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_questões de gênero
ROBERTO KAZ
Em agosto do ano passado, Karina de Fazzio ainda chamava sua filha Melissa pelo
nome de batismo. “Tenho um filho pequeno, o Miguel, que apresenta tendências de
querer ser menina desde 1 ano de idade”, disse a mãe, de maneira objetiva, durante
uma reunião com cerca de trinta pessoas no Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas, em São Paulo. Todos ouviam com atenção o seu relato. “Ele já quis cortar o
pipi. Já falou que quer morrer e voltar menina. Um dia me pediu um remédio para ser
normal. Eu chorei a tarde inteira.”
Era a primeira vez que Karina – uma mulher de 37 anos, expansiva, do tipo que põe
ordem com autoridade numa festa infantil – participava do encontro de pais, médicos e
psicólogos no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação
Sexual – setor do HC que cuida de pessoas que não se identificam com o gênero em
que nasceram. A cada mês, os responsáveis pelas crianças e adolescentes que são
acompanhados pelo ambulatório se reúnem para discutir e compartilhar experiências.
Naquela sexta-feira, às oito da manhã, o grupo ocupava uma sala ampla, de paredes
brancas e sem adornos, que costuma sediar aulas e palestras. As cadeiras haviam
sido organizadas num grande círculo, para que todos pudessem se ver.
“Na escola, o Miguel reclamava que não pertencia ao grupo dos meninos, que faziam
bullying com ele, e nem ao das meninas, que o excluíam quando queriam fofocar”,
continuou Karina. “Mas vinte dias atrás eu deixei ele se vestir de menina. Ficou tão
feliz que resolveu fazer uma palestra para os amigos. Explicou que é transgênero, que
vai tomar remédio, que vai ser menina. Ele já sabe tudo, não sei como, acho que viu
na internet. Todo mundo aplaudiu.”
Uma psicóloga, Luciane Gonzales, quis saber a opinião do marido de Karina, Renato,
que estava sentado ao seu lado. A própria Karina tratou de responder: “O Renato me
acusava de incentivar o comportamento afeminado do nosso filho. Era uma luta entre
nós dois, porque no aniversário do Miguel eu queria dar Barbie, e ele queria dar
carrinho.” Gonzales interveio: “Incentivar é uma palavra cruel. Quem é que vai acordar
e pensar: ‘Hoje vou incentivar o meu filho a mudar de gênero?’” Renato consentiu: “No
passado eu queria mesmo mudar isso. Mas o Miguel está muito feliz de vinte dias para
cá. Vendo essa felicidade, eu não tenho como ser contra.”
No livro Longe da Árvore, o escritor americano Andrew Solomon sustenta que “é uma
pobreza da língua inglesa” – algo que vale também para a portuguesa – “usar a
palavra ‘sexo’ para designar tanto o gênero quanto o ato carnal”. Dessa confluência
infeliz, argumenta Solomon, deriva parte do mal-estar vinculado à noção de
transgênero: “Ser trans é visto como depravação, e as depravações infantis são
anômalas e perturbadoras. Mas as crianças trans não estão manifestando
sexualidade, estão manifestando gênero. A questão não é com quem elas desejam
estar, é quem elas desejam ser.”
O termo transgênero é abrangente e se aplica a qualquer pessoa cujo comportamento
se distancia das regras estabelecidas para o gênero em que nasceu. O cantor Liniker
– que fala de si no feminino, veste roupa de mulher, mas mantém bigode e
cavanhaque – é transgênero (embora, nesse caso, haja também o componente da
performance artística). Já o termo transexual, mais técnico, descreve quem se
submeteu a cirurgia ou tomou hormônios para aproximar o próprio corpo das
características do gênero em que se percebe. A modelo Lea T, que implantou silicone
e fez cirurgia de troca de sexo, é transexual. A maior parte dos pacientes tratados no
ambulatório do Hospital das Clínicas é transgênero – e apenas uma fração deles se
submete à transexualização.
