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Any Brito Leal Ivo

JARDINS DO ÉDEN:1 Salvador, uma cidade global-dual

Any Brito Leal Ivo*

Este artigo analisa a tendência de fragmentação das cidades, a partir da expansão de condomí-
nios fechados e fortificados, como ‘simulacros’ que desafiam as políticas da cidade e o padrão
de cidadania civil das cidades contemporâneas. O texto resgata três vetores de estruturação
urbana contemporânea (condomínios fechados, a gentrificação e a verticalização das favelas),
observando como as estratégias de marketing mobilizam dispositivos de segurança e de distin-
ção de classes, o que determina normas seletivas de convívio entre iguais, no espaço privado,
reforçando a via coercitiva e privada da ordem pública, como encaminhamento para a crise nas
cidades contemporâneas. Com base no exame da forma arquitetônica de “comunidades fecha-
das’, plasticamente importada, e das estratégias simbólicas e de comunicação mobilizadas
pelos empreendimentos imobiliários em Salvador, o artigo demonstra a negação da cidade
como espaço público de convívio, um reflexo das soluções privadas para a crise das cidades
contemporâneas, no contexto da globalização.
PALAVRAS-CHAVE: cidade, arquitetura, segregação espacial, condomínios fechados.

INTRODUÇÃO externamente, os processos de segregação e de


desigualdades sociais, na urbe. Essas mudanças
Este artigo explora os vínculos entre espaço influenciam a dimensão da civitas, ou seja, o di-
construído e vida social nas cidades contemporâ- reito dos cidadãos à cidade, não só como direito
neas,2 mediados pelas estratégias do marketing de acesso a bens materiais, mas em relação ao “di-
imobiliário para segmentos sociais de renda média reito de participar da construção e da reconstru-
e alta, observando como a arquitetura e as regras ção do tecido urbano, de formas mais condizentes
de uso e apropriação do espaço físico, reguladas com as necessidades da massa da população e ori-

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no âmbito privado, reestruturam as relações e nor- entada para a busca do bem estar dos indivídu-
mas sociais do convívio coletivo, aprofundando, os”, como qualifica David Harvey (2009), remeten-
do-se à situação das cidades, no contexto da crise
* Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo. Professora mundial de 2008.
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universi-
dade Federal da Bahia. No contexto da globalização, a estrutura das
Rua Caetano Moura, 121. Federação. Cep: 40210-350. cidades vem passando por alterações significati-
Salvador – Bahia – Brasil. anyivo@gmail.com
1
O termo “Jardins do Éden”, também conhecido como vas, que resultam de diversos fatores associados:
Jardim das Delícias ou Paraíso Terrestre, reporta-se, meta-
foricamente, ao local da primitiva habitação do homem, o a perda de hegemonia das atividades industriais,
local criado por Deus para guardar e proteger o homem, questionando a centralidade das metrópoles no
criado à sua imagem e semelhança. Paradoxalmente, Eden
Gardens dá nome a um dos mais recentes empreendi- padrão de acumulação fordista; o processo de
mentos residenciais em Dubai, que adotou como
marketing “onde o morador poderá descobrir a verdadeira espaço físico (morfológico) e as estruturas do espaço so-
alegria de viver“, como fórmula arquitetônica que integra cial. O espaço físico é apreendido pela sua exterioridade,
as diversas funções do homem contemporaneo: traba- enquanto o espaço social envolve a posição relativa com
lhar, morar, habitar e consumir. outros lugares e a distância social que os separa. As
Agradeço as sugestões dos pareceristas e da Editora cien- propriedades arquitetônicas do espaço (casas, condomí-
tífica da revista, cujos comentários contribuiram para o nios, bairros, etc.) participam, muitas vezes, como space
aperfeiçoamento deste artigo. consumming (consumo ostentatório de poder) e têm
2
Essa concepção busca superar uma noção substancialista efeitos de hierarquização e distinção social, na forma
dos lugares, observando a relação entre as estruturas do como analisa e define Bourdieu (1997, p.159-161).

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reestruturação produtiva, que implicou alterações em desvantagem na corrida econômica mundial-


nas relações de trabalho e agravamento das condi- mente estabelecida. Algumas cidades vêm se tor-
ções de vida dos trabalhadores, com expansão do nando, nesse processo, em “nós”, pontos de
desemprego, da informalidade e da precarização das interconexões fundamentais a essas dinâmicas: são
relações sociais; e as mudanças do papel do Estado as cidades globais que passam a representar novos
nacional em relação às políticas redistributivas de centros de poder.
bem estar social. Articulada intrinsecamente à formação da
Articulando, no seu espaço, os antigos pro- cidade global, a cidade contemporânea estampa
cessos de ocupação desigual do espaço e os novos quadros de agravamento da pobreza e de injusti-
fluxos globalizados da economia e da sociedade, ças sociais que resultaram em maior instabilidade
as cidades vêm passando por inúmeras transfor- do emprego, crescimento da informalidade e en-
mações. Elas passaram, predominantemente, a colhimento do Estado de proteção social.
sediar empresas de prestação de serviços altamente
especializadas, ligadas, na sua maioria, ao setor El declive social, por tanto, ha dejado de ser un
indicativo de decadencia para convertirse en
terciário, financeiro e da informação, de capital un complemento del desarrollo. La ciudad glo-
transnacional. Esses novos fluxos e seus agentes bal nos descubre, así, su segunda naturaleza: la
ciudad dual, quinta capa de la ciudad hojaldre
econômicos e sociais influenciam as estruturas de
(Vásquez, 2004, p.68).
consumo, lazer e o mercado imobiliário, produzin-
do novas tendências morfológicas na estruturação Assim, paradoxalmente, a cidade global-
social das metrópoles, com aprofundamento da dual constitui-se no lugar que oferece as melhores
segregação e das desigualdades sociais. Essas mu- oportunidades de emprego, atraindo profissionais
danças, apoiadas na otimização dos meios produ- qualificados, e, ao mesmo tempo, é lócus das mai-
tivos, contribuem para a formação de “nós” espa- ores discrepâncias sociais, salariais, com o cresci-
ciais, polos estratégicos da rede econômica mun- mento da informalidade e do desemprego.
dialmente estabelecida, e influenciam os modos e
a estratégia dos agentes econômicos sobre as cida- La esencia bipolar de la ciudad dual se refleja en el
des e regiões. A noção de global city, cidade glo- espacio urbano, al que la visión sociológica señala
como parte activa de la segregación. Clase social,
bal, analisada por Saskya Sassen [1991] (2001)3 raza y nacionalidad son los argumentos que
emerge no contexto dessas mudanças produtivas alimentan su espacialidad (Vázquez, 2004, p.69).
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e mostra uma “nova geografia de centralidades”


(Sassen, 2003), da ordem de produção pós-fordista, Da perspectiva da “produção do espaço”,
na qual a escala territorial local-global, ou seja, a como analisa Lefebvre ([1974] 2000), a cidade ex-
“dialética espaço-lugar”, segundo Harvey (2006, pressa contradições e lutas entre diferentes agen-
p.23), é alterada. tes econômicos e sociais sobre o espaço construído.
Para Santos (2008), os “espaços luminosos” Assim, a estrutura morfológica das cidades envol-
– dos polos de tecnologia – ganham vantagem nas ve processos de seleção, distribuição e regulação
disputas de mercado, frente aos “espaços opacos”, que afetam a vida social e o espaço público, num
contexto hoje marcado pelos fluxos globais da eco-
3
Global city, cidade global, é uma expressão usada por nomia, no qual o mercado imobiliário e as estraté-
Saskia Sassen no livro The Global City: New York,
London, Tokyo (Princeton University Press, 1991), para gias de marketing são vetores importantes. Eles re-
analisar o processo histórico vivido por algumas metró-
poles do primeiro mundo, que se transformam em pon- criam estilos de vida para segmentos de renda ele-
to de interconexão privilegiado da rede de fluxos da eco- vada, que produzem e reproduzem a expansão e a
nomia global, como espaço de fluxos. A noção passou,
gradativamente, a ser usada como um paradigma da prevalência de relações sociais eletivas (com quem
integração das cidades no processo de globalização. Essa
expressão não se confunde com a noção de mega cida- se quer conviver) e seletivas (do convívio entre
des, que remete ao tamanho de aglomerações de mais de
10 milhões de habitantes. iguais), consolidando apropriações desiguais e

