmente potencializado.
um sistema de conceitos, como já destaca­
mos várias vezes. E U O s e n t id o d e “p â n i c o ”
p e l a p e r t e n ç a a o u n o -t o d o

e h y\ s e d e d o infinito
Estreitamente ligado a esse sentido da
Todo romântico tem sede de infinito; natureza está o sentimento de “ pânico” , ou
e aquela “ ansiedade” , que é desejo irre- seja, o sentimento de pertencer ao uno-todo,
alizável, o é precisamente porque aquilo o sentimento de ser um momento orgânico
pelo que anseia, na realidade, é o infinito. da totalidade.
E talvez nunca como nessa época se tenha O todo se reflete de alguma forma no
falado tanto de infinito, entendido nos mais homem, assim como, ao contrário, o homem
diversos modos. se reflete no todo.
O romântico expressa essa tendência Outro trecho de Hõlderlin pode nos
ao infinito também como "Streben” , ou fornecer exemplo mais claro disso: “Ser um
seja, como perene “ tender” que nunca cessa, com o todo: isto é o viver dos deuses; isto
porque as experiências humanas são todas é o céu para o homem. Ser um com tudo o
finitas, ao passo que seu objeto é sempre infi­ que vive e, em feliz esquecimento de si mes­
nito e, como tais, são sempre transcendidas. mo, retornar ao todo da natureza: esse é o
A propósito, é exemplar a razão pela qual se ponto mais alto do pensamento e da alegria,
salva o protagonista do Fausto goethiano, é o pico sagrado da montanha, é o lugar da
uma das criações mais significativas desse calma eterna, onde o meio-dia perde o seu
período: ele se salva precisamente porque mormaço, o trovão a sua voz e o mar, fre-
consumiu a existência nesse perene “ Stre­ mente e espumejante, se assemelha às ondas
ben” (mas disso voltaremos a falar adiante). de um campo de trigo. Ser um com tudo o
O infinito é o sentido e a raiz do finito. que vive! Com essas palavras, a virtude des­
Nesse ponto, tanto a filosofia como pe sua couraça austera, o espírito humano
a poesia estão absolutamente de acordo: a despoja-se do cetro e todos os pensamentos
filosofia deve captar e mostrar a relação do se dispersam diante da imagem do mundo
infinito com o finito, ao passo que a arte eternamente uno, como as regras do artista
deve realizá-la: a obra de arte é o infinito dedicado diante de sua Urânia, bem como
que se manifesta no finito. a fatalidade férrea renuncia ao seu poder, a
morte desaparece da sociedade das criaturas
e a indissolubilidade e a eterna juventude
E U O n o v o s e n t id o d a n a t u f e z a tornam o mundo belo e feliz” .
A natureza assume importância fun­
damental, sendo inteiramente subtraída à >A f u n ç ã o d o g ê n io
concepção mecanicista-iluminista. e d a c r i a ç ã o a r t ís t ic a
A natureza passa a ser entendida como
vida que cria eternamente, na qual a morte O gênio e a criação artística são ele­
nada mais é do que “ artifício para ter mais vados a suprema expressão do verdadeiro
vida” (Goethe). e do absoluto.
A natureza é um grande organismo, Novalis escreve: “A natureza tem ins­
inteiramente afim com o organismo huma­ tinto artístico — por isso, não passa de
no; é jogo móvel de forças que, operando palavrório quando se pretende distinguir
Cãpítulo pYlTYieÍYO - C Ã ê n a s e e c a r a c t e r í s t i c a s e s s e n c i a i s d o r o m a n t is m o

entre natureza e arte. N o poeta, elas se dis­ esclarecedor: quase todos os expoentes de
tinguem quando muito pelo fato de serem destaque do rom antism o tiveram fortes
inteiramente intelectuais e não passionais e, crises religiosas e momentos de intensa re­
por paixão, se tornarem involuntariamente ligiosidade, de Schlegel a Novalis, de Jacobi
fenômenos musicais e poéticos [...]” . Ou a Schleiermacher, a Fichte e a Schelling.
então: “ Sem genialidade, nós todos não N o próprio Hegel, a religião é o momento
existiríamos. Em tudo é necessário o gê­ mais elevado do espírito, superado somente
nio” . Ou ainda: “ A poesia cura as feridas pela filosofia. E a religião por excelência é
infligidas pelo intelecto” . E, por fim: “ O considerada a cristã, embora entendida de
poeta compreende a natureza melhor do variados modos.
que o cientista” .
Para N ovalis, o gênio torna-se até in flu ên cia d o elem en to c lá s s i c o
“ instinto m ágico” , a “ pedra filosofal” do e o u tro s te m a s e s p e c ífic o s
espírito, ou seja, aquilo que pode tornar-se
tudo. Sobre o componente constituído pela
Schelling fará da arte até mesmo, co­ grecidade e sobre a influência do elemento
mo veremos, o órgão supremo da filosofia clássico já falamos acima.
transcendental. Recordamos apenas que se trata de
grecidade revisitada com nova sensibilidade
e amplamente idealizada.
EO O a n s e io p e la lib e r d a d e Quanto a outros temas específicos,
este não é o lugar para o aprofundamento:
Ademais, os românticos nutrem o for­ como, por exemplo, o amor pelas origens,
tíssim o anseio pela liberdade, que para o sentimento nacional, o renascido interesse
muitos deles expressa o próprio fundamento pela Idade Média e, em geral, pela história.
da realidade — e, por isso, apreciam-na em Bastam essas observações, às quais, aliás,
todas as suas manifestações. teremos oportunidade de retornar.
N o Henrique de Ofterdingen, é ainda
Novalis quem escreve: “Toda cultura leva
àquilo que não se pode chamar senão de
liberdade, porquanto com esse termo se 6 y \ p re v a lê n c ia d o "c o n te ú d o "
deva designar não um simples conceito, so b re a fo rm a
mas o fundamento operativo de todo o ser.
Essa liberdade é magistério. O mestre exerce
plenos poderes, de modo planejado e em N o que se refere à forma de arte tipi­
seqüência bem determinada e mediada. Os camente romântica, a característica essen­
objetos de sua arte são de seu arbítrio, pois cial é a que Schlegel já indicara, ou seja, a
ela não é limitada ou impedida por eles. E prevalência do “conteúdo” sobre a forma
precisamente essa liberdade, ou magistério e, portanto, a reavaliação expressiva do in­
ou domínio, constitui a essência e o fer­ formal (de onde o fragmento, o inconcluso
mento da consciência. E nela que se forja e o esboço que caracterizam as obras dos
a individualidade sagrada, a ação imediata autores desse período).
da personalidade. E cada ato do mestre
é, ao mesmo tempo, revelação do mundo
superior, simples e explicado, é palavra de
D eus.” Fichte fará da liberdade o fulcro 7 A s lig a ç õ e s
do seu sistema, e o próprio Hegel verá na e n t r e ro m a n tism o e filo so fia
liberdade a essência do espírito.

j A r e a v a l i a ç ã o d a r e li g iã o Por fim, no que se refere ao romantismo


filosófico, devemos observar que, além de to­
Em geral, a religião é reavaliada, re­ das as perplexidades levantadas por muitos
colocada bem acima do plano ao qual o estudiosos, e além dos equívocos de que ou­
Iluminismo a havia reduzido. N o mais das tros estudiosos foram vítimas, foi Benedetto
vezes, a religião entende-se como relação Croce quem pronunciou a palavra mais clara
do homem com o infinito e com o eterno. sobre o assunto. O romantismo filosófico
Um dado de fato revela-se particularmente “consiste no destaque que alguns sistemas
Primeira parte - O m o v im e n to r o m a n t io e a f o r m a ç ã o d o id e a lis m o

filosóficos dão à intuição e à fantasia, em para dissipar os horizontes iluministas. Aos


contraste com os sistemas que parecem não grandes filósofos idealistas dedicaremos
conhecer outro órgão do verdadeiro além capítulos especiais.
da fria razão, isto é, do intelecto abstrati-
vo. Sem dúvida, não pode haver sistemas
filosóficos que prescindam inteiramente das
formas intuitivas do conhecimento, como
não pode haver quem ignore inteiramente
as formas lógicas. Todavia, com razão se
afirma que Vico foi filosoficamente pré-
romântico, pela vigorosa defesa que fez da
fantasia contra o intelectualismo de Des­
cartes e de toda a filosofia do século XVIII.
E com razão chamam Schelling e Hegel de
‘filósofos românticos’, em contraste com os
kantianos ortodoxos...”
Todo o idealismo, portanto, é filosofia
romântica.
Além d isso, porém , acrescentem os
que os filósofos da época de que estamos
tratando também apresentam conteúdos es­
pecíficos que refletem as idéias gerais de sua
época, do que já falamos (infinito, natureza,
sentimento de pânico, liberdade etc.), tendo,
aliás, contribuído de forma determinante
para formá-las. Alguns escritos filosóficos
de Schelling ou de Hegel não podem ser
entendidos se não forem considerados no
espírito do movimento romântico.
Conhecendo agora as estruturas, os
métodos e os conteúdos próprios do roman­
tismo, podemos passar à caracterização de Caspar David Friedrich, “ Cruz na montanha''
seus expoentes, diferenciando os pensadores (Düsseldorf, Kunstmuseum).
Sobre a revalorização do cristianismo e,
e poetas que se consideraram românticos ou de modo especial, sobre o sentido da cruz
que são identificáveis com eles, dos pensado­ falaremos ainda difusamente no capítulo
res que, mais genericamente, contribuíram que trata de Novalis.
í S a p í t u lo s e g u n d o

Os f urvdadores da (Sscola ^omarvtica:


os S<zklegel, Alovalis, Sckleie^macke.^/
o poeta "Holde^liia
e as posições de Sckillei^ e de C\oetk<^

~ I. y\ c o n s t itu iç ã o —
d o c í r c u l o d o s r o m â n tic o s ,
a r e v i s t a /y \ t k e n a e u m //
e a d i f u s ã o d o ro m a n tis m o

• Jena foi a cidade em que no último lustro do século XVIII se constituiu o cír­
culo dos românticos, cujos animadores foram os irmãos Schlegel, August Wilhelm
e Friedrich; este último fundou em Berlim em 1798 o órgão oficial
do novo movimento, a revista "Athenaeum" (cujas publicações A Escola
cessaram em 1800). Ao movimento aderiram Novalis, Tieck, Wa- romântica
ckenroder, Fichte, Schelling e, principalmente, Schleiermacher. $'

1 5ena publicação cessou logo em 1800). Muito


ativos, os Schlegel promoveram algumas
e o c í r c u lo d o s S c k l e g e J
convenções em Dresden (1798) e em Jena
(inverno de 1799-1800), e vários encontros.
Jena foi a cidade em que se constituiu Ao movimento aderiu Novalis, que foi o
o círculo dos românticos, no último lustro poeta de ponta do grupo. Os Schlegel tam­
do século XVIII. Seus animadores foram bém tiveram contatos com os poetas Ludwig
os irmãos Schlegel: August Wilhelm (1767­ Tieck (1773-1853) e Wilhelm Heinrich Wa-
1845) e Friedrich (1722-1829) um lustro ckenroder (1773-1798), e encontraram-se
mais jovem (e do qual falaremos à parte, com Fichte (1796) e depois com Schelling.
logo em seguida), além de Karoline Michae- M as, em Berlim, foi sobretudo Schleierma­
lis (1763-1809), mulher de August Wilhelm cher quem esteve próximo a F. Schlegel.
Schlegel (que mais tarde separar-se-ia dele Hõrderlin ficou à parte, mas sua poesia e
para se casar com Schelling), que exerceu os pensamentos filosóficos que expressa
poderosa influência inspiradora e fascínio em seu romance Hyperion são tipicamente
extraordinário sobre os amigos (ao passo românticos.
que era muito temida pelos adversários, por O círculo dos Schlegel pronunciara
seus juízos cortantes: Schiller a chamava de uma palavra mágica que expressava a marca
“ M adame Lúcifer” ). Em 1797, em virtude espiritual da nova época. Os próprios adver­
de duro conflito com Schiller, F. Schlegel sários (como Schiller e Goethe) tornaram-se
transferiu-se para Berlim, onde passou a tais em relação aos homens do círculo e de
publicar a revista “ Athenaeum” , que foi o seus excessos ideológicos e pelo seu modo
órgão do novo movimento e cujo primeiro de viver, mas os sentimentos da época os
número saiu em maio de 1798. A revista ligavam necessariamente às idéias de fundo
teve muita fama, mas vida brevíssima (sua do movimento.
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a j- o n n a ç à o d o id e a lis m o

Além disso, o fato de o romantismo — o livro Sobre a Alemanha, de Mada-


expressar perfeitamente as instâncias es­ me de Staèl, em 1813, marca o nascimento
pirituais da época prova-se por sua rápida do romantismo francês e, em seguida, sua
difusão, não apenas na Alemanha, mas difusão européia;
também em toda a Europa: — a Carta semi-séria de Crisóstomo, de
— João Berchet, de 1816, marca o nascimento
as Baladas líricas dos poetas William
Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge, de do romantismo italiano.
1798, com o Prefácio ampliado da segunda Aqui nos ocuparemos do romantismo
edição, de 1800, constituíram o manifesto alemão, indissoluvelmente ligado à história
do romantismo inglês; do pensamento filosófico.

_ ~ II. F V iedricK -S c k le g e l, —
o c o n c e i t o de^ironia^
e a arte. c o m o |orma s upre-vncn d o e s p ír ito

• No pensamento de F. Schlegel (1772-1829) é central a concepção do infinito,


ao qual se pode chegar ou com a filosofia ou com a arte; em ambas nos servimos
de meios finitos, e a grande dificuldade consiste em encontrar o acesso ao infinito
com os meios do finito.
Em filosofia, o único conceito original de F. Schlegel é o de
A ironia "ironia", a qual indica a atitude espiritual que tende a superar e a
e a mediação dissolver progressivamente a inadequação em relação à infinitude
de . de todo ato ou fato do espírito humano, e nela tem um papel
-T ç 1-2 decisivo o elemento "espirituoso" ou "brincalhão" do humor.
Na arte, ao contrário, é apanágio do gênio criador operar
uma síntese de finito e infinito: o verdadeiro artista anula-se como
finito para poder ser veículo do infinito, e neste sentido a arte assume também
um altíssimo significado religioso, porque religião é toda relação do homem com
o infinito.

1 O c o n c e ito d e ^ iro n ia ” culdade: encontrar o acesso ao infinito com


e m se n tid o ro m â n tic o
os meios finitos.
Schlegel tentou se mover em ambas
as direções, mas, em filosofia, criou apenas
um conceito verdadeiramente original, o de
F. Schlegel (1772-1829) partiu do clas­
“ ironia” ; o resto permaneceu fragmentário e
sicismo de Winckelmann (do qual já falamos apenas esboçado. Sua teoria da arte constitui
acima) e das teorias de Schiller (mais à fren­ o melhor que ele deu à sua época.
te), mas evoluiu e deu consistência autôno­ Retomado de Sócrates, seu conceito
ma ao seu pensamento, sobretudo a partir de “ ironia” é profundamente ampliado e
da leitura da Doutrina da ciência de Fichte, modificado. Em Sócrates a “ ironia” era a
e com Schelling. A concepção do infinito é simulação do jogo do adversário, com o
idéia central do seu pensamento, bem como objetivo de refutar o próprio adversário me­
de todo o pensamento romântico. diante suas próprias armas. Já em Schlegel
Ora, podemos chegar ao infinito pela a ironia supõe outros horizontes teóricos:
filosofia ou pela arte. M as, tanto numa como pressupõe a concepção do infinito como o
na outra, nos valemos de meios finitos. E objetivo ao qual se deve chegar e a inade­
aqui reside precisamente a verdadeira difi­ quação de todo pensamento que vise ao
Capítulo segundo - O s f u n d a d o r e s d a é ^ s c o la român+ica

objeto do pensamento. Assim, o ‘espirituo­


so ’ (no sentido de humor) com que, no
fim, o pensamento ironiza a si mesmo e se
suprime é precisamente a admissão profun­
damente justa e grandiosa de sua própria
impotência. Com isso, mediatamente, é a
reabilitação do irracional limitado e expulso
pelo pensamento. Trata-se de ‘pressagioso
girar em tom o do inabordáveP, de salto do
pensamento no vazio, que certamente nunca
levará a terreno sólido, mas que carrega
consigo a consciência imediata desse terreno
sólido, isto é, aquele que só é real enquanto
o pensamento abandona conscientemente a
si mesmo. A forma desse ‘abandono de si’
é a ironia, o espirituoso (o humor), o riso
sobre si mesmo” .

2 A a r te co m o sín te se
Fnedrich Schlegel (1772-1829)
criador do círculo dos românticos d e fin ito e in fin ito
e fundador da revista “Atbenaeum
Para ele a arte é síntese de finito e infinito.
Por tudo o que dissemos, é evidente que
essa superação do espírito humano e o pôr-
infinito, enquanto é sempre pensamento se gradualmente acima dos limites e de toda
determinado. Ora, a ironia se insere nesse finitude valem não apenas para a filosofia,
contexto com o a atitude espiritual que mas também para a ética, para a arte e para
tende a superar e dissolver esse “determi­ todas as formas da vida espiritual, consti­
n ado ” e, portanto, tende a impelir sempre tuindo autêntica marca do romantismo.
para mais além. A ironia, portanto, tende Segundo Schlegel, a arte é obra do
a suscitar um sentimento de contradição gênio criador que, precisamente por ser
não eliminável entre condicionado (finito) gênio, opera a síntese entre finito e infinito.
e incondicionado (infinito) e, ao mesmo O artista, o verdadeiro artista, é aquele
tempo, o desejo de eliminá-la e, por isso, o que se anula como finito para poder ser
sentimento da “ impossibilidade e necessida­ veículo do infinito. E, como tal, desenvolve
de da perfeita m ediação” ao mesmo tempo. elevadíssima missão entre os homens. Assim
Desse modo, a “ ironia” posiciona-se sem­ entendida, ou seja, como síntese de finito
pre acima de todo o nosso conhecimento, de e infinito, a arte assume também aspecto
toda a nossa ação ou obra. Em conclusão, a religioso, porque religião é “ toda relação
nova “ ironia” posiciona-se como o sentido do homem com o infinito” , e toda religião
de inadequação em relação à infinitude é mística, porque é “vida em Deus” .
de todo fato ou ato do espírito humano, Por fim, Schlegel apontou a “ indivi­
exercendo nela papel decisivo o elemento dualidade” humana que se desdobra como
do “ espirituoso” ou do “ brincalhão” , ou a essência da moralidade. A máxima que
seja, do humor. melhor resume seu pensamento a esse res­
Esse conceito de “ ironia” é quase o peito é a seguinte: “ Pensa-te como ser finito
pendant, de tonalidade aparentemente clas- educado para o infinito, e então pensarás
sicizante, mas na realidade profundamente um homem.”
romântico, do sentimento sério da Sehnsu- Em 1808, Schlegel se converteu e
cht (ansiedade), que descrevemos. abraçou o catolicismo. Era o desembocar
O filósofo Nicolai Hartmann nos deu flagrante da crise religiosa que grassava
disso caracterização muito eficaz: “ Schlegel praticamente em todos os românticos, mas
estava profundamente convicto da inex- que ele, diversamente dos outros, quis e
primibilidade e da incompreensibilidade soube levar às suas extremas conseqüências.
mística de tudo o que é último e autêntico
18
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o id e a lis m o

III. A) o v a l is :
d o i d e a l i s m o m ã g i c o a o cr is tia n is m o
c o m o r e l i g i ã o un iversal

• Tomando os movimentos do idealismo de F


O sentido (Friedrich von Hardenberg, 1772-1801) elabora a concepção do
mágico do real idealismo mágico, o qual divisa a verdadeira magia na atividade in-
§1 consciente produtora do eu que gera o não-eu: a verdade reside no
substrato mágico do real, ou seja, na fábula, no sonho e na poesia.
• A seguir, Novalis passa do idealismo mágico a uma visão cristã, dando início
a uma revalorização radical da Idade Média católica: aqui ele vê realizada a feliz
unidade destruída por Lutero, considerado em certo sentido
0 vajor como precursor do intelectualismo iluminista. Apenas a mensa-
universal 9em cristã sabe explicar o sentido da morte, e assim também a
do cristianismo altíssima mensagem grega de serenidade e harmonia acena ao
-> § 2 cristianismo.

1 O id e a lism o m á g ic o : portanto, é a verdadeira concepção mágica,


a r t e e filo so fia c o m o m a q i a
porque mostra que tudo deriva do espírito e,
portanto, que o espírito tudo domina e é o
poder soberano absoluto. “ Eu = não-eu: tese
suprema de toda ciência” : eis o princípio que
N ovalis (cujo verdadeiro nome era está na base do “ idealismo mágico” .
Friedrich von H ardenberg) nasceu em Assim , é com preensível a m áxim a
1772 e morreu em 1801, com apenas vinte que resume o significado do romance Os
e nove anos, consumido pela tuberculose. discípulos de Sais: “ Aconteceu de um deles
Foi considerado a mais pura voz poética levantar o véu da deusa de Sais. Pois bem,
do romantismo e, ao mesmo tempo, foi o que viu ele? Maravilha das maravilhas,
pensador (embora neste aspecto fosse muito viu-se a si mesmo” .
mais inferior). N a natureza e na divindade, assim
O pensamento de N ovalis, como se como no eu, há força idêntica, o mesmo
expressa sobretudo nos Fragmentos, tem seu espírito.
fulcro de novidade no chamado “ idealismo A filosofia é magia; mas a arte o é mais
mágico” . Fichte, como veremos, opõe ao re­ ainda. A poesia capta verdadeiramente o
alismo o idealismo gnosiológico-metafísico. absoluto, aliás, é o absoluto: “ A poesia é
O realista faz do objeto o prius e a partir o real verdadeiramente absoluto. Esse é o
dele procura derivar o sujeito; já o idealista núcleo da minha filosofia.”
faz do eu e do sujeito o prius e dele procu­ Com base nesse conceito é que foi
ra derivar o objeto. Analogamente, para construído o romance (inacabado) Henrique
Novalis, que acolheu as idéias de Fichte, de Ofterdingen, no qual se misturam sonho
transformando-as segundo suas exigências, e realidade, prosa e poesia. Trata-se de um
o realismo mágico era o antigo naturalismo “ romance de form ação” ou “ pedagógico” ,
ocultista, ou seja, aquele realismo que via no qual o protagonista forma-se através de
a magia predominantemente no objeto; o várias experiências e encontros, e no qual
idealismo mágico é a nova concepção, que o substrato mágico do real, a fábula, o
vê a verdadeira magia na atividade produ­ sonho e a poesia revelam ser a verdade. E
tora inconsciente do eu que gera o não-eu. desde a primeira página aparece em sonho
A nova concepção idealista da realidade, para o protagonista a “ flor azul” , que lhe
Cãpítulo SCgUTldo - CDs f u n d a d o r e s d a E s c o l a r o m â n t ic a

escapa exatamente quando lhe parece mais considerava como elevadíssima mensagem
próxima, e que constitui o símbolo daquele de serenidade e harmonia. Entretanto, se­
“ não sei quê” sempre perseguido e sonha­ gundo N ovalis, sem a mensagem cristã, a
do, mas nunca alcançado: a “ flor azul” é a única que sabe explicar o sentido da morte,
representação viva da romântica Sehnsucht, aquela harmonia não seria suficiente. Num
que nesse romance alcança expressões pa­ dos Hinos à noite, ele faz vir da Hélade um
radigmáticas. cantor (que sim boliza ele próprio) para
venerar o Cristo que veio ao mundo: “ De
uma costa distante, nascido sob o sereno
O c ristia n ism o céu da Hélade, um cantor veio à Palestina,
c o m o re lig iã o u n iv e rsal ofertando todo o seu coração ao menino
m iraculoso” , aquele menino que dava novo
sentido à m orte, trazendo-nos a “ vida
Novalis, porém, passou do idealismo eterna” .
mágico à visão inspirada no cristianismo, dan­ A “ noite” dos Hinos constitui impor­
do início a uma reavaliação radical da Idade tante símbolo: é a antítese daquela mes­
Média católica (no ensaio A cristandade ou a quinha “ luz” do intelecto iluminista, que
Europa), na qual via realizada a feliz unidade ilumina mediocridades, ao passo que a Noite
destruída por Lutero, considerado em certo é Absoluto. (Trata-se de uma retomada da
sentido como o precursor do tedioso, árido e célebre metáfora da “ noite” cara aos místi­
estéril intelectualismo iluminista. “ Eram be­ cos). Nesses Hinos, a cruz de Cristo ergue-se
los e esplêndidos os tempos em que a Europa triunfalmente, símbolo da vitória sobre a
era terra cristã... ” — assim começa o ensaio, morte: “ Incombustível é a cruz, bandeira
que colheu de surpresa o próprio Schlegel e triunfal da nossa estirpe” : símbolo triunfal
que estava destinado a dar grande impulso porque é a única que sabe nos ajudar na dor
à reavaliação romântica da Idade Média. e na angústia e, como já dissemos, porque
Ele subordinou ao cristianismo a pró­ é a única que sabe explicar o sentido da
pria m ensagem grega, que, no entanto, morte.

Novalis (1772-1801)
representou a voz lírica
mais pura do círculo
reunido pelos Schlegel
em torno da revista “Athenaeum'
Com a esplêndida imagem
da “flor azul inatingível"
criou o símbolo da romântica
Sehnsucht (anseio do infinito).
Primeira parte - CD m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o i d e a lis m o

“ IV. .Sckleie.^mache.r: zz
a i n t e r p r e t a ç ã o d a r e lig iã o ,
o r e l a n ç a m e n t o d e 1-^1a tã o
e a U.arvne.nê-iAÍ\<zcK

As contribuições • Schleiermacher (1768-1834) deve ser lembrado principal­


de mente por:
Schleiermacher a) sua interpretação romântica da religião;
■^§1 b) o grande relançamento de Platão;
c) algumas idéias antecipatórias no âmbito da hermenêutica.
• a) A religião é uma relação do homem com a totalidade, é
A religião intuição e sentimento do infinito. A religião aspira a intuir o uni­
como intuição verso, tende a ver no homem, e em todas as outras coisas finitas,
do infinito o infinito, a imagem, a marca, a expressão do infinito: a ação do
infinito sobre o homem é, portanto, a intuição, e a resposta do
sujeito é o sentimento de total dependência do infinito.
• b) Importância histórica tem a grande tradução de Platão que Schleiermacher
antes projetou com F. Schlegel e depois levou a termo sozinho. A necessidade de
voltar a Platão havia sido percebida pelos românticos, principal-
o retorno mente depois da publicação da Doutrina da ciência de Fichte,
a Platão e a influência da tradução schleiermacheriana dos diálogos de
->§ 3 Platão foi enorme, tanto que eles se puseram de novo como um
dos pontos de referência indispensáveis.
• c) Por fim, Schleiermacher foi um precursor da hermenêutica filosófica con­
temporânea, pois com ele a hermenêutica, de simples técnica de compreensão
e interpretação dos vários tipos de escritos, começa a se tornar
a hermenêutica compreensão da estrutura interpretativa que caracteriza o conhe-
filosófica cer como tal: é preciso compreender o todo para compreender
§4 a parte, e em geral é preciso que objeto interpretado e sujeito
que interpreta pertençam a um mesmo horizonte "circular".

importância sobretudo em relação à teo­


A im p o rtâ n c ia logia dogmática protestante. Entre 1804 e
1828 traduziu os diálogos de Platão (com
d e S c k le ie rm a c k e r
introdução e notas). Postumamente, foram
publicadas suas aulas relativas à Dialética,
à Ética e à Estética, além de outros temas,
Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher entre os quais reveste-se de particular im­
nasceu na Breslávia, em 1768. Em 1797, em portância a Hermenêutica, na qual se revela
Berlim, conheceu F. Schlegel e uniu-se ao um precursor.
círculo dos românticos, colaborando com o São três as razões pelas quais Schleier­
“ Athenaeum” . Posteriormente, ensinou em macher deve ser recordado:
Halles e, a partir de 1810, na Universidade 1) por sua interpretação romântica da
de Berlim. As obras que lhe deram maior religião;
notoriedade foram os D iscursos sobre a 2) pelo grande relançamento de Platão;
religião (1799) e os Monólogos (1800). Em 3) por algumas idéias antecipadoras de
1822, publicou a Doutrina da fé, que tem sua Hermenêutica.
C a p i t u l o S e g u n d o - O s f u n d a d o r e s d a í S s c o l a r o m â n t ic a

! A in te r p r e ta ç ã o A ação do infinito sobre o homem, por­


r o m â n tic a d a r e lig iã o tanto, é a intuição; o sentimento é a resposta
do sujeito: é o estado de espírito, ou seja, a
reação da consciência. Este sentimento que
acompanha a intuição do infinito é sentimen­
A religião é a relação do homem com to de total dependência do sujeito em relação
a Totalidade (com o Todo). Ora, a Totali­ ao infinito. O sentimento religioso, portanto,
dade e o Todo também se relacionam com é sentimento de total dependência do homem
a metafísica e a moral. M as isso, segundo (finito) em relação à Totalidade (infinita).
Schleiermacher, foi fonte de graves equívo­ Essa idéia vale para todas as formas de
cos, que fizeram penetrar indevidamente na religião. M as, com o passar dos anos, Sch­
religião grande quantidade de idéias filosó­ leiermacher também acabou por privilegiar
ficas e morais. M as a metafísica diz respeito o cristianismo. Cristo passou a aparecer-lhe
ao pensamento que se vincula à Totalidade, sempre mais como o mediador e o redentor
ao passo que a ética diz respeito ao agir em e, portanto, acabou por assumir a seus olhos
relação à Totalidade (as simples ações vistas as características divinas que ele negara ini­
como “ deveres” deduzidos da natureza do cialmente.
homem em relação com o universo). M as
a religião não é pensamento nem atividade
moral. Então, o que é ela? E intuição e 3 O g r a n d e re la n ç a m e n to
santimento do infinito e, como tal, possui
fisionomia bem precisa, que se distingue d e P la tã o
tanto da metafísica como da ética.
Eis as palavras precisas de Schleierma­
cher: a religião “ não aspira a conhecer e a Teve importância histórica a grande
explicar o universo em sua natureza, como a tradução de Platão, que Schleiermacher
metafísica, nem aspira a continuar seu desen­ projetou, inicialmente com Schlegel, mas que
volvimento e aperfeiçoá-lo através da liber­ depois teve de acabar sozinho, seja porque
dade e da vontade divina do homem, como a Schlegel era filologicamente menos prepara­
moral. Sua essência não está no pensamento do, seja porque era mais dispersivo.
nem na ação, e sim na intuição e no senti­ Sobretudo depois da publicação da
mento. Ela aspira a intuir o universo; quer Doutrina da ciência de Fichte, os românticos
ficar contemplando-o piedosamente em suas sentiram a necessidade de voltar a Platão.
manifestações e ações originais; quer fazer- Isto Schlegel escrevia expressamente
se penetrar e preencher por suas influências e Schleiermacher reafirmava de modo pro-
imediatas, com passividade infantil. Assim, gramático em carta ao seu editor: “ Tenho
ela se opõe a ambas em tudo o que constitui sempre em mim a secreta inclinação para
sua essência e em tudo o que caracteriza seus a crítica; é exercício muito útil para mim
efeitos. Em todo o universo, elas não vêem mesmo, realizado discretamente. E creio
nada mais além do que o homem no centro até que, com isso, pude fazer algo de bom e,
de toda relação, como condição de todo ser aqui e acolá, pude exercer papel de mediador
e causa de todo devir; esta, porém, tende a entre as partes em conflito; assim como mui­
ver no homem, não menos que em todas as tas coisas, no meu ‘Platão’, desenvolverão
outras coisas particulares e finitas, o infinito, a função de mediação entre as velhas e as
a imagem, a marca, a expressão do infinito” . novas concepções da filosofia” .
E diz mais: “ A intuição do universo Ele tentou operar essa “ mediação” so­
[...] é a pedra angular de todo o meu dis­ bretudo na Dialética, em que Platão funciona
curso, é a fórmula mais universal e mais como contrapeso ao racionalismo extremo
elevada da religião, por meio da qual podeis dos sistemas idealistas. M as a Dialética foi
descobrir todas as suas partes, e se podem publicada postumamente e não teve influên­
determinar sua essência e seus limites do cia sobre seus contemporâneos, enquanto era
modo mais exato. Toda intuição deriva da enorme a influência da tradução dos diálogos
influência do objeto intuído sobre o sujeito platônicos que, por mérito de Schleierma­
que intui, da ação originária e independente cher, se impuseram novamente como ponto
do primeiro, que é acolhida, compreendida de referência indispensável (basta registrar
e concebida pelo segundo, em conformidade que até hoje a tradução de Schleiermacher
com sua natureza” . continua sendo reimpressa e reproposta).
Primeira parte - O m o v im e n to ^om cm tico e a f o r m a ç ã o d o id e a lis m o

4 O r ig e n s macher foi o primeiro a teorizar com certa


clareza aquilo que as teorias modernas
d a K e rm e n ê u tic a filo só fic a
chamarão de ‘círculo hermenêutico’. Com
efeito, no fundo do problema proposto pelo
círculo hermenêutico encontra-se tanto a
Por fim, o nascimento da “ hermenêu­ questão da totalidade do objeto a interpre­
tica filosófica” contemporânea revelou em tar como, mais amplamente, a questão da
Schleiermacher um autêntico precursor totalidade maior à qual, em modo que deve
dessa ciência. Com ele de fato, no filosofo, ser determinado e que constitui precisamen­
além de simples técnica de compreensão e, te a questão de maior interesse filosófico,
portanto, de interpretação dos vários tipos pertencem tanto o objeto como o sujeito
de escrito (por exemplo, da Sagrada Escri­ da operação de interpretação. Em Schleier­
tura e de seus significados), a hermenêutica macher, esse círculo apresenta-se definido
começa também a se tornar compreensão em suas duas dimensões fundamentais (a .
em geral da estrutura de interpretação que pré-conhecimento necessário da totalidade
caracteriza o conhecimento enquanto tal. da obra a interpretar; b. pertença necessária
É preciso compreender o todo para da obra e do intérprete ao mesmo e mais
poder compreender a parte e o elemento e, vasto âmbito), embora ele detenha mais a
ainda mais geralmente, é preciso que o texto atenção na primeira dimensão” .
e o objeto interpretados e o sujeito inter- M ais à frente veremos amplamente
pretante pertençam ao mesmo horizonte de como se desenvolveu o segundo ponto e
modo, por assim dizer, circular. como a estrutura hermenêutica se tornou
G. Vattimo, que estudou acuradamente a interpretação de toda a experiência hu­
esse ponto, escreve o seguinte: “ [...] Schleier- mana. [3]

§riet>n($ Sdjfeiertttadjer^

lítemífdjet

Friedrich Schleiermacher (1768-1834),


criador do conceito romântico de religião
d « r f f í i e f o M i e .
como sentimento de radica! dependência
da Totalidade.
A direita, o frontispício de um livro
que reúne suas obras-póstumas filosóficas.
Capitulo Segundo - O s f u n d a d o r e s d a £ s c o l a r o m â n t ic a

V. -Holderl in
T • | I V_/ I V-- r I I » \

e. a d i v i n i z a ç ã o d a n a t u r e z a

• Os temas tipicamente românticos que ressoam em HõlderlinOs temas


(1770-1843), hoje considerado um dos máximos poetas alemães, românticos
são o amor pela grecidade, o primado espiritual da beleza e da da poesia
poesia como únicas capazes de captar o infinito-uno, o forte sen­ de Hõlderlin
timento de pertença a este "todo" e a divinização da natureza, ^ § 1
compreendida como origem de tudo (deuses e homens).

1 LAm p o e t a t i p i c a m e n t e mais nos interessa aqui. Trata-se de uma espé­


u ~.. n cie de “ romance de formação” , concebido em
r o m â n t ic o estilo epistolar, no qual a personagem “ se for­
m a” através do seu “ andar pelo mundo” (a
romântica Wanderung) e através de uma série
Friedrich Hõlderlin (1770-1843) foi de experiências dramáticas. Hiperion é um
amigo de Schelling e de Hegel em Jena, grego do século XVIII que queria lutar pela
mas não se ligou ao círculo schlegeliano independência de sua pátria dominada pelos
dos românticos. E, no entanto, sua poesia, turcos e para fazer renascer a antiga Grécia,
como já observamos, apresenta os traços mas que se dá conta de que os gregos de seu
típicos do romantismo. Viveu afastado de tempo são bem diferentes dos antigos. A essa
todos, vítima de trágico destino de loucura amarga desilusão, acrescenta-se a morte de
que, manifestando-se inicialmente em forma sua amada Diotima, depois do que ele se refu­
de grave crise, tornou-se depois estado per­ gia na Alemanha, onde, no entanto, encontra
manente a partir de 1806, ou seja, durante incompreensão total. Por fim, só encontra
cerca de metade de sua vida. Depois de paz refugiando-se no seio da divina natureza.
longas incertezas e incompreensões, hoje E seria exatamente dessa concepção da natu­
Hõlderlin é julgado como um dos maiores reza que Schelling partirá para superar Fichte.
poetas alemães. Papel determinante nessa
reavaliação teve o filósofo Heidegger, que
desenvolveu interpretações finíssimas da
poesia hõlderliniana.
O am or pela grecidade, o prim ado
espiritual da beleza e da poesia como as
únicas capazes de captar o infinito-uno, o
forte sentimento de pertença a esse “ tudo”
e a divinização da natureza, entendida como
origem de tudo (deuses e homens), esses são
os temas tipicamente românticos que ecoam
em Hõlderlin. Ele retomou também algumas
temáticas ligadas ao cristianismo (basta ver
os hinos cristológicos: Pão e vinho, O único
e Patmos), mas realizou estranha mistura,
concebendo a venerada figura de Cristo
como um deus ao no estilo dos deuses da
Grécia, e considerando-se a si mesmo como
novo profeta (quase como um novo João,
destinado a um novo Apocalipse).
Hiperion ou o eremita na Grécia (cujo Friedrich Fíòlderlin (1770-1843)
primeiro esboço remonta a 1792 e a elabora­ expressou admiravelmente
ção definitiva a 1797-1799) é o romance que temáticas e instâncias românticas.
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o id e a lis m o

V. 5ckiller:
a c o n c e p ç ã o d a ^ a l m a b e l a /;
e d a e d u c a ç ã o estática

Beleza • O motivo inspirador de Friedrich Schiller (1759-1805), o


e liberdade grande poeta e dramaturgo, é constituído pelo amor à liber­
—> § 2 dade em todas as suas formas essenciais, e a mais alta escola de
liberdade é a beleza, pela função harmonizadora que ela exerce.
Ora, quem consegue cumprir o dever com naturalidade espontâ­
nea, requerida justamente pela beleza, é a "alma bela", isto é, a
A essência alma dotada daquela graça que harmoniza instinto e lei moral.
da poesia
"sentim ental " Portanto, para tornar o homem realmente racional torna-se es­
-^ § 3 sencial a educação estética, que é educação à liberdade mediante
a liberdade.

1 V id a e obras ral. A Revolução Francesa e seus resultados


convenceram Schiller de que o homem ainda
não estava preparado para a liberdade, e
Friedrich Schiller nasceu em Marbach, que a verdadeira liberdade é a que está se­
em 1759, e morreu em 1805. diada na consciência. M as como se chega à
Em sua vida, podemos distinguir três liberdade? Schiller não tem dúvidas de que
períodos bem claros. N o primeiro período, a mais alta escola de liberdade seja a beleza,
ele foi um dos Stürmer de maior destaque em virtude da função harmonizadora que ela
(como o provam seus dramas Os salteado­ desempenha: “ só se chega à liberdade atra­
res, A conjura de Fiescbi em Gênova, Intriga vés da beleza” — eis o credo schilleriano.
e amor e Dom Carlos). A partir de 1787, No escrito Sobre a graça e a dignidade,
dedicou-se a rigorosos estudos de filosofia Schiller cria a célebre figura da “ alma bela”
(lendo Kant a fundo) e de história durante (die schõne Seele), destinada a grande reper­
uma década (estudos que lhe granjearam cussão na época romântica. A “ alma bela”
uma cátedra de história em Jena). N a última é aquela que, superando a antítese kantiana
fase, volta ao teatro, com a trilogia de Wal- entre inclinação sensível e dever moral, con­
lenstein (concluída em 1799), com Maria segue cumprir o dever com naturalidade
Stuart (1800) e com Guilherme Tell (1804). espontânea, requerida precisamente pela
Para a história da filosofia, interessam sobre­ beleza. A “ alma bela” , portanto, é a alma
tudo os escritos do período intermediário, dotada daquela “ graça” que harmoniza
particularmente Sobre a graça e a dignidade “ instinto” e “ lei m oral” .
(1793), Cartas sobre a educação estética N as Cartas sobre a educação estética,
(1793-1795) e Sobre a poesia ingênua e Schiller precisa que há dois instintos funda­
sentimental (1795-1796). mentais no homem: um “ instinto material”
e um “ instinto voltado para a forma” ; o pri­
meiro está ligado ao ser sensível do homem
e, portanto, à materialidade e à temporali-
2 .. .7^ b e l e z a dade; o segundo está ligado à racionalidade
. . . . . .
c o m o e s c o la d e lib e rd a d e do homem. A composição da antítese entre
os dois instintos não deve ocorrer sacrifi­
cando totalmente o primeiro em benefício
A marca espiritual de Schiller é cons­ do segundo, porque assim ter-se-ia forma
tituída pelo amor à liberdade em todas as sem realidade, e sim harm onizando-os
suas formas essenciais, ou seja, a liberdade mediante o que ele chama “ o instinto do
política, a liberdade social e a liberdade mo­ jogo” (recorde-se o kantiano “ jogo livre”
Capítulo segundo - O s f u n d a d o r e s d a í S s c o l a r o m a n t ic a

das faculdades), que precisamente medeia próprio natureza e, portanto, expressão ime­
a realidade e a forma, a contingência e a diata da natureza. Já o poeta “ sentimental” ,
necessidade. Esse jogo livre das faculdades que é o poeta moderno, não é natureza, mas
é a liberdade. Schiller também chama o sente a natureza, ou, melhor ainda, reflete
primeiro instinto de “ vida” , o segundo de sobre o sentir, e nisso se alicerça a comoção
“ form a” e o jogo livre de “ forma viva” , e poética. Escreve Schiller: “Aqui, o objeto
esta é a beleza. Para tornar o homem ver­ é referido a uma idéia, e sua força poética
dadeiramente racional, é preciso torná-lo reside apenas nessa referência. O poeta
“ estético” . A educação estética é educação sentimental, portanto, está sempre diante de
para a liberdade através da liberdade (por­ duas representações e sentimentos em luta,
que a beleza é liberdade). tendo a realidade por limite e a sua idéia por
infinito. E o sentimento misto que ele suscita
refletirá sempre essa dupla fonte.”
Os fermentos rom ânticos são mais
3. P o e s ia in g ê n u a que evidentes nessa concepção. O próprio
e p o e s ia se n tim e n tal Goethe, como todos os poetas modernos,
contra as intenções de Schiller e as apa­
rências exteriores, com base nessa análise não
N o terceiro ensaio importante, Sobre a podia deixar de ser catalogado como poeta
poesia ingênua e sentimental, Schiller ilustra “ sentimental” . O cânon da beleza clássica
uma tese interessante. A poesia antiga era não podia mais realizar-se imediatamente
ingênua porque o homem antigo agia como na dimensão da natureza, mas apenas ser
unidade harmônica e natural e “ sentia natu­ “ buscado” através de itinerário mediato,
ralmente” : em suma, o antigo poeta era ele ou seja, como ideal romântico.
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o id e a lis m o

vi. ao e tke,
s u a s r e l a ç õ e s c o m o ro m a n tis m o
e a c o n c e p ç ã o d a natureza

Posição crítica • Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o maior poeta


em relação alemão, foi o principal dos Stürmer, mas, a partir de 1775, quis
repropor os cânones clássicos da beleza. Condenou os românticos,
aos românticos
-^§1 mas não com a mira na alma do movimento, e sim nos excessos
do fenômeno romântico.
A concepção • Importante é sua concepção da natureza, co
da natureza como forma de organicidade impelida às conseqüências extremas:
—> § 2 a natureza é toda viva, até nos mínimos particulares, a totalidade
dos fenômenos é produção orgânica da "forma interior", e as
diversas formações naturais derivam de uma polaridade de forças (contração e
expansão), seguindo um progressivo crescimento e elevação.
A importância • Dois personagens de Goethe tiveram o privilégio de as­
de Wilhelm cender a símbolos: Wilhelm Meister, protagonista do mais belo
Meister exemplo de "romance de formação", ou seja, de desenvolvimen­
e de Fausto to espiritual, e Fausto, tornado personagem eterna, cuja chave
->§3-4 interpretativa consiste no encontro entre sua tensão incessante
e o amor divino que vem em seu auxílio.

1 ;A s re la ç õ e s gostava dos descomedimentos ligados ao


c o m o ^ S t u r m un d V rcx n g " movimento do fenômeno de imitação do­
entia a que Werther havia dado lugar, não
apenas no plano literário.
Johann Wolfgang von Goethe (1749­ Já o Goethe do período posterior quis
1832) é o maior poeta alemão. Ele resume ser clássico, repropondo os cânones clássicos
em si toda uma época, com suas dificuldades da beleza. Dizia que quem quer fazer algo
e suas aspirações. Diferentemente de Schiller, de grande deve, como os gregos, ser capaz
não dedicou obras específicas à filosofia; de elevar a natureza real à altura do espírito.
aliás, fez questão de manter certa distân­ Na realidade, o “classicismo” de Goe­
cia em relação aos filósofos de profissão. the nada mais é do que o resultado da força
Seus escritos, todavia, contêm numerosas decomposta do Sturm und Drang, ordenada
idéias filosóficas e algumas de suas obras pela forma e por novo sentido do “ limite” ,
tornaram-se verdadeiros símbolos para os e, na realidade, é romantismo.
românticos. Por isso, devemos tratar delas, Goethe condenou os românticos, não
ainda que brevemente. a alma do movimento (porque também nele
Inicialmente, como já dissemos, Goethe vivia uma parte daquela alma); condenou os
foi um dos Stürmer, aliás, o principal (e a excessos do fenômeno romântico.
esse período remontam obras fam osas, co­
mo o Gótz von Berlichingen, o Prometeu, As
dores do jovem Werther, o primeiro Fausto 2 /\Jature 2 a , TDe-us e a r t e
e o primeiro Wilhelm Meister). É verdade
que procurou acuradamente minimizar a
importância do movimento e do papel por N o que se refere às temáticas especí­
ele desempenhado; entretanto, confessa ter ficas, devemos recordar em primeiro lugar
contribuído para ele. N a realidade, não a concepção goethiana da natureza, que
Capitulo Segundo - CDs f u n d a d o r e s d a (S -sco \a r o m â n t ic a

é uma form a de organicism o levado às 3 ^ W ilk e lm /v A eisfer"


últimas conseqüências. A natureza é toda com o Rom ance.
viva, até em seus mínimos particulares. A
totalidade dos fenômenos é vista como pro­ d e f o r m a ç ã o e sp iritu a l
dução orgânica da “ forma interior” . Uma
polaridade de forças (contração e expansão)
origina as diversas formações naturais, que Entre suas obras, especialmente duas ti­
assinalam acréscimo e produzem elevação veram o privilégio de se tornarem símbolo: o
progressiva. Wilhelm Meister e, mais ainda, o Fausto.
Sua concepção de Deus é predominan­ A primeira é o mais belo exemplo de
temente panteísta, mas sem rigidez dogm á­ “ romance de form ação” ou de desenvol­
tica. Com efeito, ele disse ser “ politeísta” vimento espiritual. Através de uma série
como poeta e “ panteísta” como cientista; simbólica de experiências artísticas, Wilhelm
mas acrescentou haver espaço, pelas exi­ encontra-se por fim a si mesmo, realizan­
gências de sua pessoa moral, também para do-se mediante atividade prática, ou seja,
um Deus pessoal. inserindo-se na sociedade de modo factual.
Para Goethe, o “ gênio” é “ natureza que Para Wilhelm, as experiências artísticas
cria” , e a arte é atividade criadora e criação não foram puramente decepcionantes, mas
como a natureza, e até acima da natureza. também redundaram em potencialização das

johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) fui o grande dominador da era romântica
com sua poesia, seu estilo de vida e seu pensamento.
Teve também influencia extraordinária íobre a política cultural da época.
Este belo retrato de Goethe sobre o fundo da campanha romana,
executado por jobann Heinnch Wilhelm Tischbein em 1787.
encontra-se no Stádelsches Kunstinstitut de hrankfurt.
28
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o id e a lis m o

energias próprias das atividades da última Quem se afana em perene tender,


fase (o romance reflete amplamente o pró­ esse nós podemos salvar!
prio Goethe que, de fervoroso Stiirmer, pas­
sara ao serviço do governo de Weimar). Em carta de 6 de junho de 1831 a
Schlegel julgou o romance como algo Eckermann, Goethe escreve: “Nesses versos
comparável à Revolução Francesa, ou seja, está contida a chave da salvação de Fausto” .
como expressão de uma tendência do século. E, segundo ele, a chave está no encontro
L. Mittner assim o define: “ O romance entre o incessante tender de Fausto, por
[...] deve ser entendido como tentativa de um lado, e o amor divino, por outro: “ No
realizar, no plano artístico, o que era irrea- próprio Fausto (há) atividade sempre mais
lizável no plano econômico-político real; de elevada e mais pura até o fim, e do alto (há)
fato, como o Fausto, ele é um verdadeiro o amor eterno que lhe vem em socorro” .
uno-todo, uno diverso em si mesmo, já que Goethe conclui, destacando expressamente:
abrange vários mundos sociais e éticos bem “ Isso está em perfeita harmonia com a nossa
fechados em si, mas que também estão ideal­ representação religiosa, segundo a qual nós
mente e até realmente relacionados entre si, não nos tornamos bem-aventurados median­
pelo menos no sentido de que do menor de te nossas próprias forças, e sim mediante a
tais mundos sempre se desenvolvem mundos graça divina que sobrevêm” .
maiores, que por fim deveriam abranger Trata-se de palavras que restituem ao
toda a realidade cultural e social da época personagem sua estatura romântica.
goethiana” .
Hegel fará algo semelhante, no mais
elevado plano filosófico, em sua Fenomeno­
logia do Espírito, que, como veremos, narra
as experiências da própria consciência que,
através das peripécias morais e espirituais da
história universal, chega à autoconsciência
e ao saber absoluto.

O s ig n ific a d o d e F a u sto

M ais duradoura foi a celebridade de


Fausto, que se transformou em personagem
eterno (uma posse para sempre, como diriam
os gregos). Sobre Fausto, porém, já se disse
até mais do que se deveria. Hegel se inspi­
rará em algumas cenas para descrever certas
passagens de sua Fenomenologia. Alguns
acreditam ver nele refletida profeticamente
a consciência do homem moderno. N o Stre-
ben de Fausto, ou seja, no tender sempre
para o ulterior, é mais fácil perceber o ati-
vismo que devora o homem contemporâneo.
M as Goethe nos reserva enorme surpresa ao Retrato de Goethe na maturidade,
nos dar a sua interpretação dos dois versos- executado em 1824 por Carl Vogel von Vogelstem,
chave do seu poema. Postos nos lábios dos desenhista e pintor alemão, conhecido por seus
anjos do céu, dizem os dois versos: mais de setecentos retratos.
. 29
Capítulo segundo - O s f u n d a d o r e s d a E s c o l a r o m â n t ic a ......

que é homogêneo e afim, ou, com paridade


F. S c h l e g e l de grandeza, daquilo que é inimigo. Mas,
se efetivamente as coisas supremas não são
suscetíveis de serem formadas pela intenção,
então é melhor deixar imediatamente de lado
toda pretensão de chegar a uma arte livre das
idéias, que seria então um nome desprovido
^ 1 Rumo à nova mitologia de sentido.
A mitologia é uma obra de arte livre da
F. Schlegel desejou que o humanidade natureza. €m seu tecido aquilo que há de su­
estivesse em grau de voltar à fonte de todo premo realmente tomou formo; tudo é relação
saber: a poesia. Um processo geral de e metamorfose, tudo é assimilado e transfor­
"rejuvenescimento" seria então o tempo, mado, e esta assimilação e transformação é o
'força divinatória''; o pensamento do homem, procedimento que lhe pertence propriamente,
"glória de beleza, luz e amor"; a realidade sua vida íntimo, seu método, se assim posso
dos Fenômenos, "era do ouro" do espírito de me exprimir.
quem, por todo lugar, verá brotar a Fonte da Aqui noto uma forte semelhança com o
verdade e do ser. soberano UJitz1 da poesia romântica, que não
se manifesto em ocorrências particulares, e
sim na construção do todo [...]. Ao contrário,
esta confusão levantada artificialmente, esta
€ este tênue reflexo do divindade no fascinante simetria de contradições, esta mara­
homem não é talvez o olma autêntica de toda vilhosa e eterna proximidade de entusiasmo e
poesia, a cintilação que o acende? ironia, que vive em toda mínima parte do todo,
Para esgotá-la não basta de fato o sim­ parecem-me ser já em si mesmas uma mitologia
ples representar homens, paixões evicissitudes, indireta. [...]
nem bastam formas artificiais, também querendo Ç assim, em nome da luz e da vida, não re­
embaralhar e novamente combinar milhões tardemos mais, mas apressemos, cada um a seu
de vezes as velhas soluções: isso é apenas o modo, o grande desenvolvimento para o qual
corpo externo visível, ou até, quando a alma se fomos chamados. Sede dignos da grandeza dos
apagou, o cadáver da poesia. Mas quando a tempos: o véu cairá de vossos olhos, e tudo
centelha de entusiasmo ao contrário explode, se tornará claro diante de vós. Pensar significo
transformando-se em obras, um novo fenômeno adivinhar,2 mas o homem apenas começou a
aparece diante de nós, vivo, em uma glória de tornar-se consciente de sua força divinatória.
beleza, luz e amor. Que incomensuráveis desenvolvimentos espe­
€ o que mais é toda bela mitologia, se ram essa força, e justamente agora! Porece-me
não um hieroglifo da natureza circundante em que quem estivesse em grau de compreender
tal transfiguração de fantasia e amor? nossa época, isto é, o grande processo univer­
fi mitologia tem grande valor. Rquilo que sal de rejuvenescimento, os princípios da eterna
de outro modo escapa da consciência para revolução, deveria poder conseguir segurar os
sempre, aqui se torna evidente, e é mantido, pólos da humanidade, entender e conhecer
de modo sensível e espiritual, como a alma no o modo de agir dos primeiros homens, assim
corpo que o acolhe, através do qual ela reluz como o caráter da era de ouro que aindo está
em nossos olhos e fala em nosso ouvido. porvir. 6ntão se calariam as tagarelices, o ho­
€is o ponto: nós, no que se refere às coi­ mem tomaria consciência daquilo que ele é, e
sas supremas, não nos entregamos inteiramente entenderia a terra e o sol.
apenas ao nosso espírito, é certo que quem F. Schle
se encontra ressequido em nenhum lugar verá Diálogo sobre a poesia.
brotar uma fonte - uma verdade conhecida à
qual sequer minimamente pretendo subtrair-me.
Todavia, devemos sempre dar prosseguimento 'UJitz é um termo alemão que significo "prontidão
àquilo que já recebeu forma, e desenvolver, de espirito" e que designo o categoria do humour, típica
do romantismo e formulada de modo específico por F.
acender, alimentar - em uma palavra: formar Schlegel.
- até as coisas supremas com o contato daquilo 2lsto é, prever o futuro.
30 . .
__ Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o id e a lis m o

N o v a lis

Cristcindcide ou Curopa
O ensaio R Cristandade ou o Guropa (1799), apesar de sua brevidade, é um texto muito
denso e complexo, ao mesmo tempo um ensaio histórico, um estudo Filosófico e teológico e
uma obra de poesia.
Na história existe, segundo Novalis, uma relação particular entre passado e futuro: o passado
contém em si os germes daguilo gue será realizado apenas no Futuro e, portanto, o preFigura.
Saber ver em eventos passados estas preFigurações de eventos Futuros, sober colher a existência
de analogias proFundos entre eventos distantes entre si, indo além das aparências, signiFica lera
história de modo proFético e revelar seu íntimo progresso em direção à liberdade e à completude:
isto é o gue deve Fazer o historiador, gue é chamado não a registrar objetivamente os Fatos,
mas a interpretá-los, colocá-los em reloção mútuo, Fazer emergir seu significado proFundo. Nesta
leitura "em proFundidade" dos Fotos do história o historiador é assistido pelo "senso sagrado"
gue tem lugar no coração do homem. Graças ao senso sagrado é possível um conhecimento
mois aproFundado do mundo terreno, gue permite descobrir o aspecto moral do universo gue,
como um Fio, abre caminho através do mundo dos coisas visíveis e revelo sua ordem interior, o
sentido escondido. Revelar o sentido escondido dos eventos é o gue Novolis Faz nesse ensoio.
A Cristandade ou a £uropa percorre em grandes possos a história da Idade Médio até o
Fim do século XVIII e caracterizo os períodos históricos com base na presença ou na ausência do
senso sagrado. O ensaio obre-se com um olhar para os tempos míticos do Idode Médio, trans­
Formado guose em uma "era de ouro", cujo senso sagrado era Florescente de modo espontâneo
e inconsciente, para passar depois paro o período da ReFormo protestante, em gue é Forte o
contraste entre senso sogrodo e racionalidade, entre Fé e saber. Com a Contra-reForma parece
voltor um período de renascimento do senso sagrado, mas na época das Luzes e da Revolução
Francesa ele será oFuscado em Favor das Faculdades racionais. Novalis capta, porém, no FinoI
do século XVIII, os sinais de umo época nova gue está poro nascer e gue são particularmente
evidentes justamente na fílemanha. fís últimas páginas do ensaio, extraordinárias por causa
da sugestão visionária gue o anima, traçam o perFil de umo nova era de ouro em gue o senso
sogrodo atingirá pleno e consciente realização.
Os trechos propostos apresentam a interpretação que Novalis oFerece do Iluminismo e da
époco nova que ele vê chegar.
O primeiro trecho reFaz as origens do Iluminismo (a oposição entre o senso sagrado e a razão).
O segundo ilustra suas característicos, limites e contradições (o Iluminismo,).
Novalis abandona depois o Iluminismo e passa a tratar dos traços de umo época nova gue
está paro nascer (terceiro trecho: O renascimento do senso sagrado no Fílemanha: os sinais
de uma época novaj).
Na perspectiva dessa nova época, Novolis volta Finalmente o olhar poro trás, a Fim de pro­
curar compreender, para além dos limites e dos deFeitos do iluminismo, suo Função histórica,
oFerecendo um exemplo da leitura proFundo dos Fatos históricos de gue se Folou acima (guarto
trecho: Fl necessidade do Iluminismo para o progresso da história,).

1. fl oposição entre o senso sagrado blevaram com arrogância tanto maior contra a
e a razão antiga constituição. Instintivamente o erudito é
R Reforma havia sido um sinal do tempo, inimigo do clero segundo a antiga constituição;1
foi importante paro toda a 6uropa, embora o grupo dos eruditos e o do clero não podem
tendo explodido publicamente apenas na deixar de entravar guerras destrutivas, quan­
Alemanha verdadeiramente livre. Os melhores do estão separados: eles de fato lutam pela
gênios de todas as nações haviam se tornado
secretamente maiores de idade e, enganan­ Trata-se da constituição em classes antes do Revo­
do-se no sentimento de sua vocação, se su- lução francesa.
Cãpítulo segundo - O s f u n d a d o r e s d a E s c o l a r o m â n t ic a

próprio posição. €sta separação se acentuou ornamento colorido. A luz, por sua docilidade
sempre mais e os eruditos conquistaram tanto matemática e por seu atrevimento, tornou-se o
mais terreno quanto mais o clero da humani­ predileta deles. Alegravam-se pelo fato de que
dade européia aproximava-se do período da ela se deixasse decompor mais do que pelo
erudição triunfante, e o saber e a Pé entravam fato de que tivesse brincado com os cores e
em uma oposição mais saliente. Na fé se assim, da luz, chamaram sua grande empresa
procurou o motivo da estagnação geral e se lluminismo. Na Alemanha essa empresa foi con­
esperou eliminá-la por meio de um saber que duzida de modo mais aprofundado, reformou-se
abrisse uma brecha naquela estagnação. £m a instrução, procurou-se dar à velha religião um
todo lugar o senso sagrado sofreu numerosas sentido moderno, racional, mais comum, lavan­
perseguições nos formas por ele assumidas até do-a meticulosamente de todo traço de milagre
então e na sua configuração atual. O resultado e de mistério; mobilizou-se toda a erudição
do modo de pensar moderno foi chamado de para barrar qualquer escapatória para a histó­
filosofio e lhe foi atribuído tudo aquilo que se ria, empenhando-se em enobrecer a história,
opunha ao antigo e, portanto, sobretudo toda transformando-a em um quadrinho de gênero,
idéia contra o religião. Aquilo que inicialmente Familiar e moral, doméstico e burguês.
era um ódio pessoal em relação à fé católica se Deus foi transformado em preguiçoso
transformou, pouco a pouco, em ódio em rela­ expectador do grande e comovente espetácu­
ção à Bíblia, à fé cristã e, por fim, até à religião.
lo encenado pelos eruditos, que no fim devia
Mas não basta: o ódio em relação à religião oferecer uma suntuoso recepção e cumprimentar
se estendeu, de modo perfeitamente natural e solenemente os autores e os atores. A gente
conseqüente, a qualquer coisa que fosse objeto comum era iluminada com verdadeira predile­
de entusiasmo; declarou heresia a fantasia e o ção e educada naquele entusiasmo erudito;
sentimento, a moralidade e o amor pela arte, nasceu assim uma nova corporação européia:
pelo futuro e pelo passado; colocou com difi­ a dos filantropos e dos iluministas. Pena que a
culdade o homem no cimo da série dos seres natureza, apesar dos esforços realizados para
naturais e transformou a infinita música criadoramodernizá-la, permanecesse tão maravilhosa
do universo no rangido monótono de um enorme e incompreensível, tão poética e infinita. Se,
moinho acionado pela corrente do acaso e a de algum lugar, surgia uma velha superstição
ela entregue, um moinho em si, sem construtor a respeito de um mundo superior ou de outro,
e sem moleiro, um verdadeiro e próprio perpe- logo, de toda parte, levantava-se um grande
tuum móbile. um moinho que mói a si mesmo. rumor e, se possível, a perigosa centelha era su­
focada pela filosofia e pela argúcia; todavia, o
2. O lluminismo palavra de ordem dos eruditos era tolerância e,
flpenas um entusiasmo foi generosamente particularmente na frança, sinônimo de filosofia.
deixado ao pobre ser humano e tornado indis­ €ssa historio da irreligiosidode moderna
pensável como pedra de comparação da mais é singuloríssimo e é a chave de todos os fenô­
alta cultura para todo acionista desta última. O menos gigantescos da época moderna. 0a tem
entusiasmo por esta esplêndida e grandiosa início apenas nesse século e particularmente na
filosofia, e de modo marcante para seus sa­ segundo metade, e em breve tempo assume
cerdotes e mistagogos.2 A frança, portanto, dimensão e variedade que não podem ser
ficou contente de se tornar o útero e a sede descuradas; uma segunda Reforma, que fos­
desta nova fé que era uma mistura de puro se mais ampla e mais peculiar, era inevitável
saber. ímbora nessa nova Igreja a poesia fosse e devia necessariamente atingir em primeiro
desvalorizada, ainda assim existiam entre eles lugar aquele país que estavo mais de acordo
alguns de seus poetas que, para impressionar, com os tempos e que mais tempo permaneceu
recorriam aos antigos ornamentos e às velhas em estado de astenia pela falta de liberdade.
luzes, arriscando, porém, deste modo, iluminar Há tempo o fogo ultraterreno teria avançado e
o novo sistema do mundo com fogo velho. tomado vãos os plonos agudos do lluminismo,
Todavia, membros mais inteligentes sabiam caso não tivessem estado a seu favor a pressão
derramar logo água fria sobre ouvintes que já e a influência do mundo. Porém, no momento
haviam sido aquecidos. Os membros estavam em que surgiu um conflito entre os eruditos e os
empenhados sem descanso a limpara nature­ governos, entre os inimigos da religião e toda
za, o solo terrestre, as almas dos homens e as a sua companhia, eis que a religião teve de
ciências da poesia, a eliminar qualquer traço do
sagrado, a arruinar a lembrança de todos os
eventos e dos homens edificantes, servindo-se 2Os mistagogos soo os guias espirituais nos etapas
do sarcasmo, e a despojar o mundo de todo da asç0s0 .
Primeira parte - CD m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o i d e a lis m o

intervir como terceiro elemento, determinante e polidez esplêndida, conhecimentos amplos e


mediador; e todo amigo delo deve agora reco­ uma fantasia rica e robusto. Parece despertar-
nhecê-la e anunciar sua chegada, embora esta se em todo lugar um pressentimento poderoso
ainda não fosse suficientemente evidente. Que do arbítrio criativo, do ausência de barreiras,
tenha chegado o tempo da ressurreição, e que da infinita variedade, da sagrada peculiaridade
justamente os eventos que pareciam impedir e da onipotente capacidade da humanidade
sua vivificação e ameaçavam seu ocaso defini­ interior. Surgida do sonho matutino da infância
tivo tenham se tornado os sinais mais propícios desajeitada, uma parte da humanidade põe à
de sua regeneração, tudo isso não pode de fato prova suas jovens forças com as serpentes que
ser posto em dúvida por um espírito dotado de circundam seu berço e que querem impedir-lhe
senso da história. B verdadeira anarquia é o o uso de seus membros. Ainda não sõo mais
elemento gerador da religião. Da destruição de que acenos, desconexos e rudes, mas que ao
tudo aquilo que é positivo ela levanta sua ca­ olho historiador revelam uma individualidade
beça gloriosa como nova fundadora do mundo. universal, uma nova história, uma nova humani­
O homem se eleva sozinho para o céu se nada dade, o abraço mais terno de uma Igreja jovem
mais o prende, e em primeiro lugar os órgãos e surpresa e de um Deus que ama, e a íntima
superiores se levantam sozinhos da uniforme concepção de um novo Messias em seus mil
confusão geral e da dissolução completa de membros ao mesmo tempo. Quem não percebe
todas as disposições naturais e das forças do o doce pudor de um alegre evento?
homem como o núcleo originário da configura­
ção terrena. O espírito de Deus revoa sobre as 4. A necessidade do Iluminismo
águas e apenas agora se percebe, no refluxo para o progresso da história
das ondas, uma ilha celeste, a moradia dos
homens novos, a bacia fluvial da vida eterna. Agora estamos suficientemente elevados
para dirigir um sorriso gentil também àqueles
3. O renascimento do senso sagrado
tempos passados de que acima falamos, e para
na Memanha: os sinais de uma nova época
reconhecer também naquelas surpreendentes
idiotices cristalizações notáveis do material da
Dos outros Gstados europeus além da Ale­ história. Queremos apertar, gratos, a mõo dos
manha pode-se apenas profetizar que com a paz eruditos e filósofos; essa loucura de fato devia
começará o pulsar neles uma novo e mais alta se realizar para o bem dos pósteros e devia se
vida religiosa, e logo consumirá qualquer outro fazer valer a visão científica das coisas. Mais
interesse mundano. Na Alemanha, ao contrário, fascinante e diversificada, a poesia, como uma
podemos indicar já, com absoluta certeza, os Indio cheia de ornamentos, contrapõe-se ao frio
sinais de um mundo novo. A Alemanha procede e morto Spitzberg3 daquele intelecto de pouco
com passo lento mas seguro, distanciando-se antes. Para que a índia seja assim quente e
dos outros (rstados europeus. Enquanto estes esplêndida, no centro do globo terrestre, um
se encontram ocupados com guerras, especula­ mar frio e imóvel, recifes mortos, névoa em vez
ções, espírito partidário, o alemão se apressa de céu estrelado e uma longa noite devem
a tornar-se, com grande diligência, membro de tornar seus dois extremos inóspitos. O signifi­
uma época mais elevada da cultura, e esse cado profundo da mecânica pesava sobre estes
progresso lhe dará forçosamente, com o passar anacoretas dos desertos do intelecto; o fascínio
do tempo, um grande predomínio sobre os ou­ da primeira intuição os subjugou, o antigo se
tros. Nas artes e nas ciências se tem um grande vingou deles; com uma negação extraordinária
fermento. Desenvolve-se muitíssimo espírito. 6c- sacrificaram ao primeiro conhecimento de si
trai-se de minas novas, ainda não exploradas. aquilo que de mais sagrado e belo existe no
Jamais as ciências estiveram em mãos mundo, e foram os primeiros a reconhecer de
melhores e abriram ao menos maiores ex­ novo, com a ação, o santidade da natureza,
pectativas; vai-se em busca de aspectos mais a infinitude da arte, a necessidade do saber,
diversos das coisas, não há nada que não o respeito de tudo aquilo que é do mundo, a
seja passado no crivo, avaliado, pesquisado. onipresença daquilo que é verdadeiramente his­
Tudo é elaborado: os escritores tornam-se tórico, o anunciaram e puseram fim a um domínio
mais pessoais e mais eficazes, todo velho dos fantasmas mais elevado, mais geral e mais
monumento da história, toda arte, toda ciência terrível do que eles próprios acreditavam.
encontra cultores e é abraçada com amor novo Novalis,
e tornada fecunda. Aqui e ali encontram-se, com R Cristondade ou a Europa.
freqüência agudamente unidas, uma versatili­
dade sem igual, profundidade extraordinária, 'Jé o monta mais oito do Boviero.
Cãpítulo S e g u n d o ~ CDs f u n d a d o r e s d a < S s c o la r o m â n t ic a

a interpretação é exercido em nossas escolas


S c h le ie r m a c h e r e universidades, e os comentários explicativos
dos filólogos e dos teólogos - de fato foram
eles que cultivaram este campo de modo exce­
lente - contêm um tesouro de observações e de
testemunhos instrutivos, que atestam suficiente­
3 fl hermenêutico mente quantos deles são verdadeiros mestres
na arte da interpretação, enquanto certamente,
bem ao lodo deles e no mesmo campo, de
Friedrich Schleiermacher conseguiu trans­ uma porte surge o arbítrio mais desenfreado
formar o pensamento hermenêutico da mo­ na presença de passagens difíceis, e de outra
dernidade de simples "arte da interpretação" uma pedante obtusidade descura com indife­
poro uma verdadeira e própria metodologia rença ou ultrapassa de modo tolo aquilo que
em grau de compreender um discurso ou há de mais belo. Mas, ao lado de todos estes
um escrito. Desse modo, o objeto do com­ tesouros, quem deve exercer pessoalmente a
preensão não é um objeto determinado, tarefa da interpretação, sem todavia poder ser
mos o complexo procedimento por meio do contado entre os artistas mais insignes, e ainda
quol o inferioridade do pensamento de um mais quando ao mesmo tempo deve preceder
indivíduo chega a manifestar-se no língua. na interpretação o juventude ávida de saber
Poro tal Fim Schleiermacher entreviu na teoria e a esta guiá-la, aspira a dispor de uma guia
hermenêutica o próprio centro de seu sistema tal que, enquanto metodologia verdadeira e
do saber, em que língua e pensamento se própria, não só seja o fruto mais ambicionado
compenetram um no outro em um movimento das obras-primas dos artistas desta disciplina,
circular de implicação recíproca, em uma obra mas também exponho em forma científica digna
contínuo de mediação. R hermenêutica cabe, o porte complexivo e os princípios do processo
porém, a tareia de manifestar o saber: uma hermenêutico. Quando tive a oportunidade pela
tarefa infinita em que todo indivíduo, procu­ primeira vez de dar aulas referentes à interpre­
rando compreender o sentido do realidade, tação, também eu fui induzido a procurar para
decide seu próprio destino. Schleiermacher mim mesmo, assim como pora meus ouvintes,
pode, portanto, ser considerado o fundador um guio semelhante. Mas, em vão. Não só a
do hermenêutica moderna. não irrelevante quantidade de compêndios
teológicos - embora alguns deles, como o livro
de êrnesti,1 se impusessem como testemunhos
de uma valente escola filológica mas tam­
Muitos, tolvez oté o maior parte, dos bém os poucos ensaios puramente filológicos
atividades que constituem a vido humana com­ deste gênero pareciam apenas coleções de
portam tríplice graduação, conforme o modo em regras particulares tiradas das observações
que são exercidos: um primeiro modo quase dos mestres, em certos casos definidas mais
privado de espírito e totalmente mecânico, um claramente e em certos outros mais oscilantes
segundo que se baseia sobre uma abundância na incerteza, ordenadas ora de modo desa­
de experiências e de observações, e por fim jeitado ora de modo mois conveniente. €u
um terceiro que é, no sentido próprio do termo, esperava olgo de melhor o partir da publicação
adequado à arte. Ora, parece-me que a este da Enciclopédia filológica que Fülleborn2 havia
último modo se deva inscrever também o inter­ extraído das aulos de LUolf,3 mas o pouco de
pretação, à medido que com esta expressão hermenêutico não tinha sequer a aspiração de
entendo justamente tudo aquilo que se refere querer delinear, aindo que com poucos traços,
à compreensão de um discurso de outrem. um desenho completo; e, como aquilo que era
O primeiro modo e o mais baixo nós o en­
contramos quotidianamente, não só no mercado
e pelas ruas, mas também em certos círculos
mundanos onde nós nos trocamos Frases feitas fama’J.reconhecida,
R £rnesti (1707-1781 )foi filólogo e teólogo de
autor também de uma institutio inter-
sobre assuntos comuns, de modo que de vez em pretis Novi Testamenti (leipzig, 1761) à qual aqui faz-se
quando já sabemos quase com certeza aquilo referência.
que replicaremos ao interlocutor, e o discurso é 2G. G. Füll0 born foi filósofo e 0scritor nascido em
1769, 0 foi autor precisament0 de uma €najclopaedio
regularmente pego e novamente atirado como phiioiogica,
uma bola. s/Ve primae iineae isagoges in ontiquorum
studia, 1798.
O segundo modo é o ponto em que pa­ 3Friedrich flugust UJolf (1759-1824) ensinou em Hall0s
recemos nos encontrar em geral, é assim que 0 em 80rlim; é considerado o pai do filologia moderna.
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o ■’ a f o r m a ç ã o d o i d e a lis m o

oferecido também aqui era aplicado, como é mais se torna indolente em seus movimentos de
natural, especialmente às obros da antiguidade modo inversamente proporcional à sua recepti­
clássica assim como na maior parte dos manuais vidade, e também nos mais vivazes, justamente
no âmbito peculiar das Sagrados êscrituras, não porque cada um em seu ser singular é o não
fiquei mais satisfeito do que antes. ser dos outros, o não compreensão jamais se
fl partir daí os ensaios mencionados no resolverá inteiramente. Mas se agora se tira dos
título constituem o quanto de mais significativo primeiros inícios a rapidez dos acontecimentos,
apareceu até hoje sobre este assunto. Ora, a reflexão é favorecida pela maior lentidão dos
quanto mais LUolf representa entre nós o espí­ movimentos e pelo mais longo atraso sobre a
rito mais refinodo, o genialidade mais livre da operação singular, e assim começa finalmente
filologia, e quanto mais o senhor Ast4ambiciona aquele período em que são coletadas expe­
proceder em todo caso como um filólogo qu® riências hermenêuticas e adiantadas propostas:
opero filosoficamente, tanto mais instrutiva e fe­ eu com efeito preferiria defini-las ossim ao invés
cundo deve ser a associação dos dois autores. de falar de regras. Mas uma metodologia - e
€, assim, para o momento parece-me que a coi­ isso parece derivar quase por si do que foi dito
sa mais conveniente, seguindo estes guias, seja até agora - pode-se ter apenas quando tanto o
a de ligar meus pensamentos sobre o assunto língua em sua objetividade quanto o processo
da interpretação a seus princípios. [...] da produção dos pensamentos enquanto função
Todavia, examinando as coisas mais cla­ da vida espiritual do indivíduo são pesquisa­
ramente, em todo momento de não compreen­ dos tão o fundo, em sua relação com o ser do
são nos encontramos ainda em uma situação próprio pensamento, que do modo em que se
análoga, mesmo que de menor porte. Mesmo procede em reunir e comunicar os pensamentos
se nos encontramos no mundo que nos é fami­ pode-se extrair um modelo pora expor em uma
liar, é todavia algo de estranho que nos vem concatenação completa o modo em que se deve
ao encontro na língua quando uma ligação de proceder na compreensão.
palavras recusa tornar-se clara, algo de estra­ Todavia, para esclarecer perfeitamente
nho que encontramos em nossa produção do este ponto devemos antes - e isso seria uma
pensamento e, embora seja análogo à nossa segundo tarefa em relação à primeira que aca­
produção, não conseguimos fixar o nexo entre bamos de expor - ter feito plena justiça a uma
os membros particulares de uma série ou então idéia que o senhor Ast parece ter tido antes de
suo extensão, e por conseguinte oscilamos LUolf, uma idéia que, antes que se determine
inseguros; portanto, podemos iniciar sempre de modo decisivo por meio dela a configuração
apenas com a mesma audácia divinatório. da hermenêutica, parece ser mais um achado
Assim não podemos simplesmente contrapor do que uma descoberta: refiro-me à idéia se­
nosso estado presente àqueles inícios gigan­ gundo a qual cada elemento particular pode
tescos da infância. Mas esso tarefa de com­ ser compreendido apenas por meio do todo e,
preender e de interpretar é um todo contínuo portanto, toda explicação do elemento particular
que se desenvolve gradualmente, e em seu pressupõe já a compreensão do todo.
contínuo proceder nos sustentamos sempre
mais mutuamente enquanto cada um oferece f. Schleiermacher,
aos outros termos de confronto e analogias, Os discursos acadêmicos de 1829,
mas ele começo sempre em cada ponto na Gm Hermenêutica.
mesma maneira presencial. Trata-se do lento
reencontrar-se do espírito pensante. Apenas 40 filólogo 0 filósofo Friedrich Ast (1778-1841) ensinou
que, como lentamente diminui tonto a circulação emJeno, landshut 0 Munique. Schleiermacher foz aqui umo
do sangue como a renovação da respiração, referência à sua obra Grundiinien der Grommotik, Herme-
também a alma quanto mais já possui tanto neutik und Hritik (Landshut, 1808).
íS a p í+ u lo t e r c e i r o

Ou+ros pervsadores que contribuíram


pam a superação e a dissolução
do dl umirvismo,
e prelúdios do idealismo

I. -hl a m a n n :
a r e v o Ita r e l i g i o s a c o n t r a a m z ã o ilumimsta

• Johann Georg Hamann (1730-1788) foi talvez o mais áspero e genial crítico
do Iluminismo, e o mais ardoroso defensor da religiosidade cristã que o Iluminismo
havia minado nas raízes.
• À razão iluminista, abstrata e despudoradamente divini-Crítica
zada, Hamann contrapõe a vida, a experiência concreta, os fatos do Iluminismo
reais e a história; contra o dualismo kantiano de "sensibilidade" e e defesa
"razão", ele acrescenta a linguagem, que é a razão que se torna da dimensão
sensível, assim como o Logos divino é o tornar-se carne de Deus. religiosa
Nesse horizonte assume por isso papel importante o conceito de ^ § 7
Revelação e se torna central a fé, principalmente a cristã.

1 f O s Iim i+es d a r a z ã o intricadíssimo jogo de citações de frases e


palavras, muitas vezes extraídas da Bíblia,
d o s ilu m in is fa s
ou então dos clássicos, tem sabor quase ca-
balístico para o leitor moderno. Isso, porém,
deve-se sobretudo ao fato de que, por uma
Johann Georg Hamann nasceu em Kõ- série complexa de razões, Hamann escolheu
nigsberg (cidade que já fora berço de Kant) o caminho indireto da ironia socrática para
em 1730. N ão concluiu estudos universitá­ criticar o Iluminismo.
rios em virtude de seus múltiplos interesses Os Stürmer e os românticos se interes­
e de suas leituras caóticas. Transferiu-se saram por ele, mas provavelmente mais por
para Londres, ocupando-se de comércio e motivos paralelos do que por convergências.
de ciência das finanças, mas faliu novamente Moser o batizou de “ o mago do N orte” ;
devido a variadas e obscuras vicissitudes. Goethe o chamou de “ o fauno socrático” ;
M as em Londres, em 1757, seu destino Schlegel encontrou nos escritos elípticos
foi marcado pelo encontro com a Bíblia e do pensador uma lógica de “ abreviador
pela emergência de forte vocação religiosa. do universo” . N a história do pensamento
Voltando a Kõnigsberg, passou a sobreviver posterior, porém, nunca se impôs como um
como empregado alfandegário. Morreu em clássico. Entretanto, há algum tempo ocorre
1788. lento renascimento do interesse por ele.
Em sua maioria curtos, seus escritos Com sua clareza e universalidade, a
são elaborados em estilo muito original, “ razão” tão exaltada pelo Iluminismo cons­
produzindo complexo jogo de citações e, titui, na realidade, um ídolo. E os atributos
sobretudo, de alusões sempre extremamente divinos com os quais é incensada são fruto
determinadas, mas muito difíceis de decifrar, de despudorada superstição. Hamann con­
até para seus leitores contemporâneos. O trapõe à razão abstrata a vida, a experiência
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç a o d o id e a lis m o

concreta, os fatos reais e a história. E tam­ a ignorância daquelas regras de arte que
bém faz valer energicamente contra a abs­ Aristóteles descobriu refletindo sobre ele,
tração do conceito a concretude da imagem: e a ignorância ou a violação daquelas leis
“ Todo o tesouro do conhecimento humano críticas em Shakespeare? O gênio. Essa é a
e da felicidade é feito de imagens” . Contra resposta unânime. Sócrates, portanto, podia
o dualismo kantiano de “ sensibilidade” e até ser ignorante, pois tinha um gênio em
“ razão” , ele apresenta a linguagem como cuja ciência podia confiar, que ele amava e
o desmentido mais belo dessa concepção: temia como o seu Deus, cuja paz lhe impor­
com efeito, a linguagem é a razão que se faz tava mais do que toda a razão dos egípcios
sensível, como o Logos ou “ Verbo” divino e dos gregos, em cuja voz ele acreditava e
é Deus que se faz carne. através de cujo sopro [...] o vazio intelecto
Conseqüentemente, em Hamann as­ de um Sócrates podia tornar-se tão fecundo
sume papel muito importante o conceito quanto o ventre de uma virgem intacta” .
de Revelação: “ O livro da criação contém E evidente que, nesse horizonte de
exemplos de conceitos universais que Deus pensamento, a fé torna-se elemento central,
quis revelar à criatura através da criatura. apresentando-se como o fulcro em torno do
“ Os livros da aliança contêm exemplos de qual tudo deve girar.
artigos secretos que Deus quis revelar ao Hamann foi talvez o mais áspero e ge­
homem por meio dos homens” . nial crítico do Iluminismo e o mais denoda-
Sócrates, pai do racionalism o para do defensor daquela religiosidade e daquele
os iluministas, torna-se para Hamann, ao cristianismo, que o Iluminismo minara pelas
contrário, uma espécie de gênio profético raízes. Sem dúvida, ele foi profeta e corifeu
inspirado por Deus. Eis algumas afirmações de uma nova época, ainda que o espírito da
importantes dos hamannianos Memoriais nova época se tenha desviado para direções
socráticos: “ O que substitui em Homero opostas às apontadas pelo “mago do Norte” .
Cãpltulo terceiro - " P e n s a d o r e s q u e c o n t r ib u í r a m p a r a a s u p e r a ç ã o d o CJIum m ism o

i i . 3 a c o bi e a reava liaçao d a fe

• As Cartas sobre a doutrina de Spinoza (1785) de Friedrich


Heinrich Jacobi (1743-1819) constituíram um evento cultural es­ Contra
o racionalismo
trondoso, de onde originam-se uma "Spinoza-Renaissance" que de Spinoza
produziu seus frutos mais vistosos em Schelling. As teses funda­
mentais de Jacobi são as seguintes:
a) toda forma de racionalismo, coerentemente desenvolvido, acaba por ser
uma forma de spinozismo;
b) o spinozismo é uma forma de ateísmo, porque identifica Deus e natureza,
e de fatalismo, porque não deixa espaço para a liberdade.
• A ciência puramente intelectualista de tipo spinozianoAo intelecto
rebate-se contrapondo ao intelecto o caminho da fé, que é deve-se
sentimento e intuição; para alcançar a Deus, com efeito, não há contrapor
o caminho
nenhum caminho puramente especulativo, porque a especulação da fé
vem sempre e apenas depois da intuição, enquanto a fé, princi­ -->§2-3
palmente a cristã, é captação imediata do absoluto.

c) o spinozismo é fatalismo, porque


não deixa espaço para a liberdade;
con tra S p in o z a
d) o próprio Lessing (o tão admirado
Lessing, animador do círculo iluminista de
Berlim) era spinoziano e, portanto, panteís­
Friedrich Heinrich Jacobi (1743-1819) ta, ou seja, ateu e fatalista.
inicialmente esteve próximo dos Stürmer O ra, isso constituiu um ataque em
com os romances Allwill (1775-1776) e Wol- grande estilo contra os iluministas. E Jacobi
demar (1777), mas depois encontrou sua recorreu também a intervenções abalizadas,
própria acomodação espiritual na fé em um para torná-lo mais maciço e eficaz.
Deus-pessoa transcendente, entendido em Entretanto, isso surtiu efeito contrário
sentido cristão. Suas obras mais conhecidas ao desejado. Hamann, naturalmente, ficou
são as Cartas sobre a doutrina de Spinoza do seu lado. M as Kant não quis interferir,
(1785), David Hume e a fé ou idealismo e argumentando que não havia aprofundado
realismo (1787), Cartas a Fichte (1801) e As Spinoza o quanto era necessário. Goethe
coisas divinas e sua revelação (1811). respondeu que, para ele, Spinoza era theis-
As Cartas sobre a doutrina de Spinoza simus et christianissimus. Herder escreveu
constituíram acontecim ento cultural de um livro intitulado Deus, pronunciando-se
grande repercussão. Os antecedentes são os em favor de um spinozismo oportunamente
seguintes: na década de 1770, Lessing publi­ redimensionado, mas não negado. E assim
cara uma obra de H. S. Reimarus, deísta e desencadeou-se um processo que levaria
anticristão, mas sem esclarecer que intenções a uma Spinoza-Renaissance, que acabou
tinha com tal publicação. Então, suscitando produzindo, com Schelling, seus frutos mais
grande estupefação, Jacobi revelou que, em vistosos.
1779, Lessing lhe confessara ser favorável
a Spinoza e, portanto, panteísta. As teses
básicas de Jacobi são muito simples:
2„ O a n t ii n t e l e c t u a li s m o
a) toda forma de racionalismo coeren­
temente desenvolvido acaba por ser uma
forma de spinozismo; Segundo Jacobi, a ciência puramente
b) o spinozismo é uma forma de ateís­ intelectualista de tipo spinoziano não pode
mo, enquanto identifica Deus e natureza ser refutada por via especulativa, e sim por
(Deus sive natura); outro caminho: contrapondo ao intelecto o
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o id e a lis m o

caminho da fé, que é sentimento e intuição.


N ão há nenhum caminho puramente espe­
culativo para alcançar Deus; a especulação
vem sempre e somente depois da intuição,
podendo confirmar, mas não demonstrar. A
fé é confiança sólida naquilo que não se vê,
é captação do absoluto meta-intelectual (e,
nesse sentido, pode ser considerada “ razão”
superior, ou seja, a razão que Kant dissera
ser mera exigência do absoluto e que, em
Jacobi, é captação imediata do absoluto).
Eis como Jacobi expressa sua concep­
ção antiintelectualista: “ Tenho apontado
repetidamente a necessidade de se sair da
carreata do intelecto para uma filosofia que
não quer perder Deus. Como, no homem,
a razão só se apresenta depois, parece-lhe
que ela simplesmente se desenvolve pouco a
pouco de uma natureza que, em si, seja cega
e privada de consciência, contrariamente a
uma providência e previdência sábia. En­
tretanto, a deificação da natureza é contra-
senso; quem procede a partir da natureza
e começa com ela não encontra nenhum
Deus, que é o primeiro ou não é nada. Ora, Fnedrich Hcinrich Jacobi (1743-1819)
se minha filosofia falou disso, mostrou o reivindicou a originariedade e a originalidade
melhor caminho e, por isso, no testemunho da fé em relação ã razão
de muitos homens, produz impressão durá­ como via imediata de acesso ao absoluto.
vel, e nisso consiste seu valor científico. Ela
não podia querer promover uma ciência do
entusiasmo lógico” . O intelecto é pagão, o Deus. Como estou convicto da objetividade
coração é cristão: pobre de quem aprisionar de meus sentimentos do verdadeiro, do belo
o segundo no primeiro! e do bom, bem como de uma liberdade que
domina a natureza, da mesma forma estou
convencido da existência de Deus. E quando
esses sentimentos enfraquecem, enfraquece
3 A r e a v a lia ç ã o d a fé a fé em Deus” .
Nos dois extremos que se expressam
nas exclamações de Cristo na cruz (“ Meu
Eis como ele caracteriza a fé: “ A fé Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” )
[...], por isso, é luz original da razão, que o e de Cristo no momento de expirar (“ Pai, em
verdadeiro racionalismo admite como sua. tuas mãos entrego o meu espírito!” ), Jacobi
Apague-se a fé original, e toda ciência se tor­ vê a expressão da luta e vitória supremas. E
na vazia e sem sentido; pode até sibilar, mas no final de As coisas divinas, assim escreve:
não falar e responder. A fé é a confiança sóli­ “Assim falou o mais poderoso entre os pu­
da naquilo que não se vê. N ós nunca vemos ros, o mais puro entre os poderosos. E essa
o absoluto, mas cremos nele. N ós vemos o luta e essa vitória têm o nome de cristianis­
não-absoluto, o condicionado — e a esse ver mo. Cristianismo que o autor do presente
chamamos saber. Nessa esfera, é a ciência escrito declara haver abraçado, encerrando
que domina. M as a confiança naquilo que sua obra com esta profissão de fé” .
não vemos é maior e mais poderosa do que a Com linguagem de sabor existencialista
confiança naquilo que vemos. Se isto contra­ ante litteram, Jacobi indicou o ato com o
diz aquilo, nós chamamos a certeza do saber qual nos libertamos do intelecto e alcança­
de ilusão; ou seja, a fé submete os sentidos e mos a fé com a expressão “ salto mortal” .
a razão, enquanto por esta se entende a fa­ Hegel o ironizará pesadamente, dizendo que
culdade da ciência. A verdadeira ciência é o esse salto é mortal para a filosofia, porque
espírito que dá testemunho de si mesmo e de passa por cima da demonstração e da me­
Cüpítíílo terceiro - P e n s a d o r e s q u e c o n t r ib u í r a m p a r a a s u p e r a ç ã o d o J lu m im s m o

diação, que, para ele, são a filosofia. M as ferozes adversários de Jacobi nas respectivas
considera a posição de Jacobi até paradig­ fases finais do seu pensamento, seriam obri­
mática, dedicando-lhe amplo exame. Para gados, contra a vontade e sem reconhecê-la,
Hegel, Jacobi representa a posição do acesso a concordar com muito daquilo que ele dis­
imediato ao absoluto, em relação à qual a se. Tudo isso é suficiente para demonstrar
posição hegeliana pretende ser a exata antí­ que Jacobi foi uma das figuras-chave entre
tese. O próprio Fichte, e também Schelling, os corifeus do pensamento da era romântica.

III. "Herder:
a c o n c e p ç ã o an+iiluminis+a d a l i n g u a g e m
e d a kisíóna

• De Johann Gottfried Herder (1744-1803) são originais e inovadoras as con­


cepções da linguagem e da história.
• Quanto ao primeiro tema, a língua não é algo meramentelinguagem
convencional, mas é expressão da natureza específica do homem; Aexprime
a linguagem brota da reflexão humana, que fixa o jogo móvel a natureza
das sensações e dos sentimentos em uma expressão lingüística: humana
todo progresso humano ocorre com e por meio da língua, tanto ~ ^ § 1
que, diz Herder, o homem é criatura da língua.
• A visão herderiana-da história é dominada pela idéia de que Deus (o Deus
do cristianismo, compreendido como a religião da humanidade) opera e se revela
tanto na natureza como na história: a história é, portanto, neces­
sariamente voltada à atuação dos fins da Providência divina, e o A história
progresso, do qual cada fase (compreendendo a Idade Média) tem atua os fins
um significado próprio peculiar, é, portanto, a obra de Deus que providenciais
conduz à plenitude da realização os povos, considerados como de Deus
unidades vivas, quase como organismos. ^ § 1

O k orn em Quatro temas tratados por ele mere­


cem menção particular em uma história
é ^ c r i a f u r a d a l í n g u a ”,
do pensamento: 1) a nova interpretação da
a k istó ria é o b r a d e D e u s linguagem; 2) a nova concepção da história;
3) a tentativa de mediar spinozismo e teísmo;
4) a idéia do cristianismo como religião da
Johann Gottfried Herder (1744-1803) humanidade.
foi discípulo de K ant e, num prim eiro 1) A opinião comum é a de que cabe a
momento, participou dos Stürmer. Goethe Humboldt o mérito de ter fundado a lingüís­
constituiu desde o princípio um ponto de tica moderna. M as alguns pensam que o
referência para ele. A partir de 1776 viveu mérito deveria ser atribuído a Herder (sobre­
estavelmente em Weimar, isto é, na mesma tudo pelo escrito Tratado sobre a origem da
cidade em que Goethe escolhera morar. Foi língua). O certo é que suas concepções a esse
pregador, poeta, tradutor, erudito e pen­ respeito são muito originais e inovadoras. A
sador. Sua obra é muito vasta, mas pouco língua não é algo meramente convencional,
orgânica; cheia de incertezas e contradições, puro meio de comunicação, mas expressão
mas também de fortes iluminações. da natureza específica do homem. O homem
Primeira parte - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o i d e a lis m o

distingue-se do animal pela “ reflexão” . E a inteiramente nela. Todavia, seu livro sobre
reflexão cria a linguagem, fixando o jogo o assunto, Deus, já citado, está cheio de
móvel das sensações e dos sentimentos na apor ias e incertezas.
expressão lingüística. A poesia é algo de
profundamente natural, que se constitui 4) Por fim, destaca-se a idéia de cristia­
ainda antes da prosa que, ao contrário, nismo, entendido não tanto como uma das
pressupõe a mediação lógica. A língua fixa o religiões, mas como a religião da humani­
marejar dos sentimentos, oferece ao homem dade. Porém também nesse ponto Herder
os meios para expressá-los e faz com que se m ostra am bíguo, porque não parece
todo progresso humano ocorra com e pela disposto a conceder a divindade a Cristo,
língua, a ponto de Herder afirmar que nós no sentido da teologia cristã. Entretanto,
somos “ criaturas da língua” . não o transforma em idéia ou símbolo, mas
o considera como homem que viveu aquele
2) tipo de vida que leva de modo perfeito a
A visão herderiana da história tam­
bém é profundamente nova em relação à Deus. E nesta chave ele interpreta também
visão iluminista. a teologia paulina.
a) Como a natureza é organismo que Muitos dos conceitos que Herder ex­
se desenvolve e progride segundo esquema pressou em uma moldura teórica incerta,
finalístico, da mesma forma a história é de­ quando situados em novas perspectivas
senvolvimento da humanidade que também idealistas, conhecerão desenvolvimento
se desdobra conforme um esquema finalísti­ essencial; sucesso particular terá a filosofia
co. Deus opera e se revela tanto na primeira da história, que encontrará em Hegel sua
como na segunda. máxima expressão.
b) Portanto, a história está necessaria­
mente voltada para a concretização dos fins
da Providência de Deus; por conseguinte, o
progresso não é simples obra do homem,
mas obra de Deus que leva a humanidade à
plenitude da realização.
c) N o decurso histórico, toda fase (e
não somente a fase terminal) tem significado
próprio (Herder reavalia fortemente a Idade
Média na obra Ainda uma filosofia da histó­
ria, ao passo que na mais breve Idéias para
uma filosofia da história da humanidade
a valorização que faz se revela bem mais
contida).
d) Por fim, à concepção iluminista do
Estado, Herder contrapõe a idéia de “ povo”
considerado como unidade viva, quase como
organism o (idéia, aliás, que prosperaria
muito).

2) Essa concepção da história pressu­


põe um Deus criador, pessoal e transcenden­
te, ou um Deus imanente?
Nesse ponto, Herder se mantém osci­
lante e ambíguo e, como já dissemos, chega Johann Gottfried Herder {1744-1S03)
é lembrado principalmente
até a tomar posição em favor de Lessing e por suas idéias originais e inovadoras
de Spinoza. Ele tenta salvar Spinoza, conce­ no campo lingüístico,
bendo Deus como substância que, embora e por uma concepção da história profundamente
passando pela natureza, não está contida antitética em relação ã visão iluminista.
Capítulo terceiro - P e n s a d o r e s Cjue c o n t r ib u í r a m p a r a a s u p e ^ a ç a o d o CH um inism o

IV. -H wmbo ld+


o id e a l d e ku m arvid a d e

• Além de ser o fundador da lingüística moderna, Wilhelm von


Humboldt (1767-1835) é conhecido pela sua concepção do ideal de O ideal
humanidade, compreendido como a "idéia" à qual todo indivíduo de humanidade
tende, embora sem jamais conseguir realizá-la plenamente. Este se realiza
ideal é o espírito da humanidade, do qual se aproxima sobretudo a na história
arte, mas que por meio dos indivíduos (por meio da ação da Provi­ - ^§1
dência dentro deles) se realiza nas nações e, portanto, na história.

CD “espírito da Humanidade” Considerações sobre a história universal


1 1 (1814), Sobre a função dos historiadores
(1821), Ensaio sobre os limites da atividade
do Estado (póstumo) e, por fim, os estudos
Wilhelm von Humboldt (1767-1835),
de lingüística: Sobre o estudo comparativo
amigo de Schiller e de Goethe, foi diplomata
das línguas (1820), Sobre a diversidade de
e estadista, finíssimo esteta, literato e pensa­
construção da linguagem humana e sobre
dor. Viveu por longo tempo em Roma, cida­
sua influência no desenvolvimento espiritual
de que lhe propiciava os maiores prazeres do da humanidade (1836).
espírito. Dentre suas obras, podemos recor­
E conhecida principalmente sua con­
dar: Teoria da formação do homem (1793), cepção do ideal de humanidade, entendido
Sobre o espírito da humanidade (1797),
como a “ idéia” para a qual tende todo
indivíduo, embora sem nunca conseguir rea­
lizá-lo plenamente. Esse ideal para o qual
todo indivíduo tende é precisamente aquilo a
que Humboldt chama de “ espírito da huma­
nidade” . E dele aproxima sobretudo a arte,
como aconteceu no povo grego ou como
ocorre nos “ gênios” , dos quais, para ele,
Goethe é a encarnação viva (dedicou amplo
estudo ao Hermann und Dorothee de Goe­
the, exaltando o elemento clássico). M as a
idéia de humanidade, através dos indivíduos,
realiza-se nas nações e, portanto, na história.
E assim que Humboldt define o obje­
tivo da história: “ O fim da história só pode
ser a realização da idéia que representa a hu­
manidade, em todas as direções e em todas
as formas” . Também Humboldt admite uma
Providência na história, que não age a partir
de fora, mas de dentro dos homens, ou seja,
mediante seu espírito. E o Estado deve limi­
tar-se a tutelar a segurança interna e externa,
sem interferir nos objetivos dos indivíduos,
o que lhes limitaria a liberdade.
Wilhelm ron I lumboldt (1767-1S3S),
M as Humboldt, como já observamos,
além de ser considerado
o fundador da lingüística moderna,
é considerado e apreciado principalmente
expressou no “ideal de humanidade" como fundador da lingüística moderna. Por
seu conceito romântico do espírito humano esse seu perfil, voltaremos a tratar dele mais
que se realiza na arte e na história. adiante, de forma mais ampla.
P v it t ic iv ã pU YtC - O m o v im e n to r o m â n t ic o e a f o r m a ç ã o d o i d e a lis m o

V. O s d e b a te s so b re as a p o ria s
d o k a n tism o
e o s p r e lú d io s d o id e a lis m o

• No clima mais amplo de renovação cultural, surge um


debate prolongado sobre os problemas de fundo postos e não
Tentativas resolvidos pelo kantismo. Tais discussões, que versam principal­
de superação
mente sobre o problema da "coisa em si", são promovidas pelos
do kantismo
kantianos K. L. Reinhold (1758-1823), S. Maimon (1754-1800) e
§ 7 -4
J. S. Beck (1761-1840), e pelo cético G. E. Schulze (1761-1833), e
representam uma passagem do criticismo ao idealismo.

1 jAs críticas de T^einkold tellung), assim definida: “ A representação,


na consciência, é distinta do representante e
ao kantismo do representado, sendo referida a am bos” .
O representante é o sujeito e, portanto, a
forma; o representado é o objeto e, portanto,
Paralelamente a esses fermentos mul- a matéria; a representação é a unificação
tiformes, desenvolveram-se vivas discussões deles.
sobre os problemas de fundo levantados e Assim, a consciência emerge como o
deixados abertos pelo kantismo, realizados momento de compreensão, que deveria su­
em plano rigorosamente técnico, e cujos re­ perar o dualismo kantiano; a forma faz-se
sultados lançam como que uma ponte entre coincidir com a atividade e espontaneidade
o criticismo e o idealismo, constituindo uma da consciência, e a matéria faz-se coincidir
transição gradual entre um e outro. com a receptividade.
O primeiro que se moveu nessa di­ Reinhold ensinou em Jena até 1794,
reção foi Karl Leonhard Reinhold (1758­ ano em que se transferiu para Kiel; em Jena,
1823), sobretudo nos três livros Ensaio de teve como sucessor Fichte, que se impôs com
uma nova teoria da faculdade humana de sua Doutrina da ciência.
representação (1789), Contribuições para Trata-se de uma passagem que assume
a retificação dos subentendidos que ainda significado quase simbólico, porque, como
perduram na filosofia (1790) e Fundamentos veremos, Fichte prosseguiria nessa direção
do saber filosófico (1791), que contêm a até as últimas conseqüências. O próprio
chamada “ filosofia elementar” (que significa Reinhold se tornaria fichteano e, mais tarde,
“ filosofia primeira” ). jacobiano.
Ele encontrou em Kant aquele que o
impediu de cair na “ superstição” e na “ in­
credulidade” (dilema ao qual a polêmica
sobre o spinozismo parecia levar). A Crítica
2 críticas de Sckwlze
da razão pura apresentava a estrutura autên­ ao kantismo
tica do saber e os limites da razão, ao passo
que a Crítica da razão prática mostrava o
primado da razão prática e a possibilidade Gottlob Ernst Schulze (1761-1833) se
de fundamentar a religião na moral. impôs à atenção de seus contemporâneos
M as a Crítica da razão pura é “ pro­ com um livro de 1792, intitulado Enesíde-
pedêutica” , e Reinhold tenta reconstruí-la mo, ou acerca dos fundamentos da filosofia
como “ sistema” . elementar defendida pelo senhor professor
Para construir um sistema é preciso Reinhold, com o acréscimo de uma defesa
um princípio, que, em sua opinião, é dado do ceticismo contra as pretensões da crítica
pela doutrina da “ representação” (Vors- da razão.
Capítulo terceiro - P e n s a d o r e s q u e c o n + ^ tb u í^ a m p a r a a s u p e r a ç ã o d o JJlum inism o

N o livro, publicado anonimamente, O que significa o seguinte.


Schulze vestia a roupagem do cético Enesí- N a consciência existe a form a, da
demo, sustentando que o ceticismo eneside- qual temos plena consciência, e a matéria,
miano e humeano não fora de modo algum da qual, ao contrário, não temos consciên­
superado pelo criticismo, do qual Reinhold cia; nós não podemos pensar nada fora da
era defensor, precisamente porque fazia am­ consciência e, portanto, devemos conceber
plo uso daquele “ princípio de causa” enten­ a matéria, leibnizianamente, como o grau
dido em sentido ontológico, que o próprio mínimo de consciência. A “ coisa em si” ,
criticismo (reduzindo-o a mera categoria do portanto, é o limite mais baixo dos graus
pensamento) pretendera eliminar. infinitos da consciência, assim como o exem­
Com efeito, as “ condições” do conhe­ plo V~2 ilustra de forma analógica.
cimento são “ causas reais” . “ Causas reais” Trata-se, indubitavelmente, de enge-
são as causas formais internas (enquanto nhosíssima interpretação da “ coisa em si”
determinam o fenômeno), e “causa real” é a como conceito-limite, que, no entanto, com­
“ coisa em si” , que produz a “ sensação” do promete o kantismo, imantizando a “ coisa
sujeito (ou seja, a matéria do conhecimento). em si” na consciência, precisamente como
Assim, das duas, uma: à) ou a coisa em si limite da consciência.
não é causa da sensação, b) ou então, se é
causa da sensação, não é “ incognoscível” .
Essas conclusões constituem um beco sem
saída, no qual o criticismo se atola.
críticas de BecU
De modo mais geral, Schulze objeta ao
criticismo o fato de ser vítima do mesmo sal­
to indevido do pensar ao ser, que ele censura A obra de Jack o b Sigism und Beck
como erro de fundo das provas tradicionais (1761-1840), autor de monumental Com­
da existência de Deus, particularmente a pêndio esclarecedor dos escritos críticos
ontológica. Com efeito, depois de ter esta­ do senhor professor Kant, a conselho do
belecido que, para ser pensado, algo deve próprio, em três volumes, publicados entre
ser pensado de certo modo, conclui que, 1793 e 1796, foi substancialmente uma obra
portanto, existe naquele modo, realizando de epígono.
dessa maneira a passagem do pensar ao ser Ele sustenta que, para se compreender
que, ao contrário, ainda fica por demonstrar. Kant, é preciso identificar o “ ponto de vista”
central do qual brotam todos os problemas
específicos conseqüentes.
Entretanto, começando como fiel ex­
y\s críticas de positor de Kant, Beck depois começa a
à “coisa em siwkantiana se afastar, eliminando a “ coisa em si” e
interpretando o objeto como produto da
representação.
O debate sobre a coisa em si foi apro­ O “ verdadeiro ponto de vista” para
fundado por Salomon Maimon (1754-1800) compreender Kant é a unidade sintética
no Ensaio acerca da filosofia transcendental da apercepção como atividade dinâmica. E
(1790) e em uma série de obras posteriores. dessa “ atividade” da unidade sintética da
A “ coisa em si” não pode ser consi­ apercepção que se pode derivar não somente
derada como estando fora da consciência, a “ form a” , mas também a “ m atéria” do
porque dessa forma seria não-coisa (Un- conhecimento.
ding), que Maimon identifica com número A obra de Beck foi concluída em 1796.
imaginário do tipo de que expressa M as, em 1794, já fora publicada a D ou­
grandeza não real. A “ coisa em si” deve ser trina da ciência, de Fichte, bem mais nova
pensada muito mais como, por exemplo, as e ousada, que fazia frutificar as tentativas
grandezas irracionais do tipo V T, que são mencionadas de repensar Kant e, ao mesmo
grandezas reais que expressam um valor tempo, as superava claramente com a cria­
limite, pelo qual nos aproximam os sempre ção do idealismo, do qual devemos tratar
mais do infinito. amplamente agora.
FUNDAÇÃO
E ABSOLUTIZAÇÃO
ESPECULATIVA
DO IDEALISMO

“Às perguntas que a filosofia não responde, deve-


se responder que elas não devem ser postas da­
quele modo”.
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Capítulo quarto

Fichte e o idealism o ético____________________

Capítulo quinto

Schelling e a gestação rom ântica do idealism o

Capítulo sexto

H egel e o idealism o absoluto _______________


( S a p ít u lo q u a r t o

R ck+ e
e o idealismo etico

I. j A v i d a e a s o b r a s

• Johann Gottlieb Fichte nasceu em Rammenau em 1762, Depois de ter fre­


qüentado o ginásio, em 1780 se inscreveu na faculdade de teologia em Jena, da
qual passou depois para Leipzig. De 1788 a 1790 foi preceptor em Zurique.
• Em 1792, depois da "iluminação" provocada pela leitura da Crítica da razão
prática, publicou o Ensaio de uma crítica de toda revelação, que marcou seu sucesso.
Em 1794, por indicação de Goethe, foi chamado à Universidade
de Jena, onde permaneceu até 1799 e compôs obras de grande Primeira fase
ressonância: Fundamentos da doutrina da ciência (1794), Discursos S1
sobre a missão do douto (1794), Fundamentos do direito natural
(1796), Sistema da doutrina moral (1798). Em 1799 explodiu a "polêmica sobre o
ateísmo", em que Fichte, envolvido, foi obrigado a pedir demissão.
• Transferiu-se para Berlim, onde conheceu Schlegel, Schleiermacher e Tieck, e
compôs o Estado comercial fechado (1800), A missão do homem (1800), a Introdu­
ção à vida beata (1806). Os Discursos à nação alemã de 1808, em
que afirmava o primado espiritual do povo alemão, o levaram ao Segunda fase
auge: em 1810 foi chamado à Universidade de Berlim, e também -» § 2
foi eleito reitor. Morreu de cólera em 1814.

1 y\ leitura iluminadora compreendendo então encontrar-se diante


de Kant de um talento excepcional e, por isso, deci­
diu ajudá-lo.
Depois de ter freqüentado o ginásio
em Pforta, em 1780, Fichte se matriculou
Joh an n G ottlieb Fichte nasceu em na faculdade de teologia em Jena, de onde
Rammenau, em 1762, de pais muito pobres, se transferiu para Leipzig. Foram anos du­
de origem camponesa. Em sua juventude ríssimos, porque as contribuições de von
conheceu a verdadeira e própria miséria, Miltitz eram escassas e, mais tarde, cessaram
tendo sido guardador de gansos para ajudar completamente. Fichte vivia de aulas parti­
a família. M as a miséria constituiu para ele culares, exercendo a humilhante função de
uma elevada escola moral. Nunca se enver­ preceptor.
gonhou de suas origens humildes, declaran­ De 1788 a 1790, foi preceptor em
do várias vezes ter orgulho delas. Zurique, onde conheceu Joana Rahn, que
Foi graças a um nobre e rico concida­ mais tarde se tornou sua esposa. O ano de
dão (o barão von Miltitz) que Fichte pôde 1790 foi decisivo para sua vida. Até aquele
iniciar seus estudos. O nobre ficou admirado momento, ele fora vagamente spinoziano
ao ver o rapaz repetir perfeitamente um e determinista. M as, além de Spinoza, tam­
sermão (ao qual ele não pudera assistir), bém nutrira interesse por Montesquieu e
Segunda parte - 1- u n d a ç â o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

pelas idéias da Revolução Francesa. Conhecia revelar a verdade e o nome do autor, Fichte
Kant apenas de nome. M as um estudante tornou-se repentinamente célebre. Já em
pediu-lhe aulas exatamente sobre Kant. E, 1794, por indicação de Goethe, foi chamado
assim, Fichte foi obrigado a ler as obras do à Universidade de Jena, onde permaneceu
filósofo de Kónigsberg, que constituíram até 1799.
para ele uma autêntica revelação. A Crítica Esse período constitui seus anos doura­
da razão prática descerrou-lhe os insuspei- dos, os anos de sucesso e de popularidade,
tados horizontes da liberdade, sugeriu-lhe com as obras que tiveram maior ressonância,
novo sentido da vida e o fez sair do pessimis­ entre as quais recordamos: os Fundamentos
mo fechado que o oprimia. Em Kant, Fichte da doutrina da ciência (1794), os Discursos
descobriu a chave de sua própria vocação e sobre a missão do erudito (1794), os Funda­
de seu próprio destino. Apesar da carência mentos do direito natural (1796) e o Sistema
de meios materiais e de ganhar a duras penas da doutrina moral (1798).
o que necessitava para sobreviver, escreveu Em 1799 explodiu acalorada polê­
que aquela descoberta o tornou interiormen­ mica sobre o ateísmo, na qual Fichte foi
te riquíssimo, a ponto de sentir-se até “ um envolvido, sobretudo por causa de artigo
dos homens mais felizes do mundo” . de seu discípulo Forberg. Fichte sustentava
Fichte compreendeu tão bem o pensa­ que Deus coincide com a ordem moral do
mento de Kant que no ano seguinte, depois mundo e que, portanto, não se pode duvidar
de uma estadia em Varsóvia (para onde se de Deus. Forberg, porém, ia além, susten­
dirigira na qualidade de preceptor), já estava tando que era possível não crer em Deus e,
em condições de escrever a obra intitulada não obstante, ser religioso, porque, para
Ensaio de crítica de toda revelação, na qual ser religioso, basta crer na virtude (e, por­
aplicava de m odo perfeito os princípios tanto, se podia ser religioso até sendo ateu
do criticismo, apresentando-a ao próprio ou agnóstico). A polêmica degenerou, em
Kant, em Kónigsberg. Esse escrito marcou virtude do comportamento imprudente de
o destino de Fichte. O editor Hartung o pu­ Fichte em relação à autoridade política e à
blicou em 1792, por intercessão de Kant, sua atitude orgulhosa, tanto que, no fim das
mas sem imprimir o nome do autor, de contas, o filósofo foi obrigado a apresentar
modo que foi confundido com trabalho do sua demissão.
próprio Kant. Quando Kant interveio para

2 C> período berlinense

Fichte então se transferiu para Ber­


lim, onde estreitou am izade (aliás, não
duradoura) com os românticos (Schlegel,
Schleiermacher, Tieck), e passou a viver
dando aulas particulares. Em 1805 foi cha­
mado à Universidade de Erlangen, que teve
de deixar depois da paz de Tilsit, porque a
cidade foi perdida pela Prússia. Sua ativida­
de cultural e política prática e o programa
por ele apresentado nos Discursos ã nação
alemã, de 1808, em que defendia a tese de
que a Alemanha se recuperaria da derrota

Johann Gottlieh Fichte ( Í7(i2-1H14)


repensou a filosofia transcendental,
transformando o F,u penso kantiano
de função unificadora para atividade criadora e,
desse modo, fundou o idealismo moderno.
' 49
Cãpltulo quarto - T -ich te e o id e a lis m o é t ic o

político-m ilitar m ediante renascim ento toda a sua vida. Os estudiosos chegaram a
moral e cultural, e afirmava inclusive o pri­ contar cerca de doze e até quinze escritos
mado espiritual do povo alemão, levaram que constituem reelaborações explícitas
novamente Fichte ao auge. Em 1810, com ou que podem ser considerados nessa ótica
a fundação da Universidade de Berlim, foi (muitos deles publicados somente depois
chamado pelo rei como professor efetivo, e da morte do filósofo). São importantes as
chegou a ser eleito reitor. Morreu em 1814 reelaborações de 1801, 1804, 1806, 1810,
de cólera, contagiado pela mulher, que con­ 1812 e 1813, nas quais, como veremos, Fi­
traíra a doença cuidando dos soldados nos chte vai decididamente além dos horizontes
hospitais militares. da redação primitiva.
As obras do período berlinense mar­ Todavia, o sucesso de Fichte permane­
cam, no pensamento de nosso filósofo, uma ceu ligado à Doutrina da ciência de 1794,
reviravolta notável do ponto de vista teórico. na qual os românticos encontraram resposta
Além do Estado comercial fechado (1800), fundamental às suas instâncias, como vere­
recordamos: A missão do homem (1800), a mos, e da qual F. Schlegel chegou até a dizer
Introdução à vida bem-aventurada (1806) que, juntamente com o Wilhelm Meister de
e os Traços fundamentais da época presente Goethe e a Revolução Francesa, represen­
(1806). M as devemos destacar sobretudo as tava uma das três diretrizes principais do
inumeráveis reelaborações da Doutrina da século. Vejamos, portanto, em que consiste
ciência. Fichte reescreveu essa obra durante essa grande “ diretriz do século” .

II. CD id e a lis m o d e T~ick+e

• A preocupação principal de Fichte foi em primeiro lugar contribuir para


a difusão do criticismo kantiano, e depois de descobrir o princípio de base, não
revelado por Kant, que unificava as três Críticas, a fim de construir o sistema do
saber, transformando a filosofia em uma rigorosa "doutrina da ciência" (Wissens-
chaftslehre).
Partindo das reflexões pós-kantianas de Reinhold, Schulze Fichte õe 0
e Maimon, o pensamento de Fichte chegou a transformar o Eu "fundamento"
penso kantiano em Eu puro, entendido como intuição pura que do criticismo
livremente se autopõe (se autocria) e, se autopondo, cria toda a kantiano
realidade. Esta é a grande novidade de Fichte, com a qual ele ia § 1-2
muito além do criticismo e fundava o idealismo.

jA superação M as vejamos alguns trechos de cartas


de Fichte. Logo depois de ter descoberto
do pensamento kantiano Kant, Fichte escreve: “ Vivo os dias mais
felizes que me lembro de ter vivido [...].
Como vimos, o encontro com o pen­ Mergulhei na filosofia, isto é, na filosofia
samento de Kant (não com o homem Kant, de Kant. Nela encontrei o remédio para a
que não apresentava fascínio exterior) revo­ verdadeira raiz de meus males e, ainda mais,
lucionou o pensamento e a vida de Fichte uma alegria interminável [...]. A reviravolta
a ponto de, no período imediatamente se­ que essa filosofia realizou em mim é enorme.
guinte, ele não ter outra preocupação senão Devo-lhe, de modo especial, o fato de que
a de contribuir para difundir o criticismo e, agora creio firmemente na liberdade do
posteriormente, a de investigar a fundo as homem, e vejo claramente que só pressupon­
três Críticas, com o objetivo de descobrir do-a é que são possíveis o dever, a virtude, a
o princípio de base que as unificava e que moral em geral” . E, por fim: “ Depois que li a
Kant não revelara. Crítica da razão prática, parece-me viver em
Segunda pãTte - T " u n d a ç ã o e a b s o l u + i z a ç a o e s p e c u l a + i v a d o id e a lis m o

mundo novo. Ela demole afirmações que eu chegar às últimas conclusões que lhe permi­
pensava irrefutáveis e demonstra teses que tissem unificar o sensível e o inteligível.
cria indemonstráveis, como o conceito de A grande novidade de Fichte, o golpe
liberdade absoluta, de dever etc.” de gênio que o levou à criação da nova filo­
M as Fichte também estava convencido sofia, consistiu na transformação do Eu pen­
de que o discurso de Kant não era conclusi­ so kantiano em Eu puro, entendido como
vo. Kant forneceu todos os dados para cons­ intuição pura, que se autopõe (se autocria)
truir o sistema, mas não o construiu. O que e, autopondo-se, cria toda a realidade, e na
Fichte pretendia era construir esse sistema, relativa identificação da essência desse Eu
transformando a filosofia em ciência rigo­ com a liberdade.
rosa, que brotasse de um princípio primeiro Fichte insistiu várias vezes em dizer
supremo: trata-se da chamada “ doutrina da que seu sistema nada mais era do que a fi­
ciência” (Wissenscbaftslehre). losofia kantiana, exposta com procedimento
diferente do de Kant. Entretanto, Kant não
se reconheceu na “ doutrina da ciência” de
21| l ^ o " í r t i pen so*
Fichte. E tinha razão: ao pôr o Eu como
princípio primeiro e dele deduzir a realida­
-' u
a o csu pu^o
n
de, Fichte criava o idealismo, cujos pontos
principais devemos examinar agora.

N e ssa tentativa de con struir um a


“ doutrina da ciência” , um “ sistema” que
unificasse as três Críticas de Kant, Fichte
utilizou m uito, de m odo expressamente
declarado, tudo o que escreveram Reinhold,
Schulze e M aimon, tanto o positivo como ■ Eu. O Eu de Fichte é o princípio
o negativo. originário e absoluto de toda a rea­
lidade, e se qualifica essencialmente
a) A R einhold Fichte reconhece o
como atividade que antes de tudo
mérito de ter chamado a atenção para a p õ e a si m esm a e, p ortan to , põe
necessidade de reconduzir a filosofia a todas as coisas; desse modo, o Eu é
um princípio único, que não se encontra condição incondicionada de si mesmo
tematizado em Kant e que cada qual deve e da realidade.
procurar por sua própria conta, tendo assim Na metafísica anterior a Fichte, a ativi­
“ preparado a fundação da filosofia como dade, o agir, era sempre considerado
ciência” . Entretanto, Reinhold não soube conseqüência do ser (operarisequ itu r
encontrar esse princípio, porque o princípio esse), o ser era condição do agir; o
idealismo de Fichte inverte, ao con­
da “ representação” por ele indicado vale trário, o antigo axioma e afirm a que
apenas para a filosofia teórica, mas não para esse seq u itu r operari: a ação precede
toda a filosofia. o ser, o ser é produto do agir.
b) A Schulze Fichte reconhece o mérito E, assim, o Eu pen so kantiano, que
de tê-lo feito refletir muito e, com suas crí­ era a estrutura transcendental funda­
ticas céticas, tê-lo feito compreender que a mental do sujeito, torna-se em Fichte
solução de Reinhold era insuficiente, sendo atividade, auto-intuição (a intuição
necessário, portanto, procurar o princípio intelectual que o próprio Kant con­
siderava impossível para o homem),
único em plano mais elevado. autoposição da qual são deduzidas
c) A Maimon, julgado como “ um dos todas as coisas. O Eu absoluto não é
maiores pensadores da época m oderna” , o eu do homem individual, ao qual
Fichte reconhece o mérito de ter mostrado a pertence um eu sempre e em todo
impossibilidade da “ coisa em si” , extraindo caso lim itado pelo não-eu.
disso algumas conseqüências frutíferas, mas
sobretudo aplainando-lhe o caminho para
Capitulo quarto - P ic k t e e o i d e a lis m o é t ic o

//
III. ^doutrina d a c iê n c ia

• Para Aristóteles, o princípio de todo saber científico era o princípio de não-


contradição; na filosofia moderna wolffiana e para o próprio Kant era o princípio
de identidade (A = A), considerado ainda mais originário; para Fichte, ao contrário,
o princípio se autopõe (Eu = Eu) e, desse modo, põe a identidade A = A.
O primeiro princípio do idealismo de Fichte, sua condição
incondicionada, é, portanto: o Eu põe absolutamente a si mesmo. A "Doutrina
O Eu, enquanto livre atividade originária e infinita, é autocriação da ciência "
absoluta por meio da própria imaginação produtiva. Este é o e os três
momento da liberdade e da tese. princípios
O autopor-se do Eu comporta necessariamente a posição do idealismo
inconsciente de alguma outra coisa diversa do Eu e, portanto, de Fichte
a posição de um não-eu. O segundo princípio é, portanto: o Eu § 1-3
opõe absolutamente a si mesmo, dentro de si, um não-eu. Este é
o momento da necessidade e da antítese.
A produção determinada do não-eu surge como limite, como de-terminação
do Eu, motivo pelo qual o não-eu de-terminado comporta necessariamente um eu
de-terminado, ele próprio oposto ao Eu absoluto. O terceiro princípio de Fichte é,
portanto: no Eu absoluto, o eu limitado e o não-eu limitado se opõem e se limitam
reciprocamente. E este é o momento da síntese.
• O terceiro princípio explica: tanto a atividade cognoscitiva,
Explicação
que se funda sobre o aspecto pelo qual o eu é determinado pelo idealista
não-eu, uma vez que o não-eu constitui a matéria do conhecer e da atividade
é, portanto, o limite necessário da consciência, como a atividade cognoscitiva
prática, que se funda ao contrário sobre o aspecto pelo qual o e da atividade
eu determina o não-eu, uma vez que o eu, para realizar-se como moral
liberdade, devem sempre superar os limites que o não-eu pouco ->§4-5
a pouco lhes opõe. Isso atesta a superioridade da razão prática
sobre a razão pura.

1( O p r im e ir o p r in c íp io ligação de A com A, põe, além da ligação


d o i d e a lis m o d e R c k t e : lógica, também o A. O princípio supremo,
portanto, não é o da identidade lógica A =
o p õ e a si m e s m o A, porque ele se revela posto e, portanto,
não originário. O princípio originário só
pode ser então o próprio Eu. E o Eu não é
N a filosofia aristotélica o princípio posto por algo diferente, mas se autopõe.
incondicionado da ciência era o princípio Eu = Eu, portanto, não significa identidade
de não-contradição. N a filosofia moderna abstrata e formal, e sim a identidade dinâ­
w olffiana e para o próprio Kant, era o mica de princípio autoposto. O princípio
princípio de identidade A = A, considerado primeiro, assim, é condição incondicionada.
ainda mais originário (no sentido de que Se é condição de si mesmo, então “ constrói-
aquele derivava deste). Para Fichte, por seu se a si mesmo” , “ é assim porque assim se
turno, este princípio deriva ainda de outro faz” , é “ posição de si mesmo” , em suma, é
princípio, de natureza inteiramente peculiar. autocriação.
Com efeito, o princípio A = A é puramente N a metafísica clássica, dizia-se que
formal, dizendo-nos apenas que, se existe operari sequitur esse, ou seja, a ação é conse­
A, então A = A. Necessariamente, pois, há qüente ao ser das coisas: para agir, uma coisa
apenas a ligação lógica “ se... então” . Essa deve primeiro ser, pois o ser é a condição do
ligação lógica não pode ser posta senão agir. Ora, a nova posição idealista subverte
pelo Eu que a pensa, o qual, pensando a precisamente o antigo axioma, afirmando
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

que esse sequitur operari, o que significa se o primeiro momento é o da liberdade (a


que a ação precede o ser, ou seja, que o ser liberdade originária), o segundo momento,
deriva da ação e não vice-versa. Fichte diz que é o da oposição, é o momento da neces­
com todas as letras que o ser não é conceito sidade. Logo veremos que esse momento é
originário, mas “ derivado” , “ deduzido” , ou indispensável para explicar tanto a atividade
seja, produto do agir. teórica (a consciência e o conhecimento),
O Eu fichteano, portanto, é a intuição quanto a atividade prática (a vida moral e
intelectual que Kant considerava impossível a liberdade da consciência).
para o homem, porque coincidiria com a
intuição de um intelecto criador. A atividade
do Eu puro é exatamente auto-intuição, pre­ 3 CD terceiro p n n c ip io ',
cisamente no sentido de autoposicionamen- a oposição no ír^u
to. Fichte chega até a usar a expressão “ Eu
em si” para indicar precisamente o Eu como
do eu limitado
condição incondicionada, que não é um ao não-eu limitado
fato, e sim um ato, atividade originária.
Fica então evidente que esse Eu e essa
Inteligência não são o eu e a inteligência O terceiro princípio representa o mo­
do homem empírico individual, mas o Eu mento da “ síntese” . A oposição entre o Eu
absoluto, a Egoidade (Ichheit = Iidade). O e o não-eu ocorre no Eu, como já vimos.
eu empírico, como veremos, nasce somente Ora, essa oposição não é de tal monta que
em um terceiro momento. o Eu elimine o não-eu e vice-versa, e sim um
delimita o outro e vice-versa. Com efeito, é
evidente que a produção do não-eu não pode
surgir senão como limite ou como deter­
2 CD s & g u n d o princípio: minação do Eu. Assim, necessariamente, o
o <Su opõe a si um não-eu não-eu determinado comporta um Eu deter­
minado. Fichte usa o termo “ divisível” para
expressar esse conceito, de modo que a fór­
Ao primeiro princípio da “ posição” mula daí resultante torna-se clara: o Eu opõe
(tese) ou autoposição do Eu se contrapõe no Eu um não-eu divisível ao Eu divisível.
um segundo princípio de “ oposição” (an­ Fichte identifica esse terceiro momento
títese), que Fichte assim form ula: o Eu com a “ síntese a priori” kantiana. E, nos
opõe a si um não-eu. Podemos agora nos dois primeiros momentos, indica as con­
valer de um princípio da lógica formal para dições que a tornam possível. Além disso,
compreender o que Fichte diz. Tomemos a Fichte está convicto de estar em condições de
proposição “ não-A não é = A ” . Ela pressu­ “ deduzir” as categorias, que Kant pretendeu
põe a oposição de não-A e a posição de A. extrair de modo metódico seguindo um fio
M as ambas nada mais são do que atos do condutor, mas que, na realidade, extraiu
Eu e, além disso, pressupõem a identidade mecanicamente do quadro dos juízos. Dos
do Eu. Portanto, é o Eu que, assim como se três princípios examinados, por exemplo,
põe a si mesmo, opõe algo a si. podem-se “ deduzir” as três categorias da
M as a dedução deste segundo princípio qualidade:
mostra-se ainda mais clara e quase óbvia, 1) afirmação (primeiro princípio);
seguindo-se outra linha de pensamento. 2) negação (segundo princípio);
O Eu coloca-se a si mesmo não como algo 3) limitação (terceiro princípio).
estático, mas como algo dinâmico (como De modo análogo, Fichte procede para
ação): põe-se como poente, e o pôr-se como deduzir também as outras.
poente comporta necessariamente a posição A antítese entre Eu e não-eu e a limi­
de alguma outra coisa, ou seja, a posição tação recíproca explicam tanto a atividade
de outro algo e, portanto, a posição de um cognoscitiva como a atividade moral:
não-eu (o outro algo além do eu só pode 1) a atividade cognoscitiva funda-se no
ser o não-eu). aspecto pelo qual o Eu é determinado pelo
E evidente que esse não-eu não está não-eu;
fora do Eu, e sim no seu interior, já que nada 2) a atividade prática funda-se, por sua
é pensável fora do Eu. Portanto, o Eu ilimi­ vez, no aspecto pelo qual o Eu determina o
tado opõe a si um não-eu ilimitado. Assim, não-eu.
Cãpítulo C[UãVtO - F i r k l í ' e o id e a lis m o é+ico

Visto que tanto um quanto outro mo­ é evidente que a autoconsciência pura per­
mento se verificam no âmbito do Eu infinito, manece como limite do qual podemos nos
conseqüentemente se dá uma dinâmica que, aproximar, mas que nunca podemos atingir,
nos dois âmbitos, de modo diferente, se des­ exatamente por razões estruturais (derrubar
dobra em progressiva superação e domínio todo limite significaria derrubar a própria
do limite, como veremos. consciência).

ír ü x p lic a ç ã o i d e a l i s t a é ^ x p lic a ç ã o id e a lis ta


d a a tiv id a d e c o g n o sc itiv a d a a tiv id a d e m o ral

N a experiência e no conhecimento nós Se, na atividade teórico-cognoscitiva,


consideramos comumente que nos encon­ é o objeto que determina o sujeito, na ati­
tramos diante de objetos diferentes de nós e vidade prático-moral, ao contrário, como
que agem sobre nós. Como se explica o fato dissemos, é o sujeito que determina e mo­
de o sujeito considerar o objeto diferente difica o objeto.
de si, a ponto de sentir-se “ afetado” pela N o primeiro caso, o não-eu age sobre
ação dele? o Eu como objeto de conhecimento; no
Fichte procura resolver o problema re­ segundo caso, ao contrário, o não-eu age
tomando de Kant a figura teórica da “ ima­ sobre o Eu como uma espécie de “ impac­
ginação produtiva” e transformando-a de to ” ou “ esforço” (Anstoss), que suscita um
modo muito engenhoso. Em Kant a imagina­ “ contra-impacto” ou “ contra-esforço” . No
ção produtiva determinava a priori a forma agir prático, o objeto se apresenta ao homem
pura do tempo, fornecendo os “ esquemas” como obstáculo a superar. Assim, o não-eu
às categorias. Em Fichte a imaginação pro­ torna-se o instrumento através do qual o
dutiva torna-se criadora “inconsciente” dos Eu se realiza moralmente. Sendo assim, o
objetos. A imaginação produtiva, portanto, não-eu torna-se momento necessário para
é a atividade infinita do Eu que, delimitan­ a realização da liberdade do Eu.
do-se continuamente, produz aquilo que Ser livre significa tornar-se livre. E
constitui a matéria de nosso conhecimento. tornar-se livre significa afastar incessante­
Precisamente por se tratar de produção mente os limites opostos pelo não-eu ao Eu
inconsciente, o produto nos aparece como empírico.
“ diferente” de nós. N a explicação da atividade cognos-
M as a im aginação produtiva forne­ citiva, vimos que o Eu põe o não-eu. N o
ce, por assim dizer, um material bruto, do contexto da explicação da atividade prática,
qual, em etapas sucessivas, a consciência se
reapropria através da sensação, da intuição
sensível, do intelecto e do juízo.
Ora, se nós nos colocarmos no ponto
de vista da reflexão comum, pelas razões ■ N ão-e u. É a natureza em geral,
explicadas, formamos “ a sólida convicção com preendida como "reino dos lim i­
de que as coisas têm realidade fora de nós” tes". O não-eu é posto (produzido,
e que, portanto, elas existem sem nossa criado) inconscientem ente pelo Eu
intervenção. Todavia, quando, com a razão absoluto por m eio da im agin ação
l p ro d u t iv a , a q u a l, e n q u a n to em
filosófica, refletimos sobre as etapas do pro­ = K an t era apenas determ inadora a
cesso cognoscitivo e suas condições, então ; p rio ri da intuição pura do tem po, em
adquirimos consciência do fato de que tudo Fichte torna-se justam ente criadora
deriva do Eu e, em nossa autoconsciência, : "in co n scie n te" dos objetos. A im agi-
nos aproximamos sempre mais da “ auto­ ■ nação produtiva é assim a atividade
consciência pura” . E evidente que, em todo infinita do Eu que, delim itando-se
esse percurso, o não-eu se revelou como continuam ente, produz aquilo que
condição necessária para que nascesse a constitui a matéria do conhecim ento '
humano.
consciência, que é sempre consciência de al­ &

guma coisa diferente de si, e que, entretanto, |.

pressupõe sempre uma alter idade. E também


Segunda p ã Y t e - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

também estamos em condições de compreen­ um infinito tender à perfeição como su­


der, além do “ que” , também o “ por que” , peração progressiva da limitação. E nisso
ou seja, a razão pela qual o Eu põe o não-eu. revela-se a própria essência do princípio
O Eu põe o não-eu para poder se realizar absoluto.
como liberdade. Desse modo, Fichte considera ter de­
E ssa é um a liberdade d estin ada a monstrado definitivamente a superioridade
permanecer estruturalmente no plano da da razão prática sobre a razão pura, que
função ilimitada (o dever absoluto ou im­ Kant já intuíra. Deus não é substância ou
perativo categórico de que falava Kant). realidade em si mesma, e sim essa “ ordem
A infinitude do Eu é um infinito pôr um moral” do mundo; é o “ dever ser” e, portan­
não-eu para superá-lo ao infinito. Como é to, a idéia. A verdadeira religião consiste na
evidente, a eliminação completa do não-eu ação moral. O finito (o homem) é momento
só pode ser um conceito-limite; por isso, a necessário e estrutural de Deus (do absolu­
liberdade permanece estruturalmente como to como idéia-que-se-realiza-ao-infinito).
função infinita. A verdadeira perfeição é 11 i

iicbtc faz um discurso público


{gravura de um anônimo
do século XIX).
O sucesso e a popularidade
do fdósttfo.
iniciados com a publicação
em l ~ l>2 do Fnsaio de uma crítica
de toda revelação
e continuados com obras de época
como os Fundamentos
cia doutrina da ciência
(definidos por Schlegel como
"uma das três diretivas
principais do século").
conheceram,
depois do parêntese da chamada
"polêmica sobre o ateísm o"
de 1799, uma nova e ultima época
com os Discursos à nação alemã,
de ISOS.
Cãpltulo quarto - P i c k t e e o id e a lis m o é tic o

IV . T-Vob Ie m a s m o ra is

• Fichte resolve o problema da relação entre mundo fenomênico e mundo


numênico, sustentando que:
a) a lei moral é o nosso ser-no-mundo-inteligível;
b) a ação real constitui o nosso ser-no-mundo-sensível;
c) a liberdade, enquanto poder absoluto de determinar o sensível segundo o
inteligível, é a junção dos dois mundos: o verdadeiro principio de tudo é, portanto,
a liberdade do Eu.
O homem realiza sua tarefa moral de modo pleno quando entra em relação
com outros homens; a multiplicidade de homens implica o surgimento de muitos
ideais e, portanto, de um conflito entre ideais diferentes; nesse
conflito, uma vez que a ordem moral do mundo é o próprio O fundamento
Deus, não pode deixar de prevalecer aquele que é moralmente da lei moral
melhor. $1
• A vida associada implica o surgimento do "direito", porque em comunidade
o homem deve limitar a própria liberdade com o reconhecimento da liberdade
do outro; o direito fundamental do homem é, portanto, o direito à liberdade; o
segundo é o direito à propriedade. O Estado nasce de um contrato
social e, portanto, de um consenso das vontades dos indivíduos, A origem
e deve garantir o trabalho a todos, impedindo que haja pobres; do direito
para atingir este objetivo, o Estado pode, se necessário, fechar o e do Estado.
comércio exterior e tornar-se Estado comercial fechado. A missão
Tais posições socialistas, inspiradas pelos ideais da Revolução do §povo
2-3
alemão
Francesa, mudaram sob o evoluir dos acontecimentos históricos, —>

convencendo Fichte que apenas do povo alemão, militarmente


derrotado e politicamente oprimido e dividido, podia vir o impulso para o pro­
gresso da humanidade: apenas o povo alemão reunificado teria podido realizar
tal missão.

1 Fu n dação id e a lista e a liberdade é o elo entre os dois mundos,


i / ■ enquanto é poder absoluto de determinar o
d a e tica
mundo sensível segundo o inteligível.
O não-eu age sobre o Eu somente como
Os conceitos expressos por último “ resistência” , que não apenas estimula o Eu
encontram aplicação nas obras de Fichte a agir, mas pressupõe o seu ser posto por
expressamente dedicadas a temáticas éticas, parte do Eu.
jurídicas e políticas. O Eu é o verdadeiro princípio de tudo.
Dentre as muitas coisas interessantes Os problemas dos quais Fichte partira
ditas por Fichte a esse respeito, devemos nos são, assim, plenamente resolvidos, e o prin­
limitar aqui a destacar as mais essenciais. cípio ao qual visava para poder reduzir o
Em primeiro lugar, devemos notar que kantismo a uma unidade é alcançado.
Fichte resolve brilhantemente (pelo menos É claro que nesse contexto, em que
do seu ponto de vista) o grande problema tudo fica entregue à atividade moral, o pior
que tanto atormentara Kant sobre a relação dos males (o vício supremo) é a inatividade
entre o mundo sensível ou fenomênico e o ou a inércia, da qual derivam os outros
mundo numênico com o qual se relaciona vícios piores, como a vilania e a falsidade.
nosso agir moral. Fichte sustenta que a lei A inatividade (a acídia), com efeito, faz o
moral constitui nosso ser-no-mundo-inteligí- homem permanecer no nível de coisa, de
vel (o elo estrutural com o inteligível), a ação natureza, de não-eu e, portanto, em certo
real constitui nosso ser-no-mundo-sensível, sentido, é a negação da essência e do destino
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç a o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

do próprio homem. O homem realiza sua Nascido de um contrato social e, portanto,


função moral de modo pleno entrando em do consenso das vontades dos indivíduos,
relação com os outros homens. Exatamente o Estado deve garantir a quem é incapaz
para tornar-se plenamente homem, cada a possibilidade de sobrevivência, a quem é
homem tem necessidade dos outros homens. capaz a possibilidade de trabalhar e, por fim,
A necessidade de existirem muitos homens também deve impedir que alguém viva sem
(a “ d ed u ção ” da m ultiplicidade de eus trabalhar. Como concebido pelo filósofo,
empíricos) é, portanto, fundamentada por portanto, o Estado garante trabalho para to­
Fichte na consideração de que o homem tem dos e impede que existam pobres e parasitas.
o dever de ser plenamente homem, o que se N a obra O Estado comercial fechado, Fichte
realiza apenas se existem mais homens. sustenta que o Estado, a fim de alcançar os
A multiplicidade de homens implica objetivos apontados, pode, se necessário,
o surgimento de multiplicidade de ideais e, fechar o comércio com o exterior ou regulá-
portanto, conflito entre os defensores dos di­ lo a fim de assumir seu monopólio.
versos ideais. Nesse conflito, segundo Fichte,
é sempre o melhor que vence, até quando
é aparentemente derrotado. Esse conceito,
muito belo, é condicionado, porém, pela
3 O p a p e l k istó rico

visão de conjunto da qual brota, a qual im­ d a nação a le m ã


plica que, sendo a ordem moral do mundo
o próprio Deus, aquele que é moralmente
melhor não pode deixar de prevalecer. A essas posições socialistas está ligado
O “ douto” tem missão particular entre o ideal cosmopolita que Fichte defendeu por
os homens. Ele deve se empenhar não so­ certo período, inspirando-se nos ideais des­
mente em fazer progredir o saber, mas em pertados pela Revolução Francesa. M as os
ser moralmente melhor e, nesse sentido, com acontecimentos históricos aos quais assistiu
sua atividade e seu exemplo, deve promover na última fase da vida o convenceram de que
o progresso da humanidade. o impulso para o progresso da humanidade
não viria do povo francês, sob a guia de Na-
poleão, que agia como déspota e pisoteava
a liberdade, e sim do povo alemão, militar-
2 S ig n ific a d o
mente derrotado e politicamente oprimido
e fu n ç ã o d o d ire ito e dividido. O povo alemão reunificado — e
e do E stad o só o povo alemão — teria podido cumprir
essa missão. Os Discursos à nação alemã
terminam assim: “ Conhecemos nós algum
A multiplicidade de homens implica povo que se assemelhe a este nosso, que foi
também o surgimento do “ direito” e do o progenitor da civilização moderna e que
“ Estado” . Visto que o homem não está só, nos suscite a mesma confiança? Creio que
mas é parte de uma “comunidade” , é ser todo aquele que não se entregue às fantasias,
livre ao lado de outros seres também livres, mas pense, refletindo e discernindo, deve
e deve, portanto, limitar sua liberdade pelo responder com um ‘não’ a tal pergunta. Por­
reconhecimento da liberdade alheia. Mais tanto, não há outro caminho: se perecerdes,
precisamente, todo homem deve limitar sua toda a humanidade perecerá, e nunca mais
própria liberdade, de modo que todos e cada ressurgirá” .
um possam igualmente exercer a sua. Assim, Nem é preciso recordar as funestas ins­
nasce o “ direito” . trumentalizações políticas às quais essas
O direito fundamental é aquele que palavras deram origem. Em seu contexto
cada homem tem à liberdade (àquela li­ original, porém, elas tinham significado
berdade que é concretamente co-possível diverso, isto é, aquele significado que toda
no contexto de sociedade feita de homens nação que ressurge é levada a atribuir a si
livres). mesma. Foi nesse sentido, por exemplo, que
O segundo direito muito importante é ressoou o significado do Primado moral
o da propriedade. M as, a propósito desse e civil dos italianos, de Vicente Gioberti.
direito, Fichte manifesta idéias modernas Todavia, permanece o fato de que o escrito
e interessantes. Cada qual tem direito a de Fichte ofereceu amplos elementos à ideo­
poder viver mediante seu próprio trabalho. logia do pangermanismo.
Cãpltulo (JU ãV tO ~ F i c h t e e o id e a lis m o é tic o

v . * s e g u n d a fa s e
d o p e n s a m e n t o d e Tnckte ( Í 8 0 0 - Í 8 Í 4)

•A filosofia de Fichte, após a "polêmica sobre o ateísmo", 0 jdeaijSmo é


revela evidentes mudanças, de notável relevo e porte, que se aprofundado
desenvolvem segundo um aprofundamento progressivo do idea- em sentido
lismo em sentido metafísico e acentuadamente místico-religioso. metafísico
Na exposição da Doutrina da ciência de 1801, na base de tudo -»§ 1-2
existe o absoluto, que se manifesta formalmente em si como ra­
zão, como identidade que infinitamente se diferencia de saber e de ser; o absoluto
é assim cindido do saber absoluto, o qual, para ser superado, deve ser posto na
"evidência" da luz da unidade divina.
• Quanto à instância religiosa, já notável na Missão do
homem, encontra sua expressão mais típica na Introdução à a instância
vida beata, onde se afirma que na vida e nas ações do homem religiosa
devoto a Deus não é o homem que age, mas o próprio Deus; 3
a própria ciência torna-se uma espécie de união mística com o
absoluto.

1 pi l ^ e l a ç õ e s e d i f e r e n ç a s As novidades se desenvolvem segun­


do duas direções fundamentais, precisa­
e n tre a s d u a s fa s e s
mente:
d a f ilo s o fia d e F i c k t e 1) segundo aprofundamento progres­
sivo do idealismo em sentido metafísico;
2) em sentido acentuadamente místico-
A produção filosófica de Fichte pos­ religioso.
terior à “ polêmica sobre o ateísm o” , ou
seja, posterior ao m om ento em que se
estabeleceu em Berlim (1800), apresenta . 2. ^ A p r o fu n d a m e n to s
evidentes m udanças de pensam ento, de d o id e a lis m o
notável importância e alcance, a ponto de e m s e n tid o m e t a fís ic o
alguns estudiosos falarem de duas filosofias
de Fichte.
O filósofo, entretanto, defendeu a uni­ Em 1798, no Sistema da moral, Fichte
dade de seu pensamento. já escrevia: “ O saber e o ser não se cindem
A verdade talvez esteja no seguinte: fora da consciência e independentemente
Fichte sempre sustentou (e, provavelmente, dela, mas cindem-se somente na consciência,
com perfeita boa-fé) ter exposto em seus porque essa cisão é a condição da possibi­
livros as mesmas coisas que Kant dissera, lidade de todo conhecimento, e somente
só que expressando-as de modo diferente; mediante essa cisão é que surgem um e
entretanto, aconteceu que, expressas de outro. N ão há nenhum ser senão através
modo diferente, as coisas ditas por Kant da consciência, e fora dela não há também
tornaram-se diferentes; o mesmo pode-se nenhum saber que seja termo meramente
dizer da segunda filosofia de Fichte em re­ subjetivo e em movimento em direção ao
lação à primeira. Procurando dizer de modo seu ser. Pelo simples fato de poder dizer-me
novo as coisas ditas entre 1793 e 1799, os ‘eu’, sou obrigado a cindir: por outro lado,
escritos que vão de 1800 em diante acabam só porque digo ‘eu’, enquanto o digo, ocorre
por dizer coisas novas. a cisão. Portanto, estando a unidade assim
S e g u n d ã p ã T te - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç a o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

cindida na base de todo conhecimento, e espelha na consciência, sobretudo no dever


em conseqüência do qual o subjetivo e o ser e na vontade moral.
objetivo são inseridos imediatamente na
consciência como unidade, é absolutamente
= X , não podendo, em sua simplicidade,
chegar de modo algum à consciência” .
3 ;A c o m p o n e n te

O segundo Fichte, ao contrário, reve­ m ís + ic o - r e lig io s a


la-se voltado para, à medida do possível, no s e g u n d o R ck +e
cap tar essa incógnita X e garantir-lhe
estatura ontológica tal que ela acaba por
tornar-se Deus acima do Eu, um absoluto Uma linha de pensamento análoga ma­
que é bem mais do que a ordem moral do nifesta-se nas exposições exotéricas, ou
mundo. seja, populares, que saíram paralelamente
A exposição da Doutrina da ciência de nesse período.
1801 já mostra claramente essa tendência. N a M issão do homem, Fichte dá à fé
Em uma carta, Fichte assim a resume: “ [...] extraordinário relevo, tanto que, em algu­
Minha nova Exposição [...] mostrará que é mas páginas, parece-nos quase estar lendo
preciso inserir na base o absoluto (ao qual, Jacobi.
precisamente por se tratar do absoluto, não N o que se refere aos fundamentos,
se pode acrescentar nenhum atributo, nem Fichte já fala, ao invés de Eu, de Vida, Von­
o do saber nem o do ser, e tampouco o da tade eterna e Razão eterna: “ Toda a nossa
indiferença do saber e do ser), e que esse vida é a sua vida. N ós estamos em sua mão
absoluto se manifesta em si como razão, se e aí permanecemos — e ninguém poderá daí
quantifica, se divide em saber e ser; somente nos arrancar. Nós somos eternos porque ela
sob essa forma é que chega a uma identida­ é eterna” .
de do saber e do ser, que se diversifica ao Ainda nessa obra, Fichte chega a afir­
infinito” . mar que “ somente o olhar religioso penetra
Retorna assim a sombra de Spinoza, no sinal da verdadeira beleza” .
da qual Fichte procura fugir desta maneira: A instância religiosa da última fase do
“ E só assim que se pode manter o ‘Uno e pensamento de Fichte encontra sua mais
o Todo’, mas não como em Spinoza, onde típica expressão na Introdução ã vida bem-
ele perde o ‘Uno’ quando vem ao ‘Todo’ e o aventurada, de 1806, na qual o idealismo se
‘Todo’ quando tem o ‘Uno’. Somente a razão colore com as tintas próprias do panteísmo
possui o infinito, porque nunca pode aferrar metafísico: “ N ão há absolutamente nenhum
o absoluto. E somente o absoluto, que nunca ser e nenhuma vida fora da vida divina ime­
entra na razão senão formaliter, é a unidade, diata. Esse ser é encerrado e obscurecido de
unidade que permanece somente qualifica­ vários modos na consciência, com base em
tiva e nunca quantitativa” . Desse modo, o leis próprias, indestrutíveis e fundadas na
absoluto é cindido do saber absoluto (da essência da própria consciência; mas, liberto
doutrina da ciência): “ O saber absoluto desses invólucros e modificado somente pela
[...] não é o absoluto [...]. O absoluto não forma do infinito, reaparece na vida e nas
é o saber nem o ser, nem a identidade nem a ações do homem dedicado a Deus. Nessas
indiferença de ambos, mas é absolutamente ações, não é o homem que age, e sim o pró­
o absoluto, pura e simplesmente” . prio Deus, no seu ser íntimo e originário e
N a redação da Doutrina da ciência, em sua essência, que age no homem e realiza
de 1804, o filósofo recorre até, além do sua obra por meio dele” .
conceito de unidade, também ao conceito Esta, segundo Fichte, seria a doutrina
neoplatônico de “ luz” , que, irradiando-se, do Evangelho de João, que corrigiria aque­
cinde-se em ser e pensamento. Aqui, Fichte le “ erro essencial e fundamental de toda
não apenas distingue o absoluto do saber falsa metafísica e doutrina da religião” ,
conceituai, mas sustenta que este insere-se que é a teoria da criação a partir do nada,
para ser superado na “ evidência” própria “ princípio originário do hebraísmo e do
da luz da unidade divina. N as últimas ex­ paganism o” . E mais: “ A suposição de uma
posições, Deus é concebido como ser uno criação, especialmente em relação a uma
e imutável, ao passo que o saber torna-se doutrina religiosa, é o primeiro passo em
a imagem ou esquema de Deus, “ o ser de direção ao erro: a negação de tal criação, se
Deus fora do próprio ser” , o divino que se suposta por doutrina religiosa anterior, é o
Capitulo quarto - F ic k + e t1 o id e a lis m o é t ic o

primeiro critério da verdade de tal doutrina E assim, Fichte reinterpreta segundo


religiosa. O cristianism o, especialmente seus próprios esquemas os conceitos do
Jo ão , o profundo conhecedor das coisas Verbo divino e do amor. A própria ciência
de que falamos, encontrou-se neste último torna-se uma espécie de união mística com
caso ” . o absoluto.

V I . (Sorvclusões:
F ick + e e o s ro m â n tic o s

• A última especulação de Fichte teve pouco eco. Na Doutrina da ciência, de


1794, os românticos, ao invés, haviam lido muitas de suas aspirações, como o con­
ceito de infinito e do incessante tender para o infinito, a redução
do não-eu a uma projeção do Eu, a proclamação da liberdade A marca ética
como significado último das coisas. é a constante
A constante do pensamento de Fichte foi em todo caso a do pensamento
marca ética. O idealismo de Fichte é idealismo "ético" principal- de Fichte
mente porque a lei moral e a liberdade são a chave que explica ^ 5
a escolha que todo homem particular faz das coisas e da própria
filosofia: escolhe o idealismo quem é livre, escolhe o dogmatismo objetivista (a
filosofia que dá proeminência às coisas em relação ao sujeito) quem não é espiri­
tualmente livre.

autoprodução e auto-superação provém da


dialética de Fichte, pelo menos no que se
refere à formulação e à definição teórica.
Se, para compreender o homem Fi­
As últimas especulações de Fichte ti­ chte, é preciso seguir toda a sua parábola
veram pouco eco. O sucesso da Doutrina evolutiva, para compreender o desenvol­
da ciência de 1794 não podia se renovar, vimento das idéias desse período é preciso
porque naquela obra os românticos viram concentrar-se sobretudo na D outrina da
também muitas de suas aspirações, que ali ciência de 1794 e nas idéias que estão em
eram mais sugeridas do que expressamente sua base. Ademais, a marca ética expressa
form uladas e proclam adas. Além do que nessa obra e nas obras estreitamente ligadas
era dito, leram também, nas entrelinhas, o a ela permaneceu a constante do pensamento
que não era dito, de modo que a obra foi de Fichte, o mínimo denominador comum
carregada de significados diversos. de toda a sua obra. O idealismo de Fichte é
Eis o que os românticos leram nela: o idealismo “ ético” ou “ m oral” , não apenas
conceito de infinito e do incessante tender ao porque a lei moral e a liberdade são a chave
infinito; a redução do não-eu a uma projeção do sistema, mas também porque são a chave
(ou criação) do Eu e, portanto, o predomínio que explica a escolha que cada homem em
do sujeito; a proclamação da liberdade como particular faz das coisas e da própria filoso­
significado último do homem e das coisas; fia: escolhe o idealismo quem é livre, escolhe
a concepção do divino como algo que se o dogmatismo objetivista (a filosofia que dá
concretiza no agir humano. O próprio con­ proeminência às coisas em relação ao sujei­
ceito romântico de “ ironia” como contínua to) quem não é espiritualmente livre.
Segunda parte - P w n d a ç ã o e a b s o l w + i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

FICHTE
O EU PURO E OS TRÊS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
DA DOUTRINA DA CIÊNCIA

O fundamento do sistema do saber,


em grau de
transformar a filosofia em “ doutrina da ciência” , é
o Eu puro,
atividade auto-intuitiva pura
que, por meio da imaginação produtiva,
livremente se autopõe
e, autopondo-se, cria toda a realidade

...: :. ______. ... .. ..........JL._.... ............ .... ..... .... .......... . =

os três princípios fundamentais da doutrina da ciência são

1. O Fu põe absolutam ente a si m esm o (TFSF.i

1. ( ) liu oftóe absolutam ente a si. denlro de si. um não-eu i.AN I I IF.SF.l

Nn l:n absoluto, o eu lim ilaJo e o não-eu lintilado lim ilam -se reciprocamente |SIN"I I S F.)