Reimer nunca se aceitou no papel de menina. Urinava em pé, não brincava de boneca
e detestava usar vestidos. Ainda assim, Money publicou artigos fraudulentos, por mais
de uma década, atestando o suposto sucesso da experiência. Aos 14 anos, deprimido,
Reimer ouviu dos pais a verdade. Submeteu-se a uma reconstrução peniana e passou
a viver como menino. Chegou a se casar com uma mulher, mas suicidou-se aos 38
anos de idade. Seu caso – que, a depender de Money, mostraria que o gênero é uma
construção cultural – acabou virando referência para aqueles que defendem a ideia
contrária, de que a identidade de gênero tem uma origem exclusivamente biológica.
Em 1980, os termos “transexualismo” e “transtorno de identidade de gênero” passaram
a constar no DSM, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, livro de
referência da psiquiatria. O lado bom foi que, a partir de então, tais condições
começaram a ser tratadas por serviços públicos e por seguradoras privadas da área
de saúde. O lado ruim foi que, para que isso ocorresse, a transexualidade e a “disforia
de gênero” – termo que atualmente designa essa crise de identidade – tiveram que ser
oficialmente classificados como patologias.
“Tomo bordoada de todo lado”, ele me disse. “De gente que me acha ‘medicalizador’ e
de gente que me acha satanista. O que eu defendo é a necessidade de diagnóstico
para quem busca intervenção médica, que é muito radical. E diagnóstico não significa
doença, muito menos exclusão. Mas sem ele, vai virar uma cirurgia arbitrária.”
Karina contou que aos 5 anos Melissa – então Miguel – voltou chorando da escola,
depois de ganhar um carrinho da marca Hot Wheels no Dia das Crianças. Apesar de
ainda usar roupa de menino e ser tratada como tal, ela já cultivava o cabelo comprido
e, quando tinha uma chance, tentava vestir as roupas da mãe. “O Renato não
aceitava. Não era dito, mas ele deixava isso claro pelo modo como se comportava”,
contou Karina. “Era o melhor marido que podia existir, mas também o pior pai.
Transformava a vida dela num inferno.” Quando Melissa tinha 6 anos, o casal se
separou. “Falei para o Renato: ‘Marido, eu consigo outro. Filho, não.’”
Karina continuou morando com a filha numa casa no distrito paulistano do Jaraguá.
Renato foi morar com a mãe em Pirituba, distrito próximo, também em São Paulo. “Ele
me ligava quase todo dia pedindo para a gente voltar”, lembrou Karina. “Até tentou se
aproximar da Mel, mas ainda falava uns absurdos, do tipo: ‘Vira homem!’” Com o
tempo, Renato maneirou o discurso. “Ele passou a dizer que nos amava de qualquer
jeito, que aceitaria a Mel. Só o fato de não falar mais aquelas coisas ruins já era um
começo.”
O casal reatou em outubro de 2013, após um ano de separação. Três meses depois,
Renato perguntou a Karina o que deveria dar à filha no aniversário. “Depende”, ela
contou ter dito. “Você vai dar o que o Miguel quer ou o que você gostaria que ele
quisesse? Porque se for o que ele quer, é uma boneca do Monster High.” Karina disse
que Renato ficou calado. “Mas a gente estava em lua de mel de novo. Ele fazia tudo o
que eu queria.”
A boneca foi dada, mas aquele modelo em particular não agradou à menina. Resultou
que mãe e filha (então filho) precisaram voltar ao shopping para que o presente fosse
trocado. “A Melissa já tinha várias bonecas”, continuou Karina. “Mas sempre que a
gente ia numa loja de brinquedo, ela dizia que estava comprando para a prima. Saía
com ela escondida na sacola, e só brincava chegando em casa.” Ela disse que a
situação começou a mudar com o presente do pai. “Quando a atendente quis saber
pra quem seria o presente, a Mel respondeu: ‘É pra mim, meu pai que me deu, algum
problema?’ Depois desfilou com a boneca pelo shopping inteiro. Foi a primeira vez que
ela não teve vergonha.”
