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O QUE FAZ O BRASIL, BRASIL?

A identidade nacional no mito fundante do Brasil

Adilson Schultz

Essa aula tem o título inspirado na obra do A elaboração da matriz teológico-


antropólogo Roberto da Mata (O que faz o brasil, ideológico-política desse mito fundante tem
Brasil?) e na obra da filósofa Marililena Chauí quatro elementos constituintes que se
(Brasil: o mito fundador),“ . Segundo DaMatta, o entrecruzam. Os quatro elementos aparecem de
Brasil – assim como todas as nações do mundo - forma simultânea e difusa na cultura nacional,
tem coisas que marcam a nossa identidade de tanto ao longo da história quanto nas relações e
forma indelével e nos fazem brasileiros. Já produções pessoais e coletivas do Brasil atual,
segundo Chauí, essa identidade de povo brasileiro inclusive na religião, inclusive nos processos
espelha-se naquilo que foi feito do país já quando políticos do país. Vejamos os quatro elementos:
de seu descobrimento/invasão pelos europeus há O 1º elemento do mito fundante do Brasil
cinco séculos, nosso ‘mito fundante’. Olhando é A visão do paraíso. Repetido e enunciado
para essas duas contribuições teóricas tem-se uma continuamente, remete à visão idílica descrita
visão ampla da historia da sociedade brasileira e pelos descobridores, comparando o Brasil ao
seus movimentos sociais. Paraíso na Terra. A natureza é exaltada ao
Um mito fundante é uma narrativa extremo como pura e amiga e os indígenas são
carregada de sentido da qual a sociedade lança apresentados como dóceis e inocentes. A carta de
mão para explicar sua condição histórica. É um Caminha transcreve isso em perfeição quando
mito carregado de elementos políticos, religiosos fala das propriedades do solo brasileiro: “Em se
e filosóficos. Foi estabelecido no contexto do plantando tudo dá!”
descobrimento ou da invasão do Brasil pelos Mas qual o problema dessa visão idílica
portugueses em 1500. do Brasil? “Essa produção mítica do país-paraíso
Segundo Chauí, esta narrativa, embora nos persuade de que nossa identidade e grandeza
elaborada no período da conquista, não cessa de se encontram predeterminadas no plano natural:
se repetir porque opera como nosso mito somos sensíveis e sensuais, carinhosos e
fundador. Mito no sentido antropológico: solução acolhedores, alegres e sobretudo somos
imaginária para tensões, conflitos e contradições essencialmente não violentos. O primeiro
que não encontram caminho para serem elemento da contração mítica nos lança e
resolvidos na realidade. Mito na acepção conserva no reino da Natureza, deixando-nos fora
psicanalítica: impulso à repetição por do mundo da história.” (M. Chauí)
impossibilidade de simbolização e, sobretudo, Um exemplo da perpetuação deste
como bloqueio à passagem à realidade. Mito elemento da matriz mítica é a letra do hino
fundador porque, à maneira de toda ‘fundatio’, nacional brasileiro, que exalta o país como terra
impõe um vínculo interno com o passado como de mares azuis, terra de amores e “deitado
origem, isto é, com um passado que não cessa, eternamente em berço esplêndido”. Outro
que não permite o trabalho da diferença temporal exemplo é a elaboração do sentido das cores da
e que se conserva como perenemente presente. bandeira brasileira, que ao invés de remeter,
Um mito fundador é aquele que não cessa de como nos outros países latino-americanos aos
encontrar novos meios para exprimir-se, novas ideais revolucionários oriundos da Europa,
linguagens, novos valores e idéia, de tal modo especialmente da revolução francesa, exaltam a
que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto natureza: céu-azul, florestas-verde, ouro-amarelo
mais é a repetição de si mesmo.” e branco-paz - não de luta pela paz, mas de ordem
Em certo sentido, o Brasil foi e progresso. [Para uma leitura paralela do hino
culturalmente “inventado”, e não descoberto: o nacional brasileiro e do hino bíblico em
referencial ideológico-político português-europeu Felipenses 2.5-11, cf. Oneide BOBSIN, A
foi transplantado para o Brasil e tem se imagem do Cruzeiro resplandece, Estudos
perpetuado como referencial mítico que marca e Teológicos, São Leopoldo, Sinodal.]
determina o país política e religiosamente até os O 2a elemento do mito fundante do Brasil
dias de hoje. é a concepção providencialista que acompanhava
os descobridores, sendo a história tida como o Estado não emergem da sociedade, mas vem de
espaço e tempo da revelação divina. Esta história Deus.
é profética, visto que o descobrimento revela o Conseqüência deste 4º elemento é que os