A tividade e o g n o sd riv a : Atividade prática:


() eu e de-lerm m ado pelo não-eu ( ) eu de-termina <> não-eu

p or meio da
liberdade
que v p oder a b so lu to
de determinar

a ação real,------------------- segundo ------- a lei moral,


que constitui nosso que constitui nosso
scr-no-mundo-scnsívcl scr-no-miindo-inteligívcl
, 61
Capítulo quarto - Fickte e o i d e a lis m o é t ic o _

J. G. F it c h e

D Primeira introdução à doutrino do ciência (1797)


Um manifesto do idealismo: o que é o idealismo e por que um homem o escolhe

Poro responder às críticos suscitados pela sua Doutrina do ciência de 1794, Fichte empreen­
de a publicação em partes na revista "Jornal filosófico", o partir de 1797, do pensamento ex­
presso naquela obra, expondo-o em uma forma novo e respondendo a problemas que havia
levantado.
Na primeira porte da obra, projetada por Fichte com o título £nsaio de uma nova exposição
da doutrina da ciência, estava contida a Introdução que apresentamos aqui integralmente, e
que o filho de Fichte, ao publicar os escritos do pai, intitulou de Primeira introdução à doutrina
da ciência, título que permaneceu canônico.
Esta Introdução constitui o "manifesto" do idealismo e é apresentado com argúcia e notável
darezo.
O objetivo que Fichte se propõe é o de apresentar a idéia de fundo do idealismo, o que
deveria se impor como o único sistema filosófico coerente. O idealismo, segundo Fichte, não seria
refutável; quem procura refutá-lo, demonstra não entendê-lo. O motivo de fundo que impele a
escolher o idealismo não é de caráter intelectual, mas moral: com efeito, escolhe o idealismo
quem ama a liberdade, porque é apenas o idealismo que verdadeiramente a justifica.
Para alcançar este objetivo, Fichte procede como segue.
Temos representações de dois tipos: algumas são livres, outras se apresentam sempre
acompanhadas de um sentimento de necessidade.
O conjunto dos representações acompanhados pelo sentimento da necessidade é o que
chamamos de experiência, fí tarefa da filosofia é justamente a de fornecer explicação da ex­
periência e, portanto, do sistema das representações acompanhadas da necessidade.
Ora, aquilo que dá razão da experiência está fora da experiência, pelo motivo de que o
fundamento, enquanto tol, está fora daquilo que é fundamentado.
Os sistemas filosóficos que procuraram prestar contas da experiência são apenas dois: o
idealismo e o dogmatismo. O primeiro, para explicar a experiência, prescinde da coisa em si 0
se dirige à inteligência; o segundo, ao contrário, se dirige sobre a coisa em si.
/Vias aquilo sobre o que se fundamenta o dogmatismo, a coisa em si, não tem realidade
e pode ser considerada mera "invenção", ao passo que o objeto do idealismo faz referência
a dados precisos e incontroversos de consciência.
Dogmatismo e idealismo não têm entre si pontos em comum, e, portanto, não podem ser
refutados com armas lógicas. Seus princípios não são ulteriormente dedutíveis, e por isso suas
aceitações não podem ser discutidas logicamente. O idealista não pode refutar o dogmático,
porque este porte do coiso em si e dela foz derivor tudo, inclusive o consciência e a liberdade.
O dogmático não pode refutar o idealista, porque este não admite a existência da coiso em
si, sobre a qual o dogmático fundamento todos os seus raciocínios.
Coloca-se, então, o problema de fundo: do que depende a escolho que alguém faz?
Fundamentalmente, o interesse supremo que o homem tem é oquele que se refere a si
mesmo. /1/las há dois modos opostos de interessar-se por si mesmo, dois tipos diversos de
homens que atuam estes dois interesses. De um lado, há aqueles que, não estando ainda
elevados ao sentimento da liberdade e da autonomia em sentido adequado, têm apenas uma
consciência dispersa e apegada às coisas e, portanto, se dirigem às coisas e têm fé nelas por
amor a si. Do outro lado, ao contrário, há aqueles que se dirigem não às coisas, mas o si, ou
seja, à própria liberdade e autonomia.
Fls conclusões de Fichte, portanto, são as seguintes: o tipo de filosofia que alguém
escolhe, depende do tipo de homem que ele é; se tem fé nas coisos mais do que no liber­
dade, será um dogmático; se tem, ao contrário, uma autêntica fé em si e na liberdade, será
um idealista.
*■
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o i d e a lis m o

----- ► ---- ——..... ............................................................................. ...............................................


Todavia, o idealismo tem uma superioridade sobre o dogmatismo não só de caráter moral,
mas também de caráter teórico.
O dogmático, partindo do coisa em si, não consegue explicar adequadamente a experiência.
Com efeito, movendo-se na ordem dos coisas em si, apenas com um grande salto, totalmente
indevido, pode-se passar da coisa em si para a consciência e a inteligência, porque esta não
é uma das coisas em si. O idealista, partindo ao invés da inteligência como primeiro absoluto,
resolve todos os problemas que o dogmático não pode resolver. Neste sentido, o idealismo
se impõe como único filosofia possível.
O Fundamento do idealismo é, portanto, a inteligência, compreendida como atividade que
dó a si mesma as próprias leis no decorrer do próprio agir, em virtude de sua própria essência.
Rs leis da inteligência se deduzem, portanto, da essência do própria inteligência, e o objeto
é o produto sintético dessos leis.
Para o idealismo a experiência torna-se produção de iivre-pensamento que age segundo
as leis de sua própria essência: "a priori" e "a posteriori" coincidem, no sentido de que são a
mesma realidade, visto de dois lados diFerentes.
R palavra última do idealismo, paro Fichte é, portanto, esta: não existe outra realidade a
não ser a inteligência, e da atividade da mesma inteligência derivam todas as outras coisas,
sem nenhuma exceção.
6m torno a esta tese girará toda a história do idealismo.

representações são acompanhados pelo sen­


I. fl tarefo da filosofia consiste timento da liberdade; outras, ao contrário, são
em dar a razão de toda experiência acompanhadas pelo do necessidade.
2. As representações
1. €ntre as representações que temos, que dependem da liberdade
algumas são necessárias, são motivadas pela própria liberdade
outras são livres e não por outra coisa
fica atento a ti mesmo: afasta teu olhar de De um ponto de vista racional não pode
tudo o que está ao redor de ti e dirige-o para surgir a pergunta: por que as representações
teu íntimo: esta é a primeira exigência que a que dependem da liberdade são determinadas
filosofia faz a seu discípulo. Não se trata de justamente deste modo e não de outro?
algo que se encontra fora de ti, e sim apenas Com efeito, estabelecendo que estas de­
de ti mesmo. pendam da liberdade, fico excluído todo empre­
Mesmo observando a si próprio de relan­ go do conceito de motivação ulterior; elas são
ce, cada um perceberá uma diferença importan­ assim pelo fato de que eu as determinei assim,
te entre as diversas determinações imediatas e se as tivesse determinado de modo diverso,
da própria consciência, que podemos também elos conseqüentemente seriam diversas.
chamar de representações.
Algumas, com efeito, nos aparecem com­ 3. f) explicação do princípio do qual dependem
pletamente dependentes de nossa liberdade, as representações necessárias
mas nos é impossível crer que o elas correspon­ (que em seu conjunto
da algo de externo a nós, sem que aí haja de constituem a experiência)
nossa parte uma contribuição neste sentido. é a tarefa da filosofia
Nossa fantasia e nossa vontade nos apa­
recem como livres. Outras representações são A seguinte, ao contrário, é sem dúvida
referidas por nós a uma verdade que deve ser uma pergunta que merece reflexão: qual é o
posta independentemente de nós, como a um fundamento do sistema de representações
seu modelo; e à condição de que elas coincidam acompanhadas pelo sentimento da necessida­
com esta verdade, ao determinar estas repre­ de e deste próprio sentimento da necessidade?
sentações nos sentimos vinculados. fornecer uma resposta a esta pergunta cons­
No conhecimento nós não nos conside­ titui a tarefa da filosofia; e, segundo penso, a
ramos livres quanto àquilo que se refere ao filosofia não é mais que a ciência que assume
seu conteúdo. Resumindo: algumas de nossos esta tarefa. O sistema das representações que
- 63
Cãpítulo quarto - F ic k t e e o id e a lis m o é t ic o ------

sõo acompanhadas pelo sentimento da neces­ a ciência que se preocupa de realizar a tarefa
sidade chama-se também experiência, tanto que indicamos.
interna quanto externa. Portanto, a filosofia
- para dizê-lo em outras palavras - deve indicar
o fundamento de toda experiência. II. O fundamento que dá a razão
de toda experiência
4. Três objeções e respostas às mesmas está fora da experiência
Contra o que acabamos de afirmar po­
dem ser levantados apenas três tipos de ob­
jeções. 1. O fundamento que explica aquilo
fllguém poderia, de um lado, negar que que está fundamentado
existam na consciência representações que não entra no âmbito deste último
sejam acompanhadas pelo sentimento da C possível indagar-se a respeito do fun­
necessidade e que se refiram a uma verdade damento apenas para aquilo que se julgou
determinada sem nenhuma contribuição neste como contingente, isto é, como algo do qual
sentido de nossa parte. Quem levanta essa se pressupõe a possibilidade de ser também
objeção, ou nega, indo contra a boa-fé, ou diferente de como é, e que, todovia. não deva
então é preciso supor que ele seja feito de ser determinado pela liberdade; e justamente
modo diverso em relação aos outros homens: pelo fato de que nos interrogamos sobre seu
mas se assim fossem as coisas, então para ele fundamento, ele se torna contingente para
não existiria sequer aquilo que ele nega, e não aquele que se põe esta pergunta, fl tarefa de
existiria nenhuma negação, e por isso podemos buscar o fundamento de uma coisa contingente
com razão descurar sua objeção. significa mostrar alguma outra coiso de cuja
Ou então alguém poderia dizer que a determinação se possa compreender por que
questão levantada é completamente insolúvel, o principiado1 assumiu, entre as múltiplas de­
que, a respeito, nos encontramos em um esta­ terminações possíveis, justamente aqueío que
do intransponível de ignorância no qual somos tem. Conseqüentemente ao conceito de funda­
forçados a permanecer. Deixar-se envolver por mento, este último cai fora do fundamentado;
alguém que levante questões deste tipo, e adu­ ambos, fundamentado e fundamento, à medida
zir motivações e contramotivações é totalmente que são tais, são opostos um ao outro e são
inútil. O melhor modo de refutá-lo é fornecer postos lado a lado, de modo que o primeiro é
uma resposta efetiva à pergunta; não lhe resta­ explicado graças ao segundo.
rá, então, nada mais a não ser examinar nossa
tentativa e indicar os pontos e as razões pelas 2. O conceito de fundamento
quais isso não lhe pareça suficiente. não pode ser entendido
Por fim, alguém poderia pôr em discus­ a não ser deste modo
são a denominação, e afirmar que a filosofia
é algo totalmente diferente, ou então que ela Ora, a filosofia deve indicar o fundamento
compreende também outras coisas além daque­ de toda experiência e, portanto, seu objeto
las que foram por nós indicadas, fl este seria necessariamente está fora de toda experiência.
fácil provar que desde sempre, e por parte de Cste princípio vale para toda filosofia, e teve
todas as pessoas que se ocuparam dela com igualmente valor universal até a época dos
competência, justamente aquilo que indicamos kantianos e de seus dados da consciência, ou
foi considerado filosofia; que tudo aquilo que seja, da experiência interna.
ele gostaria de passar como filosofia tem já Não há nenhuma objeção contra o prin­
outros nomes; que, se este termo deve designar cípio aqui enunciado: com efeito, a premissa
algo de preciso, ele deve designar justamente de nosso raciocínio consiste "simplesmente na
a ciência que indicamos. análise do conceito de filosofia que enuncia­
mos, e o resto é aquilo que se segue de tal
5. fl doutrina da ciência responde premissa. C se alguém quisesse lembrar que
a estes problemas o conceito de fundamento deve ser explicado
de modo diverso, não podemos certamente
fl partir do momento, porém, que não pre­ impedir que, ao usar esta expressão, ele pense
tendemos de foto deixar-nos envolver em uma aquilo que quiser: somos, porém, autorizados a
infrutuosa disputa centrada sobre um termo,
de nossa parte temos já renunciado há tempo
a este nome e chamamos doutrina do ciência € tudo oquilo que derivo do Princípio. [N. do T.]
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

declarar que nós, na definição de filosofia que dogmatismo, elas são o produto de uma coisa
propusemos mais acima, não queremos enten­ em si que é seu pressuposto.
der nada mais que aquilo que indicamos. Se Se alguém quisesse negar este princípio,
não se devesse atribuir à filosofia o significado deveria demonstrar ou que existe também um
que indicamos, isso comportaria a negação da outro modo, diverso da abstração, para ele­
possibilidade da filosofia em geral assim como var-se acima do experiência, ou então que na
nós a entendemos: mas, em relação o isso, já consciência da experiência existe algo o mais
tomamos posição mais acima. que os duas partes que mencionamos.
Ora, quanto ao que se refere ao primeiro
ponto, emergirá mais claramente mais à frente
III. Os dois sistemas filosóficos que aquilo que indicamos como inteligência
aparece, com efeito, na consciência sob outro
que procuram dar razão predicado, e que não é, portanto, algo que é
de toda experiência possível produzido unicamente por meio da abstração;
mas também se demonstrará que a consciên­
cia da inteligência se fundamenta sobre uma
1. Paro explicar a experiência abstração que é perfeitamente natural para o
pode-se prescindir da coisa em si, homem.
dirigindo-se à inteligência Não se nego absolutamente que seja
(como o idealismo), perfeitamente possível fundir em um conjunto
ou então prescindir da inteligência fragmentos destes dois diferentes sistemos,
dirigindo-se à coisa em si e que este trabalho inconseqüente tenha sido
(como o dogmatismo) feito com muita freqüência; queremos negar,
O ser racional finito não possui nada fora porém, que, seguindo um procedimento con­
do experiência: é ela que contém toda a matéria seqüente, sejo possível um número maior de
de seu pensamento. O filósofo se encontra ne­ sistemas além destes dois.
cessariamente nas mesmas condições: parece,
portanto, inconcebível que ele posso elevor-se
acima da experiência. IV. O fundamento que o idealismo
€le, porém, pode abstrair; pode separar e o dogmatismo apresentam
por meio da liberdade do pensamento aquilo
que na experiência permanece preso. No ex­ para explicar a experiência
periência, a coisa, ou seja, aquilo que aparece
como determinado de modo independente de
nossa liberdade e sobre o qual nossa experiên­ 1 .0 objeto de uma filosofia
cia deve se regular, e o inteligência, que deve
conhecer, estão unidas de modo inseparável. O Definimos objeto de uma filosofia o funda­
filósofo pode abstrair de uma das duas, e, des­ mento que explica a experiência proposto por
se modo, ele abstrai da experiência e se eleva uma filosofia, pois ele parece existir apenas
acima dela. Se ele abstrair da coisa, resta-lhe graças a esta última e para esta última. (Entre o
uma inteligência em si, isto é, separada da ex­ objeto do idealismo e o do dogmatismo existe
periência; se abstrair da inteligência, então lhe uma diferença importante a propósito de sua
resto uma coisa em si, isto é, separada do fato relação com a consciência. Tudo aquilo de que
de que o coisa em si aparece na experiência, estou consciente chama-se objeto da consciên­
como fundamento explicativo desta última. O cia. Gxistem três tipos de relação possíveis entre
primeiro procedimento chama-se idealismo, o este objeto e o sujeito das representações:
segundo chama-se dogmatismo. 1) ou o objeto aparece como produto do
representação da inteligência;
2. Idealismo e dogmatismo
2) ou aparece como existente sem nenhu­
são os únicos dois sistemas
ma contribuição por parte da própria inteligência;
filosóficos possíveis
3) ou então aparece, por fim, ou como
determinado também no que se refere à própria
O que acabamos de dizer deveria ter natureza, ou como existente unicamente pelo
persuadido de que são possíveis apenas estes fato de que existe, mos determinável pela livre
dois sistemas filosóficos. Conforme o idealis­ inteligência no que se refere à sua natureza.
mo, as representações acompanhadas pelo fl primeira relação diz respeito a algo
sentimento da necessidade são o produto da puramente inventado, com ou sem um fim; o
inteligência que é seu pressuposto; conforme o segundo diz respeito a um objeto da experiên­
Capitulo quarto - T"ick+e e o i d e a lis m o é tic o

cia; o terceiro diz respeito apenas a um único a experiência pode ser efetivamente explicada
objeto que queremos logo mostrar. recorrendo à coisa em si, e que, sem ela, não é
absolutamente explicável: mas a questão está
2. O objeto do idealismo é o "€u em si” justamente nisto, e não é lícito pressupor aquilo
que ao contrário deve ser demonstrado.
Sem dúvida posso induzir-me livremente
a pensar isto ou aquilo: por exemplo, o pensar 4. fl vantagem que o objeto do idealismo
a coisa em si do dogmático. Se agoro abstraio tem sobre o do dogmatismo
daquilo que é pensado, e dirijo o olhar unica­
mente sobre mim, eis que eu me torno para O objeto do idealismo tem, portanto, em
mim mesmo, neste objeto, o objeto de uma relação ao do dogmatismo, a vantagem de que
representação determinada. O Pato de que eu ele deve ser demonstrado não como fundamen­
apareça para mim mesmo determinado justa­ to explicativo da experiência - o que resultaria
mente deste modo e não de outro, exatamente contraditório e transformaria este sistema em
como pensante, e pensante, entre todos os uma parte da experiência - mas, em geral,
pensamentos possíveis, justamente na coisa na consciência; o objeto do dogmatismo, ao
em si, deve depender, a meu ver, de minha contrário, não pode ser mais que pura invenção
determinação que eu faço de mim mesmo: eu que deve sua realização apenas pelo êxito do
me tornei livremente a mim mesmo o tal objeto. sistema.
Cu, porém, não me tornei o mim mesmo em si, Cstas observações foram feitas apenas
mas, ao contrário, sou levado necessariamente para permitir uma compreensão mais clara das
a pressupor a mim mesmo como aquilo que diferenças entre os dois sistemas e, portanto,
deve ser determinado pelo autodeterminação. não para delas deduzir conseqüências lógicas
Mas eu próprio sou, para mim, um objeto cuja contra o dogmatismo. Longe de querer que
natureza, em determinadas condições, depende isso se transforme em desvantagem para um
unicamente da inteligência, cuja existência deve sistema, é a própria natureza da filosofia que
sempre ser pressuposta. exige que o objeto de toda filosofia, como
Ora, justamente este €u em si2 constitui o fundamento explicativo da experiência, deve
objeto do idealismo. O objeto deste sistema, encontrar-se fora da própria experiência. Por
portanto, se apresenta verdadeiramente na qual razão o objeto deva depois se encontrar na
consciência como algo de real; não como uma consciência de modo particular, a isso ainda não
coiso em si, o que comportaria que o idealismo estornos em grau de fornecer explicações.
deixasse de ser aquilo que é, e o transforma­
ria em dogmatismo, e sim como 6u em si: não 5. Respostas a algumas objeções
compreendido como objeto da experiência, pois contra o idealismo
o Cu em si não é determinado, mas torna-se
determinado apenas por mim mesmo, e, sem Caso alguém não conseguisse estar
esta determinação, não seria nada e de fato convencido do que acabamos de afirmar, isso
não existiria; mas é entendido como algo que não prejudicaria ainda a possibilidade de se
se eleva acima de todo experiência. convencer do conjunto, a partir do momento de
que tudo o que dissemos constitui apenas uma
observação de passagem. Além disso, como me
3. O objeto do dogmatismo é a "coisa em si" propus, levarei em consideração as possíveis
O objeto do dogmatismo, ao contrário, objeções também a este ponto.
pertence aos objetos da primeira classe, os fllguém poderio negar a existência, que
quais são produzidos somente pelo pensa­ nós sustentamos, da autoconsciência imediata
mento livre; a coisa em si é pura invenção, em uma atividade livre do espírito. R quem o
e não possui nenhuma consistência. €la não fizesse, deveremos apenas lembrar, mais uma
aparece na experiência: com efeito, o sistema vez, as condições indicadas a propósito. Fl
da experiência é tão-somente o pensar que autoconsciência não se impõe, e não vem por
é acompanhado pelo sentimento da necessi­ si; é preciso de fato agir de modo livre, depois
dade; e nem mesmo o dogmático, que deve, abstrair do objeto e dirigir o olhar apenas sobre
como todo filósofo, indicar seu fundamento,
pode substituí-lo por alguma outro coisa. O
dogmático quer, na verdade, garantir à coisa 2flté agoro evitei esto expressão paro não dar ocasião
em si a consistência, ou seja, a necessidade poro uma representação do €u como coiso em si. Minho
de ser pensado como o fundamento de todo cautela foi inútil: por este motivo agoro me servirei dela
pois não vejo com quem eu deveria tomar cuidado. [Nota
experiência; e poderá fazê-lo, caso prove que de fichte]
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

si mesmos. Ninguém pode ser obrigado o fazê- de umo coisa em si e, portanto, assim aparecem
lo, e mesmo que desse o entender que o seria, também nossas supostas determinações por
jornais se poderia dizer se nisso ele procede meio da liberdade, juntamente com a opinião se­
corretamente e como lhe é pedido fazer. Cm gundo o quol nós sejamos livres. Csta opinião se
suma: esta consciência não pode ser demons­ produz em nós por efeito da coisa em si; de igual
trada a ninguém; coda um deve produzi-la em modo são produzidas as determinações que nós
si mesmo por meio da liberdade. deduzimos de nosso liberdade, porém nós não
Contra a segunda afirmação, ou seja, que o sabemos, e é por isso que não os atribuímos
a coisa em si é pura invenção, poder-se-ia le­ a nenhuma causo, e podemos, portanto, atribuí-
vantar objeções openos se ela fosse mal-enten­ las à liberdade. Todo dogmático que seja con­
dida. Nós o remeteremos, então, ã descrição, seqüente é necessariamente fatal isto: ele não
feito mais acima, da origem deste conceito. nega o fato da consciência pela qual nós nos
consideramos livres, porque isso seria contrário
à razão; todavia, ele demonstra, deduzindo-a
V. Idealismo e dogmatismo de seu princípio, o falsidade desta afirmação.
não têm pontos em comum Cie contesta completamente a autonomia
do Cu, sobre a qual se fundamenta, ao contrário,
e são incompatíveis entre si o idealista, e o reduz apenas o um produto das
coisas, a um acidente do mundo; o dogmático
conseqüente é tombém necessariamente mate­
1. Os dois sistemas rialista. Cie poderio ser refutado apenos partin­
não podem ser refutados um pelo outro do do postulado da liberdade e do autonomia
porque seus princípios do Cu: mos é justamente isso que ele nega.
não podem ser deduzidos
Nenhum destes dois sistemas pode re­ 3. Por que o dogmatismo
futar diretamente o oposto: com efeito, suo não pode refutar o idealismo
controvérsia refere-se ao princípio primeiro, não Do mesmo modo, nem o dogmático pode
ulteriormente dedutível. Cada um deles refuta o refutar o idealista.
princípio primeiro do outro apenas se é aceito O princípio do dogmático, a coisa em
somente o próprio. Cada um nega inteiramente si, não é nada e, como deve reconhecer seu
o somente, e não têm sequer um ponto em co­ próprio defensor, ela não possui nenhuma rea­
mum sobre o qual se apoiar para se compreen­ lidade exceto a que lhe derivaria do foto de
derem e se conciliarem reciprocamente. Mesmo que openos partindo do coiso em si é possível
que eles possam parecer de acordo sobre as explicar a experiência.
palavras de uma proposição, cada um, todovia, O idealista aniquila esta demonstração
as entende em sentido diferente.3 explicando a experiência de modo diverso e,
portanto, contesta justamente o fundamento
2. Por que o idealismo
não pode refutar o dogmatismo
Cm primeiro lugar, o idealismo não pode 56 este o motivo pelo qual Kant nõo foi compreendido e
refutar o dogmatismo. O idealismo, como vimos, o doutrina da ciência nõo encontrou nenhuma vio de acesso,
nem é provável que a encontre logo. O sistema kantiano e o
tem de foto o vantagem sobre o dogmatismo da doutrino da ciência são ambos idealistas, nõo segundo
de estar em grau de mostrar no consciência seu o costumeiro significado impreciso, mas conforme o preci­
fundamento explicativo da experiência, isto é, so que acabo de ser indicado; os filósofos modernos, ao
a inteligência que age livremente. Também o contrário, são no conjunto dogmáticos, e estão firmemente
decididos o permanecer tais. Kant é suportado apenas
dogmático deve admitir este fato como tal: coso pelo fato de que foi possível dele fazer um dogmático; a
contrário, com efeito, ele se veria impossibilita­ doutrina da ciência, que não permite uma transformação
do de manter qualquer conversa posterior com o desse tipo, resulta necessariamente intolerável para estes
idealista; mas o dogmático transformo este fato expertos das coisas do mundo. A rápida difusão do filosofia
em aparência e ilusão, partindo de seu princípio kantiano, depois que foi compreendida como o foi, não é
uma prova da profundidade, e sim da superficialidade de
e deduzindo corretamente suas conseqüências: nosso tempo. Nesta imagem ela é, em parte, o porto mais
assim fazendo, ele o torna inadequado paro se bizarramente monstruoso que o fantosia humano jornais
tomar fundamento explicativo de outros coisas, tenha produzido, e pouco honra o intelecto de seus defen­
a partir do momento que, em suo filosofia, isso sores o fato de que el®s nõo perceberam isso; em parte, é
fácil demonstrar que ela deu boa impressão apenas porque
não é sustentável. se acreditou afastar toda especulação séria e possibilitou
Conforme o dogmático, tudo aquilo que um régio "deixe passar" para dedicar-se posteriormente ao
está presente em nossa consciência é o produto querido e superficial empirismo. [Nota de Fichte]
67
Capítulo quarto - F i c k t e e o I d e a l is m o é t ic o — ™,

sobre o qual o dogmatismo constrói seu siste­ e que o homem antes ou depois consegue al­
ma. R coisa em si se torna quimera total; não cançar, com o progresso do pensamento mesmo
se vê mais o motivo pelo qual ela deveria ser sem uma contribuição consciente de sua parte
hipotetizada e, deste modo, todo o edifício do - não encontra nada mais a não ser o foto de
dogmatismo desmorona. que ele deve necessariamente representar-se
estas duas coisas: 1) ser livre e 2) que existam,
4. Impossibilidade de fundir
fora dele, coisas determinadas.
em um único sistema
é impossível para o homem permanecer
idealismo e dogmatismo
neste pensamento; o pensamento do pura re­
presentação é openas um pensamento deixado
De tudo o que foi dito temos, ao mesmo pela metade, um fragmento de pensamento;
tempo, a inconciliabilidade absoluta dos dois ele deve figurar para si também algo que
sistemas, uma vez que aquilo que se deduz de corresponda à representação de modo inde­
um anula aquilo que se deduz do outro: segue- pendente do representar. €m outras palavras:
se daí, portanto, a inevitável inconseqüência de a representação não pode existir por si. €m si
sua mistura em um único sistema. €m toda ten­ ela não é nada, e é algo apenas se estiver
tativa nesse sentido, suas partes não são pos­ ligada a alguma outra coisa, t justamente esto
síveis de serem superpostas e em algum ponto necessidade do pensamento que, partindo do
origina-se uma enorme lacuna. Quem quisesse ponto de vista que foi dito, impele a se per­
pôr em discussão tudo o que acabamos de guntar: qual é o princípio das representações,
afirmar deveria demonstrar a possibilidade de ou então, o que é equivalente, o que é aquilo
tal composição, que pressupõe uma passagem que corresponde às representações?
contínuo da matéria para o espírito, ou vice- Ora, podem certamente estar juntas a re­
versa, ou então, o que é de fato equivalente, presentação da autonomia d o íu e a represen­
da necessidade para a liberdade. tação da autonomia da coisa, mas não podem
estar juntas a autonomia do €u e a autonomia
5. Se o idealismo não pode refutar
da coisa. Rpenas um, o fu o u a coisa, pode ser
o dogmatismo, e vice-versa,
o primeiro, o originário, o independente: o que é
o que pode levar a escolher um ou outro?
segundo, justamente pelo fato de ser segundo,
aparece necessariamente como dependente do
R partir do momento que, pelo que até primeiro ao qual deve estar unido.
agora consideramos, os dois sistemas, do Todavia, qual dos dois deve ser posto
ponto de vista especulativo, parecem ter o como primeiro? O €u ou a coisa? Para resolver
mesmo valor; e a partir do momento que eles o questão, a razão não pode fornecer nenhum
não podem estar juntos, e sequer estão em critério decisivo; não se trata, com efeito, de
grau um de organizar um ataque contra o outro, ligar um elemento em uma série, para o que
é interessante perguntarmo-nos o que pode seriam suficientes os princípios da razão, mas
mover quem perceba isso - e é fácil perceber trata-se do início de toda a série que, enquanto
- a preferir um sistema em relação ao outro, o to primeiro absoluto, depende unicamente
e como pode ocorrer que não se generalize o da liberdade do pensamento. €ste ato é, por­
ceticismo, como completa renúncia à solução do tanto, determinado pelo arbítrio e, o partir do
problema levantado. momento que a decisão do arbítrio deve ter
R controvérsia entre o idealista e o dog­ um motivo, ele é determinado pelo inclinação
mático está na questão se a autonomia da coisa e pelo interesse.
que deve ser sacrificada à do Gu, ou se, ao con­ O motivo último do diferença entre o ide­
trário, é a do €u que deve ser sacrificada à da alista e o dogmático é, portanto, a diversidade
coisa. O que leva, então, um homem razoável do interesse deles.
a declarar-se a favor de um de preferência ao
outro sistema? 7. O interesse de fundo do dogmático
está na fé que muitos homens
6. As razões das quais depende a escolha têm nas coisas por amor de si mesmos
do idealismo ou do dogmatismo
estão estreitamente ligadas ao interesse O interesse mais alto, e o fundamento de
de fundo de quem escolhe
todo outro interesse, é o que alimentamos por
nós mesmos. Isto verifica-se também poro o
Se o filósofo se coloco do ponto de vista filósofo. € o interesse que, invisível, guia todo
que indicamos - segundo o qual se deve neces­ o seu pensamento, é este: não perder o próprio
sariamente pôr se quiser se tornar um filósofo, eu no raciocínio; ao contrário, mantê-lo e afirmá-
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u + i z a ç â o e s p e c u l a t i v a d o i d e a lis m o

Io. Oro, existem dois níveis de humanidade, e, que ataca; ele, por isso, se defende com calor
antes que com o progresso do gênero humano e fúria. O idealista, ao contrário, não pode
todos tenhom alcançado o segundo nível, facilmente evitar olhar do alto para baixo, com
existem dois gêneros principais de homens. certo irreverência, o dogmático que não sabe
Alguns homens, que ainda não se elevaram dizer-lhe nada que ele não saiba já há tempo
a um sentimento pleno de sua liberdade e à e que não tenha já rejeitado como folso; com
autonomia absoluta, encontram o si mesmos efeito, ao idealismo se chega, mesmo que não
apenas na representação das coisas: eles mediante o dogmatismo, ao menos por meio
possuem apenas a autoconsciência dispersa, de uma disposição de espírito que dele se
apegada aos objetos, e que deve ser reunido aproxima. O dogmático inflama-se, entrevê as
partindo do multiplicidade destes últimos. Sua coisas e, caso tivesse a força dele, tornar-se-ia
imagem vem a eles refletida pelas coisas como persecutório; o idealista é frio, e arrisca-se de
por um espelho, e se estas lhes são arrancadas, ridicularizar o dogmático.
eis que, ao mesmo tempo, também seu eu vai
embora com elas. Ges não podem renunciar à 10. A escolha de um sistema filosófico
fé na autonomia das coisas por causa do amor depende da natureza
que têm por si mesmos: com efeito, eles sub­ e do caráter do homem que escolhe
sistem apenas junto com as coisas. Tudo aquilo
que são, assim se tornaram efetivamente por O tipo de filosofia que se escolhe de­
meio do mundo exterior. Aquele que, de fato, é pende, portanto, do tipo de homem que se
apenas um produto das coisas não poderá ver é: com efeito, um sistema filosófico não é um
a si próprio a não ser como produto das coisas,
e terá razão enquanto fala de si mesmo e de
seus semelhantes. O princípio do dogmático
é a fé nas coisas por amor de si mesmo: elo
é, portanto, uma fé inteiramente mediada no
próprio eu disperso e sustentado apenas pelos
objetos.
8. O interesse de fundo do idealista
está no amor pela liberdade
Quem, ao contrário, toma consciência da
próprio autonomia e independência de tudo
aquilo que existe fora dele - e esta tomada
de consciência é possível apenas se, indepen­
dentemente de tudo, o próprio eu se torna algo
- não tem necessidade das coisas para apoiar
a si mesmo, e pode prescindir delas, porque
elas anulam a autonomia e a transformam em
vã aparência. O eu que ele possui, e que é
objeto de seu interesse, anula a fé nas coisas:
ele tem fé em suo autonomia por inclinação, ele
a prende afetivamente. Sua fé em si mesmo é
imediata.

9. As conseqüências
que derivam da fé no eu
e da fé nas coisas
Partindo desse interesse é possível expli­
car também os afetos que normalmente intervém
quando se defendem os sistemas filosóficos.
O dogmático, com o ataque a seu sistema,
corre verdadeiramente o perigo de perder a si
mesmo: todavia, ele não possui armas que o
defendem desse ataque, porque justamente Fichte em um desenho a carvão da época,
em seu íntimo existe algo que o prende àquele conservado na Biblioteca de Munique da Baviera.
. 69
Cãpltulo quarto - F ic k t e e o i d e a lis m o é tic o ____

enfeite inerte, que s® pod® pôr à part® ® utilizar 2. Coincidência do real


conforme nosso humor, mas algo d® animado e do ideal na inteligência
pelo alma do homem que o possui. Um caráter
débil por natureza ou enfraquecido e encurvodo fl inteligência, enquanto tal, dirige o
p®la servidão espiritual, pelo luxo refinado e olhar para si mesmo, e este ver a si mesma se
pelas frivolidades jamais poderá elevar-se até estende imediatamente a tudo o que ela é, e
o idealismo. nessa união imedioto de ser e de ver consiste
a natureza da inteligência. Rquilo que nela
existe e aquilo que ela é em geral, ela o é por
11. Filósofo se é por natureza si mesma-, e apenas à medida que ela é aquilo
e não existe arte humana por si mesmo, elo é aquilo como inteligência.
que nos torne tal Penso neste ou naquele objeto: o que quer
Pode-se mostrar ao dogmático a insufi­ dizer isso, e como apareço então a mim mesmo
ciência e a inconseqüência de seu sistema, neste pensamento? De nenhum outro modo a
coisa de que falaremos em breve; pode-se não ser assim: eu produzo certos determinações
confundi-lo e amedrontá-lo de todo lodo; mas em mim quando o objeto é pura invenção; ou
não é possível convencê-lo, pelo fato de que então os determinações existem sem nenhuma
ele não está em grau de ouvir e de pôr à pro­ intervenção de minha porte, caso se trate de
va com calma e frieza uma doutrina que não algo de verdadeiro; e eu olho aguele produzir
pode suportar. Para ser filósofo - dado que o e este ser. €les se encontram dentro de mim
idealismo devesse ser demonstrado como a openos à medida que eu olho para eles: olhar
único filosofia verdadeira - deve-se ter nascido e ser estão unidos de modo indissolúvel.
filósofo, é preciso ser educado para sê-lo, e Fio contrário, uma coisa será também
educar a si mesmo poro assim se tornar: mas várias coisas: logo que surge o pergunta para
não existe nenhuma arte humana que faço se quem alguma coisa existe?, ninguém que
tornar filósofo, é por isso, portanto, que esta compreenda a palavra responderá: paro si
ciência espera poucos prosélitos entre os ho­ mesmo; dever-se-á, ao contrário, acrescentar
mens já Feitos; e se lhe for permitido esperar, mentalmente também uma inteligência, para
então ela espera mais dos jovens, cuja força a qual ela é algo; a inteligência, ao contrário,
inota oinda não está destruída pela debilidade é necessariamente para si mesma aquilo que
de nosso tempo. ela é, e não é preciso acrescentar nada mais.
Por meio de seu ser dada, como inteligência, é
dado também, ao mesmo tempo, aquilo para
o que ela é. Portanto, na inteligência - para
VI. A superioridade do idealismo me expressar com uma imagem - existe dupla
sobre o dogmatismo série, o do ser e o do olhar, a do real e a do
ideal; e sua natureza (que é sintética) consiste
na indissolubilidade desta duplicidade; poro
1. Impossibilidade de explicar a coisa, porém, cabe apenas uma única série,
a experiência partindo da "coisa em si” a do real (do puro "ser dado"), fl inteligência
como faz o dogmatismo e o coisa são, por isso, exatamente opostas;
Mas o dogmatismo é inteiramente incapaz encontram-se em dois mundos diferentés e não
de explicar aquilo que deve explicar, e isto é existe nenhuma ponte que os ligue.
decisivo para mostrar sua inadequação.
0e deve explicar a representação e as­ 3. fl inteligência pode ser verdadeiramente
sume o empenho de torná-la compreensível, alcançada apenas pensando-a
reduzindo-a a um efeito produzido pela coisa como um primeiro absolutç,
em si. Todavia, ele não deve negar aquilo que e não partindo da "coisa em si”
a consciência imediata afirmo a propósito do
representação. O dogmatismo quer explicar esta natureza
Mas o que afirma a propósito? Não é mi­ da inteligência em geral e de suas determina­
nha intenção captor com conceitos aquilo que ções específicas por meio do princípio de cau­
é possível ver openos no íntimo; nem pretendo salidade: ela deveria ser um efeito produzido,
esgotar o assunto, à cuja discussão dedica-se deveria ser o segundo membro da série.
uma grande parte da doutrina da ciência. Quero Todavia, o princípio de causalidade fala
apenas trazer à lembrança aquilo que cada um de única série reol, e não de dupla, fl força
que tenha fixado, embora por pouco, o olhar do causador investe outro que se encontro
dentro de si deve ter já encontrado há tempo. foro delo, oposto a ela, e nele gera um ser, e
70
__ Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u + i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o i d e a lis m o

nada mais depois: um ser para uma possível contraditoriedade. O som simultâneo, e a har­
inteligência Fora dele e não para si mesmo. Se monia, não se encontram nos instrumentos; eles
atribuirmos ao objeto do efeito apenas uma se encontram apenos na alma do ouvinte que,
força mecânica, o objeto transmitirá a impressão dentro de si, reúne em unidode a multiplicidade;
recebida àquilo que lhe está mais próximo, e o e, se não se acrescentasse mentalmente tam­
movimento que tomou o impulso do primeiro se bém um ouvinte, som simultâneo e harmonia de
transmitirá por toda umo série, longa o quanto fato não existiriam.
se queira; mas em nenhuma parte se encontrará
um membro da série que aja voltando sobre si 5. fl inteligência não pode ser concebida
mesmo. Ou então, caso se atribua ao objeto como uma das "coisas em si”
produzido pela ação o caráter mois elevado que
se puder atribuir a uma coisa, a excitabilidade, Mas quem poderia impedir que o dogma­
de modo que ele se regule segundo a próprio tismo admitisse que uma olmo seja como umo
força e em base às leis que a causa lhe confere, das coisas em si? Csta é umo dos coisas que o
como na série do puro mecanismo, então ele dogmatismo postula para a solução da questão
reagirá certamente oo estímulo, e no causa não levantado, C este o único modo para utilizar o
se encontrará o fundamento da determinação princípio de um efeito produzido pelas coisas
de seu ser nessa ação, mos encontrar-se-á sobre a alma, pois no materialismo encontra-se
apenas a condição para ser em geral alguma apenas uma interação das coisas entre si pela
coisa; mas ele é, e permanece, um puro e sim­ qual o pensamento seria produzido. Para tornar
ples ser, ou seja, um ser para uma inteligência pensável aquilo que não é pensável, desejòu-
possível que está fora dele. fl inteligência se se postulara coisa que causa, ou o alma, ou am­
pode ganhar caso não a concebamos como um bas, de modo que mediante o efeito produzido
primeiro absoluto, e sua união com um ser dela pelo causa fossem geradas as representações,
independente seria bem difícil de obter. fl co/so causadora devia ser feita de tal modo
€m base a esta explicação, o série é e que seus efeitos se tornassem representações,
permanece única, e de nenhum modo se ex­ como por exemplo Deus no sistema de Berkeley
plicou oquilo que deveria ter sido explicado. (que é um sistema dogmático e de foto não
Deveríamos ter demonstrado a passagem do um sistema idealista). Com isso em nada se
ser pora o representar; mas isto os dogmáticos melhoram os coisas: desse modo entende-se
não o fazem nem poderão fazê-lo. Com efeito, apenas um efeito produzido pela ação mecânico
em seu princípio encontra-se unicamente o fun­ e é simplesmente impossível pensar outra. O
damento de um ser e não do representar, que pressuposto dos dogmáticos, portanto, contém
é totalmente antitético oo ser. Cies fazem um puras palavras, privadas de sentido. Ou então
enorme salto de modo completamente estranho a alma deve ser de tal caráter que todo efeito
a seu princípio. sobre elo se transforme em representação.
Todavia, também aqui nos encontramos nas
4. O enorme salto que os dogmáticos mesmas dificuldades que no caso precedente:
são obrigados a fazer para passar torna-se simplesmente incompreensível.
das "coisas em si" para a inteligência
6. O dogmatismo é incapaz
Os dogmáticos procuram esconder este de deduzir aquilo que deve justificar
solto de vários modos. Cm sentido estrito - e partindo de seu princípio
é este o modo de proceder do dogmatismo
conseqüente, que se torna, ao mesmo tempo, Assim procede, portanto, o dogmatismo
materialismo - a alma não deveria ser alguma sempre e em toda forma que ele assume. Na
coisa, ou melhor, não deveria ser absolutamente enorme lacuna que permanece entre as coisas
nada, mas apenas um produto, apenas o resul­ e as representações, em vez de uma explicação
tado da interação das coisas entre si. ele põe palavras vazias, que podem de fato ser
Todavia, deste modo se gero apenas aprendidas de memória e repetidas, mas que
algo no âmbito das coisas, nunca, porém, algo não estiveram em grau, nem jamais estarão,
de separado dos coisas, se não se acrescenta de suscitar pensamentos no homem. Se, com
mentalmente também uma inteligência que efeito, se quiser verdadeiramente pensar no
observe as coisas. As semelhanças que os modo em que acontece aquilo que é pressu­
dogmáticos oferecem para tornar compreensí­ posto, eis que todo o conceito desvanece como
vel seu sistema, por exemplo, o da harmonia bolha de sabão.
que nasce ao soar juntos vários instrumentos, O dogmatismo, portanto, pode apenas
tornam melhor compreensível exatamente sua repetir seu princípio sob formas diversas e
Capítulo quartO - F ic k t e e o id e a lis m o é tic o

pode dizê-lo e redizê-lo, mos, tomondo-o tão precisos com as demonstrações como, por
como ponto de portido, jomois poderá alcançar exemplo, ocorre com a matemática. Se essa
aquilo que deve ser explicado e deduzi-lo. €, mentalidade apreende ainda que apenas
ao invés, justamente esta dedução constitui a um par de elementos da série, e entrevê a
filosofia. O dogmatismo, portanto, tombém em regra que guia a dedução, logo elo comple­
ótica especulativa, não é de foto uma filosofia, ta globalmente a parte que falto recorrendo
mas apenas uma afirmação e uma garantia à imaginação e sem proceder à indogação
impotente. Como única filosofia possível resto daquilo de que é composta. Se, por exemplo,
apenas o idealismo. um fllexonder von Joch4 diz a eles: todas as
coisas são determinadas pela necessidade da
7. O idealismo não pode ser refutado
natureza e, portanto, nossas representações
pelos adversários,
dependem das características das coisas, e
mas é apenas não compreendido por eles
nossa vontade depende das representações
e, portanto, toda a nosso vontade é determi­
Tudo o que até agora enunciamos não nada pela necessidade da natureza, e nossa
terá nada a ver com as objeções do leitor; com idéia da liberdade da vontade é tão-somente
efeito, não há simplesmente nada a objetar, ilusão, tudo isso parece para eles incrivelmente
mas se achará ao invés a ter o que fazer com compreensível e evidente, sem reparar o foto
o absoluta incapacidade da parte de muitos de que carece de bom senso, e eles tornam-se,
de compreendê-lo. Nenhum homem que com­ portanto, convictos e cheios de admiração pela
preenda as palavras poderá negar que todo precisão de tal demonstração. Devo lembrar
efeito produzido por uma causa é mecânico, e que a doutrina da ciêncio não toma impulso
que por meio de um mecanismo não se origina desta mentalidade leviana, e sequer lhe dá
nenhuma representação. Mas justamente aqui alguma importância. Se um único elemento do
está a dificuldade. € preciso um bom nível de longo codeia que ela deverá percorrer não se
autonomia e de liberdade do espírito poro liga estreitamente àquele que segue, então
saber compreender a natureza da inteligência ela não pretenderá ter demonstrado alguma
que descrevemos e sobre a qual se fundamenta coisa.
inteiramente nosso refutação do dogmatismo.
Muitos, com seu pensamento, não foram além
da compreensão do mero série do mecanis­ VII. O idealismo perfeito,
mo natural; e para estas pessoas também a
representação, se a quiserem pensar, entra seu fundamento
naturalmente nesta série, que é a única que se e seu modo de proceder
encontro traçada em seu espírito.
Para eles a representação torno-se uma
espécie de coisa, uma extraordinária ilusão 1. fl inteligência como pura atividade
do qual encontramos traços nos mais famosos que age segundo leis necessárias
outores de filosofia. Paro estes o dogmatismo O idealismo, como já foi visto, explica as
é suficiente: eles não notam nenhuma lacuna determinações
porque, para eles, não existe nenhum mundo do inteligência.daPara consciência, partindo da ação
o idealismo, a inteligência
contraposto. é puramente ativa e absoluta, e não sofre pas­
fl demonstração adotado, portanto, não sivamente. Isto porque, em conseqüência
pode refutar o dogmático, por mais clara que postulado, ela é aquilo que é primeiro e de seu
supre­
ela seja: com efeito, não é possível convencê-lo mo, ao qual nada se antepõe de que se possa
com esto prova, pois ele não tem a capacidade extrair um sofrer passivo. Pelo mesmo motivo,
de compreender a premissa. ela não possui um ser em sentido próprio, um
subsistir, porque este é o fruto de uma interação,
8. fl mentalidade leviana difundida e não existe nada, nem é pressuposto, com o
entre os dogmáticos qual a inteligência possa interagir. €la para o
Também o modo com que aqui se trata algumo idealismo é um fazer, nem se pode chamá-la de
o dogmatismo ofende a mentalidade leviana coisa de ativo, porque, assim dizendo, a
de nosso tempo, que certamente muito se di­
fundiu em toda época, mas que apenas agoro ^Fichte refere-se oqui ao livro de C. F. Hommel, fíiexan-
se elevou aos níveis de máxima formulada der von Joch: prêmio e castigo segundo as leis turcas, de
com palavras: não se deve ser tão rigorosos 1770. Hommel ensinou no Universidade de Leipzig, e talvez
ao deduzir, na filosofia não é o coso de ser fichte antes de 1787 foi ouvinte de seus cursos. [N. do T.]
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i s a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o i d e a lis m o

expressão se referiria a algo que subsiste e que exatamente deste modo, pode ser ulteriormente
possui a atividade. Pois bem, o ideolismo não explicado se considerarmos o motivo pelo qual
tem nenhum motivo de supor uma coisa deste ela, em uma condição, aja em geral de modo
tipo, porque em seu princípio não há nada de determinado; e esto última coiso pode-se de
semelhante, e todo o resto deve ser deduzido novo explicar partindo de única lei fundamental:
disso. Ora, da ação desta inteligência devem no decorrer de seu agir, a inteligência dá o si
ser deduzidos representações determinados-, mesma as próprias leis, e esta legislação, por
as de um mundo que existe sem nenhuma inter­ suo vez, acontece por meio de um agir superior
venção de nossa parte, um mundo material que ou de um representar superior necessários, fl
se encontra no espoço, e assim por diante, os lei da causalidade, por exemplo, não é uma
quais são representações que, como é sobido, lei primeira e originária, mas openos um dos
existem na consciência. Mas por alguma coisa diversos modos de ligação do múltiplo, e pode
de indeterminado não é possível deduzir alguma ser deduzido da lei fundamental desta ligação;
coisa de determinado: a fórmula de toda dedu­ e o lei fundamental desta ligação do múltiplo,
ção, o princípio do fundamento neste caso não por sua vez, como tombém o próprio múltiplo,
encontra aplicação. Por isso o agir da inteligência pode-se deduzir de leis mais elevadas.
que pusemos como fundamento deve ser um
agir determinado, isto é, deve ser, a partir do 3. Dois métodos que se podem seguir
momento que a inteligência é o supremo fun­ ao determinar as leis da inteligência
damento explicativo, um agir determinado por
ela mesma, por sua natureza, e não por alguma Conseqüente a esta observação, o ideo­
coisa de exterior o ela. Portonto, o pressuposto lismo crítico pode pôr-se em operação de dois
do idealismo será o seguinte: o inteligência modos. Ou ele deduz o sistema dos modos
age, mas, por causa de sua própria essên­ necessários de agir, e ao mesmo tempo as re­
cia, ela poderá agir apenas de certo modo. presentações objetivas que assim se originam,
Se pensarmos este modo de agir necessário efetivamente das leis fundamentais da inteli­
separadamente do agir, ele se pode chamar, gência, fazendo originar progressivamente sob
com termo adequado, as leis do agir. existem, os olhos do leitor ou do ouvinte todo o comple­
portanto, leis necessários do inteligência. xo de nossas representações; ou, então, ele
Por conseguinte, também o sentimento da concebe estas leis em certo sentido assim como
necessidade que acompanha as representações elos aparecem diretamente já aplicadas aos
determinados é explicado: o inteligência, entõo, objetos e, portanto, em seu nível mais baixo
não prova, em tais casos, uma impressão prove­ (e nesse nível elos tomam o nome de catego­
niente do exterior, e sim sente em todo seu agir rias), e sustenta, portanto, que por meio delas
as delimitações de suo próprio essência. A medi­ os objetos são determinados e ordenados.
do que o idealismo exprime esto pressuposição
da existência de leis da inteligência que são 4. fls leis da inteligência
necessários, pressuposição que é a única de­ só podem ser deduzidas da essência
terminado razoavelmente e que possui um efe­ da própria inteligência
tivo poder explicativo, ele se chama idealismo
crítico, ou tombém transcendental. Um idealismo O crítico que seguir o segundo método,
transcendente seria, ao contrário, aquele tipo de e que não deduzir os leis admitidas pela in­
sistema que deduzisse as representações deter­ teligência a partir da essência desta última,
minadas partindo do agir da inteligência livre e de onde tiro seu conhecimento mesmo que
completamente desligado de leis: pressuposto apenas objetivo, ou seja, o conhecimento de
completamente contraditório, uma vez que, como que elas são justamente tais, isto é, a lei da
acabomos de lembrar, a um agir deste tipo não substancialidade, a da causalidade? Porque
se pode aplicar o princípio do fundamento. não quero ainda carregá-lo- com a pergunta:
de onde ele vem a saber que se trata de puras
leis imanentes do inteligência? São as leis que
2. fl inteligência dá a si mesma
as próprias leis específicas
se aplicam imediatamente aos objetos, e ele
poderio tê-las obtido por meio da abstração
em virtude da suprema lei destes objetos e, portanto, apenas em bose
fls leis do agir do inteligência, que devem à experiência. De nada ajuda se ele as tirou
ser admitidos, formom elas próprios um sistema, da lógica, fazendo um desvio: com efeito, a
pelo fato de serem enraizadas na natureza própria lógico, para ele, origino-se tão-somente
única da inteligência; isto é, o fato de que a por meio da abstração dos objetos, e ele faz,
inteligência, nesta condição determinada, aja portanto, apenas indiretamente aquilo que,
, 73
Capitulo Ç[Ua?tO - I -ic h t e e o i d e a lis m o é t ic o ......

se fosse feito diretamente, seria resultado 6. Objeções contra o dogmatismo


demasiado evidente o nossos olhos. Não há e contra o criticismo
nada, portanto, que lhe permita reforçar a
afirmação de que as leis do pensamento, por Um idealismo deste tipo, portanto, não
ele postuladas, são na realidade tais, ou seja, é demonstrado e não é demonstrável. Cie
no realidade nada mais que leis imanentes do não dispõe, contra o dogmatismo, de outras
inteligência: o dogmático afirmaria, opondo-se armas a não ser a afirmação de que 0 I0 tem
a ele, que existem nos coisas propriedades razão. C contra o criticismo mais elevado e
gerais, fundadas em sua própria natureza, e não perfeito não tem nenhuma outro armo a não
se compreenderia então por que deveríamos ser uma raiva impotente e a afirmação que não
dar maior fé à asserção não demonstrada de 0 possível ir além, o asserção que paro olém
um do que à não demonstrada do outro. disso não existe mais nenhum fundamento,
Seguindo este segundo método, não se que desse ponto para frente nós nos torna­
obtém nenhuma compreensão do fato de que ríamos incompreensíveis, e assim por diante:
a inteligência deva agir justamente deste modo mas todas estas coisas não têm exatamente
e do por quê isso aconteça. Poro este fim seria nenhum sentido.
preciso pôr nas premissas olgo que se posso atri­ Por último, em um sistema deste tipo,
buir apenas à inteligência, e delas seriam dedu­ são indicadas apenas as leis que determinam
zidas, sob nossos olhos, as leis do pensamento. só os objetos da experiência exterior, graças
unicamente ao juízo subsuntivo. Csta, porém,
é de longe a parte mais reduzida do sistema
5. Como o idealismo explica o objeto da razão. Cste criticismo pela metade, por isso,
e sua gênese proc0d0 às C0gas no campo do razão prática e
Cm particular, com este procedimento do juízo reflexivo, a partir do momento que ele é
não se compreende como se origine, depois, carente da compreensão de todo o processo da
o próprio objeto. Com efeito, mesmo que se razão, e repete justamente como um papagaio,
queira conceder ao crítico seus postulados repetindo-as com desenvoltura, expressões
não demonstrados, com eles não se explicam poro ele totalmente incompreensíveis.
nada mais que as propriedades e os relações
da coisa: o fato, por exemplo, que ela existe 7. O método seguido
no espaço, que se manifesta no tempo, que pelo perfeito idealismo
seus acidentes devam ser referidos a algo de
substancial, e assim por diante. Mas qual é o O método do perfeito idealismo trans­
origem daquilo que possui estas reloçães e cendental, que a doutrina da ciência expõe, já
estas propriedades: qual é a origem da matéria foi discutido por mim de modo muito claro em
que foi assumida nestas formas? Nesta matéria outro trabalho. Não sei explicar-me como tenha
se refugia o dogmatismo, e deste modo proce­ se tornado possível não compreend0r oqu0 la
de apenas de mal a pior. discussão: mas é em todo coso suficientemente
Sabemos bem: a coisa certamente se seguro que ela não foi compreendida.
origina por meio de um ogir segundo estas Vejo-m© por isso forçado o repetir coisas
leis, a coisa não é mais que todas estas rela­ já ditas e lembro que de sua compreensão
ções reunidos pela imaginação, e todas estas depende toda coisa nesta ciência.
relações juntas constituem a coisa: o objeto Cste idealismo parte de uma única lei
é sem dúvida a síntese originária de todos fundamental da razão, que ele demonstra ime­
aqueles conceitos. Forma 0 matéria não são diatamente na consciência. O procedimento é o
componentes particulares: as formas em sua seguinte. Convide o leitor ou o ouvinte a pensar
globalidade são matéria, e apenas com a com liberdade detorminodo conc0 ito: ao fazê-
análise obtemos as formas particulares. Mas, lo, ele se achará obrigado a proceder de certo
o respeito disso, o crítico, seguindo o método modo. C preciso aqui distinguir duas coisas: de
indicado, pode apenas dar-nos suo garantia, e um lado o ato de pensamento requerido que
permanece sempre um mistério como possa ter é realizado livremente, e quem não o realiza
seu conhecimento, se 0 que o tem. flté que não deste modo não vê noda daquilo que mostra a
se permito à coisa em sua inteireza originar-se doutrina da ciência; do outro, o modo necessário
sob os olhos do pensador, o dogmatismo não em que tal ato de pensamento deve ser rea­
foi S0guido até seus mais recônditos esconde­ lizado: tal modo funda-se na própria natureza
rijos. Isso, porém, torna-se possível apenas se da inteligência e não depende do arbítrio; ele
deixarmos a inteligência agir em seu conjunto, é algo de necessário mos que aparece apenas
e não apenas parcialmente. em uma ação livre e apenos com ela, e além
74
.... Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o i d e a lis m o

disso é algo de encontrado, mos cujo encontro no fim. Foi-lhe dado o ângulo reto do qual ele
é, por outro lodo, condicionado pela liberdade. deve traçar sua reta: tem então necessidade
também de outro ponto para o qual dirigir-se?
8. O idealismo tem apenas
Quero dizer: todos os pontos de suo linha são
um pressuposto fundamental dados contemporaneamente. Dê-se também
e o demonstra com a dedução efetiva um número determinado. Suponhamos que
ele seja o produto de certos fatores. 6 preciso
fl este propósito o idealismo demonstra então apenas encontrar, utilizando os regras
aquilo que afirma na consciência imediata. Mas bem conhecidas, o produto destes fatores. Será
é um puro pressuposto o foto de que oquele openas em um segundo tempo, apenas quando
algo de necessário seja lei fundamental de todo já se tem o produto, que se descobrirá se ele
a razão, e que partindo disso seja possível de­ coincide com o número dado. O número dado é
duzir todo o sistema de nossas representações a experiência em seu complexo; os fatores são
necessárias, não só das de um mundo, de como aquilo que é mostrado na consciência e nas leis
seus objetos sejam determinados mediante o do pensamento; a multiplicação é o filosofar.
juízo de subsunção e de reflexão,5 mas também Quem aconselha, enquanto se filosofa, o manter
de nós mesmos, como seres livres e práticos sob sempre um olho no experiência, aconselha a
leis. O idealismo deve demonstrar este pressu­ modificar um pouco os fatores, e a multiplicar de
posto por meio da dedução efetiva, e é exata­ modo um tonto errado, de maneira que, todavia,
mente nisso que consiste sua tarefa específica. se obtenham números que coincidam: é um pro­
No desenvolvimento deste último o idealis­ cedimento que é tanto desleal quanto superficial.
mo procede do seguinte modo. Qe mostra que
aquilo que foi assumido antes como princípio e 10. Para um idealismo perfeito,
que é provado imediatamente na consciência, "a priori" e ”a posteriori”
não se torna possível sem que contemporanea- são uma mesma realidade
mente aconteça também alguma outra coisa, e vista de dois lados diferentes
que esta alguma outra coisa, por sua vez, não
é possível sem que contemporaneamente acon­ A medida que os resultados últimos do ide­
teça outra terceira; e isso até que as condições alismo se vêem como tais, como conseqüências
daquilo que foi provado em primeiro lugar não do raciocínio, eles são o o priori no espírito hu­
estejam completamente esgotadas, e ele pró­ mano; à medido que eles se vêem, no caso que
prio seja perfeitamente compreensível segundo raciocínio e experiência efetivamente coincidam,
o possibilidade que tem de sê-lo. Seu caminho como dados no experiência, eles são o posterio­
é um progresso ininterrupto do condicionado ri. O o priori e o a posteriori para um idealismo
para a condição; toda condição se torna, por perfeito não são de fato duas coisos diferentes,
sua vez, um condicionado e dever-se-á, então, e sim uma só coisa; só que esta é vista de dois
procurar sua condição. lados diferentes, e é distinta apenas do modo
em que o ela se chega. Fl filosofia antecipo toda
9. Como devem ser entendidas as relações
e qualquer experiência, pensa-a apenas como
entre o procedimento do idealismo
necessária e, portanto, em relação à experiência
e a experiência
efetiva ela é o priori. R posteriori é o número, à
medida que é considerado como dado; o mesmo
Se o pressuposto do idealismo estiver número é, oo contrário, o priori, ò medido que
correto, e se na dedução se tiver procedido o fozemos resultar dos fotores como produto.
de modo correto, então, como resultado final, Quem possui uma opinião diversa o propósito,
como soma de todos as condições daquilo que não sobe ele próprio aquilo que diz.
se enunciara no início, deve-se obter o sistema
de todos os representações necessárias, ou 11. Os resultados de uma filosofia devem
seja, toda a experiência, cujo confronto não é coincidir com a experiência
absolutamente feito na própria filosofia, mos No coso em que os resultados do filosofio
apenas sucessivamente. não coincidirem com os da experiência, então
O idealismo, com efeito, não tende a esta
experiência como à meta que já lhe é conhecida essa filosofio será seguramente falsa, porque
de antemão e à qual ele deve chegar. Gm seu
procedimento, ele não sobe nada da experiên­ sO juízo de subsunção é o ato que leva um objeto o
cia e nem sequer a observo: procede movendo- ser assumido em um conceito, enquanto o juízo de reflexão
se do ponto de portida, segundo suas regras, tende a evidenciar as condições segundo as quais um
e não se preocupa com aquilo que daí derivará conceito se forma. [N. do T.]
. 75
Cãpltulo quarto - F ic k t e e o i d e a lis m o é t ic o _ _

nõo manteve o promessa de deduzir toda a 12. fl experiêncio como produto do atividade
experiência e de explicá-la com o atividade ne­ de um pensamento livre,
cessária da inteligência. Então, ou é totalmente mas conforme a leis
errado o pressuposto do idealismo transcenden­
tal; ou então ele foi utilizado de modo incorreto O caminho deste idealismo parte, como
apenas naquela descrição particular que não se vê, de algo presente na consciência, mas
forneceu aquilo que devia. Como o tareia de só depois de um livre ato de pensamento, para
explicar a experiência partindo de seu funda­ chegar a toda a experiência. O que se encontra
mento é uma característica da razão humona, entre um e outro é seu verdadeiro e próprio
uma vez que nenhuma pessoa razoável fará a terreno. Não é um fato da consciência e não
hipótese de que nela posso encontrar-se uma pertence à esfera da experiência: como poderia
tarefa cuja solução seja totalmente impossível, chamar-se de filosofia uma coisa deste gênero,
e uma vez que existem apenas dois caminhos a partir do momento que ela deve demonstrar o
paro resolvê-la, o do dogmatismo e o do idea­ fundamento da experiência, mas o fundamento
lismo transcendental, e que se pode demonstrar se encontra necessariamente fora daquilo que
facilmente que a primeira não está em grau é fundamentado? Trata-se de um produto do
de cumprir as promessas, então o pensador pensamento livre, mas conforme a leis.
decidido tomará sempre decisão pelo segundo Isto se tornará logo muito claro, se exa­
caminho, aquele segundo o quol houve erro na minarmos ainda um pouco mais de perto a
dedução mos o pressuposto, em si, é correto, afirmação basilar do idealismo.
e não se deixará desencorajar por nenhum Cste demonstra que aquilo que é simples­
fracasso, e provorá novamente até que no fim mente postulado não é possível sem o condição
o sucesso lhe seja propício. de um segundo elemento, e este último nõo o
é sem a condição de um terceiro, e assim por
diante: então, de tudo aquilo que o idealismo
enuncia nado é possível isoladamente, mas
cada elemento particular é possível apenas em
Johann Gottlieli M te ’s
união com todos os outros. Portanto, segundo
o que ele próprio afirma, openos o todo apa­
rece na consciência, e esse todo é justamente
s&mmtliche Werke. a experiência. O idealismo quer conhecer este
inteiro mais de perto, por isso deve analisá-lo,
e não procedendo às cegos, mas segundo as
regras determinadas da composição, de modo
a poder ver o todo que se origina sob seus
olhos. Cie está em grau de fazer isso porque
!!< *r a u $ 8 « *? c ln *n está em grau de abstrair, pois no pensamento
*00 livre ele certamente está em grau de captar o
particular isoladamente. Com efeito, na cons­
jr . H. r X C H T E. ciência não aparece apenas a necessidade das
representações, mas igualmente sua liberdade;
e, por suo vez, esta liberdade pode proceder
ou de modo conforme às leis ou arbitrariamen­
te. Tudo isso lhe é dado do ponto de vista da
consciência necessária: ele o encontra enquanto
Erste AMhellmg.
1 » llieoHlt>tkea Pklloxophle.
encontra a si mesmo. Mas a série que resulta
da composição deste inteiro é produzida pela
E n t e r ftanil.
liberdade. Quem realiza este'ato de liberdade
torna-se consciente dela e, por assim dizer,
predispõe novo âmbito na própria consciência;
Beriia, para quem não o realiza não existe aquilo que
VcrUg ? • it V e i l «ftá C & M p - deriva daquele ato.
O químico compõe um corpo, por exemplo,
um determinado metal, com seus elementos.
O homem comum vê o metal que lhe é bem
Frontispício do primeiro tomo da opera omnia conhecido; o químico vê a composição destes
de J. G. Fichte, organizada pelo filho determinados elementos. Os dois vêem, talvez,
(Berlim, 1845). algo de diferente? Penso que não. Cies vêem
76
___ Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o idealisM

o mesmo coisa, mas apenas a vêem de modo condição de querer pensar algo a propósito
diverso. O que é visto pelo químico é o a priori, do fundamento da experiência, fl inteligência
ele vê o particular; o que é visto pelo homem é pensável apenas como ativa, e como ativa
comum é o o posteriori, ele vê o todo. apenas neste determinado modo: isto é o que
€xiste apenas esto diferença entre os dois afirma a filosofia. Tal realidade é inteiramente
modos de ver: o químico deve analisar o todo suficiente, pois deriva do filosofia que não
antes de podê-lo compor, enquanto tem o que existe nenhuma outra realidade.
fazer com um objeto do qual não pode conhecer
as regras de composição antes de proceder à 14. Conclusões
análise; o filósofo, oo invés, sabe proceder à
composição sem ter antes efetuado a análise, fl doutrina da ciência quer traçar o idealis­
porque ele já conhece a regra de seu objeto:mo crítico perfeito ora descrito. O que dissemos
o razão. por último contém o conceito da doutrina da
ciência e, a este propósito, não ouvirei objeções
13. Paro a filosofia idealista
porque ninguém melhor do que eu está em grau
não há outra realidade
de saber o que quero fazer. As demonstrações
a não ser a inteligência,
da impossibilidade de uma coisa que está em
de cuja atividade
via de realização, e que em parte já o estivera,
derivam todas as coisas
são apenas ridículas, é preciso apenas seguir
de perto o desenvolvimento e examinar se ela
Portanto, ao conteúdo da filosofia não realiza aquilo que prometeu.
cabe nenhuma outra realidade senão a rea­ J. G. Fichte,
lidade do pensamento necessário, com a Primeiro introdução à doutrina da ciência.
íS a p íf u lo q u m fo

S c K e llir v 0
e a gestação romarvtica
do idealismo

— .-... I. /\ v id a ,
o d e s e n v o lv im e n t o d o p e n s a m e n to
e a s obi^as d e .S ek e llin g

• Friedrich Wilhelm Joseph Schelling nasceu em Leonberg, em Württemberg,


em 1775. Em 1790 inscreveu-se no seminário teológico de Tübingen, onde estreitou
relações de amizade com Hõlderlin e com Hegel. De 1796 a 1798 estudou mate­
mática e ciências naturais em Leipzig e Dresden. Passou então para Jena, onde
em 1799 foi nomeado sucessor de Fichte. Em 1800 saiu o Sistema do idealismo
transcendental, destinado a dar-lhe a máxima fama. Nesses anos
teve relações com o círculo dos românticos chefiado por Schlegel. a vida
Em 1803 passou a ensinar na Universidade de Würzburg. Em 1841 e as obras
foi chamado à Universidade de Berlim, mas em 1847 interrompeu § 1
seus cursos. Morreu em 1854 na Suíça.
Entre as obras mais significativas além do Sistema, recordamos: Idéias para
uma filosofia da natureza (1797), Filosofia e religião (1804), Pesquisas filosóficas
sobre a essência da liberdade (1809), Filosofia da mitologia e Filosofia da Revelação
(publicadas postumamente).

v id a e a s ob>m s como vimos, teve de se demitir devido às


complicações provocadas pela “ polêmica
sobre o ateísmo” .
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling “ Um astro se põe e outro su rge” ,
nasceu em Leonberg, em Württemberg, em dissera Goethe por ocasião da demissão
1775, filho de pastor protestante, que o de Fichte e da ascensão de Schelling. Com
educou nos estudos clássicos e bíblicos. Em efeito, logo no ano seguinte (1800) saía
1790, com apenas quinze anos, matriculou- o Sistem a do idealism o transcendental,
se no seminário teológico de Tubinga, onde destinado a dar ao filósofo grande fama
estreitou relações de amizade com o poeta e, embora jovem, a impô-lo a todos os ro­
Hõlderlin e com Hegel que, mesmo sendo mânticos como ponto de referência. Nesse
um lustro mais velho, dele sofreria influência período, ele manteve relações com o círculo
decisiva. dos rom ânticos liderado por F. Schlegel
De 1796 a 1798, Schelling estudou e, sobretudo, com Caroline Schlegel, que
matemática e ciências naturais em Leipzig depois desposou.
e em Dresden. Depois, transferiu-se para Em 1803, Schelling passou a ensinar
Jena (com apenas vinte e três anos), onde na Universidade de Würzburg. Em 1806,
se tornou assistente de Fichte no ensino foi chamado à Academia de Ciências de
universitário. Em 1799 (com vinte e quatro Munique. Por fim, em 1841, foi chamado
anos), foi nomeado sucessor de Fichte, que, pelo rei da Prússia, Frederico Guilherme IV,
Segunda parte - F u n d a ç a o e a b s o l u t i : z a ç a o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

à Universidade de Berlim, onde teve entre determinações cronológicas são predomi­


seus ouvintes personagens destinados a se nantemente indicativas.
tornarem ilustres, entre os quais Kierke­ O grande número de escritos (muitos
gaard. M as o sucesso durou muito pouco. dos quais publicados postumamente) tam­
Em 1847 interrompeu o ensino e, em 1854, bém deu origem a uma série de problemas
quase esquecido, morreu na Suíça. complexos.
E bastante com plexa a parábola da Prescindindo dos primeiros dois tra­
evolução do pensamento de Schelling. Os balhos, ligados à exegese bíblica e à inter­
estudiosos realizaram grandes esforços para pretação dos antigos mitos, d e l 7 9 2 e l 7 9 3
procurar determinar as várias etapas desse (escritos, portanto, quando tinha dezessete e
itinerário, com resultados diferentes. A di­ dezoito anos), suas várias obras podem ser
visão mais racional é aquela que distingue ordenadas segundo as várias fases acima
os seis períodos seguintes: relacionadas. Eis as mais significativas:
1) o começo fichteano (1795-1796); 1) Sobre a possibilidade de uma forma
2) o período da filosofia da natureza da filosofia em geral (1794); Sobre o Eu
(1797-1799); como princípio da filosofia (1795); Cartas
3) o momento do idealismo transcen­ filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo
dental (1800); (1795).
4) a fase da filosofia da identidade 2) Idéias para uma filosofia da natureza
(1801-1804); (1797); Sobre a alma do mundo (1798);
5) a fase teosófica e da filosofia da Primeiro esboço de sistema da filosofia da
liberdade (1804-1811); natureza (1799).
6) a fase da filosofia positiva e da filo­ 3) Sistema do idealismo transcendental
sofia da religião (de 1815 em diante). (1800).
Cabe lembrar que essa divisão não de­ 4) Exposição do meu sistema (1801);
ve ser entendida de modo rígido e que as Bruno ou o princípio natural e divino das coisas

Friedrich Wilhelm Schelling


(1775-1854)
submeteu o idealismo
a uma complexa reelaboração
para dar lugar adequado
à natureza,
entendida como
“espírito visível"
e como momento do absoluto.
Seu pensamento evoluiu
sem descanso,
até desembocar
em uma "filosofia positiva”,
fundada sobre a religião
e sobre a revelação,
em vez de sobre a pura razão.
Cãpltulo quinto - 5 cKellii/\0 e a g e s t a ç ã o r o m â n t ic a d o id e a lis m o

(1802); Filosofia da arte (1802-1803); Lições 6) Introdução à filosofia da mitologia,


sobre o método do estudo acadêmico (1803). Filosofia da mitologia e Filosofia da revela­
5) ção, que são substancialmente os cursos
Filosofia e religião (1804); Pesqui­
sas filosóficas sobre a essência da liberdade ministrados em Berlim e publicados postu­
(1809); Lições de Stuttgart (1810). mamente.

= II. O s inícios d o p e n s a m e n to =
d e .S c k e llin g e m Tnckte ( i 7 9 5 - Í 7 9 6 )
e a filo s o fia d a n a t u r e z a ( Í 7 9 7 - Í 7 9 9 )

• Depois da primeira precocíssima produção, que é uma tentativa de assimila­


ção do idealismo de Fichte para repensar seus motivos de fundo, a partir de 1797
Schelling dedica-se a revalorizar a natureza, que Fichte privara
de qualquer identidade específica. Segundo Schelling, é preciso o s inícios
aplicar à natureza o mesmo modelo de explicação que Fichte apli- com Fichte
cara com sucesso à vida do espírito, porque o sistema da natureza -> § 1-2
está junto com o sistema do espírito. A natureza vem, portanto, a
mostrar-se como a produção de uma inteligência inconsciente que opera a partir
de dentro dela, desenvolvendo-se em sentido teleológico. O grande princípio da
filosofia natural de Schelling é, portanto: a natureza deve ser o espírito visível, o
espírito deve ser a natureza invisível.
• Com isso, a toda força natural que se expande, contrapõe-se de tempos em
tempos um limite, e a toda fase constituída pelo encontro da força expansiva e
da limitante corresponde a produção de um nível natural, o qual pouco a pouco
se apresenta como mais rico e hierarquicamente mais elevado: o
mais alto nível da natureza é o nível "orgânico", e o fim último a filosofia
da natureza é o homem, porque nele desperta justamente o es- da natureza
pírito, que em todos os outros graus naturais permanece como -> § 3-4
que dormente.

G p o n to d e p a rtid a ; os autodenominados “ kantianos” estavam


desencaminhados, porque a doutrina de
o id e a lism o d e P ic k te
Fichte era verdadeiramente (como susten­
tava seu autor) a “ verdadeira” doutrina
kantiana, desenvolvida de modo coerente e
O pensam ento inicial de Schelling consciente, e cujas conclusões balizam uma
ainda trata de problem as relacionados etapa decisiva: era preciso buscar na esfera
aos debates suscitados pelas dificuldades e do sujeito aquilo que antes se buscara na
aporias inerentes à “ coisa em si” kantiana, esfera do mundo externo e do objeto.
que, aliás, ele considera substancialmente Entretanto, por mais que esses concei­
resolvidos e superados pela filosofia de tos se expressem com a terminologia e no
Fichte. É compreensível, portanto, que a tom do pensamento de Fichte, já se revelam
primeira (e precoce) produção do filósofo novas exigências, que permitem pressentir
(entre os dezenove e os vinte e um anos) em que direção Schelling se moverá.
constitua essencialmente a tentativa de Em primeiro lugar, é evidente a marca
dominar o idealismo de Fichte e repensar fortemente metafísica com que Schelling
seus motivos de fundo. Segundo Schelling, trata a leitura da Doutrina da ciência (so­
Segunda parte - Fundação e absolutização especulativa do idealismo

mente mais tarde é que o próprio Fichte ; A u n id a d e d e e s p ír ito


seguiria esse caminho, com o vimos, em
e n atu reza
ampla medida precisamente por solicita­
ção de Shelling). Conseqüentemente, o Eu
puro é apresentado como o “ absoluto” ,
cuja unidade não é a unidade numérica Se não é um puro não-eu, o que é
dos indivíduos, mas sim a unidade própria então a natureza? Schelling considera que
do “ U no-T odo” im utável. O Eu não é o problema é solucionável supondo-se a
consciência nem pensamento nem pessoa, existência de unidade entre ideal e real, entre
porque consciência e pessoa são momentos espírito e natureza. Escreve ele: “ O sistema
posteriores e “ deduzidos” . da natureza é, ao mesmo tempo, o sistema
Analogam ente, Schelling dá grande de nosso espírito” .
relevo à “ intuição intelectual” (que Fichte Isso implica que se deve aplicar à na­
já reivindicara para o Eu), bem como à tureza o mesmo modelo de explicação que
“ liberdade” . Com efeito, ele delineia com Fichte aplicara com sucesso à vida do espí­
maior clareza a “ dedução do m undo” a rito. Em suma, para Schelling, os próprios
partir do Eu. princípios que explicam o espírito podem e
Cumpre também observar que a pre­ devem explicar também a natureza.
sença de Spinoza, assumido (em certo sen­ Sendo assim, então, aquilo que expli­
tido) como o adversário por excelência, ca a natureza é a mesma inteligência que
acentua ainda mais a marca metafísica do explica o Eu. E preciso transferir para a na­
pensamento de Schelling. Spinoza apre­ tureza aquela “ atividade pura” descoberta
senta-se como o campeão do dogmatismo, por Fichte como a “ essência” do Eu. Desse
enquanto absolutizou o objeto (o não-eu) modo, Scheling chega à conclusão de que a
e procurou garantir a paz do espírito ao natureza é produzida por uma inteligência
preço do abandono do sujeito (empírico) inconsciente, que opera em seu interior, que
ao objeto absoluto. Fichte, ao contrário, se desenvolve teleologicamente em graus, ou
não considera o objeto como absoluto, e seja, em níveis sucessivos, que mostram uma
sim o sujeito como absoluto, além de vin­ finalidade intrínseca e estrutural.
cular o sujeito empírico ao sujeito absoluto O grande princípio da filosofia da
mediante a intuição intelectual, que revela natureza de Schelling é o seguinte: “ A na­
precisamente a tangência do eu empírico tureza deve ser o espírito visível, o espírito
com o Eu absoluto. a natureza invisível. É aqui, portanto, na
Nesses escritos juvenis, em contra-luz, absoluta unidade do espírito em nós e da
além das implicações m etafísicas do Eu natureza fora de nós, que se deve resolver
entendido como absoluto, de que falamos, o problema de como é possível uma natu­
também já são visíveis as novas exigências reza fora de nós” . A natureza nada mais
que caracterizarão o interesse posterior de é do que “ inteligência enrijecida em um
Schelling. Schelling procurará particular­ ser” , “ sensações apagadas em um não-ser” ,
mente: “ arte formadora de idéias que transforma
a) atender mais às instâncias afirmadas em corpos” .
pelo objetivismo spinoziano e reequilibrar
o subjetivism o absoluto de Fichte, que
arriscava cair na unilateralidade oposta à y\ n a t u r e z a c o m o g m d w a l
spinoziana;
d esdobram en to
b) preencher a flagrante lacuna do
sistema de Fichte, que reduzira toda a na­ d a in t e lig ê n c ia in c o n s c ie n te
tureza ao puro não-eu, fazendo-a perder
toda identidade específica e quase anulan­
do-a. Se espírito e natureza derivam do
A partir de 1797, portanto, Schelling mesmo princípio, então devemos encon­
encaminhou-se para a revalorização da trar na natureza aquela mesma dinâmica
natureza e p ara o preenchim ento das la ­ de força que se expande e de limite que se
cunas do sistema de Fichte. M as, ao fazê- lhe contrapõe, que já encontramos no Eu
lo, punha em crise a Doutrina da ciência e segundo Fichte. M as a oposição do limite
aplainava o caminho para uma diferente só detém momentaneamente a força ex­
formulação e projeção do idealismo. pansiva, que acaba retomando seu curso
Capitulo quinto - 3 c k e l l m g e a g e s t a ç ã o r o m ã n + ic a d o id e a lis m o

para depois se deter em outro limite, e à eletricidade e à química, em nível mais


assim por diante. elevado, mas segundo a mesma dinâmica.
Ora, a cada fase constituída por tal Em conclusão, a natureza é constituída
encontro da força expansiva com a força pela mesma e idêntica força (inteligência
limitante corresponde a produção de um inconsciente), que se desdobra da maneira
grau e de um nível da natureza, que pouco como verificamos e que, pouco a pouco, se
a pouco se apresenta em patamares mais manifesta em planos e graus sempre mais
ricos e, portanto, hierarquicamente mais elevados, até alcançar o homem, no qual se
elevados. O primeiro encontro entre a for­ acende a consciência, quando a inteligência
ça positiva de expansão e a força negativa chega à sua autoconsciência. 1 í~|
de limitação dá lugar à “ m atéria” (que,
portanto, é produto dinâmico de forças).
A retomada da expansão da força infinita
positiva e o novo encontro com a força ^ ;A a l m a d o m undo
negativa e limitadora dá lugar àquilo que e a n afw i*e 2 Q d o K o m e m
se apresenta como “ mecanismo universal”
e como “processo dinâmico” geral.
Nesse ponto, explorando habilmente as Desse modo, agora ficam claras certas
descobertas da ciência de sua época (da qual afirmações de Schelling que se tornaram
era estudioso atento, como já recordamos), muito célebres: “ O mesmo princípio une a
Schelling procura mostrar a manifestação natureza inorgânica e a natureza orgânica” ,
móvel das forças, bem como sua polaridade pois as coisas singulares da natureza cons­
e oposição no magnetismo, na eletricidade tituem como que os elos “ de uma cadeia de
e no quimismo. vida, que se volta sobre si mesma e na qual
O todo momento é necessário para o todo” ;
esquema idêntico de raciocínio vale
para explicar o mais alto nível da natureza, aquilo que na natureza aparece como não-
que é o nível “ orgânico” . A esse propósito vivo é apenas “vida que dorme” ; a vida é
Schelling recorre aos princípios da “ sensi­ “ a respiração do universo” , ao passo que “ a
bilidade” , da “ irritabilidade” e da “ repro­ matéria é espírito enrijecido” .
dução” , em auge entre os cientistas de sua É compreensível, portanto, que Schelling
época, que ele faz corresponder, de modo tenha podido repor no auge o antigo con­
analógico, respectivamente ao magnetismo, ceito de “ alma do mundo” como “ hipótese

Uma antiga estampa, representando a Universidade de Jena.


Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o i d e a lis m o

para explicar o organismo universal” . Essa Por fim, o homem — que, considerado
antiquíssima figura teórica (que se tornou na infinitude do cosmo aparece fisicamente
muito famosa de Platão em diante), segundo como algo pequeníssimo —, revela-se, ao
Schelling nada mais é do que a inteligência contrário, como o fim último da natureza,
inconsciente que produz e rege a natureza, porque nele precisamente desperta o espíri­
e que só se abre à consciência com o nasci­ to, que em todos os outros graus da natureza
mento do homem. permanece como que adormecido.

III. i d e a l i s m o tra n scen d en ta l


e id e a lis m o e s t é t ic o ( i 8 0 0 )

• No Sistema do idealismo transcendental Schelling retoma o exame da filo­


sofia da consciência. Ele chama de "atividade real" a atividade originária do Eu,
produtora ao infinito, enquanto chama de "atividade ideal" aquela que toma
consciência colidindo com o limite; o limite, com efeito, é ideal
O idealismo no âmbito do saber (objeto da filosofia técnica), e real no âmbito
transcendental ^o a9'r (°bjeto da filosofia prática): a filosofia teórica é por isso
§ i _2 idealismo, enquanto a filosofia prática é realismo, e apenas juntas
elas formam o sistema completo do idealismo transcendental.
• A mais elevada tarefa da filosofia transcendental consiste em mostrar a iden­
tidade, inerente no próprio principio, da atividade consciente e da inconsciente, e
a atividade consciente-inconsciente presente tanto no espírito quanto na natureza
é a atividade estética: o mundo objetivo é, portanto, a poesia
A filosofia primitiva e ainda inconsciente do espírito, e o órgão universal da
da arte filosofia é a filosofia da arte. É este o "idealismo estético" que
§ 3-4 tanta impressão e tantos entusiasmos suscitou entre os contem­
porâneos.

1 1
P a r tir d o su b je tiv o de filosofia do espírito, Schelling concebeu e
escreveu nada menos que uma obra-prima,
p a i^ a a tin g ia o o b je tiv o
O sistema do idealismo transcendental, que
lhe saiu da pena quase perfeito.
Eis como o filósofo anuncia o pro­
Uma vez esclarecido que a natureza grama da filosofia transcendental: “ Pôr o
nada mais é do que a história da inteligên­ objetivo em primeiro lugar e dele extrair
cia inconsciente, que, através de sucessi­ o subjetivo é, como já observamos, a fun­
vos graus de objetivação, chega por fim à ção da filosofia da natureza. Ora, se existe
consciência (no homem), Schelling sentiu a uma filosofia transcendental, não lhe resta
necessidade de retomar o exame da filosofia senão seguir o caminho oposto: partir do
da consciência, ou seja, repensar a fundo a subjetivo como primeiro e absoluto, e dele
Doutrina da ciência de Fichte. Com efeito, fazer derivar o objetivo. Desse modo, a fi­
depois de ter examinado como a natureza losofia da natureza e a filosofia do espírito
chega à inteligência, era preciso rever como distinguiram-se segundo as duas possíveis
a inteligência chega à natureza. direções da filosofia. E se toda filosofia deve
E, ao fazer isso, tendo atrás de si tudofazer
o da natureza uma inteligência ou da
que Kant e Fichte já haviam dito em matéria inteligência uma natureza, daí deriva que
Cãpítulo quinto - Schelling} c o. 0e s t a ç ã o r o m â n + ic a d o id e a lis m o

a filosofia transcendental, a que cabe esta E, muito claramente, conclama a uma ati­
última função, é a outra ciência fundamental vidade unitária que esteja na base dos dois
necessária da filosofia” . momentos do sistema.

y A “a t i v i d a d e r e a l ”
3,,, ativ id a d e e sté tic a

e a “a t i v i d a d e i d e a l " d o
o id e a l-re a lism o Essa nova perspectiva que se delineia
pode ser mais bem compreendida com base
em outro raciocínio, que Schelling também
Também na construção do idealismo apresenta, inteiramente análogo ao anterior.
transcendental, como na filosofia da nature­ N a filosofia teórica, os objetos nos aparecem
za, Schelling enfatiza a polaridade de forças, com o “ invariavelmente determ inados” ,
seguindo o princípio próprio de Fichte, nossas representações nos parecem determi­
oportunamente readaptado. nadas por eles e o mundo nos parece algo
O esquema de raciocínio seguido por enrijecido fora de nós; na filosofia prática,
Schelling é o seguinte: o Eu é atividade ao contrário, as coisas nos aparecem como
originária que se autopõe ao infinito, ativi­ variáveis e modificáveis pelas nossas repre­
dade produtora que se torna objeto para si sentações, enquanto nos parece que os fins
mesma (e, portanto, é intuição intelectual que nos propomos podem modificá-las.
autocriadora). M as, para não ser apenas Existe aí contradição (pelo menos apa­
produtora, tornando-se também produto, rente), dado que no primeiro caso se exige o
a produção pura infinita que é própria do predomínio do mundo sensível sobre o pen­
Eu “ deve estabelecer limites ao seu próprio samento, ao passo que, no segundo caso, se
produzir” e, portanto, “ opor algo a si” . exige predomínio do pensamento (do ideal)
M as a atividade do Eu, enquanto é atividade sobre o mundo sensível. Em suma, pareceria
infinita, estabelece o limite e depois também que, para ter a certeza teórica, nós teríamos
o supera, gradualmente, em nível sempre de perder a prática e, para ter a certeza prá­
maior, como já dissera Fichte. tica, nós teríamos de perder a teórica.
Schelling chama a atividade que produz Eis então o grande problema que se
ao infinito de “ atividade real” (enquanto pro­ apresenta: “ De que modo, ao mesmo tempo,
dutora), ao passo que a chama de “ atividade as representações podem ser pensadas como
ideal” enquanto toma consciência, defron­ determinadas pelos objetos, e os objetos
tando-se com o limite. As duas atividades se podem ser pensados como determinados
pressupõem reciprocamente, “ e dessa mútua pelas representações?”
pressuposição das duas atividades [...] deve­ A resposta para o problema é a seguin­
rá ser derivado todo o mecanismo do Eu” . te: trata-se, diz Schelling, de algo mais pro­
Desse modo, porém, os horizontes da fundo do que a “harmonia preestabelecida”
Doutrina da ciência de Fichte se ampliam e de que falava Leibniz, posto que se trata de
o idealismo subjetivo torna-se propriamente identidade inserida no próprio princípio:
ideal-realismo, como diz Schelling nesta trata-se de atividade que, ao mesmo tempo,
passagem: “A filosofia teórica é [...] idealis­ é consciente e inconsciente e que, como tal,
mo, a filosofia prática é realismo, e somente está presente tanto no espírito como na
juntas formam o sistema completo do idea­ natureza e gera todas as coisas. Essa ativi­
lismo transcendental. Como o idealismo e dade consciente-inconsciente é a “ atividade
o realismo se pressupõem mutuamente, o estética” . Tanto os produtos do espírito
mesmo ocorre com a filosofia teórica e a como os da natureza são gerados por essa
filosofia prática; e, no próprio Eu, é ori- mesma atividade: “ A combinação de um e
ginariamente uno e ligado aquilo que nós do outro (do consciente e do inconsciente),
devemos separar em benefício do sistema sem consciência, dá o mundo real; com a
que estamos construindo” . consciência, dá o mundo estético (e espiri­
D evem os n otar que, desse m odo, tual). O mundo objetivo nada mais é do que
Schelling acaba por estabelecer a filosofia a poesia primitiva e ainda inconsciente do
transcendental com o terceiro momento espírito; o órgão universal da filosofia — e
para além da filosofia teórica e da filosofia a chave mestra de todo o seu edifício — é a
prática, mais precisamente como sua síntese. filosofia da a rte ". [ 2]
84
Segunda p U T te - T-i\v\dcxç.c\o e a b s o l u + i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o i d e a lis m o

4 jA a t iv id a d e d a a r t e que a filosofia, assim como foi produzida e


nutrida pela poesia na infância do saber, e
e a s c a ra c te rístic a s
com ela todas as ciências que por seu meio
d a c r ia ç ã o a rtístic a são levadas à perfeição, uma vez alcançada
sua plenitude, como tantos rios retornarão
ao oceano universal da poesia, do qual
N a criação artística se fundem, com haviam saído. E não é difícil dizer em geral
efeito, o consciente e o inconsciente. O pro­ qual será o intermediário do retorno da
duto artístico é, de fato, finito, mas mantém ciência à poesia, visto que tal intermediário
significação infinita. N as obras-primas da já existiu na mitologia, antes que ocorresse
arte humana encontra-se a mesma marca das essa separação, que agora parece inconci­
obras-primas da arte cósmica. Assim, a arte liável. M as como possa nascer uma nova
torna-se “ a única e eterna revelação” . mitologia, que não seja criação de um poeta
E Schelling pode também se entregar individual, e sim de uma nova estirpe, que
aos mais audazes sonhos sobre uma huma­ represente como que um só poeta, esse é
nidade futura que leve a ciência de volta à problema cuja solução só se deve esperar
fonte da poesia e crie nova mitologia, não dos futuros destinos do mundo e do curso
m ais produto de um indivíduo, mas de posterior da história” .
uma estirpe regenerada: “ Ora, se apenas Esse é o “ idealismo estético” que tanta
a arte consegue tornar objetivo, com valor impressão e tantos entusiasm os suscitou
universal, tudo o que o filósofo só pode entre os contemporâneos, mas que, como
representar subjetivamente, deve-se espe­ todos os sonhos, embora imenso, durou
rar, para tirar ainda mais esta conclusão, somente por breve tempo. [31

I V . y \ filosofia d a ide-n+idade
(1 8 0 1 - 1 8 0 4 )

• A concepção da intuição estética, como captação da unidade do ideal e do


real, implicava já uma concepção do absoluto como "identidade originária" de
Eu e não-eu, sujeito e objeto, espírito e natureza. O absoluto é,
O absoluto portanto, esta identidade originária de ideal e real, e a filosofia
é identidade é saber absoluto do absoluto.
originária
A identidade absoluta é infinita e não sai nunca fora de si e,
de ideal e real
—> § 1-2 portanto, tudo aquilo que existe, existe, de algum modo, nela e
é "identidade": a identidade absoluta é definitivamente o Uno-
Todo, fora do qual nenhuma coisa existe por si mesma.
• Para resolver a grande dificuldade de explicar como e por que da identida­
de infinita nasçam a diferenciação e o finito, Schelling retoma o antigo conceito
gnóstico, aceito no passado pelo misticismo alemão, da "queda":
Do infinito a existência das coisas e sua origem supõem uma "queda" origi-
ao finito nária, uma "separação" em relação a Deus. É este o tema central
da fase "teosófica" do pensamento de Schelling.

1 A r a z ã o c o m o a b so lu to ideal e o real em sua unidade, e a definição da


filosofia transcendental como ideal-realismo
já implicavam claramente nova concepção
Essa concepção da arte, ou melhor, da do absoluto, que deveria abandonar as ex­
intuição estética, como aquilo que capta o pressões kantianas e fichteanas unilaterais,
C ã p ^ltu lo quÍHtO - S c k e llm g e a g e s + a ç ã o ro m â n tic a d o id ealism o
85

2 A id e n tid a d e a b so lu ta
■ Identidade absoluta. Partindo do
Eu absoluto de Fichte, que é Eu = Eu,
o jovem Schelling elabora sua con­ Portanto, “ o único conhecimento ab­
cepção do absoluto como identidade soluto é o da identidade absoluta” , e esta
originária de Eu e não-eu, sujeito e identidade absoluta é infinita e, por conse­
objeto, consciente e inconsciente, guinte, tudo aquilo que existe é, de algum
espírito e natureza. O absoluto é esta modo, “ identidade” , que, como tal, jamais
identidade originária de ideal e real, pode ser suprimida. Toda coisa que seja
e a filosofia é saber absoluto do ab­ considerada como ela é em si, resolve-se
soluto, ao qual nos elevam os apenas
com uma intuição originária. nesta “ identidade infinita” , enquanto existe
A identidade absoluta é infinita e não apenas nela e não fora dela.
sai nunca fora de si, e tudo aquilo que Essa identidade não sai de si, mas, ao
existe, existe, de algum modo, nela e contrário, tudo está nela: “ O erro funda­
é "identidade": a identidade absoluta mental de toda filosofia é o pressuposto de
é definitivamente o Uno-Todo, fora do que a identidade absoluta saiu realmente de
qual nenhuma coisa existe p o r si mesma. si mesma, bem como o esforço para tornar
A existência das coisas e sua gênese
supõem uma "queda"originária, uma compreensível o modo como acontece esse
"separação" em relação a Deus: em sair para fora. A identidade absoluta, no
Deus, com efeito, há um princípio entanto, nunca deixou de ser tal, e tudo o
obscuro e cego, que é "vontade" irra­ que existe, considerado em si mesmo, não
cional, e um princípio positivo e racio­ é mais o fenômeno da identidade absoluta,
nal, e a vida de Deus se explica como mas ela própria” .
vitória do positivo sobre o negativo. Essa “ identidade absoluta” é, portanto,
o “ Uno-Todo” , fora do qual nada existe
por si, é o próprio universo, que é coeter-
no à identidade. As coisas singulares são
manifestações fenomênicas que brotam da
diferenciação qualitativa entre “ subjetivo” e
como “ sujeito” , “ eu” , “ autoconsciência” “ objetivo” , da qual nasce o finito. Todo ser
e semelhantes, para basear-se em nova for­ individual é a diferenciação qualitativa da
mulação, que entendesse o absoluto como identidade absoluta; ele não só permanece
“ identidade” originária entre eu e não-eu, radicado na identidade (como em seu fun­
sujeito e objeto, consciente e inconsciente, damento), mas também pressupõe sempre
espírito e natureza, em suma, como coinci- a totalidade das coisas individuais às quais
dentia oppositorum. está ligado estrutural e organicamente.
O absoluto, portanto, é essa identidade
originária entre ideal e real, e a filosofia é
saber absoluto do absoluto, baseado em
sua intuição, que é condição de todo saber
3 T )a id e n tid a d e

posterior. in jin ita a b s o l u t a


Esse absoluto passa a ser cham ado à r e a l i d a d e fin ita
de “ razão” e o ponto de vista da razão é o e d ife re n c ia d a
ponto de vista do saber absoluto, e a filoso­
fia é uma ciência absoluta. A subversão da
posição de Kant agora se completou, assim
como se antecipou plenamente a perspectiva Desse modo, a indiferença ou identi­
que Hegel tornaria sua, embora com uma dade originária se explicita na dupla série
série de m odificações, como veremos. É (fenomênica) de “ potências” , ou seja, na
evidente que aqui nos encontramos diante série de “ potências” em que prevalece o
de concepção na qual Fichte e Spinoza são momento da subjetividade (A) e na série em
sintetizados em forma de espiritualism o que prevalece o da objetividade (B); mas, na
panteísta (ou panteísmo espiritualista) ra­ prevalência de A, está subentendido B, assim
dical. Tudo é razão e a razão é tudo: “ Fora como na prevalência de B está subentendido
da razão não há nada, tudo está nela” . A A, de modo que a identidade se conserva
razão é simplesmente una e simplesmente na totalidade e se reafirma em qualquer
igual a si mesma” . diferenciação.
Segunda paYte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç a o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

É evidente que a grande dificuldade simo, ou seja, o problema da origem do


dessa nova perspectiva de Schelling con­ finito a partir do infinito. N o ponto em que
siste em explicar como e por que nascem ele chegara, já não lhe era possível acolher
da “ identidade infinita” a diferenciação e o criacionismo (que faz o finito nascer por
o finito. ato de livre vontade do Criador e supõe a
N essa fase, Schelling procura em parte transcendência) nem o spinozismo (que, na
superar a dificuldade reintroduzindo a teoria prática, anula o finito e representa posição
platônica das idéias. N a razão, entendida pré-idealista). Assim, ele retomou o antigo
como identidade absoluta e unidade do conceito gnóstico, que o misticismo alemão
universal e do particular, existem unidades já havia abrigado no passado, segundo o
particulares (as idéias) que deveriam cons­ qual a existência das coisas e sua origem
tituir a causa das coisas finitas. Todavia, no pressupõem uma “ q u ed a” original, um
absoluto, as idéias estão todas em todas, ao “afastam en to” de Deus. Para Schelling,
passo que as coisas sensíveis estão separadas portanto, “ a origem do mundo sensível
e umas fora das outras. E Schelling sustenta só pode se explicar pelo afastamento em
que, no sensível, as coisas são tais somente relação ao absoluto através de um salto” .
para nós, ou seja, somente para nossa cons­ E esse é o tema central da fase “ teosófica”
ciência empírica. da filosofia de Shcelling, na qual se ouvem
E n tretan to, torna-se evidente que ecos irracionalistas, por vezes de modo até
Schelling já lutava com problema gravís­ acentuado.

Schelling
em um belo retrato da época,
realizado a carvão e pastel.
Cãpltulo C[UÍHtO - S c k e l l i n g e a g e s t a ç a o r o m â n t ic a d o id e a lis m o

V. A s últimas f a s e s d o p e n sa m en + o
d e 5 c k e llm g

• Os opostos, que Schelling havia anteriormente admitido como unificados


no absoluto, são agora por ele compreendidos como presentes em luta no pró­
prio absoluto. Em Deus há um princípio obscuro e cego, que é
"vontade" irracional, e um princípio positivo e racional, e a vida A fase
de Deus se explica justamente como vitória do positivo sobre o teosófica
negativo. e a filosofia
O drama humano, que consiste na luta entre o bem e o mal, da liberdade
entre a liberdade e a necessidade é, portanto, o espelhamento -^§1
de um conflito originário de forças opostas que estão na base da
própria existência e da vida de Deus. O mal existe no mundo porque já existe em
Deus, e no decorrer da história ele será vencido pelo caminho do espelhamento
daquela vitória sobre o negativo que se realiza eternamente em Deus.
• O último Schelling distinguiu:
a) uma filosofia negativa, ou seja, a especulação construída apenas sobre a
razão e que versa sobre o que<oisa universal, sobre a essência das coisas;
b) uma filosofia positiva, isto é, a especulação fundada, além
de sobre a razão, também sobre a religião e sobre á revelação, e A filosofia
referente à existência efetiva das coisas: a filosofia positiva deve "positiva"
necessariamente integrar a negativa. Para Schelling, a revelação 2
por excelência é a da religião cristã, mas em geral ele compreende
o arco histórico das religiões como uma espécie de revelação progressiva de Deus.
E o Deus de que se ocupa a filosofia positiva é o Deus-pessoa que cria o mundo,
se revela e redime o homem da queda.

jA fa s e d a te o s o fia como “pessoa” (o que fora excluído tanto


e d a f ilo s o fia d a l i b e r d a d e por Spinoza como por Fichte), mas pessoa-
que-se-faz.
(1 8 0 4 -1 8 1 1 ) Os opostos, que antes Schelling admi­
tira no absoluto como unificados, agora já
são entendidos por ele como presentes em
luta dentro do próprio absoluto.
K O y \ n a t u r e z a d e X ^eus Existe em Deus o princípio obscuro e
cego, que é a “ vontade” irracional, e o prin­
A solução do problema da origem do cípio positivo e racional, e a vida de Deus
finito e do infinito comporta uma revisão de se explica precisamente como vitória do
toda a problemática do absoluto. Schelling positivo sobre o negativo. Deus não é puro
aceita doravante ser chamado “ panteísta” , espírito, mas é também natureza.
desde que se entenda por “ panteísmo” que
tudo está em Deus, mas não, ao contrário,
que tudo é Deus. K O ; A ju s t i f ic a ç ã o m e t a fís ic a d a lu fa

Deus é o antecedente e as coisas são o e-vúre. o b e m e o m al

conseqüente. O conseqüente está no antece­


dente, mas não vice-versa ou, pelo menos, O drama humano, que consiste na luta
está em sentido totalmente diferente. entre o bem e o mal, entre a liberdade e a
Além disso, chegando a esse ponto, necessidade, nada mais é do que o refletir-se
Schelling também aceita considerar Deus de um conflito originário de forças opostas,
Segunda pãYte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

que estão na base da própria existência e da zão, ao passo que a filosofia positiva, além
própria vida de Deus. Existe mal no mundo da razão, também se constrói com base na
porque ele já existe em Deus. religião e na revelação.
Portanto, os aspectos obscuros, nega­ E evidente que a revelação por exce­
tivos e angustiosos da existência têm sua lência é aquela na qual se funda a religião
origem no próprio absoluto. cristã. Schelling, porém, estende o conceito
Da mesma forma, a inteligência, a luz de revelação a todas as religiões históricas,
e o amor que existem no mundo já existem até as politeístas. Além disso, em geral ele
antes em Deus. Como luta entre os dois mo­ entende o arco histórico das religiões como
mentos, a vida reflete a luta originária que já uma espécie de “ revelação progressiva de
existe em Deus. E a vitória da liberdade, da Deus” . E compreensível, então, que o filóso­
inteligência e do positivo, que é o objetivo fo tenha feito, tanto da mitologia pagã como
da história dos homens, é o reflexo daquela da Bíblia, objetos de atenta análise.
vitória que se realiza eternamente em Deus Por fim, é importante destacar que o
e pela qual Deus é “ pessoa” . Deus de que se ocupa essa filosofia positiva
O mal, como o negativo que é supe­ já é o Deus-pessoa que cria o mundo, se re­
rado eternamente em Deus, é eternamente vela e redime o homem da queda: em suma,
rechaçado para o não-ser e, como tal, não é o Deus considerado naquela concretude
contrasta com a liberdade, com o bem, com religiosa que as filosofias modernas quase
a santidade e com o amor. nunca consideraram como objeto específico
Pode-se sentir nessa concepção resso­ de sua própria reflexão.
nâncias de Eckhart e sobretudo de Jacob Por fim, devemos notar como, nesta
Bõhme (místico e teósofo alemão), em cuja fase, Schelling, pondo em relevo o motivo
leitura Schelling foi iniciado por Franz von da existência não dedutível da essência,
Baader (1756-1841), que foi seu discípulo antecipe elementos “ existencialistas” que
e, ao mesmo tempo, o influenciou com seus Kierkegaard acolherá imediatamente e porá
fortes interesses teosóficos. em primeiro plano.

2 ^ " f ilo s o f ia p o sitiv a ”


(a p artir d e '1 8 1 5 ) I i
■ F ilosofia n e g a tiva e filo s o fia
positiva. A distinção entre filosofia
N a última fase, Schelling distinguiu positiva e filosofia negativa perten-
uma “ filosofia negativa” de uma “ filosofia ; ce à última fase do pensamento de
positiva” , passando a dedicar-se a esta últi­ ■ Schelling.
ma. Ele entende por “ filosofia negativa” a • A filosofia negativa é a especulação
filosofia professada até esse momento, ou construída apenas sobre a razão e
seja, a especulação em torno do “ que uni­ . que versa sobre o que-coisa universal,
versal’’, ou seja, em torno da essência das sobre a essência das coisas, sobre sua
coisas. Por “filosofia positiva”, ao contrário, possibilidade lógica.
ele entende a filosofia que diz respeito à • A filosofia positiva, ao contrário, é

I
existência efetiva das coisas. A primeira é : a especulação que se funda, além de
relativa à possibilidade lógica das coisas, a sobre a razão, também sobre a reli­
segunda à sua existência real. gião e sobre a revelação, e se refere
à existência efetiva das coisas: a filo­
Com essa distinção, ele não pretende sofia positiva deve necessariamente
negar a primeira forma de filosofia, mas integrar a negativa. .
fazer valer a necessidade da integração
substancial dessa forma. A filosofia negativa
é inteiramente construída com base na ra­
89
Capítulo quinto - 5 c k e ! l i n 0 e a g e s f a ç ã o r o m â n t ic a d o id e a lis m o

VI. Conclusões
s o b ^ e o p e n s a m e n fo d e 5 c k e llin 0

• Um juízo sobre a filosofia de Schelling é muito difícil, dada a sua complexa


parábola evolutiva. Ele deu o melhor de si entre 1799 e 1803, com os escritos que
gravitam ao redor do Sistema do idealismo transcendental, e desta
fase do pensamento de Schelling o próprio Hegel teve muito que a complexa
aprender. parábola
Depois, porém, o sucesso de Schelling foi pouco a pouco evolutiva
declinando, enquanto lenta mas constantemente subia a estrela P^samento
de Hegel, que de 1818 para a frente polarizará sobre si a atenção de^chellm9
de todos. ^

1 Wm ju í z o h i s t ó r i c o d ifícil obra é a expressão e o símbolo de um pe­


ríodo e — juntamente com alguns escritos
da filosofia da natureza, com a Exposição
É difícil emitir um juízo sobre a filosofia do meu sistema e com o Bruno, que refletem
de Schelling. Sua mobilidade desconcertou a fase da filosofia da identidade — nos dá
até os mais pacientes leitores, e a brusca o melhor de Schelling, até porque a veia
virada final irritou muita gente. Ele deu o teosófica do penúltimo período limita um
melhor de si para sua época entre 1799 e tanto os horizontes do filósofo, ao passo
1803, isto é, durante o período de Jena. E que as últim as obras foram publicadas
o próprio Hegel teve muito o que aprender postumamente.
dessa fase do pensamento de Schelling. M as, Hegel consagrará o esquema historio-
depois, o sucesso de Schelling foi declinando gráfico segundo o qual Fichte representaria
pouco a pouco, enquanto lenta mas cons­ o idealismo subjetivo, Schelling o idealismo
tantemente erguia-se a estrela de Hegel, que objetivo e o próprio Hegel o idealismo abso­
a partir de 1818 polarizará em torno de si a luto, como a tríade dialética de “tese” , “ antí­
atenção de todos. tese” e “ síntese” , cuja síntese “ supera” a tese
Talvez Schelling tenha sido o pensador e a antítese e as “penetra” . Historicamente,
que mais bem verbalizou as inquietudes esse esquema é inadequado, porque, por si
rom ânticas, aquele “ Streben” , ou seja, mesmos, Fichte e Schelling (considerados em
aquele tender incessante, aquele contínuo sua efetiva estatura histórica) não se deixam
“ superar-se” , deixando para trás o produto aprisionar por ele. Todavia, se nos limitar­
de sua própria criação para procurar outro, mos ao que seu tempo absorveu deles, essa
sempre novo. exemplificação mostra-se plausível, embora
O Sistema do idealismo transcendental com as devidas reservas. E, assim, com sen­
permanece como sua obra mais completa. tido de oportunidade, Hegel se impôs como
M as, em sua maior parte, ela é um compên­ aquele que dava de novo, potencializadas,
dio geral de coisas já ditas por seus ante­ as descobertas de Fichte e de Schelling, res­
cessores, só que expressas de modo melhor, gatando-as de sua unilaterãlidade, e trans­
visto que todas as novidades se concentram formando-as em verdadeiro conhecimento
em menos de trinta páginas (as idéias sobre sistemático e científico do absoluto, como
a arte e sobre a intuição artística). M as essa agora passaremos a ver mais longamente.
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u + i z a ç a o e s p e c u l a t i v a d o i d e a lis m o

SCHELLING
4 FILOSOFIA DA IDENTIDADE

O Absoluto
é o Uno-Todo,
. ^ identidade originária de
consciente inconsciente

#' ' <


ideal ■ ■ , . ^ real
(atividade teórica) espirito na ureza (atividade prática)

atividade estética,
ao mesmo tempo consciente e inconsciente
(filosofia da arte)

A CONCEPÇÃO DO ABSOLUTO
NA ÚLTIMA FASE DO PENSAMENTO DE SCHELLING

No Absoluto,
isto é, no próprio Deus,
existe a luta entre

um princípio positivo e
um princípio obscuro
e irracional, racional,
do qual derivam, que em Deus vence eternamente
como “ queda originária’’ e se revela pouco a pouco em todas as religiões,
até a religião cristã,
de Deus,
que é a mais perfeita

>
a Natureza a luta entre
bem e mal,
entre liberdade
e necessidade, na história humana o princípio positivo
no homem destina-se a vencer

a f i l o s o f i a p o s i t i v a é a especulação
baseada na religião e na revelação,
e refere-se à existência efetiva das coisas.
Ela deve necessariamente integrar — ------------ a f i l o s o f i a n e g a t i v a ,
que é a especulação baseada apenas na razão
e refere-se à essência (o que-coisa) das coisas
91
Capítulo quinto - S c K e l I in g a a g e s t a ç ã o r o m â n t ic a d o id e a lis m o ____

Os produtos da natureza inertes e priva­


S c h e l lin g dos de consciência não são mais que tentativas
falhos da natureza para refletir a si mesma; a
assim chamada natureza morta é em geral uma
inteligência imatura, de modo que em seus
fenômenos já transparece, ainda privado de
D fl necessidade consciência, o caráter inteligente.
fl natureza atinge o fim supremo, tornar-
se totalmente objeto de si mesma, unicamente
da filosofia da natureza
mediante a última e suprema reflexão, que não
pode ser mais que o homem ou, mais em geral,
Fl natureza aparece para Schelling pe­ aquilo que chamamos de razão, por meio da
netrada por um universal impulso Formativo qual a natureza pela primeira vez volta com­
e organizativo de modo a se mostrar, de pletamente para si própria, manifestando-se
Fato, como liberdade e subjetividade in fieri. originariamente idêntica àquilo que em nós é
Neste sentido, o aperFeiçoamento da ciência reconhecido como inteligente e consciente.
natural deveria consistir "na espiritualização Isto pode ser suficiente para provar que a
realizada de todas as leis naturais em leis do ciência natural tem a tendência necessária de
intuir e do pensar", e a FilosoFia da natureza tornar inteligente a natureza; é precisamente
deveria se tornar parte integrante, e por isso por essa tendência que ela se torno filosofia
necessária, do sistema do saber. do natureza, a qual é uma ciência fundamental
necessária da filosofia.
f. UJ. J. Schelling,
Se todo saber possui, por ossim dizer, Sistema do idealismo transcendental.
dois pólos que se exigem e se pressupõem
reciprocamente, então estes devem poder ser
encontrados em todas as ciências. Portanto,
devem existir duas ciências Fundamentais e
deve ser impossível sair de um pólo sem ser
impelido para o outro, fl tendência necessária
2 Caracterísitica
de todas as ciências naturais tem lugar, portan­ da produção estética
to, da natureza para o inteligente. Isso, e nada
mais, encontra-se na base do esforço para a
introdução da teoria nos fenômenos naturais. fí estética de Schelling mostra como a
O aperfeiçoamento supremo da ciência da arte prolonga no espírito o impulso Formativo
natureza consistiria na completada espiritualiza- da natureza, com a diFerença que atividade
ção de todas as leis naturais em leis do intuir e e produtividade são, no arte, acompanhadas
do pensar. Devem desaparecer completamente pela consciência, enquanto na natureza são
os fenômenos (o elemento material) e perma­ inconscientes. Na produção estética o ele­
necer apenas as leis (o elemento formal). Daqui mento objetivo e involuntário não desapare­
se conclui que quanto mais a conformidade com ce, mas, nas vestes de um "poder" estranho
leis irrompe na própria natureza, igualmente se que quase obriga o artista à sua atividade,
dissipa o véu, os próprios fenômenos se tornam une-se proFundamente com o elemento sub­
mais espirituais e, por fim, cessam completa­ jetivo e intencional.
mente. Os fenômenos óticos não formam mais
que uma geometria cujas linhas são traçadas
pela luz, e esta mesma luz é já de materialidade Que toda produção estética repouse so­
ambígua. Nos fenômenos do magnetismo de­ bre uma oposição de atividades pode-se já
saparece doravante qualquer rastro material, e concluir corretamente a partir do testemunho
dos fenômenos da gravitação, que os próprios de todos os artistas, segundo os quais eles
físicos acreditaram poder compreender apenas sõo involuntariamente impelidos à criação de
como ação diretamente espiritual, permanece suas obros e, produzindo-as, não fazem mais
exclusivamente a sua lei, cuja atuação no ma- que satisfazer um impulso irresistível de sua
crocosmo constitui o mecanismo dos movimentos natureza, porque se todo impulso procede de
celestes. uma contradição, de modo que, uma vez colo­
Perfeita teoria da natureza seria aquela cada a contradição, a atividade livre se torna
em que a natureza se dissolvesse em uma involuntária, então também o próprio impulso
inteligência. artístico deve provir de tal sentimento de contra­
Segunda pãTte - T -u n c la ç ã o e a b s o l u t i z a ç ã o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

dição interna. Todavia, esta contradição, pondo e eterna revelação que existe e o milagre que,
em movimento o homem inteiro com todas as mesmo que tivesse existido apenas uma vez,
suas forças, é sem dúvida uma contradição que deveria persuadir-nos da absoluta realidade
investe aquilo que há de último nele, a raiz do sypremo Absoluto.
de toda a sua existência, é como se nos raros F. LU. J
homens que mais do que outros são artistas Sistema do idealismo transcendental.
no sentido mais elevado da palavra, aquele
imutável idêntico sobre o qual está disposta
toda existência tivesse se despojado do véu
com o qual se circunda em outros homens e,
como é afetado imediatamente pelas coisas, 3 O verdadeiro órgão
assim também reaja imediatamente sobre
todas as coisas. Pode ser, portanto, apenas a do filosofio: o arte
contradição entre o consciente e o privado de
consciência no livre agir a pôr em movimento
o impulso artístico, assim como, por sua vez, R Filosofia da arte é para Schelling a
é apenas à arte que pode ser dado satisfazer conclusão sistemática de toda a Filoso­
nosso esforço infinito e resolver também em nós Fia, expondo a identidade originária de
a última e mais extrema contradição. consciente e inconsciente, subjetividade
Como a produção estética procede do e objetividade, liberdade e necessidade.
sentimento de uma contradição aparentemente Se a FilosoFia teórica, na determinação de
insolúvel, assim termina, segundo reconhecem sua abstração, permanece em um ponto
todos os artistas e todos aqueles que par­ de vista ainda isolado, a arte, ao contrário,
ticipam de sua inspiração, no sentimento de consegue tornar comunicável a "identidade
uma harmonia infinita. Que este sentimento originária", Fazendo-a penetrar na consciên­
que acompanha a realização seja, ao mesmo cia comum.
tempo, uma comoção, já o demonstra o fato
de que o artista atribui a perfeita solução da
contradição não a si próprio, mas a um favor Se a intuição estética é unicamente a
gratuito de sua natureza que, justamente como transcendental que se tornou objetiva, é evi­
o havia impiedosamente posto em contradição dente que a arte é o único documento que dá
consigo mesmo, depois lhe havia concedido a testemunho sempre e incessantemente àquilo
graça de libertá-lo da dor de tal contradição. que a filosofia não pode expor externamente,
Com efeito, como o artista é impulsionado in­ isto é, o privado de consciência no agir e no
voluntariamente ò produção, e até com íntima produzir, e sua identidade originária com o
resistência (daí as expressões recorrentes nos consciente. Cxatamente por isso a arte é para
antigos, como pati Deum etc., 0 em geral a o filósofo aquilo que há de supremo, porque
idéia de uma inspiração trazida por um sopro lhe abre, por assim dizer, o sancta sanctorum
estranho), da mesma forma também o objetivo onde, em união eterna e originária, quase em
sobrevêm em sua produção quase sem sua uma única chama, arde aquilo que é separado
intervenção, isto é, exatamente de modo mera­ na natureza e na história, 0 aquilo que na vida
mente objetivo. Assim como o homem marcado e no agir, como também no pensamento, deve
pelo destino não leva a termo aquilo que quer eternamente escapar. A visão da natureza que
ou que tem em mente, mas aquilo que deve rea­ o filósofo constrói artificiosamente é para a arte
lizar por causa de um destino incompreensível a originária e natural. Aquilo que chamamos de
sob cujo influxo jaz, também o artista, por mais natureza é um poema encerrado em secreta
que seja claramente intencionado, quanto ao e admirável escritura. Todavia, se o enigma
aspecto propriamente objetivo de sua criação pudesse desvelar-se, nele reconheceríamos
parece todavia encontrar-se sob o influxo de a odisséia do espírito que, por surpreendente
um poder que o separa de todos os outros engano, foge de si mesmo no ato de procurar-
homens, e o obriga a exprimir ou a representar se; com efeito, por meio do mundo sensível, o
coisas que ele próprio não vê perfeitamente sentido se mostra apenas mediante palavras, e
e cujo sentido é infinito. Ora, uma vez que o apenas por meio de névoa semidiáfana transluz
absoluto alcançar da coincidência das duas atenuadamente o país da fantasia pelo qual
atividades que escapam não é ulteriormente sempre anelamos. Toda pintura esplêndida
explicável, e todavia é um fenômeno que, nasce, por assim dizer, quando é removido
embora inconcebível, justamente por isso não o diafragma invisível que separa mundo real
pode ser negado, de modo que a arte é a única 0 mundo ideal, e não é mais que a abertura
93
Capítulo quinto - S c M I m g e a g e s t a ç ã o r o m â n t i c a d o id e a lis m o . .

por meio da qual vêm-nos ao encontro em sua próprio eu, até o ponto em que nós mesmos
plenitude as Figuras e as regiões do mundo da estávamos quando começamos a filosofar.
fantasia, o qual apenas imperfeitamente trans- Ora, se apenas a arte consegue tornar
luz no mundo real. Para o artista a natureza não objetivo, com valor universal, aquilo que o
é mais do que ela é para o filósofo, ou seja, filósofo pode expor unicamente de modo sub­
apenas o mundo ideal que aparece em meio jetivo, é de se esperar - paro tirar ainda esta
a permanentes limitações, apenas o reflexo conclusão - que a filosofia, assim como brotou
imperfeito de um mundo que existe não fora e foi alimentada pela poesia na infância do
dele, mas dentro dele. saber, e com ela todas as ciências que por
Quanto a saber de onde vem esta afi­ meio dela foram levadas à perfeição, uma vez
nidade da filosofia e da arte, apesar de sua alcançada sua plenitude, como diversos rios
oposição, as considerações precedentes já particulares confluirão novamente no oceano
deram uma resposta suficiente. universal da poesia do qual haviam saído. Qual
Concluiremos, portanto, observando o será, depois, o trâmite da volta da ciência para
que segue. a poesia não é em geral difícil de dizer, pois
Um sistema é completo quando é re­ este termo médio existiu na mitologia, antes
conduzido a seu ponto de partida. C este é que tivesse havido esta separação que agora
exatamente o caso de nosso sistema. Com parece insuperável. Todavia, como possa nascer
efeito, justamente o fundamento originário de uma nova mitologia, que não seja invenção do
toda harmonia entre o subjetivo e o objetivo, poeta particular e sim de uma geração nova
fundamento que poderia ser exposto em sua que quase represente, por assim dizer, um único
identidade originária unicamente por meio da poeta, isso é um problema cuja solução se pode
intuição intelectual, graças à obra de arte foi esperar apenas dos destinos futuros do mundo
completamente tirado para fora do subjetivo e do curso ulterior da história.
e se tornou totalmente objetivo, de modo que F. UJ. J
progressivamente conduzimos nosso objeto, o Sistema do idealismo transcendental.

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» S o 3.

Frontispício da edição de í 803 Frontispício do primeiro tomo


da obra de Schelling da opera omnia de Schelling,
Idéias para uma filosofia da natureza. publicada em 1856.
íS a p í + u l o s e x + o

■Hegel
e o idealismo absoluío

I. y\ v id a , a s o b r a s
e a g ê n e s e d o p e n s a m e n to d e E le g e i

• Nascido em Stuttgartem 1770, Georg Wilhelm Friedrich Hegel freqüentou o


ginásio da cidade natal. Em 1788 inscreveu-se na Universidade de Tübingen, onde
estudou filosofia e teologia; aqui estreitou relações de amizade
com Hõlderlin e Schelling. Terminando os estudos, Hegel foi pre- A vida § 1
ceptor em Berna (1793-1796) e em Frankfurt (1797-1799). Depois
da morte do pai, graças à herança que lhe coube, pôde dedicar-se inteiramente
aos estudos, e em 1801 dirigiu-se para Jena, onde conseguiu a docência e ensinou
primeiro como livre-docente, depois como professor extraordinário.
Em 1801 publicou a Diferença entre o sistema filosófico de Fichte eode Schelling,
tomando posição a favor do último; junto com Schelling, além disso, publicou de
1802 a 1803 o "Jornal crítico da filosofia", onde compareceram importantes ensaios
dele. Em Jena amadureceu sua primeira grande obra, a Fenomenologia do espírito,
terminada em 1806 e publicada no ano seguinte. Em dificuldades econômicas por
causa da guerra, transferiu-se primeiro para Bamberg, para dirigir sua "Gazeta"
local, depois para Nuremberg, onde foi diretor do ginásio até 1816; aí publicou a
Ciência da lógica, sua obra mais complexa. De 1816 a 1818 esteve na Universidade
de Heidelberg, onde publicou a Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio.
Em 1818 passou para Berlim, onde permaneceu até 1831, ano de sua morte. Foi este
o período de maior sucesso; aí viram a luz apenas as Linhas de filosofia do direito
(1821), mas foi intensa a atividade para preparar seus cursos (da história à estéti­
ca, da religião à história da filosofia), publicados postumamente pelos discípulos.
• A Fenomenologia do espírito, marcando no plano pessoal, além de no filo­
sófico, a ruptura definitiva com Schelling, inaugura a fase madura do pensamento
hegeliano. Depois da Fenomenologia, que constitui a "introdução" ao sistema
especulativo, os vértices do pensamento de Hegel são alcançados nas outras três
obras monumentais por ele publicadas em vida: A ciência da lógica (1812-1816), a
Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1817, reeditada com acréscimos
em 1827 e 1830; uma edição ulterior em três volumes, contendo os esclarecimentos
dados por Hegel no curso de suas aulas, foi publicada postuma­
mente por seus alunos entre 1840 e 1845) e as Linhas de filosofia As obras-primas
do direito (1821). hegelianas
Todas estas obras são de importância muito notável e isso e as diversas
explica porque, em tempos diversos ou em óticas diversas, cada avaliações delas
uma delas tenha sido considerada como a verdadeira obra-prima § 2-3
de Hegel. A Fenomenologia, embora com seus defeitos, é a obra
por certos aspectos mais viva e fascinante, mas a posição histórico-teórica de Hegel
emerge provavelmente com maior clareza e totalidade na Grande Enciclopédia,
em três volumes, cujas integrações dos cursos de aulas são extraordinariamente
ricas de análises e de notações ainda hoje dignas de serem meditadas a fundo.
96
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o l u t i z a ç a o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

que permaneceram inéditos, dos quais fala­


remos adiante.
Com a morte do pai, em 1799, graças
Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu à herança que lhe coube, pôde se dedicar
em Stuttgart em 1770. O pai era funcionário exclusivamente aos estudos. Em janeiro de
público e a família não carecia de recursos. 1801, transferiu-se para Jena, cuja univer­
Assim, ele pôde seguir tranqüilamente os sidade era então a mais famosa. Lá haviam
estudos humanistas no ginásio de sua ci­ ensinado Reinhold e Fichte; Schelling as­
dade natal. Apaixonou-se principalmente sumira há pouco o lugar de Fichte (que se
pelos clássicos gregos, sem deixar de lado afastara pelas razões que já conhecemos); os
os latinos (dos quais gostava bem menos). irmãos Schlegel constituíram o primeiro cír­
Em Hegel, o amor pelo mundo grego au­ culo romântico. Em Jena, Hegel conseguiu
mentaria sem cessar com os anos, a ponto a docência universitária com a dissertação
de redundar em resultados verdadeiramente De orbitis planetarum, e ministrou cursos na
determinantes do ponto de vista teórico, qualidade de livre-docente a partir de 1801;
como veremos adiante. de 1805 em diante, ensinou na qualidade de
Em 1788, Hegel matriculou-se na Uni­ professor extraordinário. Em 1801 Hegel
versidade de Tübingen, onde estudou filo­ publicou seu primeiro escrito im presso,
sofia durante um biênio e teologia durante intitulado Diferença entre o sistema filo­
um triênio. O ambiente acadêmico de T ü­ sófico de Fichte e o de Schelling, tomando
bingen, substancialmente impregnado pela posição em favor do último. Além disso,
mentalidade iluminista, não o entusiasmou com Schelling, publicou entre 1802 e 1803
e não correspondeu às suas expectativas, a o “Jornal crítico de filosofia” , no qual fo­
não ser em mínimo grau. Entretanto, em con­ ram publicados importantes ensaios de sua
trapartida, estabeleceu relações de amizade autoria. Foi nesse período que amadureceu
com companheiros de estudo destinados sua primeira grande obra, Fenomenologia
a se tornarem protagonistas de primeira do espírito, que concluiu em 1806 (dizem
grandeza da cultura alemã, como Hõlderlin alguns que exatamente quando os canhões
e Schelling, que exerceram notável influência de Napoleão troavam nas proximidades de
sobre ele. Jena). A visão de Napoleão vitorioso, que
A explosão da Revolução Francesa fazia um reconhecimento a cavalo, produziu
(1789) e suas primeiras afirmações produ­ enorme impressão em Hegel: foi golpeado
ziram notável impressão sobre os estudan­ pela percepção visual daquele homem a ca­
tes de Tübingen. Hegel com partilhou seus valo que, a pouca distância, “ concentrado
ideais e conta-se que, com Schelling e H õl­ em um ponto” , como ele escreveu expres­
derlin, participou da cerimônia que celebrou samente, “ estendia seu poder e dominava o
os ideais revolucionários com o simbólico mundo inteiro” .
plantio da árvore da liberdade. Em dificuldades econômicas por causa
Esse fervoroso espírito revolucionário, da guerra, Hegel aceitou dirigir a “ Gaze­
posteriormente, suavizou-se muito. Sobretu­ ta de Bamberg” e transferiu-se para essa
do na última fase do seu pensamento, Hegel cidade, onde permaneceu somente alguns
manifestou posicionamentos conservadores meses. Com efeito, no outono desse mesmo
e, em alguns aspectos, até reacionários, ano, transferiu-se para Nuremberg, onde
embora tenha continuado a julgar a Revolu­ perm aneceu até 1816, na qualidade de
ção Francesa como etapa fundamental da diretor do ginásio. Esses anos foram muito
história. fecundos. Entre 1812 e 1816 escreveu e
Concluídos os estudos, ao invés de publicou a Ciência da lógica, sua obra mais
dedicar-se à carreira eclesiástica, Hegel complexa.
escolheu o ingrato ofício de preceptor, Em 1816, foi chamado para a Univer­
inicialmente em Berna (de 1793 a 1796) sidade de Heidelberg, onde permaneceu até
e depois em Frankfurt (de 1797 a 1799), 1818. Em Heidelberg, publicou a Enciclo­
onde reencontrou Hõlderlin. Nesse período, pédia das ciências filosóficas em compêndio.
dedicou-se a estudos de história política e Em 1818 Hegel foi para Berlim, onde
econômica, mas seus interesses teológicos permaneceu até 1831, ano de sua morte. Foi
continuaram muito vivos e suas meditações esse o período de maior sucesso. As coni-
a esse respeito revelaram-se muito fecundas, vências com o poder político permitiram-
como se pode ver em uma série de escritos lhe exercer até uma verdadeira hegemonia
Capítulo sexto - H e g e l e o ide alism o a bsolu to

cultural. Em Berlim, publicou apenas uma muito importantes para a compreensão da


obra, Elementos de filosofia do direito. M as gênese do sistema hegeliano. São eles:
teve atividade incessante na preparação de 1) R eligião po p u lar e cristianism o
suas aulas, que iam da história à estética, (fragmentos);
da religião à história da filosofia: foram 2) A vida de Jesus (1795);
publicadas por seus discípulos depois de 3) A positividade da religião cristã
sua morte e estão entre suas coisas mais (1795/1796, primeira redação);
vivas. 4) O espírito do cristianismo e seu
Desde jovem, Hegel sempre foi um destino (1798);
grande metódico, estudioso incansável e 5) Fragmento de sistema (1800) e a se­
tenaz, versado em todos os campos do saber: gunda redação de A positividade da religião
foi a antítese do gênio desregrado de certos cristã (incompleta).
românticos. A mais bela descrição de Hegel Em Jena, Hegel escreveu (mas deixou
é dada pelo próprio Hegel ao descrever inéditos) A constituição da Alemanha e o
Platão, ou melhor, como ele se representava Sistema da eticidade. Em 1801, como já disse­
Platão: “ Platão estudou muitos filósofos, mos, publicou A diferença entre o sistema de
esforçou-se longa e duramente, viajou e não Fichte e o sistema de Schelling. Entre os artigos
foi, na verdade, gênio produtivo nem poéti­ publicados no “Jornal crítico de filosofia” ,
co, mas sim mente que procedia lentamente. destacam-se principalmente dois: Relações
Ao gênio, Deus dá alguma coisa no sono. E o entre o ceticismo e a filosofia e Fé e saber.
que lhe dá no sono são, por isso, nada mais A Fenomenologia do espírito (1807)
que sonhos” . Esse retrato, na realidade, é um assinala etapa decisiva: Hegel se afasta de
perfeito auto-retrato. Hegel estudou muitos Schelling e apresenta um tipo de pensamento
filósofos, meditou, viajou; diferentemente de totalmente original, dotado de marca dora­
Fichte, de Schelling e de outros românticos, vante inconfundível.
que assinaram suas obras-prim as muito As obras seguintes à Fenomenologia
jovens, ele chegou lentamente à sua meta. são todas de notável relevo, marcando os
M as os sistemas de seus contemporâneos, pontos culminantes do pensamento hege­
aos quais ele alude, foram verdadeiramente liano. São elas (como, em parte, já recor­
como sonhos, que a manhã leva, ao passo dam os): Ciência da lógica (1812-1816),
que as idéias de Hegel passaram a constituir, Enciclopédia das ciências filosóficas em
bem ou mal, um componente fundamental compêndio (1817) e Elementos de filosofia
do pensamento ocidental. do direito (1821).
A Enciclopédia foi reeditada em 1827
e em 1830, com ampliações. Outra edição,
em três volumes, foi feita pelos alunos, de­
. O s escrito s k egelian os: pois da morte de Hegel, entre 1840 e 1845,
a s o b r a s d a ju ven tu d e com uma série de inserções, contendo os
esclarecimentos que Hegel dava nas aulas.
e a s ob ras-p rim as
E, apesar da amplitude, essa edição é a mais
d a m atu rid ad e interessante e a mais clara.
Também publicadas pelos discípulos,
as aulas levam os seguintes títulos: Aulas
Hegel foi escritor muito fecundo. Suas sobre a filosofia da história; Estética; Aulas
vastas leituras, a facilidade com que assi­ de filosofia da religião e Aulas sobre a his­
milava e memorizava os vários conteúdos tória da filosofia.
e seus interesses bastante variados deram
à produção hegeliana densidade cultural e
amplitude excepcionais. Retomando o que
já dissemos em parte e completando-o, po­ 3 D iv e rsa s av aliaçõ es
demos agora traçar um quadro dos escritos d a s ob ras-p rim as d e H egel
mais significativos do filósofo.
Entre os trabalhos juvenis do período
de Berna e de Frankfurt (1793-1800), des­ Entre todas essas obras, qual é a que
tacam-se sobretudo os escritos teológicos, melhor reflete o pensamento, o método e o
publicados por Nohl no início do século X X , espírito de Hegel? Essa pergunta não tem
e considerados por alguns estudiosos como resposta que se revista do consenso unânime
Segunda parte - F u n d a ç ã o e ab*so!w tização e s p e c u l a t iv a d o id e alis m o

dos estudiosos. Dependendo dos diferentes por causa das estreitas relações que, em
momentos históricos e culturais e das dife­ Hegel, existem entre o “ elemento lógico” e
rentes tendências dos estudiosos, respondeu- a “ linguagem” , que hoje está no centro dos
se e se responde de modo diferente a essa interesses filosóficos. Entretanto, é verdade
pergunta. Alguns já consideraram e muitos que a lógica contém tudo, porque também
ainda consideram a Fenomenologia do es­ é uma “ filosofia primeira” , ou seja, uma
pírito como a grande obra-prima de Hegel. “ m etafísica” ; porém, só contém tudo em
M as a Fenomenologia foi concebida como certa perspectiva, que é a da “ Idéia como
uma espécie de “ introdução ao sistema” e, L o go s” (como veremos), visto que a idéia
se é verdade que nela o sistema está presente, lógica ainda deve se desenvolver como
também é verdade que o está somente em “ natureza” e “ espírito” . Portanto, a lógica
esboço; além disso, ao lado de partes belís­ é somente parte do sistema, conforme decla­
simas, ela apresenta também partes bastante ração expressa do próprio Hegel.
problemáticas e rústicas. O material mais rico e interessante se
N o passado, celebrava-se principal­ encontra nos grandes cursos ministrados em
mente a Enciclopédia das ciências filosóficas Berlim e publicados postumamente. Essa
em compêndio, que apresenta o quadro riqueza é compreensível, dado que eles se
completo do pensamento e do método do fi­ ocupam da filosofia do espírito, ou seja, do
lósofo. Muitos, porém, destacaram a aspere­ momento culminante do sistema hegeliano,
za da obra, que, como compêndio, apresenta no qual está inserido, em certo sentido, todo
discurso por vezes muito denso e conciso e, o resto. N ão se deve esquecer, porém, o fato
portanto, nem sempre compreensível. M as, de que esses cursos foram em grande parte
sobretudo, destacaram que a Enciclopédia reconstruídos com base nas anotações dos
revela por demais o defeito do pensamento discípulos, tendo finalidade predominante­
hegeliano: a excessiva “ sistem aticidade” , mente didática.
a pretensão de apresentar um saber que N a realidade, todas as obras mencio­
não seja visão particular do absoluto, mas nadas, por um ou por outro aspecto, são de
a “ ciência absoluta do absoluto”, com as notável relevo, o que explica a razão pela
relativas pretensões de sabor hegemônico e qual, em tempos diversos ou em diversas
até totalitário. óticas, cada uma delas já tenha sido consi­
Houve período em que se apreciavam derada como obra-prima. Talvez não esteja
principalmente os Elementos de filosofia longe da verdade afirmar que, apesar de seus
do direito, pela peculiar concepção da defeitos, a Fenomenologia é a obra mais
ética e pela célebre doutrina do Estado (a viva e fascinante por certos aspectos. M as
concepção do “ espírito objetivo” , da qual a posição histórico-teórica de Hegel emerge
falaremos amplamente). Hoje, porém, essas principalmente na Enciclopédia, particular­
doutrinas se apresentam como notavelmente mente na grande, em três volumes, com a
obsoletas e, em sua substância, não são mais devida integração dos cursos ministrados,
aceitáveis. que, como já dissemos, são extraordinaria­
De algum tempo para cá, está no auge a mente ricos de análises e anotações, ainda
Ciência da lógica, valorizada principalmente dignas de profunda meditação.
Cãpltulo S e x tO - "H egel e o id ealism o absoluto

II. O s fu n d a m e n to s d o sis+em a

• Os núcleos conceituais a que todo o sistema hegeliano pode Qsfuncjamentos


ser referido, seguindo em concreto seu desenvolvimento até sua conceituais
plena realização, são três: §1
1) a realidade enquanto tal é espírito infinito;
2) a estrutura e a própria vida do espírito e, portanto, também o procedimento
com o qual se desenvolve o saber filosófico, é a dialética;
3) a peculiaridade desta dialética, bem diferente de todas as formas prece­
dentes de dialética, é o elemento "especulativo".
• Um ponto de vista fundamental do pensamento hegeliano é o de entender
a verdade não como substância fixa e imutável, mas como sujeito, como espírito,
isto é, como atividade, processo, automovimento. Para Hegel o espírito se autogera,
gerando ao mesmo tempo a própria determinação e superando-a completamente:
o espírito é infinito porque se atua e se realiza sempre como infinito que põe e
ao mesmo tempo supera o finito. O espírito infinito hegeliano é como um círculo
em que princípio e fim coincidem de modo dinâmico, como um
movimento em espiral em que o particular é sempre posto e A concepção
sempre dinamicamente resolvido no universal. do espírito
Esta é a novidade que Hegel ganha em relação a Fichte, no infinito.
qual a cisão de Eu e não-eu (entre sujeito e objeto, infinito e As novidades
finito) permanecia não superada. em relação
Depois, em relação à identidade originária, tematizada por a Fichte
Schelling, que parece a Hegel vazia, artificiosa e injustificada ("a e a Schelling
noite em que todas as vacas são pretas"), o espírito infinito hege­ ->§2.1-2.5
liano é um unum atque idem que se plasma de novo em figuras
sempre diversas: o absoluto é uma igualdade que continuamente se diferencia
para se reconstituir. Cada momento do real é momento necessário do absoluto,
o qual se faz e se realiza justamente em cada um e em todos estes momentos: o
real é, portanto, um processo que se autocria enquanto percorre seus momentos
sucessivos, e em que o positivo é justamente o próprio movimento como progres­
sivo auto-enriquecimento.
• O movimento próprio do espírito é o refletir-se em si mesmo, uma reflexão
circularem que Hegel distingue três momentos:
1) o ser-em-si;
2) o ser-outro ou ser-fora-de-si;
3) o retorno a si ou ser-em-si-e-por-si.
O movimento autoprodutivo do absoluto tem, portanto, um ritmo triádico,
que se repete estruturalmente em todos os níveis do real e que no próprio absoluto
dá lugar a três momentos originários e paradigmáticos:
1) a idéia em si, que é logos como racionalidade pura (objeto A circularidade
da lógica);
2) a natureza, que é a idéia fora de si, isto é, alienada (objeto do espírito
da filosofia da natureza); conforme
3) o espírito em geral, que é a idéia que, a partir da alienação, odialético
movimento
retorna a si e se torna em si e por si (objeto da filosofia do espírito). -> § 2.6-2.8
Tudo é, portanto, desenvolvimento da idéia, que suporta
e supera sua negação, e a famosa frase de Hegel "tudo aquilo
que é real é racional e tudo aquilo que é racional é real" indica justamente que a
realidade é o próprio desenvolver-se da idéia, e vice-versa.
• Segundo Hegel, o único método em grau de garantir o conhecimento cien­
tífico do absoluto, e de elevar assim a filosofia a ciência, é o método dialético, em
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t iz a ç a o e s p e c u la t iv a d o idealism o

virtude do qual a verdade pode finalmente receber a forma rigorosa do sistema da


cientificidade; ele se remete aqui à dialética clássica, conferindo porém movimen­
to e dinamicidade às essências e aos conceitos universais que, já
„ descobertos pelos antigos, haviam, contudo, permanecido com
0s três eles em uma espécie de repouso rígido, quase solidificados. O
momentos coração da dialética torna-se assim o movimento, e precisamente
° o movimento circular ou em espiral, com ritmo triádico.
ít? Os três momentos do movimento dialético são:
1) A tese, que constitui o momento abstrato
o intelecto é a faculdade que abstrai conceitos determinados e
se detém nessa de-terminação própria do finito, considerando erroneamente que
as separações e de-finições assim obtidas sejam definitivas.
2) A antítese, que constitui o momento dialético (em sentido estrito) ou ne­
gativamente racional; o primeiro passo além dos limites do intelecto é realizado
negativamente pela razão, removendo a rigidez dos produtos intelectivos e levando
à luz a série de contradições e de oposições que caracterizam o finito: porém, uma
vez que todo membro de uma oposição é afetado por "carência", esta última é a
mola que impele a razão a uma síntese superior.
3) A síntese, que constitui o momento especulativo ou positivamente racio­
nal; aqui a razão capta a unidade das determinações contrapostas, ou seja, capta
dentro de si o positivo emergente da síntese dos opostos e se mostra ela própria
como totalidade concreta.
• O momento "especulativo" é, portanto, a reafirmação do positivo que se
realiza mediante a negação do negativo próprio das antíteses dialéticas e, portanto,
é uma elevação do positivo das teses a um nível mais alto. Para Hegel, com efeito,
a negação especulativa não é uma aniquilação total, nem uma
O momento reserva definitiva, mas é propriamente uma conservação daquilo
especulativo, que é negado, e sua elevação a um nível superior é um seu "en-
a "Aufhebung"
verdadeiramento" e uma sua "positivização" (ele usa os termos
e a "proposição
especulativa" aufheben e aufhebung, que em alemão têm o duplo significado
—> § 4 de "erguer, pôr à parte" e "conservar").
O especulativo é, portanto, o vértice ao qual chega a razão, a
dimensão do absoluto. Por conseguinte, as proposições filosóficas
devem ser proposições especulativas, que exprimem o movimento dialético com o
qual sujeito e predicado trocam entre si as partes de modo a constituir uma iden­
tidade dinâmica. Enquanto a proposição da velha lógica permanece fechada nos
limites rígidos do intelecto, a proposição especulativa é estruturalmente dinâmica
como a realidade que ela exprime e como o pensamento que a formula.

4 „ O s fu n d a m e n to s ra tudo o que os seus antecessores haviam


d o p e n s a m e n to K e0 elia n o
dito a esse respeito, especialmente Fichte e
Schelling, como veremos);
2) a estrutura, ou melhor, a própria
O m apa completo das idéias funda­ vida do espírito e, portanto, também o
mentais do hegelianismo é bastante amplo, procedimento segundo o qual se desenvolve
dado que se trata de uma das filosofias o saber filosófico, é a dialética (poder-se-ia
mais ricas e mais complexas (e, podemos dizer também que a espiritualidade é diale-
dizer também, uma das mais difíceis), mas ticidade);
os pontos básicos aos quais tudo pode ser 3) a peculiaridade dessa dialética, que
reconduzido são três: a diferencia claramente de todas as formas
1) anteriores de dialética, é aquilo que Hegel
a realidade enquanto tal é espírito
infinito (onde, por “ espírito” , entende-se chamou (em terminologia técnica) de ele­
algo que, ao mesmo tempo, assume e supe­ mento “especulativo”, que, como veremos,
Cãpítulo S e X tO - ' H e g e l e o i d e a l i s m o a b s o l u l o

constitui a verdadeira marca do pensamento


do filósofo.
A clarificação desses três pontos in­
dicará o objetivo ou o ponto terminal que
Hegel se propôs alcançar no seu filosofar, e
o caminho por ele seguido para alcançá-lo.
Entretanto, é evidente que sua plena
com preensão — com o disse justam ente
Hegel — só poderá ocorrer seguindo con-
cretamente o desenvolvimento do sistema
até sua conclusão, ou seja, percorrendo todo
o caminho até seu ponto final (com efeito,
como diz Hegel, em filosofia não existem
atalhos).

yA r e a l i d a d e c o m o e s p í r i t o :
d e te r m in a ç ã o prelim in ar
d a n o ç ã o K egelian a
d o espírito

Georg Wilhelm Irieilnch Hegel ( 17 7 0 - 1S ■>I )


E O ; A r e a l i d a d e n ã o é ^ s u b s + a n c i c", cLiboron a forma mais complexa
m a s “s u jeito ^ o w “e s p írito ^ e mais completa tle idealismo,
na qual procurou interpretar a totalidade
tios fatos c da historia em função
A afirmação fundamental da qual deve­ da identidade panlogistica de "real” e de “racional",
mos partir para entender Hegel é que a rea­ expressa pelo seu celebre mote:
lidade e o verdadeiro não são “ substância” "tudo o que e real e racional,
(ou seja, um ser mais ou menos enrijecido, tudo o que e racional e real".
como tradicionalmente era considerado no
mais das vezes), e sim “ sujeito” , ou seja,
“ pensamento” , “ espírito” . Para Fichte, o Eu põe-se a si mesmo,
Hegel acrescenta ainda que essa é ape­ enquanto é precisamente pura atividade
nas uma aquisição recente, que constitui autoponente e (inconscientemente) opõe a
peculiaridade própria dos tempos modernos. si o não-eu, ou seja, um limite, que depois
Trata-se, com efeito, de aquisição que procura superar dinamicamente. Todavia,
só se tornou possível com a descoberta nesse processo, o Eu de Fichte não alcança
kantiana do “ Eu penso” e dos diversos re- seu termo, visto que o limite é removido e
pensamentos do criticismo, particularmente afastado ao infinito, mas nunca inteiramente
das contribuições do idealismo de Fichte e “ superado” .
de Schelling (que, aliás, Hegel tende estra­ Esse infinito, que se pode representar
nhamente a diminuir ou a subestimar, em como uma reta que se estende sem limites,
benefício próprio). constitui, para Hegel, “ mau infinito” ou
“ falso infinito” , permanecendo processo ir-
resoluto, visto que nunca alcança plenamen­
E O C W + ic a a F ic k t e
te seu próprio fim ou objetivo, e visto que o
ser e o dever ser permanecem perenemente
Dizer que a realidade não é substân­ cindidos em uma espécie de corrida sem fim.
cia, mas sujeito e espírito, significa dizer Conseqüentemente, diz Hegel, Fichte não
que é “ atividade” , que é “ processo” , que consegue mais restaurar a situação de Eu e
é “ movimento” , ou, melhor ainda, que é não-eu, sujeito e objeto, infinito e finito.
“ automovimento” . Até aí, porém, Fichte já Portanto, permanece em Fichte uma
havia avançado, como já vimos. M as Hegel oposição ou antítese estrutural não supera­
vai mais além. da, que, porém, deve ser superada.
Segunda patte - F w n d a ç a o e absoluti^atpão e s p e c u la tiv a d o idealism o

C r ít ic a a S c k e llin g KOI A n o va c o n c e p ç ã o h e g e lia n a d o


espí^i+o c o m o infini+o

Uma tentativa de superar essas cisões


já fora feita por Schelling com sua filosofia Por conseguinte, a posição de Hegel
da identidade, que, num primeiro momento, é clara. O espírito se autogera, gerando ao
Hegel considerou como ponto de vista mais mesmo tempo sua própria determinação, e
elevado do que o de Fichte. M as a concepção superando-a plenamente.
da realidade como identidade originária de O espírito é infinito, não de modo pura­
Eu e não-eu, sujeito e objeto, infinito e finito, mente exigencial, como queria Fichte, mas de
como Schelling defendia, logo pareceu para modo a sempre atuar e se realizar, como con­
Hegel vazia e artificiosa, porque na realidade tínua colocação do finito e, ao mesmo tempo,
não deduzia nem justificava seus conteúdos, como superação do próprio finito. Enquanto
que já pressupunha como dados, e depois os “ movimento” , o espírito produz pouco a
reduzia sob o manto da “ indiferença” ou da pouco os conteúdos determinados e, portan­
“ identidade” abstrata e extrínseca. to, negativos (omnis determinatio est negatio,
Essa concepção pareceu a Hegel a já dizia Spinoza). O infinito é o positivo que
“ dissolução de tudo o que é diferenciado se realiza mediante a negação daquela nega­
e determinado” , a “ precipitação” de todas ção que é própria de todo finito; é a retirada
as diferenças “ no abismo da vacuidade” , e a superação do finito sempre a se realizar.
porque não se tratava de conseqüência de Tomado em si mesmo, o finito tem
desenvolvimento coerente e, portanto, não existência puramente “ ideal” ou abstrata,
se justificava a si mesma. no sentido de que não existe por si só, contra
Assim compreendemos a célebre afir­ o infinito ou fora dele — e isso, diz Hegel,
mação da Fenomenologia (que provocou constitui “ a proposição principal de toda
o rompimento da amizade entre Hegel e filosofia” .
Schelling), segundo a qual o absoluto de O espírito infinito hegeliano é, então,
Schelling é como “ a noite em que todas as como o círculo, no qual princípio e fim
vacas são negras” , bem como de que a filo­ coincidem de modo dinâmico, ou seja, como
sofia da identidade de Schelling é “ ingênua movimento em espiral no qual o particular é
e fátua” . sempre posto e sempre resumido dinamica­

Hegel ensina
mi l'nirersidadc
de Berlim.
Inirtiailar
de uma litografia
dc K. Kuglcr.
Capítulo sexto - -f-legel e o i d e a l i s m o a b s o l u t o

mente no universal; o ser é sempre resumido O real, portanto, é um processo que se


no dever ser e o real é sempre resumido no autocria enquanto percorre seus momentos
racional. Essa é a novidade que Hegel con­ sucessivos, e no qual o positivo é o próprio
quista, permitindo-lhe superar claramente m ovimento, que é auto-enriquecimento
Fichte. progressivo (de planta a botão, de botão a
Analogamente, também é compreensí­ flor, de flor a fruto).
vel a novidade que permitiu a Hegel superar
igualmente Schelling. O espírito não é unum
atque idem, como algo que, subreptícia e c a o p r o c e s s o t r iá d ic o d o e s p ír it o
extrinsecamente, se impõe a um material e m se rv H d o ^ c irc u la r^ d ia lé + ic o
diferente, e sim “ unurn atque idem que se
plasma em figuras sempre diversas” , e não a Todavia, ainda há outro ponto muito
repetição de alguma coisa idêntica, privada importante a destacar. Hegel salienta que o
de diversificação real. O espírito hegeliano, movimento próprio do espírito é o “ movi­
portanto, é igualdade que se reconstitui mento do refletir-se em si mesmo ”; trata-se
continuamente, ou seja, unidade-que-se-faz do sentido de “ circularidade” de que já
precisamente através do múltiplo. N essa falamos. E Hegel distingue três momentos
concepção, a quietude é somente “ o inteiro nessa “ reflexão circular” :
do movimento” . Sem movimento, a quietu­ 1) primeiro momento, que ele chama
de seria a quietude da morte, não da vida. A o do ser “ em si” ;
permanência não é a fixidez, que é sempre 2) segundo momento, que constitui o
inércia, e sim a verdade do dispersar. “ ser outro” ou “ fora de si” ;
3) terceiro momento, que constitui o
“ retorno a si” ou o “ ser em si e para si” .
w r m O e s p ír it o c o m o p r o c e s s o O “movimento” ou o “processo” auto-
q u e s e a u t o c r ia e m s e n tid o g lo b a l produtivo do absoluto tem portanto ritmo
triádico, que se expressa em um “ em si” , em
Estamos agora em condições de enten­ um “ fora de si” e em um “ para si” (ou “ em
der que, para Hegel, tudo o que dissemos si e para si” ).
vale para o absoluto e também para cada Vejamos um exemplo particular, apre­
momento particular da realidade (ou seja, sentado pelo próprio Hegel: “ Se [...] o
vale para o real, tanto em seu todo como embrião é em si o homem, ele,entretanto,
em suas partes), porque o absoluto hege­ não o é para si; para si só o é como razão
liano é de tal forma “ com pacto” que exige d esd ob rad a” [...], e somente essa é sua
necessariamente a totalidade das partes, realidade efetiva. A semente é em si a plan­
sem nenhuma exclusão. Cada momento do ta, mas ela deve morrer como semente e,
real é momento indispensável do absoluto, portanto, sair fora de si, a fim de poder se
porque este se faz e se realiza em cada um tornar, desdobrando-se, a planta para si (ou
e em todos esses momentos, de modo que em si e para si). E os exemplos poderiam se
cada momento torna-se absolutamente ne­ multiplicar à vontade, visto que esse pro­
cessário. Vejamos um exemplo, tomando cesso se verifica em todo momento do real,
um botão, a relativa flor e o fruto que daí como dissemos.
deriva. N o desenvolvimento da planta, o Todavia, em nível elevado, isso tam­
botão é de-terminação e, portanto, negação. bém se verifica no caso do real visto como
M as essa determinação é tirada (ou seja, su­ “ inteiro” . Assim, fica claro por que Hegel
perada) pelo florescimento, o qual, porém, fala do absoluto também como de círculo
enquanto nega essa determinação, também de círculos.
a “ verifica” , enquanto a flor é a positivida­ Visto como inteiro, o “ círculo” do
de do botão. Por seu turno, porém, a flor absoluto também marca seu ritmo pelos
é de-terminação, o que, portanto, implica três momentos já especificados (o em-si, o
negatividade, que por sua vez é tirada e fora-de-si e o retorno-a-si), momentos que
superada pelo fruto. E, nesse processo, são respectivamente denominados “ idéia” ,
todo momento é essencial para o outro e a “ natureza” e “ espírito” (em sentido forte). E
vida da planta é esse próprio processo, que como no processo que leva do germe ao ho­
pouco a pouco põe os vários conteúdos, ou mem, através do desdobrar-se do primeiro,
seja, os vários momentos, e pouco a pouco é sempre a mesma realidade que se desen­
os supera. volve, concretizando-se e então voltando a
104
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t iz a ç a o e s p e c u la t iv a d o ide alism o

si mesma, e o mesmo ocorre também com fato de que, para Hegel, qualquer coisa que
o absoluto: a idéia (que é o logos, a racio­ exista ou aconteça não está fora do abso­
nalidade pura e a subjetividade em sentido luto, mas é um insuprimível momento dele.
idealista, como veremos mais amplamente O mesmo significado tem a afirmação
adiante) tem em si o princípio do seu próprio de que “ ser e dever ser coincidem” : o que é,
desenvolvimento e, em função dele, primeiro é o que devia ser, porque tudo o que existe
se objetiva e se faz natureza, “alienando- é precisamente momento da idéia e do seu
se ”, e depois, superando essa alienação, desenvolver-se (o que acontece é sempre o
retorna a si mesma. Por isso, Hegel pode que merecia acontecer).
dizer perfeitamente que o espírito é a idéia Doravante torna-se claro também o
que se realiza e se contempla por meio de chamado “ panlogismo” hegeliano, ou seja,
seu próprio desenvolvimento. a afirmação de que “ tudo é pensamento” .
E compreensível, portanto, a tríplice Isso não significa que todas as coisas têm
distinção da filosofia hegeliana em: pensamento como o nosso (ou consciência
1) Lógica; como a nossa), e sim que tudo é racional en­
2) Filosofia da natureza; quanto é determinação de pensamento. Essa
3) Filosofia do espírito. afirmação, explica Hegel, corresponde à afir­
A primeira estuda a “ idéia em si” , a mação dos antigos segundo a qual o Nous
segunda o seu “ alienar-se” e a terceira o (ou seja, a Inteligência) governa o mundo.
momento do “retorno a si” . Eis um esquema
de ilustração e resumo, que pouco a pouco
E 3 o N e g a t i v o ” c o m o m o m en to
esclareceremos:
d ia lé t ic o q w e le v a o e s p ír it o a o p o sitivo

1. Idéia em si (= logos), estudada Resta o último ponto a esclarecer: a


pela Lógica importância desempenhada pelo “ negativo”
2. Idéia fora de si (= natureza), na concepção hegeliana do espírito.
Absoluto estudada pela Filosofia da A vida do espírito não é a que se es­
(= idéia) natureza. quiva da morte, e sim aquela que “ suporta
3. Idéia que retorna a si ou em si a morte e nela se mantém” .
e para si (= espírito), estudada O espírito “ só conquista sua verdade
pela Filosofia do espírito com a condição de encontrar a si mesmo na
devastação absoluta” , diz Hegel, acrescen­
tando que ele é essa potência e essa força
precisamente porque “ sabe olhar o negativo
WrhM y \ lg u n s corolários e s s e n c ia is face a face e deter-se junto dele, transfor­
d o p e n s a m e n t o hec/elian o mando o negativo no ser” .
Todavia, para compreendermos esse
Concluamos esta caracterização pre­ ponto absolutamente fundamental, devemos
liminar do absoluto hegeliano com alguns passar para a explicação da dialética e do
corolários importantes e famosos. novo significado que ela assume.
N a Filosofia do direito, Hegel escreveu:
“Tudo o que é real é racional e tudo o que é
racional é real” . Isso significa que a idéia não
d ialética
é separável do ser real e efetivo, e sim que o
real ou efetivo é o mesmo desenvolver-se da d oo r e a l
c o m o l ei s u p r e m a d
idéia e vice-versa. Para atenuar o sabor do e com o processo
paradoxo de suas afirmações (cujas implica­
d o p e n s a m e n t o filosófico
ções veremos mais adiante), Hegel explicou
que essa sua afirmação diz de modo filosó­
fico a mesma coisa que se diz em religião
quando se afirma que existe um governo E D O m é t o d o q u e t o m a p o s s ív e l
divino do mundo e, portanto, que aquilo o c o n k e c im e n t o d o a b s o lu t o
que acontece é querido por Deus, e que Deus
é o que existe de mais real. Contudo, só se M uito se discutiu sobre as relações
compreende perfeitamente o sentido dessa entre Hegel e o romantismo. A concepção
afirmação importantíssima considerando o hegeliana da realidade e do espírito nasce
Cãpltulo S e X tO - "H e g e l e o id e a lis m o a b s o lu to

M as H egel su pera o rom an tism o


principalmente no que se refere ao aspecto
■ Idéia. A "idéia" é para Hegel o metodológico.
term o mais idôneo para exprim ir em Hegel polemiza vivamente contra a
geral o absoluto, isto é, o Deus uno pretensão romântica de captar imediata­
e trino do cristianismo, em sua tota­ mente o absoluto. Paradigmática é sua po­
lidade. A idéia absolutase autogera, lêmica contra a “ fé” , que, como já vimos,
gerando ao mesmo tempo a própria para Jacobi era a via de acesso imediata
determinação e superando-a com­
pletamente: ela se atua e se realiza para o absoluto. Para Hegel, ao contrário,
sempre como infinito que põe e ao a captação da verdade é “ absolutamente
mesmo tempo supera o finito. condicionada pela m ediação” e é “ falso
A idéia absoluta hegeliana é assim que exista um saber imediato, um saber
com o um círculo em que princípio desprovido de mediação” . Os românticos
e fim coincidem de modo dinâmico, têm razão ao afirmarem a necessidade de ir
ou melhor, como um m ovim ento em além dos limites próprios da atividade do
espiral em que o particular é sempre “ intelecto” , que, com seus procedimentos
posto e sempre dinamicamente resol­ analíticos ou com suas técnicas dedutivas,
vido no universal.
O automovimento da idéia absoluta não sabe ir além do finito e, portanto, não
é, com efeito, o movimento do refle­ pode captar a realidade e o verdadeiro, que
tir-se dentro de si mesma, refle­
é uma são o infinito. Todavia, o infinito não se
xão circular em que Hegel distingue capta com o sentimento, com a intuição ou
três momentos: com a fé, que são algo de não-científico.
1) o ser-em-si; É preciso, portanto, ir além da “ ame-
2) o ser-outro ser-fora-de-si;
ou todicidade” do sentimento e do entusiasmo,
3) o retorno a si ser-em-si-e-por-si.
ou e encontrar um “ método” que torne possível
O movimento autoprodutivo da idéia
absoluta tem , portanto, um ritmo o conhecimento do absoluto, precisamente
triádico, que se repete estrutural­ de modo “ científico” . A função que Hegel
atribui a si próprio em relação aos român­
m ente em todos os níveis do real
e que na própria idéia absoluta dá ticos ou aos idealistas anteriores, portanto,
lugar a três momentos originários e é a de “ operar a elevação da filosofia a ciên­
paradigm áticos: cia” , através da descoberta e da aplicação
1) a idéia em si, que é logos como de um “ novo m étodo” . Esse método, capaz
racionalidade pura; de levar além dos limites do “ intelecto” , a
2) a natureza, que é a idéia fora de si, ponto de garantir o conhecimento “científi­
isto é, objetivada e alienada;
3) o espírito em geral, que é a idéia co ” do infinito (do real em sua totalidade),
que retorna a si a partir da alienação Hegel o encontra na dialética. A dialética,
e se torna em si e por si. portanto, torna-se o instrumento com o qual
Tudo é, portanto, desenvolvim ento o filósofo dá forma aos lemas românticos
da idéia, e a famosa frase de Hegel informes e com o qual considera poder
segundo a qual "tudo aquilo que é apresentar o verdadeiro na forma rigorosa
real é racional e tudo aquilo que é que cabe ao verdadeiro, ou seja, no sistema
racional é real" indica justamente que da cientificidade.
a realidade é o próprio desenvolver-se
da idéia, e vice-versa.
E 9 D if e r e n ç a s e n tre
a d ia lé tic a h e g e lia n a
e a c lá s s ic a d o s g r e g o s

da visão romântica, mas Hegel leva-a a seu


termo e, assim, a conclui e então a supera. A dialética, como sabemos, é descober­
O Streben infinito (ou seja, o “ tender” ) ta dos antigos. Nascida no âmbito da escola
romântico, por meio do conceito hegeliano eleática (sobretudo com Zenão), alcançara
do espírito como “ movimento-do-refletir-se- seu ponto culminante com Platão. N a época
sobre-si-mesmo” , resolve-se e identifica-se moderna, Kant retomou-a em sua Crítica da
em sentido positivo, porque é resgatado de razão pura, mas reduzira-a a desenvolvimen­
sua indeterminação, vindo a coincidir com to sistemático de antinomias destinadas a
o auto-realizar-se e o autoconbecer-se do permanecer insolúveis, privando-a, portan­
próprio espírito. to, de valor cognoscitivo.
Segunda parte - F u n d a tp ã o e a b s o lu t i s a ç a o e s p e c u la tiv a d o idealism o

coisa particular ao conceito universal. En­


tretanto, para Hegel, as idéias platônicas e
f ■ D ia lé tic a . O único m étodo em 1 os conceitos aristotélicos ficaram, por assim
dizer, bloqueados em rígida quietude e quase
fJ
| g ra u de g a ra n tir o co nh ecim en to j
| científico do absoluto, e de elevar solidificados. Como, porém, a realidade é
| assim a filosofia a ciência, é, segundo devir, é movimento e dinamismo, é evidente
| método dialético,
Hegel, o por meio J que, para ser instrumento adequado, a dialé­
í; do qual a verdade pode finalm ente | tica deveria ser reformada nesse sentido.
| forma
receber a sistema
rigorosa do § É preciso, portanto, imprimir movi­
I da cientificidade. f mento às essências e ao pensamento uni­
| A dialética nascera no am biente da |
f Escola de Eléia, principalm ente com j
versal já descobertos pelos antigos. Escreve
| Zenão, e na grecidade havia alcan- í Hegel: “ Por meio desse movimento, os puros
| çado seus vértices com Platão; na era 3 pensamentos tornam-se conceitos, e só então
| m oderna fora retom ada por Kant, I são o que verdadeiramente são: automovi-
| que porém a privara de verdadeiro j mentos, círculos [...], essências espirituais.
Í valor cognoscitivo. Hegel se remete | Esse movimento das essências puras cons­
à dialética clássica, mas conferindo J titui em geral a natureza da cientificidade” .
l movim ento e dinam icidade às essên- J
1 cias e aos conceitos universais que, J
í já descobertos pelos antigos, haviam | m j A e s t r u t u r a t r iá d i c a
| porém perm an ecid o com eles em * d o p r o c e s s o d ia lé t ic o
| uma espécie de repouso rígido, quase f
| solidificados. O coração da dialética 4 O coração da dialética torna-se, assim,
| movimento,
se torna assim o e preci-
§ o movimento. E o motivo já está claro para
| movimento circular em |
samente o ou
| espiral, com ritmo triádico. 3 nós, pois sabemos que o movimento é a pró­
pria natureza do espírito, é o “ permanecer
| Os três m om entos do m ovim ento J
1 dialético são: | do dispersar” , é o cerne do real. Consideran­
I \) a tese, que é o momento abstrato f do as razões já exemplificadas quando fala­
| ou intelectivo; I mos do espírito, esse movimento dialético
| 2) a antítese, que é o momento dia- J nada mais poderá ser senão uma espécie de
j? lético (em sentido estrito) ou negati- | movimento circular ou movimento espiral
| vãmente racional; | com ritmo triádico.
| 3) a síntese, que é o momento especu- ^ A compreensão dos “ três lados” ou
| Iativo ou positivamente racional. j
momentos do movimento dialético nos le­
vará a compreender o ponto mais íntimo, o
verdadeiro fundamento de Hegel. Esses três
momentos são geralmente indicados com os
A redescoberta dos gregos permitiu termos tese, antítese e síntese, mas de modo
o relançamento da dialética como forma simplificado, pois Hegel os usa poucas vezes,
suprema de conhecimento, como Platão já preferindo linguagem muito mais complexa
fizera. (E, entre outras coisas, cabe precisa­ e articulada:
mente a Hegel o mérito de ter reconhecido os 1) o primeiro momento Hegel chama
diálogos chamados “ dialéticos” de Platão, de “ o lado abstrato ou intelectivo” ;
ou seja, o Parmênides, o Sofista e o Filebo, 2) o segundo momento, por seu turno,
que antes dele eram deixados de lado, mas denominava-se “ o lado dialético (em sentido
que depois dele, em conseqüência, passaram estrito) ou negativamente racional
a ser reconhecidos como fundamentais.) 3) o terceiro momento é chamado de “ o
Entretanto, em bora existam pontos lado especulativo oupositivamente racional” .
de contato muito notáveis entre a dialética Exam inem os detalhadam ente esses
clássica e a hegeliana, existe também, ao três pontos.
mesmo tempo, uma diferença essencial.
Os antigos, diz Hegel, deram grande
passo no caminho da cientificidade, en­ WWtW O p r im e ir o m o m en to
quanto souberam se elevar do particular ao d a d i a l é t i c a (t e s e )
universal. Platão mostrara a deficiência do
conhecimento sensível como mera “ opinião” O intelecto é substancialmente a facul­
e se elevara ao mundo das idéias. Aristóteles dade que abstrai conceitos determinados e
acrescentou o caminho para relacionar cada que se detém na determinação dos mesmos.
Cãpítulo Sexto - E le g e i e o ide alism o a bsolu to

Ele distingue, separa e de-fine, cristalizan­ ligação com ele (não podemos pensar o uno
do-se nessas separações e de-finições, que de modo rigoroso e adequado sem a relação
considera de certa forma definitivas. que o liga com os muitos), podendo-se dizer
Escreve Hegel na Grande Enciclopédia: o mesmo para os conceitos de “ semelhante”
“ A atividade do intelecto, em geral, consiste e “ dessemelhante” , “ igual” e “ desigual” ,
em conferir ao seu conteúdo a forma da uni­ “ particular” e “ universal” , “ finito” e “ in­
versalidade: mais precisamente, o universal finito” , e assim por diante. Aliás, cada um
posto pelo intelecto é universal abstrato, desses conceitos dialeticamente considera­
que, como tal, é mantido solidamente con­ dos parece inclusive “ transformar-se” no
traposto ao particular, mas que, desse modo, próprio oposto e como que “ dissolver-se”
ao mesmo tempo, também é determinado nele.
por seu turno como particular. À medida que Por isso, escreve Hegel: a dialética “ é
opera em relação a seus objetos separando e esse ultrapassar imanente no qual a unilate-
abstraindo, o intelecto é o contrário da intui­ ralidade e a limitação das determinações do
ção imediata e da sensação, que, como tal, intelecto se expressam por aquilo que são,
relaciona-se inteiramente com o concreto e isto é, como sua negação. Todo finito é su­
nele permanece parad a.” peração de si mesmo. A dialética, portanto,
A potência abstrativa do intelecto é é a alma motriz do procedimento científico,
grande e admirável, e Hegel não poupa sendo o único princípio pelo qual o conteú­
elogios em relação ao intelecto, no sentido do da ciência adquire um nexo imanente
de que ele é a potência que destaca e afas­ ou uma necessidade; assim, em geral, é nele
ta do particular, elevando ao universal. que se encontra a verdadeira elevação, não
Assim, a filosofia não pode prescindir do extrínseca, para além do finito (isto é, para
intelecto e de sua obra, devendo, ao con­ além de cada simples determinação do fini­
trário, começar exatamente pelo trabalho to)” . Hegel tem o cuidado de salientar que
do intelecto. o momento dialético não é absolutamente
Entretanto, o intelecto como tal apre­ prerrogativa do pensam ento filosófico,
senta conhecimento inadequado, que per­ mas está presente em todo momento da
manece encerrado no finito (ou, no m áxi­ realidade: “ Ora, por mais que o intelecto
mo, vai até o “ falso infinito” ), no abstrato comumente solicite a dialética, não se deve
cristalizado, e, por conseguinte, torna-se pensar de modo algum que a dialética seja
vítima das oposições que ele próprio cria, algo presente somente na consciência filosó­
distinguindo e separando. O pensamento fica; ao contrário, o procedimento dialético
filosófico, portanto, deve ir além dos limites pode-se encontrar em toda outra forma de
do intelecto. consciência e na experiência geral. Tudo
aquilo que nos circunda pode ser pensado
E U O s e g u n d o m o m e n to como exemplo da dialética. N ós sabemos
d a d i a l é t i c a (a n t ít e s e ) que todo finito, ao invés de ser termo fixo
e último, é mutável e transeunte; isso nada
O ir além dos limites do intelecto é mais é do que a dialética do finito, mediante
peculiaridade da “ razão” , que tem um mo­ a qual o finito, enquanto em si, é diferente
mento “ negativo” e um “ positivo” . de si, sendo impelido também para além
O momento negativo, que Hegel cha­ daquilo que é imediatamente e transfor­
ma de “ dialético” em sentido estrito (dado mando-se no seu oposto.” (A semente deve
que, em sentido lato, “ dialética” é o con­ transformar-se no seu oposto para tornar-se
junto dos três momentos que descrevemos), broto, ou seja, deve morrer como semente;
consiste em remover a rigidez do intelecto e a criança deve morrer como tal e transfor­
de seus produtos. M as fluidificar os concei­ mar-se no seu oposto para tornar-se adulto,
tos do intelecto comporta o esclarecimento e assim por diante.) O negativo que emerge
de uma série de contradições e oposições de do momento dialético, em geral, consiste
vários tipos, sufocadas no enrijecimento do na “ falta” que cada um dos opostos revela
intelecto. Desse modo, toda determinação quando se defronta com o outro. M as é
do intelecto transforma-se na determinação exatamente essa “ falta” que se revela como
contrária (e vice-versa). a mola que impele, para além da oposição,
O conceito de “ uno” , tão logo é ex­ para uma síntese superior, que é o momento
traído de sua rigidez abstrata, requer o especulativo, ou seja, o momento culminan­
conceito de “ m uitos” , mostrando estreita te do processo dialético.
Segunda pãTte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t iz a ç ã o e s p e c u la t iv a d o ide alism o

Uma gravura do século XVI,


que representa
a Universidade de Heidelberg
(em primeiro plano).
Neste Ateneu Hegel publicou
a Enciclopédia.

