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EXPOSIÇÃO

DO
DOGMA CATÓLICO
PELO

QUARESMA DE 1873

VERSÃO PORTUGUESA SOBRE A EDIÇÃO FRANCESA DO

DR. LUIZ MARIA DA SILVA RAMOS


LENTE DE VÉSPERA DA FACULDADE DE TEOLOGIA DA
UNIVERSIDADE DE COIMBRA

CÓPIA DE APRECIAÇÃO

1
AO LEITOR

Estas Conferências não necessitam de prefácio, porque


começam por uma exposição geral do dogma católico, espécie de
sumário das verdades que me proponho tratar. Foram precedidas de
uma longa introdução na qual tentei responder às questões que a
primeira palavra do nosso Símbolo, Credo, naturalmente suscita:
Por que é que esta palavra Credo exprime um ato razoável? A razão
não poderá por ventura prescindir da fé? A fé não destruirá a razão?
Quais as operações que representam a ração no ato de fé? Como é
que nós somos obrigados a prestar o nosso assentimento a verdades
reveladas? Qual o valor dos motivos que determinam este
assentimento? Como se demonstra o fato da existência de Deus? A
razão convencida pelo exame dos motivos de credibilidade e
prostrada pela graça de Deus diante dos mistérios da fé não fica por
isso condenada à imobilidade?
Envio os meus leitores para as Conferências do convento
de Santo Tomás de Aquino1. Encontrarão nestas Conferências, na
exposição dos princípios de harmonia da razão com a fé, na
refutação dos erros que tendem a destruir a fé em benefício da razão
e a razão em benefício da fé, no exame razoado das profecias, dos
milagres e dos testemunhos, resposta às dificuldades que detêm o
espírito humano no limiar dos estudos teológicos.
Agora procedemos à aplicação dos princípios que já
expusemos em nossas duas últimas conferências, sobre a ciência
teológica e sobre a controvérsia religiosa. Munidos com estes
princípios, vamos estudar, uma a uma, todas as verdades do
símbolo católico.

1
Introdução ao dogma católico. Conferências do Convento de Santo
Tomás de Aquino. Serão igualmente vertidas.
2
Como o magistério da Igreja, Santo Tomás será o nosso
guia. A sua doutrina, abandonada durante um longo período de
tempo, tende a reconquistar o império soberano que na Idade Média
exerceu sobre os espíritos; e é uma maravilha o contemplar a
piedosa admiração com que aquela doutrina é hoje recebida pelos
auditórios cristãos. A homens distintos, pelos dotes do seu espírito
e pela sua ciência, ouvi eu dizer, que nada lhes parecia mais novo,
mais original, mais conforme ao senso comum e mais de harmonia
com as nobres aspirações da inteligência cristã do que a doutrina de
Santo Tomás.
Vulgarizar esta doutrina, atendendo sempre às legítimas
exigências do espírito moderno e aos descobrimentos da ciência, tal
foi o desejo de toda a minha vida apostólica, e não sei como
exprimir a doçura que sentir ao ver que o meu desejo encontrara
eco no acolhimento com que ultimamente fora recebida a minha
palavra, não obstante o ocupar-me de verdades mais difíceis.
E pois que estas verdades nada perderam da sua beleza, não
há motivo para desesperar da reabilitação da nossa época. Quem
tão resolutamente abraça as fortes doutrinas, abraçará
inevitavelmente os fortes costumes e as fortes instituições.
Digne-se abençoar-me, na tarefa que ora empreendo,
Aquele que dissera ao Doutor Angélico: Bem escrevestes de mim,
Tomás. Bene scripsisti de me, Thoma. – Digne-se guiar-me nos
longos e difíceis caminhos que terei de percorrer, a Estrela radiante
que reflete melhor do que todos os mestres da Ciência Sagrada a
luz do eterno Sol.

Maria Imaculada, rogai por mim.

Paris, 5 de maio, festa de São Pio V.

PREFÁCIO DO TRADUTOR

Sinceramente empenhado, como estamos, desde que foi


publicada a memorável Encíclica Aeterni Patris de Leão XIII, na
grandiosa obra da restauração do magistério de Santo Tomás de

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Aquino, neste reino onde floresceu com tanto brilho, e nesta nossa
tão ilustre Universidade de Coimbra onde os estudos escolásticos
foram professados por eminentes sábios, parece-nos que algum
serviço prestamos à nobre causa tão lucidamente exposta e tão
vigorosamente defendida naquele documento pontifício, vertendo
para a nossa língua as imortais Conferências do Padre Monsabré.
Em verdade, a vulgarização destas Conferências onde se
refletem, como em límpido cristal, os esplendores da ciência do
grande luminar da Idade Média, é um dos meios mais poderosos e
mais eficazes de restaurar em Portugal a áurea doutrina do Angélico
doutor. Tesouro preciosíssimo de sólida ciência filosófico-
teológica, monumento esplêndido de vasta erudição sagrada e
profana, as Conferências do Padre Monsabré, ilustre continuador
da missão civilizadora de Frayssinous, de Lacordaire e do Padre
Félix no famoso púlpito de Nossa Senhora das Vitórias, de Paris,
vão por certo despertar nos espíritos pensadores, e especialmente
no clero, o gosto pelo estudo da doutrina aquinatense que foi, desde
que fulgiu sobre o mundo, a inspiração e a luz de todos os sábios.
Na história da filosofia e teologia aquinatense, a
Universidade de Coimbra tem uma página brilhante, tão brilhante
que na citada Encíclica de Leão XIII, diz o Vigário de Jesus Cristo:
“É com sumo prazer que o nosso espírito se recorda das
celebérrimas academias e escolas que outrora floresceram na
Europa, em Paris, Salamanca, Alcalá, Douai, Tolosa, Louvrain,
Pádua, Bolonha, Nápoles, Coimbra e muitíssimas outras”. Alude o
Pontífice Romano, principalmente, à Faculdade de Teologia da
Universidade de Coimbra, no tempo em que esta sempre tão ilustre
corporação científica cultivava com esmero e proficiência
admiráveis a doutrina dos grandes escolásticos e nomeadamente do
príncipe e mestre de todos eles, Santo Tomás de Aquino. Obscuro
professor desta faculdade, que ainda hoje saúda com o mundo
sábio, cheia de respeito e admiração, o imortal ditador científico do
século XIII, e ainda hoje se dedica ao estudo dos tesouros de ciência
que nos legou, intentamos, com a publicação em vernáculo das
Conferências do Padre Monsabré, continuar as tradições gloriosas
da Academia de Coimbra trabalhando, consoante as nossas forças,
para que em Portugal seja conhecida a doutrina aquinatense.
Entendamo-nos, porém. Hoje ninguém intenta restaurar a
doutrina escolástica com todas as fórmulas da idade média, e não
tendo em consideração alguma os legítimos progressos do espírito

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humano e os assombrosos descobrimentos das ciências. Queremos,
sim, que nas escolas se restaure a doutrina do Angélico doutor, mas
como ele ensinou, como a interpretaram os seus mais ilustres
discípulos, como o estado atual das ciências exige que seja exposta
e ensinada, numa palavra: como expõe e ensina o gênio fecundo e
inspirado do Padre Monsabré.
Imaginam muitos que a doutrina de Santo Tomás se reduz
a uma série de silogismos, de abstrações metafísicas envolvidas em
fórmulas bárbaras e incompreensíveis, de sutilezas e argúcias e
distinções sem utilidade prática para a ciência. E, baseados neste
falso suposto, afirmam que a restauração da doutrina de Santo
Tomás faria retroceder as ciências ao estado em que se achavam
nos séculos medievais. É um engano. Santo Tomás foi o primeiro
que reagiu contra os abusos da escolástica; nas suas obras não se
encontram nem vestígios dessas questões estéreis, dessas sutilezas
e argúcias em que tanto se embrenharam os espíritos, e que tanto
concorreram para a decadência e descrédito da escolástica. A
doutrina de Santo Tomás se é largamente desenvolvida na parte
especulativa, se tem um lado psicológico, subjetivo e metafísico,
tem também um lado empírico, prático, experimental, e, por isso
mesmo, de grande alcance para o desenvolvimento das ciências.
Metafísico e experimentalista, Santo Tomás de Aquino não
prescinde da observação do fato para a investigação da lei que o
domina e explica; e proclama que o verdadeiro método científico é
o que sobe da análise minuciosa do fato, que é o mais conhecido,
para o conhecimento da lei que o informa, que é o menos
conhecido, e desce deste conhecimento à explicação rigorosamente
científica do fato.
Este é um dos princípios fundamentais da filosofia
aquinatense, e tanto basta para concluir que a escolástica tomista
não é o que dizem os seus detratores inconscientes, uma doutrina
de meras abstrações metafísicas, mas uma doutrina rigorosamente
filosófica e perfeitamente adaptada à índole do espírito humano, a
única que o pode levar seguramente à contemplação da verdade.
Para estabelecer e conservar no mundo a unidade religiosa
instituiu Jesus Cristo o magistério da Igreja adornando-o com a
prerrogativa da infalibilidade; para estabelecer e conservar a
unidade filosófica suscitou a Providência divina Santo Tomás de
Aquino, e inspirou-lhe a áurea doutrina que nos deixou consignada
nas suas obras imortais. É nesta doutrina que o teólogo deve

