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UNIDADE

UNIDADE
6 CÂNTICOS
5 SONETOS
DO REALISMO.
COMPLETOS,
O LIVRO
de ANTERO
DE CESÁRIO
DE QUENTAL
VERDE

CÂNTICOS DO REALISMO.
O LIVRO DE CESÁRIO VERDE

Claude Monet, Impressão:


nascer do Sol (1873).

A REPRESENTAÇÃO DA CIDADE E DOS TIPOS SOCIAIS

• A
cidade surge como um espaço que se opõe ao campo. O espaço urbano é visto
como opressivo e destrutivo (por exemplo, nos poemas «Num bairro moderno» e «O
sentimento dum ocidental»), tanto para o sujeito poético como para os populares que
para aí se deslocam em busca de melhores condições de vida, na sequência do
enorme êxodo rural que ocorreu nesta época. Em contrapartida, o campo é perspeti-
vado como um local de liberdade — sendo que o espaço rural não é idealizado, mas
descrito de forma realista e concreta.
• M
esmo nos poemas que se concentram no espaço citadino, são feitas referências
frequentes ao campo — como que a lembrar que a vocação do ser humano se orienta
para uma vida harmoniosa e natural, que só no campo se encontra, e que a vida na
cidade o desumaniza. Deste modo, no espaço urbano há sempre um desejo de eva-
são para o campo.
• A
oposição cidade/campo alarga-se também ao campo amoroso: enquanto
a cidade está associada à ausência, impossibilidade ou perversão do amor, o campo
representa a possibilidade de vivência plena dos afetos.
• A
s próprias figuras femininas da obra de Cesário se associam a esta dicotomia: o eu
poético sente-se atraído por dois tipos opostos de mulher — a mulher fatal e a mulher
frágil e inocente. No primeiro caso, temos figuras femininas que se enquadram perfei-
tamente no espaço citadino (e que surgem, por exemplo, no poema «O sentimento
dum ocidental»). Pertencem a um estrato social superior ao do sujeito poético e osten-
tam riqueza e elegância. O desejo que estas mulheres suscitam no sujeito poético é
investido de ambiguidade, na medida em que a sua altivez, ao mesmo tempo que o
seduz, provoca nele um sentimento de revolta. No segundo caso, temos personagens
simples, inocentes, frágeis e desamparadas, que, pelas suas características, não se
enquadram no espaço urbano, visto como um local de corrupção (cf., por exemplo, o
poema «A débil»). Assim, ao contrário da mulher fatal, a vulnerabilidade desta figura
feminina desperta no eu o instinto de proteção, o desejo de se redimir das suas faltas
e de levar com ela uma existência honesta e tranquila.

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Conteúdos literários

• N
o que diz respeito aos tipos sociais representados na obra de Cesário, temos
claramente um sentimento de empatia do sujeito poético em relação aos ele-
mentos das classes mais baixas (cf., por exemplo, os poemas «O sentimento
dum ocidental», «Num bairro moderno» e «Cristalizações»). Com efeito, é feita
uma crítica às condições degradantes em que os elementos do povo viviam: as
varinas de «O sentimento dum ocidental» «apinham-se num bairro aonde miam
gatas / E o peixe podre gera os focos de infeção» (vv. 43-44) —, bem como à
exploração a que estavam sujeitos — os calceteiros são descritos, em «Cristali-
zações», como «bestas […] curvadas» que têm uma «vida […] custosa»
(vv. 61-62); quanto à vendedeira de «Num bairro moderno», é humilhada por
um criado que lhe «[a]tira um cobre ignóbil, oxidado» (v. 29) e se recusa a
pagar-lhe mais pela mercadoria.
• O
poema «Cristalizações» parece, num primeiro momento, contrariar este
sentimento de compaixão em relação aos elementos mais vulneráveis da socie-
dade. De facto, o eu mostra-se pontualmente satisfeito com a cidade mercantil
— isto é, com uma sociedade que se centra apenas no progresso a nível econó-
mico, ignorando as necessidades das classes mais desfavorecidas: «E engelhem
muito embora, os fracos, os tolhidos, / Eu tudo encontro alegremente exato»
(vv. 46-47). Contudo, esta perspetiva é posteriormente contrariada pela contem-
plação mais demorada dos calceteiros e pela reflexão sobre a dureza que marca
o seu percurso existencial. Assim, o sujeito poético acaba por mostrar a sua
admiração por estes trabalhadores: «Que vida tão custosa! Que diabo!» (v. 62).
• A
injustiça social denunciada na poesia de Cesário torna-se mais gritante pelo
contraste que nela se estabelece entre o labor permanente dos elementos do
povo, que é visto como a força ativa da sociedade, e o ócio que caracteriza as
classes dominantes. Com efeito, no poema «Num bairro moderno», a azáfama
da vendedeira e dos trabalhadores da cidade contrasta com a «vida fácil»
(v. 12) dos habitantes deste luxuoso espaço, que às dez da manhã ainda esta-
vam a começar a despertar. Também em «O sentimento dum ocidental» este
contraste é visível: a descrição dos trabalhadores que regressam a casa ao fim
da tarde e dos que se encontram ainda no local de trabalho torna mais gritante
a inatividade das classes dominantes, que jantam nos «hotéis da moda» (v. 28)
ou se entregam ao consumismo nas «casas de confeções e modas» (v. 107).