E a O te^ceii^o m o m e n to d a d i a l é t i c a se resolve, o triunfo é também a quietude


o u m o m e n to e s p e c u la t i v o (s ín t e s e ) transparente e simples” .

O momento “ especulativo” ou “ positi­


vamente racional” é o que capta a unidade 4 7^ d im e n s ã o
das determinações contrapostas, ou seja, o d o “e s p e c u l a t i v o ”,
positivo emergente da resolução dos opostos
(a síntese dos opostos). Escreve Hegel: “ Em o s i g n i f i c a d o d o “a u f k e b e n w
seu verdadeiro sentido, o elemento espe­ e a “p r o p o s iç ã o
culativo é aquilo que contém em si como e sp e c u la tiv a ”
superadas aquelas oposições nas quais se
detém o intelecto (e, portanto, também a
oposição entre subjetivo e objetivo), e justa­
mente dessa forma mostra-se como concreto e h o m o m e n to “e s p e c u l a t i v o ”

e como totalidade” . c o m o n o v id a d e d a d ia lé tic a h e g e lia n a

A dialética, assim como a realidade


em geral e, portanto, o verdadeiro, é esse Como já dissemos, o pensamento antigo
movimento circular que descrevemos e que já adquirira o momento primeiro, ou seja,
jam ais tem repouso. Hegel chega até a com­ o nível do intelecto e, em ampla medida,
pará-lo a uma espécie de “ triunfo báquico” , também o segundo momento, ou seja, o
em uma passagem que vale a pena ler como racional-negativo ou dialético, como, por
conclusão: “ Desse modo, o verdadeiro é o exemplo, nos célebres argumentos de Zenão
triunfo báquico, onde não há membro que de Eléia, mas ignorara o momento “ espe­
não esteja ébrio; e, como cada membro, culativo” , e os próprios idealistas anterio­
enquanto se isola, imediatamente também res a Hegel não o identificaram bem. Ele,
Capítulo sexto - -H eg el e o idealism o absolu to

portanto, constitui descoberta tipicamente O especulativo constitui o ponto cul­


hegeliana. minante a que chega a razão, a dimensão do
O momento do “ especulativo” é a rea­ absoluto. N a Grande Enciclopédia, Hegel
firmação do positivo que se realiza mediante vai até o ponto de comparar o “ especula­
a negação do negativo próprio das antíteses tivo” (que é o “ racional” em seu mais alto
dialéticas e, portanto, é a elevação do positi­ nível) àquilo que no passado era chamado
vo das teses a um plano mais elevado. Se, por “ místico” , ou seja, aquilo que capta o ab­
exemplo, tomarmos o puro estado de ino­ soluto indo além dos limites do intelecto
cência, este representa um momento (tese) que raciocina.
que o intelecto cristaliza em si e ao qual
contrapõe, como antítese, o conhecimento
e a consciência do mal, que é a negação do K >1 "proposição"ou "juízo"
no s e n t id o t r a d ic io n a l
estado de inocência (a sua antítese); ora, a
e n o n o v o s e n t id o e s p e c u la t i v o
virtude é exatamente a negação do negativo
da antítese (o mal) e a recuperação do po­
sitivo da inocência em nível mais elevado, Depois disso tudo, não será difícil com­
que se tornou possível passando-se através preender também as afirmações de Hegel
da negação da rigidez que lhe era própria e, segundo as quais as proposições filosóficas
portanto, passando através da antítese, que devem ser “proposições especulativas” e não
desse modo adquire valor positivo, à medida juízos formados por um sujeito ao qual se
que leva a tirar aquela rigidez. atribui um predicado, no sentido da lógica
O momento especulativo, portanto, é tradicional.
o “ superar” no sentido de que é ao mesmo A proposição que expressa o juízo em
tempo o “ tirar-e-conservar” . sentido tradicional, com efeito, expressa
um tipo de juízo operado pel intelecto e,
portanto, pressupõe um sujeito pronto ao
E 11 O m o m e n to “e s p e c u l a t i v o ” qual são atribuídos ab extrinseco predicados
c.on\o "superação" no s e n t id o
d e V e ti r a d a -c o tis e ^ v a ç ã o ”
d o s m o m e n to s p f e c e d e n t e s

Hegel usa os termos que se tornaram ■ Especulativo. O "especulativo",


muito fam osos e até técnicos, aufheben que co n stitu i um a d escob erta t i­
(superar) e aufhebung (superação) para picam ente hegeliana, é o terceiro
expressar o momento “ especulativo” . Eis momento da dialética e consiste no
as suas próprias explicações a respeito, que conhecim ento dos opostos em sua
podem ser lidas na Grande Enciclopédia: u n id ad e: ele é a re a firm a çã o do
p o sitivo que se realiza m edian te a
“Aqui é o lugar oportuno para recordar o n eg a çã o d o n e g a tiv o p ró p rio das
duplo significado de nossa expressão alemã a n títe se s d ia lé tica s e, portanto, é
aufheben (superar). Por um lado, aufheben uma elevação do positivo da tese a
quer dizer tirar, negar; nesse sentido, por um nível mais alto.
exemplo, dizemos que uma lei, uma insti­ Para Hegel, com efeito, a negação
tuição etc., são suprimidas, superadas (auf- especulativa não é de modo nenhum
gehoben). Por outro lado, porém, aufheben uma aniquilação total, nem uma re­
significa também conservar; e, nesse sentido, serva definitiva, mas é propriamente
uma conservação daquilo que é nega­
dizem os que algo está bem conservado
do, e sua elevação a um nível superior
através da expressão wohl aufgehoben. Essa é um seu "en verd ad eiram en to " e
ambivalência do uso lingüístico do termo, uma sua "positivização". Ele usa a
pelo qual a mesma palavra tem sentido ne­ propósito os termos, que se tornaram
gativo e positivo, não deve ser considerada m uito famosos, a u fh eb e n e a u fh e ­
casual, nem devemos fazer disso motivo de bung, que em alem ão têm o duplo
acusação contra a linguagem, como se ela significado de "erguer, pôr à parte" e
fosse causa de confusão; pelo contrário, de "conservar". O especulativo cons­
nessa ambivalência se reconhece o espírito titui, portanto, o vértice a que chega
a razão, a dim en sã o do abso lu to .
especulativo da nossa língua, que vai além
da simples alternativa ‘ou-ou’ própria do
intelecto” .
Segunda pavte - F u n d a ç a o e a b s o lu t ia a ç ã o e s p e c u la t iv a d o id e alism o

como propriedades e acidentes, predicados “ o universal expressa o sentido do real” .


que também estão prontos e acabados em Portanto, o sujeito passa para o próprio
nossa representação (com base nos esque­ predicado (e vice-versa). A proposição em
mas com que o intelecto procede). Essa sentido especulativo diria que o real se resu­
operação de conjugar um predicado a um me no racional e, desse modo, o predicado
sujeito, portanto, é “ exterior” . torna-se elemento tão essencial da proposi­
A “ proposição especulativa” , ao con­ ção quanto o sujeito.
trário, deve ser tal de modo a não pressupor Aliás, na proposição especulativa su­
a distinção rígida entre sujeito e predicado e, jeito e predicado permutam-se as partes de
portanto, por assim dizer, deve ser plástica. modo a constituir justamente uma identida­
O “ é” da conjunção, então, expressará o de dinâmica. De fato, Hegel, assim formula
movimento dialético com que o sujeito se a proposição mencionada acima: “ Aquilo
translada ao predicado (em certo sentido, na que é real é racional; aquilo que é racional
proposição especulativa, tira-se e supera-se é real” , de sorte que aquilo que antes era
a diferença entre sujeito e predicado). “ Esse sujeito torna-se predicado, e vice-versa (a
movimento [...] é o movimento dialético da proposição reduplica-se dialeticamente).
própria proposição” , diz Hegel. E ainda: Em suma, a proposição da velha lógica
“ Só a enunciação do próprio movimento é permanece encerrada nos limites da rigidez
a representação especulativa” . e da finitude do intelecto. A “proposição
Vejam os um exem plo. Q uando di­ especulativa” , ao contrário, é própria da
zemos que “ o real é racional” em sentido razão que supera aquela rigidez, é uma
hegeliano (especulativo), não entendemos proposição que deve expressar o movimen­
(como na velha lógica) que o real é o sujei­ to dialético e, portanto, é estruturalmente
to estável consolidado (substância) e que o dinâmica, como também dinâmicos são a
racional é o predicado (ou seja, o acidente realidade que ela expressa e o pensamento
daquela substância), mas, ao contrário, que que a formula.

III. A ' 'fen o m enol o g ia


d o e-spín+o^

• A especulação filosófica surge quando a razão, negando as finitudes da


consciência, eleva-se até si mesma e até o absoluto. A passagem da consciência
comum para a consciência filosófica, porém, não pode se dar de modo repentino,
imediato, mas tem necessidade de uma mediação que seja ela
Da consciência própria filosófica. Ora, a Fenomenologia do espírito foi concebi-
comum (j-, e escrjta por Hegel exatamente com o objetivo de purificar a
^..con,^/enc/a consciência fenomênica e de elevá-la mediatamente até o saber
u>so íca absoluto. A Fenomenologia é, portanto, uma introdução ao filoso­
far, que é já ela própria um filosofar. Além disso, trata-se de uma
"introdução" que constitui um momento não só da vida humana,
mas também da vida do absoluto, do qual o homem é parte estrutural: ela é a via
filosófica que, conduzindo a consciência finita ao absoluto, coincide com a via que
o próprio absoluto percorreu para chegar até si mesmo, e seu método, portanto,
só pode ser o dialético. Mais precisamente, a fenomenologia (de phainómenon,
"o aparecer", e logos, "ciência") é a ciência do aparecer do espírito que se eleva
gradualmente, mediante momentos ligados dialeticamente, até o saber absoluto.
São dois, portanto, os planos que nela se cruzam e se justapõem:
1) a via percorrida pelo espírito infinito para chegar a sí por meio de todas as
vicissitudes da história do mundo;
✓ 111
Capítulo sexto - - H e g e l e o id e c J i s m o a b s o l u t o

2) o plano do espírito do homem individual, que deve percorrer novamente


a mesma via para dela se apropriar.
A história autêntica da consciência do indivíduo consiste em percorrer nova­
mente a história do espírito.
• O espírito que aparece é a consciência em sentido lato, isto é, como cons­
ciência de algo diferente (seja interno ou externo, e de qualquer tipo), cujo caráter
peculiar é, portanto, a oposição sujeito-objeto. Ora, o itinerário da Fenomenologia
é a progressiva mediação desta oposição até sua total superação, e percorre as se­
guintes etapas: consciência (em sentido estrito), autoconsciência,
razão, espírito, religião, saber absoluto. o itinerário
Cada uma dessas etapas é constituída por diferentes mo- da
mentos ou "figuras", que se sucedem segundo um ritmo dialéti- Fenomenologia
co cuja mola está na necessidade de superar toda desigualdade
entre o sujeito (a consciência ou Eu) e seu objeto (o "negativo")-,
o momento culminante do processo coincide com o momento em que o espírito
se torna objeto para si mesmo, dando assim lugar ao saber absoluto, isto é, ao
sistema da ciência que Hegel exporá na lógica, na filosofia da natureza e na filo­
sofia do espírito.

1 S ig n ific a d o e fin alid ad e argum enta argutam ente que pretender


d a “f e n o m e n o l o g i a
elaborar uma introdução à filosofia que
preceda a filosofia seria como pretender
d o esp írito” querer aprender a nadar antes de entrar na
água. Entretanto, Hegel está convencido
de que a passagem da consciência comum
■ a O p r o b le m a d a p a s s a g e m para a consciência filosófica deve ocorrer
d a c o n s c iê n c ia com u m p a r a a raz-cxo de modo mediato e não de modo rom an­
ticam ente im ediato e, portan to, Hegel
também admite que exista uma espécie de
Tudo o que destacamos, obviamente,
“ introdução à filosofia” .
implica que o homem, no momento em que
Ela, naturalmente, será uma “ intro­
filosofa, eleva-se bem acima da consciência
dução” ao filosofar, que é já ela própria um
comum, ou seja, mais precisamente, que sua
filosofar.
consciência eleva-se à altura da pura razão
e que se coloca em perspectiva absoluta
(ou seja, que adquire o ponto-de-vista-do- K O .A passagem d a c o n s c iê n c ia
absoluto). E, “ para construir o absoluto fin ita a o a b s o lu t o
na consciência” , é preciso negar e superar
as finitudes da consciência, elevando desse Podemos até dizer que na Fenomeno­
modo o eu empírico a Fm transcendental, a logia, entendida como caminho que leva
razão e espírito. ao absoluto, o homem está envolvido tanto
M as nada disso pode ocorrer ex abrup­ quanto o próprio absoluto. Com efeito,
to, ou seja, de chofre. N a verdade, Hegel no horizonte hegeliano, não existe o finito
condenou drasticamente o “ problema do “ separado” do infinito, o particular “ afas­
m étodo” como fora posto desde Descartes tado” do universal e, portanto, o homem
até o próprio Kant, chegando até a expedir não está afastado e separado do absoluto,
impiedosamente o atestado de óbito desse mas é parte estrutural e determinante dele,
problema, declarando-o como pertencente porque o infinito hegeliano é o infinito-que-
“ a uma cultura u ltrapassada” ; não pode se-faz-por meio-do-finito, e o absoluto é “ o
haver “ in trod u ção ” ao filosofar (como ser que reentrou eternamente em si pelo ser
pretendia o velho problema do método) outro” .
que já não seja filosofar, nem introdução Trata-se, portanto, de uma “ introdu­
à ciência que já não seja ciência. Hegel ção” ou de uma propedêutica que constitui
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t i^ a ç a o e s p e c u la tiv a d o ide alism o

um momento, não só da vida humana, mas mas como figuras já depostas do espírito,
também da vida do absoluto: a “ fenome­ como graus de caminho já traçado e aplai­
nologia do espírito” é o caminho que leva nado” .
a consciência finita ao absoluto infinito, Vejamos agora qual é o esquema desse
que coincide com o caminho que o abso­ itinerário do espírito-que-aparece e da cons­
luto percorreu e percorre para alcançar a ciência que o percorre de novo, e quais são
si mesmo (o reentrar em si pelo ser-outro). algumas das “ figuras essenciais do espírito
Portanto, a Fenomenologia marca a passa­ já depostas” .
gem necessária e científica, como dissemos,
e sua metodologia não pode deixar de ser
a mais rigorosa metodologia científica, ou
seja, a dialética. • A +m rn a
//f. //
e as j\ g u ^ a s
" fe n o m e n o lo g ia ” d a “f e n o m e n o l o g i a ”
c o m o h is+ ó ria d a c o n s c iê n c ia d o in d iv íd u o
e k is + ó H a d o e s p ín + o
E U e t a p a s d o itin e rá r io
Com base nessa premissa, torna-se fácil fe n o m e n o ló g ic o
compreender o termo “ fenomenologia” na
acepção hegeliana. O termo deriva do grego O espírito que se determina e aparece é
pbainómenon, que significa manifestar-se ou a consciência no sentido lato do termo, que
aparecer e, portanto, quer dizer ciência do significa consciência de alguma coisa diversa
aparecer e do manifestar-se. Esse aparecer (tanto interna como externa, e de qualquer
(e, no sistema hegeliano, não poderia ser gênero que seja). Consciência indica sempre
diferente) é o aparecer do próprio espírito relação determinada entre um “ eu” e um
em diferentes etapas, que, a partir da cons­ “ objeto” , relação sujeito-objeto. A oposição
ciência empírica, pouco a pouco se eleva a sujeito-objeto, portanto, é característica
níveis sempre mais altos. distintiva da consciência.
A fenomenologia, portanto, é a ciência Ora, o itinerário da Fenomenologia
do espírito, que aparece na forma do ser consiste na m ediação progressiva dessa
determinado e do ser múltiplo e que, em oposição, até sua total superação.
uma série sucessiva de “ figuras” , ou seja, Podemos, portanto, dizer também que
de momentos dialeticamente relacionados o objetivo que Hegel persegue na Feno­
entre si, alcança o saber absoluto. m enologia é a anulação da cisão entre
N a “ fenomenologia do espírito” , co­ consciência e objeto, com a demonstração
mo se evidencia do que foi dito, existem de que o objeto nada mais é do que o “ si”
dois planos que se interseccionam e se jus­ da consciência, isto é, autoconsciência: a
tapõem: autoconsciência que, de Kant em diante, se
1) há o plano constituído pelo caminho tornara o centro da filosofia, e que Hegel
percorrido pelo espírito para chegar a si procura fundamentar cientificamente, dela
mesmo ao longo de todos os acontecimen­ extraindo ao mesmo tempo as últimas con­
tos da história do mundo que, para Hegel, seqüências.
é o caminho ao longo do qual o espírito se Resumidamente, o itinerário fenome-
realizou e se conheceu; ' nológico percorre as seguintes etapas:
2) mas há também o plano próprio do 1) Consciência (em sentido estrito);
simples indivíduo empírico, que deve per­ 2) Autoconsciência;
correr novamente aquele mesmo caminho 3) Razão;
e apropriar-se dele. 4) Espírito;
A história da consciência do indivíduo, 5) Religião;
portanto, outra coisa não pode ser senão o 6) Saber absoluto.
percorrer de novo a história do espírito. A A tese de Hegel é que toda consciência
introdução fenomenológica à filosofia é o é autoconsciência; por sua vez, a autocons­
percorrer novamente esse caminho. Escreve ciência se descobre como razão; por fim, a
Hegel: “ O indivíduo deve percorrer nova­ razão realiza-se plenamente como espírito,
mente os graus de form ação do espírito que, através da religião, alcança seu ponto
universal, também segundo o conteúdo, culminante no saber absoluto.
Capítulo Sexto - H e g e l e o id e alis m o absolu+o

Cada uma dessas etapas é constituída B I ; A s e g u n d a e ta p a :


por diferentes momentos ou “ figuras” . He­ a a u t o c o n s c iê n c ia
gel apresenta cada um desses momentos ou ( d ia lé t ic a d e s e n k o r - s e r v o ,
cada uma dessas figuras de modo a mostrar e s t o ic is m o - c e t ic is m o
que a sua determinação é inadequada e que, e c o n s c iê n c ia in fe liz)
portanto, obriga a passar a seu oposto; este
supera o negativo do anterior, mas, por sua A segunda etapa do itinerário fenome-
vez, embora em nível mais elevado, também nológico é constituída pela “ autoconsciên­
se mostra determinado e, portanto, inade­ cia” , que, através dos diversos momentos,
quado, obrigando a passar além e assim por aprende a saber o que ela é propriamente.
diante, segundo o ritmo da dialética, que Inicialmente, a autoconsciência se manifes­
bem conhecemos. Hegel precisa que a mola ta como caracterizada pelo apetite e pelo
dessa dialética fenomenológica está na desi­ desejo, ou seja, como tendência a se apro­
gualdade ou no desnível entre a consciência priar das coisas e fazer tudo depender de
ou o eu e seu objeto (que é o “ negativo” ), e si, a “ tolher a alteridade que se apresenta
na superação progressiva dessa desigualda­ como vida independente” . Primeiro a auto­
de. O momento culminante desse processo consciência exclui abstratamente de si toda
coincide com o momento no qual o espírito alteridade, considerando o “ outro” como
torna-se objeto para si mesmo. não-essencial e negativo. M as logo deve sair
Tentemos resumir e interpretar breve­ dessa posição porque se defronta com ou­
mente essas etapas da Fenomenologia. tras autoconsciências e, conseqüentemente,
nasce de modo necessário “ a luta pela vida
ou pela morte” , por meio da qual e somente
WEÊ A p r im e ir a e t a p a : por meio da qual a autoconsciência se realiza
a c o n s c iê n c ia ( c e r t e z a s e n s ív e l, (sai da posição abstrata do em si e torna-se
pe-^c-e-pçcKO e in te le c to ) para si). Com efeito, segundo Hegel, toda
autoconsciência tem necessidade estrutural
A etapa inicial é constituída pela “cons­ da outra e a luta não deve ter como resultado
ciência” , entendida em sentido gnosiológico a morte de uma das duas, mas a submissão
(e, portanto, em sua acepção mais estrita), de uma à outra.
que é o tipo de consciência que olha e a) Nasce assim a distinção entre “ se­
conhece o mundo como algo diferente e nhor” e “ servo” , com a conseqüente “ dia­
independente de si. Ela se desdobra em três lética” , que Hegel descreve em páginas
momentos sucessivos: a) da certeza sensível, que se tornaram fam osas, para as quais
b) da percepção, c) do intelecto. Cada um principalmente os m arxistas chamaram a
destes leva dialeticamente ao outro. atenção, e que estão efetivamente entre as
a) N o momento da sensação, o parti­ mais profundas e belas da Fenomenologia.
cular aparece como verdade, mas aparece O “ senhor” arriscou seu ser físico na luta
muito mais como contraditório, a tal ponto e, na vitória, tornou-se conseqüentemente
que, para compreender o particular, é neces­ senhor. O “ servo” teve medo da morte e,
sário passar para o geral. na derrota, para salvar a vida física, aceitou
b) N o momento da percepção, o obje­ a condição de escravidão e tornou-se como
to parece ser a verdade; mas logo também que uma “ coisa” dependente do senhor. O
ele é contraditório, porque se revela uno senhor usa o servo e o faz trabalhar para
e muitos, ou seja, um objeto com muitas si, limitando-se a “ desfrutar” das coisas
propriedades ao mesmo tempo. que o servo faz para ele. M as, nesse tipo
c) N o momento do intelecto, o objeto de relação, desenvolve-se um movimento
aparece como um “ fenômeno” , produzido dialético que acaba por levar à inversão dos
por forças e leis: aqui, o sensível se resolve papéis. Com efeito, o senhor acaba por se
na força e na lei, que são precisamente obras tornar “ dependente das coisas” , ao invés de
do intelecto; dessa forma, a consciência con­ independente, como era, porque desapren­
segue compreender que o objeto depende de de de fazer tudo o que o servo faz, ao passo
alguma outra coisa, ou seja, do intelecto, e, que o servo acaba por se tornar indepen­
portanto (de certo modo), de si mesma (o dente das coisas, fazendo-as. Além disso,
objeto se resolve no sujeito). Desse modo, a o senhor não pode se realizar plenamente
consciência torna-se autoconsciência (saber como autoconsciência, porque o escravo,
de si). reduzido a coisa, não pode representar o
Segunda parte - F u nclaçao e a b s o lu t i z a ç ã o e s p e c u la tiv a d o id e alism o

pólo dialético com o qual o senhor possa tem apenas “ consciência fragmentada de
se confrontar adequadamente (já se notou si” , porque procura seu objeto naquilo que
com razão que ser somente senhor é muito é apenas um além inatingível-, ela está ins­
menos do que ser pessoa autoconsciente); talada neste mundo, mas está toda voltada
ao contrário, o escravo tem no senhor um para o outro (inatingível) mundo. Para a
pólo dialético tal que lhe permite reconhe­ consciência infeliz, toda aproxim ação à di­
cer nele a consciência, porque a consciência vindade transcendente significa uma própria
do senhor é a que comanda, enquanto o mortificação e um sentir a própria nulidade.
servo faz o que o senhor ordena. Dessa A superação do negativo próprio dessa cisão
form a, Hegel identifica perfeitamente o (isto é, segundo Hegel, o reconhecimento de
poder dialético que deriva do trabalho. que a transcendência na qual a consciência
Diz ele: “ Precisamente no trabalho, onde infeliz via a única e verdadeira realidade não
parecia ser ela um significado estranho” , a está fora, mas sim dentro dela) leva a uma
consciência servil encontra-se a si mesma síntese superior, que se realiza no plano da
e encaminha-se para encontrar seu signifi­ “ razão” .
cado próprio.
M as a autoconsciência só alcança a
plena consciência através das etapas su­ WKM t e r c e ir a e t a p a : a r a z ã o
cessivas: b) do estoicismo, c) do ceticismo,
d) da consciência infeliz. A “razão” nasce no momento em que
b) O “ estoicism o” representa a liber­ a consciência adquire “ a certeza de ser to­
dade da consciência que, reconhecendo- da realidade” . Essa é a posição própria do
se com o pensam ento, in stala-se acim a idealismo.
da senhoria e da escravidão, que, como As etapas fenomenológicas da razão
sab em o s, constituem p ara os estóico s (ou do espírito que se manifesta como ra­
m eros “ in d ife re n te s” . M a s, querendo zão) são as etapas dialéticas progressivas da
libertar o homem de todos os im pulsos e aquisição dessa certeza de ser toda coisa,
de todas as paixões, o estoicism o o isola ou seja, da aquisição da unidade de pensar
da vida e, conseqüentem ente, segundo e de ser.
Hegel, sua liberdade permanece abstrata, Essas etapas repetem, em nível mais
retrai-se para dentro de si e não supera a elevado, como espiral que se eleva, em
alteridade. movimento que retorna sempre sobre si,
c) O estoicismo translada-se dialetica- segundo círculos cada vez mais amplos, os
mente para o “ ceticismo” , que transforma três momentos examinados anteriormente.
o afastamento do mundo em atitude de ne­ O nível mais elevado consiste justamente
gação do mundo. M as, negando tudo o que no fato de que agora, como razão, a cons­
a consciência tinha como certo, o ceticismo, ciência sabe ser unidade de pensamento e de
por assim dizer, esvazia a autoconsciência, ser e, nesse nível, as novas etapas consistem
levando-a à autocontradição e à cisão de precisamente em verificar essa certeza. E
si consigo mesma. Com efeito, a autocons­ assim temos as três etapas: A) da “ razão que
ciência cética nega as próprias coisas que é observa a natureza” ; B) da “ razão que age”
obrigada a fazer e vice-versa: nega a validade e C) da “ razão que adquire a consciência de
da percepção e percebe; nega a validade do ser espírito” .
pensamento e pensa; nega os valores do A) A “ razão-que-observa-a-natureza”
agir moral e, no entanto, age segundo tais é constituída pela ciência da natureza, que
valores. se move desde o princípio no plano da
d) A característica da cisão, implícita consciência de que o mundo é penetrável
na autocontradição do ceticismo, torna-se pela razão, ou seja, é racional. Hegel escre­
explícita na “ consciência infeliz” , que é ve: “ A razão procura seu outro, sabendo
a consciência de si como “ duplicada” ou que nisso ela não possuirá mais que a si
“ desdobrada” e “ no aspecto imutável e no mesma; ela busca apenas sua própria infi-
aspecto mutável-, o primeiro é considerado nitude” .
como coincidente com um Deus transcen­ Portanto, para poder-encontrar-a-si-
dente, e o segundo com o homem. A cons­ mesma-no-seu-outro, a razão deve superar
ciência infeliz (bimundana), segundo Hegel, o momento “ de observação” e passar para
é o traço que caracteriza principalmente o momento “ ativo” ou “ prático” , ou seja,
o cristianismo medieval. Essa consciência para a esfera moral.
Capítulo sexto - - H e g e l e o ic j e a l i s m o a b s o l u t o

B) A “ razão-que-age” repete em nível Quem não tiver continuamente pre­


mais elevado (isto é, no nível da certeza de sente essa dimensão intersubjetiva e social
ser toda coisa) o momento da autoconsciên­ do espírito não poderá compreender sequer
cia. O itinerário da razão ativa consiste em uma palavra do que diz Hegel.
começar a realizar-se, inicialmente, como Conseqüentemente, é claro que, du­
indivíduo para, por fim, elevar-se ao univer­ rante todo o curso do resto do itinerário
sal, superando os limites da individualidade fenomenológico, as “ figuras” tornam-se
e alcançando a união espiritual superior dos “ figuras de um mundo” , etapas da história,
indivíduos. que nos mostram o espírito “ alienado no
As etapas desse processo são indicadas tempo” , mas que, através dessa alienação,
por Hegel nas “ figuras” : se realiza, se reencontra e, por fim, se au-
a) do homem que busca a felicidade no toconhece. As etapas fenomenológicas do
prazer e no gozo (como, por exemplo, no “ espírito” são:
primeiro Fausto de Goethe); A) o espírito em si como eticidade
b) do hom em que segue a lei do (como se exprime de modo paradigmático
coração individual (como no sistema de no mundo greco-romano);
Rousseau); B) o espírito que se alheia de si (que
c) da virtude e do homem virtuoso, mas se cinde nas contradições, como acontece,
de modo ainda abstrato (como ocorre, por por exemplo, no lluminismo e na Revolução
exemplo, nos personagens que gostariam de Francesa que termina no terror);
reformar o mundo, mas que por sua qua­ C )o espírito que readquire certeza
lidade abstrata entram em falência, como de si.
Dom Quixote e Robespierre).
C) Síntese dos dois momentos anterio­
m i a q u in ta e t a p a : a r e lig iã o
res, a razão é dada pela autoconsciência
que supera sua posição em relação aos
outros e ao curso do mundo, encontran­ A Fenomenologia apresenta ainda uma
do neles seu próprio conteúdo. Esta fase etapa, ou seja, a “ religião” , através da qual
também se realiza em três momentos su­ chega-se à meta, ao saber absoluto. Já que
cessivos: deveremos falar sobre a concepção da reli­
a) o representado pelo homem in­ gião mais adiante, na filosofia do espírito,
teiramente voltado para as obras que rea­ limitamo-nos aqui a alguns poucos acenos
liza; (trata-se de páginas que, ao que parece, He­
b) o da razão legisladora; gel acrescentou à Fenomenologia por razões
c) o da razão que examina ou critica leis. contingentes, ainda que seu sentido redunde
Como momento conclusivo, nessa fase, claro no conjunto).
a autoconsciência descobre que a substância N a religião e em suas diferentes m a­
ética nada mais é senão aquilo em que ela nifestações o espírito toma consciência
já está imersa: é o ethos da sociedade e do de si mesmo, “ mas somente do ponto de
povo em que vive. vista da consciência, que tem consciência
da essência absoluta” e não ainda como
autoconsciência absoluta do próprio ab ­
E £ 9 A q u a r t a e t a p a : o e s p ir it o soluto, que será o ponto de vista do saber
absoluto.
A razão-que-se-realiza-em-um-povo- Pode-se também dizer que a religião é a
livre e em suas instituições é a consciência autoconsciência do absoluto, mas ainda não
que se reúne intimamente à sua própria perfeita, ou seja, na forma da representação
“ substância ética” , e isso é doravante o e não do conceito.
espírito. A forma mais elevada de religião para
O espírito é o indivíduo que con sti­ Hegel é o cristianismo, e nos dogmas funda­
tui um mundo tal como ele se realiza na mentais do cristianismo ele vê os conceitos
vida de um povo livre. O espírito, portan­ cardeais de sua filosofia: a encarnação, o
to, é a unidade da autoconsciência “ na reino do espírito e a trindade expressam o
perfeita liberdade e independência” e, ao conceito de espírito que se aliena para se
mesmo tempo, em sua oposição “ media- autopossuir e que, no seu ser-outro, mantém
t a ” . O espírito é “ eu que é nós, nós que a igualdade de si consigo, operando a síntese
é eu” . suprema dos opostos.
Segunda parte - F u n d a ç a o e a b s o lu t i s a ç a o e s p e c u la t iv a d o idealism o

HHHI e t a p a c o n c lu s iv a : por fim, ao puro conceito e ao saber ab­


o s a b e r a b s o lu t o soluto, ou seja, ao sistema da ciência, que
Hegel exporia na “ Lógica” , na “ Filosofia
A superação da forma de conhecimento da natureza” e na “ Filosofia do espírito” ,
“ representativo” próprio da religião leva, com overem os. TT 2T 3I

IV. A ló g ic a

• A Lógica começa e se desenvolve inteiramente no plano definitivamente


ganho da Fenomenologia, isto é, no plano do saber absoluto, em que desapareceu
toda diferença entre "certeza" (subjetividade) e "verdade" (objetividade); ela não
é, portanto, um puro "organon", no sentido em que o era a lógica formal, mas é o
estudo da estrutura do Todo, no sentido que a própria lógica é o auto-estruturar-
se do Todo.
A tese de fundo da lógica hegeliana, que retoma em sentido especulativo a
posição de Parmênides, é que "pensar" e "ser" coincidem: o pensamento, em seu
processo, realiza a si mesmo e o próprio conteúdo, e esta realiza-
A lógica ção dialética é ao mesmo tempo, de modo sempre mais elevado,
como reino um "pensar o ser" e o "ser do pensamento": a lógica coincide,
do pensamento portanto, com a ontologia (ou seja, com a metafísica). Em seu
pUç° complexo, portanto, a lógica é o reino do pensamento puro, da
verdade como ela é em si e por si sem véu: é a exposição de Deus
como Ele é em sua eterna essência antes da criação do mundo e
de todo espírito finito. O Deus exposto pela Lógica é, portanto, o elemento puro
do pensamento (o logos) que, para se tornar espírito, deve primeiro alienar-se na
natureza e depois superar essa alienação.
• O logos da Lógica deve também ser concebido como desenvolvimento e
processo dialético, e as diversas categorias por meio das quais pouco a pouco
se desenvolve podem ser consideradas como definições sucessivas, sempre mais
determinadas e mais ricas, do absoluto: a "idéia lógica" é a totalidade de suas
determinações conceituais em seu desdobramento dialético. Ora, as três etapas
fundamentais da Lógica são:
1) Na lógica do ser a dialética procede em sentido horizontal, mediante pas­
sagens que levam de um termo a outro que absorve em si o precedente; seu início
(que é o início absoluto da Lógica) é constituído pela tríade da
Lógica primeira categoria (a qualidade): a) ser; b) não-ser; c) tornar-se.
do ser Em certo sentido, nesse início já está presente todo o sistema
-> § 2 especulativo hegeliano, justamente porque todas as tríades su­
cessivas apenas exprimem o absoluto de modo pouco a pouco
sempre mais rico e articulado.
2) Na lógica da essência temos o desenvolvimento em profundidade dos vários
termos em seu "refletir-se" recíproco dirigido às raízes do ser (o termo alemão
Wesen significa: "o ser refletido em si e condensado em si mesmo"). Aqui se dão
as discussões sobre princípios de identidade e de não-contradição,
Lógica que por Hegel são considerados como pontos de vista do inte-
da essência lecto abstrato e unilateral: a verdadeira identidade, com efeito,
->§3 inclui as diferenças, e a contradição é a raiz de todo movimento
e vitalidade.
3) Na lógica do conceito o pensamento se atua na dimensão da circularida­
de: cada termo prossegue no outro até identificar-se dialeticamente com ele, e
Cãpltulo SextO - H e g e l e o id e alism o a bsoluto

tudo é um autodesdobramento do sujeito, o qual é toda a realidade. O conceito,


em sentido próprio, é o Eu penso que se autocria e, autocriando-se, cria todas as
determinações lógicas. Mudam, por conseguinte, os significados
de "juízo" e de "silogismo", estreitamente ligados ao "conceito": Lógica
o juízo coincide com a proposição especulativa que exprime a do conceito
identidade dinâmica de sujeito e predicado, e indica o tornar-se- -> § 4
universal do singular; o silogismo representa depois a unidade
dialética dos três momentos da universalidade, particularidade e singularidade,
tríade que constitui a estrutura fundamental de toda coisa e de toda a realidade.
A idéia lógica resulta, finalmente, como o conceito que se auto-realiza plenamente
e também a totalidade dos momentos desta realização.

1 y \ nova con cep ção à lógica da tradição aristotélica. Nem po­


dia ser diversamente, depois da revolução
d a lógica
kantiana e dos sucessivos desenvolvimentos
idealistas de Fichte e de Schelling.
A lógica de Hegel, portanto, não é um
M W ; A ló g i c a h e g e l i a n a puro organom , um puro “ instrum ento”
v a i a lé m d a l ó g i c a fo r m a l ou “ m étodo” no sentido em que a lógica
e a lé m d a ló g i c a t r a n s c e n d e n t a l form al o era. Todavia, também não é uma
lógica transcendental em sentido kantiano,
uma vez que esta se move no âmbito de
A Fenomenologia nos levou do ponto
uma forma de fenomenismo (ainda que
de vista do saber da consciência empírica ao
transcendental). A lógica é proposta por
ponto de vista do saber absoluto. Conside­
Hegel em sentido “ especulativo” , ou seja,
radas retrospectivamente, as várias etapas e
como uma lógica que chega às verdades
“ figuras” da fenomenologia ainda não são
últimas.
“ a ciência completa em toda a sua verdade” .
Poder-se-ia dizer que a lógica de Hegel
É compreensível, então, que Hegel (embora
é o estudo da estrutura do inteiro: o próprio
considerando as etapas fenomenológicas
Hegel fala expressamente de “ arm ação”
como momentos insuprimíveis e absolu­
do inteiro. M as essas expressões devem
tamente necessários, apenas por meio dos
ser entendidas dinamicamente, ou seja, no
quais a consciência adquire o verdadeiro co­
sentido de que a lógica é o estruturar-se,
nhecimento) chame o saber dessas “ figuras”
ou, melhor ainda, o auto-estruturar-se do
individuais de saber “ aparente” e, portanto,
andaime do inteiro.
apresente o iter fenomenológico também
como o “ voltar-se contra as aparências” ,
que pouco a pouco são superadas (ou seja,
retiradas-e-conservadas), até o momento em D E I A ló g ic a h e g e lia n a
c o m o “filo s o fia p r im e ir a "
que, como vimos, a consciência alcança o
(m e t a f ís i c a e m s e n t id o id e a lis t a )
ponto de vista do saber absoluto.
N o plano do saber absoluto, cai toda
diferença entre “ certeza” (que implica sem­ A tese de fundo da lógica hegeliana,
pre elemento de subjetividade) e “verdade” que nada mais é do que a conseqüência de
(que é sempre objetividade), entre “ saber” tudo o que foi dito até aqui, é que “ pensar”
como forma e “ saber” como conteúdo. e “ ser” coincidem e que, portanto, a lógica
O saber absoluto é exatamente essa ■ coincide com a ontologia (ou seja, com a
coincidência absoluta entre forma e con­ metafísica).
teúdo. E a Lógica se inicia e se desenvolve Parmênides já dizia: “ o pensar e o ser
inteiramente nesse plano, definitivamente são a mesma coisa” ; e exatamente esta é a
conquistado pela Fenomenologia. posição de Hegel, porém no único sentido
Por conseguinte, a lógica hegeliana possível depois da revolução kantiana, isto
torna-se algo totalmente novo em relação é, no sentido de que, no seu proceder, é o
Segunda parte - F u n d a ç a o e a b s o lu t iz a ç ã o e s p e c u la t iv a d o idealism o

próprio pensamento que realiza a si mes­ modo que se tem o máximo do resultado não
mo e o próprio conteúdo (realizando-se, no momento inicial, e sim no momento final,
realiza contemporaneamente o seu próprio e, portanto, não no Deus-que-é-objeto-da-
conteúdo). lógica, e sim no Deus-como-ele-é-depois-da-
A grande Lógica de Hegel constitui, criação, ou seja, no Deus que conheceremos
por assim dizer, a síntese dos conteúdos que na filosofia do espírito.
se encontram no Organon e na Metafísica O Deus antes da criação é de alguma
de Aristóteles. Portanto, têm perfeita razão forma um minus em relação ao espírito
os intérpretes que afirmam que a lógica depois da criação, enquanto representa o
hegeliana é uma “ filosofia primeira” (em momento da “ tese” , ao passo que o Deus
sentido aristotélico) e, portanto, uma “ teo­ depois da criação representa o momento da
logia” ou (como já dissemos) uma grandiosa “ síntese” . O Deus da Lógica é o elemento
“ metafísica” . Hegel censura Kant por ter puro do pensamento (o L o go s), que deve
negado a possibilidade de construir uma antes alienar-se na natureza, para depois
metafísica como ciência: com efeito, para superar essa alienação (negando-a) e tornar-
Hegel, “ um povo sem metafísica é como se espírito. O Logos, ou seja, o Deus como
templo sem altar” . era em sua “ eterna essência” , de que fala
Hegel chega até a dizer — e esta é talvez a lógica hegeliana, não corresponde ainda,
sua afirmação mais iluminadora — que as portanto, ao M otor imóvel de Aristóteles,
diversas categorias por meio das quais sua que é pensamento de pensamento, ou ao
lógica pouco a pouco se desenvolve podem nous (cosmo noético) plotiniano ou agos-
ser vistas como definições sucessivas do tiniano, porque não é ainda o máximo de
absoluto. Desde a primeira tríade, até as realidade. Isto será apenas o espírito, como
tríades mais elevadas, nada mais temos que veremos, que é a realização dialética (a auto-
“ definições mais determinadas e mais ricas” realização) daquele Logos de que trata a
do próprio absoluto. Cada categoria que se Lógica. Quando falar do espírito (e somente
desenvolve triadicamente constitui um elo então), Hegel se referirá solenemente ao
sempre mais amplo da espiral. Em suma: a motor imóvel de Aristóteles.
lógica hegeliana pode ser representada como É exatamente isso que Hegel entende
um dizer a mesma coisa de modo progres­ quando diz que a lógica estuda a idéia “ em
sivamente mais rico (um dizer, porém, que si” , ao passo que a filosofia do espírito estu­
coincide com um tornar-se-sempre-mais-rico da a idéia “ em si e para si” , ou seja, em seu
da própria coisa que é dita). “ retornar a si” depois de se ter “ alienado”
na natureza.
Somente tendo presente a concepção
E O A l ó g ic a h e g e lia n a do absoluto como “ processo” (ou auto-
c o m o e x p o s i ç ã o d e X?eus processo) dialético podemos compreender
an tes d a c r ia ç ã o d o m undo a novíssima concepção hegeliana da lógi­
ca (a mais difícil de todas as que foram
Usamos acima o termo “teologia” , não apresentadas nó contexto do pensamento
certamente por acaso ou arbitrariamente. ocidental).
E o próprio Hegel quem o diz claramente:
“ A lógica deve [...] ser entendida como o
sistema da razão pura, como o reino do O d e s d o b r a m e n t o d ia lé t ic o
puro pensamento. Esse reino é a verdade, g l o b a l d a ló g i c a h e g e l i a n a
como ela é em si e para si, sem véu. Pode­
mos, portanto, nos expressar deste modo: Ainda resta a esclarecer, porém, outro
esse conteúdo é a exposição de Deus, assim ponto muito importante. O Logos da L ó ­
como ele é em sua eterna essência, antes gica, ou seja, a idéia-em-si, não deve ser
da criação da natureza e de um espírito concebido como uma espécie de realidade
finito” . única e compacta, e sim, por sua vez, como
Ora, devemos atentar bem para esta desenvolvimento e processo dialético. A
expressão: “ Deus, como era antes da criação “ idéia lógica” é a totalidade de suas deter­
etc. ” Ela não significa aquilo que quer dizer minações conceituais em seu desdobramento
no contexto da filosofia clássico-cristã, dado dialético, ou seja, a totalidade dos conceitos
que, para Hegel, o absoluto é processo, é determinados e das relações que os ligam e
resultado do processo (auto-resultado), de ligam sua passagem de um a outro em cír­
Capítulo sexto - -Hl e ge J e. o i d e a l i s m o a b s o l u t o

culos sempre mais elevados, até o desvendar expressamente que as categorias de sua
total da verdade, que é precisamente a idéia lógica nada mais fazem do que expressar
em seu conjunto. o absoluto em níveis pouco a pouco mais
As três etapas principais da Lógica são elevados (e, portanto, as sucessivas tríades
as que Hegel chama de 1) “ ser” , 2) “ essên­ expressam sempre tudo, de modo pouco a
cia” e 3) “ conceito” . pouco sempre mais articulado).
1) N a lógica do ser, a dialética procede
em sentido horizontal, por meio de passa­
gens que levam de um termo a outro, o qual 3 || y \ lógica d a e s sê n c ia
absorve em si o anterior.
2) N a lógica da essência, ao contrário,
temos um como que desenvolver-se dos
vários termos e um como que “ refletir-se” A lógica da essência (como já aludimos
recíproco de um termo no outro. acima) trabalha escavando em profundida­
3) Por fim, na lógica do conceito, cada de, para encontrar as raízes do ser. Aliás, é
termo prossegue no outro e nele continua o próprio ser (que coincide com o pensa­
até identificar-se (dialeticamente) com ele. mento que o pensa) que se volta sobre si
Podemos dizer que e se aprofunda re-fletindo sobre si mesmo.
1) na lógica do ser, o pensam ento Para bem compreender esse ponto, é preci­
procede como que sobre um plano ou uma so recordar que, em alemão, “ essência” é
superfície; “Wesen”, que deriva do particípio passado
2) na lógica da essência, o pensamento do verbo ser, que é “ gewesen” e, em certo
aprofunda, ou seja, cresce segundo a dimen­ sentido, significa o refletir-se e o voltar-se
são da profundidade; sobre si mesmo do próprio ser, como que se
3) na lógica do conceito, o pensamento condensando em si. Também em grego, na
torna-se completo, ou seja, se dá segundo a expressão cunhada por Aristóteles, “ essên­
dimensão da circularidade. cia” dizia-se de modo análogo, com fórmula
M as o que dissemos sinteticamente (tò tí en einai) que os latinos traduziam por
ficará mais claro nas análises seguintes. quod quid erat esse (literalmente: o aquilo
que era o ser), que indicava precisamente o
ser enquanto refletido e condensado em si.
Em palavras simples, podemos dizer que a
lógica da essência estuda o pensamento que
quer ver o que existe sob a superfície do ser,
e chegar ao fundo dele.
O começo absoluto da Lógica é cons­ E nesta parte da lógica que se verificam
tituído pela primeira tríade, com a qual se as discussões sobre os célebres princípios de
inicia o movimento lógico da primeira ca­ identidade e de não-contradição, cuja pri­
tegoria (ou seja, a categoria da qualidade) meira consideração foi feita por Aristóteles
e constitui de longe o ponto mais discutido (e, conseqüentemente, sobre o princípio
de toda a lógica hegeliana (e talvez de toda leibniziano de razão suficiente).
a obra de Hegel). Assim como foram form ulados por
Essa tríade é constituída por: a) ser, Aristóteles e codificados pela lógica pos­
b) não-ser e c) devir. terior, segundo H egel, esses princípios
São inumeráveis as interpretações e representam o ponto de vista do intelecto
exegeses já apresentadas a esse respeito. abstrato e unilateral, e não o ponto de vista
Alguém já disse que, na realidade, nesse da razão, que é o único ponto de vista da
começo já se encontra toda a lógica e toda a verdade. Para Hegel, a verdadeira identidade
metafísica. “ Ser” , “ não-ser” e “ devir” , com não deve ser entendida do modo indicado
efeito, resumem tudo o que existe e que pode acim a, m as sim “ com o identidade que
ser pensado e dito. inclui as diferenças” . A verdadeira identi­
Todavia, para dizer a verdade, o mes­ dade é aquela que dialeticamente se realiza
mo poderia ser repetido, a títulos diversos, retirando e mantendo as diferenças e que,
para muitas outras tríades posteriores (se portanto, implica “a identidade na distinção
não até para todas elas). E quem com ­ e a distinção na identidade” .
preendeu o que explicamos acima não se Q uanto à relevância da “ contradi­
surpreenderá, dado que Hegel afirm ou ção ” e ao papel que ela desempenha no
Segunda pavte - F u n d a ç a o e a b s o lu t iz a ç ã o e s p e c u la t iv a d o id e alism o

pensamento de Hegel, já falamos em parte


acima. A contradição é a mola da dialéti­
ca e, conseqüentemente, é absolutamente ■ Lógica. A "lógica" de Hegel não !
necessária. Tudo isso também pode ser é puro "instrum ento" ou "m étodo",
expresso dizendo que só o infinito é não- como a lógica tradicional, e sim o es- |
contraditório, enquanto é perene superação tudo da estrutura do todo,
no sentido i
da contraditoriedade do finito (o não-con- de que a própria Lógica, enquanto ■
traditório é apenas a “ superação” dialética idéia-em-si, é a auto-estruturação do ;
da contradição). quadro do todo. j
A Lógica começa e se desenvolve in- J
É este o eixo especulativo que suporta
teiramente no plano definitivam ente 1
todo o sistema hegeliano. ganho da Fenomenologia do espírito, í
isto é, no plano do saber absoluto, em í
que desapareceu toda diferença entre \
4,, lógica d o conceito "certeza" (que implica subjetividade)
e "verdade" (que é sempre objetivi­
l

dade), entre "saber" como e forma i


"saber" como conteúdo. }
A tese de fundo da lógica hegeliana, f
WSM A ló g i c a “s u b je t i v a ”
que se remete à antiga posição de <
Parmênides, é que "pensar" e "ser"
Com a seção dedicada à lógica do con­ coincidem: o pensamento, em seu pro- í
ceito passamos àquela que Hegel chamou de cesso, realiza a si mesmo e o próprio *
conteúdo, e esta realização dialética é
“ lógica subjetiva” , por contraposição às pri­
ao mesmo tempo, de modo cada vez
meiras duas seções da “ lógica objetiva” . renovado, um "pensar o ser" e o "ser à
“ Subjetivo” entende-se em sentido al­ do pensamento". A Lógica coincide
tamente positivo, ou seja, no sentido de assim com a ontologia
(ou seja, com ■
lógica que introduz na esfera superior do a metafísica), e nesse sentido constitui |
sujeito. Assim como a verdade do ser é a a síntese especulativa dos conteúdos
essência, da mesma forma a verdade da que se encontram no Organon
e na
essência é a razão. Metafísica de Aristóteles.
Em seu conjunto, portanto, a Lógica
Alguém disse, numa analogia esclarece­
é o reino do pensamento puro; éa
dora, que aqui ocorre aquilo que o discípulo verdade como ela é em si e por si sem
de Sais (de que fala Novalis em seu romance) véu, é a exposição de Deus como e/e
descobriu tirando o véu que cobria a face é em sua eterna essência antes da
da deusa: descobriu a si mesmo (a passagem criação da natureza e de cada espírito
de Novalis em que esse conceito se expressa finito.
pode ser vista em trecho citado acima por O logos da Lógica deve ser concebido
nós). A referência é pertinente, mas deve ser tam bém com o desenvolvim ento e
processo dialético: a "idéia lógica" é
desenvolvida e completada.
a totalidade de suas determinações
N a lógica do conceito não só descobri­ conceituais em seu desdobramento
mos que a realidade é o sujeito (o que, aliás,
já havia sido aquisição da Fenomenologia),
dialético.
As três esferas fundam entais da Lógi­
mas também descobrimos o porquê. A lógica ca são: o ser, a essência e o conceito.
hegeliana do conceito é a lógica conduzida
do ponto de vista daquilo que Kant entre­
vira com o seu “ Eu penso” , já desenvolvida
por Fichte e aqui não só posteriormente
aprofundada, mas também levada às suas
conseqüências extremas. Tudo é visto, então,
como autodesdobrar-se dialético do sujeito, Hegel entende todo o resultado do movi­
que é toda-a-realidade. mento lógico até aqui alcançado.
O “ conceito” seria o Eu penso que
se autocria e, autocriando-se, cria todas
E 11 O s ig n i f i c a d o d e “c o n c e i t o ”
as determinações lógicas. Portanto, mais
um a vez, ele não entende aq u ilo que
M as, para Hegel, o que significa exata­ com um ente se entende por “ co n ceito ”
mente “conceito” (Begriff)} Por “ conceito” , do ponto de vista do intelecto, mas sim
Capítulo sexto - -H e g e l e o i d e a l i s m o a b s o l u t o

aquilo que se entende do ponto de vista termo mais importante torna-se o predicado
superior da razão. Estam os, portanto, em (e não mais o sujeito) da proposição, porque
novo plano. o predicado expressa o universal, ao passo
O conceito, diz Hegel, é “ aquilo que que o sujeito expressa o individual. O juízo,
form a e c r ia ” . Ele diz tam bém que é portanto, expressa o individual no-seu-tor-
“ ab so lu ta negatividade” , no sentido de nar-se-universal.
que é negação de toda determinação e de
toda finitude e superação das mesmas (é,
portanto, negatividade absoluta que se E O Os\Q n if ic a d o d e " s ilo g is m o ”
resolve em positividade absoluta). Por fim,
Hegel também qualifica o conceito como
“ potência livre” e até “ bem-aventurança O “ silogism o” representa a unidade
ilim itada” . Em suma: o conceito é o nome dos três m omentos: a universalidade, a
mais adequado (até este momento) para particularidade (ou especificidade) e a in­
expressar o absoluto. dividualidade, com a relação precisa que
E evidente que, mudando de modo tão os liga.
radical o significado do conceito no plano O silogismo (no novo sentido hege­
da razão, também o “ juízo” e o “ silogis­ liano) é o universal que através do parti­
m o ” (estreitamente ligados ao conceito) cular (a espécie) se individualiza, e vice-
devem adquirir sentido com pletam ente versa, ou seja, o indivíduo que, através do
novo. particular (a espécie), se universaliza. Por
exemplo: o animal (= universal), através
da espécie homem (= particular), se indi­
E 11 O s \ g n if ic a d o de “j w íz o ” vidualiza (por exemplo, em Carlos, Luís)
e, vice-versa, todo homem em particular
N o contexto da lógica hegeliana da (= indivíduo), através da espécie homem
razão, o “ juízo” coincide com aquilo que, (= particular), tende ao universal expresso
acima, vimos ser o significado da “ proposi­ pelo animal.
ção especulativa” , e à qual remetemos. O é Desse m odo, Hegel pode sustentar
da cópula do juízo hegeliano expressa iden­ a tese (absolutam ente p a rad o x al para
tidade dinâmica entre sujeito e predicado e o a velha lógica, m as óbvia no contexto

A cidade de jena em uma gravura de 1650.


líl
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t iz a ç ã o e s p e c u la t iv a d o idealism o

da nova) de que toda a coisa é um silo ­ c a O s ig n if ic a d o d e /,id é ia /'


gism o.
Ele até concebe seu próprio sistema Por fim, também deveria se tornar
com o gigantesco silogism o, no qual os claro o novo significado que assume nesse
três momentos da “ idéia lógica” , da “ na­ contexto o termo “ idéia” , já antecipado em
tureza” e do “ espírito” são os três termos grande parte acima. Ela é o conceito que
do próprio silogism o, que se m edeiam se auto-realizou plenamente e, portanto, a
dinam icam ente. Para H egel, são gran ­ totalidade dos momentos dessa realização,
diosos silogism os os dogm as centrais do vista como processo-e-resultado-dialético.
cristianismo, nos quais se expressa a idéia A idéia, portanto, é a totalidade das
do universal que mediatamente se liga ao categorias da lógica em sentido especulativo
individual. e de suas relações desdobradas. CTfgH~ã~l

V. A filosof-ia da natureza

• A passagem da idéia para a natureza é o ponto teórico mais problemático


da filosofia de Hegel, sujeito a diversas interpretações que surgem das próprias
afirmações ambíguas do filósofo a esse respeito. Isso depende principalmente do
fato de que Hegel tem dificuldade de dominar as diversas suges­
Múltiplas tões que confluem sobre este ponto:
sugestões a) a processão dialética do neoplatonismo, que concebia o
e esquema desenvolvimento da realidade em sentido triádico como manên-
dialético cia (moné), saída {próodos) e retorno (epistrophé): para Hegel a
->§ 1-2 natureza corresponde à "saída";
b) o dogma da teologia cristã da criação;
c) os dogmas da encarnação, paixão, morte e ressurreição de Cristo;
d) a concepção tipicamente romântica do tornar-se-estranho do espírito a
si mesmo com o objetivo de tomar consciência de si e de se realizar completa­
mente.

Os intérpretes indicaram nessa passa­


q u e d e t e r m in a m gem da idéia para a natureza o ponto mais
problemático e quase que inexplicável do
a s características ponto de vista tanto exegético como teó­
d a filosofia d a n a iu ^ e .z c \ rico da filosofia de Hegel, salientando que
a linguagem da frase citada só poderia ser
metafórica, porque em Hegel tudo é idéia e
na idéia e, portanto, a criação da natureza
Depois de ter lido a Lógica, podemos não pode querer dizer o sobrevir de alguma
perguntar o que ainda pode estar faltando coisa diferente da própria idéia e separada
no sistema de Hegel, uma vez que nela está da idéia.
todo o pensamento e toda a realidade (lógica A razão dessa dificuldade depende
+ ontologia) . principalmente do fato de que, para esse
M as Hegel nos disse que a lógica é “ a ponto, confluem várias sugestões de gêneses
representação de Deus como ele é em sua diversas, que Hegel custa a dominar e que
essência eterna, antes da criação da natureza dão origem a inextricáveis aporias, que o
e de um espírito finito” . Então, aquilo que esquema dialético consegue unificar em
ainda falta é precisamente a “ criação da na­ parte, mas não consegue dominar e resolver
tureza” e, depois, de um “ espírito finito” . plenamente.
Cãpltulo Sexto - -H egel e o ide alism o absoluto

1) Em primeiro lugar, aparece a grande idéia decide livremente seu próprio tornar-
sugestão da processão dialética do neopla- se natureza.
tonismo (de que Hegel era fervoroso ad­ 3) M as com o teorema da criação se
mirador), que concebia o desenvolvimento interseccionam também as sugestões dos
da realidade em sentido triádico como dogm as da encarnação, paixão, morte e
manência (moné) — saída (próodos) — re­ ressurreição de Cristo, que Hegel entende
torno (epistrophé). A idéia lógica hegeliana como verdades racionais cósmicas. Por in­
corresponde à “ manência” , a natureza cor­ fluência de tais dogmas, ele chega inclusive a
responde à “ saída” (a natureza, como logo dizer que o espírito deve enfrentar a “ morte”
veremos, é a idéia que se afasta de si, que sai para, através da morte, conservar seu ser
de si), ao passo que o espírito hegeliano é (tema que já analisamos na seção dedicada
tematicamente apresentado como “ retorno” à dialética), razão por que a natureza seria
da idéia em si e para si. o momento da “ morte” (da idéia), que é
2) Às sugestões neoplatônicas acres­ depois superado em uma vida mais elevada
centam-se as do dogma da teologia cristã (a “ idéia” que ressuscita é o espírito” ).
da criação, ao qual Hegel faz referência 4) A essas sugestões, por fim, acrescen­
expressa, tanto no texto que lemos acima ta-se a concepção tipicamente romântica do
como em outros textos, nos quais diz que a espírito fazendo-se estranho si mesmo, como
Segunda parte 2
- F u i^ d a ç ã o e a bsolu tt a< :a o e s p e c u l a t i v a d o id e a lis m o

uma espécie de auto-ilusão, com o objetivo esteja retornando ao ser, isto é, à primeira
de tomar consciência de si e realizar-se ple­ fase da Lógica. M as, na realidade, diz ele,
namente. A natureza, portanto, seria esse “ esse retorno ao início é, ao mesmo tempo,
momento da auto-ilusão da idéia. progresso. Aquilo com que começamos era
o ser, o ser abstrato, e agora temos a idéia
como ser” , e a natureza é precisamente essa
2, O e s q u e m a d ialético
idéia-como-ser (como objeto). Em outros
textos, porém, ele faz uma série de afirma­
d a filosofia d a n a t u r e z a ções que parecem ter significado oposto. As
ambigüidades e incertezas de Hegel a esse
respeito só podem ser compreendidas com
O esquema dialético procura reduzir base no que precisamos acima sobre as múl­
essas sugestões a uma unidade, entendendo tiplas sugestões pelas quais ele permaneceu
a idéia como tese, a natureza como antítese condicionado. | Ê
(segundo momento negativo-dialético, au-
tonegação da idéia), da qual deverá depois
brotar o terceiro momento da síntese (mo­
mento positivo-dialético ou especulativo),
ou seja, o espírito, no qual, através da ne­
gação da negação, se realiza o momento da ■ N atureza. A natureza é a idéia em
m áxima positividade. Hegel insiste muito sua alienação, em seu estar-fora-de-si,
no momento de negatividade constituído a qual em sua existência não mostra
pela natureza, que é “ decadência da idéia nenhuma liberdade, mas apenas n e­
de si” (parece-nos até ouvir um eco do an­ cessidade e acidenta/idade.
tigo gnosticismo), e insiste na “ impotência A criação da natureza é propriamente
uma "queda da idéia a partir de si".
da natureza” . M uitos estudiosos pensam A verdade e o fim da natureza, cujos
que, na realidade, trata-se de um “ regres­ graus ascendentes são a m ecânica, a
so ” em relação à idéia. M as, pelo menos física e a orgânica, é o espírito.
na Grande Enciclopédia, Hegel procurou
dissipar essa suspeita. Com a passagem da
idéia à natureza, poderia parecer que se

VI. y\ filo s o fia d o e s p ír ito

• O espírito é a idéia que retorna a si a partir de sua alteridade, é a mais alta


manifestação do absoluto, o auto-realizar-se e o autoconhecer-se de Deus. Nesta
ótica, idéia lógica e natureza são vistas como pólos dialéticos dos quais o espírito
é a síntese viva. Também a filosofia do espírito estrutura-se de maneira triádica, e
divide-se, portanto, em três momentos.
O espírito *1 )0 espírito subjetivo é aquele ainda ligado à finitude. Suas
subjetivo etapas são: , , , ‘
§2 a) a antropologia, que e o estudo da alma considerada em
sua fase aurorai;
b) a fenomenologia, que estuda o processo que da consciência, através da
autoconsciência, leva à razão;
c) a psicologia, que estuda o espírito do indivíduo até sua liberdade.
• 2) O espírito objetivo é aquele que se realiza na família, na sociedade, nas
leis do Estado: é o ethos da vida ético-política, é a história-que-se-faz. As etapas
de sua realização são:
Capítulo sexto - -H egel e o ide alism o absoluto

a) o direito abstrato, em que a vontade livre se concretiza na relação com as


coisas e com os objetos externos;
b) a moralidade, em que a vontade livre formula seus juízos morais segundo
regras universais;
c) a eticidade, em que a vontade do sujeito quer fins concretos e se realiza
gradualmente através da família, da sociedade civil e do Estado: o Estado é a
própria idéia que se manifesta no mundo, e o cidadão existe apenas enquanto
membro do Estado.
A história do mundo, nascida da dialética dos Estados é, por- o espírito
tanto, o desdobrar-se da idéia e se desenvolve segundo um plano objetivo
racional, enquanto a filosofia da história, enquanto conhecimento -> § 3
científico deste plano, torna-se a "teodicéia" que justifica aquilo
que aparece como mal diante do poder absoluto da razão. Na história, o espírito
objetivo se particulariza como "espírito do povo" (Volksgeist) e todos os espíritos
nacionais são manifestações diversas do "Espírito do mundo" (Weltgeist), que se
serve dos povos para tecer seus desígnios (é esta "a astúcia da razão"). Ora, das
grandes fases da história do mundo (oriental, greco-romana, cristão-germânica),
a última é aquela em que o espírito parece ter-se plenamente realizado. E assim,
de modo mais aporético, a dialética histórica por fim pareceria deter-se.
• 3) A idéia conclui seu "retorno a si" no autoconhecer-se absoluto. O espírito
absoluto é a idéia que se autoconhece de modo absoluto, é Deus que se concilia
com sua comunidade e consigo mesmo. Também o espírito absoluto se desenvolve
em um sentido triádico, que corre paralelamente à história do mundo para conci­
liar-se e unificar-se com ela na fase da cristandade germânica. As fases principais
deste processo são:
a) a intuição sensível, isto é, a arte, que apresenta à cons- o espírito
ciência a verdade sob forma sensível; absoluto
b) a representação da fé, ou seja, a religião, que transfere o -> § 4
absoluto na interioridade do sujeito;
c) o conceito puro, ou seja, a filosofia, na qual se unificam a objetividade da
arte e a subjetividade da religião: aqui, diz Hegel, a idéia eterna sendo-em-si-e-para-
si se ativa, se produz e goza de si mesma eternamente como espírito absoluto.
O resultado final do desenvolvimento, que se encarna historicamente e ne­
cessariamente na filosofia hegeliana, é o próprio Deus enquanto se autoconhece
e leva assim todas as coisas à realização.

1 .1, O espírito O “ espírito” hegeliano é, portanto, o


correlativo filosófico daquilo que na religião
e seus três momentos é “ Deus” : é o auto-realizar-se e o autoco­
nhecer-se de Deus.
Voltando à tríade idéia-natureza-espíri-
O espírito é a “ idéia que volta a si de to, diremos que a idéia é o mero conceito de
sua alteridade” . N o espírito, sobretudo, saber e, portanto, a “ possibilidade lógica”
torna-se m anifesta aquela “ circularida­ do espírito; o espírito é a atualização ou a
de” dialética sobre a qual Hegel chama realização dessa possibilidade. O espírito
seguidamente a atenção. Como momento é a atualização e autoconhecimento vivos
dialeticamente conclusivo, ou seja, como da idéia. Nesse sentido, o espírito não é
resultado do processo (do autoprocesso), o último senão pelo nosso modo de nos ex­
espírito é a mais elevada manifestação do primirmos, mas efetivamente é o primeiro,
absoluto. Escreve Hegel: “ ‘O absoluto é o e, nessa ótica, idéia lógica e natureza devem
espírito’: esta é a mais elevada definição do ser vistas como momentos ideais do espírito
absoluto". não separados e não cindidos, mas como
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t iz a ç ã o e s p e c u la t iv a d o idealism o

pólos dialéticos dos quais o espírito é a 3 O e s p ír ito ob jetivo


síntese viva.
Também a filosofia do espírito (como
toda parte e momento do sistem a hege-
E U A c o n c e p ç ã o k e g e lia n a
liano) é estruturada de maneira triádica,
d o e s p ír it o o b je tiv o
sendo, portan to, dividida em três m o­
mentos:
1) um primeiro, em que o espírito está Segundo alguns intérpretes, o espírito
no caminho de sua própria auto-realização objetivo é o momento mais significativo e
e autoconhecimento (espírito subjetivo); mais específico do hegelianismo, ou, pelo
2) um segundo, em que o espírito se menos, um dos mais característicos e interes­
autoconcretiza plenamente como liberdade santes. O espírito objetivo é o que se realiza
(espírito objetivo); nas instituições da família, nos costumes e
3) um terceiro, em que o espírito se preceitos da sociedade e nas leis do Estado,
autoconhece plenamente e se sabe como é o ethos que alimenta a vida ético-política,
princípio e como verdade de tudo, e é como é a história-que-se-faz.
Deus em sua plenitude de vida e de conhe­ O espírito objetivo é o momento da
cimento (espírito absoluto). realização da liberdade na ordem intersub-
jetiva, que pouco a pouco se amplia em
graus e em momentos dialéticos sucessivos,
que Hegel indica: a) no “ direito” ; b) na
“ moralidade” e c) na “ eticidade” .
A compreensão destes momentos nos
A idéia que retorna a si, portanto, é a fará compreender melhor o sentido do es­
emersão do espírito, que inicialmente ainda pírito objetivo hegeliano.
se manifesta ligado à finitude. Hegel expli­
ca, do modo que agora já conhecemos bem,
como a idéia infinita, que se faz espírito, EE9 O s t r ê s m o m e n to s
d o e s p ír it o o b je tiv o
ainda se encontra ligada ao finito no seu
emergir da natureza. N ão é o espírito que
se manifesta no finito, mas, ao contrário, a) Diz Hegel que, para não permanecer
é a finitude que aparece dentro do espírito. puramente abstrata, a vontade livre “ deve
E por que isso acontece? Trata-se, diz dar-se uma existência” , ou seja, concretizar-
Hegel, de uma “ aparência que o espírito se. E a matéria mais imediata em que isso
põe diante de si como barreira, para po­ ocorre é constituída pelas coisas e objetos
der, através da superação dessa barreira, externos. Desse modo, nascem o “ direito”
possuir e saber por si a liberdade como sua e aquilo que a ele está ligado.
essência” . Ainda que inseridos em nova b) M as essa forma de existência ime­
moldura, são evidentes, aqui, os ecos de diata é inadequada para a liberdade, pre­
Fichte. cisamente por ser imediata e exterior. Essa
As etapas do espírito subjetivo são: imediaticidade e exterioridade, portanto,
1) a antropologia, que é o estudo da devem ser negadas e superadas, ou seja,
alma, considerada em sua fase inicial como mediatizadas e interiorizadas, e disso nasce
o sono do espírito ou como o aristotélico a moralidade, o segundo momento do espí­
“ intelecto potencial” ; rito objetivo.
2) a fenomenologia, que retoma algu­ N essa esfera, as coisas exteriores são
mas temáticas da grande obra homônima e inseridas como indiferentes e o que conta
que, por meio da autoconsciência, leva da é meu juízo moral, minha vontade, a for­
consciência à razão (a qual, como consciên­ ma de universalidade em que se inspirou
cia de ser todas as coisas, é espírito, ainda a regra do agir. Essa é a esfera da vontade
que não desdobrado inteiramente); subjetiva, da qual é exemplo paradigm áti­
3) a psicologia, que estuda o espírito co a ética kantiana, que Hegel censura por
teórico (que conhece os objetos como al- ser unilateral, porque encerra o homem
teridades), o espírito prático (como ativi­ em seu “ interior” . Essa unilateralidade,
dade que modifica os objetos) e o espírito portan to, deve ser retirada e superada
livre, como síntese dos primeiros dois m o­ mediante a realização externa e concreta
mentos. da vontade.
Capítulo sexto - H e g e l e o id e a l i s m o a b s o l u + o

c) Entram os assim no momento seja, a manifestação-realização do espírito


da
eticidade, que é a síntese dos dois momen­ objetivo.
tos anteriores, ou seja, o momento em que
o querer do sujeito se realiza querendo fins
concretos, operando desse modo a mediação A n atu reza do Ê sta d o
entre o subjetivo e o objetivo. M as, por sua
vez, a eticidade se realiza dialeticamente Como síntese de direito e moralidade
nos três momentos: a) da “ fam ília” ; b) da e como possibilidade de ser da família e da
“ sociedade” e c) do “ Estado” . sociedade, o Estado é a própria idéia que se
Os fins que a vontade livre quer na manifesta no mundo. Hegel diz até que ele é
fase da eticidade, portanto, são os fins “ o ingresso de Deus no mundo” , um “ Deus
concretos postos pela realidade viva da real” . E isso é verdade até para o Estado
família, indicados pela sociedade com suas mais defeituoso, porque, por maior que seja,
múltiplas exigências, queridos pelo Estado o defeito nunca chega a ponto de eliminar o
com suas leis. positivo de fundo e, portanto, nunca é capaz
Entre as muitas páginas interessantes de invalidar o que foi dito.
de Hegel relativas aos três momentos da N essa concepção, o Estado não existe
eticidade, recordamos particularmente as para o cidadão, mas o cidadão é que exis­
passagens sobre a família (que ele mostra te para o Estado. Em suma, o cidadão só
ser algo bem mais elevado do que um “ con­ existe enquanto membro do Estado. Esta
trato” , enquanto “ síntese” ética, na qual era uma concepção grega, que é retoma­
o dado contratual e aquilo que a ele está da por Hegel e levada às conseqüências
ligado, como o sexo e o amor, encontram extremas no contexto do seu idealismo e
sua verificação em um ethos superior), e panlogismo.
as passagens sobre a sociedade (nas quais
Hegel identifica o organismo social como
interm ediário entre fam ília e Estado de E O ; A n a t u r e z a d a h is tó ria
modo tão claro que a sua intuição, como e a -filosofia d a k is t ó ria
alguns já notaram, pode ser considerada
com o o ponto cardeal da ciência social Se o Estado é a razão que faz o seu
moderna). ingresso no mundo, a história, que nasce
Quanto ao Estado, porém, devemos da dialética dos Estados, nada mais é que
am pliar o discurso, já que é através do o desdobramento dessa mesma razão: “ a
Estado e da dialética instituída entre os história é o desdobramento do espírito no
Estados que se realiza a história, que, para tempo, do mesmo modo que a natureza é o
Hegel, é verdadeira e própria teofania, ou desdobramento da idéia no espaço” .
A história é o “ juízo” do mundo e a
filosofia da história é o conhecimento e a
revelação conceituai dessa racionalidade e
desse juízo. A filosofia da história é a visão
j ■ Espírito. O espírito é a idéia que ■ da história do ponto de vista da razão,
r voltou a si da alienação e se tornou í contrariamente à visão tradicional, que era
| em si e para si: ele é a mais alta ma- a visão própria do intelecto.
| nifestação do absoluto, o auto-reali- \ A história do mundo se desenvolve se­
\ zar-se e o autoconhecer-se de Deus. j gundo um “ plano racional” (que a religião
J Nesta ótica, idéia lógica e natureza j
reconhece com o nome de Providência),
í são vistas como pólos dialéticos dos J
f quais o espírito é a síntese viva. J e a filosofia da história é a conseqüência
; Também a esfera do espírito estru- I científica desse plano. Por conseguinte, a
| tura-se de modo triádico, e divide-se j filosofia da história torna-se “ teodicéia” ,
I portanto em três momentos: espírito j ou seja, conhecimento da justiça divina e
I subjetivo, espírito objetivo, espírito 1 justificação daquilo que aparece como mal
% absoluto. No vértice do espírito abso- 1 diante do poder absoluto da razão.
f luto, que é constituído pela filosofia, 1 Segundo Hegel, aquilo que se apresen­
t "a idéia eterna sendo-em-si-e-por-si I
| se ativa, se produz e goza de si mesma j ta como mal nada mais é que o momento
|H».. eternam ente". negativo, que é a mola da dialética, de que
. . -;jSI| falamos acima. Como crepúsculo das coisas
particulares, a morte nada mais é do que o
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t i s a ç ã o e s p e c u la t iv a d o idealism o

contínuo fazer-se do universal. A própria A história do mundo passa através


guerra é o momento da “ antítese” que move de etapas dialéticas que assinalam um in­
a história, a qual, sem guerras, registraria cremento progressivo de racionalidade e
somente páginas em branco. de liberdade do mundo oriental ao mundo
Como se vê, o filósofo não se detém greco-romano, e deste ao mundo cristão-ger-
diante de nada. De resto, uma vez afirmado mânico. Nesta última fase, o espírito parece
que “ a história é o desdobrar-se da natureza ter-se realizado plenamente, conservando em
de Deus em determinado elemento parti­ suas profundezas o passado como memória,
cular” , tudo segue como conseqüência. E e concretizando no presente o conceito de si
é certamente na Filosofia do direito que se mesmo. M as, se é assim, a história está des­
lê a célebre afirmação “ tudo o que é real, tinada a se deter na fase cristã-germânica? A
é racional; tudo o que é racional, é real” . dialética histórica se detém em determinado
Assim como na natureza, para quem afirma momento? E isso o que parece se dever con­
a identidade entre Deus e natureza (Deus cluir de tudo o que Hegel diz, contrariamen­
sive natura), toda coisa é necessária e tem te ao que os princípios da própria dialética
sentido absoluto, da mesma forma, para teriam necessariamente exigido. Trata-se de
Hegel, para quem pensa Deus sive historia, grande aporia, que repercutiria inclusive na
tudo é necessário e todo acontecimento tem concepção de história de M arx.
sentido absoluto.

173 A r e a l i z a ç ã o d o e s p ír it o o b je tiv o 4 O espírito absoluto;


n a h is t ó r ia
a rte / re lig iã o e filosofia

M as vejamos como, concretamente, o


espírito objetivo se desdobra na história. Ele
se particulariza como “ espírito do povo” E S I O V e t o r n o a si mesma"da id é ia

(Volksgeist), como ele pouco a pouco se


manifesta nos vários povos. M as o espírito D epois de se realizar-se na história
do povo é uma manifestação do “ Espírito como liberdade, a idéia conclui seu “ retor­
do mundo” (Weltgeist). no a si” no autoconhecer-se absoluto. O
Também são momentos particulares do espírito absoluto, portanto, é a idéia que
espírito do mundo os “ indivíduos cósmico- se autoconhece de maneira absoluta. E esse
históricos” , os grandes heróis, capazes de autoconhecimento é o autoconhecimento
captar aquilo cuja hora é chegada e levá-lo de Deus, no qual, porém, o homem desem­
a termo. O que eles fazem não lhes vêm do penha papel essencial. Ao mesmo tempo,
interior, mas do espírito que, por meio deles, Hegel abaixou Deus ao homem e elevou o
tece seus desígnios. homem a Deus.
Com efeito, depois que o espírito ser­
viu-se desses homens para seus objetivos, E Q ;A s formas d o a u to -s a b e r -s e
ele os abandona e então se tornam nada, d o e s p ír ito : a r t e , r e li g iã o e filo s o fia
como Napoleão, que, depois da derrota, so­
breviveu somente para definhar na pequena
ilha de Elba e para morrer na distante ilha Esse auto-saber-se do espírito não é
Santa Helena. uma intuição mística, e sim um processo
E como se explicam as paixões mes­ dialético; por isso, é processo triádico, que
quinhas que movem os homens e seus fins se realiza: 1) na arte-, 2) na religião; 3) na
particulares? E como se justificam as aciden- filosofia. Essas são, portanto, três formas
talidades de vários gêneros? Hegel responde por meio das quais conhecemos Deus e Deus
que o particular se ‘esgota’ e se exaure já na se conhece.
sua luta contra o outro particular, dado que Elas se realizam, respectivamente:
o particular é sempre conflitivo. E assim ele 1) através da intuição sensível (estética);
se arruina, ruína da qual emerge impertur- 2) através da representação da fé;
bavelmente o universal. 3) através do conceito puro.
A razão universal faz as paixões irra­ Eis como Hegel caracteriza, de modo
cionais e o particular agirem em seu benefí­ claro e preciso, estes três momentos dialéti­
cio. Essa é a “ astúcia da razão” . cos da filosofia do espírito.
129
Cãpltulo SeXtO - H e g e l e o i d e a l i s m o a b s o l u t o

1) “ A forma da intuição pertence à M S» A s a r t i c u la ç õ e s d i a lé t i c a s


arte, de modo que a arte é que apresenta à d a arte/ d a r e li g iã o e d a filo s o fia

consciência a verdade sob forma sensível,


que tem nessa sua aparência um sentido Por fim, devemos recordar que:
e um significado mais elevados, mais pro­ 1) A arte também é entendida e re­
fundos” . construída segundo etapas dialéticas: a) arte
2) “ O âmbito seguinte, que ultrapassa oriental; b) arte clássica; c) arte romântica.
o reino da arte, é o da religião. A religião 2) Também na religião distinguem-se
tem como forma de sua consciência a repre­ três momentos: a) religião oriental; b) reli­
sentação, enquanto o absoluto é transferido gião grega; c) religião cristã.
da objetividade da arte para a interioridade 3) A própria filosofia (que vem a coin­
do sujeito” . cidir com a história da filosofia) também é
3) “A terceira forma do espírito absolu­ vista desdobrando-se nos três momentos:
to é, enfim, a filosofia. Com efeito, a religião a) da antiguidade grega; b) da cristandade
na qual Deus é inicialmente objeto externo medieval; c) da modernidade germânica.
para a consciência [...] se revela depois no Em todos esses desdobramentos his-
elemento interior, impelindo e preenchendo tórico-dialéticos, sobretudo duas coisas
a comunidade” . chamam a atenção: em primeiro lugar, a evo­
H egel, p o rta n to , con clui: “ D esse lução pareceria cessar com a terceira fase,
modo, unificam-se na filosofia os dois lados na qual tudo pareceria chegar a seu termo;
da arte e da religião: a objetividade da arte, em segundo lugar, a história da filosofia, de
que aqui certamente perdeu a sensibilidade Tales a Hegel, apresenta-se como grandioso
externa, mas encontrou compensação na teorema, que se desdobra no tempo e no
forma suprema do objetivo, na forma do qual cada sistema constitui uma “passagem”
pensamento, e a subjetividade da religião, necessária. E esse teorema parece encontrar
que é purificada como subjetividade do sua própria conclusão precisamente na filo­
pensamento” . sofia de Hegel.
É justam ente este o esquem a que Com efeito, na filosofia de Hegel — em
Hegel seguiu ao traçar a síntese das três certo sentido — é o próprio Deus que se
m an ifestaçõ es g ran d io sa s do esp írito , autoconhece, e, conhecendo-se, atua todas
arte-religião-filosofia, principalmente nos as coisas.
fam osos cursos de suas aulas, que contêm Em suma, sob muitos aspectos a filo­
alguns de seus pensamentos mais belos e sofia pareceria ter alcançado seu ápice no
mais sugestivos. sistema de Hegel. fTgfifl 6 17 |

VII. y M g u m as re-jlexões c o n c lu s iv a s

• Todo o pensamento moderno posterior a Hegel pode ser visto como uma
espécie de acerto de contas com o "totalitarismo racionalista" hegeliano. Os
irracionalismos e as filosofias antidialéticas posteriores têm todos em comum
a reação contra a razão que Hegel tentou impor em todos os níveis de modo
absolutista.
O próprio totalitarismo político depreendeu suas armas con- £e+
ceituais para a própria autolegitimação em grande parte a partir
de Hegel, freqüentemente abusando dos conceitos hegelianos, os hegeliana
quais, porém, fornecem efetivamente amplo material disponível §7
para tal abuso.
Apesar disso, Hegel renasceu no século XX, e muitos aspectos de seu filosofar
constituem intuições formidáveis e pilares de grande profundidade nos diversos
âmbitos da realidade histórica. É, portanto, oportuno aproximar-se de Hegel es­
Segundã pãrte - F u n d a ç ã o e a b s o lu + iz a ç ã o e s p e c u la t iv a d o idealism o

tabelecendo, como dizia Croce, "aquilo que morreu e aquilo que está vivo em sua
filosofia"; e enquanto parece morta sua pretensão de dar ao homem o totalizante
conhecimento absoluto do absoluto, permanece ainda viva toda uma série de
análises extraordinárias, que se estendem nos vários campos do saber e constituem
um material quase inexaurível.

1 "O q u e e s t á vivo tuem uma forma de absolutização daquelas


e o q u e e stá m orto”
destruições.
A própria dialética, que desde a an­
na filosofia d e H e g e l tiguidade emergira como o único método
específico da filosofia (o único m étodo
que a filosofia possui como próprio), que
Apresentamos com amplitude o pen­ não a com partilha com as outras ciências,
samento de Hegel, porque com ele o pen­ teve de ser repensada e redimensionada
sam ento ocidental alcança uma de suas a fundo, acabando por ser parcialmente
encruzilhadas mais importantes. Com efeito, envolvida e arrastada por aquela “ des­
não se pode compreender grande parte da truição” .
história da filosofia e da cultura posterior se Também é sabido que, em larga me­
não se compreende Hegel. dida, foi em Hegel que o totalitarismo po­
É claro que, em primeiro lugar, em sua lítico foi buscar as armas conceituais para
gigantesca construção, o sistema hegeliano sua própria autolegitimação. E, embora seja
não podia ser conservado assim como era verdade que isso foi abuso, também é ver­
por ninguém, porque muitas de suas partes dade que Hegel efetivamente fornece amplo
estão juntas por razões que não têm tanto material que se presta a tal abuso.
suas raízes na lógica do próprio sistema, e A estatolatria, a teorização do povo-
sim na cultura romântica e no espírito de guia eleito pelo espírito para celebrar sua
sua época. Conseqüentemente, era fatal que, própria concretização, a concepção dos
entre os próprios hegelianos, se formassem homens cósmico-históricos de cujo lado
rupturas muito profundas, que levaram está o direito absoluto, têm em Hegel o seu
até a uma direita e a uma esquerda hege- teórico máximo.
lianas bastante distintas entre si: a direita N o entanto, Hegel renasceu no século
radicalizou o sistema, a esquerda o podou X X , em passado que ainda está próximo. E
e redimensionou amplamente, como logo até nos adversários continuou a sobreviver
veremos. por ele uma espécie de amor-ódio que ainda
Todavia, em geral, todo o pensamento persiste, e que o faz ressurgir inopinadamen-
moderno posterior a Hegel pode ser visto te dos modos mais variados.
como uma espécie de “ gigantom aquia- A verdade é que Hegel foi mente filosó­
gem ” (para usar uma célebre expressão de fica de primeira grandeza, e que muitas das
Platão) contra o panlogismo absolutista he­ coisas que escreveu constituem formidáveis
geliano. Alguns chegaram até a apresentar intuições e investigações de grande pro­
a história da filosofia pós-hegeliana como fundidade nos vários âmbitos da realidade
“ destruição da razão ” , onde por “ razão” histórica, cujo valor não se apóia necessa­
deve-se entender precisamente aquela razão riamente nas premissas teóricas do sistema
que Hegel tentou impor em todos os níveis e que, portanto, têm (ou podem ter) valor
de modo verdadeiramente totalitário, como autônomo e, como tais, são sempre passíveis
vimos. de valorização e reproposição.
E era fatal que, nessa operação de Croce afirmou que é preciso aproxi­
“ d estru ição ” , se fosse m uito além dos mar-se de Hegel estabelecendo “ o que está
justos limites, e que, conseqüentemente, vivo e o que está m orto” em sua filosofia.
com a razão hegeliana, fosse atingida toda E essa operação foi feita por muitos e de
a racionalidade humana, como veremos. muitos modos.
M uitas formas de irracionalismo moderno Parece-nos que a resposta à questão do
e contemporâneo têm essa gênese e consti­ que está morto e do que está vivo em ^egel
Cãpítulo S € X tO - H e g e l e o id e a lis m o a b solu + o

poderia ser assim resumida: está morta a


pretensão de dar ao homem o totalizante «h»rg ■ « » < !« grfckti# $ «»»«
conhecimento absoluto do absoluto; está
viva toda uma série de suas extraordiná­ (Ênr v k U p ô í i ie
rias análises que se estendem pelos vários
campos do saber e que constituem material
quase que inexaurível. E é por isso que,
logo depois que alguém o declara defini­ i*

tivamente morto, Hegel renasce do modo


menos pensado. «tjiii St<u
N a Fenomenologia, o filósofo escreve­ $ í t * • g t r.
ra: “ A verdadeira figura na qual a verdade
existe só pode ser o seu sistema científico.
Colaborar para que a filosofia se aproxime
da forma da ciência (absoluta) — meta que, Br. »#*
alcançada, seja capaz de substituir a expres­
são amor pelo saber por verdadeiro saber —,
eis o que me propus” . M as o que está morto
em Hegel é precisamente a pretensão de al­
cançar esse “ verdadeiro saber” totalizante pftiia. HM.%
•*» !* » C tairt ti» I n t l i t
enquanto tal, ao passo que permanecem
vivas precisamente aquelas coisas que se
inscrevem no âmbito da filosofia entendida Vrontisjncio da edição berlmense de IH4 i
na dimensão clássica do termo, ou seja, da Enciclopédia das ciências filosóficas
COmO filo-sofia. em compêndio de Hegel.
Segunda pãYte - T "u n d a ç ã o e a b s o lu t i z a ç ã o e s p e c u la t iv a d o id e alism o

HEGEL
NECESSIDADE DA CIÊNCIA DO ABSOLUTO
A intenção fundamental de Hegel é t r a n s f o r m a r a f il o s o f ia d e

AMOR D O SABER {PH ILO -SO PH IA) E M SABER REAL (SOPH IA).
A época pós-kantiana exige que a ciência seja
c i ê n c i a d o A b s o 1u t o
em duplo sentido

* *.
1. o p ró p rio A b soluto chega a ter ciência de si 2. a ciência tem como objeto o A bsoluto

O Absoluto é essencialmente sujeito (automovimento), é


Espírito
que se autogera, realizando-se como Infinito
que põe e ao mesmo tempo retoma dentro de si o finito:
Idéia
que se reflete circularmente em si mesma,
dando lugar a três momentos dialéticos paradigmáticos

í
1 . O SER-EM -SI

2. O SER -O U TRO O U SER-EORA-DE-S1

3. A VOLTA A Sl O U SER-EM -SI-E-PO R-SI

i
/ que se repetem .

em geral (em Deus):


1. Idéia em si: Logos divino como racionalidade pura
2. Idéia fora de si, alienada: Natureza
/ 3. Idéia que volta a si e se torna em si e por si: Espírito

*
em particular (em todos os aspectos do universo):
todo momento do real é momento necessário do Absoluto,
que se realiza progressivamente em cada um e em todos estes momentos,
e apenas no fim do autoprocesso existe em sua verdade

I
A ciência, portanto, tem como características essenciais:
1. a sistematicidade (ciência do Absoluto em cada um e em todos os momentos necessários de seu desenvolvi­
mento)
2. a dialeticidade, que repete os três momentos paradigmáticos do automovimento do Absoluto e dá lugar a um
método que se escalona em

I
1. t e s e : momento abstrato ou intelectivo, em que o intelecto está fechado às de-terminações do finito;
2. a n t í t e s e : momento dialético em sentido estrito ou negativamente racional, em que a razão evidencia as con­
tradições do finito;
3. s í n t e s e : momento especulativo ou positivamente racional, em que a razão recompõe as contradições e opera
a síntese dos opostos, mostrando a si mesma como totalidade concreta
Capítulo sexto - -H eg el e o id e alism o absolu to

HEGEL
O SISTEMA DA CIÊNCIA

In t r o d u ç ã o : F e n o m e n o lo g ia d o E s p ír ito
Ciência da automanifestação temporal do Espírito,
que da consciência sensível se eleva dialeticamente até o saber absoluto.
Dois planos se entrecruzam:
1. o caminho percorrido pelo Espírito para chegar a si por meio de todas as vicissitudes da
história do mundo
2. o caminho do espírito do homem singular, que deve percorrer de novo aquele caminho, para
dele se apropriar


A meta do itinerário fenomenológico é
o ser como puro pensar,
o absolutamente mediato e, ao mesmo tempo, o absolutamente imediato,
com o qual tem início a

" I
1 . L Ó G IC A : CIÊNCIA DA ID ÉIA EM SI COM O L O G O S DIVINO PURO
A Lógica é a auto-estruturação ideal do Todo, e expõe
“Deus antes da criação do mundo e de todo espírito finito” .
Articula-se nas três esferas:
1. Ser: o pensar em sua imediatez
2. Essência: o pensar em sua mediação
3. Conceito: o pensar que volta para dentro de si como totalidade

y
2 . F il o s o f ia da N a t u r e z a : c iê n c ia d a Id é ia f o r a d e s i , a l ie n a d a

A Natureza é a Idéia na forma da alteridade e da exterioridade.


Seus três momentos fundamentais são:
1. Matéria e movimento em geral (objeto da mecânica)
2. Corpos inorgânicos e processos físico-químicos (objeto da física)
3. Corpos orgânicos (objeto da física orgânica)

t .
3. F i l o s o f i a d o E s p ír it o : c iê n c ia d a I d é ia em si e p o r si
O Espírito em geral é a verdade e o fim último da Natureza:
é a verdadeira realidade da Idéia, que se desdobra em três estágios:
1. E s p í r i t o s u b j e t i v o : espírito do indivíduo, ainda ligado ao finito
2. E s p í r i t o o b j e t i v o : espírito coletivo que se realiza progressivamente:
a) na família; b) na sociedade civil; c) no Estado.
O Estado é a racionalidade em si e por si, em que a liberdade chega a seu direito absoluto.
A dialética dos Estados dá lugar à História do mundo: nela o Espírito do mundo se desdobra,
servindo-se dos vários povos e das grandes individualidades históricas para tecer
seus próprios desígnios (“astúcia da razão” )
3. E s p í r i t o cujos três momentos progressivos são:
a bso lu to ,

a) Arte; b) Religião; c) Filosofia.


Na Filosofia, “a Idéia eterna existente-em-si-e-por-si se produz e goza de si mesma eternamente como
Espírito absoluto”
Segunda pãYte - F u n d a ç ã o e a b s o lu + iz a ç a o e s p e c u la t iv a d o idealism o

H eg el

R NGCGSSIDAD6 DG QU6 R FILOSOFIA S€Jfl C1€NCIR SISTCMflTICfl DO RBSOIUTO

D A natureza do saber científico e o absoluto como espírito


R idéia de sistema amadurecera em Hegeljá durante o período de ensino como livre-docente
no Universidade de Jena (1801-180ó), tanto que a primeira obra hegeliana em volume, publica­
do em 1807, trazia no Frontispício o título: Sistema do Ciência. Primeira parte, fl fenomenologia
do espírito. No Famoso Prefácio a esta obra (do qual Foram tirados as páginas apresentadas a
seguir), Hegel anuncia explicitamente suo intenção de transFormara philosophia (o amor pela
ciência) em sophia (ciência verdadeira e própria: não uma ciência entre os outras, mos a ciência
por excelência), e declarava que a característica Fundamental da ciência é a sistematicidade,
porque a verdade pode-se moniFestar autenticamente apenas como um todo sistemático.
Ressoa de Foto nestas Frases a antiga defínição aristotélica da FilosoFia como "ciência da
verdade", ressoom oí com ainda mais vigor muitas proposições contidas na Doutrina da ciência
de Fichte, e em certo sentido aí se encontram traços do idéio que está na base dos grandes
sistemas FilosóFicos modernos (Spinoza, Leibniz, UJolFF).
Por outro lado, o FilosoFia enquanto tal sempre se apresentou como o ciência humana por
excelência, como o supremo saber atingível pelo homem, onerado porém por uma limitação
indiscutível. Platão põe no boca de Sócrates os palavras que exprimem com grande eFicácia
a consciência de todo consciência FilosóFica autêntica: "Na realidade, apenas o deus é sábio
(sophós), [...] ao passo que a sabedoria humano (anthropíne sophia) tem pouco ou nenhum
valor".
Todavia, a diFerenço crucial entre a posição hegeliana e a de todo outro pensador con­
siste no Foto de que Hegel pretendeu conduzir o FilosoFia muito além do saber humano e de
transFormá-la deFinitivamente em saber divino, no sentido de que no FilosoFia - na FilosoFia
hegeliana! - o Deus uno e trino do cristianismo chegaria por Fim a saber completamente o si
mesmo como espírito obsoluto, e que ossim o espírito humano saberia verdadeiramente o si
mesmo em Deus.

1. O elemento e a figura Se a época atual se revelasse madura pela ele­


verdadeira da verdade, isto é: vação da filosofia a ciência, então esta seria o
o conceito e o sistema científico única verdadeira justificação das tentativas que
fl figura autêntica em que a verdade pode se propõem tal escopo: com efeito, não só se
existir é apenas o sistema científico da própria demonstraria a necessidade da elevação, mas
verdade. Ora, colaborar para que a filosofia tombém, ao mesmo tempo, ela seria atuada.
se aproxime da forma da ciência, a fim de que fl verdadeira figura da verdade é, por­
chegue à meta em que possa depor o próprio tanto, posta na cientificidade, e isso eqüivale
nome de omor do saber para ser saber real, é a dizer que a verdade encontra o elemento da
aquilo a que exatamente me propus. própria existência apenas no. conceito.
fl necessidade interior de que o saber 2 . O absoluto como sujeito
seja ciência reside em sua natureza, e a única e como resultado.
ilustração satisfatória a respeito é a exposição O verdadeiro,
da própria filosofia, fl necessidade exterior, enquanto tornar-se de si mesmo,
por sua vez - à medida que ela, prescindindo é o Todo
da acidentalidade da pessoa e a partir das
circunstâncias particulares, é captada de modo Segundo meu ponto de vista, que deverá
universal -, é idêntica à necessidade interior, se justificar apenas mediante a exposição do
e o é precisamente na figura em que a época próprio sistema, tudo depende do conceber
representa a existência dos próprios momentos. e exprimir o verdadeiro não tanto como subs-
, 135
Cãpltulo S eX t O - f H e 0el e o id e alism o a b so lu to _

tôncio, 0 sim propriamente como sujeito. Ao Na realidade, esse medo apavorante


mesmo tempo, devemos notar que a substan- deriva da ignorância sobre a natureza da me­
cialidade inclui em si tanto o universal, isto é, diação e do próprio conhecimento absoluto.
a imediatez do próprio saber, como também a A mediação, com efeito, não é mais que o
imediatez que é ser ou imediatez pelo saber. auto-igualdade que se move por si mesma, é
[...] fl substância viva constitui o ser que é ver­ a reflexão dentro de si, o momento do €u que
dadeiramente sujeito, que é verdadeiramente é-por-si, é a negativo pura abaixada à sua
real, apenas à medida que ela é o movimento abstração puro, o mediação é o puro e simples
do pôr-a-si-mesma, apenas enquanto é a tornar-se. €m virtude da própria simplicidade, o
mediação entre o tornar-se-outro-a-partir-de-si €u, o tornar-se em geral, este ato do mediar,
e si própria, ênquanto sujeito, a substância é é exatamente tanto o tornar-se da imediatez
a negotividade pura e simples, e justamente quanto o próprio imediato.
por isso é o desdobramento do simples, é a êxcluir do verdadeiro a reflexão, e não
duplicação oponente que por sua vez constitui captá-la como momento positivo do absoluto,
a negação desta diversidade indiferente e de quer dizer, portanto, desconhecer a razão, é
sua oposição: apenas esta igualdade que se a reflexão que determina o verdadeiro como
restaura, apenas esta reflexão dentro de si resultado, mas que também remove a oposição
mesmo no ser-outro - não uma unidode origi­ entre o resultado e seu tornar-se; esse tornar-
nária enquanto tal, nem imediata enquanto tal se, com efeito, é igualmente simples, e por isso
- é o verdadeiro. O verdadeiro é o tornar-se não é diverso da formo do verdadeiro, que
de si mesmo, é o círculo que pressupõe e tem é a de mostrar-se simples em seu resultado,
no início o próprio fim como próprio fim, e que ou melhor: o verdadeiro é o ser que voltou à
é real apenas mediante a atuação e o próprio simplicidade.
fim. [...] O verdadeiro é o Todo. O Todo, porém, Se em si o embrião é indubitavelmente
é apenas a essência que se realiza mediante homem, não o é, porém, por si; é homem por
seu próprio desenvolvimento. Do absoluto, com si apenas como razão formada e desenvolvida,
efeito, é preciso dizer que é essencialmente um que se fez aquilo que ela é em si. Apenas esta é
resultado, que apenas no fim é aquilo que é sua realidade. Mas tal resultado é, por sua vez,
na verdade. 6 exatamente nisto consiste sua imediatez simples: ele, com efeito, é a liberdade
natureza: em ser realidade, sujeito, tornar-se- autoconsciente que repousa dentro de si mesma
a-si-mesmo. Gmbora posso parecer contraditório e que, em vez de segregar a oposição para
o fato de que o absoluto deva ser concebido deixá-la para trás, se reconciliou com ela.
essencialmente como resultado, bastará uma Tudo o que dissemos pode ser expresso
breve reflexão para eliminar esta aparência também assim: a razão é o agirem conformida­
de contradição. de com um fim. A elevação da suposta natureza
acima do pensamento desconhecido em sua
3. fl natureza da mediação essência, e sobretudo a colocação de escanteio
e a reflexão dentro de si. da finalidade exterior, lançaram descrédito so­
O início é o fim bre a forma do fim em geral. Já Aristóteles, ao
contrário, havia determinado a natureza como a
O início, o princípio, o absoluto em sua atividade conforme a um fim, e havia concebido
primeira e imediata enunciação, é apenas o o fim como o imediato, como aquilo que está
universal. € assim como não se expõe uma zoo­ em repouso, como o imóvel que é ele próprio
logia com o simples dizer "todos os animais", motor - e que por isso constitui o sujeito. Suo
com a mesma evidência salta aos olhos que as força para mover, tomada em abstrato, é o ser-
palavras "divino", "absoluto", "eterno" etc., não por-si, a negotividade pura. £ se o resultado é
exprimem, de fato, o conteúdo determinado do idêntico ao início, isso ocorre apenas porque o
divino, do absoluto, do eterno etc., mas apenas início é o fim; e isso eqüivale'a dizer: o real é
a intuição imediata que os concerne. Aquilo que idêntico ao próprio conceito apenas porque o
vale mais do que tais palavras, ainda que se imediato, enquanto fim, tem dentro do próprio
trate apenas da passagem para uma proposi­ interior o Si-mesmo, a realidade pura. O fim
ção, contém um tornor-se-outro que deve ser atuado, o real existente, é de fato movimento
retomado, ou seja, é uma mediação. A respeito e tornar-se plenamente desdobrado: e tal
desta última há, porém, uma espécie de medo inquietação é justamente o Si-mesmo. Neste
apavorante, como se aceitar a afirmação pela sentido, porém, o Si-mesmo é igual também
qual a mediação seria algo de absoluto e teria à imediatez e simplicidade do início, pelo fato
lugar no absoluto significasse ter de renunciar de que ele é o resultado, é aquilo que retornou
ao conhecimento absoluto. para dentro de si-mesmo: e aquilo que voltou
Segunda pavte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t iz a ç ã o e s p e c u la t iv a d o ide alism o

poro dentro de si próprio é exatamente o Si- €ste ser-em-si-e-por-si, porém, é em


mesmo, é auto-igualdade e simplicidade que primeiro lugar apenas para nós o em si, é a
se refere a si mesma. substância espiritual, e deve, portanto, ainda
ser tal por si próprio: ele deve se tornar o saber
4. O verdadeiro é real apenas como sistema. que sabe o espiritual e que, ao mesmo tempo,
O absoluto como espírito sabe a si mesmo como espírito: ou seja, deve
se tornar objeto de si mesmo, e, igualmente
€ntre as diversas conseqüências que de modo imediato, também obieto removido,
derivam de tudo o que dissemos até agora, reflexo dentro de si próprio. A medida que
pode-se pôr em relevo a seguinte: apenas produz inconscientemente o próprio conteúdo
como ciência, apenas como sistema, o saber espiritual, o objeto é por si apenas para nós:
é real e pode ser objeto de exposição. [...] quando, porém, ele é por si também para si
O verdadeiro é real apenas como sistema, a próprio, então esta autoprodução - o conceito
substância é essencialmente sujeito: tudo isso puro - é para ele também o elemento objetivo
é expresso na representação que enuncia o em que tem a própria existência, e em tal exis­
absoluto como espírito- conceito eminentíssimo tência ele é, para si próprio, objeto refletido
que pertence ã época moderna e à sua religião. dentro de si.
Apenas o espiritual é o real: ele é a essência, O espírito que, de tal modo, sabe-se de­
ou seja, aquele-que-é-em-si: ele é aquilo que senvolvido como espírito, é a ciência. R ciência
se refere a outro, o determinado, é o ser-outro e é a realidade do espírito e é o reino que se
o ser-por-si (e é o permanecer-dentro-de-si em constrói em seu próprio elemento.
tal determinação, isto é, em seu ser-fora-de-si): G. UJ. f. Hegel,
apenas aquilo que é espiritual é em si e por si. Fenomenologia do espírito.

2 O papel da Fenomenologia do espírito


Para Hegel, a especulação filosófica, enquanto ciência, realiza-se quando a razão nega toda
finitude e se eleva até o absoluto. €sta elevação, todavia, não pode ser repentina e imediata,
mas deve acontecer em graus, segundo um movimento que já é filosofia.
R fenomenologia do espírito é exatamente a história da elevação da consciência fenomê-
nica das finitezos de seu saber ao saber absoluto: ela é, portanto, não só uma introdução ao
filosofar, mas um verdadeiro e próprio filosofar.
€ preciso, porém, compreender que tal filosofar não é apenas a expressão de uma pesquisa
pessoal ligada ó história intelectual do indivíduo, mas é também a manifestação da vida do
absoluto: ou seja, de um lado corresponde ao caminho que o absoluto teve de percorrer para
chegar à consciência de 5i-mesmo, do outro constitui o itinerário formativo do filósofo individual:
e esta coincidência se realiza porque o homem é parte estrutural do absoluto.
Fenomenologia, em sentido literal (de phainómenon, "aparecer", 0 logos, "ciência"), signi­
fico "ciência do aparecer do espírito" em seu processo de elevoção até o saber absoluto, por
meio de momentos dialéticos.
€m conclusão, são dois os níveis segundo os quais deve ser lida a fenomenologia: I) aquele
que ilustra o caminho seguido pelo espírito para chegar ò autoconsciência e que se realiza nas
vicissitudes da história do mundo: 2) o plano individual, que percorre de novo este caminho para
torná-lo próprio. Desse modo, o história autêntica da consciência do indivíduo deve percorrer
de novo a história universal do espírito. ■

1. fl fenomenologia do espírito em sua universalidade. Ora, o pressuposto ou a


é elevação até a ciência, isto é, condição do início da filosofia é que a consciên­
até o puro auto-reconhecimento do espírito cia se encontre nesse elemento. Tal elemento,
no absoluto ser-outro porém, chega à realização e à plena transpa­
rência apenas por meio do movimento do pró­
O puro auto-reconhecimento no absoluto prio tornar-se. €le é a pura espiritualidade, no
ser-outro, este ser enquanto tal, é o terreno sentido do universal, cujo modo de ser é o da
sobre o qual se funda a ciência, e é o saber imediatez simples: esta simplicidade, quando
- 137
Cüpítulo SCXtO - " H e g e l e o i d e a l i s m o a b s o l u t o --------

existe como tal, é o terreno, é o pensamento do espírito é a exposição do estruturar-se deste


que tem sede unicamente no espírito. movimento de autoformação em toda a sua
Uma vez que este elemento, esta imedia- amplitude e necessidade, e, ao mesmo tempo,
tez do espírito, constitui o caráter substancial ela apresenta os troços daquilo que de vez em
geral do próprio espírito, ele é a essencialidade quando é abaixado a momento e propriedade
transfigurada, a reflexão que, ela própria sim­ do espírito. R meta é a visão clara, por parte
ples, é por si a imediatez enquonto tal: é o ser do espírito, do que é o saber.
que se reflete dentro de si próprio. [...] Oro, o R impaciência pretende o impossível, isto
Fenomenologia do espírito é exatamente a ex­ é, alcançar o meta sem os meios. De um lado,
posição deste tornor-se da dênda em geral, isto ao contrário, pois todo momento é necessário,
é, do saber. O primeiro manifestar-se do sober, é preciso suportar o comprimento deste cami­
o espírito imediato, é a consdênda sensível, ou nho; do outro lado, é preciso deter-se junto
seja, aquilo que é privado de espiritualidade. a cado momento, enquanto cada um é ele
Para se tornar o saber autêntico, para produzir o próprio uma figura individual total, e deve ser
elemento da ciência - o qual é o conceito puro considerado em sentido absoluto apenas se a
da própria ciência -, o saber imediato deve determinação dele é entendida como totalidade
percorrer um caminho longo e difícil. ou concretude, como o Todo na peculiaridade
Gsse tornar-se, como se apresentará em desta determinação.
seu conteúdo e nas figuras que se mostram Uma vez que a substância do indivíduo,
ao longo do caminho, se revelará uma coisa uma \/ez que até o espírito do mundo teve a
totalmente diversa de um encaminhamento da paciência de atravessar estas formas por toda
consciência pré-científica para a ciência; não o sua duração temporal e de assumir a imensa
será também uma fundação da ciência, nem fadiga da história do mundo - durante a quol
será, por fim, o entusiasmo que, como um tiro ele de vez em quando encarnou em cada forma,
de revólver, começa imediatamente com o saber segundo tudo o que esta comportasse, o conteú­
absoluto e se desembaraça dos pontos de vista do total de si mesmo -, e uma vez que não lhe
divergentes, declarando não querer saber deles. teria sido possível chegará consciência de si com
R tarefa de conduzir o indivíduo do estado inculto menor fadiga, então, segundo a própria coisa, o
até o sober foi compreendido necessariamente indivíduo não pode chegar a conceber a própria
em seu sentido geral, e se tratou de considerar substância percorrendo um caminho mais breve.
o indivíduo universal, o espírito autoconsciente,
em seu processo de formação. [...] O indivíduo 2. fl vida do espírito, a morte
deve percorrer de novo os graus da formação do e a imensa potência do negativo
espírito universal também segundo o conteúdo,
mas como figuras já postos por parte do próprio O concreto é automovimento apenas
espírito, como graus de um caminho já traçado porque se cinde e se torna irreal. R atividade
e aplainado. Do mesmo modo, nós, na esfera do cindir e do separar é a força e o trabalho
das cognições, podemos ver hoje obaixar-se do intelecto, do mais extraordinário e maior
a noções, o exercícios, e até a brinquedos de potência, ou melhor, da potência absoluta. O
criança, aquilo que em épocas precedentes círculo que repouso fechado em si próprio, e
era apanágio openos do espírito moduro dos que, enquonto substância, sustento os próprios
adultos, e no progresso pedagógico podemos momentos, é a relação imediato que, por isso,
reconhecer, como em contraluz, a história da não tem nada de surpreendente. Mas o fato
formação do mundo. €sta existência passoda é de que o acidental enquanto tal, separado da
propriedade já adquirida do espírito universal, própria esfera, o fato de que aquilo que está
que constitui tanto a substância do indivíduo ligado o outro e é real apenas em conexão com
quanto, encarnando também sua exterioridade, outro obtenho uma existência própria e umo
sua natureza inorgânica. liberdade separada, tudo isso constitui a imensa
Sob este aspecto, e do ponto de vista potência do negativo: tudo isso é a energia do
do indivíduo, a formação consiste no aquisição pensamento, do €u puro.
desta dotação, em consumar dentro de si a R morte, se assim quisermos chamar essa
própria natureza inorgânica e em tomar posse irrealidade, é a coiso mais terrível, e para man­
dela por si mesmo. Do ponto de visto do espírito ter parado aquilo que está morto é necessária
universal enquanto substância, ao contrário, a a máxima força. Se, com efeito, o beleza impo­
formação consiste no fato de que esta subs­ tente odeia o intelecto, isso ocorre porque se vê
tância confere-se a própria autoconsciência e chamada por este o tarefas que ela não está em
produz o próprio tornar-se e a própria reflexão grau de realizar. R vida do espírito, ao contrário,
dentro de si. Ora, a ciência da fenomenologia não é o que se enche de horror dionte da morte
Segunda purte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t i z a ç ã o e s p e c u la t iv a d o idealism o

e se preservo íntegro do desintegração e do --------------------------- :--------------


devastoção, mas é a vido que suporta o morte dialética confere ao saber o caráter sistemá­
e nela se mantém. tico que é próprio da ciência.
O espírito conquista a própria verdade ft dialético é um disciplino antigo, e efeti­
apenas com o condição de reencontrar o si vamente Hegel não desconhece essa origem,
próprio no desagregação absoluta. O espírito mas transforma radicalmente seus termos à
é esto potência, mas não no sentido do positivo medido que os arranco do rígido repouso em
que afasta o olhar do negativo, como quando que jazem, quase petrificados.
nos desembaraçamos às pressas de algo O método dialético tem umo estrutura
dizendo que não existe ou que é Poiso, poro triádica, cujo vértice é constituído pelo mo­
passar logo a algumo outro coisa. O espírito mento especulativo, no qual a razão copta
é, ao contrário, esto potêncio apenas quando a unidade das determinações contrapostas,
olha de Prente o negativo e permanece junto próprios do finitude, e penetra na região do
dele. Tal permanência é o poder mágico que absoluto como síntese de opostos.
converte o negotivo no ser. Por conseguinte, as proposições filosó­
£ste poder mágico identiPica-se com aquilo ficas devem ser proposições especulativas,
que chamamos o sujeito, o qual, conPerindo no que exprimem o movimento dialético com o
próprio elemento umo existência para a determi­ qual sujeito e predicado se intercombiam re­
nação, ultrapassa a imediatez abstrato - isto é, ciprocamente as partes de modo a constituir
o imediatez que é apenas em geral - e se torno umo identidade dinâmica.
assim a substância autêntico, torna-se o ser ou
o imediatez que não tem mais a medioção Poro
de si, mas que é esta próprio mediação.
1 .0 negativo
3. fl conclusão do fenomenologia do espírito e o movimento do verdadeiro
fl Penomenologia do espírito se conclui O elemento e o conteúdo do PilosoPia não
justamente com o ser como absolutamente é o abstrato ou o irreol, mas o real, aquilo que
mediado. No curso do Penomenologia, o espírito põe a si próprio e vive dentro de si próprio, a
prepara paro si próprio o elemento do saber. existência que está no próprio conceito. €ste
Neste elemento, os momentos do espírito se elemento é o processo que produz e percorre
desdobram na formo do simplicidade, a qual os próprios momentos, e todo o seu movimen­
sabe o próprio objeto como si própria. Aqui os to constitui o positivo e o verdade do próprio
momentos não caem mais um Poro do outro na positivo.
oposição entre ser e saber, mas permanecem A verdade, portanto, inclui no próprio in­
juntos na simplicidade do saber, são o verdadei­ terior também o negativo. Ora, se se pudesse
ro na Porma do verdadeiro, e sua diversidade é considerá-lo como algo do qual Pazer abstração,
apenas diversidade do conteúdo. Seu movimen­ o negativo se chamaria "Palso". De Pato, ao con­
to, que no elemento do verdadeiro em Porma de trário, aquilo que vai desaparecendo deve ser
verdadeiro se estrutura em um Todo orgânico, considerado ele próprio como essencial, e não
constitui o lógica ou filosofia especulativo. deve ser enrijecido em uma determinação que,
G. UJ. F. Hegel, expulsa do verdadeiro, deva ser abandonada
fenomenologia do espírito. em um lugar qualquer Pora da verdade; nem o
verdadeiro, por sua vez, deve ser considerado
como o morto positivo que jaz inerte do outro
lado. O fenômeno, o aparecer, com ePeito, é o
movimento do nascer e do perecer, movimento
n natureza que não nasce nem perece ele próprio, mas que
da verdade filosófica, é em si e constitui o realidade e o movimento
do vida da verdade.
seu método Desse modo, o verdadeiro é o delírio bá-
e a proposição especulativa quico em que não há membro que não esteja
ébrio; e como coda momento, enquanto tende
o separar-se do Todo, da mesma Forma ime­
O conhecimento científico do absoluto e, diatamente se dissolve, esse delírio é também
por conseguinte, a transformação do filosofia o repouso transparente e simples. No tribunal
em ciêncio, é a dialética, porque openas a desse movimento, nem os Piguras particulares
do espírito nem os pensamentos determinados
Capítulo sexto - -f-legel e o id e a l i s m o a b s o l u t o

têm subsistência própria; mas, à medida que 3. Proposição ordinária


são momentos negativos e que se dissipam, e proposição especulativa
eles constituem igualmente momentos positivos
e necessários. fl natureza do juízo ou da proposição em
Na totalidade do movimento, compreen­ geral - natureza que inclui dentro de si a diferen­
dida como repouso, o que se diferencia e se ça de sujeito e de predicado - é destruída pela
confere uma existência particular é conservado proposição especulativa, e assim a proposição
como algo que tem memória de si, como algo primitiva torna-se uma proposição formalmente
cuja existência é o saber de si próprio, e por idêntica que contém, porém, o contragolpe
sua vez este auto-saber é, não menos imedia­ sofrido pela relação entre sujeito e predicado.
tamente, uma existência. Gsse conflito entre a forma de uma pro­
Poderia parecer necessário indicar de posição em geral e a unidade do conceito
modo preliminar os pontos principais que se que destrói tal forma, é semelhante ao que
referem ao método deste movimento, que é acontece, no âmbito do ritmo, entre o metro e
o método da ciência. Todavia, o conceito de o acento. O ritmo, com efeito, resulta do equi­
tal método já está implícito na discussão con­ líbrio entre metro e acento e de sua unificação.
duzida até aqui, e sua verdadeira e própria Analogamente, também na proposição filosó­
exposição pertence à lógica, ou melhor, é a fica a identidade de sujeito e predicado não
própria lógica. O método, com efeito, não é deve anular sua diferença expressa na forma
mais que a estrutura do Todo exibida em sua da proposição, mas, ao contrário, sua unidade
pura essencial idade. deve ser uma harmonia, fl forma da proposição
é a manifestação do sentido determinado, ou
2. fl natureza da existência, seja, é o acento que diferencia sua realização:
a identidade de pensamento a unidade em que o acento se tempera, ao
e de ser contrário, consiste no fato de que o predicado
e o especulativo exprime a substância e que o próprio sujeito é
absorvido no universal.
Como em geral a substância é em si Procuremos agora ilustrar este discurso
própria sujeito, conseqüentemente todo con­ com algum exemplo. Na proposição: "Deus é
teúdo é sua própria reflexão dentro de si. fl o ser", o predicado é "o ser", e o seu é um
subsistência ou substância de uma existência significado substancial em que o sujeito se
é a auto-igualdade, enquanto a autodesigual- imerge. Aqui, na realidade, "ser" não deve
dade seria a dissolução desta existência, fl ser entendido como o predicado, mas como a
auto-igualdade, porém, é a abstração pura, essência e, portanto, parece que "Deus" deixe
ou seja, é o pensamento. [...] Ora, justamen­ de desenvolver o papel sugerido pela sua po­
te porque a subsistência da existência é a sição na proposição, isto é, o papel de sujeito
auto-igualdade, a abstração pura, eis que fixo. Como em tal modo o sujeito perde-se, o
tal subsistência é também a abstração de si pensamento não procede mais na passagem do
por si mesma, ou seja, é ela mesma a própria sujeito para o predicado, mas sente-se antes
desigualdade consigo e a própria dissolução freado e repelido para a consideração daquele
- a própria inferioridade e o movimento do sujeito do qual percebe a ausência. 6m outros
retomar-se dentro de si própria -, em outras termos, como o próprio predicado é expresso
palavras: a subsistência da existência é o como um sujeito, como o ser, como a essência
tornar-se da própria existência. [...] fl simpli­ que absorve a natureza do sujeito, então o
cidade do pensamento é o pensamento que pensamento reencontra o sujeito imediatamente
move e diferencia a si próprio, é a própria também no predicado. Portanto, eis que, ao
inferioridade, o conceito puro. Desse modo, invés de ocupar a posição livre da atitude que
portanto, a atividade intelectiva é um tor­ raciocina - a qual, no predicado, volta para
nar-se e, enquanto é este tornar-se, ela é dentro de si -, o pensamento está ainda imerso
racionalidade. no conteúdo, ou pelo menos dá-se a exigência
Nesta natureza daquele que é - que é a de nele estar imerso.
de ser, no próprio ser, o próprio conceito - con­ As mesmas considerações valem para a
siste em geral a necessidade lógica. Apenas proposição: ”o real é o universal". Aqui, com
tal necessidade constitui o racional e o rito do efeito, o "real", enquanto sujeito, passa para
Todo orgânico, e é saber que sabe o conteúdo seu predicado. O "universal", porém, não deve
à medida que o próprio conteúdo é conceito ter apenas o significado do predicado, como
e essência. €m suma: apenas a necessidade se a proposição afirmasse que o real é uni­
lógica é o especulativo. versal: o universal, ao contrário, deve exprimir
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t Í2 a ç ã o e s p e c u la t iv a d o id e a lis m o

propriamente a essência do real. Também aqui, não só segundo o obstáculo interior, mas até
portanto, o pensamento é assim remetido ao o ponto em que o conceito em questão volta
sujeito, e não volta para dentro de si, e sim no para dentro de si.
sujeito do conteúdo. Ora, este movimento, que constitui aquilo
C deste obstáculo insólito que derivam em que no passado devia levará realização da de­
grande parte as queixas sobre a incompreensi- monstração, é o movimento dialético do própria
bilidade das obras filosóficas, quando, enten­ proposição. Apenas ele é o especulativo real,
da-se, no indivíduo estiverem presentes as con­ e apenas o ato de exprimir esse movimento é
dições culturais requeridas para compreender exposição especulativa. Cnquanto proposição,
escritos do gênero. Vislumbramos assim a razão o especulativo não é mais que o obstáculo
da censura bem precisa e freqüente segundo a interior e a volta, privada de existênàa, do es­
qual a maior parte das obras filosóficas devem sência para dentro de si. Cis por que nos vemos
ser lidas mais vezes para poder ser compreen­ tão freqüentemente remetidos pelos escritos
didas; uma censura tão resoluta e definitiva que, filosóficos a esta intuição interna, e com isso
se fosse fundamentada, não deixaria espaço nos é poupada justamente a exposição que
para nenhuma réplica. exigíamos, isto é, a exposição do movimento
Como as coisas estão, oo contrário, é dialético da proposição.
claro por tudo o que foi dito anteriormente, fl fl proposição deve exprimir o que é o
proposição filosófica, exatamente enquanto verdadeiro. O verdadeiro, porém, é essencial­
proposição, dá a impressão de conter a rela­ mente sujeito, e enquanto tal não é mais que o
ção ordinária entre sujeito e predicado, e de movimento dialético, esse caminho que produz
procedera partir da atitude comum do saber. O a si próprio, projeto-se para a frente e volto
conteúdo filosófico da proposição, ao contrário, para dentro de si.
destrói justamente esta atitude e a opinião G. UJ. F. Hegel,
relativa; a opinião aprende que o significado Fenomenologia do espírito.
é diferente daquilo em que ela acreditava, e
esta correção da própria opinião obriga o saber
a voltar sobre a proposição e a entendê-la de
modo diverso.

4. O verdadeiro
e o movimento dialético
da proposição especulativa
fl mistura do procedimento especulati­
vo e do procedimento do raciocínio constitui
uma dificuldade que deveria ser evitada; a
dificuldade consiste precisamente no fato de
que aquilo que é dito do sujeito ora assume
o significado do conceito do próprio sujeito,
ora, ao contrário, apenas o significado de seu
predicado ou acidente. Os dois procedimentos
se perturbam mutuamente, e a exposição filo­
sófica se tornará plástica e verdadeiramente
eficaz apenas quando conseguir excluir de si
o tipo de relação ordinária entre as partes de
uma proposição.
No realidade, também o pensamento não
especulativo tem seus direitos válidos, mas
eles não combinam de fato com o modo de ser
da proposição especulativa. Não é possível
ultrapassar a forma da proposição de modo
imediato, nem mediante o mero conteúdo da
proposição. € necessário exprimir, ao contrário, Frontispicio da edição berlincnse de 184A
este movimento oposto, e é necessário expô-lo das obras de Hegel.
, 141
Cãpltulo S e x tO - "H egel e o idealism o abso lu to .........

R I ógicfi ficos. O ceticismo contém a mera negação como


resultado da dialética.
2) R dialética, em geral, é considerada
como técnica extrínseca que com arbítrio produz
D fls articulações confusão nos conceitos determinados e dá lugar
do elemento lógico nestes a mera aparência de contradições; em tal
e a dialética sentido, não são as determinações que seriam
algo de nulo, e sim esta aparência, enquanto
o aspecto intelectivo constituiria o verdadeiro,
O procedimento da lógica hegeliana, freqüentemente, além disso, a dialética não
com sua articulação em sentido triádico e é mais que oscilação subjetivo de raciocínios
circular, é indubitavelmente uma novidade, que oscilam de uma cabeça para outra, em que
uma descoberta de Hegel; mas, em outro falta o conteúdo e onde a nudez é escondida
plano, jó o tardio neoplatonismo antigo se pela sagacidade que produz tais raciocínios.
movera nessa direção e, sobretudo com Pro- €m sua determinação peculiar, ao contrário, a
clo, o movimento triádico-circular se tornora dialética é a natureza verdadeira e própria das
fundamental. O próprio Hegel até considerou determinações intelectivas, das coisas e do
Proclo como o maior dos neoplotônicos, e foi finito em geral, fl reflexão, em primeiro lugar,
o primeiro a revalorizó-lo teoricamente em é a ultrapassagem da determinação isolada, e
tempos modernos. é um referir-se a esta de modo a pô-la em uma
relação, enquanto para o resto ela é mantida
em seu valor isolado, fl dialética, por outro
lado, é a ultrapassagem imanente em que a
1. Os três momentos do elemento lógico
unilateralidade e a limitação das determinações
intelectivas se apresentam por aquilo que são,
O elemento lógico tem, segundo a forma, isto é, como negação das próprias determina­
três aspectos: ções. Todo finito consiste em negar o si próprio.
a) o aspecto abstrato ou intelectivo; O momento dialético constitui, portanto, a
b) o aspecto dialético ou negativamente alma motriz do procedimento científico, e é o
racional; único princípio por meio do qual o conteúdo da
c) o aspecto especulativo ou positivamen­ ciência obtém nexo e necessidade imanentes;
te racional. analogamente, é no momento dialético em geral
€stes três aspectos não constituem três que reside a verdadeira elevação, não exterior,
partes da lógica, mas são mais momentos acima do finito.
de toda entidade lógico-real, isto é, de todo
conceito ou verdade em geral. €les podem 4. O momento especulativo
sem dúvida ser colocados todos juntos sob o
primeiro momento, o intelectivo, caso em que O momento especulativo ou positivamente
é possível mantê-los separados: tomados em racional capta a unidade das determinações em
tal sentido, porém, não são considerados em sua contraposição, ou seja, capta o aspecto
sua verdade. [...] afirmativo contido em seu dissolver-se e passar
para outro.
2. O momento abstrato
1) fl dialética tem um resultado positivo
porque possui um conteúdo determinado, ou
€nquanto intelecto, o pensamento se de­ seja, porque seu resultado nõo é propriamente
tém na determinação firme e na sua diferença o nada vazio e abstrato, mas a negação de
em relação a outras determinações. Para o certas determinações que estão contidas no
intelecto, tal abstração tem valor de abstração resultado, e este resultado não é de fato um
que subsiste e que é por si. nada imediato, e sim, justamente, um resul­
tado.
3. O momento dialético 2) Gste elemento racional, portanto, em­
bora pensado e também abstrato, é ao mesmo
O momento dialético é o outonegação de tempo um concreto, porque não é unidade sim­
tais determinações finitas e sua passagem para ples e formal, mas unidade de determinações
as determinações opostas. diferentes. Gm geral, portanto, a filosofia não
1) O momento dialético, tomado isolada­tem nada a ver com meras abstrações ou com
mente por si pelo intelecto, constitui o ceticismo, pensamentos formais, mas ocupa-se unicamen­
principalmente em relação aos conceitos cientí­ te de pensamentos concretos.
Segunda pavte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t i z a ç ã o e s p e c u la t iv a d o id e alism o

3) No lógica especulativa está contida postas


a que, em sua finitude, são trocadas por
mera lógico do intelecto, o qual pode ser logo algo de infinito.
dela deduzida; para fazê-lo, é suficiente descu-
rar o momento dialético e racional. Desse modo, G. UJ. F. Hegel,
a lógica torna-se a lógico usual, um inventário Enciclopédia dos ciências filosóficas
de vários determinações de pensamento justa­ em compêndio.

R FILOSOfIR DFI NflTUR€ZA

5 fl concepção hegeliana da natureza

fí lógica, conforme dissemos, é como "a representação de Deus em suo eterna essência
antes do criação da natureza e de um espírito finito". O "antes” deve ser entendido não em
sentido cronológico, mos lógico-ontológico. C o termo criação deve ser concebido de modo
completamente diferente do sentido que possui no contexto da filosofia clássico-cristã.
Deus é a idéia e a natureza é o outo-alienar-se da idéia, seu auto-estranhar-se, ou seja,
seu sair-de-si-mesma.
Compreende-se melhor este ponto se tivermos presente o tríade de Proclo manência-proces-
são-conversão. R manência corresponde ao momento do idéia em si; a processão corresponde
justamente a este momento do sair de si da idéia; enquanto o conversão ou volta, como veremos,
é o momento do espírito, a idéia que volta o si mesma, o refletir-se sobre si mesma.
Csta parte da filosofia de Hegel é considerada pela maior parte dos estudiosos a menos
interessante. Cntre outras coisos, há tempo se salientou como Hegel não tinho nenhumo simpatia
pela natureza, em clara antítese às posições de muitos românticos.
Muito revelador é o exemplo que leremos no terceiro parágrafo das passagens que a se­
guir são apresentadas, onde Hegel objeta a Vanini (um pensador renascentista: 1585-1619)
- o qual afirma que uma pequeno coisa como um cisco pode fazer-nos reconhecer a verdade
e Deus - que de nenhuma coisa da natureza pode-se dizer isso, o que ao invés deve-se dizer
quanto aos otos do espírito, mesmo dos menores. O próprio mal que existe nos homens, por
causa das implicações espirituais que pressupõe (a liberdade), é infinitamente superior às
plantas e aos ostros.
Rs páginas o seguir são as mais sintéticas e interessantes que Hegel escreveu sobre este
tema.

1. fl exterioridade za não mostra nenhuma liberdade, mas apenas


como determinação fundamental necessidade e acidentalidade.
da natureza
2. Sobre o caráter divino da natureza
fl natureza resultou como a idéia na for­
ma do alteridade. Uma vez que de tal modo a fl natureza, segundo sua existência de­
idéia é como o negativo de si mesmo, ou seja, terminada por meio da qual ela é justamente
é exterior o si mesmo, a natureza não é então natureza, não deve por isso serdivinizada; nem
exterior apenas de modo relativo, em relação o sol, a lua, os animais, as plantas etc., devem
a essa idéia (e em relação à existência subje­ ser considerados e preservados como obras
tivo da idéia, o espírito), mas a exterioridade de Deus superiores aos atos e acontecimentos
constitui a determinação no qual a idéia é como humanos. Cm si, na idéia, a natureza é divina,
natureza. mas assim como ela é, seu ser não corresponde
Nessa exterioridade, as determinações a seu conceito, fl natureza é antes a contradição
conceituais têm a aparência de subsistir como não-resolvido. Seu caráter peculiar é o ser-
reciprocamente indiferentes e de isolar-se uma colocada, é o negativo, no mesmo sentido em
da outra. O conceito, por conseguinte, é como que os antigos entenderam a matéria em geral
Interioridade. €m seu ser-aí, portanto, a nature­ como o non-ens. Assim, a natureza foi definida
Cãpltulo SeXtO - - H e g e l e o i d e a l i s m o a b s o l u t o

tombém como o quedo do idéia de si mesmo, que é atribuído à natureza é aquele segundo
pelo foto de que o idéia, nesto figuro do exte- o qual ela, embora com toda a acidentalidade
rioridade, ocho-se inadequado a si própria. Fl de suas existências, permaneceria firmemente
natureza aparece como o primeiro, o imediato, sujeita a leis eternas. Mas também o reino da
o o-que-é, apenas para a consciência que é autoconsciência o é l F isso é atestado já pela
ela própria inicialmente exterior e, portanto, fé em uma providência que guiaria os aconteci­
imediata. mentos humanos; ou talvez seja preciso pensar
que no campo dos acontecimentos humanos os
3. €xterioridade natural determinações desta providência deveriam ser
e extrinsecação espiritual apenas acidentais e irracionais?
Na realidade, também quando a acidenta­
flpesar de se encontrar em tal elemento lidade espiritual - o arbítrio -chega ao mal, este
do exterioridade, a natureza é, em todo caso, último é infinitamente superior aos movimentos
apresentação do idéia, motivo pelo qual cer­ regulares dos astros ou à inocência das plantas:
tamente se pode e se deve admirar nela a aquele que erra, cometendo o mal, com efeito,
sabedoria de Deus. Mas, diante da afirmação é ainda sempre espírito.
de Vanini, segundo a qual bastaria um cisco
para conhecer o ser de Deus, deve-se repli­ 5. fl natureza
car que toda representação formulada pelo como sistema de estágios necessários
espírito, a pior de suas fantasias, o jogo de
seu humor mais acidental, qualquer palavra, fl natureza deve ser considerada como
constitui um fundamento mais excelente para o um sistemo de estágios, codo um dos quais sai
conhecimento do ser de Deus em comparação a necessariamente dos outros e constitui a verda­
qualquer outro objeto natural. Na natureza não de mais próxima do estágio do qual resulta, fl
se tem apenas a acidentalidade desordenada produção de um estágio a partir de outro acon­
e desenfreada do jogo das formas, mas cada tece, porém, não naturalmente, e sim na idéia
figura é, além disso, privada por si do próprio interna que constitui o fundamento da natureza,
conceito. O vértice supremo para o qual está fl metamorfose pertence apenas ao conceito
impulsionada a natureza em seu ser-aí é a enquonto tal, porque apenas a alteração do
vida, a qual, porém, enquanto idéia apenas conceito é desenvolvimento. Ora, no natureza
natural, acha-se abondonoda à irracionalidade o conceito é, em porte, apenas interno, e em
da exterioridade, e a vida individual, em todo parte existe apenas como indivíduo vivente. Por
instante de sua existência, está envolvida com conseguinte, a metamorfose existente limita-se
outras individualidades. Cm toda extrinsecação unicamente a este indivíduo.
espiritual, ao contrário, está contido o momento
da livre revelação universal a si própria. 6. O conceito é imanente
aos estágios da natureza
4. €quívocos relativos a uma superioridade
presumida do elemento natural
Conforme uma errada concepção antigo,
sobre o espiritual
feita justamente antes do moderna filosofia
natural, o processo e a passagem de uma for­
Cai-se em um mal-entendido análogo mo e esfera natural a uma superior seria umo
quando o elemento espiritual em geral é va­ produção exteriormente real, produção que,
lorizado menos que as coisas naturais, como porém, com o fim de tornar mais claça a Forma
por exemplo quando as coisas naturais são natural superior, teria sido depois reconduzida
preferidas às obras de arte do homem pelo na obscuridade do passado. Ora, na realidade,
fato de que o material destas últimas poderia à natureza é peculiar exatamente a exteriori­
ser tomado apenas do exterior e porque estos dade, o despedaçamento nas diferenças e o
não seriam vivas. Como se a forma espiritual não deixá-las surgir como existências indiferentes.
contivesse uma vitalidade superior e não fosse O conceito dialético, que serve de guia para di­
mais digna do espírito do que a forma natural; versos estágios do desenvolvimento, é o interior
como se o formo em geral não fosse superior dos próprios estágios. € preciso, porém, excluir
ò matéria, e como se em todo fato ético não da consideração pensante as representações
pertencesse unicamente ao espírito também nebulosas, e no fundo sensíveis, como por
aquilo que pode ser chamado "matéria"; como exemplo sobretudo o assim chamado nascer
se aquilo que está situado no estágio natural dos plantas e dos animais da águo, e depois
mais elevado - o vivente - não tomasse ele o nascer dos organismos animais mais desen­
também sua matéria do exterior! Outro privilégio volvidos o partir dos inferiores etc.
Segundã parte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t i z a ç ã o e s p e c u la t iv a d o id e alism o

7. fl impotência da natureza acidentalidades. €m todo caso, não devemos


fl contradição do idéia que, enquanto nos deixar enganar tomando tal traço pela to­
natureza, é exterior a si própria, é mais pre­ talidade da determinação da formação natural,
cisamente a contradição pela qual, de um porque desse modo se cai no procedimento
lado, existe a necessidade conceituai dos analógico acima mencionado.
formações naturais e de sua determinação
racional no totolidode orgânica, enquanto, do 9. Impossibilidade de classificar
outro, existe sua acidentalidade indiferente e ordenar de modo firme
e irregularidade indeterminável. fl acidenta­ e permanente
lidade e determinabilidade externa têm seu as formações naturais
direito justamente no esfera da natureza. O Na impotência da natureza, razão pelo
mais alto grau desto acidentalidade se tem qual o conceito não é atuado nela de modo
no reino das formações concretos, as quais, adequado, está inerente a dificuldade - e,
porém, enquanto coisas naturais, são ao mes­ para muitos círculos naturais, a impossibilidade
mo tempo concretos apenas imediatamente. O - de encontrar com a consideração empírico
concreto imediato, com efeito, é uma multidão diferenças sólidas para estabelecer classes e
de propriedades que são uma externa à outro ordens. €m todo lugar a natureza mistura os
e mais ou menos reciprocamente indiferen­ limites essenciais com formações híbridas e más,
tes; para tais propriedades, justamente por com as quais é pontualmente desmentida toda
isso, a subjetividade simples que-é-por-si firme distinção; a coisa ocorre também dentro
é igualmente indiferente, e as abandona à de gêneros determinados (por exemplo: o
determinação exterior e acidental. O fato de gênero humano), em que se produzem mons­
receber as determinações conceituais apenas truosidades que, de um lado, são agrupadas
de modo abstrato, e de deixar a atuação do sob o gênero em questão, enquanto, do outro,
particular à determinabilidade externa, constitui são privadas de algumas determinações que
a impotência do natureza. acabariam consideradas como peculiaridades
8. Os limites que a natureza põe à filosofia
essenciais de tal gênero.
Ora, apenas quando pressupomos um
Freqüentemente se exaltou nas formações tipo fixo é possível declarar defeituosas, más,
naturais a infinita riqueza e multiplicidade das anormais, tais formações. Gste tipo, porém, não
formos e, de modo totalmente irracional, a pode ser tirado da experiência, porque o ex­
acidentalidade misturada com ordem exterior, periência nos dá exatamente também os assim
como se nisso residisse a alta liberdade da na­ chamados abortos, monstros, seres híbridos
tureza, e até seu caráter divino, ou pelo menos etc. O tipo pressupõe antes a autonomio e a
como se isso atestasse a divindade dentro da dignidade da determinação conceituai.
natureza. Trocar a acidentalidade, o arbítrio, a
ausência de ordem, por liberdade e racionali­ 10.0 escopo final da natureza
dade é típico do procedimento representativo é o espírito
sensível.
fl impotência da natureza põe limites à €m si, a natureza é um todo vivo. O movi­
filosofia, fl coisa mais inoportuna consiste em mento através de seus estágios consiste mais
pretender que o conceito deva compreender tais precisamente no fato de que a idéia se põe
acidentalidades e - conforme foi dito - construí- como aquilo que ela é em si. €m outras palavras:
las, deduzi-las; parece até que a tarefa seja a partir de sua imediatez e exterioridade, que
tanto mais fácil quanto mais insignificante e é a morte, a idéia vai para dentro de si para
isolada é a formação natural. Ora, é certamente existir em primeiro lugar como vivente; portanto,
possível seguir os traços da determinação con­ remove também esta determinação em que ela
ceituai até nos mínimos particulares, mas estes é apenas vida, e se produz fazendo-se existên­
não se esgotam de fato nessa determinação. cia do espírito.
Os traços deste fio condutor e nexo interno O espírito é o verdade e o fim último da
surpreenderão freqüentemente o observador, natureza, e constitui a verdadeira realidade
mas resultarão surpreendentes, ou melhor, to­ da idéia.
talmente inacreditáveis, sobretudo para aquele G. LU. F. Hegel,
que, tanto na história natural como na história Enciclopédia dos ciências
humana, está habituado a divisar apenas filosóficas em compêndio.
145
Capitulo S e X tO - E le g e i e o id ealism o ab solu to --------

fí FllOSOfin DO 6SPÍRITO Cm seu desenvolvimento, o espírito é:


I. na forma da relação consigo mesmo;
em seu interior, ele assiste ao tornar-se do
6 O espírito totalidade idealizada da idéia, ou seja: seu
conceito volta-se para ele, e seu ser consiste
em seus três momentos no ser-junto-de-si, isto é, no ser-livre; este é o
espírito subjetivo;
II. na forma da realidade como de um
O espírito é o retornar a si do idéio e, mundo que o espírito deve produzir e produz, e
como momento dialeticamente conclusivo, é no qual o liberdade é como necessidade dada;
a mais alta expressão do absoluto. este é o espírito objetivo;
O espírito para nós é o último momento III. no unidade, que-é-em-si-e-por-si e
do processo triódico-dialético, mas, quanto que eternamente se produz, da objetividade
ao valor é o primeiro. Com efeito, a idéia (em do espírito e de suo idealidode ou conceito:
sentido lógico) e o natureza devem ser vistas aqui o espírito está em sua verdade absoluta,
como momentos ideais do espírito, pólos é o espírito absoluto.
dialéticos dos quais o espírito é síntese. G. UU. F. Hegel,
Como cada porte e cada momento do Enciclopédia das ciências Filosóficas
sistema hegeliano, também o espírito, e em compêndio.
portanto a FilosoFia do espírito em geral e
em particular, é estruturado dialeticamente
de modo triádico e implica os três momentos
seguintes:
1) Espírito subjetivo, que é o momento
em que 0 espírito se prepara para o outo-
realização e autoconhecimento;
2) Espírito objetivo, que é o momento
em que se auto-atua como liberdade no
história;
3) Espírito absoluto, que é o momento
em que se conhece de modo perFeito e glo­
bal, e é como Deus em suo plenitude.

