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PREFEITO

MARCIO LACERDA
CÂMARA INTERSETORIAL DE POLÍTICAS SOCIAIS
SECRETARIA MUNICIPAL DE POLÍTICAS SOCIAIS
SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA DE ABASTECIMENTO
SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA DE DIREITOS DE CIDADANIA
SECRETARIA MUNICIPAL ADJUNTA DE ESPORTES
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO
SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE
FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA
SECRETARIAS MUNICIPAIS DE ADMINISTRAÇÃO REGIONAl
Pensar BH/Política Social

Gestão PBH Ações afirmativas


4 Construindo a Política Municipal de Redução das 27 Cotas para negros nas universidades
Desigualdades Raciais
Trabalho
Educação
30 Os negros no mercado de trabalho do município
9 Todos iguais e todos diferentes de Belo Horizonte
12 Educação Afro/indígena: caminhos para a 35 Considerações sobre a desigualdade racial no
construção de uma sociedade igualitária mercado de trabalho da RMBH
15 “Ponha-se em seu lugar!” Relações raciais
Cultura 39 A Promoção da Igualdade Racial em tempos de
19 Quilombos Urbanos em Belo Horizonte: transformação social
as comunidades de Mangueiras e Luízes Geografia
23 O FAN da cidade 43 O Brasil Africano: população & território
Planejamento
46 Pobreza, inserção no mercado de trabalho, aspec-
tos demográficos sob a ótica do quesito raça/cor
Foto: Glênio Campregher

em Belo Horizonte

Em 2009, será
Resenha
realizada a 5ª
edição do Festival 51 As políticas públicas e a desigualdade
Internacional de racial no Brasil 120 anos após a abolição
Arte Negra (FAN)

Saúde Pensar BH/Política Social, nº 22 - maio de 2009. Belo Horizonte.


25 O aprendizado e a Prefeitura de Belo Horizonte/Câmara Intersetorial de Políticas Sociais.
1. Política Social 2. Administração Pública 3. Prefeitura de Belo Horizonte
compreensão do ser negro
CDD 323
ISSN 1676-9503

EXPEDIENTE

EDIÇÃO GERAL: CAPA:


Giselle B. Nogueira - RG 2285/MG Leandro Sávio Noronha de Lima e Marcelo Henrique Duarte, sob
Co-edição Especial Igualdade Racial: orientação de Álan Oziel da Silva Pires.
Maria das Graças Rodrigues Os autores integram o Projeto Guernica, da Secretaria Municipal Ad-
junta de Direitos de Cidadania. Criado em 1999, o Guernica realiza um
SUPERVISÃO EDITORIAL: trabalho de conscientização com jovens entre 12 e 18 anos de idade,
Jorge R. Nahas (SMPS), Carlos Alberto dos Santos (ASCOM/ com o objetivo de estimular o diálogo sobre a pichação urbana, ques-
PBH). tionando-a e buscando, com isso, levá-los a abandonar tal prática em
favor de novas ações que levem em conta a coletividade.
CONSELHO CONSULTIVO:
Bruno Lazzarotti Diniz Costa (Escola de Governo FJP), Carla
Bronzo (Escola de Governo FJP), Carlos Aurélio P. de Faria (PUC-
Minas), Cristina Almeida Cunha Filgueiras (PUC-Minas), Eleanora
Schettini M. Cunha (Nupass/UFMG), Eli Iola Gurgel (Medicina/ SECRETARIA MUNICIPAL DE POLÍTICAS SOCIAIS DA
UFMG), Joseph Straubhaar (Texas University); Marlise Matos (DCP/ PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE
UFMG), Ricardo Cardoso (Universidade do Porto/Portugal). Rua Espírito Santo, 505/4 º andar - Centro
(031) 3277-9786 Telfax: (031) 3277-9796
COLABORAÇÃO: E-mail: ps@pbh.gov.br
Luciana A. Teixeira (Direitos de Cidadania/Comacon), Rosa Vani Endereço Eletrônico: www.pbh.gov.br/politicas-sociais
Pereira (Educação), Renata Cristina Martins (SMPS).

TRADUÇÃO: IMPRESSÃO:
Português/Inglês: MJR Editora Gráfica Ltda.
Andréa Magdalena Figueira Rua Dr. Carlos Pinheiro Chagas, 138
Balneário da Ressaca - Contagem - MG
REVISÃO:
Márcio Rezende Tiragem: 2.500 exemplares
Apresentação

Por uma cidade que


garanta o direito de todos

D
esde que assumimos a Prefeitura de Belo Horizonte,
temos afirmado que uma de nossas prioridades centrais é
construir uma cidade para todos. Iniciamos nossa gestão
com cerca de cem programas sociais, todos eles volta-
dos para a promoção da cidadania e da inclusão e, em nossos primei-
ros dias de trabalho, muitos outros já foram criados.
Em relação ao tema dessa 22ª edição da revista Pensar BH/
Política Social, é importante ressaltar a criação do Conselho Munici-
pal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que colaborou com
o Executivo na formulação e implementação do Plano Municipal de
Promoção da Igualdade Racial e realizou a II Conferência Municipal de
Promoção da Igualdade Racial. O Plano é o resultado do trabalho de
mais de seis meses de discussão com diversos setores da Prefeitura
e de várias outras iniciativas realizadas nos últimos anos, entre eles, a
criação do Fórum Governamental de Promoção da Igualdade Racial,
que reúne 46 representantes de diversas secretarias. Além disso,
vamos garantir e valorizar as múltiplas manifestações das identidades
sociais e culturais dos diferentes grupos étnico-raciais que compõem
a população da cidade
Tenho certeza que a publicação dessa edição da Revista
Pensar BH/Política Social, totalmente dedicada à questão da igualda-
de racial, será a oportunidade de proporcionar o debate e a reflexão
sobre a questão em pauta. Dessa forma, além de possibilitarmos o
intercâmbio de nossas experiências, estaremos contribuindo para que
os nossos gestores reafirmem o compromisso com o desenvolvimento
de ações que contribuam, efetivamente, para a igualdade racial e a
construção de uma cidade justa, igualitária e que garanta os direitos
para todos que escolheram Belo Horizonte para viver e concretizar
seus sonhos e projetos.

Marcio Lacerda
Prefeito de Belo Horizonte

PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 3


Gestão PBH

Construindo a Política
Municipal de Redução das
Desigualdades Raciais
LUCIANA A. TEIXEIRA*

*
Mestre em Sociologia pela UFMG e Analista de Políticas Públicas da Coordenadoria de Assuntos da Comunidade Negra da Secretaria Municipal Adjunta de Direitos
de Cidadania.
4 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Um dos objetivos do Plano Mu- aspecto a destacar é que a sua elaboração ocorreu por meio
de uma instância legítima de representação dos setores en-
nicipal de Promoção da Igualdade volvidos, já que ela se deu por meio do Fórum Governamental
de Promoção da Igualdade Racial. Isto garante maiores chan-
Racial é adequar as políticas públi- ces de sucesso na sua implementação, pois não é fruto da
cas municipais com as do nível fe- vontade de um único órgão da PBH. O terceiro e último ponto
é o planejamento das ações, já que o Plano possui diretrizes,
deral. Na proposta são apresentadas objetivos e metas, que permitem realizar o monitoramento de
sua execução.
sugestões no sentido de fortalecer Em síntese, todos os pontos destacados demonstram
a estrutura institucional da Prefeitura que o Plano significa a construção de uma política pública de
promoção da igualdade racial, pois todo o governo municipal
de Belo Horizonte, visando coorde- é envolvido em uma estratégia única de redução das desi-
gualdades raciais.
nar, formular e planejar a implanta-
ção de uma política municipal volta- A importância das políticas
da para o tema em questão. de ação afirmativa
Florestan Fernandes2 demonstrou que a discrimina-

L
uciana Jaccoud1, em análise do atual estágio de de- ção racial no Brasil se assenta na combinação de uma ordem
senvolvimento das políticas de promoção da igual- hierárquica profundamente enraizada no nosso cotidiano e
dade racial, afirma que "em que pesem os esforços uma ordem legal formal que pretensamente garantiria a igual-
que vêm sendo efetivados, a maior parte dessas inici- dade de todos. Fernandes nos mostra que mesmo após o fim
ativas [ações governamentais recentes de promoção da igual- da escravidão, negros e brancos continuaram a ocupar, res-
dade racial] ainda pode ser classificada como esporádica ou pectivamente, as posições de inferiores e superiores. O que
pontual, e os obstáculos, significativos" (p. 132). Mais à frente permite a manutenção das posições tradicionais após o fim
acrescenta que "as iniciativas têm sido muitas vezes marca- da escravidão é a ideologia da democracia racial brasileira.
das pela falta de continuidade, de recursos ou de abrangên- Ela se assenta na argumentação de que a intensa miscige-
cia, ao mesmo tempo em que se ressentem de uma estraté- nação que ocorreu no Brasil nos tornou uma nação sem dife-
gia comum em que os diversos campos de intervenção públi- renças de raças3. Aqui, negros, brancos e índios se fundiram
ca possam afirmar sua complementaridade, fixada em dire- em um só povo. Cada uma destas etnias originais se diluiu
trizes, metas e objetivos debatidos e pactuados" (p. 133). Na dando lugar a um povo moreno. Portanto, sempre que a dis-
avaliação da autora, atualmente, no Brasil, não contamos em criminação racial é denunciada, sua negação é apresentada
nenhuma esfera do setor público com um conjunto de inicia- de pronto pela afirmação de que não há racismo no Brasil
tivas suficientemente articuladas e abrangentes para dar conta pois somos um só povo sem distinções de raça. Ora, se não
da profunda desigualdade racial que temos em nosso país. há raças como pode haver racismo? O resultado é que a dis-
Partindo da pertinente análise de Jaccoud, o objetivo criminação racial continua a ser colocada em prática cotidia-
deste artigo é demonstrar que em Belo Horizonte este proble- na e impunemente. Este mecanismo garantiria aos brancos
ma está em vias de ser superado por meio do Plano Munici- posições sociais elevadas pois mantêm os negros longe da
pal de Promoção da Igualdade Racial, elaborado em 2008 e disputa por elas. Desta forma, Fernandes demonstra que,
lançado durante a II Conferência Municipal de Promoção da não há igualdades de oportunidades na sociedade brasileira,
Igualdade Racial. mas sim, um mecanismo perverso que, além de garantir pri-
Para tanto, buscaremos demonstrar que o Plano cons- vilégios aos brancos, joga sobre os negros toda a culpa pela
titui uma verdadeira política pública de promoção da igualda- sua situação.
de racial capaz, efetivamente, de reduzir as desigualdades Como apontou Anthony Marx4, por esta combinação
entre brancos e negros. Isto porque suas ações se estendem perversa não foi necessária a criação de leis formais que
a um campo de ação capaz de abarcar várias dimensões da mantivessem os negros afastados pelo próprio poder do Es-
vida da população negra; contou, em sua elaboração, com a tado da competição com os brancos, tal como ocorreu nos
participação efetiva de todo o poder público municipal, portan- Estados Unidos e na África do Sul.
to, sua gestão é democrática, o que lhe dá maior legitimida- O mérito de Fernandes5 está em demonstrar que a
de; e, por último, e não menos importante, ele se estrutura em discriminação não é esporádica ou fruto da ação individual de
objetivos, metas e ações claros, o que possibilita sua cons- uns e outros moralmente degenerados, mas que é um fenô-
tante avaliação. meno social, estruturante da sociedade brasileira, que tem
O Plano é constituído por um conjunto de ações que razões históricas e sociais e que faz parte de sua dinâmica de
abarcam diversas áreas. Não se trata de ações pontuais, es- exclusão de determinados grupos sociais em nosso país.
porádicas e de pequeno alcance desenvolvidas por um órgão Mais recentemente, pesquisas têm buscado demons-
apenas e com capacidade de ação limitada, mas ações que trar que a discriminação racial é responsável por parte da
envolvem o conjunto do poder público municipal. O segundo desigualdade social existente no país - destaque dado às

1
JACCOUD, Luciana "O Combate ao Racismo e à Desigualdade: o desafio das políticas públicas de promoção da igualdade racial" in As Políticas Públicas e a
Desigualdade Racial no Brasil - 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008.
2
FERNANDES, Florestan. “A Integração do Negro na Sociedade de Classe”. São Paulo: Ática, 1964.
3
Uma excelente abordagem deste nosso mito de origem se encontra em DAMATTA, Roberto "Digressão: a Fábula das Três Raças, ou o Problema do Racismo à
Brasileira" in Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
4
MARX, Anthony. "A construção da raça no Brasil: Comparação histórica e implicações políticas" in SOUZA, Jessé (org.) Multiculturalismo e racismo: uma
comparação Brasil-Estados Unidos. Brasília: Paralelo 15, 1997.
5
Apesar da inegável contribuição de Fernandes, outros pontos de sua obra têm sido extensamente criticados, como a que ele aponta como solução para a superação
da discriminação racial, uma vez que ele acreditava que o desenvolvimento econômico e a instalação de uma ordem mais racional em que a sociedade se organizasse
em classes sociais e não mais em grupos de status seria suficiente para debelar o racismo. Uma crítica definitiva é a de Hasenbalg (1979), que demonstra os vínculos
entre o modo de produção capitalista e a exclusão de grupos raciais.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 5
pesquisas precursoras de Carlos Hasenbalg e Nelson do nadoria de Assuntos da Comunidade Negra da Secretaria
Valle Silva. Hasenbalg procurou demonstrar que a diferença Municipal Adjunta de Direitos de Cidadania, o 1º Seminário
de mobilidade social ascendente (ascensão a estratos su- Intersetorial de Políticas de Ações Afirmativas e Combate à
periores) entre brancos e negros pode ser atribuída à discri- Discriminação Racial. Realizado em março de 2005, possibi-
minação racial. Segundo os dados levantados por ele, en- litou uma avaliação das diversas ações que os vários órgãos
quanto 37% dos brancos com quatro anos de estudo encon- da PBH vinham desenvolvendo para promover a igualdade
tram-se empregados em ocupações manuais qualificadas e racial. As Secretarias Municipais de Políticas Urbanas, Políti-
11% em não manuais, nenhum não branco (negro) com o cas Sociais e Adjunta de Assistência Social, Saúde, Educa-
mesmo nível de escolaridade alcança ocupações não manu- ção, Planejamento, Orçamento e Informação e a Fundação
ais e apenas 26% estavam em ocupações manuais qualifi- Municipal de Cultura apresentaram ao público suas ações,
cadas. programas e projetos, a partir dos quais foram pensados
O caminho inicialmente aberto por Silva e Hasenbalg novos objetivos, metas e ações para a Política Municipal de
tem sido também trilhado por diversos outros autores6, que Promoção da Igualdade Racial consolidados no Plano Muni-
têm procurado demonstrar que a discriminação racial é res- cipal de Promoção da Igualdade Racial.
ponsável pela desigualdade de escolaridade, saúde, empre- Vale ressaltar que o Seminário teve como resultado
gabilidade, entre outros. demonstrar para o conjunto do poder público municipal que
A importância destas pesquisas está em demonstrar se estava muito perto da consolidação de uma verdadeira
como a discriminação racial afeta vários aspectos da vida da política pública para a promoção da igualdade racial. Ficou
população negra o que demanda iniciativas em várias fren- evidente, naquele momento, que as ações, projetos e progra-
tes. Além disso, se a discriminação racial é responsável por mas, ainda que constituídos de maneira esparsa, em conjun-
desvantagens acumulativas que recaem sobre a população to contribuíam decisivamente para a melhora da qualidade
negra, ao menos parte da solução deve contemplar o seu de vida da população negra e redução das desigualdades. A
combate e os seus efeitos. Se à discriminação racial pode consolidação de uma efetiva Política Municipal de Promoção
ser atribuída parte da profunda desigualdade social que te- da Igualdade Racial não cabe a um único órgão, mas é o
mos no Brasil, somente políticas públicas universais não se- resultado de ações planejadas e coordenadas cuja execu-
rão suficientes para resolver o problema. Às políticas univer- ção perpassa diversos órgãos do governo municipal.
sais devem se somar outras que promovam a igualdade ra- Outro momento importante para a construção do Pla-
cial, pois apenas desta forma elas serão, de fato, acessíveis no e que ressalta também a transversalidade, foi a criação do
a todos. Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra7. O Grupo,
Processo descentralizado e democrático constituído por representantes da Secretaria Municipal de
Saúde e da Coordenadoria de Assuntos da Comunidade Ne-
Na construção de uma política como esta, que envolve gra, tem como objetivo a elaboração de proposta de ações
diversos setores, é fundamental a garantia de participação em saúde que promovam a equidade no SUS. A proposta foi
em todas as fases do processo. Isto assegura maior efetivi- elaborada vindo a se tornar a Política Municipal de Saúde da
dade das ações, visto que cada um dos atores contribui com População Negra, lançada no dia 25 de abril de 2008 e, pos-
a especificidade de sua área bem como garante a implemen- teriormente, aprovada por unanimidade no Conselho Munici-
tação do Plano já que ele é pactuado com todos os setores. pal de Saúde.
Em abril de 2005 foi realizada a 1ª Conferência Munici-
pal de Promoção da Igualdade Racial para apresentação de Fórum Governamental de Promoção
propostas e escolha de delegados para a Conferência Esta- da Igualdade Racial
dual. A Conferência foi um marco na relação do poder público
Mas o momento decisivo para a construção do Plano
municipal com a sociedade civil organizada, em especial com foi a criação do Fórum Governamental de Promoção da Igual-
o movimento negro, e permitiu, por meio deste canal instituci- dade Racial8, a partir da constatação que só seriam alcança-
onalizado de diálogo, que as entidades apresentassem suas dos níveis substantivos de redução da desigualdade étnico-
reivindicações, já há muito defendidas pelo Estado. As pro- racial com uma política articulada em nível municipal. Ficava
postas da Conferência serviram de base para a elaboração claro também que a discriminação racial tem implicações em
do Plano. vários aspectos da vida da população negra e que, portanto,
Outra consequência importante da Conferência e que nenhum setor deve abster-se em encontrar respostas para
revela, mais uma vez, a relevância do papel que a sociedade enfrentá-la.
civil tem desempenhado neste processo por meio do contro- Composto por 23 órgãos municipais9, o Fórum tem
le social, foi a realização do 1º Encontro Intersetorial entre como objetivo principal acompanhar a implementação da
Conselhos, em setembro de 2007, com o objetivo exclusivo Política Municipal de Promoção da Igualdade Racial. Foi vi-
de discutir a promoção da igualdade racial. Na ocasião ficou sando cumprir este objetivo que seus membros decidiram
definida a realização de um seminário municipal de avaliação pela elaboração do Plano.
da incorporação e implementação pela Prefeitura das propos- Definida a relevância da elaboração do Plano Munici-
tas da Conferência. pal, o Fórum, a Coordenadoria de Assuntos da Comunidade
Assim, em atendimento à solicitação dos Conselhos, Negra e outros colaboradores debruçaram-se sobre um tra-
a Prefeitura de Belo Horizonte realizou, por meio da Coorde- balho intenso que durou cerca de seis meses e totalizou mais

