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Este artigo analisa a tendência de fragmentação das cidades, a partir da expansão de condomí-
nios fechados e fortificados, como ‘simulacros’ que desafiam as políticas da cidade e o padrão
de cidadania civil das cidades contemporâneas. O texto resgata três vetores de estruturação
urbana contemporânea (condomínios fechados, a gentrificação e a verticalização das favelas),
observando como as estratégias de marketing mobilizam dispositivos de segurança e de distin-
ção de classes, o que determina normas seletivas de convívio entre iguais, no espaço privado,
reforçando a via coercitiva e privada da ordem pública, como encaminhamento para a crise nas
cidades contemporâneas. Com base no exame da forma arquitetônica de “comunidades fecha-
das’, plasticamente importada, e das estratégias simbólicas e de comunicação mobilizadas
pelos empreendimentos imobiliários em Salvador, o artigo demonstra a negação da cidade
como espaço público de convívio, um reflexo das soluções privadas para a crise das cidades
contemporâneas, no contexto da globalização.
PALAVRAS-CHAVE: cidade, arquitetura, segregação espacial, condomínios fechados.
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Dito de outra forma: o sentimento de inse- tuem espaços “fantasmagóricos”, como um fenô-
gurança generalizado nos grandes centros urbanos meno em expansão, conforme analisa Giddens
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tem levado as classes médias e altas a buscarem Termo que significa, segundo Ritzer (2002), a aplicação de
princípios, como busca da máxima eficiência, exatidão,
espaços protegidos, oferecidos pelo mercado imo- semelhança, similaridade, encadeamento, homogeneidade
e controle absoluto das cadeias produtivas típicas dos
biliário como garantia de tranquilidade, harmonia restaurantes fast-food que, gradativamente, são incorpo-
rados a outros setores produtivos, como à cidade.
e bem estar. Essa tensão social permanente e o sen- 10 Processo que toma os parques temáticos da Diney como
timento de insegurança ensejam a formação de “si- referencial para caracterizar os novos modelos estratégi-
cos urbanos (Brayman, 1997) na tematização das cida-
mulacros” de cidades (cidades idealizadas) que des contemporâneas, submetidas à estratégia do
marketing e o espetáculo, na criação de vivências agradá-
desafiam a utopia do espaço público e político das veis e efêmeras.
cidades. Nesse sentido, o setor imobiliário explo- 11 Adotamos essa noção para qualificar a transformação
da vida e do cotidiano em espetáculo (Debor, 1997).
ra a experiência urbana filtrada pela segurança 12 O planejamento estratégico das cidades, como é analisa-
como produto de mercado. A “cidade idealizada” do por Jerome Kaufman e Harvey Jacobs (1987), envol-
ve a transposição de princípios empresariais na organi-
cária e irregular. Favela refere-se à área de moradia popu- zação e no planejamento urbano. Nessa concepção de
lar que compõe o tecido urbano, mas que não segue planejamento, as cidades são tomadas como polos de
padrões de ocupação definidos pelo Estado ou pelo mer- prestação de serviços e geração de renda, que competem
cado. O termo é originário desses assentamentos no Rio entre si na busca por investimentos, nos quais operam
de Janeiro. Em Salvador, usam-se mais as expressões o marketing das cidades e os marcos simbólicos do local,
“invasão” e “ocupação”. influenciando as formas de organização da vida.