O absoluto 0 o espírito: esta é a suprema


definição do absoluto. Pode-se dizer que a
tendência absoluto de todo cultura e de todo
filosofia tenha sido a de encontrar tal definição
e de compreender conceituolmente seu sentido
e conteúdo. Toda religião e toda ciência têm
sempre se impulsionado paro este ponto, e
openos a partir deste impulso deve ser com­
preendida a história do mundo.
A palavra e a representação do espírito
foram logo encontradas, e o conteúdo da reli­
gião cristã é fazer conhecer Deus como espírito.
A tarefa do filosofia consiste em captar aquilo
que aqui é dodo à representação, e que em si
é a essência, em seu próprio elemento, isto é,
no conceito. Cssa tarefa não é resolvida ver­
dadeiramente e de modo imanente a não ser Capa da Enciclopédia das ciências filosóficas
quando o conceito e a liberdade são o objeto em compêndio, .
e a alma da filosofia. [...] na tradução italiana de Benedetto Croce.
Segunda parte - F u n d a ç ã o e a b s o lu t iz a ç ã o e s p e c u la t iv a d o idealism o

com precisão onde se encontra, isto é, no erro


fl racionalidade do €stado de um raciocínio unilateral e vazio.
e da história No decorrer desta obra, afirmei que oté a
República platônica, que passo pela expressão
proverbial de um ideal vazio, não captou mais,
Entre os numerosos temos que entram no essencialmente, que a natureza da eticidade
âmbito da Filosofia do espírito destaca-se o grega. Portanto, acrescentei que, na consciência
da racionalidade absoluta da história e o d o do mais profundo princípio que irrompia dentro
Estado como a entrada da razão no mundo, de tal eticidade - princípio que nela podia se
como Deus no mundo. manifestar imediatamente apenas como aspira­
Fls páginas que aqui reproduzimos ilus­ ção ainda insatisfeita e, portanto, apenas como
tram exatamente estes dois temas que se corrupção -, Platão devia procurar, justamente
tornaram celebérrimos e que representam a partir dessa aspiração, o remédio para com­
Hegel verdadeiramente de modo egrégio, batê-lo. Ora, este remédio só podia vir do alto;
como muitos estudiosos disseram, por bem Platão, ao contrário, pôde procurá-lo inicialmen­
e por mal. te apenas em uma particular forma externa da
Fl racionalidade absoluto do história não eticidade grego, por meio da qual ele imaginou
é mais que o conseqüência da concepção de dominar aquela corrupção e graças à qual feriu,
Hegel de que tudo não é mois que o idéia justamente no íntimo mais profundo, seu mais
que se realizo, segundo uma infinita riqueza profundo impulso: a personalidade livre e infini­
de formas. E isso vaie, por conseguinte, ta. Ge, todavia, se demonstrou aquele grande
também para a história, e de modo ainda espírito que foi, exatamente porque o princípio
mais conspícuo do que pora a natureza, pelos ao redor do qual gira o caráter distintivo de
motivos que vimos nas páginas do filosofio sua idéia é o eixo sobre o qual girou a então
da natureza, ou seja, pelo motivo de que iminente revolução do mundo.
no história é a razão que age em nível de flquilo que é racional é real,
liberdade. Em geral, para Hegel nada é real e aquilo que é real é racional.
a não ser a idéia e, portanto, todo momento
do real é racional, e vice-versa. € esta a convicção em que se encontra
fí concepção do Estado tem as mesmas toda consciência ingênua, como também a
raízes teóricas. Para Hegel o Estado é o des­ filosofia. €, o partir disso, a filosofia procede
dobrar-se da razão e do espírito no tempo, à consideração tanto do universo espiritual,
assim como a natureza é o desdobrar-se do como do universo natural. Quando a reflexão,
idéia no espaço. o sentimento, ou qualquer outra forma que
Neste sentido, o espírito que se realiza assuma a consciência subjetiva, considera a
na história, tornando-se Estodo, é conside­ presença como algo de vão, quando se coloca
rado como o Deus real, a entrada de Deus além dela e se comporta como sabichona, então
no mundo. se encontra em uma dimensão vã. € assim, uma
físsim, tudo aquilo que foz o Estodo vez que há realidade apenas na presença, a
devia ser feito e não podia deixar de ser própria consciência subjetiva não é mais que
feito. Esto é a concepção mais absolutista váidade. flo contrário, quando a idéia assume
do Estado que tenha se apresentado na o valor de algo que é simplesmente uma idéia,
história do pensamento, e justamente por representação própria do opinor, então contra
isso suscitou os mais vivas e as mais fortes esta assunção a filosofia garante a intelecção
oposições, além de utilizações de caráter pela qual não há nada de real a não ser a idéia.
"ideológico". Trato-se, portanto, de reconhecer, na aparência
daquilo que é temporal e passageiro, a subs­
tância que é imanente e o eterno que está
presente. Com efeito, como em sua realidade
1. flquilo que é reol é racional, o racional - que é sinônimo da idéia - acede
aquilo que é racional é real ao mesmo tempo na existência externa, ele
vem à tona em uma riqueza infinita de formas,
A filosofio, enquanto é a atividade de son­ fenômenos e configurações, e cinge seu núcleo
dar o racional, é justamente por isso a atividade com a casca multicolorida em que inicialmente
de captar a presença e a realidade, e não está mora a consciência: ora, apenas o conceito
de fato ocupada em estabelecer um além que penetra esse aspecto, a fim de reencontrar o
apenas Deus sabe onde deveria estar, ou do pulso interno e de senti-lo ainda bater até nas
qual de preferência se sabe efetivamente dizer configurações externas.
. 147
Capitulo S e X tO - "H e g e l e o id e a lis m o a b s o lu + o _____

2. O €stado como eticidode concreta do espírito, como espírito dormente. Quando,


O £stado é o realidade da idéia ética. 0e ao contrário, é dado na consciência, quando é
é o espírito ético enquanto vontade substancial, objeto para si próprio e sabe a si próprio como
manifesta, evidente a si própria, vontade que objeto existente, o espírito é o Gstado.
se pensa e se sabe, e que leva a cabo aquilo Quando se fala da liberdade, é preciso
que sabe e à medida que o sabe. No ethos, partir não da individualidade, da autoconsciên­
o êstado tem sua própria existência imediata. cia individual, mas apenas da essência da
Na autoconsciência do indivíduo, no saber e autoconsciência. Saiba ou não o homem, é
na atividade do indivíduo, o Gstado tem ao nessa essência que consiste a liberdade, e ela
invés sua própria existência mediada. Por sua se realiza como potência autônoma na qual os
vez, por meio da predisposição espiritual, a indivíduos particulares são apenas momentos,
autoconsciência tem sua própria liberdade contra a qual o indivíduo nada pode. é o ca­
substancial no £stado assim como na própria minho de Deus no mundo que faz com que o
essência, como no fim e no produto de sua Gstado exista. O que realiza isso é a potência
própria atividade. da razão que se realiza como vontade.
Quando se fala da idéia do êstado, não
é preciso ter diante dos olhos €stados parti­
3. O €stado como o racional em si e por si culares, instituições particulares, mas deve-se
O êstado, enquanto é a realidade da considerar a idéia por si, esse Deus real. Todo
vontade substancial, tem esta realidade na Gstado pode ser declarado, em base aos prin­
autoconsciência particular que se elevou até a cípios que se têm, como um Gstado mau, e se
própria universalidade. 6m tal sentido, o Gstado pode reconhecer esta ou aquela imperfeição
é o racional em si e por si. Ora, esta unidade dele; todo €stado, porém, à medida que nele
substancial é autofinalidade absoluta e imó­ dá-se o essencial - pelo qual ele é um €stado
vel, na qual a liberdade chega a seu direito enquanto Gstado, isto é, um 6stado europeu
supremo; analogamente, este fim último tem o cristão - deve conter todos os momentos esta­
supremo direito em relação aos indivíduos. Os tuais essenciais. €m geral, é fácil individuar as
indivíduos, por sua vez, têm o dever supremo imperfeições; sempre se começa na juventude
de ser membros do ístado. com a crítica. Difícil é, porém, conhecer o aspecto
afirmativo, que é inerente em uma realidade.
4. Na idéia do €stado
Aqui importa esse aspecto autônomo, o qual,
está presente a idéia por si,
na modalidade de sua existência, pode também
isto é, o Deus real
ter muitos defeitos.
O ístado nõo é pura obra de arte. £le está
O €stado é a vontade racional, que é no mundo, está na esfera do arbítrio, do acaso,
essencialmente livre, é idêntica a si própria. €n- do erro; uma intenção má pode desfigurá-lo
quanto vontade racional, o fetado é a liberdade em muitos de seus lados. Mas o homem mais
como liberdade livre e, portanto, realizada. €m odioso, o delinqüente, é ainda sempre homem;
si e por si, o €stado é o todo ético, a realização um doente, um estropiado, é ainda sempre um
da liberdade. Fim absoluto da razão é que a homem vivo; o afirmativo - a vida - existe ape­
liberdade seja real. O €stado é o espírito que sar do defeito; e é exatamente esse afirmativo
está no mundo, o espírito que se realiza no que é preciso considerar.
mundo, na consciência. O espírito se realiza . G. UJ. F. Hegel,
também na natureza, mas apenas como o outro Elementos de fílosofía do direito.
DO HEGELIANISMO
AO MARXISMO
■ Direita e esquerda hegeliana
■ Socialismo utópico
■ Nascimento e desenvolvimento do marxismo

“Não é a consciência dos homens que determina


seu ser, mas, ao contrário, é seu ser social que
determina sua consciência”.
Karl Marx
“Marx não se deteve no materialismo do século
XVIII, mas levou à frente a filosofia. Ele a enriqueceu
com as conquistas da filosofia clássica alemã, prin­
cipalmente com o sistema de Hegel[...]. A principal
destas conquistas é a dialética
Lenin
“Desde que Marx escreveu que todas as coisas
têm sua morte, como poderemos dizer que isso
não é aplicável ao próprio marxismo?”
Mao Tse-tung
Capítulo sétimo

D ireita e esquerda hegeliana.


Feuerbach e o socialism o utópico

Capítulo oitavo

K arl M a rx e Friedrich Engels.


O m aterialism o histórico-dialético
C a p í t u l o s é t im o

Direita e esquerda kegeliarva.


"Feuerback e o socialismo u+ópico

I. A d ir e ita Ke.geliarva

• Hegel morre em 1831. Pouco depois de sua morte seus discípulos se dividem
em duas correntes, que em 1837 David Strauss chamará de "direita" e de "es­
querda" hegeliana, em forte dissídio tanto sobre a questão política como sobre a
religiosa.
• A direita hegeliana - representada, entre outros, por Karl Friedrich Gõschel
(1781-1861), Kasimir Conradi (1784-1849) e Georg Andreas Gabler (1786-1853)
- sustenta, substancialmente, os dois pontos seguintes:
a) em política: o Estado prussiano com suas instituições e suas A direita
realizações econômicas e sociais devia ser visto como o ponto de hegeliana
chegada da dialética, como a realização máxima da racionalidade põe Hegel
do espírito; em defesa
b) sobre a questão religiosa: a filosofia de Hegel é segura­ da religião
mente compatível com os dogmas do cristianismo e representa prussiana e da política
o esforço mais adequado para tornar a fé cristã aceitável ao 1-3
pensamento moderno e justificá-lo diante da razão.

. LAm p ^ o b le - m a devia ser visto como o ponto de chegada


da dialética, como a realização máxima da
p a r a o s d i s c í p u l o s d e ■Hegel:
racionalidade do espírito.
o cn sticm ism o é c o m p a tív e l A esquerda, ao contrário, invocava a
c o m a f i lo s o f i a k e g e l i a n a ? teoria da dialética para sustentar que não era
possível deter-se em configuração política
e que a dialética histórica deveria negá-la
Hegel morreu no fim de 1831. E, pouco para superá-la e realizar uma racionalidade
depois de sua morte, o grande número de mais elevada.
seus discípulos dividiu-se em dois troncos, Em substância: a direita propunha
em forte dissídio entre si, tanto sobre as a filosofia hegeliana como justificação do
concepções políticas como, sobretudo, sobre Estado existente, ao passo que a esquerda,
a questão religiosa. Em 1837, David Strauss em nome da dialética, pretendia negar o
chamou essas duas correntes da escola he­ Estado existente.
geliana de direita e de esquerda, tomando Todavia, antes e mais do que em po­
esses termos do uso que deles se fazia no lítica, a controvérsia teórica entre direita e
parlamento francês. esquerda hegeliana deu-se (pelo menos até
N o que se refere à política, a direita M arx) em torno da questão religiosa. Hegel
hegeliana sustentava, grosso m odo, que sustentara que tanto a religião como a filo­
o Estado prussiano, com suas instituições sofia têm o mesmo conteúdo, mas também
e suas realizações econômicas e sociais, dissera que a religião expressa esse conteúdo
152 .
Terceira parte - X?o h e g e l i a n i s m o a o m a r x i s m o

na forma de representação, ao passo que a 3 O s expoentes


filosofia o expressa na forma de conceito.
m ais sign ificativos
Conseqüentemente, para Hegel, o verdadei­
ro conteúdo da religião devia ser retomado d a direita k e g e lia n a
pela filosofia, transformado em conceitos,
e portanto desaparecer enquanto verdade
religiosa e tornar-se razão filosófica. Assim, por exemplo, Karl Friedrich
Pois bem, é precisamente daí que bro­ Gòschel (1781-1861), no escrito Sobre as
tam as duas concepções divergentes da direi­ provas da imortalidade da alma humana à
ta e da esquerda hegelianas. O cristianismo luz da filosofia especulativa (1835), propôs
é compatível com a filosofia hegeliana? Esse três provas da imortalidade e, com base no
é o problema fundamental em torno do qual sistema hegeliano, defendeu a existência do
se defrontam e se dividem os discípulos de sobrenatural em Aforismos sobre o não-sa-
Hegel. ber e sobre o saber absoluto.
Kasimir Conradi (1784-1849) também
escreveu sobre a alma imortal em Imorta­
lidade e vida eterna (1837). A exemplo de
d ireita H egelian a: Georg Andreas Gabler (1786-1853), Conra­
d e fe s a e ju stificação di se fez paladino da íntima conciliabilidade
entre cristianismo e hegelianismo.
d o c ristia n ism o p o r m eio Também pertencem à direita hegelia­
d a V azão ^ k egelian a na os historiadores da filosofia Johann
Eduard Erdm ann (1 8 0 5-1892) e Kuno
Fischer (1824-1907), autor de imponente
A direita interpretou o pensamento de e influente História da filosofia moderna
Hegel como seguramente compatível com (1854-1877), constando de uma série de
os dogmas do cristianismo e como o esforço monografias, de Descartes a Hegel. Karl
mais adequado para tornar a fé cristã aceitá­ Friedrich Rosenkranz, biógrafo de Hegel
vel para o pensamento moderno e justificá-la ( Vida de Hegel, 1844; Apologia de Hegel,
diante da razão. 1858), foi posto por Strauss no centro da
A esquerda, ao contrário, substituiu Escola hegeliana.
inteiramente a religião pela filosofia, sus­
tentando portanto a inconciliabilidade entre
filosofia hegeliana e cristianismo, negando
ao cristianismo qualquer elemento de trans­
cendência e reduzindo a religião de mensa­
gem divina a fato essencialmente humano,
através do qual podemos vir a saber muitas
coisas, mas não sobre Deus e sim sobre o
próprio homem, suas aspirações profundas
e sua história.
Em suma, a direita hegeliana baseava-
se no fato de que Hegel reconhecia à reli­
gião histórica plena validade no âmbito da
sua forma; a esquerda, porém, baseava-se
no fato de que, para Hegel, a religião não
é razão, e sim representação e, portanto,
redutível a mito.
A direita hegeliana já foi definida como
a Escolástica do hegelianismo, já que, do
mesmo modo como a escolástica medieval
usara a razão aristotélica para justificar e
defender a verdade religiosa, agora a direita
hegeliana usa a razão hegeliana para justifi­ O filósofo Karl Rosenkranz (I SOS- !H79).
car e defender os mesmos dogmas centrais autor de uma Vida de Hegel,
do cristianismo, como os da encarnação e assumiu uma posição central
da imortalidade da alma. entre direita e esquerda hegelianas.
Cãpltulo s é t if f lO - D i ^ e i + a e e s q u e r d a k e g e l i a r v a . P e u e ^ b a c k e o s o c i a l i s m o u + ó p i c o

11. A es q u ei^ d a K e g e lia n a

• Contrários ao status quo em política (e justamente em base à "irrefreável e


revolucionária" dialética) e ateus (porque para Hegel a religião é representação,
mito, e não razão), foram, ao invés, os representantes da esquerda hegeliana: David
Strauss, Bruno Bauer, Max Stirner, Arnold Ruge, Ludwig Feuerbach e Karl Marx.
• Para David Friedrich Strauss (1808-1874), autor de uma strauss:
Vida de Jesus (1835), o evangelho não é história, mas "mito"; o o evangelho
evangelho nos apresenta o "Cristo da fé": é uma transfiguração não é história,
dos fatos, que brotou da espera do Messias por parte do povo, mas "mito"
sob o estímulo do fascínio poderoso de Jesus. Ea verdade do mito $1
é que a união do finito e do infinito não ocorre em um homem
particular, mas é característica da humanidade. Cristo, escreve Strauss, "é aquele
no qual a consciência da unidade do divino e do humano surgiu pela primeira vez
e com energia, e que neste sentido é único e inigualável na história do mundo".
• Bruno Bauer (1809-1882) ataca o cristianismo do lado éti­
co. E se pergunta: “Quem é o egoísta?". O crente, que deixa de Bauer.
lado o Estado, a história e a humanidade, e sobre as ruínas da o crente
razão e da humanidade ocupa-se apenas com sua alma miserável é um egoísta
e sem interesse? Ou o homem, que vive e trabalha junto com os 5 2
homens, e em família, Estado, arte e ciência satisfaz sua paixão
pelo progresso da humanidade?
• Max Stirner (pseudônimo de Johann Kaspar Schmidt, 1806-1856) é autor
de O único e sua propriedade (1845), onde defende a tese de que, para ser ateus
até o fim, é preciso negar tanto Deus como a humanidade, e isto
em nome da única realidade e do único valor que é o indivíduo, stirner:
O indivíduo é a única fonte do direito: nem Deus, nem a ciência, minha
nem a revolução (que impõe outras escravidões) são legitimados propriedade
para impor regras ao indivíduo. A conseqüência de tudo isso é um éo meu poder
egoísmo absoluto: o único entra em uma associação porque isso § 3
lhe é cômodo e considera os outros como objetos. O único será
unicamente sua liberdade, sua vontade, seu poder. Esta é a sua propriedade: "Não
aquela árvore, e sim minha força de dispor dela conforme me aprouver, constitui
a minha propriedade". A propriedade do único é o seu poder.
• Arnold Ruge (1802-1880) - cuja influência sobre Marx será
não indiferente - combate o pensamento de Hegel em nome da Ru9e:
história concreta e no plano da política. E na Filosofia do direi- "Hegel.,,
to hegeliano e crítica de nosso tempo (1842) ele afirma que "a e um ndlcuj° n
razão, que quer despachar as fluidas existências da história por ^ a m o te a d o r
determinações eternas, cai em um jogo ridículo de prestígio".

D a v id F rie d ric k S tra u s s; era determinante a influência hegeliana em


a k u m a n i d a d e c o m o u n iã o
relação à crítica teológica e à crítica bíblica.
Em 1835, publicou a Vida de Jesus, em
e n t r e finito e inj-imto que sustenta que o relato evangélico não é
história, mas “mito” . O evangelho, em suma,
não é crônica de fatos cientificamente com­
Strauss (1808-1874) estudou na Es­ provados, mas, ao contrário, nos apresenta o
cola teológica de Tübingen, sobre a qual “ Cristo da fé” : é uma transfiguração de fatos,
Terceira parte - T) o kecjeliamsm o ao m a^ ism o

que brotou da espera do M essias pelo povo, a esquerda adquiria relevância sempre
sob o estímulo do poderoso fascínio de Cristo. maior.
O evangelho não é história, é mito; mas Entre 1838 e 1841 saíram os “ Anais de
não é lenda. A lenda também é transfigura­ Halles sobre a ciência e a arte alemãs” , diri­
ção que a tradição opera, talvez a partir de gidos por Arnold Ruge (também expoente
fato histórico, mas nela não há significado da esquerda), e nos quais escreveram, entre
metafísico. N o mito, ao contrário, existe. outros, Feuerbach, M arx e Bauer.
Segundo Strauss, o mito evangélico encontra Com efeito, nesse período Bauer passa
seu significado mais profundo no princípio da direita para a esquerda, acentuando a opo­
cristão da encarnação, no homem-Deus' sição entre egoísmo religioso e moralidade
que é Jesus. A idéia da unidade entre finito humana e chegando a posições muito extre­
(homem) e infinito (Deus) é mito cristão que mas, a ponto de acabar em ateísmo explícito.
deve encontrar sua expressão adequada na Bauer não quer que a humanidade fique
filosofia. Os cristãos pensam que essa uni­ ligada “ a um além quimérico” ; o que ele
dade se realizou em um indivíduo, em Jesus, quer é que os homens unam seus esforços
o homem-Deus. M as aí reside, segundo em vista de um progresso contínuo nas artes,
Strauss, o mito: na crença de que a encar­ na ciência e nas instituições. Para Bauer, “ o
nação se tenha realizado em indivíduo his­ homem religioso (é aquele que) não encontra
tórico determinado. A realidade é que Jesus nada de bom neste mundo” , e é um egoísta,
“ é aquele no qual a consciência da unidade porque se isola e se ocupa apenas de sua
entre o divino e o humano apareceu pela alma e não se lança na “ frente de combate
primeira vez com energia e, nesse sentido, ele da humanidade” .
é único e inigualável na história do mundo” . Em 1841, Bauer publicou A trombeta
Entretanto, continua dizendo Strauss, do juízo universal contra Hegel ateu e an-
não se trata de que “ a consciência religio­ ticristo, onde tenta demonstrar que, preci­
sa, conquistada e promulgada por ele pela samente a partir da perspectiva hegeliana,
primeira vez, possa se subtrair a ulteriores
a religião deve ser negada e o ateísmo é
justificações e extensões que resultam do verdadeiro. Ainda de 1841 é a obra de Lu-
desenvolvimento progressivo do espírito
dwig Feuerbach A essência do cristianismo,
humano” . E o desenvolvimento do espírito
na qual o ateísmo é proposto como nova
humano, isto é, a consciência filosófica (ou,
melhor ainda, a filosofia hegeliana), faz forma de humanismo.
Daí em diante, Feuerbach substituiria
Strauss dizer que não é em um indivíduo
Strauss na liderança da esquerda que, com
em particular (Jesus) que se deve ver a união
entre o finito e o infinito, e sim que “a hu­ Feuerbach e M arx, passará à crítica do
manidade é a unificação das duas naturezas, sistema hegeliano e depois, sobretudo com
o Deus tornado homem: é o espírito infinito M arx, se deslocará da crítica do céu (isto é,
que se aliena na finitude e o espírito finito da religião) para a crítica da terra (isto é,
que se recorda de sua infinitude; ela é filha da economia e da política). Todavia, antes
da mãe visível e do pai invisível, isto é, do de tratar de Feuerbach e de M arx, devemos
espírito e da natureza” . recordar duas outras figuras da esquerda
O conteúdo do evangelho e da filoso­ hegeliana: Stirner e Ruge.
fia, portanto, é o mesmo: é constituído pela
unidade entre o finito e o infinito, do homem
com Deus. N o cristianismo esse conteúdo
3 J^Acxyí S t i rn e r:
se expressa sob forma de representação no *e u d e p o s i t e i m in k a c a u s a
mito de Jesus homem-Deus, ao passo que a no n a d a "
filosofia está em condições de traduzir essa
verdade inadequada de forma racional.
M ax Stirner (pseudônimo de Johann
Caspar Schmidt, 1806-1856), ainda como
2 ,1, B i*w no B a u e i * : aluno de Hegel em Berlim, rebelou-se contra
a re lig iã o c o m o ele em nome do individualismo anárquico,
e censurou Feuerbach por ter substituído o
M esven tu m do m u n d o"
Deus da religião por outro deus, igualmente
perigoso: a humanidade.
Foi candente a polêmica sobre o traba­ A obra fundamental de Stirner é O úni­
lho de Strauss. Nesse meio tempo, porém, co e sua propriedade (1845), onde o autor
Cãpltulo S6Í1ÍHO - Pt'if< i e e s c ju e r d n h e g e l i a n a . l^ e u e ^ b a c h e o s o c i a lis m o u t ó p ic o

Esboço do perfil de M ax Stirner, realizado por Friedrich Flngels.


Moscou, Biblioteca do Instituto Marxista-1xmnista.

defende a tese de que, para ser ateu até as e com prim ido pela Igreja, pelo Estado,
últimas conseqüências, é preciso negar tanto pela sociedade, pelos partidos. Nem pelo
Deus como a humanidade, em nome da úni­ socialismo que o liberta da escravidão da
ca realidade e do único valor, o indivíduo. propriedade privada, mas que o faz tornar-
O indivíduo, o Eu ou o único, é irrepetível, se servo da sociedade. O centro e o fim da
é medida de todas as coisas, não pode ser liberdade autêntica é o eu singular, o único:
escravo nem de Deus, nem da humanidade, “N ão valho eu mais do que a liberdade? Não
nem dos ideais. Ao único se subordina tudo. sou eu que me torno livre a mim mesmo?
O único é liberdade em relação a todos N ão sou eu talvez o primeiro?”
e nada existe de superior ao homem. E o O indivíduo é a única fonte do direito:
homem não é idéia, essência ou a espécie. nem Deus, nem a sociedade, nem a revolu­
O homem vale em sua singularidade e não ção (que sempre cria outras hierarquias e
depende de ninguém: “ Eu depositei a minha outras escravidões) têm legitimidade, para
causa no nada” , diz Stirner. Stirner, de impor regras ao indivíduo. O
A conseqüência das idéias expostas é o indivíduo é um dado imediato: não se pode
egoísmo absoluto. Só o único é que conta, universalizá-lo em uma teoria.
não Deus, a sociedade ou os ideais. Aliás, O único entra em uma associação de
para Stirner, os ideais religiosos, morais homens com o único objetivo de se tornar
ou políticos não diferem das fixações da mais forte, e considera os outros como
loucura. O homem não pode ser sufocado objeto. O único não faz revolução (por­
Terceira parte - T )o h e g e lic m is m o a o m a ^ i s m o

que, precisamente, impõe outras servidões política. Essa tendência se acentuará com
obsessivas); sua palavra de ordem é a in­ M arx. Por isso, é compreensível que esses
surreição. filósofos não tenham tido vida fácil. Em
O único, que ainda deve surgir, não breve falaremos das vicissitudes de Feuerba­
será nem um cidadão submetido ao Estado ch e M arx. Ruge foi obrigado a renunciar à
e, portanto, escravo do trabalho, nem um sua livre-docência em Halles; seus “ Anais”
esfarrapado socialista submetido às provi­ foram fechados e ele próprio acabou na
dências da sociedade e à ética do “ dever” . prisão. Evitou a prisão pela segunda vez,
Ele será apenas sua liberdade, seu po­ refugiando-se primeiro em Paris, depois
derio, sua vontade. Esta é a sua propriedade. na Suíça e por fim na Inglaterra. Stirner
“ N ão aquela árvore, e sim minha força de acabo u a vida em m iséria degradante.
dispor dela como me aprouver, constitui Bauer, perdendo a cadeira universitária,
minha propriedade” . Minha propriedade, viveu em Berlim como livre-escritor, entre
sentencia Stirner, “ é o meu poder” . 'dificuldades.

4 A m o ld R u g e:
I I I
a v e r d a d e su b m ete
P er (C in jig c
em m a s s a to d o o m u n d o '7
uní
Outro crítico de Hegel foi Arnold Ruge
(1802-1880), cuja influência sobre M arx ftiu
seria notável (ainda que depois, em 1844,
os dois chegassem aó rompimento). Ruge
combate o pensamento de Hegel precisa­
mente em nome da história concreta e no
plano da política.
A filosofia não pode, como pretende «H
Hegel, “ elevar a existência ou as determina­
ções históricas ao plano de determinações M tn g C t ie n e » .
lógicas.” N a Crítica à filosofia do direito de
Hegel, Ruge escreve: “ A razão, que quer nos
impingir as fluidas existências da história
como determinações eternas, cai em um jogo
ridículo de prestígio” .
A filosofia, ou melhor, os filósofos, de­
vem determinar o movimento da história.
Com efeito, para Ruge, o filósofo que 1'ffÍA.i ven C»«t>
sabe compreender que a crítica filosófica IH4V
determina o movimento da história “ está en­
quadrado na moldura de sua época” , pois a
verdade submete em massa todo o mundo.” Frontispício da primeira edição da obra
Como se vê, nos jovens da esquerda, Der Einzige (“ O único") de Max Stirner,
a crítica à religião desemboca na crítica à publicada em Leipzig em 1845.
Capítulo sétimo - T>w&ita e e s q u e r d a h e g e l i a n a . F e u e r b a c h e o s o c i a l is m o u íó p l c o

------- i i i . .Ludwig Feue^back ------


e a redução da teologia a ar\fropologia

• Ludwig Feuerbach (1804-1872) é, depois de Marx, o representante de maior


saliência da esquerda hegeliana. Suas Lições sobre a essência da religião - apre­
sentadas em Heidelbergem 1848-foram publicadas em 1851. Em 1841 Feuerbach
havia publicado sua obra mais importante: A essência do cristia­
nismo. É aí que ele propõe aquela que ele próprio define como vida e obras
redução da teologia e da religião a antropologia. §1
• A filosofia não tem a tarefa de negar ou ridicularizar o grande evento hu­
mano que é a religião. Deve compreendê-lo. E o compreende, afirma Feuerbach,
quando percebemos que "a consciência que o homem tem de Deus é a consciência
que o homem tem de si". Em poucas palavras: a teologia é antropologia; o dis­
curso sobre Deus é, na realidade, um discurso sobre o homem,
uma vez que o homem - que encontra uma natureza insensível Deus,
a seus sofrimentos - põe suas qualidades, suas aspirações, seus "espelho
ideais para fora de si, torna-se estranho, se aliena e constrói sua do hom em "
divindade. A religião é a projeção da essência do homem: "Deus § 2'3
é o espelho do homem".
• A religião, para Feuerbach, é um fato totalmente humano. E, uma vez desve­
lado o mistério da religião, ao Deus no céu ele substitui outra divindade, o homem
"de carne e sangue". E à moral que prega o amor de Deus, ele pretende substituir
a moral que recomenda o amor do homem em nome do homem.
A intenção do humanismo de Feuerbach é a de transformar os ho- o "humanismo"
mens de amigos de Deus em amigos dos homens, "de homens que de Feuerbach
crêem em homens que pensam, de homens que rezam em homens §4
que trabalham, de candidatos do além em estudiosos do aquém".

V id a e obras da religião, publicadas depois em 1851. À


exceção desse parêntese público, Feuerbach
viveu afastado, em total miséria, morrendo
Ludwig Feuerbach (1804-1872) pri­ em Rechenberg, em 1872.
meiro estudou teologia em Heidelberg e
depois em Berlim, onde ouviu Hegel. De
Berlim, escreveu ao pai: “Aprendi com Hegel J£. A Jã o é ID eus
em quatro semanas tudo o que não aprendi
q u e c ria o kom em ,
antes em dois anos” .
M as as dúvidas não tardaram a surgir. m as o kom em
Em 1830 tomou posição contra a direita he­ q u e c ria D e u s
geliana, com o ensaio Pensamentos sobre a
morte e a imortalidade, onde a imortalidade
é negada para o indivíduo em particular e Em 1837, Feuerbach era ainda fervo­
admitida apenas para a humanidade. Esse roso hegeliano. M as, em 1839, as coisas
escrito bloqueou a carreira acadêmica de já haviam mudado, porque no escrito Pela
Feuerbach. crítica da filosofia hegeliana há, sim, elogios
Durante o ano de 1848, porém, os a Hegel, mas também críticas: “ Hegel come­
estudantes progressistas de Heidelberg o ça com o ser, isto é, com o conceito de ser
convidaram a ministrar um curso, quando ou com o ser abstrato; por que eu não devo
então desenvolveu as Lições sobre a essência poder começar com o próprio ser, isto é, com
Terceira parte - T )o k e g e lic m is m o a o m a ^ i s m o

o ser real?” Para Feuerbach, Hegel “ pôs de mas muito mais o homem real, que é, antes
lado os fundamentos e as causas naturais, de mais nada, natureza, corporeidade, sen­
as bases da filosofia genético-crítica” . M as sibilidade, necessidade. Portanto, é preciso
uma filosofia que deixa de lado a natureza negar o idealismo, que é somente o extravio
é vã especulação. do homem concreto. E, com maior razão,
Em 1841 sai a obra mais importante é preciso negar o teísmo, já que não é Deus
de Feuerbach, A essência do cristianismo, na que cria o homem, e sim o homem que cria
qual o autor efetua o que ele próprio define Deus.
como a redução da teologia e da religião a
antropologia. O interesse pela religião es­
tava claro para Feuerbach desde o início, e 3
.....
te o lo g ia é a n tro p o lo g ia
permaneceu constante em todas as fases de
seu pensamento, que ele assim esquematiza:
“ Meu primeiro pensamento foi Deus, meu Feuerbach admite com Hegel a unidade
segundo foi a razão, meu terceiro e último entre o finito e o infinito. M as, em sua opi­
foi o homem” . nião, essa unidade não se realiza em Deus
Hegel suprimira o Deus transcendente ou na idéia absoluta, e sim no homem, em
da tradição, substituindo-o pelo espírito, um homem que a filosofia não pode reduzir
isto é, digam os, a realidade humana em a puro pensamento, mas sim deve considerar
sua abstração. M as aquilo que interessa a em sua inteireza, “ da cabeça ao calcanhar” ,
Feuerbach não é uma idéia de humanidade, em sua naturalidade e em sua sociabilida-

l.udung Feuerbach
(1804-1872)
foi o teórico da concepção
segundo a qual
a teologia é antropologia.
Capitulo setimo - D i r e i t a e e s q u e r d a k e g e l i a n a . F e u e r b a c h e o s o c i a l is m o u t ó p ic o

de. E a religião sempre desempenhou um Assim, “ todas as qualificações do ser


papel fundamental na história do homem divino são [...] qualificações do ser huma­
concreto. no” : o ser divino é unicamente “ o ser do
A filosofia não tem a função de negar homem libertado dos limites do indivíduo,
ou ridicularizar esse grande fato humano isto é, dos limites da corporeidade e da reali­
que é a religião. Deve compreendê-lo. E o dade, mas objetivado, ou seja, contemplado
compreende, afirma Feuerbach, quando se e adorado como outro ser, distinto dele” .
dá conta de que “a consciência que o homem □D
tem de Deus é a consciência que o homem
tem de s i " . Em outros termos, o homem põe
suas qualidades, suas aspirações e seus dese­
jos fora de si, afasta-se, aliena-se e constrói 4 .0 "U u m cm ism o ^
sua divindade. de Feuerback
A religião, portanto, está “ no relacio­
nar-se do homem com sua própria essência
(nisso consiste sua verdade), mas sua essên­ Todavia — e essa pergunta não pode
cia não como sua e sim como outra essência, ser evitada — , por que o homem se alheia,
separada e dividida dele, até oposta (nisso por que constrói a divindade sem nela se
consiste sua falsidade)” . A religião, pois, é reconhecer? Feuerbach responde: porque o
a projeção da essência do homem: “ Deus é homem encontra uma natureza insensível a
o espelho do homem” , afirma Feuerbach. seus sofrimentos, porque tem segredos que
N a oração, o homem adora seu próprio o sufocam; e, na religião, alivia seu próprio
coração; o milagre é “ o desejo sobrenatu­ coração oprimido. “ Deus é uma lágrima de
ral realizado” ; “ os dogmas fundamentais amor derramada no mais profundo segredo
do cristianismo são desejos realizados do sobre a miséria humana. ”
coração” . Eis, portanto, desvelado o mistério da
Para Feuerbach, a religião é fato huma­ religião: Feuerbach substitui o Deus do céu
no, totalmente humano. E isso “ ainda que o por outra divindade, o homem “ de carne e
homem religioso não tenha consciência do de sangue” . E, assim, pretende substituir a
caráter humano do seu conteúdo, não admi­ moral que recomenda o amor a Deus pela
ta que o seu conteúdo seja humano” . M as, moral que recomenda o amor ao homem
comenta Feuerbach, “ assim como o homem em nome do homem. Essa é a intenção do
pensa quais sejam os seus princípios, tal é humanismo de Feuerbach: a de transformar
o seu Deus: quanto o homem vale, tanto e os homens de amigos de Deus em amigos
não mais vale o seu Deus [...]. Tu conheces dos homens, “ de homens que crêem em
o homem pelo seu Deus e, reciprocamente, homens que pensam, de homens que oram
Deus pelo homem; um e outro se identificam em homens que trabalham, de candidatos ao
[...]. Deus é o íntimo revelado, a essência além em estudiosos do aquém, de cristãos
do homem expressa; a religião é a revelação — que, por seu próprio reconhecimento,
solene dos tesouros ocultos do homem, a são metade animais e metade anjos — em
profissão pública de seus segredos de amor” . homens em sua inteireza” .
E esse o sentido da tese de Feuerbach, Inicialmente, a esquerda hegeliana
segundo o qual “ o núcleo secreto da teolo­ usou Hegel contra a teologia e a filosofia
gia é a antropologia” . Diz ele que o homem tradicional. E, posteriormente, dirigiu suas
desloca seu ser para fora de si antes de en­ críticas contra as “ abstrações” hegelianas,
contrá-lo em si. E esse encontro, “ essa aberta em nome do homem concreto, do indivíduo
confissão ou admissão de que a consciência em particular ou da política revolucionária.
de Deus nada mais é do que a consciência da Substancialm ente, a esquerda hegeliana
espécie” , Feuerbach o vê como “ reviravolta combateu a fé cristã em nome de uma meta­
da história” . Finalmente, na história, “ homo física imanentista, e as abstrações da filoso­
homini deus est” . fia hegeliana em nome da “ concretude” .
Terceira parte - D o k e g e l ia n is m o a o m a r x is m o

~ IV. o s o c ia lis m o utóp\c.o\ —


(Slaude-'Hervk‘ i d e 5 a m + -S im orv,
^ S k a ^ le s P o u n e ^

e P i e ^ r e - 3 ° s e p k 1-VoudkoKv

• Lênin disse que o marxismo é herdeiro também do socialismo francês, daquele


socialismo que depois foi chamado de socialismo utópico e que se orgulha de ter
entre seus pensadores mais significativos Saint-Simon, Fourier e Proudhon.
• Claude-Henri de Saint-Simon (1760-1825) publica em 1817 sua obra mais
importante: A indústria. O novo cristianismo é de 1825.
A idéia de fundo de Saint-Simon é a dfe que a história é dirigida por uma lei
de progresso, progresso todavia não linear enquanto a história humana é uma
alternativa de períodos orgânicos e de períodos críticos. As épocas
Saint-Simon: orgânicas são as fundadas sobre princípios bem sólidos; princípios,
a lei porém, que a certo ponto são postos em crise por desenvolvimen­
da sociedade tos (de idéias, valores, técnicas etc.) que os invalidam, e assim te­
é uma mos as épocas críticas. É o desenvolvimento da ciência que pôs em
"lei de crise a época orgânica da Idade Média. Essa crise é irreversível: se a
progresso" França perdesse as três mil pessoas que ocupam os cargos públicos
-^§1 mais importantes, políticos e religiosos, o país não se ressentiria;
mas, se perdesse seus três mil mais capazes artesãos, cientistas
e artistas, "ela cairia repentinamente em um estado de inferioridade diante das
nações de que agora é a rival". O progresso para a nova sociedade, iluminada e
dominada pela filosofia positiva, é inelutável. A futura sociedade será um retorno
ao cristianismo primitivo, em que a ciência será o meio mais eficaz para alcançar
a fraternidade universal. Isto é afirmado por Saint-Simon em O novo cristianismo
(1825). Devemos lembrar que Augusto Comte foi secretário e colaborador de Saint-
Simon de 1818 a 1824, ano em que houve a ruptura entre os dois.
• Charles Fourier (1772-1837) foi discípulo de Saint-Simon e autor de O novo
mundo industrial e societário (1829) - cuja idéia central é de que a Providência
inseriu em toda a humanidade uma "atração passional" que jamais pode ser frus­
trada e reprimida. A lei da atração, que Newton descobriu para o universo físico,
vale também para o mundo dos homens. As paixões humanas são
Fourier: "sistemas de atração" e devem, portanto, ser satisfeitas. Por con-
a experiência seguinte, a organização social, se não quiser andar contra o plano
do harmonioso de Deus, deve tornar atraente o trabalho, para o qual
"falanstérío" 0 homem se sente chamado. Eis, então, que no "falanstério" de
§2 Fourier - onde vive a unidade agrícola-industrial, composta por
1600 pessoas, que é a "falange" - as habitações são albergues, as
mulheres são equiparadas aos homens, vige a liberdade sexual, càda um produz
aquilo que lhe agrada produzir, ninguém será vinculado a um trabalho específico,
e assim por diante. Fourier teve discípulos que tentaram realizar suas idéias com
experiências de "falanstérios" tanto na Europa como na América. Experiências
que faliram, mostrando sua natureza utópica.
• O que é a propriedade? é o famoso escrito que Pierre-Joseph Proudhon
(1809-1865) publica em 1840. E à pergunta sobre o que seja a propriedade,
ele responde que "a propriedade é um roubo". A propriedade privada se-
Capitulo SetifHO - D i r e i t a e e s q u e r d a h e g e l i a n a . F e u e r b a c h e o s o c i a l is m o u t ó p ic o

ria um roubo pela razão de que o capitalista não retribui ao operário todo
o valor do trabalho dele. A propriedade poderia ter uma justificativa apenas
como condição de liberdade; mas, quando a propriedade está organizada de
modo a tornar livres os poucos (os capitalistas) e escravos os
muitos (os operários), ela - escreve exatamente Proudhon - é Proudhon:
um roubo. A ordem burguesa da sociedade deve, portanto, nem capitalismo
ser mudada. Proudhon, porém, descarta desde o começo a so- nem comunismo,
lução comunista, uma vez que o comunismo é, a seu ver, uma mas autogestão
religião intolerante, uma ditadura que subjuga a pessoa ao
coletivo. O comunismo jamais poderá respeitar a dignidade da
pessoa e os valores da família. Ele não elimina os males da propriedade priva­
da; ao contrário, leva-os à exasperação, uma vez que o Estado comunista será
o proprietário não só dos bens materiais, mas também dos próprios cidadãos.
A sociedade - esta é a proposta de Proudhon - deve de preferência ser reor­
ganizada, fazendo com que os trabalhadores se tornem os proprietários dos
meios de produção e que, portanto, tenham a possibilidade de autogestionar
o processo produtivo. .
Significativas obras de Proudhon, além de O que é a propriedade?, são; A
criação da ordem na humanidade (1843); O sistema das contradições econômicas
ou filosofia da miséria (1846); os três volumes de A justiça na revolução e na igreja
(1858).

1 Saint-Simon: habitante de Genebra a seus contemporâne­


os; em 1814, em colaboração com Augustin
a ciência e a técnica Thierry, publicou a Reorganização da socie­
como base dade européia; sua obra mais importante, A
da nova sociedade indústria, é de 1817; O novo cristianismo é
de 1825. Auguste Comte foi seu secretário
e colaborador de 1818 a 1824, ano em que
■ D A lei d o p r o g r e s s o !
houve o rompimento entre os dois.
o s “p e r í o d o s o r g â n i c o s "
A idéia de fundo de Saint-Simon (idéia
e o s "p e r ío d o s c r ít ic o s ”
destinada a maiores e diversos desdobra­
mentos) é a de que a história é regida por lei
de progresso. M as tal progresso não é linear,
Lênin escreveu que “ o marxismo é o enquanto a história humana é alternância
sucessor legítimo de tudo o que a humani­ de períodos orgânicos e períodos críticos.
dade criou de melhor durante o século XIX: As épocas orgânicas baseiam-se em um con­
a filosofia alemã, a economia política inglesa junto de princípios bem sólidos, crescendo e
e o socialismo francês” . Esse “ socialismo operando em seu interior. M as ocorre que,
francês” é aquele que, com ou sem razão, em dado momento, o desenvolvimento da
foi depois chamado de socialismo utópico, e sociedade (nas idéias, nos valores, na técnica
que relaciona entre seus pensadores mais sig­ etc.) invalida os princípios sobre os quais ela
nificativos Saint-Simon, Fourier e Proudhon. antes se baseava. Temos então o que Saint-
Claude Henri de Saint-Simon (1760­ Simon chama de “ épocas críticas” . Assim
1825) é um pensador que conseguiu focali­ como o monoteísmo punha em crise a época
zar sobre si a atenção de muitos estudiosos orgânica do politeísmo, a Reforma e depois
contem porâneos e também dos pósteros a Revolução Francesa, e especialmente o de­
pelo fato de, antes de qualquer outro, ter senvolvimento da ciência, puseram em crise
sido o primeiro a perceber a transformação a época orgânica da Idade Média.
da sociedade em sociedade industrial, iden­
tificando alguns daqueles grandes problemas
K M j A e r a d a filo s o fia p o sitiv a
sobre os quais debruçar-se-iam não somente
os positivistas, mas principalmente M arx
e seus seguidores. O primeiro escrito de N ão se trata, no entanto, de andar para
Saint-Simon, de 1802, são as Cartas de um trás. O que é necessário é ir adiante, em di­
Terceira parte - D o K e g e l iarvism o a o m a r x is m o

reção a uma nova época orgânica, ordenada o Novo cristianismo, Saint-Simon delineia o
pelo princípio da ciência positiva. Segundo advento da futura sociedade como retorno
Saint-Simon, o progresso científico teria ao cristianismo primitivo. Será sociedade
assim destruído aquelas doutrinas teológicas na qual a ciência constituirá o meio para
e aquelas idéias metafísicas que serviam de alcançar aquela fraternidade universal que
fundamento para a época orgânica da Ida­ “ Deus deu aos homens como regra de sua
de Média. Agora, o mundo dos homens só conduta” .
poderia ser reorganizado e ordenado com
base na ciência positiva. Nessa nova época
e o d ifu s â o d o pensam&nto
orgânica, o poder espiritual será dos homens d e S a in t -S im o n
de ciência, “ que podem predizer o maior
número de coisas” , ao passo que o poder
temporal pertencerá aos industriais, vale N a França, a doutrina de Saint-Simon
dizer, “ aos empreendedores de trabalhos teve razoável difusão. Ela deu dignidade
pacíficos, que ocuparão o maior número de filosófica ao problema social; contribuiu
indivíduos” . Tudo isso para dizer que a afir­ para tornar m ais viva a consciência da
mação do industrialismo torna impossível importância social da ciência e da técnica;
o poder teocrático feudal da Idade Média, exaltou a atividade industrial e bancária; a
onde a hierarquia eclesiástica detinha o idéia dos canais de Suez e do Panamá é dos
poder espiritual, e o poder temporal estava saint-simonistas; Saint-Simon e seus discípu­
nas mãos dos guerreiros. N a era nova, os los desenvolveram firme campanha contra o
eclesiásticos são substituídos pelos cientis­ parasitismo e a injustiça; e, para favorecer
tas, e os guerreiros pelos industriais. Com a justiçá, insistiram na idéia de eliminar a
efeito, a ciência e a tecnologia estão hoje em propriedade privada, revogar o direito de
condições de resolver os problemas huma­ herança (de modo a abolir “ o acaso do
nos e sociais. nascimento” ), planejar a economia, tanto
Escreve Saint-Simon que os homens só agrária como industrial. Para Saint-Simon,
podem ser felizes “ satisfazendo suas neces­ o critério supremo que deveria informar
sidades físicas e suas necessidades m orais” .
E esse é exatamente o fim ao qual tendem
“ as ciências, as belas-artes e os ofícios” .
Fora disso só existem “ os parasitas e os
dominadores” .
Para ilustrar a necessidade de que o
poder político passasse para as mãos dos
técnicos, cientistas e produtores, Saint-Si-
mon apresentou uma conhecida parábola:
se a França perdesse os três mil indivíduos
que exercem os cargos políticos, religiosos e
administrativos mais importantes, o Estado
não sofreria nenhum prejuízo, e tais pessoas
seriam facilmente substituídas; mas, observa
Saint-Simon, se a França perdesse os seus
três mil mais capazes cientistas, artistas e
artesãos, ela “ cairia logo em estado de infe­
rioridade diante das nações de que agora é
rival, e continuaria permanecendo subalter­
na em relação a elas enquanto não reparasse
a perda e não reerguesse a cabeça” . Assim,
o princípio ordenador da nova sociedade é
o pensamento positivo: esse princípio elimi­
nará “ os três principais inconvenientes do
Claude Henri de Saint-Simon (l 760 -1,S’2 SI
sistema político vigente, isto é, o arbítrio, a foi o teórico e o propugnador
incapacidade e a intriga” . de uma nova sociedade,
O progresso em direção à nova época na qual os "eclesiásticos " são substituídos
orgânica, dominada pela filosofia positiva, é pelos “cientistas ", e os "guerreiros "
progresso inevitável. Em seu último escrito, pelos “industriais
C ã p l t u l o s é t i m o - D i r e i t a e e s q u e r d a k e g e l i a n a . F e u e r b a c k e o s o c i a lis m o u tó p ic o

deva esquecer o “ voluntarismo revolucio­


nário” de Louis Auguste Blanqui (1805­
1881) e o “ reform ism o” de Louis Blanc
(1811-1882).
O primeiro foi um conspirador, o se­
gundo um reformador. Blanqui pensava que
a vontade revolucionária, encarnada pela
conspiração armada, fosse onipotente. Já
Blanc era de opinião que a ação do Estado,
através de reformas graduais, poderia elimi­
nar a desigualdade, a espoliação e, sobretu­
do, o desemprego. Blanqui confiava na luta
armada, Blanc na ação do Estado. E se as
origens do primeiro podem ser buscadas em
Babeuf, as de Blanc certamente encontram-
se em Saint-Simon.

2 C\\cxv-les F o u r ie r
e o V w n d o n o v o s o c i e t ó r i o ,/

E O ;A r a c io n a liz a ç ã o d a s p a ix õ e s

Charles Fourier (1772-1837) foi dis­


cípulo de Saint-Simon e autor de escritos
que, por sua extravagância e genialidade,
apresentam elementos profundos para a
Capa da primeira edição (1823) meditação histórica e moral.
do Catecismo dos industriais, de Saint-Simon. A idéia central de Fourier é a de que
existe na história um grandioso plano provi­
dencial, do qual não podem estar excluídos
a ação do Estado devia ser o seguinte: de
o homem, seu trabalho e o modo de cons­
cada qual segundo sua capacidade, a cada
tituição da sociedade. Ora, a Providência
qual segundo suas obras. A primeira norma
pôs em toda a humanidade “ as mesmas
deveria ser a da produção, a segunda a regra
paixões” . E essa “ atração passional” — “ a
da distribuição.
única intérprete conhecida entre Deus e o
universo” — não pode ser frustrada e re­
851 d e s e n v o lv i m e n t o s primida. Segundo Fourier, a lei da atração
m ís t ic o -r o m â n t ic o s d o s a in t s im o n is m o terrestre, descoberta por Newton, pode ser
generalizada de modo a abranger também
O movimento de Saint-Simon deu ori­ a vida dos homens: as paixões humanas são
gem, entre seus discípulos, a uma espécie de “ sistemas de atração” e, portanto, devem
igreja (cujo pontífice era Barthélemy-Prosper ser satisfeitas. Por isso, se quiser respeitar
Enfantin, o chamado “ padre” Enfantin), o plano harmônico de Deus, a organização
que, dilacerada pela cisão entre duas corren­ social deve tornar atraente o trabalho, para
tes internas, uma guiada por Lesseps (que o qual o homem sente-se chamado. Desse
depois construiria o canal de Suez) e outra modo, ao invés de obstaculizar a tendência
por Enfantin, não durou muito tempo. natural ao prazer, é preciso utilizá-la tendo
E, com efeito, não era fácil a coesão em vista o máximo rendimento.
dos elementos técnico-científicos com os O que ocorre, sustenta Fourier, foi
místico-românticos. que as três grandes épocas históricas que
Entretanto, foi precisamente do saint- teriam existido até hoje — a dos selvagens,
simonismo que se originaram as correntes a dos bárbaros e a dos civilizados — preci­
socialistas, a mais importante das quais foi samente obstaculizaram o desenvolvimento
a ligada a Charles Eourier, embora não se harmonioso das paixões humanas, com todo
Terceira parte - ~L)o k e g e l i a m s m o a o m a r x is m o

aquele acúmulo de conflitos e dissenções, está em guerra consigo mesmo, pois suas
dos quais nossa sociedade “ civilizada” não paixões chocam-se entre si — e a ciência
está imune. que se chama moral pretende reprimi-las.
A civilisation era grande coisa para M as, como observa Fourier, “ reprimir não
os iluministas (aperfeiçoamento material é harmonizar” , sendo na verdade o objetivo
e espiritual progressivo da humanidade), o de “ alcançar o mecanismo espontâneo das
mas, para Fourier, a “ civilização” significa paixões, sem reprimir nenhuma” . Segundo
o triunfo da mentira, como o demonstra o Fourier, a moral atual bloqueia as paixões
comércio, em virtude do qual, passando de e gera assim a hipocrisia.
mão em mão, as mercadorias aumentam de
preço, mas não de valor.
Para ele, é a “ civilização” que, através E9 A nova o rg a r v ie a ç ã o d o t ra b a lh o

do regime da livre concorrência, onde cada e d a s o c ie d a d e

qual persegue seu próprio interesse sem


pensar no dos outros e da comunidade, au­ Todas essas considerações levam Fou­
menta a miséria, ainda que os bens estejam rier a sustentar que as paixões ou “ atrações”
disponíveis em maior quantidade. não devem ser coibidas, e sim liberadas e
Por outro lado, não apenas a econo­ direcionadas para o seu rendimento m á­
mia é perversa, mas também a moral. Em ximo.
O novo mundo industrial (1829), Fourier Fourier estava convencido de que a
escreve que, no estado atual, o homem organização adequada para tal fim era a

Charles Fourier
(Í772-1837)
sonhou com uma
organização social
que fizesse o homem
superar os danos
provocados por uma
mal-entendida
‘‘civilização ”,
que reprime as paixões
em vez de satisfazê-las.
A experiência
dos falansténos tentada
por seus discípulos
estava, porém,
destinada à falência,
vista a natureza utópica
de suas concepções.
C ã p í t í í l o s é tifflO - I ^ ir e it a e e s q u e r d a k e g e l i a n a . F e u e ^ b a c k e o s o c i a l is m o u t ó p ic o

sideração, no sentido de ter sido precursor


de concepções que, em alguns aspectos, não
T ÍIÉ O R IE estariam muito distantes das suas, como,
DES QÜATRE MOUVEMENS por exemplo, as de Eros e civilização, de
Herbert Marcuse.
E T

D ES D E S T IN Ê E S G Ê N Ê R A L E S

3 P i e r r e - ^ o s e p k 1-V o u d k o n :
PHOS P EC TU S a Q M to gesfação o p e r á r ia
« T ANNONCE D l LA DÉCOUVKBTK.
d a produção
J Idtftm
Uttfmtm
V t it t it t .
E U A p r o p r ie d a d e é"um fu r t o ”

Em 1 8 4 0 , Proudhon (180 9 -1 8 6 5 )
publicou o famoso escrito O que é a pro­
w á Ê fà k priedade.5; em 1843, aparece A criação da
ordem na humanidade-, em 1846, O sistema
A LKIPZ1G. das contradições econômicas ou filosofia da
miséria-, de 1858 são os três volumes de A
justiça na revolução e na Igreja. Promotor
de m ovimentos sindicais, m utualistas e
Vrontispício da obra de Fourier pacifistas, Proudhon era simultaneamente
A teoria dos quatro movimentos, adversário da propriedade privada tanto
publicada em Leipzig em 1808. quanto do comunismo.
Proudhon vê que a economia burguesa
tem como fundamento a propriedade priva­
“ falange” , grupo de cerca de mil e seiscentas da. M as o que é a propriedade? Responde
pessoas que vivem em um “ falanstério” . Os Proudhon: “ A propriedade é furto” . Já se
falanstérios são unidades agrícola-indus- disse que tal resposta foi como que um
triais, nas quais as habitações são albergues tiro de pistola disparado de surpresa para
e não casernas, e onde cada qual encontra chamar a atenção até do burguês tranqüilo
oportunidades variadas para satisfazer suas para a questão social.
inclinações. As mulheres são equiparadas A propriedade é furto, segundo Prou­
aos homens; a vida familiar é abolida, já que dhon, porque o capitalista não remunera o
as crianças são educadas pela comunidade; operário com todo o valor do seu trabalho.
desaparece a faina do trabalho doméstico. A “ força coletiva” , resultante da força de
N o falanstério vigora a liberdade sexual. muitos trabalhadores organizados, forne­
Ninguém está vinculado a um trabalho ce produtividade muito mais alta do que
específico. C ada qual produz o que lhe aquela que se obteria da soma de simples
agrada produzir. Entretanto, para evitar a trabalhos individuais. É esse o sentido da
monotonia da repetitividade, cada indivíduo frase “ a propriedade é furto” : o capitalista
aprende pelo menos quarenta atividades se apropria do valor do trabalho coletivo.
profissionais e m uda de trabalho várias E a partir daí se cria a contradição funda­
vezes ao dia. Os trabalhos desagradáveis mental entre capital e trabalho, contradição
e sujos (como limpar as cloacas e outras que leva o capitalista não só a se apropriar
coisas do gênero) são confiados às crianças, do trabalho do operário, mas também de
que experimentam grande prazer em brincar sua própria existência. Para dizer a verdade,
na sujeira. Proudhon não é contrário à propriedade
N ã o devemos esquecer que alguns enquanto tal, mas somente à propriedade
discípulos de Fourier tentaram realizar seu que assegura “ renda sem trab alh o ” . A
programa. Foram constituídas falanges na propriedade se justifica unicamente como
Europa e nos Estados Unidos. As experiên­ condição de liberdade. M as, quando está
cias faliram, mostrando o caráter utópico organizada de modo a tornar livres uns pou­
das idéias de Fourier. Entretanto, ultima­ cos (os capitalistas) em troca da escravidão
mente, Fourier voltou a ser levado em con­ de muitos (os trabalhadores), então ela é
Terceira parte - X )o h e g e J ia n is m o a o m a r x is m o

furto. Somente o trabalho é produtivo. E o Proudhon rejeita a con cepção da


operário pode certamente se apropriar do justiça que a vê imposta ao homem a par­
fruto do seu trabalho. M as isso é a posse e tir de fora, por Deus. Esta é a justiça da
não a propriedade privada capitalista, que revelação, à qual Proudhon contrapõe a
dá renda sem trabalho e escraviza muitos justiça da revolução, ou seja, aquela justiça
em favor de poucos. imanente à consciência e à história huma­
na. Para Proudhon, a justiça é imanente e
E O A ju s t i ç a como lei
progressiva.
d o p r o g r e s s o s o c ia l
E O C r í t i c a a o c o le tiv is m o
A ordem socioeconôm ica burguesa, e a o c o m u n is m o
portanto, está errada e deve ser mudada.
M as em que rumo? Proudhon descarta logo E precisamente através da idéia de
a hipótese comunista, que sujeita a pessoa justiça Proudhon desfere crítica decisiva
à sociedade. Para Proudhon, o comunismo contra qualquer solução coletivista do
é religião intolerante, orientada para a di­ problema econômico. Se todos os meios
tadura. Diferentemente dos comunistas, ele de produção são colocados nas mãos do
prefere “ fazer a propriedade queimar em Estado, então a liberdade dos indivíduos
fogo lento, ao invés de dar-lhe novas forças é limitada até o ponto da sufocação, au­
ao fazer uma noite de são Bartolomeu dos mentando a desigualdade social ao invés
proprietários” . de diminuí-la.
M as, se a hipótese com unista não A idéia de Proudhon é de que o comu­
funciona, a proposta individualista também nismo nunca poderá respeitar a dignidade
não é adequada. N ão é adequada porque é da pessoa e os valores da família. O comu­
ilusório o desenvolvimento sem limites da nismo não elimina os males da propriedade
liberdade dos indivíduos. privada, mas muito mais os leva à exaspe­
Sendo assim, Proudhon propõe nova ração: no comunismo, o Estado torna-se
ordem social baseada na justiça. E, em A proprietário não só dos bens m ateriais,
justiça na revolução e na Igreja, define a mas também dos cidadãos. O comunismo
justiça como “ o respeito, experimentado pretende nacionalizar não só as indústrias,
espontaneamente e reciprocamente garan­ mas também a vida dos homens. Ele é o
tido, pela dignidade humana, em qualquer anúncio do Estado de caserna e do despo­
circunstância em que esteja envolvida, tismo policialesco.
qualquer que seja o risco a que se exponha Ao contrário, para Proudhon, trata-se
sua defesa” . de reorganizar a economia, fazendo com que
Segundo Proudhon, a justiça é a lei do os trabalhadores se tornem proprietários dos
progresso. Ela não pode ser só idéia, mas meios de produção e, portanto, tenham a
deve ser força ativa do indivíduo e da vida possibilidade de autogerir o processo pro­
associada. Deve valer “ como a primeira e dutivo. Desse modo, o tecido econômico
última palavra do destino humano e cole­ da sociedade passa a se constituir como
tivo, a sanção inicial e final de nossa bem- pluralidade de centros produtores, que se
aventurança” . equilibram mutuamente.
. . 167
Cãpltulo sétimo - D ir e it a e e s q u e r d a h e g e lia n a . F e u e ^ b a c k e o s o c ia lis m o u tóp ico — ___

de seu próprio ser, pois exatamente o não ser


F eu erba ch consciente disso é o fundamento da verdadeira
e própria essência da religião. Para evitar esse
equívoco diremos melhor: a religião é a primei­
ra, mas indireta, autoconsciência do homem. Por
isso a religião precede sempre a filosofia, tanto
D fl teologia é antropologia na história da humanidade como na história dos
indivíduos particulares. O homem desloca seu
ser para fora de si, antes de encontrá-lo em si.
"R consciência que o homem tem de 6m um primeiro tempo ele está consciente do
Deus é o conhecimento que o homem tem próprio ser como de outro ser. A religião é a
de si. Tu conheces o homem pelo seu deus, infância da humanidade; a criança vê o próprio
e, reciprocamente. Deus pelo homem; um e ser, o homem, fora de si, ou seja, ela objetiva o
outro se identificam". próprio ser em outro homem. Por isso o progres­
so histórico das religiões consiste exatamente
em considerar em um segundo tempo como
No relação com as coisas exteriores a subjetivo e humano aquilo que os primeiras re­
consciência que o homem tem do objeto é dis­ ligiões consideravam como objetivo e adoravam
tinguível da consciência que o homem tem de si como deus. As primeiras religiões são idolatrias
próprio; porém, tratando-se do objeto religioso, para as religiões posteriores; estas reconhecem
a consciência e a autoconsciência sem dúvida que o homem adorou o próprio ser sem saber
se identificam. O objeto sensível é externo ao disso. Nisso consiste seu progresso e, por con­
homem, o religioso está nele, em seu interior e, seguinte, todo progresso na religião é para o
por isso, é um objeto que não se pode cindir do homem um conhecimento mais profundo de si
homem, assim como não se pode cindir dele o mesmo. Mas toda religião particular que define
conhecimento de si, a consciência; é um objeto como idolatrias suas mais antigas irmãs, exclui a
íntimo, melhor ainda, de todos o mais íntimo, o si própria - e na verdade necessariamente, pois
mais próximo. "Deus - diz, por exemplo, Agos­ de outra forma não seria mais religião - desse
tinho - nos é mais próximo, mais ligado, 0 por destino, dessa natureza universal da religião;
isso também mais facilmente reconhecível que as apenas às outras religiões atribui aquilo que
coisas sensíveis e corporais". O objeto sensível sempre permanece - ainda que de modo diver­
é em si um objeto indiferente, independente s o -o vício da religião em geral. Pelo fato de ter
das convicções, do juízo. O objeto da religião, outro objeto, outro conteúdo, pelo fato de ter
ao contrário, é um objeto pré-escolhido: é o ser superado o conteúdo das religiões anteriores,
mais prezado, o prim0iro, o mais excelso; por sua imagina estar elevada acima das leis necessá­
natureza pressupõe um juízo crítico, a distinção rias e eternas sobre as quais se fundamenta
entre o divino e o não divino, entre o digno de a essência de toda religião, imagina que seu
adoração 0 o não digno de adoração. € aqui, objeto, seu conteúdo seja sobrenatural. Mas
por isso, vale sem reservas a proposição: aquilo aquilo que a religião por si mesma não pode
que o homem põe como objeto nada mais é qu0 fazer, ou seja, estudar sua natureza como um
seu próprio ser obj0tivado. Assim como o hom0m objeto qualquer, pode fazê-lo o pensador,
p0nsa, como são os princípios dele, tal é S0u que por isso penetra na essência da religião
d0US: o quanto vale o homem, tanto e não mais e revela todo o segredo delo. Nossa tarefa é
vale seu deus. Fl consciência que o homem tem exatamente a de'mostrar que a distinção entre
de Deus é o conhecimento que o homem tem o divino e o humano é ilusória, isto é, que não
de si. Tu conheces o homem pelo seu deus, 0, é outra coisa que a distinção entre a essência
reciprocamente, Deus pelo hom0m; um e outro da humanidade e o homem individual, e que,
se identificam. Para o homem, é Deus S0u próprio por conseguinte, também o objeto e o conteúdo
espírito, sua própria alma. £ o qu© para o homem da religião cristã são humanos e nada mais que
é 0spírito, o qu© 0 sua alma, S0U coração, isso é humanos.
seu deus: Deus é o íntimo revelado, a essência A religião, pelo menos a religião cristã,
do homem expressa-, a religião é a revelação é o conjunto das relações do homem consigo
solene dos tesouros escondidos do homem, a mesmo, ou melhor, com seu próprio ser, visto,
profissão pública de seus segredos de amor. porém, como outro ser. O ser divino não é mais
Todavia, de tudo o que dissemos não que o ser do homem liberto dos limites do indi­
se deve deduzir que o homem religioso seja víduo, isto é, dos limites da corporeidade e da
diretamente consciente de que a consciência realidade, e objetivado, ou seja, contemplado
que tem de Deus seja a mesma autoconsciência e adorado como outro ser, distinto dele. Todas
168 „ . ^ . .
__ . LCTCetTU parte - lJ o k e g e lia m s m o ao m a r x is m o

as qualificações do ser divino são por isso Não o atributo de divindade, mas a divindade
qualificações do ser humano. [...] do atributo é o primeiro ser divino verdadeiro.
Crês que o amor seja um atributo de Deus Portanto, aquilo que até aqui para a teologia
porque tu mesmo amas, crês que Deus seja um e para a filosofia tinha o valor do absoluto, do
ser sábio e bom porque consideras a bondade essencial, de Deus, isso não é Deus; mas é Deus
e a inteligência tuas melhores qualidades; crês precisamente aquilo que para elas não tinha o
que Deus exista, que ele, portanto, seja um valor de Deus, isto é, o atributo, a qualidade, a
sujeito ou um ser - aquilo que existe é um ser, qualificação, a realidade em geral. Verdadeiro
ainda que depois definido e caracterizado como ateu, isto é, ateu no significado habitual da
substância ou como pessoa ou de qualquer palavra, não é por isso aquele que nega Deus,
outro modo - porque tu mesmo existes, porque o sujeito, mas aquele que nega os atributos do
tu mesmo és um ser. Não conheces um bem hu­ ser divino, como o amor, o sabedoria, a justiça.
mano maior do que amar, ser bom e sábio, como Com efeito, também a negação do sujeito não
também não conheces uma felicidade maior do leva necessariamente à negação dos atributos
que o existir; com efeito, a consciência de todo em si mesmos. Os atributos têm um valor próprio,
bem, de toda felicidade, está em ti ligada à independente; por seu conteúdo eles obrigam
consciência da existência. Deus é para ti um ser o homem a reconhecê-los, impõem-se a ele di­
existente pelas mesmas razões pelas quais é retamente, por si mesmos se demonstram como
para ti um ser sábio, feliz, bom. [...] verdadeiros. Bondade, justiça, sabedoria não
fl identidade do sujeito e do atributo re­ são quimeras pelo fato de que a existência de
sulta d® modo mais evidente pela evolução da Deus é uma quimera, e também não são verda­
religião, que se identifica com a evolução da de pelo fato de que a existência de Deus é uma
civilização humana. Cnquanto o homem está no verdade. O conceito de Deus é dependente do
estado de natureza, também seu deus é pura­ conceito de justiça, de bondade, de sabedoria
mente naturalista. Quando o homem habita nas - um Deus que não seja bom, que não seja justo,
casas, encerra também seus deuses nos tem­ que não seja sábio, não é Deus - mas não vice-
plos. O templo não é mais que um testemunho versa. Uma qualidade não é divina pelo fato de
do valor que o homem atribui aos edifícios. Os que Deus a possui, mas Deus a possui porque
templos em honra da religião são, na realidade, ela em si e por si mesma é divina, porque Deus
templos em honra da arquitetura. Com a eleva­ sem ela seria um ser imperfeito. [...]
ção do homem do estado rústico e selvagem O homem - este é o mistério da religião
para o estado de civilização, com a distinção - projeta o próprio ser fora de si e depois se faz
entre aquilo que convém ou não convém ao objeto desse ser metamorfoseado em sujeito,
homem, surge contemporaneamente também a em pessoa; ele se pensa, mas como objeto do
distinção entre aquilo que convém ou não con­ pensamento de outro ser, e este ser é Deus. Que
vém a Deus. Deus é o conceito da majestade, o homem seja bom ou mau, não é indiferente
da suma dignidade, e o sentimento religioso é o para Deus; pelo contrário! é antes um vivo, um
sentimento do sumo decoro. Apenas em uma era íntimo interesse de Deus que o homem seja bom
posterior os refinados artistas da Grécia concre­ e seja feliz, pois sem bondade não há felicida­
tizaram nos simulacros dos deuses os conceitos de. O homem religioso desmente, portanto, a
de dignidade, de magnanimidade, do repouso nulidade da atividade humana pelo próprio fato
impassível e da serenidade. Todavia, por que de que faz de seus sentimentos, de suas ações,
estas qualidades eram para eles atributos dos o objeto do pensamento de Deus - com efeito,
deuses? Porque já por si mesmas tinham para aquilo que é objeto no pensamento é escopo
eles o valor de divindade. Por que excluíam os na ação -, reduz a atividade divina a nada mais
movimentos de ânimo abjetos e repugnantes? que um meio de salvação para o homem. Deus
Precisamente porque os julgavam inconvenien­ é ativo para que o homem seja bom e feliz. Sob
tes, indignos, não humanos e, portanto, não as aparências de abaixar o homem ao grau mais
divinos. Os deuses homéricos comem e bebem; ínfimo, na realidade o eleva ao sumo grau. As­
isso significa: comer e beber são gozo divino. A sim, o homem em Deus e por meio de Deus tem
presença física é um de seus atributos; Júpiter em mira apenas a si próprio: indubitavelmente o
é o mais forte dos deuses. Por quê? Porque homem tem em mira Deus, mas Deus não mira
a presença física era considerada em si e por a nada mais que à salvação moral e eterna do
si mesma alguma coisa de belo, de divino, fl homem; portanto, o homem não tem em miro
virtude guerreira era para os antigos germanos mais que a si próprio, e a atividade divina não
a suma virtude; por isso também seu sumo difere em nada da atividade humana.
deus, Odin, era o deus da guerra, e a guerra I. Feuerbach,
era para eles a lei originária, a mais antiga lei. fl essência do cristianismo.
( S a p ít w l o o i t a v o

Karl yVlarx e PriedHck Êngels.


O materialismo kis+órico-diale+ico

I. K a ^ l jS A & r x

• Karl Marx nasce em Trier, em 1818. Estuda primeiro em Bonn e depois em


Berlim, onde se laureia em 1841, com uma tese sobre a Diferença entre a filosofia
da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Redator da "Gazeta Renana", depois
co-diretor dos "Anais franco-alemães", em 1843 publica em Paris - onde entra
em contato com Proudhon e Blanc, e onde conhece Engels - a Crítica do direito
público de Hegel. De 1844 são os Manuscritos econômico-filosóficos. Afasta-se da
esquerda hegeliana e em 1845, justamente contra Bruno Bauer
e os hegelianos de esquerda, publica A sagrada família, trabalho Marx
escrito com Friedrich Engels. Com Engels Marx escreve também na Alemanha,
A ideologia alemã, ainda contra os hegelianos de esquerda. As na França
teses sobre Feuerbach remontam a 1845.0 Manifesto do partido e na Inglaterra
comunista é de janeiro de 1848. Estabelecendo-se em Londres, -^§1
no fim de agosto de 1849, ajudado economicamente pelo ami­
go Engels, Marx leva a termo as pesquisas que confluirão em sua colossal obra O
Capital, cujo primeiro volume aparece em 1867, enquanto os outros dois volumes
serão publicados póstumos, respectivamente em 1885 e 1894. Esteve ativamente
empenhado na organização do movimento operário. De 1859 é a Crítica da eco­
nomia política. Sua dissensão com a doutrina de Ferdinand Lassalle explicita-a na
Crítica ao programa de Gotha, de 1875. Marx morre no dia 14 de março de 1883;
foi sepultado no cemitério de Highgate.
• A grande construção do pensamento de Marx desenvolve-se em contato e
em contraste com a filosofia de Hegel, as concepções da esquerda hegeliana, as
teorias dos economistas clássicos e as idéias dos socialistas utópicos. Marx é crítico:
- de Hegel: Marx retomará, invertendo-a, a concepção dialé­
tica da história, mas critica duramente Hegel, porque subordina Alvos
a sociedade civil ao Estado, e porque a descrição que ele faz da polêmicos
essência do Estado não é mais que a justificativa do Estado prus- 5 26
siano;
- da esquerda hegeliana, porque os jovens hegelianos combatem contra as
"frases" e não contra o mundo real do qual as "frases" são o reflexo. Com efeito,
como logo veremos, Marx está convicto de que "não é a consciência que determina
a vida, mas a vida que determina a consciência";
- dos economistas clássicos: estes (Smith, Ricardo etc.) elaboraram a teoria
do valor-trabalho (o valor de uma mercadoria eqüivale ao trabalho socialmente
necessário para produzi-la), mas erram ao pensar que as leis por eles postas em
evidência sejam leis eternas e imutáveis de natureza: a propriedade privada é um
fato e não uma lei eterna;
- do socialismo utópico, cujos expoentes são Babeuf, Saint-Simon, Fourier e
Owen. Estes possuem grandes méritos-viram q antagonismo das classes, tomaram
Terceira parte - D o h e g e l i a n i s m o a o m a r x is m o

os operários mais agudamente conscientes mas não souberam reconhecer as


condições materiais para a emancipação do proletariado; condenam e maldizem
a vida mísera do proletariado, mas não sabem encontrar um caminho de saída. A
estes socialistas utópicos Marx e Engels contrapõem seu socialismo científico;
- de Proudhon, porque Proudhon é um "moralista" que gostaria de mudar
a realidade eliminando seus lados maus; a questão, porém, não está em dividir,
como queria Proudhon, a propriedade entre os trabalhadores, mas em suprimi-la
totalmente por meio da revolução vitoriosa.
• Segundo Marx, Feuerbach tem razão ao dizer que é o homem que cria Deus
e não vice-versa. Todavia, Feuerbach parou no ponto mais importante: por que o
homem cria Deus? E eis a resposta de Marx: existe o mundo fantástico dos deuses
porque existe o mundo irracional e injusto dos homens.
"A miséria religiosa é em um sentido a expressão da miséria
A alienação real, e em outro sentido o protesto contra a miséria real. A religião
religiosa é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem
§7 coração, o espírito de situações em que o espírito está ausente.
Ela é o ópio do povo". Mas as ilusões não se desvanecem se não
forem eliminadas as situações reais que as criam: "os filósofos interpretaram o
mundo de modo diverso; agora trata-se de mudá-lo" - esta é uma das Teses sobre
Feuerbach.
• Portanto: a crítica da religião se torna crítica do direito, a crítica da teolo­
gia se torna crítica da política. A crítica do céu se transforma em crítica da terra.
E aqui, na terra, Marx encontra um homem alienado. O homem não alienado
é um homem que se realiza transformando ou humanizando,
o trabalho segundo seus planos, com os outros, a natureza, para satisfazer
alienado suas necessidades. O que Marx vê, porém, e um homem alienado,
$8 ou seja, expropriado do próprio valor de homem por causa da
expropriação do trabalho. O homem não trabalha para realizar
seus próprios projetos, junto com os outros, humanizando assim a natureza. Ele
trabalha para a pura subsistência. A propriedade privada, baseada na divisão do
trabalho, torna o trabalho constritivo. O trabalho do proletário é um trabalho
forçado. Nele o operário aniquila seu espírito e destrói seu corpo.
• Mas como se chegou a uma situação desse tipo? Como se produziu a revo­
lução industrial? E como é possível - caso o seja - sair de tal situação? É aqui que
entra em jogo a concepção de Marx sobre a história, centrada sobre a idéia de
materialismo histórico e sobre a de materialismo dialético.
O materialismo histórico é a teoria segundo a qual a estrutura econômica de
uma época determina a superestrutura ideológica (isto é, o conjunto das idéiàs
religiosas, morais, políticas, jurídicas, estéticas etc. dessa época).
A dialética "As representações e os pensamentos, o intercâmbio espiritual dos
como lei homens aparecem [...] como emanação de seu comportamento
inelutável material".
da história Mas as idéias mudam, mudam as superestruturas porque
->§ 9-11 mudam as estruturas econômicas, e estas mudam por causa de
uma lei dialética, no sentido de que a história humana se desen­
volve, por contrastes, por contradições, por tríades dialéticas, em suma. Assim,
por exemplo, é da sociedade feudal que surgiu a burguesia, mas a burguesia é
a negação da sociedade feudal; por seu lado, a burguesia desenvolve-se e cresce
alimentando em si mesma o proletariado, isto é, os homens que empunharão as
armas contra ela, seus sepultadores.
• O ocaso da burguesia e a vitória do proletariado são, para Marx, eventos
inelutáveis. E ele argumenta a favor de tal inelutabilidade em O Capital. A mer-
Capítulo oitavo - K a r l M a r x e T“H e d ^ ic K Ê n g e l s . O m a t e r ia lis m o U is t ó r ic o -d ia lé + ic o

cadoria tem um valor de uso e um valor de troca. O valor de


uso baseia-se sobre a qualidade possuída pela mercadoria em o Capital
relação à satisfação de alguma necessidade. O valor de troca é e o conceito
dado pelo tempo de trabalho social necessário para produzi-la. de ™ai*-valia
Também o trabalho, a força-de-trabalho, é uma mercadoria que o $
capitalista adquire sobre o mercado e que paga segundo o valor
que tal mercadoria tem, valor que é dado pela quantidade de trabalho necessária
para produzi-la, ou seja, pelo valor das coisas necessárias para manter em vida o
trabalhador e sua família. '
A força-de-trabalho é, porém, uma mercadoria especial, uma vez que produz
mais-valia. O capitalista reinveste esta mais-valia para não sucumbir à concorrência.
No fim ocorrerá que o capital estará sempre em menos mãos, enquanto aumenta­
rá o grande exército dos proletários, sempre mais conscientes do desfrutamento
sofrido, da própria força, da missão histórica que cabe ao prole­
tariado. O proletariado empunhará as armas contra a burguesia; a ditadura
a revolução levará necessariamente a uma sociedade sem classes: do
é este o advento do comunismo. É este o desenlace final de uma proletariado
história que até agora foi uma história de luta de classes. -^§13

Jm V id a e o b m s

Karl M arx nasceu em Trier, em 15 de


maio de 1818, filho de Heinrich, advogado,
e de Henriette Pressburg, dona de casa. O
pai e a mãe de M arx eram de origem judai­
ca. Entretanto, em 1816-1817, em virtude
das leis anti-semitas em vigor na Renânia,
quando teve de escolher entre sua fé e a
profissão de advogado, Heinrich escolheu
a profissão.
Karl realizou os estudos secundários
em Trier e, depois, foi para Bonn, a fim de
estudar leis. Em Bonn, Karl preferia a vida
goliardesca ao estudo. Assim, seu pai tomou
a decisão de fazer com que prosseguisse
seus estudos na mais austera Universidade
de Berlim. Desse modo, em 1836, M arx
se transferiu para Berlim. Ainda no verão
daquele ano, noivou em segredo com Jenny
von Westphalen, “ a mais graciosa jovem
de Trier” , moça de família aristocrática
que M arx desposará em 1843. Em Berlim,
Karl seguiu os cursos de Karl von Savigny
e de Eduard Gans. Tornou-se assíduo fre­
qüentador do “ Doktor club” , círculo de
jovens intelectuais hegelianos alinhados
Karl Marx (1818-1883)
em posições radicais, onde, entre outros, foi o intérprete de maior saliência
conheceu o professor de história Karl Frie­ da revolução industrial,
drich Kòppen e o teólogo Bruno Bauer. Em o teórico do "socialismo científico''
15 de abril de 1841 laureou-se em filosofia, e o "profeta "
em Berlim, com a tese intitulada Diferença da revolução proletária.
Terceira pãrte - !D o k e g e l i a m s m o a o m a ^ i s m o

entre a filosofia da natureza de Demócrito Bakunin e, sobretudo, conheceu Friedrich


e a de Epicuro. Engels, que seria seu amigo e colaborador
Depois de laureado, M arx pensou em por toda a vida.
obter a livre-docência em Bonn, onde ensi­ De 1844 são seus M anuscritos eco-
nava seu amigo Bruno Bauer. M as Bauer, “ o nômico-filosófcos (publicados em 1932).
Robespierre da teologia” , foi logo afastado N e sse m eio tem po , c o la b o ro u com o
da universidade. E, assim, como Bauer não “Vorwàrts” (“ Avante” ), jornal dos artesãos
podia apoiá-lo, encerrou-se a carreira aca­ com unistas, difundido na Alemanha. E
dêmica de M arx. precisamente por essa colaboração pagaria
Bloqueado o caminho universitário, o preço de ser expulso da França (11 de
M arx passou ao jornalismo, tornando-se janeiro de 1845).
redator da “ Gazeta Renana” , órgão dos Entrementes, am adurecia seu a fa s­
burgueses radicais da Renânia, onde escre­ tamento da esquerda hegeliana. Em 1845
viam homens como Herwegh, Ruge, Bruno escreveu A sagrada família, trabalho em
Bauer e seu irmão Edgar, bem como Moses colaboração com Engels e dirigido contra
Hess. Em pouco tempo, M arx tornou-se Bruno Bauer e os hegelianos de esquerda.
redator-chefe do jornal. Entretanto, em 21 Ainda contra eles, M arx e Engels escreveram
de janeiro de 1843, o jornal foi oficialmente em Bruxelas (onde M arx se havia refugia­
interditado. Nesse período, M arx estudou do depois de sua expulsão da França) A
Feuerbach, e ficou entusiasmado. N o verão ideologia alemã. As teses sobre Feuerbach
de 1843, escreveu a Crítica do direito públi­ remontam a 1845 (mas Engels só as tornou
co de Hegel, cuja introdução foi publicada públicas em 1888), ao passo que A miséria
em Paris, em 1844, nos “ Anais franco-ale- da filosofia, resposta à filosofia da miséria de
m ães” , fundados por Ruge, que convidou Proudhon é de 1847, escrito no qual M arx
M arx para ser co-diretor. ataca o “ socialismo utópico” em nome do
Em Paris, M arx entrou em contato “ socialismo científico” . M arx permaneceu
com Proudhon e Blanc, encontrou Heine e na Bélgica até 1848. E foi em janeiro de
1848 que ele ditou, juntamente com Engels,
o famoso Manifesto do partido comunista,
a pedido da “ Liga dos comunistas” .
Desencadeado o movimento de 1848,
ÍKiliflC M arx voltou por breve período a Colônia,
onde fundou a “Nova Gazeta Renana” , que,
ci fr
porém, foi obrigada quase que imediatamen­
te a suspender suas publicações.
H t i t i t De Colônia voltou para Paris, mas,
ttt tendo-lhe sido proibida a perm anência
na capital francesa, M arx partiu para a
f r i t i f e tt * r i t i f. Inglaterra, lá chegando em 24 de agosto
de 1849.
N a Inglaterra, M arx se estabeleceu em
V f fr H p r v n o jJ a a r r Ir Londres, onde, entre dificuldades de toda
sorte, conseguiu, com a ajuda financeira do
seu amigo Engels, levar a bom termo todas
■tn-n aquelas pesquisas de economia, história,
sociologia e política que constituem a base
firitbtidt Gtagel» uub Aarl OTarjr. de O Capital, cujo primeiro volume saiu
em 1867, ao passo que os outros dois fo­
ram publicados postumamente por Engels,
/ra n lifu rt a. J H respectivamente em 1885 e em 1894. Em
V í t t x a x %i t *11 n 0 <i I t. 1859, saíra sua outra obra fundamental, a
,t K . ,
I Hl - V Crítica da economia política. Empenhado
na atividade de organização do movimento
operário, M arx conseguiu fundar em 1864,
Frontispício da primeira edição da obra em Londres, a “ associação internacional
A sagrada família (1845), escrita por Marx dos trabalhadores” (a primeira Interna­
em colaboração com Engels. cional), que, depois de vários contrastes
Capltlílo oitãvo ' K a r l yV\arx e F r i e d r i c h £Lr\geIs. O m a t e r ia lis m o h is t ó r ic o -d ia lé t ic o

e peripécias, dissolveu-se em 1872 (ainda b) a de inverter o sujeito e o predicado:


que, oficialmente, sua dissolução só tenha os indivíduos humanos, isto é, os sujeitos
sido decretada em 1876). A última década reais, tornam-se em Hegel predicados da
da vida de M arx também foi período de “ substância mística” universal. M as, reafir­
intenso trabalho. Em 1875 publicou a Crí­ ma M arx, “como não é a religião que cria o
tica ao programa de Gotha, tomando como homem, mas o homem que cria a religião,
alvo as doutrinas de Lassalle. M as, mais do da mesma forma não é a constituição que
que qualquer outra coisa, trabalhou em O cria o povo, mas o povo que cria a consti­
Capital. Em 2 de dezembro de 1881, mor­ tuição” .
reu sua mulher, Jenny. E Karl M arx morreu Assim, Hegel crê estar descrevendo a
em 14 de março de 1883, sendo sepultado essência do Estado, ao passo que, de fato,
três dias depois no cemitério londrino de está descrevendo e legitimando a realidade
Highgate. existente que é o Estado prussiano. Escreve
M arx: “ Hegel não deve ser censurado por
descrever o ser do Estado moderno tal como
é, mas sim por considerar aquilo que é como
2 ]\A aryt/ c r í t i c o d e H e g e l a essência do Estado” . O problema, portan­
to, é que em Hegel, depois de ter concebido
a essência ou substância da pera ou da maçã,
O pensam ento de M arx formou-se até as pêras reais tornam-se encarnações
em contato e contra a filosofia de Hegel, do fruto absoluto, ou seja, pêras e maçãs
as idéias da esquerda hegeliana, as obras aparentes.
dos economistas clássicos e as obras dos
socialistas que ele próprio cham aria de
“ utópicos” .
M arx reconhece prontamente a pro­
3 AAarx/ c r í t i c o d a e s q u e r d a
fundidade em Hegel “ neste seu começar por e lia n a
toda parte com a oposição das determina­
ções” . Entretanto, o afastamento de M arx
em relação a Hegel torna-se claro desde seus É preciso admitir que a esquerda he­
primeiros escritos, a começar pela Crítica da geliana, pelo menos até 1843, foi um dos
filosofia do direito de Hegel (1844), que cri­ grupos intelectuais mais vivos e combativos
tica a filosofia do direito de Hegel com base da Europa. N ão era um grupo homogêneo.
na situação histórica e política da Alemanha M as, enquanto a direita hegeliana, em
e na convicção de que “ as instituições jurídi­ nome do pensamento de Hegel, procurava
cas e políticas e as diversas formas de Estado justificar o cristianismo e o Estado existente,
não podem se explicar por si mesmas e em a esquerda, sempre em nome da dialética
virtude de um chamado desenvolvimento hegeliana, transform ava o idealismo em
do espírito humano, mas são resultado das materialismo, fazia da religião cristã fato
condições materiais de vida” . puramente humano e combatia a política
Substancialmente, para M arx, a filoso­ existente com base em posições “ democrá-
fia de Hegel interpreta o mundo de cabeça tico-radicais” .
para baixo: é ideologia. Hegel raciocina Entretanto, para M arx, isso era inteira­
como se as instituições existentes, como, por mente insuficiente. Por isso, M arx e Engels,
exemplo, a herança, derivassem de puras com A sagrada família, atacam sobretudo
necessidades racionais, legitimando assim Bruno Bauer e, depois, com A ideologia
a ordem existente. alemã, estendem a polêmica a Stirner e
A realidade é que, segundo M arx, He­ Feuerbach.
gel transforma em verdades filosóficas dados A convicção que está na base da es­
que são puros fatos históricos e empíricos. querda hegeliana é a de que as “ verdadeiras
E, assim, “por toda parte Hegel cai do seu cadeias” dos homens estão em suas idéias,
espiritualismo político para o mais crasso razão por que os jovens hegelianos pedem
materialismo” . coerentemente aos homens, “como postu­
M arx, portanto, desfere contra Hegel lado moral, que substituam sua consciência
duas acusações principais: atual pela consciência humana, crítica ou
a) antes de mais nada, a de subordinar
egoísta, desembaraçando-se assim de seus
a sociedade civil ao Estado; impedimentos. Essa exigência de modificar
Terceira parte - D o K e g e l icm ism o a o m a r x is m o

a consciência leva a outra exigência, a de in­ valor de toda mercadoria é determinado pela
terpretar diversamente o que existe, ou seja, quantidade de trabalho socialmente neces­
reconhecê-lo através de uma interpretação sário ou do tempo de trabalho socialmente
diferente” . Pois bem, “ apesar de suas frases, necessário para sua produção” . E prossegue:
que, segundo eles, ‘abalam o mundo’, os “ M as onde os economistas burgueses viam
jovens ideólogos hegelianos são os maiores relações entre objetos (troca de uma merca­
conservadores” . Eles combatem contra as doria por outra), M arx descobriu relações
“ frases” e não contra o mundo real do qual entre homens” .
tais “ frases” são o reflexo. Com efeito, “ não Em outros termos, a economia política
é a consciência que determina a vida, mas a vê nas leis que ela evidencia leis eternas,
vida que determina a consciência” . leis imutáveis da natureza. E não percebe
Por tudo isso, também a esquerda he­ que, desse modo, absolutiza e justifica um
geliana vê o mundo de cabeça para baixo; sistema de relações existentes em determi­
o pensamento dos jovens hegelianos, por­ nado estágio da história humana. Ou seja,
tanto, é um pensamento ideológico, como o transforma um fato em lei — em lei eterna.
de Hegel. Escreve M arx: “N ão veio à mente E ideologia.
de nenhum desses filósofos procurar o nexo M arx conclui, a partir do estudo dos
existente entre a filosofia alemã e a realidade economistas clássicos, que à máxima pro­
alemã, o nexo entre sua crítica e seu próprio dução de riqueza corresponde o empobre­
ambiente m aterial” . cimento máximo do operário. Pois bem, a
Conseqüentemente, os jovens hegelia­ economia política nos diz que as coisas são
nos nada tinham de radical. Como já escre­ assim, mas não nos diz por que são assim
vera M arx: “ Ser radical significa colher as — e, portanto, nem se propõe a questão da
coisas pela raiz. M as, para o homem, a raiz sua mudança. Escreve M arx: “ A economia
é o próprio homem” . E a “ libertação” do política parte do fato da propriedade pri­
homem não avança reduzindo “ a filosofia, vada. N ão a explica. Expressa o processo
a teologia, a substância e toda a imundície à material da propriedade privada, o processo
‘auto-consciência’ ” , ou libertando o homem que se dá na realidade, em fórmulas gerais
do domínio dessas frases. e abstratas, que depois faz valer como leis.
“ A libertação é ato histórico e não ato Ela não compreende essas leis, isto é, não
ideal, concretizando-se por condições histó­ mostra como elas derivam da essência da
ricas, pelo estado da indústria, do comércio, propriedade privada” . Para a economia polí­
da agricultura [...]” . Os jovens hegelianos tica “vale [...] como razão última o interesse
mantêm a teoria separada da práxis; M arx do capitalista: isto é, ela supõe aquilo que
as une. deve explicar” .
M arx, ao contrário, procura explicar o
surgimento da propriedade privada e tenta
mostrar que ela é fato e não lei, muito menos
AV-uVv c r í t i c o d o s e c o n o m i s t a s lei eterna. A realidade, diz M arx, é que o ca­
c lá ssic o s pital é “ a propriedade privada dos produtos
do trabalho alheio” . A propriedade privada
não é dado absoluto que se deva pressupor
N a opinião de M arx, a anatomia da em toda argumentação. Ela é muito mais
sociedade civil é fornecida pela economia “ o produto, o resultado e a conseqüência
política. E acerta suas contas com os econo­ necessária do trabalho expropriado
mistas clássicos (Smith, Ricardo, Pecqueur, A propriedade privada é fato que deriva
Say) com os Manuscritos econômico-filo- da alienação do trabalho humano. Como
sóficos, de 1844 (antes de fazê-lo em O na religião, afirma M arx, “ quanto mais o
Capital). homem põe em Deus, menos conserva em si
M arx deve muito ao trabalho desses mesmo. O operário põe sua vida no objeto:
economistas, sobretudo às análises de Ri­ e ela deixa de pertencer a ele, passando a
cardo. Escreve Lênin: “ Adam Smith e David pertencer ao objeto” . E esse objeto, o seu
Ricardo [...] lançaram as bases da teoria produto, “ existe fora dele, independente,
segundo a qual o valor deriva do trabalho. estranho a ele, como que uma potência
M arx continuou a obra deles, deu rigoro­ econômica diante dele; e a vida, por ele
sa base científica e desenvolveu de modo dada ao objeto, agora o confronta, estranha
coerente essa teoria. Ele demonstrou que o e inimiga” .
C ã p ✓ltu lo OÍtãVO - K a ^ l AAa^x e P n e d H c h íS n g e Is . O m a+eH alism o U istó n co -d ialé + ico
275

;V W x , c rítico d o so c ia lism o Aconteceu que, nesse período de tem­


po, M arx estabelecera os traços de fundo
u tó p ico
de sua concepção materialista-dialética da
história. E, a partir dessa perspectiva, devia
considerar Proudhon como moralista utó­
N o Manifesto do partido comunista, pico, incapaz de compreender o movimento
M arx e Engels distinguem seu socialismo da história e mais incapaz ainda de influir
científico dos outros tipos de socialismo, isto sobre ele.
é, do socialismo revolucionário, do socialis­ Antes de mais nada, na opinião de
mo burguês e, particularmente, do socialismo M arx, Proudhon não percebe que a concor­
e comunismo crítico-utópico, cujos expoen­ rência capitalista tem conseqüências inevi­
tes são Babeuf, Saint-Simon, Fourier e Owen. táveis e, em sua tentativa de eliminar seus
Para M arx e Engels, estes últimos têm “ lados m aus” , substitui a análise econômica
méritos indubitáveis: viram “ o antagonis­ pela atitude moralista: mas não se pode tro­
mo das classes e também a eficácia dos car a realidade por desejos e lamentações.
elementos dissolventes no seio da própria E o fato é ainda mais grave se consi­
sociedade dominante” . Além disso, eles “ [...] derarmos que as contradições das diversas
forneceram material muito precioso para a épocas históricas não são simples defeitos,
iluminação dos operários” . elimináveis por obras de bom senso ou pelo
T od av ia, e aí está seu m ais grave senso de justiça: são condições necessárias
defeito, “ não viram nenhuma atividade para o desenvolvimento social e para a
histórica autônoma por parte do proletaria­ passagem de uma forma de sociedade para
d o ” . Conseqüentemente, não descobriram outra forma de sociedade mais madura.
“ nem mesmo as condições materiais para Em conclusão, M arx faz valer contra
a em ancipação do proletariad o” . Desse Proudhon a idéia de que o processo histórico
modo, resvalam para o utopismo: criticam a tem dinâmica própria, determinada pelo
sociedade capitalista, condenam-na e maldi- progresso tecnológico: “ O moinho braçal
zem-na, mas não sabem encontrar caminho vos dará a sociedade com o senhor feudal,
de saída. De fato, acabam por se identificar e o moinho a vapor a sociedade com o ca­
com a conservação. pitalista industrial” .
A esses tipos de socialismo, M arx e E a dinâmica do desenvolvimento his­
Engels contrapõem seu próprio socialismo tórico se realiza por meio da luta de classes.
“ científico” , que teria descoberto a lei de Por isso, o moralismo não adianta. N ão se
desenvolvimento do capitalismo e, portanto, resolvem as contradições sociais eliminando
poderia realmente resolver os seus males. uma das partes em luta, mas somente esti­
A propósito, Engels escreverá: “ Devemos a mulando a luta até o fim.
Karl M arx a concepção materialista da his­ A questão, portanto, não está, como
tória e a revelação do mistério da produção queria Proudhon, em dividir a propriedade
capitalista, através da mais-valia. Ambas entre os trabalhadores, mas em suprimi-la
fizeram do socialismo uma ciência” . completamente através da revolução vito­
riosa da classe operária.

6 c rítico d e 1- V o u d k o n
7 e a c rític a à re lig iã o

Proudhon figura no Manifesto do par­


tido comunista como exemplo típico de so­ Feuerbach sustentara que a teologia é
cialista conservador ou burguês. E a Miséria antropologia. Sobre esse ponto, sobre esse
da filosofia é a sarcástica inversão do título humanismo materialista, M arx está de acor­
da obra de Proudhon Sistema das contradi­ do com Feuerbach.
ções econômicas, ou a filosofia da miséria. Entretanto, na opinião de M arx, Feuer­
E n tretan to, na “ G azeta R en an a ” , bach deteve-se diante do problema principal
M arx julgara positivamente o escrito de e não o resolveu. E o problema é o de enten­
Proudhon O que é a propriedade? der por que o homem cria a religião.
Como é que, no decorrer de poucos A resposta a esse problema, segundo
anos, M arx muda de opinião sobre Prou­ M arx, é a seguinte: os homens alienam seu
dhon? O que aconteceu? ser projetando-o em um Deus imaginário
Terceira parte - T )o k e g e l i a n i s m o a o m a r x is m o

somente quando a existência real na socieda­ encontra um homem que se faz ou se realiza
de de classes impede o desenvolvimento e a transformando ou humanizando a natureza
realização de sua humanidade. Disso deriva no sentido das necessidades, dos conceitos
que, para superar a alienação religiosa, não ou dos projetos e planos do próprio homem,
basta denunciá-la, mas é preciso mudar as juntamente com outros homens. O que
condições de vida que permitem à “ quime­ encontra são homens alienados, ou seja,
ra celeste” surgir e prosperar. Feuerbach, expropriados de seu valor de homens por
portanto, não viu que “ até o ‘sentimento obra da expropriação ou alienação de seu
religioso’ é produto social e que o indivíduo trabalho.
abstrato que ele analisa pertence a determi­ N a realidade, “ a aranha realiza ope­
nada forma social” . rações que se assemelham às do tecelão, e a
É o homem que cria a religião. M as, diz abelha envergonha muitos arquitetos com
M arx, “ o homem é o mundo do homem, o a construção de suas casinhas de cera. M as
Estado, a sociedade. Esse Estado e essa socie­ o que desde o princípio distingue o pior ar­
dade produzem a religião, que é consciência quiteto da melhor abelha é o fato de que ele
invertida do mundo, porque também são construiu a casinha em sua cabeça antes de
um mundo invertido. A religião é a teoria construí-la de cera. N o fim do processo de
invertida deste mundo Assim, torna-se trabalho, emerge um resultado que no início
evidente que “ a luta contra a religião é [...] já estava presente na idéia do trabalhador e
a luta contra aquele mundo do qual a reli­ que, portanto, já estava idealmente presen­
gião é o aroma espiritual” . Existe o mundo te. N ão que ele efetue somente a mudança
fantástico dos deuses porque existe o mundo de forma do elemento natural” , pois aqui
irracional e injusto dos homens. “ A miséria realiza “ o próprio objetivo, que ele conhe­
religiosa é a expressão da miséria real em um ce” , e “ determina como lei o modo do seu
sentido e, em outro, é o protesto contra a mi­ operar” , escreve M arx em O Capital. Para
séria real. A religião é o suspiro da criatura ele, tudo isso significa que o homem pode
oprimida, o sentimento de um mundo sem viver humanamente, isto é, fazer-se enquan­
coração, o espírito de situações em que o to homem, precisamente humanizando a
espírito está ausente. Ela é o ópio do povo” . natureza segundo suas necessidades e suas
M arx não ironiza o fenômeno religio­ idéias, juntamente com os outros homens. O
so, a religião não é para ele a invenção de pa­ trabalho social é antropógeno. E distingue
dres enganadores, mas muito mais obra da o homem dos outros animais: com efeito, o
humanidade sofredora e oprimida, obrigada homem pode transformar a natureza, obje­
a buscar consolação no universo imaginário tivar-se nela e humanizá-la, pode fazer dela
da fé. M as as ilusões não se desvanecem se seu corpo inorgânico.
não eliminarmos as situações que as criam Entretanto, se olharmos para a histó­
e exigem. Escreve M arx nas Teses sobre ria e a sociedade, veremos que o trabalho
Feuerbach: “ Os filósofos limitaram-se a não é mais feito, juntamente com os outros
interpretar o mundo de modos diversos; homens, pela necessidade de apropriação
agora, trata-se de transformá-lo” . da natureza externa, veremos que não é
Substancialmente, a primeira função de mais realizado pela necessidade de obje­
uma filosofia a serviço da história, segundo tivar a própria humanidade, as próprias
M arx, é a de desmascarar a auto-alienação idéias e projetos, na matéria-prima. O que
religiosa, “ mostrando suas formas que nada vemos é que o homem trabalha pela sua
têm de sagradas” . Essa é a razão por que “ a pura subsistência. Baseada na divisão do
crítica do céu se transforma [...] em crítica trabalho, a propriedade privada torna o
da terra, a crítica da religião em crítica do trabalho constritivo. Ao operário aliena-
direito, a crítica da teologia em crítica da se a m atéria-prim a; alienam -se os seus
política” . IftfM T I instrumentos de trabalho; o produto do
trabalho lhe é arrancado; com a divisão do
trabalho, é mutilado em sua criatividade
a lie n a ç ã o d o frab alK o e humanidade. O operário é mercadoria
nas mãos do capital. Isso é a alienação do
trabalho, da qual, segundo M arx, derivam
Mediante Feuerbach, M arx passa da todas as outras formas de alienação, como
crítica do céu à crítica da terra. Aqui, po­ a alienação política (na qual o Estado se
rém, “ em terra firme e redonda” , ele não ergue acima e contra os homens concretos)
Capítulo oitavo - K a rl A W x e T ^ rie d ric k Ê n c je l s . O m a t e r ia lis m o h is + ó r ic o -d ia lé t ic o

ou a religiosa. Para ele, a superação dessa


situação, na qual o homem é transformado
em ser bruto, realiza-se através da luta de \ «A lie n a ç ã o do trabalho. O homem j
classes, que eliminará a propriedade privada í não é alienado; ele vive humanamen- f
e o trabalho alienado. 1 te, quando pode humanizar a natu- j
M as em que consiste, mais exatamen­ I reza, junto com os outros, conforme f
te, a alienação do trabalho? “ Consiste antes | uma idéia sua própria. \
f O que distingue o pior arquiteto ]
de mais nada no fato de que o trabalho é
\ em relação à melhor abelha - assim ;
externo ao operário, isto é, não pertence ao \ lemos em O Capital - é o fato de que
ser dele e, portanto, ele não se afirma em seu | o arquiteto "construiu o casulo em
trabalho, mas se nega, não se sente satisfei­ I sua cabeça antes de construí-lo de
to, mas infeliz, não desenvolve energia física f; cera". ■
e espiritual livre, mas definha seu corpo e j O capitalismo, que se funda sobre
destrói seu espírito. Por isso, somente fora 1 a propriedade privada, faz do ope-
do trabalho é que o operário sente-se senhor I rário uma mercadoria nas mãos do
de si; no trabalho, ele se sente fora de si. proprietário. A alienação do trabalho
\ "consiste antes de tudo no fato de
Sente-se em sua própria casa se não está ; que o trabalho é externo ao operá-
trabalhando; e, se está trabalhando, não ; rio, ou seja, não pertence a seu ser
se sente em sua própria casa. Seu trabalho, í e, portanto, em seu trabalho ele não j
portanto, não é voluntário, mas constrito: ; se afirma, mas se nega, sente-se não ;
é trabalho forçado. N ão constitui, assim, : satisfeito mas infeliz, não desenvolve J
a satisfação de uma necessidade, mas so­ ; livre energia física e espiritual, mas I
mente meio para satisfazer necessidades ? desgasta seu corpo e destrói seu 1
estranhas” . Por tudo isso, o homem sente- i espírito". 1
se livre apenas em suas funções animais
(comer, beber, procriar, ou ainda morar em
casa ou se vestir), séntindo-se como nada
além de animal em' suas funções humanas,
isto é, no trabalho. Q (D m a te ria lism o k istó rico
A alienação do trabalho faz com que “ o
operário se torne tanto mais pobre quanto
maior é a riqueza que produz, quanto mais A teoria da alienação do trabalho in­
sua produção cresce em potência e exten­ troduz à outra teoria fundamental de M arx,
são. O operário torna-se mercadoria tanto que é o materialismo histórico. Como M arx
mais vil quanto maior é a quantidade de escreveu no Prefácio a Para a crítica da
mercadorias que produz” . M as as coisas economia política, o materialismo histórico
não param por aí, já que “ a alienação do consiste na tese segundo a qual “ não é a
operário em seu produto significa não ape­ consciência dos homens que determina o ser
nas que seu trabalho se torna objeto, algo deles, mas, ao contrário, é o ser social deles
que existe exteriormente, mas também que que determina a consciência deles” .
ele existe fora dele, independente dele, es­ Isso leva a especificar a relação existen­
tranho a ele, tomando-se diante dele como te entre estrutura econômica e superestrutu-
que um poder em si mesmo, o que significa ra ideológica. N a Ideologia alemã lemos: “A
que a vida que ele deu ao objeto agora se produção das idéias, das representações, da
lhe contrapõe como hostil e estranha” . Para consciência, em primeiro lugar, está direta­
concluir, a alienação do operário no seu mente entrelaçada à atividade material e às
objeto se expressa no fato de que “ quanto relações materiais dos homens, linguagem
mais o operário produz, menos tem para da vida real. As representações e os pensa­
consumir; quanto maior valor produz, tan­ mentos, bem como o intercâmbio espiritual
to menor valor e menor dignidade possui; dos homens, ainda aparecem aqui como
quanto mais belo é o seu produto, tanto mais emanação direta do seu comportamento
disforme torna-se o operário; quanto mais material. E, do mesmo modo, isso vale para
refinado é o seu objeto, tanto mais bárbaro a produção espiritual, como ela se manifesta
ele se torna; quanto mais forte é o trabalho, na linguagem da política, das leis, da moral,
mais fraco ele fica; quanto mais espiritual da religião etc. de um povo” .
é seu trabalho, mais ele se torna material e Os homens são os produtores de suas
escravo da natureza” . .........
Texto representações, idéias etc., m as, precisa
'T e t C e iv ã p ã T t e - T )o k e g e l i a n i s m o cxo m a r x is m o

de que a consciência ou o espírito seja algo


separado da matéria e da história, e, por
■ M aterialism o histórico. É a teoria outro lado, gera uma classe que vive do
; segundo a qual a estrutura econômica trabalho alheio.
• determina a superestrutura das idéias. Tudo isso para dizer que a história ver­
; "O m oinho m ovido a água vos dará dadeira e fundamental é a dos indivíduos
a sociedade com o senhor feudal, e o reais, de sua ação para transformar a natu­
i moinho a vapor a sociedade com o ca­
I pitalista industrial". Ou ainda: "Não é
reza e de suas condições materiais de vida,
I a consciência dos homens que determi- “tanto das que eles já encontraram existindo
r na seu ser, mas é, ao contrário, seu ser ; como das produzidas por sua própria ação” .
! social quedeterm ina sua consciência", A consciência e as idéias derivam dessa
i Isto escreveu M arx no P re fá cio a história e se entrelaçam com ela: “ a moral, a
l Para a crítica da econom ia política, i religião, a metafísica e qualquer outra forma
l E, por último, "as idéias dominantes ideológica” não são autônomas e propria­
; de uma época - afirm am Marx e En- mente não têm história, pois, quando muda
gels - sempre foram apenas as idéias a base econômica, mudam com ela. Como
i da classe dominante.
escrevem M arx e Engels: “ As idéias domi­
nantes de uma época foram sempre as idéias
da classe dominante” . E essas idéias, preci­
samente, são ideologia, visão da realidade
histórica de cabeça para baixo, justificação
M arx, são “ os homens reais, operantes, — através das leis, da moral, da filosofia etc.
assim como são condicionados por deter­ — da ordem social existente. J_3J
m inado desenvolvimento de suas forças
produtivas
Em poucas palavras: “ O m odo de
produção da vida material condiciona, em 10 O m a te ria lism o d ialé tic o
geral, o processo social, político e espiritual
da vida” . .
A descoberta dessa teoria, isto é, do Escrevem M arx e Engels em A ideolo­
condicionamento da superestrutura pela gia alemã: “ N ós conhecemos apenas uma
estrutura econômica, serviu a M arx como única ciência: a ciência da história” .
“ fio condutor” de seus estudos, que lhe mos­ O materialismo de M arx é materialis­
traram que, “ com a mudança da base eco­ mo histórico. E, como fio condutor para o
nômica, transforma-se mais ou menos rapi­ estudo da história, ele apresenta a teoria pela
damente toda a gigantesca superestrutura” . qual as idéias jurídicas, morais, filosóficas,
Portanto, como escreve M arx, os ho­ religiosas etc. dependem, são condicionadas
mens podem distinguir-se dos animais pela ou são o reflexo e a justificação da estrutura
religião, pela consciência ou pelo que se econômica, de modo que, se a estrutura eco­
quiser, “ mas eles começaram a se distinguir nômica muda, haverá transformação corres­
dos animais quando começaram a produzir pondente na superestrutura ideológica.
seus meios de subsistência” . E aquilo que Existe, portanto, uma relação de deter­
“ os indivíduos são depende [...] das condi­ minação ou, de qualquer modo, de condicio­
ções materiais de sua produção” . namento por parte da estrutura econômica
A essência do homem, portanto, está sobre a superestrutura constituída pelas
em sua atividade produtiva. A primeira ação produções mentais dos homens, isto é, sobre
histórica do homem deve ser vista na criação sua consciência ou, melhor ainda, sobre sua
dos meios adequados para satisfazer suas consciência social.
necessidades vitais. E a satisfação de uma M as o materialismo de M arx é também
necessidade gera outras. Por isso, quando as e sobretudo m aterialism o dialético, que
necessidades aumentam, a família não basta tem suas raízes no sistema hegeliano. N a
mais: criam-se outras relações sociais; então, realidade, M arx reconhece como mérito de
tanto o aumento da produtividade como Hegel o de “ começar por toda parte com a
as necessidades acrescidas e o aumento da oposição das determinações [...] e enfati­
população criam a divisão do trabalho. E a zá-la” . M as, como a alienação não é para
divisão do trabalho em trabalho manual e M arx figura especulativa, e sim a condição
intelectual, por um lado, faz nascer a ilusão histórica em que o homem se encontra em
C ã p í t u l o o itU V O - Ka**l A W x e 1 -H e d n c k E n g e l s . CD m a + e H a lis m o h is t ó H c o -d ia lé + ic o

necessário” desse estado de coisas, “ porque


concebe toda forma ocorrida no fluir do
Marx
■ M a te ria lis m o d ia lé tic o .
movimento e, portanto, também no seu lado
inverte a dialética hegeliana, pondo-a transitório, porque nada pode intimidá-la:
em pé. Hegel aplicava o movimento ela é crítica e revolucionária por essência” .
dialético ao "processo do pensa­ O confronto entre o estado de coisas exis­
mento"; Marx o remete ao mundo tente e sua negação é inevitável — e esse
da história real e concreta - a das confronto se resolverá com a superação do
necessidades econômicas e sociais estado existente de coisas.
- dos homens. M arx inverte a dialética hegeliana,
Toda realidade histórica (governos. “ pondo-a de pé” ; ele a transporta das idéias
Estados etc.) gera em seu seio "con­
tradições" que necessariamente para a história, da mente para os fatos, da
levam à sua superação: a burguesia “ consciência infeliz” para a “ realidade social
nasce de dentro da sociedade feudal, em contradição” . Substancialmente, em sua
e será justamente a burguesia que, opinião, todo momento histórico gera con­
com a Revolução Francesa, despeda­ tradições em seu seio, e estas constituem a
çará os vínculos feudais doravante mola do desenvolvimento histórico. Reivin­
sufocantes e não mais suportáveis; dicando para O Capital o mérito de ser “ a
por sua vez, a burguesia não pode primeira tentativa de aplicação do método
sequer existir sem o proletariado que
a levará à sepultura. dialético à economia política” , M arx susten­
A dialética é a lei de desenvolvimento ta que a dialética é a lei do desenvolvimento
da realidade histórica e exprime a da realidade histórica, e que essa lei expressa
inevitabilidade da passagem da socie­ a inevitabilidade da passagem da sociedade
dade capitalista para a comunista. capitalista para a sociedade com unista,
com o conseqüente fim da exploração e da
alienação. E ^ g lR T s T ê l

relação à propriedade privada dos meios


de produção, da mesma form a também
a dialética — entendida hegelianamente U M O a n t a g o n is m o e n t fe burguesia
como síntese dos contrários — é assumida e p r o le t a r i a d o
por M arx, só que ele a inverte. Com efeito,
escreve ele no Prefácio à segunda edição N o Manifesto do partido comunista,
de O Capital: “ Para Hegel, o processo do M arx e Engels escrevem: “ A história de
pensam ento, que ele transform a até em toda sociedade que existiu até o momen­
sujeito independente, com o nome de idéia, to é a história da luta de classes. Livres
é o demiurgo do real, que, por seu turno, e escravos, patrícios e plebeus, barões e
constitui somente o fenômeno exterior da servos da gleba, membros das corporações
idéia ou processo do pensamento. Para mim, e aprendizes, em suma, opressores e opri­
ao contrário, o elemento ideal nada mais é midos, estiveram continuamente em mútuo
do que o elemento material transferido e contraste e travaram luta ininterrupta, ora
traduzido no cérebro dos homens [...]. A latente, ora aberta, luta que sempre acabou
mistificação à qual subjaz a dialética nas com transformação revolucionária de toda
mãos de Hegel não lhe tira, de modo algum, a sociedade ou com a ruína comum das
o mérito de ter sido o primeiro a expor classes em luta” .
ampla e conscientemente as formas gerais Opressores e oprimidos: eis, portanto,
da própria dialética. Somente que nele ela o que M arx vê no desenrolar da história
se encontra de cabeça para baixo. É preciso humana em sua totalidade. E nossa época, a
invertê-la para descobrir o núcleo racional época da burguesia moderna, não eliminou
dentro da casca mística” . em absoluto o antagonismo das classes; pelo
A ssim , a dialética permite a M arx contrário, simplificou-o, visto que “ toda a
compreender o movimento real da história sociedade vai se dividindo cada vez mais
e, portanto, também o estado existente de em dois grandes campos inimigos, em duas
co isas. M as, sim ultaneam ente, também grandes classes diretamente contrapostas
permite a com preensão do “ crepúsculo uma à outra: burguesia e proletariado” .
Terceira parte - T )o h e g e l i a n i s m o a o m a r x is m o

Em nota à edição inglesa do Manifesto, n u D a s o c ie d a d e b u r g u e s a


de 1888, Engels explica que, por burguesia, à \\e-ge-mon\a d o p r o le t a r i a d o
entende-se a classe dos capitalistas moder­
nos, proprietários dos meios de produção e Entretanto, precisamente pela lei da
empregadores de assalariados. Por proleta­ dialética, como a burguesia é a contradição
riado se entende, ao invés, a classe dos assa­ interna do feudalism o, assim também o
lariados modernos que, não tendo meios de proletariado é a contradição interna da bur­
produção próprios, são obrigados a vender guesia. Com efeito, “ a propriedade privada,
sua força de trabalho para viver. como riqueza, é obrigada a manter-se viva e,
com isso, a manter vivo seu termo antitético,
o proletariado” . Em suma, a burguesia se
n iF i T)a s o c ie d a d e fe u d a l desenvolve e cresce como tal alimentando
à s o c ie d a d e b u rg u e s a em si mesma o proletariado: “ na mesma pro­
porção que se desenvolve a burguesia, isto
Pois bem, a classe burguesa surge no é, o capital, desenvolve-se também o prole­
interior da sociedade feudal, representa tariado, a classe dos operários modernos,
a sua negação e a supera. Os primeiros que só vivem enquanto encontram trabalho,
elementos da burguesia desenvolveram-se e que só encontram trabalho à medida que
a partir dos servos da gleba na Idade M é­ o seu trabalho aumenta o capital” .
dia. Depois, a descoberta da América, a Desse modo, “ as armas que serviram
circunavegação da África e o intercâmbio à burguesia para enterrar o feudalism o
com as colônias deram à empreendedora voltam-se contra a própria burguesia” . As­
classe burguesa e à indústria impulso sem sim como, para o senhor feudal, foi inútil
precedentes e, “ com isso , im prim iram defender os direitos feudais diante daquela
rápido desenvolvimento ao elemento re­ sua criatura que era a burguesia, agora tam­
volucionário dentro da sociedade feudal bém é inútil para a burguesia trabalhar em
em desagregação” . O exercício da indús­ prol da conservação de seus direitos sobre o
tria, feudal ou corporativa, até então em proletariado. A realidade é que “ a burguesia
uso, não foi mais suficiente. Em seu lugar, não apenas fabricou as armas que a levarão
apareceu a m an u fatu ra: “ O segm ento à morte, mas também gerou os homens que
industrial m édio suplantou os m estres empunharão aquelas armas: os operários
artesãos; a divisão do trabalho entre as modernos, os proletários” . Em lugar de
diversas corporações desapareceu diante operários isolados e em concorrência, o
da divisão do trabalho dentro da própria progresso da grande indústria cria uniões de
fábrica” . Nesse meio tempo, cresciam os operários organizados e conscientes de sua
mercados. A manufatura também deixou própria força e missão. E “ quando a teoria
de ser suficiente. Foi “ então que o vapor e ganha as massas, ela se torna violência revo­
as máquinas revolucionaram a produção lucionária” . A burguesia, portanto, produz
industrial. A indústria manufatureira foi seus coveiros. “ A sua decadência e a vitória
substituída pela grande indústria moderna; do proletariado são conjuntamente inevitá­
em lugar do segmento industrial médio, veis” . E a demonstração da inevitabilidade
entraram os milionários da indústria, os da vitória do proletariado e da decadência
chefes de inteiros exércitos industriais, os da burguesia é apresentada por M arx em O
burgueses m odernos” . Assim, a burguesia Capital, cujo fim último é o de “revelar a
moderna “ empurrou para fora do palco lei econômica do movimento da sociedade
todas as classes herdadas da Idade M édia” . moderna” . iiis g i 7
Essa é a razão por que a burguesia “ teve na
história papel sumamente revolucionário” .
Com efeito, quando as relações feudais da 12 “O ( Z a p iia l"
propriedade não corresponderam mais às
forças produtivas que se haviam desenvol­
vido, elas se transform aram em cadeias, FTCT O v a lo r d a s me-^cadorias
que deviam ser e foram quebradas” . Em é d e t e r m in a d o p e lo t r a b a l k o
seu lugar, apareceu a livre concorrência,
com sua correspondente constituição social A análise de O Capital inicia-se com a
e política, “ sob o domínio econômico e análise da mercadoria. Pois bem, a merca­
político da classe dos burgueses” . doria tem duplo valor: valor de uso e valor
Capítulo oitavo - K aA e T“H e d H c k E n g e l s . O m a t e r ia lis m o k is t ó r ic o -d ia lé + ic o

de troca. O valor de uso de uma mercadoria nelas empregado” . Para maior facilidade das
(como, por exemplo, vinte quilos de café, trocas, a troca direta foi substituída pela
uma roupa, um par de óculos, uma arroba moeda. M as, faça-se a troca diretamente
de trigo) baseia-se na qualidade da merca­ ou através da moeda, uma mercadoria não
doria, que, precisamente em função de sua pode ser trocada por outra se o trabalho
qualidade, satisfaz mais a uma necessidade necessário para produzir a primeira não é
que a outra. Entretanto, vemos que, no igual ao trabalho necessário para produzir
mercado, as mercadorias mais diferentes a segunda. Tudo isso mostra que falar da
são trocadas entre si. Vinte quilos de café, mercadoria em si sem atentar para o fato de
por exemplo, são trocados por vinte metros que ela é fruto do trabalho humano acaba
de tecido. M as o que têm em comum duas transformando-a em fetiche. A realidade
mercadorias tão diferentes para que possam é que o intercâmbio de mercadorias não é
ser trocadas? Elas apresentam em comum tanto uma relação entre coisas, mas muito
precisamente o que se chama valor de troca. mais uma relação entre produtores, entre
O valor de troca é algo de idêntico existente homens. E é isso o que a economia clássica
em mercadorias diferentes, que as tornam parece esquecer.
passíveis de troca em dadas proporções mais O valor de troca de uma mercadoria,
do que em outras. M as em que consiste portanto, é dado pelo trabalho social ne­
então o valor de troca de uma mercadoria? cessário para produzi-la. M as o trabalho
Com o diz M arx, esse valor é dado pela (a força de trabalho) também é mercadoria
“ quantidade de trabalho socialmente neces­ que o proprietário da força de trabalho (o
sária” para produzi-la. Em essência, “ como proletário) vende no mercado, em troca do
valores, todas as mercadorias são apenas salário, ao proprietário do capital, isto é, o
medidas determinadas de tempo de trabalho capitalista. E o capitalista paga justamente,
por meio do salário, a mercadoria (força de
trabalho) que adquire: ele a paga segundo
o valor que tal mercadoria tem, valor que
é dado (como qualquer outra mercadoria)
pela quantidade de trabalho necessário para
produzi-la, ou seja, pelo valor das coisas ne­
cessárias para manter em vida o trabalhador
e sua família.

(B J J O c o n c e it o de-"mais-va\ia"

Entretanto, a força de trabalho é mer­


cadoria inteiramente especial, já que é
mercadoria cujo valor próprio de uso tem
a propriedade peculiar de ser fonte de valor.
Em outros termos, aquela mercadoria que
é a força de trabalho não somente tem seu
valor, mas também tem a propriedade de
produzir valor. Com efeito, tendo comprado
a força de trabalho, o possuidor dos meios
de produção tem o direito de consumi-la,
isto é, de obrigá-la a trabalhar, por exemplo,
por doze horas; mas em seis horas (tempo
de trabalho “ necessário” ), o operário cria
produtos que são suficientes para cobrir as
despesas com sua própria manutenção, ao
passo que, nas seis horas restantes (tempo de
trabalho “ suplementar” ), cria um produto
que o capitalista não paga. E esse produ­
Irontispício da primeira edição de to suplementar não pago pelo capitalista
O Capital de Karl Marx, ao operário é aquilo que M arx chama de
publicada em Hamburgo em 1867. mais-valia.
Terceira parte - D o k e g e l i a n i s m o a o m a r x is m o

lado — através da eliminação de operários


por meio de novas máquinas, gera sempre
■ M ais-valia. O de mais-valia é um mais miséria no “ exército de trabalho de
dos conceitos fundamentais da eco­ reserva” .
nomia marxista e um eixo de toda a M arx caracteriza essa tendência his­
construção teórica de Marx. tórica de acum ulação capitalista com as
O capitalista adquire sobre o merca­ seguintes expressões, que se tornaram céle­
do, além do capital constante (maqui- bres: “ Cada capitalista destrói muitos outros
nários, matérias primas etc.), também [...]. Com a diminuição constante do nú­
o capital variavel, isto é, a força-de-
trabalho. “ O valor da força-de-traba- mero de magnatas do capital que usurpam
Iho é o valor dos meios de subsistência e monopolizam todas as vantagens desse
necessários para a conservação do processo de transformação, cresce a massa
possuidor da força-de-trabalho". O da miséria, da pressão, da subjugação, da
uso da força-de-trabalho é o próprio degeneração e da exploração, mas também
trabalho. O produto do trabalho é cresce a revolta da classe operária, que au­
propriedade não do trabalhador, mas menta cada vez mais e é disciplinada, unida
do capitalista. Ora, se o proletário e organizada pelo próprio mecanismo do
trabalha doze horas e em seis horas processo de produção capitalista. O mono­
produz o tanto para cobrir o quanto
o capitalista despende para o salário, pólio do capital torna-se vínculo do modo
o produto das outras seis horas de de produção. A centralização dos meios
trabalho é valor do qual o capitalista de produção e a socialização do trabalho
se apropria. Este valor que passa para alcançam um ponto em que se tornam in­
as mãos do capitalista é a mais-valia. compatíveis com seu envoltório capitalista.
E ele se rompe. Soa então a última hora da
propriedade privada capitalista. Os expro-
priadores são expropriados” .

E U O p roc&sso d a a(ZiAn\L\\ciçao
c a p i t a li s t a 13 O a d v e n to d o c o m u n ism o

Desse modo (depois de ter distingui-


do o capital constante — investido para ijfln ; A p a s s a c fe m n e c e s s á r i a
a aquisição dos meios de produção, como d e u m a s o c i e d a d e c la s s is + a
a maquinaria e as matérias-primas — do pam um a s o c ie d a d e sem c la s s e s
capital variável, investido na aquisição da
força de trabalho), a fórmula geral com que O feudalismo produziu a burguesia. E a
M arx representa o processo de produção burguesia, para existir e desenvolver-se, deve
capitalista é a seguinte: produzir em seu seio quem a levará à morte,
D-M-D’ isto é, o proletariado. Com efeito, o prole­
onde D é o dinheiro despendido para tariado é a antítese da burguesia. Ao longo
a aquisição das mercadorias M (meios de da via-crúcis da dialética, o proletariado
produção e força de trabalho) e D ’ é o di­ leva em seus ombros a cruz da humanidade
nheiro ganho, que, graças à mais-valia que inteira. A aurora da revolução é um dia
não foi paga pelo capitalista, será maior do inevitável. E esse dia, que marcará o triunfo
que D. do proletariado, será o dia da ressurreição
N o processo de produção capitalista, de toda a humanidade.
portanto, o dinheiro produz dinheiro em Com a mesma fatalidade que preside
maior quantidade do que o dinheiro des­ os fenômenos da natureza, diz M arx, a
pendido. produção capitalista gera sua própria ne­
A m ais-valia não é consumida pelo gação. E é assim que se passa da sociedade
capitalista para suas necessidades ou para capitalista para o comunismo. M as essa não
seus caprichos: é reinvestida, para que ele é passagem que se faz através de “ pregações
não sucumba na concorrência. Desse modo, moralizadoras” , que para nada servem: “ A
a acumulação do capital, se, por um lado, classe operária não tem nenhum ideal a
concentra a riqueza nas mãos de número realizar” . Trata-se de passagem necessária
sempre menor de capitalistas, por outro para uma sociedade sem propriedade pri­
Cãpltulo O Ítã V O - Karl yVlarx c F r i e d r i c h é ^ r t g e ls . O m a te rialism o kistó rico -d ialético

vada e, portanto, sem classes, sem divisão N a realidade, M arx pensava que, abo­
do trabalho, sem alienação e, sobretudo, lida a propriedade privada, o poder político
sem Estado. Para M arx, o comunismo é “ o se reduziria gradualmente, até se extinguir,
retorno completo e consciente do homem a porque o poder político nada mais seria que
si mesmo, como homem social, isto é, como a violência organizada de uma classe para a
homem humano” . opressão da outra.
Para dizer a verdade, M arx não adianta
muito como será a nova sociedade, que, de­ IEJF1 y \ d i t a d u r a d o p r o le t a r i a d o
pois da derrubada da sociedade capitalista,
só poderá se realizar por etapas. N o início, Isso, no entanto, não se realizará de ime­
ainda haverá certa desigualdade entre os diato. O que logo teremos será a ditadura do
homens. M as depois, mais tarde, quando proletariado, que usará seu domínio “ para
desaparecer a divisão entre trabalho manual concentrar todos os instrumentos de produ­
e trabalho intelectual, e quando o trabalho ção nas mãos do Estado, isto é, do proleta­
se houver tornado necessidade e não meio riado organizado como classe dominante” .
de vida, então, escreve M arx na Crítica ao Isso, obviamente, poderá ocorrer atra­
program a de Gotha (1875), a nova socie­ vés de intervenções despóticas que, nas
dade “ poderá escrever em sua bandeira: de diversas situações, levarão a procedimentos
cada qual segundo sua capacidade, a cada como os seguintes:
qual segundo suas necessidades” . “ 1) expropriação da propriedade fun­
Para M arx, esse seria o comunismo diária e emprego da renda fundiária para as
autêntico, que, nos Manuscritos de 1844, despesas do Estado;
distinguia do comunismo grosseiro, que não 2) impostos fortemente progressivos;
consiste na abolição da propriedade privada 3) abolição do direito de sucessão;
e sim na atribuição da propriedade privada 4) confisco da propriedade de todos os
ao Estado, o que reduziria todos os homens emigrados e rebeldes;
a proletários e negaria “ a personalidade do 5) concentração do crédito nas mãos
homem” em toda parte. do Estado, mediante um banco nacional

Multidão, de Giuseppe Pellizza de Volpedo (Milão, Pinacoteca de Brera).


Este quadro, que exprime eficazmente a revolta de massa inspirada no socialismo e no marxismo,
pode ser colocado ao lado, pelo tema de fundo e pela tomada pictórica,
do outro e mais famoso, intitulado O Quarto Estado.
Terceira parte TDo h e g e l i a n i s m o a o m a r x is m o

com capital do Estado e monopólio exclu­ 10) instrução pública e gratuita de


sivo; todas as crianças. Eliminação do trabalho
6) concentração de todos os meios de das crianças nas fábricas em sua forma atual.
transporte nas mãos do Estado; Combinação da instrução com a produção
7) multiplicação das fábricas nacionais material e assim por diante” .
e dos instrumentos de produção, desbrava- A realização dessas medidas deveria
mento e melhoria das terras segundo um ser a fase intermediária da transição da
plano coletivo; sociedade burguesa para a sociedade co­
8) obrigação de trabalho igual para munista. Posteriormente, ter-se-ia o “ salto
todos; constituição de exércitos industriais, para a liberdade” ; então, “ à velha sociedade
especialmente para a agricultura; burguesa, com suas classes e antagonismos
9) unificação do exercício da agricultu­ entre as classes, sucede uma associação em
ra e da indústria, medidas adequadas para que o livre desenvolvimento de cada um é
eliminar gradualmente o antagonismo entre condição para o livre desenvolvimento de
cidade e campo; todos” .
185
C ã p l t u l o o i t ã v o - K a r l . M a r x e 'F r ie d r ic h Ê n g e l s . O m a t e r ia lis m o h is t ó r ic o -d ia l é t ic o

MARX
MATERIALISMO E COMUNISMO
A tarefa principal da filosofia a serviço da história
é o de d e s m a s c a r a r a a l i e n a ç ã o d o h o m e m

na religião:--------------------- --------► e, antes ainda, no trabalho:


quando a sociedade classista proíbe o desenvolvimento o trabalho é externo ao operário, é apenas um meio
e a realização de sua humanidade, para satisfazer necessidades estranhas,
os homens alienam seu ser projetando-o em um Deus e o operário torna-se tanto mais pobre
imaginário: “a religião é o ópio do povo” quanto maior é a riqueza que produz

. ___ . ^ _____ .. . . ... ^


A verdadeira filosofia é, por isso, m aterialism o histórico:
“N ão é a consciência dos homens que determina seu ser, mas,
ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência” .
A verdadeira história é a dos indivíduos reais, de sua ação para transformar a natureza
e de suas condições materiais

A ESTRUTURA ecotlôtnicã O materialismo histórico é também


(o modo de produção da vida material) m aterialism o dialético:
condiciona em geral
todo momento histórico gera em seu seio
a contradição entre opressores e oprimidos,
contradição em que o resultado inevitável
é pouco a pouco a
a su per est r u tu r a id e o ló g ic a superação do estado de coisas existente.
(o processo social, político A história de toda sociedade é sempre história
e espiritual da vida: de luta entre classes, e a época atual
direito, moral, filosofia, arte, religião etc.) mostra o antagonismo fundamental entre

a BU R G U ESIA , O PRO LETA RIA DO ,


classe dos modernos capitalistas: surgida de dentro da classe dos assalariados modernos: para viver
sociedade feudal, era sua contradição e a superou. são reduzidos a vender sua força-de-trabalho,
O capitalista mas destinam-se a substituir a burguesia no poder

investe dinheiro (D): —I—L-para a aquisição de mercadoria (M): a força-de-trabalho do proletário,


a) capital constante----- -meios produtivos e matérias-primas vendida ao capitalista em troca do salário,
b) capital variável------ -força-de-trabalho------------ -- - - - - ------contribui para determinar
T - T
o VALOR DE TROCA da mercadoria,------------- • portanto, a MAIS-VALIA:
da qual vem o proveito em dinheiro (D’): isto é, a diferença entre o valor de troca
D - M - D’, de onde D’ > D da mercadoria e o salário pago
pelo capitalista ao operário
[fórmula geral do processo de produção capitalista\

A mais-valia é reinvestida pelo capitalista para Vai crescendo a rebelião


não sucumbir à concorrência, e assim se geram da classe operária, que aumenta sempre mais
a tendência ao monopólio e a centralização e está unida e organizada no sentido
dos meios de produção da socialização do trabalho

Disso tudo derivarão inevitavelmente


a explosão da revolução operária e, depois de uma primeira fase de ditadura do proletariado, o advento do
comunismo:
sociedade sem propriedade privada e, portanto, sem classes e sem Estado
Terceira pãrte - IDo k e g e l i a m s m o a o m a r x i s m o

II. FViedrick Engels


e. a -fxmdação do /rDiamaf/

• Friedrich Engels - por quarenta anos amigo e colaborador de Marx, com o


qual assinou obras importantes como A sagrada família, a Ideologia alemã e o
Manifesto do partido comunista - é o teórico do Diamat, isto é,
O "Diamat": do materialismo d/alético.
uma concepção São três, segundo Engels, as leis da dialética;
dinâmica 1) a lei da conversão da quantidade em qualidade;
de toda 2) a lei da compenetração dos opostos; '
a realidade 3) a lei da negação da negação.
- * § 1-2 Contrariamente às concepções estáticas da realidade, Engels
quer reafirmar uma visão dinâmica da realidade; de toda a rea­
lidade, uma vez que para Engels a dialética é uma "representação exata" do de­
senvolvimento da ciência, da História dos homens e da própria realidade física.

1 y \ d ia lé tic a : sob o estímulo do positivismo, da teoria da


um a
„ „
rep resen tação ex ata
„ evolução e do desenvolvimento da ciência,
estende a interpretação dialética à nature­
d a to ta lid a d e d o real za. Escreve ele: “ A dialética é a forma de
pensamento mais importante para a ciência
natural moderna, porque só ela apresenta a
Friedrich Engels (1820-1895) foi du­
rante quarenta anos amigo e colaborador
de Karl M arx. Juntamente com ele, escreveu
A sagrada família, A ideologia alemã e o
Manifesto do partido comunista. Cuidou
da publicação póstuma de várias obras de
M arx, entre as quais os volumes II e III de O
Capital. Também foi quem aliviou financei­
ramente as dificuldades familiares com que
M arx teve de se defrontar na Inglaterra. Em
1845, escreveu A situação da classe operária
na Inglaterra (livro no qual, com dados de
primeira m ão, descreve o crescimento, o
desenvolvimento e os efeitos da revolução
industrial na Inglaterra). O Antidübring é de
1878, A origem da família, da propriedade
privada e do Estado é de 1884 e Feuerbach
e o fim da filosofia clássica alemã é de 1888.
Em 1925, saiu postumamente sua Dialéti­
ca da natureza, que remonta à década de
1870.
O assim chamado Diamat, isto é, o ma-
íerialismo dialético, é o núcleo fundamental
da visão do mundo do marxismo soviético.
E ele encontra seus textos fundamentais não
tanto em M arx, mas muito mais em Engels.
Com efeito, M arx se limitara a assumir a
dialética com o m étodo para interpretar Friedrich Engels ( 1820-1895)
a história e a sociedade. Engels, ao invés, foi o amigo e o colaborador de Marx.
C ã p ltu lo O itã V O - K a d A 4 a o < e F r i e d n c k (S n g e l s . O m a t e r ia lis m o k is t ó r ic o -d ia lé t ic o

analogia e, com isso, os métodos para com­ primeira negação da propriedade privada
preender os processos de desenvolvimento individual baseada no trabalho pessoal.
que se verificam na natureza, os nexos gerais M as a produção capitalista gera ela pró­
e as passagens de um campo de pesquisa pria, com a inelutabilidade de um processo
para outro” . natural, sua própria negação. E a negação
Para Engels, as leis da dialética são as da negação” .
seguintes: Contra essa pretensão de engaiolar a
1) a lei da conversão da quantidade realidade nas malhas da dialética, Dühring
em qualidade (esta lei afirma que grandes escreveu: “ A híbrida forma nebulosa das
mudanças quantitativas produzem por fim idéias de M arx não surpreenderá, além dis­
mudanças qualitativas, como no caso da so, quem sabe o que se pode arquitetar ou
revolução, preparada por processos lentos que extravagâncias podem surgir quando se
e trabalhosos); toma por base científica a dialética de Hegel.
2) a lei da compenetração dos opostos Para quem ignore esses artifícios, deve-se
(segundo a qual existem na realidade con­ notar expressamente que a primeira negação
tradições objetivas que não podem ser con­ hegeliana é o conceito catequético do pecado
sideradas separadamente uma da outra); original, e a segunda é a de unidade superior
3) a tei da negação da negação (pela que leva à redenção. Ora, não é efetivamen­
qual o processo de evolução se desenvolve te possível fundar a lógica dos fatos com
por meio de negações sucessivas, que dão base nesse joguinho analógico tomado do
origem a con form ações sem pre novas, campo da religião [...]. O senhor M arx fica
como no caso do proletariado, que nega a tranqüilamente no mundo nebuloso da sua
burguesia, produzindo uma sociedade mais propriedade ao mesmo tempo individual e
madura e mais elevada). social e deixa para seus adeptos a missão de
Para Engels, essas leis não seriam idéias resolver esse profundo enigma dialético” .
aprioristas impostas à natureza, e sim “ abs­ A reação de Engels contra Dühring
trações” da história efetiva da natureza e da foi decidida e empenhada. O Antidiihring
história real da ciência. é polêmica “ cujo fim de modo nenhum se
Desse modo Engels toma distância do pode prever” . E, nessa polêmica, Engels
materialismo mecanicista dogmático e estáti­ reafirma que “ a dialética é um processo
co, sustentando que todo o desenvolvimento muito simples, que se realiza em toda parte
da ciência confirma as leis da dialética. Com e diariamente, e que qualquer criança pode
efeito, são leis que não valem somente para a entender, desde que seja liberto do grande
natureza, mas também, obviamente, para a mistério sob o qual o escondia a velha fi­
história social humana e para o pensamento. losofia idealista e sob o qual é de interesse
Para Engels, a dialética é a teoria de todo o de metafísicos pouco aguerridos do tipo do
universo: “A representação exata da totali­ senhor Dühring continuar a escondê-lo” .
dade do mundo, de seu desenvolvimento e A dialética, portanto, está em ação em
do desenvolvimento da humanidade, bem toda parte e continuamente. Ela, diz Engels,
como da imagem desse desenvolvimento real é “ uma lei de desenvolvimento extremamen­
como ele se reflete na cabeça dos homens, só te geral da natureza, da história e do pensa­
pode se efetuar [...] por meio da dialética, mento e, precisamente por isso, tem raio de
levando constantemente em conta as ações ação e importância extremamente grandes; é
recíprocas do nascer e do morrer, das mu­ lei que [...] atua no mundo animal e vegetal,
danças progressivas e regressivas” . na geologia, na matemática, na história, na
filosofia, e à qual, apesar de toda luta e de
toda resistência, também o senhor Dühring,
2 é ^ n g e ls c o n tfa I^ ü k rin g sem sabê-lo, é obrigado a obedecer, a seu
modo [...]. A dialética nada mais é do que
a ciência das leis gerais do movimento e do
Eugen Dühring (1833-1921), o “ se­ desenvolvimento da natureza, da sociedade
nhor Dühring” , divertia-se em ridicularizar e do pensamento” .
M arx, que, no fim do primeiro volume de Engels escreveu a M arx uma carta em
O Capital, escrevera: “ O modo de apro­ que dizia encontrar-se envolvido em uma
priação capitalista que nasce do modo de polêmica cujo fim, precisamente, não era
produção capitalista e, portanto, a p ro ­ possível prever. E tinha perfeitamente razão,
priedade privada capitalista, constituem a porque a controvérsia sobre a validade ou
Terceira parte - X^o k e g e l i a r v i s m o ao m arxism o

não da dialética prosseguiu no seio do mar­ gerais, compartilham o juízo de Bertrand


xismo e fora dele até nossos dias, estando Russell, para quem “ a dialética é uma das
hoje mais viva do que nunca, sobretudo crenças mais fantásticas que M arx recolheu
entre os epistem ólogos, que, em linhas de Hegel” . ETOT51

III. P V o b le m a s a b e r t o s

• O materialismo histórico (o aspecto econômico dos eventos histórico-sociais


é sempre determinante) é uma teoria dogmática não aceitável. Como foi relevado,
entre outros, por E. Bernstein, M. Weber e, mais próximo a nós,
Críticas por K. Popper, nem sempre o fator econômico é determinante
filosóficas sobre os fatos histórico-sociais; e não é raro o caso de que uma
e econômicas idéia científica, um ideal ético ou uma fé religiosa influam de
ao marxismo modo decisivo sobre a própria economia.
- » § 1-3 Não é verdade, portanto, que a mudança da estrutura econômi­
ca envolve necessariamente também a mudança do mundo das
idéias: uma religião como a cristã atravessou as mais diversas estruturas econômicas;
e o mesmo vale para a arte.
• Também o materialismo dialético se tornou objeto de críticas devastado­
ras, ao menos porque nele está implícita a confusão entre contradição lógica e
contrastes de interesses, lutas de classe. E tudo isso prescindindo do fato de que
os economistas - pensemos nos marginalistas - rejeitaram como completamente
inválida a tese - fundamental para toda a construção teórica marxista - do "valor-
trabalho".