6
Dentre os autores que desenvolveram pesquisas sobre estes temas, Guimarães (GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. São
Paulo: Editora 34, 1999, p. 65) cita Luiza Bairros, Peggy Lovell, Rosa Maria Porcaro, Nádia Araújo Castro e ele próprio. O próprio Hasenbalg ("Entre o Mito e os Fatos:
Racismo e Relações Raciais no Brasil" in MAIO, Marcos Chor (org.) Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/CCBB, 1996, p. 240) cita as
pesquisas de Luiz Cláudio Barcellos e Rosenberg sobre como a discriminação racial afeta a realização educacional. Já Elza Berquó, Lazo, Scalon e Nelson Valle Silva
tem se dedicado a investigar uniões inter-raciais demonstrando que a raça tem sido um dos fatores responsáveis pelo pequeno número de casamentos "exogâmicos".
Edward Telles é também apontado como um dos poucos pesquisadores que tem se dedicado ao estudo da segregação residencial.
7
Portaria Conjunta SMSA/SMPS nº 001/2006
8
Decreto Municipal 12.759 de 10/07/07.
9
Secretarias Municipais de Governo, de Políticas Sociais, de Políticas Urbanas, de Educação, de Saúde, de Planejamento, Orçamento e Informação, das Secretarias
Municipais Adjuntas de Direitos de Cidadania, de Assistência Social, de Meio Ambiente, de Recursos Humanos, das nove Secretarias de Administração Regional
Municipal, das Coordenadorias de Juventude e de Direitos da Mulher e da Fundação Municipal de Cultura.
6 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
de 40 reuniões de trabalho. Em seguida, a proposta foi apre- tar a equipe na elaboração do Planejamento Estratégico.
sentada aos gestores dos órgãos que compõem o Fórum, 2 - Gestão do Plano Municipal de Promoção da Igualdade
sendo plenamente aprovada. Cada um deles iniciou sua for- Racial. Uma das ações propostas é a produção do diagnós-
ma de elaboração das suas propostas ao Plano. Esta meto- tico socioeconômico da população negra de Belo Horizonte
dologia buscava atender à especificidade de cada setor. pela Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e In-
Assim, a Secretaria Municipal de Políticas Urbanas, em formação, que permitirá monitorar os resultados. Está pre-
conjunto com a Coordenadoria de Assuntos da Comunidade visto também o acompanhamento da execução do orçamen-
Negra, realizou o Seminário "As Políticas Urbanas e a Promo- to incidente sobre o Plano. Além disso, fazem parte deste
ção da Igualdade Racial" com o objetivo de sensibilizar e capa- Eixo, as ações de comunicação institucional que devem in-
citar os técnicos e gestores sobre segregação urbana da po-
corporar a diversidade étnico-racial da população belohori-
pulação negra e de modo a melhor subsidiá-los para a formu-
lação de propostas, consolidadas em um eixo único. zontina.
As propostas do eixo Saúde foram elaboradas pelo 3 - Recursos Humanos. Este eixo propõe duas linhas de
Grupo de Saúde da População Negra a partir da já lançada atuação, uma voltada para o público interno e outra para o
Política Municipal de Saúde da População Negra, em conjun- público externo. Assim serão realizados cursos para os servi-
to com o Núcleo de Relações Étnico-raciais e de Gênero da dores municipais a fim de proporcionar-lhes a reflexão sobre
Secretaria Municipal de Educação. o racismo na sociedade brasileira e políticas de ação afirma-
Atendendo às especificidades regionais e em acordo tiva. Desta forma, a Prefeitura de Belo Horizonte busca com-
com o princípio da descentralização, cada Secretaria de Ad- bater o racismo institucional e práticas discriminatórias que
ministração Regional Municipal definiu sua forma de constru- contribuem para a perpetuação das desigualdades uma vez
ção das propostas. Enquanto em algumas foram criadas co- que tornam as políticas públicas menos acessíveis à popu-
missões, outras optaram pela realização de debates entre as lação negra. A outra frente visa garantir a plena igualdade de
suas gerências. Já a Secretaria de Administração Regional oportunidades, tanto no ingresso no serviço público munici-
Municipal Venda Nova criou o Fórum Regional de Promoção pal, quanto na ascensão na carreira. Para tanto, serão imple-
da Igualdade Racial. mentadas práticas que garantam a incorporação da diversi-
Enfim, formas similares de trabalho foram postas em dade de etnia e de gênero em todos os setores da Prefeitura
prática na Secretaria Municipal de Políticas Sociais, na Secre-
e em todos os níveis. Para o acompanhamento e avaliação
taria Municipal Adjunta de Recursos Humanos, na Assesso-
ria de Comunicação Social do Município e na Fundação Muni- destas ações está sendo proposta a realização do censo do
cipal de Cultura. servidor, que permitirá constituir um banco de dados e diag-
nosticar quantos e qual a situação dos servidores da PBH
Eixos do Plano de Promoção segundo sua raça/cor/etnia.
da Igualdade Racial 4 - Educação. O Eixo Educação visa dar continuidade e apro-
O envolvimento dos vários órgãos do governo munici- fundar as ações em curso de implementação da Lei 10.63910,
pal resultou na elaboração do Plano Municipal de Promoção que garante a inclusão da história e cultura da África e dos
da Igualdade Racial, constituído por nove Eixos: afro-brasileiros no currículo escolar. O objetivo é a valoriza-
1 - Gestão da Política de Promoção da Igualdade Racial. ção da identidade afro-brasileira, tornando a educação mais
Estruturação da Coordenadoria de Assuntos da Comunidade inclusiva, uma vez que a Escola tem um importante papel a
Negra para gerir a Política Municipal. Assim, estão previstas a desempenhar na redução das desigualdades e inclusão de
contratação de técnicos e também consultores para capaci- grupos étnicos.

O papel da escola para a redução das desigualdades


A escola tem um importante papel a desempenhar mercado de trabalho: uma é a baixa escolaridade e a outra
na redução das desigualdades e inclusão de grupos étni- é a própria discriminação.
cos. Contudo, o que se verifica em muitos casos, é a nega- Portanto, a Lei 10.639 busca reparar este equívoco
ção da diferença e do direito da criança negra à sua cultura histórico do sistema escolar, demonstrando a importância
e história. Segundo Nilma Lino Gomes11 as/os professo- do reconhecimento da especificidade étnico-cultural para
ras/es tendem a negar a existência do racismo no Brasil que haja a inclusão. O reconhecimento dos direitos de
apelando para a ideologia da democracia racial. O resulta- cidadania implica no reconhecimento do direito à diferença.
do é a descaracterização dos casos de discriminação étni- A partir da sua promulgação, o Ministério da Educação se
co-racial no ambiente escolar, bem como o não reconheci- empenhou na produção de material didático, visto ser este
mento da importância da incorporação de temáticas no problema frequentemente apontado como dificultador na
currículo que levem em conta a diversidade étnica dos alu- implementação da nova legislação.
nos. Desta forma, a escola acaba por disseminar uma vi- O Núcleo de Relações Étnico-raciais e de Gênero da
são de mundo própria do grupo étnico dominante. O resul- Secretaria Municipal de Educação é responsável pela
tado é o maior percentual de evasão escolar entre os estu- implementação da Lei 10.639. O Núcleo tem realizado ações
dantes negros que entre os brancos12. Isto irá criar sérios importantes de promoção da igualdade racial como a Mostra
obstáculos à mobilidade ascendente dos negros, visto que de Literatura Afro-brasileira, a distribuição para a Rede de
a escolaridade é um dos principais fatores que influenci- Ensino Municipal do Kit de Literatura Afro-brasileira,
am positivamente as chances de ascensão social. Assim, buscando, desta forma, solucionar o problema da escassez
a população negra conta com uma dupla desvantagem no de material didático e também a formação de professores.

10
A Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003 altera a Lei 9.394, de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional , para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-brasileira" e dá outras providências.
11
GOMES, Nilma Lino. A Mulher Negra que Vi de Perto: o processo de construção da identidade racial de professoras negras. Belo Horizonte: Mazza edições, 2003.
12
HASENBALG, C. A., SILVA, N. V. “Raça e Oportunidades Educacionais no Brasil” in SILVA, N. V. Relações raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Rio Fundo Ed., IUPERJ, 1992.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 7
5 - Saúde. Este Eixo contempla a formação dos profissionais étnico às políticas públicas. E, em relação ao planejamento,
desta área, a produção de dados, pesquisas e diagnósticos outro ponto fundamental e indispensável será a discussão
e a formulação de estratégias de comunicação que informem do Plano na elaboração do Plano Plurianual de Ação Gover-
sobre as doenças mais recorrentes na população negra. Além namental.
disso, propõe ações de ampliação do Programa de Assistên- Com a implantação do Plano, acreditamos que a Pre-
cia Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e o Programa Nacio- feitura de Belo Horizonte estará muito próxima de superar os
nal de Triagem Neonatal (PNTN), ações preventivas às mor- problemas das políticas de promoção da igualdade racial
tes por causas externas e a valorização do saber tradicional desenvolvidas no Brasil como detectado por Luciana Jaccoud.
das práticas medicinais das culturas de matriz africana. Entretanto, a efetiva igualdade - ou algo muito próximo disto -
6 - Cultura. A principal proposta é a criação do Museu Afro- demanda a completa execução do que foi planejado. Portan-
mineiro com a constituição de acervo e viabilização de um to, cabe a cada um dos agentes públicos dar sua contribui-
espaço físico. Também se destacam a realização do Festival ção inestimável para que Belo Horizonte seja uma cidade
de Arte Negra e a promoção ações intersetoriais de fomento à mais justa, onde o direito de todos seja reconhecido.
criação cultural da juventude negra.
7 - Políticas Sociais. Além das ações de formação dos servi-
dores públicos e produção de informação, o destaque fica
por conta de ações intersetoriais de promoção da igualdade
racial desenvolvidas nos Centros de Referência da Assistên-
Discriminação e saúde
cia Social (Cras) em cada Regional. O público-alvo destas Um número cada vez maior de pesquisas13 tem
ações é o jovem negro. Destaque também para a capacita- demonstrado que a discriminação racial desempenha
ção da mulher negra chefe de família por meio do Programa papel relevante na desigualdade de saúde entre negros
Nacional de Qualificação. e brancos. A mortalidade materna, a mortalidade infantil,
8 - Políticas Urbanas. São destaques a produção de informa- a mortalidade por causas externas, diabete melitus, cân-
ção pela introdução do quesito raça/cor nos diversos formulári- cer do colo do útero, alcoolismo, entre outras, são doen-
os, formação de servidores públicos, a ampliação do Progra- ças mais frequentes entre a população negra do que en-
ma Cidade Legal e a regularização fundiária dos quilombos. tre a população branca. Em função disto e das constan-
9 - Regionais. O Eixo Regionais visa a implementação des- tes reivindicações do movimento negro, o Ministério da
centralizada do Plano Municipal. Para tanto, faz-se necessá- Saúde pôs em prática uma série de ações para garantir
ria a criação de organismos de acompanhamento da execu- efetiva equidade nas políticas de saúde. Entre elas des-
ção do Plano como os Fóruns Governamentais Regionais de tacamos a realização do 1º Seminário Nacional de Saúde
Promoção da Igualdade Racial; a articulação da Rede de Pro- da População Negra em 2004, a criação do Comitê Téc-
moção da Igualdade Racial, reunindo os equipamentos das nico de Atenção à Saúde da População Negra, a
Secretarias de Administração Regional Municipais e a socie- implementação do Programa de Combate ao Racismo
dade civil local; e a realização das Pré-conferências Regio- Institucional (PCRI) e a realização do “II Seminário Nacio-
nais de Promoção da Igualdade Racial, que são preparatóri- nal de Saúde da População Negra” em outubro de 2006
as para a Conferência Municipal e que possibilitam a avalia- no Rio de Janeiro, quando foi lançada a Política Integral
ção periódica das ações desenvolvidas na Regional. de Saúde da População Negra.
Diretrizes, objetivos, ações e metas Com o embasamento de uma política respalda-
da pelo Ministério da Saúde, a Prefeitura de Belo Horizon-
Este conjunto de esforços parte da constatação de que te lançou a Política Municipal de Saúde da População
a redução significativa da desigualdade racial demanda ações Negra que contempla ações de produção de conheci-
em distintas áreas e também a articulação destas áreas para mento, capacitação do profissional da saúde e informa-
solucionar problemas que demandam uma atuação conjun- ção da população.
ta. Cada um dos eixos do Plano possui diretrizes, objetivos,
ações e metas. As diretrizes são os princípios gerais que
regem cada um deles. Os objetivos são o resultado final es-
perado com a implementação de um conjunto de ações. As
metas são a expressão física e concreta dos objetivos. O Abstract
conjunto das ações que compõem o Plano deve ser implan-
tado em um prazo total de quatro anos (2009-2012).
Neste sentido, uma importante diretriz do Plano é a The Municipal Plan of Racial Equality Promotion
implantação do quesito raça/cor nos formulários que ainda aims to adequate the municipal public policies with the
não o possuem, a sensibilização dos servidores municipais ones of federal level. In the proposal are presented
para a relevância da coleta deste dado e a informação à po- suggestions to strengthen the institutional structure of Belo
pulação sobre como é importante responder a esta questão. Horizonte City Hall objectiving to coordinate, formulate
Somente com a efetiva implantação do quesito raça/cor será and plan the implementation of a municipal policy
possível avaliar e monitorar a eficácia do Plano - a partir da concerned to this subject.
produção de informações sobre o seu impacto na vida da
população - e mensurar o acesso diferencial de cada grupo

13
BATISTA, Luís Eduardo, ESCUDER, Maria Mercedes Loureiro; PEREIRA, Júlio César Rodrigues. "A cor da morte: causas de óbito segundo características de raça
no Estado de São Paulo, 1999 a 2001". Rev. de Saúde Pública [on line], 2004, vol. 38, n. 5, pp. 630-636. BATISTA, Luís Eduardo, "Masculinidade, raça/cor e saúde".
Cien. Saúde Coletiva [on line] 2005, vol. 10, n. 1, pp. 71-80. CUNHA, Estela Maria Garcia Pinto da, "Mortalidade Infantil por raça/cor" in BATISTA, Luís Eduardo e
KALCKMANN, Suzana (Org.) Seminário Saúde da População Negra Estado de São Paulo 2004. São Paulo: Instituto de Saúde, 2005, pp. 103-116. LOPES,
Fernanda. "Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer: tópicos em saúde da população negra" in BATISTA, Luís Eduardo e KALCKMANN, Suzana
(Org.) Seminário Saúde da População Negra Estado de São Paulo 2004. São Paulo: Instituto de Saúde, 2005, pp. 53-102. OLIVEIRA, Fátima. Saúde da População
Negra. Brasília: Organização Pan-americana de Saúde, 2003.
8 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Educação

Foto: Alessandro Carvalho

Todos
iguais
e todos
diferentes
MACAÉ MARIA EVARISTO*

O artigo apresenta um breve histórico das ações e projetos realizados no


âmbito da Secretaria Municipal de Educação (Smed), para a promoção da igualda-
de racial, o combate ao racismo e o respeito às diferenças no interior das escolas.
Busca, também, refletir sobre os desafios que se colocam na continuidade e apro-
fundamento destas ações, bem como na perspectiva de afirmar e garantir, cotidia-
namente, que alunos (as), sobretudo adolescentes e jovens, cumpram seu per-
curso educativo de forma a contribuir com sua inclusão social.

D
urante muito tempo prevaleceu entre pesqui- realizada com vigor pelo movimento negro, pelo movimento
sadores, educadores e outros, a ideia de que de mulheres e por pesquisadores intrigados com as dispari-
as desigualdades sociais tinham uma base dades sociais existentes entre negros e brancos no merca-
puramente econômica. Nesta perspectiva as refle- do de trabalho, na hierarquia social, no acesso aos serviços
xões sobre os rumos da sociedade e a construção da cidada- de saúde, condições de moradia e, também, na escola.
nia se voltavam para a análise de como a base material deter- Atualmente, é correto afirmarmos que os temas e ques-
minava tanto os processos sociais e suas hierarquias quan- tões apontados por estes sujeitos sociais não são apenas
to os processos intelectuais dos indivíduos em sociedade. "ecos de bastidores", mas colocam-se como imprescindí-
No entanto, a explicação para as causas das desi- veis para se pensar a sociedade, a democracia, as injustiças
gualdades, baseadas puramente na hierarquia das classes sociais e, é claro, para pensar as políticas educacionais. Prin-
sociais, mostrou-se incompleta e parcial ao ser confrontada cipalmente porque pesquisas apontam que ainda existe um
por sujeitos sociais que denunciavam as diversas outras fa- grande caminho a ser trilhado para garantir a equidade no
cetas das desigualdades existentes nas relações em socie- acesso e trajetórias entre negros e brancos, no que tange à
dade. Dentre estes sujeitos destacamos as mulheres e os escolarização, conforme estudo realizado pelo Instituto de
negros que apontavam (e apontam) que os condicionantes Pesquisa Econômica Aplicada (Inep) em 2008:
econômicos não eram e não são os únicos responsáveis "(...) A discriminação motivada por sexo e por pertenci-
pelas hierarquias sociais, mas também, e de maneira deter- mento a um grupo racial encontra-se disseminada em diver-
minante, o racismo e o sexismo existente de maneira estrutu- sos campos da vida social. No sistema educacional, seus
ral na nossa sociedade. impactos incidem na reprodução de estereótipos ligados às
Assim, mesmo considerada um "tabu", a discussão convenções sociais de gênero e de raça originando e refor-
de como se processam as nossas relações raciais e sobre o çando uma segmentação sexual do mercado de trabalho e
racismo que permeia a estrutura social brasileira foi sendo das ocupações sociais" (pág.18).

*Mestre em Educação. Secretária Municipal de Educação de Belo Horizonte.


PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 9
E muito embora possamos comemorar um aumento No referente ao combate à discriminação racial e pro-
da escolarização geral da população no Brasil e também em moção da igualdade racial, a Lei Orgânica, em seu conjunto,
Belo Horizonte, quando realizamos análises de escolariza- antecipa em 13 anos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
ção considerando o cruzamento de dados com as categorias Nacional (LDB), uma vez que, também em seu artigo 183,
gênero e raça, percebemos que existe um desafio eminente determina que seja considerada data cívica e incluído no ca-
de garantir que além do acesso, negros e mulheres conclu- lendário oficial do Município o Dia da Consciência Negra, ce-
am, efetivamente, suas trajetórias escolares até a certifica- lebrado anualmente em 20 de novembro.
ção: É dentro desse contexto de lutas e reivindicações his-
"(...) ao se analisar simultaneamente as clivagens de tóricas que a Smed vem formatando, ao longo de 16 anos, a
gênero e raça tem-se que a melhoria universal verificada nes- sua política de promoção da igualdade racial e de combate ao
te indicador não só não foi capaz de reduzir as desigualda- racismo. Além dessas ações, é importante destacar que mui-
des, como produziu uma situação em que negros apresenta- tos foram os projetos e intervenções realizados por professo-
vam, em 2007, média de anos de estudo inferior à verificada res das escolas da rede municipal de educação e, para po-
para brancos em 1993. Assim, enquanto a média de anos de tencializar estas ações, é constituído em 2004 o Núcleo de
estudo era de 7,1 para brancos e de 4,7 para negros no início Relações Étnico Raciais e de Gênero, um marco importante
do período acompanhado, em 2007, estes valores subiram para o tratamento com esta temática na rede municipal com
para, 8,8 e 6,8, respectivamente. Uma redução de apenas 0,4 dois intuitos importantes:
anos na desigualdade em um período acumulado de quinze a) dar continuidade às diversas ações que vinham sendo de-
anos. (pág.19)". senvolvidas pela Secretaria;
Se anteriormente questões como relações de gênero, b) atuar na implantação da LEI 10.639/03, que inclui no currí-
raça, religiosidade e diversidade cultural não eram conside- culo escolar a história e cultura dos negros e a história da
radas no debate e na prática pedagógica, sabemos hoje que África;
são imprescindíveis para pensar a escola, o currículo e a c) contribuir para colocar em cena na política nacional a ur-
aprendizagem dos alunos, tanto no aspecto acadêmico, como gência de uma política pública que garanta de maneira efetiva
no referente ao conhecimento de mundo e estabelecimento os direitos da população negra do Brasil, no que tange ao
de novas relações em sociedade. acesso e permanência no sistema educacional.
É sabido que a educação, sozinha, não resolve a ques-
tão das disparidades raciais, mas é também verdade que os
1994 a 2008
atributos educacionais dos indivíduos definem, em larga Seminário: Múltiplos Olhares sobre a Formação Humana: diálogos
medida, suas oportunidades de emprego e de renda, além entre Cultura e Educação.
de afetar decisivamente suas condições de bem-estar e sua Seminário Criança na Ciranda da Educação - Mesa: Educação e
inserção econômica, social, política e cultural. Sendo assim, Relações Raciais.
Conferência Municipal de Educação - Racismo e Educação.
a educação tem um papel estratégico como agente de inclu-
Curso Regionalizado "Relações Raciais e Educação".
são, de promoção da igualdade e de combate ao racismo, Constituição do EDEC - Grupo de Educação e Diversidade Étnico
podendo também atuar no sentido de gerar, manter, ou ampli- Cultural no Centro de Aperfeiçoamento docente.
ar as disparidades socioeconômicas. Distribuição da Cartilha Zumbi 300 Anos da Fundação Palmares em
Histórico das ações todas as escolas da rede municipal de educação.
Cursos para coletivos de professores em escolas com a temática
Nos últimos 16 anos, a questão da diversidade tem racial.
sido pautada como um dos princípios da rede municipal de Parceria com Secretaria Municipal de Cultura para o Seminário
Belo Horizonte. Assim, além de preconizar o respeito aos di- Centro de Referência da Cultura Negra.
versos ritmos de aprendizagem e a escola como um espaço Articulação de Professores da rede municipal para a participação
de diálogo cultural, vimos buscando promover a igualdade e da Marcha Zumbi 300 anos.
o direito às diferenças de gênero e raça no ambiente escolar. Desenvolvimento do Projeto Oportunidades Iguais para Todos,
Para tal, a Smed vem, desde 1994, promovendo ações articulação de lideranças negras no poder público.
e desenvolvendo projetos que buscam a promoção da igual-
dade étnica racial e o combate ao racismo no interior da esco- Lei 10.639/03: o fortalecimento de
la, abraçando a demanda proveniente do movimento negro e caminhos para a inclusão
de um grupo de educadores e educadoras negras que, por
serem servidores da Prefeitura de Belo Horizonte, apontaram
2004
a necessidade de que a escola fosse também um espaço de Composição do Núcleo Relações Étnico-raciais e de Gênero.
promoção da igualdade e combate ao racismo. I Congresso de Alfabetização e Diversidade.
Importante ressaltar que as ações e reflexões promo- Distribuição para todos os alunos e alunas da rede municipal da
vidas pelas diversas entidades do movimento negro fizeram revista em quadrinhos "Luana" com uma personagem negra - foi a
com que Belo Horizonte fosse uma protagonista em termos primeira vez que muitos alunos viram uma personagem negra como
de definir marcos legais para a entrada da temática racial nas protagonista de história em quadrinhos.
escolas, inserindo na Lei Orgânica do Município (1990)1 os I Mostra de Literatura Afro-Brasileira.
parâmetros sobre os quais pensar projetos pedagógicos: Seleção de 56 títulos para o I Kit de Literatura Afro-brasileira
enviados para as Bibliotecas Escolares.
Art. 163-§ 4º - É vedada a adoção de livro didático que
dissemine qualquer forma de discriminação ou preconceito. 2005
CAP.V - Da Educação. Oficinas e Seminário
CAP. X. Das populações Afro-brasileiras. Art.182 - Pa- Educadores das Instituições de Educação Infantil
rágrafo Único: "(...) o dever do Poder Público compreende en- Coordenadoras das Instituições de Educação Infantil (formação).
tre outras medidas: a inclusão de conteúdo programático so- Fórum da Criança e do Adolescente (formação).
bre a história da África e da cultura afro-brasileira no currículo Seminário Família e Escola: Diálogos Possíveis para a Construção
das escolas públicas municipais". de uma Escola inclusiva.