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polarizadas do espaço urbano. Essa polarização se a construção e a mercantilização de simulacros5 e


expressa espacialmente na forma de “ilhas urba- como vetor estruturante dos complexos e dinâmi-
nas”, e a cidade se apresenta como um complexo cos processos de desigualdades sociais e segrega-
de “Arquipélagos Carcerários”, como analisa Davis ção da cidade, hoje, o que reforça a construção de
(2006), realizados, inclusive, sob formas e solu- uma comunidade seletiva entre “iguais”. Em que
ções arquitetônicas e urbanísticas, a exemplo dos pese a centralidade da análise dos condomínios
condomínios fechados verticais. fechados verticais, o artigo contrapõe a tendência
Cidades exteriores, cidades marginais, simil- de verticalização das favelas como outro vetor dos
cidades, tecnopolis, tecnoburbios, paisagem de modos diferenciados de ocupação das cidades, nos
silicone, possubúrbio, metroplexos, cidade cená- circuitos modernos de capital econômico e simbó-
rio, cidade fechada, cidade fantasia, exopolis (ci- lico, que representa formas espontâneas e de re-
dade sem cidade), cidades análogas, arquitetura sistência das classes populares6 no acesso à mora-
globalizada, arquitetura photoshop etc. são alguns dia, pela ausência de políticas vigorosas de Estado
dos termos usados por diversos autores (Boyer, e de regulação do espaço público.
2004; Davis, 2009; Koohaas, 2001; Soja, 2000, en-
tre outros) para caracterizar a expansão recente do
fenômeno de condomínios fechados – casas e (ou) OS SIMULACROS URBANOS
edifícios, e até bairros e “cidades” –, que se im-
põem como modelo espacial estruturante da urbe Três processos e modos de ocupação do ter-
contemporânea, sob a centralidade do mercado ritório urbano expressam a desigualdade espacial
imobiliário e do setor de consumo, lazer e segu- das cidades contemporâneas: a gentrificação,7 en-
rança, os quais influenciam novos padrões de con- tendida como um processo de substituição de es-
sumo das classes de renda elevada. Essas expres- paços centrais, antes ocupados pelas classes po-
sões buscam apreender o processo de exacerbação pulares, por segmentos das classes médias; a
da segregação espacial e desafiam a dimensão da verticalização dos assentamentos populares, num
cidade como espaço público. processo crescente de favelização;8 e a criação de
Esse modelo de “urbanismo de afinidade”, Os autores de referência são Blakely e Snyder (1997).
Para eles, essa forma arquitetônica dos gated communities
como define Donzelot (1999), estabelece novas re- constitui uma manifestação dramática de uma arquite-
lações entre a cidade e seus habitantes e contribui tura do medo e de uma mentalidade crescente de forta-
lezas, na América.

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para o enfraquecimento da cidade como espaço 5
O uso da noção de simulacro, como espaço, refere-se à
construção de “universos estranhamente semelhantes
coletivo e espaço público, sob condições históri- ao original” (Baudrillard, 1991), que seriam mais autên-
cas específicas: a cidade é privatizada, e os novos ticos, verdadeiros e reais que a própria realidade. Este
artigo busca mostrar a passagem entre realidade e
ordenamentos e articulações espaciais expressam idealização (simulação), quando o projeto passa a ser
verdade, deslocando-se do referencial da realidade.
movimentos de homogeneização de redes entre 6
No sentido usual da literatura sociológica, o termo é
iguais, apartadas da cidade real. sinônimo de classe trabalhadora incluindo amplos seg-
mentos sociais que sobrevivem em condições de repro-
Este artigo busca contribuir para o entendi- dução social baseadas em bens materiais escassos e pre-
cários, para além dos segmentos do emprego formal. Para
mento desse processo, a partir da análise do mo- Paulo Freire, ele é sinônimo de “oprimidos“, de referên-
delo arquitetônico e urbanístico das comunidades cia a classes que vivem em condições elementares da
cidadania, reconhecendo uma cultura própria do povo.
fechadas (gated communities4), interpretadas como 7
O termo gentrificação é o aportuguesamento de
gentrification, termo cunhado na década de 1963, que
4
Gated communities é a expressão usada por sociólogos significa o processo de ocupação dos bairros centrais de
americanos, que busca caracterizar uma nova forma de Londres pela classe média. Essa terminologia foi
vida seletiva, em que os indivíduos das classes médias e gradativamente ampliada, englobando diversos outros
altas buscam escolher com quem querem conviver. Esse processos que têm como resultante a substituição das
modelo faz uma aproximação com a natureza, com o classes populares por novos moradores com poder aqui-
esporte, com as atividades de lazer (lifestyle communities) sitivo mais elevado (Ver a respeito, Bidou-Zachariasen,
e demarca a distinção social de seus membros (prestige 2006; Wacquant, 2010).
communities), distante dos demais – a maioria –, usan- 8
A palavra “favelização” serve para qualificar, de forma
do barreiras de vigilância (security zone communities). geral, a expansão dos bairros populares de ocupação pre-

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áreas fortificadas, os condomínios, os bairros e as é tematizada na estratégia de marketing e venda de


cidades criadas como simulacros, objeto do mer- um novo “estilo de vida”, expresso em padrões
cado imobiliário dos grandes empreendimentos diferenciais de espaço, consumo e hábitos das clas-
comercializados para as classes média e mais alta, ses sociais de renda mais elevada.
que recriam um universo simbólico do bem-estar Esse padrão de homogeneização arquitetônica
e da qualidade de vida pelo reforço à segurança. no meio urbano tem sido designado por alguns
Por trás desses três vetores de reestruturação autores como processos de macdonização,9
urbana das cidades contemporâneas, encontra-se disneyficação10 e espetacularização,11 para ressal-
uma luta pela apropriação do território, refletindo tar os principais marcadores do planejamento ur-
os conflitos entre as classes e segmentos sociais bano estratégico12 das cidades “empreendedoras”
no espaço público, o que expressa uma nova e competitivas, articulando segurança, moradia, cul-
segmentação social da urbe e uma tendência cres- tura e mercado, na sua estruturação morfológica e
cente de privatização do espaço público. A social. Os “sonhos de consumo” de grupos sociais
conflitividade inerente a essas novas formas de economicamente em vantagem exemplificam os luga-
produção do espaço construído se expressa no res criados para solucionar o medo do que é diverso.
aumento da insegurança urbana, seguida por no-
vas formas de controle e regulação privada do es- O medo do desconhecido, tangível na atmosfera,
ainda quando só subliminarmente, reclama uma
paço, nas quais os dispositivos privados de segu- válvula de escape para encarnar o estranho, o in-
rança, articulados à oferta do mercado imobiliário, quietante, a nota impenetrável de outros costu-
mes, a imprecisão de certos perigos e ameaças.
reorganizam o padrão do convívio das cidades,
Expulsando de suas casas e lojas certo tipo de es-
gerando formas particulares de segregação espaci- trangeiros, consegue-se exorcizar por algum tem-
al e social. Como diz Vasquez (2004): po o fantasma aterrador da incerteza e esconjura-
se, assim, o monstro medonho da insegurança.
Alimenta-se a esperança de que as fronteiras re-
…De modo que, dentro de la estructura urbana, forçadas, que conscienciosamente são montadas
coexisten dos estadios diferentes de la evolución para evitar a entrada de “falsos” refugiados políti-
socioeconómica que, a su vez, están conformadas cos e de “simples” imigrantes econômicos, sirvam
por pares complementarios y generan formas par- à consolidação de uma existência instável, irregu-
ticulares de segregación espacial y social. Cada lar e imprevisível (Bauman, 2006, p.33-34).
uno de estos pares complementarios tiene una
manera propia de ocupar el territorio (p.53).
Essas “ilhas urbanas” (Veltz, 1999) consti-
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Dito de outra forma: o sentimento de inse- tuem espaços “fantasmagóricos”, como um fenô-
gurança generalizado nos grandes centros urbanos meno em expansão, conforme analisa Giddens
9
tem levado as classes médias e altas a buscarem Termo que significa, segundo Ritzer (2002), a aplicação de
princípios, como busca da máxima eficiência, exatidão,
espaços protegidos, oferecidos pelo mercado imo- semelhança, similaridade, encadeamento, homogeneidade
e controle absoluto das cadeias produtivas típicas dos
biliário como garantia de tranquilidade, harmonia restaurantes fast-food que, gradativamente, são incorpo-
rados a outros setores produtivos, como à cidade.
e bem estar. Essa tensão social permanente e o sen- 10 Processo que toma os parques temáticos da Diney como
timento de insegurança ensejam a formação de “si- referencial para caracterizar os novos modelos estratégi-
cos urbanos (Brayman, 1997) na tematização das cida-
mulacros” de cidades (cidades idealizadas) que des contemporâneas, submetidas à estratégia do
marketing e o espetáculo, na criação de vivências agradá-
desafiam a utopia do espaço público e político das veis e efêmeras.
cidades. Nesse sentido, o setor imobiliário explo- 11 Adotamos essa noção para qualificar a transformação
da vida e do cotidiano em espetáculo (Debor, 1997).
ra a experiência urbana filtrada pela segurança 12 O planejamento estratégico das cidades, como é analisa-
como produto de mercado. A “cidade idealizada” do por Jerome Kaufman e Harvey Jacobs (1987), envol-
ve a transposição de princípios empresariais na organi-
cária e irregular. Favela refere-se à área de moradia popu- zação e no planejamento urbano. Nessa concepção de
lar que compõe o tecido urbano, mas que não segue planejamento, as cidades são tomadas como polos de
padrões de ocupação definidos pelo Estado ou pelo mer- prestação de serviços e geração de renda, que competem
cado. O termo é originário desses assentamentos no Rio entre si na busca por investimentos, nos quais operam
de Janeiro. Em Salvador, usam-se mais as expressões o marketing das cidades e os marcos simbólicos do local,
“invasão” e “ocupação”. influenciando as formas de organização da vida.