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(1991),13 legitimando a segregação espacial com Em realidade, essas fortalezas “urbanas” po-
fortes campanhas publicitárias que exploram a re- deriam ser consideradas espaços disciplinadores,
lação com o lugar, o valor da vida comunitária, da da perspectiva de um panoptismo (Foucault, 2010,
harmonia e da integração com a natureza, a p.204), como um mecanismo generalizável de
tranquilidade e a segurança, opondo-se ao “outro” tecnologias de vigilância e controle a partir de uma
ameaçador genérico, ou seja, a sociedade real, como arquitetura e um ordenamento do espaço que re-
caracterizam Blakely e Snyder (1997). Assim, a presentam modos eficientes de controle social,14
diversidade e o imprevisto apresentam-se como com sistemas de interligação e construção de estru-
perigos a serem evitados e constituem-se em princí- turas urbanas espaciais, que conectam as “ilhas de
pios de organização espacial e social dos “lugares” iguais” – passarelas, túneis, estradas privatizadas,
nas cidades. Esses espaços segregados dos condo- galerias subterrâneas, centros comerciais, etc. – que
mínios fechados, shopping centers, novos “bairros”, foram justificados inicialmente pelas baixas tem-
no Brasil, desafia a noção de bens públicos e de peraturas e variações climáticas em cidades como
domínio público. Para Tereza Caldeira (2000), esses Minneapolis e Montreal. Na prática, essas estru-
condomínios fortificados contribuem para uma “de- turas possibilitam o controle dos transeuntes, a
mocracia disjuntiva” no Brasil, cujo paradoxo si- seleção de quem transita e dos que podem ter aces-
tua-se no desencontro ou na separação de uma ci- so, transformando-se em uma rede elitizada de
dadania civil, num contexto de expansão da demo- controle que nega e produz a “não vivência” da
cracia política, que se expressa nas contradições do cidade plural, diversificada, e a utopia de “fazer
espaço público, fragmentado e segregado. sociedade”, no dizer de Donzelot (1999). Para os
Os espaços autossegregados e autorregulados segmentos usuários desses vetores, é possível
recriam e vendem a falsa utopia de uma “comuni- mover-se, circular, ir e vir, sem o risco das ruas.
dade entre iguais”, afastada da maioria, na forma Por consequência, a cidade real torna-se o lugar dos
de um urbanisme affinitaire (urbanismo de afini- “excluídos”15 e da exclusão, lócus das vidas huma-
dades), como qualifica Donzelot (1999). As cria- nas não incorporadas às novas formas produtivas
ções temáticas de uma urbanidade utópica e a cons- ou de consumo urbano contemporâneo.
trução de espaços para iguais avançam na consti- Para Beck (2010), nessa “sociedade de ris-
tuição de estruturas de circulação “seguras”: as co”, essas novas dinâmicas negam a cidade como
“cidades análogas”, como define Boddy (2004). lugar de troca e embates. Os novos empreendimen-
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serviços de segurança privada:16 todas as saídas, coletivos, são transformados em espaços pesso-
entradas e espaços abertos internos são vigiados ais privativos. Por exemplo: o número de suítes
continuamente. As condutas dos moradores são (em alguns empreendimentos a suíte máster conta
preestabelecidas por normas rigorosamente segui- com dois closets, dois sanitários, etc.); o núme-
das. A perda de liberdade e o controle não se limi- ro de aparelhos de TV e os espaços de estudo
tam aos espaços abertos e comuns, mas influenci- são individuais; os quartos apresentam, cada vez
am e se estendem também à esfera da intimidade e mais, layouts individualizados, etc. Essa
da vida privada, estabelecendo condutas e “estilos individualização dificulta o convívio e o embate
de vida” desejáveis.17 Surgem, então, novas cate- das diferenças, inclusive no interior das residên-
gorias do morar: “um clube em casa”; “vida de cias (casas ou apartamentos), reorganizando o
interior na capital”; “condomínio-clube”; “elegân- padrão de sociabilidade intrafamiliar.
cia revolucionária”; “recanto na agitação”, etc. Esse “estilo de vida contemporâneo”, mar-
A legitimação desse novo modelo de mora- cado pelo controle e atomização, estrutura-se es-
dia é reforçada e mediada pelas estratégias de co- pacialmente para acompanhar as transformações
municação e vendas, que se constituem, então, em simbólicas e formais das unidades habitacionais,
elementos estratégicos fundamentais da constru- com expansão e sofisticação das áreas comuns con-
ção simbólica e distintiva da unidade residencial e troladas. Novas áreas são criadas: espaço gourmet,
dos seus futuros habitantes: brinquedoteca, salas de estudo coletivas, discote-
a) Os espaços das áreas residenciais dos aparta- cas, sala de jogos, etc., afastando o espaço domés-
mentos, apesar de manterem a distinção funcio- tico do “estranho” e garantindo a rotina doméstica
nal (área de serviço, área intima e áreas de estar), preestabelecida e conhecida. Não há invasão ou
são continuamente reduzidos, impondo-se um surpresas no âmbito do privado.