Melissa Doblado de Fazzio é uma menina bonita, com traços femininos, que fala de si
com tal segurança que parece ter mais do que seus 11 anos de idade. “Vou ser
cantora, tipo a Ivete ou a Lexa”, ela me contou quando a conheci, em novembro
passado (Lexa, eu aprenderia depois, é uma cantora pop que parece um clone da
cantora Anitta – que, por sua vez, não deixa de ser um clone de qualquer outra
cantora pop). Naquele dia Melissa usava uma camiseta em que se lia, em inglês, que
“algumas garotas nascem com glitter nas veias”. Fazia então quatro meses que
deixara de ser chamada de Miguel dentro de casa. “Mel surgiu espontaneamente”,
explicou, quando lhe perguntei como escolhera o próprio nome. “É forte e delicado.”
Melissa cursa o 6º ano num colégio bilíngue de Itupeva, o Interação. Foi lá que fez
uma apresentação, diante da turma, para explicar que era transgênero. “Não ia
adiantar nada a professora tocar no assunto e não dizer que era eu”, disse. “Então
falei de gênero, de bloqueio hormonal, de cirurgia. A Luiza, minha melhor amiga, tinha
dito que se eu não conseguisse, ela me ajudava.”
A própria Karina nunca ouvira falar em transexualidade até dois anos atrás. Tanto que
quando a família se mudou para Itupeva, em julho de 2015, ela foi à escola para
avisar, preocupada, que tinha um “filho totalmente afeminado”. “Eu achava que o
Miguel ia ser gay, e queria saber como eles iriam protegê-lo”, contou. “Só comecei a
entender o que acontecia quando a gente visitou o meu primo Lucio, que é gay, em
São Paulo. Ele e o namorado estavam casando.”
Em junho, durante uma ida ao shopping, Melissa pediu à mãe que a deixasse entrar
numa loja de roupas para experimentar vestidos. “Ela pulava de alegria”, lembrou
Karina. “Tentei não comprar nada, por medo de incentivar. Inventei que não tinha
dinheiro.” Uma hora depois, Karina voltou à loja, decidida. Levou uma blusa, uma saia
e um vestido com estampas da Barbie para a filha – que ainda se vestia de menino –,
sob a condição de que só fossem usadas após a ida ao Hospital das Clínicas.
Bastou um dia, no entanto, para que Melissa colocasse a roupa escondida, e fosse
mostrar às amigas do condomínio. “Foi um caminho sem volta”, contou Karina. “Eu
fiquei roxa quando vi, mas depois pensei: ‘Ela é minha menina. Não preciso de
diagnóstico para saber o que faz a minha filha feliz.’” As calças jeans viraram shorts
desfiados; as camisetas de Miguel foram recortadas e costuradas para virar blusas de
Melissa. Karina também se encarregou de ir a uma loja para comprar calcinhas.
No dia 22 de agosto, quando foi levado para a triagem no Hospital das Clínicas, Miguel
já se apresentava como Melissa. Segundo Karina, a consulta começou com uma
pergunta aparentemente simples – mas, no fundo, bastante complexa – do psiquiatra
Alexandre Saadeh à menina:
– Então deixa eu te ajudar. Você está aqui porque você nasceu um menino.
– Que você fale isso pra minha mãe e pro meu pai.
A consulta durou cerca de meia hora. O psiquiatra explicou que não poderia dar um
diagnóstico sem antes discutir o caso com outros profissionais. “A esperança de toda a
minha família era de que o Saadeh falasse que eu estava louca”, lembrou Karina.
“Mas o que ele disse foi que a Melissa tinha 99% de chance de ser aceita no
ambulatório. Virou um monstro na minha família.” Ao sair, Melissa virou-se para Karina
e Renato, e avisou: “Pronto. Agora eu vou ser Mel pra sempre.”
Na época, o único tratamento permitido no país para quem não se identificava com o
próprio gênero era a psicoterapia. Um transexual que quisesse passar por uma
adequação mais drástica tinha de procurar outros países, como Equador, Marrocos e
Inglaterra, onde os tratamentos hormonais e cirúrgicos eram autorizados. A situação
começou a mudar em 1997, quando uma resolução do Conselho Federal de Medicina
autorizou o tratamento experimental em adultos trans.