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(1991),13 legitimando a segregação espacial com Em realidade, essas fortalezas “urbanas” po-
fortes campanhas publicitárias que exploram a re- deriam ser consideradas espaços disciplinadores,
lação com o lugar, o valor da vida comunitária, da da perspectiva de um panoptismo (Foucault, 2010,
harmonia e da integração com a natureza, a p.204), como um mecanismo generalizável de
tranquilidade e a segurança, opondo-se ao “outro” tecnologias de vigilância e controle a partir de uma
ameaçador genérico, ou seja, a sociedade real, como arquitetura e um ordenamento do espaço que re-
caracterizam Blakely e Snyder (1997). Assim, a presentam modos eficientes de controle social,14
diversidade e o imprevisto apresentam-se como com sistemas de interligação e construção de estru-
perigos a serem evitados e constituem-se em princí- turas urbanas espaciais, que conectam as “ilhas de
pios de organização espacial e social dos “lugares” iguais” – passarelas, túneis, estradas privatizadas,
nas cidades. Esses espaços segregados dos condo- galerias subterrâneas, centros comerciais, etc. – que
mínios fechados, shopping centers, novos “bairros”, foram justificados inicialmente pelas baixas tem-
no Brasil, desafia a noção de bens públicos e de peraturas e variações climáticas em cidades como
domínio público. Para Tereza Caldeira (2000), esses Minneapolis e Montreal. Na prática, essas estru-
condomínios fortificados contribuem para uma “de- turas possibilitam o controle dos transeuntes, a
mocracia disjuntiva” no Brasil, cujo paradoxo si- seleção de quem transita e dos que podem ter aces-
tua-se no desencontro ou na separação de uma ci- so, transformando-se em uma rede elitizada de
dadania civil, num contexto de expansão da demo- controle que nega e produz a “não vivência” da
cracia política, que se expressa nas contradições do cidade plural, diversificada, e a utopia de “fazer
espaço público, fragmentado e segregado. sociedade”, no dizer de Donzelot (1999). Para os
Os espaços autossegregados e autorregulados segmentos usuários desses vetores, é possível
recriam e vendem a falsa utopia de uma “comuni- mover-se, circular, ir e vir, sem o risco das ruas.
dade entre iguais”, afastada da maioria, na forma Por consequência, a cidade real torna-se o lugar dos
de um urbanisme affinitaire (urbanismo de afini- “excluídos”15 e da exclusão, lócus das vidas huma-
dades), como qualifica Donzelot (1999). As cria- nas não incorporadas às novas formas produtivas
ções temáticas de uma urbanidade utópica e a cons- ou de consumo urbano contemporâneo.
trução de espaços para iguais avançam na consti- Para Beck (2010), nessa “sociedade de ris-
tuição de estruturas de circulação “seguras”: as co”, essas novas dinâmicas negam a cidade como
“cidades análogas”, como define Boddy (2004). lugar de troca e embates. Os novos empreendimen-

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tos residenciais surgem, nesse contexto, com pro-
Hasta ahora, las calles habían funcionado como messas e garantias de um entorno ideal de viver,
un recordatorio diario y una materialización de
la esfera pública. Los nuevos modelos de um espaço cuja escala humana é recorrível a pé, e
construcción de la ciudad han suprimido inclu- onde seus habitantes se reconhecem como iguais.
so este vestigio remanente de la vida pública, y
Pode-se caminhar e usufruir das áreas verdes sem
lo han reemplazado por una analogía, un subs-
tituto (p.147). receio e sem ameaças visíveis.
Essa pseudoliberdade e segurança resultam
E, assim, de sofisticados sistemas de controle tecnológico e
14
A dominação dos corpos e das ações e a relação com os
En la actualidad, a contemplación de la masa espaços fechados, com a função de disciplinar os sujei-
de manifestantes en esto lugares es patética, su tos, são estudados e analisados por Foucault (2010).
carácter marginal se ve reforzado por el hecho “Pode-se então falar [...] da formação de uma sociedade
de haber sido desplazados a un emplazamiento disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fe-
chadas, espécie de “quarentena” social, até o mecanis-
cívico irrelevante, casi inhabitado y en absoluto mo indefinidamente generalizável do ‘panoptismo’.“
apreciado. (Boddy, 2004, p.147) (Foucault, 2010, p.204).
15
Entendidos aqui como a grande parte dos citadinos que
13
Para Giddens (1991), a conformação estética espacial não desfrutam dessas estruturas urbanas voltadas para
encobre as relações de produção, deslocadas e distantes proteger, distinguir e apartar segmentos sociais de renda
da realidade social local. mais elevada.