cumprimento da vontade divina; é soteriológica, acontecimentos políticos relevantes do Brasil
visto que revela para a nova terra a redenção sempre provêm do Estado via decreto, como a
vinda de Deus. O Brasil é o cumprimento dos República, a Independência, a Abolição, ...
planos de Deus: é a terra abençoada; quase um Curiosamente também os momentos sangrentos
paraíso reencontrado. destes acontecimentos, que provêm da sociedade,
Mas qual o problema desta da Divina são catalogados como conspiração ou fanatismo
Providência? “Ora, se somos parte essencial do popular, como a inconfidência, Praieira, Canudos
plano de Deus, então nosso futuro encontra-se Contestado, Farroupilha, MST, etc.
desde sempre e para sempre assegurado. Por isso Assim, segundo Chauí, “o mito fundador
podemos afirmar que, de direito, somos ‘o país do opera em mão dupla: Do lado dos dominantes,
futuro’. E nossa segurança é tanto maior porque opera com a visão de seu direito natural ao poder
Deus nos ofereceu o signo do porvir: a Natureza e na legitimação desse pretenso direito natural por
paradisíaca, sinal da Providência que nos meio do ufanismo nacionalista e
escolheu como novo Povo Eleito.” (M. Chauí) desenvolvimentista, expressões laicizadas do
O 3o elemento do mito fundante do Brasil Paraíso Terrestre e da teologia da história
é a visão profético-messiânica-milenarista da providencialista, assegurando a imagem do Brasil
história. Em certo sentido contrapõe ao elemento como comunidade una e indivisa, ordeira e
providencialista anterior. Caracteriza-se pela pacífica, rumando para seu futuro certo, pois
“divisão do tempo em três eras – do Pai, do Filho escolhido por Deus. Do lado dos dominados, se
e do Espírito, ou da lei, da graça e da ciência – e o realiza pela via profético-milenarista, que produz
embate final entre o Anticristo e Cristo, durante a dois efeitos principais: a visão do governante
era messiânica do Segundo Advento, com a como salvador e a sacralização-satanização da
vitória de Cristo e a instalação de um Reino de política. Em outras palavras, uma visão da
Mil Anos de felicidade no Tempo do fim, que é política que possui como parâmetro o núcleo
também fim dos tempos, no qual se preparam o profético milenarista do embate final, cósmico,
Juízo Final e a instauração do Reino Celeste de entre luz e treva, bem e mal, que o governante ou
Deus.” (M. Chauí) é sacralizado (luz e bem) ou satanizado (treva e
Conseqüência dessa visão de história é a mal).”
concepção dualista que divide o mundo, as E aí está o tendão de Aquiles da
pessoas e a política entre trevas e luz, bem e mal. identidade nacional, uma espécie de trama difícil
A figura messiânica aparece como quem conduz de desfazer; uma névoa difícil de dissipar:
o povo no embate contra o mal. Este elemento “É evidente, portanto, que o mito
messiânico-mileniarista do mito fundante fundador opera com uma contradição insolúvel: o
brasileiro perpetua-se, por exemplo, na política país-jardim é sem violência e, pela história
brasileira, com os sucessivos apelos da população providencialista, ruma certeiro para seu grande
aos “salvadores da Pátria”. futuro; em contrapartida, o país profético está
O 4o elemento do mito fundante do Brasil mergulhado na injustiça, na violência e no
reza que o governante rege pela graça de Deus. inferno, à procura de seu próprio porvir, na
Este elemento tem duas fontes: por um lado batalha final em que vencerá o Anticristo. Entre
baseia-se na doutrina do pecado original que ambos, cava fundo o humor das ruas: Quem foi
iguala todas as pessoas como pecadoras e, que descobriu o Brasil?/Foi seu Cabral, foi seu
portanto, destituídos do direito ao poder. Quem Cabral/ No dia 22 de abril/ Dois meses depois do
detém o poder é Deus, e este o concede Carnaval!”. (M. Chauí)
misteriosamente a alguns eleitos. “A origem do Esta cosmovisão, que nas palavras de
poder humano é, assim um favor divino àquele Chauí “opera com uma contradição insolúvel”,
que O representa. O governante, portanto, não cria um grande problema para o país – e para o
representa os governados, e sim a fonte continente latino-americano. A forma como os
transcendente do poder (Deus), e governar é europeus viram os povos indígenas reservava
realizar ou distribuir favores.” (M. Chauí) Por também algo de caótico, bestial, simbolizado na
outro lado este governante tem uma espécie de complexidade das relações culturais/sociais e na
corpo místico, carregando em si uma natureza selva densa e violenta. Estes povos eram atraentes
