Vous êtes sur la page 1sur 5

1

O sentido da igualdade em disputa:


nova classe média ou nova classe trabalhadora brasileira?1

Para Giacomo Marramao

Marcelo Cattoni
Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil

Inicialmente, quero agradecer ao convite que me foi feito pela Fondazione Basso-Issoco
para participar deste Congresso, nas pessoas da Dottoressa Elena Paciotti e do
Professore Giacomo Marramao.

Pode-se afirmar que o objeto central deste congresso é recuperar o projeto


constitucionalista da igualdade e refletir sobre políticas que podem ser pensadas para se
lutar contra uma desigualdade crescente não apenas na Itália e na Europa, mas em todo
o mundo.

Parte-se do disposto no art. 3, secondo comma, da Constituição italiana, que exige da


República “rimuovere gli ostacoli di ordine economico e sociale, che, limitando di fatto
la libertà e l'eguaglianza dei cittadini, impediscono il pieno sviluppo della persona
umana e l'effettiva partecipazione di tutti i lavoratori all'organizzazione politica,
economica e sociale del Paese” (Sobre o art. 3 da Constituição italiana, cf. Pietro
Calamandrei. “Discorso sulla Costituzione”, 26/01/1955. Disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=2j9i_0yvt4w. E Lelio Basso, “Intervento sul progetto
di Costituzione della Repubblica italiana”, 1947; “La via pacifica al socialismo e la
realtà italiana di oggi”, 1957. Disponíveis em http://www.leliobasso.it; “Agire per
l’eguaglianza: l’articolo 3 della Costituzione italiana”. Disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=gS02GpxJk40).

Compreende-se claramente que este dispositivo do art. 3, 2, da CRI, tem “una portata
rivoluzionaria”, um “sentido revolucionário”, e especialmente convida-se aos
conferencistas a discutir sobre “Quali alternative per una “politica dell’eguaglianza”
che garantisca a ciascuno “un’esistenza libera e dignitosa” e una effettiva pari dignità
sociale? Un confronto tra le esperienze costituzionali nell’Unione Europea e in
America Latina”, face às “conseguenze negative delle disuguaglianze sul piano
economico-sociale dell’effettività dei diritti di cittadinanza e della stessa tenuta
democrática”.

Cabe, aqui, também falar da Constituição brasileira de 1988 e de seu art. 3.º: “Art. 3º.
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma
sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III –
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV
- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.” (Cf. Gomes Canotilho, José Joaquim;
Mendes, Gilmar Ferreira; Sarlet, Ingo Wolfgang; Streck, Lenio Luiz. Comentários à
Constituição do Brasil. Sâo Paulo: Saraiva, 2013)

1
Agradeço a Gilberto Bercovici pelo diálogo, por suas sugestões e indicações. A Flaviane de Magalhães Barros pelo
apoio. E a Adamo Dias Alves e a David Francisco Lopes Gomes pelo auxílio na revisão final deste texto.
2

A Constituição italiana (1948) e a brasileira (1988), assim como as constituições da


Índia (1949), de Portugal (1976), da Espanha (1978) ou da África do Sul (1996), sem
falar da Constituição da Irlanda (1937), são exemplos daquilo que se pode chamar de
“constituições transformadoras” (Gilberto Bercovici, “A Constituição brasileira, as
‘constituições transformadoras’ e o ‘novo constitucionalismo latino-americano’”, 2013;
Karl E. Klare “Legal culture and transformative constitutionalism”, 1998.) ou
“dirigentes” (Peter Lerche e Gomes Canotilho). Constituições, portanto, que expressam
o compromisso de “transformação das relações de poder e das instituições sociais e
políticas de um país numa direção igualitária, participatória e democrática” (Karl E.
Klare); no sentido, portanto, da realização, ao longo do tempo, de um projeto
constitucional, democrático e participativo de construção permanente da igualdade.