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serviços de segurança privada:16 todas as saídas, coletivos, são transformados em espaços pesso-
entradas e espaços abertos internos são vigiados ais privativos. Por exemplo: o número de suítes
continuamente. As condutas dos moradores são (em alguns empreendimentos a suíte máster conta
preestabelecidas por normas rigorosamente segui- com dois closets, dois sanitários, etc.); o núme-
das. A perda de liberdade e o controle não se limi- ro de aparelhos de TV e os espaços de estudo
tam aos espaços abertos e comuns, mas influenci- são individuais; os quartos apresentam, cada vez
am e se estendem também à esfera da intimidade e mais, layouts individualizados, etc. Essa
da vida privada, estabelecendo condutas e “estilos individualização dificulta o convívio e o embate
de vida” desejáveis.17 Surgem, então, novas cate- das diferenças, inclusive no interior das residên-
gorias do morar: “um clube em casa”; “vida de cias (casas ou apartamentos), reorganizando o
interior na capital”; “condomínio-clube”; “elegân- padrão de sociabilidade intrafamiliar.
cia revolucionária”; “recanto na agitação”, etc. Esse “estilo de vida contemporâneo”, mar-
A legitimação desse novo modelo de mora- cado pelo controle e atomização, estrutura-se es-
dia é reforçada e mediada pelas estratégias de co- pacialmente para acompanhar as transformações
municação e vendas, que se constituem, então, em simbólicas e formais das unidades habitacionais,
elementos estratégicos fundamentais da constru- com expansão e sofisticação das áreas comuns con-
ção simbólica e distintiva da unidade residencial e troladas. Novas áreas são criadas: espaço gourmet,
dos seus futuros habitantes: brinquedoteca, salas de estudo coletivas, discote-
a) Os espaços das áreas residenciais dos aparta- cas, sala de jogos, etc., afastando o espaço domés-
mentos, apesar de manterem a distinção funcio- tico do “estranho” e garantindo a rotina doméstica
nal (área de serviço, área intima e áreas de estar), preestabelecida e conhecida. Não há invasão ou
são continuamente reduzidos, impondo-se um surpresas no âmbito do privado.
estilo de vida “moderno” e prático, com as faci- O viver, trabalhar, consumir e recriar, no
lidades tecnológicas. A antiga área destinada à mesmo lugar, esse “estilo de vida prático e con-
“dependência de empregada” dá lugar ao “quar- temporâneo” concretiza-se nesses novos comple-
to reversível”, possibilitando a adaptação da mo- xos arquitetônicos, novos empreendimentos, apa-
rada às diversidades familiares. Em alguns ca- rentemente dotados de autonomia e independên-
sos, tanto o quarto quanto o sanitário de serviço cia em relação à cidade real. Esse processo obede-
são subtraídos, pelos vestiários e (ou) sanitários ce a escalas, além das transformações internas na
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de serviço comuns ao condomínio e fora da uni- unidade de moradia e da criação de espaços cole-
dade de morada (espaços justificados, inclusi- tivos de lazer, os serviços oferecidos assumem outra
ve, pela segurança, já que servem de barreiras e dimensão e escala. São os bairros ou cidades cria-
evitam o trânsito de sacolas e volumes pessoais das (complexos com áreas residenciais, comerci-
por áreas privadas e coletivas). ais e shopping centers, escolas e faculdades), ven-
b) Além da redução espacial das unidades, esse dendo-se a ilusão e o sonho do bem estar, confor-
novo estilo de vida induz, paradoxalmente, à to, distinção e segurança total, numa vida quase
individualização e atomização do sujeito. Nesse que apartada da cidade real.
processo, o respeito à “individualidade” e à “di-
ferença” dos espaços de convívio familiar, antes
16
Para Deleuze (2000), a crise dos mecanismos de VENDE-SE UM “DELÍRIO”
confinamento (sistemas fechados) que caracterizam a
sociedade disciplinar é o que dá espaço às novas forças
“ultrarrápidas de controle ao ar livre”. Em lugar dos Na criação desse simulacro do desejado e
moldes disciplinares, as modulações autodeformantes,
dinâmicas, flexíveis e mutáveis a cada instante. adquirível, inserido no padrão de consumo de
17
“Estilos de vida”, como reflexo da disneyficação da massa, a propaganda é peça-chave: inventa mun-
sociedade, quando a própria vida transforma-se em tema,
espetáculo e produto para a venda. dos inexistentes e autorreferidos. A partir das pe-

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ças publicitárias, a cidade real desaparece, torna- etc. –, ou seja, o simulacro superpõe-se à realidade.
se um “vazio”. O uso simbólico de imagens a ser- Outra estratégia simbólica utilizada é a no-
viço dos megaempreendimentos imobiliários exor- meação desses empreendimentos, também objeto
ciza a cidade real. A sua existência aparece ape- de tratamento da imagem e idealização de um mun-
nas, e de modo indireto, como suposta ameaça à do à parte (Amorim; Loureiro, 2010), que nega o
segurança do lugar, a partir da qual se fortalece o real. Em sua maioria esses condomínios recebem
mito da “cidade aterrorizadora”, em contraposição nomes estrangeiros,18 sem referência local, acres-
ao que o empreendimento oferece: o ideal de paci- centando status e capital simbólico19 distintivos que
ficação e a tranquilidade garantidos pelos espaços reforçam a ideia de harmonia em contraposição à
fortificados de moradia e lazer. diversidade existente na sociedade urbana.
Aqui, não apenas as peças publicitárias, Residence, Club, Resort, Ville ou Villa são recor-
mas, principalmente, o serviço de relações públi- rentes na denominação desses complexos, assim
cas e outros meios de divulgação ampliam as es- como os marcadores simbólicos de apelo ecológi-
tratégias de marketing. Por exemplo, as publica- co: Brisa, Horto, Park.
ções específicas, encartes e artigos ou matérias pa- Ademais, outras ferramentas de venda são
gas, muitas vezes, trazem entrevistas e (ou) depoi- utilizadas. Os apartamentos decorados e as estra-
mentos que relatam índices sobre a violência e o tégias ilusórias dos equipamentos, como os armá-
“caos urbano”, o que fortalece a indústria de segu- rios com pouca profundidade, mobiliário reduzi-
rança, com as fórmulas espaciais de moradia, a do, iluminação especial, criação de paisagem futu-
exemplo dos condomínios. As estratégias de ven- ra etc., são cada vez mais usados nas estratégias de
da, as peças publicitárias e as imagens adotadas e venda. O “jogo de espelhos” dissimula as peque-
exploradas são mediações fundamentais do sonho nas áreas, permitindo a ampliação do ambiente. As
e do desejo da distinção. Mapas de localização, figuras do “arquiteto”, “decorador” e profissionais
plantas decoradas, perspectivas simuladas e ani- de marketing agregam valor e status, legitimando
mações possibilitam a manipulação da realidade, esses espaços como sonho das classes médias. Esse
na recriação de cenários simulados, distantes da sonho é objetivado (como experiência real) nos
cidade real: “vende-se um delírio”. modelos de apartamentos decorados. O desejo e a
A cidade real torna-se elemento subjacente promessa passam ao plano da experiência, contri-
à “recriação da localização” desses empreendimen- buindo para associar diretamente o consumidor ao

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tos. Nas imagens criadas, a paisagem natural e o produto da venda. Os apartamentos decorados,
azul celeste intenso consolidam a ideia de isola- como mais um simulacro, servem às estratégias de
mento e de ilha, e a cidade torna-se um “vazio”, comercialização, transformando o sonho numa pos-
desaparecendo das imagens e representações vei- sibilidade real, antecipada e experimentada.
culadas pelo empreendimento, que se localiza Nesse contexto, que associa “insegurança”
numa “paisagem natural despovoada”. Paradoxal- e “pacificação” via “simulacros”, alguns, se refugi-
mente, a cidade reaparece, ressignificada como ele- am nos lugares míticos de “felicidade controlada”,
mento de valorização do empreendimento, nos que se encontram à venda. A cidade real, o que
apelos publicitários que relacionam a sua localiza- seria a pólis, como comunidade organizada de ci-
ção a pontos estratégicos e funcionais da cidade
18
Alpha Park Life, Diamond, Montpellier Residencial, Cas-
real. Frases de impacto apelam para elementos tro Alves Residence, Maximo Clube Residence, Felicitá
naturais próximos, enfatizando a localização do Garibaldi, Villa Fiore, Garibaldi Prime, Único Residencial,
Cittá Itapoan, Cittá Lauro de Freitas, Vitraux, Manhattan
empreendimento como espaço do “bem viver” e Square, entre outros, são alguns empreendimentos lan-
çados em Salvador no ano de 2007.
de retorno à natureza. Os limites de bairro são 19
Entendemos capital simbólico como uma aferição de
reinventados e as temporalidades recriadas – “a x poder simbólico, espécie de poder associado ao prestígio,
carisma, garantindo vantagem ou posição favorável fren-
quadras da praia”, a “x minutos do aeroporto”, te a um campo de ação [...] (Bourdieu, 1989).