DEAMBULAÇÃO E IMAGINAÇÃO: O OBSERVADOR ACIDENTAL

• C
esário Verde representa nos seus versos a cidade (e o campo) através do
registo de perceções sensoriais: embora predominem as referências visuais,
o eu lírico caracteriza também o espaço urbano pelas constatações que lhe
chegam através do ouvido, do olfato e do tato (cf. «O sentimento dum ocidental»
e «Num bairro moderno», nas páginas 278-283 do manual). Em várias situa-
ções essas sensações cruzam-se em sinestesias.
• A
caracterização da cidade é feita enquanto o eu lírico caminha pelas ruas,
anotando em movimento o que vê, ouve, cheira e sente. O facto de deambular,
de se deslocar no espaço, permite-lhe uma perceção dinâmica e um conheci-
mento mais completo da realidade urbana, na medida em que passa por vários
lugares e encontra diferentes personagens (cf. «A representação da cidade e os
tipos sociais», nas páginas 65-66 deste livro).

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• M
as Cesário não se contenta em apresentar a realidade «como ela é», ou seja,
de forma «objetiva». O sujeito poético coloca a sua subjetividade nessa
descrição e fá-la acompanhar de insinuações apreciativas e de comentários
avaliativos: «Como animais comuns, que uma picada esquente, / Eles [os
trabalhadores de rua], bovinos, másculos, ossudos,» («Cristalizações»).
• E sse olhar subjetivo sobre o real e a cidade concretiza-se em vários casos numa
representação imaginativa das figuras, dos elementos e dos espaços que são
descritos. A imaginação do sujeito poético leva-o, por exemplo, a comparar a
atriz elegante e intimidada de «Cristalizações» a uma cabra fugidia («Com seus
pezinhos rápidos, de cabra!») ou a falar, no mesmo poema, das «árvores
despidas» do inverno como «uma esquadra [fundeada] em fria paz».
sta é uma técnica de representação do real que se propicia à análise e à crítica
• E
social: através da comparação, da metáfora e da imagem condena-se a desu-
manização do trabalho quando se encontram semelhanças entre os calceteiros
e os animais de carga: «Assim as bestas vão curvadas!» («Cristalizações»),
denuncia-se o «consumismo» da mulher abastada, comparando-a a uma «grande
REALISMO. O LIVRO DE CESÁRIO VERDE cobra, a lúbrica pessoa», alude-se aos habitantes da cidade, que vivem em
prédios, como encarcerados («os emparedados») — ambos de «O sentimento
dum ocidental». (cf. «Perceção sensorial e transformação poética do real», nas
páginas 67-68 deste livro.)
• P
or outro lado, a imaginação criativa e a subjetividade do sujeito poético
manifestam-se também na utilização da técnica impressionista para represen-
tar a realidade. Tal sucede quando a caracterização de um lugar ou de uma
personagem é inicialmente definida por características suas (normalmente
associadas à luz e à cor) que o observador perceciona para só num segundo
momento esse elemento ser identificado: «Reluz, viscoso, o rio», «Lançam a
nódoa negra e fúnebre do clero».
• P
or fim, note-se que a imaginação do sujeito lírico é também responsável por
trazer para o presente alusões ao passado da cidade, seja esse passado glorioso
ou sombrio: «Assim que pela História eu me aventuro e alargo». Os grandiosos
tempos idos da pátria emergem pela evocação de «Mouros, baixéis, heróis, tudo
ressuscitado» ou de Camões; os períodos de obscurantismo revelam-se quando,
por exemplo, duas igrejas recordam os tempos da Inquisição: «um ermo inqui-
sidor severo» (exemplos de «O sentimento dum ocidental»).
al significa que esta imaginação poética contribui decisivamente para dar sig-
• T
nificado (valorização, crítica, sentido, etc.) à realidade que o sujeito poético
descreve. Óscar Lopes (1987: 470-473) sugere mesmo que essa imaginação
funciona através da interseção, do cruzamento de diferentes planos: objetivo e
subjetivo, realidade e imaginação, ou presente e passado.