1
A Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte, aprovada em 21 de março de 1990. Importante destacar que a Lei Orgânica do Município foi aprovada no dia 21 de
março que é considerado pelo movimento negro brasileiro e ativistas internacionais como Dia Internacional de Combate ao Racismo. Este dia foi instituído em memória
aos 69 homens, mulheres e crianças assassinados em 1960 na África do Sul, quando se manifestavam contra a utilização dos passes obrigatórios para se
locomoverem dentro do seu país.
10 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Oficina Etnia e Gênero para Instituições de Educação Infantil. jovens (até 29 anos). Cedeplar pág.3. Terceiro relatório de Es-
Formação de Professores de Educação de Jovens e Adultos - EJA/ cola Integrada.
BH e Brasil Alfabetizado. São maiores no grupo de tratamento as seguintes pro-
2006 porções: negros, até nove anos de idade, vão a pé para a
Distribuição para as Bibliotecas das Escolas Municipais do II Kit de escola. E são menores os gastos com compras de materiais
Literatura Afro-Brasileira, com 61 títulos. escolares para este grupo. Cedeplar pág.3. Terceiro relatório
II Mostra de Literatura Afro-Brasileira. de Escola Integrada.
Elaboração de um caderninho de sínteses dos livros enviados no É importante destacar estes dois programas e seus
II Kit de Literatura Afro-Brasileira. resultados, pois muito embora os mesmos não tenham sido
2007 pensados como políticas de ação afirmativa, demonstram
que, quando o Poder Público tem um foco nas políticas soci-
Seleção de 156 títulos - para o III Kit de Literatura Afro-Brasileira, ais e pauta as prioridades de governo tendo como meta a
enviado para as Bibliotecas das 182 escolas municipais.
inclusão social, efetivamente se promovem políticas de ação
Curso de Relações Étnico-Raciais e Educação - História e Cultura
Afro-brasileira e africana, financiado pelo Fundo Nacional de Desen-
afirmativa para a população que mais necessita das mes-
volvimento da Educação (FNDE). mas, ou seja, a população afro-descendente.
III Mostra de Literatura Afro-brasileira, em Parceria com o Centro de Desafios
Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação (Cape), de 21 a 23 /
11/07. Muito embora possamos verificar avanços no que tan-
I Seminário de Orientação Sexual e Identidade de Gênero - Edu- ge ao processo de implantar a Lei 10.639/03, ainda assim
cando para a Diferença. temos grandes desafios pela frente, uma vez que acesso à
escola não se configura necessariamente como sucesso na
2008 trajetória escolar.
Lançamento do livro "Livros e Cartas como um presente" - III Kit de Neste sentido, ainda é preocupante a situação de alu-
literatura Afro-Brasileira. nos negros adolescentes e jovens, uma vez que vem crescen-
Lançamento e devolutiva da pesquisa Igualdade das Relações do a mortalidade dos mesmos, sobretudo nos bairros mais
Étnico-Raciais na Escola (em parceria com CEAFRO, Ação Educativa e vulneráveis da cidade. Para estes é desafiador pensar proje-
CEERT). tos educacionais que aliem aprendizagem acadêmica com
Participação das Reuniões do Fórum Governamental para Promo- desenvolvimento da empregabilidade para que possamos,
ção da Igualdade Racial (titular e suplência). de alguma forma, contribuir com a construção de projetos de
Curso de Extensão "A Educação das Relações Étnico Raciais e o vida alternativa para os mesmos.
problema da intolerância com as religiões da matriz africana", em par- É desafiador, ainda, elaborar estratégias de interven-
ceria com a Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
ções intersetoriais para abarcar a gama de fatores de risco
Projeto Raça, Cor e Etnia na Cultura/Literatura (parceria com a
PUCMinas, Escola do Legislativo e Fundação Municipal de Cultura).
vivenciados por esta população, dentro e fora da escola.
E dentro de nossas escolas o desafio é fazer com que
Interfaces afirmativas: a promoção da todas as ações, projetos e livros criem vida e se transformem
em conhecimento cotidiano e, assim, tornem-se armas de
igualdade como busca da equidade combate ao racismo e à discriminação racial.
Além das ações específicas realizadas pela Smed é
preciso ressaltar que outros projetos realizados pela Secre-
taria concorrem para uma afirmação positiva dos direitos e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
promoção da igualdade racial. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Faculdade de Eco-
Dois exemplos disso são a política da expansão da nomia. Cedeplar. Projeto de Avaliação do Programa Escola Integra-
Educação Infantil que na sua política de atendimento prevê da da Prefeitura de Belo Horizonte. Terceiro Relatório. Sumário.
que as Unidades Municipais de Educação Infantil (UMEI's) Belo Horizonte, outubro de 2008.
sejam construídas, prioritariamente, em áreas de vulnerabili- PINHEIRO, Luana [et al]. Retrato das Desigualdades de gênero e
dade e, também, reserva de 70% das vagas para crianças raça . 3. ed. Brasília: Ipea: SPM: UNIFEM, 2008. 36 p.
cujas famílias são mais vulneráveis. Quando consideramos PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Lei Orgânica Municipal de mar-
as condições de vida da população negra, em comparação ço de 1990, arts. 163 e 183.
com a população não negra, percebemos que priorizar áreas
e famílias vulneráveis é uma maneira de possibilitar o aces-
so às crianças negras, que de outra forma não seria possível. Abstract
Por outro lado, é também preciso considerar que ao
possibilitar o acesso de crianças da primeira infância a espa-
ços onde se alinham o educar e o cuidar, fortalecemos seus The objective of this article is to conduct a brief report
direitos à saúde, educação e proteção, o que mais tarde favo- about the actions and projects accomplished by the
rece a sua trajetória escolar e social. Municipal Secretariat of Education (Smed), to promote
Outra política afirmativa que podemos citar é a Escola racial equality, respect for the differences and fighting
Integrada que, ao atender alunos no contra-turno escolar, com against racism within our schools. It also reflects about
oficinas de reforço escolar, artes, esportes e música, entre
outros, possibilita que os alunos envolvidos aumentem o seu the opposing challenges for the continuity and deepening
tempo no ambiente educativo, ampliando suas possibilida- of these actions, as well as, in the perspective to affirm
des de aprendizagem e socialização. and guarantee, that day by day students, especially
Em pesquisa realizada pelo Centro de Desenvolvimen- adolescents and young people, are able to fulfill their
to e Planejamento Regional de Minas Gerais (Cedeplar) , so- educational route contributing this way, to their social
bre os impactos do Programa para as crianças que o fre- inclusion.
quentam, destaca-se o fato de que o público participante é,
em sua maioria, oriundo do segmento não branco da popula-
ção, bem como são negros os agentes culturais da comunida-
de que atuam no mesmo:
Os grupos de tratamento e comparação 1 apresentam
as maiores proporções nas seguintes categorias: negros e
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 11
Educação Afro-Índígena: caminhos para a
construção de uma sociedade igualitária
ALEXANDRE BRAGA*

Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião.
Para odiar, as pessoas precisam aprender, e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.
Nelson Mandela

O artigo discute a educação étnico/racial,


Lei 10.639. Há um destaque para os me-
canismos pedagógicos voltados à supera-
ção da discriminação racial.

E
m 2003, o governo federal tomou uma das mais sábias deci- reescrita a partir das novas posturas dos educadores, governos e
sões ao incluir na rede oficial de ensino, por meio da Lei sociedade - como é o caso da Lei 10.639 e outras que estão sendo
10.639, a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro- discutidas pelo parlamento -, a educação oficial, a ação política e o
brasileira". Por meio desta, articula-se, nas escolas públicas devir social estão repletos de folclorização. Principalmente por meio
e privadas, o estudo da história da África, a luta dos negros brasilei- da informação que chega às pessoas diariamente. Conforme Abdias
ros, a cultura negra e a sua contribuição social e econômica para a Nascimento:
formação da identidade nacional. É inegável a presença dessa heran- O sistema educacional [brasileiro] é usado como aparelha-
ça africana na culinária, na dança, no ethos do nosso povo, mas é mento de controle nesta estrutura de discriminação cultural. Em
inquestionável também o atraso com que o Estado brasileiro trata es- todos os níveis do ensino brasileiro - elementar, secundário, univer-
sas questões. Às vezes, quando as assumem, o faz lentamente e de sitário - o elenco das matérias ensinadas, como se se executasse o
forma mais para negro ver do que para negro ter justiça e respeito de que havia predito a frase de Sílvio Romero1, constitui um ritual da
fato. No processo educativo essa situação não é diferente. Aliás, é na formalidade e da ostentação da Europa, e, mais recentemente, dos
formação da consciência que mais se utiliza de instrumentos de domi- Estados Unidos. Se consciência é memória e futuro, quando e onde
nação para alienar, para segregar e para manter determinados grupos está a memória africana, parte inalienável da consciência brasilei-
submissos a outros. A educação tem uma função estratégica, tanto ra? Onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas
para libertar quanto para subsumir. O organismo está sendo, assim, culturas e civilizações, as características, do seu povo, foram ou
pré-condicionado para a aceitação espontânea do que é oferecido são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há alguma referên-
(MARCUSE,1979). Portanto, se a educação foi utilizada para construir cia ao africano ou negro é no sentido do afastamento e da alienação
preconceitos, ela pode e deve ser utilizada para a desconstrução da identidade negra. Tampouco na universidade brasileira o mundo
social do preconceito e da discriminação racial. Vivemos em um país negro/africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano
onde a miscigenação e a diversidade multicultural aconteceram de se repete, e as populações afro brasileiras são tangidas para longe
forma vitoriosa - apesar de nesse processo societário os negros do chão universitário como gado leproso. Falar em identidade negra
contribuírem com suor e trabalho não remunerado e receberem como numa universidade do país é o mesmo que provocar todas as iras do
fruto do esforço físico a segregação e os maus tratos. O sistema inferno, e constitui um difícil desafio aos raros universitários afro-
educacional escolar baseia-se nesses preconceitos, pois é focado brasileiros (NASCIMENTO, 1978, p. 95).
em uma visão eurocêntrica (MUNANGA, 2006) e reproduz esses va- Portanto, a educação forjou uma tradição de produção e re-
lores no espaço escolar, ora negando a contribuição negra para o
produção da discriminação racial em que o sistema educacional brasi-
progresso brasileiro, ora distorcendo como "exótica" essa contribui-
leiro é usado como aparelhamento de controle dessa estrutura (NAS-
ção. Por meio da folclorização - forma sazonal e enviesada pela qual
CIMENTO,1978). Nisso, pensando na educação como mecanismo de
o conteúdo de certas matérias é ministrado a um público-alvo - que a
superação do conflito racial em uma perspectiva multicultural, Candau
compreensão desse conteúdo é limitada, o que o torna superficial,
(2002, p.9) observa que:
apesar de, por ancestralidade, ser complexo, diverso e abrangente.
De acordo com Carvalho Rocha, "(...) é fundamental fazer com que o A instituição escolar está construída sobre a afirmação
assunto [questão racial] não seja reduzido a estudos esporádicos ou da igualdade, enfatizando a base cultural comum a que todos os
unidades didáticas isoladas".(CARVALHO ROCHA, 2006, p.70). cidadãos e cidadãs deveriam ter acesso e colaborar na sua perma-
São fatores amplificadores da folclorização a ação da indús- nente construção. Articular igualdade e diferença, a base cultural
tria cultural, a desinformação pura e simples e a ideologia. Juntas, elas comum e expressões da pluralidade social e cultural, constitui hoje
amalgam todo um circuito por onde as culturas negra e indígena são um grande desafio para todos os educadores.
divulgadas nos meios de comunicação de massa como produto des- Por essa razão, a promulgação da Lei 10.639 - que em 2008
cartável. A folclorização empobrece a imensa pluralidade dessas cul- ganhou uma nova versão (Lei 11.645), incluindo também a temática
turas. Na educação, quando restringe-se a compreensão da tradição indígena - abriu grandes possibilidades rumo ao caminho da constru-
de matriz africana apenas às datas históricas do universo negro ou a ção da igualdade e da desconstrução de atitudes e posturas discrimi-
algumas porções dos momentos vividos por esse grupo durante a natórias no espaço escolar. Isso porque, ao longo da história da edu-
edificação dos saberes que levaram séculos para serem erigidos, cação, consolidou-se na sociedade a naturalização do racismo, nó
comete-se o erro da folclorização. Na nossa história, prestes a ser górdio que a escola não conseguiu, até o momento, desfazer.

* Bacharel em Comunicação Social, graduando em Filosofia pela PUC-MG e militante da União de Negros Pela Igualdade (Unegro).
1
A frase de Sílvio Romero é: "Nós temos a África em nossas cozinhas, América em nossas selvas e Europa em nossas salas de visitas". Romero apud Abdias
NASCIMENTO, O Genocídio do Negro Brasileiro, p.94.
12 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Dificuldades e alternativas para o ensino afro-índigena acontece por causa da provocação dos(as) professores(as)
ligados(as) à temática, e não como opção programática do projeto
Decorridos exatos cinco anos da promulgação da Lei 10.639,
pedagógico da escola particular. Outro empecilho bastante forte e que
verifica-se que há muito para percorrer na trilha da educação igualitá-
ria. Houve muita polêmica, e o que se constata é que as escolas não tem mobilizado quase a maioria dos empresários do setor educacional
desenvolvem atividades concentradas no ensino de "História da Cul- para uma opinião contrária à aplicação da lei da "História e Cultura
tura Afro-Indígena Brasileira". Essa temática é abordada em datas Afro-Indígena" é o suposto aumento dos custos operacionais dos
comemorativas, principalmente nos meses de abril, maio e novembro, colégios. Esses empresários argumentam que no cotidiano escolar -
respectivamente o dia do índio, o dia da abolição e o mês da consciên- embora haja o reconhecido mérito da ética antipreconceito embutida
cia negra. Isso se justifica pela ausência de material didático-pedagó- na Lei 10.639 - torna-se, na prática, caro e oneroso aplicá-la nesses
gico apropriado e de formação docente necessária à compreensão colégios. Isso acontece porque eles precisariam contratar mais
da profundidade e importância desse tipo de aprendizagem ou mesmo professores(as), aumentar a carga horária, dispender recursos com
pela resistência pura e simples de alguns setores. Esses contratem- a organização de eventos e o que é pior, a "disciplina não é matéria do
pos já eram esperados de certa forma, tanto que o Ministério da Edu- vestibular", dessa forma, assunto pouco interessante aos pais dos
cação instituiu o Grupo de Trabalho (GT) composto pelo Ministério da alunos. Essa celeuma entre as escolas particulares e os defensores
Justiça e Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade da aplicação da Lei 10.639 já chegou, inclusive, ao Judiciário. Na
Racial (SEPPIR), em maio de 2008, para acelerar a efetiva implementa- Bahia, o Ministério Público instaurou, em 2007, inquérito civil e notificou
ção da Lei 10.639, e sua consorte Lei 11.645, por meio do Plano escolas para que cumprissem a lei e em São Paulo diversos colégios
Nacional de Implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação foram alertados sobre o atraso na sua aplicação no estado. Quando
Nacional2 alterada pela Lei 10.639 de 2003. O GT conta com, além não é a falta de interesse no tema, é a total falta de informação histó-
desses órgãos, a participação de secretarias de educação, associa- rica que entrava o aprendizado dessa temática. Conforme relata uma
ções de docentes e pesquisadores da área da educação, represen- dirigente sindical:
tantes de movimentos sociais e negros e do UNICEF- Fundo das Cada escola tem o seu entendimento da lei, então acham que
Nações Unidas para a Infância. A principal deliberação do GT foi pela falar do folclore e da baiana de acarajé é abordar a história da África,
constituição de Diálogos Regionais em que gestores dos sistemas de explica Heloísa Monteiro, professora de História e representante do
ensino e demais interessados discutiram as metas, estratégias e os Sindicato dos Professores da Bahia (Sinpro-BA).
obstáculos à construção de um plano de implementação das Diretri- Para Heloisa Monteiro, "falta qualificação dos profissionais,
zes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- compreensão da lei e da sua importância para a sociedade"9. Os
Raciais e para o Ensino da Cultura Afro-Indígena e Africana. Foram empresários da área de educação não veem que temáticas desse tipo
desenvolvidas, como fruto desses colóquios, por meio da Secretaria ajudam a ampliar a consciência dos jovens e contribuem para a forma-
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), órgão ção da cidadania. Ademais, é por meio de discussões como essas
ligado ao MEC, as seguintes ações: (sociologia, filosofia e cultura afro-indígena) que as novas gerações
1- Projetos Inovadores de Curso (PIC)3: apoio financeiro a cursos tomam conhecimento pelo respeito ao ser humano e a suas tradições,
preparatórios para vestibulares populares e comunitários voltados ao meio ambiente em que vivem. Esse aprendizado, cuja maior contri-
para os afro-brasileiros e indígenas e apoio a projetos inovadores de buição é a melhora na qualidade de vida para todo o conjunto da
fortalecimento de negros e negras no ensino médio, realizados em sociedade, torna os alunos menos agressivos e mais saudáveis. Es-
parceria com as secretarias estaduais de educação, também com ses valores, apesar do caráter subjetivo, são necessários para uma
atuação em territórios quilombolas. visão universalista e humanista da vida, cujos reflexos são facilmente
2- Auxílio a Estudantes Universitários4: bolsas a alunos egressos dos observáveis na família, no mundo do trabalho e nas relações sociais.
PICs. Os auxílios viabilizam as formações de professores e no desen- A falta deles, por sua vez, resulta em seres desumanos, haja vista a
volvimento de materiais didáticos relativos à Lei 10.639. escalada da violência doméstica, no crescimento da corrupção e em
laços familiares cada vez mais frágeis.
3- Publicação de 29 títulos da Coleção Educação Para Todos4 (Secad/
Unesco). Escola particular e a cultura afro-indígena
4- Cor da Cultura5 (2005) - kit de materiais produzidos em parceria Do ponto de vista organizacional da educação particular, a Lei
com a Fundação Roberto Marinho contendo CD, jogos, livros didáticos; 10.639 tem, até o presente momento, mais desinformação do que
5-Concurso Nacional de Material Didático Pedagógico para Reconhe- atitudes concretas. O tamanho da desinformação reflete certa visão
cimento e a Valorização da História, da Cultura e da Identidade Afro- puramente mercantilista da educação. Isso porque os empresários do
Brasileira e Africana6 (2006); setor veem a educação como forma de lucro, e não como formação
6-Constituição de Fóruns Estaduais de Educação e Diversidade Étni- para a cidadania, como fator de socialização do saber, da cultura e
co-Racial7. dos valores cívicos. Portanto, nesse ponto, o debate é mais propício
Em Minas Gerais, foi constituído o Pró-Afro8, posteriormente, ao campo da concepção de que Estado queremos e que tipo de socie-
Afrominas (Projeto de Valorização da Cultura Afro Brasileira na Escola dade queremos construir enquanto seres políticos. E tomando uma
Pública), da Secretaria Estadual de Educação, cujas ações visam decisão política de incluir aqueles que tiveram a trajetória de exclusão,
ampliar e fortalecer a educação como instrumento de promoção social, a opção pela distribuição do saber africano e sua tradição negro-
de cidadania e implementar uma política estadual de educação para indígena é uma decisão irretorquível. Mesmo com certos entraves
erradicação do racismo no ambiente escolar. nesse momento inicial da aplicação da Lei 10.639 na educação parti-
cular, a perspectiva aponta para uma guinada obrigatória das redes
Lei 10.639 e a escola particular particulares nessa direção do ensino afro-indígena em suas escolas.
Se na rede pública de ensino a aplicação da Lei 10.639 cami- Até porque, e não poderia ser diferente - além de ter sido essa a
nha a passos curtos, apesar dos ótimos projetos existentes e da primeira grande decisão política do primeiro operário a chegar à presi-
acertada decisão política dos governos e gestores educacionais em dência do Brasil -, o próprio Estado brasileiro tomou como sua a res-
torná-la realidade, no setor responsável pela educação privada, a ponsabilidade de incluir os negros e combater o racismo e outras
discussão da Lei 10.639 é incipiente. Quase sempre essa discussão formas de preconceito, na Conferência Contra o Racismo, a Xenofo-