O r ític a s a o m a te ria lism o econômico sobre os fatos humanos não é


H istó ric o e d ia lé t ic o
invenção de um sonhador.
Entretanto, a teoria do materialismo
histórico, como foi formulada por M arx,
não é aceitável. E não é aceitável porque
“ Para mim, será bem-vindo qualquer absolutiza e metafisiciza um fato empírico.
juízo de crítica científica” , escrevia M arx no Em outros termos, sustentar que a ordem
Prefácio à primeira edição de O Capital. Por dos fatos econômicos é a ordem dos fatos
isso, fazem mal os que, ao invés de estudar históricos é teoria metafísica e não teoria
e criticar M arx, essencialmente imprecam científica, ao passo que é cientificamente
contra ele, mas também fazem mal os mar­ correto enfrentar a explicação dos aconte­
xistas que, ao invés de tratar os trabalhos cimentos históricos com um olho sempre
fundamentais de M arx como textos cientí­ voltado para o aspecto ou fator econômico
ficos, os consideram como textos religiosos, deles para ver se, como, quando e em que
que devem ser venerados, proclam ados e medida esse fator econômico incide even­
defendidos a todo custo. Muitos marxistas, tualmente sobre a-sua ocorrência. E não está
ainda em nossos dias, comportam-se como excluído que um elemento dos que M arx
os aristotélicos no tempo de Galileu. chama de superestruturais (por exemplo,
De qualquer modo, pode-se afirmar de uma grande religião) possa influir de modo
imediato que, depois de Marx, é impossível o determinante sobre a economia, como de­
retorno à ciência social pré-marxista. M arx monstrou M ax Weber.
deu à humanidade olhos novos para que ela E bem verdade que Engels diria que a
pudesse ler de modo diferente o mundo e a acentuação da influência da estrutura sobre
história dos homens. A influência do fator a superestrutura foi questão polêmica contra
Capítulo oitavo - K a rl ,M a r x e F rie d ric h E n g e l s . O m a te rialism o h istórico-d ialético

wirb ©en btn UnUrjtidjntNM *itig«laòtn , bem

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b»ijuo»l)iM n, w tldjir am 5,, E., T. unb 1 , «w ithuU aud) 9. 3 » * i 1 8 9 * im S u l t
„1« ka ètri f ■}■)■'* MMm, IT. • rtfr Ktiftic SI. u # » wirt.
Di* $ufamiM*hinft »S *a f # n m » d i l i t a rmWmfm uni Carta-convite enviada a Engels,
ift tarum èfr Zaitltt mtl f t f t * •K tM iftiaa Mfttt llttU fffla ft* U*l>trtr«4 B« 4 fefftito*
ifl então residente em l.ondres,
3m fflêi jtfí- para o congresso do partido social-de-
t»W 4N«k«r»f/r; •>«**% 9<«tfr, 8»#**, >#%«*ni <&■»!; mocrata austríaco,
«rtartái «naM*, convocado em Viena de 5 a 9 de junho
#**»{•«•» tDW
«, |«^«a IX*»
de 1892.

adversários que negavam essa influência. E R e l ig iã o e e sté tic a :


é verdade que ele escreve que nem ele e nem d u a s b r e c k a s n o in te rio r
M arx tiveram tempo e ocasião “ para dar o
justo relevo aos outros momentos partícipes d a c o n c e p ç ã o m a rx ista
da ação recíproca” . Entretanto, também é
verdade que foi Engels quem afirmou que,
“ consciente ou inconscientemente, em últi­ Também não podemos aceitar a teoria
ma análise, os homens extraem suas con­ marxista segundo a qual “ a religião é o ópio
cepções morais das relações práticas sobre do povo” . Essa teoria é discurso de um fiel
as quais se funda sua condição de classe, de outra religião. Com efeito, o marxismo
das relações econômicas em que produzem clássico confundiu um tipo de organização
e intercambiam” . Assim, podemos ver que eclesiástica histórica com a religião em si e
a fundam entalidade, a prim ariedade do com todas as religiões. Assim, absolutizou
fator econômico sobre a história cultural um fato histórico. A consciência religiosa
dos homens, não é negada sequer nessas não é reacionária em si mesma; ela não
considerações mais flexíveis de Engels. A afasta por si mesma os olhos dos homens
realidade é que, se admitíssemos a recipro­ desta terra; ela não é em si mesma o ópio do
cidade da influência entre fator “ estrutural” povo. Foi o próprio Togliatti, entre tantos
e fator “ superestrutural” , isso anularia uma outros marxistas, como Roger Garaudy, que
teoria que tipifica o marxismo enquanto afirmou e insistiu que “ a aspiração a uma
tal, equiparando-se a teoria de M arx à de sociedade socialista não só pode abrir cami­
um M ax Weber. E isso um marxista jamais nho em homens que têm uma fé religiosa,
admitirá. mas tal aspiração pode também encontrar
Consideração análoga deve ser feita no estímulo na própria consciência religiosa,
que se refere à teoria dialética da história. A posta diante dos dramáticos problemas do
dialética (e aqui não devemos temer nenhum mundo contemporâneo” .
desmentido dos fatos) não é teoria científica. Além da religião, também a estética
Ela é filosofia da história e, enquanto tal, é brecha que sempre se reabre (desde os
simples fé. Uma fé que laiciza a fé cristã na escritos de M arx) no seio do marxismo.
Providência. E devemos notar também que Com efeito, como se explica o fato de que
a chamada contradição dialética não tem produções artísticas que deveriam repre­
nada a ver com a contradição lógica (p e sentar a superestrutura de estruturas já
não-p). A contradição dialética é contraste inexistentes continuem a despertar nosso
de interesses, oposição que pode e deve ser interesse? M as não é só isso. N a verdade, a
descrita e explicada por teorias não contra­ teoria marxista fazia previsões: previq que
ditórias. o capitalismo teria levado à miséria sempre
Terceira parte - D o K e g e l ia n is m o a o m a r x is m o

mais crescente da classe operária; previu que tidade de trabalho exigida para produzi-las,
haveria revolução que levaria ao socialismo; mas muito mais sua escassez em relação
previu que isso aconteceria, antes que em à demanda global. Em outras palavras, o
qualquer outro lugar, em países industrial­ valor não se cria dentro dos muros de uma
mente avançados; e previu que a evolução fábrica, mas se estabelece no mercado. Toda
técnica dos “ meios de produção” levaria ao mercadoria tem, por assim dizer, um valor
desenvolvimento social, político e ideológi­ original, que é o valor-custo, e um valor
co, e não ao contrário. M as essas previsões final, que é o valor-preço. E o mercado que
não ocorreram. E os marxistas tiveram de determina este último, ou seja, o conjunto
readaptar continuamente a teoria por meio da demanda dos consumidores que valoriza
de hipóteses ad hoc, ao invés de mudá-la. as mercadorias. E essa demanda nasce das
Assim, deslizou-se para o dogmatismo: o necessidades, dos gostos e das opções in­
marxismo infringiu as normas do método dividuais culturalmente plasmadas. M arx
científico. Os m arxistas, como disse Karl ignora todos esses elementos para manter
Popper, interpretaram diversamente M arx: firme sua tese de fundo, isto é, de que só o
trata-se de mudá-lo. trabalho do operariado valoriza as mercado­
Uma filosofia da práxis, como é o rias. Se ele tivesse razão, então todos aqueles
marxismo, não pode deixar de atentar para bens — como a terra, o ouro etc. — que não
os resultados práticos das políticas que requerem trabalho para serem produzidos
se consideram m arxistas. As cadeias que não deveriam ter nenhum valor. O que é
deviam ser quebradas tornaram-se sempre manifestamente absurdo. Como também é
mais estreitas e densas. A máquina estatal absurdo considerar estranhos à valorização
que devia desaparecer agigantou-se sempre das mercadorias os que as idealizaram, e os
mais, e a liberdade do indivíduo freqüente­ que organizaram e dirigiram a produção e
mente foi esmagada. A abolição das classes sua distribuição.
e do Estado foi adiada para futuro impreciso Estas e outras considerações críticas
e indeterminável, mostrando claramente o explicam a radical inadequação da teoria
caráter utópico das idéias de M arx sobre o do valor-trabalho, hoje reconhecida pelos
futuro da sociedade. próprios economistas marxistas. Isso, po­
rém, não é tudo. A teoria de M arx também
tem conseqüências práticas claram ente
... O s e c o n o m i s t a s
autoritárias. Com efeito, só num sistema
econômico em que a autoridade central — o
c o n t r a A A arx Estado produtor e distribuidor de todos os
bens e serviços — obriga os consumidores a
comprar as mercadorias segundo preços ri­
M as as críticas vão além, pelo fato de gorosamente correspondentes ao custo social
que a teoria econômica de M arx — diver­ de produção é que a teoria do valor-trabalho
samente da teoria sociológica, que influen­ seria de certo modo válida. Os consumidores
ciou fortemente as ciências histórico-sociais não teriam nenhuma possibilidade de escolha
— foi considerada pela grande maioria dos e, portanto, o valor das mercadorias não de­
economistas como instrumento quase inútil penderia de sua demanda, mas sim do preço
e, além disso, carregado de elementos meta­ previamente estabelecido pela burocracia es­
físicos e teológicos. tatal. Ter-se-ia então aquilo que Agnes Heller
Ela não está em condições de explicar chamou de “ ditadura sobre as necessidades” ,
o essencial, isto é, o comportamento dos que é justamente o regime político-econô­
preços. Isso ocorre porque o que determina mico vigente nos países onde o marxismo
o valor das mercadorias não é tanto a quan­ tornou-se filosofia obrigatória de Estado.
191
Cãpltulo O Ítã V O - K arl JSAaryc e F r ie d r ic k ^ g e l s . O m a te r ia lism o K is+órico-d ialético ™

ilusória. A exigência de abandonar as ilusões


Marx sobre a própria condição é a exigência de re­
nunciar a uma condição que tem necessidade
da ilusão. Fl crítico da religião é, portanto, em
germe, a crítica do vale de lágrimas, do qual a
religião é o nimbo.
A crítica não tirou uma por uma as flores
fl religião é o ópio do povo imaginárias da corrente para que o homem
carregue aquela corrente privada de ilusão e
"fí religião é o suspiro do criatura oprimi­ de
colha
conforto, mas para que se livre da corrente e
a flor viva. A crítica da religião desengana
da, o coração de um mundo desapiedado, o homem, a fim de que pense, aja, plasme sua
assim como o espírito de uma condição realidade como um homem desencantado, che­
privada de espírito''. gado à posse do juízo, a fim de que se movo em
torno de si mesmo e, portanto, em torno de seu
verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusó­
Poro o Alemanha a crítica da religião está, rio, que se move ao redor do homem enquanto
em substância, terminada, e a crítica da religião ele não se mover em torno de si mesmo.
é o pressuposto de toda crítica. A torefa da história, portanto, depois que
A existência profana do erro está com­ desapareceu o olém da verdade, é estabelecer
prometida, desde quando foi refutada sua a verdade do aquém. A tarefa da filosofia, que
sacra oratio pro arís et focis. O homem, que na está a serviço da história, depois que foi des­
realidade fantástica do céu, onde procurava mascarada a figura sagrada da auto-alienação
um super-homem, encontrou apenas o reflexo humana, é em primeiro lugar desmascarar o
dè si mesmo, não será mais propenso a encon­ auto-alienoção em suas figuras profanas, fí
trar apenas a aparência de si, apenas o não crítica do céu se converte, portanto, na crítica da
homem, lá onde procura e deve procurar sua terra-, a crítica da religião, no crítica do direito; a
verdadeira realidade. crítica da teologia, na crítica do política.
O fundamento da crítica irreligiosa é este: K. Mane,
o homem faz a religião, a religião não faz o ho­ Poro a crítico do filosofia do direito de Hegel,
mem. £ precisamente a religião é a consciência em K. Marx - F. êngels, Sobre a religião.
de si e o sentimento de si do homem, que ou
ainda não adquiriu ou repentinamente perdeu
a si mesmo. Mas o homem não é um ser abs­
trato, entocado foro do mundo. O homem é o 2 A alienação do trabalho
mundo do homem, o fetado, a sociedade. O
•Estado, a sociedade produzem a religião, uma
consciência do mundo invertida, porque eles Fl alienação do trabalho consiste nisto:
são um mundo invertido. A religião é a teoria "o trabalho permanece exterior ao operário,
geral deste mundo, seu compêndio enciclopé­ isto é, não pertence a seu ser, e o operário,
dico, sua lógica em forma popular, seu point portanto, não se ofirma em seu trabalho,
dhonneur espiritualista, seu entusiasmo, sua e sim se nega, não se sente satisfeito,
sanção moral, seu completamento solene, sua mas infeliz; não desenvolve nenhuma livre
razão geral de justificação e de confronto, é a energia física e espiritual, mas mortifico seu
realização fantástica da essência humana, por­ corpo e orruína seu espírito [...], seu trabalho
que a essência humana não tem a verdadeira não é voluntário, mas forçado, é trabalho
realidade. A luta contra a religião é, portanto, constritivo".
mediatamente, a luta contra aquele mundo do
qual a religião é a quintessência espiritual.
A miséria religiosa é, de um lado, a ex­ O operário torna-se tanto mais pobre
pressão da miséria real e, do outro, o protesto quanto mais produz riqueza, quanto mais sua
contra a miséria real. A religião é o suspiro produção cresce em potência e extensão. O
da criatura oprimida, o coração de um mundo operário torna-se uma mercadoria tanto mais
desapiedado, assim como o espírito de uma barata quanto mais cria mercadorias. Com a va-
condição privada de espírito. 0a é o ópio do loração do mundo dos coisas cresce em relação
povo. direta a desvalorização do mundo dos homens.
A verdadeira felicidade do povo exige O trabalho não produz apenas mercadorias: ele
a eliminação da religião enquanto felicidade produz a si próprio e ao trabalhador como uma
Terceira parte - T )o k e g e l i a n i s m o a o m a r x is m o

mercadoria, precisamente na proporção em que se realiza, no qual ele age, do qual e por meio
ele produz mercadorias em geral. do qual ele produz.
Cste fato exprime nada mais que isto: o Todavia, assim como a natureza fornece
objeto, produzido pelo trabalho, seu produto, o alimento do trabalho, no sentido de que o
surge diante do trabalho como um ente estra­ trabalho não pode subsistir sem objetos sobre
nho, como uma potência independente de quem os quais exercitar-se, ela também fornece por
o produz. O produto do trabalho é o trabalho outro lado os alimentos em sentido estrito, isto
que se fixou em um objeto, que se tornou obje­ é, os meios para a subsistência física do próprio
tivo: é a objetivaçõo do trabalho. Fl realização operário.
do trabalho é sua objetivaçõo. Csta realização Portanto, quanto mais o operário se apro­
do trabalho aparece, na condição descrita pela pria com seu trabalho do mundo externo, da
economia política, como privação do operário, e natureza sensível, tanto mais se priva de alimen­
a objetivaçõo aparece como perda e escravidão to, no duplo sentido: pois, em primeiro lugar, o
do objeto, e a apropriação como alienação, mundo exterior sensível deixa sempre mais de
como expropríação. ser um objeto que pertence a seu trabalho, um
fl realização do trabalho torna evidente alimento de seu trabalho e, em segundo lugar,
tal privação que o operário é despojado até a esse mundo sensível deixa sempre mais de ser
morte pela fome. fl objetivaçõo torna evidente alimento no sentido imediato de meio para a
tal perda do objeto que o operário é roubado subsistência física do operário.
não só dos objetos mais necessários à vida, Sob este duplo aspecto, portanto, o
mas também dos objetos mais necessários ao operário torna-se um escravo de seu objeto:
trabalho. O próprio trabalho se torna um objeto primeiramente, enquanto ele recebe um objeto
do qual ele pode apropriar-se apenas com o de trabalho, isto é, trabalho, e secundariamente
esforço maior e as interrupções mais irregula­ enquanto recebe os meios de subsistência.
res. fl apropriação do objeto produzido torna Primeiramente, portanto, enquanto pode existir
evidente tal estranhamento, que quanto mais como trabalhador, secundariamente enquanto
objetos o operário produz menos pode possuir, pode existir como sujeito físico. O ápice dessa
e tanto mais cai sob o domínio de seu produto, escravidão é que ele apenas enquanto é mais
do capital. que operário pode conservar-se como sujeito
Todas estas conseqüências se encontram físico, e que apenas enquanto é mais que su­
na determinação: o operário está em relação jeito físico ele é operário.
com o produto de seu trabalho como com um ob­ (fl alienação do operário em seu objeto se
jeto estranho. Pois é claro, por este pressuposto, exprime, segundo as leis da economia política,
que quanto mais o operário trabalha tanto mais de modo que, quanto mais o operário produz,
adquire potência o mundo estranho, objetivo, tanto menos tem para consumir, e quanto mais
que ele cria diante de si, e tanto mais pobre cria valores tanto mais ele é sem valor e sem
se torna ele próprio, seu mundo interior, e tanto dignidade, e quanto mais seu produto tem for­
menos possui. Como na religião. Quanto mais ma tanto mais o operário é disforme, e quanto
o homem põe em Deus, menos conserva em si mais é refinado seu objeto tanto mais é bar­
mesmo. O operário põe no objeto sua vida, e barizado o operário, e quanto mais é potente
esta nõo pertence mais a ele, mas ao objeto. o trabalho tanto mais impotente torna-se o
Quanto maior for sua faculdade, mais o operário operário, e quanto mais é espiritualmente rico
se torna sem objeto, flquilo que é o produto de o trabalho, tanto mais o operário se tornou sem
seu trabalho, ele não o é. Quanto maior, por­ espírito e escravo da natureza).
tanto, este produto, tonto menor é ele próprio, fí economia política oculta a alienação que
fl expropríação do operário em seu produto não existe na essência do trabalho, por isto ela não
tem apenas o significado de que seu trabalho considera a relação imediata entre o horário [o
torna-se um objeto, uma existência externa, trabalho] 0 a produção. Certamente o trabalho
mas que ele existe fora dele, independente, produz maravilhas para os ricos, mas produz o
estranho a ele, como uma potência indepen­ despojamento do op0rário. Produz palácios, mas
dente diante dele, e que a vida, por ele dada cavernas para o op0rário. Produz beleza, mas de­
ao objeto, o confronta como estranha e inimiga. formidade para o operário. Cie substitui o traba­
Consideremos mois de perto a objetiva­ lho com as máquinas, mas repele uma parte dos
çõo, a produção do operário, e nela a aliena­ trabalhadores a um trabalho bárbaro, e reduz a
ção, a perda do objeto de seu produto. máquinas a outro parte. Produz espiritualidade, e
O operário não pode fazer nada sem a produz a imbecilidade, o cretinismo do operário.
natureza, sem o mundo externo sensível, fl fí relação imediata do trabalho com seus
natureza é o material sobre o qual seu trabalho produtos é a relação do operário com os obje-
, . ............................. 193
Capítulo oitavo ~ K a r l ^ 4 a r ;< e F -r ie d r ic k S t t g e I s . O m a t e r ia lis m o k i s t ó r ic o -d ia lé t ic o --------

tos de sua produção, fl relação do abastado diabólica, também a atividade do trabalhador


com os objetos do produção e com elo próprio não é atividade espontânea. Cia pertence o
é apenas uma conseqüência desta primeiro outro, é o perda do próprio trabalhador.
relação. C é sua confirmação. Consideraremos O resultado é que, a este ponto, o ho­
mais torde esse outro lodo. ' mem (o trabalhador) sente-se livre apenas
Se nos perguntarmos, portanto, qual serio em suas funções animalescas, em comer, em
a relação essencial que é o trabalho, nos per­ beber e em geror, muito mais do que em ter
guntaríamos sobre a relação do operário com uma cosa, em seu cuidado corporal etc., e em
a produção. suas funções humanas sente-se apenas mais
Até agora consideramos o alienação, o um animal. O bestial torna-se o humano e o
expropríação do operário apenas segundo humano, bestial.
um lado: o de sua relação com os produtos de O comer, o beber, o gerar etc., são,
seu trabalho. Mas a alienação não se mostra também, genuínas funções humonas, mas são
apenas no resultado, e sim tombém no ato da bestiais na abstração que as separa do círculo
produção, dentro do própria atividade produti­ restante da atividade humana e as torna esco­
va. Como poderia o operário confrontar-se como pos últimos e únicos.
um estranho com o produto de sua atividade, Consideramos de dois lados o ato de alie­
se ele não se estranhou em relação o si pró­ nação do atividade humana prática, do trabalho.
prio no oto da própria produção? O produto 1) A relação do operário com o produto
não é mais que o resumo da otividade, da do trabalho como objeto estranho e que tem
produção. Se, portanto, o produto do trabalho domínio sobre ele. Relação que é contempora­
é o expropríação, a própria produção deve neamente relação com o mundo sensível, com
ser expropríação em oto, ou expropríação da os objetos naturais, como mundo que está em
otividade, ou atividade d© expropríação. Na sua frente como estranho, inimigo.
alienação do objeto do trabalho se resume 2) fl relação do operário com o ato de
apenas o alienação, o expropríação da própria produção no trabalho, fieloção que é o relação
atividade do trabalho. do operário com sua própria atividade como
Cm que consiste então a expropríação do estranha, não suo, a atividade como passivi­
trabalho? dade, o forço que é fraqueza, a geração que é
. Primeiramente nisto: o trabalho permane­ impotência, a energia física e espiritual própria
ce exterior ao operário, isto é, não pertence o do operário, suo vido pessoal - o que é o vida
seu ser, e o operário, portanto, não se afirmo
em seu trabalho, mos se nega; não se sente
satisfeito, mas infeliz; não desenvolve nenhuma
energia física e espiritual livre, mas mortifica
seu corpo e arruina seu espírito. O operário
sente-se, portanto, consigo mesmo apenas foro
do trabalho, e fora de si no trabalho. Como em
suo casa está apenas quando não trabalha e
quando não trabalha não está. Seu trabalho
não é voluntário, mas forçado, é trabalho cons-
tritivo. O trabalho não é, portanto, a satisfação
de uma necessidade, mas apenas um meio
para satisfazer necessidades externas a ele.
Sua estranheza aparece no foto de que, logo
que deixa de existir umo constrição física ou de
outro gênero, o trabalho é afastado como uma
peste. O trabalho externo, o trabalho em que
o homem se expropria, é um trabalho-sacrifíáo,
um trabalho-mortificação. Finalmente, a exterio­
ridade do trabalho poro o trabalhador torna-se
evidente nisto: o trabalho não é uma coisa
dele, mas de outro; não lhe pertence, e neste
ele não pertence a si, mas a outro. Assim como
na religião o atividade espontânea da fantasia
humana, do cérebro humano e do coração hu­
mano, opero independentemente do indivíduo, Frontispício da edição integral dos ensaibs de Marx,
isto é, como uma atividade estranha, divina ou publicada em Colônia em 18 5 1. ’ 1 -
Terceira parte - D o k e g e l i a n i s m o a o m a r x is m o

se não atividade - como uma atividade dirigida o que acontece na filosofia alemã, que desce
contra ele mesmo, e independente dele, não do céu para a terra, aqui se sobe da terra até o
pertencente a ele. fl outo-alienoçõo; como céu. Isto é, não se parte daquilo que os homens
víamos acima, a alienação da coisa. dizem, imaginam, representam, nem daquilo que
K. Marx, se diz, se pensa, se imagina, se representa que
Obras filosóficas da juventude. sejam, para chegar daqui até os homens vivos:
mas parte-se dos homens realmente operantes
e sobre a base do processo real de sua vida
O materialismo histórico se desdobra também o desenvolvimento dos
reflexos e dos ecos ideológicos deste processo
de vida. Também as imagens nebulosas que se
"Não é a consciência que determina a formam no cérebro do homem são sublimações
vida, mas a vida que determino a consciência". necessárias do processo material de sua vida,
empiricamente constatável e ligado a pressupos­
tos materiais. Por conseguinte, a moral, a reli­
O Pato, portanto, é o seguinte: indivíduos gião, a metafísica e toda outra forma ideológica,
determinados que desenvolvem uma ativida­ e as formas de consciência que a elas corres­
de produtiva segundo um modo determinado pondem, não conservam mais que a aparência
entram nestas determinadas relações sociais da autonomia. Cias não têm história, não têm
e políticas. Cm todo caso particular a obser­ desenvolvimento, mas os homens que desen­
vação empírica deve mostrar empiricamente volvem sua produção material e suas relações
e sem nenhuma mistiPicação e especulação a materiais transformam, junto com esta realidade
ligação entre a organização social e política e deles, também seu pensamento e os produtos
a produção, fl organização social e o Cstado de seu pensamento. Não é a consciência que
resultam constantemente do processo da vida determina a vida, mas a vida que determina a
de indivíduos determinados: mas, destes in­ consciência. No primeiro modo de julgar parte-se
divíduos, não como eles podem aparecer na da consciência como indivíduo vivo; no segundo
representação própria ou de outrem, e sim como modo, que corresponde à vida real, parte-se dos
são realmente, isto é, como operam e produzem próprios indivíduos reais vivos e considera-se a
materialmente e, portanto, agem entre limites, consciência apenas como a consciência deles.
pressupostos e condições materiais determina­ Cste modo de julgar não é privado de pres­
das e independentes de seu arbítrio. supostos. Cie parte de pressupostos reais e não
fl produção das idéias, das represen­ se afasta deles por um instante sequer. Seus
tações, da consciência, é em primeiro lugar pressupostos são os homens, não de algum
diretamente entrelaçada com a atividade ma­ modo isolados e fixados fantasticamente, mas
terial e com as relações materiais dos homens, em seu processo de desenvolvimento, real e em­
linguagem da vida real. As representações e piricamente contestável, sob condições determi­
os pensamentos, o intercâmbio espiritual dos nadas. Tão logo é representado este processo
homens aparecem aqui ainda como emanação de vida ativo, a história deixa de ser uma coleta
direta de seu comportamento material. Isso vale de fatos mortos, como nos empiristos que são
do mesmo modo para a produção espiritual, tal também eles abstratos, ou uma ação imaginária
como ela se manifesta na linguagem da política, de sujeitos imaginários, como nos idealistas.
das leis, da moral, da religião, da metafísica Onde cessa a especulação, na vida real,
etc. de um povo. São os homens os produtores começa, portanto, a ciência real e positiva, a
de suas representações, idéias etc., mas os representação da atividade prática, do processo
homens reais, operantes, assim como são con­ prático de desenvolvimento dos homens. Caem
dicionados por determinado desenvolvimento as frases sobre a consciência e em seu lugar
de suas Porças produtivas e pelas relações que deve entrar o saber real. '
a elas correspondem até suas formações mais Com a representação da realidade a
amplas. A consciência jamais pode ser alguma filosofia autônoma perde seus meios de exis­
coisa de diferente do ser consciente, e o ser tência. Cm seu lugar pode quando muito entrar
dos homens é o processo real de sua vida. Se uma síntese dos resultados mais gerais, que é
em toda ideologia os homens e suas relações possível abstrair do exame do desenvolvimento
aparecem invertidos como em uma câmera escu­ histórico dos homens.
ra, este fenômeno derivo do processo histórico Cm si, separadas da história real, tais
de sua vida, justamente como a inversão dos abstrações não têm absolutamente valor. Cias
objetos sobre a retina deriva de seu imediato podem servir apenas para facilitar a ordenação
processo físico. Exatamente ao oposto de tudo do material histórico, paro indicar a sucessão
195
C a p ítu lo o ita v o - K a rl M a r x e F r ie d r ic h O m a + e r ia lr s m o h is t ó r ic o -d ic t lé fic o ______

de seus estratos particulares. Mas não dão, de


fato, como a filosofia, uma receita ou um esque­ 5 fl estrutura econômica
ma sobre os quais se possam recortar e sistema­ determina
tizar as épocas históricas, fl dificuldade começa,
ao contrário, quando nos entregamos ao estudo a superestrutura ideológica
e à ordenação do material, tanto de uma época
passada como do presente, para realmente "O moinho braça! vos dará a sociedade
expô-lo. fl superação destas dificuldades é feudal, e o moinho a vapor a sociedade
condicionada por pressupostos que não podem capitalista".
realmente ser enunciados nesta sede, mas que
resultam apenas do estudo do processo real da
vida e da ação dos indivíduos de cada época. fls relações sociais estão intimamente
K. Mane - F. Cngels, ligadas às forças produtivas. Apoderando-se de
fl ideologia alemã.
novas forças produtivas, os homens mudam seu
modo de produção e, mudondo o modo de produ­
ção, a maneira de gonhar a vido, mudam todas os
Q fls idéias suas relações sociais. O moinho braçal vos dará
da classe dominante a sociedade com o senhor feudal, e o moinho a
vapor a sociedade com o capitalista industrial.
são sempre Os mesmos homens, que estabelecem as
as idéias dominantes relações sociais conforme sua produtividade ma­
terial, produzem também os princípios, as idéias,
as categorias, conforme suas relações sociais.
"fl classe que dispõe dos mèios de pro­ Desse modo, tais idéias e categorias são
dução material dispõe, com isso, ao mesmo tão pouco eternas quanto as relações que elas
tempo, dos meios da produção intelectual". exprimem. São produtos históricos e transitórios.
K Mane,
fls idéias da classe dominante são em Miséria da filosofia.
toda época as idéias dominantes; isto é, a
classe que é a potência material dominante da
sociedade é ao mesmo tempo sua potência
espiritual dominante. Fl classe que dispõe dos 6 O materialismo dialético
meios da produção material dispõe, com isso,
ao mesmo tempo, dos meios da produção in­
telectual, de modo que a ela em conjunto são
submetidas as idéias daqueles aos quais faltam fl lei da dialética vale, segundo Hegel,
os meios da produção intelectual, fls idéias para o mundo do pensamento, das idéias;
dominantes não são mais que a expressão Marx reconduz o dialética - um procedimento
ideal das relações materiais dominantes, são as por contradições, contraditórios - do mundo
relações materiais dominantes tomadas como das idéias para o mundo históríco-social: "é
idéias; são, portanto, a expressão dos relações preciso invertê-la para descobrir o núcleo
que justamente fazem de uma classe a classe racional dentro da casca mística".
dominante e, portanto, são as idéias de seu
domínio. Os indivíduos que compõem a classe
dominante possuem, entre outras coisas, tam­ Por seu fundamento, meu método dialético
bém a consciência e, portanto, pensam; enquan­ não só é diferente do hegeliano, mas é também
to dominam como closse e determinam todo o diretamente seu oposto. Para Hegel o processo
âmbito de uma época histórico, é evidente que do pensamento, que ele, sob o nome de idéia,
eles o fazem em toda a sua extensão e, portan­ transforma até em sujeito independente, é o
to, entre outros coisas, dominam também como demiurgo do real, enquanto o real não é mais
pensadores, como produtores de idéias que que o fenômeno externo do processo do pen­
regulam o produção e a distribuição de idéias, samento. Para mim, vice-versa, o elemento ideal
que regulam a produção e o distribuição das não é mais que o elemento material transferido
idéias de seu tempo; é, portanto, evidente que e traduzido no cérebro dos homens.
suas idéias são as idéias dominantes da época. Critiquei o lado mistificador da dialético
K Marx - f. €ngels, hegeliana há quase trinta anos, quando ela
fí ideologia alemã. ainda era a moda do dia. Mas, justamente
T e r c e ir a p a r te - X ?o k e g e l i a n i s m o ao m arxism o

enquanto eu elaborava o primeiro volume de O fl coisa que mais incisivamente faz sentir
Capital, os molestos, presunçosos e medíocres ao burguês, homem prático, o movimento con­
epígonos que ogora dominam na Alemanha traditório da sociedade capitalista são as vicis-
culta se compraziam em tratar Hegel como nos situdes alternadas do ciclo periódico percorrido
tempos de Lessing o bravo Moses Mendelssohn pela indústria moderna, e o ponto culminante
tratava Spinoza: como um "cão morto". Por isso dessas vicissitudes: a crise geral. £la está de
me professei abertamente discípulo daquele novo em andamento, embora ainda esteja nos
grande pensador, e até respiguei, aqui e ali, no estágios preliminares; e pela universalidade de
capítulo sobre o teoria do valor, com o modo de sua manifestação, assim como pela intensidade
exprimir-se que lhe era peculiar, fl mistificação à de seus efeitos, inculcorá a dialética até aos
qual subjaz a dialética nas mãos de Hegel não aproveitadores afortunados do novo sagrado
impede de modo nenhum que ele tenha sido o império borusso-germânico.
primeiro a expor amplamente e conscientemen­ K. Marx,
te as formas gerais do movimento da próprio O Capital, vol. I.
dialética. Nele ela se encontra invertida. 6 pre­
ciso invertê-la para descobrir o núcleo racional
dentro da casca mística.
€m sua forma mistificada, a dialética tor­ 7 fl história
nou-se moda alemã, porque parecia transfigurar
o estado de coisas existente. £m sua forma é história de lutas de classes
racional, a dialética é escândalo e horror para
a burguesia e para seus corifeus doutrinários,
porque na compreensão positiva do estado de "Fl história de toda sociedade que exis­
coisas existente inclui simultaneamente também tiu oté este momento é história de lutas de
a compreensão da negação dele, a compreen- classes". Doravante, porém - está é a idéia
são'de seu ocaso necessário, porque concebe de Marx e de Cngels -, o ocaso da burguesia
toda forma realizada no fluir do movimento e, e o vitória do proletariado são dois eventos
portanto, também de seu lado passageiro, "inevitáveis".
porque nada a pode intimidar e ela é crítica e
revolucionária por essência.
fl história de toda sociedade que existiu
até este momento é historio de lutas de classes.
Livres e escravos, patrícios e plebeus,
barões e servos da gleba, membros das cor­
KARL MARX porações e aprendizes, em suma, opressores e
oprimidos, estiveram continuamente em contras­
te recíproco, e mantiveram luta ininterrupta, ora
latente ora aberta; luta que a cado vez terminou
ou com uma transformação revolucionária de
toda a sociedade, ou com a ruíno comum das
classes em luta.
Nas épocas passadas da história encon­
tramos em quase todo lugar uma completa
articulação da sociedade em diferentes ordens,
uma graduação múltipla das posições sociais.
Na Roma antiga temos patrícios, cavaleiros,
plebeus, escravos; na Idade Média, senhores
feudais, vassalos, membros’ dos corporações,
aprendizes, servos da gleba e, ainda, também
graduações particulares em quase cada uma
destas classes.
fl sociedade civil moderna, saída do ocaso
1'ARiS da sociedade feudal, nõo eliminou os antago­
feWTÊtft». ü.uftlCE i . A a m u n n t: nismos entre as classes. £la apenas substituiu
as antigas por novas classes, novas condições
de opressão, novas formas de luta.
Frontispício da edição francesa de O Capital Nossa época, a época da burguesia, dis­
de Marx, publicada em Paris em 1872. tingue-se, porém, das outras por ter simplificado
, . . . . ,. 197
Cãpítulo O ÍtíZV O - K a r l A 1 'U 'X e T -r ie d r ic h E n g e l s . CD m a t e r ia lis m o K is t ó r i c o -d ia lé t ic o

lei reguladora. Não é capaz de dominar, porque


não é capaz de garantir a existência do próprio
escravo ainda que dentro de sua escravidão,
porque é forçado a deixá-lo afundar em uma
situação na qual, ao invés de ser por ele ali­
mentado, elo é forçada a nutri-lo. fl sociedade
não pode mais viver sob a classe burguesa,
ou seja, a existência da classe burguesa não é
mais compatível com a sociedade.
fl condição mais importante para a exis­
tência e paro o domínio do classe burguesa é a
acumulação da riqueza nas mãos de privodos, a
formação e a multiplicação do capital; condição
do capital é o trabalho assalariado. O trabalho
assalariado apóia-se exclusivamente sobre a
concorrência dos operários entre si. O progres­
so da indústria, do qual a burguesia é veículo
involuntário e passivo, substitui ao isolamento
dos operários, que resulta da concorrência, sua
união revolucionária, que resulto da associação.
Com o desenvolvimento do grande indústria,
portanto, é tirado de sob os pés da burguesia
o próprio terreno sobre o qual ela produz e se
apropria dos produtos. Cia produz em primeiro
lugar seus coveiros. Seu ocaso e o vitória do
proletariado são igualmente inevitáveis.
K. Marx - f. Cngels,
Capa do Manifesto do partido comunista, Manifesto do partido comunista.
de M arx e Engels,
na edição original londrina de 1848.

os antagonismos de closse. fl sociedade inteira


se vai cindindo sempre mais em dois grandes E n g e ls
campos inimigos, em duas grandes classes di­
retamente contrapostas uma à outra: burguesia
e proletariado. [.,.]
Toda sociedade se baseou até ogora,
como vimos, sobre o contraste entre classes 8 O advento inevitável
de opressores e closses de oprimidos. Mas, do socialismo
paro poder oprimir umo classe, devem estar
asseguradas condições dentro das quais ela
possa ao menos viver com dificuldades sua vida O advento do socialismo e a abolição
de escravo. O servo da gleba, trabalhando em das classes ocorrerá não por vontade dos
seu estado de servo do gleba, pôde elevar-se proletários, "mas por causa do desenvolvi­
a membro da Comuna, assim como o citadino mento de novas condições econômicas".
comum, trabalhando sob o jugo do obsolutis-
mo feudol, pôde elevar-se a burguês. Mas o
operário moderno, em vez de elevar-se con­ A medida que a produção capitalista trans­
forme o indústria progride, desce sempre mais formo a massa da população em proletários,
abaixo das condições de sua própria classe. O ela própria cria o exército que deve, ou perecer
operário torna-se um pobre, e o pauperismo miseravelmente, ou realizar essa revolução. A
se desenvolve também mais rapidamente que medida que ela impulsiono a conversão dos
a população e o riqueza. De tudo isso torna-se grandes meios de produção em propriedade
manifesto que a burguesia não está em grau de do Cstado, ela própria indica o caminho para
permanecer aindo muito tempo como a classe a realização dessa revolução. O proletariado,
dominante da sociedade, e de impor á socieda­ depois de se ter apropriado do poder público,
de as condições de vida da própria classe como transforma os meios de produção em proprie­
TerceitU pãrte - TDo h e g e l i a n i s m o a o m a fjiis m o

dade do Cstado. Mas por isso mesmo dsstrói dade. Onde o trabalho social fornece somente
seu caráter de proletariado; ele destrói toda uma somo de produtos que excede apenas
distinção e todo antagonismo de classe e, por aquilo que é estritamente necessário para
conseguinte, ele destrói o Cstado como Cstado. manter a existência de todos; onde o trabalho,
fls sociedades que se haviam movido até aqui por conseguinte, absorve todo ou quase todo
no antagonismo de classes tinham necessidade o tempo da grande maioria dos indivíduos de
do Cstado, isto é, de uma organização da clas­ que se compõe a sociedade, esta sociedade
se que desfruta, para assegurar as condições divide-se necessariamente em classes. Ao lado
de desfrute e, sobretudo, para manter, com a da grande maioria, entregue exclusivamente ao
força, o classe desfrutada nas condições de trabalho, forma-se uma minoria isenta do traba­
submissão (escravidão, servidão, assalariado), lho diretamente produtivo, e encarregada dos
que o modo de produção existente requeria. O assuntos comuns da sociedade; isto é, direção
Cstado era a representação oficial de toda a geral do trabalho, governo, justiça, ciências etc.
sociedade, sua encarnação em um corpo visível, Cxiste, portanto, a lei da divisão do trabalho,
mas ele não era tal a não ser como o €stado da que jaz no fundo desta divisão da sociedade em
classe que, por sua vez, representava toda a classes, o que não impede minimamente que
sociedade. Portanto, a partir do momento que tal divisão seja alcançada por meio da força e
se torna o representante da sociedade inteira, da rapina, da astúcia e da fraude; o que não
ele se evidencia inútil, fl partir do momento que impede sequer que a classe dominante, uma
não existe mais classe para manter na opres­ vez estabelecida, jamais tenha deixado de
são, e o partir do momento que a dominação consolidar seu poder em detrimento da closse
de classe, e a luta pela existência individual trabalhadora, de mudar a direção social em
baseada sobre a desordem da produção, so­ desfrute das massas.
bre as coalizões e sobre os excessos que daí Todavia, se a instituição das classes tem
derivam, são afastados, e não há mais nada a certo direito histórico, o tem apenas para uma
reprimir, um Cstado torna-se inútil. O primeiro época determinada, para um conjunto de con­
ato com o qual o Cstado se constituirá realmente dições sociais dadas. Cia se baseava sobre a
como representante de toda a sociedade - a insuficiência da produção; esta será expulsa
tomada de posse dos meios de produção em pelo desenvolvimento pleno dela. Com efeito,
nome da sociedade - será ao mesmo tempo nós não podemos pensar na abolição final das
seu último ato como Cstado. fl intervenção do classes, a não ser quando tivermos atingido
Cstado se verificará inútil sobre cada terreno, um nível social em que, não somente a exis­
um depois do outro, e ele gradualmente se tência de uma dada classe dominante, mas
extinguirá. O governo das pessoas dá lugar o de qualquer classe dominante, e a própria
à administração das coisas e à direção dos distinção das classes, tiverem se tornado um
processos de produção, fl sociedade livre não anacronismo. Ou seja, tal nível pressupõe um
pode tolerar a existência de um Cstado entre grau de desenvolvimento da produção, em que
si e seus membros. a aprovação dos meios de produção e dos
fl apropriação por parte da sociedade produtos feita por determinado classe e, por
de todos os meios de produção foi, desde a conseguinte, a dominação política, o monopólio
aparição histórica da produção capitalista, um da educação e a direção intelectual por parte
ideal mais ou menos nebuloso, brilhando diante de uma classe social distinta, terão se tornado
dos olhos de indivíduos e de seitas inteiras; coisas não somente supérfluas, mas um obs­
mas ela não parecia possível, nem podia se táculo ao desenvolvimento econômico, político
apresentar como uma necessidade histórica, e intelectual. Cste ponto foi hoje alcançado. A
se antes não existiam as condições materiais bancarrota política e intelectual da burguesia
para sua atuação, fl abolição das classes, como quase não é mais um segredo para ela própria;
qualquer outro progresso social, torna-se atuá- sua bancarrota econômica-repete-se regular­
vel não pela simples convicção nas massas, mente a cada dez anos. Cm toda crise decenal
pois a existência destas classes é contrária à a sociedade sufoca sob a pressão das forças
igualdade, ou à justiça, ou à fraternidade, não produtivas gigantescas, e dos produtos que ela
pela simples vontade de destruí-las, mas por mesma criou, e que não sabe mais dominar; ela
causa do desenvolvimento de novos condições se acha impotente diante deste absurdo; os
econômicas, fl divisão da sociedade em classe produtores não têm nada para consumir, porque
que desfruta e classe desfrutada, em dominante há falta de consumidores.
e oprimida, foi a conseqüência fatal da produ­ F. Cngels,
tividade pouco desenvolvida da própria socie­ Socialismo utópico e socialismo científico.
OS GRANDES
CONTESTADORES
DO SISTEMA HEGELIANO

■ Herbart
■ Trendelenburg
■ Schopenhauer
■ Kierkegaard

“Hegel, investido do alto, pelas forças do poder,


foi um charlatão de mente obtusa, insípido, nau­
seabundo, iletrado que chegou ao cúmulo da
audácia, garatujando e dizendo as mais loucas e
mistificadoras coisas sem sentido”.
Arthur Schopenhauer
“E Hegel! Aqui tenho necessidade da linguagem
de Homero. A que objetivos de riso devem ter-se
entregue os deuses! Um tão desgraçado professor-
zinho que pretende simplesmente ter descoberto
a necessidade de cada coisa
Sõren Kierkegaard
Capítulo nono

H erbart e Trendelenburg.
R elançam ento do realism o e crítica da dialética hegeliana

Capítulo décimo

Arthur Schopenhauer:
o m undo com o “ von tade” e “ represen tação” ____________

Capítulo décimo primeiro

Sõren K ierkegaard:
a filosofia existencial do “ indivíduo”
e a “ cau sa do cristianism o” ______________________________
( S a p í+ u lo n o n o

■ H e r b a r t e T r e n d e le n D u r g .

R e l arvçamervfo do realismo e crítica


da diale+ica Kegeliana

I. O r e a lis m o
d e 3^°^akAKV P r i e d r i c k 'H e r b a r t

• Johann Friedrich Herbart (1776-1841) - um dos mais decididos e significati­


vos contestadores do idealismo de Hegel - é autor de obras consistentes, como:
Filosofia prática universal (1808); Introdução à filosofia (1813); Metafísica geral
(1828-1829). As influentes concepções pedagógicas de Herbart
estão contidas na Pedagogia geral (1806) e no Projeto de aulas As obras
de pedagogia (1835). -> § 1
• O ponto de partida do pensamento de Herbart é uma espécie de axioma
realista: a realidade existe independentemente do eu. Desta realidade externa
ao eu e que existe independentemente do pensamento, falam tanto a ciência
como a filosofia. E se a ciência tem como tarefa a verificação dos dados de fato,
a tarefa da filosofia consiste na "elaboração dos conceitos", isto
é, na análise dos conceitos fundamentais que estruturam nossa As tarefas
experiência da realidade. Dessa análise há urgente necessidade, de uma filosofia
uma vez que "nossa experiência" está cheia de contradições, realista
como o caso do conceito de coisa (que é uma unidade, mas múl- $ 2~3
tipla em suas qualidades), do conceito de eu (que é idêntico a si
mesmo e ao mesmo tempo uma pluralidade de representações), ou do conceito
de movimento (que implica a mudança das qualidades e a permanência de algo
que nos escapa).
Pois bem, a filosofia deve "integrar" estes conceitos; deve fazer como a astro­
nomia, que, dos movimentos aparentes, remonta aos reais; e isto a filosofia pode
fazer, distinguindo entre o ser (que "é absolutamente simples") e o conhecimento
progressivo e múltiplo que dele temos. Em suma: a essência das coisas, da realidade,
permanecerá desconhecida para nós, mas sobre as coisas poderemos adquirir uma
variedade sem limites de conhecimentos. Escreve Herbart: "Existem efetivamente
fora de nós uma quantidade de seres cuja natureza própria e simples não conhe­
cemos, mas sobre cujas condições internas e externas nos é possível adquirir uma
soma de conhecimentos que podem aumentar ao infinito".
• Um conhecimento que o homem pode alcançar é o da existência da alma
imortal: a existência da alma torna-se evidente pelo fato de que, de outro modo,
não poderíamos considerar todas as nossas representações como
nossas. E se a pesquisa atenta sobre a vida de nossa mente leva a imortalidade
a constatar a realidade da alma imortal, a pesquisa sobre a reali- da alma
dade natural e especialmente sobre o finalismo que se encontra e a existência
em âmbito biológico leva Herbart à admissão da existência de de Deus
Deus. 4
Quarta parte - O s g r c m c le s c o ^ t e s f ú d o ^ e s d o s is t e m a h e g e l i a n o

1 V id a e ob ra s Sob a influência do pedagogo suíço


Henrique Pestalozzi (1746-1827), Herbart
ocupou-se de pedagogia e seu trabalho sobre
O triunfo do idealismo foi acom pa­ problemas de educação está contido na Pe­
nhado de fortes contestações. Um dos mais dagogia geral (1806) e no Esboço de lições
significativos contestadores foi Herbart, que de pedagogia (1835), obras que influíram
opôs com resolução e competência a alter­ notavelmente, tanto na discussão teórica
nativa do realismo, contrapondo sistema a como na prática educativa, na Alemanha
sistema. e fora dela.
Johann Friedrich Herbart nasceu em
Oldenburg, em 1776. Aluno de Fichte em
Jena, logo manifestou sua discordância em 2 . A t a r e f a d a filo s o fia
relação à concepção fichteana do eu. A partir
de 1808, foi professor de filosofia e peda­
gogia na Universidade de Kónigsberg, onde Antes de mais nada, enquanto o idea­
Kant ensinara até poucos anos antes. lismo vê o eu como se nele “ tudo estivesse
Depois da morte de Hegel, Herbart encasulado” , para Herbart a realidade existe
pretendia ocupar sua cátedra. M as suas independentemente do eu. E as ciências
tentativas de se transferir para Berlim não falam da realidade, mas também o faz a
tiveram êxito. Foi então para a Universidade filosofia. Qual seria então a diferença do
de Góttingen, onde trabalhou até o ano de modo de se relacionar com a realidade por
sua morte, em 1841. parte das ciências e por parte da filosofia?
Entre as numerosas obras de Herbart, Pois bem, as ciências particulares têm a
as m ais notáveis são : F ilo sofia prática função de reunir os dados observáveis que
universal (1808), Introdução à filosofia lhes são pertinentes. “ Ao passo que o filó­
(1 8 1 3 ), P sicologia com o ciência (1 8 2 4 ­ sofo não pode considerar como sua função
1825) e Metafísica geral (1828-1829). a verificação dos dados de fato” .

Johann Friedrich Herbart


' (177b-1841)
foi o mais vivaz contestador realista
do idealismo hegeliano.
C ã p l t u l o tIO TIO - - H e r b a r f e X r e r v d e le n b u * * g

M as, então, mais uma vez, qual é a


consideração típica da realidade pela filo­ JOHANN FRIEDRICH HERBART’
S
sofia? Para Herbart, o fim da filosofia é o de
nos fazer conhecer a verdadeira realidade (e,
por isso, a filosofia é metafísica). E o cami­ SCHBIFTEN
nho para alcançar esse fim é a “ elaboração
dos conceitos” , isto é, a análise dos con­ ZUR
ceitos fundamentais que estruturam nossa
experiência da realidade: “ A metafísica não
tem outro objetivo senão o de tornar inte­ EINLEITUNG IN DIE PHILOSOPHIE.
ligíveis os conceitos que a experiência lhe
im põe” . E essa “ elaboração de conceitos”
é premente, impondo-se ao trabalho do
filósofo porque não é difícil perceber que
nossa “ experiência” está cheia de contra­
dições e não nos dá a própria realidade, e G. HARTESSTEIE
sim sua aparência.

3 O set* é uno;
os conkecimentos
sobre o ser são múltiplos
L E IP Z IG ,
Y E I U S VON LEOP0LD VOSS.

Vejamos agora as contradições que 1650.


pululam em nossa experiência e como a
filosofia pode superá-las. N ós temos o con­ Frontispício da Introdução à filosofia,
ceito de coisa e falamos dele tranqüilamente. de Herbart, na edição de l.eipzig de 1850,
Ora, uma coisa (qualquer coisa) é sempre organizada por G. Hartenstein.
una, uma unidade. Porém, se alguém nos
pergunta em que consiste uma coisa, nós
respondemos enumerando as qualidades
da coisa, que são múltiplas. O conceito mento, deve “ integrar” tais conceitos. Assim
de coisa, portanto, é contraditório: toda como a astronomia remonta aos movimentos
coisa é una e múltipla. M as o conceito de reais partindo dos movimentos aparentes, a
eu também é contraditório: o eu é sempre filosofia deve nos fazer remontar à realidade
uno. Há identidade na vida do homem, o partindo de sua aparência, das contradições
seu eu. Entretanto, todo eu nada mais é do dos conceitos que presumem captá-la e
que pluralidade de representações. Também descrevê-la.
o eu, portanto, é contraditório. Conseqüen­ Pois bem, como é possível resolver as
temente, o eu não é aquele dado sólido que contradições relacionadas? Herbart propõe
os idealistas inserem na base do seu sistema. a solução recorrendo ao axioma metafísico
O eu é problema. de que o ser “ é absolutamente simples”, e
E problema também é o conceito de distinguindo entre o ser e o conhecimento
movimento. Esse conceito é igualmente con­ progressivo e múltiplo que temos dele.
traditório; com efeito, implica a mudança A essência das coisas, o que elas são
das qualidades e a permanência de alguma em sua unidade e simplicidade, permanecerá
coisa, o princípio da transform ação, que desconhecida para nós, mas, sobre os entes,
nos escapa. podemos ter e acumular os conhecimentos
Eis, portanto, alguns dos problemas mais variados. Diz Herbart: “ Efetivamente,
que a filosofia deve resolver. Os conceitos, existe fora de nós grande número de seres,
através dos quais pensamos captar os tra­ cuja natureza própria e simples não conhe­
ços de fundo — os traços essenciais — da cemos, mas sobre cujas condições internas
realidade, são contraditórios. E, portanto, e externas nos é possível adquirir uma soma
só nos podem dar a aparência da realidade. de conhecimentos que podem aumentar ao
E a filosofia, para melhorar nosso conheci- infinito” .
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n + e s ta d o re s d o s iste m a h e g e lia n o

_4 alm a e D e u s Se a investigação realizada sobre nossa


vida mental leva à realidade e à existência da
alma imortal, a investigação sobre a reali­
dade natural e, sobretudo, sobre a realidade
Perturbado, todo ente reage à perturba­
biológica mostra um finalismo que seria
ção. E reage no sentido da a-utoconservação. inexplicável sem inteligência ordenadora:
E as representações nada mais são do que
essa inteligência é Deus.
as reações de autoconservação que a alma
realiza diante de tudo o que tende a pertur­
bá-la. A existência da alma é evidente pelo
fato de que, caso contrário, não poderíamos
considerar todas as nossas representações
5 (S sté + ic a

como nossas.
É a unidade do mundo de nossas repre­ Por estética Herbart entende a ciência
sentações que exige e funda o conhecimento da avaliação dos produtos artísticos e tam­
da existência da alma. A alma é real e, por­ bém dos produtos morais.
tanto, é simples. E, como escreve Herbart, E tanto em um campo (o comumente
“ a imortalidade da alma provém de si, pela cham ado “ estético” ) como em outro (o
razão de que o real é intemporal” . “ ético” ), o objetivo da estética está em
A alma é una e as representações são isolar e propor conceitos-modelos ou idéias
múltiplas e variadas, de modo que se propõe que, uma vez liberados de todas as escórias
a questão de compreender por que essas subjetivas, podem funcionar como critérios
representações não constituem um caos, de avaliação ou juízo.
isto é, de compreender a lei que regula a N o que se refere ao âmbito da ética,
vida da consciência. Pois bem, para Herbart esses conceitos-modelos consistem sobre­
as representações são forças, atos de auto- tudo:
conservação da alma: “ interpenetrando-se 1) na liberdade interior (que é harmo­
mutuamente na alma, una, elas se impedem nia entre vontade e avaliação), pois somos
enquanto opostas e se unificam em força livres quando queremos aquilo que julgamos
comum enquanto não opostas” . A vida psí­ como bem;
quica é conflito ou integração recíproca de 2) na perfeição (pela qual, sem estar­
representações. E essa dinâmica da vida da mos de posse de medida absoluta, aprecia­
alma leva àqueles “ estados” que chamamos mos mais o maior);
“ faculdades” (sentimento, vontade etc.). 3) na benevolência (que expressa a
Assim, não são as faculdades presumi­ harmonia entre o querer próprio e o querer
das que geram as representações, e sim, ao alheio);
contrário, é o ordenamento das representa­ 4) no direito (fundamento da política e
ções que gera as faculdades. Em todo caso, regulador dos desacordos entre as vontades);
conforme sua qualidade, as representações 5) na eqüidade (pela qual devem ser
se atraem ou se repelem. Então, se massas pagas as ações não retribuídas).
ou conjuntos de representações se unem Essas cinco idéias morais se impõem
de modo ilegítimo, temos aí os sonhos e como critérios da conduta moral, justamente
as ilusões ou até a demência. A razão, ao como conceitos-modelos, ou seja, como
contrário, se exerce na recepção das novas regras de base, ainda que Herbart tenha
representações, em sua elaboração à luz das plena consciência do fato de que eles não
velhas representações e no estabelecimento têm fundamento lógico absoluto, já que um
de mundos coerentes e sempre mais ricos ideal moral é “ tão compreensível” quanto
de experiências. o seu oposto.
Cãpltulo HO HO - "H e rb aH - e T r e n d e l e n b u r g

II. y \ d o l-fT r e n d e l e n b u r g ,
c r ífic o d a ^ d ia lé tic a k eg elia n a ^

• O realismo como alternativa ao idealismo é defendido também por J. B. Fries


(1773-1844) e por F. E. Beneke (1798-1854). Mas, ainda mais eficaz, contra Hegel,
foi a crítica à dialética proposta por Adolf Trendelenburg (1802-1872), estudioso
de Platão e principalmente de Aristóteles, cujas obras mais conhecidas são; os três
volumes de A história da doutrina das categorias (1846-1867) e, sobretudo, suas
Pesquisas lógicas (1840). Trendelenburg foi professor em Berlim
e, entre seus discípulos, teve Kierkegaard, Feuerbach, Marx e Uma contradição
Brentano. lógica
A respeito da dialética hegeliana, Trendelenburg se per- não é uma
gunta em que consiste "a existência desta negação dialética", oposição real
E a resposta que ele dá a tal pergunta é que a negação "pode
ter dupla natureza": ou a negação é uma contradição lógica ou
é uma oposição real. Hegel confunde as duas coisas; e sobre esse absurdo, sobre
essa mistura indevida entre "contradição lógica" e "oposição real" constrói seu
sistema. As oposições reais, como os contrastes de interesses e as revoluções, são
descritas e explicadas com discursos não-contraditórios, mas não são "contradições
lógicas".

A p o siç ã o Brentano. Homem de indiscutível prestígio,


j -r j i i Trendelenburg foi também secretário da
de L re n d e le n b u rq . , . _ ° .
° Academia Prussiana das Ciências.

Além da posição de Herbart que pro­ 2 A * K'e 0 a ç ã o "


pôs o realismo como alternativa ao sistema
idealista, devemos considerar as de J. B. Fries so b re a qu al s e fu n d am en ta
(1773-1844) e de F. E. Beneke (1798-1854), a d ia lé tic a d e H e g e l
que atacaram o idealismo em nome de uma im p lic a u m a c o n fu s ã o
pesquisa psicológica sobre as capacidades e
o funcionamento da mente, pesquisa dirigi­ e n t r e ^ c o n t r a d i ç ã o // l ó g i c a
da a introduzir maior sobriedade no âmbito e ^ c o n tra rie d a d e ^ re a l
das especulações filosóficas.
M as ainda mais interessante é a posi­
ção de Adolf Trendelenburg (1802-1872), Para Hegel, como sabemos, a dialética
que criticou a concepção da dialética de é “ automovimento do pensamento puro”
Hegel. que, ao mesmo tempo, é o “ autogerar-se
Trendelenburg cuidou muito de sua do ser” . E a mola de todo o processo está
form ação filológica, e da filosofia antiga na negação.
estudou Platão e principalmente Aristóteles. Entretanto, pergunta-se Trendelenburg,
As obras mais conhecidas são: Elementa em que consiste “ a essência dessa negação
logices Aristoteleae (1836); A história da dialética?” A resposta, aguda e atual, que
doutrina das categorias, em três volumes ele dá a essa interrogação central é que a
(1846-1867); e as Pesquisas lógicas (1840), negação “ pode ter dupla natureza” . Com
que constituem sua obra de maior impor­ efeito, “ [a] ou consideram os a negação
tância. Professor em Berlim, Trendelenburg dialética de modo puramente lógico, e en­
teve entre seus jovens ouvintes destinados, a tão ela nega simplesmente o que o primeiro
seguir, a se tornarem estrelas do pensamento conceito afirma, sem pôr nada de novo em
filosófico: Kierkegaard, Feuerbach, M arx e seu lugar, ou [b] é entendida de modo real
Quarta parte - O s g ra n ^ e -s cem +es+adores d o sis+ em a k e g e lia n o

e, então, o conceito afirmativo é negado por b) M as não seria possível que a contra­
novo conceito afirmativo dição dialética se identifique com a “ oposição
Ora, a) no primeiro caso temos uma real” ? Contudo, também nesse caso surgem
negação lógica, e b) no segundo caso uma dificuldades: por que “ se pode obter uma
o posição real. A prim eira negação é o oposição real com um método lógico?” Essa
oposto contraditório, a outra é o oposto era, precisamente, a pretensão de Hegel: de­
contrário. rivar a dialética do real da dialética do pensa­
a) Para exemplificar: “ A e não-A” mento
é puro, o que é simplesmente absurdo.
uma contradição lógica, ao passo que o A lógica não pode inventar nem criar a
confronto de dois interesses é uma oposição realidade. Se quisermos falar da realidade,
real. Entretanto, o movimento dialético precisamos recorrer à experiência ou, como
extrai da negação um momento superior. diz Trendelenburg, à “intuição sensível” .
Isso, segundo Trendelenburg, é impossível Em poucas palavras, o sistema de Hegel
se pensarmos na contradição lógica: com é construído com base na confusão entre
efeito, afirmar e negar a mesma coisa não contradição e contrariedade, isto é, em uma
produz de fato nenhuma “ síntese” , não nos mistura indevida entre “contradição lógica”
faz chegar (e necessariamente!) a nenhum e “ oposição real” . As oposições reais, como,
terceiro conceito novo. Portanto, trocar a por exemplo, os contrastes de interesses, as
negação dialética com a negação lógica é, revoluções etc., só podem ser descritas com
segundo Trendelenburg, “ um mal-enten­ discursos não-contraditórios, e não têm
dido” . nada a ver com as “ contradições lógicas” .
C a p ít u lo d é c im o

y \ r t k u r S c k o p e n K a u e r :

o murvdo
como ^voKvfade^e/VepreseKv+ação^

• Hegel é um "sicário da verdade", um "acadêmico mercenário", sua obra é


uma "palhaçada filosófica". Isto diz de Hegel aquele que, com Kierkegaard, foi seu
adversário mais decisivo, ou seja, Arthur Schopenhauer (1788-1860). E, à filosofia
de Hegel, ele contrapôs sua obra maior: O mundo como vontade
e representação (1819). Schopenhauer
Outras obras de Schopenhauer são: Sobre a quádrupla raiz exerce enor­
do princípio de razão suficiente (dissertação de láurea, publicada me influência
em 1816); Os dois problemas fundamentais da ética, 1841; Parer- sobre a cultura
ga e Paralipômena, 1851 (é uma antologia de ensaios, entre os sucessiva
quais figuram A filosofia das Universidades e os Aforismos sobre - > § 1.1
a sabedoria da vida.
Foi enorme a influência de Schopenhauer sobre a cultura que lhe sucedeu,
sobre filósofos como Wittgenstein e Horkheimer; sobre escritores como Franz Kaf-
ka e Thomas Mann. Em 1858, na "Revista contemporânea", Francesco De Sanctis
publicou seu célebre artigo com o título: Schopenhauer e Leopardi.
• "O mundo é uma representação minha": esta-escreve Schopenhauer - "é
uma verdade válida para todo ser vivo e pensante". Nenhuma verdade, a seu
ver, é mais certa, mais absoluta e mais evidente que esta. Que o mundo seja o
nosso mundo, isto é, o mundo assim como nós o vemos, é uma
verdade antiga-com o se pode constatar pela filosofia vedanta ,
(sistema filosófico ortodoxo do hinduísmo) -, e é a verdade da é °
filosofia moderna, de Descartes a Berkeley. Enganam-se os mate- representação
rialistas que sustentam que tudo é matéria, suprimindo o sujeito § // j.j
e sua atividade cognoscitiva; estão errados os realistas quando
dizem que a realidade externa se espelharia por aquilo que
está em nossa mente; e estão fora do caminho os idealistas, como por exemplo
Fichte, ao reduzir o objeto ao sujeito. E, todavia, o idealismo, se conseguirmos
depurá-lo dos absurdos dos "filósofos das Universidades", é a teoria verdadeira
e adequada.
• Espaço e tempo - este é um dos grandes ensinamentos de Kant - são formas
a priori da representação: todas as nossas percepções de objetos são espacializadas
e temporalizadas; e sobre elas entra depois em ação o intelecto que as ordena
em um cosmo por meio da categoria da causalidade. À única ca­
tegoria da causalidade Schopenhauer reduz as doze categorias O mundo
kantianas. O mundo, portanto, é uma representação minha, uma é uma
representação ordenada das categorias de espaço, tempo e cau­ representação
salidade. Causalidade que - como foi dito desde sua dissertação pelas
ordenada
Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente - funciona categorias
como:
- necessidade física (causalidade entre objetos materiais); de espaço,
tempo
- necessidade lógica (a verdade das premissas determina a e causalidade
da conclusão); § 11.4
208
Quarta pavtc - O s g r a n d e s c o n t e s t a d o r e s d o s i s t e m a h e g e J ia ^ o

- necessidade matemática (determinação da concatenação dos entes aritmé­


ticos e geométricos);
- necessidade moral (causalidade que regula as relações entre as ações e seus
motivos).
• O mundo, portanto, é uma representação minha. E esta representação,
este trabalho do intelecto, nã.o nos leva além do mundo sensível. O mundo como
representação é, portanto, fenômeno. Mas, enquanto para Kant o fenômeno é a
única realidade cognoscível, para Schopenhauer o fenômeno é a
A to volitivo ilusão que cobre a realidade das coisas, é "o véu de Maya" que
e ação do corpo esconde a face da realidade. A essência da realidade, o númeno
são a mesma de Kant - afirma Schopenhauer - pode ser alcançada.
coisa Eo caminho que leva a este conhecimento é o próprio corpo.
§ iii.1-2 çom efejto, todo ato real de nossa vontade é também movimento
de nosso corpo. Nosso corpo é, portanto, vontade tornada visível.
Por meio do próprio corpo cada um de nós sente que vive e experimenta prazer
e dor, e percebe o anseio de viver e o impulso pela conservação; cada um de nós
sente que a essência íntima não é mais que sua vontade, "a qual constitui o objeto
imediato de seu próprio conhecimento.
• A essência de nosso ser é, portanto, vontade. A imersão na profundidade
de nós mesmos nos faz descobrir que somos vontade. E ao mesmo tempo rasga "o
véu de Maya" e permite ver-nos por aquilo que somos; uma parte
O universo ^a vontade única, do "cego e irresistível impulso" que permeia
é "cego t0C|0 Q unjverso: vontade é a força que faz crescer a planta, que
e irresistível ^ forma ao crjstal, que dirige a agulha imantada para o norte e
™§U///3 assim por diante. A reflexão, portanto, torna possível ultrapassar
' o fenômeno e chegar à coisa em si.
• A essência do mundo é vontade insaciável, é um eterno tender. E a vida do
homem é necessidade e dor, oscila entre crueldade, dor e tédio. Todavia, quando
o homem chega a compreender que a realidade é vontade e que ele próprio é
vontade, então ele está pronto para sua redenção. O homem
O homem pode se redimir, se salvar, "apenas com o cessar de querer". E ele
se redime com pode se libertar da dor e romper a corrente das necessidades por
a arte meio da arte e da ascese. A arte, porque a experiência estética
e a ascese é anulação temporária da vontade e, portanto, da dor; na expe-
§ iv.2-3 riência estética o homem se afasta de seus desejos, anula suas
necessidades, anula-se como vontade. O outro caminho, o da
ascese, faz sentir Schopenhauer próximo dos sábios indianos e de outros ascetas
do cristianismo. A ascese arranca o homem da vontade de viver, da ligação com os
objetos; e lhe permite assim de aquietar-se. Quando a voluntas se torna noluntas,
o homem está redimido.

I. Vida e obras
3c k o p e n k a w e r : a v id a ,, Kierkegaard — o mais apaixonadamente
envolvido, a ponto de chegar a qualificar o
a s o b r a s e a in flu ê n c ia d e s t a s
próprio Hegel como um “ acadêmico mer­
s o b r e a c u ltu ra s u c e s s iv a cenário” , um “ sicário da verdade” , e seu
pensamento como uma “ palhaçada filosó­
Entre os adversários de Hegel, Schope­ fica” . E à filosofia submissa dos charlatães,
nhauer foi provavelmente — se excetuarmos para os quais o estipêndio e o ganho são
Capítulo décimo - ywk u r S c k o p e n k a u e r; o m undo c o m o V o n ta d e^e ^V e p ^ese^ta ç âo "

as coisas mais importantes, Schopenhauer um salão que Schopenhauer visitou algumas


opôs a própria “ verdade não remunerada” , vezes, encontrando lá personagens como
verdade que apresentou em sua obra maior, Goethe, ou o orientalista Friedrich Mayer
O mundo como vontade e representação, que o introduziu no pensamento hindu,
publicada em 1819 com 33 anos. aconselhando a leitura dos Upanixades.
A rthur Sch op en h au er n asceu em Em 1814, porém, Johanna abrigou es-
Danzig, em 22 de fevereiro de 1788, filho tavelmente em sua casa um admirador, inter­
do abastado comerciante Heinrrch Floris rompendo-se então as relações já turbulentas
Schopenhauer e de Johanna Henriette Tro- entre mãe e filho. Assim, Arthur transferiu-se
siener. Encaminhado ao comércio pelo pai, para Dresden, onde em 1818 concluiu a obra
Schopenhauer decide, porém, dedicar-se aos O mundo como vontade e representação,
estudos depois do desaparecimento do pai, que, publicada no ano seguinte, teria re­
que se suicidou (foi encontrado em um canal percussão mínima, tanto que a maior parte
atrás do celeiro) em 1805. Matriculou-se na dessa primeira edição acabou inutilizada.
Universidade de Gõttingen, onde teve como Em 1820 Schopenhauer troca Dresden
professor o cético G. E. Schulze, autor de por Berlim, com o objetivo de empreender
Enesídemo. Foi por conselho de Schulze aqui a carreira acadêmica. Em 23 de março,
que ele estudou “ o surpreendente Kant” e realiza as lições de prova e, com toda a Fa­
“ o divino Platão” . N o outono de 1811 foi culdade reunida, a discussão Sobre as quatro
para Berlim, onde assistiu às aulas de Fichte, diferentes espécies de causa. Durante essa
mostrando-se decepcionado. Em 1813 rece­ discussão, entra em atrito com Hegel. De
beu a láurea em filosofia na Universidade de 1820 a 1831, durante nada menos que vinte
Jena, com a dissertação Sobre a quádrupla e quatro semestres, tentaria ter aulas em
raiz do princípio de razão suficiente. concorrência com Hegel. M as só alcançou
Em Weimar, a mãe Johanna (escritora seu intento no primeiro desses semestres, já
de romances e mulher da sociedade) criara que, depois, não teve mais estudantes.

Arthur Schopenhauer (J 788-1860),


contra o otimismo de Hegel,
severamente definido
como “acadêmico mercenário"
e “sicáno da verdade ”,
sustentou que a vida é dor;
a história é cego acaso
e o progresso é uma ilusão.
Quãrtã parte - O s g r a n d e s c o n + e s ta d o re s d o s iste m a k e g e lia n o

Homem de muita cultura e grande samento de Schopenhauer. Desse modo, nos


viajante, em 1831, para fugir à epidemia de últimos anos de sua vida, Schopenhauer teve
peste que grassava em Berlim, Schopenhauer a satisfação do reconhecimento público.
se estabeleceu em Frankfurt, onde ficou até Foi grande a influência de Schope­
sua morte, ocorrida em 21 de setembro nhauer sobre a cultura posterior a ele: já se
de 1860. Nesse meio tempo, publicara A falou do schopenhauerismo de filósofos con­
vontade da natureza, em 1836, e Os dois temporâneos como Wittgenstein e Horkhei-
problemas fundamentais da ética, em 1841. mer, e seu pensamento, de alguma forma,
Sua última obra, Parerga e Paralipomena, m arcou o romance europeu de Tolstoi,
de 1851, é um conjunto de ensaios (entre os M aupassant, Zola, Anatole France, Kafka e
quais A filosofia das universidades e Aforis­ Thomas Mann. Deve-se recordar ainda que,
mos sobre a sabedoria da vida) escritos de em 1858, na “ Revista contemporânea” , De
modo brilhante e popular, que, precisamente Sanctis publicou seu famoso artigo intitula­
por isso, contribuíram para difundir o pen­ do Schopenhauer e Leopardi.

II. O m un do c o m o r e p r e s e n t a ç ã o

1■, O—n
■e o m u n d o 2 yAs d u a s c o m p o n e n t e s
s e ja r e p r e s e n t a ç ã o d a represen tação:
é u m a v e r d a d e a n tig a s u je ito e o b j e t o

Escreve Schopenhauer no início de O mundo é representação. E a re­


sua obra maior: “ ‘O mundo é uma repre­ presentação tem duas metades essenciais,
sentação minha’: eis uma verdade válida necessárias e inseparáveis, que são o objeto
para todo ser vivo e pensante, ainda que só e o sujeito.
o homem possa alcançá-la por consciência O sujeito da representação é “ o que
abstrata e reflexa. Quando o homem adquire tudo conhece, sem ser conhecido por nin­
essa consciência, o espírito filosófico entrou guém [...]. O sujeito, portanto, é o susten-
nele. Então, sabe com clara certeza que não táculo do mundo, a condição universal,
conhece o sol nem a terra, mas somente que sempre subentendida, de todo fenômeno e
tem um olho que vê o sol e uma mão que de todo objeto: com efeito, tudo o que existe
sente o contato de terra; sabe que o mundo só existe em função do sujeito” .
circunstante só existe como representação, O objeto da representação, aquilo que
isto é, sempre e somente em relação com é conhecido, é condicionado pelas formas a
outro ser, com o ser que o percebe, com ele priori do espaço e do tempo, por meio das
mesmo” . quais se tem a pluralidade, pois toda coisa
Para Schopenhauer, nenhuma verdade existe no espaço e no tempo.
é mais certa, mais absoluta e mais flagrante O sujeito, ao contrário, está fora do
do que essa. Que o mundo seja uma repre­ espaço e do tempo, é inteiro e individual em
sentação nossa, segundo a qual nenhum de cada ser capaz de representação, razão pela
nós pode sair de si mesmo para ver as coi­ qual “ até um só desses seres, juntamente
sas como elas são, e de que tudo aquilo de com o objeto, basta para constituir o mundo
que temos conhecimento certo se encontra como representação, tão completo como
dentro da nossa consciência, é a “ verdade” milhões de seres existentes; ao contrário, o
da filosofia moderna, de Descartes a Berke- desvanecimento desse único sujeito levaria
ley. E é uma verdade antiga, como se pode ao desvanecimento do mundo como repre­
constatar pela filosofia vedanta, segundo a sentação” .
qual a matéria não tem existência indepen­ O sujeito e o objeto, portanto, são inse­
dente da percepção mental, e a existência e paráveis, também para o pensamento; cada
a perceptibilidade são termos conversíveis uma das duas metades “ não tem sentido
entre si. nem existência senão por meio da outra e
'
Capítulo ' •
décimo - .S c h o p e n k a u e r : o m undo co m o ftv o n t ú d e we V e p i^ e s e n ta ç ã o "
211

em função da outra, ou seja, cada uma existe cializadas e temporalizadas que, depois, o
com a outra e com ela se dissipa” . intelecto entra em ação, ordenando-as em
cosmo cognoscitivo mediante a categoria
da causalidade.
Su p eração Schopenhauer reduz as doze categorias
kantianas unicamente à categoria da causa­
d o m a te ria lism o e d o re a lism o lidade. E por meio da categoria da causali­
e r e v isã o d o id e a lism o ' dade que os objetos determinados espacial
e temporalmente, que acontecem aqui ou
alhures, neste ou naquele momento, são
Segue-se daí que o materialismo está postos um como determinante (ou causa)
errado por negar o sujeito, reduzindo-o a e outro como determinado (ou efeito), de
matéria, e o idealismo — o de Fichte, por modo que “ toda a existência de todos os
exemplo — está errado também porque nega objetos, enquanto objetos, representações
o objeto, reduzindo-o ao sujeito. N o en­ e nada mais, em tudo e por tudo encabe­
tanto, o idealismo, depurado dos absurdos ça aquela sua necessária e intercambiável
elaborados pelos “ filósofos da Universida­ relação” .
de” ^ irrefutável: o mundo é representação O mundo, portanto, é uma representa­
minha e “ é preciso ser abandonado por ção minha, e a ação causai do objeto sobre os
todos os deuses para imaginar que o mun­ outros objetos é toda a realidade do objeto.
do intuitivo, posto fora de nós, tal como É compreensível, portanto, desde o escrito
preenche o espaço em suas três dimensões, Sobre a quádrupla raiz do princípio da razão
movendo-se no inexorável curso do tempo, suficiente, a importância que Schopenhauer
regido a cada passo pela indeclinável lei da atribui ao princípio da causalidade, cujas
causalidade [...], existe fora de nós com diversas formas determinam as categorias
absoluta realidade objetiva, sem qualquer dos objetos cognoscíveis:
concurso de nossa parte; e que, depois, por 1) o princípio de razão suficiente do
meio das sensações, entra em nosso cérebro, devir representa a causalidade entre os ob­
onde começaria a existir uma segunda vez, jetos naturais;
assim como existe fora de nós” . 2) o princípio de razão suficiente do
Em suma, Schopenhauer é contrário conhecer regula as relações entre os juízos,
tanto ao materialismo (que nega o sujeito, pelos quais a veracidade das premissas de­
reduzindo-o à matéria), como ao realismo termina a das conclusões;
(segundo o qual a realidade externa se re­ 3) o princípio de razão suficiente do ser
fletiria naquilo que está em nossa mente). O regula as relações entre as partes do tempo
mundo como nos aparece em sua imediatici- e do espaço e determina a concatenação dos
dade, e que é considerado como a realidade entes aritméticos e geométricos;
em si, na verdade é um conjunto de represen­ 4) o princípio de razão suficiente do
tações condicionadas pelas formas a priori agir regula as relações entre as ações e seus
da consciência, que, para Schopenhauer, são motivos.
o tempo, o espaço e a causalidade. Para Schopenhauer, são essas as quatro
formas do princípio de causalidade, quatro
formas de necessidade que estruturam rigi­
A s fo rm a s a p rio ri
damente todo o mundo da representação:
necessidade física, necessidade lógica, ne­
d o e s p a ç o e d o tem p o cessidade matemática, necessidade moral.
e a c a te g o ria d a c a u sa lid a d e Esta última necessidade, pela qual o homem,
como o animal, age necessariamente com
base em m otivos, exclui a liberdade da
Com o já m ostrava K ant, espaço e vontade: como fenômeno, o homem subme­
tempo são formas a priori da representa­ te-se à lei dos outros fenômenos, ainda que,
ção: toda a nossa sensação e percepção de como veremos, não se reduza ao fenômeno,
objetos é espacializada e temporalizada. E tendo a possibilidade, ligada à sua essência
é sobre essas sensações e percepções espa- numênica, de reconhecer-se livre. E S g fT I
Quarta parte - O s 0r a n d e s c o n t e s l a d o ^ e s d o s is + e m a k e g e l i a n o

III. o m un do c o m o v o n t a d e

1 O m u n do c o m o fen o m en o nhauer, o fenômeno é a ilusão que envolve


, ,i . a realidade das coisas em sua essência pri-
e. i l u s ã o
migênia e autêntica.

O mundo, portanto, é uma representa­ 2 . CD c o r p o c o m o v o n t a d e


ção minha ordenada pelas categorias do es­
paço, do tempo e da causalidade. O intelecto t o r n a d a v isív e l
ordena e sistematiza, através da categoria da
causalidade, os dados das intuições espácio-
temporais, captando assim os nexos entre Pois bem, na opinião de Schopenhauer
os objetos e as leis do seu comportamento. pode-se alcançar essa essência da realidade,
M as, ainda que sendo esse o modo como as o númeno que, para Kant, permanece incog-
coisas se passam, o intelecto não nos leva noscível. Ele compara o caminho que leva
além do mundo sensível. Como representa­ à essência da realidade a uma espécie de
ção, portanto, o mundo é fenômeno e, por passagem subterrânea que, traiçoeiramente,
isso, não é possível uma distinção real e leva precisamente ao interior daquela for­
clara entre o sonho e a vigília: o sonho tem taleza considerada inexpugnável por fora.
somente menos continuidade e coerência Com efeito, o homem é representação e
do que a vigília. H á estreito parentesco fenômeno, mas não é apenas isso, uma vez
entre a vida e o sonho e, diz Schopenhauer, que também é sujeito que conhece. Além do
“ nós não nos envergonhamos de procla­ mais, o homem também é “ corpo” .
má-lo, tantos foram os grandes espíritos
que o reconheceram e proclam aram ” . Os
Vedas (os textos sagrados mais antigos em
sânscrito) e os Puranas (uma antologia de
textos sagrados indianos de caráter religioso K ttlu t 0$epfnM ucr
e ético) chamam a consciência do mundo
de “ o véu de M aya” ; Platão afirma amiúde 0dmtli(t)f S e tfe
que os homens vivem no sonho; Píndaro diz N»n «m!i«
que “ o homem é o sonho de uma som bra” ;
Sófocles compara os homens a simulacros $ < r a i t f f i e i «rt& ar g llfd tc r
e sombras leves; Shakespeare sentencia que
“ nós somos da mesma matéria de que são
feitos os sonhos e nossa vida breve é circun­
dada por sono” ; e, para Calderón, “ a vida é
sonho” . Seguindo as pegadas desses pensa­ £H( 2»dt aW SBBifle unb M rflu n »
dores e pela precisa razão de que “ o mundo
é uma representação minha” , Schopenhauer 0tR *

escreve que “ a vida e os sonhos são páginas


do mesmo livro” .
O mundo como representação não é a
coisa em si, é fenômeno, “ é um objeto para
o sujeito” . M as Schopenhauer não fala,
como Kant, do fenômeno como de repre­
sentação que não diz respeito e não pode
captar o númeno, isto é, a coisa em si. Para
Schopenhauer, o fenômeno, aquilo de que
fala a representação, é ilusão e aparência, é
aquilo que, na filosofia hindu, chama-se o
“véu de M aya” , que cobre a face das coisas. Frontispício de uma edição em língua original
Para Kant, em suma, o fenômeno é a única da obra de Schopenhauer;
realidade cognoscível, mas, para Schope- O mundo como vontade c representação.
213
Capitulo d é c iT H O - 5ck op en h au er: o m undo c o m o ^ v o n + a c Je ^ e ^ V e p ^ e se n ta ç ã o "

ato volitivo e a ação do corpo [...] são [...]


uma só e mesma coisa, que nos é dada de
■ V on ta d e (vo n ta d e de v iv e r). O ;n dois modos essencialmente diversos: por um
de vontade é o conceito central da ; lado, imediatamente; por outro lado, como
filosofia de Schopenhauer. Diversa- í intuição pelo intelecto” .
mente de Kant, para o qual o númeno ; O corpo é, portanto, vontade tornada
(ou "coisa em si") era e permanecia : visível. Sem dúvida podemos olhar nosso
incognoscível e apenas o fenôm eno é ' corpo e falar dele como de qualquer outro
a única realidade cognoscível, Scho- ;
penhauer afirm a que o fenôm eno é a ? objeto — e, nesse caso, ele é fenômeno. Mas
ilusão que vela a realidade das coisas '■ é por meio de nosso corpo que sentimos que
em sua essência autenticam ente ori- í vivemos, experimentamos prazer e dor e
ginária, essência que é cognoscível í percebemos o anseio de viver e o impulso de
com o vontade. Por m eio do corpo = conservação. E é por meio do próprio corpo
- que cada um sente como anseio de ? que cada um de nós sente que “ a essência ín­
viver e vontade de autoconservação , tima do próprio fenômeno (manifestando-se
- conseguim os compreender que vi- ; para ele como representação, tanto por meio
vemos imersos e somos parte de uma .
vontade única, de um "cego e irresis­ de suas ações como por meio do seu subs­
tível im pulso" que se identifica com e - trato permanente, o corpo) não é mais que
agita o universo inteiro. E aquele que sua vontade, que constitui o objeto imediato
com preendeu tu d o isso, "vontade de sua própria consciência” . E essa vontade
verá [...] na força que faz crescer e não se enquadra no modo de conhecimento
vegetar a planta; naquela que dá for­ em que sujeito e objeto se contrapõem um
ma ao cristal; na que dirige a agulha < ao outro, “mas se nos apresenta por via ime­
imantada para o norte; na comoção diata, na qual não se pode mais distinguir
que experim enta ao contato de dois
claramente entre sujeito e objeto” .
metais heterogêneos; na força que se
manifesta nas afinidades eletivas da
matéria em form a de repulsão e atra­
ção, de combinação e decomposição;
e até na gravidade, que age com tan­
3 7^ v o n tad e
ta força em toda matéria e atrai tanto com o e sse n c ia d e n osso se r
a pedra para o chão com o a terra
para o céu". Ou ainda: "A vontade é
a substância íntima, o núcleo de cada A essência do nosso ser é, portanto,
coisa particular e do todo, é a que
aparece na força natural, cega, e a vontade; a imersão no profundo de nós mes­
que se manifesta na conduta racional mos faz com que descubramos que somos
do homem; a enorme diferença que vontade. M as, ao mesmo tempo, essa imer­
separa os dois casos refere-se apenas são rompe o “véu de M aya” e faz com que
ao grau da manifestação, a essência nos vejamos como partes daquela vontade
daquilo que se manifesta aí permane- í única, daquele “cego e irresistível ímpeto”
ce absolutam ente intacta". que permeia, se agita e se esquadrinha por
todo o universo.
Em outras palavras, a consciência e o
sentimento de nosso corpo como vontade
levam-nos a reconhecer que toda a universa­
lidade dos fenômenos, embora tão diversos
Entretanto, o corpo é dado ao sujeito em suas manifestações, tem uma só e idên­
que conhece de dois modos inteiramente tica essência: aquela que conhecemos mais
diversos: de um lado, como representação, diretamente, mais intimamente e melhor do
e como objeto entre objetos, submetido às que qualquer outra, aquela que, em fúlgida
suas leis; por outro lado, “ é dado como algo manifestação, toma o nome de vontade. E,
de imediatamente conhecido de cada um e afirma Schopenhauer, quem compreender
que é designado pelo nome de vontade. Todo isso “ verá vontade [...] na força que faz
ato real de sua vontade, infalivelmente, é crescer e vegetar a planta; na força que dá
sempre e também movimento de seu corpo; forma ao cristal; na força que dirige a agulha
o sujeito não pode querer efetivamente um magnética para o norte; na comoção que se
ato sem constatar ao mesmo tempo que este experimenta no contato entre dois metais
aparece como movimento de seu corpo. O heterogêneos; na força que se manifesta nas
Q liU T t U p u v t e - O s g r a n d e s c o n + e s t a d o ^ e s d o s is + e m a k e g e l i a n o

afinidades eletivas da matéria, em forma de vegetal, no reino animal e no reino huma­


atração e repulsão, de combinação e decom­ no, seres que, premidos por impulso cego e
posição; e até na gravidade, que age com to­ irresistível, lutam um contra o outro para se
tal potência em toda matéria e atrai a pedra imporem e dominarem o real. Essa dilacera-
para a terra assim como a terra para o céu” . ção, essa luta sem trégua e sem fim, aguça-se
É essa, portanto, a reflexão que torna na ação consciente do homem, subjugando
possível ultrapassar o fenômeno e chegar à e explorando a natureza, por um lado, e no
coisa em si. O fenômeno é representação e cruel conflito entre os diversos egoísmos
nada mais; “ coisa em si é somente a vontade, indomáveis, por outro. Em poucas palavras,
que, a esse título, não é de modo nenhum “ a vontade é a substância íntima, o núcleo
representação; ao contrário, dela difere toto de toda coisa particular e do todo; é aquela
genere". Os fenômenos, ligados ao princípio que aparece na força natural cega e aquela
de identificação que é o espaço-tempo, são que se manifesta na conduta racional do
múltiplos, ao passo que a vontade é única. homem. A enorme diferença que separa os
E é cega, livre, sem objetivo e irracional. dois casos não diz respeito senão ao grau
E a insaciabilidade e a eterna insatisfação da manifestação; a essência do que se ma­
que darão lugar a uma cadeia ascensional nifesta permanece absolutamente intacta” .
de seres nas forças da natureza, no reino

IV. D or, libertação e redenção


v id a o sc ila também o mais necessitado dos seres; nada
mais é que vontade e necessidade, de modo
en tre a d o r e. o t é d io
que se poderia defini-lo até como concretude
de necessidades” .
A vida é necessidade e dor. Se a neces­
A essência do mundo é vontade insaciá­ sidade é satisfeita, então mergulhamos na
vel. A vontade é conflito e dilaceração e, por­ saciedade e no tédio: “ O fim, em substân­
tanto, dor. E “ à medida que o conhecimento cia, é ilusório: com a posse, desvanece todo
torna-se mais distinto, e que a consciência atrativo; o desejo, porém, renasce de nova
se eleva, cresce também o tormento, que forma e, com ele, a necessidade; caso contrá­
alcança no homem o grau mais alto, tanto rio, eis a tristeza, o vazio, o tédio, inimigos
mais elevado quanto mais inteligente é o ho­ ainda mais terríveis do que a necessidade” .
mem; o homem de gênio é o que sofre mais” . Segue-se daí que a vida humana oscila, como
Com o diz o Eclesiastes, “ qui auget pêndulo, entre a dor e o tédio. Dos sete dias
scientiam, auget et dolorem” . A vontade é da semana, seis são dor e necessidade, e o
tensão contínua e, “ como todo tender nasce sétimo é tédio.
de uma privação, do descontentamento com Em Parerga e Paralipomena, Schope­
o próprio estado, é, portanto, enquanto nhauer sustenta que, no fundo, o homem é
não for satisfeito, um sofrer; mas nenhuma um animal selvagem e feroz. Conhecemos
satisfação é durável; aliás, nada mais é do o homem somente naquele estado de man­
que o ponto de partida de novo tender. O sidão e domesticidade chamado civilização,
tender se vê sempre impedido, está sempre mas basta um pouco de anarquia para que
em luta, e, portanto, é sempre um sofrer. nele se manifeste a verdadeira natureza
N ão há nenhum fim último para o tender; humana: “ O homem é o único animal que
portanto, nenhuma medida e nenhum fim faz os outros sofrerem pelo único objetivo
para o sofrer” . de fazer sofrer” .
A essência da natureza inconsciente Substancialmente, o que é positivo,
é aspiração constante, sem objetivo e sem ou seja, real, é a dor; ao passo que o que
repouso. E, ao mesmo tempo, a essência do é negativo, ou seja, ilusório, é a felicidade:
animal e do homem é querer e aspirar: sede “ Nenhum objeto da vontade, uma vez al­
inextinguível. E “ o homem, sendo a objeti- cançado, pode dar satisfação durável, que
vação mais perfeita da vontade de viver, é não mude mais; assemelha-se à esmola que,
- - ■ , „ 215
Cãpltulo décimo - ; A r t k u r S c k o p e i ^ k a u e r : o m u n d o c o m o V o n + a d e ^ e 'V e p ^ e s e n t a ç à o "

jogada ao mendigo, prolonga hoje sua vida, estética, o intelecto rompe sua servidão à
para amanhã continuar seu tormento” . E a vontade, deixando de ser o instrumento que
dor e a tragédia não são somente a essência procura os meios para satisfazê-la; torna-se
da vida dos indivíduos, mas também a essên­ puro olho que contempla.
cia da história de toda a humanidade. A arte — que, da arquitetura (que
A vida é dor e a história é acaso cego. expressa a idéia das forças naturais) à escul­
O progresso é uma ilusão. A história não é, tura, da pintura a poesia, chega à tragédia,
como pretende Hegel, racionalidade e pro­ a mais elevada forma de arte — objetiva
gresso; todo finalismo e qualquer otimismo a vontade. E quem a contempla está, de
são injustificáveis. certo modo, fora dela. Assim, “ a tragédia
expressa e objetiva a dor sem nome, o afã
da humanidade, o triunfo da perfídia, o
A lib e r ta ç ã o escarnecedor senhorio do acaso e o fatal
precipício dos justos e inocentes” ; e é desse
p o r m e io d a a r + e
modo que ela nos permite contemplar a
natureza do mundo.
Entre as artes, a música não é aquela
O mundo como fenômeno é represen­ que expressa as idéias, isto é, os graus de ob-
tação. M as, em sua essência, é vontade cega jetivação da vontade, mas expressa a própria
e irrefreável, perenemente insatisfeita, dila­ vontade. Por isso, ela é a arte mais universal
cerando-se entre forças contrastantes. Toda­ e profunda: a música é capaz de narrar “ a
via, quando o homem, aprofundando-se em história mais secreta da vontade” .
seu próprio íntimo, consegue compreender A arte, portanto, é libertadora. Entre­
isso, ou seja, que a realidade é vontade e que tanto, esses momentos felizes da contempla­
ele próprio é vontade, então está pronto para ção estética, nos quais nos sentimos libertos
sua redenção: e esta só pode se dar “ com o da tirania furiosa da vontade, são instantes
deixar de querer” . breves e raros. Conseqüentemente, a liber­
Em suma, na opinião de Schopenhauer, tação da dor da vida e a redenção total do
só podemos nos libertar da dor e do tédio e homem devem ocorrer por outro caminho.
nos subtrair à cadeia infinita das necessida­ E este é o caminho da ascese.
des mediante a arte e a ascese.
Com efeito, na experiência estética,
o indivíduo separa-se das cadeias da von­
tade, afasta-se de seus desejos, anula suas v scese e red en ção
necessidades, deixando de olhar os objetos
em função de eles lhe poderem ser úteis ou
nocivos. N a experiência estética, o homem A ascese significa que a libertação do
se aniquila como vontade e se transforma em homem em relação ao alternar-se fatal da
puro olho do mundo, mergulha no objeto e dor e do tédio só pode se realizar suprimin­
esquece-se de si mesmo e de sua dor. do em nós mesmos a raiz do mal, isto é, a
E esse puro olho do mundo já não vê vontade de viver. E o primeiro passo para
objetos que têm relações com outras coisas, tal supressão se verifica pela realização da
não vê objetos úteis ou nocivos, mas percebe justiça, ou seja, mediante o reconhecimen­
idéias, essências, modelos das coisas, fora do to dos outros como iguais a nós mesmos.
espaço, do tempo e da causalidade. A arte Entretanto, a justiça golpeia o egoísmo,
expressa e objetiva a essência das coisas. E, mas leva-me a considerar os outros como
precisamente por isso, ajuda-nos a nos afas­ distintos de mim, como diferentes de mim.
tarmos da vontade. O gênio capta as idéias E, por isso, não acaba com o principium
eternas e a contemplação estética mergulha individuationis que fundamenta meu egoís­
nelas, anulando aquela vontade que, tendo mo e me contrapõe aos outros. E preciso,
optado pela vida e pelo tempo, é somente portanto, ultrapassar a justiça e ter a cora­
pecado e dor. gem de eliminar toda distinção entre nossa
Em suma, na experiência estética não individualidade e a dos outros, abrindo os
estamos mais conscientes de nós mesmos, olhos para o fato de que todos nós estamos
mas somente dos objetos intuídos. A expe­ envolvidos na mesma desventura.
riência estética é a anulação temporária da Esse passo ulterior é a bondade, o amor
vontade e, portanto, da dor. N a intuição desinteressado para com seres que carregam
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n t e s + a d o r e s d o s is + e m a h e g e l i a n o

a mesma cruz e vivem nosso mesmo destino e perfeita” . A castidade perfeita liberta da
trágico. Bondade, portanto, que é com­ realização fundamental da vontade no seu
paixão, sentir a dor do outro por meio da impulso de geração. A pobreza voluntária
compreensão de nossa própria dor: “Todo e intencional, o conformismo e o sacrifício,
amor (agápe, charitas) é com paixão” . também tendem para o mesmo objetivo, isto
E é precisamente a com paixão que é, a anulação da vontade.
Schopenhauer insere como fundamento da Enquanto fenômeno, o homem é um
ética. Em todo caso, porém, também a pie­ elo da cadeia causai do mundo fenomênico.
dade, isto é, o compadecer, ainda é padecer. M as, reconhecendo a vontade como coisa
E o caminho para erradicar de modo deci­ em si, esse conhecimento age sobre ele como
sivo a vontade de viver e, portanto, a dor, é aquietante do seu desejo. E é assim que o
o caminho da ascese, aquela ascese que faz homem se torna livre, se redime e entra na­
Schopenhauer sentir-se próximo dos sábios quilo que os cristãos chamam de estado de
hindus e dos santos ascetas do cristianismo. graça. A ascese arranca o homem da vontade
A ascese é o horror que experimen­ de vida, do vínculo com os objetos, e é assim
tam os pela essência de um mundo cheio que lhe permite aquietar-se.
de dor. E “ o primeiro passo na ascese, ou Quando a voluntas torna-se noluntas,
na negação da vontade, é a castidade livre o homem está redimido.
- - • „ „ » 217
Capítulo décimo - y W K u r S c h o p e n U a u e r : o in u n d o c o m o " v o n t a d e " e 'V e p e e s e n t a ç ã o "

SCHOPENHAUER
O MUNDO COMO REPRESENTAÇÃO, ISTO È, COMO FENÔMENO
Tudo o que existe para o conhecimento, isto é, o mundo inteiro,
é fenômeno,
ilusão que vela a realidade das coisas em sua essência primigênia e autêntica:
é representação,
que tem duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis

o s u je it o : o o b je to :

aquilo que tudo conhece, aquilo que é conhecido e condicionado


sem ser conhecido por ninguém, pelas formas a priori do tempo e do espaço.
fora do tempo e do espaço. Toda a realidade do objeto (da matéria)
O sujeito ordena as representações se esgota em sua
(sensações, percepções, pensamentos)
em um cosmo cognoscitivo
por meio da categoria da

CAUSALIDADE
1. objetos naturais (necessidade física = tornar-se)
(princípio de razão suficiente), ► 2. juízos e silogismos (necessidade lógica = conhecer)
cujas quatro formas ^ 3. entes aritméticos e geométricos (necessidade matemática = ser)
determinam as categorias 4. ações e seus motivos (necessidade moral = agir)
dos objetos cognoscíveis

O MUNDO COMO VONTADE, ISTO É, COMO NÚMENO


A essência íntima de toda a universalidade dos fenômenos,
o númeno que se capta depois de ter rasgado o “véu de Maya” ,
é a vontade:
o ímpeto cego e irresistível que penetra e se estende por todo o universo.
A vontade é única e irracional,
insatisfação insaciável e eterna, conflito e laceração
T .
j Daí segue-se que
A VIDA NO UN IVERSO É D O R E A H ISTÓ RIA HUM ANA É ACASO CEGO

_ a VIDA H UM ANA é

necessidade e dor ► se a necessidade é satisfeita, então se tem k saciedade e tédio


-4---- - ------- -..- - ...............----- ---------------------
?
Mas quando o homem chega a compreender que a realidade é vontade,
então está pronto para a r e d e n ç ã o , cujas etapas ascensionais são:
1. a arte: a experiência estética (principalmente a música) torna objetiva a vontade, e é sua anulação temporária
2. a justiça: o reconhecimento dos outros como iguais a nós
3. a bondade: a com-paixão para com os seres que vivem nosso mesmo destino trágico (fundamento da ética)
4. a ascese-, primeiro como livre e perfeita castidade, que arranca o homem da vontade de viver
5. a noluntas: cessação completa do querer
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n t e s t a d o >*es d o s i s t e m a h e g e l i a n o

para aquilo que está próximo: de modo que


S ch o pen h a u er vale até para o tempo e o espaço, dentro dos
quais tudo é distinto. Tudo o que está compreen­
dido e pode ser compreendido no mundo, deve
inevitavelmente ter como condição o sujeito,
e existe apenas para o sujeito. O mundo é
representação.
"O mundo . (Esta verdade de modo nenhum é nova.
é uma representação minha" 0a já se encontrava na concepção dos céticos,
de onde moveu Descartes. Mas Berkeley foi o
primeiro a exprimi-la resolutamente, e adquiriu
Nenhuma verdade - dizia Schopenhauer assim um mérito imortal em relação à filosofia,
- é mais certa do que esta: "Tudo aquilo embora o resto de suas doutrinas não possa
que existe para o conhecimento - portanto, se sustentar. O primeiro erro de Kant foi a ne­
este mundo inteiro - é apenas objeto em gligência deste princípio, como será exposto no
relação ao sujeito [...], em uma palavra, apêndice. O quão remotamente, ao contrário,
representação". tal verdade fundamental fosse reconhecida pe­
los sábios indianos, aparecendo como base da
filosofia Vedanta atribuída a Vyasa, nos atesta
LU. Jones, em sua última memória On the philo-
"O mundo é minha representação": esto é sophy ofthe Usiotics; “flsiatic Reseorches", vol.
uma verdade que vale em relação a cada ser IV, p. 164: "the fundamental tenet of the Vedanta
vivo e que conhece, embora apenas o homem school consisted not in denting the existence
seja capaz de acolhê-la na consciência reflexa of matter, that is of solidity, impenetrability,
e abstrata: e se ele verdadeiramente faz isto, and extended figure (to deny uuhich ujould be
deste modo penetrou nele a meditação filosó­ lunacy), but in correcting the popular notion of
fica. Para ele torna-se então claro e bem certo it, and in contending that it has no essence in-
que não conhece nem o sol nem a terra, mas dependent of mental perception; that existence
apenas um olho, o qual vê um sol, uma mão, a and perceptibility are convertible terms".1£stas
qual sente uma terra; que o mundo pelo qual palavras exprimem suficientemente a coexistên­
é circundado não existe a não ser como repre­ cia da realidade empírica com a idealidade
sentação, ou seja, sempre e em todo lugar em transcendental.
relação a outro, àquele que representa, o qual Portanto, apenas do ponto de vista in­
é ele próprio. Se acaso uma verdade pode ser dicado, apenas enquanto é representação,
enunciada o priori é justamente esta: sendo a consideramos o mundo neste primeiro livro.
expressão daquela forma de toda experiência €mbora esta consideração, malgrado sua verda­
imaginável e possível, a qual é mais universal de, seja unilateral e, portanto, obtida por meio
que todas as outras formas, mais que tempo, de uma abstração arbitrária, é fato evidente o
espaço e causalidade; pois todas estas pres­ cada um a partir da íntima relutância que ele
supõem justamente aquela. £ se alguma de experimenta de conceber o mundo apenas
tais formas, que reconhecemos todas como como sua pura representação; conceito do qual,
iguais determinações particulares do princípio por outro lado, ele jamais poderá se subtrair.
da razão, tem valor apenas para uma classe es­ Mas a unilateralidade desta consideração será
pecial de representações, o divisão em objeto integrada no livro seguinte com outra verdade,
e sujeito é, ao contrário, forma comum de todas que não é certamente tão imediata como aquela
as classes: é a forma única em que qualquer da qual aqui partimos; e sim tal que a ela se
representação, de qualquer espécie, abstrata pode ser conduzido apenas pela mais profunda
ou intuitiva, pura ou empírica, é possível e ima­ pesquisa, mais difícil abstração, separação do
ginável. Nenhuma verdade é, portanto, mais diferente e reunião do idêntico, uma verdade
certa, mais independente de qualquer outra, que deve aparecer muito grave e, para cada
nenhuma tem menor necessidade de ser prova­
da, do que esta: tudo aquilo que existe para o
conhecimento - portanto, este mundo inteiro - é '"O dogma fundamental da escola Vedanta não con­
apenas objeto em relação ao sujeito, intuição sistia em negar a existência da matéria, isto é, da solidez,
de quem intui; em uma palavra, representação. impenetrabilidade e extensão (o que seria tolo negar), mas
em corrigir o conceito vulgar dela: afirmando que a matéria
Naturalmente isto vale, como para o presente, não tem uma existência independente da percepção mental,
também para qualquer passado e qualquer que existência e perceptibilidade são termos mutuamente
futuro, para aquilo que está longíssimo como conversíveis".
'
Cãpltulo ' ■ - y\r+kur í ^ c k o p e n h a u e r :
décifTlO „ „ . .
o m u n d o c o m o rtv o n t a d e /,e /V e p r e s e n f a ç ã o ,/
219

um, c q s o não como amedrontadora, oo menos com relógios, que recebem corda e ondam,
merecedora de reflexão: ou seja, esto, que ele sem saber o porquê; e a cada vez que um ho­
justamente pode dizer e deve dizer: "o mundo mem é gerado e dado à luz, o relógio da vida
é minha vontade". humana de novo recebe corda, para mais uma
Contudo, por ora, neste primeiro livro, é vez repetir, frase por frase, batida por batida,
necessário considerar, sem disso se afastar, o com variações insignificantes, a mesma música
aspecto do mundo do qual partimos, o aspec­ já infinitas vezes tocada. Cada indivíduo, cada
to da cognoscibilidade e por isso, deixando vulto humano e cada vida nõo são mais que um
todo relutância, examinar todos os objetos novo breve sonho do infinito espírito natural, da
existentes, compreendendo até nosso corpo permanente vontode de viver; não são mais que
(como será melhor explicado logo depois), ex­ nova imagem fugitiva, que a vontade traço por
clusivamente como representações; e também brincadeira sobre a folha infinita do espaço e
quais representações definir. De tal modo se do tempo, deixando-a durar um átimo apenas
faz abstração, unicamente e sempre, o partir perceptível diante da imensidão daqueles, e
da vontade, segundo mais tarde será para depois cancelando-o, para dar lugar a outras,
aparecer evidente, espero, para todos; como flpesar disso, e aí está o aspecto grave da
por aquela que sozinha constitui o outro as­ vida, cada uma de tais imagens fugazes, cada
pecto do mundo: porque como o mundo é de um de tais coprichos insípidos devem ser pagos
um lado, em tudo e para tudo, representação, por toda a vontade de viver, em toda a sua vio­
assim também, do outro, em tudo e para tudo, é lência, com muitas e profundas dores, e no fim
vontade. Uma realidade, ao contrário, que não com morte amarga, longamente temida e que
seja nem esta nem aquela, e sim um objeto em finalmente chega. Por este motivo o visão de um
si (como infelizmente se tornou a coisa em si cadáver nos deixa subitamente melancólicos.
de Kant, degenerando em suas mãos) é uma R vido de cada indivíduo, se a olharmos
quimera de sonho, e sua assunção um fogo- em seu conjunto, revelando apenas seus traços
fátuo da filosofia. significativos, na verdade é sempre uma tragé­
dia; mas, examinada em seus particulares, tem
fl. Schopenhauer, a característica da comédia. Com efeito, a agi­
O mundo como vontade e representação. tação e o tormento do dia, a incessante ironia
do instante, o querer e o temer da semana, os
acidentes desagradáveis de cada momento,
em virtude do acaso sempre ocupado em feios
repentes, são verdadeiras cenas de comédia.
2 A vida de coda indivíduo Todavia, os desejos sempre insatisfeitos, a vã
aspiração, as esperanças apisoadas sem pie­
é sempre uma tragédia dade pelo destino, os erros funestos de toda a
vida, com acréscimo da dor e com morte no fim,
constituem sempre uma tragédia. Assim, como
"fl vida de codo indivíduo é um breve se o destino tivesse desejado acrescentar a
sonho [...] do vontade permanente de viver". zombaria ao peso de nossa existência, nossa
Fl vida de cada homem individual "não é vida deve conter todos os moles da tragédia, ao
mais que uma novo imagem Fugitiva, que a passo que não conseguimos sequer conservar
vontade traça por brincadeira sobre a Folho a gravidade de personagens trágicos e, ao
infinito do espaço e do tempo, deixondo-a contrário, somos inevitavelmente, nos muitos
durar um átimo apenas perceptível diante da casos particulares da vida, tipos ridículos de
imensidão daqueles, e depois cancelando-a, comédia.
para dar lugar a outras". Todavia, ainda que os grandes e peque­
nos tormentos preencham cada vida humana,
mantendo-a em perene inquietude e movimen­
to, eles não podem cobrir o insuficiência da vida
é de fato incrível, assim como insignificante em relação à satisfação do espírito, nem o vazio
e sem sentido, vista de fora, e como opaca e e a falta de sabor da existência, nem afugentar
irrefletidamente, vista de dentro, transcorre o tédio, que sempre está pronto para encher
a vida de quase toda a humanidade. (: um cada pausa deixada pela angústia. Daí proveio
lânguido aspirar e sofrer, um cambalear sonha­ que o espírito humano, ainda não satisfeito
dor através das quatro idades da vida até a com as angústias, amarguras e ocupações im­
morte, com o acompanhamento de uma fila de postas pelo mundo real, cria em acréscimo, na
pensamentos triviais. Os homens se parecem forma de mil variadas superstições, um mundo
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n t e s fa d o r e s d o s iste m a h e g e lia n o

imaginário, com o qual se ofodigo de todos os -----► -----------------------------------------


modos, com isso dissipando tempo e forças, tão encosta com cada um de seus passos, e aliás
logo o mundo real lhe deixe um repouso que para ele aponta em linha reta o leme, para
ele não sabe fruir. Cste é também muitíssimo o total, inevitável e irreparável naufrágio: a
freqüente, na origem, o caso daqueles povos morte. Este é o termo último da afadigada
cuja doçura do clima e do sol torna cômoda a viagem, e para ele pior de todos os escolhos,
vida; sobretudo os hindus,\e depois os gregos, dos quais havia fugido”.
os romanos e, mais tarde, os italianos, espa­
nhóis e assim por diante. Demônios, deuses
e sontos o homem cria à suo próprio imagem; Seu [do indivíduo humano] verdadeiro e
a eles devem incessantemente ser tributados próprio ser existe apenas no presente, cujo
sacrifícios, preces, adornamento de templos, não contida fuga paro o passado é um perene
votos e conseqüentes ofertas, peregrinações, passar paro a morte, um perene morrer; pois suo
saudações, alfaias de suas imagens etc. Seu vida passada, prescindindo de suas eventuais
culto se cruza em todo lugar com a realidade, conseqüências no presente, como também pelo
ou melhor, obscurece-a: todo acontecimento da testemunho que dá de sua vontade, o qual se
vida é tomodo então como efeito da ação de encontra interiormente impressa, já está com­
tais seres: as relações com eles enchem metade pletamente fechada, morta e reduzida a nado:
da vida, alimentam diariamente a esperança e a razão quer, portanto, que lhe seja indiferente,
se tornam, freqüentemente, pelo fascínio da caso angústias ou olegrias fossem o conteúdo
ilusão, mais interessantes do que as relações de seu passado. O presente foge sempre de
com a vida real. São a expressão e o sintoma suas mãos, tornando-se passado: o futuro é
da dupla necessidade, que impele o homem de de fato incerto e sempre curto, C, portanto, sua
um lado à busca de ajuda e apoio, e de outro existência, mesmo que vista apenas sob o as­
à ocupação e passatempo: e quando também pecto formal, um perene precipitar do presente
operam freqüentemente no oposto contra a pri­ no passado morto, um perene morrer. Mas ago­
meiro destas necessidades, fazendo com que, ra nós o olhamos também sob o aspecto físico;
em coso de desventuras e perigos, sejam usa­ é claro que, como nosso caminhar nada mois é
dos tempo precioso e forças não paro deles se que um constantemente contido coir, também a
defender, mas em vão consumidos em orações vida de nosso corpo é constantemente contido
e sacrifícios, justamente por isso servem ainda morrer, uma morte sempre postergada: e do
melhor à segunda necessidade, por meio da mesmo modo, para concluir, a atividade de
comunicação fantástica com um sonhado mundo nosso espírito é um constante afastar o tédio.
de espíritos. 6 este é o fruto, de modo nenhum Cada respiro remove a morte sempre premente,
desprezível, de toda superstição. com a qual estamos a combater em todos os
fl. Schopenhauer, minutos, do mesma forma como o combatemos,
O mundo como vontade e representação. em intervalos maiores, com cada refeição, cada
sono, cada aquecimento, e daí por diante. No
fim o morte deve vencer: porque pertencemos
o ela já pelo fato de termos nascido, e ela
não faz mais que brincar por algum tempo com
sua presa, antes de devorá-la. Cntrementes,
"fl base de todo querer continuamos nossa vido com grande interesse
é necessidade, carência, e grande cuidado, até quando possível, como
ou seja, dor" se enche o mais que se pode uma bolha de
sabão, embora com o firme certeza de que ela
estourará.
fl vida oscila entre a dor e o tédio; é Vemos a natureza privada de conhecimen­
a objetivaçõo mais perfeita da vontade de to ter por seu íntimo ser um contínuo aspirar,
viver; por isso sua essência é "querer e aspi­ sem meta e sem descanso; bem mais evidente
r a r o homem é vontade e necessidades e, nos aparece esta aspiração ao considerar o
portanto, dor. "fl própria vida é um mar cheio animal e o homem. Querer e aspirar é toda
de escolhos e vórtices, dos quais o homem o essência deles, de fato semelhante a uma
procura escapar com a máxima prudência sede inextinguível. Mas a base de todo querer
e cuidado; embora sabendo, que quando é necessidade, carência, ou seja, dor, à qual
também conseguir, com todo esforço e arte, o homem está vinculado desde a origem,
dele fugir, por causa disso justamente se por natureza. Vindo-lhe, ao contrário, a faltar
objetos do desejo, quando este é ofostado
' _ ' 221
Cãpltulo décilflO - jA f+ h u r' S c h o p e n h a u e r: o m u n d o co m o "v o n + ad e"e " r e p r e s e n ta ç ã o ” _ _

por uma demasiadamente fácil satisfação, tre­ aproxima com cada um de seus passos e até
mendo vazio e tédio o oprimem, ou seja, suo para eles aponta em linho reto o leme, paro o
natureza e seu próprio ser se lhe tornam peso total, inevitável e irreparável naufrágio: a morte.
intolerável. Sua vida oscila, portanto, como um Cste é o termo último da afadigada viagem, e
pêndulo, para cá e para lá, entre a dor e o para ele pior do que todos os escolhos, dos
tédio que, na realidade, são seus verdadeiros quais havia fugido.
elementos constitutivos. Tal condição deveu-se Todavia, aqui se nos apresenta de repente
exprimir particularmente também pelo fato de como muito notável, que de um lado as dores
que, quando o homem pôs no inferno todas as e tormentos da existência possam facilmente
dores e tormentos, pora o céu restou disponível acumular-se a tal ponto que a própria morte,
apenas o tédio. na fuga da qual consiste a vida inteira, torna-se
Todavia, o permanente aspirar, no qual se desejada, e espontaneamente se lhe corre ao
constiui a essência de todo fenômeno da von­ encontro; do outro, que tão logo a miséria e a
tade, tem nos graus superiores da objetivação dor concedem ao homem uma trégua, o tédio
seu primeiro e mais geral fundamento, pelo fato torna-se tão próximo que ele, por necessidade,
de que aí a vontade aparece a si própria como precisa de um passatempo. Aquilo que ocupa
um corpo vivo, com a obrigação férrea de nutri- e agrava todos os vivos é a fadiga pela exis­
lo, e aquilo que dá império a esta obrigação é tência. Todavia, logo que a existência esteja
exatamente o fato desse corpo ser nada mais assegurada, não sabem o que fazer: por isso,
que a própria vontade objetivada de viver. O o segundo impulso, que os faz se moverem, é
homem, como a mais completa objetivação do o esforço de aliviar-se do peso do ser, de tor­
vontade, é, por conseguinte, também o mais ná-lo insensível, de ''matar o tempo", ou seja,
necessitado de todos os seres: é em tudo e de fugir do tédio. Vemos, portanto, que quase
para tudo um querer, um necessitar tornado todos os homens ao abrigo de necessidades e
concreto, é a concretização de mil necessidades. cuidados, quando, por fim, removem de si todos
Com estas ele está sobre a terra, abandonado os outros pesos, acham-se pesados para si
a si mesmo, incerto de tudo, exceto da própria mesmos, apesar de terem ganho cada hora que
penúria e das próprias necessidades: a ânsia passa, ou seja, exatamente toda subtração feita
pela conservação da existência, entre tantas daquela vida, para cuja conservação o mais
exigências tão graves e que a cada dia se re­ possível longa tinham até então empregado
novam, enche em geral a vida humana inteira. todas as forças. C o tédio de modo nenhum é
Aí se junta imediatamente o segundo imperioso um mal que conta pouco: ele acaba imprimindo
anseio, o de continuar a espécie. Ao mesmo um verdadeiro desespero sobre o rosto. Cie faz
tempo ameaçam o homem de todo lado os com que seres, que tão pouco se amam mutua­
mais variados perigos, para escapar dos quais mente, como os homens, apesar de tudo se
é preciso vigilância permanente. Com passo aproximem avidamente, e torna-se desse modo
precavido, e ansiosamente espiando ao redor, o princípio da sociabilidade. Também contra
elevai pelo seu caminho, porque mil acidentes ele, assim como contra outras calamidades
e mil inimigos o insidiam. Assim caminhava nas universais, são tomadas precauções públicas, e
florestas, e assim caminha na vida civilizada: até por razão de Cstado; porque este mal, não
para ele não existe segurança de saída: menos que seu extremo oposto, a fome, pode
impelir os homens oos maiores desenfreios:
Qualibus in tenebris vitae, quantisque periclis panem et circenses,3 deseja o povo. O severo
Degitur hoc aevi, quodcunque estl sistema penitenciário de Filadélfia toma como
Lucrécio, II, 15-1 ó2 instrumento de punição o simples tédio, por
meio da solidão e da inação: e é tão terrível
A vida da maioria não é mais que uma que já levou os presos ao suicídio. Assim como
batalha diária pela existência, com a certeza da a necessidade é o flagelo perpétuo do povo,
derrota final. Mas aquilo que os faz continuar também é flagelo o tédio para as classes ele­
nessa tão árdua batalha não é tanto o amor vadas. Na vida burguesa isso é representado
pela vida, mas o medo da morte, o qual, ape­ pelo domingo, assim como a necessidade pelos
sar de tudo, encontra-se inevitável no fundo, seis dias de trabalho.
e pode a cada minuto sobrevir. A própria vida
é um mar cheio de escolhos e vórtices, dos
quais o homem procura escapar com a máxima
prudência e cuidado: embora sabendo, que esto2“€m que trevas, entre quantos perigos transcorre
vida, sejo elo qual for" (lucrécio, De rerum natura,
quando também conseguir, com todo esforço e II, 15-16).
arte, deles fugir, por causa disso justamente se 3"Pão e circo". Juvenal, X, 81.
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n ie s t a d o r e s d o s iste m a k e g e lia n o

Cntre o querer e o alcançar transcorre, por­ puramente intelectuais são inacessíveis à maior
tanto, toda a vida humana. O desejo é, por suo parte dos homens; eles, de fato, são quase
natureza, dor: o alcance gera logo sociedade: a incapazes do prazer, que consiste no puro co­
meta era apenas aparente: a posse disperso o nhecimento. Portanto, se nenhuma coisa quiser
atração: de novo formo se reapresenta o dese­ chamar suo atenção e ser interessante paro
jo, a dor; de outro modo, continua a monotonia, eles, deve (e isso é inerente ao próprio valor
o vazio, o tédio, contra os quais temos a batalha da palavra) estimular de algum modo o vontade
igualmente atormentada como a feita contra a deles, mesmo que apenas paro uma remota e
necessidade. Quando o desejo e a satisfação também meramente possível relação com ela; a
se sucedem sem intervalos demasiado breves vontade jamais pode, de fato, permanecer fora
e demasiado longos, o sofrimento é reduzido, do jogo, porque o ser deles está muito mais no
pois ambos produzem, em termos mínimos, e querer do que no conhecer: ação e reação é o
se tem então a vida mais feliz. Contudo, aquilo único elemento deles, fls manifestações ingê­
que fora disso se poderia chamorde parte mais nuas desta natureza deles podem ser colhidas
bela, de mais pura alegria da vida, justamente também em coisas pequenas e em fatos ordi­
porque nos eleva sobre a existência real e nos nários como, por exemplo, escrever seu nome
transmuta em serenos expectadores dela: ou nos lugares notáveis que vão visitar, para assim
seja, o puro conhecimento, oo qual todo querer reagir, para agir sobre o lugar, uma vez que o
é estranho, o gozo do belo, o genuíno prazer lugar não agiu sobre eles; além disso, não so­
da arte, requerendo atitudes já raras, é dado bem facilmente se contentar de contemplar um
apenas a pouquíssimos, e também a pouquís­ animal exótico e raro, mas devem açulá-lo, pro­
simos apenas como um sonho efêmero. € a vocá-lo, brincar com ele, para sentir nada mais
mais elevada força intelectual torna justamente que ação e reação. Fl necessidade de excitação
estes capazes de bem maiores sofrimentos, do vontade mostra-se sobretudo no invenção e
maiores do que podem sentir os mais obtusos na prática do jogo cortas, que exprime otima­
e, além disso, deixa-os solitários entre seres mente o aspecto lamentável da humanidade.
muito diferentes deles, de modo que até aquela fl. Schopenhciuar,
vantagem tem compensação. Mas as olegrias O mundo como vontade e representação.
(S a p í t u l o d é c i m o p r i m e i r o

S oren Kierkegaard:
//
a filosofia existencial do ^indivíduo
e a V a u s a do cristianismo 77

• O existencialismo contemporâneo foi proposto, em alguns Kierkegaard-


de seus autores, como uma Kierkegaard-Renaissance; e deste ARenaissance
modo trouxe em primeiro plano, no cenário da filosofia, o pensa­ -->§1.1
mento do filósofo solitário que foi Sõren Kierkegaard, que nasceu
e cresceu no restrito ambiente cultural da Dinamarca de então.
• Kierkegaard (1813-1855) vive a relação com o pai e com a família como uma
"cruz"; a sua é uma dolorosa relação religiosa, vivida sob o signo do castigo de
Deus. Não desposa Regina Olsen "porque Deus tinha a precedên­
cia". Combate a "apologética científica" e a teologia científica "Deus tinha
"incrédula" que quer provar Deus, porque está convencido de a precedência"
que o cristianismo não é cultura. E ataca Hegel e o bispo Mynster, $ /-2' Vl>VI1
que reduziam o cristianismo a cultura. "O cristianismo - anota
Kierkegaard no Diário - aqui não existe mais, mas, para que se possa falar de rea-
vê-lo, era preciso despedaçar o coração de um poeta e este poeta sou eu".
• O de Kierkegaard é um pensamento essencialmente religioso; sua filosofia
existencial é uma verdadeira e própria teologia experimental ou, melhor ainda,
uma autobiografia teológica que se desdobra em uma imponente literatura: Aut-
Aut (1843) - é aqui que Kierkegaard descreve o ideal de vida
estético, o do sedutor que vive átimo por átimo perdendo-se e a obra
dissipando-se no prazer; desse ideal de vida se sai com o salto de Kierkegaard
(portanto aut-aut e não et-et) que conduz à vida ética - a do é uma. .
honesto pai de família; depois há o salto que leva à existência autobiografia
religiosa -; Temor e tremor (1843); Migalhas de filosofia (1844); te°i°ifí% v,. Víl
O conceito de angústia (1844); Apostila conclusiva não científica ^ ' ' '
(1850). De fundamental importância é, depois, o Diário, que inicia
em 1833, quando Kierkegaard tinha vinte anos, para chegar aos últimos dias de
setembro de 1855, dois meses antes da morte. Morte aceita com infinita gratidão
pela Providência que lhe havia concedido testemunhar a idéia do cristianismo
como "verdade sofredora".
• Contra Hegel, Kierkegaard é mais duro do que Schopenhauer. Hegel é uma
figura cômica: é cômica a situação de um espírito sistemático que acredita conse­
guir dizer tudo e está persuadido de que o incompreensível seja algo de falso e
de secundário. A filosofia de Hegel é a mais repugnante de todas
as formas de libertinagem. Ecom toda prontidão Kierkegaard se A filosofia
lança contra o sistema hegeliano e faz isso em nome do indivíduo. deHegel
Para Kierkegaard, a única alternativa válida ao hegelianismo é é "a mais
constituída pelo indivíduo. Para Hegel o que conta, como na prenhe de todas
espécie biológica, não é o indivíduo, mas a humanidade. Porém as formas de
o indivíduo - diz Kierkegaard - conta mais que a espécie: o in­ libertinagem“
divíduo, insubstituível, irredutível, original, é a contestação e a III. 2
refutação do sistema. §
224 . ,
Quarta parte - O s 0 r a n d e s c o n + e s+ a d o re s d o sis+em a K eg elia n o

• O indivíduo, em sua unicidade e irrepetibilida


Com o ser eliminado por nenhum sistema, não pode ser homologado
"indivíduo " por nenhum conceito. E eis, então, que o indivíduo põe em
"subsiste xeque todas as formas de imanentismo e de panteísmo com as
ou cai a causa
do cristianismo'
quais se tenta reabsorver o individual no universal. Deste modo
§ 111.3
o indivíduo se transforma no baluarte da transcendência: "O
->
indivíduo: com esta categoria - escreve Kierkegaard - subsiste
ou cai a causa do cristianismo [...]; o indivíduo é e permanece a
âncora que deve frear a confusão panteísta, é e permanece o peso com o qual
podemos reprimi-la [...]".
Não se trata
• A verdade cristã não é, para Kierkegaard,
de justificar a ser demonstrada; mas é muito mais uma verdade a ser teste­
munhada, "reduplicando" a Revelação
o cristianismo, se reservar, para o caso de necessidade, um na própria vida, "sem
mas de crer esconderijo para si
§ IV. 1 mesmo e um beijo de Judas para as conseqüências". Kierkegaard
->
contesta a consideração especulativa do cristianismo, ou seja, a
tentativa de justificá-lo com a filosofia. Não se trata de justifi­
car, mas de crer. E a fé é sempre um salto, tanto para quem é contemporâneo de
Cristo como para quem não é.
• O homem deve ter a coragem de colocar-se como indivíduo em relação
com Deus: "primeiro em relação com Deus e não primeiro com os outros". E esta
relação é constituída por uma infinita diferença abissal entre Deus e o homem.
Isso quer dizer - precisa Kierkegaard - que o homem não pode
O cristianismo absolutamente nada, que é Deus que dá tudo, que é ele que dá
éa verdade ao homem o crer etc. Esta é a Graça, e aqui se tem o princípio do
"da parte cristianismo.
de Deus" Este princípio torna autêntica a existência porque quando alguém
-> § iv.2 se põe diante de Deus para ele não há mais nenhum espaço para
as ficções, as máscaras, as ilusões. O cristianismo é a verdade "por
parte de Deus" e não "por parte do homem". Por isso os professores e os pastores
que, ao invés de satisfazer a eternidade, pretendem satisfazer o tempo - reduzin­
do o cristianismo a cultura - são "canalhas", velhacos que julgam "mais cômodo
adular os contemporâneos".
• O homem enquanto espírito - o indivíduo -, diversamente do que acontece
nas espécies animais, é superior à espécie. O animal tem uma essência, é deter­
minado: a essência, com efeito, é o reino do necessário. Mas o
A angústia modo de ser do indivíduo é a existência: o homem é aquilo que
caracteriza escolhe ser; a existência não é a realidade ou a necessidade, e
a condição sim a possibilidade. "A possibilidade - escreve Kierkegaard em
humana O conceito de angústia - é a mais importante das categorias";
— > § V.l-2 e quem foi educado por meio da possibilidade compreendeu
também seu lado terrível e sabe "que ele não pode pretender da
vida absolutamente nada e que o lado terrível, a perdição, a aniquilação habitam
com cada homem de porta em porta".
A existência é possibilidade, possibilidade como ameaça do nada, possibili­
dade, portanto, como angústia. A angústia caracteriza a situação humana. Mas o
importante é aprender na escola da angústia, compreender que a angústia forma.
Ela de fato destrói todas as finitudes descobrindo todas as suas ilusões. É deste
modo - anota Kierkegaard - que "Deus, que quer ser amado, desce com o auxílio
da inquietação em busca do homem".
• Se a angústia é típica do homem em seu relacionamento com o mundo, o
desespero é próprio do homem em sua relação consigo mesmo. O desespero, escreve
Capítulo décimo primeiro - S õ r e n K ie r k e g a a r d

Kierkegaard, é a doença mortal: "um eterno morrer sem todavia morrer", "uma
autodestruição impotente". O desespero é viver a morte do eu. O desesperado
está mortalmente doente. E a causa primeira do desespero é vista por Kierkegaard
no não querer aceitar-se das mãos de Deus; mas, negar a Deus é
aniquilar a si mesmo, e separar-se de Deus eqüivale a arrancar-se o desesperado
das próprias raízes e afastar-se do "único poço no qual se pode é doente
tirar água". - terminal
E a este ponto é evidente que, se a origem do desespero está -> § v.3
em não querer aceitar-se das mãos de Deus, a existência autêntica
é a disponível ao amor de Deus, a daquele que não crê mais em si mesmo, mas
apenas em Deus, que testemunha "a verdade que é da parte de Deus, e que, le­
vado ao mais alto grau de tédio da vida", está pronto a sustentar de modo cristão
a prova da vida, maduro para a eternidade.

I. ÍÁmcx v i d a q u e rvão brincou


c o m o cr is tia n is m o

; y \ c u lp a se c r e ta d o pai dessa culpa constituiu para ele o “ grande


terremoto” de sua vida. Em 1844, no seu
Diário, fala de “ relação entre pai e filho,
na qual o filho descobre involuntariamente
“Algum dia, não só meus escritos, mas tudo o que está por detrás dos bastidores,
até minha vida e todo o complicado segredo mas sem ter a coragem de ir até o fundo. O
de seu mecanismo serão minuciosamente es­ pai é homem estimado, piedoso e austero.
tudados” . Isso foi o que Kierkegaard disse de Somente uma vez, em estado de embriaguez,
si mesmo. E a profecia tornou-se verdadeira escapam-lhe algumas palavras que fazem
com o existencialismo contemporâneo, que suspeitar a coisa mais horrenda. O filho não
se propôs explicitamente como uma Kierke- consegue sabê-lo por outra via. E jamais
gaard-R enaissance, trazendo novamente ousa perguntar sobre o assunto ao pai ou a
ao primeiro plano, no palco da filosofia, o outras pessoas” .
pensamento daquele filósofo solitário que Talvez a culpa secreta do pai tenha sido
foi Sõren Aabye Kierkegaard, nascido e a “ m aldição” que lançara, quando menino,
crescido no restrito ambiente cultural da contra Deus na deserta charneca de Jutland,
Dinamarca daquele tempo. e que ainda não esquecera com a idade de
Kierkegaard veio ao mundo em 5 de oitenta e dois anos. Ou então o “pecado
maio de 1813, em Copenhagen. Seu pai, com Betsabéia” , cometido com a doméstica
comerciante, desposara em segundas núp­ poucos meses depois da morte da primeira
cias sua própria doméstica. Ao contrário mulher. Seja como for, a revelação improvisa
do primeiro casamento, que fora infértil, o da culpa do pai representaria para Kierke­
segundo foi fecundo de nada menos que sete gaard uma como que lâmpada no escuro,
filhos. Sõren foi o último dos sete filhos, ten­ que lhe permitiria a compreensão profunda
do nascido quando o pai já tinha cinqüenta do mistério de sua vida.
e seis anos e a mãe quarenta e quatro. Por A relação de Kierkegaard com o pai e
isso, ele se definiu “ filho da velhice” . Cinco com a família é uma “ cruz” , uma dolorosa
irmãos de Kierkegaard morreram antes dele. relação religiosa vivida sob a marca do
Somente Pedro, que depois tornou-se bispo castigo de Deus. É uma relação voltada
luterano, lhe sobreviveu. para algo culpável e pecaminoso, que a
Em sua fam ília, sobretudo no pai, divina onipotência cancelaria como ten­
K ierkegaard viu a m arca de um trágico tativa malograda. E também de natureza
destino m isterioso. Falando de obscura religiosa é aquele “ espinho na carne” que
culpa do pai, ele afirma que a revelação bloqueou a tentativa de Kierkegaard de se
Quarta pavte - O s g r a n d e s c o n + e s + a d o r e s d o s is + e m a h e g e l i a n o

realizar no ideal ético e impediu-o de casar ser o bastante. Naquele tempo sofri penas
com Regina Olsen ou também de se tornar indescritíveis [...]. O rompimento definitivo
pastor luterano. ocorreu cerca de dois meses depois. Ela se
desesperou
M ais tarde, Regina casou-se com certo
Schlegel e teve um matrimônio tranqüilo.
2 Por cjue Kierkegaard M as Kierkegaard não a esqueceu; no fundo,
não d esp o so u Tvegina Olsen continuou esperando que a oposição do
mundo, de que ele era vítima, talvez lhe con­
ferisse “ novo valor” aos olhos de Regina.
Regina Olsen, filha de alto funcionário, Além disso, confessa ele, “ a lei de toda
tinha dezoito anos quando, em 1840, com a minha vida é que ela retorna em todos
vinte e sete anos, Kierkegaard pediu-a em os pontos decisivos. Como aquele general
casamento. N o entanto, ele não conseguiu que com andou pessoalm ente os que o
concluir o noivado. “Pedi uma conversa com fuzilavam, eu também sempre comandei
ela, que ocorreu na tarde de 10 de setembro. quando devia ser ferido [...]. O pensamento
N ão disse uma palavra sequer para seduzi- (e isso era amor) era: eu serei teu, ou te será
la: consentiu [...]. M as, no dia seguinte, permitido ferir-me tão profundamente, no
no meu íntimo, vi que me havia enganado. mais íntimo da minha melancolia e na mi­
Um penitente como eu, com minha vida nha relação com Deus de modo que, ainda
ante acta e minha m elancolia... já devia que de ti separado, continuarei sendo teu” .

Sóren Kierkegaard
(1813-1855)
foi o “poeta cristão "
que declarou “ridículo "
o sistema hegeliano,
e para o qual a existência
do indivíduo torna-se
autêntica apenas
diante da “transcendência ” de Deus.
Capítulo décimo primeiro - S ô r e n K ie r k e g a a r d

O conteúdo daquele período de noivado, “ porque Deus tinha a precedência” . E essa


observa Kierkegaard, “ no fundo, nada mais também é a razão por que Kierkegaard re­
foi para mim do que uma seqüela de pe­ nunciou a tornar-se pastor.
nosas reflexões de consciência angustiada. E sempre nessa convicção de fundo,
Perguntava-me: ousarias noivar, ousarias te que a fé relativiza todas as coisas humanas
casar? Que estranho! Sócrates fala sempre e portanto não pode ser reduzida a cultura,
do que havia aprendido com uma mulher. enraíza-se a intensa polêmica que Kierke­
Também eu posso dizer que devo tudo o gaard empreende contra a cristandade de
que tenho de melhor a uma moça; não o seu tempo. Eis o seu pensamento de fun­
aprendi dela, propriamente, mas por causa do: os homens querem “ viver tranqüilos e
dela” . atravessar felizmente o mundo” . Esta é a
N a opinião de Kierkegaard, um peni­ razão pela qual “ toda a cristandade é um
tente, alguém que abraçou o ideal cristão da disfarce, mas o cristianismo de fato não
vida, com toda aquela tremenda seriedade existe” . E Kierkegaard se escandaliza diante
que o cristianismo comporta, não pode viver da realidade, para ele terrível, de que, entre
a tranqüila existência de homem casado. as heresias e os cismas, jamais se encontra
N ão pode aceitar o compromisso mundano a heresia mais sutil e mais cheia de peri­
e a gratificante inserção na ordem constituí­ gos: a heresia que consiste em “ brincar de
da. Regina não podia tornar-se sua esposa cristianismo” .

II. A obra de Kierkegaard,


o^poe+a crisfão;/,
e seus temas de furvdo

O te m a d a fe

Escreve Kierkegaard: “N a espécie ani­ N o Diário de um sedutor — com o


mal, vale sempre o princípio: o indivíduo qual termina o primeiro volume de Aut-Aut
é inferior ao gênero. Já no gênero humano — Kierkegaard delineia o ideal estético da
prevalece a característica, precisamente vida do sedutor, que vive segundo a segun­
porque cada indivíduo é criado à imagem do, dispersando-se na multiplicidade sem
de Deus, de que o indivíduo é mais elevado autêntico empenho ético, e dissipando-se
do que o gênero” . E na defesa do indivíduo, no prazer. E dessa forma de vida, que é
uma vez assumido com toda a seriedade precisamente o ideal estético, sai-se com um
que merece o evento fundamental da his­ salto (eis o aut-aut), que leva à vida ética e,
tória que é o cristianismo, se concretiza e depois, à vida da fé. E, segundo Kierkegaard,
se desenvolve toda a obra de Kierkegaard, é exatamente a vida da fé que constitui a for­
cujo primeiro trabalho filosófico foi o Con­ ma verdadeiramente autêntica da existência
ceito de ironia (1841), no qual contrapõe o finita, vista como o encontro do indivíduo
empenho ético da ironia socrática à ironia com a singularidade de Deus.
romântica (que, em nome do eu absoluto, Kierkegaard dedica à questão do signi­
não leva a realidade a sério). ficado da fé a obra Temor e tremor (1843).
São de 1843 os dois volumes de Aut- A fé vai além do próprio ideal ético da vida.
Aut, dos quais emerge a idéia de que a O símbolo da fé é Abraão, que, em nome
existência finita do indivíduo existente não da fé em Deus, levanta o punhal sobre o
se caracteriza pelo et-et, isto é, pela supera­ seu próprio filho. M as como faz Abraão
ção hegeliana, mas sim pela escolha, isto é, para estar certo de que era realmente Deus
pelo aut-aut. que lhe ordenava matar o filho Isaac? Se
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n t e s í a d o r e s d o s i s f e m a k e .g e !ia n o

aceitarmos a fé, como Abraão, então a au­ período de sua vida ainda mais amargurado
têntica vida religiosa aparece em todo o seu em virtude de uma série de ataques quase
paradoxo, já que a fé em Deus, que ordena cotidianos de um jornal humorístico, “ O
matar o próprio filho, e o princípio moral, corsário” .
que impõe amar o próprio filho, entram em
conflito e levam o crente a ser posto diante
de uma escolha trágica. A fé é paradoxo e 4 O c a r á t e r re lig io so
angústia diante de Deus como possibilidade
d a ob ra d e K ie rk e g a a rd
infinita.

De fundamental importância é, além


O s te m a s d a ^ a n g ú s tia * disso, o Diário. Este ocupa quase cinco mil
d o wd e s e s p e r o páginas dos vinte volumes de que se cons­
titui a edição póstuma de suas “ C artas” .
O Diário foi obra que Kierkegaard iniciou
Ao problema da angústia como modo em 1833, quando tinha pouco mais de vinte
de ser da existência do indivíduo, Kierke­ anos, chegando até os últimos dias de setem­
gaard dedica O conceito da angústia, que é bro de 1855, menos de dois meses antes de
de 1844. “ A angústia é a possibilidade da sua morte. O Diário, como foi justamente
liberdade; somente essa angústia, através notado, revela o espírito e o pensamento de
da fé, tem a capacidade de formar absoluta­ Kierkegaard melhor do que qualquer outro
mente, enquanto destrói todas as finitudes, escrito seu.
descobrindo todas as suas ilusões” . A angús­ Com base nesses rápidos acenos à obra
tia forma “ o discípulo da possibilidade” e de Kierkegaard, não é difícil perceber que
prepara “ o cavaleiro da fé” . seu pensamento é um pensamento essen­
Ainda em 1844, Kierkegaard publicou cialmente religioso: é a defesa da existência
a importante obra Migalhas filosóficas, na do indivíduo, existência que só se torna
qual o autor examina a idéia da maiêutica autêntica diante da transcendência de Deus.
religiosa e analisa o significado da categoria O indivíduo e Deus, e a relação do indivíduo
do possível. Entretanto, um ano antes, em com Deus, eis os temas de fundo da filosofia
1843, dera à luz A repetição, onde, ao ideal de Kierkegaard, que, desse modo, se configu­
estético da vida, é contraposta a reconquista ra como verdadeira autobiografia teológica.
de si, ou seja, a autêntica existência por Como observa Kierkegaard em seu Diário,
meio da fé. Os Estágios no caminho da vida “ o cristianismo não existe mais, mas, para
(1845) também examinam o mesmo tema. que se possa falar em reavê-lo, era preciso
E em A doença mortal (1849), explo­ despedaçar o coração de um poeta — e esse
rando os resultados das análises realizadas poeta sou eu” .
nas obras anteriores, Kierkegaard contrapõe E o poeta cristão, que “ não crê em si
ao desespero, que é a verdadeira doença mesmo, mas somente em Deus” , afirma em
mortal, a salvação da fé, sustentando que, “ O M omento” que morria tranqüilo: a luta
fora da fé, só existe o desespero. acabou e ele se declara infinitamente grato
N o último ano de sua vida, como disse­ à Providência, que lhe concedeu sofrer para
mos, Kierkegaard publicou nove fascículos propagar a idéia do cristianismo como “ ver­
do periódico “ O M omento” , por meio do dade sofredora” . A verdade cristã, por meio
qual pretendia restaurar o sentido genuíno da escola do sofrimento, o tornara livre:
do cristianismo. Em forte polêmica com os “ Humilhado através de tremenda escola,
meios religiosos, Kierkegaard teve o último também adquiri a franqueza” . [T]
Capítulo décimo primeiro - S õ r e n K ie r k e g a a r d

III. y\ descoberfa ..-


kierkegaardiana
da categoria do ^«Undivíduo77

1 A categoria
do^indivíduo”
■ O in d ivíd u o . Mediante a catego­
ria do indivíduo, Kierkegaard ataca
É com franqueza co rajosa que, em o sistem a h egeliano ; descartando
nome daquela indedutível realidade que é ■ o hegelianism o e o panteísmo, ele
o indivíduo, Kierkegaard ataca a filosofia > consegue pôr a salvo a causa do cris­
especulativa, especialmente o sistema he- tianismo; e dentro do cristianismo o
geliano. Diz ele: “ A existência corresponde ; filósofo readquire um valor absoluto.
à realidade singular, ao indivíduo (o que - "O 'in d iv íd u o ' é a cate go ria pela
Aristóteles já ensinou): ela permanece de ' qual devem passar - do ponto de
- vista religioso - o tempo, a história, a
fora, e de qualquer forma não coincide com
humanidade [...]. Com esta categoria
o conceito [...]. Um homem singular certa­ o 'indivíduo' quando aqui tudo era
mente não tem existência conceitual” . sistema sobre sistema, eu tomei como
M as a filosofia, reafirma Kierkegaard, mira o sistema, e agora não se fala
pareceu interessada somente nos conceitos; mais de sistema [...]. O 'indivíduo':
ela não se preocupa com o existente concreto : com esta categoria subsiste ou cai a
que podemos ser eu e tu, em nossa irrepetível causa do cristianismo".
e insubstituível singularidade; ao contrário, ; A existência - diz Kierkegaard - cor­
; responde à realid ad e singular, ao
a filosofia se preocupa com o homem em ge­
! indivíduo: "um homem singular não
ral, com o conceito de homem. A minha ou - tem certamente uma existência con-
a tua existência, porém, não é em absoluto ceitual". A filosofia se interessa pelos
um conceito. 1 conceitos, ela não se preocupa com o
Substancialmente, o indivíduo é o pon­ > existente concreto que somos eu, ele,
to que Kierkegaard enfatiza para invalidar * tu, em nossa irrepetível singularidade;
as pretensões do sistema. Confessa ele: “ Se 1 a filosofia ocupa-se do conceito de
eu devesse encomendar um epitáfio para : homem, do homem em geral, mas a
meu túmulo, não pediria mais do que ‘aquele \ minha ou a tua existência não é um
: conceito. E se no m undo anim al a
indivíduo’, ainda que, agora, essa categoria s espécie é superior ao indivíduo, no
não seja compreendida. M as o será mais ■ m undo hum ano - justam ente por
tarde. Com essa categoria, ‘o indivíduo’, t- causa do cristianismo - o indivíduo é
quando aqui tudo era sistema em cima de ' superior à espécie.
sistema, eu tomei polemicamente o sistema ; "A lei da existência (que por sua vez
como alvo e, agora, não se fala mais de j é graça) que Cristo instituiu para ser
sistema” . ' homem é: relaciona-te com o indi-
Kierkegaard ligava sua própria impor­ í- víduo com Deus". A esta categoria
; Kierkegaard ligava sua importância
tância histórica à categoria de “ indivíduo” , í de pensam ento: "o ind ivíd u o é e
vinculando-a também ao desmascaramento : permanece a âncora que deve frear a
da mentira contida nos sistemas filosóficos confusão panteísta; é e permanece o
que, precisamente, se interessam pelos con­ peso com o qual podemos reprimi-la".
ceitos e não pela existência. “ Isso ocorre i E ainda: "Se eu - confessa Kierkegaard
com a maioria dos filósofos em relação a j - tivesse de pedir um epitáfio para
seus sistemas, como se alguém construísse m inha se p u ltu ra, p ed iria apenas:
um enorme castelo e depois, por sua própria ; 'aquele indivíduo'. Mesmo que agora
j- esta categoria não seja compreendida,
conta, fosse morar em um celeiro. Eles não
l ela o será a seguir".
vivem pessoalmente em seus enormes edifí­
cios sistemáticos. Essa é e permanece [...]
uma acusação decisiva” .
Quarta pavte - O s g r a n d e -s c o n t e s t a d o r e s d o s i s t e m a h e g e l i a n o

O ' fundamento ridículoA 3 íSentralidade da categoria


do sistema kegeliano do “indivíduo”

A acusação decisiva é dirigida sobretu­ “ O ‘indivíduo’ é a categoria através


do a Hegel, cujo sistema é a encarnação da da qual devem passar, do ponto de vista
pretensão de “ explicar tudo” e demonstrar a religioso, o tempo, a história, a humani­
“ necessidade” de todo acontecimento. M as dade” .
o sistema não consegue engaiolar a existên­ Segundo Kierkegaard, é o indivíduo
cia, revelando-se unicamente contrafação e que constitui a única alternativa válida ao
caricatura do que existe de singular, irrepe- hegelianismo. Para Hegel, o que conta, como
tível, qualitativo e humano na existência. na espécie biológica, não é o indivíduo, e
N a opinião de Kierkegaard, a figura do sim a humanidade. M as, para Kierkegaard,
filósofo sistemático, era suma, a figura de o indivíduo conta mais que a espécie: o
Hegel, é figura cômica. E cômica a situação indivíduo é a contestação e a rejeição do
do “ espírito sistemático, que acredita poder sistema.
dizer tudo e está persuadido de que o incom­ E, ao mesmo tempo, também é o indi­
preensível seja algo falso e secundário” . Por víduo — original, irredutível, insubstituível
isso, diz Kierkegaard, “ brandi a brincadeira — que põe em xeque todas as formas de
da ironia [...] contra a horrorosa solenidade imanentismo e de panteísmo, com as quais se
dos especuladores” . tenta reduzir, isto é, reabsorver o individual
E, contra Hegel, Kierkegaard mostra-se no universal.
mais duro do que Schopenhauer. Com efeito, Desse modo, o indivíduo torna-se o
ele chega a dizer que o hegelianismo, “ esse baluarte da transcendência, como afirma
brilhante espírito de podridão” , é “ a mais Kierkegaard: “ ‘O indivíduo’: é com essa
repugnante de todas as formas de libertina­ categoria que se mantém ou cai a causa do
gem” . Kierkegaard fala da “ pompa murcha cristianismo [...]. O indivíduo é e permanece
do hegelianism o” e de sua “ abominável a âncora que detém a confusão panteísta, é e
pompa corruptora” . permanece o peso com o qual se pode com­
Hegel pretende ver as coisas com os primi-la [...]. Para cada homem que eu posso
olhos de Deus, de saber tudo, mas cai no atrair sob essa categoria de ‘indivíduo’,
ridículo, já que seu sistema se esquece da esforço-me por fazê-lo tornar-se cristão; ou
existência, isto é, do indivíduo. E essa é a melhor, como um não pode fazer isso pelo
razão pela qual a filosofia sistemática não outro, garanto-lhe que o será” .
se apóia tanto em um pressuposto equivo­ O “ indivíduo” e a “ fé” , portanto, são
cado, mas muito mais em um “ fundamento correlatos. E, para Kierkegaard, a fé, isto
ridículo” : presume falar do absoluto e não é, “ o fato de ser cristão” , constitui o dado
compreende a existência humana. central da existência. E B i l l E

= IV. (Sristo:
irrupção do eterno no tempo

^ verdade cristã uma das coisas essenciais do cristianismo,


ou seja, a redenção, ela deve necessariamen­
não deve ser c ú e .n \o n s ira c ia te ser estendida ao homem todo. Ou será
que deverei supor suas qualidades morais
M as, uma vez assumido que a fé ocupa como defeituosas e seu conhecimento, ao
o centro da existência, logo se vê que “ a contrário, como intacto? A esse modo eu
filosofia e o cristianismo nunca se deixam posso admitir a possibilidade de uma filo­
conciliar. E isso porque, se eu devo manter sofia depois do cristianismo ou depois que o
Capítulo décimo primeiro - S ò r e n K ie r k e g a a r d

homem se tornou cristão, mas essa filosofia E essa reduplicação implica em tes­
seria cristã” . temunho total, porque, no que se refere
Em outros termos, o crente não pode a Deus, é impossível assumi-lo “ até certo
filosofar como se a Revelação não houvesse ponto” , pelo fato de que Deus é a negação
ocorrido. Com Cristo, tivemos a irrupção de tudo o que é “ até certo ponto” . O que
do eterno no tempo. E, para o “ conheci­ Kierkegaard contesta é a “ consideração
mento cristão” , esse é um fato absoluto, especulativa do cristianism o” , ou seja, a
que, enquanto tal, não precisa ser demons­ tentativa de justificá-lo com a filosofia. Não
trado, pela simples razão de que os fatos se trata de justificar, mas de crer. E, para
não existem para serem demonstrados, e crer, não é necessário ser contemporâneo de
sim para serem aceitos ou rejeitados, bem Jesus. A verdade é que ver um homem não
como pelo outro motivo de que, quanto é suficiente para fazer-me crer que aquele
ao absoluto, “ não podemos dar razões: no homem é Deus. E a fé que me faz ver em
máximo, podemos dar razões de que não um fato histórico algo de eterno: e, no que
existem razões” . se refere ao eterno, “ qualquer época está
Para Kierkegaard, a verdade cristã não igualmente próxim a” . A fé é sempre salto,
é verdade para ser demonstrada; ela é muito tanto para quem é contemporâneo de Cristo
mais verdade para ser testemunhada, “ re­ como para quem não é.
produzindo” a Revelação na própria vida, Por isso, é compreensível a expressão
“ sem reservar, para o caso de necessidade, de Kierkegaard, segundo a qual “ a verdade
um esconderijo para si mesmo e um beijo é subjetividade” : ninguém pode se pôr em
de Judas para as conseqüências” . meu lugar diante de Deus. Deus teve tal mi­
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n + e s + a d o r e s d o s is + e m a k e g e l i a n o

sericórdia dos homens a ponto de conceder preciso desfazer-se de vestimentas muito


a graça de querer se pôr em contato com mais interiores de pensamentos, de idéias,
cada indivíduo. do egoísmo e de coisas similares, antes de
poder ficar nu o quanto é necessário” .
Em suma, para Kierkegaard o cristia­
CD p r i n c í p i o d o c r i s t i a n i s m o nismo é a verdade “por parte de Deus” e não
“ por parte do homem” . Por isso, “ professo­
res” e “ pastores” são unicamente canalhas:
sua função era a de satisfazer a eternidade,
O homem, portanto, deve ter a cora­ mas eles pretendem satisfazer o tempo; são
gem de, como indivíduo, pôr-se em relação “ velhacos” que consideram que “ é mais
com Deus: “ antes em relação com Deus e cômodo adular os contemporâneos” .
não antes ‘com os outros’ E a essência Erguendo-se contra eles, Kierkegaard
dessa relação é que “ há infinita e abissal quis posicionar-se ao lado da verdade cristã,
diferença qualitativa entre Deus e o homem. mas não para demonstrá-la ou falar inutil­
Isso significa ou se expressa dizendo que o mente sobre ela — coisa que, precisamente,
homem não pode absolutamente nada, que fazem os “ professores” e os “ pastores”
é Deus quem dá tudo, que é ele quem pos­ — mas, muito mais experienciando-a na
sibilita ao homem crer etc. Esta é a graça, e própria existência.
aí temos o princípio do cristianismo” . Nesse contexto, pode-se compreender
M as é precisamente esse princípio que então por que, no Ponto de vista explicativo
torna autêntica a existência, já que, quan­ da minha obra (1848), Kierkegaard insiste
do nos colocamos diante de Deus, não há em dizer que “ sempre fui e sou escritor
mais espaço algum para os fingimentos, os religioso” . A filosofia existencial de Kierke­
disfarces e as ilusões: “ Para nadar, é preciso gaard é verdadeira teologia experimental ou,
ficar nu; para aspirar à verdade, é preciso ainda mais exatamente, uma autobiografia
ficar nu em sentido muito mais íntimo, é teológica.

I V. Possibilidade, -
angus+ia e desespero

1 A p o s s ib ilid a d e c o m o m o d o rias” . Com efeito, na possibilidade, tudo é


igualmente possível. E quem foi realmente
d e s e r d a e x is tê n cia
educado mediante a possibilidade, compreen­
deu também seu lado terrível e sabe “ que
não pode pretender absolutamente nada
Como já observamos, a característica da vida e que o lado terrível, a perdição, o
do homem enquanto espírito é a de que, aniquilamento, mora ao lado do homem,
diversamente das espécies animais, o indiví­ porta a porta
duo é superior à espécie. O animal tem uma
essência, e é, portanto, determinado, já que
a essência é o reino do necessário, cujas leis
a ciência procura. A existência, ao invés, é o
c o m o p u ro sen tim en to
modo de ser do indivíduo. E a existência é o
reino da liberdade: o homem é o que escolhe d o p o s s íve l
ser, é aquilo que se torna.
Isso quer dizer que o modo de ser da
existência não é a realidade ou a necessi­ A existência é liberdade, é poder-ser,
dade, e sim a possibilidade. M as, escreve isto é, possibilidade: possibilidade de não
Kierkegaard em O conceito da angústia, “ a escolher, de ficar paralisado, de escolher e
possibilidade é a mais pesada das catego­ de se perder; possibilidade como “ ameaça
Capítulo décimo primeiro - S õ r e n K ie r k e g a a r d

da possibilidade e “ se tirou proveito da expe­


riência da angústia” , então “ dará à realidade
outra explicação; exaltará a realidade e, até
■ P o ssib ilid a d e . Com o conceito
de indivíduo, o de possibilidade é quando pesar duramente sobre ele, recordar-
fundam ental no pensam ento de se-á de que ela é muito mais leve do que a
Kierkegaard. O animal tem uma es­ possibilidade o era” .
sência, é determinado por aquilo que O possível, afirma Kierkegaard, cor­
é, é máquina guiada pelos instintos; a responde perfeitamente ao futuro. Para a
essência é o reino da necessidade. A liberdade, o possível é o futuro. E, para o
existência, ao contrário, é o modo de tempo, o futuro é o possível. Por isso, an­
ser do indivíduo. O homem é aquilo gústia e futuro estão conjugados.
que escolhe ser, a existência é possi­ A angústia caracteriza a condição hu­
bilidade, obriga a escolher, implica
risco, gera angústia. mana: quem vive no pecado se angustia pela
"A possibilidade - lemos no Diário possibilidade do arrependim ento; quem
- é a mais importante de todas as vive, tendo-se libertado do pecado, vive na
categorias. Freqüentemente se ouve angústia de nele recair. M as o importante
dizer na verdade o contrário, que a é compreender que a angústia form a: com
possibilidade é tão leve e a realida­ efeito, ela “ destrói todas as finitudes, des­
de, ao contrário, tão pesada. Mas cobrindo todas as suas ilusões” . E desse
de quem ouvimos tais discursos? De m odo que “ Deus, que quer ser am ado,
alguns homens miseráveis, que jamais
souberam o que seja a possibilidade. desce, com a ajuda da inquietude, à caça
Em geral a possibilidade da qual se do homem” .
diz que é tão leve compreende-se
como possibilidade de felicidade, de
fortuna etc. Mas esta não é, de fato, jlÍ|u O desespero
a possibilidade; esta é uma invenção
falaz que os homens, em sua corrup­ c o m o d o e n ç a m ortal
ção, embelezam, para ter ao menos
um pretexto para se lamentar da vida
e da Providência, e para ter uma oca­
sião de se tornarem importantes aos Se a angústia é típica do homem em sua
próprios olhos. Não, na possibilidade relação com o mundo, o desespero é próprio
tudo é igualmente possível, e quem do homem em sua relação consigo mesmo.
realmente foi educado mediante a Para Kierkegaard, o desespero é a culpa do
possibilidade, compreendeu tanto o homem que não sabe aceitar a si mesmo em
lado terrível quanto o agradável". sua profundidade. E, para Kierkegaard, o
Para Kierkegaard, se alguém sai da desespero é doença mortal: “ eterno morrer
escola da possibilidade "não pode sem no entanto morrer” , “ uma autodestrui-
pretender absolutamente nada" e
sabe que o lado terrível, a perdição, a ção impotente” .
aniquilação, habita com todo homem Do ponto de vista cristão, “ nem a mor­
de porta em porta; e se tirou proveito te é ‘doença mortal’, muito menos qualquer
da angústia que daí segue, "dará à sofrimento terreno e tem poral, pobreza,
realidade outra explicação; exaltará a doença, miséria, tribulações, adversidades,
realidade e também quando esta pesa tormentos, penas espirituais, luto, fadigas” .
gravemente sobre ele, se recordará A morte pode ser o fim de uma doença, mas,
que ela é muito mais leve do que a no sentido cristão, a morte não é o fim. “ Se
possibilidade poderia ser".
se quisesse falar de uma doença mortal no
sentido mais estrito, dever-se-ia tratar de
uma doença cujo fim fosse a morte e em que
a morte fosse o fim. E aí está precisamente
o desespero” . O desesperado está mortal­
mente doente.
do nada” . A realidade é que a existência O desespero, escreve Kierkegaard, é
é possibilidade e, portanto, angústia. A “ o viver a morte do eu” . Todo homem,
angústia é o puro sentimento do possível, portanto, é desesperado. E, talvez mais do
é o sentido daquilo que pode acontecer e que qualquer outro, o seja aquele que não
que pode ser muito mais terrível do que a sente em si nenhum desespero. Entretanto,
realidade. Porque, se alguém sai da escola precisa Kierkegaard, todo homem é desespe­
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n t e s t a d o r e s d o s is t e m a h e g e l i a n o

rado, exceto quando, “ orientando-se em sua é aquela que está disponível para o amor
própria direção, querendo ser ele mesmo, o de Deus, a existência daquele que não crê
seu eu emerge, através de sua própria trans­ mais em si mesmo, mas somente em Deus.
parência, na potência que o colocou” . E essa fé em Deus, esse testemunho da
O desespero brota do não querer se “verdade que está do lado de Deus” , leva o
aceitar como estando nas mãos de Deus. cristão a “ entrar em sério e direto conflito
M as, negando Deus, o homem aniquila-se a com este mundo” e, ao mesmo tempo, o faz
si mesmo, pois separar-se de Deus eqüivale a compreender que, do ponto de vista cristão,
arrancar suas próprias raízes e afastar-se do o “ objetivo desta vida é ser levado ao mais
“ único poço do qual pode se obter água” . alto grau de tédio da vida” . E quando se
Todavia, se a raiz do desespero está chegou a esse ponto, então passam os de
em não querer se aceitar nas mãos de Deus, modo cristão pela prova da vida e estamos
então está claro que a autêntica existência maduros para a eternidade. I ? g g l 3 14 1

Pintura de C. Zeuthen (1843)


que representa Kierkegaard
em trabalho em um café
(Museu Histórico Nacional
de Fredenksborg, Dinamarca).