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aprender a ensinar e defender a fé; é nesta doutrina que o orador
cristão se deve inspirar para bem exercer o seu elevado magistério;
é finalmente nesta doutrina que os sábios cristãos devem procurar
o ideal das suas aspirações e as armas de fina têmpera para
vingarem as suas crenças dos embustes e assaltos do erro.
Em Portugal a oratória sagrada atravessa atualmente um
período de lamentável decadência. Salvas honrosas e muito raras
exceções, os nossos oradores sagrados, descurando o estudo da
teologia e da filosofia, dois mananciais fecundíssimos da
verdadeira eloquência cristã, curam apenas da elegância do estilo,
do aprimorado da frase, dos ouropéis da retórica, da seleção das
palavras e frases de efeito, e nada, absolutamente nada das ideias e
dos conceitos, do assunto do discurso e das provas que devem levar
ao ânimo dos ouvintes a convicção das verdades da fé.
Não procedem assim os grandes oradores cristãos. E para
não alongar citações, aí temos o exemplo eloquentíssimo do Padre
Monsabré. Pregava em Paris, na grande Babilônia dos tempos
modernos, diante de um auditório composto, é verdade, de católicos
de firmes crenças, mas também de livres pensadores e
indiferentistas. Pensais que o grande orador se limitou a
declamações banais, envolvidas em estilo empolado, a lugares
comuns vestidos de esplêndidas imagens, a deleitar apenas os seus
ouvintes com as harmonias de uma eloquência imprópria da cadeira
evangélica? Não. O Padre Monsabré seguiu outro rumo, porque não
queria trair sua missão, nem rebaixar a majestade e grandeza da
eloquência sagrada ao nível da eloquência parlamentar ou dos
tribunais.
Teólogo profundo, desfere voos de águia nas regiões
luminosas do dogma católico; filósofo consumado, elucida,
explana e desenvolve esses dogmas com as luzes da sã razão;
discípulo de Santo Tomás de Aquino, vinga, triunfantemente, com
as doutrinas do grande mestre, a verdade omnimoda do dogma
católico. Assim ensina, assim convence, assim triunfa, assim exerce
na cátedra da verdade o sublime apostolado da palavra divina. E
para que nada falte no formosíssimo quadro das vitórias do Padre
Monsabré, e para que brilhe com novos esplendores a auréola de
glória que cinge a fronte do grande domínico, a eloquência,
elegância, o estilo doiram em ondas de luz e tapetam de perfumadas
flores aquelas imortais Conferências, que Paris ouviu assombrado
e o mundo inteiro aplaude com entusiasmo.

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Onde foi que se formou o engenho do Padre Monsabré?
Onde foi ele beber as sublimes inspirações de suas Conferências?
Quem deu à sua palavra cintilações do gênio, à sua argumentação
aquela força invencível que subjuga a alma, e esmaga a soberba da
razão, e faz estancar nos lábios do descrente a impiedade e a
blasfêmia; aquela força invencível que reacendeu no espírito de
muitos a puríssima luz da fé católica e fez reviver no seu coração
as amortecidas flores das crenças lá plantadas com tanto esmero na
aurora da vida? Quem lhe ensinou aquele rigor nas demonstrações
do dogma? Em que tesouros de ciência foi aprender as
transcendentes concepções das suas Conferências? Nos tesouros da
ciência escondidos nas obras de Santo Tomás de Aquino.
Pois bem: aos oradores sagrados de Portugal oferecemos
nas Conferências do Padre Monsabré esses tesouros de ciência
tomista, onde encontrarão lucidamente expostos, cientificamente
demonstrados e vitoriosamente vingados os dogmas que formam a
economia da religião cristã. O símbolo, o código, os sacramentos
divinamente instituídos por Jesus Cristo como meios de
santificação espiritual, de progresso e bem-estar social, tudo ali se
acha tão radiante de luz, tão eloquentemente desenvolvido e
elucidado, que o espírito lendo-o e meditando-o, repete com o
apóstolo ao reconhecer a majestade divina de Jesus: Dominus meus
et Deus meus!
Todos sabem que a chamada filosofia contemporânea se
insurge violentamente contra a fé. Em nome da filosofia discutem-
se e rejeitam-se os grandes princípios revelados, e em nome da
ciência proclama-se a pretendida contradição entre esses princípios,
verdadeiros soes para o mundo da inteligência, e os recentes
descobrimentos das ciências. As reações parciais de algumas
escolas espiritualistas contra as tendências das escolas anti-tomistas
têm sido até hoje, a bem dizer, ineficazes. Há um meio único de
restauração filosófica, um meio único e eficaz de estabelecer a
unidade nas escolas filosóficas, de tornar a filosofia em poderoso
adminínculo da fé, de vencer e reduzir os erros ensinados em nome
da filosofia e da ciência contra o dogma católico. Este meio e a
restauração da verdadeira e sã filosofia, da sólida e luminosa
doutrina de Santo Tomás de Aquino.
Desde que Lutero proclamou, há três séculos, a razão
individual do homem como juiz e interprete da palavra de Deus, era
fatal e inevitável a luta entre a razão divina e humana, entre a fé e

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a ciência. Lutero foi o precursor de Kant, e Kant é com razão
chamado o pai da moderna filosofia anticristã. Não é difícil
encontrar os germens do materialismo, do sensualismo, do
positivismo e do darwinismo, sistemas hoje dominantes nas
diversas escolas filosóficas separadas da fé, no ceticismo de Kant e
no deísmo naturalista das escolas fundadas pelos discípulos de
Kant.
Desligada a razão humana da revelação divina, proclamada
a soberana independência daquela, que admira que aparecesse esse
dilúvio de erros, de absurdos, de sistemas falsamente denominados
filosóficos em diametral oposição não só com os dogmas revelados,
mas ainda, e por isso mesmo, com os princípios da sã razão? Coisa
notável! Pode a razão humana só por si lograr o conhecimento de
muitas e importantíssimas verdades religiosas; pode subministrar
isso a que Santo Tomás chama preâmbulos da fé; mas erra
grosseiramente logo que se proclama absoluta e independente no
exercício da sua atividade. E erra porque parte de um princípio
falso. Limitada em si, amortecida até em consequência do pecado
original, a inteligência humana foi dada ao homem para viver unida
à fé, sob o domínio da fé, e não para romper este laço
providencialmente constituído, e não para se insurgir contra o
desígnio de Deus e querer arrogar a independência absoluta, a
onipotência, que só a Deus pertencem. Ora, o erro capital da
moderna filosofia anticristã é a soberana e absoluta independência
da razão humana de todo o jugo da autoridade, ainda mesmo que
essa autoridade seja a de um Deus! Grandes e louváveis têm sido
os esforços dos apologistas e filósofos cristãos em restaurar o
majestoso edifício da filosofia cristã, mas esses esforços ou porque
isolados uns, ou porque faltos de unidade e de direção ajustada à
verdade outros, não lograram o fim desejado. Ventura de Raulica,
foi um acérrimo impugnador da onipotência da razão, mas caiu no
extremo oposto de negar à mesma razão os seus direitos de
atividade no descobrimento da verdade; o Cardeal Gerdil resvalou
no ontologismo; Gallupi perfilhou muitas ideias de Descartes e da
escola escocesa de Reid; Rosmini na sua teoria psicológico-
ideológica sobre a ideia inata do ente, admitiu, sem o querer,
concedamos, as conclusões do panteísmo; Gioberti e outros
educados na sua escola, apesar de afirmarem que submetiam a ideia
filosófica à religiosa, caíram na desgraça de ensinar erros que a
Igreja com justíssima razão proscreveu e condenou.