2
Cf.www.educacao.gov.br/secad
3
Cf. www.educacao.gov.br/secad
4
Cf. www.educacao.gov.br/secad
5
Cf.www.futura.org.br ou www.frm.org.br
6
Cf.www.educacao.gov.br/secad
7
Cf. www.educacao.gov.br/secad
8
Cf.www.educacao.gov.br/secad
9
Cf.www.educaçao.mg.gov.br/afrominas
10
Aguirre PEIXOTO.Escolas Particulares ignoram história da áfrica.A Tarde.14.01.2008.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 13
bia e a Discriminação Racial e Intolerância Correlata, em Durban, em
2001, organizada pela ONU-Organização das Nações Unidas - e na REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Conferência Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, ACAYABA,Cíntia. Colégios desconhecem lei que obriga ensino da
de 2005, que aconteceu em Brasília. Portanto, a linha de ação em prol cultura afro. Folha de S.Paulo.27/10/2008. Cotidiano.
dos negros e dos índios já está demarcada. Os conteúdos já estão BRAGA.Maria Lucia (org.).Dimensões da Inclusão do Negro no
prontos. A história, repleta de temas e assuntos. Basta a escola par- Ensino Médio: mercado de trabalho, religiosidade e educação qui-
ticular começar a se engajar na temática ou, como dizem os trabalha- lombola. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continu-
dores do setor: ada, Alfabetização e Diversidade. Brasília. 2006.
Temos uma Lei que é nosso instrumento de luta. Temos que BRASIL. Lei n. 9.394 - Dispõe sobre as Diretrizes e Bases da
exigir que as escolas particulares cumpram a lei 10639/03. Esse é Educação Nacional. Brasília: DOU, 20 de Dezembro de 1996.
nosso mote: "Educar para valer!" Tem que se fazer valer a Lei 10.639. __________Lei n.10.639.9 de Janeiro de 2003. DOU,10/01/ 2003.
Esse é um grande desafio: mostrar às instituições de ensino que a
autonomia que elas têm não permite que transgridam a Legislação __________ Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Nacional da Educação (Confederação dos Trabalhadores em Esta- das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
belecimentos de Ensino-CONTEE-. 2º Encontro Movimento Negro e Afro-Brasileira e Africana.Secretaria Especial e Políticas de Pro-
Educação). moção da Igualdade Racial.Brasília. 2004.
Conclusão ___________ Educação Não Racista: caminhos abertos pela lei
federal 10.639/03. Ministério da Educação, Secretaria de Educa-
Tanto na educação pública quanto na educação particular, as ção Continuada, Alfabetização e Diversidade, Brasília. 2005.
Leis 10.639/11.645 precisam ser vistas como um todo na grade curri- ___________ Orientações e Ações Para a Educação das Rela-
cular (principalmente biologia, literatura, história, geografia, sociolo- ções Etnico Raciais. Secretaria de Educação Continuada, Alfabe-
gia, filosofia e redação), em que percorrem e transversalizam todas tização e
as fases de formação do caráter do alunado, e durante todo o decor- Diversidade. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Edu-
rer do ano letivo. E não como uma disciplina especial - exótica - cação Continuada, Alfabetização e Diversidade. 2006
ministrada para aliviar a tensão das aulas. A alternativa da folcloriza- CANDAU, Vera Lucia. Sociedade, Educação e Culturas. Petropo-
ção da cultura afro-indígena é a porta mais usada, atualmente. É atra- lis. RJ: Vozes, 2002.
vés dessa porta que colégios e estudantes estão tendo acesso e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos
contato com as Leis 10.639/11.645. Nas datas comemorativas essa de Ensino . 2º Encontro Nacional Movimento Negro e Educação.
folclorização fica mais evidente. Para combater essa folclorização é Anais. 9 e 10/11/ 2007. Salvador - BA.
preciso reciclagem, capacitação e renovação constantes para o(a)s MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Trad.
professore(a)s, do material didático e das atividades extra-classe. Giasone Rebua. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Igualmente nos colégios públicos e particulares é preciso for- MINAS Gerais. Afrominas: projeto de valorização da cultura afro
mar um Grupo de Trabalho, composto por professores, alunos, movi- brasileira na escola pública. Disponível em
mento social negro e comunidade local com a função de monitorar e www.educacao.mg.gov.br/afrominas
coordenar o desenvolvimento das atividades mais gerais da cultura Ministério Público Federal. Procuradoria Geral da República. Dis-
afro-indígena nas escolas. A partir de um calendário pré-agendado, ponível em http://www.pdfc.pgr.mpf.gov.br/htm[artigo]. Acesso em:
pais, discentes, militantes e educadores podem tornar mais dinâmica a 04/12/2008.
execução e confecção do material didático/pedagógico e das ativida- MOURA, Clovis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Anita,
des não folclorizadas, de acordo com as Diretrizes Curriculares 1994.
Nacionais para a Educação das Relações Étnico/Raciais. MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o Racismo na escola.
Passos importantes foram dados nessa trilha do treinamento Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continu-
e da reciclagem. Somente o governo treinou e capacitou mais de 40 mil ada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
professores da rede pública de ensino, totalizando gastos na ordem NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: processo
de R$ 10 milhões. Claro que, devido à empreitada histórica a qual o de um racismo mascarado. Rio: Paz e Terra,1978.
projeto está envolto, esses passos são curtos e há muita coisa para Organização das Nações Unidas. Declaração e Programa de Ação.
ser feita. Mas só de ter começado a funcionar já é uma boa notícia. Conferência Mundial Contra o Racismo, Dicriminação Racial, Xe-
Agora a preocupação volta-se para a escola particular, onde a temá- nofobia e Intolerância Correlata. Durban: 2001.
tica ainda está na fase inicial, pela qual já percorreram tanto o governo PEIXOTO, Aguirre. Escolas Particulares ignoram história da África.
quanto a escola pública. Por isso, para as Leis 10.639/11.645 ganha- A Tarde. 14/01/2008.
rem mais fôlego nas escolas particulares, é preciso que o Ministério
da Educação lance um programa específico de aplicação dessas leis
nos moldes do que a Secad faz na rede pública de ensino.
As Leis 10.639 e 11.645 existem e só têm fundamento na
medida em que atuam como um conjunto sistêmico de inclusão racial Abstract
para o fortalecimento da cidadania. São partes integrantes da opção
política pelos segmentos que sempre estiveram vulnerabilizados ao
longo do processo societário brasileiro. Essa nova postura governa- This article discusses the current status of the
mental tem amparo legal e constitucional, portanto, apesar do ineditis- ethnic-racial situation, highlighting the need for pedagogic
mo que cada setor demanda - saúde, educação, geração de emprego
-, o ritmo das execuções e a realização de toda a parafernália neces- mechanisms focused on the overcoming of prejudice and
sária para tornar essas leis uma realidade concreta na vida das popu- of the racial discrimination suffered by the black and the
lações envolvidas (negros e índios), é indicador da existência e da indigenous populations within the Brazilian school system.
permanência, entre nós, de certa quantia de racismo institucional. In 2003, the federal government, in a wise decision,
Somente assim podemos entender como algumas camadas da socie-
dade ainda estão resistentes à aplicação das Leis 10.639 e 11.645,
included into the official and governmental school system,
bem como de outras formas, alternativas e iniciativas voltadas para as through the law 10.639, the mandatory teaching of "Afro-
políticas de ações afirmativas no Brasil. Portanto, conforme posição Brazilian History and Culture" subject. Through this law,
do Estado brasileiro, agora é a hora da execução, independentemente private and public schools are teaching and discussing
do coro e do choro daqueles que acreditaram na pureza étnica e no themes such as the study African history, the struggle of
preconceito como objetos de cooptação política e como alavanca "mo-
dernizadora". Esses erraram porque tinham fé, não na emancipação the Brazilian black populations towards freedom, black
humana e na solidariedade, mas na ideologia da manutenção da sub- culture and its social and economic contribution for the
missão e no ódio racial, na exploração do homem pelo homem. formation of a national identity,

14 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009


“PONHA-SE EM SEU LUGAR!”
Juventude, Relações Raciais e Ações Afirmativas
RODRIGO EDNILSON DE JESUS*

O presente ensaio começou a ser desenvolvido há cerca de cinco anos; e,


durante esse tempo, vem ganhando corpo, ideias que se complementam, se con-
trapõem e se modificam. Minhas experiências em diversos papéis e espaços
educativos, como jovem negro estudante da graduação e pós-graduação da UFMG,
como jovem negro pesquisador das temáticas de juventude e relações raciais no
Brasil, e como jovem negro professor de cursos de formação de professores e da
Educação de Jovens e Adultos, têm importância fundamental nas reflexões aqui
desenvolvidas. A partir da identificação de algumas representações sociais no cam-
po educacional, que, em geral, tendem a deslegitimar o direito à educação pública
de membros de grupos socialmente minorizados, em especial os jovens negros,
pretendo discutir alguns desafios enfrentados por movimentos de luta pelo direito
à diferença e pela democratização do ensino superior, médio e fundamental.
“Na minha época....” res e alunos, considerados em suas especificidades, fazem
De acordo com DAYRELL (2007), a educação da ju- parte de um mesmo contexto histórico, que tem passado por
ventude e sua relação com a escola tem sido alvo de re- uma série de mudanças, tanto estruturais quanto simbólicas.
centes e calorosos debates, que, geralmente, tendem a As escolas modificaram-se: deixaram de ser espaços religio-
cair numa visão apocalíptica sobre o fracasso da institui- sos de ensino, com caráter quase familiar, para aproxima-
ção escolar; com professores, alunos e suas famílias cul- rem-se cada vez mais de uma organização burocrática mo-
pando-se mutuamente. derna; com listas de presença, avaliações contínuas e o au-
Nessa forma simplista de pensar a escola e a educa- mento contínuo da capacidade, ou da tentativa, de controlar
ção da juventude, a escola e seus profissionais, por um lado, os corpos - de alunos, professores e demais funcionários1 .
entendem que o problema situa-se na juventude, no seu Os frequentadores das escolas também sofreram modifica-
pretenso individualismo de caráter hedonista e irresponsável, ções, e em concomitância, mudaram as representações de
que estaria gerando um desinteresse pela educação escolar. si mesmos.
Por outro lado, para os jovens, a escola se mostraria distante Por vezes, as mudanças geram angústia e apreensão
dos seus interesses, reduzida a um cotidiano enfadonho, com frente ao desconhecido. Entre os professores, esta angústia
professores que pouco acrescentam à sua formação, toman- parece-me agravada pela sensação de desinteresse
do-se cada vez mais uma “obrigação” necessária, tendo em diagnosticada entre os estudantes. Além disso, as dificulda-
vista a necessidade dos diplomas, requisito cada vez mais des de aprendizagem de alguns estudantes aliadas à desor-
importante no mundo moderno. Por essa perspectiva, parece dem acabam por colocar em xeque a capacidade didática do
que assistimos a uma crise da escola na sua relação com a professor, levando-o a um exercício constante, e doloroso, de
juventude, com professores e jovens se perguntando a que auto-reflexão. Adicionalmente, o questionamento da legitimi-
ela se propõe. (DAYRELL, 2007, 1106) dade do lugar tradicional ocupado pelo professor não se dá
apenas através de um discurso articulado verbalmente pelos
Na compreensão de DAYRELL, a relação da juventude estudantes, mas surge também através das “zoações” pro-
com a escola não se explica em si mesma. O problema não positalmente orquestradas, que rompem as expectativas so-
pode ser reduzido nem aos jovens, e nem tampouco à esco- bre a deferência necessária frente ao conhecimento que está
la. Os confrontos e impasses desta relação pedagógica se sendo transmitido.
inserem em um contexto bem mais amplo, de mudanças e Este cenário impele muitos a afirmar que “estamos
deslocamentos nos papeis e nas formas de socialização das vivendo uma época de crise”. Alguns diriam que esta é uma
novas gerações. crise de valores morais, posto que todas as crenças que nos
Do ponto de vista de TEIXEIRA (1996), é inadequado davam segurança para pensar e agir foram abaladas.
observar o aluno de forma isolada, já que o ponto central da Friederich Nietsche se referia a tal transformação quando afir-
relação pedagógica é, exatamente, a relação. Tão inadequa- mou que Deus havia morrido. Sigmund Freud refere-se à
da quanto esta postura seria, portanto, a de olhar para o do- morte do patriarca, e a consequente nostalgia do pai. Em
cente, suas angústias, sonhos, tempos, desafios, sem dirigir ambos os casos, não se trata de morte como sinônimo de
um olhar atento para seus alunos e para as estruturas educa- desaparecimento da matéria, tal qual estamos acostumados
cionais, que transcendem os componentes da comunidade a pensar quando o corpo humano despede-se da vida. Trata-
escolar, exercendo influência sobre suas práticas. Professo- se aqui de uma constatação da perda da legitimidade e

*
Doutorando em Educação pela UFMG e membro dos Programas Ações Afirmativas na UFMG e Programa Observatório da Juventude da UFMG. E-mail:
rodrigoednilson@gmail.com
1
Michel Foucault, 1996.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 15
hegemonia histórica do patriarca. Na modernidade, tanto a O fenômeno de “explosão escolar” assinala um pro-
figura de Deus quanto a figura do pai foram obrigadas a divi- cesso de democratização de acesso à escola que marca a
dir seu espaço com novas formas de explicação e organiza- passagem de uma escola elitista para uma escola de massas
ção do mundo. Além dos impactos que este deslocamento e a sua entrada num “tempo de promessas”. Com efeito, à
causa nas figuras dos destronados, Deus e o pai, esta mu- expansão quantitativa dos sistemas escolares estava as-
dança ressoa nas relações geracionais 2 . Não é por acaso sociado um pano de fundo marcado pela euforia e o otimismo
que a nostalgia é um sentimento que pode ser facilmente em relação à escola, com base na associação entre “mais
identificado entre as gerações mais velhas. E, nutridos por escola” e três promessas: uma promessa de desenvolvimen-
esta nostalgia, a comparação entre os valores e atitudes de to, uma promessa de mobilidade social e uma promessa de
gerações diferentes, quase sempre redunda no diagnóstico igualdade. (CANÁRIO, 2005, 80)
de que as gerações mais novas atravessam uma tendência Ainda segundo CANÁRIO, a euforia dos anos 1940 é
rumo à degenerescência moral e cultural. “Ah, mas na minha aos poucos substituída pela decepção dos anos 1970. As
época as coisas eram muito melhores”, afirmam os mais investigações sociológicas levadas a cabo nos anos 1970 e
velhos em relação aos mais novos; mesmo que estes nem que tomavam às instituições escolares como objeto de estu-
sejam tão mais velhos assim. Esta nostalgia, intrínseca às do começaram a sinalizar o efeito reprodutor e amplificador
relações geracionais, torna-se ainda mais aguda na das desigualdades sociais, desempenhado pelo sistema es-
modernidade, onde as mudanças tornam-se cada vez mais colar. “Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que abre as
intensas. portas e democratiza o acesso, tornando-se, portanto, menos
Presente em todos os âmbitos da vida social, este elitista, a escola, (...) através de mecanismos de violência sim-
conflito geracional pode ser facilmente percebido nas rela- bólica, assegura a reprodução social das desigualdades”
ções no interior das escolas, sobretudo porque nossa con- (CANÁRIO, 2005, 81).
cepção de educação, baseada na divisão de tarefas entre As mudanças observadas no campo educacional nas
ensinar e aprender, reforça os lugares sociais atribuídos e últimas décadas acabaram por mudar radicalmente as ca-
esperados de jovens/alunos e adultos/mestres. Assim, o pe- racterísticas socioeconômicas, culturais e raciais dos alunos
ríodo compreendido entre a queda da autoridade tradicional de algumas escolas públicas no Brasil3. O progressivo apa-
e o surgimento de novas formas de autoridade tem sido mar- gamento dos Estados nacionais, face à ascensão de gover-
cado pelo vácuo de uma autoridade consensualmente legíti- nos alinhados com políticas de redução gradativa das atribui-
ma. Nesse sentido, tanto educadores quanto educandos são ções estatais (neoliberalismo), teve papel fundamental na
alijados das referências identitárias que antes lhes norteavam degradação observável do aparelhamento destas instituições.
as ações e pensamentos. Ao passo que os primeiros perce- Aliado a isto, a debandada em massa dos filhos das classes
bem-se impotentes frente a uma turma que não se interessa abastadas da rede pública de ensino acabou por diminuir o
e não respeita a figura do professor autoritário e centralizador poder de articulação e barganha dessas instituições junto
(que monopoliza toda a responsabilidade de transmitir os aos poderes públicos constituídos, de tal modo que a escola
conhecimentos); os estudantes percebem-se deslocados em para todos passou a ser tratada e vista, por muitos, como a
uma instituição que não consegue perceber suas escola de pobres e para pobres.
especificidades. Nesta perspectiva, o argumento da assimetria de re-
Apesar disto, a escola hoje continua a desfrutar de cursos materiais disponíveis nas escolas públicas, compa-
uma representação privilegiada no mundo moderno. Este rando-as às escolas privadas, é frequentemente utilizado
status deve-se não só ao fato de a escola permanecer como como forma de justificar os problemas existentes e a impos-
a instituição legítima, e também exclusiva, de distribuição dos sibilidade de encontrar soluções de curto e médio prazos: as
diplomas, fundamentais para a inserção no mercado de tra- verbas para educação pública são irrisórias, os professores
balho atual, mas também pela imagem da educação como são mal remunerados, os alunos(as) são pobres e/ou caren-
um fator chave para a preparação de cidadãos e cidadãs para tes, etc.
o convívio social. As disputas em torno do acesso e perma- Minhas experiências com a formação de professores
nência à escolarização formal, sobretudo nos níveis mais ele- têm me possibilitado ouvir e discutir argumentos significati-
vados de ensino, são bons exemplos da vitalidade da vos acerca das representações da comunidade escolar em
escolarização nos dias atuais. No entanto, a escola não é relação aos principais problemas e possíveis soluções da
mais a representante exclusiva da socialização de valores, educação pública no Brasil. Enquanto alguns professores ex-
crenças e conhecimentos. A escola da atualidade compete pressam grande confiança na capacidade redentora da edu-
com a televisão, a internet e outras tantas tecnologias. cação, outros identificam que foi exatamente este processo
Há aqui um paradoxo, portanto: a escola, quanto mais de ampliação do acesso à escolarização (a massificação)
muda, mais permanece a mesma. Um exemplo concreto desta que colocou em risco o futuro da educação no Brasil.
assertiva estruturalista são as estruturas arquitetônicas das “O problema é que hoje em dia os alunos são obriga-
escolas ao longo das últimas décadas. Tanto hoje quanto dos pelos pais a virem para a escola. Eles estão fora do lu-
outrora, a estrutura escolar possibilitou e possibilita o contro- gar.” Com esta frase, uma professora que lecionava para jo-
le constante dos corpos, seja nos corredores ou nas filas vens de 14 a 16, anos em uma turma do último ano do ensino
dentro de sala de aula. Atualmente, mesmo as ações mais fundamental, tentava convencer os seus colegas de curso de
revolucionárias e subversivas implementadas dentro das que havia muitos estudantes nas escolas que não estavam
escolas precisam se organizar tendo como referências es- “a fim” de estudar, mas eram obrigados a frequentarem as
paciais estas estruturas. aulas, seja pelos pais, pelo governo ou pelo conselho tutelar.
“Não entendo porque estes jovens ainda vêm à A presença destes, no ambiente escolar, atrapalharia, como
consequência, aqueles que são bons alunos e estão interes-
escola.” sados em aprender. A entrada das massas no ambiente es-
De acordo com CANÁRIO (2005), uma das transfor- colar teria tido o poder de comprometer a qualidade da educa-
mações mais radicais da história da escolarização formal no ção pública no Brasil, posto que inseriu todos em um ambien-
século XX foi o processo de expansão da cobertura escolar. te destinado a poucos.