estilo de vida “moderno” e prático, com as faci- O viver, trabalhar, consumir e recriar, no
lidades tecnológicas. A antiga área destinada à mesmo lugar, esse “estilo de vida prático e con-
“dependência de empregada” dá lugar ao “quar- temporâneo” concretiza-se nesses novos comple-
to reversível”, possibilitando a adaptação da mo- xos arquitetônicos, novos empreendimentos, apa-
rada às diversidades familiares. Em alguns ca- rentemente dotados de autonomia e independên-
sos, tanto o quarto quanto o sanitário de serviço cia em relação à cidade real. Esse processo obede-
são subtraídos, pelos vestiários e (ou) sanitários ce a escalas, além das transformações internas na
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de serviço comuns ao condomínio e fora da uni- unidade de moradia e da criação de espaços cole-
dade de morada (espaços justificados, inclusi- tivos de lazer, os serviços oferecidos assumem outra
ve, pela segurança, já que servem de barreiras e dimensão e escala. São os bairros ou cidades cria-
evitam o trânsito de sacolas e volumes pessoais das (complexos com áreas residenciais, comerci-
por áreas privadas e coletivas). ais e shopping centers, escolas e faculdades), ven-
b) Além da redução espacial das unidades, esse dendo-se a ilusão e o sonho do bem estar, confor-
novo estilo de vida induz, paradoxalmente, à to, distinção e segurança total, numa vida quase
individualização e atomização do sujeito. Nesse que apartada da cidade real.
processo, o respeito à “individualidade” e à “di-
ferença” dos espaços de convívio familiar, antes
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Para Deleuze (2000), a crise dos mecanismos de VENDE-SE UM “DELÍRIO”
confinamento (sistemas fechados) que caracterizam a
sociedade disciplinar é o que dá espaço às novas forças
“ultrarrápidas de controle ao ar livre”. Em lugar dos Na criação desse simulacro do desejado e
moldes disciplinares, as modulações autodeformantes,
dinâmicas, flexíveis e mutáveis a cada instante. adquirível, inserido no padrão de consumo de
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“Estilos de vida”, como reflexo da disneyficação da massa, a propaganda é peça-chave: inventa mun-
sociedade, quando a própria vida transforma-se em tema,
espetáculo e produto para a venda. dos inexistentes e autorreferidos. A partir das pe-
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ças publicitárias, a cidade real desaparece, torna- etc. –, ou seja, o simulacro superpõe-se à realidade.
se um “vazio”. O uso simbólico de imagens a ser- Outra estratégia simbólica utilizada é a no-
viço dos megaempreendimentos imobiliários exor- meação desses empreendimentos, também objeto
ciza a cidade real. A sua existência aparece ape- de tratamento da imagem e idealização de um mun-
nas, e de modo indireto, como suposta ameaça à do à parte (Amorim; Loureiro, 2010), que nega o
segurança do lugar, a partir da qual se fortalece o real. Em sua maioria esses condomínios recebem
mito da “cidade aterrorizadora”, em contraposição nomes estrangeiros,18 sem referência local, acres-
ao que o empreendimento oferece: o ideal de paci- centando status e capital simbólico19 distintivos que
ficação e a tranquilidade garantidos pelos espaços reforçam a ideia de harmonia em contraposição à
fortificados de moradia e lazer. diversidade existente na sociedade urbana.
Aqui, não apenas as peças publicitárias, Residence, Club, Resort, Ville ou Villa são recor-
mas, principalmente, o serviço de relações públi- rentes na denominação desses complexos, assim
cas e outros meios de divulgação ampliam as es- como os marcadores simbólicos de apelo ecológi-
tratégias de marketing. Por exemplo, as publica- co: Brisa, Horto, Park.