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Se deveras queremos uma restauração filosófica tão segura
que nos leve ao conhecimento da verdade e à contemplação da
harmonia entre a ciência e a fé, tão eficaz que estabeleça a unidade
de pensamento, restauremos a doutrina de Santo Tomás de Aquino,
“admiravelmente harmônica e completa no seu espírito, no seu
método e nos seus princípios fundamentais”, e divinamente exposta
de modo a mostrar-nos a fé divina elucidada pelas luzes da razão
humana, e a razão humana esclarecida pelos esplendores da fé
divina. A doutrina de Santo Tomás pode, com razão, definir-se:
sistema admirável onde a razão e a fé se irmanam, e brilham como
sol de puríssima luz numa unidade de princípio e de fim.
Veio de Deus a razão e a fé, tendem para Deus estas duas luzes,
porque é Deus o princípio e o fim de toda a luz. É esta a doutrina
que, restaurada e propagada, há de levar de vencida os erros e os
sistemas que impropriamente se dá o nome de filosofia e de ciência.
“O espírito da filosofia tomista, diz um ilustre discípulo de
Santo Tomás, abraça numa síntese harmônica a razão e a fé, as duas
ordens de verdades naturais e sobrenaturais, subordinando a razão
humana à razão divina, e admitindo o princípio divino que palpita
no fundo do catolicismo.
A razão, segundo Santo Tomás, tem por missão expor os
motivos de credibilidade, a realidade histórica do fato da revelação
ou da comunicação da verdade religiosa feita ao homem pela
inteligência infinita, sob a forma do ensino social.
A fé começa depois que a razão se persuadiu de que Deus
falou aos homens para os instruir, valendo-se dos milagres e das
profecias. Estes sinais ou meios sobrenaturais atestam a origem
divina das nossas crenças e em especial a da Igreja, que conserva,
propõe e explica o depósito da revelação.
Para bem compreender a harmonia perfeita que reina entre
estas duas ordens de verdades, relacionadas com o entendimento
humano, isto é, entre a razão e a fé, convém ter presente que a razão
humana é, por uma parte, uma faculdade nobilíssima e, por outra
parte, imperfeitíssima para chegar ao conhecimento de certas
verdades sobrenaturais e divinas, que não se podem conhecer sem
o auxílio da fé. Eis por que se considera a razão humana, por um
lado, como rainha da ciência e defensora da fé, e por outro, como
súdita desta, da qual recebe apoio e auxílio, resultando desta mútua
influência uma perfeita harmonia entre a razão e a fé, entre a
filosofia e a teologia, entre a revelação e a verdadeira ciência.

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Não há em nossos dias nenhum sistema filosófico que
apresente uma ideia mais elevada, mais digna e exata da razão
humana no seu duplo estado nobilíssimo e imperfeitíssimo do que
a filosofia tomista: nem filósofo algum, antes nem depois de Santo
Tomás, deu a conhecer melhor do que ele a necessidade e a
vantagens da fé ou das verdades divinas. A razão, esta luz que Deus
nos infunde, semelhante à luz incriada na qual estão contidas as
ideias eternas, essa derivação ou participação do entendimento
divino, dispõe-nos para o perfeito conhecimento de todas as
ciências, assim naturais e físicas, como morais e políticas, abrindo-
nos o caminho para reconhecer a verdade da religião católica e para
defender contra os atuais inimigos”2.
Reduzir a razão aos seus justos limites e dar-lhe por auxiliar
a fé, eis o fim de uma restauração filosófica eficaz para realizar nas
escolas a unidade de pensamento. E sem esta unidade de
pensamento a reação contra os sistemas anticristãos será sempre
improfícua. A unidade de disciplina é o segredo da força de um
exército, é o grande elemento da sua coesão, o princípio essencial
das suas vitórias. Restaure-se a doutrina filosófica de Santo Tomás,
e os soldados da fé, o exército dos combatentes pelos direitos de
Deus e do homem terá unidade de pensamento, e com esta unidade
um elemento invencível, uma garantia segura de vitória sobre os
seus inimigos. E tal foi o ideal de Leão XIII, quando ordenou que
em todas as escolas cristãs se restaurasse o ensino da filosofia
segundo a mente do Angélico doutor.
Acusam a doutrina de Santo Tomás de demasiado
metafísica, e por isso ineficaz para o estudo das ciências
especialmente dedicadas ao estudo e observação dos fenômenos
empíricos. É necessário ignorar a doutrina tomista e a teoria do
Anjo das escolas sobre o método para formular uma acusação tão
destituída de fundamento. Santo Tomás foi um grande observador;
ninguém como ele usou com tanta prudência e sabedoria da
observação e da experiência; ninguém soube determinar melhor a
necessidade e a aplicação do método empírico e racional, o laço de
harmonia entre estes dois métodos igualmente necessários para a
aquisição da ciência.

2
Donadiu. Discurso recitado na Academia barcelonesa de Santo Tomás,
1887.
10
“Desde Aristóteles até Alberto Magno, diz o citado
escritor, ninguém fixou, como Santo Tomás de Aquino, as relações
dos sentidos com o espírito, descobrindo no fenômeno sensível o
primeiro estímulo do seu desenvolvimento intelectual, e
determinando de um modo tão magistral como Aristóteles, e ainda
com mais clareza, o papel importante que estes dois fatores
desempenham no ato intelectual.
A filosofia tomista pode servir admiravelmente de base e
prestar grandes recursos aos modernos psicofísicos que lutam com
esse dualismo desmedido e com essa metafísica vã, que,
desprezando a experiência e os dados da natureza, fundamenta a
realidade nos seus conceitos abstratos; e serve simultaneamente de
sentinela e de salvaguarda para defender os sagrados direitos da
verdade contra os abusos dos pseudofísicos, que não reconhecem
outros processos para lograr o conhecimento da verdade, senão os
experimentais, e que exaltam até às nuvens, com detrimento da
verdade, o emprego exclusivo da análise experimental, intentando
construir o edifício da ciência com os materiais do real e do sujeito
à observação.
Nas suas obras e numerosos tratados, onde se reconhece a
doutrina e influência de Aristóteles, mostra Santo Tomás uma
admirável harmonia entre os processos empírico e racional, se bem
que prepondere sempre a demonstração estritamente lógica. Na
Suma Teológica, o mais perfeito dos seus livros, depois de ter
enunciado os inumeráveis problemas que trata de resolver, procura
na tradição, na razão e na experiência, as provas que pode aduzir
para as suas conclusões afirmativas, e resolve, com poderosos
argumentos, as dificuldades que se lhe oferecem. Este processo
sintético-analítico, rigorosamente crítico e harmônico, unido a uma
linguagem clara, precisa, sóbria e enérgica, constitui o estilo de
Santo Tomás de Aquino, o qual se parece a esses monumentos
góticos do primeiro período, cheios de inspiração e de idealismo na
sua singeleza, e na elevação sóbria e luminosa das suas linhas para
o infinito”.
Não é nosso intento fazer agora a apologia da doutrina
tomista; o nosso fim é mostrar apenas que não há melhor meio de
combater as errôneas doutrinas filosóficas, que infelizmente já
vogam em Portugal, do que a vulgarização daquela doutrina,
sempre antiga e sempre nova, mil vezes abençoada pela Igreja,
estudada com entusiasmo pelos sábios católicos, perfeitamente

11
conforme com a fé e com a razão, e perfeitamente adaptada à índole
do espírito humano e às suas tendências naturais de conhecer a
verdade. Muitas e de grande tomo são as obras dos discípulos de
Santo Tomás. Suarez e o Cardeal Toledo, duas eminências entre a
ilustre falange dos sábios católicos; e entre os modernos, Cornoldi,
Liberatore, Lepidi, Prisco, Zeferino Gonzalez, Kleutgen, Tindal
Pesch, Orti y Lara, e outros muitos, que seria longo enumerar,
escreveram riquíssimas obras onde a áurea doutrina de Santo
Tomás é exposta e vindicada de um modo que deixa plenamente
satisfeito o espírito mais exigente. Mas o estudo daqueles mestres
demanda vigílias a que nem todos se podem dedicar.
Pois bem: as Conferências do Padre Monsabré, informadas
na doutrina do Angélico Doutor, expõe essa doutrina tão clara e
metodicamente, em estilo tão formoso e por vezes tão arrebatador,
que bem podem dispensar outros livros para que se contemple em
todo o esplendor da sua majestade e grandeza sobrenatural e
prodigiosa ciência do grande luminar da Idade Média. O Padre
Monsabré soube amenizar com as belezas e os perfumes da sua
palavra eloquente, e severa austeridade das fórmulas didáticas e das
difíceis concepções filosóficas da escolástica-tomista para cuja
compreensão é necessário aturado estudo e profunda meditação.
Através do vestido luminoso em que o Padre Monsabré envolveu
os mais altos e transcendentes conceitos da doutrina tomista,
contempla-se mais facilmente a verdade daqueles conceitos, a luz
que os inunda e que, projetando-se sobre o espírito, torna mais viva
a sua fé e mais firme as suas crenças. São estas Conferências um
como límpido espelho onde se refletem os esplendores da ciência
aquinatense; um formosíssimo jardim onde as flores exalam o
suavíssimo perfume dos dogmas cristãos em toda a luz com que
Santo Tomás os ensinou e vingou; um esplêndido firmamento onde
se podem contemplar, sem véu que lhes empane o brilho com que
o erro tentou ofusca-las, as crenças dulcíssimas do símbolo
católico. Ao contemplar aquele espelho, ao percorrer aquele jardim,
ao fitar aquele céu o espírito eleva-se naturalmente a Deus, para
glorificar nas verdades que se dignou revelar-nos e na ciência dos
que no-las mostram tão razoáveis e tão conformes com a verdadeira
ciência.
Lancemos uma rápida vista de olhos sobre estas imortais
Conferências, a que o autor deu o título geral de Exposição do
Dogma Católico, começadas na Quaresma de 1873.