2
Marcelo Ricardo Pereira, 2006.
3
Seria inadequado generalizar as análises acerca das características socioeconômicas e demográficas do alunado das escolas públicas no Brasil, ou mesmo em Belo
Horizonte. É preciso levar em consideração que dentro do conjunto destas escolas de caráter público, por sua gratuidade, existem aquelas que se diferenciam em função
das condições socioeconômicas médias das famílias de seu alunado.
16 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
As lutas que se desenvolveram no
Brasil em favor da democratização do
acesso à educação, e as lutas que hoje
se desenvolvem no campo da educa-
ção infantil, da educação de níveis fun-
damental e médio, e no ensino superi-
or, não se reduzem à reivindicação de
acesso aos meios legítimos de ascen-
são social.
Em geral, estes estudantes identificados como os que çar-se por fazer jus à identidade a eles imputada. Trata-se,
não estão interessados em aprender são aqueles rotulados portanto, de um processo ritualístico de construção identitária,
como os “perturbadores” da sala de aula, e da escola, além onde as percepções dos adultos e dos outros jovens ajudam
de serem aqueles que efetivamente não aprendem na esco- os demais jovens a construírem a imagem de si mesmos.
la o que deveriam aprender. Membros de famílias vistas como
“desestruturadas”, estes estudantes são, em grande parte, “As cotas raciais ameaçam a qualidade das uni-
oriundos de estruturas familiares com baixo nível versidades brasileiras”
socioeconômico e baixo nível de escolaridade. Em outras Quando participamos de uma discussão sobre os pro-
palavras, estes são os estudantes da “massificação” - filhos blemas da educação no Brasil, não é raro ouvirmos dizer que
ou netos daqueles que tiveram cerceado o seu direito à a grande vilã é a educação pública de nível básico. Por serem
escolarização formal – e, portanto, estão obrigados a apren- públicas, falta tudo a estas instituições: as verbas são insufi-
derem dentro da própria escola as regras do ambiente esco- cientes, a qualificação dos docentes é inadequada, não exis-
lar. Não me refiro aqui à velha máxima popular, segundo a te empenho dos docentes ou da direção e o empenho dos
qual os estudantes pobres, incluindo os negros, não rece- alunos inexiste. Por outro lado, ao discutirmos o caso especí-
bem educação “de berço” e, portanto, precisam ser educa- fico do ensino superior no Brasil, as representações acerca
dos na própria escola. Refiro-me aqui às discussões mais dos respectivos níveis de qualidade entre setor público e pri-
complexas apresentadas pelo sociólogo francês Pierre vado parecem se inverter. De maneira quase consensual,
Bourdieu (1998), que denunciou o caráter elitista da educa- reconhece-se que os problemas de qualidade, de má forma-
ção escolar, ao tratar como universal a cultura particular a que ção ou de mau desempenho localizam-se, majoritariamente,
as classes dominantes tinham acesso no ambiente domés- no ensino privado. Neste plano, portanto, ao passo que a
tico, e se aprofundavam no ambiente escolar. rede pública é vista como o lugar da excelência, a rede priva-
Além dos aspectos citados acima, há outras caracte- da é constantemente criticada pela má qualidade de seus
rísticas que são utilizadas, e nos ajudam a identificar estes ensinamentos e pela incompetência de seus produtos, ou
estudantes que não estão “a fim” de aprender. Em algumas seja, seus profissionais diplomados.
instituições de ensino, os alunos “perturbadores” são, Do mesmo modo que as décadas de 1930 e 1940
ritualmente, agrupados em turmas nomeadas com as mais testemunharam as críticas direcionadas à educação básica
longínquas letras do alfabeto: D, E ou F, dependendo do nú-
no Brasil, voltada preferencialmente para o atendimento às
mero de estudantes naquela série ou ciclo escolar. Outras
elites, em face dos anseios por democratização, os anos de
instituições, auto-proclamadas mais progressistas, substi-
tuem as letras por cores aparentemente neutras: amarelo, 1990 e 2000 presenciaram o enfraquecimento da legitimida-
verde, azul, vermelho, etc.; mas continuam a manter as mes- de das universidades públicas, também em face aos anseios
mas relações hierarquizantes entre as turmas. Nas turmas, por democratização do acesso e da permanência no interior
por sua vez, nomeadas simbolicamente como as “mais difí- destas instituições. Segundo Boaventura de Souza Santos, a
ceis”, os índices de defasagem idade/série são bem mais crise vivida pela universidade foi provocada pelo fato de a
acentuados do que no restante da escola. Para além do com- universidade ter deixado de ser uma instituição consensual,
ponente discriminatório baseado na condição em face da contradição entre as restrições de acesso, por um
socioeconômica, é possível observar em alguns contextos a lado, e as exigências sociais e políticas de democratização
interação do componente discriminatório baseado no da universidade e da reivindicação da igualdade de oportuni-
pertencimento racial dos estudantes. Em turmas como es- dades para os filhos das classes populares, por outro. Neste
tas, não é raro notar que o percentual de estudantes negros é contexto, as discussões sobre a democratização do acesso
perceptivelmente mais acentuado do que nas demais tur- ao sistema de ensino superior ganharam novos formatos,
mas da escola. Este processo de guetificação intra-escolar, não se resumindo à necessidade de ampliação da oferta de
justificado por preceitos de desempenho escolar, toma lugar vagas nos estabelecimentos de ensino.
mesmo nas escolas periféricas, onde o percentual de pretos As políticas de reserva de cotas para estudantes oriun-
e pardos é mais elevado. Mesmo nestas, é possível perceber dos de escolas públicas e que se auto-declarem negros, uma
uma nítida distinção cromática entre as turmas. das modalidades de Ações Afirmativas que vem sendo
A cada novo ano letivo, o ritual se repete: novos implementadas nos últimos dez anos no Brasil, têm sido um
gestores, professores e alunos são advertidos acerca das dos instrumentos preferenciais para levar a cabo o anseio de
características e do comportamento destes alunos proble- democratização das instituições de ensino superior público4 .
máticos. Neste contexto, “os problemáticos” precisam esfor- Nilma Lino Gomes, professora da Faculdade de Educação

4
De acordo com levantamento feito pelo “Fórum Interinstitucional em defesa das Ações Afirmativas” (www.acoes.ufscar.br), cerca de setenta instituições de ensino
superior, entre estaduais e federais, já haviam implementado alguma forma de política de ações afirmativas de acesso ou de permanência, para estudantes negros,
indígenas e/ou oriundos de camadas populares até o final de 2007.
5
Boletim da UFMG, 02/05/2002.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 17
da UFMG, em artigo intitulado “Ações Afirmativas: por que tornam-se perigosamente eficientes. No campo das políticas
não?”5 , chama a atenção para a necessidade de que as po- públicas, a promulgação da lei 10.639/2003, que altera a LDB
líticas de equidade racial não sejam uma mera transposição e institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura
de experiências externas, mas que sejam eficazes no com- africana e afro-brasileira na educação básica, é um exemplo
bate às formas de desigualdades brasileiras, sobretudo as concreto da luta dos movimentos negros, bem como de seus
educacionais. aliados, em prol da equidade racial e melhoria da educação
As cotas são apenas uma das estratégias de aplicação no Brasil.
dessas ações e, ao serem implantadas, desvelam a existên- Por fim, creio que as inúmeras lutas que se desenvol-
cia de um processo histórico e estrutural de discriminação veram na história do Brasil em favor da democratização do
que assola determinados grupos sociais e étnico-raciais. Tal- acesso à educação, e as lutas que hoje se desenvolvem no
vez por isso elas incomodem tanto a sociedade brasileira, campo da educação infantil, da educação de níveis funda-
uma vez que ainda impera em nosso imaginário a crença de mental e médio, na educação de jovens e adultos, na educa-
que somos uma “democracia racial”. Ora, a realidade social e ção do campo e no ensino superior, não se reduzem à reivin-
educacional dos negros e mestiços revelada pelas pesquisas dicação de acesso aos meios legítimos de ascensão social;
mais recentes nos mostra o contrário. (Boletim da UFMG, 02/ mas são também lutas pela consolidação de direitos bási-
05/2002) cos. Deste ponto de vista, essas lutas são formas legítimas
Entre os críticos das políticas de Ações Afirmativas, um de defender o direito de ocupar os espaços públicos, e de se
dos argumentos mais utilizados é o de que a entrada de es- rebelar contra o dito popular: “ponha-se no seu lugar”. A
tudantes negros (pretos ou pardos) e oriundos de escolas radicalidade desses sujeitos (jovens negros, do ensino fun-
públicas ameaçaria a qualidade acadêmica das universida- damental, médio ou superior) está, portanto, na atitude de
des brasileiras, lócus da excelência em ensino, pesquisa e questionar frontalmente a postura antipedagógica daqueles
extensão. De acordo com Antônio Emílio de Araújo, (professores, alunos e diretores, negros e brancos, do ensi-
Uma vaga em uma universidade pública é um bem no fundamental, médio e superior) que resistem em conside-
público, que deve ter o melhor uso possível. O exame criterioso rar a legitimidade da presença desses sujeitos, nesses es-
de sua ocupação se impõe de forma irrevogável. É urgente paços educativos.
responder à seguinte pergunta: as universidades públicas
podem desenvolver políticas de inclusão social para atender
aos justos anseios sociais? O estabelecimento de cotas, raci- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ais ou de escola pública, parece responder afirmativamente a
ARAÚJO, Antônio Emílio Angueth de. Muito além da reserva de
essa pergunta. Como tem sido implementada, no entanto, vagas. Diversa:Revista da UFMG. Ano 1 - nº. 2 – 2003.
essa solução destroi o princípio do mérito acadêmico, funda- BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: “As desigualdades
dor e mantenedor da milenar instituição universitária (ARAÚ- frente à escola e à cultura”. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI,
JO, 2003, 7). Afranio. Escritos de educação, Petrópolis: Vozes, 1998.
As primeiras avaliações empíricas já disponibilizadas CANÁRIO, Rui. O que é a Escola? Um “olhar sociológico”. Porto:
sobre o desempenho acadêmico dos estudantes cotistas de Porto Editora, 2005.
várias universidades do Brasil nos indicam que, em geral, o DAYRELL, Juarez. “A escola “faz” as juventudes? Reflexões em
rendimento médio destes alunos tem sido igual ou superior torno da socialização juvenil”. Educação e Sociedade, Campi-
aos demais estudantes, o que nos faz pensar que as previ- nas, v. 28, n. 100, 2007.
sões catastróficas acerca da queda de qualidade acadêmica FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 12. ed. Rio de Janeiro:
estavam, e ainda estão, baseadas em preconceitos e/ou em Graal, 1996.
interesses particulares6 . Ante o exposto, vale a pena pensar- GOMES, Nilma Lino . Cotas étnicas e democratização da universi-
mos se, no caso do ensino básico no Brasil, as avaliações dade pública. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 9, n. 53, p.
negativas acerca dos alunos “perturbadores” são produtos 55-61, 2003.
exclusivo de suas inaptidões cognitivas. PEREIRA, Marcelo Ricardo. A impostura do mestre: declínio e ética
em tempos modernos. In: VI Fórum Mineiro de Psicanálise, 2006,
“Meu lugar é aqui” São João Del-Rei MG. Anais do VI Fórum Mineiro de Psicanálise.
Guardadas as devidas proporções, podemos São João Del-Rei : UFSJ, 2006. p. 1-12.
PETRUCCELLI, José Luís. Quatro anos de políticas de cotas: a
reconhecer, tanto nas diferentes propostas de Ações opinião dos docentes. Rio de Janeiro: Laboratório de Políticas Pú-
Afirmativas que vem sendo implementadas pelo Brasil, quanto blicas, 2006.
nas diferentes ações em prol da qualidade e da equidade TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro. Os professores como sujei-
racial na educação básica, formas contemporâneas de tos sócio-culturais. In: Juarez Dayrell. (Org.). Múltiplos olhares
superar as estruturas de desigualdade racial existentes no sobre Educação e Cultura. 1 ed. Belo Horizonte -MG: Editora UFMG,
país. O reconhecimento das barreiras e dificuldades de 1996, v. , p. 179-194.
acesso e permanência das populações negras na
escolarização formal, tanto por parte dos próprios indivíduos
negros que as experimentam, quanto por parte da comunidade
acadêmica que tem comprovado este cenário por meio de Abstract
uma série de estudos científicos, têm possibilitado o
surgimento de novas estratégias de superação dessas
desigualdades. Through the identification of some social
O foco atual de luta dos movimentos sociais na representations in the educational field, which, in general,
educação superior não significa, em absoluto, o abandono tend to illegitimate the right to the public education of groups
das lutas em prol da democratização da educação básica. No members, socially minorized, specially young negroes, the
entanto, em razão da quase universalização da educação
básica no Brasil, as lutas a serem travadas em direção à article presents some challenges faced by the movements
verdadeira democratização deste nível de ensino, não se centra that fight for the right to the difference and by the education
mais nas lutas em prol do acesso, mas nas lutas pelo direito democratization in all levels.
à diferença. Em outras palavras, trata-se de denunciar e
discutir formas de superação dos preconceitos e
discriminações intra-escolares que, por serem invisíveis,
6
José Luis Petruccelli, 2006.
18 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Cultura

Quilombos Urbanos em Belo Horizonte:


as comunidades de Mangueiras e Luízes1
Síntese dos Relatórios
Antropológicos de Carac-
terização, Histórica, Eco-
nômica e Sociocultural, de
duas comunidades qui-
lombolas urbanas, situa-
das em Belo Horizonte: a
dos Luízes e Mangueiras,
realizados pelo Núcleo de
Estudos de Populações
Quilombolas e Tradicio-
nais, da UFMG.
A comunidade dos Luízes reunida com os pesquisadores da UFMG

O
processo de redemocratização brasileira, a partir da década de 1980, Identidade Quilombola:
potencializou a visibilidade de novas identidades coletivas e a emergên- parentesco e território
cia de novos sujeitos políticos que, problematizando a ideia de nação
homogênea, passam a demandar o direito à diferença, a serem reco- Para abordar o estudo das co-
nhecidos e respeitados em suas singularidades e, por elas, a demandarem polí- munidades quilombolas é necessário,
ticas públicas específicas, garantidoras da diversidade étnica, cultural e territorial em primeiro lugar, flexibilizar a rígida vi-
que compõe a nação brasileira2. Entre estes novos atores, destacou-se o movi- são histórica ou arqueológica, que mui-
mento quilombola. tas vezes opera como camisa de força
No processo de discussão da Constituição Federal de 1988, ano em que se ao apreender esses grupos como so-
comemorou o centenário da abolição da escravidão, a mobilização dos grupos brevivências do passado colonial, difi-
quilombolas, apoiada pelo movimento negro, resultou no artigo 68 do Ato das cultando nossa percepção do sentido
Disposições Constitucionais Transitórias, que reza: "Aos remanescentes das co- do fenômeno quilombo nos processos
munidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a sociais atuais. O termo "Comunidade
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". Com Quilombola", hoje, está longe de se re-
este artigo, a Constituição Federal abria a oportunidade de se promover uma polí- ferir exclusivamente ao sentido históri-
tica fundiária de inclusão de grupos étnicos que não tinham seus territórios regula- co original, dado pela legislação colo-
rizados. nial, usualmente de reunião de negros
O Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais da UFMG, escravos fugidos em formas autôno-
(NuQ-UFMG) realizou, em 2008, para o INCRA-MG, dois Relatórios Antropológicos mas de organização social e econômi-
de Caracterização, Histórica, Econômica e Sociocultural, de duas comunidades ca. No imaginário social da época, o qui-
quilombolas urbanas, situadas em Belo Horizonte: a comunidade dos Luízes, na lombo seria o local dos "fora da lei", dos
zona Oeste da cidade, no bairro Grajaú, e Mangueiras, na região do bairro Ribeiro marginais perante a ordem vigente. Os
de Abreu, na saída para Santa Luzia3. Os relatórios fazem parte do processo de processos recentes de valorização da
regularização fundiária dos territórios destas comunidades e constituem estudos identidade negra no Brasil, bem como
que têm por objetivo apresentar uma caracterização social e cultural ampla, visan- de crítica à nossa história escravagista,
do a compreensão dos traços da identidade social e da sua territorialidade. promoveram um ajustamento de senti-

1
Artigo produzido pelo Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais (NuQ), vinculado ao Departamento de Sociologia e Antropologia (DSOA), Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). De caráter pluridisciplinar e interinstitucional, dentre as atividades do NUQ
destacam-se os Relatórios Antropológicos de Caracterização, Histórica, Econômica e Sócio/Cultural realizados nas comunidades quilombolas dos Luízes e de
Mangueiras, em Belo Horizonte; nas Comunidade de Marques, em Carlos Chagas, e Comunidade de Mumbuca, em Jequitinhonha. Neste artigo colaboraram: Daniel
Schroeter Simião, Leonardo H.G. Fígoli, Alexandre Sampaio, Cynthia Adriádne Santos, Laura Gomes Nascimento, Juliana Miranda Soares Campos, Fabiano
Bechelany, Isadora Teixeira Vilela e Mariana Oliveira.
2
SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras (2008) Terras de quilombo: direito territorial etnicamente diferenciado, reparação histórica e reforma agrária. Mimeo.
3
Belo Horizonte possui hoje três comunidades quilombolas "certificadas" pela Fundação Cultural Palmares. Além de Mangueiras e os Luízes a comunidade de Manzo
Ngunzo Kaiango situada na região do bairro Santa Efigênia.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 19
do ao termo, permitindo o seu uso para caracterizar a realidade de comunidades Utilização, não necessariamente
negras expostas a históricos de discriminação e descaracterização, desejosas de coletiva, do território e dos recursos na-
recuperar seu sentido de grupo e reforçar positivamente os traços que as distin- turais.
guem da população envolvente. E em alguns casos, manifestações
Segundo o Decreto Federal 4887/2003, comunidades remanescentes de culturais e até religiosas de matriz afri-
quilombo são caracterizadas como: "grupos étnico-raciais, segundo critério de auto cana.
atribuição, com trajetória histórica própria, dotado de relações territoriais específi- No caso de Luízes e Mangueiras,
cas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência a opres- a autoimagem desses grupos étnicos
são histórica sofrida" (Art. 2º). Portanto, o termo teve seu sentido histórico ampliado, assenta fortemente nos laços atuais de
incorporando as comunidades étnicas onde a identidade do grupo e sua territoriali- parentesco e no território ocupado.
dade estão diretamente relacionadas à opressão vivida e em consequência da exclu- Como os processos de formação das
são social resultante do processo escravista. identidades são geralmente indistinguí-
Assim, nos grupos estudados em Belo Horizonte, considerados como re- veis das práticas e das percepções dos
manescentes de quilombos em contextos urbanos, tratou-se de apreender, funda- espaços habitados e explorados pelos
mentalmente, a significação (ou re-significação) do termo à luz das ações dos grupos ao longo do tempo, os estudos
movimentos sociais de reconhecimento das comunidades quilombolas. Em uma realizados pelo NuQ enfocaram os terri-
perspectiva antropológica, e para fins de aplicação dos direitos constitucionais tórios pleiteados pelas comunidades,
garantidos a essas comunidades, as identidades coletivas devem ser vistas, por não tanto como objetos de identificação
um lado, como resultado de construções ao longo da história, mas deve-se tam- cartográfica, mas como dimensões vivi-
bém, e simultaneamente, compreender essas identidades operando nas atuais das, de modo a não descuidar dos pro-
condições de vida, na interação desses grupos com outros segmentos sociais. cessos históricos de formação das iden-
Nos estudos de identidade étnica é fundamental levar em conta tanto a perspectiva tidades. Os espaços territoriais são,
interna dos grupos, ou seja, as diferenças e distinções que os próprios membros assim, vistos como um direito associa-
da comunidade consideram significativas para a definição dos limites grupais, do a um longo processo de localização,
bem como aquelas assinaladas de uma perspectiva externa, por outros segmen- utilização, construção e defesa desses
tos em franca interação com as comunidades quilombolas. espaços, intimamente vinculado ao pro-
A construção de uma identidade coletiva diferenciada é vista na antropologia cesso de construção da própria identi-
como um processo social dinâmico e feito em contraste com outros grupos e dade coletiva, assentada que está no
outras identidades. Assim, a afirmação da identidade de um grupo, seja indígena território apropriado e vivido, por várias
ou quilombola, depende, em certa medida, da existência de um "outro" frente ao gerações. No caso específico de Luízes
qual se constrói a identidade de um "eu" diferenciado. Do ponto de vista da antro- e Mangueiras, um espaço vivido por
pologia, grupos étnicos são aqueles que persistem como tais ao longo do tempo, mais de um século, antes mesmo da
com formas de organização próprias, caracterizados por experimentar, no passado existência da cidade de Belo Horizonte.
e no presente, interações sociais de fortes contrastes e de contradição social com Pode-se dizer que estas comunidades,
outros segmentos da sociedade. Estas relações de oposição, chamadas contras- inicialmente rurais, foram atingidas pela
tivas, são geralmente relações de interação marcadas pela opressão e pelo confli- expansão dos perímetros urbanos.
to social, responsáveis pela emergência de fronteiras grupais de caráter étnico- Os principais desafios vividos
raciais, que geralmente se expressam sob rótulos do tipo "nós-outros", que expri- atualmente por estes grupos giram em
mem tanto critérios étnicos de pertencimento do grupo, geralmente assentados no torno do reconhecimento e do respeito
parentesco e no território, bem como critérios de exclusão e preconceito, quando a seus territórios, para que possam se
vistos da perspectiva externa. desenvolver socialmente, de forma sus-
O reconhecimento do caráter histórico e contingente das identidades étni- tentável. A discriminação, a invisibilida-
cas leva antropólogos e historiadores a perceberem que tal identidade é dinâmica, de social5 e a desigualdade de aces-
sempre sujeita a transformações ao longo do tempo. Frederick Barth (1998)4 carac- sos (acesso à justiça, ao poder público,
terizou isso como o processo de constituição de um "coletivo relacional" que se e às políticas públicas) fizeram com que
expressa, em certos momentos, como unidade política. A própria ideia de uma os quilombolas fossem sendo sistema-
"tradição", comumente evocada como avalizadora de uma identidade única para ticamente excluídos do direito à cidade.
um grupo, é, há tempos, vista como resultado de um processo social de negocia- Este processo, historicamente, tem ge-
ção de versões legítimas de uma ou mais histórias. Busca-se, assim, evitar a rado a expropriação da maior parte de
apreciação ingênua de que uma identidade reivindicada recentemente só pode ser seus territórios, atualmente fortemente
legítima se puder demonstrar que ela já era utilizada por séculos a fio. pressionados pela expansão da cidade.
Desse modo, imagens e modos de vida sistematicamente afirmados como O poder público, de forma geral,
próprios de um grupo e materializados por meio de crenças, cultos e práticas tem dificuldades em compreender e
cotidianamente repetidas configuram uma realidade altamente objetiva, capaz de atuar junto a estes territórios que são
ser acionada como demarcadora de uma identidade própria, mesmo que seus coletivos, pertencentes a um grupo, mas
registros sejam relativamente recentes e marcados por processos históricos con- não são públicos. Para dar um exem-
temporâneos. Tais elementos podem e devem ser observados como definidores plo, a comunidade de Mangueiras só foi
de identidades emergentes, tão legítimas e potencialmente tradicionais quanto ter acesso a água da Copasa em 2005,
outras tidas como ancestrais. As tradições - aquilo que é vivido como tradicional - depois de muita pressão da comunida-
são também resultantes de respostas a contextos históricos contemporâneos. de, enquanto os bairros vizinhos, alguns
Algumas das características destas comunidades são: com menos de dez anos de história, já
Ancestralidade africana e/ou afro/brasileira. tinham acesso à rede de água e esgo-
Relações de parentesco entre os membros das comunidades. to. A justificativa dada pelos órgãos pú-
História de ocupação do território que os relaciona com a resistência à opres- blicos era da dificuldade de lidar com
são histórica sofrida. Muitas vezes esta história é contada por uma espécie de uma situação que não se encaixava no
"mito de origem", que tem um significado simbólico sobre a identidade do grupo. procedimento normal realizado pela
Vínculos históricos e culturais com o território que ocupam, possuindo formas empresa, como realizar um "serviço pú-
específicas de se apropriar e se reproduzir socialmente neste espaço. blico" em um espaço considerado, pela