ções específicas, encartes e artigos ou matérias pa- Ademais, outras ferramentas de venda são
gas, muitas vezes, trazem entrevistas e (ou) depoi- utilizadas. Os apartamentos decorados e as estra-
mentos que relatam índices sobre a violência e o tégias ilusórias dos equipamentos, como os armá-
“caos urbano”, o que fortalece a indústria de segu- rios com pouca profundidade, mobiliário reduzi-
rança, com as fórmulas espaciais de moradia, a do, iluminação especial, criação de paisagem futu-
exemplo dos condomínios. As estratégias de ven- ra etc., são cada vez mais usados nas estratégias de
da, as peças publicitárias e as imagens adotadas e venda. O “jogo de espelhos” dissimula as peque-
exploradas são mediações fundamentais do sonho nas áreas, permitindo a ampliação do ambiente. As
e do desejo da distinção. Mapas de localização, figuras do “arquiteto”, “decorador” e profissionais
plantas decoradas, perspectivas simuladas e ani- de marketing agregam valor e status, legitimando
mações possibilitam a manipulação da realidade, esses espaços como sonho das classes médias. Esse
na recriação de cenários simulados, distantes da sonho é objetivado (como experiência real) nos
cidade real: “vende-se um delírio”. modelos de apartamentos decorados. O desejo e a
A cidade real torna-se elemento subjacente promessa passam ao plano da experiência, contri-
à “recriação da localização” desses empreendimen- buindo para associar diretamente o consumidor ao
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dadãos livres e iguais em direito, passa a repre- res econômicos diversos, com a substituição dos
sentar o lugar da violência, da barbárie e, como tal, antigos moradores e ocupantes e a consequente va-
é banida das vivências humanas desses grupos de lorização dos imóveis após anos de um processo de
renda mais elevada, mediante um mercado imobi- depreciação e desvalorização, como apresenta a
liário que garante o sonho de segurança e da dis- matéria “De volta ao futuro”, no caderno especial
tinção simbólica e espacial. Correio Negócios, do jornal o Correio da Bahia, de
26 de outubro de 2007, cuja principal manchete
traz foto do bairro do Comércio como área para in-
NOVOS VETORES DA ARQUITETURA EM vestimentos do futuro. Gradativamente, a área cen-
SALVADOR, ELEMENTOS DE SEGREGAÇÃO tral da cidade vem despertando interesse de inves-
ESPACIAL tidores, tanto do setor da construção civil como do
setor de entretenimento e turismo, abrigando res-
Com quase 3 milhões de habitantes e tercei- taurantes sofisticados e polo náutico. Ademais, conta
ra capital do Brasil, Salvador, apresenta, segundo com alguns novos empreendimentos de luxo, como
Souza (2008), um déficit habitacional de mais de anuncia um deles: “um transatlântico permanente
100 mil unidades. Conta aproximadamente com ancorado na Baia de Todos os Santos”.
apenas 14% de áreas aptas a novas ocupações Com relação ao ainda incipiente processo
habitacionais. De acordo com Waiselfisz, no Mapa de gentrificação no bairro do Comércio, observa-
da Violência (2011), a capital do estado da Bahia é se, ainda, a implantação de empreendimentos ho-
também a terceira cidade em número de homicídi- teleiros, alguns de caráter polêmico.22 No entanto,
os, que cresceu 308,3%, de 1998 a 2008. De 2000 esses processos ainda não representam uma ten-
a 2010, essa mesma taxa apresentou um cresci- dência predominante das dinâmicas de produção
mento de aproximadamente 418%. A taxa de ho- espacial e territorial da cidade de Salvador. A
micídios, entre jovens de 15 a 24 anos, atingiu, no verticalização das favelas e a criação de novos con-
período de 1998 a 2008, 435,1% de crescimento.20 domínios fechados constituem tendências domi-
Num quadro de déficit habitacional e aumento nantes da reestruturação e produção do espaço
da violência, a cidade apresenta dois vetores de soteropolitano contemporâneo.
estruturação do espaço urbano, com temporalidades O crescimento do mercado imobiliário de
diferentes:21 as favelas, ou ocupações espontâneas, Salvador surpreende. No primeiro semestre de 2008,
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e os condomínios fechados. Ambos se destacam o número de imóveis vendidos supera todo o ano
por explicitar as tensões sociais que caracterizam a de 2007, expressando um crescimento de 153% nas
ocupação desigual do espaço da cidade e as contra- vendas e contabilizando a comercialização de 7.269
dições entre a dimensão do público e do privado. novas unidades.23 Nessa expansão imobiliária,
Uma terceira vertente, o processo de gentrificação destaca-se, nos últimos anos, em Salvador, o mo-
do centro, que já mostra tendências de expansão, é delo de condomínios fechados, verticalizados,
ainda incipiente: compreende a revitalização das voltado para os segmentos das classes médias e
áreas degradadas, substituídas por novos investi- altas. Esses empreendimentos, na prática, enca-
mentos, o que pode vir a se constituir em mais um minham uma solução habitacional que envolve uma
processo de segmentação da cidade. privatização do espaço público da cidade, na me-
Nessa linha, as áreas centrais do bairro do dida em que, em muitos deles, áreas legalmente
Comércio e da Av. de Contorno vêm recebendo, destinadas a equipamentos urbanos e comunitári-
nos últimos anos, atenção e investimentos de seto- 22
CORREIO DA BAHIA, 27 de março de 2008. O caráter
polêmico resulta do fato de o projeto ferir o gabarito
20
Dados extraídos de Waiselfisz, do Mapa da violência (2011). estabelecido para área e ainda prever a construção de
21
Para a análise da segmentação socioeconômica da me- uma passarela que articula dois prédios.