12
Credo in Deum Patrem Omnipotentem creatorem coeli et
terrae... tais são as palavras com que o sábio dominicano inaugura
as suas conferências: e depois de uma resumida quanto
formosíssima exposição do dogma católico, começa o estudo tão
transcendente como importante da existência de Deus e da sua
personalidade, combatendo os monstruosos erros do panteísmo, do
determinismo, do positivismo, do deus matéria, que é o resumo de
todos estes delírios, com uma ciência, eloquência e rigor lógico tal,
que os lábios repetem insensivelmente este doce acento da fé: credo
in Deum.
Em 1874 estuda o ser divino nas suas perfeições infinitas,
a vida fecundíssima de Deus, uno em essência e trino em pessoas,
o mistério adorável da Trindade Santíssima, e a manifestação
esplêndida dos atributos divinos na grandiosa obra da criação.
Em 1875, doutrina católica sobre a gênese do mundo;
absurdos do transformismo e evolucionismo; harmonia admirável
do mundo, onde tudo está disposto em número, peso e medida; o
mundo invisível; natureza do homem, sua formosura e grandeza,
terminando com o estudo da vida divina no homem, estudo que é
como que a cúpula e o remate do grandioso edifício da obra de Deus
no tempo e no espaço.
Em 1876, o governo do mundo, a soberania do governo
divino e a liberdade, a imutabilidade das leis do governo divino e a
oração, a infalibilidade, a santidade do governo divino e o mal, a
predestinação e a graça, a ação da graça.
Em 1877, o admirável plano da Encarnação do Verbo,
estado primitivo do homem, existência e transfusão do pecado
original, a Encarnação do Verbo no seio imaculado de Maria.
Em 1878, a doutrina católica acerca de Jesus Cristo,
Homem-Deus, a possibilidade da Encarnação, a união hipostática
das duas naturezas de Cristo; numa palavra, um tratado completo
da mais transcendente Cristologia.
Em 1879, os atributos de Jesus Cristo como Deus e como
homem, a comunicação de idiomas, as dores de Jesus Cristo e o
sacerdócio eterno que estabeleceu como supremo Sacerdote
segundo a ordem de Melquisedeque, e como Redentor do gênero
humano.
Em 1880, Jesus Cristo na sua infância, na oficina de
Nazaré, como doutor, taumaturgo, mártir e vencedor da morte e do
pecado.

13
Em 1881, a redenção da humanidade e a obra prima da
redenção, a Igreja com as suas notas de unidade, santidade,
catolicidade e apostolicidade.
Em 1882, a autoridade suprema da Igreja personificada no
Pontificado romano, o magistério, o ministério e o império da
Igreja.
Em 1883, a instituição dos sacramentos, como canais por
onde são comunicados ao homem os merecimentos infinitos da
redenção; o batismo e a confirmação.
Em 1884, a eucaristia como sacramento e como sacrifício,
os frutos admiráveis, verdadeiramente divinos da comunhão.
Em 1885, a penitência e a extrema-unção.
Em 1886, a ordem, o sacerdócio, a dignidade do padre, os
deveres e os direitos do padre, o princípio gerador do sacerdócio,
os inimigos do sacerdócio.
Finalmente, em 1887, o ensino da Igreja sobre o
matrimônio, meio legítimo instituído por Jesus Cristo para a
constituição da família cristã, e a impugnação do divórcio que as
leis anticristãs querem proclamar nas sociedades modernas.
No desenvolvimento de todo este plano vastíssimo, o
orador, que é também filósofo, teólogo e homem de ciência,
mostra-se profundamente versado nos arcanos da doutrina de Santo
Tomás, é esta doutrina a que ele de preferência invoca, expõe,
explana, demonstra e vinga, para tornar críveis e razoáveis os
sublimes mistérios da nossa fé. Não há erro, não há heresia, não há
sistema anticristão, que o Padre Monsabré não combata e pulverize
com uma lógica de fina têmpera, envolvida numa linguagem de
fogo. Às vezes parece São Paulo trovejando no Areópago.
Das Conferências do Padre Monsabré sai triunfante a
revelação divina e unida em santa aliança com a ciência humana;
mais vivida a luz da nossa fé, mais animada a nossa esperança,
mais fervorosa a nossa caridade. Na França, na Itália, na Espanha,
em toda a parte, são estas conferências a admiração e o assombro
dos sábios, o vade-mécum dos oradores sagrados, um tesouro
inesgotável para o filósofo e para o teólogo, e ainda um fogo de
vivíssima luz para todos os que deveras desejam instruir-se nas
verdades da religião católica, e conhecer a formosura que a
distingue e as riquezas infinitas que Deus depositou no seio de
amor.

14
Oxalá que na minha pátria amada produzam estas imortais
Conferências os frutos que têm produzido em toda a parte onde são
conhecidas.

Coimbra, 29 de setembro de 1887.

O TRADUTOR.

15
PRIMEIRA CONFERÊNCIA

IDEIA GERAL DO DOGMA CATÓLICO


Credo in Deum patrem omnipotentem,
Creatorem coeli et terrae.
Creio em Deus Padre Todo-Poderoso
Criador do céu e da terra.

Monsenhores, Senhores3,

Deveis lembrar-vos, certamente, de que o ano passado,


neste mesmo tempo, vos manifestei o meu desejo de encetar uma
exposição razoada do dogma católico. Então, sacrifiquei este desejo
às vossas preocupações; hoje, peço-vos que sacrifiqueis as vossas
preocupações ao meu desejo. Não quero esperar mais tempo,
porque, se depois de termos chorado as nossas desgraças, é de razão
que nos ocupemos em curar as nossas chagas, parece-me que a
chaga que com mais urgência pede remédio, é a ignorância religiosa
e a decadência do sentimento cristão. Na raça dos blasfemos alguns
há, por sem dúvida, que conhecem o que detestam e amaldiçoam; é
certo, porém, que a maior parte é constituída por aqueles que não
lograram contemplar os esplendores divinos da verdade, quando as
aspirações do seu espírito, ainda puras, procuravam a luz.
Deslumbrados com o brilho de vãos fulgores, satisfeitos de
conhecimentos superficiais e secundários, a que dão o nome de
ciência, afastam-se constantemente da verdade para se subtraírem
à irradiação dos princípios divinos. Dificilmente poderá o nosso
ensino alcançá-los, mas nem por isso nos devemos remeter ao
silêncio. Quantas almas vacilantes ou mal instruídas têm
necessidade da nossa palavra!

3
Estavam presentes à conferência: Monsenhor Guibert, Arcebispo de
Paris, e Monsenhor Jeancart, Bispo de Cérame.
16
Creio, senhores, que não vos injurio afirmando que, para
um grande número dentre vós, a ciência das coisas divinas se reduz
a elementos há muito adulterados pelo fatal influxo de erros, de
opiniões temerárias, de preocupações, de paixões, de prazeres, de
negócios, de acontecimentos que com vertiginosa rapidez se
sucedem em nossa agitada época. Os mais inteligentes, os melhor
instruídos na ciência humana e os mais experimentados não
escapam a essa diminuição da luz e do sentimento cristão de onde
fluem a indiferença e o olvido; da indiferença e do olvido fluem as
transigências com o erro; destas transigências, o enfraquecimento
da moralidade pública. É isto, entendei-o bem, o que tem atraído
sobre nós esses golpes cujos vestígios sangrentos ainda subsistem
em nossos corpos e em nossas almas.
Escarmentados pelas nossas desgraças, conhecemos que
soou alfim a hora da nossa regeneração; mas não há realizar uma
regeneração sólida e estável, se não é informada pela nossa
regeneração religiosa. E pois que a série dos atos humanos tem o
seu princípio na luz, é de necessidade que abrais as vossas almas à
luz, à plenitude da luz que só na verdade católica podeis encontrar.
Ponhamos, pois, de parte as preocupações e comecemos
resolutamente a exposição dos nossos dogmas. Encaremos de
frente esse símbolo que os vossos lábios infantis pronunciavam
outrora, quando, no alvorecer da vida, repousáveis no regaço de
vossas mães. O que então acreditáveis com o vosso coração, crede-
o agora com toda a vossa inteligência.
Ó Deus, que amais as almas e que vos dignastes comunicar-
me uma centelha do vosso santo amor, confio inteiramente em vós,
na missão sublime e salutar que ora começo. Enquanto eu trabalho
por fora, trabalhai Vós por dentro; enquanto eu exponho o dogma
católico, incrustai-o Vós mesmo nos espíritos e nos corações; e, à
medida que a verdade se for desdobrando, fazei que as almas dos
que me ouvem, convencidas pela luz divina, exclamem: Credo!
Creio!