Proponho tratar do tema a partir do atual debate no Brasil sobre o chamado crescimento,
entre 2003 e 2011, da chamada “classe C”, em aproximadamente 40 milhões de pessoas
(de 65,8 milhões a 105,4 milhões): “Nova classe média” ou “nova classe trabalhadora”?

Cientistas políticos como Bolívar Lamounier (e Amaury de Souza. A nova classe média
brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade. Rio de Janeiro: Elsevier, Coleção
CNI, 2010) partem do diagnóstico segundo o qual, a partir da década de 90, estaríamos
assistindo ao surgimento de uma “nova classe média brasileira”, possibilitada, segundo
eles, pela globalização, por uma nova situação econômica internacional, e pelo Plano
Real (do então Governo Itamar Franco e de seu ministro FHC, de 1994). Para esses
autores, essa “nova classe média” teria surgido, portanto, em função do grande
crescimento da chamada classe C, considerado do ponto de vista da renda, do acesso à
escolaridade e ao consumo. E, atualmente, essa “nova classe média” estaria sendo
ameaçada pelas políticas sociais dos Governos Lula e Dilma: sua sustentabilidade seria
posta em risco pelos “entraves de um Estado interventor e corrupto”. Além disso,
segundo os autores, faltaria “capital social” (no sentido de Robert Putnam, em Making
Democracy Work: Civic traditions in modern Italy. Princeton: Princeton University,
1994) a essa nova classe, no sentido de que ela não mereceria maior confiabilidade: ela
seria facilmente cooptada por um discurso governamental personalista, clientelista e
patrimonialista. Enfim, seria facilmente enganada por políticas sociais populistas. E essa
suposta falta de capital social, de virtude ou de confiabilidade, por parte desta “nova
classe média”, justificaria, mais uma vez, o velho discurso do “autoritarismo
instrumental”, a velha “democracia possível” ou elitista: apenas a “boa sociedade” (as
classes A e B, as classes dominantes) é quem teriam o direito de governar e, assim,
livrar a sociedade desse Estado atrasado e de seus traços pré-modernos...

Por outro lado, autores como a filósofa Marilena Chauí ("A nova classe trabalhadora"
in: Sader, Emir (org.). Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-liberais. São Paulo:
Boitempo, 2013, p. 123-134), o economista Márcio Pochmann (Nova Classe média? O
trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012) e o
sociólogo Jessé Souza (Os batalhadores brasileiros. Nova classe média ou nova classe
trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2012), entre outros, têm criticado
veementemente o diagnóstico proposto por Bolívar Lamounier.

Fundamentalmente, para Chauí, de um ponto de vista marxista, não faz o menor sentido
falar em “nova classe média”, mas sim em “nova classe trabalhadora”. Chauí
desconstrói o discurso neoliberal, denuncia o quanto esse discurso se tornou lugar
3

comum, marca a importância da eleição de Lula em 2002 (chamando atenção para o


discurso de posse do Pres. Lula, contrapondo-o ao discurso do Pres. Collor em 1990),
critica a divisão de classes em A, B, C, D e E, típica da sociologia norte-americana que
não leva em consideração as relações de produção, apenas a renda e o consumo, critica
a tese da nova classe média e o que, afinal, poderia ser ainda caracterizado como classe
média brasileira. E termina seu texto com uma reflexão sobre a necessidade de reformas
estruturais, mas também sobre os limites da política estatal de inclusão social, sobre o
pano de fundo de uma “sociedade excludente, hierarquizada”, chamando atenção para a
importância de a própria classe trabalhadora procurar “novos caminhos de organização,
de luta e de expressão autônoma”.

Os batalhadores brasileiros, o livro de Jessé Souza, é, em vários aspectos, mais


contundente, sobretudo em razão da pesquisa sociológica que desenvolve. Ele se apoia
mais em Bourdieu (La distinction: critique sociale du jugement, de 1979/1982) e em
Boltanski e Chiapello (Le nouvel esprit du capitalisme, de 1999), no tratamento das
classes sociais e do capitalismo, do que em Marx, embora não dispense as análises
marxianas em vários momentos do texto.