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trópole Salvador, ver Carvalho, Souza e Pereira (2004). Conforme a revista Vida Imobiliária, 2008.
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pas, walk dog, pet shop e o elemento decisivo: a perspectiva, com um cuidado: em nenhuma ima-
garantia de monitoramento 24 horas. gem a alta densidade populacional aparece. Os
O modo de oferta desses serviços, somado consumidores idealizados são registrados em ima-
a todo o aparato criado para a manutenção dos gens e fotografias à parte. Nesse simulacro, que
espaços coletivos recriados, altera as formas de nega a cidade habitada, uma “cidade cenário” é
consumo doméstico por meio de novas relações vendida e comercializada.
de trabalho e negócios, com base na terceirização Outro elemento relevante diz respeito à
de serviços e mão de obra sob o controle desses tipologia e padronização arquitetônica do empreen-
novos conglomerados residenciais. dimento, no que tange à sua implantação e às
As peças publicitárias produzidas para esse edificações. Observa-se a homogeneização de uma
novo condomínio vertical constituem um rico fórmula e um modelo que se reproduz em outros
material que oferece elementos para se repensar a empreendimentos, inclusive em outras cidades. Pode-
relação entre empreendimento e cidade. Primeira- se denominar essa arquitetura de “neoneoclássica”,
mente, essas peças usam a imagem de atores de ou de um “neoclássico contemporâneo” asséptico:
grandes emissoras de televisão. No caso em análi- um apelo simbólico na tentativa de enobrecimento
se, o ator que aparecia em todas as chamadas do do empreendimento (e de seus moradores) pelo
lançamento, interpretava, numa novela de grande uso de frontões estilizados, colunas e pé direito
audiência na TV, um empresário de sucesso, um duplo no térreo. Nas edificações, repete-se o uso
“bom moço”, amante da boa comida, que prezava de superfícies envidraçadas, com destaque, atual-
sua liberdade e a qualidade de vida. Essa aborda- mente, para o vidro verde. As cores neutras são as
gem de marketing usa formadores de opinião no mais utilizadas. No paisagismo, as palmeiras e as
apelo aos clientes de classe média. superfícies gramadas são exploradas nas composi-
Outro dispositivo utilizado na estratégia de ções, criando ambientes “harmoniosos” e limpos,
marketing é o ponto e seus eventos de venda, que favoráveis à visibilidade e, consequentemente, ao
contribuem para a espetacularização não só do controle, justificados pela garantia da segurança.
empreendimento, mas também do ato de compra, As plantas das unidades também seguem
comemorando o ingresso do novo cliente no uni- uma fórmula e padrões de áreas e espaços ampla-
verso dos “selecionados”: quando um imóvel é mente usados pelo mercado imobiliário, cuja de-
vendido, todos os corretores correm para parabe- coração tem papel decisivo na construção simbóli-
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nizar o novo morador, champanhe é servido, e uma ca de um estilo de vida. A redução dos espaços
música comemorativa é tocada. Compradores pas- internos das unidades habitacionais é compensa-
sam, então, a participar das campanhas de ven- da pelas “enormes” áreas de convívio que suprem
das, com depoimentos, declarando as razões que o déficit de área privativa e contribuem para a cons-
os levaram a adquirir o imóvel. Suas motivações trução de capital simbólico desse novo conceito
são exemplares da possibilidade do sonho. Eles de moradia, ao tempo em que possibilitam maior
são retratados com suas famílias, festejando o so- privacidade da unidade residencial.
nho realizado. Através da imagem de comprado- O partido urbanístico se repete nesses em-
res – pessoas reais e comuns –, demonstra-se a preendimentos: praça central com destaque para a
viabilidade do acesso, como possibilidade a todos, área da piscina, na sua grande maioria em forma
desde que apresentem perfil econômico similar. ameboide, circundada pelas áreas de convívio, de
Nas peças impressas, não há a divulgação lazer e os espaços verdes. O “deck molhado” ou a
das plantas baixas das edificações (disponíveis “prainha” é peça obrigatória no complexo de pis-
apenas no site e no stand de vendas). Toda ênfase cinas. A raia para prática de esporte e de uma vida
é dada às áreas verdes, áreas abertas e de lazer. A saudável também se torna diferencial no mercado.