Foi por volta dessa época que Saadeh recebeu uma paciente de quase 70 anos. “Ela
era filha única, de família católica”, contou. “Nasceu num corpo masculino, teve que
estudar engenharia, depois foi funcionário público porque o pai também era. Vivia no
universo masculino como homem passivo, e acabou contraindo Aids. Sempre foi muito
infeliz.” A paciente só se permitira viver como mulher após a morte dos pais, quando
ela já tinha cerca de 60 anos de idade. “Quando saiu a resolução do Conselho de
Medicina, ela veio me pedir um laudo que a autorizasse a fazer uma cirurgia numa
clínica particular”, continuou o médico. “Ela disse assim: ‘A vida inteira fui obrigada a
viver como homem. Não sei mais quanto tempo de vida tenho, mas quero ser
enterrada como mulher.’ Aquilo foi uma paulada.”
Dois anos atrás, optou por não receber mais adultos no ambulatório. “Já existiam em
São Paulo outros dois lugares que atendiam essa população de maneira efetiva”, ele
explicou. “E a demanda para crianças e adolescentes vinha aumentando.” Seu sonho,
disse, é um dia não ter mais que atender adolescentes. “E, no fim, quero parar
também de trabalhar com crianças. Quero chegar num ponto em que esse tema esteja
tão naturalizado na sociedade que esse ambulatório não será mais necessário.”
Pelas regras do Ministério da Saúde, são nove os hospitais públicos – a maior parte no
Sudeste – habilitados a fazer tratamento hormonal em pessoas que não se identificam
com o gênero de nascimento. Desses, cinco também fazem cirurgia de readequação
sexual.
O tratamento segue um parecer do Conselho Federal de Medicina que estipula em 16
anos a idade mínima para a utilização de hormônio do sexo oposto. Até lá, o
adolescente utiliza um bloqueador hormonal que retarda a entrada na puberdade.
Também é obrigatório que passe por dois anos de acompanhamento psicológico antes
que a transformação seja iniciada. A cirurgia só pode ser feita, se for o caso, aos 21
anos de idade.
“Devo evitar ao máximo que a criança sofra mudanças corporais específicas, como
barba, menstruação, mandíbula saliente e voz grave, que começam a surgir com a
puberdade”, contou-me a endocrinologista Leandra Steinmetz, do Instituto da Criança
do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Nos meninos, a puberdade costuma começar
entre 9 e 14 anos de idade. Nas meninas, entre 8 e 13. Logo nos primeiros sinais,
entramos com o bloqueador.”
Steinmetz diz que o bloqueador não tem efeito colateral grave – embora acabe
retardando um pouco a evolução óssea, algo que mais tarde pode ser recuperado.
Quando a criança – já então um adolescente – chega aos 16 anos, passa a ter a
opção de ser tratada com o hormônio invertido. Meninos de nascimento tomam
estrogênio, que estimula o crescimento de mamas; meninas de nascimento tomam
testosterona, que estimula a aparição de pelos. Atualmente a equipe da
endocrinologista acompanha duas crianças em fase de bloqueio e dezessete
adolescentes que tomam hormônios.
Voltei a encontrar Melissa dois dias depois, para acompanhar sua cerimônia de
formatura. Quando cheguei à casa da família, em Itupeva, ela estava sentada numa
cadeira, no meio da sala, sendo penteada por uma cabeleireira. Vestia um short jeans
e uma camiseta amarela com a frase Come Kiss Me. As unhas estavam pintadas de
vermelho. “É vermelho com pontinhos dourados”, explicou. “E nos pés fiz francesinha.
Achei mais delicado.”
A cabeleireira, Laís, perguntou se haveria valsa depois da cerimônia. Melissa
respondeu que sim. “E quem vai ser o seu príncipe?”, continuou Laís. “O meu pai.” Em
seguida, as duas passaram cinco minutos conversando sobre particularidades do
cabelo feminino. O assunto ia do tipo de franja à espessura dos cachos.