Senhores! De vários modos se manifesta a nossa admiração


pelas maravilhas da arte. O que desde logo nos impressiona é o
conjunto, isto é, a resultante harmônica das proporções e das linhas.
As minúcias só prendem a nossa atenção depois de terem
desempenhado um papel obscuro, se bem que eficaz, na síntese
donde flui a misteriosa e súbita impressão, que se apodera de toda

17
a nossa alma. Entramos, por exemplo, nesta soberba metrópole. A
beleza que simultaneamente ressalta de todos os pontos, detém-nos
nos seus umbrais. Sem descer ao exame das particularidades,
contemplamos o conjunto, e esse conjunto arrebata-nos. Só depois
dum largo arroubamento, a nossa alma, cheia já de admiração, vai
em piedosa peregrinação, pedir a cada pedra do edifício novas
revelações, novas sensações e indeléveis lembranças.
Magnificências da arte, maravilhas do gênio, o que é tudo isto ante
a majestade do edifício que Deus construiu com a sua palavra, e a
que nós chamamos dogma católico? Também este se revela à nossa
alma e a transporta pelo harmônico esplendor do seu conjunto, e
pela maravilhosa perfeição de cada uma das suas partes.
Admiramos por ventura a beleza das partes sem
previamente termos admirado a beleza do todo? Não, senhores. Eu
tenho necessidade duma primeira impressão que prepare o meu
ensino. Parece-me, pois, necessária uma ideia geral do dogma
católico, assim para enlaçar as questões que me proponho tratar
diante de vós, durante muitos anos, se a Deus aprouver conservar-
me a vida e se aqueles de quem depende a minha missão
determinarem que a continue, senão, também para vos pôr ao
abrigo de surpresas intelectuais que extraviem a vossa atenção.
Conhecendo sempre qual o ponto de partida e qual o termo a que
vos dirigis, escutareis a minha palavra com espírito mais tranquilo
e mais dócil. Ainda mais: escutá-la-eis com um coração mais
respeitoso; por que as vantagens de uma preparação didática serão
realçadas por um argumento de ordem superior, o argumento
estético, baseado sobre a incomparável excelência das verdades,
cuja síntese ides hoje contemplar. Facilmente compreendereis que
vamos entrar num mundo divino.

Meus senhores; da ideia primordial e fundamental de ser


fluem duas ideias que em todos os tempos preocuparam vivamente
o espírito humano, e que foram o objeto das suas mais levantadas e
constantes aspirações; a ideia do infinito e a ideia do finito. Não há
doutrina filosófica nem religiosa, cujos artigos não possam
agrupar-se em roda desta simples proposição: Dados estes dois
termos, finito e infinito, explicar as suas relações. Com efeito, a
vida humana, a vida do mundo inteiro, depende da solução deste

18
problema. Os mesmos que se gloriam de não lhe ligar importância,
veem-se colocados diante dele, impelidos pela força invencível das
ideias que são como que o fundo do nosso espírito, e pelas
aspirações que nos estimulam a conhecer o que somos e a
determinar o nosso lugar, as nossas funções e os nossos destinos na
universalidade dos seres.
Às questões: o que é o infinito? O que é o finito? Quais as
suas relações? Nós respondemos com sistemas, a Igreja católica
responde com o seu símbolo, e, independentemente dos sinais
externos que as impõe ao obséquio da nossa fé, as soluções que a
fé nos subministra são tão evidentemente divinas, que eclipsam
todas as soluções inventadas pela nossa inteligência.
Mas não nos antecipemos, nem deduzamos conclusão
alguma antes que o aspecto geral do dogma católico haja produzido
o seu efeito em nossas almas. Humilde guarda deste esplêndido
edifício, quero que, antes de tudo, admireis o seu conjunto; depois
comunicaremos reciprocamente as nossas reflexões.
O infinito é Deus, ser primário, necessário, real, pessoal,
subsistente em si mesmo e por si mesmo, tendo na sua mesma
essência a razão suficiente do seu ser, bem como a razão suficiente
do ser de todas as coisas. Só ele é Deus; não há nem pode haver
outro. O seu ser, a sua essência, a sua substância, a sua natureza, a
sua existência, a sua vida, os seus atributos, as suas operações são
um mesmo ato: ato tão simples, tão puro, que nem o podemos
conceber, nem exprimir. Se chamamos a Deus o Ser Vivo, o Forte,
o Todo-Poderoso, o Senhor, o Eterno, o Altíssimo, estes nomes são
realmente verdadeiros, santos terríveis, admiráveis; mas nem cada
um deles de per si, nem todos simultaneamente exprimem a
plenitude da verdade, e da santidade, e da majestade, e da beleza
que constitui o ser divino. Com uma palavra, cujos abismos
profundos em vão tentamos sondar. Deus se definiu a si mesmo: Eu
sou o que sou. Ego sum qui sum4; o ser na sua mais transcendente
e incompreensível expressão. Se o comparais à multiplicidade dos
seres, está presente em todos os lugares sem se dividir. Se o
comparais ao tempo, é eterno sem que os instantes o meçam nem
se sucedam em seu seio.
Não tem faculdades que o distingam da sua substância, e é
por isso que opera com uma perfeição infinita, e nada adquire nas

4
Êxodo, III, 14.
19
suas operações. Sabe tudo que é, e tudo que não é; tudo que pode
ser, e tudo que será. A verdade não aparece n’Ele como em límpido
espelho que reflete; mas Ele é a verdade mesma. A sua ciência não
é causada pelo que existe, senão tudo que existe é causado pela sua
ciência; ciência eterna, imutável, simultânea, direta, imediata, que
não pode nunca se enganar. A sua vontade é soberana, mas duma
soberania absoluta. Nada há que possa dobrá-la ou torná-la
mutável; ainda mesmo que, cedendo às nossas orações, modifique
as suas obras, os seus decretos permanecem imutáveis; previa tudo.
É livre no meio da instante necessidade. Não tem outra medida
além do seu poder, e o seu poder é sem medida.
É sábio, e como vê todas as coisas num só princípio,
ordena todas as coisas a um único fim: Ele mesmo; todos os meios
se combinam harmonicamente sob a sua direção; nem a ignorância
nem a má vontade alteram os seus desígnios.
É Santo, não duma santidade adquirida com esforço e
trabalhada, que não se pode conservar nem aumentar senão à custa
dos mais rudes sacrifícios, mas duma santidade tranquila,
inalterável, plena, essencialmente isenta de todo o mal, e
constantemente manifestada pelo amor invariável e eficaz de toda
a retidão e de todo o bem.
É justo, e, na imensa variedade de direitos que parecem se
contradizer, dá a cada um o que lhe pertence. Não há merecimento
que não premie, nem falta que não castigue. Os nossos cálculos
mesquinhos não podem se enganar pelas dilações da sua paciência;
mas em nada se altera a perfeita integridade da sua justiça que será
plenamente realizada nas derradeiras conclusões do seu governo.
É Bom, não só porque é o bem supremo, mas porque sendo
o bem supremo, deseja comunicar-se, e liberalizar do seu ser e das
suas perfeições benefícios constantemente renovados, e
compadecer-se de todas as misérias tanto quanto o permite a sua
inalterável natureza.
É, alfim, perfeito, e, por mais perfeito que o concebamos,
nunca poderemos assignar limites à sua perfeição. É o Infinito!
Este infinito, senhores, vive, não essa vida comum a todos
os seres vivos e que parte de dentro para fora; mas uma vida sem
igual cujo movimento parte de dentro e termina dentro; uma vida
em que as origens dependem dos princípios, sem que possa afirmar-
se que aquelas são posteriores a estes; uma vida que multiplica o
número sem quebrar a unidade, as pessoas sem multiplicar a

20
natureza, a família sem dividir nem aumentar a substância. Não
mais que um infinito; e todavia são três, Padre, Filho e Espírito
Santo, três que subsistem numa mesma essência, e existem com
uma mesma existência: as três pessoas são Deus e portanto um só
Deus. Eis o dogma dos dogmas, o mistério dos mistérios. Explicá-
lo é impossível: ouso apenas narrar o que admiro.
O Pai inacessível é o princípio do movimento vital, a
origem da família divina. Vê-se a si mesmo, manifesta a si mesmo
a sua perfeição, e o ato pelo qual se vê e se conhece é tão perfeito,
que subsiste por isso mesmo que é produzido. O Filho é gerado.
Chama-se Verbo, imagem do Pai, esplendor da sua glória, figura da
sua substância, porque representa com toda a perfeição possível o
princípio donde procede. São dois, contemplam-se, admiram-se,
amam-se, e estes dois amores comunicando-se um ao outro
encontram-se, e pelo fato de se encontrarem, subsistem num só
amor; é o Espírito Santo. Chama-se dom, caridade, bondade,
benignidade, suavidade, unção divina.
São três: Padre, Filho, Espírito Santo: distintos pelas
relações, pela subsistência, pelas propriedades pessoais; idênticos
pela essência, pela substância, pela natureza. Distintos, e toda via
um existe no outro; dependentes pela origem, porque o Filho é
gerado pelo Padre, o Espírito Santo procede do Padre e do Filho;
dependentes pela missão, porque o Padre envia o Filho, o Padre e o
Filho enviam o Espírito Santo. Mas, não obstante tudo isto, as três
divinas pessoas são perfeitamente iguais. Oh! Vida! Oh!
Processões admiráveis! Não se pode dizer que começam, porque
são necessárias e eternas; não se pode dizer que saem fora de Deus,
porque são imanentes; não se pode dizer que mudam a natureza
divina, porque são tranquilas e imaculadas; não se pode dizer que
diminuem ou dividem as perfeições, porque são indivisíveis. No
seu movimento espontâneo há tanta ordem, tanta beleza, tanta
glória e tão acabado cúmulo de todos os bens, que tornam Deus, ser
supremo, o supremo bem-aventurado. Oh! Infinito! Eu te admiro
cheio de assombro, eu te adoro com o mais profundo respeito!
Eis o infinito, senhores; mas donde está o finito?
Procuremo-lo desde já na sua origem eterna. O finito está no
infinito, e pode dizer-se que a primeira relação que tem com ele, é
o ser conhecido, visto, ordenado por ele, antes de subsistir fora dele.
Não podemos dar ao finito o seu nome próprio em quanto
permanecer em estado de ideia; porque esta ideia é,