~~ VI. Kierkegaard: ---


a ciência e o cien+ificismo
1 S e é D eus importância, já que, para o cristão, a exis­
tência autêntica estabelece-se no plano da fé:
q u e tem a p re c e d ê n c ia /
como forma de vida, a ciência é existência
a c iê n c ia inautêntica.
t e m um lim ite i n t r a n s p o n ív e l Dizer que as ciências levam a Deus é
uma hipocrisia. O que Kierkegaard combate
é a apologética “ científica” . Ele se revolta
Para Kierkegaard, portanto, “ é Deus contra os que — como homens superiores!
que tem a precedência” . Conseqüentemen­ — gostariam de “ fazer de Deus uma beleza
te, a ciência deste mundo não tem muita grave, um artista fenomenal que nem todos
Capítulo décimo primeiro - S õ r e n K ie r k e g a a r d

estão em condições de compreender” . M as O naturalista que presumir de alguma


“ alto lá! A exigência religiosa e humana é forma conhecer Deus é hipócrita. O cientista
que ninguém, absolutamente ninguém, pode que quer tratar os problemas éticos e reli­
compreender Deus; o mais sábio deve se ater giosos com o método da ciência é perigoso e
humildemente à ‘mesma coisa’ que o ingê­ funesto. As ciências naturais não podem dar
nuo. Aí está a profundidade da ignorância mais do que a si próprias — e não são nem
socrática: ‘renunciar com toda a força da ética nem religião. O espírito exige certeza
paixão ’ a todo saber curioso, para ser sim­ moral e esperança que não deve esperar as
plesmente ignorantes diante de Deus” . últimas notícias do correio. Isso, porém, a
Se o naturalista que quer compreender ciência não pode dar. E quando se fala de
Deus com a sua ciência é hipócrita, também ética, então, “ é perfeitamente indiferente
é verdade que é funesto e perigoso levar se os homens acreditam que a terra esteja
tal cientificidade para a esfera do espírito. parada e o sol se mova” . De fato, até quando
Existe um abismo infinito entre o homem e se admite que as ciências naturais têm razão
Deus. Os problemas éticos e religiosos não se contra várias expressões das Escrituras (so­
deixam tratar com os métodos das ciências bre a idade do universo, sobre a astronomia
naturais, e não podem ser resolvidos pela etc.), aquilo que “permanece completamente
observação ao microscópio. imutado é a ética cristã” . [%~|

Retrato
de Sòren Kierkegaard
realizado a carvão
por II. P. Hansen.
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n + e s + a d o r e s d o s is + e m a h e g e l i a n o

VII. Kierkegaard ----


contra a teologia cien+rfica^
1 A fe o lo q ia n ã o e c iê n c ia , pensador. Esse é o suplício de Tântalo da
mas " sabedoria
í J ' do
J espirito
' 'X " intelectualidade. O pensador experimenta
as penas do inferno enquanto não conse­
guir experimentar a certeza do espírito: Hic
Rhodus, hic salta. A esfera da fé está onde
Desse modo, torna-se evidente a situa­ se trata que “ tu deves crer” (ainda que todo
ção cômica (e trágica) em que se encontra a o mundo ardesse em chamas e todos os ele­
teologia: “A ciência teológica também deseja mentos se fundissem...). Aqui não se deve
muito ser ciência, mas também nisso deverá ficar esperando pelas últimas notícias do
perder a aposta. Se a coisa não fosse tão correio ou pelas novidades dos navegantes.
séria, seria muito cômico pensar a penosa Essa sabedoria do espírito, a mais humilde
situação da ciência teológica; entretanto, ela de todas, a mais mortificante para a alma
o merece, pois isso é a nêmesis de sua cobiça vaidosa (porque observar ao microscópio é
em querer se arvorar como ciência” . tão aristocrático!), é a única certeza” .
Para Kierkegaard, a realidade é que “ a Para concluir, a objeção principal que
teologia é incrédula, carece de franqueza K ierkegaard esgrim a contra as ciências
diante de Deus e age de má-fé em relação naturais (na realidade, contra o cientificis-
à Sagrada Escritura. Ela não pode respirar mo positivista) é a seguinte: “ N ão se pode
— como teria feito, por exemplo, Lutero absolutamente pensar que um homem, que
— com um decreto do seguinte teor: ‘N osso tenha refletido sobre si mesmo como espíri­
Senhor pouco se importa com as ciências to, possa ter a idéia de escolher as ciências
naturais!’ ” naturais (com matéria empírica) como ta­
É insensato propor uma “teologia cien­ refa de sua aspiração” . Quando se trata de
tífica” , da mesma forma como é insensato homem de talento, o naturalista tem faro
fazer uma “ teologia sistemática (isto é, he­ e é engenhoso, mas não compreende a si
geliana)” . Faz-se isso apenas porque se tem mesmo. Se a ciência torna-se modo de viver,
medo e não se tem fé. então esse “é o modo mais terrível de viver: o
A pesquisa científica não tem fim, de encantar todo mundo e se extasiar com as
não se conclui nunca. E “ se o naturalista não descobertas e a genialidade, sem, no entanto,
sente esse tormento, significa que ele não é compreender-se a si mesmo” .
C a p ítu lo d é c im o p r im e ir o - S ô r e n K ie r k e g a a r d

A FILOSOFIA EXISTENCIAL

A categoria por meio da qual ' x


/ devem passar o tempo, a história e a humanidade
( é o indivíduo,
\ original, irredutível, insubstituível,
' \ superior a todo o gênero humano ^

______ T .
a ESSÊNCIA ---- Enquanto a essência é própria do animal,
é o reino ao indivíduo é peculiar a existência, _ - - a EXISTÊNCIA
d o NECESSÁRIO, cujo modo de ser é é o reino
de qu e a ciên cia d a LIBERDADE,
a POSSIBILIDADE.
p ro c u ra a s leis de que se o cu p a
Na possibilidade tudo é possível, a filosofia
ela é a ameaça do nada,
e disso brota
a CIÊNCIA a FILOSOFIA
como forma SISTEMÁTICA
de vida a condição fundamental da existência humana: ] se interessa
é existência p elo s con ceitos,
a ANGÚSTIA: |
inautêntica: n ão
o puro sentimento do possível (isto é, do futuro), l p ela existên cia
não compreende
a si própria o sentido daquilo que pode acontecer i
: que pode ser muito mais terrível do que a realidade. I
Pela angústia, o homem pode chegar a verdad eira
FILOSOFIA
; < ~ é filosofia
por meio de saltos cristã
(escolhas livres como aut-aut)
aos estágios

/ ____ > ?
/ ✓•
/ i estetico ético religioso
.......... * __ --------
ao desespero: a vida da f é
DOENÇA MORTAL,
é a forma autêntica da existência finita:
“ um eterno morrer sem porém morrer” ,
é encontro do indivíduo
que consiste no
com a individualidade de Deus:
não querer aceitar-se das mãos de Deus
. ___ — ^ _____________ * _______________ ......
C r is t o ,
irrupção do eterno no tempo,
fato absoluto que não deve ser demonstrado mas testemunhado,
reduplicando a revelação na fé
^ ...... “ ..................................... * --------------- :

O princípio do cristianism o é
a GRAÇA:
o homem não pode absolutamente nada
e é Deus quem dá tudo,
inclusive a fé
Quarta parte - O s g r a n d e s c o n + e s + a d o r e s d o s is + e m a h e g e l i a n o

nada; a única coisa que poderias desejar é


K ie r k e g a a r d uma varinha mágica que pudesse te dar tudo,
e depois a usarias para limpar o cachimbo, C
assim que acabaste para a vida e “não tens
necessidade de Fazer testamento, porque não
deixas nada depois de ti".
S. Kierkegaard,
€stágio estético, - fíut-fíut.
estagio ético
e estágio religioso 2. O estágio ético
O omor conjugal [...] se retira sempre
1. O estágio estético
para o interior e toma corpo no tempo, en­
quanto, oo contrário, aquilo que se deve
Cm relação ao gozo estás em umo atitude representar deve se maniFestar para o exte­
de orgulho absolutamente aristocrático. Isto é rior, e seu tempo deve poder ser reduzido ou
muito lógico, pois fechaste a partida com toda eliminado. Tu te convencerás Facilmente disso
Finitude. Não sabes, todavia, renunciar a ela. logo que meditares sobre os atributos que é
Cstás satisFeito em relação àqueles que vivem preciso conFerir ao amor conjugal: ele é Fiel,
em busca de satisFações, mas aquilo pelo qual constante, humilde, paciente, longânime, in­
estás satisFeito é absolutamente insatisFação. dulgente, sincero, sóbrio, assíduo, dócil, Feliz.
Não te perturba ver todos os esplendores Todas estas virtudes têm a característica de
do mundo, porque com o pensamento estás estarem dirigidas para o interior do indivíduo,
acima deles; caso os oferecessem a ti, dirias e de ter a determinação do tempo, porque
como sempre: "Sim, poderei dedicar uma sua verdade não consiste em que existam
pequena jornada para estas coisas1'. Não te uma vez, mas em existir sempre, dia por dia;
preocupas por teres te tornado milionário, com elas também não se adquire outra coisa,
e se te oFerecessem isso, provavelmente mas se adquirem estas próprias virtudes. Por
responderias: "Sim, seria muito interessante isso o amor conjugal é ao mesmo tempo divino
tê-lo sido, e poderia ocupar um pequeno mês e, como Freqüentemente disseste com ironia,
assim". Mesmo que te oFerecessem o amor da banal e terra-o-terra: o amor conjugal é divino
mais bela jovem, responderias: “Sim, poderia porque é terra-a-terra.
viver bem por meio ano". Não quero agora S. Kierkegaard,
unir-me às críticas que freqüentemente ouço a Estágios sobre o caminho da vido.
teu respeito, que és insaciável; prefiro dizer:
em certo sentido tens razão; nada do que é 3. O estágio religioso
Finito, de Fato, nem mesmo o mundo inteiro
pode satisFazer o espírito humano, que sente Não! Ninguém que tenha sido grande
a necessidade do eterno. Se Fosse possível no mundo será esquecido; mas cada um Foi
oFerecer-te honra e glória, a admiração dos grande a seu modo, e ele amou cada um se­
contemporâneos - mesmo se isto é, talvez, o gundo sua grandeza. Pois, aquele que amou
teu ponto Fraco-responderias: "Sim, por breve a si mesmo tornou-se grande consigo mesmo.
período poderia também ser bom". Porém, tu, € aquele que amou os outros homens tornou-
para dizer o verdade, não tens tais desejos, se grande com sua dedicação. Mas aquele
e não moverias um passo para satisFazê-los. que amou a Deus tornou-se moior de todos.
Se a Fama tivesse um signiFicado para ti, de- Cada um deve ser lembrado, mas cada um se
verias reconhecê-lo como verdadeira; mas até tornou grande em relação à sua expectativa.
os dotes espirituais mais elevados te porecem Um se tornou grande por esperar o possível;
sempre algo de eFêmero. Tua luta, por isso, se outro, por esperar o eterno; mas aquele que
exprime ainda mais proFundamente quando tu, esperou o impossível tornou-se o maior de
em tua amargura interior contra toda a vida, todos. Cada um deve ser lembrado. Mas cada
desejas ser o mais tolo de todos os homens, um Foi grande em relação à grandeza contra a
e de ser contudo admirado e adorado pelos qual lutou. Pois aquele que lutou com o mundo
contemporâneos como o mais sábio de todos, tornou-se grande vencendo o mundo, e aquele
pois isso seria um verdadeiro sarcasmo sobre que lutou consigo mesmo tornou-se grande
toda a existência, muito mais proFundo do que vencendo a si mesmo, mas aquele que lutou
se o superior Fosse de Fato honrado como tal. com Deus tornou-se o maior de todos. Assim se
Por isso, não aspiras a nada, não desejas lutou sobre a terra: houve quem venceu a todos
Capitulo decimo p v itH s iv O - S ó r e n K ie r k e c ja a r d

com s u q forço e houve quem venceu Deus com


suo impotência. Houve quem confiava em si 2 O indivíduo
mesmo e obteve tudo, e houve quem, seguro
de sua força, sacrificou tudo: mas quem creu
em Deus foi o maior de todos. Houve quem "Com esto categoria 'o indivíduo’, quan­
era grande com sua força, e quem era grande do o qui tudo ero sistem o sobre sistema, eu
com sua sabedoria, e quem era grande com tom ei polem icam ente em mira o sistema, e
sua esperança, e quem era grande com seu -agora nõo se Foia m ais de sistem a". O ind i­
amor, mas Rbraão era o maior de todos, gran­ víduo nõo tem uma existência conceitual. 6 é
de com sua força, cuja potência é impotência girando sobre "o indivíduo " que K ierkegaard
(ICor 3,19): grande por sua sabedoria, cujo desm onta o sistem a hegeliano, e repropõe
segredo é tolice; grande por sua esperança, a causa do cristianismo.
cuja forma é loucura; grande por seu amor, que
é ódio de si mesmo.
Graças à fé, Rbraão abandonou a terra "O indivíduo" é a categoria pela qual
de seus pais e tornou-se estrangeiro na Terra devem passar - do ponto de vista religioso - o
Prometida (Hb 1 1,8ss). Deixou para trás uma tempo, a história, a humanidade. 6 aquele que
coisa e tomou consigo uma coisa, deixou sua não cedeu e caiu nas Termópilas não estava
inteligência terrena e tomou consigo a fé: de assim assegurado como eu nesta passagem:
outro modo certamente jamais teria partido, "o indivíduo". £le devia, com efeito, impedir
se tivesse pensado que isso era uma coisa as hordas de atravessarem aquela passagem:
tão absurda. Graças à fé, ele era um estran­ se tivessem penetrado teria perdido. Minha
geiro na Terra Prometida: nõo havia nada tarefa é, ao menos à primeira vista, muito mais
que lhe recordasse aquilo que havia amado, fócil; me expõe muito menos ao perigo de ser
mas tudo com sua novidade só tentava sua pisado, pois é a de humilde servidor que busca,
alma com uma nostalgia melancólica. Apesar se possível, ajudar as multidões a atravessar
disso, ele era o eleito de Deus em que Deus esta passagem do "indivíduo", através da qual,
havia posto sua complacência! Sem dúvida, porém, note-se bem, ninguém até o eternidade
se tivesse sido um deslocado, rejeitado pela penetra sem se tornar "o indivíduo1'. Se eu tives­
graça divina, então teria entendido melhor a se de pedir um epitáfio para minha sepultura,
situação que agora era como uma zombaria só pediria: "aquele indivíduo’’, mesmo que
sobre ele e sobre sua fé. Houve no mundo agora esta categoria não seja entendida. 61a o
também quem viveu exilado da terra dos pais, será depois. Com esta categoria "o indivíduo”,
que ele amava. €le não foi esquecido, nem quando aqui tudo era sistema sobre sistema,
seu lamento quando, com melancolia, pro­ eu tomei polemicamente em mira o sistema, e
curou e encontrou aquilo que havia perdido. agora não se fala mais de sistema. A esta cate­
De Rbraão não existe nenhuma lamentação. goria encontra-se ligada absolutamente minha
€ humano lamentar-se, é humano chorar com possível importância histórico. Meus escritos se­
quem chora; mas é maior o crer, mais feliz o rão talvez logo esquecidos, como os de muitos
contemplar aquele que crê. outros. Mas se esta categoria era justa, se esta
Graças à fé, Abraão obteve a promessa categoria estava em seu lugar, se eu aqui atingi
de que em sua semente todas as gerações da o alvo, se compreendi bem que esto era minha
terra seriam abençoadas (Gl 3,8). O tempo tarefa, em nada alegre, cômoda e encorajodo-
passava, havia a possibilidade, flbraão creu. ra, se me for concedido isto, m esmo a preço de
Houve no mundo quem também tinha uma inenarráveis sofrimentos interiores, mesmo a
expectativa. O tempo passava, o entardecer preço de indizíveis sacrifícios exteriores, então
incumbia, ele não foi tão miserável de esquecer eu permaneço e meus escritos comigo.
sua promessa, e por isso não deve ser também "O indivíduo’’: com estò categoria está
esquecido. €ntão ele sofreu, mas a dor não o ou cai a causa do cristianismo, depois que o
desiludiu como o fizera a vida; mas fez por ele desenvolvimento do mundo atingiu o estágio
tudo aquilo que pôde, na doçura da dor ele atual de reflexão. Virão os que saberão de
obteve sua expectativa enganada, é humano qualquer outro modo aplicar dialeticamente esta
sofrer, é humano sofrer com quem sofre, mas é categoria (eles também não tiverom a fadiga de
maior o crer, maior felicidade é observar aquele encontrá-la): mas "o indivíduo" é e permanece
que crê. a âncora que deve freor a confusão panteísta,
é e permanece o peso com que se pode com­
S. Kierkegaard, primi-la; porém, aqueles que trabalham com
Temor e tremor. esta categoria devem ser sempre tanto mais
Q u ü T td p ã r te - O s g r a n d e s c o n t e s t a d o r e s d o s i s t e m a h e g e l i a n o

dialéticos quanto maior é a confusão. Para todo quando esta pesa gravemente sobre ele, se
homem que eu possa atrair sob esta categoria lembrará de que ela é muito mais leve do que
do "indivíduo", empenho-me de fazê-lo tornar-se o teria sido a possibilidade, C apenas deste
cristão; oú melhor, assim como alguém não pode modo que a possibilidade pode formar; por­
fazer isso pelo outro, lhe garanto que o será. que a finitude e as condições finitas em que é
5. Kierkegaard, designado ao indivíduo seu lugar, sejam elas
Diário. pequenas e comuns ou de grandeza histórica,
formam apenas em um modo finito; sempre
se pode enganá-las, sempre delas tirar outra
coisa, sempre comercializar, sempre desfrutar
de algum modo, sempre se manter um pouco
3 A existência fora delas, sempre evitar delas aprender algum
princípio de valor absoluto.
como possibilidade S. Kierkegaard,
O conceito da angústia.
fí possibilidade é o modo de ser do
existência. Fl existênào, portanto, é incerteza
e risco. 6 "quem foi realmente educodo me­
diante a possibilidade, compreendeu tanto
o lado terrível como o agradável". A escola da angústia
"fl angústia é o possibilidade da liberda­
fl possibilidade é a mais pesada de todas de; apenas esta angústio tem, mediante a
as categorias. Verdadeiramente ouve-se dizer fé, a capacidade de formar absolutamente,
freqüentemente o contrário, que a possibilida­ enquanto destrói todas as finitudes, desco­
de é tão leve e a realidade, ao contrário, tão brindo todas as suas ilusões".
pesada. Mas de quem ouvimos tais discursos?
De alguns homens miseráveis, que jamais
souberam o que seja a possibilidade, e tendo
demonstrado a realidade que estes não são Cm uma fábula de Grimm conta-se de
bons para nada e que não serão jamais bons um jovem que andou em busca de aventuras
para nada, refizeram para si, a custo de men­ para aprender a sentir a angústia. Deixemos
tiras, uma possibilidade que foi tão bela, tão de lado aquele aventureiro sem perguntar de
fascinante; na base desta possibilidade está que modo ele pelo caminho pudesse embater-
muito mais um pouco de presunção juvenil da se no terrível. Cu queria dizer, porém, que isto
qual seria melhor envergonhar-se. Cm geral a - ou seja, aprender a sentir a angústia - é uma
possibilidade da qual se diz que é tão leve, aventura por meio da qual cada homem deve
entende-se como possibilidade de felicidade, passar, para que não caia em perdição, ou por
de fortuna etc. Mas esta não é de fato a pos­ nunca ter estado em angústia ou por ter-se
sibilidade; esta é uma invenção falaz que os imerso nela; quem, ao contrário, aprendeu a
homens, em sua corrupção, enfeitam para ter sentir a angústia do modo justo, aprendeu a
ao menos um pretexto poro se lamentar da coiso mais elevada.
vida e da Providência, e para ter uma ocasião Se o homem fosse um animal ou um anjo,
de se tornarem importantes a seus próprios não poderia angustiar-se. Uma vez que ele é
olhos. Não, na possibilidade tudo é igualmente uma síntese, pode angustiar-se, e quanto mais
possível, e quem foi realmente educado me­ profunda for a angústia, maior será o homem;
diante a possibilidade compreendeu tanto o não a angústia, como os homens em geral a
lado terrível como o agradável. Se alguém sai entendem, isto é, a angústia que se refere ao
da Cscola da possibilidade, sabendo, melhor exterior, aquilo que está fora do homem, mas a
que uma criança sabe seu ABC, que ele da angústia que ele próprio produz. Apenas neste
vida não pode pretender absolutamente nada sentido é preciso compreender o relato do Cvan-
e que o lado terrível, a perdição, a aniquilação, gelho quando se diz que Cristo se angustiou até
habitam com cada homem porta a porta, e se a morte (Mateus 26,38), como também quando
tirou proveito da experiência que a angústia, ele diz a Judas: "flquilo que tens a fazer, faze-o
da qual ele se angustiava, o assaltou no mo­ logo” (João 13,27). Nem a terrível expressão
mento seguinte, então dará à realidade outra de Cristo que pôs em angústia o próprio Lutero
explicação; exaltará a realidade e, mesmo quando pregava sobre elo: "Deus meu, Deus
- 241
Capítulo décimo primeiro - Sôren Kierkegaard _

* - -----------------------------------------
meu, por qu® me abandonaste?" (Mateus
27,46), sequer estas palavras exprimem tão for­ artista fenomenal que nem todos estão em
temente o sofrimento; com efeito, com o última grau de compreender". Mas eis a indignada
indica-se um estado em que Cristo se encontra; tomada de posição de Hierkegaard: "Rito
a primeiro, oo contrário, indico a relação com lá! Não, o exigência religiosa e humana é
um estado que não existe. que ninguém, absolutamente ninguém, pode
fl angústia é a possibilidade do liberdade; compreender Deus; o mais sábio deve de-
apenas esta angústia tem, mediante a fé, o tçr-se humildemente na 'mesma coisa' que
capacidade de formar absolutamente, enquanto o ingênuo".
destrói todos os finitudes, descobrindo todas
as suas ilusões. € nenhum grande inquisidor
tem preparadas torturas tõo terríveis como fl maior parte das publicações que hoje
a angústia; nenhum espião sobe atacar com pululam sob o nome de ciência (especialmente
tonta astúcia o pessoa suspeita, exatamente as ciências naturais) não é de modo nenhum
no momento em que ela está mais fraca, nem ciência, mas curiosidade. "Todo o ruína virá
sabe preparar tão bem os loços poro enredá- no fim das ciências naturais". Muitos admira­
la como a angústia; nenhum juiz, por mais sutil dores ("un sot trouve toujours un plus sot qui
que sejo, sobe examinar tão a fundo o acusado 1'admire") crêem que quando o pesquisa é
como a angústia que jamais o deixa escapar, documentada pelo microscópio tenha-se sem
nem no divertimento, nem no ruído, nem sob o nenhuma dúvida a seriedade científica. Oh, a
trabalho, nem de dia, nem de noite. tola superstição do microscópio, ou melhor, a
Aquele que é formado pelo angústia é for­ observação microscópica torno a curiosidade
mado mediante possibilidade; e apenas quem é ainda mais cômica! Que um homem ®m perfeito
formado pelo possibilidade é formado segundo boa-fé e ao mesmo tempo com profundidade
sua infinidade. [...] Poro aprender assim, o diga: "Cu não posso ver apenas com meus olhos
indivíduo dev® ter de novo o possibilidade em como se cria a consciência", é óbvio. Mas que
si e formar por si aquilo a partir do qual deve um homem se ponha no microscópio, pasmo
aprender; mesmo se este, no momento, não de ver e descobrir, sem ver nada: isto é cômico
reconheça de fato ter sido formado por ele, mas e é particularmente ridículo, embora isso deva
tolherá absolutamente todo seu poder. ser a seriedade. Considerar a descoberta do
Todavia, para que um indivíduo seja for­ microscópio como um pequeno passatempo,
mado tão absoluta e infinitamente por meio da umo pequena perda de tempo, tudo bem; mas
possibilidade, ele deve ser sincero diante da considerá-lo como coiso séria é idiotice. Tam­
possibilidade e deve ter a fé. Por fé entendo bém a arte da estampa é quase um achado
aqui aquilo que Hegel uma vez, de seu modo, satírico: com efeito, m®u Deus, isso não mostrou
determina muito justamente: a certeza interior suficientemente como são poucos os que têm
que antecipo o infinito. Se as descobertas da verdadeiramente alguma coiso pora comunicar?
possibilidade são trotadas com sinceridade, a Assim, esta enorme descoberta favoreceu o
possibilidade descobrirá todas as coisas finitas, difusão de todas as tagarelices que de outro
idealizando-as, porém, na forma da infinidade, e forma teriam morrido ao nascer.
abaterá na angústia o indivíduo até que ele, de Se Deus se pusesse a vaguear com um
sua parte, não as venço no antecipação da fé. bastão na mão, verias como o buscariam, prin­
S. cipalmente tais observadores tão empertigados
Kierkegaard,
O conceito da angústia. com seus microscópios! Com s®u bastão Deus
expulsaria todo hipocrisia deles e dos natura­
listas. A hipocrisia consiste de foto em dizer que
os ciências levam a Deus. Sim, em um modo
"superior", mas éjustamente esta a impertinên­
5 fi único certeza cia. Podemos facilmente nos persuadir de que
é a ético-religiosa um naturalista é um hipócrita. Pois, se alguém
lhe quisesse dizer que todo homem, depois
de tudo, tem bastante de sua consciência ®
Ciência e fé: há - segundo Hierkegaard do pequeno catecismo de Lutero, o naturalista
- hipocrisia nos naturalistas, que sustentam torceria o nariz. Ge quer - como homem superior!
que "as ciências levam a Deus". €sta é sim­ - fazer de Deus uma beleza altiva, um artista
plesmente uma impertinência: o naturalista fenomenal qu® n®m todos estão em grau de
quer fazer de Deus "uma beleza altiva, um compreender. Alto lá! Não, a exigência religio­
► so e humana é que ninguém, absolutamente
Quarta parte - CDs g r a n d e s c o n t e s t a d o r e s d o s is + e m a k e g e l i a n o

ninguém, pode compreender Deus; o mais bre rosas, eu lhe responderia: “Não, mas existe
sábio deve deter-se humildemente na "mesmo a feliz e indescritível certeza de que tudo é bom
coiso" que o ingênuo. Aqui está o profundidade e que Deus é amor". Ou sou eu o culpado de
do ignorância socrática: "renunciar com toda a que os coisas vão mal; mas também então D®us
força da paixão" a todo saber curioso, para ser é, todavia, amor. Ou a coisa pod® sair b®m: ® se
simplesmente ignorantes em relação a Deus; verá que o mal teve sua importância, mas ainda
renunciar a esta aparência (que seria em todo Deus é amor. Digamos ainda, para zombar de
caso sempre uma diferença de homem para ,um sentimentalismo histérico; talvez tudo não
homem) de poder apetrechar observações com dependa de não ter ido aos pés? Sabemos
o microscópio. Goethe, ao contrário, que não também caçoar dessa seriedade microscópica
era um espírito religioso, apegou-se vilmente que não vale um centavo!
a este saber que teria a partir da criação de £, por fim, quando se consideram as coisas
diferenças. [...] no meio da realidade e do devir, o que sabe
Deste modo, a fisiologia se difunde em no fundo o fisiólogo, o que sabe o médico? C
descrições do reino vegetal e animal, mostra muito fácil para a reflexão (portanto, no meio da
analogias sobre analogias, as quais, todavia, fantasia, onde tudo está em repouso) explicar
não seriam mais que analogias, enquanto o que alma e corpo nõo são princípios contrários,
vida do homem desde o início, desde o primei­ mas uma única idéia em desenvolvimento, e que
ro germe, é qualitativamente diversa do reino por isso a relação entre eles é um Ineinander.
vegetal e animal. Mas para que servem, então, Mas, na situação da realidade, por onde se
todas as analogias e especialmente todo o deve começar? Deve o paciente tomar antes
enorme aparato de analogias da observação as gotas, ou deve antes crer? Oh, tu, sátira
microscópico? magistral, tantas vezes repetida, de um médico
Ó tremenda sofistica que se difunde quando parece que no fim não sabe de que coi­
microscopicamente e telescopicamente em so se trata! Mas o ético diz: "Crê, tu deves crer!".
volumes in-fólio! 6, todavia, por último, do Apenas o homem ético pode falar com entusias­
ponto de vista qualitativo, não oferece nada, mo; o médico não crê nem nos remédios nem
absolutamente nada, mas priva com a fraude o na fé. Cntusiasta, o homem ético diz; "Cm certo
homem ingênuo da simples, profunda e apai­ sentido toda a medicina é uma brincadeira, é o
xonada admiração e maravilho que dá impulso passatempo de salvar por alguns anos a vida
à ética. de um homem. Não é que eu esteja brincando,
"A única certeza é a ético-religiosa". 61a o seriedade é ter uma morte feliz!"
diz; "Crê, tu deves crer". £ s® alguém quisesse 5. Kierkegaard,
me perguntar s® o crer me faz sempre dançar so­ Diário.
A FILOSOFIA NA FRANÇA
E NA ITÁLIA
NA ERA
DA RESTAURAÇÃO

“A liberdade é república; e república é pluralidade,


ou seja, federação”.
Cario Cattaneo
“Empregar a força externa para obrigar alguém
a uma crença religiosa, embora verdadeira, é um
absurdo lógico, e é uma clara lesão de direito”.
Antônio Rosmini
“Entre o Maistre e eu corre esta grande diferença:
ele faz do papa um instrumento de barbárie e de
servidão, e eu me esforço para dele fazer um ins­
trumento de liberdade e de cultura”.
Vincenzo Gioberti
Capítulo décimo segundo

A filosofia na Fran ça na era da R estauração


entre “ id eó lo go s” , “ espiritu alistas” e “ tradicion alistas”

Capítulo décimo terceiro

A filosofia italian a na época d a R estauração.


Em penho social, m ilícia e revolução
em R om agn osi, C attan eo e Ferrari____________________

Capítulo décimo quarto

O s três pensadores italianos da era da R estauração


que propuseram um retorno à filosofia
espiritualista e à m etafísica:
G alluppi, R osm ini e G io b e rti________________________
C a p ít u lo d é c im o s e g u n d o

y\ filosofia v\ck França


na. era da R estau ração
entre ^ideólogos77,
//
es pi ritual istas;/e ^tradicionalistas

I. Os ideólogos

• Entre o século XVIII e o século XIX a França passa da revolução para o impé­
rio e do império para a restauração. Em relação aos problemas emergentes deste
mais aue agitado período histórico, a filosofia toma duas direções:
a) os ideólogos - liberais em política e contrários, portanto,
a Napoleão - cuja reflexão filosófica tenta avançar no caminho Entre inovação
do Iluminismo; e tradição
b) os tradicionalistas que sustentarão, ao contrário, a volta à -^§1
tradição e se colocarão em defesa do status quo tanto na política
como no âmbito religioso.
• Antoine-Louis-Claude Destutt de Tracy (1754-1836) cunhou
o termo "ideologia" para indicar a "análise das sensações". Amigo Destutt
de Jefferson, contrário à política autoritária de Napoleão, autor de Tracy:
dos Elementos de ideologia (aparecidos em várias partes em contrário um liberal
1801,1803,1805,1815), Destutt de Tracy é um liberal em política, a Napoleão
sustentador do divórcio consensual e fautor de uma educação -*§2-3
centrada sobre o estudo das ciências naturais, também porque
estas ensinam a aprender dos próprios erros.
• Outro prestigioso "ideólogo" é o médico Pierre-Jean Georges Cabanis (1757­
1808), cuja obra principal é constituída pelas Relações entre o físico e o moral do
homem (1802). Contrário à psicologia como estudo da alma, ele
reduz a vida consciente ao funcionamento do sistema cerebral:
o cérebro é o "órgão do pensamento e da vontade". Escreve oCabanis: cérebro,
Cabanis: "O cérebro digere de alguma forma as impressões e "órgão
produz organicamente a sanção do pensamento". Em 1806, na do pensamento
Carta ao Senhor Fauriel sobre as causas primeiras, Cabanis admite e da vontade"
a alma imortal, a necessidade de um ente supremo e o finalismo ^ § 4
do universo.

; A s d u a s lin k a s f i l o s ó f i c a s época da revolução para a época do império


e, depois, para a época da restauração. Pois
q u e c a ra c te riz a ra m
bem, no tumultuado ocorrer desses acon­
a p assag e -m do s é c u lo X V T T J tecimentos, o pensamento filosófico toma
p a r a o s é c u lo ^C 7,X ria F r a n ç a caminhos profundamente divergentes:
a) por um lado temos os ideólogos, que,
liberais em política e, portanto, adversários
A passagem entre o século XVIII e o da política autoritária de Napoleão, procu­
século X IX na França marca a transição da ram levar adiante a bandeira do Iluminismo;
Quifltã parte - f ilo s o fi a n a F r a n ç a e n a C Jfália n a e r a cia " R e s t a u r a ç ã o

do outro lado, porém, ainda sob a X)estu++ d e " T r a c y


influência do romantismo, há quem, como
os tradicionalistas, sustenta a corrupção
intrínseca da “ razão individual” e, em nome A n to in e-L ou is-C lau d e D estu tt de
de uma “ razão comum” revelada origina- Tracy é autor dos Elementos de ideologia
riamente, propõe o retorno à tradição e a (que apareceram divididos em várias partes,
legitimidade do poder absoluto. E nesse entre 1801 e 1815: Ideologia, 1801; G ra­
clima que, depois do parêntese iluminista, mática geral, 1803; Lógica, 1805; Tratado
ressurge com força a tradicional tendência sobre a vontade, 1815). Amigo de Jefferson,
filosófica francesa ao espiritualismo, que, Destutt de Tracy, precisamente por inicia­
nesse momento, encontra em Victor Cousin tiva de seu amigo, publicou nos Estados
e Maine de Biran seus representantes mais Unidos, por causa da oposição napoleônica,
ilustres. um Comentário ao “Espírito das leis” de
M ontesquieu. Aparecendo em inglês em
1811, o livro só foi publicado em francês
em 1819. Para Destutt de Tracy, “ idéia”
O o n ce i+ o s e s s e n c ia is significa “ fato psíquico” , isto é, “ modifica­
d o s id e ó lo g o s ção de nossa faculdade de sentir, de nossa
consciência” . E sendo precisamente “ análise
das sensações e das idéias” , a ideologia
é “ uma filosofia prim eira” . A ideologia,
M as, vejam os antes de mais nada os afirma Destutt de Tracy, tem a função de
ideólogos. Foi Antoine-Louis-Claude Des- “ descrever nossas faculdades intelectuais,
tutt de Tracy (1754-1836) quem cunhou seus principais fenômenos e suas várias
o termo ideologia para indicar a “ análise circunstâncias mais relevantes” .
das sensações e das idéias” . N as pegadas N o que se refere à concepção política,
de Condillac (mas criticando-o em vários Destutt de Tracy é liberal, contrário a Bo-
pontos, com o, por exem plo, no que se naparte.
refere à sua crença na existência da alma), Além disso, defendia o divórcio con­
os id eólogos p ro cu rarão aprofu n d ar a sensual. N a questão da educação, criticava
questão cognoscitiva, corrigindo aqueles tanto os programas de ensino centrados na
que, em sua opinião, eram os defeitos do religião como os centrados na matemática.
sensismo e relacionando, com o médico Em sua opinião, formativo é o estudo das
Pierre Cabanis (1757-1808), o problema ciências naturais, porque ensina a aprender
do conhecimento com a questão da fisio- com os próprios erros.
logia cerebral.
Com o já observam os, os ideólogos
— que eram juristas, administradores, cien­
tistas atentos à questão geral da teoria do
conhecimento, homens de negócios etc. — , O a b a n is
referindo-se à filosofia iluminista, posiciona­
vam-se como adversários do autoritarismo
da política napoleônica. Outro prestigioso representante dos
Em nome da “ razão ilum inista” , ha­ ideólogos foi o médico Pierre-Jean-Georges
viam combatido a violência de Robespierre Cabanis (1757-1808), cuja obra principal é
e do terror, mas não se sentiram tampouco constituída pelas Relações entre o físico e o
em condições de engolir a restauração na­ moral do homem (1802). Nesse trabalho ele
poleônica. E a reação de N apoleão contra combate a concepção tradicional, que via a
eles não se fez esperar muito: em 1803, psicologia como parte daquela filosofia que
N apoleão fechou o Conselho da Instrução teria por objetivo o estudo da alma e de suas
Pública e a Academia das Ciências M o ­ faculdades. E delineia traços fundamentais
rais, que tinham muitos ideólogos entre daquela disciplina que, mais tarde, denomi-
seus membros. E, depreciativamente, os nar-se-á psicofisiologia.
rotulou de “ doutrinários” , isto é, como Cabanis pretende delinear verdadeira
falastrões privados de contato com a reali­ imagem do homem: ele reduz toda a vida
dade efetiva e carentes de qualquer sentido consciente à fisiologia, ao funcionamento
prático. do sistema cerebral, sistema que é “ órgão do
C ã p l t u l o d é c i m o S C g U tld o - " i Z J d e ó lo g o s ^ / e s p in + u a lis t a s ^ e ^ + r a d ic i c m a lis + a s ”n a I ~y*cv\ç_c\

pensamento e da vontade” . E, analogamente A essa concepção mecanicista, mas anti-


ao funcionamento dos outros órgãos, que, dualista (e, portanto, anticartesiana), se opõe
como o estômago e o fígado, produzem e a Carta ao senhor Fauriel sobre as causas
filtram os sucos gástricos e a bílis, escreve primeiras, que Cabanis publicou em 1806,
Cabanis: “ O cérebro digere de algum modo na qual admite a alma como substância,
as impressões e produz organicamente a sua imortalidade, a necessidade de um ente
secreção do pensamento” . supremo inteligente e o finalismo do mundo.

II. O
espinfualismo
de Mame de 3imn

• Em direção contrária à filosofia dos ideólogos está a concepção espiritualista


de François Pierre Maine de Biran (1766-1824).
Autor, entre outros escritos, dos Novos ensaios de antropolo­ Maine
gia e da ciência do homem interior (1823-1824), Maine de Biran de Biran
concebe a filosofia como reflexão sobre a própria vida íntima. contra
E esta reflexão o leva imediatamente a compreender que Con- Condillac,
dillac errou em não distinguir entre sensação e consciência, isto que não soube
é, entre sentir e sentir que sente. A consciência é "o sentimento distinguir
idêntico que temos continuamente e sempre de nossa existência entre sensação
particular e de nosso eu". Um eu que permanece idêntico na e consciência
variação das sensações e dos fenômenos externos e internos; um § 1-2
eu ou consciência que se revela como causa ou força que move
o corpo e que se chama vontade. A vida da consciência é atividade e liberdade. E
na consciência, na alma, está presente Deus: "a consciência pode ser considerada
como uma espécie [...] de revelação de Deus".

Postumamente (em parte, organizados


ú m A c o " sciêkACÍa por Cousin), apareceram o Ensaio sobre
c o m o se n tim e n to
os fundamentos da psicologia e sobre as
d e e x is t ê n c ia in d iv id u a l relações com o estudo da natureza (escrito
em 1812), Exam e crítico da filosofia de
Bonald (1818) e Novos ensaios de antro­
O pologia ou da ciência do homem interior
pensador que desvia a atenção, que os
ideólogos haviam direcionado para o mundo (1823-1824).
interior do homem, para a concepção deci­ E pelo seu Diário íntimo (1814-1824),
didamente espiritualista é Marie-François- é possível seguir todo o desenvolvimento de
Pierre Maine de Biran (1766-1824). seu pensamento.
Embora tendo exercido diversos cargos A primeira coisa que se deve dizer
públicos, tanto durante a revolução como da filosofia de Maine de Biran é que ela é
sob o império e também mais tarde, no contínua reflexão sobre sua própria vida
período da Restauração, Maine de Biran íntima. E, ao entrar em seu próprio íntimo,
dedicou-se intensamente à filosofia, e é autor Biran logo capta o que lhe parece o erro
de numerosos escritos. fundamental de Condillac. Condillac não
Editou: A influência do hábito sobre a distinguiu entre sensação e consciência, isto
faculdade de pensar (1802), Exame das lições é, entre sentir e sentir que sente. Escreve Bi­
de filosofia de Laromiguière (1817), A exposi­ ran: “ Desde criança, recordo-me que ficava
ção da doutrina filosófica de Leibniz (1819). maravilhado ao sentir que existia” .
Quinta parte - A filo s o fi a n a F i a n ç a e n o <I7+ália nc\ e ^ a d a R e s f a u ^ a ç ã o

Esse é precisamente o primeiro dado força que move o corpo e que se chama
indubitável que nos é revelado pela reflexão vontade. O eu é essa força agente.
interior: sem aquele sentimento de existência Como Destutt de Tracy, também para
individual que chamamos de consciência Maine de Biran o fato primitivo revelado
não há conhecimento, afirma Biran. E não pelo “ sentido íntimo” é a vontade ou es­
há conhecimento se não admitimos “ um forço: se o indivíduo não se movesse, não
sujeito permanente que conhece” . M as o haveria conhecimento, “ se não houvesse
que é essa consciência que ilumina a vida -nada a resistir-lhe, (o indivíduo) não conhe­
mental, que ordena e coordena as sensações? ceria nada” . Conseqüentemente, à forma
Ela é “ o sentimento idêntico que temos cartesiana Cogito, ergo sum Biran opõe a
continuamente e sempre de nossa existência seguinte fórmula: “ Eu ajo, eu quero [...],
particular ou de nosso eu” . Em suma, é o eu logo, eu sou minha causa e, portanto, eu
“ que tem o sentido íntimo de sua existência sou, existo realmente em virtude de causa
individual, una, idêntica, e que permanece ou força” . M as, para combater a ameaça
sempre a mesma, ao passo que todas as contínua do hábito, o esforço (o effort)
modificações que ocorrem variam sem cessar criativo da inteligência deve voltar conti­
e todos os fenômenos externos e internos, nuamente ao assalto.
sensações, representações e imagens passam Deus está presente na alma assim como
e se sucedem em fluxo contínuo” . esta se encontra no corpo, pelo fato de que
“ a consciência pode ser considerada como
uma espécie [...] de revelação divina” . A
palavra de Deus se expressa “ na própria voz
y \ c o n sc iê n c ia
da consciência” .
com o j- o r ç a agen te A filosofia de Maine de Biran represen­
e v o n tad e ta um ponto central daquele espiritualismo
francês que antes dele, por exemplo, se ex­
pressava nas obras de Montaigne, Descartes
E a consciência não se revela como a res ou Pascal, e que, depois de Biran, conheceria
cogitans da tradição cartesiana; ela se revela as finezas e os resultados das análises de
imediatamente como causa ou força. E essa Bergson.
Capítulo décimo segundo - " J d e ó Io g o s " , "e s p i ritu a l is + a s we “t r a d ic io n a l i s t a s ” n a I ~ r a n ç a

III. Victor (Sousin --


t\ o espiritualismo ecletico

• Victor Cousin (1792-1867), professor na Sorbonne, historiador da filosofia,


editor das obras de Descartes e dos inéditos de Maine de Biran, autor de um Curso
de história da filosofia moderna (1815-1820), teve ocasião de conhecer pessoalmen­
te, durante suas viagens à Alemanha, Jacobi, Schelling, Goethe e Hegel. E como
Hegel foi o filósofo do Estado prussiano, Cousin - representante
de um espiritualismo eclético - foi o filósofo da monarquia de o espiritualismo
Luís Filipe. é uma defesa
O método empregado por Cousin, em suas pesquisas filosó- das "b°as
ficas, é o da observação interior. E o resultado dessas pesquisas cau$f f
ê um espiritualismo que justifica as "boas causas" religiosas e §
políticas. O espiritualismo, com efeito, "é o apoio do direito, re­
jeita igualmente a demagogia e a tirania; ensina a todos os homens a respeitar-se
e a amar-se e leva pouco a pouco as sociedades humanas à verdadeira república,
este sonho de todas as almas generosas, que na Europa, em nossos dias, apenas a
monarquia constitucional pode realizar".

1 O caminko Hegel que escreveu seu Curso de história da


da observação interior filosofia moderna (1815-1820), publicado
em cinco volumes em 1841.
Assim como Hegel foi o filósofo do
Com sua Carta ao senhor Fauriel, o Estado prussiano, do mesmo modo Cousin
ideólogo Cabanis expressou-se em favor da foi o filósofo oficial da monarquia de Luís
existência e imortalidade da alma, situando- Filipe. Foram diversos os cargos públicos
se assim na trilha do espiritualismo que, que ele exerceu (conselheiro de Estado,
como já observamos, apresentara represen­ reitor da Universidade e também ministro
tantes ilustres na França, como Pascal, e que, da Educação), e sua influência sobre o pen­
no século X X , Bergson aprofundaria com samento filosófico francês do século X IX
argumentações muito engenhosas e fineza foi notável.
de análise. O afastamento em relação ao O método que Cousin adota em suas
sensismo de Condillac e o reaparecimento pesquisas filosóficas é o da observação
da consciência, não somente como lugar interior da consciência para evidenciar as
privilegiado de investigação e fonte de ver­ indubitáveis verdades que ela atesta. O re­
dades certas, mas também como princípio sultado da filosofia de Cousin é a justificação
ativo e autônomo, emergem com clareza das “ boas cau sas” religiosas e políticas,
em um grupo de pensadores franceses, os justamente com o espiritualismo.
Ecléticos, que encontram em Victor Cousin O espiritualismo — que nasceu com
seu representante mais destacado. Sócrates e Platão e que o Evangelho difundiu
Victor Cousin (1792-1867) foi aluno de pelo mundo — aparece para Cousin como
Laromiguière, professor na Escola Norm al uma filosofia “ sólida e, ao mesmo tempo,
e na Sorbonne, foi historiador de filosofia generosa” . Com efeito, o espiritualismo “ en­
(publicou pesquisas sobre Aristóteles, Pas­ sina a espiritualidade da alma, a liberdade
cal, a filosofia antiga e a filosofia medieval), e a responsabilidade das ações humanas, as
tradutor de Platão e Proclo, organizador obrigações morais, a virtude desinteressada,
das obras de Descartes e dos inéditos de a dignidade da justiça, a beleza da caridade” .
Maine de Biran. Cousin teve oportunidade Além disso, o espiritualismo ensina também
de conhecer pessoalmente Jacobi, Schelling, que “ além dos limites deste mundo há um
Goethe e Hegel durante suas viagens à Ale­ Deus” , que cria a humanidade, que lhe con­
manha. Foi precisamente por influência de fia um fim nobre, e que “ não a abandonará
Quinta partC - y \ -filosofia n a F r a n ç a e n a C^tália n a e r a d a R e s t a u r a ç ã o

no curso do misterioso desenvolvimento do Cousin vê também o fato de que ela “ é o


seu destino” . apoio do direito, rejeita igualmente a dema­
M as não é só isso, pois o espiritualismo gogia e a tirania, ensina todos os homens a
é a filosofia que “ sustenta o sentimento reli­ se respeitarem e a se amarem, e leva pouco
gioso” e que “ favorece a verdadeira arte [...] a pouco as sociedades humanas à verdadeira
e a grande literatura” . Em suma, a filosofia república, esse sonho de todas as almas gene­
espiritualista é “ a aliada natural de todas rosas, que na Europa, em nossos dias, somen­
as boas causas” . E, entre essas boas causas, te a monarquia constitucional pode realizar” .

Victor Cousin
(1792-1867)
foi uma figura
proeminente
do espiritualismo eclético
na filosofia francesa
da era da Restauração.
Cãpítulo décimo segundo - M T d e ó lo g o s ^ / ^ s p ir it u a l is t a s ^ e ^ + r a d ic io n a li s t a s ^ n a F r a n ç a

IV. Os tradicionalistas
• A época da Restauração encontra seus intérpretes em tradicionalistas como
Louis de Bonald (1754-1840) e Joseph de Maistre (1753-1821). O primeiro é autor
da Teoria do poder político e religioso na sociedade civil (1796) e de uma Legisla­
ção primitiva (1802); o segundo publica em 1819 O papa, enquanto Os saraus de
Petersburg aparece póstuma, em 1821.
L. de Bonald
• Existe para Louis de Bonald (1754-1840) uma razão universal e J. de Maistre:
que deve se opor à razão individual defendida pelos iluminístas: o papa
ela se manifesta na linguagem, que é um dom feito na origem e o soberano
por Deus ao homem, e que transmitido de geração em geração são
conserva a verdade inata que Deus pôs na mente de todos os instrumentos
homens. E de Deus deriva, segundo de Bonald, a soberania do da Prowdênc/a
Estado e a legitimidade de quem o representa. ^
• A polêmica "antigalicana" e a reação "ultramontanista" atingem seu ápice
na obra de Joseph de Maistre (1753-1821). Apaixonadamente contrário ao indivi­
dualismo iluminista, de Maistre divisa na Revolução Francesa a obra do demônio,
e considera o mundo moderno - isto é, a revolução, o terror, Napoleão etc. - como
clara conseqüência da rejeição da teocracia medieval e da monarquia, que encon­
tra seu fundamento no direito divino. Para de Maistre o papa e o soberano são
instrumentos da Providência.

íS a ra c te r ís tie a s e s s e n c ia is rejeitando o presente, volta ao passado


d o s tra d ic io n a lis ta s
como modelo de vida.
Foi Madame Germaine Necker de Staèl
(1766-1817) que introduziu na França, por
A época da restauração pós-napoleô- meio de sua obra Sobre a Alemanha (1813),
nica se expressa, no campo da cultura, com os grandes temas do romantismo. Outro
toda uma série de pensadores — literatos escritor que defendeu posições análogas
de um lado e filósofos do outro — que, foi René de Chateaubriand (1768-1848), o
contrários às pretensões da razão ilumi­ conhecido autor de O gênio do cristianismo
nista, tornam própria a instância da volta (1802). M as os representantes mais visíveis
à tradição religiosa e política do período do tradicionalismo filosófico-político foram
pré-revolucionário. Louis de Bonald (1754-1840), Joseph de
Estes pensadores são justamente os Maistre (1753-1821) e Robert de Lamennais
tradicionalistas. Eles tiram seus princípios (1782-1854).
inspiradores da revalorização que o roman­
tismo fizera das tradições, do espírito dos
povos, do valor fundante da religião e do JLouis d e S o n a l d
sentimento.
C ontra a razão ilum inista, os tra ­
d icion alistas vêem na religião o único Louis de Bonald é autor da Teoria
fundamento da sociedade; na política, os do poder político e religioso na sociedade
tradicionalistas propugnam a volta ao prin­ civil (1796) e de uma Legislação primitiva
cípio de autoridade e ao da legitimidade. (1802). Conforme de Bonald, Deus teria
Encontramo-nos, portanto, diante não de dado ao homem, desde a criação, uma
um movimento que procura, a partir de linguagem primitiva que, transmitida de
perspectivas contemporâneas, compreen­ geração em geração, conserva a originária
der e reler o passado; encontramo-nos, ao revelação divina e as verdades inatas que
contrário, diante de um movimento que, Deus pôs na mente de todos os homens. Há,
Quinta patte - y\ f ilo s o fia n a "F r a n ç a e n a «U tá lia n a e r a d a R e s t a u r a ç ã o

portanto, uma revelação natural de Deus a cana” . Com ele a reação “ ultramontanista”
todos os homens. atinge o ponto mais alto.
E é de Deus que deriva a soberania do Ele contraria o individualismo e o es­
Estado e a legitimidade de quem o represen­ pírito abstrato do Iluminismo, vê na Revo­
ta. E se o homem dos iluministas tinha di­ lução a obra atroz do demônio, e considera
reitos individuais a promover e a fazer valer, todas as “ diabólicas estranhezas” do mundo
para de Bonald o homem tem antes deveres moderno (a revolução, o terror, Napoleão
a executar, tanto em relação à autoridade etc.) como conseqüência inequívoca da re­
política quanto em relação à religiosa. O jeição da teocracia medieval e da monarquia
homem — segundo de Bonald — existe ape­ que se fundamenta sobre o direito divino.
nas para a sociedade e a sociedade o forma N ão a razão individualista do Ilumi-
tão-somente para si mesma. " .' pT| nismo, mas as verdades eternas da religião,
que Deus desde a origem revelou ao homem,
deveriam ser o fundamento da vida e da
j J o s e p k d e .A A ^ is+ re história. Todavia, com o pecado original, o
homem assinou sua condenação à ignorân­
cia. Daí a necessidade para ele de aceitar e
Autor de uma obra intitulada O papa submeter-se às instituições como a Igreja e
(1819) e de Os saraus de Petersburg (traba­ o Estado, ou melhor, às autoridades que,
lho que apareceu postumamente em 1821), como o papa e o soberano, representam as
o saboiano Joseph de Maistre é o represen­ verdades e são instrumentos da Providência.
tante mais decisivo na polêmica “ antigali-

Joseph de Maistre
em uma gravura tirada
de um retrato a lápis,
de Vogel van Vogelstein.
Cdpítulo decimo segundo - ^ITdeólogos^/^spin+ualistas^e^+radicionalis+as^na Trança

se tenha notado seu desaparecimento, chega­


Louis DE B o n a ld rá o tempo em que eles não existirão mais. fl
Igreja católico não tem apenas um princípio de
conservação, mas tem também um princípio de
aperfeiçoamento. Apesar das desordens tão
reprovadas em seus ministros e tão estranha­
BI O catolicismo, mente exageradas pelo ódio, ouso sustentar
- em base a fatos conhecidos por toda a íuropa
princípio do sociedade civil - que a Igreja da França deu nesta perseguição,
e de conservação social a mais perigoso entre as que a religião teve de
sofrer, provas de fé, de coragem e d® paciên­
cia que não se encontram, no mesmo grau de
79 Igreja católica nõo tem apenas um unanimidade, em nenhuma época do história
princípio de conservação, mas também um da Igreja. € não são openos os ministros do
princípio de aperfeiçoamento". religião, força pública conservadora da socie­
dade religiosa, os que se devotaram em sua
defesa; também nas outras ordens do €stado,
Fls leis religiosos dos sociedades diversas e até no povo, pôde-se observar um apego à
da católica não são conseqüências necessárias fé católica do qual não houve exemplo em ne­
dos leis fundamentais, nem relações necessá­ nhum tempo e em nenhum lugar. Sem remontar
rias, derivadas da natureza dos seres; elas não até os tempos do arianismo, do donatismo, do
são, por isso, sociedades constituídas. Se não maniqueísmo etc., compare-se a Alemanha do
são sociedades constituídas, sua vontade geral tempo de Lutero ou a Inglaterra de Henrique VIII
de existir não pode exercer-se por meio de um e de seus sucessores com a França da revolução
poder geral, nem este pode agir por meio de atual, e ficar-se-á convencido de que a religião
uma força geral. Uma vontade sem forço não é inspira um apego tanto mais vivo quanto mais
uma vontade, mas um desejo: o que quer dizer é conhecida e que, se em todo tempo foge das
que estas sociedades não podem existir, mas almas fracas e dos corações corrompidos, mais
gostariam de existir; quer dizer que elas têm um ela avança em idade, permitam-me esta expres­
princípio de inquietação que mais não é que são, mais profundamente ela lança suas raízes
uma tendência para existir ou constituir-se. na sociedade. € não se diga que a Revolução
Portanto, elos não existirão ou, se existem francesa foi umo revolução puramente política;
por um pouco, não existirão a não ser depen­ seria mais verdadeiro dizer que foi puramente
dendo de alguma outro sociedade e terão fora religiosa, ou ao menos que naqueles que se­
delas, em outro sociedade, a causa de sua cretamente a dirigiram, e sem que aqueles que
existência. Serão, portanto, dependentes de a moviam soubessem, há mais fanatismo de
outra sociedade; mas, se são dependentes, opiniões religiosas do que ambição de poder
serão também fracas e chegarão oo momento político. [...]
final de sua existência com uma progressiva Disse antes que as sociedades religiosos
deterioração. não constituídas tinham um princípio interior
Se a sociedade católica é constituída, sua de dependência e de deterioração que as
vontade geral de conservação realizar-se-á por conduzia infalivelmente à destruição; e sa­
meio de um poder geral conservador, e este lientei este mesmo princípio de degeneração
agirá por meio de uma força geral conserva­ nas sociedades políticos não constituídas. O
dora. Portanto, ela terá em si o princípio de cristianismo que apenas prescrevia humildade
sua existência e os meios de sua conservação; para o espírito, desinteresse para o coração,
ela será, portanto, independente; ela será, mortificação para os sentidos, não provocou
portanto, forte; ela, portanto, se conservará. nenhuma desordem no Império, e este era um
€la, portanto, se elevará progressivamente à louvor que os próprios pagãos lhe atribuíam.
perfeição, fl prova destas afirmações está nos Difundiu-se apenas pela força de seu princípio
fatos e em fatos incontestáveis. interior, semelhante ao grão de mostarda que
Nos dezoito séculos de vida da Igreja se desenvolve ou à massa que fermenta; mas
cristã formaram-se em seu seio infinitas sei­ a Reforma, que permitia o orgulho ao espírito, o
tas, e todos estes ramos separados secaram, interesse ao coração, os prazeres aos sentidos,
enquanto a árvore permaneceu sempre verde; porque autorizava as inspirações particulares, o
as tempestades apenas a fortaleceram e as saque das propriedades religiosas e o divórcio,
podas a revigoraram. Os ramos, atualmente pôs a Guropa sob ferro e fogo. Guerras de trinta
separados, secarão por sua vez; e, sem que anos, devastações inauditas foram os brinque­
Quinta parte - y\ f ilo s o fi a n a F r a n ç a e n a CJ+ália n a e r a d a T ? e s + a u r a ç ã o

dos de seu berço; o frança, a Alemanha, a In­ demasiadamente pouco admirada. Contudo,
glaterra, os Países baixos, a Suíça, a Boêmia, a sem o papa não há verdadeiro cristianismo; sem
Polônia, onde se introduzira, tornaram-se presa o papa a instituição divina perde sua potência,
dos horrores das discórdias civis; a Cspanha, seu caráter divino e sua força de conversão;
a Itália, Portugal, onde ela não havia podido sem o papa é apenas um sistema, uma crença
penetrar, permaneceram tranqüilos. São fatos humana, incapaz de entrar nos corações e de
incontestáveis, e não me digam que os Refor­ modificá-los para tornar o homem suscetível de
mados não foram sempre os agressores, porque um mais alto grau de ciência, de moral e de ci­
é evidente que a seita que se autopromove é vilização. Toda soberania, cuja fronte não tenha
necessariamente agressiva, ainda que seus sido tocada pelo dedo eficaz do sumo pontífice,
fautores não sejam necessariamente sempre e permanecerá sempre inferior às outras, tanto
em todo lugar os primeiros a atacar, fl Reforma na duração de seus reinos quanto no caráter
foi a causa das desordens ocorridas, porque é de sua dignidade e na forma de seu governo.
a causa das presentes; e a guerra atual, con­ Toda nação, ainda que cristã, que não tenha
siderando bem, nada mais é que o efeito do sentido de maneira adequada a ação constitu­
fanatismo das opiniões que nasceram no seio tiva do papado, permanecerá da mesma forma
da Reforma e que derivam necessariamente de eternamente inferior às outras, embora sendo
seus princípios. Não apenas a Reforma foi e é em tudo o resto igual, e toda nação separada
ainda causa de desordens, mas deve sê-lo; ela depois de ter recebido a impressão do sigilo
o será sempre necessariamente e apesar de universal sentirá que lhe falta alguma coisa e
seus próprios partidários, porque da sociedade será reconduzida, cedo ou tarde, pela razão
religiosa pode-se dizer aquilo que se disse da ou pela desventura. Para todo povo há uma
sociedade política; "Se o legislador, enganan­ ligação misteriosa, mas visível, entre a duração
do-se em seu objeto, estabelece um princípio dos reinos e a perfeição do princípio religioso.
diferente daquele que nasce da natureza das [...] Os erros dos papas, infinitamente exage­
coisas, a sociedade não deixará de ser agitada rados ou apresentados de modo inadequado,
até quando tal princípio seja destruído ou mu­ e que, em todo caso, resultaram ser em geral
dado, e até quando a natureza invencível não vantajosos para os homens, são por outro lado
tenha retomado seu domínio". apenas a impureza humana, inevitável em toda
L. de Bonald, mistura temporal; e quando se examinou bem
Théorie du pouvoir politique et religieux tudo e se pesou tudo com a balança da filosofia
dons Ia société civile demontrée mais fria e imparcial, permanece demonstrado
par le raisonnement et par 1'histoire. que os papas foram os mestres, os tutores, os
salvadores e os verdadeiros gênios constitutivos
da Europa.
Pora o restante, como todo governo ima­
ginável tem seus próprios defeitos, também o
regime sacerdotal - de modo nenhum nego isso
J o se p h d e M a is t r e - tem os seus na ordem política; mas sobre este
ponto proponho ao bom senso europeu duas
reflexões que são, assim sempre me pareceu,
de grande peso. fl primeira reflexão é que
este governo não deve de fato ser julgado em
O papado criou si mesmo, mas em sua relação com o mundo
católico. Se for necessário, como é evidente,
e salvou a €uropa para manter o conjunto e a unidade, para fazer
- seja-me concedida a expressão - circular o
"Toda soberania, cuja Fronte não tenha mesmo songue nas mais distantes veias de
sido tocado pelo dedo eFicaz do sumo pontí­ um corpo imenso, então todas os imperfeições
Fice, permanecerá sempre inFerior às outras, que resultariam desta espécie de teocracia
tanto na duração de seus reinos quanto no romana na ordem política não devem mais ser
caráter de sua dignidade e na Forma de seu consideradas a não ser como a umidade que
governo". é, por exemplo, produzida por uma máquina a
vapor no edifício que a abriga.
fl segunda reflexão é que o governo dos
fl consciência iluminada e a boa-fé não papas é uma monarquia semelhante a todos
podem ter mais dúvidas: é o cristianismo que as outras, se a considerarmos simplesmente
formou a monarquia européia, uma maravilha como governo de um só. Ora, quais males não
'
Capítulo - • segundo
décimo „ , „
- llD d e .ó \ o g o s '',"e .s p it ‘H u a \ is ia s "e ^ r a d i c i o n a l i s t a s ^ n a F r a n ç a
255
--------

resultam também da monarquia melhor consti­ último? Fl monarquia é o melhor, o mais durável
tuída? Todos os livros de moral estão cheios de dos governos, e é o mais natural para o homem.
sarcasmos contra as cortes e os cortesãos. Não Julguemos do mesmo modo a corte romana, é
se poupam sem dúvida as invectivas contra a uma monarquia, a único forma de governo pos­
duplicidade, a perfídia, a corrupção dos corte­ sível para reger a Igreja católica; e, seja qual
sãos; e Voltaire não pensava certamente nos for a superioridade desta monarquia sobre as
papas quando exclamava com tanta eloqüência outras, é impossível que as paixões humanas
decorosa: não se agitem ao redor de um centro qualquer
de poder e não se deixem as provas de sua
Lume do céu, que vais tão profundo, ação, o que de fato não impede que o governo
Mas aos mais vazios tiranos abandonaste do papo seja a mais doce, a mais pacífica e
o mundo! a mais moral de todas as monarquias, assim
como os males bem maiores da monarquia
Todavia, quando se esgotaram todos os secular não lhe impedem de ser o melhor dos
gêneros de crítica e se lançaram, como é justo, governos.
no outro prato da balança todas as vantagens J. de Maistre,
da monarquia, qual é, finalmente, o resultado O papo.
C a p í t u l o Jiê.c.\yv\o t e r c e i r o

y\ j-iloso-pa ital iana


na ép oca da Restauração.
Êmpervko social, milícia e revolução
em R o magnosiy (Sa+taneo e Perrari

11 I. jA/fiIosofia civil/; .
de C\\cmDomehico Romagnosi
• A filosofia italiana dos primeiros decênios do século XIX acerta contas com a
cultura do Iluminismo, com o sensismo de Condillac e o pensamento dos ideólogos.
E se Romagnosi, Cattaneo e Ferrari elaborarão seus pensamentos na esteira do
Iluminismo (e Ferrari também do positivismo), filósofos como Galluppi, Rosmini e
Gioberti se colocarão em posição hostil em relação ao Iluminismo, propondo uma
volta à tradição metafísico-espiritualista.
• Gian Domenico Romagnosi (1761-1835), antes professor de direito em Parma
e Pavia, depois - após a queda de Napoleão - perseguido pelos austríacos, dirigiu
suas pesquisas sobre questões de metodologia e sobre problemas ético-políticos.
Seu livro O que é a mente sã? é de 1827, e sua outra obra Sobre a índole e sobre
os fatores da civilização remonta a 1832.
• A intenção de fundo de Romagnosi é a de construir uma ,
"filosofia civil" consistente, em grau de dar-nos uma moral, um °
direito e uma política com sólidos fundamentos. Para tal fim, dan- na base
do as costas às quimeras dos filósofos "visionários", ele percorre uma
o caminho do método empírico; método que não se identifica "filosofia civil"
com o sensismo de Condillac, enquanto o conhecimento não é de -> § 1
fato um caos de sensações: a mente humana procede, na opinião
de Romagnosi, da síntese para a análise, da hipótese para os
controles analíticos, empíricos. No processo cognoscitivo a mente humana é ativa
e, propondo "sentidos lógicos", elabora e coordena os dados sensíveis.
• A aplicação do método empírico ao "homem de fato", isto é, a civilização
ao homem social, leva Romagnosi a estudar a história dos homens d°s homens
em seus produtos culturais; e do estudo dos produtos da mente hu- ne°essário-ent
mana aparece a realidade da "civilização", na qual o homem "vai »a decadência
efetuando as condições de uma culta e satisfatória convivência". pocie ocorrer
Romagnosi, muito consciente da distinção entre fatos e valores, não em qualquer
acreditava de fato em uma lei incessante de progresso: "a decadên- estágio"
cia pode ocorrer em qualquer estágio, como a história testemunha". §2

J l l m en te K u m an a p ro c .& c le . sofia das primeiras décadas do século X IX ,


d a sín te se p a r a a a n á lise
de um ou de outro modo, acerta as contas
com a cultura do Iluminismo, o sensismo
de Condillac e o pensamento dos ideólogos.
Também na Itália, em contextos histó­ Enquanto, de um lado, pensadores
ricos e políticos diferentes do francês, a filo­ como Romagnosi, Cattaneo e Ferrari pro­
Qííintã parte - y\ f ilo s o fi a n a 1 ~ ra n ç a e n a <U+ália n a e r a d a R e s + a u f a ç ã o

curavam prosseguir na linha do lluminismo T odavia, para encontrar as leis da


(e Ferrari inclusive na linha do positivismo), natureza humana, devemos deixar de nos
do outro lado, filósofos como Galluppi, R os­ com portar como “ visionários” e de correr
mini e Gioberti mostravam-se seriamente atrás das quimeras dos filósofos. O que
avessos ao pensamento iluminista e sensista, precisamos, muito mais, é ser “ experimen­
propondo o retorno à tradição espiritualista tais indutivos” , ou seja, trabalhar usando
e à filosofia metafísica, embora trilhando o método empírico. Em O que é a mente
caminhos diversos. sadia?, Romagnosi escreve: “ Vale mais um
Como poderemos constatar nas pá­ opúsculo que me explique como nasce em
ginas seguintes, deve-se notar que tanto nós a crença, como age a analogia, como
o pensamento de Romagnosi, Cattaneo e se gera a com paixão etc., do que todos os
Ferrari, como também a filosofia e as ativi­ tratados dos categoremas de Aristóteles,
dades de Rosmini e, sobretudo, de Gioberti, toda a filosofia crítica de Kant e todo o teo-
entrelaçam-se com os acontecimentos sociais rismo de certos filósofos dos dias de hoje” .
e políticos da Restauração italiana. E preciso, portanto, usar o método em­
Além dos filósofos citados, cujo pensa­ pírico. M as, para Romagnosi, o método em­
mento exporemos neste capítulo, devemos ao pírico não eqüivale ao sensismo (por exem­
menos mencionar os nomes de José Mazzini plo, de Condillac). Antes de mais nada, usar
(1805-1872, cujo pensamento e atividades o método empírico não significa perder-se no
são expostos nos textos de história), Vi­ caos das sensações, já que a mente humana
cente Cuoco (1770-1823), Francisco Soave procede da síntese à análise: de sínteses que
(1743-1806), Melquior Gioia (1767-1829). expressam a compreensão de “ totalidade” a
Passemos, porém, à tratação dos pen­ análises que, dessas totalidades, diferenciem
sadores mais significativos, começando por depois as “ particularidades” .
Gian Domenico Romagnosi. Em essência, formulam-se hipóteses que
Gian Domenico Romagnosi nasceu em depois se procura controlar através da análi­
Salsomaggiore, em 1761, e morreu em Milão, se. Disso se pode ver, em segundo lugar, que
em 1835. Estudou no Colégio Alberoni de o conhecimento não é mera passividade, que
Piacenza e, depois de passar alguns anos em o conhecimento não se reduz a sensações.
Trento, ensinou direito nas universidades de Em suma, no processo cognoscitivo,
Parma e de Pavia. Depois da queda de N apo­ existe a participação ativa do sujeito que,
leão e do retorno dos austríacos, foi por eles propondo “ sentidos lógicos” , elabora e coor­
perseguido; implicado no processo Pellico- dena os dados sensíveis. As sensações não são
Maroncelli, foi aprisionado. Saindo da prisão, conhecimentos, e sim instrumentos de conhe­
passou seus últimos anos de vida em meio a cimento. E “ a mente sadia nada é mais que a
dificuldades econômicas (entre outras coisas, faculdade de aprender, qualificar e confirmar
foi-lhe proibido até dar aulas particulares, de­ nossas idéias, de modo que, adequadas à nossa
pois de ter sido afastado do ensino público). compreensão, elas nos ponham em condições
Os interesses filosóficos de Romagnosi se­ de agir com efeito conhecido de antemão,
guem duas direções solidamente inter-relacio- como a maioria dos homens costuma fazer” .
nadas: a metodológica e a ético-política. Seus
escritos fundamentais são: O que é a mente
sadia? (1827); Pontos de vista fundamentais ; A “f i l o s o f i a c iv il ”
sobre a arte lógica (1832); Gênese do direito c o m o co n k e c im e n to
penal (1791); Introdução ao direito público
universal (1805); Sobre a índole e os fatores d o " k o m e m so c ia l
da civilização (1832). Colaborou ativamente
com o “ Conciliador” , a “ Biblioteca Italia­
na” e os “ Anais Universais de Estatística” . Pois bem, equipado com essas concep­
A intenção de fundo de Romagnosi ções metodológicas, Romagnosi estabelece
foi a de construir uma “ filosofia civil” con­ os alicerces para a construção de sua “ filo­
sistente. Com efeito, disciplinas como a sofia civil” , cujo objetivo é o de conhecer
moral, o direito e a política precisam de fun­ o “ homem de fa to ” , ou seja, o homem
damentos sólidos, isto é, necessitam de leis social. E esse homem social de fato pode ser
comprovadas da natureza humana, assim conhecido investigando-se “ o conjunto do
como “ a agricultura e a mecânica baseiam- desenvolvimento do pensamento humano,
se nas leis da natureza física” . isto é, a cultura intelectual dos povos” .
Capítulo décimo terceiro - R o m a g n o s i, C n t ta n e o e F e fr a fi

Em sum a, o homem não alcança o


conhecimento discorrendo em abstrato so­
bre esta ou aquela sua faculdade espiritual,
mas muito mais analisando sua história e a
história de seus produtos culturais: é pelo
produto que conhecemos o produtor, já
que não se conhece o homem de fato “ nem
com as visões platônicas, nem com as qüi-
didades peripatéticas, nem com as nuanças
transcendentais, nem com os minuciosos
experimentos acadêmicos” .
Do estudo sobre o homem de fato
emerge a realidade da “ civilização” , que é
“ aquele modo de ser da vida de um Estado
pelo qual ele vai concretizando as condições
de convivência culta e satisfatória” .
Entretanto, consciente da distinção en­
tre fatos e valores, entre “ leis de fato” , que
descrevem o estado de civilização de um
povo, e “ leis de dever” , que dizem como
a civilização humana deve desenvolver-se,
Romagnosi estava cônscio do fato de que
não existe lei irrefreável de progresso e que Gian Domenico Romagnosi (1761-1835),
“ a decadência pode acontecer em qualquer fautor de uma “filosofia civil” concreta,
estágio, como atesta a história” . fundada sobre o “método empírico".

^ ^ zzz^ zzz II. y\ filo s o fia


e o f e d e r a l i s m o e m (Z-cxAos C a f t a n e o

• Discfpulo de Romagnosi, Carlos Cattaneo (1801-1869) participou das Cinco


jornadas de Milão em 1848 e, voltando os austríacos, refugiou-se na Suíça, onde
foi professor de filosofia no Liceu cantonal de Lugano. Merecem
ser mencionadas suas Considerações sobre o princípio da filosofia A fnosofja
(1844) e a Psicologia das mentes associadas (1859-1866). como "milícia"
Para Cattaneo a filosofia é "uma milícia"; deve enfrentar os §1
problemas reais e tentar "transformar a face da terra".
• "Nexo comum de todas as ciências", a filosofia é, em primeiro lugar, estudo do
pensamento humano, assim como ele se manifesta em suas elaborações; e história,
lingüística e economia são os três campos de pesquisa escolhidos
por Cattaneo, o qual é explícito sobre o fato de que devemos a "o federalismo
maior parte de nossas idéias à inteligência "dos homens associados é a única teoria
na tradição e no comércio do saber comum e dos erros comuns", possível da
Anti-revolucionário e reformista, Cattaneo viu na razão o ins- liberdade"
trumento da gradual libertação do homem em relação à barbárie e -»§ 2-3
à ignorância. Defensor do livre comércio e da propriedade privada,
contrário ao comunismo porque é uma doutrina que "demoliria a riqueza sem reparar
a pobreza"; tolerante em matéria religiosa; no plano político Cattaneo se definia "ver­
dadeiramente e incorrigivelmente federalista". Seu federalismo -federalismo euro­
peu e federalismo dentro dos Estados nacionais-se configura como defesa das auto­
nomias, da livre iniciativa e da história das diferentes comunidades humanas. Escrevia
Cattaneo: "Teremos verdadeira paz quando tivermos os Estados Unidos da Europa".
Q u i n t a p ã t t e - ; A f ilo s o fia n a F r a n ç a e n a «U +ália n a e r a d a T ^ e s t a u r a ç ã o

C a rlo s C a tta n eo : j A f i lo s o f i a c o m o “c i ê n c i a 7
a f ilo s o fiia das*m entes a s s o c ia d a s ”
e u m a m ilíc ia
Particularmente, enquanto, por um lado,
a filosofia é vista positivamente como “nexo
O maior gênio da Escola de R om ag­ comum de todas as ciências” , por outro lado
nosi é, sem dúvida, Carlos Cattaneo, que ela consiste no estudo histórico e experimen­
nasceu em M ilão, em 1801, form ou-se tal do pensamento humano assim como ele se
seguindo o ensino particular de R om ag­ manifesta “com seus atos e suas elaborações” .
nosi, laureou-se em jurisprudência pela E “ nas histórias, nas línguas, nas reli­
Universidade de Pavia em 1824 e lecionou giões, nas artes e nas ciências” que se conse­
até 1835 nos ginásios de M ilão. Em 1835, guirá conhecer o espírito humano, e não na­
abandonou o ensino para dedicar-se ao quelas especulações filosóficas que pretendem
jornalism o. Em 1839, fundou a revista “ perscrutar sua essência” . E precisamente a
“ O Politécnico” , que se apresentou como história, a lingüística e a economia são os três
“ repertório mensal de estudos aplicados campos de investigação nos quais Cattaneo
à cultura e à prosperidade social” . Par­ exerce sua pesquisa.
ticipou das “ Cinco Jorn adas de M ilão ” Tais investigações mostram que o ho­
de 1848, mas, como federalista convicto, mem individualmente permanece incom­
foi contrário à anexação da Lom bardia preensível caso suas idéias, suas ações, seus
ao Piemonte. Com a volta dos austríacos, comportamentos, em suma, os produtos de
Cattaneo refugiou-se na Suíça, onde em sua cultura não sejam situados na sociedade
1852 foi nomeado professor de filosofia em que ele vive e atua: “ É mister [...] estu­
no Liceu cantonal de Lugano. M orreu em dá-lo [o homem] em tanto mais situações e
1869. A produção filosófica de Cattaneo mais diversas for possível” .
não consiste em grandes volumes, e sim Essa é a razão pela qual precisamos
em penetrantes e ainda instrutivos artigos passar do estudo da “ mente solitária” para
e ensaios, entre os quais merecem menção o das “ mentes associadas” . O escrito de
os seguintes: Considerações sobre o princí­ Cattaneo sobre a Psicologia das mentes
pio da filosofia (1844); O estado presente associadas constitui etapa fundamental e
da Irlanda (1844); Introdução às notícias contribuição bastante original à psicologia
n aturais e civis da L o m b ard ia (1844); social. Escreve ele: “ O maior número das
nossas idéias não deriva de nosso sentido
A insurreição de M ilão (primeira edição
individual e de nosso intelecto individual,
francesa, 1848), e Psicologia das mentes
e sim dos sentidos e intelectos dos homens
associadas (1859-1866).
associados na tradição e no intercâmbio do
N a opinião de Cattaneo, a filosofia
saber comum e dos erros comuns” .
é “ uma m ilícia” . Sua função não é a de
especular nem a de contemplar: a filosofia
deve “ aceitar todos os problemas do sécu­ 3 yA t e o r i a p o l ít ic a
lo ” , já que deve tender a “ transformar a
d o fed era lis m o
face da terra” . Desse pressuposto deriva o
desprezo de Cattaneo tanto pelos filósofos
idealistas como pela “ filosofia das esco­ Anti-revolucionário e reformista, Catta­
la s” , e também pela filosofia de Rosmini. neo entendia a liberdade como “ exercício da
Rosmini, particularmente, cai sozinho por razão” , como libertação gradual e inteligente
terra pelo fato de que sua filosofia é uma dos laços criados em torno do homem social
filosofia metafísica, abstraída da realidade pela barbárie e pela ignorância. Por isso,
“ p o sitiv a” e desligada das ciências. Se­ ao contrário da tese de Vico relativa aos
gundo Cattaneo a filosofia deve ser útil, avanços e retrocessos históricos, Cattaneo
exatamente como as ciências. Enquanto as pensa mais em um progresso ininterrupto
ciências unem, as metafísicas dividem, já da humanidade.
que, afirma Cattaneo, não existe uma me­ Cattaneo foi um liberal genuíno. Em
tafísica, e sim seitas metafísicas. Portanto, economia, defendeu o intercâmbio livre,
quem quer fazer filosofia útil à sociedade repudiou o protecionismo estatal e se ali­
“ deve se colocar paciente e modestamente nhou em defesa da propriedade privada, da
na escola da ciência” . “ promoção da plena e livre propriedade” .
Cãpltulo décimo terceiro - R o m a g n o s i^ C a t t a n e o e F e r f a n

N a opinião de Cattaneo, o comunismo é Unidos da Europa” . N o dia em que, por con­


doutrina que “ demoliria a riqueza sem eli­ senso repentino, a Europa pudesse tornar-se
minar a pobreza” . semelhante à Suíça e semelhante à América,
Em matéria religiosa, o laicismo liberal naquele dia em que ela escrevesse em seu
de Cattaneo afirma a tolerância em relação a frontispício Estados Unidos da Europa, ela
todas as crenças e defende o matrimônio civil. não só se livraria dessa necessidade mortal
Em política, seu liberalismo torna-se de batalhas, incêndios e patíbulos, mas tam­
luta contra todo despotism o, até larvar, bém lucraria cem mil milhões” . E B g j 1 12 ]
preferência pela república em relação à
monarquia, patriotismo sincero.
Todavia, ainda no plano político, sua te­
oria de maior relevância é a do federalismo: o
federalismo europeu e o federalismo interno
de cada Estado nacional. Cattaneo definia-
se como “verdadeira e incorrigivelmente”
federalista. Enquanto para os neoguelfos o
federalismo era meio para alcançar a inde­
pendência, para Cattaneo o federalismo é o
fim. Para Cattaneo, “ o federalismo é a teoria
da liberdade, a única teoria possível da liber­
dade” . Sustenta ele: “ Liberdade é república e
república é pluralidade, ou seja, federação” .
Cattaneo põe na base do seu federalismo
o princípio de que o Estado unitário não pode
ser autoritário e despótico, e de que a unida­
de não pode se transformar em sufocamento
das autonomias, da livre iniciativa e da his­
tória das diferentes comunidades humanas.
N o que se refere mais especificamente
aos Estados Unidos da Europa, Cattaneo
era de opinião que “ só teremos uma ver­ Carlos Cattaneo (1801-1869)
dadeira paz quando tivermos os Estados foi o grande teórico do federalismo.

- III. CÃiuseppe Ferrari I


e a filosofia da revolução'

• Outro discípulo de Romagnosi é Giuseppe Ferrari (1811-1876), editor de uma


edição das obras completas de Vico, autor de A filosofia da revolução (1851).
Contrário ao tradicionalismo espiritualista e a todas as meta­
físicas- as quais põem a razão "fora do sentido" -, Ferrari afirma 4 filosofia
que a filosofia deve "reconquistar o fato". É inútil "procurar não deve pôr
um fenômeno além dos 'fenômenos'"; os fenômenos, os fatos, a razão "fora
"bastam a si mesmos". Aqui está a grandeza do positivismo, que do sentido"
Ferrari chama "a época da revolução", uma época onde se terá -»§ 1
"o reino da ciência" e "o reino da igualdade". E se é verdade
que a Revolução Francesa combateu toda uma série de privilégios, todavia - afir­
ma Ferrari - é preciso continuar naquele caminho e suprimir igrejas e religiões, e
abater os novos privilégios de "cidadãos burgueses que vigiam inexoravelmente
a defesa da propriedade e da religião".
Quifltã parte - ; A f ilo s o fi a n a " F r a n ç a e -U +áiia >^a e r a d a T ^ e s t a u r a ç a o

1 7\ ) ã o à r a z ã o “a b s t r a t a " , Iluminismo, se estabiliza com o positivismo,


que Ferrari chama “ a época da revolução” .
sim a o p o sitiv ism o
Essa época vem depois da época da
q u e in sta u ra religião e da época da metafísica, sendo a
a “é p o c a d a c i ê n c i a " época da ciência. E verdade, diz Ferrari, que
o Iluminismo e a revolução combateram a
religião e os privilégios. Entretanto, é preciso
Outro aluno de Romagnosi foi Giusep- ir além. A revolução levou à liberdade de
pe Ferrari. N ascido em M ilão, em 1811, culto, mas Ferrari defende a supressão das
laureou-se em jurisprudência em Pavia, em religiões e das igrejas.
1832. Seus interesses, porém, eram pre­ A revolução quis a liberdade para o rico
dominantemente filosóficos. Atraído pelo e para o pobre, mas é óbvio que, como o rico
pensamento de Vico, republicou suas obras. é mais forte, ele esmaga o pobre. Conseqüen­
A exceção do breve parêntese de 1848, temente, está certo o socialismo que requer
Ferrari residiu na França até 1859, onde com força a transformação econômica da so­
ensinou filosofia no Liceu de Rochefort e ciedade e uma bem diferente distribuição da
na Universidade de Estrasburgo. Voltando à riqueza. A revolução arrancou o poder das
Itália em 1859, ensinou filosofia em M ilão, mãos da nobreza, mas o pôs nas mãos daque­
Turim e Roma. Morreu em 1876. la classe privilegiada que é a burguesia, ao
São três seus escritos mais importan­ passo que ele deve estar nas mãos do povo.
tes: A mente de G. B. Vico (1835-1837), Esse é o caminho que Ferrari apresen­
que é a apresentação da edição das obras ta para que a revolução, bloqueada pela
completas de Vico, que foi precisamente revanche dos reacionários, possa percorrer
Ferrari o primeiro a publicar; A revolução sua trajetória até o fim. Nesse sentido, “ a
e as reformas na Itália, publicada em 1848 revolução é o triunfo da filosofia, chamada
na França (e em francês); A filosofia da re­ a governar a humanidade” .
volução (1851).
Segundo Ferrari, a Revolução Francesa
de 1789 ficou incompleta, cabendo à nova
filosofia positivista levá-la a termo. Desse
modo, é urgentemente necessário contrastar
o tradicionalismo espiritualista, que despre­
za as conquistas de Locke, que considera
“ desvios de um povo febricitante” as idéias
de Rousseau e Voltaire, e que se pergunta “ se
a revolução não seria um acidente” .
Contra essa filosofia, que põe a razão
“ fora de sentido” e que se remete a Leibniz,
Descartes e a “ todas as filosofias derro­
tad as” , Ferrari libera a dúvida cética de
Hume, persuadido de que o que importa é
“ reconquistar o fato e mantê-lo como base, a
despeito de toda insídia lógica e ontológica”
(Ferrari chama “ lógica” a razão abstrata e
especulativa).
Portanto, é preciso ater-se aos fatos
e não se perder atrás das “ conjecturas” e
“ hipóteses” . E inútil procurar “ um fenôme­ Giuseppe Ferrari (1811-1876) sustentou a tese
no além dos fenômenos” . Os fenômenos e significativa segundo a qual o positivismo
os fatos “ bastam-se a si mesmos” . Essa é a é a filosofia da revolução,
grandeza e a civilização que, procedendo do que vai além das conquistas do Iluminismo.
Capítulo décimo terceiro - " R o m a g n o s i, (C a t t a n e o e F e r r a r i

ria dos casos, combinação quase doméstica e


C a tta n eo privada. Depois fecham os olhos para todos
os outros entremeios e volteios da sociedade
humana; pulam de um salto para a nação ou,
melhor dizendo, para a língua. Ignoram o Cstado
e suas necessidades. Portanto, se a mesma
O direito federal língua domina as Ilhas Britânicas, a Pensilvânia,
a Califórnia, o alto Canadá, a Jamaica, a Aus­
trália, para eles há somente a soma de maior
"Seja qual For o comunhão dos pensa­ número de famílias e de comunas. Portanto, o
mentos e dos sentimentos que uma língua parlamento britânico não precisa fazer leis; o
propoga entre as Famílias e as comunas, congresso americano sonha ter leis para fazer;
um parlamento reunido em Londres jamais por isso é mais supérflua uma legislação pro­
deixará contente a Rmérica; um parlamento vincial para os irmãos da Pensilvânia e para
reunido em Paris jamais deixará contente Ge­ os aventureiros da Califórnia; o frio Canadá,
nebra; as leis discutidas em Nápoles jamais a tórrida Jamaica não devem ter leis próprias,
ressuscitarão o estacionária Sicília”. que correspondam aos lugares e às tradições, e
às várias misturas dos homens e à diversidade
de sua consciência; a Austrália deve esperar
Infelizmente o demonstra o exemplo da eternamente toda provisão a partir de seus
França e da Cspanha, cuja liberdade sangren­ antípodas, porque fala a mesma língua, e forma
tamente conquistada escapa eternamente da com eles uma só nação!
mão, por causa das imensas forças acumuladas Não, seja qual for a comunhão dos pen­
na mão dos governos, enquanto vice-versa na samentos e dos sentimentos que uma língua
Suíça e na América, onde todo povo particular propaga entre as famílias e as comunas, um
mantém firme no punho seu senhorio, a liber­ parlamento reunido em Londres jamais deixará
dade, depois de uma primeira aquisição, não contente a América; um parlamento reunido em
mais foi perdida. Tal é a virtude dos princípios, Paris jamais deixará contente Genebra; as leis
fora dos quais todo esforço de valor e de sa­ discutidas em Nápoles jamais ressuscitarão a
crifício é vão. jacente Sicília, nem uma maioria piemontesa
Também não ajuda iludir-se dizendo que se acreditará em débito de pensar noite e dia
estes não são princípios: são princípios também em transformar a Sardenha, ou poderá tornar
eles de direito; são pelo menos princípios de toleráveis todas as medidas em Veneza ou em
política; e a política é a necessária tutora do Milão. Todo povo pode ter muitos interesses a
direito; e princípio é tudo aquilo que gera séries serem tratados em comum com outros povos;
inevitáveis de conseqüências. Nem ajuda iludir- mas há interesses que somente ele pode tratar,
se dizendo que, por pouco que se acrescente, porque apenas ele os sente, porque apenas
e por pouco que se tire, a federação acaba ele os entende. C há, além disso, em cada
necessariamente se confundindo com a unida­ povo também a consciência de seu ser, também
de; pois em todas as peripécias do mundo a a soberba de seu nome, também o ciúme de
passagem de uma coisa para outra se faz por sua terra ancestral. Daí o direito federal, ou
graus; e de tal forma por graus se procede da seja, o direito dos povos, o qual deve ter seu
planta ao animal e da folha para a flor e para o lugar ao lado do direito da nação, ao lado
fruto, que a ciência não pode indicar o ponto em do direito da humanidade. Homens frívolos,
que a passagem ocorre. Nem por isso alguém esquecidos da pequenez dos interesses que
trocará a figueira pela folha ou a ovelha pela os fazem falar, crêem que valha para toda
erva que a alimenta, ou a paterna presidência refutação do princípio federal andar repetindo
de LUashington com a feroz ditadura de Cavaig- que é o sistema das velhas -republiquetas.
nac. C o antigo sofisma do cúmulo. Responderemos rindo, e indicando para eles,
Sempre às voltas com precipitadas abs­ além do oceano, a imensa América e, para
trações, vêem no mundo os indivíduos; depois além de outro oceano, a bandeira esvoaçante
as famílias, e é grande ventura; depois vêem nos portos do Japão.
também a comuna, ou seja, a empresa unida C. Cattaneo,
de talvez uma centena de famílias e, na maio­ Prefácio a "O Politécnico”.
Quifltã parte - ; A f ilo s o fi a n a F r a n ç a e n a «U +ália n a e r a d a " R e s t a u r a ç ã o

2 Rs pátrios locais
ções; o ponto médio de seus poderes, a sede
de seus palácios, o lugar de seus costumes e
de sua influência e consideração, a reunião
das parentelas, a situação mais oportuna para
"A/a /tá//a, quem prescinde deste omor a colocação das filhas, e para os estudos e
dos pátrios particulares, semeará sempre empregos da juventude.
na areia". Cm suma, elas são um centro de ação de
uma população inteira de duzentos ou trezentos
mil habitantes. Fundai uma cidade nova, ajuntai
Tais seriam, por exemplo, Birnningham, riquezas, manufaturas, bancos e o que mais
Trieste, Malta, Gibraltar, que não têm vínculo quiserdes, e depois vosso cidade nova será
moral íntimo com as populações circunvizinhas; Petersburgo, mas nunca será Moscou; será
e se poderiam dizer cidades cosmopolitas, e Constantinopla, mas nunca será Roma; não
estão na terra como os navios ancorados estão terá raiz na terra e nos homens. Separai-a, e
no mar. o corpo inteiro não parecerá mutilado; porque
Nossas cidades são o centro antigo de será sempre um apêndice esplêndido e não
todas as comunicações de uma grande e po­ uma preciosa víscera vital.
pulosa província; para aí se dirigem todas as Csta condição de vossas cidades é a obra
estradas, para aí se dirigem todos os mercados de séculos e de remotíssimos acontecimentos,
do campo, são como o coração no sistema das e suas causas mais antigas de toda memória.
veias; são termos aos quais se dirigem os con­ O dialeto marca a obra indelével das primitivas
sumos, e dos quois se difundem os indústrias uniões, e com o dialeto varia de província em
e os capitais; são um ponto de intersecção, ou província não só a índole e o humor, mas a
melhor, um centro de gravidade, que não se cultura, a capacidade, a indústria e a ordem
pode deixar cair sobre outro ponto tomado de inteira das riquezas. Isto faz com que os homens
propósito. não possam facilmente se desagregar daqueles
Os homens aí se congregam para diversos seus centros naturais.
interesses, porque aí encontram os tribunais, os Na Itália, quem prescinde deste amor
intendências, as comissões de recrutamento, das pátrias particulares semeará sempre na
os arquivos, os livros das hipotecas, as admi­ areia.
nistrações militares e sacerdotais, as grandes
guarnições, os hospitais. São o moradia dos C. Cattaneo,
abastados com suas caixas e suas administra­ in "fínnali universali di statistica".
C a p ít u lo d é c im o q u a r t o

O s três pensadores italianos


da era da R estauração,
que propuseram um retorno à filosofia
espiritualista e à metafísica:
gallu ppi, Rosmini e <^\ioberti
.... I. T^ascal C\oWi\pp\
// r. i r. i .^ . //
e a filosofia d a e x p e n e r v c ia

• Pascoal Galluppi 1770-1846), influenciado primeiro por Condillac, entrou


sucessivamente em contato com a filosofia de Kant, e foi professor de "filosofia
intelectual" na Universidade de Nápoles. De 1807 é seu ensaio
Sobre a análise e a síntese; de 1819 são os primeiros dois volumes vida e obras
do Ensaio filosófico sobre a crítica do conhecimento; as Cartas -> § 1
sobre as vicissitudes da filosofia de Descartes a Kant são de 1817.
• As obras de Galluppi exprimem a forte preocupação de salvar os núcleos
fundamentais da tradição religiosa e metafísica (existência de Deus, realidade do
mundo externo, validez da lei moral etc.) dos assaltos do relativismo. Para tal fim,
afirma Galluppi, é necessário voltar à experiência; e a análise da experiência interna
nos testemunha a realidade do eu: o eu existe, e esta é uma verdade imediatamente
evidente, uma "verdade primitiva". Ese a análise psicológica revela a realidade do
eu, ela revela também a realidade do mundo externo, uma vez
que "toda sensação é a percepção de uma existência externa", a "volta
São os objetos externos a causa de minhas percepções. á experiência"
Escreve Galluppi: "O fora de mim não existe porque me é a volta
modifica, mas me modifica porque existe". Da existência do à tradição
eu e da realidade externa Galluppi, por meio da aplicação do ->$2-4
princípio de causalidade, remonta a Deus: eu sou uma realidade
"mutável"; ora, "um ser mutável não pode existir por si mesmo"; existe, portanto,
um ser imutável que me criou. E a razão humana - acrescenta Galluppi - também
nos faz compreender que a causa primeira é um ser inteligente não cego. Daqui
temos, por via direta, a fundação dos princípios éticos: "[...] Deus quis que nossa
razão nos mostrasse os deveres que nos mostra, e ele quis manifestar-nos seus
preceitos divinos por meio de nossa razão. É esta a lei escrita por Deus em nossos
corações".

Por volta dos trinta anos, leu Con­


dillac, autor que exerceu poderosa influên­
cia sobre ele. Escreve G alluppi em sua
Pascoal Galluppi (1770-1846) contri­ A utobiografia: “ As obras desse filósofo
bui para tornar a filosofia européia conhe­ fizeram com que eu mudasse a direção de
cida na Itália. Nascido em Tropea em 1770, meus estudos sobre a filosofia [...]. Com ­
Galluppi estudou filosofia e matemática na preendi que antes de afirmar qualquer coisa
Universidade de N ápoles e, inicialmente, sobre o homem, Deus e o universo, era
formou-se nas obras de Descartes, Leibniz preciso examinar os motivos legítimos de
e Wolff. nossos juízos e dar base sólida à filosofia,
Quinta parte - ; A f ilo s o fia n a F m n ç a e n a CT+ália n a e r a d a R e s t a u r a ç ã o

ou seja, que era preciso remontar às origens O p rin c íp io d e c a u s a l i d a d *


de nossos conhecimentos” . e a d e .m o n s + ra ç ã o
Em 1807, publicou o ensaio Sobre a
análise e a síntese. Nesse meio tempo, entrou d a e x istê n c ia d e D e u s
em contato com a filosofia de Kant e, em
1819, publicou os primeiros dois volumes
do Ensaio filosófico sobre a crítica do conhe­ “ O eu, portanto, se m anifesta a si
cimento (o terceiro e o quarto volumes das mesmo como um sujeito que percebe algo
obras foram publicados em 1822; o quinto fora de si” . E esse fora de si não é criado
e o sexto volumes, em 1832). pelo sujeito. O eu percebe objetos externos
Em 1831, Galluppi obteve a cátedra que o modificam. Os objetos externos são
de “ filosofia intelectual” na Universidade de causa das percepções: “ O fora de mim não
Nápoles. E o fruto dos seus ensinamentos existe porque me modifica, mas me modifica
está registrado nas Lições de lógica e meta­ porque existe” .
física (1832-1836). E aqui, contra as devastadoras aná­
De 1827 são as Cartas sobre as pe­ lises de Hume e Kant, Galluppi recupera
ripécias da filosofia de Descartes a Kant, o princípio de causalidade da tradição e,
cartas que Galluppi escreveu a pedido de por meio dele, demonstra a existência de
seu amigo, o cônego Fazzari, professor no Deus. Com efeito, escreve Galluppi: “ Eu sou
Seminário de Tropea, que desejava ter infor­ um ser mutável. E essa verdade é dado da
mações sobre a filosofia moderna. experiência” . Pois bem, prossegue ele com
argumentação já clássica, “ um ser mutável
não pode existir por si mesmo e essa verdade
é resultado do raciocínio, que demonstra a
yA r e a l i d a d e d o ew
identidade entre a idéia do ser em si mesmo
e a e x istê n c ia e a idéia do ser imutável” . Ora, da primei­
d o m u n d o e x te rio r ra verdade, extraída da experiência, e da
segunda verdade, extraída do raciocínio,
Galluppi via derivar “ a conseqüência de
Preocupado em salvaguardar os nú­ que eu não existo por mim mesmo, ou seja,
cleos fundamentais da tradição religiosa sou um efeito” . E, “ levado a esse conheci­
e metafísica (como a existência de Deus, a mento por uma análise incontrastável, eu
realidade do eu ou até a existência do mundo procuro além disso ver se a causa que me
externo), Galluppi é contrário ao método produziu é inteligente ou cega. E descubro
kantiano do a priori, na convicção de que que minha razão pode chegar ao ponto de
“ a realidade de nossos conhecimentos só mostrar-me a inteligência da causa primeira
pode estar fundamentada na experiência” . de meu ser” .
Esta é interna e externa.
D a análise da experiência interna,
Galluppi, seguindo os ecléticos e os ideólo­ .4 ... fu n d ação
gos franceses, dá início à sua filosofia. Ora, d o s v a lo re s m o rais
a realidade que a experiência interna nos
testemunha é a do eu. O eu existe, portanto,
é uma verdade imediatamente evidente, é Galluppi ainda afirma que “ o teste­
“ verdade primitiva” . Chamo consciência, munho da consciência deve ser visto como
diz Galluppi, o ato com que me capto como infalível” . E a consciência nos testemunha
um existente que pensa: a consciência é “ a que existe “ em nosso espírito a potência
percepção de mim no estado de seus pen­ de não querer algumas coisas que se quer
samentos” . e de querer algumas coisas que não se quer.
Se a análise psicológica revela a reali­ Precisamente nessa potência é que consiste
dade do eu, ela também mostra a realidade a liberdade em relação à necessidade da
do mundo externo. Escreve Galluppi: “ A natureza” . E a consciência atesta também
sensação é, por sua natureza, relativa ao “ a exigência do bem e do mal e, conse­
objeto sentido: ou ela é sensação de alguma qüentemente, de uma lei m oral natural
coisa ou não é em absoluto sensação” ; “toda [...]” . N a realidade, “ sendo nossa natureza
sensação, portanto, é a percepção de uma efeito da vontade divina e sendo nós como
existência externa” . som os porque Deus quis que fôssem os
Capitulo décimo quarto - C\aW u p p i, T ^osm in i e g i o b e r t i

como som os, Deus quis também que nossa d) a existência e a validade da lei moral
razão nos m ostrasse os deveres que nos natural.
mostra, pois ele quis manifestar-nos seus Trata-se de resultados tradicionais,
divinos preceitos por meio de nossa razão. certamente, mas é interessante notar o modo
É essa a lei inscrita por Deus em nossos como G alluppi os alcançou. Esse modo
corações” . consiste em refinada argumentação e em
Os resultados m ais im portantes da sutil e minuciosa análise da experiência de
filosofia de Galluppi são, portanto: consciência, análise que, por vezes, pode ser
a) a realidade do eu; equiparada a algumas das mais belas pági­
b) a existência do mundo externo; nas dos fenomenólogos contemporâneos, a
c) a existência de Deus; começar por Husserl. B H ]

ELEMENTI
Dl

F I L O S O F I A
BB. Í4MNB
PASQÜALB GALLUPPI
DA TftOPEA
n o f i m i m riLOMru
« L U I . m iT I U I T t ' D K 8 LI SttH U M IU N U

Nuova Eáisioae accreaclut» « a iilio M i


ooa note dei Pubbl Lett. P. T. S.

VOLUME I.
LA LÓGICA PURA

Vrontispício da nova edição


FIRENZB do primeiro volume
Ttrooftim w narmo nuTicmu dos Elementos de filosofia,
1843 de Pasqual Galluppi (I770-1846),
publicada em Florença em ] 843.
Quifltã pãrte - ; A f ilo s o fia n a P r a n ç a e n a D\á\\a n a ev*a d a R e s t a u r a ç a o

II. yWô Kvio Tvosmmi


e a filo s o fia d o ^ s e ^ ideal'

• Antônio Rosmini-Serbati (1797-1855) - sacerdote de Rovereto, fundador da


Congregação religiosa que ele chamou de Instituto da Caridade, conselheiro de Pio
IX nos anos tempestuosos da primeira guerra de independência
vida e obras ~ ® autor de vastíssima produção filosófica: Novo ensaio sobre a
§1 origem das idéias (1830); Antropologia (1830); Filosofia do direito
(1841 -1845). Entre as obras póstumas devemos recordar a Teosofia
e a Antropologia sobrenatural.
• Preocupado com os danos que a filosofia moderna acarreta à fé religiosa,
Rosmini individua no subjetivismo a fonte de todos estes danos; subjetivismo que
se aninha tanto no sensismo e no empirismo como no apriorismo kantiano.
Estão, de fato, errados os sensistas e os empiristas (Locke, Condillac, os filó­
sofos da Escola escocesa etc.); estes sustentam que a única fonte de nossas idéias
é a experiência; esta posição deles, porém, é uma teoria "falsa
o "formal por defeito", pelo fato de que ela não consegue dar conta de
da razão" nossos conhecimentos universais e necessários: as sensações sem
se reduz idéias são e permanecem ininteligíveis.
á única idéia Estão erradas também as doutrinas de Platão, Aristóteles, Leibniz
e Kant. Estes puseram em evidência, no processo cognoscitivo,
§ a atividade do intelecto e de tudo o que nele existe de inato;
todavia, suas teorias são "falsas por excesso"; em sua explicação
do processo cognoscitivo há "também muito de demasiado e de arbitrário". Em
particular, diz Rosmini, Kant - apesar de seus méritos - de fato exagerou no nú­
mero das categorias: "Todo este rol de formas é demasiado"; e assim é porque "o
formal da razão é muito mais simples". As formas a priori de Kant se reduzem,
segundo Rosmini, à única idéia do ser.
• Quando conhecemos, sempre conhecemos alguma coisa; percebemos esta ou
aquela coisa; ouvimos uma coisa; vemos outra; em nossas sensações damos como
descontado que estas nos oferecem realidades, aspectos de realidade. Portanto, no
fundo ou, se quisermos, por trás de todo nosso ato cognoscitivo há a idéia de que
existe uma realidade, a idéia do ser, de um ser indiferenciado; e
A idéia do ser de suas diferenciações nos falarão os diversos conhecimentos e
fundamenta as diferentes experiências, e idéias que se adquirirão sucessiva-
nossos atos mente.
cognoscitivos g a jdéia do ser que fundamente nossos atos cognoscitivos; é em
53 base a esta idéia que julgamos como existente tudo aquilo que
sentimos e percebemos. A idéia do ser é fundamento de nossos
conhecimentos, no sentido de que é seu pressuposto: se não soubéssemos, se não
pressupuséssemos que há o ser, que existe a realidade, nenhum de nós se poria a
caminho para explorá-la. Escreve Rosmini: "Pensar o ser em um modo universal
não quer dizer mais que pensar a qualidade que é comum a todas as coisas, sem
levar em conta todas as outras qualidades genéricas ou específicas ou próprias".
É óbvio, por outro lado, que esta idéia do ser não pode derivar das sensações
que, de fato, são sempre particulares e contingentes. A realidade, conforme Ros­
mini, é que a idéia do ser é, por disposição ab aeterno de Deus, uma idéia inata.
A idéia do ser como idéia inata - que Rosmini chamará de ser ideal - é, então, a
"capacidade de captar o ser" onde quer que ele esteja; é, em substância, "o lume
da razão", conatural ao homem e que o homem, nas tentativas e nos esforços de
suas pesquisas, "aplica" ao material que lhe é oferecido por sua experiência, e
Capítulo décimo quarto - C Ã a ílu p p i, R o s mini e ( g io b e r t i

assim "conhece". A idéia do ser é, portanto, "o formal da razão", é a "fõrma" da


mente: o conhecimento é síntese entre esta "forma" a priori e a "matéria prove­
niente dos sentidos.
• Da idéia do ser Rosmini deriva os princípios fundamentais do conhecimento,
ou seja, as que ele chama de idéias puras, como as de: identidade, contradição,
substância, causa, unidade, número, possibilidade, necessidade, imutabilidade,
absolutez. Estas idéias constituem os primeiros princípios, como:
a) o princípio de cognição: "o objeto do pensamento é o idéias ouras
ser"- , . , . , _ ■- ■
b) o principio de nao-contradiçao: aquilo que e- - o ser- nao
- e princípios
primeiros
pode não ser"; _> § 4
c) o princípio de substância-, "não se pode pensar o acidente
sem a substância;
d) o princípio de causalidade: "não se pode pensar um novo ser sem uma
causa".
Não é possível negar tais princípios sem desmentir-se. Por isso, diz Rosmini,
erra Hume, mas também erra Berkeley por negar a substância corpórea e o mundo
externo.
• A existência do mundo externo permite a Rosmini falar das idéias não puras
(corpo, tempo, movimento, espaço etc.), as quais não são possíveis de obter sem
o contributo das sensações. Mas o que é de maior peso é aqui o
conceito de "sentimento fundamental corpóreo", isto é, o fato "o fato de nos
de nos sentirmos corpóreos. As sensações são sempre modifica- sentirmos
ções subjetivas, modificações de nosso sentimento fundamental corpóreos"
corpóreo. 54
• E daqui chegamos ao conceito de pessoa. O direito, para Rosmini, pressupõe
a moral: o que é justo pressupõe o que é bem. Mas que o direito se baseia sobre a
moral quer dizer que ele pressupõe "uma pessoa, um autor das próprias ações".
E a fim de que "um ser possa dizer-se autor de suas ações, é preciso que e/e seja
aquele que as faz: este e/e existe apenas se conhece e se quer: ou seja, se é uma
pessoa".
Direitos conaturais da pessoa são a liberdade e a proprie- A "pessoa«
dade. E em nome da pessoa e da religião Rosmini combate, na contra todas
teoria da política, todas as posições "estatolátricas", que não as concepções
fazem mais que abandonar os povos "à mercê do arbítrio dos estatolátricas
governantes". ->§5-6
Rosmini, em suas argumentações de filosofia do direito e de
filosofia da política, recorre ao conceito de pessoa, de uma pes­
soa inserida em uma hierarquia objetiva dos seres estabelecida por Deus (Deus, a
pessoa etc.), do que segue-se por via direta o princípio da moralidade rosminiana:
" Queira, ou seja, ama o ser onde quer que o conheças, na ordem que ele apresenta
à tua inteligência".

*| ;A v id a e as o b ra s profundamente na renovação da vida pasto­


ral, trabalho que, em determinado momen­
to, teve de interromper porque recaiu em
Antônio Rosmini-Serbati nasceu em suspeitas por parte da polícia austríaca. Em
Rovereto, na região de Trento, em 1797. 1826 transferiu-se para M ilão, onde estrei­
Estudou teologia (mas seguiu também os tou forte amizade com Manzoni. Dedicado
cursos de medicina, agronomia e letras) na aos estudos e de caráter reservado, Rosmini
Universidade de Pádua. Ordenado sacerdote desenvolveu, por insistência de Gioberti,
em 1821, volta a Trento, onde se empenha uma m issão diplomática junto a Pio IX,
Quifltã parte - ;A filosofia K\a Trança e na CTfália na era da Restauração

com o objetivo de induzir o papa a aliar-se de a priori na origem de nossas idéias. M as,
em uma guerra contra a Áustria, e tornou-se assim fazendo, não conseguem explicar os
seu conselheiro nos anos tempestuosos da fatos do espírito, já que assumem “ menos
primeira guerra de independência, com as do que é necessário para exp licá-lo s” .
bem dramáticas e conhecidas vicissitudes. Com efeito, as sensações não podem nos
Rosmini passou seus últimos anos em Stresa, dar conhecimentos universais e necessá­
onde morreu no dia I o de julho de 1855. rios. Sem idéias, as sensações permanecem
A produção filosófica de Rosmini é ininteligíveis. As sensações só adquirem
vastíssima. Eis, pela ordem, seus principais significado se forem iluminadas por idéias
escritos: Novo ensaio sobre a origem das ou enquadradas em teorias. De acordo com
idéias (1830); Princípios da ciência moral Kant, Rosmini afirma que as sensações são
(1831); Antropologia (1838); Tratado de matéria do conhecimento, mas ainda não
ciência moral (1839); Filosofia da política são conhecimento.
(1839); Filosofia do direito (1941-1845); b) As doutrinas de Platão, Aristóteles,
Teodicéia (1845); Psicologia (1850). Entre Leibniz e Kant são contrárias às teorias que
as obras póstum as, devemos recordar a pretendem reduzir o conhecimento a sensa­
Teosofia, a A ntropologia sobrenatural e ções. Eles destacaram bem a atividade do
Aristóteles exposto e examinado. intelecto, embora, na opinião de Rosmini,
Homem de grande retidão moral e de suas teorias sejam “ falsas por excesso” .
fé clara e sincera, Rosmini fundou em 1828, N a explicação dos fatos do espírito
no Sagrado Monte Calvário, perto de Do- humano, não se deve assumir mais do que o
modóssola, uma nova congregação religiosa, necessário para explicá-los; deve-se preferir
que chamou de Instituto da Caridade (que a explicação “ que é a mais simples e que
só seria aprovado pela Igreja em 1839). N a exige menos suposições do que as outras” .
década de 1830-1840, Rosmini fundou o E esses filósofos, embora falando todos de
ramo feminino de sua congregação: as Irmãs algo inato, inseriram em suas explicações
da Providência, que ficariam conhecidas “ também coisas excessivas e arbitrárias” .
pelo grande público com o nome de M es­ Kant teve o mérito de considerar inatas “ so­
tras rosminianas. As Irmãs da Providência mente as formas das cognições, deixando
dedicavam-se (e se dedicam) à educação à experiência dos sentidos o encargo de
das crianças nos asilos infantis (nos quais, oferecer a matéria para elas” . M as R os­
naquela época, aplicavam o m étodo de mini considera que as dezessete formas,
Ferrante Aporti), nas escolas primárias e adm itidas por Kant no espírito humano
nos orfanatos. para explicar o fato das cognições, são
demasiadas: “ Todo esse novelo de formas
é dem asiado” , pois “ o formal da razão é
muito mais simples” .
^2-* C r í t i c a N a realidade, diz Rosmini, quando
d o se n sism o e m p irista tomamos as formas a priori de Kant e delas
e d o a p r io r is m o U a n tia n o extraímos “ o puro formal, sem deixar nada
de material” , então não será difícil nos con­
vencermos de que “ o formal da razão” se
Preocupado com os prejuízos que a reduz somente à idéia do ser.
filosofia moderna acarreta à tradição reli­
giosa, Rosmini identifica no subjetivismo o
erro filosófico fundamental, tanto no sen­
sismo e no empirismo como no apriorismo id é ia d o ser,
kantiano.
s u a o rig e m
A primeira parte do N ovo ensaio é
dedicada ao exame das doutrinas filosóficas e su a n atu reza
relativas à origem das idéias.
a) Sobre este problema, Locke, Con­
dillac e os filóso fo s da escola escocesa Em todo o nosso conhecimento, nós
(Reid, Dugald Stewart), segundo Rosmini, não apenas percebemos esta coisa, senti­
propuseram “teorias falsas por deficiência” : mos outra ou vemos ainda outra. Quando
eles sustentam que a única fonte das nossas tomamos consciência daquilo que, pouco
idéias é a experiência, não admitindo nada a pouco, as sensações nos oferecem, sem-
Cãpítulo décimo quarto - C \ a llu p p i, R o s m i n i e CÃiobe-ríi

Antônio Rosmini
(1797-1855),
preocupado
com os danos
que a filosofia moderna
acarreta para a
tradição religiosa,
individuou
no subjetivismo
o erro radical
tanto do sensismo
e do empirismo
como do apnorismo
kantiano.

pre pressupomos que essas coisas existem, pode ter “ a idéia do ser sozinha, sem todas
que há algo. E reconhecer o ser de algum as outras idéias” . Todas as nossas idéias são
conteúdo oferecido por alguma sensação “ adquiridas” ; apenas a idéia do ser não o
não é sensação. E muito mais percepção é: ela é o a priori ou “ o formal da razão” .
intelectiva. E é o único formal da razão, pois o resto
De fato, não podemos conhecer algo provém da sensação.
se a este algo não atribuirmos o ser. E a Agora, porém, depois de ter precisado
idéia de ser que se encarna nos dados sensí­ que a idéia do ser é a forma do conheci­
veis e que nos permite julgar existente tudo mento, ou seja, o elemento constante que é
o que sentimos e percebemos. Portanto, a constitutivo de todo o nosso conhecimento,
idéia de ser fundamenta todo ato cognosci- Rosmini se pergunta de onde ela deriva.
tivo do homem. Escreve Rosmini: “ Pensar Ela é universal e necessária e, por isso,
o ser de modo universal nada mais quer implica que:
dizer senão pensar a qualidade que é co­ 1) não pode derivar das sensações,
mum a todas as coisas, sem falar em todas que nos põem em contato unicamente com
as outras qualidades genéricas, específicas conteúdos particulares e contingentes;
ou próprias” . 2) não pode derivar da idéia do eu,
O homem, portanto, pensa o ser “ de já que também essa idéia, a exemplo das
modo universal” , isto é, pensa “ na qualidade outras, é a idéia de um ser particular;
que é comum a todas as coisas, sem atentar 3) não é produzida pela abstração ou
para todas as suas outras qualidades” ; ele reflexão, já que tais operações nada mais
Quifltã parte - f ilo s o fia n a F r a n ç a e n a *U+á!ia n a e r a d a R e s l a u f a ç a o

fazem do que analisar e distinguir aspectos a) o princípio de cognição, segundo o


particulares de coisas que já existem; qual “ o objeto do pensamento é o ser” ;
4) não provém do espírito de um sujei­ b) o princípio de não-contradição, pelo
to finito, pelo fato de que um sujeito finito qual “ aquilo que é — o ser — não pode não
não pode produzir um objeto universal; ser” ;
5) não é criada por Deus no ato da c) o princípio de substância, que diz
percepção, porque desse modo se reduziria que “ não se pode pensar o acidente sem a
Deus a servidor dos homens em cada ato do substância” ;
conhecimento. d) o princípio de causalidade, pelo
De onde deriva então a idéia de ser? qual “ não se pode pensar novo ser sem uma
Como, nascendo, todos os homens conhe­ causa” .
cem a idéia do ser? Tais princípios, afirma Rosmini, não
Remetendo-se a Agostinho e a são podem ser negados sem contradição. E essa
Boaventura, R osm ini sustenta que por é a razão por que, em sua opinião, Hume se
disposição ab aeterno de Deus todos os engana. E também se engana Berkeley, que
homens têm inata a idéia de ser que cons­ nega a existência da substância corpórea e
titui o fundamento de seus conhecimentos do mundo externo.
específicos. A idéia do ser como idéia inata A demonstração da realidade do mun­
— que Rosmini chama de ser ideal — é a do externo nos leva a dois outros núcleos
“ capacidade de captar o ser” onde quer que fundamentais da filosofia de Rosmini, o das
ele esteja, é “ a luz da razão” co-natural ao idéias não puras e o do “ sentimento corpó­
homem e que o homem, nos esforços e riscos reo fundamental” . Com efeito, enquanto as
de sua investigação, “ aplica” ao material idéias puras derivam unicamente da idéia
que lhe é oferecido por sua experiência da do ser, existem outras idéias (as idéias não
realidade, e assim “ conhece” . puras), como as de corpo, tempo, movi­
A idéia do ser é, portanto, a “ form a” mento, espaço e realidade externa, que não
da mente, e o conhecimento é como uma podem ser obtidas sem a contribuição das
síntese entre esta forma a priori e a matéria, sensações.
ou seja, o conteúdo, que deriva dos senti­ M as as sensações pressupõem nosso
dos. M as é um a priori não subjetivo em corpo, ou melhor, “ o sentimento corpóreo
sentido kantiano, e sim objetivo (ainda que fundamental” , ou seja, o fato de nos sen­
em sentido muito diferente daquele que ve­ tirmos corpóreos. As sensações são modi­
remos sustentado por Gioberti) e, portanto, ficações subjetivas, modificações de nosso
é objetiva a síntese da qual é o fundamento. sentimento corpóreo fundamental.
fãT3l E eis como Rosmini chega à existência
dos corpos externos: “ A consciência nos
diz: 1) que somos modificados, 2) que essa
modificação é feita em nós, mas não por
nós (...). O entendimento aplica então ao
4 O ^ se n tim e n to c o r p ó r e o
segundo elemento, isto é, à consciência de
■ fu n d a m e n ta l” que a ação é feita em nós mas não por nós,
e a V e a lid a d e o conceito de substância e, assim, separa e
torna objeto seu as coisas externas, sobre as
do m undo ex tern o ”
quais, depois, medita e raciocina” .

Estabelecida desse modo a idéia do


ser, dela Rosmini deriva os princípios fun­ 5 P e s s o a / lib e rd a d e
damentais do conhecimento, isto é, aquelas
que ele chama de idéias puras, como as de e p ro p rie d a d e
identidade, contradição, substância, causa,
unidade, número, possibilidade, necessi­
dade, imutabilidade e absoluticidade, que Rosmini apresenta ainda uma siste-
derivam unicamente da idéia de ser (e que, m atização posterior da doutrina do ser
por isso, são chamadas puras). na obra, saída postumamente, chamada
Essas idéias constituem os princípios Teosofia, onde sustenta (e também aqui é
primeiros, como: evidente a referência a Agostinho) que o ser
273
Cãpítulo décimo CfU ãYtO - g a l l u p p i , T ^osm in l e £Àiob>eHi

M M JS

CINQUE PIAGHE
DELLA

SANTA CHIESA
m ««m
MDIC1T0 1L GL8X0 CrtTOUCO
i ■ um au mm mmn t «um i mu
ei
A im »m o l o n u i i

FERDCIl
noeuium mamo tutmu
1849.

Acima, frontispício da obra de Rosmini


Das cinco feridas da Santa Igreja,
em uma reedição de 1849.

A direita, Antônio Rosmini


em um retrato de Francisco Hayez
(Milão, Pinacoteca de fírera).

tem três formas: a) a forma real, b) a ideal que concede a uma pessoa a liberdade de
e c) a moral. operar, proíbe às outras perturbarem aquela
a) O ser real é objeto das ciências operação” . O direito, portanto, baseia-se na
metafísicas: a teosofia estuda o ser infinito moral e pressupõe “ uma pessoa, um autor
de Deus; a psicologia estuda o ser finito do das próprias ações” . E, para que “ um ser
homem; a física estuda a natureza. possa se dizer autor de suas ações, é preci­
b) O ser ideal é objeto das ciências ideo­ so que seja ele que as faz: esse ele, porém,
lógicas, nas quais, como no Novo ensaio, só existe se conhece e se quer, ou seja, se é
Rosmini indaga sobre a origem das idéias e pessoa” .
do conhecimento. O conceito de pessoa é o fulcro da con­
c) O ser moral é objeto das ciências cepção ética e política de Rosmini. Contra o
deontológicas, como a moral, o direito e a naturalismo e o idealismo, Rosmini afirma
política. a concepção espiritualista da pessoa na qual
O Novo ensaio apareceu em 1830, os o homem emerge como portador de valor
Princípios da ciência moral são de 1831, e a ético-religioso. A pessoa tem valor moral.
Filosofia do direito é de 1841-1845. Rosmini E é desse valor que, por parte dos homens,
define o direito como “ faculdade de operar decorre o dever de respeitar os outros en­
aquilo que agrada, protegida pela lei moral, quanto pessoas.
que infunde aos outros o respeito” . Com O direito é assim reconduzido à moral,
efeito, é a lei moral que, “ ao mesmo tempo enquanto é “ ele próprio dever moral, que
Quinta parte - A f>lo s o f ia ncx T '^ a n ç a e ncx D\cx\ ia ncx e r a d a I R e s + a u r a ç a o

obriga uma pessoa a deixar intacta e livre ro do Estado, então a renovação da política
qualquer atividade própria de outra pes­ passa através da renovação religiosa.
so a ” . Além da liberdade, também é direito Daí, entre outras razões, o interesse
co-natural do homem a propriedade. de Rosmini para que se sanassem aqueles
Em suma, “ a pessoa do homem é o que ele considerava como os maiores males
direito humano subsistente” . Em nome da da Igreja de então, males que, em Sobre as
pessoa, Rosmini defende a liberdade religio­ cinco feridas da Igreja (1831), ele identifica
sa: “ Empregar a força externa para forçar na divisão do povo cristão em relação ao
alguém a uma crença religiosa, ainda que clero, na falta de unidade entre os bispos, na
verdadeira, é absurdo lógico e manifesta interferência do poder secular na nomeação
lesão do direito” . E 5 H 4 T 5 1 dos bispos e na falta de prestação pública de
contas da administração dos bens da Igreja.
Assim, a pessoa constitui o valor em torno
do qual Rosmini faz girar suas considerações
C s t a d o , Z Jg r e j a
de filosofia do direito e de filosofia da políti­
ca. M as o reconhecimento da pessoa como
e o p rin cíp io d a m o r a lid a d e valor ou bem se insere no reconhecimento
mais amplo que o homem tem dos diversos
níveis metafísicos do ser. Em outros ter­
Sempre em nome da pessoa e da reli­ mos, contra o subjetivismo moral, Rosmini
gião, no campo político Rosmini procura defende um objetivismo moral, no qual o
restringir os poderes do Estado, posicio­ dever-ser encontra seu critério no ser.
nando-se contra a teoria “ estatolátrica” de Os seres são conhecidos em uma hierar­
Hegel e de todos os que nele se inspiram. quia determinada (Deus, a pessoa humana
Estes, como os “ doutrinários franceses” , etc.), e a moral consiste em respeitar a hie­
por exemplo, “ destruindo a religião e a rarquia estabelecida por Deus, onde alguns
moral, que são as moderadoras naturais do seres são fins e outros são meios. N essa
poder civil, abandonam os povos à mercê hierarquia, Deus é o fim supremo; o homem
do arbítrio dos governantes” . vem depois de Deus; os outros seres vêm de­
O Estado pode se ocupar da esfera do pois do homem. Assim, conhecemos o bem
útil, só na condição de que esse útil se subor­ de alguma coisa quando conhecemos seu ser
dine ao bem. E o árbitro desse bem só pode e sua ordem na hierarquia dos seres.
ser uma autoridade divina como a Igreja. Para Rosmini, portanto, o princípio
E claro que, se a sociedade teocrática, da moralidade é o seguinte: “Quer, ou seja,
isto é, a Igreja, é a sociedade que, baseando- ama o ser em toda parte onde o conheces, na
se na autoridade divina, é necessária para ordem que ele apresenta à tua inteligência".
salvaguardar a pessoa do superpoder onívo-

III. V i nczanzo £^\ioberfi


e a filo s o fia d o ^ s e r reaT

• Vincenzo Gioberti (1801-1852) viveu intensamente diversos episódios da


Restauração e foi exilado em Paris e Bruxelas. Em 1848 volta a Turim, mas, falidas
suas concepções neoguelfas, retoma o caminho do exílio. Mor­
Do exílio re em Paris no dia 26 de outubro de 1852. De 1839-1840 é sua
a "primeiro Introdução ao estudo da filosofia; Do primado moral e civil dos
ministro" italianos é de 1842. A filosofia da revelação e a Protologia foram
§1 publicadas postumamente.
• A grande preocupação filosófica de Gioberti é exatamente o psicologismo,
ao qual nem mesmo Rosmini teria escapado - o fundamentar-se sobre o homem,
C ã p l t u l o d é c i m o C fU ã rtO - G a l l u p p i , T ^osm in i e (^Ãiòberti

sobre a consciência do homem - que dominou a filosofia desde Descartes. Se, po­
rém, se parte do homem e se aceita a autonomia da razão, então-salienta Gioberti
- serão inevitáveis "a anarquia das idéias, a liberdade absoluta
de pensar nas ordens filosóficas e religiosas, e a licenciosidade Contra
civil". Quando se assume o sujeito como ponto de partida, faz-se ° psicologismo
a escolha errada de uma base demasiado frágil.
• É, portanto, urgente e necessário mudar de caminho. E o caminho indi­
cado por Gioberti é o do ontologismo: não é o saber construído pelo homem
que "fundamenta Deus"; ao contrário, é Deus, isto é, o ser real e absoluto, que
constitui o fundamento e a validez de nossas cognições; Deus se revela à mente
humana, uma mente passiva que não desvirtua nem falseia a realidade que a ela
se apresenta. Escreve Gioberti: a evidência de Deus "não brota
do espírito humano [...] é objetiva e não subjetiva [...]; ela é, por- A evidência
tanto marcada por uma necessidade objetiva, absoluta, que diz de Oeus
respeito à própria natureza, não ao intuito que a contempla", "é objetiva"
E eis como se impõe essa evidência de Deus: Deus se revela à $ 3
consciência como absoluto e necessário. O ente existe necessaria­
mente, e esta é a primeira parte da "fórmula ideal". A segunda parte da fórmula
é: o ser cria o existente, no sentido de que as realidades existentes encontram
sua razão de ser na causa primeira que é Deus. A terceira parte da fórmula ideal
é que: o existente volta ao ente. Ele volta por meio de sua vida moral. Portanto:
"Saída de Deus e volta a Deus, eis - afirma Gioberti - a filosofia e a natureza, a
ordem universal dos conhecimentos e a das existências". E se a ontologia se refere
à criação, a moral se refere à volta a Deus.
• Sobre essas bases filosóficas, Gioberti constrói seu programa político e lança
as bases do movimento neoguelfo. Éa religião que cria "a moralidade e a civilização
do gênero humano". Ora, porém, a religião em que se conserva intacta a revelação
de Deus ao homem é - afirma Gioberti - o cristianismo; e desta
revelação guarda e intérprete é a Igreja católica, cujo centro de a missão
difusão está em Roma: é aqui que se encontra o papa. Portanto: de civilização
a Itália difundiu estas verdades comuns que fizeram a Europa; da Itália
mas a Europa - depois de Descartes e de Lutero - se afastou da § 4
verdade objetiva revelada por Deus, confiou-se aos homens e
assim caiu no caos do arbítrio; eis, então, que a Europa voltará ao caminho justo se
voltar à Itália; a Itália, portanto, deve retomar sua missão de civilização na grande
história da humanidade.

tou a idéia monárquica, tornou-se amigo


ám A vida e a s o b r a s de Pellico e defensor de um “ cristianismo
republicano” .
Vincenzo Gioberti nasceu em Turim, Nesse período, dado o sentido religioso
de família humilde, em 1801. Tornando-se das idéias mazzinianas, sentiu-se próximo a
órfão de pai, passou uma infância difícil. Mazzini. Detido por suas idéias republicanas
Laureou-se em teologia em 1822. Três anos e por suas atividades patrióticas, foi para o
depois, foi ordenado sacerdote. Em 1826, exílio em 1833, instalando-se primeiramente
foi nomeado capelão da corte. em Paris. Em 1834, transferiu-se para Bruxe­
Leu muito: Platão, Agostinho, os Pa­ las, onde ensinou filosofia e história até 1845.
dres da Igreja, Vico, Lamennais, Cousin. Durante esse período escreveu a maior
Nesse meio tempo, seguia os acontecimentos parte de suas obras. A Teoria do sobrenatu­
políticos e interessou-se por teoria da polí­ ral é de 1838. A Introdução ao estudo da fi­
tica: inicialmente, aceitou o absolutismo de losofia, de 1839/1840, é seu trabalho teórico
De Maistre; depois, afastou-se dele, rejei­ mais consistente e de maior relevância filo­
276
Q u i n t a p a r t e - j A f ilo s o fi a n a T -r a n ç a e n a .17+ália n a e r a d a R e s t a u r a ç ã o

sófica: é sobretudo a ele que nos referiremos Se partirmos do homem e aceitarmos


nas páginas seguintes. Ainda de 1840 são as a autonomia de sua razão, então, diz Gio­
Considerações sobre as doutrinas filosóficas berti, são inevitáveis “ a anarquia das idéias,
de Victor Cousin. A Carta sobre as doutrinas a liberdade absoluta de pensar nos campos
filosóficas e políticas de Lamennais foi pu­ filosófico e religioso e a licenciosidade civil” .
blicada em 1841. O grande trabalho escrito O psicologismo pretende partir do homem
contra Rosmini sob o título Sobre os erros para depois erigir sobre essa base a fábrica
filosóficos de Antônio Rosmini leva a data de “ todo o cognoscível humano” . “ Os ob­
de 1841-1843. Nesse meio tempo, porém, jetos externos, as substâncias, as causas, as
em 1842, Gioberti havia escrito a obra que informações sobre a ordem mundial e moral
tanta influência exerceria no clima da Res­ e, por fim, a própria idéia” , tudo deveria ser
tauração italiana e que ficaria no centro de alcançado a partir do sujeito. Entretanto,
tantas polêmicas: Sobre o primado moral e essa base e esse ponto de partida são muito
civil dos italianos. frágeis e não conseguem suportar toda a
Em 1845, Gioberti voltou a Paris e, em construção. O resultado da doutrina do livre-
1846-1847, publicou dura polêmica contra exame de Lutero e da doutrina do primado
os jesuítas: O jesuíta moderno. Criticado por do sujeito de Descartes é a anulação do cri­
muitos católicos e atacado também na alta tério absoluto da verdade e da moralidade.
hierarquia da Igreja, em 1848 Gioberti escre­ E nem mesmo Rosmini escapa à arma­
veu a Apologia do jesuíta moderno, concebi­ dilha do subjetivismo, como afirma Gioberti
da em defesa de seu livro O jesuíta moderno. no livro Sobre os erros filosóficos de Antônio
Os acontecim entos de 1848 levam Rosmini. Rosmini cai no “ceticismo e no
Gioberti de volta à Itália: deputado e minis­ nulismo” : ele parte da idéia entendida como
tro, foi eleito presidente do Conselho. M as, forma da mente humana, mas, com base
revelando-se utópicas suas concepções neo- nesse fundamento, não consegue passar da
guelfas, à luz dos acontecimentos, Gioberti idéia de ser possível para o ser real. Trata-se
retomou o caminho do exílio. Voltando a de pretensão absurda pensar em remontar
Paris, aí veio a morrer em 26 de outubro de a Deus considerando-o como construção de
1852. Durante esse segundo exílio, publicou nossa mente, como “ conceito nosso” .
outra obra de caráter político: A renovação São essas, portanto, as razões pelas
civil da Itália (1851). quais Gioberti, querendo evitar os perigos
As obras publicadas postumamente fo­ deletérios do psicologismo, retoma o cami­
ram: A filosofia da revelação e a Protologia, nho do “ platonismo” , ou seja, da doutrina
ambas aparecidas em 1857. N a Protologia da realidade objetiva das idéias. O ser não
(ou “ ciência primeira” ) Gioberti reelaborou, é uma idéia da mente; a idéia é antes o ser
considerando também as idéias de Hegel, (ou Deus) que revela à própria mente e que
os motivos teóricos que expusera na Intro­ se põe como fundamento e garantia de todo
dução ao estudo da filosofia nos anos do o saber.
primeiro exílio. N ão se trata do saber feito pelo ho­
mem e elaborado pela “ livre busca pelo
fundamento de Deus” ; ao contrário, é Deus,
isto é, o ser real e absoluto, que constitui o
2 . (Sontra o “psicolo0Ísmo// fundamento e dá validade aos nossos conhe­
da filosofia moderna cimentos. Esse é o núcleo da filosofia do ser
real ou ontologismo de Gioberti.

Em sua Introdução ao estudo da filo­


sofia, Gioberti toma posição contra o psico-
logismo que, a partir de Descartes, invadiu
toda a filosofia moderna. E precisamente em
Descartes é que Gioberti vê o primeiro res­
ponsável pela decadência subjetivista da fi­ e h ; A filo s o fia como r e f le x ã o
losofia que chegou até Kant e que, no fundo, s o b r e a r e v e la ç ã o o r ig in á r ia d e IDeus
marca o próprio sistema de Hegel (sistema
aparentemente “ objetivo” , mas que, subs­ Assim como M alebranche afirmava
tancialmente, é só psicologismo disfarçado), que nós intuímos todas as coisas em Deus,
e ao qual sequer Rosmini soube resistir. da mesma forma Gioberti afirma que Deus
Capítulo décimo quarto - Galluppi, "Rosmini e (gioberti

msM " P r im e ir a p a r t e d a fó r m u la id e a l:
o e n t e e x is t e n e c e s s a r i a m e n t e

A filosofia, portanto, procura transpor


em palavras a revelação imediata e objetiva
da idéia à mente. Daí deriva aquela “ fórmula
ideal” , que nada mais é do que “ uma pro­
posição que expressa a idéia de modo claro,
simples e preciso, através de um juízo” . Ora,
o primeiro conteúdo da fórmula ideal é que
o ente existe necessariamente. Isto é, Deus
“ revela-se a si mesmo e declara sua própria
realidade ao nosso pensamento Esse
primeiro juízo “ é legítimo e tem valor obje­
tivo” . E assim é, como escreve Gioberti, pela
razão de que ele “ é a simples repetição do
juízo intuitivo, que o precede, o fundamenta
e o autoriza” .
Todavia, da revelação originária e ob­
jetiva de Deus como absoluto e necessário
também deriva que ele é causa eficiente do
que existe. O existente não é realidade que se
auto-explica: ele requer o ente como sua cau­
sa, razão por que o ente é a causa do existente.

Vincenzo Gioberti (1801-1852)


foi um dos teóricos do ontologismo, E l Segunda parte d a fó r m u la id e a l:
segundo o qual o homem é o en +e c r i a o e x is fe n + e
“em todo instante de sua vida intelectiva
expectador direto e imediato da criação” .
Com isso, estamos na segunda parte
da fórmula ideal: o ente cria o existente. As
realidades existentes encontram sua razão
se revela à mente humana. E nessa mani­
festação de Deus à mente, ela é puramente de ser na causa primeira, que é Deus. Deus
se revela como criador e, escreve Gioberti,
passiva e, desse modo, não deforma nem
falseia a realidade que se lhe apresenta. a criação é “ ação positiva e real, mas livre,
A evidência de Deus, do ente real e ab­ pela qual o ente [...] cria as substâncias e as
causas segundas [...], e as conserva no tempo
soluto ou idéia, escreve Gioberti, “ não brota
do espírito humano [...], é objetiva e não com a imanência da ação causadora que,
subjetiva, pertence à realidade conhecida e em função das coisas produzidas, é criação
não ao nosso conhecimento; ela, portanto, contínua” . Desse modo, o espírito humano
é “ espectador direto e imediato da criação” .
é marcada pela necessidade objetiva, abso­
As coisas, porém, não param por aí, já que
luta, que cabe à própria natureza, não ao
intuito que a contempla; a evidência não o homem não é somente espectador, mas,
por meio da vida moral, também é ator de
nasce do espírito, e sim nele entra e penetra;
vem de fora, não de dentro; o homem a seu retorno ao ente.
recebe, não a produz; é partícipe dela, não
seu autor” . msM T e r c e i r a p a r t e d a f ó r m u la id e a l:
Esse, portanto, é o modo como Giober­ o e x is t e n t e r e t o r n a a o e n te
ti tenta inverter a marcha triunfal do psico-
logismo da filosofia moderna. Para ele, há Eis então a terceira parte da fórmula
uma revelação originária da idéia (ou Deus) ideal: o existente retorna ao ente. Escreve
à mente humana. De acordo com Bonald Gioberti: “ Saída de Deus e retorno a Deus
e o tradicionalismo francês, Gioberti está — eis a filosofia e a natureza, a ordem
convencido de que a filosofia “ é filha primo­ universal dos conhecimentos e a ordem
gênita da religião” . Em suma, a filosofia é re­ universal das existências” . Portanto, na base
flexão sobre a revelação originária de Deus. de nosso saber (a filosofia) e da realidade
Quifltã parte - y\ f ilo s o fi a n a P r a n ç a e n a J + á l i a n a e r a d a R e s t a u r a ç ã o

(a natureza) há uma estrutura objetiva que político e delineia os fundamentos do mo­


Deus revela originariamente ao homem e vimento neoguelfo. Em política, dissera
que nossas palavras traduzem na “ fórmula Gioberti, “ abundam as opiniões, mas falta
ideal” segundo a qual “ o ente procura o a ciência” . E, precisamente para suprir essa
existente” e “ o existente retorna ao ente” . falta de ciência e de objetividade, Gioberti
O caminho do ontologismo é o caminho escreveu o Primado, derivando suas teses
para não se cair no pântano do subjetivis- centrais das premissas teóricas já expostas
mo, para evitar o panteísmo e para, assim, e na convicção de que uma política que não
salvaguardar a liberdade e a autonomia da encontre sua base em Deus está destinada
pessoa. O ente é criador e não se confunde ao malogro: “ Só a idéia pode tornar unâni­
com os existentes. E o retorno do homem mes os estadistas e os filósofos; sem a idéia,
ao ente não se concretiza “ m ediante a pode-se seduzir, mas não persuadir” . Se
identificação absurda dos panteístas, e sim aplicarmos à sociedade humana a fórmula
por meio daquela união que, ao invés de ideal “ o ente cria o existente” , tal fórmula
destruir a personalidade finita, a preserva e significa unicamente que “ a religião cria a
a aperfeiçoa” . moralidade e a civilização do gênero hu­
A fórmula ideal expressa dois ciclos m ano” . M as a religião na qual se conserva
essenciais da estrutura da realidade: no pri­ intacta a revelação de Deus ao homem é o
meiro, Deus cria o existente; no segundo, o cristianismo, do qual a Igreja católica é a
existente volta a Deus. “ A ontologia, que é guarda e a intérprete fiel. Entretanto, o cato­
a ciência dos princípios, diz respeito princi­ licismo tem seu centro de difusão na Itália, e
palmente ao primeiro ciclo, ao passo que a é em Roma que se encontra o papa. A Itália
ética concerne ao segundo: uma é a base e difundiu as verdades comuns que fizeram a
a outra é o cume do saber” . Europa. A Itália cria a Europa, mas, depois
de Lutero e Descartes, a Europa afastou-se
sempre mais da verdade objetiva revelada
por Deus, passando a confiar e se basear
O “ pr. i * i m a d o m o r a l
no homem. E foi assim que a Europa caiu
e civil d o s i t a l i a n o s 7 no caos do arbítrio. A Europa só voltará ao
caminho justo se voltar à Itália. O destino
da Itália, portanto, é o mesmo destino da
Sobre as bases de sua filosofia, na Europa. Assim, a Itália deve retomar sua
obra Sobre o prim ado m oral e civil dos missão de civilização no interior da história
italianos Gioberti teoriza seu program a da humanidade, j 7 8
. . . 279
Cãpítulo décimo C[UãVt 0- (g a llu p p i/ "R osm in i e (g io b e r t i

alguma verdade de existência. Rlgumo coisa


G a llu p p i existe, ou eu existo, eis uma verdade primitiva
de existência, experimental, mas enquanto
permaneço apenas na experiência, esto ver­
dade permanece isolada, infecunda; ela não
me dá direito a nenhuma dedução; reunamos
as duas verdades. Se alguma coiso existe, um
D Demonstração ser necessário existe; algumo coiso existe. 6stas
da existência de Deus duas premissas me levam a um conhecimento
de existência: um ser necessário existe.
Se os pensadores lançarem um olhar
Como da realidade contingente chega- sobre as matemáticas mistas e sobre a física,
se oo ser necessário: "Posto, portanto, uma verão a cada passo a reunião das verdades
existência condicionada ou uma existência racionais com os dados da experiência, e
que começa a existir, deve-se também pôr conhecerão seus resultados afortunados. [...]
uma existência absoluta ou umo existência Os outros filósofos não poderão nada me
que não começa a existir''. opor contra a realidade do conhecimento que
estabeleci. €u tomei da experiência este dado:
eu existo; e fui levado necessariamente a esta
Para exprimir de modo mais breve a de­ ilação: um ser necessário existe. £u apenas
monstração da existência do ser necessário e imitei os matemáticos nas matemáticas mistas e
dela melhor fazer ver a descendência do princí­ os físicos. Se o método destes leva ò verdade,
pio da causalidade, eu raciocino assim, flquilo por que não deveria levar-nos na questão que
que começa a existir deve ter uma causa de nos ocupa?
sua existência. Uma existência antecedente que P. Galluppi,
começa a existir não é a causa que se busca, Ensaio filosófico
pois é também uma existência condicionada. sobre o crítico do conhecimento.
Se B existe condicionadamente e fl existe con-
dicionadamente, posta a existência de fl não
se põe ainda a causa suficiente da existência
de 8, pois a condição da existência de fl é
também uma condição para a existência de 8:
posta, portanto, uma existência condicionada ou R o sm ini
uma existência que começa a existir, deve-se
também pôr uma existência absoluta ou uma
existência que não começa a existir.
fl demonstração da existência do ser ne­
cessário contém duos premissas: uma a priori e 2 A idéia do ser
outra a posteriori. fl primeira é verdade pura, ra­
cional, hipotética; a segunda, um dado primitivo
da experiência. Se alguma coisa existe, um ser "Pensar o ser de um modo universal não
necessário existe: eis a premissa experimental. quer dizer mais que pensar a qualidade que
Gste exemplo demonstra sensivelmente a impor­ é comum o todas as coisas, sem se ocupar de
tância da aplicação das verdades racionais a todas os suas outras qualidades genéricas,
dados experimentais, a necessidade ao mesmo ou específicas, ou próprias".
tempo dos dados experimentais para a reali­ 6 ainda mais precisamente: "R existência
dade do conhecimento. Pertence à experiência é, de todas os qualidades comuns dos coi­
conduzir-nos no mundo da realidade; sem ela, sas, a comuníssimo e universalíssima".
apesar das verdades apresentadas ao espírito
pelo raciocínio, permaneceríamos apenas na
razão do pensamento e das hipóteses. Mas a £u porto de um fato mais óbvio, e o estudo
experiência do outro lado permaneceria estéril deste fato é aquilo que forma toda a teoria que
sem a intervenção da especulação; é neces­ estou para expor.
sária a ação da razão para fecundar os dados O foto óbvio e simplista do qual parto é
experimentais. Se alguma coisa existe, um ser que o homem pensa o ser de um modo univer­
necessário existe. €sta verdade pura, o priori, sal. Seja qual for a explicação que se queira
não é mais que hipotética, e não pode ser mais dar deste fato, o próprio fato não pode ser
que hipotética; eu jamais poderia deduzir dela controvertida.
Quinta parte - A f ilo s o fi a n a f r a n ç a e n a JJtália n a e r a cta R e s t a u r a ç ã o

Pensar o ser de um modo universal não vosso não terá mais como objeto a não ser um
quer dizer mais que pensar a qualidade que é ente perfeitamente indeterminado, perfeita­
comum a todas as coisas, sem levar em conta mente desconhecido em suas qualidades, um
todas as outras suas qualidades genéricas ou x. Mas esta será ainda alguma coisa, porque a
específicas ou próprias. €stó em meu arbítrio pôr existência, embora indeterminada, permanece.
minha atenção de preferência em um e não em Não é em tal caso o nada o objeto de vosso
outro elemento das coisas. Oro, quando coloco pensamento, porque no nada não se concebe
minha atenção exclusivamente na qualidade existência sequer possível; e pensar que existe
que é comum a todas as coisas, isto é, no ser, ou pode existir um ente, o qual terá certamente
então costuma-se dizer que eu penso o ser todas as qualidades que lhe são necessárias
como universal. para que exista, embora estas sejam desconhe­
Negar que ponhamos, se quisermos, nos­ cidas para vós ou, em suma, não pensai nisso:
sa atenção sobre o ser comum das coisas, sem e isso é ainda uma idéia, embora totalmente
levar em conta, e mais, abstraindo de todas as indeterminada.
outras qualidades delas, seria opor-se àquilo Ao contrário, se depois de ter tirado foro
que a mais fácil observação sobre as próprias de um ente todas as outras qualidades, tanto
operações nos atesta, um contradizer o senso as próprias como as comuns, tirais ainda a mais
comum, um renegara linguagem. universal de todas, o ser, então não permanece­
De fato, quando faço este discurso costu­ rá mais nada em vossa mente, apaga-se todo
meiro: "a razão é própria do homem, o sentir o vosso pensamento, é impossível que tenhais
lhe é comum com as feras, o vegetar com as qualquer idéia daquele ente.
plantas, mas o ser lhe é comum com todas as fl. Rosmini,
coisas", considero o ser comum, independente­ Novo ensaio
mente de todo o resto. Se o homem não tivesse sobre a origem das idéias.
a faculdade de considerar o serem separado
de todo o resto, este discurso costumeiro seria
impossível.
O fato de que falamos é tão evidente, O momento privilegiado
que não seria necessário gostar uma palavra,
bastando acenó-lo, se os homens de nossos da "iluminação"
tempos não se tivessem esforçado de pôr
tudo em dúvida. Ora, um fato tão evidente é o
ponto simplicíssimo, onde insiste toda a teoria Quando Rosmini compreendeu que a
da origem das idéias. idéio do seré "o continente máximo, a idéia-
Pensar o ser de modo universal eqüivale mãe, como a que contém em seu seio todas
a dizer “ter a idéia do ser como universal", ou os outras".
pelo menos supõe isso, não se podendo pensar
o ser sem ter a idéia dele. [...]
fl análise de qualquer conhecimento nosso Jovem com dezoito anos, eu caminhava
nos dá como resultado constante a proposição um dia sozinho e recolhido em mim mesmo pelo
acima colocada, que ”o homem não pode pen­ caminho de Rovereto que chamam de Terra e
sar em nada sem a idéia do ser". £ de fato não que se encontra, como sabeis, entre a Torre
há conhecimento, nem pensamento que possa e o ponte do leno; e passando por diversos
ser concebido a partir de nós, sem que nele se objetos do pensamento, veio-me a observação
encontre misturada a idéia do ser. que a razão de um conceito está em um conceito
fl existência é, de todas as qualidades mais amplo, e a razão deste em outro mais
comuns das coisas, a comuníssimo e genera- amplo ainda; e assim, subindo de conceito em
líssima. conceito, cheguei à idéia universalíssima do ser,
Tomai qualquer objeto que desejais, na qual todo conceito se resolve; eu não podia
tirai dele com a abstração suas qualidades subir mais, porque dessa idéia só se podia tirar
próprias, depois removei ainda as qualidades o ser, e tirando-lhe o ser ela se desvanecia, e
menos comuns, e pouco a pouco ainda as eu restava com nada. Persuadi-me então que
menos comuns. No fim de toda essa operação aquela idéia do ser é razão última de todo
aquilo que permanecerá como última de todas conceito, o princípio de todos os conhecimentos;
as qualidades será a existência: e para ela aquietei-me na verdade encontrada, sabore­
ainda podeis pensar alguma coisa, pensareis ando-a e adorando o Pai das luzes. 6 minha
um ente, embora suspendereis o pensamento a consolação cresceu, quando, voltando sobre o
partir de seu modo de existir. £ste pensamento caminho percorrido e revestindo a idéia de to­
Cãpltulo d é c in t O (J U ã ft O - C Ã a U u p p i, R o s m i n i e (g io b e r t i

dos os determinações das quais a havia pouco assim também se chama pessoa aquilo que é
a pouco despojado, via, um depois do outro, princípio supremo em um indivíduo inteligente.
comparecerem de novo os primeiros conceitos, De modo que a diferença entre sujeito e pessoa
até o primeiríssimo do qual tinha começado o é a que existe entre o gênero e a espécie, uma
movimento. íntão concluí com segurança que vez que captamos a sensitividade em um senti­
a idéia do ser é o continente máximo, a idéia- do mais universal, no qual ela abraça também
mõe, como a que contém em seu seio todas as o entender, que se reduz a um modo especial
outras; o Fundo comum de todas as idéias, que de sentir. De modo que a pessoa não é mais
não são mais que a idéia do ser mais ou menos que uma classe de sujeitos mais nobres, a dos
circunscrita e determinada; o objeto necessário sujeitos intelectivos.
do pensamento, como a que entra em todo Depois resultam ainda da definição as
pensamento, e não se pode tirá-la sem que o outras propriedades da pessoa, que são:
pensamento pereça. 1. que ela deve ser uma substância;
€m G. B. Pagcini, 2. que ela deve ser um indivíduo e, por
R vido de Rntônio Rosmini, isso, pertencente às coisas reais e não às coisas
escrito por um sacerdote meramente ideais;
do Instituto do Caridade, Manfrini. 3. que deve ser inteligente;
4. que deve ser um princípio ativo, enten­
dendo a palavra atividade em seu significado
mais extenso, no qual ela abraça de algum
D R "pessoa" modo também a passividade, de modo que a
pessoa é o princípio ao qual se refere e do qual
parte ultimamente toda a passividade e toda a
"Chama-se pessoa um indivíduo substan­ atividade do indivíduo;
cial inteligente, enquanto contém um princípio 5. que deve ser um princípio supremo, isto
ativo, supremo e incomunicável". é, tal que no indivíduo não se encontre nada
mais que lhe esteja acima, onde ele mutue a
existência; um princípio tal que, se houver no
Pode-se definir a pessoa como “um sujeito indivíduo outros princípios, estes dependam
inteligente", e querendo dar-lhe uma definição dele e não possam subsistir naquele indivíduo,
mais explícita, diremos que ”se chama pessoa a não ser pela relação que têm com ele.
um indivíduo substancial inteligente, enquanto No que considere-se que o princípio pes­
contém um princípio ativo, supremo e incomu­ soal chama-se supremo para dele excluir todo
nicável". outro que lhe esteja acima, não porque ele
Considerando depois esto definição da deva ter necessariamente outros que lhe este­
pessoa, como também a que demos do sujei­ jam abaixo, como poderia fazer crer a palavra
to, vemos que tanto a palavra sujeito como a supremo, que parece envolver umo relação com
palavra pessoa exprimem a ordem intrínseca alguma coisa inferior. Nem, todavia, creiamos
do ser em um indivíduo que sente e, portanto, proibido em uma fórmula geral dizer-se supremo
têm como base uma relação entre o princípio para aquilo que poderio permanecer também
intrínseco (do qual depende a subsistência do único: assim como dizendo-se o primeiro, isso
indivíduo e o qual move toda a sua atividade), pode ser entendido também de um só, não ha­
e tudo o mais que existe no próprio indivíduo vendo outros. Todavia, a quem agradasse po­
e que provém daquele princípio sustentado e deria substituir-se a palavra supremo pela pala­
ativado. vra independente, ou alguma outra semelhante.
De fato, nem tudo aquilo que existe em 6. Que deve ser incomunicável, conse­
um indivíduo substancial constitui propriamente qüência das propriedades precedentes, e já
o sujeito, ou seja, a pessoa, mas o sujeito e compreendida de algum mòdo na noção de
o pessoa têm sua base, como dizemos, no indivíduo: pois o indivíduo não pode comuni­
princípio supremo que se encerra no indivíduo; car-se sem deixar de ser o indivíduo que era
e as outras coisas que podem entrar no mesmo antes, e do mesmo modo deve entender-se a
indivíduo não pertencem ao sujeito ou à pessoa, incomunicabilidade do sujeito e da pessoa.
a não ser pela estreitíssima ligação que têm com fl partir disso se vê que a pessoa não é
o princípio supremo, por meio do qual subsistem absolutamente e necessariamente o mesmo que
e formam juntos um só indivíduo. aquilo que se exprime com o vocábulo eu-, mas
Rssim como se chama de sujeito aquilo que entre a pessoa e o eu existe uma diferença
que é princípio supremo de atividade em um in­ de conceito, semelhante à que vemos entre o
divíduo qualquer que sente, inteligente ou não, sujeito e o eu.
Quinta parte - A f ilo s o fi a n a P r a n ç a e n a JJ+ál ia n a e r a d a R e s t a u r a ç ã o

Cverdade que, no mais, com o monossíla- Cm segundo lugar, o direito dos genitores
bo eu se exprime um sujeito inteligente, ou seja, é limitado pelo direito que a Igreja católica tem
uma pessoa que tem consciência de si mesma, sobre o ensino. Como os Governos não podem
e nós homens não empregamos este monossí- arrogar-se nenhuma autoridade sobre este en­
labo a não ser para significar a nossa própria sino, da mesma forma nem os pais de família:
personalidade, da qual somos conscientes, de mas, tanto pais como Governos devem depen­
onde temos que o eu designa-se um pronome der com docilidade do magistério estabelecido
pessoal. Mas, sutilmente considerando, não sobre a terra por Jesus Cristo.
repugna imaginar que haja um princípio inte- Cm terceiro lugar, o direito que os pais
lectivo em um indivíduo que tem consciência de de família têm de escolher os mestres e os
si e que, todavia, não seja princípio supremo. educadores que crêem melhores, não lhes
Cm tal caso, a este princípio intelectivo poder- dá o direito de prescrever às pessoas que
se-ia aplicar justamente o vocábulo eu, e não escolhem ou estipendiam para tal traba­
o vocábulo pessoa. lho os métodos e as maneiras do ensino:
R. Rosmini, isso deve permanecer na plena liberdade
Rntropologia. dos próprios mestres e dos educadores.
é verdade que os pais podem, juridica­
mente falando, reduzir a convenção o modo de
ensinar, caso em que os mestres, aceitando tal
Liberdade de ensino convenção, renunciariam ao próprio direito: mas
isso parece inconveniente, falando de modo
geral, como sinal de desconfiança dado aos
Os pa/s de família têm o direito de esco­ ensinantes, e uma vileza por parte dos próprios
lher os educadores dos próprios filhos. ensinantes, os quais se comprometem, sem
necessidade de convenção, a seguir o método
que consideram melhor e a não abandoná-lo
Os pais de família têm, por natureza e não por motivos de baixo interesse.
pela lei civil, o direito de escolher como mestres Com referência, ainda, à parte educati­
e educadores de sua prole as pessoas nas va, devendo esta ser conduzida parte pelos
quais depositam maior confiança. Cste direito genitores, os quais não podem jamais entre­
geral contém os direitos especiais que seguem: gá-la totalmente às mãos de outros, e parte
10 De educar seus filhos na pátria ou fora pelos educadores, convém que estes defiram
dela, em escolas oficiais ou não oficiais, públi­ razoavelmente àqueles, e que uns e outros se
cas ou privadas, conforme considerem melhor coloquem em pleno acordo e procedam com
para o bem de sua prole. perfeita coerência e unidade.
2o De estipendiar adequadamente as Finalmente, o direito dos genitores não
pessoas nas quais crêem encontrar maior pro­ é uma faculdade arbitrária e caprichosa, mas
bidade, ciência e idoneidade. temperada pela razão e pelo moral: é uma
3o De associar-se o outros pais de família, faculdade de fazer o bem aos filhos, e não de
instituindo juntos escolas para onde mandar em fazer-lhes o mal.
comum seus filhos. fl. Rosmini,
O direito que os pais de família têm de Da liberdade de ensino.
fazer instruir e educar sua prole por quem julgam
melhor não é indeterminado, caso em que não
seria direito, mas encerrado dentro de alguns 6 A benéfica influência
limites, para além dos quais cessa.
Primeiramente, também os genitores de­ do cristianismo
vem respeitar em seus filhos os direitos cona- sobre a sociedade civil
turais a todos os homens, direitos inalienáveis
e absolutos. Por isso, os pais de família não
têm nenhuma faculdade jurídica de dar ou de "Esta religião divina restaurou e au­
fazer dor aos próprios filhos um ensino que os mentou no homem os três constitutivos que
perverta: e se um Governo civil toma sob sua formam o sujeito dos direitos, e que são a
tutela esses direitos dos filhos, sem invadir com atividade, o inteligência e a moral".
este pretexto a esfera dos direitos paternos, ele
exerce uma autoridade legítima e cumpre um
dever, porque o Governo é instituído principal­ Ora, quem pode desconhecer o fato de
mente para tutelar os direitos de todos. que o cristianismo, introduzindo a caridade no
. , . 283
C a p ít u lo d é c i m o q u a r t o - G a llu p p i/ R o s m in i e G io b e r t i ,______

mundo, oí pôs um princípio de oçõo incessante livremente os respeitasse. Flssim tornou-se


0 que ele, assim, imensamente aumentou e possível a realização dos direitos humanos:
perpetuou a atividade nos homens? Quem pode assim eles tiveram um valor.
negar que ele tenha posto sobre a terra um Portanto, quanto a sociedade doméstica
princípio inextinguível de infinita inteligência? e a civil não devem estritamente à sociedade
Um princípio de liberdade tão manifesto, que religiosa? Quanto não depende dela não so­
enquanto a humanidade gentil parecia não mente sua perfeição, mas também sua própria
poder se mover, oprimida sob o peso de inexo­ essência? Como, portanto, se poderá expor
rável destino, o homem cristão, no oposto, sente totalmente o direito destas sociedades, sem
a própria individualidade, e desenvolve em si antes falar do direito do sociedade em que elas
mesmo uma sua sempre nova livre potência? se enraízam como plantas no solo?
Quem finalmente negará ao cristianismo R. Rosmini,
ter melhorado os costumes, ensinado aos ho­ Filosofia do direito.
mens todas as virtudes? Portanto, esta religião
divina restaurou e aumentou no homem os três
constitutivos que formam o sujeito dos direitos, e
que são a atividade, a inteligência e a moral.
Se uma sociedade humana não é mais
que um complexo, uma vinculação de direitos G io b er t i
e de deveres, quem não compreende apenas
a partir disso como a instituição da sociedade
cristã deve ter influído sobre todas as outras
sociedades, sobre a doméstica e sobre a civil
especialmente, fazendo aparecer nelas novos 7 Sobre o catolicismo
direitos, tirando-os como que do nada com
potência criadora, e acertando os incertos,
embora apenas melhorando sua raiz, isto é, O catolicismo é uma unidade doutriná­
pelo melhorar, e quase criar no homem o sujeito rio que se adapta às "várias têmperas inte­
dos direitos? lectuais", "do selvagem ao filósofo". 6 esto
Mas pouco valeria que os direitos fossem virtude do catolicismo é chamada por Gioberti
postos na realidade, salvando e engrandecen­ de "poligonia", "porque o polígono é uno,
do seu sujeito, se eles depois não encontras­ mas tem lados infinitos".
sem respeito pelos outros homens. Pois, qual
valor pode ter um direito, embora realíssimo,
que ninguém respeita, que cada um apisoa, que Sendo universal, deve ser tal também em
nenhuma força é eficaz para proteger? relação às várias têmperas intelectuais, e ser
Ora, o cristianismo nõo só relevou os acomodado a todas, do selvagem ao filósofo.
direitos dos homens já periclitantes junto com Deve acomodar-se a tudo, sem deixar, porém,
a dignidade humano, recriando os sujeitos suo unidade. Deve, em suma, ser tal que resolva
idôneos para serem deles revestidos. Mas pro­ o seguinte problema: encontrar um sistema de re-
videnciou igualmente que fossem respeitados, Iigião que seja uno sem deixar de ser múltiplo, e
estabelecendo com autoridade e sancionando a múltiplo sem deixar de ser uno, e responda a to­
lei moral que impõe seu respeito [...] e recriando dos os graus do desenvolvimento dos intelectos.
as pessoas que quisessem observar o respeito. €sta virtude do catolicismo denomina-se
De que modo recriou as pessoas respei­ poligonia; porque o polígono é uno, mas tem
tosas dos direitos? Com a força? l\lão, pois o lados infinitos.
respeito forçado não é respeito e, além disso, O catolicismo deve ter um lodo objetivo
a aparência de respeito não é durável. que responda a toda qualidade subjetiva. Há,
O cristianismo obrigou os homens a respei­ porém, tantos catolicismos quantas as mentes
tar os direitos do modo mais suave e só eficaz, humanas. Cada uma delas deve encontrar nele
fazendo com que as pessoas, como dizíamos, qui­ seu humor, como o idólatra as imagens, o ro-
sessem respeitá-los. €m uma palavra, melhorou cionalista os idéias etc. Todavia, não para um
as vontades dos homens. €is aí tudo: os direitos sincretismo indigesto, mas de modo que todos
a partir dessa hora encontraram todo respeito. estes diferentes aspectos brotem de uma unida­
Sim, justamente com a própria ação com de, e deixem o lado negativo que os torna errô­
a qual deu ao mundo quem pudesse ter direi­ neos e supersticiosos quando estão desunidos.
tos, isto é, formou os sujeitos dos direitos, o fl unidade externa de todos estes cato­
cristianismo deu ao mundo igualmente quem licismos em um só polígono é a Igreja; mas a
Quinta parte - A f ilo s o fi a n a F V a n ç a e n a I t á l i a n a e r a d a R e s t a u r a ç ã o

Igreja não só presente e passada, mas futura,


abraçando não só todos os cérebros reais, mas 8 A função do papado
os possíveis. Com efeito, o número dos lados e do catolicismo na história
poligonais é virtualmente infinito, como o da
idéia, uma vez que o polígono é a idéia. da humanidade
Dir-se-á que o papa, os bispos etc., não
entendem o catolicismo do meu modo. Os que "Qual é [...] o chefe do mundo, senão
me fazem esta objeção não me entendem; res­ o papa? [...] Pode-se talvez idealizar uma
pondo que, se o entendessem do meu modo, república mais vasta do que aquela que
eu não teria razão, mas estaria errado. €les, por metrópole tem Roma, e como confins os
com efeito, como homens que são, pertencem povos inacessíveis?"
a um lado mais ou menos alto do polígono, e
não podem abraçá-lo inteiro. Ninguém o abraça
inteiro, exceto Deus. A medido que os graus se
elevam, quem neles se coloca abraça um maior Qual é a ciência, que por amplitude e
número de lados. sublimidade pode se emparelhar com o ca­
fl universalidade da Igreja, abraçando tolicismo? Tudo aquilo que é vasto, universal,
todos os tempos e, portanto, não só a Igreja cosmopolita, não é católico? Qual é o verda­
presente e passada, mas futura - daí segue-se deiro mais complexivo, mais enciclopédico,
que todo ato da Igreja não tem um valor abso­ mais apto a gerar e pôr em acordo tudo o que
lutamente católico a não ser enquanto emana é cindível, que a primeira palavra do Gênesis e
dos três tempos. Do que segue-se que os atos do Catecismo? [...] Qual história mais universal
subseqüentes têm virtude de modificar os pre­ do que a que compreende e explica as origens,
cedentes; porque se não a tivessem, faltaria a os extravios, a instauração e o fim último das
estes o sanção da Igreja futura. coisas, estendendo-se do princípio ao fim dos
Os atos dogmáticos da Igreja são as séculos, e pelo caminho das orlas extremas, en-
definições. Coda uma destas é infalível na subs­ trecruzando-se com o eterno? Qual cosmogonia
tância, mas pode ser modificada nos acidentes mais magistral e pitagórica do que a que nos
das definições posteriores e, portanto, aper­ representa o universo, da sublime aristocracia
feiçoada. Nestes aperfeiçoamentos sucessivos dos espíritos até os graus ínfimos do matéria,
consiste o progresso da dogmática católico, fl como um concerto de forças equilibradas com lei
história está cheia de tais exemplos. Ou melhor, de geometria e de música, e modeladas sobre o
pode-se dizer geralmente que toda definição arquétipo da idéia incriada da palavra criadora?
subseqüente deve por sua natureza modificar C qual admirável acordo na geogonia
as precedentes. Assim, as definições contra os mosoica com as descobertas dos modernos!
arianos e os semi-arianos aperfeiçoam o símbo­ Quanta filosofia nos mistérios revelados e
lo dos apóstolos; as feitas contra Nestório foram quanta evidência naquela espiral de luz, que
modificadas pelas contra éutico etc. acompanha suas trevas profundas! De longe
Todo novo decreto do Igreja refere-se, mais luminoso é o mistério cristão do que muitos
portanto, para trás e para diante. Para trás, axiomas da ciência heterodoxa, fl unidade mais
elevando a maior potência a ciência precedente, rigorosa, unida à mais ampla variedade possí­
isto é, atuando-a, explicando-a de forma mais vel, e a concretude mais firme e viva, unida com
ampla; antes de tudo, preparando semelhantes a mais elevada generalidade, de que a mente
aperfeiçoamentos para o futuro. humana seja capaz, são os dois sinais das
Csta virtude retroativa das definições doutrinas católicas, fora das quais a idealidade
eclesiásticas se opõe à imobilidade que certos se desvanece e é sufocada pelos particulares,
teólogos pretendem. C é de muito importância, ou esfuma em abstrações sem corpo, e em fan­
porque nos dá o modo de pôr o dogma passado tasmas sem consistência. O que é verdadeiro
de acordo com a civilização presente. não só o respeito do catolicismo como ciência
fl filosofia contém a religião logicamente, e como história, mas também como instituição
a religião contém a filosofia cronologicamente. externa e social. Qual é, com efeito, o chefe do
Internamente a filosofia domina; externamente, mundo, a não ser o papa? Qual é a sociedade
a religião, isto é, a palavra, tem a primazia. do mundo, a não ser o Igreja? Pode-se, talvez,
A filosofia e o religião são, por isso, iguais e idealizar uma república mais vasta do que a
díspares por aspecto diverso. que tem Roma como metrópole e como confins
os povos inacessíveis?
V. Gioberti, V. Gioberti,
Da reformo católica. Do primado moral e civil dos italianos.
O POSITIVISMO
NA CULTURA
EUROPÉIA

“Ciência, logo previsão; previsão, logo ação: tal é a


fórmula simplicíssima que expressa de modo exato
a relação geral entre a ciência e a arte, tomando
estes dois termos em sua acepção total”.
Auguste Comte
“A ciência, e apenas a ciência, pode tornar a hu­
manidade aquilo sem o que ela não pode viver, um
símbolo e uma lei”.
Ernest Renan
“A evolução pode terminar apenas com o estabe­
lecimento da maior perfeição e da mais completa
felicidade’’.
Herbert Spencer
Capítulo décimo quinto

O positivism o sociológico e utilitarista

Capítulo décimo sexto

O positivism o evolucionista e m aterialista


C a p í t u l o d é c i m o q u in t o

O posi+ivismo
sociológico e ufilifansfa

I. CD posi+ivi sm o:
lirvkas g e r a i s

• O positivismo é o movimento de pensamento que dominoubase


parte da cultura européia em suas expressões não só filosóficas, Na do positivismo
mas também políticas, pedagógicas e literárias (é este o período há os
do verismo e do naturalismo) desde cerca de 1840 até os inícios desenvolvimentos
da primeira guerra mundial. Os traços de fundo do ambiente da ciência
sociocultural que o positivismo interpreta, exalta e favorece são: e a revolução
uma substancial estabilidade política, o processo de industriali­ industrial
zação e desenvolvimentos por vezes portentosos da ciência e da ^ § 7
tecnologia. O marxismo interpretará de modo muito diferente a
revolução industrial e seus males (desequilíbrios sociais, exploração do trabalho de
menores etc.). Os positivistas não ignorarão estes males; tinham porém confiança
na força da ciência e do espírito científico, a seu ver mais que adequados a repor
em seu lugar todo o corpo social.
• Eis os representantes mais influentes do positivismo: Au-
guste Comte (1798-1857) na França; John Stuart Mill (1806-1873) representantes
Os maiores
e Herbert Spencer (1820-1903) na Inglaterra; Jakob Moleschott do positivismo
(1822-1893) e Ernst Haeckel (1834-1919) na Alemanha; Roberto -^ § 2
Ardigò (.1828-1920) na Itália.
• Embora se inserindo e se desenvolvendo em tradições culturais e filosóficas
diferentes (racionalismo cartesiano e lluminismo na França; tradição empirista,
utilitarista e evolucionista na Inglaterra; naturalismo renascentista na Itália), o
positivismo mostra, em suas manifestações, traços comuns que
permitem fixar sua identidade como movimento cultural. Os traços
a) O positivismo reivindica o primado da ciência: o único teóricos
conhecimento válido é o científico; o único método para adqui­ que conotam
rir conhecimento é o das ciências naturais; este método consiste a "identidade"
no encontro de leis causais e em seu controle sobre os fatos; tal do positivismo
método deve ser aplicado também ao estudo da sociedade, isto - ^ § 2
é, à sociologia.
b) Passo a passo com o primado da ciência como instrumento cognoscitivo,
temos a exaltação da ciência como único meio capaz de resolver, no curso do
tempo, todos os problemas humanos e sociais anteriormente sofridos pela hu­
manidade.
Sextã pãYte - O p o s itiv is m o ncx c u lt u r a aiA^opé-ia

D e se n v o lv im e n to s o eletromagnetismo; ainda na física, temos


d a so c ie d a d e
os trabalhos fundamentais de Mayer, Hel-
mholtz, Joule, Clausius e Thomson sobre a
e p r o g r e s s o s d a c iê n c ia termodinâmica; o saber químico é desen­
n a é p o c a d o p o sitiv ism o volvido por Berzelius, Mendelejev e von
Liebig, entre outros; Koch, Pasteur e seus
discípulos desenvolvem a microbiologia, ob­
O positivism o representa um m o­ tendo êxitos estrondosos; Bernard constrói
vimento com pósito de pensam ento que a fisiologia e a medicina experimental. Além
dominou grande parte da cultura européia, disso, é a época da teoria evolucionista de
em suas manifestações filosóficas, políticas, Darwin. E os projetos tecnológicos encon­
pedagógicas, historiográficas e literárias tram seu símbolo na Torre Eiffel de Paris e
(a propósito de literatura, basta pensar no na abertura do canal de Suez.
verismo e no naturalismo), de cerca de 1840 Substancial estabilidade política, o
até quase 1914. processo de industrialização e o desenvolvi­
Passado o furacão de 1848, excetuan­ mento da ciência e da tecnologia constituem
do-se o conflito da Criméia em 1854 e a os pilares do meio sociocultural que o posi­
guerra franco-prussiana de 1870, a era do tivismo interpreta, exalta e favorece.
positivismo foi época de paz substancial É bem verdade que os grandes males
na Europa e, ao mesmo tempo, a época da da sociedade industrial não tardarão a se
expansão colonial européia na África e na fazer sentir (desequilíbrios sociais, lutas pela
Ásia. conquista de mercados, condição de miséria
Dentro desse quadro político, a Europa do proletariado, exploração do trabalho do
consumou sua transformação industrial, e os menor etc.). Esses males serão diagnostica­
efeitos dessa revolução sobre a vida social dos pelo marxismo em direção diferente da
foram maciços: o emprego das descobertas interpretação do positivismo que, embora
científicas transformou todo o modo de pro­ não ignorando de modo nenhum tais males,
dução; as grandes cidades se multiplicaram; pensava que eles logo desapareceriam, como
cresceu de forma impressionante a rede de fenômenos transitórios elimináveis pelo
intercâmbios; rompeu-se o antigo equilíbrio crescimento do saber, da educação popular
entre a cidade e o campo; aumentaram a e da riqueza.
produção e a riqueza; a medicina debelou
as doenças infecciosas, antigo e angustiante
flagelo da humanidade. O s p o n to s c e n tra is
Em poucas palavras, a revolução indus­
d a filo so fia p o sitiv ista
trial mudou radicalmente o modo de vida. E
os entusiasmos se cristalizaram em torno da
idéia de progresso humano e social irrefreá­
vel, já que, de agora em diante, possuíam-se Os representantes mais significativos
os instrumentos para a solução de todos os do positivismo são Auguste Comte (1798­
problemas. Para o pensamento da época, 1857), na França; John Stuart Mill (1806­
esses instrumentos eram sobretudo a ciência 1873) e Herbert Spencer (1820-1903), na
e suas aplicações na indústria, bem como no Inglaterra; Jakob Moleschott (1822-1893)
livre intercâmbio e na educação. e Ernst Haeckel (1834-1919), na Alemanha;
Além disso, no que se refere à ciência, Roberto Ardigò (1828-1920), na Itália.
deve-se dizer que, no período que vai de O positivismo, portanto, situa-se em
1830 a 1890, freqüentemente se entrela­ tradições culturais diferentes: na França,
çando com o desenvolvimento da indústria inseriu-se no racion alism o, que vai de
(num entrelaçamento que não foi unilateral), D escartes ao Iluminismo; na Inglaterra,
a ciência registrou muitos passos adiante em ele se desenvolveu inserindo-se na tradição
seus setores mais importantes: na matemá­ em pirista e utilitarista, entrelaçando-se,
tica, entre outros, temos as contribuições em seguida, com a teoria darwiniana da
de Cauchy, Weierstrass, Dedekind e Can­ evolução; na Alemanha, assume a forma de
tor; na geometria, as de Riemann, Bolyai, cientificismo e de monismo materialista; na
Lobacewskij e Klein; a física apresenta os Itália, com Ardigò, aprofunda suas raízes
resultados das pesquisas de Faraday sobre no naturalismo renascentista, embora dê
a eletricidade, e de Maxwell e Hertz sobre seus frutos maiores, dada a situação so-
Capítulo décimo quinto - O p o s itiv is m o s o c i o l ó g i c o e utili+avista

ciai da nação recém-unificada, no campo alguns estudiosos a interpretarem o posi­


da pedagogia e também na antropologia tivismo como parte integrante da menta­
criminal. Apesar de tais diversificações, o lidade romântica. Somente que, no caso
positivismo apresenta traços comuns que do positivismo, seria exatamente a ciência
nos permitem sua identificação como m o­ a ser infinitizada. Assim, por exemplo, o
vimento de pensamento. positivism o de Comte, diz Kolakow ski,
1) Diversamente do idealismo, o posi­ “ contém uma construção oniabrangente
tivismo reivindica o primado da ciência: nós de filosofia da história, que se consuma em
conhecemos somente aquilo que as ciências visão messiânica” .
nos dão a conhecer, pois o único método de 7) E ssa interpretação, porém , não
conhecimento é o das ciências naturais. impediu que outros intérpretes (por exem­
2) O m étodo das ciências naturais plo, Geym onat) vissem no positivism o
(identificação das leis causais e seu domí­ temas fundamentais tomados da tradição
nio sobre os fatos) não vale somente para ilum inista, com o a tendência de consi­
o estudo da natureza, mas também para o derar os fatos em píricos com o a única
estudo da sociedade. base do verdadeiro conhecimento, a fé
3) Por isso, entendida como ciência dos na racionalidade científica como solução
“ fatos naturais” que são as relações huma­ dos problemas da humanidade, ou ainda
nas e sociais, a sociologia é fruto qualificado a concepção leiga da cultura, entendida
do programa filosófico positivista. como construção puramente humana, sem
4) O positivismo não apenas afirma a dependências em relação a pressupostos e
unidade do método científico e o primado teorias teológicas.
desse método como instrumento cognosci- 8) Sempre em linha geral, o positivis­
tivo, mas também exalta a ciência como o mo (neste caso, John Stuart Mill é exceção)
único meio em condições de resolver, ao lon­ caracteriza-se pela confiança acrítica e,
go do tempo, todos os problemas humanos amiúde, leviana e superficial, na estabilidade
e sociais que até então haviam atormentado e no crescimento sem obstáculos da ciência.
a humanidade. Essa confiança acrítica na ciência chegou a
5) Conseqüentemente, a era do posi­ se tornar fenômeno de costume.
tivismo é época perpassada por otimismo 9) A “ positividade” da ciência leva
geral, que brota da certeza de progresso irre­ a mentalidade positivista a combater as
freável (por vezes concebido como fruto da concepções idealistas e espiritualistas da
engenhosidade e do trabalho humano e, por realidade, concepções que os positivistas
vezes, ao contrário, visto como necessário e rotulavam como metafísicas, embora mais
automático) rumo a condições de bem-estar tarde tenham caído em metafísicas igual­
generalizado em uma sociedade pacífica e mente dogmáticas.
penetrada pela solidariedade humana. 10) A confiança na ciência e na racio­
6) O fato de que a ciência seja proposta nalidade humana, em suma, os traços ilu-
pelos positivistas como o único fundamen­ ministas do positivismo induziram alguns
to sólido da vida dos indivíduos e da vida marxistas a considerarem insuficiente e até
associada, de ela ser considerada como a reducionista a usual interpretação m arxis­
garantia absoluta do destino progressista ta, que só vê no positivismo a ideologia da
da humanidade, e de o positivismo se pro­ burguesia da segunda metade do século
nunciar pela “ divindade” do fato, induziu X IX .
290
Sexta parte - O p o s i+ iv is m o ncx cul+w ^a e w ^ o p é i a

II. jA-ugus+e Com+e


e o posi+ivismo sociológico

• Animado desde a juventude com propósitos de "regeneração universal",


sucessivamente pai oficial da sociologia, Auguste Comte (1798-1857) é o autor do
Curso de filosofia positiva (1830-1842, em seis volumes). E é aqui que ele formula
sua famosa lei dos três estágios, segundo a qual a humanidade,
A humanidade assim como a psique dos indivíduos particulares, passa através de
passa p o r três estágios:
três estágios: a) estágio teológico;
teológico, b) estágio metafísico;
metafísico c) estágio positivo.
e positivo No estágio teológico os fenômenos são interpretados como
->§7 "produtos da ação direta e contínua de agentes sobrenaturais,
mais ou menos numerosos"; no estágio metafísico são explicados
com referência a essências, idéias, forças abstratas como a "simpatia", a "alma
vegetativa" etc.; no estágio positivo o homem procura descobrir, "com o uso bem
combinado do raciocínio e da observação", as leis efetivas "de sucessão e de se­
melhança" que presidem ao acontecimento dos fenômenos,
• O objetivo da ciência - escreve Comte - é a pesquisa das leis, e isso por
causa do fato de que "apenas o conhecimento das leis dos fenômenos [...] pode
evidentemente levar-nos na vida ativa a modificá-los para nossa
vantagem". Ciência, de onde previsão; previsão, de onde ação. Na
de onde previsão; esteira de Bacon e de Descartes, Comte afirma que será a ciência
"Ciência,

previsão, que fornecerá ao homem o domínio sobre a natureza. Por con­


de onde ação " seguinte, é indispensável conhecer a sociedade. Eis, então, que
-^ § 2 Comte propõe a ciência da sociedade, a sociologia, como física
social, que tem como tarefa a descoberta das leis que guiam os
fenômenos sociais, assim como a física estabelece as leis dos fenômenos físicos;
e faz isso por meio de observações e comparações. A física social ou sociologia
divide-se em estática social e dinâmica social.
• A estática social estuda as condições comuns que permitem a existência das
diversas sociedades no tempo: a sociabilidade fundamental do homem, a famí­
lia, a divisão do trabalho e a cooperação nos esforços etc. A lei
Estática social fundamental da estática social é a da ligação entre os diversos
e dinâmica aspectos da vida social (político, econômico, cultural etc.). A di-
social nâmica social compreende o estudo das leis de desenvolvimento
da sociedade. A lei fundamental da dinâmica social é a dos três
estágios. E eis um exemplo de aplicação desta lei: o feudalismo é
estágio teológico; a revolução (que começa com a reforma protestante e termina
com a revolução francesa) é estágio metafísico; a sociedade industrial é estágio
positivo. •
• Entre as ciências, a sociologia é a mais comp
Classificação que - na hierarquia estabelecida por Comte e que quer ser uma
e hierarquia ordem lógica, histórica e pedagógica - pressupõe a biologia, a
das ciências qual pressupõe a química, que, por sua vez, pressupõe a física.
—> § 4 Nesta perspectiva, a filosofia deve "determinar exatamente o
espírito de cada ciência, descobrir suas relações, reassumir, se pos­
sível, todos os seus princípios próprios em número mínimo de princípios comuns,
conforme o método positivo".
Cãpltulo décimo quinto - CD p o s itiv is m o s o c i o l ó g i c o e u+ili+arista

• A regeneração da sociedade - que, sobre a base do conhecimento das leis


sociais, Comte propõe no Sistema de política positiva (1851-1854) - assume as
formas de uma religião, onde a Deus se substitui a humanidade, ao amor de Deus
o da humanidade. Humanidade que é o conjunto de todos os homens vivos, dos
mortos e dos que devem ainda nascer. Os indivíduos se regene­
ram, dentro da humanidade, como as células de um organismo. Substituir
Os indivíduos são o produto da humanidade: esta deve ser vene­ o amor
rada como outrora o eram os deuses pagãos. E, fascinado pelo de Deus
universalismo do catolicismo, Comte propõe sua religião da hu­ pelo amor
manidade como cópia da ordem da Igreja católica: com dogmas à humanidade
(filosofia positiva, leis científicas), batismo secular, crisma secular —> § 5
etc.; com templos leigos (institutos científicos) e um papa positivo
que vigiará o desenvolvimento da indústria e a utilização prática das descobertas.
Haverá nomes novos para os meses e para os dias. A mulher é considerada o anjo
da guarda positivo.