mista como a de Jesus Cristo. O poder político e e ao mesmo tempo repulsivos. Tinham que ser
pacificados/colonizados, e ao mesmo tempo espaço e um tempo ritual que estruturam o
subjugados. imaginário brasileiro: a parada militar celebrada
Segundo Vitor Westhelle, no livro Voces na semana da pátria é o espaço e o tempo da rua,
de protesta em América Latina, “por um lado da ordem; a festa de carnaval é o espaço e o
dominava um desejo, por outro, a incômoda tempo da casa, do aconchego e da liberdade de
sensação do estranho e pavoroso, ao que se teme. ser outra coisa; a procissão ou a festa religiosa
Por um lado, se conhecia ao Novo Mundo antes celebrada na semana santa é o espaço e o tempo
de encontrá-lo; mas, por outro lado, o Novo do outro mundo. Um rito de ordem, outro de
Mundo representava o inesperado, aquilo que desordem e um terceiro como que ligando os
resistia a qualquer tentativa de demarcá-lo ou dois, remetendo toda a cultura para o
reduzi-lo a um molde cômodo e confiável”. Esta transcendente. Cada um desses eventos-festivais
selva, este mundo confuso e ambíguo, é portanto nacionais conjuga os três discursos que
passível de pacificação, dominação, constroem a brasilidade. A cada um deles
evangelização. Esta visão de certa forma DaMatta agrega um personagem mítico: à ordem
permanece até hoje, como por exemplo na e à rua está associada a figura do caxias,
preocupação européia de preservar a Amazônia e brilhantemente romanceada por Lima Barreto na
de tabela os bichos/índios que nela habitam. personagem central de Policarpo Quaresma. À
Assim, paradoxalmente deu-se no Brasil desordem e à casa está associada a figura do
um fenômeno estranho: ora estas terras malandro, magistralmente romanceada por Jorge
simbolizavam o paraíso; ora o inferno. Se por um Amado no personagem Vadinho, em Dona Flor e
lado o pecado e a heresia rapidamente seus dois Maridos. Ao outro mundo, numa
transformaram-se na sua principal característica, tentativa de conciliação dos dois mundos, está
por outro lado esta maldade estava acompanhada associada a figura do renunciador,
de uma bondade natural. Entre inferno e paraíso, magistralmente representado por Antonio
as Américas eram na verdade como o Paraíso Conselheiro, conforme retratado por Euclides da
perdido, desprovido da possibilidade da Cunha em “Os sertões”. O Caxias manda,
ambigüidade de conjugar as duas caracterizações. organiza, ordena; o Malandro sobrevive, dá um
Era quase um estágio antes do Pecado Original: jeitinho brasileiro, trapaceia; Conselheiro
uma selva que precisava ser domesticada, mas renuncia, protesta, cria outra realidade. Todos os
cheia de belezas. três espaços são essenciais na estrutura da
Pode-se destacar ainda que essa matriz brasilidade, onde, segundo DaMatta, “o universo
mítica formou um espectro de ambigüidade na social é traduzido e comentado sistematicamente
forma dos habitantes destas terras se auto- em termos de três pontos de vista. Sem um deles
compreenderem. As artimanhas dos povos a sociedade provavelmente estaria desfalcada”.
indígenas e povos negros para resistir à conquista, Curioso é que no esquema de DaMatta é
posteriormente as artimanhas para se livrar da justamente o outro mundo que agencia a ligação
colonização, ou mais recentemente para resistir à da casa e da rua. O mundo das religiões é mítico,
globalização, dão conta desta ambigüidade latente e o renunciador ou o romeiro não quer saber do
no continente. O sincretismo e a mistura no mundo: quer fruir o outro mundo. Seus
âmbito religioso, a miscigenação no âmbito instrumentos de relação com o mundo são as
étnico, e o “jeitinho brasileiro” no âmbito cultural rezas. “Em vez de discursar e escrever (como faz
talvez evidenciem este espectro de ambigüidade e o Caxias, produzindo seus atos e decretos) ou
dissimulação. Na linguagem de Machado de cantar e dançar (como faz o malandro,
Assis, o Brasil seria um país Capitu. produzindo seus sambas), o renunciador reza e
Para simbolizar esse espírito de mistura, caminha, procurando a terra da promissão, onde
dissimulação e ambiguidade, o antropólogo os homens finalmente poderão realizar seus ideais
Roberto DaMatta propõe as categorias analíticas de justiça e paz social”. Seria uma terceira
da casa, da rua e do outro mundo para explicar o realidade que, na renúncia, dá sentido para as
Brasil (no livro Carnavais, malandros e heróis). duas outras. Os renunciadores-religiosos fazem o
A cada uma dessas categorias está agregado um meio do mundo. E por aí vai o Brasil...

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