21
substancialmente, a mesma essência divina, e formalmente o que
Deus quer manifestar da sua essência na sua obra, por participação
e imitação. Unido a esta ideia há um decreto eterno, livre, eficaz,
donde depende a existência de todas as coisas. O que é que insta
pela execução deste decreto? É a beleza dos mundos que Deus
concebe? Arrebatado pelas sublimes harmonias das coisas que vê
em si mesmo, julga porventura adicionar algo à sua felicidade
fazendo-as passar da ideia à realidade? Não, senhores. Deus seria
sempre o supremo bem, ainda que tivesse conservado eternamente
no seu seio todos os seres. Mas Deus é bom e deseja comunicar-se
porque é o soberano bem; o seu amor impele-o a associar outros
seres à sua felicidade: Vai criar.
Vai criar! E dando a outros a existência nada perderá da sua
própria. Vai criar! E comunicando o seu ser e a sua perfeição, nem
aquele nem esta perderão algo. Vai criar! E por mais que
prodigalize os frutos da sua bondade e da sua onipotência, não se
confundirá com eles, nada adquirirá deles, será sempre tudo sem
eles, e eles nada serão sem Ele.
Criou! Povoa-se o céu, o espaço imenso abre o seu seio, o
tempo começa. O Verbo, palavra de Deus, produz o mundo. E a
cada palavra que pronuncia sucedem-se os seres, como ondas
harmoniosas, cujo movimento, e vida, e beleza, e glória se
engrandecem até tocar os limites do mundo angélico. O número, o
peso, a medida, distribuem, regulam, determinam todas as
perfeições sobre a escala progressiva que une em formoso conjunto
estes dois polos da criação: a matéria e o espírito. Que distância
entre o grosseiro elemento sujeito a leis inflexíveis e as
inteligências puras, cujos coros harmoniosos recebem uns dos
outros os raios do eterno Sol!
Mas nesta distância não há abismo algum que não esteja
povoado.
As substâncias incorpóreas de que Deus rodeou o seu trono,
superiores ao mundo visível pela perfeição da sua natureza e das
suas operações, decrescem e diminuem em perfeição desde o mais
abrasado serafim até ao mundo dos anjos, aproximando-se das
criaturas sobre as quais devem exercer a sua alta e salutar missão.
Por outra parte, o átomo saído dos confins do nada, sobe sem cessar
transformado sucessivamente pelo movimento e pela vida, até unir-
se imediatamente com o espírito, e até ligar e completar num só ser
a perfeição do finito.

22
Este ser, depois de cuja aparição Deus exclama: Todas as
coisas são boas, perfeitamente boas, cuncta sunt valde bona, é o
homem, laço maravilhoso, concorrência sublime de todas as vidas.
Os seus pés estão fixos na terra, mas a sua fronte levantada olha
para o céu. É matéria como o mundo que tem sob os seus pés; mas
é também espírito como os anjos que descem até ele. Gravita,
vegeta e sente; mas também pensa e quer; é livre, conhece a verdade
e ama o bem. É medido pelo tempo e pelo espaço, mas participa do
eterno, do necessário, do universal, do inteligível. Recebe as
impressões do mundo inferior, mas transforma-as, e faz pensar e
orar nele todos os seres de que é rei e pontífice. Contempla as coisas
que passam, e sente-se arrastado por suas correntes; mas também
alimenta em seu coração o desejo e a esperança certa da
imortalidade.
Sua imortalidade é a vida no infinito, porque, entendei-o
bem, senhores, Deus não abandona o homem aos caprichos do azar
e à mercê dum cego destino; convida-o para o seu seio, e para o
levar a si, respeitando o seu livre alvedrio, cobre-o com a sua
providência, senhora de todos os seus movimentos, que excita com
soberana autoridade, e dirige com arte infinita, e o faz caminhar
para o fim supremo, onde se consuma juntamente a glória do
Criador e a felicidade das criaturas. Deus eleva este fim supremo,
por um dom gratuito da sua bondade, acima de todas as legítimas
exigências da natureza. Quer ser conhecido, amado, possuído, não
nas representações sempre incompletas da sua infinita beleza, mas
face a face, tal como é, em todo o esplendor da sua glória e em toda
a perfeição da sua essência. Oceano sem praias, quer que a alma
humana se engolfe em suas ondas luminosas, para a inebriar com
as suas castas e eternas delícias.
Mas para que esta união se possa realizar, é necessário que
a natureza sofra aqui uma transformação que a prepare para a sua
transformação suprema. A inteligência, o amor, a liberdade, a
imortalidade, imagem e semelhança de Deus, não bastam para que
o homem, atravessando todas as esferas do infinito, seja um dia
consumado no infinito e como que participante da sua vida bem-
aventurada. Vem, pois, princípio de toda a vida, de toda a
felicidade, vem e faze que a criatura se assemelhe a ti tanto mais,
quanto és tu o mesmo que a animas com a graça. A graça, semente
misteriosa que transforma o homem num novo ser; a graça, inefável
geração que permite ao homem dizer a Deus: “Meu Pai”, porque se

23
torna participante da natureza divina; a graça, dom sobrenatural que
penetra a alma e torna imediata e formalmente justa, santa,
agradável a Deus, capaz de merecer por suas obras a visão e a posse
da eterna beleza; a graça, princípio e raiz de hábitos e de operações
divinas; a graça, força, luz, rio sagrado que vai diretamente ao
oceano da perfeição; a graça, habitação de Deus na alma; a graça,
começo da glória e da eterna beatitude.
Oh, senhores, que fecunda doutrina! Não vos parece que
resolve desde já com esplendor incomparável, estas questões que
nos torturam: Que é o infinito? Que é o finito? Quais as suas
relações? O infinito é o Deus perfeito, autor, motor e consumador
de todas as coisas, o finito é a criatura de Deus, essencialmente
dependente, não só na sua origem e nos seus movimentos, mas
também nos seus destinos. A suma das soluções parece completa,
e entretanto, senhores, vós os sabeis, o dogma católico contém
outras afirmações que, sob as misteriosas dobras das que acabais de
ouvir, mais se aproximam da nossa miséria.
A nossa miséria é o pecado. Começou nos céus pela revolta
dos espíritos orgulhosos que pretendiam igualar-se ao Altíssimo,
entrou, pelas sugestões destes malditos, na humanidade cuja glória
e felicidade invejavam. O pai dos homens perdeu livremente a
graça da salvação espiritual e corpórea, bem como os privilégios
que devia transmitir aos seus descendentes; e desde então nascemos
deserdados e feridos de morte. A nossa fronte despojada do seu
diadema inclina-se tristemente sobre a natureza ingrata e rebelde ao
nosso domínio; o mundo exterior esforça-se por nos atrair a si; a
nossa carne revolta-se contra as altas e puras aspirações do nosso
espírito; a nossa liberdade esmorecida rende-se e capitula nesta
luta; o dever traído acusa-nos; de justos, felizes, impassíveis e
imortais que éramos, tornamo-nos pecadores, miseráveis,
condenados ao sofrimento e à morte.
E Deus podia deixar-nos neste estado para satisfazer a sua
justiça, podia exercer a sua bondade sobre seres novos e fazê-los
entrar gloriosamente no seu plano primitivo contra o qual nos
revoltamos. Mas não; a vitória do pecado seria aniquilada pela
perfeição divina. Surge um novo plano; não disse bem, senhores,
devia dizer: revela-se um desígnio oculto e completa as
manifestações da bondade de Deus sobre as criaturas, porque o
pecado estava previsto e a economia da redenção decretada nos
eternos conselhos. O Verbo Divino, querendo unir-se ao finito para