Jessé Souza realizou uma profunda pesquisa sociológica de campo, dos operadores de
telemarketing aos feirantes, aos pequenos agricultores e aos microempresários,
analisando o impacto de programas de transferência de renda como o bolsa família e o
microcrédito (mesmo que esses importantes programas sociais e econômicos sejam
ainda muito limitados). A obra trata da estrutura familiar, da religião e das formas de
construção individual e coletiva de expectativas em relação ao futuro, dos chamados
“batalhadores”, procurando diferenciá-los da chamada “ralé” e das classes média e alta.

Há também nesta obra uma longa reflexão sobre o capitalismo financeiro, sobre o
toiotismo, sobre a fragmentação da produção em várias unidades de produção, etc., além
de, mais uma vez, uma profunda crítica ao pensamento sociológico tradicional sobre o
Brasil.

Mas, por outro lado, fiel à tradição reconstrutiva da teoria crítica da sociedade, Jessé
Souza aponta a necessidade de uma reflexão sobre as novas formas de solidariedade
social e de reconhecimento, assim como das formas de participação política e das
possibilidades que já se inscrevem de modo imanente e efetivo, ainda que paradoxal, no
próprio interior das práticas sociais, demonstrando uma preocupação sobre o futuro da
atuação política da nova classe trabalhadora brasileira, ainda em aberto.

Os termos, portanto, deste atual debate sobre o crescimento da chamada “classe C”, se
estaríamos diante de uma nova classe média ou de uma nova classe trabalhadora, podem
ser, assim, sintetizados.

Enquanto os liberais conservadores afirmam que esse crescimento representa o


surgimento de uma “nova classe média”, fruto do aumento da renda e da expansão da
“sociedade de consumo”, em razão da globalização econômica e do Plano Real de
“estabilização econômica”, a sociologia crítica afirma que se trata de uma “nova classe
trabalhadora”, pós-fordista, inserida nas tensões sociais e econômicas próprias do “novo
espírito do capitalismo” (Boltanski).
4

Se para os liberais conservadores, ou neoliberais, demonstrando um inegável racismo de


classe, a sustentabilidade dessa “nova classe média” seria ameaçada pelas políticas
sociais e econômicas “estatistas” dos governos Lula e Dilma, inclusive porque essa
classe seria uma vítima fácil do populismo, porque faltaria a ela “capital social” e
“confiabilidade” (Robert Putnam), para a sociologia crítica a “nova classe trabalhadora”
beneficiou-se das políticas sociais e econômicas nos últimos 10 anos (programas de
transferência de renda, inclusão social e erradicação da pobreza; garantia de emprego e
elevação do salário-mínimo; recuperação de parte dos direitos sociais; a articulação
desses programas; desenvolvimento sustentável; e início de nova política de reforma
agrária), apesar de reconhecer os limites dessas políticas, o que alimentou ainda mais
velhas e novas demandas sociais e políticas, bastante plurais, face ao Estado, à
sociedade e ao mercado. Todavia, agora, essas demandas são também apresentadas por
meio de novas formas de mobilização e de organização social e política, que
ultrapassam os partidos e os sindicatos.
Penso que os protestos de junho no Brasil se inserem nesse contexto, que envolve uma
disputa paradigmática sobre as relações entre Estado e sociedade, entre vários atores
sociais sobre a agenda política, em que questões como mobilidade urbana e direito à
cidade, a reafirmação de direitos sociais e de direitos econômicos, o direito à
diversidade cultural, à igualdade de gênero e de orientação sexual, além da exigência de
maior transparência nos processos decisórios e dos gastos públicos, o que deve ou não
ser considerado prioritário, assumem relevo cada vez maior (Cf. Ermínia Maricato e
outros. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do
Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013).