Dois meninos, Henrique e João, bateram à porta. Henrique, o mais velho, de 9 anos,
usava cordão prateado, boné para trás e uma luva sem dedos numa única mão – o
que, acrescido do fato de que seu cabelo era louro e liso, fazia com que lembrasse o
ator Macaulay Culkin quando jovem. João, o mais novo, estava sem camisa, com
chinelos do Capitão América. Os dois olharam para Melissa por um tempo, em
silêncio, até que o mais novo perguntou: “Amanhã você pode brincar, Mel?” Melissa
ignorou a impertinência da pergunta, e quis saber, dos dois, se ficara bem de cachos
(ela só tinha um cacho). Henrique respondeu: “Parece aquelas princesas de filme da
Disney.” Ela então os dispensou. “Gente, vocês poderiam me dar licença agora?”
A casa foi se enchendo de amigas e parentes de Karina, inclusive seus pais. Em certo
momento, eram seis as mulheres em volta de Mel. Algumas cuidavam do cabelo,
outras da maquiagem: batom, sombra e delineador nos cílios. Finda a sessão, a
menina levantou-se para se olhar no espelho. “Amei. Estou parecendo Cachinhos
Dourados”, comentou, como um Michelangelo que admirasse uma escultura recém-
acabada. “Chega, Mel, para de se amar”, cortou a mãe. Melissa subiu ao quarto (que
ela chama de closet), colocou o vestido vermelho comprado para a ocasião e saiu pelo
condomínio a desfilar.
Por volta de sete da noite, Karina chamou a filha de volta a casa: “Mel, entra! Cansei!
Olha os cachos soltando tudo! Palhaçada!” Renato, de terno e gravata, já estava
pronto. A família partiu então para a cerimônia, na qual Melissa seria, de longe, a
menina mais produzida. “Eu já sabia que ela seria a única de vestido longo”, contou
Karina, mais tarde, vendo a filha no palco. “Tudo bem. As outras meninas tiveram isso
a vida inteira. Para ela é a primeira vez.”
Em março deste ano, o Fantástico, da Globo, veiculou uma série em quatro capítulos
sobre transgêneros. Melissa apareceu no episódio de estreia, que tratava de
identidade de gênero na infância (o programa ofereceu que ela tivesse o rosto
desfocado – ideia rechaçada por Karina, sob o argumento de que a filha não tinha
nada a esconder). Na entrevista à repórter Renata Ceribelli, Mel disse que o incômodo
em ser chamada de Miguel existiu desde “sempre, totalmente sempre”. E explicou:
“Para mim, eu estava fantasiada de menino até os 9 anos. Nove anos com uma
fantasia quente e pinicante.”
No dia seguinte, 800 pessoas pediram sua amizade no Facebook. “Só deixei umas
dez”, contou-me Karina, numa conversa por telefone (ela tem acesso à conta da filha).
“Um tal de Hugo Gloss comentou bastante sobre a Mel. Veio aquele programa da
Sonia Abrão pedir entrevista. Eu disse que não. Tentaram argumentar que seria ao
vivo. Falei: ‘Piorou.’”
Karina contou ter sido procurada também pela defensora pública que representou a
primeira criança a conquistar o direito de trocar o nome de registro pelo que usava
socialmente (o caso ocorreu em Mato Grosso, um ano atrás, com uma menina trans
de 9 anos). “Ela me disse que poderia ajudar a Mel nesse assunto. Mas tenho que
achar alguém que a represente na Defensoria Pública de Itupeva, e tenho medo de
não conseguir porque o povo daqui é mais difícil, do interior.” (Dias depois, ela
conseguiria que a carteirinha da escola fosse impressa com o nome “Melissa Doblado
de Fazzio”.)
Melissa jogava bola dentro de casa. “Peraí, Roberto”, pediu Karina, ao telefone, antes
de dar um pito na filha. “Mel, agora parou! Aqui não é campo para você jogar bola na
minha sala! Palhaçada!” Perguntei como havia sido a repercussão da reportagem na
escola. “Três crianças foram tiradas de lá pelos pais”, ela respondeu. “Uma mãe,
evangélica, falou para a diretora que a Mel era uma aberração. Tinha ouvido isso do
pastor.” Em resposta, a diretora pedagógica do colégio, Fernanda Lapenda, enviou
uma carta aos pais, explicando que “o único propósito da escola é o de respeitar e o
de fazer com que os alunos percebam e olhem para as diferenças com naturalidade,
tolerância e respeito”. Por fim, dizia que “questões religiosas não são discutidas e nem
têm espaço dentro do colégio”.