24
nos fazer compreender a harmonia das perfeições divinas – a
sabedoria, a onipotência, a justiça e a misericórdia -, tinha
empenhado, desde toda a eternidade, a sua palavra ao Pai celestial.
No mesmo tempo em que o gênero humano se tornava
prevaricador, Deus lhe revelava o complemento da sua obra
fazendo-lhe aparecer, no futuro das idades, a figura radiante do
Verbo encarnado. Os séculos, os espaços, os homens, o mundo,
tudo se ordena a Ele. A graça do renascimento e da salvação, que
deve substituir a graça original perdida para sempre, depende dos
seus merecimentos. À questão: quais as relações entre o infinito e
o finito? Foi necessário responder desde então: O finito é
purificado, regenerado, santificado, divinizado pelo infinito,
vivendo com ele numa só pessoa, Jesus Cristo, Filho único de Deus,
Deus de Deus, Luz de Luz, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Quarenta séculos de preparações precedem o seu
nascimento. As tradições, os oráculos, as maravilhas, os desejos, as
virtudes, os crimes, as revoluções, as catástrofes convergem para o
seu berço, e quando veio a plenitude dos tempos, o Espírito Santo
fecunda, pelas suas castas operações, o seio duma Virgem, e o coro
dos anjos canta no céu: Ó terra, eu te anuncio uma grande alegria,
hoje nasceu o Salvador do mundo. O Verbo encarnou. “Comércio
admirável! Exclama a Igreja, o Criador do gênero humano assume
um corpo como o nosso, e nascendo milagrosamente duma Virgem
comunica-nos a sua divindade”5.
Com efeito, senhores, a Encarnação do Verbo revela-nos o
duplo mistério do infinito abatido até à nossa miséria, e o mundo
divinizado pela mais íntima união que pode se conceber. Não se
trata desse concurso universal que o Senhor da vida presta às
criaturas, nem da união moral que se estabelece entre Deus e o
justo, cheio de graça; não se trata da confusão de duas substâncias
que se penetram para formar uma nova substância, nem da ação
circunscrita, transitória, intermitente dum espírito superior sobre
um espírito inferior, como na inspiração profética; mas sim da mais
perfeita das uniões que Deus pode realizar com uma criatura; trata-
se da união profunda, contínua, permanente, sublime,
incompreensível da natureza divina com a natureza humana; união

5
O admirabile commercium! Creator generis humani animatum corpus
sumens de Virgine nasci dignatus est, et procedens homo sine semine
largitus est nobis suam deitatem. (Ofício da Circuncisão)
25
que, segundo a expressão do Apóstolo, resume todos os mundos,
torna divinas, infinitas, no sentido mais estrito e completo, todas as
ações duma natureza finita; união que permite a um filho do homem
dizer a um Deus o que lhe diz o Pai que o gerou desde toda a
eternidade: Meu filho. União, alfim, em virtude da qual o gênero
humano tem direito de dizer ao Filho de Deus: Somos teus irmãos.
Nasceu este amável e pequenino irmão, e, ainda que no seu
pobre presepe nos oferece a imagem da maior debilidade e da mais
profunda indigência, é rico e possui todas as perfeições. A sua alma,
banhada na luz que é a nossa bem-aventurança, vê todos os
segredos divinos, a sua ciência não tem aurora, e entretanto parece
crescer em sabedoria ao passo que cresce em idade. É a inteligência
suprema, e entretanto não quer ensinar ao mundo senão o que o seu
Pai lhe ensinou. Vive no meio dos seus, e os seus não o
reconhecem, entretanto passa fazendo o bem; a sua onipotência é a
humilde serva do seu amor. Está engolfado nas delícias da união
divina, entretanto digna-se assumir as nossas misérias, mesmo até
a semelhança de pecado. Foi por causa desta semelhança que o
Deus que o ama como a si mesmo o fere sem piedade. Sofre, chora,
geme, queixa-se, enchem-no de ignomínias, seu sangue por todos
os poros do seu corpo sacrossanto, é cravado numa cruz infame;
morre amaldiçoado e desonrado: Consummatum est: Tudo está
consumado. As perfeições divinas brilham no coração martirizado
do Filho de Deus, como um fogo amortecido, desde largo tempo,
pelos nossos crimes; a sabedoria e a onipotência, reveladas por
obras indizíveis, conciliam a justiça e o amor compassivo; o gênero
humano está salvo, e Jesus Cristo, seu Salvador, é para sempre o
seu Senhor, o seu rei, a sua vida.
Assim como Deus não abandona o mundo que criou, assim
também o Homem-Deus não deixa entregue aos seus caprichos o
mundo que regenerou. Governa-o, é o seu reino, reino cujos
elementos preparou durante a sua vida mortal, e ao qual pôs o selo
do Espírito Santo; vivifica-o, é o seu corpo. Ainda que sentado no
céu à direita de seu Pai, Jesus Cristo está presente na sua Igreja. A
soberania e a autoridade infalível do Chefe está representada nesta
Igreja santa, católica e apostólica; e a torrente purpúrea do seu
sangue corre de forma superabundante na mesma Igreja. Jesus
Cristo informa os nossos passos no caminho da verdade e da lei,
enquanto que invisivelmente nos comunica, como a cabeça aos
membros do corpo, as correntes da vida. Anima-nos, comunica-nos

26
a plenitude da graça, apodera-se do princípio das nossas ações, das
nossas próprias ações, transforma-as, apropria-se delas e imprime-
lhes o selo da divindade. Somos n’Ele um mesmo corpo, cujos
membros estão, dum modo sublime, numa perpétua comunhão de
orações, de boas obras e de merecimentos; do céu à terra, da terra
aos abismos onde os justos esperam a hora do seu resgate.
Por meio de sinais sensíveis, sagrados e eficazes, Jesus
Cristo, cabeça da humanidade cristã, chama a si os seus membros,
e dá-se-lhes a conhecer. Uma matéria humilde se une às palavras, e
eis o sacramento; a vida divina precipita-se na alma desde que o
sinal se põe em contato com o corpo. Um sacramento faz-nos
nascer para a graça, outro nos comunica os encantos e o vigor da
adolescência espiritual. Um sacramento nos alimenta, outro nos
purifica das nossas faltas, um outro apaga as culpas até às últimas
relíquias, e nos prepara a entrada tranquila na eternidade. Um
sacramento dá à sociedade espiritual o seu chefe, o seu rei: o
sacerdote; um outro santifica as fontes da vida, e enche a sociedade
temporal de famílias segundo o coração de Deus.
São sete como as cores da luz, sete como as notas da
música; mas o sacramento central onde real e substancialmente
reside o eterno Sol, o Verbo por meio do qual Deus canta as suas
perfeições infinitas, ordena a si todos os outros, já como
preparação, já como simbolismo. A Eucaristia é como que a nota
dominante que modula a escala misteriosa dos signos divinos.
Assim é que chegamos ao termo da nossa peregrinação
sobre a terra; ainda ali se nos apresenta o Homem-Deus, Jesus
Cristo. É Ele o vencedor da morte; o Sol da vida que projetará a sua
luz até ao fundo de todos os sepulcros humanos, reunirá o pó
disperso dos nossos corpos e lhe comunicará a virtude da própria
ressurreição. É ele que nos ensinará a cantar esta formidável sátira
das supremas derrotas da morte: O mors, ubi est victoria tua? O
mors, ubi est stimulus tuus? Ó morte, onde está tua vitória? Ó
morte, onde está o teu aguilhão? Ele presidirá ao nosso juízo e
pronunciará a nossa sentença, levará aos céus os benditos de seu
Pai, e condenará os malditos aos suplícios eternos. Ele reunirá num
lugar todas as gentes espalhadas pela superfície da terra, para uma
palingenesia gloriosa, revestirá suas almas duma luz indefectível e
torná-las-á dignas moradas, e para sempre, dos nossos corpos
ressuscitados e imortais. Ele entoará este grito triunfal, eternamente

27
repetido pelos inumeráveis exércitos dos escolhidos. Louvado seja
Deus: Alleluia.
Eis aqui, senhores, todo o dogma católico. Recolhei-vos
por instantes, eu vo-lo suplico, antes de ouvirdes as conclusões que
vou deduzir da consideração deste maravilhoso conjunto. Prometo-
vos que será breve.