representação gráfica desses espaços é feita em Entre os espaços privados e o exterior, instalam-se
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os espaços de consumo e lazer, como espaços co- dois tipos de abordagem legitimam o empreendi-
letivos. Entre o simulacro e a cidade real, o merca- mento: de um lado, o uso de personagens públicos
do se instala na forma de serviços. e “celebridades” agrega capital simbólico, numa
Seguindo esse mesmo padrão arquitetônico, mensagem de reconhecimento, status, credibilidade,
em que a moradia é convertida em espaço de servi- visibilidade etc.; de outro, ao explorar o depoi-
ço, a negação da cidade real é reforçada. Um novo mento e a imagem das pessoas comuns, a estraté-
empreendimento articula as funções de residência, gia de venda indica que a “distinção” é um bem
Shopping, Corporate, criando e vendendo um bair- possível, acessível a “outros”, iguais.
ro: “Um bairro único porque tem tudo de bom num Além da estandardização das abordagens
único bairro”, diz a mensagem publicitária. Ou seja, comunicacionais e publicitárias, observa-se, tam-
o empreendimento oferece total autonomia em rela- bém, uma padronização arquitetônica tanto em re-
ção à cidade: desde a moradia até as áreas de traba- lação ao formato do condomínio verticalizado,
lho, educação e lazer num “circuito exclusivo e pri- como, inclusive, à massificação da própria produ-
vado” com garantia de segurança e monitoramento ção arquitetônica, como padrão. É o que chamo
24h. por dia. Cria-se um “novo bairro” e inaugura- metaforicamente, neste texto, de uma Mac-arquite-
se um novo vetor de expansão para a cidade, loca- tura,25 ou seja, um modelo de arquitetura global
lizado nas margens da BR 324, na saída da cidade. tematizada para atender a um mercado seletivo, o
Esse empreendimento é anunciado como “O que ratifica o condomínio vertical como solução para
mais completo empreendimento de Salvador”. Em as tensões sociais das cidades, a exemplo dos pro-
um terreno de 340.000m2, são 19 edifícios, 3 torres jetos arquitetônicos analisados em diversas partes
comerciais, um hotel, Colégios, e Shopping em do mundo, como Dubai, Goiânia e Salvador.
130.000m2 de área verde e jardins preservados, a 2 Esses empreendimentos, reproduzidos em
minutos do centro, com acesso pelas principais ave- diversas cidades do mundo (Acervo, em São Pau-
nidas e uma completa infraestrutura de serviços e lo; Eden Gardens, em Dubai, Sky Life, em Goiânia;
lazer.” Sem diferença nas estratégias de venda (parti- Le Parc, Salvador, entre outros), ilustram um dos
cipação de atores/personagens de destaque como for- vetores de ocupação e produção de arquitetura
madores de opinião, agregando legitimidade e fortificada nas cidades contemporâneas. Demons-
credibilidade ao empreendimento) ou na arquitetura tra, ainda, a mundialização desses processos como
proposta, esse novo empreendimento, similar a ou- produtos padronizados da estruturação e consti-
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ção de baixa renda, legitimadas pelo Estado, a exem- absoluta precariedade, aparece como estratégia de
plo da expansão de financiamentos e programas de acesso à moradia e forma de resistência diante da
“urbanização de favelas”, comuns e defendidos a ausência de políticas públicas e sociais. Pode-se
partir da década de 80 e analisados por Souza (2008). concluir, portanto, que as diferenças sociais sobre
O processo de expansão vertical de favelas é o espaço construído da cidade resultam da forma
mais observado nas áreas centrais e(ou) inseridas histórica de assentamento das classes sociais da
no tecido urbano consolidado, sem possibilidades cidade desigual, pela ausência de espaço público
de expansão territorial, próximas aos serviços ur- regulado e pela expansão de um mercado imobili-
banos, assim como do “mercado de trabalho”. Se- ário associado a um novo padrão de moradia
gundo Sampaio (2001), a dinâmica de verticalização fortificada que reproduz complexos arquitetônicos
e expansão das áreas informais obedece a uma ló- integradores de habitação, serviços, controle e se-
gica própria. A superposição de lajes é o princípio gurança, determinando formas de convívio apar-
de expansão e ampliação do imóvel, e o último tadas para distintos segmentos sociais.