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JARDINS DO ÉDEN: Salvador, uma cidade global-dual

dadãos livres e iguais em direito, passa a repre- res econômicos diversos, com a substituição dos
sentar o lugar da violência, da barbárie e, como tal, antigos moradores e ocupantes e a consequente va-
é banida das vivências humanas desses grupos de lorização dos imóveis após anos de um processo de
renda mais elevada, mediante um mercado imobi- depreciação e desvalorização, como apresenta a
liário que garante o sonho de segurança e da dis- matéria “De volta ao futuro”, no caderno especial
tinção simbólica e espacial. Correio Negócios, do jornal o Correio da Bahia, de
26 de outubro de 2007, cuja principal manchete
traz foto do bairro do Comércio como área para in-
NOVOS VETORES DA ARQUITETURA EM vestimentos do futuro. Gradativamente, a área cen-
SALVADOR, ELEMENTOS DE SEGREGAÇÃO tral da cidade vem despertando interesse de inves-
ESPACIAL tidores, tanto do setor da construção civil como do
setor de entretenimento e turismo, abrigando res-
Com quase 3 milhões de habitantes e tercei- taurantes sofisticados e polo náutico. Ademais, conta
ra capital do Brasil, Salvador, apresenta, segundo com alguns novos empreendimentos de luxo, como
Souza (2008), um déficit habitacional de mais de anuncia um deles: “um transatlântico permanente
100 mil unidades. Conta aproximadamente com ancorado na Baia de Todos os Santos”.
apenas 14% de áreas aptas a novas ocupações Com relação ao ainda incipiente processo
habitacionais. De acordo com Waiselfisz, no Mapa de gentrificação no bairro do Comércio, observa-
da Violência (2011), a capital do estado da Bahia é se, ainda, a implantação de empreendimentos ho-
também a terceira cidade em número de homicídi- teleiros, alguns de caráter polêmico.22 No entanto,
os, que cresceu 308,3%, de 1998 a 2008. De 2000 esses processos ainda não representam uma ten-
a 2010, essa mesma taxa apresentou um cresci- dência predominante das dinâmicas de produção
mento de aproximadamente 418%. A taxa de ho- espacial e territorial da cidade de Salvador. A
micídios, entre jovens de 15 a 24 anos, atingiu, no verticalização das favelas e a criação de novos con-
período de 1998 a 2008, 435,1% de crescimento.20 domínios fechados constituem tendências domi-
Num quadro de déficit habitacional e aumento nantes da reestruturação e produção do espaço
da violência, a cidade apresenta dois vetores de soteropolitano contemporâneo.
estruturação do espaço urbano, com temporalidades O crescimento do mercado imobiliário de
diferentes:21 as favelas, ou ocupações espontâneas, Salvador surpreende. No primeiro semestre de 2008,
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e os condomínios fechados. Ambos se destacam o número de imóveis vendidos supera todo o ano
por explicitar as tensões sociais que caracterizam a de 2007, expressando um crescimento de 153% nas
ocupação desigual do espaço da cidade e as contra- vendas e contabilizando a comercialização de 7.269
dições entre a dimensão do público e do privado. novas unidades.23 Nessa expansão imobiliária,
Uma terceira vertente, o processo de gentrificação destaca-se, nos últimos anos, em Salvador, o mo-
do centro, que já mostra tendências de expansão, é delo de condomínios fechados, verticalizados,
ainda incipiente: compreende a revitalização das voltado para os segmentos das classes médias e
áreas degradadas, substituídas por novos investi- altas. Esses empreendimentos, na prática, enca-
mentos, o que pode vir a se constituir em mais um minham uma solução habitacional que envolve uma
processo de segmentação da cidade. privatização do espaço público da cidade, na me-
Nessa linha, as áreas centrais do bairro do dida em que, em muitos deles, áreas legalmente
Comércio e da Av. de Contorno vêm recebendo, destinadas a equipamentos urbanos e comunitári-
nos últimos anos, atenção e investimentos de seto- 22
CORREIO DA BAHIA, 27 de março de 2008. O caráter
polêmico resulta do fato de o projeto ferir o gabarito
20
Dados extraídos de Waiselfisz, do Mapa da violência (2011). estabelecido para área e ainda prever a construção de
21
Para a análise da segmentação socioeconômica da me- uma passarela que articula dois prédios.
23
trópole Salvador, ver Carvalho, Souza e Pereira (2004). Conforme a revista Vida Imobiliária, 2008.

138
Any Brito Leal Ivo

os passam a ser apropriadas como áreas de lazer E enfatiza:


desses novos empreendimentos.
As qualidades são tantas que nos últimos anos a
Transformar áreas públicas obrigatórias em
Avenida Paralela se tornou um dos metros qua-
áreas privatizadas vai de encontro à Lei 6.766, que drados mais valorizados de Salvador, entrando
dispõe sobre o parcelamento do solo urbano. Do para a lista dos endereços mais desejados. Faça o
mesmo que o maior lançamento imobiliário da
ponto de vista legal, a categoria “condomínio fe- Bahia: escolha a Paralela. Comodidade,
chado” inexiste na legislação, segundo a qual o infraestrutura, fácil acesso e uma rede completa
de serviços. Esta é a Paralela. Um lugar perto de
parcelamento do solo urbano pode ser feito na for-
grandes escolas e faculdades, hipermercados 24
ma de loteamento e de desmembramento, com a horas, lojas de conveniência, Parque de Pituaçu e
obrigatoriedade de oferecimento do sistema de cir- um dos melhores shoppings de Salvador. Defini-
tivamente, este é um lugar completo. E agora vai
culação, equipamentos urbanos e comunitários ficar mais ainda.
(equipamentos públicos de educação, cultura, saú-
de e lazer) e espaços livres para uso público, defi- E conclui, grifando a comercialização de
nidos e mensurados em relação à densidade de tranquilidade e segurança:
ocupação do empreendimento.
Apesar dessa determinação legal, as fórmu- O [empreendimento] foi pensado para oferecer o
máximo de tranquilidade. Para isso, conta com
las condominiais são cada vez mais comuns e pre- uma diferenciada infraestrutura de segurança,
dominantes. As grifes (de arquitetos, condomínios formada por modernos equipamentos de
monitoramento, além de uma equipe de profis-
e construtoras) de grande sucesso e status reconhe-
sionais treinados para zelar pelo seu patrimônio
cido nacionalmente agregam valor, legitimam e ex- 24 horas por dia.
ploram o mercado imobiliário soteropolitano, alte-
rando e reformulando padrões, expectativas, estéti- O projeto compreende um complexo fecha-
ca, funções e usos do habitar, com consequências do, num terreno de 100.000m2, onde se distribu-
para a pólis. em dezoito edifícios de aproximadamente 20 an-
O eixo viário da Avenida Paralela, como dares e 4 apartamentos por andar, num mix de
vertente consolidada da expansão urbana, repre- unidades habitacionais que variam de 112,91 m2
senta uma das principais áreas das novas fórmu- (03 quartos) até a 243,45 m2 (04 suítes). O empre-
las de ocupação espacial dos condomínios fecha- endimento oferece ainda a seus moradores um
dos na cidade de Salvador. É nela onde se localiza complexo de lazer para qualquer idade: complexo

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a maior parte desses novos empreendimentos. A de piscinas com solarium, deck molhado, piscina
peça publicitária de um novo condomínio verti- coberta, etc., totalizando 2.500m2 de piscina; clu-
cal, recentemente lançado nessa região, é be; centro comercial; salão de festa; academia de
paradigmática desse modelo habitacional, em Sal- ginástica; uma infinidade de praças (entre essas a
vador. O empreendimento apresenta um novo con- praça gourmet, praça das águas, praça boas vindas
ceito residencial que associa uma localização es- etc.); Beauty Center etc. Assim, as atividades, an-
tratégica, o acesso fácil ao trabalho, aos serviços, à tes privadas, são trazidas para um novo convívio
segurança e ao lazer, próximo a tudo (praias, cen- coletivo “entre iguais”: todas as atividades, desde
tro de comércio e lazer, faculdades e do trabalho), a brinquedoteca, passando pelos estudos até a reu-
conforme anuncia o empreendedor: nião com os amigos, são controladas e
monitorizadas por câmeras e toda uma rede de sis-
Um conceito residencial diferente está chegan- temas de controle. Esse complexo disponibiliza
do a Salvador. [...]. Uma região que vem se fir-
mando, cada vez mais, como o novo polo urbano serviços de apoio e manutenção doméstica (limpe-
da cidade. Próxima das praias e de tudo que a za, eletricista, manutenção de computadores etc.),
sua família precisa para viver com conforto, a
delivery de farmácia, pizza e água mineral, sapata-
Paralela ainda tem outra vantagem: áreas verdes
preservadas. ria, lavandeira, locação de DVDs, conserto de rou-