1 /\ lei dos frês estágios Trata-se da lei segundo a qual a huma­


nidade, conforme a psique de cada homem,
passa por três estágios:
o) o teológico;
Augusto Comte foi o fundador do po­ b) o metafísico;
sitivismo francês. Nasceu no ano de 1798 c) o positivo.
em Montpellier de família modesta, “ emi­ Escreveu Comte no Curso de filosofia
nentemente católica e m onárquica” , foi positivista (1830-1842): “ Estudando o de­
discípulo e secretário (e, depois, decidido senvolvimento da inteligência humana [...]
an tagon ista) de Saint-Sim on, aluno da desde sua primeira manifestação até hoje,
fam osa Ecole Polytechnique (e, aqui, não creio ter descoberto uma grande lei funda­
devemos esquecer a função de modelo da mental [...]. Esta lei consiste no seguinte:
Ecole Polytechnique). Teve suficiente fam i­ cada uma de nossas concepções principais e
liaridade com a matemática. Foi leitor dos cada ramo de nossos conhecimentos passam
empiristas ingleses, de Diderot, d’Alembert, necessariamente por três estágios teóricos
T urgot e C ondorcet (m ais tarde, “ por diferentes: o estágio teológico ou fictício, o
higiene m ental” , lerá o menos possível). estágio metafísico ou abstrato e o estágio
Foi o pai oficial da sociologia e, em certos científico ou positivo [...]. Daí três tipos de
aspectos, o expoente mais representativo filosofia ou de sistemas conceituais gerais
da orientação do pensamento positivista sobre o conjunto dos fenômenos, que se
em seu conjunto. excluem reciprocamente. O primeiro é um
Em seu itinerário intelectual e moral ponto de partida necessário da inteligência
Comte escreve: “ Ainda aos 14 anos eu já humana; o terceiro é seu estado fixo e de­
sentia a necessidade fundamental de uma finitivo; o segundo destina-se unicamente a
reestruturação universal, política e filosófica servir como etapa de transição” .
ao mesmo tempo, sob o impulso de salutar a) N o estágio teológico, os fenômenos
crise revolucionária, cuja fase principal são vistos como “ produtos da ação direta e
precedera meu nascimento. A influência contínua de agentes sobrenaturais mais ou
luminosa de uma iniciação matemática rece­ menos numerosos” ;
bida na família, desenvolvida felizmente na b) no estágio metafísico, são explicados
Ecole Polytechnique, fez-me instintivamente em função de essências, idéias ou forças
pressentir a única via intelectual que podia abstratas (os corpos se uniriam graças à
realmente conduzir a essa grande renova­ “ simpatia” ; as plantas cresceriam em virtude
ç ã o ” . E acrescenta que em 1822 ele via da presença da “ alma vegetativa” ; o ópio,
claro seu projeto filosófico “ sob a inspiração como ironizava Molière, adormece porque
constante de minha grande lei relativa ao possui a “ virtude soporífera” );
conjunto da evolução humana, individual c) mas é somente no “ estágio positivo
e coletiva” : a lei dos três estágios. que o espírito humano, reconhecendo a
S eX tü p ã Y te - O p o s itiv is m o n a c u l t u r a e-u ro p é\a

im possibilidade de obter conhecimentos


absolutos, renuncia a perguntar qual é sua
■ Lei dos três estágios. Comte de- , origem, qual o destino do universo e quais as
nomiria sua proposta da lei dos três '■ causas íntimas dos fenômenos para procurar
estágios "m inha grande lei", lei que ; somente descobrir, com o uso bem combina­
se refere "ao conjunto da evolução ; do do raciocínio e da observação, suas leis
hum ana, in d ivid u al e co le tiva". A ; efetivas, isto é, suas relações invariáveis de
humanidade, como também a psique ‘ sucessão e de semelhança” .
dos ind ivíd u o s particulares, passa ;
através de três estágios: a) o teoló­ É essa, portanto, a lei dos três estágios,
gico;b) o metafísico; c) o positivo ou o conceito-chave da filosofia de Comte.
científico. Lei que encontraria confirmação tanto no
No Curso de filosofia positiva Comte desenvolvimento da vida dos indivíduos
afirma: "Estudando o desenvolvimen- ^ (todo homem é teólogo na sua infância, é
to da inteligência humana [...] desde metafísico em sua juventude e é físico em
sua primeira m anifestação até hoje, sua maturidade), como na história humana.
creio ter descoberto uma grande lei Até sem conhecer Vico nem Hegel, Comte
fu n dam en tal [...]. Esta lei consiste I
no se gu in te : cada uma de nossas 1 constrói com sua lei dos três estágios uma
concepções principais, cada ramo de I grandiosa filosofia da história, que se apre­
nossos conhecim entos passa neces- I senta como o esquema de toda a evolução
sariamente por três estágios teóricos 1 da humanidade. LÍL1
diferentes: o estágio teo ló gico ou
fictício; o estágio metafísico ou abs­
trato; o estágio científico ou positivo 2 j A c \o u ir \ n a d a c i ê n c i a
[...]. Daí três tipos de filosofia, ou de J
sistem as co nceitu ais gerais, sobre I
o conjunto dos fenôm enos, que se
excluem reciprocamente. O primeiro f Agora, portanto, estamos no estágio
é um ponto de partida necessário da ? positivo. Os métodos teológicos e metafísi­
inteligência humana; o terceiro é seu ; cos não são mais empregados por ninguém,
estágio fixo d efin itivo ; o segundo ; exceto no campo dos fenômenos sociais,
destina-se unicamente a servir como : observa amargamente Comte no Curso de
etapa de transição". ' filosofia positiva, “ embora sua insuficiência
No estágio teológico os fenôm enos j a esse respeito já seja plenamente sentida
são explicados como produtos da ação por todos os espíritos um pouco evoluídos” .
direta de agentes sobrenaturais; no *
estágio metafísico os agentes sobre- ;
Eis, portanto, salienta Comte, “ a grande e
única lacuna que se trata de preencher para
naturais são substituídos por forças
abstratas, essências; é no estágio po­ construir a filosofia positiva” . A filosofia
sitivo "que o espírito humano, reco­ positiva, portanto, deve submeter a socie­
nhecendo a im possibilidade de obter dade a rigorosa pesquisa científica, já que
conhecimentos absolutos, renuncia a somente uma sociologia científica pode “ ser
perguntar-se qual seja a origem e o considerada como a única base sólida para
destino do universo, quais sejam as a reorganização social, que deve encerrar
causas íntimas dos fenômenos, para o estado de crise em que se encontram há
procurar apenas descobrir, com o uso
bem com binado do raciocínio e da longo tempo as nações mais civilizadas” .
observação, suas leis efetivas, isto é, N ão se podem resolver crises sociais
suas relações invariáveis de sucessão e políticas sem o devido conhecimento dos
e de sem elhança". ' fatos sociais e políticos. E é por essa razão
Esta é, portanto, a lei dos três estágios, que Comte vê como tarefa extremamente ur­
a pedra angular do edifício filosófico gente a do desenvolvimento da física social,
de Comte; lei que, a seu ver, valeria vale dizer, da sociologia científica.
- como se repete - para o desenvol­ M as, antes de m ais nada, em que
vim ento de toda a história da huma­
nidade, como também para o desen­
consiste a ciência para Comte? N a opinião
volvim ento da vida dos indivíduos dele, o objetivo da ciência está na pesquisa
particulares: todo homem é teólogo das leis, já que “ só o conhecimento das leis
em sua infância; é metafísico
em sua dos fenômenos, cujo resultado constante
juventude; é físicoem sua maturidade. é o de fazer com que possamos prevê-los,
evidentemente, pode nos levar, na vida
ativa, a modificá-los em nosso benefício” .
Cãpítulo d é c ín tO quinto - O p o s i+ iv is m o s o c i o l ó g i c o e u tili+ a n sta

Auguste Comte (1798-1857)


foi o pai oficial
da sociologia e o expoente
mais representativo
do positivismo.

A lei é necessária para prever, e a previsão que tinham em vista simples especulações
é necessária para a ação do homem sobre a geométricas” .
natureza. Afirma Comte: “ Em suma, ciência, M as Comte também não é empirista de
logo previsão; previsão, logo ação: essa é tipo antigo, que cuida somente dos dados
a fórmula simples que expressa de modo de fato e exclui as teorias. Ainda no Curso
exato a relação geral entre a ciência e a arte, de filosofia positiva, podemos ler: “ N ós
tomando esses dois termos em sua acepção reconhecemos que a verdadeira ciência [...]
total” . consiste essencialmente de leis e não mais
N a trilha de Bacon e Descartes, Comte de fatos, embora estes sejam indispensáveis
pensa que a ciência é que deve fornecer ao para o seu estabelecimento e sua sanção” .
homem o domínio sobre a natureza. E, no A pura erudição consiste em fatos sem lei; a
entanto, ele não é em absoluto de opinião verdadeira ciência consiste em leis controla­
que a ciência, essencialmente e por sua das com base nos fatos. E esse controle com
natureza, esteja voltada para os problemas base nos fatos exclui da ciência toda busca
práticos. Comte é claro sobre a natureza de essências e causas últimas metafísicas.
teórica dos conhecimentos científicos, que Essas idéias de Comte sobre a doutrina
ele se apressa a distinguir claramente dos da ciência influenciaram o pensamento pos­
conhecim entos técnico-práticos. A esse terior em virtude de sua clareza e validade.
respeito, chega a citar uma consideração de De qualquer modo, porém, já em alguns tre­
Condorcet: “ O marinheiro, preservado do chos do Curso de filosofia positiva e depois,
naufrágio graças à observação exata da lon­ sobretudo, no Sistema de política positiva
gitude, deve sua vida a uma teoria concebida (1851-1854), Comte enrijece sua imagem
dois mil anos antes por homens de gênio, de ciência, quase a ponto de absolutizá-la:
S e x ta p a r te - O p o s itiv is m o n a c u l t u r a e u r o p é i a

condena pesquisas especializadas, inclusive com base nos fatos. Desse modo, é preciso
experimentais, o uso excessivo do cálculo e encontrar as leis da sociedade se quisermos
qualquer pesquisa científica cuja utilidade resolver suas crises e prever o desenvolvi­
não seja evidente. Por isso, em sua opinião, mento futuro da convivência social
deve-se confiar a ciência não aos cientistas, Portanto, para a sociologia, através do
mas aos “verdadeiros filósofos” , ou seja, a raciocínio e da observação, é possível esta­
todos os que estão “ dignamente dedicados belecer as leis dos fenômenos sociais, como
ao sacerdócio da humanidade” . a física pode estabelecer as leis que guiam
O desenvolvimento posterior das ciên­ os fenômenos físicos.
cias desmentiu essas idéias de Comte. Além Comte divide a sociologia, ou física
disso, um conhecimento que hoje parece social, em:
inútil pode se tornar necessário amanhã. a) estática social-,
Entretanto, no sistema de Comte, um saber b) dinâmica social.
estável e bloqueado está em função de uma a) A estática social estuda as condições
ordem social estável. de existência comuns a todas as sociedades
em todos os tempos. Tais condições são a
sociabilidade fundamental do homem, o
so c io lo g ia núcleo familiar e a divisão do trabalho, que
co m o físic a so c ial se concilia com “ a cooperação dos esfor­
ços” . A lei fundamental da estática social
é a conexão entre os diversos aspectos da
Para passar de uma sociedade em crise vida social, de modo que, por exemplo, uma
para a “ ordem social” , há necessidade de sa­ constituição política não é independente de
ber. O conhecimento é feito de leis provadas fatores como o econômico e o cultural.

Retrato de Comte à mesa de trabalho.


x x • 99 ^
Capitulo décimo quinto - O positivism o s o c io ló g ic o e utilitarista

o nexo normal dos acontecimentos, substi­


RE P V B LIQ IE M t W I X M U . tuem de certo modo o experimento. O mé­
Mrt MNtrH. —«itl <Wnl. todo comparativo estuda as analogias e as
diferenças entre as diversas sociedades, nos
seus respectivos estágios de desenvolvimen­
to. E, diz Comte, é o método histórico que
CATÊCH1SIE POSITIVISTE, constitui “ a única base fundamental sobre
nr a qual pode realmente se basear o sistema
Mioitiii nmiTin n u iiuüm o k u b u i , da lógica política” . KSg-iTI
tu onzk m * rriH M a v ín b M T io m
'>ilf* nt Fcmn* d mPrtirt AtntUMANITé;
c la ssific a ç ã o
Pa iratn CI1I7I,
AttMwr tiu Sfitémê d* pkttm p kb JM HHrr, d a s c iê n c ia s
«I4* Sailèmté» peiitiffit* P*Ühê.
1'tm*tm t .
*»tM
1íNuffi*•*Hm
*r A sociologia, cuja construção é tarefa
urgente da filosofia política, coloca-se no vér­
mu Mci : Tn» nua tice do ordenamento das ciências. A partir
de sua plataforma matemática, as ciências
positivas são hierarquizadas segundo um
PARIS. grau decrescente de generalidade e crescente
t .H fl L ‘À i m i l , *Q, JLCK M QM IW ft-U-FlMtlCt.
de complicação: astronomia, física, química,
tx mu cAniLiA.N-ciíttnv tt v« dal\jo\t, biologia e sociologia. Nesse esquema não
l lífcA IIU * » » í* i‘O B !* O U P O S tl « rT M * *> # » > estão abrangidas a teologia, a metafísica
1'díií , **" W - e a moral, pois as duas primeiras não são
1919
«nn««á« U rév*tai«i ciências positivas, ao passo que a terceira
abrange-a a sociologia. A psicologia, tam­
bém excluída da relação, é reduzida por
Frontispício da primeira edição do
Comte em parte à biologia e em parte à
Catecismo positivista de Comte (Paris, 1852). sociologia. Também a matemática não fi­
gura na relação, mas o primeiro volume do
Curso de filosofia positiva é todo dedicado
b) Por seu turno, a dinâmica social à matemática, que, “ de Descartes e Newton
consiste no estudo das leis de desenvolvi­ para cá, é a verdadeira base fundamental de
mento da sociedade. Sua lei fundamental toda a filosofia natural” , isto é, de todas as
é a dos três estágios. Também o progresso ciências, no sentido de que ela é “ a imensa e
social segue essa lei. Ao estágio teológico admirável extensão da lógica natural a certa
corresponde a supremacia do poder militar ordem de deduções” .
(é o caso do feudalismo); ao estágio metafí­ Com te pretende que a ordem das
sico, corresponde a revolução (que começa ciências por ele proposta seja simultanea­
com a Reforma protestante e termina com mente ordem lógica, histórica e pedagógi­
a Revolução Francesa); ao estágio positivo, ca. A ordem lógica é dada pelo critério da
corresponde a sociedade industrial. simplicidade do objeto: primeiro vêm as
M as através de que caminhos podemos ciências, que, em sua opinião, têm objeto
conhecer as leis da sociedade? N a opinião mais simples; depois, caminha-se pouco a
de Comte, os caminhos para alcançar o co­ pouco até a sociologia, que teria o objeto
nhecimento sociológico são a observação, o mais complexo. A ordem histórica pode ser
experimento e o método comparativo. identificada na passagem de cada uma das
A observação dos fatos sociais é obser­ ciências ao estado positivo: a astronomia
vação direta e enquadrada na teoria, isto é, saiu da metafísica com Copérnico, Kepler e
na teoria dos três estágios. Em sociologia Galileu; a física alcançou o estado positivo
o experimento não é tão simples como em graças às obras de Huygens, Pascal, Papin e
física ou em química, já que não se pode Newton; a química saiu de seu limbo meta­
mudar as sociedades à vontade; entretanto, físico com Lavoisier; a biologia, com Bichat
da mesma forma que em biologia, também e Blainville. Resta a sociologia, que, como
na sociologia os casos patológicos, alterando ciência positiva, ainda se encontra no esta­
Sextã parte - CD p o s itiv is m o n a c u l t u r a a u ro p é -ia

do programático. E Comte, precisamente, dade com base no conhecimento das leis


esforçou-se por realizar esse programa. A sociais assume as formas de uma religião,
ordem pedagógica é dada pelo fato de que se na qual o amor a Deus é substituído pelo
deveria ensinar as ciências na mesma ordem amor à humanidade. A humanidade é o ser
de sua gênese histórica. que transcende os indivíduos. Ela é com­
N a hierarquia de Comte, as ciências posta por todos os indivíduos vivos, pelos
mais complexas pressupõem as menos com­ mortos e pelos ainda não nascidos. Em seu
plexas: a sociologia pressupõe a biologia, interior, os indivíduos se substituem como
que pressupõe a física. Entretanto, isso não as células de um organismo. Os indivíduos
significa que as ciências superiores sejam são o produto da humanidade, que deve ser
redutíveis às inferiores. C ada qual tem venerada como o eram outrora os deuses
sua autonomia, suas leis autônomas. E a pagãos.
sociologia, portanto, não pode se reduzir à Fascinado pelo catolicismo, em virtude
biologia nem à psicologia. A sociedade tem do seu universalismo e de sua capacidade de
realidade natural e originária: os homens envolver em si toda a vida humana, Comte
vivem em sociedade porque isso integra sua sustenta que a religião da humanidade deve
natureza social. Os homens são sociáveis ser a cópia exata do sistema eclesiástico.
desde o início, não havendo necessidade de Os dogm as da nova fé já estão prontos:
nenhum “ contrato social” para associá-los, são a filosofia positiva e as leis científicas.
como queria Rousseau. Os ritos, os sacramentos, o calendário e o
Ainda um ponto muito importante. A sacerdócio são necessários para a difusão
filosofia não é nomeada na classificação das de novos dogm as. H averá um batism o
ciências de Comte. Qual é, então, o lugar secular, uma crisma secular e uma unção
da filosofia no pensamento de Comte? Para dos enfermos secular. O anjo da guarda
Comte, a filosofia não é o conjunto de todas positivo será a mulher (não devemos nos
as ciências. Ele vê a função da filosofia em esquecer da idealização que Comte fez da
“ determinar exatamente o espírito de cada mulher amada, Clotilde de Vaux). Os meses
uma delas, em descobrir suas relações e co­ tom arão nomes significativos da religião
nexões e em resumir, se possível, todos os positiva (por exemplo, Prometeu), e os dias
seus princípios próprios em número mínimo da semana serão consagrados cada um a
de princípios comuns, em conformidade uma das sete ciências. Serão construídos
com o método positivo” . A filosofia, por­ templos leigos (institutos científicos). Um
tanto, se reduz à metodologia das ciências; papa positivo exercerá sua autoridade sobre
ela, escreve Comte, “ é o único e verdadeiro as autoridades positivas que se ocuparão do
meio racional para evidenciar as leis lógicas desenvolvimento das indústrias e da utiliza­
do espírito humano” . ção prática das descobertas. N a sociedade
positiva, os jovens serão submetidos aos
anciãos e o divórcio será proibido. A mu­
5... y \ reli g i ã o d a h u m a n i d a d e lher torna-se a protetora e a fonte da vida
sentimental da humanidade.
A humanidade é o “ grande ser” ; o
N a última grande obra de Comte, o espaço, o “ grande ambiente” ; e a terra, o
Sistema de política positiva (1851-1854), “ grande fetiche” — essa é a trindade da
a intenção comtiana de regenerar a socie­ religião positiva.
Capítulo décimo quinto - O p o s itiv is m o s o c i o l ó g i c o e u tilita rista

COMTE
O POSITIVISMO SOCIOLÓGICO

A crise em que se encontram as nações A f i l o s o f i a p o s i t i v a é essencialmente


m ais civilizadas pode ser vencida apenas metodologia científica,
m ediante um a reorganização social, descobre as relações entre as diversas ciências,
em cuja base deve estar reassum e seus princípios próprios
em número mínimo de princípios com uns,
a física social
e determina exatam ente o espírito de cada uma
(a so c io lo g ia científica): d as seis ciências fundam entais,
construir tal ciência é a tarefa que são (em ordem decrescente
da filosofia positiva por generalidade e crescente por com plicação):

£
1. matemática 2. astronomia
3. física 4. química
5. biologia 6. sociologia

Como a verdadeira ciência consiste de leis controladas sobre fatos,


e da ciência deriva a previsão e, portanto, a ação,
A SO C IO L O G IA D EV E EST A B ELEC ER AS LEIS D O S F E N Ô M E N O S SO CIA IS,
MEDIANTE A OBSERVAÇÃO, A EXPERIÊNCIA E O MÉTODO HISTÓRICO-COMPARATIVO,
PARA PODER PREVER RACIONALMENTE O DESENVOLVIMENTO FUTURO DA CONVIVÊNCIA SOCIAL
A sociologia divide-se em

E stá tic a s o c ia l:
D in â m ic a s o c i a l :
estuda as condições de existência com uns estuda as leis do desenvolvim ento da sociedade.
a tod as as sociedades em tod os os tem pos. Sua lei fundam ental é
Sua lei fundam ental é
a lei dos três estágios,
a conexão orgânica
segundo a qual se desenvolve
entre os diversos aspectos da vida social a evolução hum ana, individual e coletiva:
“ Toda nossa concepção principal
e cada ram o de nossos conhecimentos
p assa necessariam ente por três estágios
teóricos diferentes”

1. Estágio teológico, ou fictício: os fenômenos são vistos como resultados da ação de entidades
[infância do homem e da humanidade] sobrenaturais
2. Estágio metafísico, o u abstrato: os fenômenos são explicados como obras de essências abstratas
[juventude do homem e da humanidade]
3. Estágio CIENTÍFICO, ou positivo: renuncia-se a perguntar quais sejam as causas últimas dos fenô­
[maturidade do homem e da humanidade] menos, e procura-se apenas descobrir, mediante o raciocínio e a
observação, suas leis efetivas (relações invariáveis)

T
A REGENERAÇÃO TOTAL DA SOCIEDADE PASSA,
ATRAVÉS DA R ELIG IÃ O DEVOTADA À H U M A N ID A D E ,
ao G rande Ser q u e tra n sc en d e os in d iv íd u o s:
OS DOGMAS DESSA RELIGIÃO SÃO A FILOSOFIA POSITIVA F. AS LEIS CIENTÍFICAS
S e x ta p a rte - O p o s itiv is m o n a c u lt u r a e-iA^opéla

III. A d i f u s ã o d o p o sitivism o
n a "França

• O positivismo francês celebra os nomes de Pierre Laffitte (1823-1903), convic­


to defensor do pensamento de Comte; de Émile Littré (1801-1881), acadêmico da
França e autor do grande Dicionário da língua francesa (4 vols.,
Os positivistas 1863-1872); e sobretudo de Ernest Renan (1823-1892) e Hyppolite
franceses Taine (1828-1893). '
-> § 1 Historiador do hebraísmo e do cristianismo, Renan, no estudo
dos fenômenos religiosos (História do povo de Israel, 1887-1893;
Vida de Jesus, 1863), aplicou suas idéias positivistas despojando tais eventos de
todo aspecto sobrenatural.
Por sua vez, Hyppolite Taine - em obras como Filosofia da arte, 1865; História
da literatura inglesa, 1863 - estudou arte e literatura na perspectiva de um subs­
tancial determinismo positivista, afirmando que toda obra de arte é o produto
necessário de um determinado ambiente social e de precisas condições históricas
e psicológicas.
• Lugar à parte, dentro do positivismo francês,
ei Bernard: de fisiólogo Claude Bernard (1813-1878), autor de conhecidíssima
fisiólogo Introdução ao estudo da medicina experimental (1865), onde ele
e m etodólogo sustenta que o cientista trabalha com hipóteses que submete ao
* crivo da prova dos fatos, hipóteses que ele descarta se os fatos
as contradizem. A ciência é fruto de tentativas e de erros.

;A s fig u ra s s ig n ific a tiv a s Jesus (1863; trata-se do primeiro volume da


História das origens do cristianismo). Renan
d e L a ffit t e / .Littré/ R e n a n
aplicou suas idéias positivistas ao estudo
e X a in e dos acontecimentos religiosos, despojando-
os de todo aspecto sobrenatural. A concep­
ção filosófica de Renan está registrada no
Certamente não foi a religião da huma­ livro O futuro da ciência (escrito em 1848,
nidade que constituiu a herança mais du­ mas publicado somente em 1890), onde o
radoura de Comte. Embora Pierre Laffitte autor sustenta que “ a ciência e só a ciência
(1823-1903) tenha defendido o pensamento pode dar à humanidade aquilo sem o que
de Comte em sua unidade indissolúvel, ela não pode viver: um símbolo e uma lei” .
Émile Littré (1801-1881) deixou cair, em Hyppolite Taine (1828-1893) é autor
sua campanha a favor do positivismo, os de obras célebres, como As origens da Fran­
resultados da última fase do pensamento ça contemporânea (5 vols., 1875-1893), Os
de Comte. Littré, acadêmico da França e filósofos franceses do século X IX (1857),
senador vitalício, foi o autor da obra Comte Filosofia da arte (1865) e História da litera­
e a filosofia positiva (1863), e do Grande tura inglesa (1863). Taine aplicou as idéias
dicionário da língua francesa. positivistas à crítica literária e à estética:
O trabalho de Littré teve muita resso­ toda obra de arte é o produto necessário de
nância. M as foram Ernest Renan e Hyppo­ determinado ambiente social e de precisas
lite Taine que criaram um autêntico clima condições históricas e psicológicas. A obra
positivista na cultura francesa. Sobre a inteligência (1870) representa a
Ernest Renan (1823-1892) foi essen­ tentativa decidida de reduzir toda a vida
cialmente historiador do judaísm o e do espiritual a mecanismo regulado por leis
cristianismo. São conhecidas a sua História naturais; esse trabalho influirá sobre o pri­
do povo de Israel (1887-1893) e sua Vida de meiro psicólogo especialista conhecido da
Cãpltulo décimo quinto - O p o s itiv is m o s o c i o l ó g i c o e ufilita H s+ a

França e fundador da psicologia positiva, Também ele é fruto de tentativas e erros, de


Théodule Ribot (1839-1916). esperanças malogradas.
O método experimental é a imposição
de uma disciplina à fantasia, disciplina vol­
2 O la u d e B e r n a r d tada para a eliminação das hipóteses (ou
e o n ascim e n to mundos possíveis) incapazes de descrever,
explicar ou prever algum pedaço ou aspecto
d a y v \e .c lid n c \ e x p e rim e n ta l
do mundo real. Viu-se que a fantasia não
bastava para compreender o mundo, então
procurou-se discipliná-la.
Para Comte e os positivistas em geral E a ciência e seu progresso são o fruto
(com exceção de John Stuart Mill), a ciência dessa disciplina. Uma disciplina crítica que,
é dogma que não necessita de análise. N o en­ segundo Bernard, distingue o metafísico e o
tanto, Claude Bernard (1813-1878) apresen­ escolástico do experimentador. Tanto os dois
tou uma refinada e profunda reflexão sobre a primeiros como o terceiro partem de idéias
lógica da ciência. Alinhado entre os maiores a priori, mas “com a diferença de que o es­
fisiólogos (entre outras coisas, descobriu a colástico considera sua idéia como verdade
função glicogênica do fígado), determinista absoluta por ele descoberta e da qual extrai
(e não fatalista), Bernard sustenta, na famo­ todas as conseqüências apenas com o auxílio
sa Introdução ao estudo da medicina expe­ da lógica, ao passo que o experimentador,
rimental (1865), que “ não há nenhuma di­ mais modesto, considera sua idéia como sim­
ferença entre os métodos de investigação da ples quesito, como interpretação antecipada
fisiologia, da patologia e da terapia. Trata-se da natureza, interpretação mais ou menos
sempre do mesmo método de observação e provável, da qual extrai de modo lógico as
de experimento, que se baseia sempre nos conseqüências, que a todo instante confron­
mesmos princípios e só varia na aplicação, ta com a realidade através do experimento
conforme a complexidade do fenômeno” . [...]. A idéia experimental, portanto, é uma
Bernard, portanto, defende o método idéia a priori, que, no entanto, se apresenta
experimental na medicina. M as é óbvio sob a forma de hipótese e cuja validade se
que a experiência pressupõe sempre alguma julga submetendo suas deduções ao critério
coisa a experimentar. E essa alguma coisa experimental” .
são as hipóteses. N a opinião de Bernard, Bernard transfere essas linhas gerais
“ o homem, por sua própria natureza, é de metodologia pari passu para a medicina,
fantasioso e cheio de orgulho; ele acabou pondo a fisiologia como base da medicina, e
por acreditar que as concepções ideais de com isso pondo a medicina de laboratório (a
sua mente, que só correspondiam a seus medicina experimental) como fundamento
sentimentos, representavam também a rea­ da medicina clínica.
lidade. Por isso, o método experimental não Esse foi o maior dos vários méritos de
tem nada de espontâneo e inato no homem.” Bernard.

Claude Bernard e seus colaboradores durante unia experiência, em um quadro de I.bermitte.


ScxtU parte - O p o s itiv is m o n a c u lt u r a e u r o p é i a

IV. o p o sitivism o
utilitarista \ng e s

• Os representantes do utilitarismo inglês são, sobretudo, Jeremiah Bentham,


James Mill e seu filho John Stuart Mill. Nesse contexto, todavia, é preciso salientar
a presença de Adam Smith e David Ricardo; e, sempre no quadro
Malthus: dos estudos sociais, a de Thomas Robert Malthus.
a população De Malthus (1766-1834) é célebre o Ensaio sobre a população
cresce (1798): a população cresce em proporção geométrica enquanto
em proporção os recursos aumentam em proporção aritmética; o equilíbrio
geométrica; entre as duas tendências é de fato restabelecido, no mundo dos
os recursos, animais e das plantas, pela dispersão das sementes, das doenças,
em proporção da morte precoce, e, em âmbito humano, também por obra da
aritmética miséria e do vício.
~^§2
Malthus pretende substituir a este controle repressivo, exercido
sobre a população pela miséria e pelo vício, um controle pre­
ventivo por meio da "contenção moral", "com a abstenção do matrimônio por
motivos prudenciais e com uma conduta estritamente moral durante o período
desta abstinência".
• Autor da Pesquisa sobre a natureza e as causás da riqueza das nações (1776),
Adam Smith (1723-1790) é o representante mais prestigioso da economia política
clássica. Eis a essência de seu liberalismo: "O estudo da vantagem
pessoal leva cada indivíduo a preferir a ocupação mais vantajosa
A. Smith,
o grande também para a coletividade. Sua intenção não é a de contribuir
liberalista para o interesse geral; ele olha apenas para sua vantagem e,
§3.1 neste caso, como em muitos outros, é levado por ‘mão invisível'
para a realização de um objetivo estranho às suas intenções".
• Menos otimista que Smith, mas também sustentador da teo­
Ricardo ria de que o valor de um bem é igual ao trabalho utilizado para
e a teoria do produzi-lo (mesmo se a equação valor = trabalho não funciona
valor-trabalho para o trabalhador, o qual nem sempre chega à posse do valor de
—>§ 3.2 seu produto), David Ricardo (1772-1823), teórico do livre comércio
dentro da nação e entre nação e nação, é autor dos Princípios de
economia política e de taxação (1817).
• Engenheiro, industrial e filantropo, Robert Owen (1771­
Owen, 1858) conseguiu fazer de sua fábrica têxtil um modelo de pro­
socialista vidências humanas; fez isso persuadido de que, mudando as
utópico condições ambientais, poder-se-ia mudar o caráter dos homens.
-^§4 Em idade já avançada foi fautor de um socialismo utópico, não
diferente do de Saint-Simon e de Fourier.
• Fundador do utilistarismo é Jeremiah Bentham (1748-1832), autor de uma
Introdução aos princípios da moral e da legislação (1789) e do Quadro dos mo-
ventes da ação (1817). O princípio fundamental do utilitarismo
Bentham: é: a máxima felicidade possível para o maior número possível de
os fatos que pessoas. Para Bentham, no domínio moral, os únicos fatos que
verdadeiramente contam são o prazer e a dor. Alcançar o prazer e evitar a dor: aí
contam são estão os únicos motivos da ação. Eé da máxima importância que
o prazer e a dor não se cometam erros ao avaliar as conseqüências agradáveis
—> § 5 ou danosas de uma ação. O necessário é, em poucas palavras,
Cãpltulo décimo quinto - O p o s itiv is m o s o c i o l ó g i c o e u tilita fis ta

uma aritmética moral em grau de fazer-nos realizar os cálculos justos. Bentham


foi contrário ao imperialismo, e julgava total loucura as colônias. Defendeu os
direitos dos animais.
• Associacionista no que se refere à teoria da mente, James Mill (1773-1836),
autor de um tratado de economia política - Elementos de economia política (1820)
- e de uma Análise dos fenômenos da mente humana (1829),
sustentou que a lei da associação vale também no campo da James Mill:
moral. "A idéia de um prazer - escreve James Mill - excitará a é para fins
idéia da ação que é causa dele, e quando a idéia existe, a ação egoístas
deve seguir-se a ela". °iue sur?e
A análise das idéias morais mostra também, segundo James ° altruismo
Mill, que é para fins egoístas que surge o altruísmo, embora isso §
não impeça que o altruísmo tenha um valor em si: um raio de luz
permanece branco para nós, mesmo depois que Newton o decompôs nas cores do
espectro solar. Convicto de que a política pudesse ser dominada pela razão, James
Mill, como todos os radicais da época, também estava persuadido da onipotência
da educação.

CDs p r in c ip a is r e p r e s e n t a n t e s a atração entre os dois sexos é indispensável


d o p o s it iv is m o
e se manterá sempre, mais ou menos, como
é atualmente” .
u tilita r is ta i n g l ê s Com base nesses dois postulados, ele
afirma que “ o poder de crescimento da
população é infinitamente maior do que
O utilitarism o da prim eira metade o poder que a terra possui de produzir
do século X IX é o movimento filosófico os meios de subsistência necessários ao
que, herdeiro das teses e da atitude dos
homem; com efeito, se não for travada, a
iluministas, constitui, dentro da tradição
população aumenta segundo uma progres­
filosófica empirista, a primeira manifesta­
são geométrica, ao passo que os recursos
ção do positivismo social na Inglaterra. Os
aumentam segundo uma progressão arit­
representantes mais importantes do utilita­
m ética” .
rismo são Jeremiah Bentham, Jam es Mill
Se houvessem encontrado alimento su­
e seu filho John Stuart Mill. Dois grandes
ficiente e espaço para se expandir, as espécies
estudiosos da economia clássica também
animais e vegetais já teriam enchido a terra.
são habitualmente relacionados entre os
M as a escassez (necessity), “ essa imperiosa
representantes do utilitarism o: trata-se
lei da natureza, que domina todo o criado” ,
de Adam Smith e David Ricardo. E, ao
as restringe dentro de limites bem definidos.
delinear um quadro das idéias econômicas
e sociais da Inglaterra na primeira metade Os animais e as plantas são mantidos dentro
do século X IX , também não podemos calar desses limites por obra da dispersão de se­
inteiramente sobre Robert Owen e, espe­ mentes, das doenças e da morte precoce; os
cialmente, Malthus. homens são controlados também por obra
da miséria e do vício.
Para Malthus, esse controle repressivo
exercido sobre a população pela miséria e
O p e n s a m e n t o d e A ^ o ltK u s pelo vício deve ser substituído, à medida
do possível, pelo controle preventivo, que
consiste em impedir o aumento excessivo
Thomas Robert Malthus (1766-1834) da população, por meio da “ contenção
publicou em 1798, de forma anônima, seu m oral” , isto é, “ abstendo-se do matrimônio
célebre Ensaio sobre a população. Malthus por motivos de prudência e com conduta
parte de dois postulados inegáveis: “ 1) o estritamente moral durante o período dessa
alimento é necessário à vida do homem; 2) abstinência” .
S e x ta p a rte - O p o s itiv is m o ncx c u lt u r a e u r o p é i a

3 yA e c o n o m ia c lá ssic a

■ U tilita rism o. Este term o indica a í B I A : ' a m S m it k


concepção em que o bem é identifi­
cado com o útil. í Adam Smith (1723-1790) é, juntamen-
O term o é usado primeiro por Jere- ■i te com Ricardo, o representante de maior
miah Bentham, o qual definiu utili­ i prestígio da economia política clássica.
dade como tudo aquilo que produz
p ra z e r ou tra z vantagem . Útil, em
; N a Pesquisa sobre a natureza e as
outras palavras, é o que "m inim iza" causas da riqueza das nações (1776), Smith
a dor e "m a xim iza " o prazer. Por sustentara três teses de fundo:
conseguinte, a moral, na perspecti­ : 1) só é produtivo o trabalho manual,
va de Bentham , configura-se como : que cria bens materiais que têm valor obje-
espécie de h e d o n is m o c a lcu la d o , ; tivo de troca;
escrupulosamente atento à avaliação ;= 2) os cientistas, os políticos, os gover-
das características do prazer: duração, í nantes, os professores, em suma, todos os
intensidade, certeza, proxim idade, i: produtores de bens imateriais, quae tangere
capacidade de produzir prazeres ul- non possumus, contribuem apenas indireta­
teriores, ausência de conseqüências
dolorosas. E sábio será, então, quem : mente para a formação da riqueza nacional,
renunciar a um prazer imediato para razão por que a riqueza de uma nação será
um bem fu tu ro cujo b alanço seja tanto maior quanto menor for o mundo dos
melhor. ociosos;
O princípio de fundo do utilitarismo é 3) alcança-se o ápice da sabedor
o form ulado por César Beccaria (1738­ quando o Estado, deixando cada indivíduo
1794) em seu célebre iivro Dos delitos | livre para alcançar o máximo bem-estar pes-
e d a s p e n a s (1764): "a fe licid a d e I soai, assegurar automaticamente o máximo
máxima dividida pelo maior número bem-estar a todos os indivíduos.
de pessoas".
Em tal princípio está im plícita a idéia
Esta é a essência do liberalismo de
de que a utilidade privada coincide , Smith: “ O estudo da vantagem pessoal leva
com a pública. E foi esta a idéia que cada indivíduo a preferir a ocupação mais
ligou à concepção utilitarista os re­ | v an tajo sa tam bém para a coletividade.
presentantes da "economia clássica", Sua intenção não é a de contribuir para
e ntão em sta tu n a sce n ti, ou seja. | o interesse geral; ele só está olhando para
Adam Smith e David Ricardo. James f sua vantagem. M as, nesse caso, como em
M ill foi u tilitarista, e tam bém seu | muitos outros, ele é conduzido por lmão
filh o John Stuart M ill, cujo ensaio í invisível’ para a realização de um objetivo
com o títu lo U tilitarism o apareceu
em 1861.
í estranho às suas intenções ” . Em suma, existe
A idéia cardeal do trabalho de Mill é * “ harmonia natural” , “ ordem natural” , no
a de Bentham: "Conform e o princípio ; sentido de que a conseqüência não intencio-
da máxima felicidade, o fim último e a ■' nal do egoísmo de cada um é o bem-estar de
causa de todas as outras coisas serem todos. Com efeito, quando há possibilidade
desejáveis é uma existência isenta o ? de lucro, os empreendedores se apressam a
quanto possível de dores e o m aior I tirar vantagem disso, produzindo os bens
possível rica de prazeres". Diversa­ í requisitados pelo mercado. De início, so-
m ente de Bentham , Mill não olha : mente uns poucos ganharão muito, mas logo
apenas para a quantidade do prazer
5 outros se apressarão a produzir os mesmos
mas tam bém para a q u alid a de: "E
preferível ser um Sócrates doente do < bens e assim, aumentando ã oferta, os preços
que um porco satisfeito". E, por fim, ' igualarão os custos.
o conselho de Mill: para saber qual
será a mais aguda entre duas dores
1 E S I D a v id R ic a r d o
ou o mais intenso entre dois praze­
res, "é preciso confiar-se ao sufrágio
universal de todos os que têm prática | David Ricardo (1772-1823) é autor
de umas e outros". í da obra Princípios de economia política e
| de taxação (1817). A visão de Ricardo é
3 menos otimista do que a de Smith. Também
sustenta que o valor de um bem é igual ao
Cãpltulo décimo quiflto - O p o s itiv is m o s o c i o l ó g i c o e u tilita rista

trabalho utilizado para produzi-lo, embora com muitos temas e problemas levantados
devamos levar em conta, na determinação e discutidos por Ricardo que M arx deverá
do valor do produto, o custo dos instru­ se confrontar.
mentos utilizados. E se as mercadorias têm
o valor do trabalho necessário para pro­
duzi-las, o valor do trabalho é a soma do 4 R obert O w en:
valor dos bens necessários para produzi-lo
d o u tilita r is m o
e reproduzi-lo.
Teórico do livre intercâmbio dentro a o s o c ia lis m o u tó p ico
da nação e entre as nações, Ricardo admite
que o melhor preço para as mercadorias é o
alcançado no livre mercado, através do jogo Robert Owen (1771-1858), engenhei­
da oferta e da procura, mas recusa-se a con­ ro, industrial e filantropo, inicialmente
siderar como o melhor salário o alcançado seguiu o utilitarismo para depois acabar em
mediante a mesma técnica. uma forma de socialismo utópico. Exemplo
O valor de uma mercadoria, portan­ de “ homem que se fez sozinho” , Owen,
to, é dado pelo trabalho necessário para seguindo a cultura progressista inglesa da
produzi-la. Entretanto, observa Ricardo, a época, tinha confiança na possibilidade de
equação valor = trabalho não funciona para mudar os homens através da melhoria das
o trabalhador, que nem sempre chega à posse condições de vida e por meio da educação.
do valor de seu produto. Antes ainda dos trinta anos, já era
Assim chegamos à questão da renda co-proprietário e diretor de uma indústria
fundiária (isto é, da renda que o proprietário manufatureira têxtil na Escócia. Conforme
fundiário recebe pela simples razão de ser conta Trevelyan em sua História da Inglater­
proprietário do terreno). A renda fundiária ra no século XIX , “ em quinze anos, de 1800
seria zero se houvesse disponibilidade in­
finita de terras. O aumento da população,
porém, obriga os homens a cultivarem não
somente as melhores terras, mas também
as menos prósperas e mais distantes do
mercado. Desse modo, ocorrerá que, para
obter frutos dessas terras menos adequadas
à agricultura, o trabalho será maior. Con­
seqüentemente, isso aumentará no mercado
o preço dos produtos agrícolas em seu con­
junto, já que os preços dos terrenos férteis
se elevarão ao nível dos menos férteis. Por
isso, o lucro proveniente dos terrenos férteis
e próxim os ao mercado aumentará e irá
para o bolso do proprietário dos terrenos
férteis, sob a forma de renda. Assim, quem
trabalha não recebe o valor do seu trabalho,
quem não trabalha recebe sempre mais, e os
preços aumentam.
Por tudo isso, segundo R icardo, a
renda é anti-social. M as nem por isso au­
mentam os preços das mercadorias manufa­
turadas, “ para a produção das quais não é
necessária nenhuma quantidade adicional de
trabalho” , escreve Ricardo nos Princípios.
N o entanto, ele se convenceu de que, “ se os
salários aumentarem (...), então os lucros
deverão necessariamente cair” . E essa é ou­ Robert Owen {1771 - / 858),
tra brecha no imponente edifício da ordem industrial, filantropo e reformador,
natural de que havia falado Adam Smith. no início seguiu o utilitarismo
A crítica atual olha com grande respei­ para depois aderir a uma forma
to para a obra científica de Ricardo. E será de socialismo utópico.
Sexta parte - O p o s itiv is m o r\a c u lt u r a e u r o p é i a

a 1815, ele fez de sua fiação um modelo de dê a maior felicidade e a mínima dor. Assim,
providências humanas e inteligentes para as a moral se reduz a uma espécie de hedonis­
mentes e os corpos, com horários modera­ mo calculado, que avalia atentamente as
dos, bons salários, condições salubres tanto características do prazer: duração, inten­
na fábrica como na aldeia, e boas instalações sidade, certeza, proximidade, capacidade
escolares, inclusive o primeiro abrigo infan­ de produzir outros prazeres, ausência de
til da ilha; o resultado foi que os operários conseqüências dolorosas. Sábio é quem
mostravam-se cheios de entusiasmo” . sabe renunciar a um prazer imediato por
Owen estava convencido de que, tendo um bem futuro cuja avaliação é melhor. Por
mudado o ambiente, havia mudado o cará­ outro lado, é muito importante que não se
ter dos operários. M as, ao mesmo tempo, cometam erros ao avaliar as conseqüências
também fizera o sucesso da fábrica. Procu­ agradáveis ou prejudiciais de uma ação.
rou persuadir os outros empreendedores a E preciso chegar a uma aritmética moral,
fazerem o mesmo. M as não teve sucesso. Já que nos ponha em condições de realizar os
em idade avançada, elaborou um socialismo cálculos justos.
que, em suas formas utópicas, assemelha-se Os homens procuram cada qual a sua
ao de Saint-Simon e de Fourier. própria felicidade. E o legislador tem a
função de harmonizar os interesses priva­
dos com os públicos. E do interesse público
5 O u + ili+ arism o que eu não roube, embora roubar possa
constituir interesse meu, a não ser que não
d e Je re m ia k B en fk am
exista lei penal segura e eficaz. A lei penal,
portanto, é o método para fazer com que
coincidam os interesses do indivíduo e os da
Jeremiah Bentham (1748-1832) é o comunidade. É nisso que ela encontra sua
fundador do utilitarism o, cujo princípio justificação. A lei penal pune para prevenir
fundamental (presente no Iluminismo e já o delito e não porque odiamos o criminoso.
formulado por Hutcheson e Beccaria) é: a Bentham escreveu muito (embora nun­
m áxima felicidade possível para o maior ca tenha se preocupado em publicar). Entre
número possível de pessoas. suas obras, devem-se recordar: Introdução
Seu maior interesse voltou-se para a aos princípios da m oral e da legislação
jurisprudência, reconhecendo como seus (1789), Tábua dos moventes da ação (1817)
principais antecessores nesse campo Hel- e Deontologia ou ciência da moralidade (pu­
vétius e Beccaria. Depois, seus interesses blicada postumamente, em 1834). Difusor
passaram da teoria jurídica para os temas e apóstolo das idéias utilitaristas, Bentham
mais especialmente éticos e políticos. Uma teve a satisfação de, nos últimos anos de
idéia importante de Bentham é de que as leis sua vida, ver surgir um órgão de difusão
não são dadas de uma vez por todas, mas das concepções utilitaristas, a “Westminster
são modificáveis e aperfeiçoáveis. Conse­ Review” .
qüentemente, é preciso trabalhar continu­
amente por uma legislação em condições
de promover “ a máxima felicidade para o O u + ili+ arism o
maior número possível de pessoas” .
N o dom ínio da m oral, sustentava d e J a m e s ,/V\ill
Bentham, os únicos fatos verdadeiramente
importantes são o prazer e a dor. Alcançar o
prazer e evitar a dor são os únicos motivos Ligado ao utilitarism o de Bentham
da ação. encontra-se o pensamento de Jam es Mill
Avaliar, ou seja, expressar aprovação (1773-1836). Autor de uma Análise dos
ou desaprovação por um ato, significa pro­ fenômenos da mente humana (1829), de
nunciar-se sobre a sua idoneidade para gerar alguns dos verbetes mais importantes da
pena ou prazer. E o juízo moral torna-se Enciclopédia Britânica (por exemplo: go­
juízo sobre a felicidade: bom é o prazer (ou verno, jurisprudência, leis, prisões), de uma
a felicidade), má é a dor. História das índias britânicas (1818) e de
Essa é a moral utilitarista: todo indi­ um tratado de economia política intitulado
víduo sempre persegue o que julga ser sua Elementos de economia política (1820),
felicidade, ou o estado de coisas em que se James Mill — pai de John Stuart Mill — foi
Capítulo décimo quinto - O p o sitiv i s m o s o c i o l ó g i c o e u+ili+a^is+a

amicíssimo de Ricardo e um dos colabo­ outra. A lei da associação vale também para
radores de Bentham. Alcançou alto cargo o campo da moral. Escrevia James Mill: “A
na Companhia das índias e colaborou com idéia de um prazer excitará a idéia da ação
a “Westminster Review” . M uito atuante que é sua causa. E, quando a idéia existe, a
politicamente, desenvolveu papel de pri­ ação deve prosseguir” . A análise das idéias
meiro plano na difusão do liberalismo na morais mostra que é através da associação
Inglaterra. E foi sobretudo mérito seu que que se explica a passagem da conduta egoís­
o positivismo não tenha assumido na Ingla­ ta à conduta altruísta. E por fins egoístas que
terra as características de uma concepção surge o altruísmo, mas isso não significa que
autoritária. o altruísmo não tenha valor em si mesmo. A
Em sua Autobiografia, escreve John generosidade continua sendo generosidade,
Stuart Mill: “ Meu pai foi o primeiro inglês a gratidão continua gratidão e o altruísmo
de grande valor que compreendeu perfei­ continua altruísmo até quando são identi­
tamente e adotou em seu conjunto as con­ ficados seus moventes egoístas últimos. Do
cepções gerais de Bentham sobre a ética, o mesmo modo, lembra Jam es Mill, um raio
Estado e a legislação [...]. Em sua concepção de luz permanece branco para nós, também
de vida, estavam presentes características depois de Newton tê-lo decomposto nas co­
estóicas, epicuristas e cínicas, não no sentido res do arco-íris. Pergunta-se: “ Será que um
moderno da palavra, mas no sentido antigo. movente complexo deixa de ser movente tão
Em suas qualidades pessoais predominava logo se descubra que é complexo?” A influên­
o estoicismo. Seu modelo de moral era epi- cia dos valores sociais e desinteressados até
curista, tanto pelo utilitarismo como por ter o sacrifício é um movente real de ações; ela
adotado como critério exclusivo do justo e “ é o que é, não mudandoj^elo fato de serem
do injusto a tendência das ações de produzi­ simples ou com postos” . E esse o modo pelo
rem prazer ou dor [...]. Considerava a vida qual Jam es Mill, por meio da análise dos
humana um tanto pobre, uma vez passados fenômenos da mente humana, procura fun­
o frescor da juventude e a curiosidade insa­ damentar o utilitarismo de Bentham. Sempre
tisfeita [...]. N a escala dos valores, punha em esteve convencido de que a política podia
posição muito elevada o prazer suscitado pe­ ser dominada pela razão e, como narra seu
los sentimentos de benevolência [...]. Nunca filho, “ professava o máximo desprezo por
modificou seu juízo sobre a superioridade todo tipo de emoções passionais e por tudo
dos prazeres espirituais em relação a todos o que foi escrito ou dito para exaltá-las.
os outros, até considerando-os apenas como Considerava-as como forma de loucura.
prazeres, isto é, independentemente de suas Para ele, o ‘intenso’ era a expressão usual de
outras vantagens” . desaprovação depreciativa” . Assim, conven­
Associacionista na teoria da mente, cido de que a razão estava em condições de
James Mill pretendeu fundar uma ciência do dominar a política, James Mill, como todos
espírito que, analogamente à da natureza, os radicais daquele período, também estava
tivesse fundamento sólido nos fatos. E, para persuadido da onipotência da educação. E
James Mill, os fatos da mente são as sensa­ pôs sua teoria em prática educando seu filho,
ções, das quais as idéias representam cópia. o qual, a propósito, recorda: “ N o que se
A lei que regula a vida das sensações e das refere à minha educação, não sei bem se tirei
idéias é a da contigüidade no espaço e no mais desvantagens do que proveitos de sua
tempo: se duas coisas foram percebidas jun­ severidade, que, no entanto, não foi tal a
tas, não é possível pensar uma sem pensar a ponto de impedir-me uma infância feliz” .
Sexta parte -
CD p o s i+ iv is m o n o c u l+ u ^ a eiAV*opé.\a

------ V. 5okn S+uaH- y\/Vi11:


e n f f ô l ó g i c a indutiva
e d e [ e s a d a l i b e r d a d e d o indivídu o

• Dois livros tornaram célebre John Stuart Mill (1806-1873): o Sistema de


lógica raciocinativa e indutiva (1843) e o ensaio Sobre a liberdade (1859). Uma
tese importante do Sistema de lógica é a que se refere à esterilidade do silogis­
mo. Consideremos o seguinte silogismo: "Todos os homens são
o silogismo mortais; o duque de Wellington é um homem; portanto, o duque
é estéril Wellington é mortal". Ora, que "o duque de Wellington seja
aum enta^osso mor't a'" ® um conhecimento já incluído na premissa "todos os ho-
conhecimenfo mens são mortais"; a conclusão do silogismo é um conhecimento
§2 já incluído na premissa e, portanto, a inferência silogística, ou
dedutiva, é estéril.
• O problema agora, porém, é o seguinte: como se obtêm as proposições ge­
rais como "todos os homens são mortais" e as próprias leis universais da ciência?
Obtemos nossos conhecimentos a partir da experiência; e a experiência nos oferece
apenas a observação de casos particulares. Porém, então como
o difícil é que do fato de que Pedro, José, Carlos e Luís estão mortos, di-
problema zemos que todos os homens são mortais? É este o problema da
da indução indução. E a indução - escreve Mill - "consiste em inferir, a partir
§3 de alguns casos particulares em que se observa que um fenômeno
se verifica, que ele se verifica em todos os casos de certa classe, ou
seja, em todos aqueles que se assemelham aos precedentes nas que se consideram
as circunstâncias essenciais".
E a individuação de tais circunstâncias essenciais é o resultado, para Mill,
da aplicação dos quatro métodos da indução: método da concordância, método
da diferença, método das variações concomitantes, método dos resíduos. Mas é
óbvio que, no contexto de tal problemática, ò problema mais urgente é o que se
refere à garantia de nossas inferências a partir da experiência. Garantia que Mill
vê no princípio de indução, segundo o qual "o curso da natureza é uniforme".
O princípio de indução - princípio da uniformidade da natureza ou princípio de
causalidade - é, portanto, o axioma geral das inferências indutivas; é a premissa
maior de toda indução; ele foi sugerido a partir das mais óbvias generalidades
descobertas no início (o fogo queima, a água molha etc.) e, uma vez formulado,
foi posto como fundamento das generalizações indutivas.
• De 1861 é o Utilitarismo. Mill está de acordo com Bentham: "Conforme o
princípio da máxima felicidade, o fim último e a garantia de que todas as outras
coisas são desejáveis é uma existência isenta o quanto possível de dores e o mais
possível rica de prazeres". Apenas que, diversamente de Bentham, Mill cuida não
só da quantidade dos processos, mas também de sua qualidade:
Um utilitarista "é preferível ser um Sócrates doente do que um porco satisfeito".
em defesa Ainda a 1861 remontam as Considerações sobre o governo repre-
das liberdades sentativo, trabalho em que Mill enfrenta o problema de como seja
individuais possível impedir que uma maioria governe tiranicamente.
§ 4-5 E em defesa da liberdade individual foi dedicado o escrito Sobre
a liberdade, fruto da colaboração do filósofo com sua esposa,
Harriet Taylor. O núcleo teórico do livro está em reforçar "a importância, para o
homem e para a sociedade, de uma grande variedade de características e de uma
completa liberdade da natureza humana de expandir-se em inumeráveis e contras­
Cãpltulo décimo quinto - O p o s itiv is m o s o c i o l ó g i c o e. u tilita rista

tantes direções". O ensaio de Mill sobre a liberdade é, talvez até hoje, a defesa da
liberdade dos indivíduos mais lúcida e mais cheia de argumentos.
No espírito do livro sobre a liberdade, Mill em 1869 escreve o ensaio Sobre
a escravidão das mulheres: são páginas de elevada sensibilidade moral. As idéias
de Mill sobre a emancipação das mulheres encontrarão ampla repercussão na In­
glaterra dentro do movimento das feministas. O direito das mulheres ao voto foi
aprovado na Inglaterra em 1919.

1
W èÊÈê
y \ c r i s e d o s v in te a n o s a alguma outra coisa, encontram a felici­
dade ao longo do caminho. Os prazeres
da vida [...] são suficientes para fazer dela
John Stuart Mill (1806-1873) foi edu­ uma coisa agradável quando colhidos de
cado de modo metódico e severo pelo pai (é passagem, sem considerá-los como objetivos
impressionante todo o trabalho que James principais” .
fazia o filho realizar). Crescido na atmos­ E pelo resto de sua vida — ligada a
fera cultural inglesa do liberalismo, amigo H arriet Taylor por delicado e profundo
do economista francês Jean-Baptiste Say amor — , Stuart Mill trabalhou com muita
(que visitou na França), influenciado pelos intensidade, dentro da tradição empirista,
escritos de Saint-Simon e seus seguidores, associacionista e utilitarista, construindo
mais tarde leitor e correspondente de Comte
(cujas idéias autoritárias e despóticas refuta­
ria), desde jovem, quando leu Bentham pela
primeira vez, em 1821, acreditava possuir o
que pode ser chamado de “ objetivo de vida” :
“ ser um reformador do mundo” .
Entretanto, “ em certo momento, des­
pertei desse estado como de um sonho. Acon­
teceu no outono de 1826. Fiquei em estado
de depressão nervosa, que ocasionalmente
todos podem experimentar. N ão sentia
nenhum interesse pela alegria ou pelas ex­
citações do prazer. Era um daqueles estados
de espírito em que aquilo que era agradável
em outros momentos torna-se insípido ou
indiferente [...]. N essa condição espiritual,
ocorreu-me de me propor diretamente a
pergunta: ‘Supõe que todos os objetivos de
tua vida se realizassem e todas as mudanças
das instituições e opiniões a que aspiras
pudessem ser efetuadas precisamente neste
instante: isso seria grande alegria e felicidade
para ti?’ E a voz irreprimível da minha cons­
ciência respondeu inequivocamente: ‘N ã o !’
Nesse momento, senti parar o coração. Todo
o fundamento sobre o qual construíra minha
vida ruía por terra” .
A crise espiritual de Mill não durou
muito tempo, mas ele saiu persuadido de que
“ são felizes apenas [...] os que se propõem
objetivos diversos de sua felicidade pessoal:
isto é, a felicidade dos outros, o progresso da
,
lo h n Stinirl M i ll ( I HOh-1 97'.■>):
seu pensamento constitui uma etapa fundamental
humanidade, até alguma arte ou ocupação, na historia da lógica
exercidos não como meio, mas como fim e na história da defesa da liberdade
ideal em si mesmo. Desse modo, aspirando dos indivíduos.
308 c ^ ... . ,.
òexta pãtte - CJ positivism o na cu ltu ra e-iA^opaia

com muita intensidade um conjunto de teo­ proposições das ciências dedutivas, como a
rias lógicas e ético-políticas que marcaram a geometria.
segunda metade do século X IX inglês e que N a opinião de Mill, o silogismo é esté­
até hoje constituem pontos de referência e ril, pois não aumenta nosso conhecimento: o
etapas obrigatórias, tanto para o estudo da fato de o duque de Wellington ser mortal é
lógica da ciência como para a reflexão no uma verdade que já está incluída na premissa
campo ético e político. segundo a qual todos os homens são mor­
De fato, se o ensaio Sobre a liberda­ tais. M as aqui as coisas se complicam, pois,
de (1859) — escrito em colaboração com se é verdade que todo o nosso conhecimento
sua mulher — é um clássico da defesa dos é obtido por observação e experiência, e se
direitos da pessoa, seu Sistema de lógica é verdade que a experiência e a observação
raciocinativa e indutiva (1843) continua um sobre as quais devemos nos basear nos
clássico da lógica indutiva. oferecem sempre um número limitado de
casos, como teremos então legitimidade para
formular proposições gerais como “ todos os
2 O silo g i s m o é e s t é r il; homens são mortais” , ou as leis universais
n ão au m en ta
da ciência? Como, a partir do fato de que
Pedro, José e Tomás morreram, dizemos que
n o sso c o n k e c im e n to todos os homens são mortais?
Esse, na realidade, é o difícil problema
da indução. Diz Mill: “ A indução é o pro­
A lógica, diz Mill, é a ciência da prova, cesso com o qual concluímos que aquilo que
isto é, do modo correto de inferir propo­ é verdadeiro de certos indivíduos de uma
sições de outras proposições. Por isso, ele classe é verdadeiro para toda a classe, ou que
trata em primeiro lugar dos nomes e das aquilo que é verdadeiro em certos momentos
proposições, em que reside toda verdade e será verdadeiro em circunstâncias semelhan­
todo erro. tes em todo momento” . A indução, diz ainda
M as as argum entações são cadeias Mill, pode ser definida sumariamente “como
de proposições, que deveriam levar a con­ generalização a partir da experiência. Ela
clusões verdadeiras se as premissas forem consiste em inferir, a partir de alguns casos
verdadeiras. E o silogismo foi considerado isolados em que se observa que o fenômeno
como tipo de argumentação válida. se verifica, que ele se verifica também em
Qual é, porém, o valor do silogismo? todos os casos de certa classe, ou seja, em
Examinemos o seguinte silogismo: “Todos todos os que se assemelham aos anteriores
os homens são mortais; o duque de Welling- naquelas que consideramos como circuns­
ton é homem; logo, o duque de Wellington tâncias essenciais” .
é m ortal” . Concluímos então que “ o du­
que de Wellington (que, na época de Mill,
estava vivo e forte) é m ortal” , a partir da 3 O p r i n c í p i o d e i n J liA ç ã o -.
proposição de que “ todos os homens são a u n if o r m id a d e d a n a + u > *& z a
mortais” . Todavia, como sabemos que todos
os homens são mortais? Sabemo-lo porque
vimos a morte de Paulo, Francisco, M aria e Para distinguir as circunstâncias essen­
tantos outros, e porque outros nos contaram ciais das não essenciais, ou seja, tendo em
terem visto morrer outras pessoas. Portanto, vista “ escolher, entre as circunstâncias que
é da experiência que extraímos a verdade da precedem ou se seguem a um fenômeno,
proposição “ todos os homens são mortais” . aquelas às quais realmente está ligado por
E a experiência nos faz observar apenas lei invariável” , Mill propõe aqueles que ele
casos individuais. chama de “ os quatro métodos da indução” :
Por isso, a tese fundamental de Mill é a o método da concordância, o método da
de que “ toda inferência é de particular para diferença, o método das variações conco­
particular” , ao passo que a única justificação mitantes e o método dos resíduos.
do “ isso será” é o “ isso foi” . E a proposição Nesse caso, porém, a questão mais
“ geral” é o expediente para conservar na candente é a do fundamento das inferências
memória muitos fatos particulares. Para indutivas ou indução: em suma, qual é a
Mill, todos os nossos conhecimentos e todas garantia para todas as nossas inferências a
as verdades são de natureza empírica, até as partir da experiência?
C ã p ítu lo d é c im o C /U in tO - O p o sitiv ism o s o c i o l ó g ic o e u tilitarista

N a opinião de Mill, essa garantia en­ mos predizer seus comportamentos com a
contra-se no princípio segundo o qual “ o mesma certeza com que prevemos qualquer
curso da natureza é uniforme” : esse é “ o comportamento físico.
princípio fundamental ou axioma geral da Todavia, tal necessidade filosófica não
indução” . E esse princípio foi formulado é fatalidade. A fatalidade é constrição mis­
de diversos modos: o universo é governado teriosa e impossível de mudar. A necessidade
por leis, o futuro se assemelhará ao passado. filosófica, ao contrário, não impede que,
M as a realidade é que “ nós não inferimos uma vez conhecida, possamos agir sobre a
do passado para o futuro enquanto passado causa da própria ação, como agimos sobre
e futuro, e sim do conhecido para o des­ as causas dos processos naturais.
conhecido, de fatos observados para fatos Portanto, não há divergência entre li­
não observados, do que percebemos ou do berdade do indivíduo e ciências da natureza
que ficamos diretamente conscientes para o humana. E, entre as ciências da natureza
que não entrou em nossa experiência. Nessa humana, Mill propõe em primeiro lugar a
afirmação está toda a área do futuro, mas psicologia, que “ tem por objeto a uniformi­
também a parte, de longe maior, do presente dade de sucessão [...], segundo a qual um
e do passado” . estado mental sucede a outro” .
O princípio de indução (uniformidade E a uma ciência particular “ ainda por
da natureza ou princípio de causalidade), criar” , isto é, a etologia (de ethos = caráter),
portanto, é o axioma geral das inferências que Mill atribui a função de estudar a for­
indutivas, que é a premissa maior última mação do caráter, com base nas leis gerais
de toda indução. M as qual é o valor desse da mente e da influência das circunstâncias
princípio? Será ele evidente a priori? N ão, sobre o caráter. E se a etologia é complexa,
responde Mill: “ A verdade é que essa grande mais complexa ainda é a ciência social que
generalização também está baseada em ge­ estuda “ o homem em sociedade, as ações
neralizações precedentes. As mais obscuras das massas coletivas de homens e dos vários
leis da natureza foram descobertas por seu fenômenos que constituem a vida social” .
meio, mas as mais óbvias provavelmente De 1861 é o Utilitarismo. A idéia cen­
foram entendidas e aceitas como verdades tral do trabalho de Mill é a de Bentham:
gerais antes que delas sequer se ouvisse “ Segundo o princípio da máxima felicidade,
falar” . Em outras palavras, as mais óbvias o fim último em razão do qual todas as ou­
generalizações descobertas no início (o fogo tras coisas são desejáveis é uma existência
queima, a água molha etc.) sugerem o prin­ o tanto quanto possível isenta de dores e o
cípio da uniformidade da natureza. Uma mais rica possível de prazeres” .
vez formulado, esse princípio foi proposto Até aí Mill está de acordo com Ben­
como fundamento das generalizações indu­ tham. M as, diferentemente de Bentham,
tivas; estas, depois de descobertas, atestam afirma que se deve levar em conta não so­
o princípio da uniformidade, pelo qual “ é mente a quantidade de prazer, mas também
uma lei que todo acontecimento dependa a qualidade: “ E preferível ser um Sócrates
de alguma lei” , e “ para cada acontecimento doente do que um porco satisfeito” . Para
existe alguma combinação de objetos ou saber “ qual de duas dores é a mais aguda
acontecimentos [...] cuja ocorrência é sem­ ou qual de dois prazeres o mais intenso, é
pre seguida daquele fenômeno” . preciso confiar no juízo geral de todos os que
Estes são, portanto, de modo geral, têm prática de umas e de outros” . E, para
alguns dos traços de fundo da lógica indu­ Mill, também não se delineia o contraste
tiva de Mill. entre a maior felicidade do indivíduo e a fe­
licidade do conjunto: é a própria vida social
que nos educa, e radica em nós sentimentos
desinteressados.
Também são notáveis os ensaios millia-
nos publicados postumamente Sobre a reli­
O livro VI do Sistema de lógica diz gião (1874). A ordem do mundo comprova
respeito à lógica das ciências morais. Nele uma inteligência ordenadora. M as isso não
Mill reafirma a liberdade do querer humano. nos autoriza a dizer que Deus tenha criado
Se conhecêssemos uma pessoa profunda­ a matéria, que ele seja onipotente ou onis­
mente e, portanto, conhecêssemos todos os ciente. Como mais tarde em William James,
moventes que nela agem, diz Mill, podería­ em suma, Deus não é o Todo Absoluto;
Sexta parte - O p o s itiv is m o ncx c u lt u r a e u r o p é i a

o homem é colaborador de Deus ao pôr ainda espiritual” . E isso pelo motivo fun­
ordem no mundo e ao produzir harmonia damental de que o desenvolvimento social
e justiça. é conseqüência do desenvolvimento das
Para Mill, a fé é esperança que ultra­ mais variadas iniciativas individuais. N atu­
passa os limites da experiência. M as, per­ ralmente, a liberdade de cada um encontra
gunta-se ele, “ por que não nos deixarmos seu limite na liberdade do outro. Cabe ao
guiar pela imaginação a uma esperança, indivíduo “ não lesar os interesses alheios
ainda que jam ais se possa produzir uma ou aquele determinado grupo de interesses
razão provável de sua realização” ? que, por expressa disposição da lei ou por
tácito consenso, devam ser considerados
como direitos” . Cabe-lhe também “ assumir
sua parte nas responsabilidades e sacrifícios
d e fe s a d a lib e rd a d e necessários à defesa da sociedade e de seus
d o in d iv íd u o membros contra todo prejuízo ou dano” .
A liberdade civil implica:
a) liberdade de pensamento, de religião
À liberdade individual é dedicado o en­ e de expressão;
saio Sobre a liberdade (1859), fruto da cola­ b) liberdade de gostos e liberdade de
boração do filósofo com sua mulher. Talvez projetar nossa vida segundo nosso caráter;
ainda hoje esse livro seja a defesa mais lúcida c) liberdade de associação. A idéia de
e rica de argumentação da autonomia do Mill, portanto, é a da maior liberdade possí­
indivíduo. Mill estava profundamente con­ vel de cada um para o bem-estar de todos.
vencido do valor desse livro, pois escrevia N o espírito do livro sobre a liberdade,
em sua Autobiografia que ele sobreviveria de 1869, Mill escreveu o ensaio Sobre a
mais do que qualquer outro livro seu (com servidão das mulheres. Trata-se de páginas
a possível exceção da Lógica). de elevada sensibilidade moral e de gran­
O núcleo teórico do trabalho está em de agudeza na análise social. Há séculos
reafirmar “ a importância, para o homem e que a mulher é considerada inferior “ por
a sociedade, de ampla variedade de caracte­ natureza” . M as, recorda Mill, a “ natureza
rísticas e de completa liberdade da natureza feminina” é fato artificial, fato histórico. As
humana a expandir-se em direções inume­ mulheres são relegadas à marginalidade em
ráveis e contrastantes” . benefício exclusivo dos homens, tanto na fa­
N a opinião de Mill, não basta que a mília como, segundo o que ocorria então na
liberdade seja protetora do despotismo do Inglaterra, nas fábricas, afirmando-se, além
governo, mas também precisa ser protegida disso, que elas não têm dotes que possam
contra “ a tirania da opinião e do sentimen­ fazê-las se destacar na ciência ou na arte.
to predominantes, contra a tendência da Mill sustenta que o problema deve ser resol­
sociedade a impor, com outros meios além vido com meios políticos: criar as condições
das penalidades civis, suas próprias idéias e sociais de paridade entre homem e mulher.
seus costumes como regras de conduta para As idéias de Mill sobre a emancipação fe­
os que dela se dissociam” . minina encontraram grande ressonância na
O que Mill defende é o direito do in­ Inglaterra na virada do século, no seio do
divíduo a viver como lhe aprouver: “ Cada movimento feminista pelo sufrágio univer­
qual é o guardião único de sua própria sal. N a Inglaterra o direito de voto para as
saúde, seja corporal, seja mental e seja mulheres foi aprovado em 1919. [3]
Cãpltulo décimo quinto - O p o s i+ iv is m o s o c i o l ó g i c o e wtiiitaWs+a

J. S. MILL
LÓGICA

A I.Ó G IC A ,
enquanto ciência da inferência correta de proposições
de outras proposições, mostra que
toda inferência ocorre de particulares a particulares

Todos os conhecimentos, todas as verdades


(compreendendo as proposições das ciências “dedutivas” , como a geometria),
são de natureza empírica,
e se fundam, portanto, não sobre o silogismo
mas sobre a in dução:
operação mental com a qual se infere que aquilo que é verdadeiro sobre certos
indivíduos de uma classe, é verdadeiro de toda a classe, ou que aquilo
que é verdadeiro em certos momentos, será sempre verdadeiro em circunstâncias semelhantes

O princípio fundamental da indução é


o prin cípio de u n iform id ad e:
“ O curso da natureza é uniforme,
e todo evento depende sempre de alguma lei” .
Este princípio é a premissa maior última de toda indução

CIÊNCIAS MORAIS

A LIBERDADE DA VONTADE HUMANA O princípio ético supremo é


capacidade de agir sobre as causas das ações o u tilitarism o
ou princípio da máxima felicidade:
“As ações são justas à medida que -
tendem a promover a felicidade;
é conciliável com são injustas, à medida que tendem a
as ciências da natureza humana produzir o contrário da felicidade”
(psicologia, etologia),
as quais versam sobre a
necessidade não mecânica
nem imodificável
da índole do homem

A LIBERD A D E C IV IL
é a m aior liberdade possível de cada um para o bem-estar de todos
e implica:
a) liberdade de pensam ento, religião, expressão
b) liberdade dos gostos, de projetar nossa vida segundo nosso caráter
c) liberdade de associação
Sexta patte - O p o s itiv is m o v\cx c u lfw ^ a e u r o p é i a

bre o conjunto dos fenômenos, que se excluem


C o m te reciprocamente: o primeiro é o ponto de partida
necessário da inteligência humana: o terceiro,
seu estágio estável e definitivo: o segundo
destina-se unicamente a servir como transição.
l\io estágio teológico, o espírito humano,
D R lei dos três estágios dirigindo essencialmente suas pesquisas à natu­
reza íntima dos seres, às causas primeiras e finais
dos fenômenos que o atingem, em uma palavra,
Segundo Comte, tonto o inteligêndo dos aos conhecimentos absolutos, se representa os
pessoas particulares como o espírito humono fenômenos como produtos do ação direta e con­
em seu caminho progressivo passaram por tínua de agentes sobrenaturais mais ou menos
três estágios: o teológico, o metafísico e o po­ numerosos, cuja intervenção arbitrária explica
sitivo. No estágio teológico o espírito humano todas as anomalias evidentes do universo.
"se representa os fenômenos como produtos No estágio metafísico, que não é mais,
do oçõo direto e contínuo dos agentes sobre­ no fundo, do que simples modificação geral do
naturais mais ou menos numerosos": no está­ primeiro, os agentes sobrenaturais são substi­
gio metafísico "os agentes sobrenaturais são tuídos por forças abstratas, verdadeiras entida­
substituídos por forças abstratas'': no estágio des (abstrações personificadas) inerentes aos
positivo o homem indaga os fenômenos com diversos seres do mundo, e concebidos como
método científico, "com o uso bem combinado capazes de gerar por si todos os fenômenos
do raciocínio e do observação", fí possagem observados, cujo explicação consiste então em
de um poro outro estágio marca, paro Comte, atribuir a cada um a entidade correspondente.
um processo-progresso irreversível. Por fim, no estágio positivo, o espírito
humano, reconhecendo o impossibilidade de
obter noções absolutas, renuncia a buscar a
Para explicar convenientemente a verda­ origem ou o fim do universo e a conhecer as
deira natureza e o caráter próprio da filosofia causas íntimas dos fenômenos, para consa­
positiva, é indispensável em primeiro lugar dar grar-se unicamente à descoberta, com o uso
uma espiada geral ao caminho progressivo do bem combinado do raciocínio e da observação,
espírito humano, visto em seu conjunto, uma de suas leis efetivas, isto é, de suas relações
vez que uma concepção, seja qual for, não invariáveis de sucessão e de semelhança, fl
pode ser bem conhecida a não ser por meio explicação dos fatos, reduzida então a seus
de sua história. termos reais, nõo é mais doravante que uma
Estudando assim o desenvolvimento total ligação estabelecida entre os diversos fenô­
da inteligência humana em todas as suas diver­ menos particulares e alguns fatos gerais, dos
sas esferas de atividade, desde seu primeiro quais os progressos da ciência tendem pouco
mais simples movimento até nossos dias, creio a pouco a diminuir o número.
ter descoberto uma grande lei fundamental, O sistema teológico chegou à mais alta
à qual está submetido por uma necessidade perfeição de que é suscetível, quando substituiu
invariável, e que me parece que possa ser soli­ a ação providencial de um ser único ao jogo va­
damente estabelecida, tanto sobre provas racio­ riado das numerosas divindades independentes
nais fornecidas pelo conhecimento de nossa or­ que foram imaginadas primitivamente. Do mes­
ganização, como sobre as verificações históricas mo modo, o último termo do sistema metafísico
que resultam de um exame atento do passado, consiste em conceber, no lugar de diversas
fl lei consiste nisto, que toda nossa concepção entidades particulares, uma só grande entidade
principal, todo alvo de nossos conhecimentos, geral, a natureza, vista como o fonte única de
passa sucessivamente por três estágios teóricos todos os fenômenos. Analogamente, a perfeição
diversos: o estágio teológico ou fictício, o está­ do sistema positivo, para a qual ele tende sem
gio metafísico ou abstrato, o estágio científico cessar, embora seja muito provável que não
ou positivo. €m outros termos, o espírito huma­ deva jamais atingi-la, é a de poder representar-
no, por sua natureza, usa sucessivamente, em se todos os fenômenos suscetíveis de observa­
cada uma de suas pesquisas, três métodos de ção como casos particulares de um só fato geral,
filosofar, cuja característica é essencialmente como, por exemplo, o da gravitação universal.
diversa e também radicalmente oposta: primeiro Não é este o lugar oportuno para dar uma
o método teológico, depois o método metafísico demonstração especial desta lei fundamental
e por fim o método positivo. Daí três tipos de do desenvolvimento do espírito humano e dela
filosofias, ou sistemas gerais de concepções so­ deduzir as conseqüências mais importantes. Tra­
. , . . -,13
Capítulo decimo quinto - O positivism o s o c io ló g ic o e utilitarista ~

— ► -----------------------------------------
taremos diretamente delas, com toda a exten­ da os fenômenos sociais. Resta, portanto,
são conveniente, na parte deste curso relativa "levar a termo o sistema das ciências de
ao estudo dos fenômenos sociais. l\lão a tomo observação, fundando a física social". Csta
em consideração a não ser para determinar com - afirma Comte, o pai da sociologia - "é hoje
precisão o verdadeiro caráter da filosofia posi­ [...] a maior e mais premente necessidade de
tiva, em oposição às outras duas filosofias que nossa inteligência".
sucessivamente dominaram, até estes últimos
séculos, todo o nosso sistema intelectual. Quan­
to ao presente, para não deixar totalmente sem Os fenômenos astronômicos, em primeiro
demonstração uma lei de tal importância, cujas lugar, sendo os mais gerais, os mais simples e
aplicações se apresentarão no âmbito inteiro os mais independentes de todos os outros, e
deste curso, devo limitar-me a uma indicação sucessivamente, pelas mesmas razões, os fenô­
rápida dos motivos gerais mais notáveis que menos da física terrestre propriamente dita, os
podem fazer constatar sua exatidão. da química e, enfim, os fenômenos fisiológicos,
Cm primeiro lugar, é suficiente, parece- foram referidos às teorias positivas.
me, enunciar tal lei, para que sua justeza seja C impossível fixar a origem precisa desta
imediatamente verificada por parte de todos revolução; porque pode-se dizer com exatidão,
aqueles que têm algum conhecimento apro­ assim como de todos os outros grandes eventos
fundado da história geral das ciências. Não há humanos, que ela se realizou através de um
uma sequer, de fato, que tenha hoje chegado processo constante, particularmente depois dos
ao estágio positivo, que cada um não possa estudos de Aristóteles e da escola de Alexan­
facilmente representar-se, no passado, como dria e, em seguida, depois da introdução das
essencialmente composta de abstrações metafí­ ciências naturais na Curopa ocidental por obra
sicas e, lançando-se ainda mais para trás, com­ dos árabes. Todavia, visto que convém fixar
pletamente dominada pelas concepções teoló­ uma época para evitar divogações, indicarei
gicas. Teremos também, infelizmente, mais de a do grande movimento impresso ao espírito
uma ocasião formal para constatar, nas diversas humano, dois séculos atrás ou mais, pela
partes deste curso, que as ciências mais aper­ ação combinada dos preceitos de Bacon, das
feiçoadas conservam ainda hoje traços muitís­ concepções de Descartes e das descobertas
simo evidentes dos dois estágios precedentes. de Galileu, como o momento em que o espí­
Csta revolução geral do espírito humano rito da filosofia positiva começou a se afirmar
pode, por outro lado, ser facilmente constatada no mundo, em oposição evidente ao espírito
hoje, de modo claríssimo, ainda que indireto, teológico e metafísico, é então, com efeito,
considerando o desenvolvimento da inteligência que as concepções positivas foram claramente
individual. A partir do momento que o ponto de libertadas da amarra supersticiosa e escolástica
partida é necessariamente o mesmo na educa­ que deturpava o verdadeiro caráter dos estudos
ção do indivíduo e na da espécie, as diversos precedentes.
fases principais da primeira devem representar A partir desta época memorável, o movi­
as épocas fundamentais da segunda. Ora, cada mento de ascensão da filosofia positiva, e o
um de nós, contemplando a própria história, movimento de decadência da filosofia teoló­
não recorda que foi sucessivamente, quanto o gica e metafísica, foram muito importantes. Por
suas noções mais importantes, teológico em sua fim, de tal forma se acentuaram que se tornou
infância, metafísico em sua juventude, e físico impossível, hoje, pora todos os observadores
em sua maturidade? que têm consciência de seu século, desconhecer
R. Comte, a destinação final da inteligência humana aos
Curso de filosofia positiva. estudos positivos, ao mesmo tempo que seu
distanciamento é doravante irrevogável pelas
vãs doutrinas e pelos métodos provisórios que
podiam convir apenas a seu impulso inicial.
2 fl construção do sociologia Desse modo, esta revolução fundamental se
realizará necessariamente em toda a sua ex­
como física social tensão. Se, portanto, lhe resta ainda alguma
grande conquista a fazer, algum alvo principal
Os fenômenos astronômicos, os físicos, do domínio intelectual a invadir, pode-se estar
os químicos e os fisiológicos são vistos por certos de que a transformação aí se verificará,
Comte como já capturados dentro da ciência assim como se verificou em todas as outras
positiva. Fora da ciência positiva estão ain- esferas. Na verdade, seria evidentemente
contraditório supor que o espírito humano, tão
Sexta parte - O p o sitivi s m o n a c u lt u r a e u r o p é i a

disposto à unidade do método, conservasse todo fenômeno suscetível de observação não


indefinidamente, para uma só classe dos fe­ pode evidentemente deixar de entrar em uma
nômenos, seu modo primitivo de filosofar, uma das cinco grandes categorias então estabe­
vez que chegou a adotar para todo o resto um lecidas dos fenômenos astronômicos, físicos,
novo procedimento filosófico, de um caráter químicos, fisiológicos e sociais. Tendo todas as
inteiramente oposto. nossas concepções fundamentais se tornado
Tudo se reduz, portanto, a uma simples homogêneos, a filosofia estará definitivamente
questão de fato: a filosofia positiva que, nos constituído em seu estágio positivo; sem jamais
últimos dois séculos, assim se estendeu, abraça, poder mudar de caráter, não lhe restará mais
hoje, toda ordem de fenômenos? € evidente que desenvolver-se indefinidamente por meio
que isto não aconteceu e que, por conseguinte, das aquisições sempre crescentes que resulta­
resta ainda uma grande operação científica a rão inevitavelmente de novas observações e
ser realizada, para dar à filosofia positiva o de meditações mais profundas.
caráter de universalidade indispensável à sua fl. Comte,
constituição definitiva. Curso de íilosoíio positiva.
Com efeito, nas quatro categorias princi­
pais de fenômenos naturais enumerados até
agora (os fenômenos astronômicos, físicos,
químicos e fisiológicos) nota-se uma lacuna
essencial, relativa aos fenômenos sociais, que,
embora compreendidos implicitamente entre
os fenômenos fisiológicos, merecem, por sua
importância e pelas dificuldades de seu estudo,
formar uma categoria distinta. [...]
Cis, portanto, a grande, mas, evidente­
mente, a única lacuna que é preciso preencher,
para levar a termo a constituição da filosofia
positiva. Agora que o espírito humano fundou a
física celeste, a física terrestre, tanto mecânica
quanto química, a física orgânica, tanto vege­
tal como animal, resta-lhe levar à realização o
sistema das ciências de observação, fundando
a físico social. Csta é, hoje, de muitos pontos
de vista de capital importância, a maior e mais
premente necessidade de nossa inteligência: CATÉCHISME POSITIVISTE.
esta é, ouso dizer, a primeira finalidade deste
curso, seu fim particular.
fls concepções que tentarei apresentar
sobre o estudo dos fenômenos sociais, dos
quais espero que este curso deixe já entrever o
germe, não podem aspirara dar imediatamente
à física social o mesmo grau de perfeição que
têm os ramos precedentes da filosofia natural, Dedicatória autografa posta por Comte
coisa evidentemente quimérica, pois estas apre­ na página de rosto de uma cópia de seu
sentam já entre si, deste ponto de vista, uma Catecismo positivista.
dessemelhança extrema, por outro lado inevi­ Notemos o nome do mês (“Aristóteles”),
tável. Mas elas estarão destinadas a imprimir a conforme o novo calendário positivista,
esta última classe de nossos conhecimentos o dedicando-os
que renomeava os meses, .
caráter positivo já tomado por todas as outras. para o avançoaos personagens que contribuíram
do gênero humano
Se esta condição for de uma vez satisfeita, o (a partir de Moisés e Orfeu,
sistema filosófico dos modernos estará, final­ aos quais estão associados
mente, fundado em seu conjunto, uma vez que os primeiros dois meses).
, . . . 315
Cãpltulo décimo quinto - O p o sr+ iv ism o s o c i o l ó g i c o e uti! R a c is t a —

gênios mais seletos, os quois acharão sempre


J. S. M il l mois vantajoso abraçor uma profissão liberal, ou
de pôr-se a serviço da sociedade e das grandes
empresas privadas. Não seria de admirar que
tal observação fosse feita pelos partidários do
projeto, para acenara uma de suas dificuldades
3 Por que é necessário principais; mas é verdadeiramente estranho que
sejo feita, ao contrário, pelos opositores. Aquilo
restringir a intervenção que se aduz como objeção é antes a válvula
do Cstado de segurança do sistema proposto. Não há
dúvida, de fato, que onde o Governo pudesse
ter o seu serviço os melhores gênios do país,
"O mol começo quando o Governo, em um desígnio que pudesse levor a este resul­
vez de encorajar o ação dos indivíduos e dos tado inspiraria justamente muita inquietação.
corpos coletivos, substitui a atividade deles Se todos os ossuntos de um povo, que exigem
por suo próprio". uma organização harmonizada e vistas amplas
e compreensivas, caíssem nas mãos do Gstado,
e se todos os homens mois capazes entrassem
R último 0 mais Porte rozõo poro restringira nos empregos públicos, toda cultura de espíri­
intervenção do fetado é o grave dono que deri­ to e todo conhecimento, exceto nos matérias
va do aumento de seu poder sem necessidade. puramente especulativos, se concentrariam
Toda atribuição que se acrescento às tontas que em numerosa burocracia, da qual o resto da
agora tem, aumenta o fatal influência que ele comunidade esperaria tudo. As massas dele
já exerce sobre temores e sobre esperanças receberiam a direção e o impulso; os homens
dos governados, e transformo sempre mois a inteligentes e ativos, os progressos e o a
parte ativa e ambiciosa deles em pessoas de­ riqueza pessoal. O ser admitido no fila desta
pendentes do Governo ou do partido que mira burocracia, e depois admitido de aí se elevar,
a mesmo coisa. Se os meios de comunicação, se tornaria o único objeto de ambição. Gm um
as estradas de ferro, os bancos, as companhias (Estado dirigido deste modo, não só o público
de seguro, os grandes sociedades anônimas, seria incapaz de supervisionar e julgar a ação
as universidades e os estabelecimentos de dos governantes oficiais; mas, além disso, 50
beneficência fossem tontos ramos do serviço do os acontecimentos em um Governo despótico,
governo; se os representações municipais e os ou o desenvolvimento notural das instituições
conselhos locais, com todas as suas atribuições, populores em um Gstado livre, fizessem sentir
se reduzissem a outras tantas subdivisões do a necessidade de alguma reformo, nenhuma
poder central: se os empregados destas di­ delas se poderia realizar se fosse contrária aos
versas instituições fossem nomeados 0 pagos interesses da burocracia. Tal é a triste condição
pelo Governo, 0 0sperassem que do Governo do Império russo, conforme os relatos de pes­
viesse seu progresso, o liberdade de imprensa soas que tiveram a oportunidade de estudá-lo
e a mais popular constituição política não bas­ in loco. O próprio czar é impotente contra a
tariam para impedir, à Inglaterra ou o qualquer classe burocrática. Gle pode relegar cada um
outro pois, de ser livres de nome, mas, de fato, de seus membros na Sibéria, mas não pode
servos. £ quanto mais o mecanismo administra­ governar sem a burocracia e contra o burocracia,
tivo estivesse organizado com eficácia e com (ísta pode pôr um veto tácito sobre todos os
sabedoria, quanto mais fossem engenhosos seus decretos, simplesmente obstendo-se de
os meios para atrair as cabeças e as mãos executá-los. Nos países, 00 contrário, onde o ci­
mois capazes de pô-lo em movimento, tonto vilização é mais avançada e mais vivo o espírito
maior seria o mal. Na Inglaterra se propunha dos reformas, o público, acostumado a esperar
ultimamente nomear todo o pessoal das admi­ tudo do Gstado, ou, pelo menos, o nada fazer
nistrações públicas por concurso, com a finali­ por si até que o Gstado não só lhe conceda a
dade de poder ter nos empregos as pessoas permissão, mos não lhe tenha também traçado
mais inteligentes e mais instruídas que fosse o caminho, considera naturalmente o Governo
possível. Muito se disse e se escreveu o favor como responsável por tudo o que lhe desa­
e contra est0 projeto. Um dos argumentos sobre grada; e se um belo dia perde a paciência, se
o qual mais insistiam aqueles que o combatiam, sublevo contra ele, e faz aquilo que se chama
era que a posição de empregado governativo uma revolução, depois da qual um homem, com
vitalício não oferece suficiente perspectivo de ou sem a aprovação da noção, se opodera do
gonho e de consideração moral para atrair os poder, manda suas ordens à burocracia, e tudo
Sextã parte - O p o s itiv is m o v\a c u l t u r a e-uropé-ict

procede aproximadamente como antes, uma vez em lugar deles os trabalhos deles. A virtude
que a burocracia não foi mudada, e ninguém é do ístado, a largo prazo, é a virtude dos indiví­
capaz de substituí-la. duos que o compõem, e o êstado que pospõe
Gspetáculo bem diferente apresentam, o desenvolvimento intelectual dos indivíduos à
ao contrário, os povos que estão habituados a vã aparência de maior regularidade na prática
resolver por si os próprios assuntos. Na França, minuta dos assuntos, o êstado que apequena
por exemplo onde uma grande quantidade de o povo paro dele fazer um dócil instrumento
cidadãos fizeram parte do exército, e muitos de seus projetos, mesmo que generosos, aca­
tendo aí prestado serviço com o grau ao menos bará muito depressa por perceber que não é
de suboficiais, encontram-se em todas as insur­ possível fazer grandes coisas com pequenos
reições populares muitíssimas pessoas capazes homens, e que o mecanismo, à cuja perfeição
de pegar em armas e improvisar um discreto tudo sacrificou, não lhe servirá para mais nada,
plano de ação. Os americanos são para os por falta do espírito vital que tiver desejado
assuntos civis aquilo que os franceses são para deliberadamente destruir com o propósito de
os assuntos militares. Suprimi seu Governo, e facilitar seus movimentos.
uma sociedade qualquer de americanos poderá J. S. Mill.
organizar outro no mesmo instante, e conduzir Sobre o liberdade.
os negócios públicos com suficiente inteligência,
ordem e firmeza. Assim deve ser um povo livre.
Um povo que adquire estas atitudes tem asse­
gurados para sempre suas liberdades; ele não
se deixará mais submeter por uma pessoa ou
por uma casta, pelo motivo que apenas estas
são capazes de deter as rédeas da adminis­ AÜGUSTE COMTE
tração central. Não há burocracia que possa
obrigar tal povo a sofrer aquilo que não lhe
agrada; enquanto, ao contrário, nos ístados t»
onde a burocracia é tudo, nada se pode fazer
sem que ela saiba ou aprove. Nos países assim POSITIVISM
constituídos, a experiência e o habilidade prá­
tica da nação tornam-se um monopólio deste
corpo disciplinado para governar todo o resto, e
quanto mais sua organização é perfeita, quanto
mais consegue atrair para si tudo aquilo que
há de bom e de melhor no lugar, tanto maior B I J O H N S T Ü A E T HIL!
e total a servidão universal, não excluindo os
próprios indivíduos que pertencem à burocracia,
apesar de os governantes se tornarem escra­
vos de sua organização e de sua disciplina, iiH u n t i u rmm t h * w w n tn isr** rsv b w .

da mesma forma que os governados pelos


governantes. [...]
Um Governo não pode jamais ter o sufi­
ciente daquele tipo de atividade, que não im­
pede, mos ajuda e estimula a iniciativa privada LONDO N;

e os esforços individuais. O mal começa quando H. T R Ü B N B R * CO., 60, P A T E E N 0 8 T K R ROW.

o Governo, em troca de encorajar a ação dos IMS.

indivíduos e dos corpos coletivos, substitui a sua


própria à atividade deles: quando, ao invés de
instruí-los, de aconselhá-los ou, quando neces­ Frontispício do ensaio de J. S. Mill
sário, de denunciá-los diante dos tribunais, os Auguste Comte e o positivismo,
deixa de lado, dificulta sua liberdade, ou faz em uma edição de 1865.
C a p ít u lo d é c im o s e x t o

O posifivismo evolucionis+a
e ma+enalisfa

I. O p o s ifiv is m o evolu cion is+ a


d e 'Hei^beH' S p e n c e ^

• Em 1852 - ou seja, sete anos antes que Darwin publicasse a Origem das espé­
cies - Herbert Spencer (1820-1903) propusera uma concepção evolucionista própria
em A hipótese do desenvolvimento. De 1855 são os Princípios de
psicologia, nos quais se dá amplo espaço à teoria evolutiva. Os A realidade
primeiros princípios foram publicados em 1862: nessa obra a teoria última
evolutiva se apresenta como grandiosa metafísica do universo. é incognoscível
Já no primeiro capítulo da obra, Spencer enfrenta o problema e o universo
da relação entre religião e ciência. Pois bem, uma e outra - afir­ é um mistério
ma Spencer - nos fazem compreender que a realidade última é ^ § 1
incognoscível e que o universo é um mistério: enquanto a tarefa
das religiões consiste em manter vivo o sentido do mistério, a tarefa da ciência é
a de impulsionar sempre mais para frente o conhecimento do relativo, sem jamais
presumir capturar o absoluto.
• Entre religião e ciência, a filosofia, para Spencer, é "o conhecimento do mais
alto grau de generalidade". Isso significa que a filosofia "compreende e consolida"
as mais amplas generalizações da ciência. A filosofia é, portanto,
a ciência dos primeiros princípios.
Por conseguinte - lembra Spencer - ela deve partir dos princí­ Acomo filosofia
ciência
pios mais elevados a que a ciência chegou e que, a seu ver, são: dos princípios
a) a indestrutibilidade da matéria; primeiros.
b) a continuidade do movimento; O sumo
c) a persistência da força. princípio
Tais princípios se referem a todas as ciências e encontram sua da evolução
unificação no princípio mais geral que seria o "da redistribuição —»§ 2-4
contínua da matéria e do movimento".
A lei de tal incessante e geral mudança é a lei da evolução, cujas características
essenciais são as de ser:
a) uma passagem de uma forma menos coerente para uma mais coerente;
b) uma passagem do homogêneo para o heterogêneo;
c) uma passagem do indefinido para o definido.
• A evolução em biologia, na visão de Spencer, é uma res- . .
posta por parte dos organismos ao desafio do ambiente por
meio da diferenciação dos órgãos (e isto é Laplace), e uma orgânico
seleção natural destes organismos mudados que favorece a e humano
sobrevivência do mais adaptado (e aqui Spencer está de acordo § 4-6
com Darwin).
Sexta parte - O p o sitivi s m o c u lt u r a e u r o p é i a

No campo da psicologia Spencer avança a tese de que aquilo que é a priori para
o indivíduo é a posteríori para a espécie, no sentido de que comportamentos inte­
lectuais uniformes são experiência acumulada pela espécie em seu desenvolvimento
e transmitida por hereditariedade na estrutura orgânica do sistema nervoso.
Por fim, em O homem contra o Estado (1884) e nos Princípios de sociologia
(1876-1896) Spencer sustenta que a sociedade existe para os indivíduos e não
vice-versa. E considera os princípios éticos como instrumentos de sempre melhor
adaptação do homem às condições de vida.

1 R e lig iã o e c iê n c ia um projeto de Sistema de filosofia, que


deveria abranger todo o cognoscível. Fixou
s ã o ^ c o r r e l a t a s ’'’
Os primeiros princípios desse sistema em
um volume que apareceu em 1862, no qual
a teoria evolutiva se apresenta como gran­
Charles Darwin publicou A origem das diosa metafísica do universo, dando lugar
espécies em 1859. Antes, porém, em 1852, a uma concepção otimista do devir, visto
Herbert Spencer (1820-1903) publicara a como progresso irreprimível.
Hipótese do desenvolvimento, que apresenta Já no primeiro capítulo, Os primeiros
uma concepção evolucionista. Em 1855 princípios tratam da complexa e delicada
apareciam os Princípios de psicologia, em questão das relações entre religião e ciência.
que a teoria evolucionista era desenvolvida De acordo com William Hamilton (filósofo,
amplamente. E em 1860 Spencer anunciou nascido em 1788 e falecido em 1856, que
divulgara na Inglaterra a filosofia alemã do
romantismo), Spencer sustenta que a reali­
dade última é incognoscível e que o universo
é um mistério.
Isso, afirma Spencer, é atestado pela
religião e pela ciência. Toda teoria religiosa
“ é uma teoria a priori do universo” , e todas
as religiões, prescindindo de seus dogmas
específicos, reconhecem que “ o mundo, com
tudo aquilo que contém e que o circunda,
é mistério que pede explicação, e que a po­
tência de que o universo é manifestação é
completamente impenetrável” . Por outro
lado, na pesquisa científica, “ por maior que
seja o progresso feito na vinculação dos fa­
tos e na formação de generalizações sempre
mais amplas [...], a verdade fundamental
continua mais inacessível do que nunca [...].
M ais do que qualquer outro, o cientista vê
com certeza que nada pode ser conhecido em
sua última essência” . Os fatos são explica­
dos; as explicações, por seu turno, também
são explicadas; mas haverá sempre uma ex­
plicação a explicar; por isso, a realidade úl­
tima é e permanecerá sempre incognoscível.
Assim, as religiões atestam “ o mistério
que sempre exige ser interpretado” e as
ciências remetem a um absoluto que elas,
como conhecimentos relativos, jamais cap­
Herbert Spencer (IS 2 0 -1903) tarão. M as o absoluto existe, caso contrário
foi o teórico da evolução não poderíam os falar de conhecimentos
do universo compreendido como passagem relativos. E, por outro lado, “ nós podemos
do homogêneo para o heterogêneo. estar seguros de que as religiões, ainda que
' ^ 319
Cãpltulo décitTlO sexto - O p o s itiv is m o e v o lu c io n is t a e m a t e r ia lis t a

nenhuma seja verdadeira, são todas, porém, positivo. Entretanto, diz Spencer, tais con­
pálidas imagens de uma verdade” . trastes estão destinados a se atenuar sempre
Por tudo isso, religião e ciência são mais com o tempo. E “ quando a ciência
conciliáveis: ambas reconhecem o absoluto estiver convencida de que suas explicações
e o incondicionado. M as, se a função das são próximas e relativas e a religião estiver
religiões é manter vivo o sentido do mistério, convencida de que o mistério que ela con­
a função da ciência é a de estender sempre templa é absoluto, reinará entre ambas uma
para além o conhecimento do relativo, sem paz permanente” .
nunca captar o absoluto. Para Spencer religião e ciência são cor­
E se a religião erra ao se apresentar relatas. Elas são “ como que o pólo positivo
como conhecimento positivo do incognos- e o pólo negativo do pensamento: um não
cível, a ciência erra ao pretender incluir o pode crescer em intensidade sem aumentar
incognoscível no interior do conhecimento a intensidade do outro” . E, observa agu­
damente Spencer, se a religião teve “ o mérito
elevado de ter entrevisto desde o início a
verdade última e nunca ter deixado de nela
insistir” , também é verdade que foi a ciência
■ In c o g n o s c ív e l. O term o foi usa­
do prim eiro por W illiam Ham ilton que ajudou ou forçou a religião a se purificar
(1788-1856), um filósofo que fizera de seus elementos não-religiosos, como os
conhecer na In glate rra a filo so fia elementos animistas e mágicos. [T]
alemã do romantismo. Para Hamilton,
dizer "incognoscível" eqüivale a dizer
absoluto ou infinito, um absoluto que
pode ser objeto de fé, mas não de 2j| CD p a p e l d a f i lo s o f i a
conhecimento. no p e n s a m e n to d e S p e n c e r
Spencer retoma o term o de Hamilton
e, substancialm ente de acordo com
ele, afirm a que a realidade últim a é
incognoscível. Toda teoria religiosa M as qual o lugar e qual a função da
- escreve Spencer - "é uma teoria a filosofia no pensamento spenceriano? Em
priori do universo"; e todas as religiões Os primeiros princípios, a filosofia é defi­
reconhecem que o mundo "é um mis­ nida como “ o conhecimento do mais alto
tério que pede uma explicação, e que grau de generalidade” . Para Spencer, as
a potência da qual o universo é uma verdades científicas desenvolvem, ampliam
m anifestação é totalm ente impene­
trável". Por outro lado, o cientista que e aperfeiçoam os conhecimentos do senso
avança de generalizações em gene­ comum. Entretanto, elas existem separadas,
ralizações sempre mais amplas, sabe até quando, em um processo contínuo de
m uito bem - precisa Spencer - que unificação, são agrupadas e logicamente
"a verdade fundam ental permanece organizadas a partir de algum princípio
mais inacessível que nunca [...]. Mais fundamental de mecânica, de física m o­
do que qualquer outro, o cientista lecular, e assim por diante. Pois bem, “ as
sabe com segurança que nada pode verdades da filosofia têm [...] com as mais
ser conhecido em sua essência última".
Portanto: religião e ciência são corre­ altas verdades da ciência a mesma relação
latas. E enquanto a tarefa da religião que cada uma delas tem com o as mais
é a de manter vivo o sentido do abso­ humildes verdades científicas. Como toda
luto, a tarefa da ciência é a de levar ampla generalização da ciência abrange e
sempre mais à frente a pesquisa do consolida as mais estritas generalizações
relativo, com sempre mais acentuada de suas próprias partes, da mesma forma
consciência de jam ais captar o abso­ as generalizações da filosofia abrangem e
luto. Apenas em tal perspectiva se
atenuarão os contrastes entre religião
consolidam as amplas generalizações da
e ciência, e "quando a ciência estiver ciência” .
convicta de que suas explicações são A filosofia, portanto, é a ciência dos
próximas e relativas, e a religião esti­ primeiros princípios, onde se leva ao limite
ver convicta de que o mistério que ela extremo o processo de unificação do conhe­
contempla é absoluto, reinará entre cimento: “ o conhecimento de ínfimo grau é
elas uma paz permanente". não unificado; a ciência é um conhecimento
parcialmente unificado; a filosofia é conhe­
cimento completamente unificado” .
Sextü parte - O p o s i+ iv is m o v\a c u l+ u m e u r o p é i a

Para alcançar esse objetivo, a filosofia acompanhada por dispersão de movimento,


não pode deixar de partir dos que são os em que a matéria passa de uma homoge­
princípios mais vastos e gerais a que a ciên­ neidade indefinida e incoerente para uma
cia chegou. Para Spencer, tais princípios são: heterogeneidade definida e coerente, ao
a) a indestrutibilidade da matéria; passo que o movimento contido sofre uma
b) a continuidade do movimento; transformação paralela.
c) a persistência da força.
Princípios desse tipo não são próprios
A_ O e v o lu c io n ism o e m b io lo q ia
de uma só ciência, pois interessam a todas
as ciências. E, por outro lado, são unificados
em um princípio mais geral, que, na opinião A evolução do universo é um processo
de Spencer, é o “ da distribuição contínua da necessário. O ponto de partida da evolução
matéria e do movimento” . N a realidade, es­ é a homogeneidade, que é um estado ins­
creve ele, “ o repouso absoluto e a permanên­ tável. E “ em todos os casos encontramos
cia absoluta não existem; todo objeto, bem progresso em direção ao equilíbrio” . N o que
como a reunião de todos os objetos, sofre a se refere ao homem, “ a evolução só pode ter­
cada instante alguma mudança de estado” . minar [...] com o estabelecimento da maior
A lei dessa incessante e geral mudança é a perfeição e da mais completa felicidade” .
lei da evolução. Naturalmente, as condições de equilíbrio
podem não durar, podem desaparecer e se
destruir, mas também a condição de caos e
3 A e v o lu ç ã o d o u n iv e rso : dissolução não pode ser definitiva, já que
dela se inicia novo processo de evolução.
do
I 1komoge
✓Nneo
Portanto, o universo progride, e progride
ao ke+erogên eo para melhor. Aí reside o otimismo do posi­
tivismo evolucionista de Spencer.
Spencer apresenta uma visão metafísica
Foi em 1857, em um artigo sobre o do evolucionismo. M as ele também tentou
progresso, que Spencer introduziu pela pri­ especificar sua teoria em vários e precisos
meira vez no vocabulário filosófico-científico terrenos. N o que se refere à biologia, Spen­
o termo “ evolução” . Dois anos depois, Dar­ cer sustenta que a vida consiste na adaptação
win tornou o termo célebre com seu livro dos organismos ao ambiente, que, mudando
sobre a evolução das espécies por obra da continuamente, os desafia. Os organismos
seleção natural. M as, enquanto Darwin se respondem a esse desafio diferenciando seus
limita à evolução dos seres vivos, Spencer órgãos. É assim que Spencer reconhece o
fala de evolução do universo. princípio de Lam arck, segundo o qual a
Conforme Spencer, as características função, isto é, o exercício prolongado de
essenciais da evolução são três: uma reação específica do ser vivo, precede
1) A primeira característica da evolução e, lentamente, produz a determinação dos
é que ela é passagem de uma forma menos órgãos. Depois, uma vez que o ambiente
coerente a uma mais coerente (por exemplo, agiu sobre o ser vivo, produzindo estruturas
o sistema solar, que saiu de uma nebulosa). e órgãos diferenciados, então a seleção natu­
2) A segunda característica fundamen­ ral — sobre a qual Spencer pensa como Dar­
tal é a de que ela é passagem do homogêneo win — favorece “ a sobrevivência do mais
ao heterogêneo. Este fato, sugerido a Spencer adaptado” . Sobre a questão da derivação
pelos fenômenos biológicos (as plantas e os da vida orgânica a partir da vida inorgânica,
animais se desenvolvem diferenciando órgãos Spencer inclina-se a considerar que a vida
e tecidos diversos), vale também para o desen­ orgânica tenha origem em uma massa que,
volvimento de qualquer âmbito da realidade. embora indiferenciada, possui no entanto a
3) A terceira característica da evolução capacidade de se organizar.
é que ela é passagem do indefinido ao defini­
do, como no caso da passagem de uma tribo
selvagem a um povo civilizado, onde tarefas
e funções estão claramente especificadas.
5 O e v o lu c io n ism o e m p s ic o lo g ia

Determinadas as características da evo­


lução, Spencer lhe dá a seguinte definição: Diversamente de Comte, Spencer pensa
“A evolução é uma integração de matéria que a psicologia seja possível como ciência
Cãpltulo décimo sexto - O p o s itiv is m o e v o lu c io n is t a e m a t e r ia lis t a

autônoma. Sua função é examinar as m a­ Todavia, recorda Spencer (e essa ques­


nifestações psíquicas dos graus mais baixos tão é de grande interesse), aquilo que é a
(por exemplo, os movimentos reflexos) para priori para o indivíduo é a posteriori para
chegar às formas mais evoluídas, como se a espécie, no sentido de que determinados
manifestam na criação das obras de arte comportamentos intelectuais uniformes e
ou no trabalho de pesquisa dos grandes constantes são produto da experiência acu­
cientistas. mulada da espécie em seu desenvolvimento,
Além d isso , Spencer reconhece na que é transmitida por hereditariedade na
consciência humana elementos a priori, no estrutura orgânica do sistem a nervoso.
sentido de que são independentes da expe­ Ao contrário de Kant, neste caso a priori
riência singular e temporal do indivíduo. não eqüivale a válido: não está excluído
N esse sentido, portanto, Leibniz e Kant que experiências e esquemas fixos e her­
teriam razão. dados possam estar errados e que possam
mudar.

6 O e v o lu c io n ism o
em so c io lo g ia e em é tic a

Ainda diferentemente de Comte, Spen­


cer concebe uma sociologia orientada para
a defesa do indivíduo. Tanto em O homem
contra o Estado (1884) como em Estática
social (1850, reeleborado em 1892), e nos
Princípios de sociologia (1876-1896), Spen­
cer sustenta que a sociedade existe para os
indivíduos e não vice-versa, e que o desen­
volvimento da sociedade é determinado pela
realização dos indivíduos.
A ética de Spencer é uma ética natura-
lista-biológica, que nem sempre concorda
com a ética utilitarista de Bentham e dos
dois Mill.
Princípios éticos, normas e obrigações
morais são instrumentos de sempre melhor
adaptação do homem às condições de vida.
E a evolução, acumulando e transmitindo
por hereditariedade experiências e esquemas
de comportamento, fornece ao indivíduo
a priori morais que, precisamente, são a
priori para o indivíduo, mas a posteriori
para a espécie.
E como alguns comportamentos essen­
ciais para a sobrevivência da espécie (prote­
ger a própria mulher, educar os filhos etc.)
já não têm o peso da obrigação, também
ocorrerá com o progresso da evolução para
Herbert Spencer em uma gravura de H. Thinat. os outros “ deveres” morais: “ As ações mais
O filósofo,
elevadas, requeridas para o desenvolvimento
aplicando seus princípios evoluciomstas
à ética e à sociologia,
harmônico da vida, serão fatos tão comuns
sustentou que a sociedade existe como hoje o são as ações inferiores às quais
para os indivíduos e não vice-versa. nos impele o simples desejo” .
Sexta patte - O p o s itiv is m o n a c u l+ u r a e-u rop é-ia

SPENCER
O POSITIVISMO EVOLUCIONISTA

pela RELIGIÃO,
cuja tarefa é manter R e l ig iã o
sempre intacto o sentido E CIÊNCIA
do mistério SÃO, PORTANTO,
O Absoluto, f CONCILIÁVEIS:
a realidade última, existe / am bas
pela CIÊNCIA, reconhecem
e permanece incognoscível p ara o homem: A
o universo é um mistério cuja tarefa é estender a existência
sempre além do A bsoluto,
Isso é atestado o conhecimento m as não
do relativo, o conhecem
porém sem jamais
captar o Absoluto

. A _______ ___
A ciência m ostra que

1) a biologia- - i- a vida consiste na adaptação contínua dos organismos ao ambien­


te, e a seleção natural favorece a sobrevivência do mais hábil;
2) a psicologia r na consciência humana há elementos a priori, independentes da
experiência singular e temporária do indivíduo; mas aquilo que
é a priori no indivíduo é a posteriori na espécie, é o produto
da experiência acumulada da espécie em seu desenvolvimento
e transmitida por hereditariedade na estrutura orgânica do
sistema nervoso;
3) a sociologia -a sociedade gradualmente se desenvolveu do regime militar (em
que o Estado domina sobre os indivíduos) para o regime industrial
(caracterizado pela atividade independente dos indivíduos);
4) a ética- - - a evolução fornece aos indivíduos a priori morais (a posteriori
para a espécie), instrumentos de sempre melhor adaptação do
homem às condições de vida.

pela f i l o s o f i a , :
1 que é a ciência dos primeiros princípios, i
■- —. ► em que se leva ao limite extremo o processo
de unificação do conhecimento i

____ '_ . .... I __..... ...;......................... .................. ............. .


Sendo superior ao conhecimento comum (que é não unificado)
e à própria ciência (que é parcialmente unificada),
a filosofia parte do princípio científico mais geral: "
a redistribuição contínua da matéria e do movimento \
segundo a lei da evolução do universo e de suas partes I
♦ ..................... : ' .
a e v o lu ç ã o é ;
uma integração de matéria acompanhada pela dispersão de movimento, \
em que a matéria passa de uma homogeneidade incoerente e indefinida para uma heterogeneidade
coerente e definida, enquanto o movimento contido sofre uma transformação paralela
A EVOLUÇÃO DO UNIVERSO É UM PROCESSO NECESSÁRIO QUE PROGRIDE PARA O MELHOR
Capítulo décimo sexto - O p o sitiv ism o e v o lu c io n ista e m a te r ia lista

zz= : II. O positivi sm o na CJtàlia, -------


c o m p a r t ic u la r a t e n ç ã o a o p e n s a m e n to
d e "R o b e r to y \ r d ig ò

• Na Itália o positivismo - com sua particular atenção no desenvolvimento e nos


métodos das ciências e com sua aversão em relação às metafísicas da transcendência
- deu seus melhores frutos na reflexão sobre a criminologia com
César Lombroso (1836-1909), na pedagogia com Aristides Gabelli A contribuição
(1830-1891) e André Angiulli (1837-1890), em historiografia e dos positivistas
metodologia da historiografia com Pasqual Villari (1820-1918), italianos
em medicina e metodologia da clínica com Salvatore Tommasi - * § 1
(1813-1888) e sobretudo com Augusto Murri (1841-1932).
• Em todo caso, a figura mais representativa do positivismo italiano é Roberto
Ardigò (1828-1920). Sacerdote, deixou o sacerdócio depois de uma crise profun­
da; em 1881 foi nomeado professor na Universidade de Pádua, onde ensinou até
1908. Permanece famoso seu Discurso sobre Pietro Pomponazzi, de 1869. Outras
obras de Ardigò são: A moral dos positivistas (1879); A razão (1894); A doutrina
spenceriana do incognoscível (1899). A perspectiva positivista de
Ardigò afunda suas raízes no naturalismo italiano do século XVI Ardigò:
(com Pomponazzi ele reforça a autonomia da razão; e com Bru- "o fatoédivino"
no a divindade do universo); liga-se diretamente às concepções -»§ 2.1
positivistas e com isso põe o fato como pedra angular da própria
filosofia. "O fato tem uma realidade própria em si, uma realidade inalterável,
que somos forçados a afirmar tal e qual é dada e a encontramos, com a absoluta
impossibilidade de cortar ou acrescentar nada a ela; portanto, o fato é divino".
• Toda a realidade é natureza; e o único conhecimento válido
é o científico. Mas, se toda a realidade é natureza, certamente aToda realidade
é cognoscível - cognoscível pela ciência, embora os esforços da é natureza;
ciência jamais alcançarão a meta final. E se assim estão as coisas, e a natureza
Spencer errou, e não precisará falar de incognoscível, mas de é cognoscível
desconhecido: é desconhecido tudo aquilo que ainda não é co­ § 2.2-23 - 4

nhecido pela ciência, mas que, em princípio, poderá ser por ela
conhecido. E, ainda diversamente de Spencer - que via a evolução
como passagem do homogêneo para o heterogêneo -, Ardigò concebe a evolução
como passagem do indistinto para o distinto; assim, por exemplo, do indistinto que
é a sensação brotam as distinções entre espírito e matéria, eu e não-eu, sujeito e
objeto.
• Toda a realidade é natureza; o homem é natureza; o pensamento é fruto da
evolução da natureza, assim como a ética; os ideais e as normas éticas são - confor­
me Ardigò - respostas dos homens associados a acontecimentos ‘
e ações consideradas danosas para a sociedade, e que depois se a evolução
fixam como normas morais - implicando sanções - na consciência dos princípios
dos indivíduos. O político Ardigò foi um liberal, antimaçom, crítico éticos
do marxismo em sua componente de materialismo histórico, e ->5 2.4
com uma propensão para o socialismo.
Sexta parte - O p o s itiv is m o n a c u l+ u ^ a e u r o p é i a

; A f i lo s o f i a d e v e e s t a r l i g a d a a necessidade de relacionar a filosofia com


o desenvolvimento das teorias científicas;
c o m o d e s e n v o lv im e n to
assum iram atitude crítica em relação às
d a s te o r ia s c ien tífica s metafísicas da transcendência e do espírito,
e renovaram os estudos antropológicos,
jurídicos e sociológicos.
Embora Cattaneo e Ferrari já houves­ N a Itália, o positivismo envolveu até
sem antecipado temas positivistas, deve-se intelectuais que tiveram funções diretivas
dizer que, na Itália, o positivismo se impõe no movimento operário (Ferri), tanto que,
e se difunde sobretudo depois da unificação, como escreve M . Q uaranta, “ o próprio
aproximadamente entre 1870 e 1900, dando marxismo italiano, em sua vertente domi­
seus melhores frutos na reflexão sobre a cri- nante, configurou-se como uma variante
minologia (Lombroso), na pedagogia (Ga- positivista” . Além disso, deve-se recordar
belli e Angiulli), na historiografia (Villari) que, nesse período, nascem publicações
e na medicina (Tommasi e Murri). A figura como a “ Revista de Filosofia Científica”
de maior relevo do positivismo italiano foi (1881-1891), dirigida por Enrico Morselli,
Roberto Ardigò. O pensador positivista que se propunha como objetivo “ a vitória
estrangeiro que teve maior repercussão na do método experimental e a conjugação
Itália foi Herbert Spencer. definitiva entre filosofia e ciência também na
Contrários ao espiritualismo de filóso­ Itália” , ou como o “Arquivo de psiquiatria,
fos anteriores (Rosmini, Gioberti), e avessos ciências penais e antropologia criminal” ,
ao idealismo que se difundia na Itália meri­ fundado em 1880 por Lombroso.
dional, os positivistas italianos reafirmaram Todavia, vamos à exposição do pensa­
mento de Ardigò, que é o pensador de fato
mais significativo.

Lugtio l88t

111VISTA 2 yA p o s i ç ã o
d e R o b e r t o ^ A rd igò

HINIIh MlhllllM EDI D a s a c r a l i d a d e d a r e lig iã o


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E. M O R S E I L I à s a c r a lid a d e d o ^ a t o ”
K. A k o m n Ü, CANK8TKJN!
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Re d a t t o r e : G. BUCCOLA A figura mais representativa do posi­
tivismo italiano é Roberto Ardigò (1828­
Mértêtti. — S.* yitontt * 1»
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1920). Nascido em Casteldidone (Cremona),
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- f. ímmátm
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mM i Ardigò tornou-se padre e depois cônego da
catedral de M ântua. Por volta dos quarenta
anos, depois de profunda crise, deixou o
í# - U tHnnlmtm
H».TA AMAUT1CA. sacerdócio.
O positivismo (ou talvez, melhor, o
ftlVISTA MU ptm ooia. naturalismo) de Ardigò relaciona-se direta­
N rhéM friwwl. - JMM» • IWMft. mente com as concepções filosóficas de Spen­
FRATELLI DUMOLARD
cer, mas afunda suas raízes no naturalismo
TOIIHO
so r to iu
A MtLAKO
italiano do século XVI. Ardigò reivindica a
autonomia da razão remetendo-se a Pompo-
Ftl *0 * /
nazzi, e sente a divindade do universo com
o espírito de um Bruno.
Precisamente em 17 de março de 1869,
por ocasião da festa de seu liceu em Mântua,
Ardigò leu um Discurso sobre Pedro Pompo-
nazzi, vendo no naturalismo renascentista de
Frontispício do primeiro número Pomponazzi um precedente do positivismo.
da “Revista de filosofia científica", Em 1870, portanto, no ano seguinte
dirigida por E. Morselli. ao Discurso sobre Pomponazzi, Ardigò leu
C a p ítu lo d é c im o s e x to - O p o sitiv i s m o e v o lu c io n is t a e m a t e W a lis f a

diante da Academia virgiliana de M ântua o gia: péras = limite), no sentido de que supera
escrito A psicologia como ciência positiva. os limites das ciências particulares para
Aqui, seu pensamento já se mostra orgâ­ atingir, mediante a intuição (que é sensação
nico e consistente. Contrário à psicologia e pensamento, a natureza que tudo abrange
espiritualista, Ardigò afirma a necessidade e que funciona como matriz indeterminada,
de usar instrumentos científicos e pesquisas mas real, de todas as determinações.
estatísticas no estudo da psicologia. Enquanto Spencer, portanto, concebia
O fato — eis a pedra angular da filo­ a filosofia como ciência dos primeiros prin­
sofia de Ardigò. Sentencia ele: “ O fato tem cípios, Ardigò a propõe como ciência do
realidade própria em si mesma, realidade limite, aproximando-se mais uma vez dos
inalterável, que somos obrigados a afirmar naturalistas renascentistas, com seu sentido
tal e qual nos é dada e como a encontramos, de unidade dos fenômenos da natureza.
na impossibilidade absoluta de retirar-lhe M as não é só nesse ponto que Ardigò
ou acrescentar-lhe algo. Portanto, o fato é se afasta de Spencer. Com efeito, antes de
divino. O abstrato, ao contrário, somos nós mais nada, Ardigò nega o incognoscível
que o formamos, podendo formá-lo mais es­ de Spencer. Toda a realidade é natureza e
pecífico ou mais geral. Portanto, o abstrato, a natureza é cognoscível, ainda que possa
o ideal, o princípio é humano” . As idéias, permanecer infinitamente inadequável para
as teorias e os princípios são provisórios e a pesquisa científica, ainda que, em outros
revogáveis, mas o fato não: “ Em suma, o termos, ela fique como o limite inalcançável
ponto de partida é sempre o fato. E o fato é pelo esforço cognoscitivo.
sempre totalmente certo e irreformável, ao Portanto, não se deve falar de incog­
passo que o princípio é ponto de chegada, noscível (por princípio), mas sim de desco­
que também pode ser abandonado, corrigi­ nhecido, isto é, daquilo que ainda não se
do e ultrapassado.” tornou objeto de conhecimento distinto,
Essa, portanto, foi a sofrida transição mas que, em princípio, pode tornar-se. Para
que levou Ardigò da sacralidade de Deus Ardigò, não há nada que possa transcender
para a divindade do fato. a experiência: estamos diante de uma forma
de imanentismo intransigente.
E U O ig n o ra d o v\c\o é o i n c o g n o s c ív e l
tSM A e v o lu ç ã o czomo passagem
d o indistin to a o d istin to
Em 1871, Ardigò deixou o hábito talar.
Em 1877, publicou A formação natural no A realidade é natureza. E esta está su­
fato do sistema solar. Em 1879, saiu A moral jeita à grande lei da evolução. Entretanto,
dos positivistas. Em 1881, o ministro Guido enquanto Spencer formula a grande teoria
Baccelli nomeou-o (com grande rastro de geral da evolução baseando-se na evolução
polêm icas), por méritos extraordinários, biológica, e afirma que ela é uma passagem
professor da Universidade de Pádua, onde do homogêneo para o heterogêneo, Ardigò,
Ardigò ensinou até 1908. Em 1891 publi­ ao contrário, sustenta, baseando-se na evo­
cou O verdadeiro; em 1893 saiu Ciência da lução psicológica, que a evolução universal
educação; em 1894, A razão; em 1898, A da natureza é uma passagem do indistinto
unidade da consciência; por fim, de 1899 é ao distinto.
A doutrina spenceriana do incognoscível. N o dado originário da sensação não há
Suicidando-se, Ardigò morreu em Pádua em antítese entre sujeito e objeto, externo e in­
15 de setembro de 1920. Naqueles anos o terno, eu e não-eu. A sensação é o indistinto
pensamento filosófico italiano já se encon­ originário, em relação ao qual as distinções
trava firmemente orientado no sentido da­ entre espírito e matéria, eu e não-eu, sujeito
quele idealismo tão firmemente combatido e objeto são “ resultados” .
por Ardigò. E, como no caso da sensação, o pro­
O único conhecimento válido é o co­ cesso de toda a realidade desenvolve-se
nhecimento científico; toda realidade é natu­ do indistinto para o distinto. Da unidade
reza. N ós procuramos compreender a na­ originária desse indistinto, nem subjetiva
tureza com as diversas ciências particulares, nem objetiva, derivam como distintos o eu,
ao passo que a filosofia ou “ ciência geral” o não-eu e, sucessivamente, todos os outros
não é a ciência dos primeiros princípios (ou fenômenos infinitos do mundo psíquico e do
protologia), mas ciência do limite (peratolo- mundo físico.
S e x t ã p ã r t e - CD p o s i t i v i s m o n a c u l t u r a e - u f o p é ia

O indistinto só é tal relativamente Em política, Ardigò foi um liberal, um


ao distinto que dele deriva, o qual, por antimaçom e um crítico do marxismo na
seu turno, é o indistinto para o distinto sua concepção materialista da história, já
sucessivo. Esse processo ocorre incessante que tal concepção absolutiza o fator eco­
e necessariamente, segundo um ritmo cons­ nômico, “ descurando outros coeficientes
tante. N o entanto, Ardigò introduz nesse essenciais” . “ O fato econômico não é o
processo universal um elemento casual, único que determina a formação de certo
que consiste no fato de que séries causais modo de sociedade, pois para isso, junta­
— cada qual necessária e determ inada mente com ele, concorrem também outros
— podem se encontrar casualmente, dando fatos” . Entretanto, olhava com interesse o
lugar a acontecimentos imprevisíveis. O socialismo. Por outro lado, socialistas como
próprio pensamento humano, diz Ardigò, Turati realizaram sua primeira educação
é um desses produtos casuais da evolução filosófico-política exatamente com base em
cósmica: o pensamento, que hoje existe na A moral dos positivistas.
humanidade, “ formou-se pela continuação Trabalhador incansável, prom oveu
de acidentalidades infinitas” . uma sólida escola em torno de si. Entre
os que se vinculam expressamente à obra
de Ardigò devem-se recordar: Giovanni
WW-M yV\oi*al e s o c ie d a d e
Marchesini, Ludovico Limentani, Giuseppe
Tarozzi, Rodolfo Mondolfo, Giovanni Dan-
Portanto, o homem é natureza; o pen­ dolo e Alessandro Levi.
samento humano é fruto da evolução da
natureza; a vontade humana não é mais livre
do que qualquer outro evento natural.
Disso tudo deriva a crítica de Ardigò a
toda moral de tipo religioso, espiritualista
e metafísico. N a opinião de Ardigò, as idea-
lidades e as normas morais nascem como
reação dos homens associados aos aconte­
cimentos e às ações que são danosos para a
sociedade e se fixam depois na consciência
dos indivíduos como normas morais, com
as características que estas possuem: são
deveres obrigatórios, que comportam res­
ponsabilidade, e implicam sanções no caso
de serem infringidos.
A moral, portanto, não tem outra base se­
não a evolução da sociedade, não havendo ne­
cessidade de procurar fundamentos fora dela.
Por fim, para Ardigò, a sociologia é “ a
teoria da formação natural da idéia de jus­
tiça” . A lei natural da sociedade é a justiça.
M as à justiça encarnada no direito positivo
sempre se contrapõe a outra justiça, pro­
clamada pelo direito natural, que é o ideal
que se forma na consciência sob o estímulo Roberto Ardigò ( IS2S-1920)
daquele direito positivo, e que esse direito c o representante mais prestigioso
positivo não realiza. do positinsnn) iLilhiiio.
Cãpltulo d é d tH O sexto - O p o sitiv ism o e v o lu c io n ista e m a te r ia lis ta

m. o p o sitivism o m a te r ia lis ta
n a y \ le m a n k a

•Na Alemanha o positivismo toma a direção de um rígido É preciso negar


materialismo, cujas teses de fundo foram a batalha contra o o dualismo
dualismo de matéria e espírito e a luta contra as metafísicas da de matéria
transcendência. Os representantes de maior vulto do positivismo e espírito e toda
materialista alemão são: Karl Vogt, Jacob Moleschott, Ludwig metafísica
Büchner e Ernst Haeckel. -*§1

•Karl Vogt (1817-1895), zoólogo, decididamente contrário à Vogt contra


idéia criacionista e ao relato bíblico sobre a história da terra e a a imortalidade
origem da vida, reforçou - contra Rudolf Wagner - sua aversão da alma
à idéia de imortalidade da alma. ^§2

•Jakob Moleschott (1822-1893), professor primeiro em Hei­


delberg e depois em Zurique, após a unificação da Itália, passou a Moleschott
ensinar fisiologia em Turim e depois em Roma. Paladino de uma contra os
espiritualistas
cultura leiga e anticlerical, Moleschott - contra os espiritualistas
- sustentou que "não há pensamento sem queimar as pestanas", ^ § 2
e que a vida é um processo que, por meio da dissolução, se rege­
nera continuamente. Por isso, provocando escândalo, Moleschott chegou a afirmar
que nos cemitérios, onde o terreno é mais fértil, dever-se-ia semear trigo.
•Ludwig Büchner (1824-1899) em um livro de grande su- Büchner:
cesso - Força e matéria (1855) - afirmou que o materialismo era a hipótese
doravante a conclusão inevitável "de um estudo imparcial da materialista
natureza baseado sobre o empirismo e a filosofia". Para ele a éa única possível
ação do cérebro era análoga à de uma máquina a vapor.
•Ernst Haeckel (1834-1919), sustentador da teoria darwiniana, propôs a "lei
biogenética fundamental", onde se estabelece que para o homem "a ontogênese,
ou seja, o desenvolvimento do indivíduo, é uma breve e rápida repetição (uma
recapitulação) da filogênese ou evolução da estirpe a que ele pertence, isto é, dos
precursores que formam a cadeia dos progenitores do próprio
indivíduo, repetição determinada pelas leis da hereditariedade e Haeckel
da adaptação". Seu monismo materialista - que, a seu ver, estaria e f lei
em grau de resolver os enigmas do mundo - Haeckel o confiou ao biogenetica
livro Os enigmas do mundo, publicado em 1899, e do qual foram 3
vendidos 400.000 exemplares.

assumiu proporções impressionantes, o mes­


mo ocorrendo com a indústria metalúrgica e
d a tm n sc e n d e n c ia
a manufatura de tecidos na Saxônia e no Sul
da Alemanha. As ferrovias se multiplicaram.
O carvão e o ferro tornaram-se palavras de
De 1830 em diante, a Alemanha, em ordem desse período. As escolas também se
período relativam ente breve, passou de renovaram. E as ciências, sobretudo com a
uma economia agrícola-artesanal para uma física, a química e a fisiologia, conheceram
economia industrial e comercial. A união saltos portentosos para a frente.
alfandegária ocorreu em 1834. N a Prússia o Nessa situação, por um lado, assistimos
desenvolvimento da indústria de mineração à evolução da esquerda hegeliana, mas, por
Sexta parte - O p o si t iv i s m o y\c\ c u l + u ^ a e.uyKopé.\cx

outro lado, já quase extintos os entusiasmos o célebre fisiólogo — se prova não sobre a
pela Naturphilosophie do período român­ base de argumentações físicas, mas como
tico, um grupo não numeroso de médicos exigência de uma ordem moral do mundo.
e naturalistas, provenientes das renovadas Portanto, nenhuma consideração fisiológica
faculdades de medicina alemãs, dá origem a pode levar a excluir a existência de uma
um movimento cultural, de grande sucesso alma espiritual.
na época, que foi definido também com o c) Uma terceira polêmica, que, porém,
nome de positivismo materialista alemão. se coloca no âmbito do positivismo social,
Os representantes mais conhecidos desse é a que opôs Engels (na célebre obra Anti-
movimento foram Karl Vogt, Jakob Mo- dühring de 1878) a Eugen Dühring (1833­
leschott, Ludwig Büchner e Ernst Haeckel. 1921). Este último foi adversário ferrenho
O elemento característico do positivismo do hegelianismo em todas as suas formas (e
materialista é a luta contra o dualismo de portanto também na marxista), e defendeu
matéria e espírito e contra as metafísicas da um tipo particular de socialismo, que cha­
transcendência, luta travada em nome de ou­ mou de personalismo, em que os fatores
tra metafísica: a metafísica materialista. Em políticos assumem um papel superior aos
essência, os monistas materialistas alemães tipicamente econômicos, e em que se pros-
pretenderam decretar o triunfo definitivo do pecta uma transformação não traumática
mecanicismo biológico e, simultaneamente, da sociedade.
a derrocada da concepção espiritualista e Ao lado dessas polêmicas é bom lem­
teleológica do homem e da natureza. brar as duas linhas de tendência, dogmática
e aporética, do positivismo alemão, que se
encarnaram respectivamente no médico
Ludwig Büchner (1824-1899) e no zoólogo
p. ° s p rin c ip a is
Ernst Haeckel (1834-1919) de um lado, e
rep resen tan tes no fisiólogo Emil Du Bois-Reymond (1818­
1896) do outro. Em síntese, os dois primei­
ros sustentaram — embora com acentos
Dentro dessa orientação geral podemos diferentes — a hipótese cientificista-materia-
recordar algum as célebres controvérsias lista não só como a única passível de propo­
destinadas a anim ar o m undo cultural sição, mas também como a única hipótese
alemão. definitiva e resolutiva de todo problema
a) Em primeiro lugar mencionamos científico e filosófico. O terceiro pensador,
a polêmica entre o químico Justus Liebig tomando como modelo da cientificidade a
e Jakob M oleschott (1822-1893). O pri­ teoria astronômica de Laplace, sustentou
meiro sustentou a possibilidade que se a ciência como estruturalmente incapaz de
pudesse provar racionalmente a existência dar resposta a uma série de problemas tanto
de um princípio superior que preside ao de ordem física (por exemplo, a origem da
desenvolvimento dos fenômenos naturais. matéria), quanto psíquica (os fenômenos de
O segundo foi contrário a esta tese, com a consciência), como também antropológica
convicção de que a vida não tem necessidade (a origem da linguagem) e ética (a liberdade
de nenhum artífice, uma vez que ela é um da vontade).
processo contínuo de regeneração por meio Para completar o quadro do positivis­
da dissolução. mo alemão, vale a pena mencionar — além
b) Também'devemos mencionar a polê­ do já citado Dühring — dois expoentes de
mica entre o zoólogo Karl Vogt (1817-1895) relevo do positivismo social alemão: Ernst
e o fisiólogo Rudolf Wagner (1805-1864) Laas (1837-1885) e Friedrich Jodl (1848­
sobre a existência da alma. Vogt contrariou 1914). O primeiro exaltou a moral positi­
a idéia criacionista e sustentou que “ todas vista (isto é, “ uma moral para esta vida” )
as capacidades que compreendemos sob o contra a moral idealista abstrata e incapaz
nome de capacidades psíquicas são apenas de resolver os problem as concretos do
funções do cérebro” . Wagner se opôs a homem; o segundo exaltou o ideal do pro­
esta tese, principalmente sobre a base de gresso inelutável da humanaidade que, a seu
considerações de ordem metodológica: a ver, passa pela educação para uma cultura
existência de uma alma imortal — sustenta obviamente materialista e positivista.
. , . 329
Cüpítulo decimo sexto - O p o sitiv ism o e v o lu c io n ista e m a te r ia lis t a

em si, ficaremos mais impacientes de saber de


S pen cer que modo nossos adversários eram levados a
pensar em determinado modo. [...]
Deveremos afirmar que as religiões são
produzidas pelo sentimento religioso, o qual,
para satisfação própria, inspira quimeras que
D Nõo há antagonismo depois projeta no mundo externo e que pouco
a pouco troca por realidade; o problema, por
outro lado, nõo é resolvido: é tão-somente
entre ciência e religião
deixado para depois. Tanto se o sentimento for
pai da idéia ou o sentimento e a idéia tenham
"Uma vez que estas duas grandes reali­ uma origem comum, daí surge a mesma ques­
dades, ciência e religião, são elementos do tão. De onde vem o sentimento religioso? [...]
mesmo espírito e correspondem o aspectos Devemos concluir que o sentimento religioso é o
diversos do mesmo universo, deve existir diretamente criado, ou formado pela ação lenta
entre elas uma harmonia fundamental". de causas naturais; e qualquer conclusão que
adotemos nõo diminui em nós o respeito pelo
sentimento religioso. [...] Assim, por mais que
€m meio a todos os antagonismos que possam ser insustentáveis algumas ou todas
surgiram entre as várias crenças, o mais antigo, as crenças religiosas, por mais grosseiras as
o mais enraizado, o mais profundo e importante, absurdidades a elas associadas, por mais irra­
é o que existe entre a religião e a ciência. Ge cionais que sejam os argumentos usados para
começou quando o conhecimento das leis mais sua defesa, nõo devemos ignorar a verdade
simples a respeito das coisas mais comuns pôs que, segundo toda probabilidade, nelas se
um limite à vetusta superstição universal. €le encerra. A probabilidade geral que as crenças
encontra-se em todo lugar em que se estende largamente espalhadas não são absolutamente
o domínio do saber humano; tanto na inter­ infundadas é avaliada, neste caso, por uma
pretação dos fatos mecânicos mais simples, mais remota probabilidade, devida à onipresen­
como nos casos mais complicados da história ça das crenças. Na existência de um sentimento
dos povos. (Está profundamente enraizado nos religioso, seja qual for sua origem, temos uma
diversos hábitos intelectuais de diversas ordens segunda prova evidente de grande importância.
de mentes; e as idéias controvertidas sobre (E como nesta não-ciência, que deve sempre
a natureza e sobre a vida, que estes hábitos permanecer como antítese da ciência, há uma
do pensamento produzem separadamente, esfera de ação deste sentimento, encontramos
influenciam em sentido bom ou mau o modo um terceiro fato geral que confirma os dois pri­
de sentir e de agir. meiros. Podemos, portanto, estar seguros de
O conflito incessante de opiniões, que se que as religiões, mesmo que nenhuma fosse
manteve em todo lugar e em todos os tempos verdadeira, são, porém, todas elas pálidas
sob as bandeiras da religião e da ciência, pro­ imagens de uma verdade. [...]
duziu naturalmente uma animosidade fatal para De ambas as partes desta grande contro­
a justa avaliação recíproca das partes adversas. vérsia deve, portanto, existir a verdade. Uma
£m mais larga escala e mais eficazmente do consideração imparcial de seus aspectos gerais
que outras controvérsias, ele demonstrou ser nos força a concluir que a religião, onde quer
sempre significativa a fábula dos cavaleiros que que se apresente como trama que atravessa
disputavam a respeito do cor de um escudo, do a urdidura da história da humanidade, é a
qual um e outro viam apenas uma face. Cada expressão de um fato eterno; ao passo que
combatente, vendo claro apenas o próprio lado é quase verdade evidente dizer que a ciência
da questão, acusava o outro de estupidez ou de é um amontoado organizado de fatos sempre
má-fé, porque não a via sob o mesmo aspecto, crescentes e sempre mais filtrados pelos erros.
enquanto a ambos faltava o bom senso de ir € se ambas têm bases na realidade das coisas,
até o lugar do adversário para se convencer então entre elas deve haver harmonia funda­
da razão pela qual ele sustentava opiniões mental. € impossível supor que haja duas ordens
tão diferentes. de verdade em absoluta e perpétua oposição.
Felizmente o tempo nos leva a uma Não se pode conceber tal hipótese a não ser
amplitude sempre maior de pensamento, que com alguma teoria maniqueísta que nenhum
devemos procurar alargar o quanto a índole no- de nós ousaria confessar, ainda que ataque a
lo permite. Quanto mais crescer em nós o amor maior parte das crenças. €mbora nas invectivas
pela verdade em relação ao amor pela vitória clericais se diga que o religião é de Deus e a
_ ScXtã parte - CD p o s i t i v i s m o n a c u l t u r a e u r o p é i a

ciência é do diabo, esta é uma afirmação que entendido; e com a convicção de que, quando
o mais violento fanático não gostaria de afirmar for mutuamente reconhecida, esta qualquer
absolutamente. €ntão, quem não afirma isso coisa de comum será a base de uma completa
deve admitir que sob seu antagonismo aparente reconciliação. [...]
haja um tranqüilo e completo acordo. Ora, uma vez que estas duas grandes
Toda partido deve, portanto, reconhecer realidades, ciência e religião, são elementos
nos pretensões dos outros verdades que não do mesmo espírito e correspondem a aspectos
devem ser ignoradas, flquele que contempla o diversos do mesmo universo, deve existir entre
universo sob visões religiosas deve aprender elas harmonia fundamental; temos, portanto,
a ver que a ciência é um elemento do grande boa razão para concluir que o verdadeiro mais
todo; e como tal deveria ser olhada com os abstrato contido na religião e o verdadeiro
mesmos sentimentos que o resto. ínquanto mais abstrato contido na ciência devem ser
aqueles que contemplam o universo com visões aqueles em que ambos se fundem. O fato
científicas devem aprender a ver que o religião mais compreensivo que encontramos em
é da mesma forma um elemento do grande todo nossa mente deve ser aquilo que buscamos;
e, portanto, deve ser tratada como um sujeito reunindo ele os pólos positivo e negativo do
de ciência com não menores preconceitos do pensamento humano, deve ser o fato final de
que qualquer outra realidade. Convém que todo nossa inteligência.
partido se esforce para compreender o outro, H. Spen
com a convicção de que o outro é digno de ser Os primeiros princípios.