piso passa a desempenhar e abrigar as antigas fun- Da mesma forma como as moradias
ções dos quintais. Nesse caso, a articulação entre fortificadas de classe média estabelecem normas
pisos é interna. Mas essa articulação pode ser feita privadas de regulação do convívio no interior dos
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condomínios, a ocupação das áreas de moradia po- Entendendo que a dimensão do conflito é
pular, longe da regulação pública da cidade, também um elemento intrínseco à constituição das cida-
impõe sistemas de vigilância e normas de conduta des, Sennett (1994) considera que uma comunida-
entre “os de dentro” e os “de fora”: leis severas são de multicultural é uma comunidade conflitante, e
impostas, e a vigilância aos estranhos e aos “de den- o citadino é ativo e capaz de lidar com as diferen-
tro” também é constante, na ausência de formas le- ças para sobreviver. Assim, as comunidades ilu-
gais de regulação do espaço público da cidade. soriamente fechadas, seja por iniciativas do mer-
cado, seja como resultado de soluções informais,
perderiam eficácia no enfrentamento das tensões
CONSIDERAÇÕES FINAIS sociais. Portanto, a crença nesses modelos urba-
nos cresce de modo inversamente proporcional à
Para Koolhaas (2007), na cidade genérica – fragilidade do espaço público. Ou seja, assiste-se
marcada por grandes e contínuas transformações, à falência da cidade como pólis, frente à existência
onde a diversidade é diluída pela recorrência à di- dessas formas segregadas de apropriação do espa-
ferença –, as questões habitacionais não constituem ço urbano.
um problema. Para esse autor, ou elas foram resol- A solução para as fraturas e tensões sociais
vidas no passado, ou são resolvidas pelo mercado, sob a forma de condomínios fortificados, como
ou, simplesmente, são deixadas ao azar. Ou seja, solução para a constante insegurança e o medo,
não entram na pauta de questões reconhecidas como baseia-se numa “blindagem”26 de classes, ou seja,
urgentes. Assim, para ele, “a densidade ilhada é o na criação de uma comunidade “entres iguais”,
ideal”, e as formas habitacionais seriam soluções apartada do convívio da maioria dos cidadãos,
próprias das dinâmicas de uma cidade. negando o espaço da pólis. Essa solução, no en-
Pensar sobre os condomínios fechados e o tanto, não consegue romper as barreiras das desi-
processo de verticalização das favelas em Salva- gualdades que marcam o cotidiano urbano, já que
dor, segundo essa perspectiva, significa entender “os mundos cerrados” se tocam ou se tangenciam,
Salvador como uma metrópole coorporativa frag- aprofundando uma crise urbana cívica e gerando
mentada, como analisa Santos (2000). Essa ideia uma “sociedade incivil” (Donzelot, 1999), marcada
da fratura é, sem dúvida, relevante, e a segregação por distâncias e fraturas sociais imensas e subme-
espacial da cidade em ilhas e guetos é uma evi- tida a normas frágeis de regulação pública.
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pria fragilidade da ação pública na regulação do que os embates opõem a dimensão da cidadania
espaço citadino, esses fenômenos de segregação política à cidadania civil, pela negação aos citadi-
socioespacial das cidades contemporâneas repre- nos do direito democrático à cidade. Assim, a se-
sentam formas de pacificação simbólica e ideológi- gregação espacial não se restringe a uma polariza-
ca aplicadas “aos iguais” e efetivadas em formas ção e uma dicotomia dos espaços entre ricos e
coercitivas de segurança e regulação privada, o que pobres na cidade, mas supõe a forma histórica de
transforma o dilema de uma cidadania civil em constituição do espaço público da pólis, profun-
um problema de ordem pública. damente desigual e marcado pela ausência efetiva
Essas novas formas do viver coletivo, como do Estado na regulação da coisa pública. É entre
fenômeno de blindagem social, ultrapassam a pers- as formas distintas de apropriação do espaço pú-
pectiva de solução para a interação entre classes. blico desregulado pelo mercado e as estratégias de
Na abordagem assumida neste artigo, a busca pelo acesso ao direito de moradia dos citadinos que se
“igual”, como estratégia de reafirmar o diferente observa uma tendência crescente de privatização das
(implícita nas estratégias do mercado para as clas- áreas públicas, como resultado dos novos arranjos
ses médias e altas), representa uma tentativa de e táticas das forças sociais e de mercado na solução
“pacificação” de forças ativas “contrárias” e mutu- da vivência pública da urbe contemporânea.
amente ameaçadoras, pela inibição do acesso via
muros simbólicos, numa demonstração do poder
(Recebido para publicação em 01 de janeiro de 2011)
interno desses segmentos. Assim, é pela ameaça
(Aceito em 20 fevereiro de 2012)
explícita do “estranho” e o reconhecimento da for-
ça adversária que o equilíbrio social do convívio,
nas cidades, é transformado em questão de segu- REFERÊNCIAS
rança pública.