II

Se nada vos comove, senhores, no aspecto geral do dogma


católico, é evidente que tendes necessidade de recorrer às provas
apologéticas donde flui esta verdade que nos obriga a crer: Deus
falou. As profecias, os milagres, as tradições, os testemunhos
impõem-se à nossa razão, e com o seu auxílio não há verdade
alguma das precedentemente enumeradas que não devamos aceitar.
Mas se participais da impressão que eu mesmo experimento em
presença do magnifico conjunto dos nossos dogmas, não vades
mais longe. A vossa alma foi criada para compreender o belo, e o
belo é o esplendor da verdade.
Digo-vo-lo com sinceridade, senhores, e se apelais para a
retidão do vosso coração e do vosso juízo, pensareis como eu: de
todas as maravilhas que povoam o universo, de todas as que a
história escreveu nas suas páginas, nenhuma há que iguale, aos
meus olhos, a maravilha do dogma católico em si mesmo. Como as
leis harmônicas do mundo, como as suas admiráveis suspensões, o
dogma católico responde a esta questão: Quem fez tudo isto? Quis
fecit ista? Foi Deus. O Padre Lacordaire tinha razão quando dizia:
“O cristianismo é inimitável, por consequência divino. A sua
grandeza é tanto maior, quanto mais o comparamos; a sua unicidade
avulta e sobressai tanto mais, quanto mais numerosos são os seus
êmulos; é tanto mais fácil de reconhecer, quanto mais distinto é.
Ainda quando brilhasse mil estrelas no firmamento da religião,
como no firmamento da natureza, não descobriríamos lá senão um
astro soberano”6.
Voltemos, porém, à comparação com a qual começamos
esta Conferência. O dogma católico, dissemos nós, é um edifício
intelectual. Pois bem, tudo nele é divino: a grandeza e a majestade
das suas formas, a pureza das suas linhas, a harmonia das suas

6
Conf. De Notre Dame. 40 Conf.
28
proporções. Não vedes vós como se eleva a uma altura infinita,
muito além da que a razão pode conceber? Alcanço o dogma da
existência de Deus, chego ao conhecimento imperfeito das
perfeições incriada pelo espetáculo das coisas criadas, mas posso
eu conceber o mistério da vida divina, a inarrável geração do Verbo,
a processão do Espírito Santo, as três pessoas numa natureza
indivisível e indivisa? Encontro um ponto de união entre o finito e
o infinito; mas posso conceber como a unidade destes dois termos
se realiza numa única pessoa, sem que fiquem confundidos?
Compreendo o dever, a retidão da consciência, o esplendor da
virtude; mas posso eu conceber que o próprio Deus habite na minha
alma pela graça, e que me torne participante da sua natureza e das
suas operações sacrossantas? Quero reparar o mal moral; mas posso
conceber que a justiça divina não ficará satisfeita senão pelos
abatimentos e pelas dores dum Homem-Deus? Compreendo a
unidade religiosa; mas poderei conceber que esta unidade será
realizada pela incorporação mística com o Verbo encarnado,
transformador e divinizador dos atos mais humildes da sociedade
cristã? Tenho a certeza do influxo divino; mas posso eu conceber
que o homem deva nutrir-se e alimentar-se de Deus? Espero a bem-
aventurança depois desta vida cheia de tribulações e misérias; mas
posso eu conceber que Deus se me revele tal como é, em todo o
esplendor da sua glória, e que torne o meu pobre coração possuidor
da sua essência? Ó doutrina sublime! Eu te cria sem dificuldade, e
também sem emoção, quando me fostes proposta por minha mãe, a
Igreja; mas tu me arrebatastes depois que te coloquei perante a
impotência da minha razão.
Contemplo, senhores, e acompanho atentamente a ascensão
das verdades católicas para o infinito. Todas as linhas são puras,
duma admirável pureza; nem o infinito é absorvido, por mais baixo
que desça; nem o finito saí da sua esfera, por mais alto que suba;
nem um nem outro se confundem, por mais íntima que seja a sua
união. Distinguem-se sempre, e nunca se podem separar.
Tudo se enlaça, tudo está ordenado, tudo concorre para a
harmônica beleza do todo. As proporções são rigorosas, que aquilo
que pertence à natureza parece se elevar acima dela, e o que se eleva
sobre a natureza parece pertencer-lhe. A natureza sustenta toda a
ordem sobrenatural, o sobrenatural explica toda a natureza.
Compreendo melhor o número, o peso, a medida dos seres, o
instinto que impele todo o ser vivo a comunicar a sua vida, as

29
faculdades da minha alma, os mistérios do meu pensamento e do
meu amor, quando conheço o dogma princípio e típico da Trindade.
Explico as minhas aspirações para a grandeza e o secreto orgulho
que me leva a fazer-me semelhante a Deus, quando conheço os
mistérios da Encarnação e da graça. Sei por que é que a minha alma
está triste e oprimida de desgostos, ainda mesmo no meio dos
prazeres, porque há no fundo do meu coração abismos de
insaciáveis desejos quando medito na bem-aventurança que me está
prometida. Enfim, vejo tudo melhor, quando quero ver tudo no
dogma católico.
Evidentemente, senhores, a razão humana não entra nesta
construção gigantesca, tão irrepreensível e tão bem ordenada.
Descobrir-se-ão, sim, os vestígios da razão no progresso e na
sistematização das verdades; a desigualdade da idade prova a
lentidão e a dificuldade do trabalho; a incoesão das partes revela a
imperfeição do artífice. O dogma católico é um todo uniforme;
revela-se nele a obra daquele que desceu do céu e que, testemunha
incorruptível, revelou à terra o que viu e escutou desde toda a
eternidade na essência divina7.
Entretanto, a razão humana envidou todas as suas forças
para resolver o grave e solene problema cuja fórmula vos expus no
princípio desta Conferência: Dados estes dois termos, o infinito e o
finito, explicar as suas relações. Quando, porém, a razão humana
não recorreu aos nossos dogmas, só produziu, mutilando-os,
sistemas sem grandeza e sem ordem, fábulas ridículas, fantasias
monstruosas em que a embriaguez do orgulho rivaliza com a
impotência das concepções. Depois, reduziu o princípio das coisas
a uma imobilidade egoísta, deu um rival ao espírito incriado na
matéria eterna, ao bem supremo no autor de todo o mal. Indo em
busca duma unidade quimérica, confundiu o infinito com a sua
obra, e humilhou a majestade divina revestindo-a das nossas
imperfeições e das nossas misérias.
Arrancou-nos aos braços paternais da providência e
lançou-nos, desonrados e trêmulos, nos braços do destino.
Exagerou a virtude ou divinizou o vício. Abateu-nos até à condição
dos brutos. Às nossas esperanças não propôs senão a dúvida sobre
o futuro, ou antes, o paraíso dos sentidos, o céu dos brutos, as

7
Qui de coelo venit super omnes est, et quod vidit et audivit hoc
testatur. (Jo III, 3)
30
transmigrações insensatas duma alma sempre perseguida pelas suas
imperfeições, ou antes, os abraços do nada. Ainda nos momentos
da sua maior ilustração, não teve a coragem e a força de descobrir
inteiramente o que há de mais humilde no nosso edifício
dogmático: as bases naturais sobre que se erguem as esplêndidas
construções do sobrenatural.
Comparei, senhores, frequentes vezes as produções da
razão humana com o conjunto das verdades que a Igreja propõe à
nossa fé. Não vos convido a que sigais as minudências desta
comparação, que me levariam longe; contento-me com dizer-vos o
efeito que sempre produziram na minha alma. Afigurava-se-me ver
um imenso campo coberto de valas, cabanas, pardieiros, ruínas,
casas incompletas, edifícios informes, e, no meio de tudo isto, um
templo de maravilhosa e incomparável beleza. Era a doutrina
católica que se elevava altiva e triunfante acima de todos os
sistemas humanos. Não me cansava em contemplá-la, e o grito do
meu entusiasmo subia desde os seus fundamentos até às suas alturas
sagradas: É divina! É divina!
Nem todos o entendem assim, bem o sei, e muitos
exclamam: é absurdo! Deixo-os gritar, senhores, porque sei que as
suas declamações não desmoronam um edifício solidamente
construído, sobretudo quando é obra de Deus. Gritem quanto lhes
aprouver contra o meu divino templo; gravem os néscios, se
quiserem, as suas injúrias nas suas pedras eternas; com um só golpe
de martelo farei desaparecer todas as suas necedades, e o tempo
ficará em pé até ao fim dos séculos.
Lancemos, antes de nos separarmos, uma última vista dos
olhos sobre o conjunto deste divino templo. Eis o infinito, eis o
finito: o infinito Deus perfeito, o finito ser imperfeito. Eis o Criador
e eis a criatura: o Criador princípio sobrenatural não só em seu
mesmo ser, mas na sua ação externa; a criatura supernaturalizada.
Eis Deus autor, motor e consumador, e, sob este magnífico título,
eis o Verbo encarnado, autor, motor e consumador do mundo
regenerado e vivificado pelos seus merecimentos infinitos. Enfim,
senhores, tendes diante de vós a sumula do ensino que devo
desenvolver na vossa presença, auxiliando-me dos trabalhos dum
doutor que entre todos me é querido: o profundo, o sublime Tomás
de Aquino. Talvez vos pareça arrojado e vaidoso o meu
empreendimento. Não é. Entrego-me a Deus. Se Ele, entretanto que
percorremos a imensidade do edifício que as suas mãos

31
construíram, abrir um sepulcro e me fizer descer a ele, obedecerei,
sem murmurar uma queixa, e pedir-lhe-ei, com amor, um outro guia
que vos conduza até às mais elevadas eminências, onde repetireis
este último acento da fé triunfante e do amor satisfeito. Amém.

A coleção completa do Dogma Católico de


Jacques-Marie-Louis Monsabré está entre as próximas
publicações. O primeiro volume, do qual esta
apresentação foi retirada, só está esperando os retoques
finais. Por esse motivo, é importante que você e seus
amigos divulguem e incentivem as compras dos atuais
produtos em nossa loja virtual, além de outras iniciativas
da Editora Loreto. Se você conseguir que um ou dois
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Jonadabe S. Rios
Editor

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