4
BARTH, Frederick. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. (orgs.) Teorias da Identidade. São Paulo: Ed. UNESP, 1998.
5
A indiferença, desconsiderar a existência do "outro", em geral, é uma atitude mais agressiva do que o próprio combate.
20 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Atualmente, a região Oeste de
Belo Horizonte, onde se encontra a área
ocupada pelo quilombo de Luízes, é ca-
racterizada por um processo de intensa
urbanização. A presença de grandes re-
sidências, de comércio e de imponen-
tes edifícios de classe média cercando
a comunidade, compõe uma paisagem
diferenciada física e socialmente, entre
o bairro e o quilombo. Moradores das
proximidades da comunidade resumem
este contraste descrevendo o quilombo
como "um bairro dentro do bairro", re-
Vista conhecendo assim a existência de uma
panorâmica forma singular de organização social
da comunidade
dentro do Grajaú.
Mangueiras,que
possui mais de Presentes há mais de 100 anos
120 anos de no local, a história das sete gerações
história. dos Luízes funde-se, de certa forma, à
da construção da própria cidade que os
empresa, como "privado". A mesma questão, a dificuldade de lidar com uma reali- foi cercando. No começo, o quilombo de
dade singular, pode ser colocada para os demais serviços públicos como saúde, Luízes fazia parte de uma zona subur-
educação, e até mesmo um Plano de Zoneamento destas áreas. A prefeitura tem bana da cidade planejada por Aarão
feito alguns esforços neste sentido, mas consideramos que ainda há muito cami- Reis, no final da década de 1890, e, ex-
nho pela frente. cluída do anel formado pela Avenida do
Contorno, passou décadas relativamen-
Os Luízes te afastada do processo de urbanização.
Os remanescentes do quilombo de Luízes - também conhecido no bairro Com o crescimento da cidade, as re-
Grajaú como Vila Maria Luiza Moreira - reivindicam o território situado na Zona giões do entorno da chamada "zona ur-
Oeste da cidade, sobre a Avenida Silva Lobo, constituído por um núcleo habitacio- bana", até então precárias, começam a
nal, que reúne mais de 70 residentes, e as áreas adjacentes, outrora áreas de ter acesso aos signos do desenvolvi-
perambulação e de obtenção de recursos naturais, que garantiram durante anos a mento e, entre as décadas de 1930 e
sobrevivência do grupo. Completando 114 anos de vida coletiva nesse território, o 1940, por exemplo, o bairro Calafate,
espaço pleiteado constitui local de moradia, de produção, de reprodução, de cele-
próximo à comunidade (importante re-
bração da vida comunitária e da religiosidade do grupo. Hoje, o território comunitá-
rio é objeto de intensa competição espacial travada com diversos segmentos soci- ferência para avaliar o ritmo de desen-
ais, agravada nas últimas décadas com a intensificação da expansão urbana na volvimento da região) recebe asfalto e
região. O crescimento urbano acelerado tem ocasionando perdas importantes de bondes elétricos. Nas décadas seguin-
espaços vitais e tradicionais da comunidade, obrigando o grupo a assumir defe- tes, dentro do contexto nacional de cres-
sas constantes, muitas vezes em vão ou com escasso sucesso, dada a desigual- cimento urbano, a cidade de Belo Hori-
dade de poder político e econômico que enfrentam. zonte, consolidada enquanto capital não
A origem dos Luízes remonta a fins do século XIX, ainda no período escravo- só política, mas também econômica, vê
crata, no município de Nova Lima. Contam os Luízes que Anna Apolinária, escrava, sua população aumentando em larga
teve nove filhos com Manoel Luiz Moura, senhor de escravos. Os descendentes escala e, junto com ela, a forte verticali-
dessa união receberam, como era costume, o sobrenome Luiz, de onde provêm o zação das construções, a multiplicação
atual etnônimo Luízes, pelo qual a comunidade se autodenomina. dos acessos viários, os loteamentos e
Segundo as condições e hábitos da época - a recente abolição da escrava- a especulação imobiliária avançavam
tura e a posição do negro na sociedade global - geralmente restavam aos descen- rumo ao oeste.
dentes de escravos escassas opções para uniões matrimoniais. Não por acaso, Dentro dessa lógica de rápido
três irmãs, filhas de Anna Apolinária, celebram matrimônio com três irmãos, filhos crescimento, a década de 1970 foi mar-
de Nicolau Nunes Moreira, também ex-escravo, e residente na região rural da inci- cada pela política "sanitarista" de urba-
piente Belo Horizonte, à margem do córrego Piteiras. nização onde, como parte do projeto de
A segunda geração se assentou, já em 1895, nas terras onde ainda hoje a drenagem de córregos e construção de
comunidade dos Luízes reside. Nessa época, Nicolau Nunes Moreira reuniu sua
avenidas na cidade, o córrego das Pitei-
família à margem do córrego Piteiras, em glebas de terras que adquiriu da divisão
da antiga Fazenda Calafate, promovida pela Comissão Construtora de Belo Hori- ras, em cujas margens viviam os Luí-
zonte. Os casais originados da aliança entre essas duas linhagens familiares zes, foi drenado e sobre ele construída
passaram a residir nas terras de Nicolau, dando início a uma crescente comunida- a atual Avenida Silva Lobo. A abertura
de, um grupo de parentes constituído por laços de sangue e por matrimônios que desse corredor foi o marco de mudan-
se estendeu pelas terras vizinhas, formando uma ampla rede na região. ças importantes na região Oeste, pois
Documentos e relatos diversos dos membros da comunidade se entrecru- inaugura uma aceleração na ocupação
zam no esforço de reconstituição dos primórdios do quilombo dos Luízes, no terri- dessa porção de espaço urbano, de-
tório hoje habitado. O casal Vitalino Nunes Moreira, filho de Nicolau, e Maria Luiza nominada Grajaú. Com o aumento da
Moreira, filha de Anna Apolinária, se estabeleceu nas terras do patriarca Nicolau, infraestrutura, o fluxo de população para
formando o embrião da atual comunidade, moradores da conhecida Vila Maria a região, até então bastante isolada, foi
Luiza Moreira, todos descendentes desse primeiro matrimônio. estimulado, o que modificou o próprio
A residência comum ao longo de todos esses anos produziu um tipo espe- ritmo da vida local. Assim, na região,
cial de vínculo com o lugar, fundamental para a memória social do grupo e indisso- antes marcada por grandes espaços
ciável de sua identidade étnica, ativada e fortalecida através das sucessivas mobi- vazios, se multiplicaram as vias de aces-
lizações pela manutenção e defesa desse território. so, o comércio e as habitações. Dessa
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 21
forma, o contato dos Luízes com a cidade se intensificou no período. mar sua identidade étnica por meio de
O espaço ocupado pelos Luízes sofreu muitas mudanças em função da celebrações. Todos os anos é realizada
rápida expansão urbana e das pressões exercidas pela especulação imobiliária a a Missa Afro, na semana em que se co-
partir da abertura da Av. Silva Lobo. Disso resultou gradativa diminuição de sua memora o dia da consciência negra. O
extensão, movida por uma sequência de invasões forçadas e transações comerci- grupo celebra também, na semana do
ais irregulares, das quais buscaram se defender, porém, sem muito êxito. Além dia 13 de maio, dia da abolição da es-
disso, as situações de discriminação racial e econômica também se multiplicam cravatura, a saudação à mãe natureza,
contra os moradores do quilombo, alimentando uma relação marcada pela contra- através de uma encenação que englo-
dição e pelo conflito de interesses com a sociedade envolvente, traduzida na forma ba os quatro elementos vitais: terra, fogo,
da acirrada disputa pelo espaço. O contexto ambiental em que viviam marcou ar e água.
profundamente as práticas e concepções dos Luízes. O modo de vida tipicamente Ao longo de sua história, Man-
rural dos primeiros momentos sofreu com a crescente transformação urbana do gueiras viveu conflitos de ordem territo-
entorno, que trouxe mudanças na organização das moradias, nas atividades labo- rial como pressões para a venda de ter-
rais, na configuração dos espaços de convivência e nas fronteiras espaciais esta- ra e desapropriações. A comunidade
belecidas. sofre também consequências das rápi-
A identidade, fundada na descendência comum e nas relações históricas das transformações advindas da urba-
com o território, é compartilhada inclusive pelos representantes das novas gera- nização da região. A mais direta atual-
ções que já não residem no local, mas que ainda mantêm fortes laços com espaço mente é a ocupação desordenada de
herdado e com o grupo de residentes. Traduz-se, principalmente, num modo sin- áreas limítrofes, impulsionadas pela ex-
gular de viver que se relaciona com a ancestralidade negra celebrada até hoje pansão da cidade. A pressão urbana
através de festas religiosas tradicionais, como a Festa de Sant´Ana, mas também envolve a comunidade também na or-
em um estilo de vida próprio, caracterizado pela cooperação socioeconômica do dem de conflitos ambientais - com a
grupo. Forma organizacional e cultural próprias que reforçam o contraste entre os contaminação de minas de água do terri-
Luízes e a sociedade envolvente, contraste que, muitas vezes, transformado em tório e a redução da flora local - e so-
preconceito pelos interesses e conflitos que recobre, alimenta a segregação soci- ciais - devido aos índices de violência
al e espacial do grupo. de bairros vizinhos e à discriminação
sofrida. O crescimento do vetor norte de
Mangueiras Belo Horizonte, promovido principalmen-
Localizada às margens da MG-20, rodovia intermunicipal que liga as cida- te por meio de empreendimentos tais
des de Belo Horizonte e Santa Luzia, a comunidade de Mangueiras, constituída de como a duplicação da MG20, que recen-
19 famílias residentes em 15 casas, está situada próxima ao bairro Ribeiro de temente expropriou parte do território da
Abreu e configura uma espacialidade distinta de seu entorno. A área abriga uma comunidade. As obras da Linha Verde e
vegetação densa em contraposição aos terrenos desmatados pelas ocupações a implantação do Centro Administrativo
circundantes. A comunidade é também portadora de uma identidade étnica, histó- do Estado de Minas Gerais, a pouco
rica e cultural, assim como de formas de sociabilidade próprias, que são singula- mais de cinco quilômetros da comuni-
res em relação aos demais moradores da região. Trata-se de uma comunidade de dade, têm acarretado também pressão
descendência comum a um casal de lavradores negros, Cassiano e Vicência, que, imobiliária devido à maior procura por
já na segunda metade do século XIX, utilizava as terras do Ribeirão da Izidora para habitação nesta região, bem como uma
seu sustento e a reprodução de seu modo de vida. Dos originais "oito alqueires de demanda por áreas de proteção ambi-
cultura", aproximadamente 387.000 m2, relatados no inventário deste casal, hoje ental que compensem projetos de gran-
estas 19 famílias vivem em uma área de aproximadamente 17.000 m2. Desta área de impacto. Além disso, existe hoje uma
atual, cerca de 90% tem importantes restrições de uso por se tratar de área de proposta de implantação de uma Uni-
preservação permanente devido a forte aclividade da mesma e das inúmeras nas- dade de Conservação, a Mata Werneck,
centes. que nos moldes em que foi inicialmen-
Ao longo de mais de 120 de história, Cassiano, Vicência e seus descen- te proposta, sem a participação da Co-
dentes (hoje chegando a seis gerações), viram a criação da cidade de Belo Hori- munidade de Mangueiras, tornaria esta
zonte, no ano de 1897, e participaram de seu crescimento. Com a expansão da comunidade "intrusa" de parte do seu
capital e o rápido desenvolvimento dos bairros do entorno ocorridos nas últimas
território histórico.
décadas, a tradição rural da comunidade foi sofrendo transformações, conforman-
Em consequência desses pro-
do no território um estilo de vida "rurbano", apresentando um cotidiano de trabalho
cessos vividos ao longo de sua história,
caracterizado por uma fusão de atividades rurais e urbanas. A maior parte dos
moradores, atualmente, atua como trabalhador informal na cidade. Alguns man- hoje os descendentes de Cassiano e
gueirenses também cultivam pequenas roças e criam animais, práticas que per- Vicência estão restritos a uma parcela
duram desde quando Cassiano e Vicência viviam no território. ínfima das terras originais, e sofrendo
A comunidade tem sido discriminada por sua identidade étnica e pelo fato ameaças de uma diminuição ainda
de não se integrar completamente aos modos de vida urbanos, ou seja, por não mais significativa de seu território, que
ser igual aos "outros". O fato de residirem em uma área de muita mata foi por muito só poderá ser contida por meio da deli-
tempo motivo de chacotas alheias, chegando o grupo a ser classificado por alguns mitação e titulação definitiva de seu ter-
vizinhos como "bichos do mato". Outra fonte de discriminação vem de desafeições ritório, processo atualmente em curso.
religiosas. Na década de 80 funcionou na comunidade um terreiro de umbanda e, Mesmo com as transformações
durante os trabalhos espirituais, o som dos tambores ecoava pela região chaman- físicas e sociais que vem ocorrendo no
do atenção de parte da vizinhança que generalizava os mangueirenses como um local ao longo do século, os descenden-
povo "macumbeiro", "feiticeiro", "esquisito". Alguns chegam a contar casos em que tes do casal fundador que ali residem
vizinhos jogavam água benta nos moradores quando eles eram crianças. Há rela- preservaram um sentido de comunida-
tos sobre moradores próximos à comunidade que não deixavam seus filhos brin- de que agora reemerge, diante de um
carem com as crianças de Mangueiras, na área do quilombo, temendo que aquela contexto histórico favorável, por meio da
fosse uma região pagã e amaldiçoada. identidade quilombola. A ancestralida-
Traços por muito tempo oprimidos, típicos das formas de viver oriundas do de comum e o forte vínculo com aquele
quilombo, como o batuque dos tambores, a cor da pele, os penteados afro e a território evidenciam-se hoje por um
distribuição de casas em meio a mata fechada, transformaram-se nos dias atuais sentido de coletividade expresso em
em recursos culturais a serem reapropriados como fonte de orgulho e a possibi- elementos de diversas ordens, desde o
lidade de encarar a diferença de maneira positiva. Hoje, a comunidade tenta reafir- trato das pessoas por apelidos, o
22 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
compartilhamento de memória histórica de eventos comuns, o padrão de casa- Abstract
mentos próximos, o compartilhamento de saberes e crenças relativas ao uso me-
dicinal e místico da flora da região, entre outros. Esse sentido de coletividade que
os une fez surgir a necessidade da identificação do grupo como Comunidade The Studies Nucleus of
Quilombola e de sua demarcação territorial, hoje elemento prioritário para a pre- Quilombolas and Traditional
servação da unidade do grupo, especialmente diante de um contexto de fortes Population of UFMG carried out, in
ameaças à sua territorialidade.
2008, two Anthropological Reports of
Por fim, ou por um novo recomeço Historical, Economic and Socio-
Assim como a identidade destas comunidades está em constante renova- Cultural Characterization of two urban
ção e transformação, resta-nos perguntar qual a identidade a ser trabalhada pelos quilombolas communities, located in
moradores da cidade de Belo Horizonte. Será a identidade de uma cidade "menor", Belo Horizonte city: The Luízes
que combate o diferente por temer que este "outro" subverta uma ordem anterior, Community, in the west of the city, in
ou se pretende ser uma metrópole onde os diferentes sejam respeitados e valori-
zados em suas singularidades, um ambiente de diversidade social, propício à
Grajaú neighborhood and the
inovação e ao desenvolvimento de todas as potencialidades humanas? Mangueiras Community, in Ribeiro de
Parafraseando o pensador português Boaventura de Souza Santos, defen- Abreu neighborhood, Santa Luzia city
demos que a cidade de Belo Horizonte procure sempre promover o direito a igual- exit. The reports are part of the
dade quando a diferença nos inferioriza e, simultaneamente, o direito a diferença territories fundiary regularization in
quando a igualdade nos descaracteriza. A existência de formas culturais distintas these communities and are studies
de apropriação do espaço urbano, marcadas por uma história e uma territorialida- which aim to present an ample social
de específicas, faz-nos pensar sobre a cidade que queremos ser, e no caso dos
quilombos aqui retratados, fornece ainda a oportunidade de nos diferenciarmos and cultural characterization for a
como uma cidade que cuida, não apenas de sua História, mas das suas muitas better understanding concerned to the
histórias, hoje vivas na diversidade cultural que abriga. social identity traces and their
territoriality.