Nessa perspectiva, a multiplicação dos con- AMORIM, Luis; LOUREIRO, Cláudia. Dize-me teu nome,
tua altura e onde moras e te direi quem és: estratégias de
domínios fechados nas cidades, como solução para marketing e a criação da casa ideal. Parte 1, 2. Vitruvius.
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27
BOYER, M. Chistine. Ciudades em venta: la
O caráter estratégico atribuído a essas ações pode ser comercialización de la história em el South Street Seaport.
exemplificado pela Teoria dos Jogos, não apropriada como In: SORKIN, Michael. Variaciones sobre um parque
abordagem deste texto, mas como linha tática dos atores temático. La nueva ciudad americana y el fin del espacio
do mercado, que atuam como jogadores, com o objetivo público. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2004.
de alcançar o melhor retorno. Nessa linha, cabe a ação de
intimidação que, quando adotada pelas partes envolvi- BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de janeiro:
das, pode levar à anulação de forças – não pela subordi- Editora Bertrand Brasil S.A., 1989. _______. Efeitos de
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THE GARDENS OF EDEN: Salvador, a dual LES JARDINS DE L’ÉDEN: Salvador, une ville
global city mondiale-plurielle
This article analyses the tendency of Cet article analyse la tendance à la fragmentation
fragmentation in cities caused by the expansion of des villes avec l’expansion des copropriétés fermées
secure private condominiums that act as a et fortifiées, “simulacres” qui remettent en question
“simulacrum”, challenging city policies and les politiques des villes et le modèle de citoyenneté
citizenship patterns in contemporary cities. The civile des villes contemporaines. On retrouve dans
text revolves around three contemporary urban ce texte trois vecteurs de structuration urbaine
structure forces (the private condos, gentrification contemporaine (les copropriétés fermées, la
and the verticalization of slums) to point out how gentrification et la verticalisation des favelas). On
advertising strategies activate class distinction and y observe comment les stratégies de marketing
security devices, thus setting rules of selective so- mobilisent des dispositifs de sécurité et de
cial interaction between peers in private spaces, distinction de classes qui déterminent des normes
thereby strengthening the private and forceful path de sélection pour vivre entre personnes de même
of public order as an answer to the crisis in niveau dans ces espaces privés. Ceci renforce les
contemporary cities. By studying the architectural moyens coercitifs et privés de l’ordre public pour
shapes of such “closed communities”, whose essayer de régler la crise des villes contemporaines.
aesthetic style has been imported, and the symbolic Basé sur l’observation des formes architecturales
and communication strategies used by real-estate des “communautés fermées”, art plastique importé,
ventures in Salvador, the article shows the denial et des stratégies symboliques et de communication
of the city as a public space of social interaction, implantées par les entreprises de construction à
thus being a reflection of the private solutions Salvador, l’article démontre combien la ville est
applied to the contemporary city crisis within déniée en tant qu’espace public de convivialité,
Globalisation. reflet de solutions privées pour faire face à la crise
des villes contemporaines dans le contexte de la
mondialisation.
KEY-WORDS: city, architecture, spatial segregation, MOTS-CLÉS: ville, architecture, ségrégation spatiale,
closed condominiums. copropriétés fermées.
CADERNO CRH, Salvador, v. 25, n. 64, p. 131-146, Jan./Abr. 2012
Any Brito Leal Ivo – Doutoranda pelo Programa em Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal da Bahia-UFBA. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA. Tem
especialização em Comunicação e Marketing Promocional. Foi Assessora da Secretaria de Planejamento da
Prefeitura Municipal de Salvador. Integra o grupo de pesquisa Chronos, na linha de estudos sobre Patrimônio
e Mercado. Suas áreas de interesse são: cidade, arquitetura, espaço público, patrimônio cultural, comunicação
e marketing. Nessas temáticas, publicou recentemente: Quanto vale a venda do invendável?... em obra
coletiva organizada por Rotman e Castells. Patrimonio y cultura en América Latina (Guadalajara-México:
Acento Editores, 2011) e Una nueva copa en un nuevo país [...]. Revista Bitácora Urbano Territorial (Bogotá-
Co, v.18, n.1, p.39-54, ene./jun. 2011).
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