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( U y L t <U> > *
Carta autografa de Spencer " / w j O - w U j j ) A u

ao matemático inglês
- Charles Babbage,
idealizador da máquina analítica Á Í í^ if ^ S
(jamais levada a termo),
uma calculadora
com fichas perfuradas
que deveria ter tido
todas as características
fundamentais
dos computadores modernos.
O DESENVOLVIMENTO
DAS CIÊNCIAS
NO SÉCULO XIX.
O EMPIRIOCRITICISMO
E O CONVENCIONALISMO

“Toda a ciência tem o escopo de substituir, ou seja,


de economizar, experiências por meio da reprodu­
ção e da antecipação de fatos no pensamento”.
Ernst Mach
“O físico que renunciou a uma de suas hipóteses
deveria estar [...] cheio de alegria, porque desta
forma encontra uma inesperada ocasião de des­
coberta”.
Henri Poincaré
“O físico não pode jamais submeterão controle da
experiência uma hipótese isolada, mas apenas todo
um conjunto de hipóteses. Quando a experiência
está em desacordo com suas previsões, ela lhe
ensina que ao menos uma das hipóteses que cons­
tituem o conjunto é inaceitável e deve ser modifi­
cada, mas não lhe indica qual deverá ser mudada”.
Pierre Duhem
Capítulo décimo sétimo

O desenvolvim ento das ciências no século X IX

Capítulo décimo oitavo

O em piriocriticism o de R ichard Avenarius


e Ernst M ach , e o convencionalism o
de H enri Poincaré e Pierre D u h e m _______
C a p í t u l o d é c im o s é t im o

O d eservvo!vimer\+o d a s ciêrvcias
kvo sé c u lo XJX

I. O u e . s t õ e s g e r a i s

(ZÀeincAOi e filosofia de qualquer discussão. As geometrias não-


euclidianas m ostraram que os que eram
no século x j x considerados “ princípios” nada mais eram
do que “ com eços” , e que algum as pro­
posições vistas então como se houvessem
O estreito entrelaçamento que, por sido escritas para toda a eternidade nada
vezes, se constitui na história das idéias mais eram do que convenções. Esse é um
entre idéias filosóficas (ou metafísicas, isto típico exemplo de como resultados técnicos
é, teorias não controláveis empiricamente) obtidos dentro de uma disciplina científica
e teorias científicas nos impõe delinear podem subverter teorias filosóficas como
os traços da evolução de algumas teorias a do conhecimento. E é óbvio que o pre­
científicas do século X IX que, estudando de domínio de uma teoria do conhecimento
cheio problemáticas filosóficas (como a da ao invés de outra acarreta conseqüências
imagem do “ homem” , a do “ livre-arbítrio” , relevantes sobre a idéia do homem (já que
a da imagem do “ mundo” e a da própria o homem que capta, constrói ou, de qual­
idéia de “ verdade” ), obrigaram os filósofos, quer forma, é capaz de verdades absolutas
até os mais distantes da mentalidade e das não é o mesmo homem que só é capaz de
preocupações da pesquisa científica, a terem verdades sempre desmentíveis ou então de
de se defrontar com o desenvolvimento da convenções) e, desse modo, sobre o mais
ciência. vasto âmbito das questões filosóficas mais
Ao longo do século X IX , as disciplinas urgentes, a começar pelas questões éticas,
matemáticas foram submetidas ao processo políticas e religiosas.
de “ rigorização” e de “ redução” que cul­ Além disso, a física no século X IX
minará nos anos de passagem entre os dois levou ao apogeu a imagem (filosófica)
séculos, com a descoberta das antinomias mecanicista do universo para depois criar,
que, ameaçando todo o edifício do saber antes do fim do século, os dados e pressu­
matemático, proporão os mais interessantes postos que levarão essa imagem a uma crise
e fecundos problemas aos matemáticos do irreversível. Entrelaçando-se com as teorias
século X X . Paralelamente, o nascimento químicas e fisiológicas (em desenvolvimento
das geometrias não-euclidianas, enquanto, tumultuado no século XIX), o mecanicismo
por um lado, contribuirá para aquilo que, físico acentuaria a controvérsia entre me­
em nosso século, seria a proposta do “ pro­ canicismo e vitalismo, na qual o vitalismo
grama de Hilbert” (cuja impraticabilidade levaria a pior.
seria depois demonstrada pelos resultados Por outro lado, a biologia no século
das pesquisas de Gódel), por outro lado X IX propôs para a antropologia filosófica
corta pela raiz uma das idéias filosóficas e para o pensamento religioso problemas
mais arraigadas (e mais influentes) na tra­ entre os mais profundos e sérios de toda
dição do pensamento ocidental: a idéia de a história do pensamento. Com sua teoria
que os axiom as da geometria euclidiana evolutiva das espécies biológicas, Darwin
são verdades evidentes, auto-evidentes, pôs em crise a idéia de homem que predo­
incontroversas e verdadeiras, para além minava há séculos.
334
Sétima parte - O d e se n v o lv im e n to d a s ciên cias,, e m p irio c ritic ism o e c o n v e n c io n a lism o

;A lgu rvs r e s u l t a d o s " t é c n i c o s " o húngaro E. Tschermak, independentemen­


te um do outro, conseguiram redescobrir as
d a p e s q u i s a cien tífii
ric a
leis da hereditariedade, reconhecendo então
v\o s é c u l o X J X a prioridade de Mendel. Ainda no campo
biológico, o século X IX assiste à extensão
da disputa sobre a geração espontânea, que,
Eis, então, algumas das teorias cien­ no século anterior, havia posto em contraste
tíficas de maior “ significado filosófico” na Needham e Spallanzani. N esse período,
história das idéias do século X IX (e tam­ a controvérsia renasceu a propósito das
bém para a história posterior). Sobre essas bactérias e dos outros microorganismos,
teorias, falaremos nas páginas seguintes. menores que os protozoários. Usando as
Entretanto, a escolha dessas teorias não mesmas técnicas de provas cogitadas por
deve nos levar a esquecer outras teorias Spallanzani, Pasteur demonstrou que as
(também carregadas de significado filo­ bactérias se originam de minúsculos germes
sófico, como algumas teorias fisiológicas presentes na atmosfera, os quais, por seu
ou ainda algum as teorias farm acológi- turno, provêm de outras bactérias. Essas
cas), nem a grande colheita de resultados bactérias podem ser destruídas com o calor,
técnicos obtidos não só pela matemática, fazendo com que o caldo de cultura fique
pela física e pela biologia, mas também estéril. O adversário de Pasteur, F. A. Pou-
pela química (basta relembrar os nomes chet, teve de se dobrar diante da excelência
de Cannizzaro, Berzelius, Wõhler, Arrhe- dos experimentos e das argumentações de
nius, Liebig, Kekulé, Mendelejev e outros), Pasteur (G. Montalenti).
pela embriologia (Von Baer, Von Kõliker),
pela fisiologia (Magendie, Bernard), pela
bacteriologia e pela imunologia (o século
X IX foi o século de Pasteur, Koch, Ehrlich,
von Behring e outros), pela anatomia pa­
tológica (Rokitansky), pela farm acologia
(J. Müller, C. Ludwig, Bernard e outros),
pela geologia (Lyell), pela cristalografia,
pela astronomia e pelas ciências históricas,
que, no século X IX , conheceram portentoso
desenvolvimento (veja-se, a esse respeito, o
capítulo sobre o historicismo). Além disso,
a biologia assiste ao desenvolvimento da
teoria da célula, verdadeiro ponto cardeal
para a biologia (Rudolph Virchow, 1821­
1902, diria que “ todo animal é uma soma
de unidades vitais, cada uma das quais
possui todas as características da vida” ) e
testemunha (sem se dar conta disso, porém)
o nascimento da genética. Com efeito, foi
um obscuro frade agostiniano m orávio,
Gregor Johann Mendel (1822-1884) que,
combinando seus interesses botânicos com
seus conhecimentos matemáticos, e depois
de um trabalho de cruzamento de ervilhas
que durou oito anos, conseguiu descobrir as
leis da hereditariedade que levam seu nome
(as leis de Mendel): a lei da segregação e a lei
da independência das características here­
ditárias. A pesquisa de Mendel talvez fosse
avançada demais para sua época. Como
quer que seja, é fato que Mendel morreu
em 1884, desconhecido para o mundo cien­ Gregor Johann Mendel (1822-1884)
tífico. Somente em 1900, três botânicos, o foi o descobridor
holandês H. De Vries, o alemão C. Correns e das leis da hereditariedade biológica.
Cãpítulo décimo sétimo - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s no s é c u l o /K.D/K.

II. (D p r o c e s s o d e V i g o r i z a ç ã o ^
da matemática
TDa ^ a ritm e tiz a ç ã o expressão de Kronecker, segundo a qual,
d a a n á lise /' na matemática, tudo é obra dos homens, à
exceção dos números naturais, “ que foram
à “l o g i c i z a ç ã o d a a r i t m é t ic a * criados pelo bom Deus” .
Entretanto, nem todos os matemáti­
cos decidiram-se a aceitar como primitiva
Deixando de lado a grande massa dos a noção de número natural. Alguns deles
resultados técnicos, a matemática do século consideravam que se podia remeter a idéia
X IX (diversamente da matemática do sécu­ de número natural a algo ainda mais profun­
lo XVIII, o século de Euler e de Lagrange) do ou primitivo. E é então que nascem duas
caracteriza-se por forte exigência de rigor, linhas fundamentais de desenvolvimento da
entendido como a explicitação dos conceitos fundamentação da aritmética, uma devida
das diversas teorias e a determinação dos a Gottlob Frege (1848-1895) e a outra a
procedimentos dedutivos e fundacionais Georg Cantor. Com seus Fundamentos da
dessas teorias, com a definição progres­ aritmética (1884), Frege quis reconduzir a
siva da evidência com o instrumento de aritmética à lógica, reduzindo o conceito
fundamentação e aceitação dos resultados de número natural a uma combinação de
matemáticos. conceitos puramente lógicos. Escreve ele:
Esse processo conheceu uma primeira “ Procurei tornar verossímil o fato de que a
fase importante com a “ redução” , por Louis aritmética é um ramo da lógica, não tendo
Augustin Cauchy (1798-1857), dos concei­ necessidade de tomar emprestado nenhum
tos fundamentais da análise infinitesimal fundamento para suas demonstrações, nem
(limite, derivada, integral etc.) ao estudo dos da experiência, nem da intuição” . Em suma,
números “ reais” . E conheceu a segunda fase, o que Frege pretendeu fazer foi extrair “ as
também igualmente importante, chamada leis mais simples do numerar” com “meios
hoje de “ aritmetização da análise” , na qual puramente lógicos” . E, desse modo, com
a teoria dos números reais é reconduzida à Frege, passava-se da “ aritm etização da
teoria dos números naturais (de que se ocupa análise” para a “ logicização da aritmética” ,
a aritmética e que podem ser submetidos às tendo início a orientação “ logicista” na
operações de soma e de produto e às ope­ questão da fundamentação da matemática,
rações delas extraíveis). orientação que depois seria retomada e de­
A “ aritmetização da análise” recebeu senvolvida por Bertrand Russell. Enquanto
notável contribuição de Karl Weierstrass Frege seguia precisamente o caminho da
(1815-1897) e alcançou seu ponto culmi­ logicização da aritmética, Cantor leva a
nante em 1872, com as duas “ fundamen­ efeito a redução da aritmética à “ teoria dos
tações clássicas” do sistema dos números conjuntos” .
reais, por G eorg Cantor (1845-1918) e
Richard Dedekind (1831-1916). As inves­
tigações de Weierstrass, Cantor e Dedekind ■ líííjj^ e o r g e B o o l e
demonstraram que a teoria dos números e a á lq e b r a d a ló a ic a
reais, com todas as construções que se pode
obter a partir dela (por exemplo, a teoria das
funções de variável real e complexa, o cálcu­ Nesse meio tempo, a álgebra dava pas­
lo infinitesimal etc.), deriva rigorosamente sos de gigante, sobretudo com o grande gênio
do conceito e da propriedade dos números — morto muito jovem em misterioso duelo
naturais. Desse modo, para alguns estudio­ — que foi Evariste Galois (1811-1832), que
sos, como, por exemplo, Leopold Kronecker sistematizou e organizou brilhantemente a
(1823-1881), o número natural aparece teoria das equações algébricas, e com o in­
como o “ material originário” capaz de servir glês George Peacock (1791-1858), o irlandês
de “ fundamento” para toda a matemática. William Rowan Hamilton (1805-1865), ain­
Essa convicção ficou registrada na célebre da o inglês Arthur Cayley (1821-1895) e o
Sétima parte - O d ese n v o lv im en to d a s c iê n c ia s , em piriocriticism o e co n v en c io n alism o

alemão Hermann Grassmann (1807-1877), não-euclidianas. N o início, as idéias dos


que criaram a álgebra abstrata. Enquanto construtores de tais geometrias custam a
isso, com seu livro Análise matemática da se afirm ar no mundo dos m atem áticos.
lógica (1847), George Boole (1815-1864) Entretanto, a partir da década de 1860,
mostrava que era possível um tratamento aproximadamente, elas se impõem quase
puramente calculista, isto é, algébrico, não como patrimônio comum dos matemáticos,
somente com “ grandezas” , mas também que caminham para generalizações sempre
com entes como proposições, classes etc. mais vastas, como mostra o famoso “ pro­
Desse modo, Boole conseguiu traduzir em grama de Erlangen” , exposto por Félix Klein
uma teoria de equações a lógica tradicional (1849-1925) em 1872 e segundo o qual as
dos termos, particularmente a silogística, várias disciplinas geométricas (geometria
esboçando também uma teoria algébrica da métrica, geometria afim, geometria projetiva
lógica das proposições. etc.) podem ser dispostas hierarquicamente,
Foi assim que Boole provocou um já que a geometria imediatamente inferior
grande salto adiante no grandioso projeto é menos geral e profunda do que a imedia­
da characteristica universalis de Leibniz, e tamente anterior.
criou a “ álgebra da lógica” , à qual, em segui­ Em todo caso, como veremos na próxi­
da, dariam grandes contribuições S. Jevons ma seção, a construção das geometrias não-
(1835-1882), E. Schróder (1841-1902) e C. euclidianas também implicará na eliminação
S. Peirce (sobre a epistemologia e a filosofia dos poderes da intuição na fundamentação e
de Peirce, falaremos no capítulo dedicado ao na elaboração de uma teoria geométrica: os
pragmatismo). Dessa maneira, Boole fazia a axiomas não são mais “ verdades evidentes”
lógica tornar-se “ lógica simbólica” , que se que, como sólida rocha, garantem a “ fun­
configurava como “ ramo da matemática” , dação” do sistema geométrico, mas, como
mas ramo da matemática que, precisamente reconhecerá entre outros H. Poincaré, puros
como queria Frege, permitia rigoroso con­ e simples “ com eços” , pontos de partida
trole das demonstrações matemáticas. Com convencionalmente escolhidos e admitidos
efeito, para Frege, a lógica não é apenas o para efetuar a construção dedutiva da teoria.
fundamento ao qual reportar, por meio da Ora, se os axiomas são considerados verda­
aritmética, as variadas teorias matemáticas, deiros, também serão verdadeiros os teore­
mas também o instrumento com o qual se mas deduzidos corretamente de tais axiomas
deve construir de modo correto e rigoroso e, portanto, o sistema estará garantido.
o próprio edifício da matemática. Todavia, como demonstraram as geo­
Com o já observam os, o program a metrias não-euclidianas, se os axiomas são
lo g icista de Frege seria retom ado por puros “ postulados” , puros e simples pontos
Bertrand Russell, ao passo que Giuseppe de partida, então quem garantirá o sistema?
Peano (1858-1932), ao qual se deve uma Ou seja, de que modo podemos garantir
axiom atização original e clássica da arit­ que, continuando a deduzir teoremas, não
mética (ponto no qual já havia sido pre­ cairemos em uma daquelas contradições que
cedido por Dedekind), conceberia a lógica farão explodir o sistema em seu conjunto?
somente como instrumento poderoso a ser A questão é central, já que, na geometria
utilizado na construção rigorosa do saber não-euclidiana, a verdade está na não-con-
matemático. traditoriedade da teoria.
Dessa questão é que partirá o progra­
ma “ formalista” de David Hilbert (1862­
D a s g e o m e tria s 1943), programa que, como veremos, es­
n ã o -e u c lid ia n a s tava destinado ao naufrágio. Como de fato
naufragou, com a inesperada descoberta de
a o p r o g r a m a d e é E r la n g e n
“ antinom ias” , também a fundamentação
lógica e de conjunto da matemática proposta
N o mesmo período em que assistimos respectivamente por Frege e Cantor. São pre­
aos im portantes desenvolvimentos men­ cisamente esses os problemas que o século
cionados, nascem também as geometrias X IX deixou como herança para o século XX .
Cãpltulo d é d f H O s é t if f lO - (D d e s e n v o l v i m e n t o d a s c iê n c ia s no sé c u lo X * ^ X

III. A s geometrias não-euclidianas

1 y \ g e o m e tria e u c lid ia n a são iguais” . O quinto é o postulado das pa­


ralelas, de que falaremos adiante. Por fim,
e a q u estão
para Euclides, os axiom as são verdades que
d o q u in t o p o s t u l a d o valem não só em geometria, mas também
universalmente. (Por exemplo: “ Coisas que
são iguais a uma mesma coisa são iguais
Com os seus Elementos, o grego Eu- entre si” ; “ Se coisas iguais são adicionadas a
clides (330-277 a.C . aproxim adam ente) coisas iguais, as totalidades são iguais” ; “ Se
deu forma sistemática ao saber geométrico. de coisas iguais são subtraídas coisas iguais,
Provavelmente, pouco do conteúdo dos Ele­ os restos são iguais” ; “ O todo é maior que
mentos é original, mas Euclides teve de fato a p arte” etc.). Definidos os conceitos e
o mérito de reunir proposições e demonstra­ fixados os postulados e axiomas, Euclides
ções tomadas das fontes mais disparatadas deles deduz, como observam os, aquelas
e apresentá-las em estrutura dedutiva. N o proposições ou teoremas que constituem o
primeiro livro dos Elementos, Euclides fixa saber geométrico (por exemplo: “ Sobre uma
vinte e três definições, cinco postulados e dada reta terminada, construir um triângulo
algumas noções comuns ou axiomas. Em se­ eqüilátero” ; “ N os triângulos isósceles, os
guida, com base no que estabeleceu, passa à ângulos da base são iguais entre si; e, sendo
demonstração (ou dedução) das proposições prolongados os lados iguais, os ângulos sob
(ou teoremas) da geometria. As definições a base (também) serão iguais entre si” ; “ Se,
(“ ponto é aquilo que não tem partes” ; “ linha em um triângulo, dois ângulos são iguais
é comprimento sem largura” ; “ extremos de entre si, também os lados opostos aos ângu­
uma linha são pontos” etc.), substancial­ los iguais serão iguais entre si” etc.). E esse,
mente, pretendem explicitar os conceitos portanto, o modo como Euclides ordena os
da geometria. Os postulados representam conhecimentos geométricos no sistema cha­
verdades indubitáveis típicas do saber ge­ mado precisamente de sistema euclidiano.
ométrico: 1. “ pode-se traçar uma reta de E, durante séculos, esse sistema valeu como
qualquer ponto a qualquer ponto” ; 2. “ uma modelo insuperável de saber dedutivo: os
reta finita pode ser prolongada à vontade” ; termos da teoria são introduzidos depois de
3. “ pode-se traçar um círculo de qualquer terem sido definidos, e as proposições não
centro e raio” ; 4. “ todos os ângulos retos são afirmadas caso antes não tenham sido
Sétima pavte - O d ese n v o lv im en to d a s c iê n c ia s , em piriocriticism o e c o n v en c io n alism o

demonstradas. Naturalmente, não se pode


remontar ao infinito na demonstração dos
teoremas, pois em determinado momento
é preciso deter-se para apoiar a cadeia das
deduções em precisas proposições primei­
ras. M as Euclides as havia escolhido de tal
modo que não parecia que uma mente sadia
pudesse levantar alguma dúvida sobre sua
veracidade.
E sendo os teoremas corretamente
deduzidos de proposições primeiras, verda­
deiras em si mesmas e auto-evidentes (assim,
seria auto-evidente dizer que “ o todo é maior
do que a parte” , ou que “ todos os ângulos
retos são iguais entre si” ), eles também apa­
reciam como indubitavelmente verdadeiros.
Sendo assim, compreende-se a razão por que
Leibniz afirmou que “ os gregos raciocinaram
com toda a exatidão possível em matemática
e deixaram ao gênero humano modelos de
arte demonstrativa” . Em substância, Eucli­
des, como já o fizera Aristóteles e o fariam
Pascal e Newton, expressou o ideal de uma Esse postulado nos diz que, dados em
organização axiomática de uma disciplina, um plano uma reta s e um ponto P fora dela,
ideal redutível, a grosso modo, à escolha de existe no plano uma só reta r que passa pelo
pequeno número de proposições “ eviden­ ponto P e é paralela à reta dada, no sentido
tes” daquele âmbito do saber e à dedução de que não a encontra nunca. E isso acon­
posterior a partir delas, de todas as outras teceria quando a reta r e a reta s encontram
p roposições verdadeiras de tal âm bito. a reta t, formando dois ângulos retos (como
Entretanto, o conceito de evidência na fig. 2a) ou dois ângulos cuja soma é igual
está longe de ser evidente. E os aconteci­ a dois retos (como na fig. 2b).
mentos da geometria euclidiana concorre­ Entretanto, essa proposição não é evi­
ram de modo relevante para transformar a dente, podendo se mostrar falsa em outros
concepção euclidiana dos axiomas (enten­ modelos. Com efeito, se o plano contendo
didos exatamente como princípios verda­ a reta s e o ponto P fora dela é limitado à
deiros, auto-evidentes e fundamentadores zona interna de um círculo, então logo se
das ulteriores afirmações de uma ciência). vê (como se pode perceber na fig. 3) que há
Com efeito, desde a antiguidade, o quinto
postulado de Euclides não convencera de
modo algum. Trata-se do famoso postulado
das paralelas, que Euclides formulara (cf.
fig. 1) nos seguintes termos: “ Se uma reta,
encontrando outras duas retas, produz dois
ângulos internos localizados na mesma
parte, menores do que dois ângulos retos,
aquelas retas, prolongadas ao infinito, se
encontram na mesma parte em que estão os
ângulos menores de duas retas” .
339
Capítulo décimo sétimo - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s no s é c u lo

muitas retas que passam por P e não encon­ Por todas essas razões, no século XVIII,
tram s. Se aumentarmos o raio do círculo, o jesuíta Jerônimo Saccheri (1677-1733) re­
diminui a quantidade de retas que passam solveu mudar de rumo. Em seu Euclides ab
por P e não encontram s. M as elas conti­ omni naevo vindicatus (Euclides emendado
nuarão sendo sempre de número infinito. por todo neo, 1733), experimentou negar o
Ora, que “ intuição” e que “ auto-evidência” postulado euclidiano da paralela e depois
poderão nos garantir que essa situação não deduzir todas as conseqüências lógicas dessa
existirá mais quando o plano é ilimitado? negação, procurando uma contradição que
(E. Agazzi - D. Palladino). demonstrasse assim, por absurdo, o famoso
Além disso (como se pode ver na fig. postulado.
4), se tomarmos uma reta s sobre um plano Em outros term os, o procedimento
e um ponto P fora dela, sobre o qual passa de Saccheri é o seguinte: tomemos cinco
a reta r, que encontra a reta 5 no ponto A, axiom as, dos quais os primeiros quatro
querendo tornar a reta r paralela à reta s, nós coincidam com os de Euclides e o quinto seja
fazemos girar em sentido anti-horário a reta a negação do quinto postulado de Euclides;
r, que encontrará a reta s nos pontos B, C, D, desenvolvamos então as conseqüências desse
E etc. Os pontos B, C, D , E etc. se afastarão conjunto de axiomas assim adulterado e, se
sempre mais do ponto A, mas quando é que, encontrarmos uma contradição (isto é, se
num plano infinito, tèremos a separação deduzirmos o teorema T e o teorema não-T),
entre r e s? Como poderá ser controlada então teremos demonstrando que é errado
essa separação? E absurdo dizer que duas refutar o quinto postulado de Euclides. Foi
retas paralelas se encontram no infinito? isso que Saccheri fez. E em sua dedução
apareceram teoremas que, à luz da intuição,
eram monstruosos. M as a monstruosidade
não é incoerência e a intuição pode nos en­
ganar. Entretanto, não se engana a dedução
correta de proposições contraditórias. De­
pois de ter cometido alguns erros, Saccheri
Fig. 4 encontrou a contradição que procurava,
acreditando assim ter alcançado o objetivo
a que se propusera. N a realidade, sem se
aperceber disso, havia construído a primeira
O nascimento geometria não-euclidiana.
das geometrias Esta, porém, devia esperar ainda cerca
de um século para ser construída e desen­
não-euclidianas volvida conscientemente. Com efeito, foi no
princípio do século X IX que o grande ma­
temático Karl Friedrich Gauss (1777-1855)
Bastam essas considerações para mos­ viu com toda a clareza a não demonstrabili-
trar as perplexidades que acompanharam a dade do quinto postulado e a possibilidade
reflexão sobre o quinto postulado de Eucli­ de construir sistemas geométricos diferentes
des na história do pensamento grego, árabe do euclidiano. M as Gauss não publicou suas
e renascentista. O fato é que, enquanto os pesquisas com medo dos “ estrilos dos beó-
quatro primeiros postulados de Euclides cios” . E a glória da fundação da geometria
parecem muito simples, com o quinto já não-euclidiana coube então ao húngaro
não se dá o mesmo. Ele assemelha-se mais Janos Bolyai (1802-1860) e ao russo Nicolai
a um teorema do que a um postulado. Por Ivanovic Lobacewskij (1793-1856), que, por
isso, procurou-se demonstrá-lo como con­ volta de 1826, independentemente um do
seqüência dos primeiros quatro, ou então outro, levaram a termo a construção de uma
como conseqüência dos primeiros quatro geometria na qual o postulado da paralela
mais outro postulado também “ evidente” e não vale mais. Com efeito, a característica
fora de discussão, como os primeiros quatro. de fundo da geometria hiperbólica (assim
Entretanto, a primeira tentativa não teve passou a ser cham ada posteriormente a
êxito e a segunda só obteve introduzindo geometria não-euclidiana de Lobacewskij)
um postulado que não é em absoluto mais é que ela se obtém substituindo o postulado
simples nem mais auto-evidente do que o da paralela por sua pura e simples negação.
que devia ser demonstrado. O postulado euclidiano afirma a unicidade
Sétima parte - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s , em piW ocH ticism o e c o n v e n c io n a lism o

do plano da paralela para um ponto e uma elíptica a soma dos ângulos internos de um
reta, mas a geometria hiperbólica postula a triângulo é superior a 180°. Com efeito,
existência de mais paralelas para um ponto considerando o triângulo B A C da fig. 7 (no
e uma reta. O desenvolvimento do sistema qual dois vértices se encontram no equador e
de axiom as assim mudado deu origem a um coincide com o pólo), pode-se ver que a
uma nova e autêntica geometria, coerente, soma dos ângulos em B e C, sendo eles retos,
complexa e rica de teoremas interessantíssi­ é de 180°; mas, somando a eles o ângulo em
mos. Poucos anos depois do nascimento da A, a soma dos ângulos internos do triângulo
geometria hiperbólica, Bernhard Riemann B A C torna-se sempre maior que 180°.
(1826-1866) construía um sistema geométri­
co (chamado de geometria elíptica) no qual
o axiom a da paralela era substituído pelo B
axiom a de Riemann, segundo o qual “ duas
retas quaisquer de um plano têm sempre
pelo menos um ponto em com um ” . Isso
significa que não existem retas paralelas.
Assim, também Riemann desenvolveu seu
sistema de modo coerente, obtendo desse
modo outra geometria não-euclidiana.
Apenas para se ter uma idéia de uma Fig. 6
geometria privada de retas paralelas, tome­
mos o modelo constituído por uma esfera.
N esse m odelo, a esfera corresponde ao
plano e as retas são representadas por cir­
cunferências máximas (obtidas cortando a
esfera por planos que passam no centro da
própria esfera; exemplos familiares de tais
circunferências máximas são o equador e os
meridianos terrestres). (Cf. fig. 5).

NORTE

Isso quanto ao que se refere à geome­


tria elíptica de Riemann. Visualizando com
outros modelos o espaço de Lobacewskij,
pode-se mostrar que, nele, a soma dos ân­
gulos internos de um triângulo é menor do
que 180°. Assim, por exemplo, dado o eixo
CD (cf. fig. 8), pode-se construir, a partir de
uma dada curva, chamada tratora (o arco
A B da fig. 8), girando-a em torno do eixo
CD, uma porção do plano de Lobacewskij,
onde se constata, entre outras coisas, que
todos os triângulos de sua superfície têm
Nesse modelo (como se vê na fig. 5), três ângulos internos cuja soma é menor
não existem duas retas (duas circunferências que 180° (isso também pode ser mostrado
máximas) que não se encontrem. Eis, por­ em uma superfície em depressão)
tanto, um modelo facilmente imaginável de
uma geometria (geometria elíptica) na qual
não existem retas paralelas. E é óbvio que,
nessa geometria, também os teoremas são A
diversos (dos euclidianos). Assim, por exem­
plo, se a soma dos ângulos internos de um
triângulo, no sistema euclidiano, eqüivale
a 180° (para comprová-lo é suficiente um
Fig. 8
breve raciocínio sobre a fig. 6), na geometria
Capítulo décimo sétimo - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s no s é c u lo

3 O s ig n ific a d o filo só fic o rência do sistema estava assegurado, já que


a dedução correta de premissas verdadeiras
d a g e o m e tria
gera somente conseqüências verdadeiras, e
n ã o -e u c lid ia n a duas proposições verdadeiras não podem
se contradizer. M as, se os axiomas se confi­
guram como proposições nem verdadeiras,
Depois dessas breves explicações sobre nem falsas, então não se pode excluir que,
o nascimento das geometrias não-euclidia­ deduzindo corretamente a partir deles, não
nas, o que importa é ver por que elas repre­ encontremos contradições.
sentam uma etapa importante na história Portanto, 1) como se pode assegurar
do pensamento. Pois bem, o primeiro fato a coerência de sistemas cujas premissas são
a ressaltar é que elas aboliram o dogma da apenas afirmações e não princípios?
“verdade” absoluta da geometria euclidiana. E esse problema fundamental não é o
E note-se que as geometrias de Lobacewskij único, já que existe também 2) o problema
e Riemann foram somente as primeiras de da completeza, que se divide em dois sub-
muitas outras construídas por seus sucesso­ problemas: a) o da completeza sintática e
res. Substancialmente, a aparição das geo­ b) o da completeza semântica.
metrias não-euclidianas assestou um golpe a) Completeza sintática: como é pos­
decisivo à confiança ingênua na intuição, sível nos assegurarmos de que os axiomas
com sua pretensão de fundamentar axiomas escolhidos para certo cálculo são capazes de
e postulados e, portanto, de justificar todo demonstrar ou refutar todas as proposições
o edifício da geometria. daquele cálculo?
Com a descoberta das geometrias não- b) Completeza semântica: se interpre­
euclidianas, perdeu peso a idéia de axiomas tamos um grupo de axiomas de modo que
verdadeiros em si mesmos, indubitáveis e eles formalizem certa teoria (como, por
auto-evidentes. exemplo, a mecânica newtoniana), de que
Foi assim que os axiomas, de princípios modo podemos nos assegurar de que não
fundados e fundadores de todo o conjunto existem proposições verdadeiras da teoria
dos teoremas, transformaram-se em começos que não são demonstráveis a partir dos
ou pontos de partida da demonstração. axiomas colocados?
Desse ponto central brota a distinção E, além do problema da coerência e
entre geom etria matemática e geometria da completeza, há também 3) o da indepen­
física: a primeira desenvolve seus teoremas dência dos axiomas uns dos outros, em um
a partir de premissas cuja relação com os sistema axiomático: como se faz para saber
objetos do mundo torna-se irrelevante, ao se um axioma não é dedutível do conjunto
passo que a segunda se configura como um dos outros axiomas do sistema?
ramo da física e procura descrever e racio­ Esses três problemas — o da coerência,
nalizar âm bitos da experiência sensível, o da completeza e o da independência — não
especialmente o da experiência espacial. se propunham na concepção clássica dos
Desse modo, o problema da verdade axiom as como princípios, mas tornam-se
das proposições geométricas desdobra-se urgentes depois da descoberta das geome­
em problema de verdade matemática, que trias não-euclidianas.
se reduzirá a ser conseqüência lógica dos E o m ais urgente de todos será o
axiom as, e em um problema de verdade problema da coerência, em primeiro lugar
empírica, que conflui na epistemologia das porque um sistema formal incoerente deixa
ciências em píricas quando estas tratam de existir (podendo-se derivar dele qualquer
da relação entre teoria e realidade. Como proposição e, portanto, também a negação
quer que seja, a concepção dos axiom as dos axiom as), e depois porque as provas
entendidos como convenções (e não mais da completeza e da independência passam
como princípios verdadeiros), concepção primeiro por uma prova de coerência. A
que brota da descoberta das geometrias não- lógica do século X X , sobretudo com David
euclidianas, implicava questões importantes. Hilbert, procurará resolver esses problemas.
Enquanto os axiom as eram vistos como M as será Kurt Gõdel que, com seu trabalho,
princípios verdadeiros, o problema da coe­ despertará muitas esperanças.
Sétima parte - O d ese n v o lv im en to d a s c iê n c ia s , em piriocriticism o e c o n v en c io n alism o

IV. y\ t e o r i a d a e v o l u ç ã o b i o l ó g i c a

O d eb ate muito influente fora a da “ fixidez” das espé­


s o b r e a ^ e v o l u ç ã o ^ n a 1~ ra n ç a : cies: as espécies animais foram criadas por
Deus, aparentemente antes da criação do
.L a m a rk , íS u v ie r homem, e se perpetuaram tais e quais, isto
e S a in t-H ila ire é, imutáveis, através de gerações sucessivas.
Essa teoria foi expressa pelo grande gênio
C. Linneo (1707-1778) — a quem se deve a
nomenclatura binômica ainda hoje em uso
Desde os tempos de Anaximandro, a
na botânica e zoologia — com as palavras
teoria da evolução apareceu muitas vezes
“Species tot numeramus quot in principio
na história do pensamento ocidental. En­
creavit infinitum ens” . Todavia, em 1809,
tretanto, ela só conseguiu mostrar sua força
Jean-Baptiste Monet, cavaleiro de Lamarck
teórica e sua fecundidade explicativa no
(conhecido por este último nome), publicou
início do século X IX . Anteriormente, além
sua Filosofia zoológica, em que sustenta
daquele criacionismo pelo qual a natureza,
que a evolução da espécie ocorre sob o
ministra de Deus, continuava a produzir
estímulo do ambiente: o ambiente instrui o
espécies vivas, exceto o homem, uma teoria
organismo, que se transforma, adaptando-se
justamente ao ambiente.
M ais em particular, Lamarck formula
duas leis, a do “ uso e não uso dos órgãos”
e a da “ hereditariedade das características
adquiridas” . Quanto à primeira lei: “ Em
todo animal que não tenha superado o tér­
mino de seu desenvolvimento, o emprego
mais freqüente e contínuo de um órgão qual­
quer fortalece pouco a pouco esse órgão,
desenvolve-o, aumenta-o e lhe confere uma
potência proporcional à duração de seu uso,
e onde a ausência constante do uso de tal
órgão o enfraquece sensivelmente, deteriora-
o, diminui progressivamente suas faculdades
e acaba por fazê-lo desaparecer” . Quanto
à segunda lei: “Tudo aquilo que a natureza
fez com que os indivíduos adquirissem ou
perdessem por influência das circunstân­
cias às quais sua raça encontra-se exposta
há muito tempo e, conseqüentemente, por
efeito, do uso predominante de tal órgão
ou pelo seu não uso constante, conserva-o
através da geração nos novos indivíduos
que daí derivam, desde que as mudanças
adquiridas sejam comuns aos dois sexos, ou,
pelo menos, àqueles que produziram esses
novos indivíduos” .
Embora engenhosa e simples, a teoria
de Lamarck não teve grande sucesso. Entre
outras coisas, ela foi duramente combatida
pelo fundador da anatomia comparada e
Carlos Linneo (1707-1778) da paleontologia, Georges Cuvier (1769­
em uma gravura da época.
Este grande naturalista 1832), que, encontrando jazidas fósseis que
foi o inventor da nomenclatura binária continham fósseis diferentes e, portanto,
das espécies vegetais e animais, revelavam ambientes diversos em épocas di­
ainda hoje usada pelos cientistas. versas, sustenta que, em diversos momentos
Cdpítulo decimo setiftio - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s no s é c u l o 343

da história da terra, verificaram-se cataclis­ de proporções diferentes conforme a ilha


mos, catástrofes ou revoluções repentinas, em que viviam. Essas pequenas diferenças
que teriam ocasionado a morte de todos características impressionaram muito Da-
ou quase todos os organism os vivos em rwin. “ Evidentemente, fatos como esse e
determinada região, para a qual, depois da muitos outros podem ser explicados com a
catástrofe, teriam passado outras espécies, suposição de que as espécies se modificam
provenientes de outras regiões. gradualmente” .
Lamarck, portanto, formula uma cla­ Depois de sua volta à Inglaterra, Da-
ra teoria da evolução. Cuvier, que fundou rwin trabalhou intensamente na coleta de
a anatomia com parada e a paleontologia fatos relacionados “ com a variação dos
que, depois, teriam se tornado dois pontos anim ais e das plantas, tanto no estado
cardeais de base da teoria da evolução, doméstico como na natureza” . O trabalho
nega, porém essa evolução. Entretanto, desenvolvido por Darwin nesse período foi
por seu turno, ele teve de se defrontar com imenso. Ele não tardou a perceber que “ a
outro naturalista, isto é, Etienne Geoffroy seleção era a chave com a qual o homem
Saint-Hilaire (1772-1844), que, professor havia conseguido obter raças úteis de ani­
no Museum National d’Histoire Naturelle m ais e plantas. M as, por algum tempo,
de Paris, como Lamarck e Cuvier, retomou continuou incompreensível como é que a
e defendeu as idéias evolucionistas de La­ seleção podia se aplicar a organismos que
marck já delineadas pelo naturalista Buffon viviam na natureza” .
(1707-1788).

í ^ k a r l e s ! D a r w i v\
e a o rig e m d a s e s p e c ie s

A teoria da evolução representou no


século X IX um fenômeno análogo ao que,
alguns séculos antes, acontecera na astrono­
mia com Copérnico: verdadeira revolução
científica, fecunda de grandes desdobramen­
tos, não apenas no campo da biologia. Com
o evolucionism o desapareceu a imagem
milenar do homem, imagem encarnada na
teoria fixista, que falava de espécies fixas e
imutáveis, existentes desde sua criação. E se,
com Copérnico, a revolução astronômica
reorganiza a ordem espacial, dando à terra
e ao homem um lugar bem diferente do de
antes no universo, com Darwin a revolução
biológica reorganiza a ordem temporal do
homem. Com Copérnico e com Darwin, eqa
substância, muda a teoria relativa ao lugar
do homem na natureza.
Darwin (1809-1882) procurou estudar
medicina e, depois, pensou em encaminhar-
se para a carreira eclesiástica, mas, em 1831,
embarcou como naturalista de bordo no
bergantim inglês de três m astros Beagle,
que se preparava para realizar uma explo­
ração científica em torno do mundo. Em
15 de setembro de 1835, o Beagle aportou Charles Danvin (1809-1882)
nas ilhas G alápagos, um arquipélago do foi o grande teórico do evolucionismo.
Pacífico. Aqui, Darwin encontrou-se diante Aqui é retratado em uma aquarela
de uma espécie de fringilídeos com bicos de G. Richmond.
344 ..
Sétima parte - CD d e sen vo lvim en to „ ............ . .
d a s c iê n c ia s , e m p m o criticism o e co n ve n cio n a lism o

Entretanto, narra D arw in em sua N a conclusão de A origem das espécies,


Autobiografia, “ em outubro de 1838, isto Darwin observa que “ autores” de elevada
é, quinze meses depois que comecei minha estatura parecem perfeitamente satisfeitos
investigação sistemática, aconteceu-me ler com a opinião de que cada espécie foi criada
os escritos de Malthus sobre a população. de modo independente. Entretanto, acres­
E estando bem preparado para apreciar a centa ele, “ pela minha mentalidade, harmo­
luta pela existência, que continua em toda niza-se melhor com tudo o que conhecemos
parte, pela passada observação dos hábitos das leis impressas na matéria pelo Criador
dos animais e das plantas, logo me impactou o conceito de que a produção e a extinção
o fato de que, nessas circunstâncias, as va­ dos habitantes passados e atuais do mundo
riações favoráveis tenderiam a se conservar tenham derivado de causas segundas, se­
e as desfavoráveis a serem destruídas” . melhantes às que determinam a morte e o
Com isso, Darwin tinha uma teoria nascimento do indivíduo. Quando concebo
sobre a qual trabalhar. E nela trabalhou todos os seres não como criações especiais,
durante vinte anos, até o início do verão mas sim como descendentes diretos de al­
de 1858, quando Alfred Russell Wallace guns, pouco numerosos, seres que viveram
(1823-1913), jovem naturalista que naquele muito tempo antes que se depositassem as
período se encontrava nas ilhas Molucas, primeiras cam adas do sistema siluriano,
enviou-lhe um ensaio intitulado Sobre a parece-me que eles saem disso nobilitados” .
tendência de as variedades se afastarem M as quais são “ as leis impressas na
indefinidamente do tipo original, e viu que matéria” de que fala Darwin? Essas leis,
Wallace propunha uma teoria como a sua. responde ele, “ tomadas em sentido geral,
Foi assim que, solicitado por Lyell e pelo são o desenvolvimento com reprodução, a
botânico Joseph D. Hooker (1817-1911), variabilidade ligada à ação direta e indire­
Darwin publicou nos Anais da Sociedade ta das condições de vida e do uso ou não
Lineana de Londres o ensaio de Wallace e uso, em ritmo de incremento numérico a
um resumo de seu próprio manuscrito sobre tal ponto alto que leva à luta pela vida e,
a teoria da evolução, juntamente com uma conseqüentemente, à seleção natural, que,
carta ao botânico norte-americano Asa Gray por seu turno, implica na diversidade de ca­
(1810-1888), escrita em 5 de setembro de racterísticas e na extinção das formas menos
1857. Isso ocorreu em 1858. aperfeiçoadas. Portanto, da guerra da na­
Em 1859, finalmente, Darwin publicou tureza, da carestia e da morte nasce a coisa
A origem das espécies pela seleção natural, mais elevada que se possa imaginar: a pro­
sustentando precisamente que as espécies dução dos animais mais elevados. Há algo
se originam da seleção, pelo ambiente, das de grandioso nessa concepção da vida, com
mais aptas entre as variações hereditárias suas múltiplas capacidades, que inicialmente
existentes. Em outras palavras, a evolução foi dada a poucas formas ou a uma só forma,
pode ser vista como uma série de adapta­ mas que, enquanto o planeta continuava
ções, cada qual adquirida ou descartada girando segundo a imutável lei da gravida­
por determinada espécie sob a pressão do de, evoluiu e evolui, partindo de começos
processo de seleção, durante longo período tão simples, a ponto de criar infinitas for­
de tempo. mas, extremamente belas e maravilhosas” .
M as quais eram exatamente as provas
que sustentavam sua teoria? O próprio
Darwin classificou as provas da teoria da 3 o ric je m d o k o m e m
evolução em cinco tipos principais:
1) provas tiradas da hereditariedade
e da criação, particularmente as variações Quando lemos A origem das espécies,
devidas à domesticação; não pode surgir (e não surge) dúvida nenhu­
2) provas provenientes da distribuição ma de que Darwin incluía o homem entre
geográfica; os produtos da seleção natural. Entretanto,
3) provas provenientes dos testemu­ passaram-se doze anos antes que, em 1871,
nhos fósseis; Darwin publicasse os dois volumes sobre A
4) provas derivadas da “ afinidade re­ origem do homem. N o primeiro capítulo,
cíproca entre os seres vivos” ; sobre as Provas da origem do homem de
5) provas provenientes da embriologia alguma forma inferior, Darwin, entre outras
e dos órgãos rudimentares. coisas, escreve: “ O homem pode receber dos
Capitulo decimo setitno ~ O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s no s é c u lo

na estrutura mínima como na composição,


-N>$ II bem melhor do que se possa fazer com seu
1 1 :1 1 confronto no microscópio ou através da
análise química mais acurada [...]. Os remé­
dios produzem sobre eles os mesmos efeitos
que produzem sobre nós. M uitas espécies
de m acacos experimentam grande prazer
em beber chá, café, bebidas alcoólicas; além
disso, como eu próprio vi, fumam tabaco
com prazer [...]. Em suma, não é possível
exagerar a estreita correspondência na estru­
tura geral, na estrutura mínima dos tecidos,
na composição química e na constituição
entre o homem e os animais superiores,
especialmente os macacos antropomorfos
[...]. O homem e todos os outros animais
vertebrados foram construídos com base no
mesmo modelo geral, passam através dos
mesmos estágios primitivos de desenvolvi­
mento e conservam certas características em
comum. Por conseguinte, devemos admitir
francamente sua origem comum. Somente
nosso preconceito natural e aquela soberba
que fez com que nossos antepassados se de­
clarassem descendentes de semideuses é que
Caricatura da teoria de Charles Darwin,
publicada na revista londrina “Punch” nos levam a duvidar dessa conclusão. Mas
no dia 25 de maio de 1861. não está longe o dia em que parecerá estra­
nho que naturalistas, bons conhecedores da
estrutura comparada e do desenvolvimento
animais inferiores algumas de suas doenças do homem e dos outros mamíferos, tenham
e transmiti-las. Esse fato demonstra a afi­ acreditado que cada um deles fosse obra de
nidade de seus tecidos e do sangue, tanto um ato distinto de criação” .

Estampa do século X IX ,
que retrata Charles Darwin
em idade avançada.
Sétima parte - O d ese n v o lv im en to d a s c iê n c ia s , em pin ocri+icism o e c o n v en c io n alism o

v. Afí si c a no s é c u l o XJX

jA f ís i c a n o s in íc io s Legendre, 1752-1833; K. F. Gauss, 1777­


d o sé c u lo
1855; e outros).
O resultado de maior destaque alcança­
do nesse período pela mecânica como núcleo
da física foi o princípio de conservação da
N o que se refere à pesquisa no campo energia, com todos os problemas relativos
da física, o século X IX foi inaugurado por ao envolvimento progressivo dos fenômenos
duas realizações de im portância funda­ térmicos: sobre isso, falaremos adiante. E,
mental: precisamente em 1800, A. Volta no que se refere às suas relações com as
(1745-1827) anunciou a invenção da pilha outras ciências da natureza, devemos notar
e, mais ou menos no mesmo período (a que a mecânica foi componente essencial
publicação é de 1802), Th. Young (1773­ daquele ram o fundam ental dos estudos
1829) comprovou a interferência entre raios biomédicos que é a fisiologia, que também
luminosos, com uma histórica experiência. nasceu como ciência moderna no século
As duas descobertas representam passos passado (C. Bernard, 1813-1878; o próprio
substanciais à frente para dois ramos da físi­ Young; entre os físicos, J. L. M. Poiseuille,
ca clássica, a eletrologia e a ótica, que nesse 1797-1869, H. L. F. von Helmholtz, 1821­
século conhecerão grande desenvolvimento, 1894; E. Mach, 1838-1916, todos grandes
em um prim eiro m om ento colateral ao estudiosos de mecânica).
desenvolvimento da mecânica. E o mesmo
acontecerá, como veremos, também com a
acústica e a termologia. Esse desenvolvimen­
2 O m e c a n ic ism o
to implicará na progressiva especialização
dos pesquisadores, que alcançou níveis d e te rm in ista c o m o
exasperados no século X X . M as, naquele " p r o g >i r a m a d e p e sq u isa *
período, a especialização ainda estava no
início, como testemunham amplamente as
próprias personalidades de Volta (que, além O estudo da m ecânica, com o fora
de eletricidade, também estudava o calor, a proposto por Galileu e Newton e como
química, a meteorologia e outros temas) e de se desenvolvera posteriormente, conduziu
Young (que, antes de mais nada, era médico à concepção rigidamente determinista do
prático e estudioso de problemas biológicos, m undo físico e, conseqüentem ente, da
tendo se ocupado também de outros ramos centralidade da m ecânica em relação a
da física e ainda atuado como valioso cola­ toda a realidade natural. Como se sabe, a
borador de Champollion na decifração da mecânica clássica baseia-se na lei da gravi-
esteia de Rosetta). E a coisa mais importante tação universal e nas três leis da dinâmica:
é compreender que o caráter unitário e não em princípio, delas é possível deduzir com
especializado da pesquisa científica no início precisão e sem nenhuma margem de inde-
do século X IX tem seu fundamento teórico terminação a evolução segura de um sistema
no primado que a mecânica conservará du­ material qualquer, desde que se conheçam
rante a maior parte do século nos âmbitos suas condições iniciais e suas características
da física e, mais geralmente, nas ciências mecânicas. A idéia do determinismo me-
da natureza. canicista permeia toda a cultura do século
Exatamente na primeira metade do sé­ X IX , e o personagem mais representativo
culo, a mecânica clássica alcançou seu nível do determinismo mais extremo é P. S. de
mais elevado, inclusive por meio da aplica­ Laplace (1749-1827).
ção sempre mais profunda da matemática. A mecânica alcançara tanta precisão
Aliás, a partir de sua aplicação à mecânica, e profundidade, desempenhando papel tão
a matemática ganhou impulso decisivo para central na física e nas ciências em geral,
se desenvolver e progredir, especialmente que desde o século anterior praticamente
na análise dos infinitesimais. Dessa aliança nenhum cientista punha em dúvida o fato
nasceu e logo se tornou autônom a uma de que qualquer fenômeno natural (físico,
nova disciplina: a física matemática (A. M. químico, biológico etc.) pudesse ser explica­
Cdpítulo décimo sétimo - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s no s é c u l o /(D/(

do com as leis da mecânica clássica. Durante primeira é cedida ao exterior (segundo


todo o período que, a grosso modo, vai da princípio da term odinâm ica). E, assim ,
segunda metade do século XVIII até o fim estam os diante do fundamento teórico do
do século X IX , as pesquisas na física, como problema da energia: em qualquer trans­
em outros campos, se caracterizavam pelo form ação na qual esteja envolvido o calor,
esforço em concretizar um gigantesco pro­ parte da energia se dispersa, aum entando
grama de pesquisa científica que consistia no a desordem do universo. Isso implica a
aprofundamento da mecânica e na extensão tendência geral em direção a um equilíbrio
de suas leis à explicação de todos os fenô­ final irreversível.
menos naturais. Nesse sentido, a pesquisa A primeira síntese teórica da termo­
desse período em física se configura como dinâmica foi elaborada por Lorde Kelvin
“ ciência normal” , no sentido que Kuhn deu (1824-1907) em 1865: foi ele quem introdu­
a esse termo, dominada pelo paradigma do ziu o conceito de “ entropia” , grandeza que
mecanicismo. N a realidade a origem do expressa a desordem que, em um sistema
mecanicismo era ainda anterior, podendo-se fechado, cresce irreversivelmente a cada
fazê-la remontar a Descartes. Entretanto, a transformação. Nesse ponto, seria grave a
realização do programa mecanicista só foi contradição com a mecânica de Newton,
tentada no século XIX. teoria que se disse “ dos fenômenos reversí­
Esse program a realizou-se plenamen­ veis” : entretanto, é uma contradição apenas
te, sem nenhuma dificuldade, no setor da aparente. Como demonstram J. W. Gibbs
acústica, já que, precisamente nesse perío­ (1839-1903), L. E. Boltzmann (1844-1906),
do, a acústica encontra sua sistem atização Clausius, Rayleigh, Maxwell (sobre o qual
teórica como estudo mecânico das ondas falaremos adiante) e outros, a composição
nos meios materiais (J. W. Rayleigh, 1842­ pode ser encontrada através da aplicação
1919). A partir desse momento, o estudo dos métodos estatísticos a sistemas que,
dos sons deixa de ser objeto de pesquisa como os termodinâmicos, constam de nú­
b ásica p ara ser co n sid erad o p red o m i­ mero enorme de partículas: com base nessa
nantemente do ponto de vista aplicativo, prem issa, demonstra-se que a passagem
técnico e interdisciplinar. O program a me­ espontânea de calor de um corpo mais frio
canicista também se realizou com a mesma para um corpo mais quente, ou uma trans­
plenitude, embora depois de num erosas form ação term odinâm ica com pleta não
dificuldades e da brilhante resolução de ocorre na realidade, embora sendo possível
m uitos problem as difíceis, no setor da em teoria, porque sua probabilidade de se
termologia. O primeiro problema foi pro­ verificar é quase nula.
posto pelo grande matemático J. B. Fourier O sucesso do mecanicismo na ótica
(1758-1830), que estudara teoricamente a foi por longo tempo mais cômodo. Neste
condução térmica: ele observou que o calor ramo, como na termodinâmica, registramos
se propaga sempre segundo uma direção a competição entre teorias corpusculares e
privilegiada, do corpo de temperatura mais ondulatórias: entretanto, enquanto a teoria
elevada para o corpo de temperatura mais do calor como substância material que passa
baixa, apresentando, portanto, tendência de um corpo a outro é logo abandonada, no
para o equilíbrio. Isso parecia em contraste caso da luz continuam coexistindo ambas
com a mecânica clássica, que exclui tanto a as famílias de teorias. Com efeito, enquan­
existência de direções privilegiadas quanto to a experiência de Young corroborava a
a tendência ao equilíbrio e à irreversibi- teoria segundo a qual a luz é onda através
lidade. A segunda questão veio do estudo de substância particular (o “éter” ), outras
das transform ações energéticas. Em 1845, experiências sobre a refração e a dupla re-
J. R Joule (1818-1889) demonstrou que fração (J. B. Biot, 1774-1862; D. Brewster,
a energia mecânica pode se transform ar 1781-1868) corroboravam a teoria rival,
integralmente em calor (primeiro princípio isto é, segundo a qual os raios luminosos
da termodinâmica). Alguns anos depois, R. são feixes de corpúsculos. A controvérsia
J. E. Clausius (1822-1888), com base nos encontrará uma primeira definição, em sen­
estudos de N . L. Sadi Carnot (1792-1832), tido ondulatório, com Maxwell. E só então
enunciou o princípio segundo o qual nun­ nascerão os contrastes com a mecânica, pois
ca é possível transform ar integralmente até aquele momento todos acreditavam que
certa quantidade de energia térmica em podiam inserir ambas as teorias no âmbito
energia mecânica, uma vez que parte da das leis da mecânica.
348
Sétima parte - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s , em piriocH +icism o e c o n v e n c io n a lism o

3*Da ele+ros+á-Hca espira de condutor percorrida por corrente.


à e le + ro d in â m ic a M. Faraday (1791-1877), já então uma das
raras figuras de estudiosos de múltiplos
interesses, como Volta ou Young, partindo
do atento exame das pesquisas realizadas
O primeiro obstáculo intransponível até aquele momento, hipotetizou que seria
no caminho da realização do programa me- possível obter uma corrente elétrica com
canicista, porém, veio com o progresso dos a variação de um campo magnético. Esse
estudos e das pesquisas sobre a eletricidade. fenômeno (indução eletromagnética) foi
A invenção da pilha por Volta revestiu-se de verificado experimentalmente por J. Henry
importância fundamental, enquanto permi­ (1799-1878), conhecido também por ter rea­
tiu evidenciar cargas elétricas relevantes por lizado o primeiro eletromagneto. A primeira
tempo suficientemente longo para que se lei quantitativa das correntes induzidas foi
pudessem observar seus movimentos, isto form ulada em 1830 por F. E. Neumann
é, as correntes elétricas. Em outras pala­ (1798-1895). A história posterior da eletro­
vras, com Volta nos situamos na transição dinâmica e do eletromagnetismo é a história
da eletrostática para a eletrodinâmica. As de uma enorme quantidade de aplicações
duas leis da corrente elétrica nos condutores técnicas e práticas de vastíssimo impacto
sólidos foram enunciadas em 1827 por G. sobre a sociedade: do motor aos geradores
S. Ohm (1787-1854), e ainda hoje são de­ elétricos, do telefone às lâmpadas elétricas.
signadas por seu nome. Entre os efeitos das M as tratar de aplicações técnicas extrapola
correntes, o primeiro a ser experimentado os objetivos do presente volume.
foi o efeito químico (hidrólise, eletrólise),
o que ocorre logo depois do anúncio da
realização de Volta — e note-se que, como 4 O e le + fó m a g n e fis m o
disciplina científica, a química nascera recen­
e a n o v a s ín + e s e t e ó r i c a
temente. Por volta de 1840, Joule estabelece
a lei segundo a qual um segundo efeito se
desenvolve a partir das correntes elétricas:
o efeito térmico. Entretanto, não seriam as Faraday teve o mérito de realizar uma
investigações sobre esses dois novos efeitos série de experimentos sistemáticos sobre o
que proporiam elementos de crise para o eletromagnetismo, e de inserir seus resulta-
programa mecanicista, e sim o efeito eletro­
magnético. E, como veremos, a crise seria
tão grande que contribuiria de modo deter­
minante para abalar as bases da construção
do mecanicismo.
Para dizer a verdade, os primeiros es­
tudos modernos de eletrostática se haviam
inserido perfeitamente no mecanicismo, a
ponto de a lei fundamental da interação
eletrostática ter sido formulada por C. A.
de Coulom b (1736-1806), com base em
analogias com a interação da gravidade: a lei
de Coulomb, precisamente, é formalmente
semelhante à lei da gravidade universal de
Newton. Os primeiros experimentos sobre
os efeitos magnéticos da eletricidade re­
montam ao século XVIII, mas também no
caso desse fenômeno só se tornam possíveis
experimentações adequadas com a disponi­
bilidade da pilha. Em 1819, H. C. Oersted
(1777-1851) verifica experimentalmente
o efeito de uma corrente elétrica sobre a
agulha magnética. N o ano seguinte, A. M.
Ampère (1775-1836) demonstrou a com­ O cientista francês André-Marie Ampère,
pleta equivalência entre um magneto e uma em uma gravura da época.
Cãpltulo décimo sétimo - O d e s e n v o l v i m e n t o d a s c i ê n c i a s n o s é c u l o /K

dos em um quadro teórico novo. Ele não que está resumida em quatro fórmulas veto-
se ocupava tanto das aplicações práticas riais de derivadas parciais, as “ equações de
de seus estudos, e sim muito mais de seu M axwell” . Sua expressão matemática é um
valor cognoscitivo teórico: como Oersted tanto complicada, mas o conceito de fundo
ressentiu-se profundamente da influência é simples: é verdadeira a hipótese de Fara­
de Schelling e de outros filósofos alemães day, segundo a qual as variações do campo
da natureza, Faraday nutria a convicção, magnético induzem um campo elétrico e as
no início puramente metafísica, de que a variações de fluxo do campo elétrico indu­
eletricidade, o magnetismo, a luz e a pró­ zem um campo magnético. Esta é a primeira
pria gravidade eram manifestações diversas grande síntese teórica no campo da física
de uma força única. E, como aconteceu depois de Newton. E, como a de Newton,
tantas vezes na história do pensamento, a essa é uma construção puramente abstrata,
ciência adquire traço de metafísica com o matemática. Além disso, Maxwell morreu
progresso de suas possibilidades técnicas. prematuramente, não tendo podido pô-la
Foi precisamente Faraday quem abriu o à prova com técnicas novas. M as, como
caminho, verificando experimentalmente teoria científica, ela previa fenômenos que
que um campo magnético pode fazer girar ainda não haviam sido observados, o que
o plano de polarização da luz, e estudando a expunha a controles futuros. A primeira
matematicamente as propriedades dos cam­ grande série de experimentos, justamente,
pos elétrico e magnético. M as será Maxwell tratou da hipótese da existência das ondas
quem alcançará o sucesso. eletromagnéticas e suas propriedades, sendo
J. C. M axwell (1831-1879) parte da dirigida por H. Hertz (1857-1894) nove
renúncia a inserir em uma mesma teoria anos depois da morte de Maxwell. Hertz
também os fenômenos gravitacionais. E verificou também que tais ondas têm todas
focaliza seu interesse no eletromagnetismo as propriedades geométricas das ondas lu­
(embora não deixando de lado, por exem­ minosas (reflexão, refração, difração etc.).
plo, os estudos de termodinâmica). Entre Em seguida, vieram outras verificações: no
os anos de 1861 e 1873, em uma série de conjunto, ficou corroborada a hipótese de
trabalhos, expôs toda a teoria clássica do fundo, também proposta por Maxwell, de
campo eletromagnético que leva seu nome, que a luz não era mais do um que caso par-
Sétima parte - O d ese n v o lv im en to d a s c iê n c ia s, em piriocriticism o e c o n v en c io n alism o

ticular de onda eletromagnética. A teoria, irreversível, precisamente naquilo que fora


portanto, logo se consolidou. sua base empírica originária, ou seja, as
leis de Kepler, particularmente a primeira.
Em 1859, U. J. J. Le Verrier (1811-1877),
o mesmo que treze anos antes previra a
existência de Netuno a partir de acuradas
com a m e c â n ic a avaliações de anomalias no movimento de
d e T M ew to n Urano, observa no movimento de Mercú­
rio uma anomalia diversa, não explicável
com hipótese análoga. M esmo tendo em
Nesse ponto, estariam dadas as con­ vista todas as possíveis perturbações, há
dições parà um novo período de ciência uma rotação da elipse em torno ao sol que
normal (no sentido de Kuhn), não fosse pela se revela absolutamente inexplicável à luz
dualidade dos paradigmas: com efeito, logo da teoria de Newton. Trata-se de cerca de
apareceram os primeiros contrastes entre as um décimo de milésimo de grau ao ano,
duas teorias gerais. E o contraste chegou a anomalia mínima, mas já então claríssima,
tal ponto que tornou definitivamente inú­ que seria confirmada por sucessivas e mais
teis todas as tentativas para conciliá-los. precisas observações.
Com efeito, uma teoria “ m ecânica” das A crise da mecânica clássica encontra
ondas eletromagnéticas postulava, como uma referência epistemológica em E. Mach,
no caso da luz, que elas fossem vibrações que realiza uma crítica radical aos princípios
(análogas às ondas sonoras nos meios m a­ da mecânica clássica, evidenciando suas con­
teriais) de um meio particular que permeia tradições mais graves, particularmente em
toda a matéria, de propriedades um tanto torno da hipótese do movimento absoluto,
singulares, chamado “ éter” . E o próprio e concluindo pela renúncia à formulação
M axwell, como muitos outros estudiosos de qualquer modelo da natureza, mecânico
anteriores, acreditava em sua existência. ou de outro tipo, fundamentando então o
Essa existência, porém, implicava a exclu­ conhecimento na pura e simples conexão
são de que duas cargas pudessem interagir de sensações.
diretam ente a distância, com o New ton Apesar das numerosas tentativas rea­
acreditava que pudesse acontecer no caso da lizadas no fim do século X IX para sanar a
interação gravitacional entre duas massas. crise da mecânica clássica, pode-se afirmar
M as, sobretudo, as tentativas de determinar substancialmente que, naquele ponto, a
as propriedades “ mecânicas” do éter davam teoria de M axw ell estava praticam ente
resultados desalentadores: ele deveria ser ao consolidada, ao passo que a de Newton já
mesmo tempo rigidíssimo e extremamente se tornara insustentável, permanecendo em
pouco denso, deveria ter de interagir com vigor apenas porque ainda não havia em
as outras substâncias em alguns casos e disponibilidade uma alternativa válida, para
em outros não, e assim por diante. Foram a qual seria preciso esperar o gênio de A.
co gitad as m uitas hipóteses engenhosas Einstein (1879-1955). Entrementes, porém,
para “ acertar as contas” numa conciliação o terreno para Einstein estava sendo prepa­
entre as duas teorias; como quer que seja, rado por H. A. Lorentz (1853-1928), que,
isso, porém, já constitui a primeira fonte de na tentativa de conciliar as teorias depois das
dúvida, abalando a confiança da qual tinha experiências de Michelson e Morley, elabora
gozado a mecânica clássica por mais de um um método para a mudança das coordena­
século e meio. das (as “ transformações de Lorentz” ), que se
N a realidade, as duas teorias são tornaria essencial para a síntese einsteiniana,
fundamentalmente incompatíveis: Newton, embora ainda imprecisa: nele, o tempo não
por exemplo, acreditava no espaço e no é mais absoluto, mas varia de um sistema
tempo absolutos e na ação instantânea a para outro, ao passo que as equações de
distância entre dois corpos, ao passo que M axwell são invariáveis.
M axwell excluía que duas cargas pudessem O utra grande reviravolta teórica
se atrair ou repelir diretamente, e teorizava também estava se preparando nesse meio
sua interação através do éter, portanto, tempo: a que levaria à teoria dos quanta e
não instantânea, rejeitando assim o espaço ao estudo da estrutura interna do átomo.
e o tempo absolutos. M as, outra série de Em 1897, J. J. Thomson (1856-1940) de­
evidências pôs a teoria de Newton em crise monstra a natureza corpuscular dos raios
Cãpítulo décimo sétimo - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s no s é c u lo

catódicos, isto é, estuda o elétron. Três anos ação ” . M as a essas duas novas famílias de
depois, M ax Planck (1858-1947), estudan­ teorias físicas fundamentais retornaremos
do a energia térmica emitida pelo “ corpo quando falarmos do desenvolvimento das
negro” , introduz o conceito de “ quanto de ciências no século X X .

..— VI. A l ingüística: ------------


•f"lumbold+/ Bopp,
c\“ lei d e C\r\w\Yn' e o s W o g m m á t i c o s -

W . v o n 'HM m boldt: ram efeitos benéficos sobre os estudiosos


de gramática comparada. Com efeito, por
a I í n g u a c r i a o p e .n s a n \ e n + o
volta de fins do século XVIII descobrira-se
que a antiga língua sagrada da índia, isto
é, o sânscrito, era aparentada com o latim,
Podemos dizer que o iniciador da lin­
com o grego e com outras línguas européias.
güística moderna foi Wilhelm von Hum­
Sir William Jones (o orientalista inglês que,
boldt (1767-1835). Herder sustentara que independentemente de outros, realizou essa
devia haver um nexo íntimo entre língua
descoberta), falando sobre o parentesco
e caráter nacional. Pois bem, Humboldt
entre o sânscrito e as línguas européias, fez
precisou a idéia de Herder, afirmando que
questão de dizer, em 1786, que se tratava
toda língua tem sua própria estrutura, típica
de “ afinidade tão forte que nenhum filólogo
e distintiva, que por um lado reflete e por poderia examinar tais línguas sem pensar
outro condiciona o modo de pensar e de se
que elas haviam se originado do mesmo
expressar das pessoas que a usam. Herder
tronco, que talvez não exista m ais” . Nesse
também dissera que “ a cadeia de pensamen­
meio tempo, em 1795, foi fundada em Paris
tos torna-se cadeia de palavras” . Humboldt
a Escola nacional das línguas orientais, na
estudara muitas línguas que, como o chinês, qual Friedrich Schlegel foi buscar subsídios
o malaio, o basco, o hebraico e também
para seu famoso livro Sobre a língua e a
as línguas am eríndias, não pertencem à
sabedoria dos indianos (1808). Entretanto,
esfera indo-européia. Impressionado com
quem apresentou as mais sérias provas do
as grandes diversidades estruturais entre
parentesco dessas línguas e, ao mesmo tem­
os diferentes idiomas, Humboldt pensava
po, fundou a gramática comparada das lín­
que era possível instituir uma relação tão
guas indo-européias foi Franz Bopp (1791­
estreita entre a língua e a mentalidade de um
1867), que, entre 1833 e 1849, concluiu
povo que facilitasse deduzir uma da outra.
sua Gramática comparada (que republicou
Em todo caso, para Humboldt a língua é
em 1857-1860 com complementos), que
criação contínua do espírito humano. Ela
compara o sânscrito com o grego, o latim,
é uma enérgeia e não um érgon. E é ela,
o persa, o germânico (gótico e alemão) e
precisamente, que cria o pensamento: assim
ainda o lituano e o antigo eslavo.
como os números nos servem para calcular, Ao nome de Bopp deve-se ligar o nome
do mesmo modo as palavras nos servem
de Jacob Grimm, que, em 1822, na segun­
para pensar.
da edição de sua Gramática alemã, tornou
conhecidas pesquisas particularizadas sobre
con stru çã o a história fonética das línguas germânicas.
d a "g r a m á i\c a c o m p a ra d a " E embora ela já houvesse sido indicada em
1818 por Rask e em 1821 por Bedsdorff,
foi ele o descobridor da “ lei de Grimm” ,
Humboldt exerceu profunda influência isto é, a lei relativa à rotação consonântica.
sobre a ciência alemã da primeira metade Essa descoberta é de grande importância,
do século X IX , e seus ensinamentos tive­ já que representa o primeiro exemplo da
Sétima parte - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s , em p i^ io cH ticism o e c o n v e n c io n a lism o

regularidade das transformações fonológicas 2) um p onde as outras línguas têm um b;


da língua, que estarão na base da lingüística 3) som de “ th” onde as outras línguas
histórica. Em suma, o que Grimm observou têm um t;
era que, habitualmente, as línguas germâni­ 4) um t onde as outras línguas têm um
cas tinham: d e assim por diante, até chegar à construção
1) um /"brando onde as outras línguas
do seguinte esquema:
européias, como o grego e o latim, têm um p;

Gótico f P b t d h k g

Latim P b f d t c g h

Grego P b ph d th k g kh

Sânscrito P b bh d dh s i h

O sonho desses primeiros compara-


tistas era precisamente o de, através da
comparação, reconstruir um estágio lingüís­
tico primordial. Assim, por exemplo, Bopp
acreditava realmente que podia alcançar a
língua originária pré-indo-européia, pois
estava convencido de que as línguas indo-
européias conhecidas eram somente formas
evoluídas, pela degradação e corrupção, da
língua originária.

3...O c o n + rib u to
d o s //n e o g r a m á f i c o s //

Todavia, contra a idéia de matriz ro­


mântica de que exista uma “ protolíngua”
pura e originária que se pode alcançar atra­
vés da comparação, um grupo de estudiosos
(chamados “ neogramáticos” ), a partir da
década de 1870, sustentou que “ a gramática
comparada não consiste em pôr em con­
fronto as línguas atestadas com um sistema
ideal originário, e sim em um procedimento
Wilhelm von Humboldt que serve para traçar, entre duas datas fixas,
(1767-1835), a história das línguas pertencentes a uma
imciador da lingüística moderna. mesma família” (M. Leroy).
Capítulo décimo sétimo - O d ese n v o lv im en to d a s c i ê n c i a s no sé c u lo x j x

A principal censura dos neogram á­ com base em evoluções lingüísticas cujos


ticos aos velhos comparatistas era de que precedentes possam ser seguidos, por meio
andavam em busca de uma língua mítica de documentos disponíveis, durante um arco
“ originária” e “ perfeita” , com a conseqüên­ de tempo mais longo e cujo ponto de partida
cia verdadeiramente grave, como diz um dos nos seja diretamente conhecido” .
mais insignes neogramáticos, ou seja, K. Por isso, outro neogramático, Hermann
Brugmann (1849-1919), de que “ as recentes Paul (1846-1921), afirmou que “ o único
evoluções lingüísticas eram subestimadas estudo científico da linguagem é o método
e consideradas com certo desprezo, como histórico” . E o estudo histórico das línguas
períodos exauridos, decaídos, senis” . M as, levou aos êxitos obtidos pelas pesquisas
prossegue Brugmann, é preciso que nos de­ dos neogramáticos, resultados de grande
cidamos “ de uma vez por todas a abandonar importância relativos à identificação das
expressões tão nocivas como ‘juventude’ e “ leis fonéticas” que, como escreveu Osthoff
‘velhice’ das línguas” , já que “ dessas (ex­ (1847-1909), “ agem cegamente, com cega
pressões), até agora, só derivaram danos e necessidade” . O melhor das pesquisas dos
muito pouco benefício” . O que precisamos, neogramáticos está exposto nos cinco volu­
ao contrário, é “ construir a representa­ mes das Linhas de gramática comparada das
ção geral do desenvolvimento das formas línguas indogermânicas, que K. Brugmann
lingüísticas, não através de hipotéticos e B. Delbrück (1846-1921) publicariam
símbolos lingüísticos originários [...], mas nos anos transcorridos entre 1886 e 1900.

— VII. O nascim ento ---


d a p s ico lo g ia experim en tal

j L ;A "le i p s ic o f í s ic a diferença mínima entre um peso e outro, por


■f-un d a m e n f a I"
exemplo, para que se pudesse ter a sensa­
ção de que um é mais pesado que o outro.
d e W ebe^-Feckne^ Em suma, ele tentou estabelecer a relação
existente entre a intensidade do estímulo
e os juízos que os sujeitos dão sobre essas
Se a sociologia científica nasce e se diversas intensidades.
desenvolve principalmente na França, sob o Foi Gustav Fechner que, através de
signo do positivismo, a psicologia científica acuradas pesquisas experimentais, aperfei­
nasce e se desenvolve sobretudo na Alema­ çoou os resultados alcançados por Weber,
nha, em contato com ciências — então em chegando à “ lei psicofísica fundamental”
rápido progresso — como a física, a biolo­ (a lei de Weber-Fechner) segundo a qual “ os
gia, a anatomia e, especialmente, a fisiolo­ estímulos crescem em progressão geométri­
gia. A gênese da psicologia científica está ca, as sensações em progressão aritmética
ligada aos nomes de Ernst Heinrich Weber e, portanto, a relação entre estímulos e
(1795-1888), Gustav Fechner (1801-1877), sensações é representada por uma curva
Hermann von Helmholtz (1821-1894) e logarítm ica” . Ou seja, as sensações são
Wilhelm Wundt (1832-1920). Professor proporcionais ao logaritmo dos estímulos
de anatomia em Leipzig, Weber dedicou-se que os geram, de modo que (estabelecendo
muito intensamente, de 1829 a 1834, ao S para as sensações, E para os estímulos e
estudo das sensações táteis (sua obra, escrita C para a constante, a ser determinada ex­
em latim, De tactu, é de 1834), tendo calcu­ perimentalmente) temos uma formulação
lado que, a fim de produzir um incremento matemática da lei que se expressa assim: S
igual de sensações, os estímulos deviam = C log. E.
ser aumentados proporcionalmente à sua Essa equação de Fechner dá roupagem
intensidade originária. Em outros termos, matemática a fatos facilmente observáveis.
Weber procurou fixar quantitativamente a “ Se, em um cômodo já iluminado por uma
354 , .
Sétima parte - O d e se n v o lv im e n to d a s c i ê n c i a s , em piH oc^ iticism o e c o n v e n c io n a lism o

vela, acrescentamos uma segunda, o au­ significativas do laboratório de Leipzig são


mento de iluminação será certamente muito sobretudo relativas à visão (estudos sobre
mais sensível do que se levarmos uma vela o contraste visual, sobre a cegueira para as
para um cômodo onde já existem dez. Ou, cores, sobre as ilusões óticas, sobre a visão
ainda, a diferença de poucos gramas entre do movimento etc.), mas também sobre o
dois pacotes leves é logo notada, ao passo tato, o sentido de tempo, a audição e os
que nos passa despercebida a mesma dife­ tempos de reação (que depois revelar-se-iam
rença de poucos gramas entre duas malas de grande interesse para a seleção dos pilotos
pesadas” . Da mesma forma, é possível ouvir de aeronaves velozes).
um cochicho em um cômodo silencioso, mas M as vejamos a teoria de Wundt. Para
é preciso gritar em alta voz para se fazer ele, o objeto da psicologia é constituído pe­
ouvir em uma rua barulhenta. los dados da experiência que é preciso ana­
Falando do nascimento da psicologia lisar em seus “ elementos” . E esses elementos
científica, juntamente com Weber e Fechner, são “ processos mentais” , isto é, atos, ou
devemos recordar também o grande físico e seja, operações ou atividades psicológicas, a
fisiólogo Hermann Helmholtz, que, precisa­ propósito das quais o pesquisador deve de­
mente com base em vasto conhecimento dos terminar as leis que presidem seu desenvol­
órgãos dos sentidos e do sistema nervoso, vimento, como é o caso da lei da causalidade
afirmou que os órgãos dos sentidos não psíquica (que é diferente da lei da causali­
são tanto registradores, e sim muito mais dade física, já que não regula objetos, mas
elaboradores: com efeito, nós não regis­ processos que levam a sínteses criadoras),
tramos objetos que estão diante de nossos ou da lei das relações psíquicas (segundo a
olhos, mas julgamos sua forma, distância, qual um conteúdo de consciência assume
sua disposição em um espaço, e assim por significado na relação e a partir da relação
diante. N ossos órgãos dos sentidos traba­ com os outros conteúdos de consciência).
lham analogamente ao astrônomo, que, para Enquanto isso acontecia na Alema­
determinar a posição de um astro, mede, nha, na França, onde a psiquiatria podia
compara e efetua argumentações dedutivas: se orgulhar de expoentes como Pierre Janet
eles organizam os “ objetos” , elaborando-os e Jean-M arie Charcot (que foi inclusive
e avaliando-os. professor de Freud), a psicologia tomava
impulso sobretudo por mérito de Théodule
Ribot (1839-1916) e de Alfred Binet (1857­
W . W undt 1911). Binet é conhecido por ter idealizado
uma escala para mensurar a inteligência das
e o la b o ra tó rio crianças, ao passo que a Ribot devem-se
de. p s i c o l o g i a e x p e r i m e n t a l algumas obras clássicas de psicopatologia:
d e .L e ip zig As doenças da memória (1881), As doen­
ças da vontade (1883) e As doenças da
personalidade (1885). Para Ribot, o “ eu”
não é essência ou substância, e sim apenas
Entretanto, apesar desses ilustres pre- uma série de acontecimentos mentais que,
decessores, foi Wilhelm Wundt que veio dissociando-se, dão lugar precisamente às
a ser tradicionalmente considerado como doenças da mente.
o primeiro psicólogo experimental. Assis­ N a Inglaterra, Sir Francis Galton
tente de Helmholtz em Heidelberg depois (1822-1911), com A hereditariedade do
de ter sido professor em Zurique, obteve a gênio (1869), sustenta, com base estatística,
cátedra de psicologia na Faculdade de Filo­ que o gênio se transmite por via biológica.
sofia de Leipzig em 1875. Foi aí, em 1879 Claro, com esse livro, Galton (que era primo
(data crucial para a história da psicologia), de Darwin) propunha um problema novo
que Wundt fundou o primeiro instituto de e interessante e, sobretudo, exemplificava
psicologia experimental. N esse instituto a aplicação de uma metodologia fecunda;
receberam sua formação científica os estu­ entretanto, o que causava perplexidade era
diosos mais eminentes da nova disciplina, sua identificação entre “ gênio” e “ homem
não apenas alem ães (Külpe, Kraepelin, de sucesso” , e o fato de não considerar a
Lehmann), mas também norte-americanos influência do meio e da educação sobre a for­
(Cattell, Stanley H all, Warren, Stratton, mação de personalidades excepcionais. Até
Titchener e outros). E as contribuições mais em nossos dias existem teorias (as teorias
Cãpítulo décimo sétimo - O desen volvim en to d a s c iê n c ia s no sé c u lo

inatistas) e ilustres biólogos (além de psicó­ foram dadas precisamente por aqueles que
logos) que defendem a tese de que “ gênio já se haviam formado com Wundt em Leipzig,
se nasce” . Outro interesse especial de Gal- entre os quais cabe mencionar J. Stanley
ton foi pelos problemas de mensuração das Hall (1844-1924), que, em 1883, fundou o
capacidades humanas, como testemunham laboratório de psicologia experimental de
suas Pesquisas sobre a capacidade humana Baltimore, e James Cattell (1860-1944), que,
e seu desenvolvimento (1883). Ainda na tendo-se ocupado do emprego dos reativos
Inglaterra, não devemos esquecer Charles mentais, é considerado como um dos fun­
Spearm ann (1 8 6 3 -1 9 4 5 ), Jam e s Ward dadores da psicologia do trabalho.
(1843-1925) e George F. Stout (1860-1944). N a Itália, cabe recordar E. Morselli, F.
N a América foi W. James quem deu De Sarlo, A. M osso e especialmente G. Sergi,
impulso à psicologia. E as maiores contri­ que fundou um laboratório de psicologia na
buições entre os psicólogos experimentais Universidade de Roma em 1889.

VIII. A) as origens
d a s o c i o l o g i a c ie n t ífic a

Ê m i l e D u rl<ke.im determinar a natureza da sociedade. E a so­


e a s V e g r a s d o m éto d o
ciologia não é nem psicologia nem filosofia.
. I/ . /; Como, da mesma forma, a sociologia não
so c io lo g ic o pode pretender se erigir em scientia scien-
tiarum. Para Durkheim, a sociologia é uma
ciência: uma ciência autônoma e diferente
das outras ciências. Entretanto, para que a
A sociologia do século X IX é a “ socio­ sociologia possa se qualificar como ciência
logia dos filósofos sistemáticos” . Ela é filha autônoma, deve-se especificar tanto o “ ob­
das esperanças ou dos temores suscitados jeto” como as “ regras do método” . E é isso
pelo desenvolvimento da sociedade indus­ que faz Durkheim em As regras do método
trial, cujas características essenciais Saint- sociológico (1895). Antes de mais nada,
Simon intuíra: organização racional, desper- Durkheim empenha-se na especificação do
sonalização funcional, interdependência das objeto típico da sociologia, isto é, dos “ fatos
funções, planificação e divisão do trabalho, sociais” .
programação centralizada da produção (F. Os fatos sociais são irredutíveis à vida
Ferrarotti). Diante desse fato, Comte teoriza biológica e têm como base a sociedade.
um sistema autoritário, Spencer um sistema Como tal, o “ fato social” não se reduz ao
sociológico em evolução, mas sob o signo de fato psíquico do simples indivíduo, e isso
um individualismo radical; Proudhon vê na torna-se evidente pela “ coerção” que ele
justiça a mola do progresso, e M arx, por seu — o fato social — exerce sobre o indivíduo
turno, “ pré-vê” uma justiça que se realizará a partir do exterior, seja mediante sanções,
por força de leis inexoráveis que, mudando a seja mediante a resistência que ele opõe às
estrutura material, convulsionarão as atuais tentativas individuais de modificação de
relações sociais injustas. uma instituição, crença ou uso.
Com Émile Durkheim (1855-1917), Assim, existem os “ fatos sociais” , ob­
a sociologia “ sistemática” entra em crise. jeto específico de pesquisa daquela ciência
N a opinião de Durkheim, a sociologia não autônoma que é a sociologia, que, além
é e não deve ser filosofia da história, que disso, poderá se ocupar de duas grandes
pretenda descobrir as leis gerais que guiam categorias de fatos: os fatos “ normais” e
a marcha do “ progresso” de toda a huma­ os fatos “ patológicos” . Ainda em As regras
nidade. Ela também não é e não deve ser do método sociológico, podemos ler: “ Nós
metafísica, que se julgue em condições de chamamos normais os fatos que apresentam
356
Sétima parte - CD d e s e n v o l v i m e n t o d a s c iê n c ia s , em piriocriticism o e co n v en c io n alism o

as formas mais gerais, e daremos aos outros feliz, das sociedades humanas. Entretanto,
o nome de morbosos ou patológicos” . N a ­ registra também elementos de insatisfação
turalmente, “ as formas mais gerais” só se e acena de passagem para o aumento do
dão em relação a determinada sociedade e número de suicídios, tema sobre o qual, em
em fase específica de seu desenvolvimento. 1897, publicou O suicídio.
Desse m odo, uma função preliminar da Depois de discutir sobre a predispo­
sociologia é a da classificação dos tipos sição psicológica e sobre a determinação
de sociedade, o que é feito distinguindo as social do suicídio, Durkheim, baseando-se
sociedades, com base em seu grau de com­ em comparações estatísticas, distingue três
plexidade, desde as hordas até as modernas tipos de suicídio, que correspondem a três
sociedades complexas. Existem, portanto, os tipos de solidariedade social.
fatos sociais; estes podem ser distinguidos, Há o suicídio altruísta, provocado por
sem que se os avalie, em fatos normais e motivos sociais, como quando um homem
fatos patológicos; a sociologia é a ciência se mata para evitar o opróbrio da desonra,
que, considerando os fatos sociais “ como ou como quando uma pessoa anciã de tribo
coisas” , procura “ a causa determinante de nômade tira a própria vida para evitar ser
um fato social [...] entre os fatos sociais an­ peso para o grupo. O suicídio altruísta se
teriores e não entre os fatos da consciência verifica no seio de grupos fortemente coesos,
individual” . onde os fins coletivos são vividos e conside­
rados como superiores aos fins individuais,
e onde o indivíduo conta unicamente em
O su ic íd io a ltm ís ta e e g o ís t a função do grupo.
Ao lado do altruísta, porém, há o sui­
cídio egoísta, que se dá em pessoas pouquís-
Para Durkheim, essas reflexões meto­
dológicas não constituíram um exercício in
vacuo. Ao contrário, elas brotaram do mais
vivo de suas pesquisas concretas. Entre elas,
seu primeiro trabalho importante trata D a L ’ANNÉE
divisão do trabalho social (1893), que busca
oferecer explicação da divisão do trabalho,
mas, sobretudo, procura investigar sobre a
SOCIOLOGIQUE
solidariedade social na sociedade moderna. l > U B U * I S S 0 U 8 L.V D IR E C T IO N
»•
Para tanto, Durkheim distingue entre so­ tM IlE DURKHEIM
ciedade simples (baseada nos vínculos da I W m m de «oci»i»gi« * U Faculte ém M im 4• rO»Í««nilá
4t Bnidtiu.
consangüinidade) e sociedade ou tipo social
w ic l « w u M t n a i m n .
secundário, tipificado pela divisão e pela
especialização das funções. ■tMtMr to bUf*»: C. UtW, rfewf* * « mm
■OMtÉ, ■—«w é» rmHiimtu k *• MmáfM m t
rkueomitT, h hut , um , *. mimam» —m iw. mmbi .
N as sociedades simples ou primitivas,
Durkheim vê um patrim ônio comum de
idéias, avaliações e experiências que cimenta FRtaitlK AXStB Cim-UiT)
os membros da comunidade. Nesse tipo de
• L* pn kiM m * tir f iit w W W M
sociedade, temos uma solidariedade mecâ­
- C*rnmr*( It* / m m n c M n «
nica. Essa solidariedade mecânica, porém,
não se encontra na sociedade industrial l>r* 'ravMU «iu l-JoHM (M * m M Juin WI,
ta f* *w«jw«#ae. atwwfr. jurUiqmt, erimi-
moderna, onde os sujeitos se distinguem KMÍr. •taMNMorfw. — Üiwrr*.

por p ro fissão , por am biente fam iliar e


social, pela educação recebida, em suma,
PARIS
com base na divisão do trabalho. E, na A 9 C I£ * * e L lB t A U I E C tK X K ft t A lL L lR f t t E f O
opinião de Durkheim, a divisão do trabalho
teria precisamente a função de fornecer o 109,KELIXALCuiiim
AN, ÊDITEU*
iiiiiii , 191
fator de coesão em condições de unir em 1898
Tm iÉMn*.
solidariedade orgânica membros não mais
homogêneos e com diferentes interesses.
Durkheim aprova o fenômeno da divisão Frontispício do primeiro anuário
orgânica do trabalho, vendo nela um de­ de “L’année sociologique ”,
senvolvimento normal e, em última análise, dirigido por Durkheim.
Cãpltulo d é c it T lO s é t i m o - O d e s e n v o l v i m e n t o d a s c i ê n c i a s n o s é c u l o

simo ligadas ao grupo. Em outros termos, mais baixo ainda entre os judeus, devido à
o suicídio egoísta é típico de uma situação integração social produzida por suas respec­
social em que prevalecem a responsabilida­ tivas crenças. Durkheim nos diz ainda que se
de, a iniciativa individual e a livre escolha registram mais suicídios entre os solteiros,
pessoal, na qual a crise deve ser enfrentada os divorciados e os viúvos do que entre os
mais com meios e recursos pessoais do que casados, da mesma forma que, entre estes,
institucionais. são mais numerosos nas pessoas casadas sem
filhos do que nas casadas com filhos.

su ic íd io a n ô m ic o
lu ê n c ia s d e D u rk k e i m

Por fim, além do suicídio altruísta e


do egoísta, há ainda o suicídio anômico. A Criticado por vários lados (pela idéia
anomia (a-nomos = privado de leis) é uma de “ fato social” , pela rigidez fechada de
situação social na qual não existem mais uma sociologia “ autônom a” que é como
leis ou regras ou, se existem, são confusas, que protegida das contribuições das outras
contraditórias ou então ineficazes. Nessa si­ ciências), Durkheim (ao qual devemos um
tuação, até quando o grupo permanece, não trabalho de grande relevância sobre As
há mais qualquer solidariedade e o indivíduo formas elementares da vida religiosa, 1912)
não conta mais com sistemas de apoio nem influiu decisivamente em numerosa gama
com pontos de referência. A anomia é um de sociólogos, a começar por L. Lévy-Bruhl
estado de desordem. Durkheim deu-se conta (1857-1939, autor de obras como A moral
de que o percentual de suicídios aumenta e a ciência dos costumes, 1903; As funções
nas épocas de forte depressão econômica e mentais nas sociedades inferiores, 1910; O
desordem social, mas viu que esse percentual sobrenatural e a natureza na mentalidade
também cresce nos períodos de prosperidade primitiva, 1931). Raym ond Aron vê no
imprevista: segundo ele, a depressão e a pros­ centro do pensamento de Durkheim “ o
peridade levariam à derrocada das expecta­ esforço para demonstrar que o pensamen­
tivas e, com isso, ao aumento dos suicídios. to racionalista, individualista e liberal é o
Por outro lado, Durkheim também termo provisoriamente último da evolução
apresenta muitas exemplificações de sui­ histórica. Essa escola de pensamento, que
cídios altruístas e egoístas que confirmam corresponde à estrutura das sociedades mo­
suas idéias. Assim, por exemplo, chegamos dernas, deve ser aprovada, mas ao mesmo
a saber que o número de suicídios é muito tempo arriscaria de provocar a desagregação
elevado entre os livres-pensadores, bem social e o fenômeno da anomia, se as normas
como entre os protestantes, ao passo que coletivas, indispensáveis a todo consenso,
entre os católicos o percentual é baixo e não fossem reforçadas” .
C a p í t u l o d é c im o o it a v o

O empinocn+icismo
de Rickard y\vervarius e Ê m st ]sÁc\<zW/
e o co m/ervciorval is mo
de H ervri P o mca^e e p i e ^ e Duk^m

I. O e m p i H o e r i t ic i s m o

•Richard Avenarius (1843-1896) - professor de filosofia indutiva em Zurique


e autor dos dois volumes da Crítica da experiência pura (1888-1890) - cunhou o
termo empiríocriticismo.
Com o empiríocriticismo Avenarius quis indicar uma filosofia Avenarius:
que procura "alcançar uma posição acima das partes"; uma filo- o filósofo
sofia dirigida a propor-nos uma volta à experiência que precede da "experiência
a distinção entre o físico e o psíquico, e que não é interpretável Pura"
nem em sentido idealista nem em direção materialista. 5 1M 2
• A experiência - diz Avenarius para poder ser analisada criticamente deve
tornar-se pública; portanto, é experiência - ao ver de Avenarius - tudo aquilo que
é afirmado. Entre as coisas que são afirmadas há diversos e diferentes conceitos
de mundo; estes são despojados dos acréscimos estranhos a fim de chegar a um
conceito universal, natural, de mundo que consta de três propo­
sições fundamentais: Os três elementos
1) há indivíduos; do conceito
2) há constituintes do ambiente; natural
3) entre os indivíduos e os constituintes do ambiente exis- de mundo
tem múltiplas relações, e relações se verificam também entre os § 1-3
constituintes do ambiente.
Ora, indivíduo e ambiente estão na mesma linha; é falsa a contraposição
entre o físico e o psíquico; toda a vida psíquica, compreendendo a ciência, é um
fenômeno biológico ao qual são aplicáveis as idéias darwinianas de luta pela exis­
tência, seleção e adaptação.
• Do que foi dito logo se compreende o princípio da "eco- .
nomia do pensamento". ^
Em Avenarius assume dois
i . 1
significados:
. ~ da economia
.
1) o pensamento e visto como o resultado da adaptaçao do pensamento"
progressiva dos indivíduos ao ambiente, resultado que tende § 73
a obter o máximo rendimento com o mínimo esforço;
2) a filosofia, como crítica da experiência pura, empenha-se-em purificar
o ambiente cultural das visões de mundo - como a espiritualista e a materialis­
ta - que estão na base de disputas estéreis, eternas e não passíveis de decisão.
•Também
■■ |/ « §
Ernst
t •
Mach- (1838-1916)
■|
propõe uma concepção /rlOCl fi (/ ICÍ/JOU
|
biologica do conhecimento, considerando-o como uma progres- eo espaço absolutos
siva adaptação aos fatos da experiência. Professor de física em de Newton são
Graz e em Praga, e sucessivamente de filosofia em Viena, Mach "monstruosidades
é autor de obras altamente significativas, como: A mecânica em conceituais"
seu desenvolvimento histórico-crítico (1883), onde, entre outras §2.1 e 2.3
Sétima parte - O d ese n v o lv im en to d a s c iê n c ia s , em piriocriticism o e c o n v en c io n alism o

coisas, critica as "monstruosidades conceituais" como o espaço e o tempo abso­


lutos da mecânica newtoniana; A análise das sensações e a relação entre físico e
psíquico (1900); Conhecimento e erro (1905).
• Na base da ciência, afirma Mach, não há fatos, mas sensações: "as cores, sons,
espaços, tempos [...] são para nós provisoriamente os elementos últimos". Ese esta
é a base, a tarefa da ciência é uma tarefa biológica: "a de oferecer ao indivíduo
humano, a partir da sensibilidade plenamente desenvolvida,
A tarefa uma orientação o quanto possível realizada". O homem acha-se
da ciência continuamente enfrentando problemas. "O desacordo entre os
é uma tarefa pensamentos e os fatos, ou o desacordo entre pensamentos, esta
biológica é a origem do problema", escreve Mach em Conhecimento e erro.
§22 Com o fito de dar solução aos problemas, a imaginação saboreia
a natureza com grande multiplicidade e riqueza de idéias, que
devem ser passadas pelo crivo da prova para ver se elas estão ou não de acordo
com os fatos.
• A pesquisa se inicia sempre com problemas, por trás dos quais encontra-se a
evolução biológica e cultural da espécie. A pesquisa é uma adaptação conceituai
intencional; ela restabelece a adaptação com a descoberta de elementos constantes
na variedade dos fatos; e eis, então, que a ciência configura-se
Toda a ciência como economia do pensamento, no sentido de que as leis cien-
economiza tíficas permitem alcançar a explicação e o controle de um vasto
experiência número de fatos com o menor esforço intelectual. "Toda a ciência
§ 2.2 tem o escopo de substituir, ou seja, de economizar experiências
pela reprodução e antecipação de fatos no pensamento [...]. A
comunicação do saber por meio do ensino transmite ao aluno a experiência reali­
zada por outros; ou seja, permite-lhe poupar experiências. Conhecimentos expe­
rimentais de gerações inteiras tornam-se posse das sucessivas por meio de escritos
conservados nas bibliotecas. Também a linguagem, que é o meio da comunicação,
é um instrumento econômico".

Em 1876, juntamente com Wilhelm Wundt


e outros, fundou a “ Revista trimestral de
filosofia científica” , destinada a exercer
D l S ig n if i c a d o d o te^m o influência indiscutível sobre a cultura ale­
e m p ir io c r it ic is m o mã. A partir de 1877 — até a sua morte,
ocorrida em 1896, aos cinqüenta e três anos
O termo empiriocriticismo foi cunha­ — , Avenarius ensinou filosofia indutiva na
do por Richard Avenarius para indicar Universidade de Zurique. Em 1876, publi­
uma idéia de filosofia que se esforça por cou o escrito Filosofia como pensamento
“ alcançar uma posição acima das partes” , do mundo segundo o princípio do mínimo
e que se coloca como tentativa decisiva que dispêndio de força. Prolegômenos a uma
o homem faz para considerar criticamente crítica da experiência pura. A esse trabalho
o que outros homens dizem experimentar. está ligada a que seria a principal obra de
Nesse sentido, o empiriocriticismo pretende Avenarius: a Crítica da experiência pura,
propor o retorno àquela experiência que pre­ em dois volumes (1888-1890). De 1891 é
cede a distinção entre o físico e o psíquico, e O conceito humano do mundo.
que não pode ser interpretada nem de modo
idealista nem materialista. E O A concepção
Nascido em Paris, em 1843, de pais d a “e x p e r iê n c ia p u r a ”
alemães originários de Leipzig, Richard
Avenarius estudou filosofia e fisiologia em Antes de mais nada, o que é a “ experiên­
Leipzig e Berlim, laureando-se em 1868. cia pura” de que fala Avenarius? A experiên­
Cãpltulo décimo oitãvo - O em piriocriticism o e o c o n v en c io n alism o

do que ocorre no empirismo tradicional ou,


por exemplo, no positivismo) como enorme
massa de “ experiências afirmadas” , sobre as
quais se exerce depois a crítica, que indaga
sobre as diversas condições em que se situa
ou se verifica cada experiência.

8 5 1 O r e to m o ao c o n c e it o
“n a tu r a l^ d e m u n d o

Um dos resultados mais importantes


da crítica da experiência pura é o retorno
ao conceito natural de mundo. Todos os
sistemas filosóficos, isto é, todos os concei­
tos históricos de mundo, nada mais são que
modificações de uma visão originária, cujo
conteúdo constitui o conceito natural de
mundo e que, por seu turno, consta de três
proposições fundamentais:
a) existem indivíduos;
b) existem constituintes do ambiente;
c) entre os indivíduos e os constituin­
tes do ambiente existem múltiplas relações,
além das relações existentes entre os diversos
Richard Avenarius (1843-1896) constituintes do ambiente.
cunhou o termo “empiriocriticismo ” N a experiência pura, portanto, todo
para indicar uma idéia filosófica homem encontra-se diante de situações de
que pretende propor um retorno fato, nas quais o que se tem verdadeiramente
à experiência que precede a distinção — e originariamente — é um ambiente e
entre o físico e o psíquico. outros indivíduos humanos, ambiente e in­
divíduos ligados por vínculo “ que não pode
ser dissolvido” . O indivíduo e o ambiente
cia pura não é uma espécie de experiência, não são duas realidades opostas: tanto uma
mas a experiência entendida na mais ampla como outra pertencem à mesma experiência,
acepção do termo: é a experiência simples­ pois se tem a experiência do ambiente no
mente, prescindindo de qualquer caracteri­ mesmo sentido em que se tem a experiên­
zação além do que é experimentado. Nesse cia de si mesmo e dos outros indivíduos.
sentido, a experiência pura se aproxima da Essencialmente, o que o crítico descreve é
consideração natural, ingênua e popular da a experiência de interação entre ambiente e
experiência. Com efeito, a visão popular sistema nervoso do indivíduo.
da experiência chama de experiências as Essa é a razão por que Avenarius elimina
percepções dos objetos, a recordação desses a contraposição entre o físico e o psíquico,
objetos, as visões imaginárias, as idéias, os que é contraposição derivada da depen­
juízos, as avaliações etc. E se a experiência dência biológica do indivíduo em relação
pura é todas essas coisas, então surge ime­ ao ambiente, mas que não indica dualidade
diatamente o problema de como distinguir real na experiência. Da mesma forma, não
entre elas ou, se assim se preferir, de como há distinção entre coisa e pensamento ou
de fato são distintas. Esse problema é a entre matéria e espírito.
função específica e fundamental da crítica E nem se dá a possibilidade de dis­
da experiência pura. tinguir a priori, com o faz Kant, um eu
A experiência, para Avenarius, é tudo o dotado de estruturas categoriais. Tudo o
que é afirmado, prescindindo do fato de que que a análise fisiológica nos permite ver
aquele que formula a afirmação seja louco é um conjunto de estados, sempre mais
ou sábio, sonhador ou realista, letrado ou complexos, do sistema nervoso central, que
ignorante, filósofo ou cientista. A experiên­ é tipificado pela capacidade de adaptação
cia, portanto, se configura (diversamente ao ambiente.
Sétima parte - O d e se n v o lv im e n to d a s c iê n c ia s , em p irío criticism o e c o n v e n c io n a lism o

adaptação a um “ ambiente” que apresenta


algo de novo e, portanto, de estranho. A
imaginação premia a natureza com grande
E l i y \ c o n c e p ç ã o b io ló g ic a multiplicidade e riqueza de idéias, idéias que
d a c iê n c ia c o m o a d a p t a ç ã o a o a m b ie n te devem ser passadas pelo filtro da prova para
ver se se coadunam ou não com os fatos, isto
M uito ligada à visão de Avenarius está é, se são verdadeiras ou falsas. E enquanto
a concepção filosófica de Ernst Mach, que “ a adaptação dos pensamentos aos fatos é,
melhor dizendo, a observação, a adaptação
elaborou suas idéias independentemente das
de Avenarius e que, a exemplo dele, propôs dos pensamentos entre si é a teoria. Por ou­
um conceito biológico do conhecimento, tro lado, a observação e a teoria nunca se
considerando-o como adaptação progressiva separam de modo claro, já que quase sempre
aos fatos da experiência. a observação já é influenciada pela teoria
Mach nasceu em Turas, na M orávia, e, tendo importância suficiente, ela então
em 1838. Foi professor de física em Graz exerce por sua vez uma ação sobre a teoria” ,
e Praga e, posteriorm ente, professor de e pode fazê-lo confirmando, contradizendo
filosofia em Viena. M orreu em Haar, nas ou corrigindo a própria teoria. E “ aquilo que
proximidades de Munique, em 1916. Entre a experimentação pode nos fazer conhecer é
as suas obras principais, devemos recordar: a dependência relativa dos elementos de um
A mecânica em seu desenvolvimento histó- fenômeno, ou sua independência. ” O que a
rico-crítico (1883), A análise das sensações ciência nos dá a conhecer, precisamente, são
e a relação entre físico e psíquico (1900), interdependências entre fenômenos.
Os princípios da termologia desenvolvidos Com efeito, “ quando as ciências são
de modo histórico-crítico (1896), Lições muito desenvolvidas, cada vez mais rara­
científico-populares (1896) e Conhecimento mente empregam os conceitos de causa e
e erro (1905). efeito. A razão disso é que esses conceitos
Devemos logo observar que, para Mach, são provisórios, incompletos e imprecisos” ,
as coisas e a natureza de que fala a ciência ao passo que “a noção de função permite
estão bem distantes da coisa em si e para representar muito melhor as relações dos ele­
si, do “ verdadeiro” dado objetivo. Existe mentos entre si” . Mach não critica somente
alguma coisa na base da ciência, só que o conceito de causa, mas também, o que é
essa alguma coisa não são os fatos, e sim as óbvio por tudo o que foi dito, o conceito
sensações. E a idéia que Mach, a exemplo de substância: “ Permanece um só tipo de
de Avenarius, tem do conhecimento é um persistência da conexão (ou relação)” .
conceito biológico: “A função biológica da Assim, a pesquisa começa a partir de
problemas por trás dos quais está toda a
ciência é a de oferecer ao indivíduo humano
de sensibilidade plenamente desenvolvida evolução biológica e cultural da espécie.
uma orientação o mais possível completa. “ Boa parte da adaptação conceituai se
Um ideal científico diferente não é realizá­ realiza de modo inconsciente e involutário,
vel e também não tem nenhum sentido” . A sob a guia dos fatos sensoriais. Se essa adap­
pesquisa científica continua e aperfeiçoa o tação tornou-se bastante ampla a ponto de
processo vital pelo qual os animais inferiores corresponder à maior parte dos fatos que
— por meio de órgãos e comportamentos se apresentam, e se nos defrontamos agora
— se adaptam ao ambiente. ITgfTiiril com um fato que contrasta fortemente com
a linha de pensamento que nos é habitual,
sem que estejam em condições de perceber
C o m o n a s c e m o s p r o b le m a s imediatamente o fator determinante, que
e s u a s s o lu ç õ e s poderia levar a uma nova diferenciação,
então surge um problema. O novo, o insólito
O que é um problema? A tal pergunta, e o maravilhoso agem como o estímulo que
em Conhecimento e erro, M ach responde: chama a atenção para si. Razões práticas ou
“ O desacordo entre os pensamentos e os ainda apenas um sentimento de inquietação
fatos, ou o desacordo entre pensamentos, intelectual podem fazer nascer a vontade
esta é a origem do problema” . Assim, temos de eliminar a contradição e alcançar nova
os problemas, e tentamos resolver os pro­ adaptação conceituai. Surge assim a adap­
blemas mediante hipóteses. Em tal sentido tação conceituai intencional, a pesquisa” .
ele entendeu as hipóteses como tentativas de E a pesquisa restabelece a adaptação com a
Cãpltulo décimo O ltU V O - O em piriocriticism o e o co n v en c io n alism o

descoberta de “ elementos da mesma espécie pré-determinado pelo primeiro. Também na


sempre presentes, apesar da variedade de descrição pode ser economizado trabalho,
fatos. Somente desse modo, escreve Wach usando métodos que permitam descrever de
em A mecânica em seu desenvolvimento his- uma só vez e do modo mais breve o maior
tórico-crítico, torna-se possível a descrição número de fatos” .
e comunicação sintética dos fatos” . “Toda a ciência tem o objetivo de subs­
E aí emerge o conceito de ciência como tituir, ou seja, de economizar experiências,
economia do pensamento, no sentido de por meio da reprodução e da antecipação
que as leis científicas permitem alcançar o de fatos no pensamento” .
conhecimento de vasto domínio de fatos “ Essas reproduções são mais manejá-
com o menor esforço intelectual. “ É fun­ veis do que a experiência direta e, sob certos
ção da ciência pesquisar o que é constante aspectos, a substituem. N ão é preciso refle­
nos fenômenos naturais, seus elementos, xões muito profundas para que nos demos
o modo de sua relação e sua dependência conta de que a função econômica da ciência
recíproca. M ediante a descrição clara e coincide com sua própria essência [...]. A
completa, a ciência procura tornar inútil transm issão do saber através do ensino
o recurso a novas experiências, poupando passa ao aluno a experiência realizada por
assim experiências. Uma vez que se conheça outros, isto é, permite-lhe economizar ex­
a dependência recíproca de dois fenômenos, periências. Os conhecimentos experimentais
a observação de um torna supérflua a ob­ de gerações inteiras tornam-se patrimônio
servação do outro, que é co-determinado e das gerações posteriores por meio de es­

l.rnst Mach ( I S.->8-1 91


"Toda a ciência
tem o escofxi
de 'economizar'
a experiência".
Sétima pavt6 - O d ese n v o lv im en to d a s c iê n c ia s , em piriocriticism o e c o n v en c io n alism o

critos conservados nas bibliotecas. Até a quem, limitado no seu juízo ao período de
linguagem, que é o meio da comunicação, tempo que ele próprio viveu, vê somente a
é um instrumento econômico” . Além disso, direção que a ciência tomou momentanea­
nós “ nunca reproduzimos os fatos comple­ mente” . Mach escreveu uma famosa história
tamente, mas somente naqueles aspectos da mecânica onde critica a possibilidade de
importantes para nós [...]. E também aqui estender leis e conceitos mecânicos a outros
se manifesta a tendência à economia” . E a domínios. E no prefácio à sétima edição
especificação da classificação e a descrição (1912) de A mecânica no seu desenvolvi­
das interdependências, em sum a, “ todo mento histórico-crítico, Mach faz questão
o processo do conhecimento científico, de escrever peremptoriamente: “ Em parti­
tem significado econômico” , já que “ toda cular, não retrato nada de minhas críticas
a ciência tem [...] a função de substituir sobre o espaço e sobre o tempo absolutos,
a experiência” . “ Por isso, a ciência deve que continuo a considerar monstruosidades
permanecer no âmbito do experimentável. conceituais. Nesta edição, fica mais claro o
Se precede a experiência, espera desta a fato de que Newton, embora falando muito
confirmação ou o desmentido. E aquilo dessas entidades, não fez delas nenhum uso
sobre o qual não é possível confirmação efetivo” . Embora conseguisse encontrar os
ou desmentido é algo que não lhe diz res­ pontos fracos da mecânica, encontrando-se
peito” . Embora vendo a ciência dentro da portanto no bom caminho, Mach não conse­
teoria da evolução, e embora sustentando guiu aceitar a relatividade (nem a existência
que a ciência “ constitui indubitavelmente dos átomos).
o fator mais importante do ponto de vista A obra epistemológica de M ach foi
da biologia e da civilização, (enquanto) co­ muito influente entre os convencionalis-
meçou a substituir a adaptação hesitante e tas e mais ainda entre os neopositivistas.
inconsciente pela adaptação metódica, mais Discutida em cada um de seus pontos, foi
rápida e claramente consciente”, M ach não atacada energicamente por Lênin em sua
nega em absoluto que, “ embora no início obra Materialismo e empiriocriticismo: no­
o conhecimento fosse apenas meio, poste­ tas críticas sobre uma filosofia reacionária
riormente, uma vez que se desenvolveram (1908, publicada em 1909). Sem meios-
suas exigências, não se pensa mais na ne­ termos, Lênin escreve que, enquanto Engels
cessidade m aterial” . E 5 5 S IT T T ] segue o caminho do materialismo, Mach
segue o do idealismo: “Nenhum subterfú­
gio e nenhum sofista [...] pode eliminar o
B I (S ^ ít ic a s à m e c â n ic a n e w fc m ia n a fato claro e indiscutível de que a doutrina
de Ernst Mach, a doutrina das coisas con­
Para M ach, o homem é parte da na­ sideradas como complexos de sensações, é
tureza; não há oposição entre instinto e idealismo subjetivo, é simples renascimento
inteligência; esta aperfeiçoa historicamente da doutrina de Berkeley” . N a realidade,
o que o outro construiu; a linguagem, a para Lênin, “ a função objetiva, de classe,
consciência e a razão são resultados da do empiriocriticismo se reduz a servir os
evolução e, agora, instrumentos poderosos fideístas em sua luta contra o materialismo
da evolução; com isso, também a ciência em geral e contra o materialismo histórico
tem seu desenvolvimento histórico. Mach em particular” .
é bem claro sobre a importância da cons­ Diante dessas acusações, sem se per­
ciência desse desenvolvimento: “ Quem co­ turbar muito, Mach replicou: “ Em minhas
nhece todo o curso do desenvolvimento da palavras foram identificadas facilmente opi­
ciência avaliará a importância de qualquer niões comuns, correntes, e eu fui transfor­
movimento científico atual de modo muito mado em idealista, em berkeleyano [...], de
mais livre e correto do que poderia fazê-lo cujas culpas, porém, creio ser inocente” .
Capítulo décimo oitavo - O em pi riocriticism o e o c o n v e n c io n a lism o

II. o c o n v e n c i o n a l i s m o
de f-1enri Po incaré e Pi erre V ukem

• A de Henri Poincaré (1854-1912) é uma forma de convencionalismo mode­


rado. Contra Édouard Le Roy (1870-1954), para o qual a ciência não é mais que
um conjunto de regras de ação, e que afirmava que não nos é
permitido conhecer nada, Poincaré em O valor da ciência (1905) Poincaré:
sustentou que a ciência não pode ser reduzida a simples regras, a ciência
como as regras do jogo: "as regras do jogo são convenções ar­ ser não pode
bitrárias [...'], enquanto a ciência é uma regra de ação que tem a simples reduzida
sucesso, ao menos em linha geral". Em outros termos, "se [...] as ~^§ 1.1 regras
receitas científicas têm um valor como regra de ação, isso depende
do fato de que sabemos que elas têm sucesso [...]. Mas saber isso
quer dizer saber algo, e então porque vindes dizer-nos que não podemos conhe­
cer nada? A ciência prevê e, justamente porque prevê, pode ser útil e servir como
regra de ação".
• A ciência é feita de generalizações; as generalizações são hipóteses e as
hipóteses, entre outras coisas, têm um papel - assim lemos em Ciência e método
(1909)-n a escolha de fatos "de grande monta". Eaqui devemos
salientar que, para Poincaré, é o cientista que cria o "fato cientí­ As teorias
fico", pondo os "fatos brutos" dentro das redes interpretativas devem ser
das teorias. Teorias que devem ser submetidas ao controle empí­ controladas
rico. E se uma teoria - escreve Poincaré em A ciência e a hipótese ->§ 1.2
(1902) - "não suporta semelhante prova, devemos sem dúvida
abandoná-la". E o físico que renunciou a uma de suas hipóteses deveria estar cheio
de alegria, "porque encontra assim uma ocasião inesperada de descoberta".
• Poincaré é conhecido, além de pelo seu convencionalismo moderado no
campo da epistemologia das ciências físico-naturalistas, também por sua tese con-
vencionalista a propósito dos axiomas da geometria. Estamos no
período sucessivo à descoberta das geometrias não-euclidianas; Os axiomas
e, diante do problema de saber qual geomètria seria verdadeira, são da geometria
Poincaré responde: "Os axiomas geométricos são convenções convenções
[...]. Os axiomas da geometria [...] não são mais que definições
mascaradas [...]. Uma geometria não pode ser mais verdadeira ~^§ 1.3
que outra. Ela pode apenas ser mais cômoda".
• Físico, historiador da ciência e filósofo, Pierre Duhem (1861-1916), com seu
livro A teoria física: seu objeto e sua estrutura (1906), quer realizar-com a persua­
são de que fazer a análise lógica de um princípio físico significa fazer a análise
histórica dele - uma "análise lógica do método com o qual a ciên­
cia física progride". A teoria física, afirma Duhem, é um conjunto Duhem:
de proposições matemáticas, ao mesmo tempo convencional e a experiência
econômico, tanto mais poderoso quanto mais vasto é o número é, para uma
das leis experimentais delas deriváveis. No desenvolvimento da teoria física,
física Duhem vê uma luta sem descanso entre "a natureza que de o único critério
não se cansa de produzir" e a razão que não quer "cansar-se de verdade
compreender": o experimentador põe em luz "fatos até então -^ § 2
insuspeitados" e o teórico elabora continuamente "representa­
ções mais concisas, sistemas mais econômicos, a fim de que a mente humana possa
aumentar tais riquezas". A física é uma construção do intelecto humano; e "o
acordo com a experiência é, para uma teoria física, o único critério de verdade".
Sé tlT H ã p ã Y te - CD d e s e n v o l v i m e n t o d a s c i ê n c i a s , e m p i r i o c r i t i c i s m o e c o n v e n c i o n a l i s m o

E não devemos esquecer que a física não nos dá a coisa em si, "não nos revela em
nenhum caso as realidades que se escondem por trás das aparências sensíveis. Mas
- observa Duhem quanto mais se aperfeiçoa, mais percebemos que a ordem
lógica na qual ela dispõe as leis experimentais é o reflexo de um arranjo episte-
mológico".
• Diante do fetichismo dos fatos os convencionalistas reivindicam o primado
do teórico. E teorias instáveis, fatos que desmentem teorias, teorias que reinter-
pretam fatos velhos e novos estão aí para tertemunhar a dinamicidade da ciência.
As leis da física encontram sua base, como também seus desmen­
A verdade tidos, nos resultados dos experimentos. Mas - escreve Duhem
de uma - "o físico jamais pode submeter ao controle da experiência uma
teoria física hipótese isolada, e sim apenas todo um conjunto de hipóteses".
não se decide É esta a idéia influente de experiência holística, idéia retomada
por cara em nossos dias por Quine. E é a idéia que tornaria impossível o
ou coroa experimentum crucis, o qual pretende afirmar que, entre duas
-^ § 3 hipóteses, se uma é falsa, a outra é necessariamente verdadeira.
Mas, pergunta-se Duhem: "duas hipóteses de física constituem
um dilema igualmente rigoroso? Ousaríamos afirmar que não é imaginável ne­
nhuma outra hipótese? [...] A verdade de uma teoria física não se decide por cara
ou coroa".

1 CD c o n v e n c i o n a l i s m o (1902) e O valor da ciência (1905), mos­


m o d e m d o d e P o i n c a i^ é
trando-se disposto a reconhecer o elemento
convencional na ciência, sem que isso o leve
a sacrificar o não menos presente e real
caráter cognoscitivo e objetivo das teorias
U l A c o n v e n ç ã o n ã o é a rb ít r io científicas.
Escreve Poincaré em O valor da ciên­
Foi Édouard Le Roy (1870-1954), es­ cia: “ Para Le Roy, a ciência nada mais é
piritualista ligado ao modernismo e autor do que norma de ação. N ão nos é possível
de várias obras (como Ciência e filosofia, conhecer nada. Entretanto, aqui estamos e
1899-1900; A ciência positiva e a filosofia somos obrigados a agir. Desse modo, por
da liberdade, 1900; Um novo positivismo, acaso, fixamo-nos normas. E é ao conjunto
1901, livro dedicado a Bergson; Dogm a dessas normas que chamamos ciência. Da
e crítica, 1906), que propugnou um con­ mesma forma, desejosos de se divertirem,
vencionalism o exasperado na teoria da os homens instituíram algumas regras de
ciência, afirmando que leis e teorias cien­ jogo, como, por exemplo, as do trique-
tíficas têm caráter convencional, tanto que traque, que poderiam se apoiar na escolha,
é vã toda sua verificação ou controle a fim melhor do que a própria ciência, lançando
de determinar uma objetividade presumida ao ar uma moeda. A regra do trique-traque
das próprias teorias. Para Le Roy, o próprio é certamente uma regra de ação como a
fato é algo de elaborado e construído pelas ciência, mas deve-se acreditar verdadeira­
categorias do cientista, pelas quais, precisa­ mente que a com paração seja justa e que
mente, o fato é definido. não vemos a diferença? As regras do jogo
Exatamente como correção a tal con­ são convenções arbitrárias. Teríamos po­
vencionalismo extremado, o físico Pierre dido também adotar a convenção oposta,
Duhem (18 6 1 -1 9 1 6 )eo matemático Henri que não teria sido menos boa que a outra.
Poincaré (1854-1912) criaram uma forma A ciência, ao contrário, é norma de ação
de convencionalismo moderado, que foi e que tem êxito, pelo menos em linhas gerais;
continua uma teoria da ciência influente e ao passo que, acrescento, a norma contrá­
fecunda. Poincaré expôs sua concepção em ria não teria êxito. Se digo ‘para produzir
dois célebres volumes, A ciência e a hipótese hidrogênio faça um ácido agir sobre o zin­
367
Cãpltulo décimo O ltü V O - O e m p i r i o c r i t i c i s m o e o c o n v e n c i o n a l i s m o

co’, estou formulando uma norma de ação fatos existem em estado de fatos brutos. E o
que tem êxito. Eu teria podido dizer ‘faça cientista faz alguns desses fatos brutos torna­
a água destilada agir sobre o ouro’, o que rem-se “ fatos científicos” . Por isso, “ parece
também teria sido uma norma, só que não supérfluo procurar saber se o fato bruto está
teria obtido êxito. Portanto, se as ‘receitas’ fora da ciência, pois não pode haver ciência
científicas têm valor como norma de ação, sem fato científico, nem fato científico sem
isso depende do fato de nós sabermos que fato bruto, enquanto o primeiro é a tradu­
elas alcançam êxito, pelo menos geralmen­ ção do segundo” . M as, então, o que resta
te. M as saber isso significa saber alguma da tese de Le Roy? E isso o que se pergunta
coisa. Então, por que nos dizeis que não Poincaré, para responder: “ Resta o seguinte:
podemos conhecer nada? A ciência prevê, e o cientista intervém ativamente, escolhendo
exatamente porque prevê, ela pode ser útil os fatos que merecem ser observados. Um
e servir de norma de ação ” . 3] fato isolado, em si mesmo, não tem valor
algum; mas adquire interesse se pensamos
que ele poderá nos ser de ajuda para prever
A t e o r ia in stitu i o fato outros ou ainda se, antes de ser previsto,
e " a e.%pe.Aê.v\c-\a é a ú n ic a fo n te sua verificação constitui a confirm ação
d a ve rd a d e ” de uma lei. E quem escolhe os fatos que,
respondendo a essas condições, merecem o
Claro, existem elementos convencio­ direito de cidadania na ciência? E a atividade
nais na ciência, mas eles encontram seus livre do cientista” . Por outro lado, é bem
limites tanto na base como no edifício da verdade que os cientistas erigem por vezes
própria ciência. N a base, porque não é leis entre as mais universais e confirmadas
verdade aquilo que diz Le Roy, isto é, que o em princípios indiscutíveis e “ cristalizados,
cientista cria o fato, ainda que seja verdade não mais submetidos ao controle da expe­
que o cientista cria o “fato científico” , dele riência” ; entretanto, também é verdade que,
falando no interior de uma teoria científica. dentro desses princípios, cria-se toda uma
O cientista, portanto, não cria os fatos: os série de hipóteses que, embora criadas pelo

Henri Poincaré (1854-1912)


proclamou o valor hipotético
dos postulados geométricos,
e foi fautor de um
convencionalismo moderado
na concepção
das ciências empíricas.
Sétima parte - CD d e s e n v o l v i m e n t o d a s c iê n c ia s , em p irío criticism o e c o n v e n c io n a lism o

homem, são passíveis de controle empírico. 2« P ie rre D u k em e cx n atu reza


Com efeito, “ a experiência é a única fonte d a te o ria físic a
da verdade” .
Naturalmente, “ toda generalização é
uma hipótese” e “ a hipótese tem, portanto,
papel necessário, que ninguém jamais con­ Como já observamos, outro prestigioso
testou” : por exemplo, na escolha dos fatos representante do convencionalismo é Pierre
“ de grande rendimento” , como lemos em Duhem, físico e historiador da ciência, que,
Ciência e método (1909). Em todo caso, a com seu famoso livro A teoria física: seu
hipótese, “ tão logo seja possível e o mais objeto e sua estrutura (1906), pretendia
freqüentemente possível, deve ser submetida efetuar “ uma simples análise lógica do mé­
a verificação” . E é óbvio, escreve Poincaré todo com o qual progride a ciência física” ,
em A ciência e a hipótese, que, “ se ela não convencido de que sua obra metodológica
suportar semelhante prova, deve-se sem tivesse se “ desenvolvido a partir da prática
dúvida abandoná-la” . cotidiana da ciência” . Para Duhem, antes
Por vezes, esse repúdio à hipótese se de mais nada? “ uma teoria física não é uma
faz a contragosto, mas, para Poincaré, esse explicação. E um sistema de proposições
sentimento não tem ju stificativa: “ Pelo matemáticas, deduzidas de número restrito
contrário, o físico que renunciou a uma de de princípios, que têm o objetivo de repre­
suas hipóteses deveria encher-se de alegria, sentar do modo mais simples, mais completo
porque encontra assim oportunidade ines­ e mais exato um conjunto de leis experimen­
perada de descoberta” . tais” . Portanto, nada de explicações: “Uma
teoria verdadeira não dá explicações das
■o Os a x io m a s d a g e o m e tr ia aparências físicas conformes à realidade,
mas representa de modo satisfatório um
c o m o d e f in iç õ e s m a s c a r a d a s
conjunto de leis experimentais; teoria falsa
Convencionalista moderado nas ciên­ não é tentativa de explicação baseada em
cias físico-naturalistas, Poincaré ficou co­ suposições contrárias à realidade, mas con­
nhecido por sua famosa e hoje clássica tese junto de proposições que não concordam
convencionalista relativa à natureza dos com as leis experimentais. Para uma teoria
axiomas (da geometria). Com efeito, naquele física, a concordância com a experiência é
momento, depois da descoberta das geome­ o único critério de veracidade” . A teoria
trias não-euclidianas, punha-se a questão da física, portanto, é um conjunto de proposi­
natureza do espaço físico: ele teria estrutura ções matemáticas, conjunto convencional e
euclidiana ou não-euclidiana? O que vale econômico tão mais poderoso quanto mais
para ele: os teoremas de Euclides, os de vasto é o número de leis dele deriváveis:
Lobacewski ou os de Riemann? Poincaré “A redução das leis físicas a teorias con­
deu a resposta clássica a essa questão: "O s tribui para essa economia intelectual na
axiomas geométricos não são (...) nem juízos qual Ernst Mach vê o fim e o princípio de
sintéticos a priori nem fatos experimentais. ciência” . E, na opinião de Duhem, existe o
Eles são convenções. Entre todas as conven­ desenvolvimento da física no qual vemos
ções possíveis, nossa escolha é guiada por luta contínua entre “ a natureza que não se
fatos experimentais, mas permanece livre e cansa de produzir” e a razão que não quer
só é limitada pela necessidade de evitar toda “ cansar-se de compreender” : com efeito,
contradição . E assim que os postulados po­ “ incansavelmente, o experimentador revela
dem permanecer rigorosamente verdadeiros fatos até então insuspeitados e formula no­
ainda quando até as leis experimentais que vas leis, e o teórico elabora continuamente
determinaram sua adoção são apenas apro- representações mais concisas e sistemas mais
ximativas. Em outros termos, os axiomas econômicos para que a mente humana pos­
da geometria (não estou falando dos da sa acumular tais riquezas” . A teoria física
aritmética) nada mais são que definições é uma construção do intelecto humano. E
mascaradas. Então, o que devemos pensar ela “ não nos dá nunca a explicação das
da seguinte questão: a geometria euclidiana leis experimentais e não nos revela em caso
é verdadeira? Bem, essa interrogação não nenhum as realidades que se ocultam por
tem nenhum sentido [...]. Uma geometria trás das aparências sensíveis. M as, quanto
não pode ser mais verdadeira que outra; ela mais se aperfeiçoa, mais percebemos que
só pode ser apenas mais côm oda” . a ordem lógica em que ela dispõe as leis
Capítulo décimo oitavo - O em piriocriticism o e o c o n v en c io n alism o

experimentais é o reflexo de uma estrutura teorias” . Tudo isso significa que a prova
ontológica” . XI de uma hipótese não pode se efetuar em
condições de isolamento dessa hipótese:
precisamos também de hipóteses auxiliares
3 -, < S o n t i ^ o l e s k o l í s t i c o s (isto é, que ajudem a hipótese em questão
a produzir conseqüências observáveis), de
e negações instrumentação (englobando e pressupondo
do expe^/Vnentum cmc/s outras teorias) etc. Desse modo, “ o físico
não poderá nunca submeter ao controle
da experiência uma hipótese isolada, mas
Diante do fetichismo dos fatos procla­ apenas todo um conjunto de hipóteses.
mado pelo positivismo, a consciência dos Quando a experiência está em desacordo
convencionalistas em relação à relevância do com suas previsões, ela nos indica que pelo
teórico constitui grande passo adiante, que menos uma das hipóteses que constituem o
lhes permitiu compreender o dinamismo da conjunto é inaceitável e deve ser modificada,
ciência, que, além de ter método, também mas não aponta qual deverá ser modifica­
tem história. E a física “ progride [...] porque d a ” . “ O único controle experimental da
a experiência produz continuamente novas teoria física que não é ilógico consiste em
concordâncias entre leis e fatos e porque, confrontar todo o sistema da teoria física
incessantemente, os físicos retocam e mo­ com todo o conjunto das leis experimentais e
dificam as leis para poderem representar avaliar se o segundo conjunto é representado
os fatos de modo mais exato” . As leis da pelo primeiro de modo satisfatório ” . E isso,
física, escreve Duhem, se fundam sobre os sustenta Duhem, determina a impossibili­
resultados dos experimentos. Precisamente dade de realizar em física o experimentum
nesse ponto, a propósito do experimento, crucis, segundo o qual (basta pensar no
Duhem deu uma de suas contribuições mais experimento de Foucault para determinar
notáveis, levantando a idéia dos controles a veracidade da hipótese corpuscular da
chamados “ holísticos” (idéia retomada em luz, defendida por Newton, Laplace e Biot,
nossos dias pelo lógico W. V. O. Quine, tanto ou da hipótese ondulatória, defendida por
que é chamada de “ tese D u h e m -Q u in e ” ), e a Huygens, Young e Fresnel), dadas duas
outra teoria, derivada da idéia dos controles hipóteses incompatíveis, dever-se-ia decidir
holísticos, de que não ocorrem experimenta de modo irrefutável e inequívoco a veraci­
crucis. “ O físico se propõe demonstrar a dade de uma ou de outra, realizando uma
inexatidão de uma proposição. Para de­ condição que, em ligação com a primeira,
duzir dessa proposição a previsão de um deveria dar certo resultado e, em ligação
fenômeno, para realizar o experimento que com a segunda, deveria dar outro. Entre­
deve demonstrar se o fenômeno se produz tanto, afirma Duhem, isso não é possível:
ou não, para interpretar os resultados de o experimentum crucis pretende afirmar
tal experiência e constatar que o fenômeno que, se uma hipótese é falsa, a outra neces­
previsto não se produziu, ele não se limita a sariamente é verdadeira. Todavia, “ duas
fazer uso da proposição em discussão. Usa hipóteses de física constituem alguma vez
também todo um conjunto de teorias aceitas dilema tão rigoroso? Ousaríamos afirmar
sem reservas. A previsão do fenômeno, cuja que nenhuma outra hipótese é imaginável?
falta de concretização deve cortar o debate, [...] O físico nunca está seguro de ter efe­
não brota da proposição em contestação tuado todas as suposições imagináveis: a
tom ada isoladam ente, mas daquela que veracidade de uma teoria física não se decide
está relacionada com todo o conjunto das por cara ou coroa” .
370
_ Setima puvtc - O dese n v o lv im en to d a s c iê n c ia s , em p iriocriticism o e c o n v en c io n alism o

suscessores deverão experimentar, recebere­


Mach mos suficiente impulso para cooperar com zelo
e força para que se realize, finalmente, uma
ordem moral universal, com o auxílio de nossos
conhecimentos psicológicos e sociológicos.
Depois de criada uma ordem ética desse tipo,
ninguém poderá dizer que não é deste mundo, e
fl ciência não será mais necessário procurá-lo nas alturas
"se tornou o fator ou nas profundidades da mística.
biologicamente €. Mach,
Conhecimento e erro.
e culturalmente
mais propício"
fí ciência substitui "a adaptação incons­
2 fl função das hipóteses
ciente, que procedia às apalpadelas, por na pesquisa científica
uma adaptação mais rápida, claramente
consciente e metódica".
''Fl função essencial de uma hipótese
consiste em levar a novas observações e
experimentos que permitem confirmar, rejeitar
Aparentemente, a ciência se desenvolveu ou modificar nossa conjectura".
como o ramo colateral mais supérfluo do de­
senvolvimento biológico e da civilização. Mas
hoje não podemos mais pôr em dúvida que
ela se tornou o fator biológica e culturalmente R este ponto, se olharmos mais de perto
mais propício. Gla assumiu a tarefa de substituir a hipótese científica, vemos em primeiro lugar
a adaptação inconsciente, que procedia às que tudo aquilo que não podia ser averiguado
apalpadelas, por uma adaptação mais rápida, imediatamente pela observação, pode ser
claramente consciente e metódica. O físico €. objeto de integração mental, suposição, conjec­
Reitlinger, já falecido, costumava dizer, pessi- tura, pressuposto ou hipótese. Podemos supor
misticamente: "O homem apareceu na natureza presentes partes não diretamente observadas
quando as condições de sua existência estavam dos fatos; o geólogo e o paleontólogo se
prontas, mas não ainda as condições de seu encontrarão freqüentemente nesta situação.
bem-estar". Na realidade, estas ele deve criar Sobre as conseqüências de um fato se podem
sozinho, criou-as por si. Hoje isso vale ao me­ fazer conjecturas, mesmo que elas não apare­
nos pora as condições de bem-estar material, çam imediatamente ou não sejam observadas
mesmo que, por ora, apenas para uma parte diretamente, fls formas das leis de um fato são
da humanidade. Para o futuro, podemos es­ freqüentemente objeto de conjectura, mesmo
perar coisa melhor. Sir John lubbock exprime a porque, propriamente, apenas um número infini­
esperança de que "as vantagens da civilização to de observações, com a exclusão de todas as
não só se estendam a outras terras e a outras circunstâncias perturbadoras, poderia fornecer
populações, mas adquiram validade geral, uni­ a lei. Mas as conjecturas que de preferência
forme, também em nossa pátria, de modo que designamos como hipóteses referem-se às
não apareçam mais diante de nós concidadãos condições de um fato, que o tornam inteligível:
que levam, em nosso meio, uma vida pior do são as hipóteses explicativas. [...]
que a dos selvagens; e que não experimentam Mesmo os grandes homens por vezes
as vantagens e, mesmo que simples, as ver­ falam e escrevem com tons que sustentam mais
dadeiras alegrias que embelezam a vida das do que estão em grau de manter. €m Newton
raças inferiores, nem conseguem promover as há vários passagens desse tipo, e em Descar­
comodidades mais elevadas e nobres do ho­ tes certamente muitas. Creio, todavia, que as
mem civilizado". Se pensarmos nos tormentos declarações de Newton e seu comportamento
que nossos antepassados tiveram de suportar prático de cientista sejam muito bem compre­
por causa da brutalidade de suas situações ensíveis. Tomada sem nenhuma precaução, a
sociais, de suas relações jurídicas e penais, de expressão "hypotheses non fingo" soaria assim:
sua superstição, de seu fanatismo, se ponde­ "Não conjecturo nada além do que vejo, não
rarmos a rica herança de tais bens que ainda faço absolutamente idéias que ultrapassem a
pesa sobre o presente e que também nossos observação". €m todas as páginas de seus es-
Cãpltulo décimo O itã V O - O e m piriocriticism o e o c o n v en c io n alism o

tituir uma hipótese: antes, requer-se alguma


coragem. [...]
O modo de pensare de trabalhardo cien­
tista é muito diferente daquele do filósofo. Nõo
tendo a sorte de possuir princípios inabaláveis,
ele assumiu o costume de considerar provisó­
rias, e suscetíveis de modificação por meio de
novas experiências, também as mais seguras
e melhor fundadas de suas visões e de seus
princípios. Com efeito, os maiores progressos
e descobertas tornaram-se possíveis apenas
por esta atitude.
6. Mach,
Conhecimento e erro.

3 fl ciência economiza
Desenhos de Mach para o estudo da visão
como fenômeno físico.
a experiência
"Toda a ciência tem a finalidade de subs­
critos, Newton contradiz esta interpretação. Ge tituir, ou seja, de economizar experiências por
sobressai justamente pela riqueza de conjectu­ meio da reprodução e antecipação dos fatos
ras. Sabe também excluir muito rapidamente, no pensamento".
com experimentos, as inutilizáveis, que não
resistem ã verificação. [...]
fl função essencial de uma hipótese Tarefa da ciência é pesquisar aquilo
consiste em levar a novas observações e ex­ que é constante nos fenômenos naturais, os
perimentos que permitem confirmar, rejeitar ou elementos destes, o modo de sua relação
modificar nossa conjectura; em suma, ampliara e sua dependência recíproca. Por meio da
experiência. [...] descrição clara e completa, a ciência procura
Ao formar uma hipótese procura-se justi­ tornar inútil o recurso a novas experiências, de
ficar as propriedades de um fato nos circuns­ economizar experiências. Uma vez conhecida
tâncias particulares e limitadas das quais jus­ a dependência recíproca de dois fenômenos,
tamente a observação nos informou, sem saber a observação de um torna supérflua a do ou­
naturalmente se tais propriedades valerão tam­ tro, que é co-determinado e predeterminado
bém para outras circunstâncias mais gerais, sem pelo primeiro. Mesmo na descrição, pode
saber, portanto, se a hipótese será adequada ser economizado trabalho, usando métodos
também para aquelas circunstâncias e até que que permitam descrever de uma só vez e do
ponto. Podemos extrair a matéria, os elementos modo mais breve o maior número de fatos. [...]
para as representações hipotéticas, apenas de Toda a ciência tem a finalidade de subs­
nosso ambiente sensível atualmente conhecido, tituir, ou seja, de economizar experiências por
levando em conta casos que oferecem com isso meio da reprodução e antecipação dos fotos
uma semelhança ou analogia. Semelhança não no pensamento. Cstas reproduções são mais
significa identidade. € em parte identidade e em manejáveis do que a experiência direta, e em
parte diversidade. Isso implica que, ampliando certos aspectos a substituem: Não são neces­
a experiência, uma hipótese instituída por ana­ sárias reflexões muito profundas para perceber
logia em alguns casos se verificará, em outros que a função econômico cJa ciência coincide com
certamente não. fl hipótese, portanto, já por sua suo própria essência. € necessário ter idéias
natureza, acha-se destinada a se transformar no claras sobre este assunto, se se quiser evitar
decorrer da pesquisa, e adequar-se às novas toda forma de misticismo, fl comunicação do
experiências ou até a cair para ser substituída saber por meio do ensino transmite ao aluno
por outra hipótese totalmente nova, ou pelo a experiência realizada por outros, ou seja,
conhecimento completo dos fatos. permite-lhe economizar experiências. Conhe­
Os cientistas, que se atêm a isto, não cimentos experimentais de gerações inteiras
devem ser excessivamente temerosos ao ins­ se tornam posse das sucessivas por meio de
Sétima parte - (D d e s e n v o l v i m e n t o d a s c iê n c ia s , em piriocH ticism o e c o n v en c io n alism o

escritos conservados nos bibliotecas. Também


a linguagem, que é o meio da comunicação, é
um instrumento econômico.
€. Mach,
fí mecânica em seu
La Science
desenvolvimento histórico-crítico.
et 1’Hypothèse
PAU
H. POINCARÉ
hántIUU
P o in c a r é

□ O valor cognoscitivo
PARIS
da ciência E B N E S T FL A M M A R IO N , S D I T B U R
26, f»U * B A C IN B , 86
— A
"R ciência é uma regra de ação que tem Dw« de inéKtim <* repnhJtwüw rtmnrtt pm itm iei f»y*.

sucesso ao menos em geral"; por conse­


I cumpri» lá riufck at te Korttgi.

guinte, "ela não é sem valor como meio de


conhecimento".

Para Le Roy a ciência é apenas uma re­ tM M M ç w th PhíloxDhl* Kiuitifiqut

gra de ação. Somos incapazes de conhecer e


todavia nisso estamos empenhados, e nos é
necessário agir e de modo todo casual fixamos La Valeur
regras para nós. O conjunto dessas regras
chama-se ciência.
é assim que os homens, desejosos de
divertir-se, instituíram regras de jogo, como,
de la Science
por exemplo, do trique-traque (gamão), que M«
poderiam melhor que a própria ciência valer-se
da prova do consenso universal. € igualmente H. POINCARÉ
assim que, na impossibilidade de escolher, mas
obrigados a escolher, se lança no ar uma moeda
para tirar cara ou coroa.
fl regra do trique-traque é bem uma regra
de ação como a ciência, mas cremos que a com­
paração seja justa e não vemos a diferença?
As regras do jogo são convenções arbitrárias e PARIS
ter-se-io podido adotar a convenção inversa, a EBNEST FLAMMARION, ÈDITEUR
qual não teria sido menos boa. Ao contrário, a 2*S, nui *»aw, 20
ciência é uma regra de ação que tem sucesso
ao menos em geral, enquanto, acrescento, a
regra contrária não o teria.
Se eu disser: "Para obter hidrogênio fazei
agir um ácido sobre o zinco'1, formulo uma regra
que tem sucesso; teria podido dizer: "fazei agir
água destilada sobre o ouro": também esta Capas da primeira edição
de A ciência e a hipótese (no alto),
serio uma regra, mas não teria sucesso. e da segunda edição de O valor da ciência
Portanto, se as “receitas" científicas têm um (embaixo), obras de Poincaré
valor como regra de ação, é porque sabemos publicadas por Flammarion,
que elas têm sucesso, ao menos em gerol, mas respectivamente em 1902 e em 1905.
Cãpltulo décimo oitãvo - O em piriocriticism o e o co n v en c io n alism o

saber isso é justamente saber alguma coisa, e seduzido pela miragem de alguma nova esco-
então por que dizeis que não podemos conhe­ lástica, ou se não se perderia, crendo ter tido
cer nada? apenas um sonho?
R ciência prevê, e é porque ela prevê que H. Poincaré,
pode ser útil e servir como regra de ação. Sei O valor da dêndo.
bem que freqüentemente suas previsões são
desmentidas pelo acontecimento; isto prova
que a ciência é imperfeita e, se acrescento que
assim permanecerá sempre, estou certo de que
faço uma previsão que, ao menos esta, não D uhem
seja jamais desmentida. O cientista se engana
sempre menos freqüentemente que um profeta
que predissesse por acaso. Por outro lado, o
progresso é lento, mas contínuo, de modo que O papel
os cientistas, embora sempre mais audazes, do história da ciência
são sempre menos iludidos, é pouco, mas
suficiente.
Sei bem que Le Roy disse em algum lugar "Fazer a história de um princípio físico
que a ciência engana-se mais freqüentemente significa Fazer a análise lógica dele".
de quanto se crê, que os cometas por vezes
brincam com os astrônomos, que os cientistas,
os quais aparentemente são homens, não fa­ R importância que, no estudo da física,
lam de bom grado de seus insucessos e que, assume a história dos métodos por meio dos
se deles falassem, deveriam enumerar mais quais as descobertas foram feitas salienta, de
derrotas do que vitórias. novo, o diferença extrema que vai entre física
Naquele dia le Roy evidentemente supe­ e geometria. Na geometria, onde as clarezas
rou seu pensamento. Se a ciência não tivesse do método dedutivo se ligam diretamente òs
sucesso, não poderia servir como regra de evidências do senso comum, o ensino pode se
ação; então, de onde tiraria seu valor? Do fato efetuar de modo inteiramente lógico. € suficien­
de que elo é "vivida", isto é, pelo fato de que te que um postulado seja enunciado para que
a amamos e acreditamos nela? Os alquimistas o estudante capte imediatamente os dados do
tinham receitas para fazer o ouro, as amavam conhecimento comum que tol asserção resume.
e tinham fé nelas; todavia, as que têm sucesso Não é preciso, para isso, saber o percurso pelo
são as nossas receitas e é por isso que elas qual o postulado entrou na ciência. R história
são as corretas, embora nossa fé nelas seja das matemáticas é, certamente, objeto de uma
menos viva. curiosidade legítima; elo, porém, não é de
Não há um modo de fugir deste dilema; modo nenhum essencial para a compreensão
ou a ciência não permite prever, e então é sem das mesmas. Na física as coisas não caminham
valor como regra de ação; ou permite prever de do mesmo modo; aqui se vê que é proibido
modo mais ou menos imperfeito, e então não é para o ensino ser pura e plenamente lógico.
sem valor como meio de conhecimento. Por isso, o único modo de ligar as asserções
Não se pode também dizer que a ação formais da teoria com a matéria dos fotos que
seja a finalidade da ciência; devemos talvez elas devem representar, e isso evitando a furtivo
condenor os estudos feitos sobre a estrela penetração de idéias falsas, é o de justificar
Sírio, sob pretexto que não exerceremos pro­ toda hipótese essencial com suo história. Fazer
vavelmente jamais nenhuma ação sobre esse a história de um princípio físico significa fazer
astro? ao mesmo tempo sua análise lógica. R crítica
R meu ver, ao contrário, a finalidade dá-se dos processos intelectuais postos em jogo pela
pelo conhecimento, e a ação é seu meio. Se me física liga-se indissoluvelmente à exposição do
congratulo com o desenvolvimento industrial, evolução gradual por meio da qual a dedução
não é apenas porque ele fornece argumento aperfeiçoa a teoria, dela fazendo o cada dia
fácil aos advogados da ciência; é sobretudo uma imagem mais precisa, mais ordenada, das
porque dá ao cientista a fé em si próprio e leis salientadas pela observação. Rpenas a his­
também porque lhe oferece um campo de ex­ tória da ciência pode salvaguardar o físico das
periência imenso, onde ele se embate contra loucas ambições do dogmatismo e também dos
forças demasiado grandes poro encontrar um desesperos do pirronismo. Descrevendo a longa
modo de dar um empurrãozinho. Sem esse série dos erros e hesitações que precederam
lastro, quem sabe se ele não deixaria a terra, a descoberta de todo princípio, ela o põe em
Setima pdtte - CD d e s e n v o l v i m e n t o d a s c iê n c ia s , em piriocriticism o e c o n v en c io n alism o

alerta contra as falsas evidências; recordando


as vicissitudes das escolas cosmológicas, fazen­
do reemergir do esquecimento onde jazem as
doutrinas que em certo tempo triunfaram, obri­
ga-o a lembrar que os sistemas mais sedutores
não são mais que representações provisórias e
não tanto explicações definitivas. Ilustrando a
tradição contínua, segundo a qual a ciência de
cada época se alimentou com os sistemas dos
séculos passados, e com a qual está cheia da
física do futuro, citando as profecias formuladas
pela teoria e realizadas pela experiência, ela
cria e reforça nele a convicção de que a teoria
físico não é um sistema puramente artificial, hoje
útil e amanhã não mais, que ela é muito mais
uma classificação natural, um reflexo sempre
mais claro das realidades com as quais o méto­
do experimental não saberia se confrontar.
Toda a vez que o espírito do físico está a
ponto de coir em algum excesso, o estudo da
história o endireita com apropriadas correções.
Para definir seu papel em relação ao físico, a
história poderia tomar de empréstimo o pen­
samento de Pascal: “...dando motivo de tremer
aos que justifica e confrontando aqueles que
condena". Ga o mantém assim em estado de Retrato fotográfico de Pierre Duhem,
máximo expoente do convencionalismo
equilíbrio perfeito em que pode avaliar correta­ no campo da física:
mente o objeto e a estrutura da teoria física. a teoria física é uma construção
do intelecto humano;
P. Duhem, dela não podemos pretender a explicação
fí teoria física: seu projeto e sua estrutura. das leis experimentais.
Bibliografia do volume V

Obras de caráter geral M arzorati, M ilão 1988: as introduções às seções


antológicas particulares são feitas por importantes
especialistas; as bibliografias são muito amplas, e
Lembramos aqui, também porque por vezes são
a elas em todo caso remetemos aqui de uma vez
citadas no presente volume (em geral apenas com
por todas.
o nome do autor), algumas das maiores histórias
gerais da filosofia: b) Questioni di storiografia filosofica. La storia della
filosofia attraverso i suoi interpreti, 6 vol., La Scuola,
B. R ussell, Storia delia filosofia occidentale, 4
Bréscia 1976 (citado daqui para frente simplesmente
vols., Longanesi, M ilão 1866-1867 (trabalho mais
como Questioni): os primeiros três volumes, Dalle
crítico que inform ativo); N . Abbagnano, Storia
origini aWOttocento, são organizados por V. Ma-
delia filosofia, 4 vols., Utet, Turim 1969-1991 thieu; os outros três, II pensiero contemporâneo,
(o 4 o vol. é de G. Fornero e colaboradores). L.
foram organizados por A. Bausola.
Geymonat (e colaboradores), Storia dei pensiero
filosófico e scientifico, 6 vols., Garzanti, M ilão
1970-1972 (a seguir citada como Geymonat, Sto­ Finalmente, instrumentos úteis de consulta são:
ria); E. Cassirer, Storia delia filosofia moderna, 4 Enciclopédia filosofica, 6 vols., Centro di Studi
vols., Einaudi, Turim 1971 (compreende apenas
Filosofici di Gallarate (org.), Sansoni, Florença
uma parte do século X IX ); S. Vanni Rovighi (e 1967-1969; e a ágil, mas atualizada, Enciclopédia
colabo rad ores), Storia delia filosofia moderna
Garzanti di folosofia (e logica, linguistica, episte-
dalla rivoluzione scientifica a Hegel, La Scuola, mologia, pedagogia, psicologia, psicoanalisi, socio­
Bréscia 1976; A. Rigobello, Dal romanticismo al
logia, antropologia culturale, religioni, teologia),
positivismo, vol. V da Storia dei pensiero occiden­ Redazioni Garzanti (org.), com a consultoria geral
tale, M arzorati, M ilão 1976; S. Vanni Rovighi (e de G. Vattimo, em colaboração com M. Ferraris e
colaboradores), Storia delia filosofia contempo-
D. Marconi, Garzanti, Milão 1994.
ranea dali’Ottocento ai giorni nostri, La Scuola,
Bréscia 1980; R Copleston, Storia delia filosofia,
9 vols., Paideia, Bréscia 1983.
Cap. 1. Gênese e características
As seguintes obras são mais específicas: essenciais do romantismo
M. F. Sciacca, II secolo XX, Bocca, Milão 1947; E. Elencamos aqui uma série de obras de caráter geral
Garin, Storia della filosofia italiana, 3 vols., Einaudi, sobre o romantismo que contêm, freqüentemente,
Turim 1966; E. Paci, La filosofia contemporanea, também estudos específicos sobre autores particu­
Garzanti, M ilão 1974. lares, e que por este motivo será bom ter presentes
também para os capítulos seguintes, onde não serão,
De particular interesse são: obviamente, repetidas:
a) Grande Antologia Filosofica, dirigida por U. O. Walzel, II romanticismo tedesco, Vallecchi,
Padovani e M . F. Sciacca, que interessa o presente Florença 1924; A. Farinelli, II romanticismo in
volume com II pensiero moderno, vols. XVII-XXI, Germania, Bocca, M ilão 1945; F. Strich, Classi-
cismo e romanticismo tedesco, Bompiani, M ilão
1953; F. Meinecke, Le origini dello storicismo,
Sansoni, Florença 1954; L. Mittner, Ambivalen-
P a r a a p rese n te b ib lio g ra fia n ã o n o s p r o p u se m o s , ze romantiche. Studi sul romanticismo tedesco,
o b v ia m e n te , n en h u m a p r e te n sã o d e ser c o m p le to s, m as D ’Anna, Messina-Florença 1954; R. Pascal, La
p r o c u r a m o s fo rn ec e r u m a p la t a fo r m a d e p a r tid a su fic ie n ­ poética dello Sturm und Drang, Feltrinelli, M ilão
te m e n te a m p la p a r a q u a lq u e r a p r o fu n d a m e n to p o ste r io r
1957; G. De Ruggiero, Uetà dei Romanticismo
sé rio .
(vol. VII da Storia della filosofia), Laterza, Bari
F o ra m e x c lu íd a s, d e p r o p ó sito , c ita çõ e s de rev ista s. O s
v o lu m e s e le n c a d o s e stã o to d o s e x c lu siv a m e n te em lín gu a
1957; M. Puppo, II romanticismo, Studium, Roma
ita lia n a : é p o r is s o q ue n u n c a in d ic a m o s, p a r a o s a u to r e s 1963; L. Mittner, Storia della letteratura tedesca.
e str a n g e ir o s, q u e se tr a ta d e tr a d u ç õ e s. Dal Pietismo al Romanticismo (1700-1820),
K ib lio g r a f ia d o quinto volu m e

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P. Quaglia, Invito a conoscere il Romanticismo, tada. Além disso: N. Accolti Gil Vilate, II pensiero
M ursia, M ilão 1987. estetico di Federico Schiller, con la traduzione del
saggio La poesia ingênua e sentimentale, Zanichelli,
Bolonha 1950; B. Croce, Goethe, 2 vols., Laterza,
Cap. 2. Os fundadores Bari 1959; U. Perone, Schiller, M ursia, M ilão
da Escola romântica 1981; L. Pareyson, Etica ed estetica in Schiller,
Mursia, M ilão 1983; P. Citati, Goethe, Adelphi,
M ilão 1990.
Textos
Madame de Staèl: La Germania, F. De Silva, Turim Cap. 3. Outros pensadores que contribuíram
1943.
para a superação
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menti sulla poesia, M. E. D ’Agostini (org.), Parma
1972. Textos
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rabba, Lanciano 1912; Frammenti, Rizzoli, Milão (org.), Istituto Italiano di Studi Germanici, Florença
1976; Enrico di Ofterdingen, Guanda, Milão 1980; 1938; Scritti cristiani, A. Pupi (org.), 2 vols., Z a­
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V. Verra (org.), Loescher, Turim 1966; La dottrina
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1947; La dottrina delia fede, S. Sorrentino (org.),
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H õlderlin: Scritti sulla poesia e frammenti, G. Bolonha 1971; Ancora una filosofia delia storia per
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Goethe: Opere, L. M azzucchetti (org), 5 vols., elementare presentata dal signor professor Reinhold
Sansoni, Florença 1944ss; La teoria delia natura, di Jena in difesa dello Scetticismo contro le pretese
M . M ontanari (org.), Boringhieri, Turim 1958; delia Critica delia ragione, A. Pupi (org.), Laterza,
Faust e Urfaust, com texto alemão em paralelo, Bari 1971.
Feltrinelli, M ilão 1965; La metamorfosi delle
piante, S. Zecchi (org.), Guanda, Parma 1983; La Literatura
teoria dei colori, R. Troncon (org.), II Saggiatore,
Para Hamann: A. Pupi, Alie soglie delVetà romanti-
M ilão 1987.
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Hamann. I. Experimentum mundi 1730-1759, Vita
Literatura
e Pensiero, Milão 1988. Id., Johann Georg Hamann.
Para os irmãos Schlegel, para Novalis e Hõlderlin, II. In domo patris 1760-1763, Vita e Pensiero,
vejam-se as obras indicadas no cap. 1. E ainda: C. Milão 1991.
Ciancio, Friedrich Schlegel. Crisi delia filosofia e
rivelazione, M ursia, Milão 1984; M . Heidegger, La Para Jacobi: V. Verra, F. H. Jacobi. Dali’illuminismo
poesia di Hõlderlin, Adelphi, M ilão 1988. ali’idealismo, Edizioni di Filosofia, Turim 1963;
B i b I iogra-pia d o q u i n t o v o l u m e

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Bréscia 1984; R. Lauth, La filosofia trascendentale
Para Herder: G. Fichera, Linguaggio e umanità di J. G. Fichte, Guida, Nápoles 1986; G. Di Tom-
nel pensiero di Herder, Cedam, Pádua 1966; V. maso, Dottrina delia scienza e genesi delia filosofia
Verra, Mito, rivelazione e filosofia in J. G. Herder delia storia nen primo Fichte, Japadre, L’Aquila
e nel suo tempo, M arzorati, M ilão 1966; Id., J. 1986; M. Ivaldo, I principi dei sapere. La visione
G. Herder e la filosofia delia storia, introdução a trascendentale di J. G. Fichte, Bibliopolis, Nápoles
J. G. Herder, Idee per una filosofia delia storia, 1987; C. C esa,/. G. Fichte e 1’idealismo trascenden­
citado acima; M . M ori, La filosofia delia storia tale, II Mulino, Bolonha 1992; Id., Introduzione a
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Turim 1976. crítica: P. Salvucci, Fichte, em Questioni, cit., vol.
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Para Humboldt: F. Tessitore, I fondamenti delia
filosofia politica di Humboldt, M orano, Nápoles
1965.
Cap. 5. Schelling
Para Reinhold: A. Pupi, La formazione delia filosofia
di K. L. Reinhold, Vita e Pensiero, M ilão 1966;
Id., Le obiezioni alVAenesidemus, Vita e Pensiero, Textos
M ilão 1970. Schelling: Lezioni monachesi sulla storia delia
filosofia moderna ed esposizione delYempirismo
Para Maimon: F. M oiso, La filosofia di S. Maimon, filosofico, G. Durante (org.), Sansoni, Florença
M ursia, M ilão 1972.
1950; Lettere filosofiche sul dogmatismo e sul cri-
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Cap. 4. Fichte (org.), Laterza, Bari 1965; Esposizione dei mio
sistema filosofico, G. Semerari (org.), Laterza, Bari
1969; L’empirismo filosofico e altri scritti, G. Preti
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delia storia e Teoria delia scienza giovannea, A. Nápoles 1988; Scritti sulla filosofia, la religione, la
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M ursia, Milão 1976; M . Ivaldo, Fichte. Uassoluto e Florença 1975.
B i b li o g r a f ia d o quinto volu m e

Cap. 6. Hegel II: II sistema hegeliano dello stato, Feltrinelli, Milão


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Scritti di filosofia dei diritto (1802-1803), A. Negri cia 1972; H. G. Gadamer, L a dialettica di Hegel,
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quello di Schelling; Fede e sapere), R. Bodei (org.), giovane Hegel e i problemi della società capitalistica,
M ursia, M ilão 1971; Scritti politici (1798-1831), 2 vols., Einaudi, Turim 1975; K. Lõwith, Hegel e il
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M anganaro (org.), Laterza, Bari 1972; Rapporto nelli, G. W. F. Hegel, Fenomenologia dello spirito,
dello scetticismo con la filosofia, N. Merker (org.), vol. I: Introduzione e traduzione (de capítulos esco­
Laterza, Bari 1977; Note di diario (Tagebuch 1, lhidos), vol. II: Commento, Vita e Pensiero, Milão
1785-1787, e II, 1796), L. Montoneri (org.), Ma- 1977; N . Bobbio, Studi hegeliani, Einaudi, Turim
rino, Catânia 1979; Vita di Gesü, A. Negri (org.), 1981; F. Menegoni, Moralità e morale in Hegel,
Laterza, Bari 1980; Epistolario, vol. I: 1785-1808, Liviana, Pádua 1982; O. Pòggeler, Hegel. Uidea di
P. M anganaro (org.), Guida, N ápoles 1983; Le una Fenomenologia dello spirito, Guida, Nápoles
orbite dei pianeti, A. Negri (org.), Laterza, Roma- 1986; A. Negri, Hegel nel Novecento, Laterza, Bari
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il suo destino, M. Pancaldi e M . Trombino (orgs.), Bibliopolis, Nápoles 1988; V. Verra, Introduzione
Paravia, Turim 1990. a Hegel, Laterza, Roma-Bari 1988; E. Weil, Hegel
b) Obras fundamentais, publicadas pelo próprio e lo Stato e altri scritti hegeliani, Guerini, N ápo­
Hegel: Enciclopédia delle scienze filosofiche in les 1988; M. Heidegger, La fenomenologia dello
compêndio, B. Croce (org.), Laterza, Bari 1980; spirito di Hegel, Guida, Nápoles 1991; V. Verra,
Scienza della logica, 2 vols., Laterza, Roma-Bari Letture hegeliane, Il Mulino, Bolonha 1992; M.
1984; Lineamenti di filosofia dei diritto, G. Marini D onà, Sull’A ssoluto. Per una reinterpretazione
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scienze filosofiche in compêndio (1830), com texto
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Cap. 7. Direita
lão 1996; Lineamenti di filosofia dei Diritto, com
texto alemão em paralelo, V. Cicero (org.), Rusconi,
e esquerda hegeliana
M ilão 1996.
Textos
c) Cursos, reunidos e publicados por discípulos:
Lezioni sulla filosofia della storia, 4 vols., La Nuo- Stirner: L’unico e la sua proprietà, Ubaldini, Roma
va Italia, Florença 1967; Lezioni sulla storia della 1970.
filosofia, 4 vols., La Nuova Italia, Florença 1967; Feuerbach: L’essenza dei Cristianesimo, A. Banfi
Lezioni sulle prove deli'esistenza di Dio, G. Borruso (org.), Feltrinelli, Milão 1960; Principi della filoso­
(org.), Laterza, Bari 1970; Filosofia dello spirito je- fia dell’avvenire, N. Bobbio (org.), Einaudi, Turim
nese, G. Cantillo (org.), Laterza, Bari 1971; Lezioni 1971; L’essenza della religione, C. Cesa e C. Ascheri
sulla filosofia della religione, 2 vols., E. Oberti e G. (orgs.), Laterza, Roma-Bari 1974.
Borruso (orgs.), Zanichelli, Bolonha 1974; Estética,
Einaudi, Turim 1976; Propedeutica filosofica, G. Saint-Simon: Opere, M. T. Bovetti Picchetto (org.),
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