Devo dizer que meu ponto de vista se aproxima ao daqueles autores como Jessé Souza,
na tradição da teoria crítica da sociedade, em contraposição à análise de Bolívar
Lamounier, não apenas por discordar do diagnóstico apresentado, mas por uma razão
mais profunda: a do reconhecimento de uma disputa pelo sentido da igualdade, sobre o
pano de fundo do sentido de uma história política, também em disputa.

Pressuposta ao debate sociológico (“nova classe média vs. nova classe trabalhadora”)
está presente na própria sociedade uma disputa política pela igualdade, pelo sentido da
igualdade, que se relaciona, o que me parece fundamental, a uma disputa ético-política
e, portanto, constitucional mais profunda, entre projetos diferentes de Brasil, de
sociedade política, mas também do próprio sentido da modernidade.

Concordo com Jessé Souza que esse debate sobre a nova classe média ou trabalhadora
brasileira deixa entrever, mais uma vez, uma auto-interpretação dominante dos
brasileiros sobre si mesmos, seja do ponto de vista da teoria social e de sua reflexão
metódica, seja na própria prática social e institucional, que consagra a ideia segundo a
qual o Brasil seria um país singularmente marcado por resíduos e traços pré-modernos,
pelo atraso social, pelo subdesenvolvimento econômico, pelo personalismo, pela
cordialidade e pelo patrimonialismo, cujo referencial idealizado seriam, sobretudo, os
Estados Unidos da América ou a União Europeia.

Como tenho procurado mostrar desde Democracia sem espera e processo de


constitucionalização brasileiro, texto desenvolvido durante o meu pós-doutorado com
Giacomo Marramao e que a ele é dedicado (Cf.Cattoni, Marcelo (org.).
Constitucionalismo e História do Direito. Belo Horizonte: Pergamum, 2011), essa
tradição que se pode chamar de “culturalista” na interpretação do Brasil e de sua
5

singularidade é profundamente marcada por uma leitura teológico-política da falta de


povo soberano e por uma convergência, entre uma certa esquerda e a direita, quanto à
proposta de uma modernização autoritária, no quadro de uma democracia possível e de
uma concepção dualista da chamada brasilidade.

Compartilhada por parcela significativa da teoria jurídica brasileira, mesmo por uma
doutrina constitucional que se considera crítica e progressista, essa verdadeira
“sociologia da inautenticidade” (Jessé Souza) ritualiza um suposto “defeito cultural de
origem” e se desdobra na consequente visão segundo a qual a história jurídico-política
brasileira deve ser compreendida como uma “trajetória de fracasso” na construção do
Estado de Direito, da democracia e da justiça social.

Essa interpretação tradicional do Brasil e de sua singularidade contribuiu historicamente


para a reificação da própria história brasileira ao impedir, com consequências
deslegitimizantes, o reconhecimento de lutas históricas por cidadania e por direitos que,
do ponto de vista de uma teoria crítica da sociedade de matriz reconstrutiva, constituem
internamente o processo político brasileiro de aprendizado social com o direito e com a
política, que não é recente, não é só de agora.

Cabe, portanto, contribuir para criticar e romper com essa tradição “culturalista” de
interpretação do Brasil e de suas pretensas singularidades, assim como com a teoria
jurídico-política que a pressupõe, problematizando inclusive seus supostos racistas e
classistas, seja na dimensão da reflexão metódica, seja na dimensão política e
institucional.

Mais ainda, penso que o que está em jogo quando se discute o sentido da igualdade e do
seu projeto constitucional seja o próprio sentido da modernidade política, não apenas no
Brasil, não apenas no sul: em contrapartida a toda uma tradição “culturalista” da
história, da política e da sociedade, cabe reconhecer, diferentemente do que
supostamente seriam traços pré-modernos ou defeitos culturais congênitos, o caráter
seletivo de todo processo de modernização: suas contradições e seus riscos, mas
também suas lutas políticas e experiências emancipatórias, seu aprendizado social e suas
conquistas de longo prazo, seus potenciais de abertura ao porvir.

Muito obrigado!

Vous aimerez peut-être aussi