PERCEÇÃO SENSORIAL E TRANSFIGURAÇÃO POÉTICA DO REAL

• N
a poesia de Cesário, há um sujeito poético que se encontra em permanente
deambulação e cujo olhar, à semelhança de uma câmara de filmar, vai cap-
tando imagens, como instantâneos cuja rápida sucessão é por vezes sugerida
através do recurso ao assíndeto (recurso expressivo que consiste na omissão da
conjunção coordenativa entre os constituintes, que se separam apenas por vír-
gulas). Assim, a visão desempenha um papel fundamental nestes poemas.
O próprio sujeito poético tem consciência deste facto, afirmando, no poema
«Nós»: «Pinto quadros por letras, por sinais.»

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Conteúdos literários

Paul Cézanne, Natureza morta com jarro e fruta (1894).

• N
o entanto, o sujeito poético não se limita a descrever objetivamente a realidade
que observa nas suas deambulações. A «luneta de uma lente só» («O senti-
mento dum ocidental», v. 85) pode ser entendida como uma metáfora de um
olhar criador, que tem o poder de transfigurar tudo o que o rodeia. É nesta
sequência que assistimos, por exemplo, ao aparecimento de um corpo formado
pelas frutas e pelos legumes da vendedeira no poema «Num bairro moderno»
— através do qual o sujeito poético como que reverte a humilhação a que esta
figura feminina é sujeita pelo criado, na medida em que substitui, por momen-
tos, todo o espaço citadino — bem como a exploração do campo que ele repre-
senta — por uma imagem associada à vitalidade do espaço rural. A realidade é
também transfigurada, no poema «Cristalizações», no momento em que o eu
configura as camisas dos calceteiros como uma bandeira, que se institui como
um símbolo de todo o sofrimento inerente à sua vida, funcionando, portanto,
como uma forma de denúncia das injustiças sociais. Finalmente, é possível
também considerar o momento de transfiguração das lojas que o sujeito poético
observa em «O  sentimento dum ocidental» como um passo que tem subjacente
uma intenção crítica, dado que a sua configuração como uma imensa catedral
com diversas capelas pode ser interpretada como uma condenação da elevação
do consumismo à condição de algo sagrado.

O IMAGINÁRIO ÉPICO (EM «O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL»)

• O
poema «O sentimento dum ocidental» foi publicado em 1880 no número
especial do periódico Jornal de Viagens, que nessa edição pretendia comemorar
o terceiro centenário do falecimento do autor d’Os Lusíadas. (Já aqui se vislum-
bra alguma ligação entre a composição de Cesário e a epopeia camoniana.)
• « O sentimento dum ocidental» é um poema longo que se centra na experiência
de vida na Lisboa da segunda metade do século XIX, como cidade ocidental
moderna, bem como nos sentimentos de melancolia, desânimo e até desespero
que tal vivência desencadeia.
• Quanto à estrutura externa, o poema encontra-se organizado em quatro partes,
cada qual com onze quadras, formadas por um decassílabo e três alexandrinos.
Na edição de O livro de Cesário Verde, as quatro partes receberam os títulos:
«Ave-Marias» (seis da tarde), «Noite fechada», «Ao gás» e «Horas mortas».