Mel também escreveu uma carta, a pedido de um blog chamado Geraldopost. Nela,
falava sobre a dificuldade de “viver uma vida que não é a sua”. “Já tive medo de as
pessoas saberem que eu já fui menino, de elas não gostarem de mim”, explicava,
contando como era triste ter de vestir bermuda em vez de vestido. “Eu olhava os
vestidos e pensava: ‘Que lindo! Será que um dia vou usar?’” Depois explicava como
sua vida melhorara a partir do momento em que passara a ser Melissa: “Por isso
devemos assumir o que somos, e quem, e o que nos faz realmente feliz (…) Estou me
sentindo livre, igual quando corro com meu cavalo, posso ir aonde eu quiser e fazer o
que quiser, sem ter medo de ser ‘tirada’ sarro ou sofrer, e ser deixada de lado.”
Muitas crianças iguais a mim estão me procurando para me pedir ajuda e isso é muito
triste porque têm casos que os familiares não entendem, mas estou feliz em poder
ajudar. É por causa disso tudo que decidi fazer a entrevista, e por isso que sou quem
eu sou e não tenho vergonha de assumir nada.
Obrigada a todos que me apoiam, e os que estão falando mal de mim e da minha
família, espero que um dia entendam que não faço nada para prejudicar ninguém, sou
apenas como sou: “Feliz.”
Dias depois, viajei a Itupeva para um último encontro com Melissa e Karina. Era uma
terça-feira de sol, no fim de março, feriado de aniversário da cidade. Henrique, o
menino louro, andava de skate pelo condomínio. Outras crianças brincavam em roda
na entrada de uma casa. Mel estava deitada na cama, em seu quarto, que é decorado
com adesivos de cavalos. Fazia carinho em seu gato, Theo, enquanto assistia a uma
série de vampiros no celular. “Já vi milhões de vezes”, explicou, com naturalidade.
Depois contou que vinha sendo reconhecida na rua em função da reportagem. “E
também bombei nas redes sociais, mas, fora isso, está tudo igual.” Voltou a olhar para
o celular.
Karina tomava um guaraná na sala. “A Mel agora foi convidada para ir no programa da
Fátima Bernardes”, contou, em dúvida sobre o que fazer. “Mas eu quero que ela viva a
vida de uma criança normal, sem exposição.” Em seguida falou baixo, em tom
confessional: “Claro que ela não pode ouvir isso.” Revelou que Renato ficara feliz com
a aparição da filha na tevê. “Recebeu tanta mensagem, até de uns amigos machões.”
Ela também aprovara a reportagem. “Antes eu pensava que ter uma filha trans era um
castigo. Hoje acho que é um privilégio. A Mel me ensina a ser melhor, a não ter
preconceito.”
Àquela altura a família ainda não sabia quando Melissa começaria o tratamento com o
bloqueador hormonal – e muito menos com estrogênio, que só pode ser feito a partir
dos 16 anos de idade. “Todas as amiguinhas dela hoje têm peito”, disse Karina,
angustiada. “E a Mel em cinco anos ainda não vai ter?” Contou ter cogitado medicá-la
por conta própria (o hormônio é o mesmo da pílula anticoncepcional). “Mas o Saadeh
diz que isso é muito perigoso.” O psiquiatra também precisou explicar à menina que
ela terá de conviver por um bom tempo com o pênis. “Por duas vezes ela pegou uma
tesoura e perguntou se não podia resolver isso logo”, contou a mãe.
A menina apareceu na sala: “Mãe, tem bala de canela?” Não tinha. Pegou uma fruta e
correu para a rua.
ROBERTO KAZ
Roberto Kaz, repórter da piauí, é autor do Livro dos Bichos, pela Companhia das
Letras