O FAN da cidade
ADYR ASSSUMPÇÃO* O artigo apresenta
um histórico do Festival
Internacional de Arte Ne-
gra, criado em 1995, e
que, em 2009, chega à
sua quinta edição, a ser
realizada em novembro
próximo. Este ano, a Fun-
dação Municipal de Cultu-
Foto: Glênio Campregher

ra está propondo uma pro-


gramação que busca
aprofundar a visão das
matrizes e reflexos da cul-
tura oriunda da região do
S
ob a égide da celebração do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares,
o Festival Internacional de Arte Negra coroou uma agenda política na qual o grande Congo e da África
executivo municipal inaugurou uma série de procedimentos inclusivos sociais,
econômicos e culturais com vista a uma gestão democrática, popular e participativa. francofônica, no Brasil e
Nesse contexto, aos aspectos artísticos/culturais intrínsecos à natureza do
evento somou-se um significado simbólico que transformou o FAN em um marco no Caribe. O FAN faz par-
limite de referência de uma nova maneira de gerir a cidade e da apropriação dela te de um conjunto de
pelos seus habitantes.
A curadoria desta primeira edição traduziu estes significados numa ambici- ações da PBH que visam
osa programação reunindo artistas e pensadores de toda a África Negra e das resgatar a memória da po-
diásporas com artistas negros brasileiros de todas as formas de expressão. O
exemplo modelo foi o Festival Mundial das Artes Negras (Fesman) realizado em pulação afrodescendente.
1966 no Senegal, cujos principais desafios eram “tomar consciência de uma uni-

*Ator e diretor de teatro, curador e diretor artístico do FAN, coordenador geral da mostra “Imagem dos Povos”, mestre e doutorando pelo Instituto de Arte da UNICAMP.
1
www.fesman 2009.com.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 23
dade cultural das civilizações negras além de sua variedade e dos plas no que diz respeito aos desdobra-
desmembramentos impostos pela História; reivindicar o direito de expressão sem mentos desta aparente sobreposição.
complexos no palco do mundo; ter finalmente a ambição de fundar um humanismo De olho nos atuais conflitos étni-
de alcance universal; tomar consciência de uma unidade cultural das civilizações cos que ocorrem na África e também nos
negras além de sua variedade e dos desmembramentos impostos pela História; estudos mais recentes sobre a origem
reivindicar o direito de expressão.”1 do racismo fenótipo2, a edição de 2009
As proposições do Fesman encontraram ressonância três décadas depois do FAN propõe que seu centro seja uma
na experiência belohorizontina (neste intervalo aconteceu em 1977, na Nigéria, o 2° série de debates denominados Encon-
Festival Mundial das Artes Negras e Africanas - Festac) aglutinando a elas, as tros pela Paz. Esses encontros preten-
experiências de luta dos afrosdescendentes brasileiros por uma posição social dem reunir personalidades mundiais
coerente com a sua participação na construção do país e também às proposições africanas e não africanas, negras e não
de seus artistas e pensadores sobre o conhecimento e a circulação dos procedi- negras para uma celebração da paz
mentos e fazeres de origem africana na nossa cultura. mundial tendo como ferramenta as ar-
Um aspecto de importância ainda maior para o FAN residiu no fato de ele se mas da arte, da cultura e do conheci-
realizar em Belo Horizonte. Apesar de tratar-se da capital do segundo estado brasi- mento.
leiro em densidade populacional negra e centro convergente de inumeráveis tradi- Um outro fórum previsto reunirá
ções de origem africana, não se tinha a expectativa de um protagonismo de tal diretores e programadores de festivais
ordem e nem tampouco da intensidade da resposta que a população da cidade, de de arte negra e arte africana de diversos
todos os matizes étnicos e sociais, deu à programação, participando intensamen- países, com o intuito de sacramentar a
te dos shows, feiras, espetáculos de dança e teatro, cinema, exposições de artes parceria de Belo Horizonte com este cir-
plásticas, debates, cortejos e oficinas. cuito. E tendo em vista a realização do
Assim, desde a celebração inaugural, quando os tambores de Minas Ge- Ano da França no Brasil em 2009, a
rais receberam os tambores do mundo em cortejo, os efeitos do FAN sobre a curadoria propõe-se a aprofundar a vi-
cidade foram intensos e contínuos, refletindo num sem número de aspectos dos são das matrizes e reflexos da cultura
quais podemos destacar os mais visíveis como o colorido das roupas, as tranças oriunda da região do grande Congo e
nos cabelos e também outros de natureza mais subjetiva, reforçando o orgulho da África francofônica, no Brasil e
das origens negro-africanas e o apreço pelas suas manifestações. Caribe.
Oito anos se passaram para que fosse realizada a segunda edição, em Além da programação a ser apre-
2003. Esse hiato pode ser entendido de duas maneiras. A primeira delas como sentada no mês de novembro, a conti-
uma reação natural da sociedade hegemônica em relação a uma provocação de nuidade dos grupos coletivos com o de-
tal calibre. Uma segunda como um tempo necessário para que os agentes da sua senvolvimento de projetos de residên-
criação pudessem se reorganizar no sentido de exigir e construir a sua continuida- cia artística e produção de espetáculos
de. Assim, a partir da sua segunda edição, o Festival passou a ter um caráter para serem apresentados durante o fes-
permanente, com periodicidade bienal. tival. Assim o FAN não só consolida-se
Tendo como foco o Atlântico Negro esta edição reforçou a contribuição do como referência internacional da Arte
Festival enquanto difusor da arte negra no Brasil e a sua fundamental importância Negro/Africana e das Diásporas, como
para se compreender a origem e a inserção das diversas vertentes das culturas de também participa de forma ativa e pre-
matrizes africanas. sente no desenvolvimento cultural de
A terceira edição, num formato extensivo, realizada nos anos de 2005 e Belo Horizonte.
2006, teve como tema “Re: Territórios Negros”, remetendo às diversas estratégias
de ocupação e reconfiguração do espaço urbano, desenvolvidas no passado e no
presente pelas populações negras da cidade, e foi estruturada em três eixos: Abstract
“Reconfigurações Urbanas”, “Corporalidades” e “Palavra, Imagem e Mídia”.
Na sua quarta edição, que aconteceu entre os dias 9 e 27 de novembro de
2007, o FAN voltou novamente o seu olhar para a África, em especial para a parte ao
The article presents the history
norte da linha imaginária do Equador. Dentre os motivos que elegeram este recorte of the International Festival of Black
estava a oportunidade de apresentar um painel da diversidade de questões e Arts, created in 1995, and that in
proposições que os artistas e grupos sociais desta vasta região têm formulado no November 2009, is reaching its fifth
sentido de combinar tradição e modernidade, encontrando soluções para as pro- edition. Since this year will be held The
blemáticas contemporâneas. Year of France in Brazil, the Municipal
Ao focar a atenção sobre a produção de artistas vindos de países como o Foundation of Culture is proposing a
Senegal, a Nigéria, o Mali, a Guiné-Bissau e o Burundi, cotejando-a com a produ- program which objective is to offer a
ção contemporânea brasileira, o FAN 2007 procurou estabelecer a ponte entre deeper vision of the matrices and
diversos caminhos que a arte negra percorre nos tempos atuais, e teve como reflections of the cultures proceeded
pretensão maior criar condições para o estabelecimento de acordos e parcerias
que permitam um processo contínuo de co-realizações entre o Brasil, a África e os
from the vast Congo , Francophone
povos da diáspora. Nesta edição foram criadas estruturas tais como o Coletivo Africa regions, Brazil and Caribbean.
FAN da Cena, o Coletivo FAN da Imagem e a Rádio Ojá, que demonstraram possi- The festival is part of a set of actions
bilidades de expansão e permanência para o Festival. developed by Belo Horizonte City Hall
O amplo fórum caracterizado por encontros políticos e temáticos entre insti- objectiving to recover the afro-
tuições e também entre criadores confirmou a importância do FAN no restrito grupo descendent memory and its
dos festivais mundiais de arte negra. importance in determining the cultural
A cada edição o Festival tem aprofundado questões que fazem parte do seu and political identity of the city.
universo inicial, principalmente no que diz respeito às diferenças e confluências de
um evento de arte negra e também de arte africana. Essa questão coloca não só
aspectos semânticos, como também abre caminhos para discussões mais am-

MOORE, Carlos - Racismo e Sociedade. Belo Horizonte Mazza Edições, 2007.


2

24 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009


Saúde
Conhecer a composição da po-
pulação de Belo Horizonte por idade,
O aprendizado e a sexo e situação socioeconômica, as-
compreensão do sim como raça/cor, é fundamental para
um bom diagnóstico da sua situação
ser negro e para aprimorar as políticas públicas.
ELIANE DRUMOND*
Para a área de saúde são fundamen-
MONICA LISBOA SANTOS**
tais as análises que permitam descre-
ver, analisar e planejar ações que visem
A
pesar de o Brasil ser um país em que os diversos grupos de
cor, raça e etnias assumem a identidade brasileira, ainda não se reduzir os problemas relacionados às
conseguiu, efetivamente, impedir entre nós a discriminação contra
negros. A aparência física e o aporte cultural dos negros e mestiços desigualdades e às iniquidades.
foram e ainda são considerados indesejáveis. Esta marca tem como
uma das suas consequências observáveis na população negra as Em Belo Horizonte várias ações
limitações nas suas possibilidades de inserção na sociedade. Em outras
palavras, na prática, possuir tais características físicas mais ou menos vêm sendo realizadas nesse sentido,
indesejáveis dá aos seus portadores diversas limitações nos seus pas-
saportes, para as diferentes formas de inserção na sociedade. entre elas, as relativas à raça/cor. Esta
Vivemos um paradoxo na sociedade brasileira: ao se integrar
as culturas europeia e indígena para criar a cultura brasileira, a cultura
variável está presente em todos os
negra, com frequência, é compreendida pelos círculos culturais domi-
nantes como cultura primitiva, mística. Portanto, entre nós, para que a
sistemas de informação em saúde do
cultura negra seja validada ela deve passar por um filtro civilizatório município e o seu preenchimento nos
(leia-se por um filtro "branqueador"). Por outro lado, nem todos os
negros se identificam com sua origem ancestral de lutas contra o sistemas nacionais e locais de infor-
racismo, escravidão e lutas pela liberdade. Esta perda da identidade
racial mostra o quanto é perniciosa a ideologia racista à brasileira ao mação epidemiológica está cada vez
fazer com que a reflexão e a visão crítica sobre o presente e o passa-
do dos povos negros seja pequena e torne o próprio oprimido cúmplice melhor.
da sua condição.
Aqui, em nosso meio, a pobreza tem cor: ela é NEGRA. É
importante ressaltar que "a maioria dos negros não é negro porque é
pobre, mas, sim é pobre ou mais pobre, justamente por ser negro." A situação de Belo Horizonte
(Relatório sobre a Desigualdade Racial - UFRJ-2007/2008). É impor-
tante que se reconheça que, no caso dos negros brasileiros, além da Conhecer a composição da população de Belo Horizonte por
pobreza, persistem contra eles o preconceito e a discriminação racial. idade, sexo e situação socioeconômica, assim como raça/cor, é fun-
Existem pobres de outras cores, mas sobre eles não pesa a discrimi- damental para um bom diagnóstico da sua situação e para aprimorar
nação racial com tal carga e de tal magnitude. Vejamos: as políticas públicas. No Brasil, recomenda-se que a informação so-
No Brasil, desde a época da abolição da escravatura, a bre a raça/cor seja obtida a partir da auto definição do indivíduo ou de
denominação "negro" trazia consigo uma carga de depreciação, es- informações prestadas por terceiros e, suas respostas, são classifi-
pecialmente para aqueles que conseguiam ascensão social. Como um cadas em torno de cinco categorias: branca, preta, parda, amarela e
dos reflexos desta postura discriminatória, a cor da pele não era indígena. Em geral, a denominação "negra" representa a junção da
referida quando, por exemplo, se fazia um recenseamento. Tal postu- raça/cor preta com a raça/cor parda
ra resultou no silêncio sobre as raças/cores da população nos docu- Segundo o IBGE, no ano 2000 na região Sudeste, a maior
mentos oficiais e nas relações sociais, segundo a professora Hebe participação percentual foi da população branca com 62%. A popula-
Maria Matos, doutora em história do Brasil e professora titular da Uni- ção negra de Minas Gerais é terceira mais numerosa do país. Em Belo
versidade Federal Fluminense. Horizonte (Gráfico 1) a distribuição percentual da população negra
A abolição da escravatura foi um movimento com par- não é uniforme segundo a região de residência e os negros represen-
ticipação ativa de vários grupos socioeconômicos e raciais brasileiros. tam cerca de 45% da população da cidade. Como representantes dos
Mas no interior desse movimento não houve uma preocupação com a extremos do percentual de negros residentes estão as regiões Cen-
discussão e a organização das possíveis formas de inserção dos tro-Sul (22%) e Venda Nova (58%).
escravos libertos na sociedade. Como consequência, a população Para a área de saúde são fundamentais as análises que per-
negra vive até hoje os reflexos e o prolongamento dessa ausência, mitam descrever, analisar e planejar ações que visem reduzir os pro-
que pode ser sentida, por exemplo, nas suas maiores dificuldades de blemas relacionados às desigualdades e às iniquidades. Em Belo Ho-
inserção no mercado de trabalho, de acesso à moradia digna, à terra, rizonte várias ações vêm sendo realizadas - e ainda há um sem núme-
à saúde, à educação, etc.1 (Secretaria Municipal de Políticas Sociais/ ro de outras a serem feitas, visando a redução das iniquidades em
Secretaria Municipal Adjunta de Direitos de Cidadania- I Conferência saúde, entre elas as relativas à raça/cor. Neste sentido, esta variável
Municipal de Política de Promoção da Igualdade Racial / 2005 ). hoje está presente em todos os sistemas de informação em saúde do

*
Médica, coordenadora da Gerência de Epidemiologia da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte.
**
Médica, coordenadora da Gerência de Saúde da Mulher da Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de Belo Horizonte. Colaboração: Cecília Rajão, Rejane
Ferreira Reis e Maria Luíza Tostes.
1
Secretaria Municipal de Políticas Sociais/ Secretaria Municipal Adjunta de Direitos de Cidadania - I Conferência Municipal de Política de Promoção da Igualdade Racial/
2005.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 25
município e o seu preenchimento nos sistemas nacionais e locais de Gráfico 2 observa-se a distribuição percentual dos óbitos por
informação epidemiológica - como o Sistema de Informações sobre suicídio nas mulheres negras residentes em BH, no período de
Nascidos Vivos (Sinasc) e sobre Mortalidade (SIM), o Sistema de 2000 a 2005. Embora a proporção de mulheres negras que fale-
Informações de Agravos Notificáveis (SINAN) e o Saúde em Rede - em ceram devido a suicídio seja inferior à distribuição das mulheres
Belo Horizonte está cada vez melhor. Mas ainda há muito o que fazer negras na população de BH, foram observados percentuais de
para que os usuários do SUS e os profissionais de saúde se sensibi- óbitos por suicídios entre as negras superiores às distribuições
lizem, cada vez mais, sobre a necessidade de se responder e anotar percentuais desta população nas Regionais Barreiro, Venda Nova
corretamente os dados referentes à raça/cor. e Noroeste. Embora seja um problema sério de saúde pública e
As estatísticas de mortalidade são usualmente utilizadas para que exige a nossa atenção, sua prevenção e controle, infeliz-
avaliações do estado de saúde das populações. No Sistema de Infor- mente, não são tarefas fáceis. A prevenção do suicídio, quando
mações sobre Mortalidade (SIM), onde estão registrados todos os exequível, envolve uma série de atividades, que variam desde a
óbitos ocorridos em BH, podem ser obtidas as causas de morte, de- provisão das melhores condições possíveis para criar seus fi-
claradas pelos médicos atestantes. São consideradas causas de lhos, tratamento eficaz dos distúrbios mentais, e controle dos
mortes evitáveis ou reduzíveis aquelas preveníveis, total ou parcial- fatores de risco sócio-ambientais.
mente, por ações efetivas dos serviços de saúde que estejam aces- O encontro de maiores percentuais de mortes por causas
síveis em um determinado local e época. Sob esta perspectiva, a maldefinidas entre mulheres negras, especialmente entre residentes
Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde do Brasil nas regiões Pampulha, Oeste e Noroeste, pode corroborar a hipótese
reuniu especialistas brasileiros de áreas relevantes ao tema que, após de que podemos atuar na melhoria ao acesso ao diagnóstico e ao
discussões, elaboraram e propuseram a Lista Brasileira de Causas de tratamento e abre uma porta para refletirmos sobre o que afasta esta
Mortes Evitáveis por Intervenções do Sistema Único de Saúde do população do serviço de saúde (Gráfico 3).
Brasil. A partir desta lista foram selecionadas algumas causas de São poucos os estudos disponíveis abordando desigualda-
morte na população feminina, que serão apresentadas a seguir. des raciais na saúde perinatal no país, porém já indicam um grave
Entre as causas de morte reduzíveis por ações interseto- diferencial entre brancos e negros: tanto na mortalidade infantil, em
riais adequadas de promoção à saúde, prevenção e atenção às 2000 (taxas de 22,9/1.000 e 33,7/1.000, respectivamente) quanto na
causas externas (acidentais e violências) estão os suicídios. No mortalidade materna, com risco 2,9 vezes maior para as mulheres
negras (SIMÕES, 2003). No Rio de Janeiro e Pelotas, estudos aponta-
Gráfico 1: Distribuição percentual da população negra ram tratamento distinto nos serviços de saúde, como, por exemplo, o
por Distrito Sanitário de residência em BH - 2000 a 2005 menor acesso das mulheres negras à cesariana e à anestesia duran-
100% te o trabalho de parto em relação às mulheres brancas (LEAL; GAMA;
CUNHA, 2005; BARROS; VICTORIA; HORTA, 2001).
80% Belo Horizonte tem o compromisso de implementação de ações
que reduzam as desigualdades no acesso aos serviços de saúde e
60% nos índices de doenças da população negra.
Em outubro de 2007, no Dia de Mobilização Nacional Pró-Saú-
40% de da População Negra, o Ministro da Saúde José Gomes Temporão,
fez uma mensagem a todos os municípios do Brasil, da qual citamos
20% uma parte:
"No fim do ano passado foi aprovada a Política Nacional de
0% Saúde da População Negra. O novo texto é um marco para o atendi-
l a ste ste te ste o rte va mento à saúde da população negra. Por meio dele, o governo federal
-Su ulh Oe roe BH Les rde reir No No
ntro Pa
mp No No Bar nda reconhece a existência do racismo institucional e a desigualdade
Ce Ve
étnico-racial. A partir do diagnóstico, propõe ações como o treina-
mento profissional, as ações direcionadas contra agravos e doen-
Gráfico 2: Distribuição percentual dos óbitos por suicídio em mulheres ças de maior prevalência dessa população, a pesquisa no setor e a
participação do controle social pelos movimentos negros."
segundo raça/cor e Distrito Sanitário - 2000 a 2005
A Prefeitura e a Secretaria Municipal de Saúde são parceiras
100% do esforço do governo federal no sentido de corrigir as iniquidades da
atenção à saúde desta parcela da população, que corresponde a
80%
45% dos brasileiros.
60%

40%
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
20% FRANÇA E. & LANSKY S. “Mortalidade infantil neonatal no Brasil:
situação, tendências e perspectivas”. Demografia e Saúde Contri-
0% buição para Análise de Situação e Tendências - RIPSA, 2009 no
l
ulh
a te ste BH ste reir
o rte va ste
-Su mp Les Oe rde Bar No No roe
prelo Itália.
ntro Pa No nda No
Ce Ve PAIXÃO Marcelo; Luiz M . C. Relatorio das Desiguldade Racial -
2007/2008
Gráfico3: Distribuição percentual dos óbitos por causas maldefinidas
entre as mulheres por raça/cor e Distrito Sanitário, 2000 a 2005 Abstract
100%

80%
To know the population composition of Belo
60% Horizonte city by age, gender and socio-economic situation
as well as race/color is essential for a good diagnosis of
40% its situation and also to the public policies improvement.
Concerning to the health area is essential the analyses
20%
which are going to describe, examine and plan actions
0% that are going to reduce the inequalities and inequities.
l ste o ste ste lha rte
-Su BH Oe Les
te reir roe r d e ampu d a N o
va
No
ntro Bar No No
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26 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009


Ações afirmativas

Cotas para negros nas universidades


ROSÁLIA DIOGO*

"O importante não é o que fizeram do homem,


mas o que ele faz, do que fizeram dele".
J. Paul Sartre

Apresentando conteúdo meramente proibitivo, que se sin- nalismo), no período de 1987 a 1991. Demo-
Em 2004 escrevi um artigo sobre co- gularizam por oferecerem às respectivas ví- rei a ingressar na faculdade, por falta de re-
tas para negros na universidade. Parte das timas tão somente instrumentos jurídicos de cursos financeiros para sustentar uma facul-
argumentações está presente neste texto, caráter reparatório e de intervenção ex post dade privada. Para entrar em uma universida-
acrescida de novos conteúdos. facto, as ações afirmativas têm natureza mul- de pública, disputei várias vezes com candi-
Vários amigos, conhecidos e colegas tifacetada e visam evitar que a discrimina- datos em melhores condições de escolarida-
de trabalho perguntam se a defesa de cotas ção se verifique nas formas usualmente co- de, posto que oriundos de meio social superi-
para negros na universidade ou em reparti- nhecidas - isto é, formalmente, por meio de or ao meu.
ções públicas, de acordo com algumas inicia- normas de aplicação geral ou específica, ou Éramos quatro negros em uma turma
tivas governamentais, não seria defesa de através de mecanismos informais, difusos, de 25 alunos, na Faculdade de Filosofia, Ci-
privilégios. Indagam, ainda, se tais iniciativas estruturais, enraizados nas práticas cultu- ências e Letras de Belo Horizonte, hoje, UNI-
não significam aceitar, ou reafirmar, a incom- rais e no imaginário coletivo. (Gomes 2001, BH. O Curso ampliou significativamente a mi-
petência intelectual do negro. E, por fim, ques- p. 40-41). nha leitura de mundo, na medida em que pas-
tionam se o correto não seria uma política sei a ler sociólogos, psicólogos e filósofos
Justificando que faziam uma reflexão sobre o que motiva-
favorável a todos os segmentos mais pobres
do país. Sou uma mulher negra que nasceu no va as ações do homem no mundo. Reafirmo,
Tento responder a estas questões interior do Estado. Em uma família de onze então, a necessidade que vejo, de que a es-
com a tranquilidade que me é possível pelas irmãos, sou a segunda que concluiu o curso colaridade na vida das pessoas é de funda-
minhas experiências pessoais e pela minha superior. A maioria dos meus irmãos alcançou mental importância. Principalmente, para os
trajetória familiar. Penso que é a melhor forma somente o ensino fundamental. Saíram da es- historicamente segregados.
de legitimar a minha convicta posição. Em um cola para ingressarem no mercado de traba- As leituras que muito me marcaram
segundo momento, proponho teorizar aspec- lho antes de quinze anos de idade, e não de- na época de faculdade foram a de teóricos
tos relacionados ao preconceito, relacionan- ram conta de conciliar os estudos. O meu pai como Marcuse, Marx e Sartre. O ponto cen-
do-os a auto-estima das pessoas. E, por fim, não possui escolaridade, ou como preferem tral da descoberta era o de negação dos prin-
apresento estatísticas, que possam corrobo- alguns, é analfabeto. A minha mãe teve uma cípios estabelecidos por uma cultura hege-
rar as argumentações trazidas ao longo da escolaridade elementar na zona rural, onde mônica na perspectiva de poder referendar
escrita. nasceu. Sou professora do ensino fundamen- outras culturas. Outro pensamento refletido
Possivelmente alguns leitores discor- tal na rede municipal de educação de Belo era o de que o estado de coisas, aparente-
darão da estratégia de escrita, que é do cam- Horizonte, com formação em magistério, nível mente dado, poderia ser alterado em função
po da subjetividade. Utilizo a técnica da histó- médio. de interesses de outros grupos que conse-
ria oral, ou de história de vida. Inscrevo-me O meu percurso acadêmico ampliou- guissem se organizar para contrapor a ele.
na linha de teóricos que defendem essa téc- se, com o curso de Comunicação Social (Jor- Seguramente, essas leituras contribuíram para
nica, no pressuposto de que os sujeitos, ou minha formação pessoal como contestado-
atores sociais, são seres de memória, de cul- ras de uma ordem social preestabelecida.
tura e história, reflexivos. E, dada essa con- A autora, de forma O ano de 1988, comemoração dos 100
anos de abolição, me alcançou nesse mo-
dição, interpretam, significam e dão sentido e
valor às suas experiências e significado ao
subjetiva, aborda a ques- mento particular de reflexão. As comemora-
vivido. tão das cotas para negros ções foram gigantescas, os protestos tam-
bém. A contraposição dos movimentos negros
Antes mesmo de iniciar a minha nar-
rativa, compartilho com os leitores a minha na universidade ou em re- organizados era a de que os negros saíram
identificação com o que se tem chamado de da senzala para a periferia, para a favela,
Ações Afirmativas. Cito a definição de Joa- partições públicas, intro- porque a contemporaneidade assim formata-
quim Barbosa Gomes: va a sociedade, era a divisão natural entre os
Um conjunto de políticas públicas e
duzindo o debate sobre o abastados e os não abastados. As condições
privadas de caráter compulsório, facultati- significado de tais iniciati- de desconforto e desigualdade permaneci-
vo, concebidas com vistas ao combate à dis- am. Como o afro-brasileiro faria para alcan-
criminação racial, de gênero e de origem vas, compartilhando com çar outro lugar na sociedade nacional, que
nacional, bem como corrigir os efeitos pre- não fosse o periférico?
sentes da discriminação praticada no pas- os leitores a sua identifi- Depois de algumas tentativas ampliei
sado, tendo por objetivo a concretização do os estudos acadêmicos, cursando o mestra-
ideal de efetiva igualdade de acesso a bens
cação com o que tem do na Universidade Federal de Minas Gerais -
fundamentais como educação e emprego. Di- sido chamado de Ações Departamento de Psicologia (área social). E,
ferentemente das políticas governamentais atualmente, sou doutoranda em letras/litera-
antidiscriminatórias baseadas em lei de Afirmativas. tura na PUC Minas. Devido a grande esforço