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m termos de estrutura interna, assistimos ao percurso de um sujeito poético


• E
que percorre Lisboa à medida que as horas passam e a noite se vai adentrando.
As quatro partes correspondem, pois, a fases do fim do dia: fim da tarde,
chegada da noite, noite instalada e iluminada pelos candeeiros a gás e a noite
cerrada das «Horas mortas».
• « O sentimento dum ocidental» é predominantemente um poema lírico, na
medida em que representa a vivência de um eu (poético) numa cidade moderna
do mundo ocidental. Contudo, o poema contém marcas que recordam o estilo
épico mas que acabam por o subverter (ou seja, por o contrariar). Essas carac-
terísticas emergem logo por se tratar de um poema longo com um forte pendor
narrativo, como sucede numa epopeia: o eu poético relata o seu percurso pela
cidade. Mais ainda, esse sujeito podia estar a celebrar Lisboa e a vida dos seus
habitantes; mas, na verdade, está a criticá-la: a cidade é um lugar decadente,
sem brilho nem valor.
á, contudo, uma dimensão épica no poema; mas essa não pertence ao pre-
• H
sente, à Lisboa moderna. O Tejo, a estátua de Camões e alguns outros elemen-
tos remetem para um passado em que Portugal conheceu a grandeza e a glória.
As alusões aos Descobrimentos e ao Império Marítimo são, assim, um esboço
de uma epopeia do passado, que o presente torna amarga porque já não é essa
a realidade moderna.
omo sucederia com Camões, se tivesse vivido no fim do século XIX, o sujeito
• C
poético perdeu o motivo para celebrar a pátria decadente e a cidade sem brilho.
No presente do eu poético, a viagem que se pode fazer já não é a das Desco-
bertas, plena de aventura, mas a fuga, a evasão para outro lugar diferente:
«Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! / […] Madrid, Paris, Berlim, São
Petersburgo, o mundo!»
• P
or fim, também as personagens que povoam a cidade moderna não são já os
heróis militares, cívicos, políticos e artísticos de outrora. São agora personagens
decadentes como burgueses, dentistas ou gente que trabalha mecanicamente,
que não trazem estatuto épico à cidade.
• O
estilo de Cesário é prosaico e de tom coloquial, o que o situa longe do estilo
elevado, retórico e grandiloquente das epopeias. O próprio vocabulário do quo-
tidiano da cidade («varinas», «boqueirões», «becos») em nada se confunde
com o léxico rico e ostentatório de um poema épico.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA

1. Estrutura
esário Verde investe grande cuidado na busca da perfeição formal dos seus
• C
poemas. Essa é uma das razões que levaram alguns estudiosos a aproximar
a poesia deste autor da dos poetas do Parnasianismo (ver glossário).
• E
m termos de estrutura estrófica, Cesário recorre frequentemente à quadra,
sejam os poemas longos («O sentimento de um ocidental», «Nós») ou curtos
(«Sardenta»). Mas o poeta revela também o seu gosto pela quintilha (estrofe de
cinco versos), com que compõe «Cristalizações» ou «Num bairro moderno».

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uanto à métrica, a preferência de Cesário incide nos versos alexandrinos (verso


• Q
de doze sílabas métricas) e nos decassílabos. Em alguns poemas — como
«Cristalizações» ou «O sentimento dum ocidental» — surgem os dois tipos de
verso na mesma estrofe. Os alexandrinos e os decassílabos são versos mais
extensos e permitem ao poeta, de forma mais folgada e distendida, descrever
a cidade e refletir sobre as perceções que dela tem; mas estas são também
estruturas métricas usadas porque permitem criar uma cadência musical.
• A
s composições poéticas de Cesário recorrem sempre à rima como forma de as
organizar formalmente e de lhes incutir musicalidade. Nos poemas constituídos
por quadras, encontramos rima cruzada (abab) ou interpolada e emparelhada
(abba). As quintilhas estruturam-se geralmente num tradicional e ritmado abaab.