139
JARDINS DO ÉDEN: Salvador, uma cidade global-dual

pas, walk dog, pet shop e o elemento decisivo: a perspectiva, com um cuidado: em nenhuma ima-
garantia de monitoramento 24 horas. gem a alta densidade populacional aparece. Os
O modo de oferta desses serviços, somado consumidores idealizados são registrados em ima-
a todo o aparato criado para a manutenção dos gens e fotografias à parte. Nesse simulacro, que
espaços coletivos recriados, altera as formas de nega a cidade habitada, uma “cidade cenário” é
consumo doméstico por meio de novas relações vendida e comercializada.
de trabalho e negócios, com base na terceirização Outro elemento relevante diz respeito à
de serviços e mão de obra sob o controle desses tipologia e padronização arquitetônica do empreen-
novos conglomerados residenciais. dimento, no que tange à sua implantação e às
As peças publicitárias produzidas para esse edificações. Observa-se a homogeneização de uma
novo condomínio vertical constituem um rico fórmula e um modelo que se reproduz em outros
material que oferece elementos para se repensar a empreendimentos, inclusive em outras cidades. Pode-
relação entre empreendimento e cidade. Primeira- se denominar essa arquitetura de “neoneoclássica”,
mente, essas peças usam a imagem de atores de ou de um “neoclássico contemporâneo” asséptico:
grandes emissoras de televisão. No caso em análi- um apelo simbólico na tentativa de enobrecimento
se, o ator que aparecia em todas as chamadas do do empreendimento (e de seus moradores) pelo
lançamento, interpretava, numa novela de grande uso de frontões estilizados, colunas e pé direito
audiência na TV, um empresário de sucesso, um duplo no térreo. Nas edificações, repete-se o uso
“bom moço”, amante da boa comida, que prezava de superfícies envidraçadas, com destaque, atual-
sua liberdade e a qualidade de vida. Essa aborda- mente, para o vidro verde. As cores neutras são as
gem de marketing usa formadores de opinião no mais utilizadas. No paisagismo, as palmeiras e as
apelo aos clientes de classe média. superfícies gramadas são exploradas nas composi-
Outro dispositivo utilizado na estratégia de ções, criando ambientes “harmoniosos” e limpos,
marketing é o ponto e seus eventos de venda, que favoráveis à visibilidade e, consequentemente, ao
contribuem para a espetacularização não só do controle, justificados pela garantia da segurança.
empreendimento, mas também do ato de compra, As plantas das unidades também seguem
comemorando o ingresso do novo cliente no uni- uma fórmula e padrões de áreas e espaços ampla-
verso dos “selecionados”: quando um imóvel é mente usados pelo mercado imobiliário, cuja de-
vendido, todos os corretores correm para parabe- coração tem papel decisivo na construção simbóli-
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 131-146, Jan./Abr. 2012

nizar o novo morador, champanhe é servido, e uma ca de um estilo de vida. A redução dos espaços
música comemorativa é tocada. Compradores pas- internos das unidades habitacionais é compensa-
sam, então, a participar das campanhas de ven- da pelas “enormes” áreas de convívio que suprem
das, com depoimentos, declarando as razões que o déficit de área privativa e contribuem para a cons-
os levaram a adquirir o imóvel. Suas motivações trução de capital simbólico desse novo conceito
são exemplares da possibilidade do sonho. Eles de moradia, ao tempo em que possibilitam maior
são retratados com suas famílias, festejando o so- privacidade da unidade residencial.
nho realizado. Através da imagem de comprado- O partido urbanístico se repete nesses em-
res – pessoas reais e comuns –, demonstra-se a preendimentos: praça central com destaque para a
viabilidade do acesso, como possibilidade a todos, área da piscina, na sua grande maioria em forma
desde que apresentem perfil econômico similar. ameboide, circundada pelas áreas de convívio, de
Nas peças impressas, não há a divulgação lazer e os espaços verdes. O “deck molhado” ou a
das plantas baixas das edificações (disponíveis “prainha” é peça obrigatória no complexo de pis-
apenas no site e no stand de vendas). Toda ênfase cinas. A raia para prática de esporte e de uma vida
é dada às áreas verdes, áreas abertas e de lazer. A saudável também se torna diferencial no mercado.
representação gráfica desses espaços é feita em Entre os espaços privados e o exterior, instalam-se

140
Any Brito Leal Ivo

os espaços de consumo e lazer, como espaços co- dois tipos de abordagem legitimam o empreendi-
letivos. Entre o simulacro e a cidade real, o merca- mento: de um lado, o uso de personagens públicos
do se instala na forma de serviços. e “celebridades” agrega capital simbólico, numa
Seguindo esse mesmo padrão arquitetônico, mensagem de reconhecimento, status, credibilidade,
em que a moradia é convertida em espaço de servi- visibilidade etc.; de outro, ao explorar o depoi-
ço, a negação da cidade real é reforçada. Um novo mento e a imagem das pessoas comuns, a estraté-
empreendimento articula as funções de residência, gia de venda indica que a “distinção” é um bem
Shopping, Corporate, criando e vendendo um bair- possível, acessível a “outros”, iguais.
ro: “Um bairro único porque tem tudo de bom num Além da estandardização das abordagens
único bairro”, diz a mensagem publicitária. Ou seja, comunicacionais e publicitárias, observa-se, tam-
o empreendimento oferece total autonomia em rela- bém, uma padronização arquitetônica tanto em re-
ção à cidade: desde a moradia até as áreas de traba- lação ao formato do condomínio verticalizado,
lho, educação e lazer num “circuito exclusivo e pri- como, inclusive, à massificação da própria produ-
vado” com garantia de segurança e monitoramento ção arquitetônica, como padrão. É o que chamo
24h. por dia. Cria-se um “novo bairro” e inaugura- metaforicamente, neste texto, de uma Mac-arquite-
se um novo vetor de expansão para a cidade, loca- tura,25 ou seja, um modelo de arquitetura global
lizado nas margens da BR 324, na saída da cidade. tematizada para atender a um mercado seletivo, o
Esse empreendimento é anunciado como “O que ratifica o condomínio vertical como solução para
mais completo empreendimento de Salvador”. Em as tensões sociais das cidades, a exemplo dos pro-
um terreno de 340.000m2, são 19 edifícios, 3 torres jetos arquitetônicos analisados em diversas partes
comerciais, um hotel, Colégios, e Shopping em do mundo, como Dubai, Goiânia e Salvador.
130.000m2 de área verde e jardins preservados, a 2 Esses empreendimentos, reproduzidos em
minutos do centro, com acesso pelas principais ave- diversas cidades do mundo (Acervo, em São Pau-
nidas e uma completa infraestrutura de serviços e lo; Eden Gardens, em Dubai, Sky Life, em Goiânia;
lazer.” Sem diferença nas estratégias de venda (parti- Le Parc, Salvador, entre outros), ilustram um dos
cipação de atores/personagens de destaque como for- vetores de ocupação e produção de arquitetura
madores de opinião, agregando legitimidade e fortificada nas cidades contemporâneas. Demons-
credibilidade ao empreendimento) ou na arquitetura tra, ainda, a mundialização desses processos como
proposta, esse novo empreendimento, similar a ou- produtos padronizados da estruturação e consti-

CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 131-146, Jan./Abr. 2012


tros no mundo, articula as quatro funções da cidade tuição dos espaços urbanos e das cidades, hoje,
contemporânea: morar, trabalhar, lazer e consumo. que, de fato, ilustram a produção arquitetônica da
Sob o imperativo do consumo, as estratégi- “não-cidade”, quando o padrão de convívio passa
as de venda não apenas se repetem em termos de a ser simbolicamente recriado pelo mercado e pelo
estratégia, com a exploração de imagens dos “for- marketing de grandes empresas.
madores de opinião”, “celebridades” e figuras “po-
pulares”, mas consolidam a tendência de consu-
mo de massa na moradia das classes médias altas, A VERTICALIZAÇÃO DAS FAVELAS EM
que integram a cidade contemporânea. A explora- SALVADOR
ção da imagem de “pessoas comuns”, com os de-
poimentos de compradores, constitui uma estraté- No outro polo, como solução para as ques-
gia cada vez mais utilizada nos empreendimentos tões habitacionais contemporâneas, a verticalização
imobiliários, com mensagens no profile.24 Esses das favelas, em Salvador, surge como resposta ao
25
Inspirada no termo “Mac-donização”, sugiro o termo
24
Usamos a expressão no profile significando “fora do “Mac-arquitetura” para expressar a estandardização da
perfil”, ou seja, uma mensagem não declaradamente de produção arquitetônica subordinada a um padrão
venda e de propaganda. globalizado de mercado contemporâneo.

141
JARDINS DO ÉDEN: Salvador, uma cidade global-dual

déficit habitacional para as classes populares de externamente, possibilitando a criação de novas


renda mais baixa. Esses territórios expandem-se “es- unidades habitacionais que irão suprir as necessi-
pontaneamente” em imensos bolsões de habitações dades de moradia da expansão do núcleo familiar
precarizadas, associados à reprodução da pobreza (casamento dos filhos).
urbana e pela ausência de uma política habitacional Em alguns casos, essas novas unidades são
consistente. O adensamento das “classes populares”, alugadas, gerando nova fonte de renda para as fa-
pressiona um processo de verticalização da moradia mílias. Além disso, as novas áreas criadas pela
precária e uma ocupação espontânea nos centros ampliação vertical podem ter usos distintos. Na gran-
urbanos. Esse não é um fenômeno exclusivo da de maioria das vezes, o térreo abriga algum estabele-
cidade de Salvador ou das cidades brasileiras, mas cimento comercial para exploração própria ou para
tem sido observado como tendência global das ci- aluguel, revertendo-se também em fonte complemen-
dades no contexto da globalização, como analisa tar de renda. Assim, tanto as estratégias construti-
Mike Davis (2006) no livro “Planeta Favela”, ao apon- vas e de uso como a própria dinâmica dessa expan-
tar os cenários de extrema pobreza de moradias pre- são obedecem a princípios próprios às condições
cárias onde vive a maioria dos habitantes em várias materiais e sociais de reprodução desses segmentos
partes do mundo, a partir dos anos oitenta. sociais dos moradores dessas áreas.
A especificidade dessa tendência não signi- O adensamento populacional resultante
fica, no entanto, a aplicação indistinta de um mo- dessa verticalização das unidades habitacionais
delo dual, mas a fusão e a interação de processos agrava ainda mais as condições de moradia,
simultâneos, onde atuam, de um lado, a herança traduzidas por uma precarização do ambiente
histórica de estruturação hierárquica do espaço construído, o que se reflete não apenas na própria
construído em cada cidade, e, de outro, os fluxos conformação dessas ocupações (proximidade en-
da economia global, tanto na estruturação do espa- tre as edificações, escassez de vazios, redução da
ço morfológico como sobre as relações sociais e a incidência de luz, insalubridade exacerbada pela
forma de valorização simbólica e distintiva de apro- altura das edificações, etc.), mas também na insu-
priação do espaço público. ficiência dos sistemas e serviços públicos adequa-
Essas soluções informais de acesso à mora- dos a essas novas demandas.
dia, por outro lado, são absorvidas pelos órgãos A espontaneidade desses espaços construídos
oficiais como solução habitacional para a popula- pelas classes populares urbanas, em condições de
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 131-146, Jan./Abr. 2012

ção de baixa renda, legitimadas pelo Estado, a exem- absoluta precariedade, aparece como estratégia de
plo da expansão de financiamentos e programas de acesso à moradia e forma de resistência diante da
“urbanização de favelas”, comuns e defendidos a ausência de políticas públicas e sociais. Pode-se
partir da década de 80 e analisados por Souza (2008). concluir, portanto, que as diferenças sociais sobre
O processo de expansão vertical de favelas é o espaço construído da cidade resultam da forma
mais observado nas áreas centrais e(ou) inseridas histórica de assentamento das classes sociais da
no tecido urbano consolidado, sem possibilidades cidade desigual, pela ausência de espaço público
de expansão territorial, próximas aos serviços ur- regulado e pela expansão de um mercado imobili-
banos, assim como do “mercado de trabalho”. Se- ário associado a um novo padrão de moradia
gundo Sampaio (2001), a dinâmica de verticalização fortificada que reproduz complexos arquitetônicos
e expansão das áreas informais obedece a uma ló- integradores de habitação, serviços, controle e se-
gica própria. A superposição de lajes é o princípio gurança, determinando formas de convívio apar-
de expansão e ampliação do imóvel, e o último tadas para distintos segmentos sociais.
piso passa a desempenhar e abrigar as antigas fun- Da mesma forma como as moradias
ções dos quintais. Nesse caso, a articulação entre fortificadas de classe média estabelecem normas
pisos é interna. Mas essa articulação pode ser feita privadas de regulação do convívio no interior dos

142
Any Brito Leal Ivo

condomínios, a ocupação das áreas de moradia po- Entendendo que a dimensão do conflito é
pular, longe da regulação pública da cidade, também um elemento intrínseco à constituição das cida-
impõe sistemas de vigilância e normas de conduta des, Sennett (1994) considera que uma comunida-
entre “os de dentro” e os “de fora”: leis severas são de multicultural é uma comunidade conflitante, e
impostas, e a vigilância aos estranhos e aos “de den- o citadino é ativo e capaz de lidar com as diferen-
tro” também é constante, na ausência de formas le- ças para sobreviver. Assim, as comunidades ilu-
gais de regulação do espaço público da cidade. soriamente fechadas, seja por iniciativas do mer-
cado, seja como resultado de soluções informais,
perderiam eficácia no enfrentamento das tensões
CONSIDERAÇÕES FINAIS sociais. Portanto, a crença nesses modelos urba-
nos cresce de modo inversamente proporcional à
Para Koolhaas (2007), na cidade genérica – fragilidade do espaço público. Ou seja, assiste-se
marcada por grandes e contínuas transformações, à falência da cidade como pólis, frente à existência
onde a diversidade é diluída pela recorrência à di- dessas formas segregadas de apropriação do espa-
ferença –, as questões habitacionais não constituem ço urbano.
um problema. Para esse autor, ou elas foram resol- A solução para as fraturas e tensões sociais
vidas no passado, ou são resolvidas pelo mercado, sob a forma de condomínios fortificados, como
ou, simplesmente, são deixadas ao azar. Ou seja, solução para a constante insegurança e o medo,
não entram na pauta de questões reconhecidas como baseia-se numa “blindagem”26 de classes, ou seja,
urgentes. Assim, para ele, “a densidade ilhada é o na criação de uma comunidade “entres iguais”,
ideal”, e as formas habitacionais seriam soluções apartada do convívio da maioria dos cidadãos,
próprias das dinâmicas de uma cidade. negando o espaço da pólis. Essa solução, no en-
Pensar sobre os condomínios fechados e o tanto, não consegue romper as barreiras das desi-
processo de verticalização das favelas em Salva- gualdades que marcam o cotidiano urbano, já que
dor, segundo essa perspectiva, significa entender “os mundos cerrados” se tocam ou se tangenciam,
Salvador como uma metrópole coorporativa frag- aprofundando uma crise urbana cívica e gerando
mentada, como analisa Santos (2000). Essa ideia uma “sociedade incivil” (Donzelot, 1999), marcada
da fratura é, sem dúvida, relevante, e a segregação por distâncias e fraturas sociais imensas e subme-
espacial da cidade em ilhas e guetos é uma evi- tida a normas frágeis de regulação pública.

CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 131-146, Jan./Abr. 2012


dência indiscutível. É nesse sentido que o fenômeno do “urba-
No entanto, esses “mundos cerrados” se nismo de afinidade” implica novos horizontes
articulam e se relacionam, mesmo que indiretamen- analíticos, cabendo estudá-lo a partir de formas de
te. Independentemente da forma segmentada de sociabilidade que permitam ultrapassar as visões
apropriação física, esses “muros e mundos cerra- dicotômicas ou polarizadas dos espaços apartados,
dos” se articulam em vários âmbitos: nas vivências buscando-se observar como o padrão de ocupação
do cotidiano, nos mecanismos de distinção sim- arquitetônica e espacial influencia as novas rela-
bólica, nas formas de subsunção implícitas às re- ções sociais e cívicas, tecendo os fluxos da socia-
lações de trabalho, nas relações sociais de conví- bilidade contemporânea, inclusive expressa na
vio, no usufruto das áreas públicas da cidade, na negação desse convívio.
circulação e no fluxo das mercadorias dos quais a Frente à volatilidade do mundo contempo-
moradia e os bens de consumo são parte. Assim, râneo, marcada pela falência da dimensão do cole-
ao invés da imagem de harmonia, que pode estar tivo e do espaço público compartilhado, e à pró-
implícita nos novos padrões de sociabilidade coti-
26
diana analisados, o conflito é uma condição in- Como metáfora referente à inovação feita a veículos
utilizados pelas elites em razão dos riscos da violência
trínseca entre os “muros”. urbana.

143
JARDINS DO ÉDEN: Salvador, uma cidade global-dual

pria fragilidade da ação pública na regulação do que os embates opõem a dimensão da cidadania
espaço citadino, esses fenômenos de segregação política à cidadania civil, pela negação aos citadi-
socioespacial das cidades contemporâneas repre- nos do direito democrático à cidade. Assim, a se-
sentam formas de pacificação simbólica e ideológi- gregação espacial não se restringe a uma polariza-
ca aplicadas “aos iguais” e efetivadas em formas ção e uma dicotomia dos espaços entre ricos e
coercitivas de segurança e regulação privada, o que pobres na cidade, mas supõe a forma histórica de
transforma o dilema de uma cidadania civil em constituição do espaço público da pólis, profun-
um problema de ordem pública. damente desigual e marcado pela ausência efetiva
Essas novas formas do viver coletivo, como do Estado na regulação da coisa pública. É entre
fenômeno de blindagem social, ultrapassam a pers- as formas distintas de apropriação do espaço pú-
pectiva de solução para a interação entre classes. blico desregulado pelo mercado e as estratégias de
Na abordagem assumida neste artigo, a busca pelo acesso ao direito de moradia dos citadinos que se
“igual”, como estratégia de reafirmar o diferente observa uma tendência crescente de privatização das
(implícita nas estratégias do mercado para as clas- áreas públicas, como resultado dos novos arranjos
ses médias e altas), representa uma tentativa de e táticas das forças sociais e de mercado na solução
“pacificação” de forças ativas “contrárias” e mutu- da vivência pública da urbe contemporânea.
amente ameaçadoras, pela inibição do acesso via
muros simbólicos, numa demonstração do poder
(Recebido para publicação em 01 de janeiro de 2011)
interno desses segmentos. Assim, é pela ameaça
(Aceito em 20 fevereiro de 2012)
explícita do “estranho” e o reconhecimento da for-
ça adversária que o equilíbrio social do convívio,
nas cidades, é transformado em questão de segu- REFERÊNCIAS
rança pública.
Nessa perspectiva, a multiplicação dos con- AMORIM, Luis; LOUREIRO, Cláudia. Dize-me teu nome,
tua altura e onde moras e te direi quem és: estratégias de
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27
BOYER, M. Chistine. Ciudades em venta: la
O caráter estratégico atribuído a essas ações pode ser comercialización de la história em el South Street Seaport.
exemplificado pela Teoria dos Jogos, não apropriada como In: SORKIN, Michael. Variaciones sobre um parque
abordagem deste texto, mas como linha tática dos atores temático. La nueva ciudad americana y el fin del espacio
do mercado, que atuam como jogadores, com o objetivo público. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2004.
de alcançar o melhor retorno. Nessa linha, cabe a ação de
intimidação que, quando adotada pelas partes envolvi- BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de janeiro:
das, pode levar à anulação de forças – não pela subordi- Editora Bertrand Brasil S.A., 1989. _______. Efeitos de
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JARDINS DO ÉDEN: Salvador, uma cidade global-dual

THE GARDENS OF EDEN: Salvador, a dual LES JARDINS DE L’ÉDEN: Salvador, une ville
global city mondiale-plurielle

Any B. Leal Ivo Any B. Leal Ivo

This article analyses the tendency of Cet article analyse la tendance à la fragmentation
fragmentation in cities caused by the expansion of des villes avec l’expansion des copropriétés fermées
secure private condominiums that act as a et fortifiées, “simulacres” qui remettent en question
“simulacrum”, challenging city policies and les politiques des villes et le modèle de citoyenneté
citizenship patterns in contemporary cities. The civile des villes contemporaines. On retrouve dans
text revolves around three contemporary urban ce texte trois vecteurs de structuration urbaine
structure forces (the private condos, gentrification contemporaine (les copropriétés fermées, la
and the verticalization of slums) to point out how gentrification et la verticalisation des favelas). On
advertising strategies activate class distinction and y observe comment les stratégies de marketing
security devices, thus setting rules of selective so- mobilisent des dispositifs de sécurité et de
cial interaction between peers in private spaces, distinction de classes qui déterminent des normes
thereby strengthening the private and forceful path de sélection pour vivre entre personnes de même
of public order as an answer to the crisis in niveau dans ces espaces privés. Ceci renforce les
contemporary cities. By studying the architectural moyens coercitifs et privés de l’ordre public pour
shapes of such “closed communities”, whose essayer de régler la crise des villes contemporaines.
aesthetic style has been imported, and the symbolic Basé sur l’observation des formes architecturales
and communication strategies used by real-estate des “communautés fermées”, art plastique importé,
ventures in Salvador, the article shows the denial et des stratégies symboliques et de communication
of the city as a public space of social interaction, implantées par les entreprises de construction à
thus being a reflection of the private solutions Salvador, l’article démontre combien la ville est
applied to the contemporary city crisis within déniée en tant qu’espace public de convivialité,
Globalisation. reflet de solutions privées pour faire face à la crise
des villes contemporaines dans le contexte de la
mondialisation.

KEY-WORDS: city, architecture, spatial segregation, MOTS-CLÉS: ville, architecture, ségrégation spatiale,
closed condominiums. copropriétés fermées.
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 131-146, Jan./Abr. 2012

Any Brito Leal Ivo – Doutoranda pelo Programa em Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal da Bahia-UFBA. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA. Tem
especialização em Comunicação e Marketing Promocional. Foi Assessora da Secretaria de Planejamento da
Prefeitura Municipal de Salvador. Integra o grupo de pesquisa Chronos, na linha de estudos sobre Patrimônio
e Mercado. Suas áreas de interesse são: cidade, arquitetura, espaço público, patrimônio cultural, comunicação
e marketing. Nessas temáticas, publicou recentemente: Quanto vale a venda do invendável?... em obra
coletiva organizada por Rotman e Castells. Patrimonio y cultura en América Latina (Guadalajara-México:
Acento Editores, 2011) e Una nueva copa en un nuevo país [...]. Revista Bitácora Urbano Territorial (Bogotá-
Co, v.18, n.1, p.39-54, ene./jun. 2011).

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