2. Linguagem e estilo
• C
esário Verde inovou a literatura portuguesa, em fins do século XIX, ao trazer para
o domínio da poesia uma nova linguagem, menos retórica e menos elevada. Esta
coaduna-se com o tratamento original e novo de temas antigos (campo, mulher)
e modernos (cidade) e com o tipo de arte que o autor cultivava.
ma estranheza imediata que um leitor do século XIX teria sentido ao entrar na
• U
poesia de Cesário Verde emergiria do discurso pouco ornamentado e pouco
rebuscado que contrastava com a retórica pesada e sentimental de alguma
lírica romântica. Ao representar a realidade moderna da segunda metade de
Oitocentos, Cesário socorre-se de vocábulos e expressões da vivência citadina,
sobretudo a que se associa ao povo. E a poesia começa a ser frequentada por
termos que até então não tinham aí entrada, como «via-férrea», «varinas»,
«infeção», «esguedelhada», «macadamizada », etc.
• A lírica de Cesário Verde aproxima-se da prosa não apenas pelo seu tom
coloquial e antideclamatório mas também, e como vimos, pelo uso do verso
longo — como o decassílabo e o alexandrino e do encavalgamento.
• A
inda assim, a poesia de Cesário não é despida de recursos expressivos.
O poeta cultiva a comparação e a metáfora, em muitos casos, de forma a pro-
por semelhanças entre aspetos da cidade (e os seus habitantes) e outros ele-
mentos que dão sentido ou criticam: «Semelham-se a gaiolas, com viveiros /
As edificações», «Como morcegos […] Saltam de viga em viga os mestres car-
pinteiros», «Que grande cobra, a lúbrica pessoa», «E tem marés, de fel».
• A
lgumas metáforas têm uma natureza fortemente visual ou pictórica, decor-
rente do carácter descritivo desta poesia e de ela ter pontos de contacto com
a pintura; muitas destas ocorrências são mesmo imagens: «homens de carga»,
«Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero».
• T
ambém o recurso à enumeração se associa ao carácter descritivo de alguns
poemas de Cesário Verde («O sentimento dum ocidental», «Num bairro
moderno»). Nestas composições, o poeta elenca elementos do real, em muitos
casos de forma justaposta, para depois os analisar ou criticar: « Cercam-me as
lojas […] Com santos e fiéis, andores, ramos, velas.» As enumerações contribuem
para criar o efeito de que o eu poético procura representar a totalidade do real.
• J á a sinestesia (o cruzamento de perceções sensoriais de tipos diferentes)
resulta do processo de captação de sensações para a caracterização da vivência
de um lugar: «brancuras quentes», «luz macia» (visão e tato). Desta forma se
dá conta do modo complexo como alguém experiencia, por exemplo, a cidade
ou a relação com uma mulher.

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• N
ão sendo um recurso muito comum, a hipérbole surge para representar de
forma expressiva e gritante alguns aspetos da cidade: «De prédios sepulcrais,
com dimensões de montes, / A Dor humana busca os amplos horizontes».
• É
de forma surpreendente e original que Cesário utiliza os adjetivos, sobretudo
quando surgem antes de nomes ou quando ocorrem em pares ou em grupos
de três: «E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente,
os cães parecem lobos» («O sentimento dum ocidental»). A sucessão de quatro
adjetivos assume uma forte expressividade e representa uma tentativa de definir
com rigor o elemento que caracterizam. Como antecedem o nome, adquirem
um significado que vai para além do seu sentido literal.
• O
advérbio é também muito usado de forma surpreendente e, por isso, muito
expressiva: «Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes / E os ângulos agudos».
Nos versos «E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, / Amareladamente,
os cães parecem lobos», o advérbio traduz engenhosamente a condição faminta
e enferma destes animais que erram pela cidade.
• É
de forma muito criteriosa que Cesário seleciona os adjetivos e os advérbios
que utiliza. A subjetividade no uso destas classes de palavras representa, em
vários momentos, uma técnica da pintura impressionista aplicada à literatura.
Com o advérbio «amareladamente», a cor ganha importância e, como numa
tela impressionista, o elemento é retratado tal como o observador o perceciona
e nas condições (de visibilidade, do clima) que o rodeiam. Vejamos outros
exemplos do uso da técnica impressionista: «Mas, todo púrpuro a sair da renda /
[…] O ramalhete rubro de papoulas» («De tarde»), e «Mas, depois duns dias
de aguaceiros, / Vibra uma imensa claridade crua.» («Cristalizações»).
aproximação entre a poesia e a pintura afirma-se também pelo facto de
• A
Cesário explorar uma linguagem plástica, com um forte apelo visual, e cultivar
o recurso expressivo da imagem com um acentuado valor simbólico:
« C ercam-me as lojas, tépidas. Eu penso / Ver círios laterais, ver filas de
capelas.» («O sentimento dum ocidental») Ao observar uma realidade (a rua
iluminada pelas lojas), a imaginação leva-o a conceber uma outra cena (as
capelas, lado a lado, iluminadas): é claro que esta justaposição de elementos
convida a uma relação crítica entre ambos.

Edvard Munch, Carl Johan


ao anoitecer (1892).

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