* Professora do ensino fundamental na rede municipal de educação de Belo Horizonte, Jornalista.Doutoranda em Letras/Literatura, rosaliadiogo@gmail.com.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 27
em alcançar boa colocação, fui beneficiada que o negro tenha clareza de que suas dife-
com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoa- renças devem ser respeitadas. Para mim, O estigma negativo e
mento de Pessoal de Nível Superior (Capes),
do ao Ministério da Educação, sem a qual, seria
essa é uma das condições para que o indiví-
duo negro e a comunidade a qual tem perten-
o preconceito abalam a
quase impossível pagar as mensalidades. cimento possam ter condições de alcançar a autoconfiança que o indi-
Dos meus 10 sobrinhos em idade ade- felicidade, pensada por Freud, nas relações
quada para cursar o ensino superior, somen- sociais. víduo possa ter em si.
te três o fazem, graças ao financiamento par- Não posso, ainda, deixar de dialogar
cial para os estudos do Fundo de Financia- com HALL (1999), quando este discute a re- Entendo, portanto, que a
mento Estudantil (FIES). Financiamento cor-
respondente ao Crédito Educativo, ao qual fui
presentação social e a identidade - a identi-
dade surge não tanto da plenitude da identi-
validação de direitos e de
beneficiada, à época que cursei faculdade, dade que já está dentro de nós como indiví- cultura é que vai conferir
Em meu percurso como educadora, duos, mas de uma falta de inteireza que é
defrontei-me com várias situações de alunos preenchida, a partir de nosso exterior, pelas ao negro condição de
que eram excluídos de uma relação igualitária formas com as quais nos imaginamos ser vis-
com seus colegas pelo fato de serem negros. tos pelos outros. E, ainda, que "a identidade igualdade social.
Situações também experimentadas por mim, tem relação com as formas pelas quais so-
na infância e adolescência, dentro e fora da mos representados ou interpelados nos sis- de Gini, após ficar estagnado em alto patamar
escola. Tive a oportunidade de estar à frente temas culturais que nos rodeiam". por longo período, em torno de 0,60, encon-
da direção de duas escolas municipais e, a Penso que o estigma negativo e o pre- trou-se, em 2007, no índice de 0,55. Pelo fato
partir daí, desenvolver projetos visando inse- conceito abalam a autoconfiança que o indi- de negros estarem sobre-representados na
rir na ordem do dia a discussão da discrimina- víduo possa ter em si. Entendo, portanto, que cauda inferior da distribuição de renda, os
ção e estratégias para reduzí-la. Esses proje- a validação de direitos e de cultura é que vai pesquisadores imaginam que a alteração nos
tos envolviam a comunidade escolar da peri- conferir ao negro condição de igualdade so- dados se dá, não em função da redução das
feria da cidade, região onde estavam inseri- cial. Parece-me crucial que os indivíduos ne- práticas discriminatórias, e, sim, pelo fato de
das as escolas. Empiricamente, detectei que gros busquem o reconhecimento das suas que a maioria de beneficiados pelo Programa
a maioria daquela população era negra. diferenças, como valores que não são iguais, Bolsa Família serem negros. Ainda são o seg-
Os relatórios clínicos de psicólogos mas que devem ser respeitados. Considero mento em maior atendimento por outros me-
para os quais muitas das vezes tive oportuni- que o objetivo não deva ser sobrepor uma canismos de redução da desigualdade geral,
dade de encaminhar crianças negras com cultura, ou interesses a outros, e, sim, esta- como Prestação Continuada e benefícios pre-
dificuldade de aprendizagem, falavam de "cri- belecer uma relação dialógica e respeitosa videnciários indexados ao salário mínimo.
se de identidade". Diziam que os nossos alu- entre essas culturas. Os pesquisadores concluíram, nes-
nos/as não queriam ter a cor que tinham, pois Acredito que o acesso a melhor es- se trabalho, que o grande responsável pela
estavam sendo rejeitados pelos colegas. colaridade é que permitirá ao afro-brasileiro, melhoria da situação da população negra é o
Fico a pensar então, no alerta de a percepção do seu lugar no mundo. É tam- avanço da ação do Estado em termos das
GOFFMAN (1982), no sentido de que os es- bém de suma importância a criação de even- políticas distributivas. A relativa ascensão de
tigmatizados tentam evitar contatos com os tuais estratégias, visando minorar, ou quiçá, negros, em relação ao conjunto da sociedade
"normais", numa relação social, ou respon- progressivamente, eliminar os empecilhos, brasileira, se mantém em patamares residu-
dem a situações tensas, através de compor- que o colocam em condição inferior ao bran- ais. Segundo o relatório, não houve alteração
tamentos que expressem agressividade ou co. É nessa linha que faço a defesa de cotas do quadro de oportunidades no mercado de
defesa. para negros na universidade, compreenden- trabalho, principal fonte de renda e de mobi-
Em sua obra "O mal-estar na civiliza- do tal iniciativa como sendo parte de ações lidade social ascendente.
ção" (1929), Freud desenvolve o argumento afirmativas, para que esse segmento da po- Esse quadro, ao meu ver, reforça a
de que "alguns homens não contam com a pulação possa se apropriar de conhecimen- necessidade de implementação de políticas
admiração de seus contemporâneos, embora tos científicos e teóricos acumulados histori- que sejam direcionadas para a população
a grandeza deles repouse em atributos e rea- camente na sociedade. E que esses conhe- negra. Tais políticas deverão ser enérgicas
lizações completamente estranhos aos objeti- cimentos adquiridos permitam-lhes interferir no sentido de ampliar a equidade de oportuni-
vos e aos ideais da multidão". Por acreditar efetivamente no curso da história da humani- dades e a melhoria do seu padrão de vida.
que o estigma e o preconceito abalam a auto- dade para que o negro não permaneça na Os negros são maioria entre os ru-
confiança que o indivíduo possa ter em si, condição de assistente, submisso ou como rais aposentados, cujas aposentadorias são
este pensamento contribui sobremaneira para maior penalizado pelas agruras pelas quais indexadas ao salário mínimo. São a minoria
com as minhas formulações. O negro no Bra- passa a sociedade. entre beneficiários do Regime Geral da Previ-
sil, ao meu ver, passa por um processo de A atualidade dência Social e a maioria entre os que rece-
discriminação e preconceito de tal ordem que, bem um salário mínimo na mesma previdên-
na maioria das vezes, seus atributos e quali- Utilizo-me de pesquisas recentes, cia. Tais dados evidenciam que a maior parte
dades não chegam a ser considerados. Um para tentar confirmar a assimetria presente dos beneficiados por todas as formas de
exemplo claro, dentre tantos outros, são pes- nas relações sociais no Brasil, no que se transferência de renda no país são os ne-
quisas aplicadas por órgãos, como IBGE e refere aos afro-brasileiros. O Livro "As políti- gros, o que mudou o panorama da desigual-
IPEA, evidenciando que a comunidade afro- cas públicas e a desigualdade racial no Bra- dade no Brasil.
brasileira se encontra mais desempregada e/ sil- 120 anos após a abolição", publicado em Ainda pelos dados apresentados pela
ou subempregada, e menos escolarizada, que 2008, pelo Instituto de Pesquisa Avançada, pesquisa, percebe-se que houve uma redu-
os brancos. nos ajudará bastante ao enfocar alguns ele- ção na razão de renda do trabalho, mesmo
Na mesma obra, Freud argumenta que mentos pesquisados. que muito lenta. A maior parte da redução na
o "sofrimento nos ameaça em nossos relacio- O mercado de trabalho livre no Brasil razão de rendas acontece devido a políticas
namentos com os outros homens e que sob a foi moldado por uma política de imigração, que que não estão diretamente relacionadas ao
pressão das possibilidades de sofrimento, os visava a substituição de mão de obra. A imi- cunho racial em especial, e, sim, para benefici-
homens se acostumam a moderar suas rei- gração foi favorecida por taxações e sub- ar as camadas mais pobres da população.
vindicações de felicidade". venções em detrimento da mão de obra. Constatou-se por meio da mesma pes-
Entendo que a validação da cultura, No que se refere à desigualdade da quisa que a população branca ainda vive com
do modo de vida e dos direitos do afro-des- distribuição de renda, aponta-se que caiu um pouco mais que o dobro da renda disponí-
cendente é que vai lhe conferir a condição de consideravelmente durante esse pouco mais vel, na média, para a população negra, embo-
igualdade social. Parece-me crucial, então, de um centenário pesquisado. O coeficiente ra a tendência seja de redução dessas dife-
28 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
renças. Os pesquisadores apontam que ain- qualquer sociedade é fundamental. É de ex- população negra, do ponto de vista da as-
da faltam ¾ da diferença a ser reduzida. Ao trema importância, a maneira como o negro é censão social, onde ocorreram políticas uni-
persistir esse ritmo, haverá igualdade racial visto e/ou representado na sociedade brasi- versais do Estado, e se para reparar as assi-
na renda domiciliar per capita apenas em 2029. leira, para que possamos formular e reformu- metrias para esse segmento populacional
A diferença na média de estudos de lar conceitos e estereótipos negativos, cons- precisaremos chegar ao ano de 2029, medi-
pretos e pardos para brancos caiu de 2,1 truídos acerca do negro no Brasil. das urgentes tornam-se necessárias. Deve-
anos em 1995, para 1,8 em 2007, segundo Em 20 de novembro de 2008, a Câma- mos rejeitar a idéia de benesses do Estado
dados do Relatório Anual das Desigualdades ra dos Deputados aprovou Projeto de Lei que ou paternalismo para com o afro-brasileiro e
organizados por Marcelo Paixão e Luiz Car- destina 50% das vagas nas universidades reafirmar a noção de política de reparação
vano. Ainda assim, a média de 6,3 anos de federais para estudantes oriundos da rede dos prejuízos causados historicamente à po-
estudo de pretos e pardos em 2007 é menor pública. As vagas, pelo projeto, deverão ser pulação negra. Penso que a política de cotas,
que os 6,4 anos de brancos em 1995. distribuídas para candidatos "autodeclarados bônus, ou o nome que se dê para as políticas
O questionário do Exame Nacional de negros", no mínimo igual à proporção dessas reparatórias, deva ser um processo transitó-
Desempenho de Estudantes, do Ministério da populações no Estado onde fica a instituição rio, para que em um futuro, não tão próximo,
Educação e Cultura (MEC), mostra que, numa de ensino. Passado o calor das reivindica- já que as distâncias são muito grandes, pos-
graduação concorrida como medicina, só ções do Movimento Social Negro, em decor- samos abandonar essa estratégia e nos re-
12% dos concluintes são negros, pardos ou rência da data - 20 de novembro - Dia Nacio- lacionarmos em condições mais igualitárias,
mulatos. Já nos cursos que formam profes- nal da Consciência Negra, o projeto encon- frente à sociedade nacional.
sores, a proporção sobe para 51%. tra-se emperrado no Senado Federal. Os se-
Em uma população que se autodecla- nadores, em sua maioria, consideram que 50%
ra, em quase 50%, como preta ou parda, ob- é um exagero, outros seguem com o antigo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
servamos, por meio do relatório organizado argumento de divisão do país em raça (como DIOGO, Rosália. (2004). Mídia e Racismo,
em 1998 pelo Instituto Brasileiro de Geografia se essa já não estivesse posta desde há ensaios. Belo Horizonte: Mazza Edições.
e Estatística (IBGE), que em 1995 o contin- muito). FREUD, Sigmund. "O mal-estar na civiliza-
gente de negros que estava entre os 10% ção" (1974). In Edição Standart Brasileira
mais ricos era de 17%. Em 2007, esse per- Em Belo Horizonte das Obras Psicológicas completas de Sig-
centual ampliou-se para 22%. Já entre o con- Em maio de 2008, a Universidade Fe- mund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
tingente dos 10% mais pobres, a proporção deral de Minas Gerais, por meio do Conselho GOFFMAN, Erwin.(1982). Notas sobre a
de pretos e pardos é de 68%. Universitário, tomou a decisão de oferecer manipulação da identidade deteriorada.
Não é possível tratarmos como iguais um bônus de 10% para estudantes oriundos Trad. Márcia Bandeira de Mello Leite Nu-
a quem é desigual. As condições de vida do de escolas públicas, além de acrescer 5% nes. Rio de Janeiro: Zahar.
negro são inferiores em relação às condi- aos que se declarassem negros. A universi- GOMES, Nilma Lino. (2006). Identidades e
dade vem desenvolvendo debates em torno Corporeidades Negras. Reflexões sobre
ções do branco. Essa constatação não é mi-
da adoção de políticas de ações afirmativas. uma experiência de formação de
nha, e sim das estatísticas. Faz-se necessá-
Além do que o Programa de Ações Afirmati- professores(as) para a diversidade étni-
rio, então, a partir das evidências, uma discri- co-racial.Belo Horizonte: Autêntica.
minação positiva, no sentido de incluir a po- vas na UFMG, desde 2002, desenvolve ativi-
HALL, Stuart. (1999). A identidade cultural
pulação negra nas universidades, para que dades no sentido de garantir a permanência
na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
ela tenha oportunidade de construir melhores de estudantes negros na UFMG.
DP&A.
condições de vida para si e para os seus Tal iniciativa é louvável, sobretudo por-
SARTRE, Jean Paul.(1974). O existencia-
descendentes, invertendo, portanto, a lógica que no cenário nacional, a grande maioria das lismo é um humanismo. Trad. Rita Correia
que se apresenta até então. instituições federais de ensino superior já ado- Guedes. São Paulo, Abril Cultural, Col. Os
Negar a política de ação afirmativa, ta algum tipo de ação afirmativa. Alguns dados Pensadores.
por meio de cotas no serviço público ou na já foram extraídos dessa política - o sistema de TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro; PRA-
universidade, significa, ao meu ver, compac- bônus permitiu a aprovação de 34% dos estu- XEDES, Vanda Lúcia; PÁDUA, Karla Cu-
tuar com a ideia do mito da democracia racial, dantes no vestibular 2009, em todos os cur- nha. (2006). Memórias e percursos de
que impera no Brasil, encobrindo injustiças e sos. São oriundos de escola pública e uma estudantes negros e negras na UFMG. Belo
desigualdades de toda ordem. parte se autodeclarou negra ou parda Horizonte: Autêntica.
Em relação a cotas no serviço públi- O bônus permitiu que, no vestibular TEODORO, Mário (org.) (2008). As políti-
co, penso que é um debate que se faz ne- de 2009, cursos mais concorridos, como me- cas públicas e a desigualdade racial no
cessário, quando falamos das representa- dicina, por exemplo, aprovasse 92 estudan- Brasil 120 anos após a abolição.
ções sociais. A população negra deve parti- tes. Sem o bônus, esse instrumento de demo-
cipar das tomadas de decisões que são cons- cratização, somente 19 estudantes seriam
truídas em espaços institucionais, na medida aprovados. Lemos pareceres de pesquisa-
em que elas vão ser aplicadas também para dores sobre a necessidade de medidas de Abstract
ela. Na medida em que o IBGE aponta que a intervenção do Estado com vistas à redução
população negra constitui cerca de 50% da das desigualdades raciais no Brasil. Consta-
taram os estudiosos que a mobilidade social The author, in a subjective way,
população brasileira, como então ficar de fora
da elaboração de políticas públicas, como não da população afro-brasileira só se deu onde approaches the issue of quotas for
representar seus interesses, ou tê-los repre- ocorreram políticas de reparação da pobre- negroes in universities or in public
sentados? Já que as iniciativas do setor pri- za. E nas palavras dos organizadores da pes- offices, introducing the debate about
vado são tímidas, o serviço público, ao meu quisa "As políticas públicas e a desigualdade the meaning of such initiatives, sharing
ver, deverá cumprir com essa iniciativa, obri- racial no Brasil 120 anos após a abolição": with readers her identification with what
gatoriamente. Em resumo, pobreza se enfrenta com
um conjunto amplo de políticas de cunho
has been called Affirmative Action.
Quero louvar a iniciativa do projeto
de Lei do senador Paulo Paim, que prevê co- universalista, tendo como pano de fundo o
tas para negros em novelas, filmes, peças crescimento econômico e a distribuição
teatrais e publicidade. Penso que tal iniciativa mais equânime da riqueza. Racismo, pre-
dialoga com Stuart Hall, quando este fala da conceito e discriminação devem ser enfren-
formação identitária e da necessidade de ser- tados com outro conjunto de políticas e ações.
mos vistos e reconhecidos pelo outro, no nos- Conjunto esse que, infelizmente, ainda está
so processo de validação social. Conside- por se consolidar. (Theodoro 2008, p. 174)
rarmos a alteridade nas relações sociais em Ora, se somente houve mobilidade da
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 29
Trabalho

Os negros no mercado de trabalho


do município de Belo Horizonte:
tendência à igualdade de condições?
MARIO MARCOS SAMPAIO RODARTE*
EDUARDO MIGUEL SCHNEIDER**
LÚCIA SANTOS GARCIA***
MARIA DE FÁTIMA LAGE GUERRA****

O artigo descreve como se ca-

O
s dados utilizados Negros e não negros no
neste trabalho 1 fo- mercado de trabalho
ram extraídos da
racterizava o mercado de trabalho
No município de Belo
Pesquisa de Empre-
go e Desemprego (PED), de
para negros (pretos e pardos) e não Horizonte, a população com 10
metodologia do Departamento negros (brancos e amarelos) no mu- lação em idadeouativaanos ou mais, seja, a popu-
(PIA), to-
Intersindical de Estatística e Es-
tudos Socioeconômicos (DIE- nicípio de Belo Horizonte, em 2008 talizou 2.139 mil pessoas em
ESE) e da Fundação Sistema 2008, sendo que cerca da me-
Estadual de Análise de Dados e nos anos anteriores. O estudo bus- tade (53,2%) era composta por
(SEADE), aplicado à RMBH pe-
las parcerias destes órgãos
cou também analisar os perfis dos negros (Tabela 1). Essa propor-
ção foi a mesma observada no
com a Fundação João Pinheiro ocupados negros e não negros, com segmento referente à popula-
ção economicamente ativa
(FJP) e a Secretaria de Desen-
volvimento Social (SEDESE), a identificação dos setores de ativi- (PEA). Contudo, essas propor-
com apoio do Fundo de Ampa- ções se alteram nos compo-
ro ao Trabalhador (FAT), pelo Mi- dade em que eram absorvidos, as- nentes da PEA, uma vez que a
nistério do Trabalho (MTE).
As principais motiva-
sim como as diferentes formas de parcela de negros desempre-
gados (57,5%) era maior que
ções encontradas para se rea- inserção, tanto na porção formal, amostra de ocupados (52,7%), o que
uma maior dificuldade
lizar esse estudo não foram
apenas de buscar verificar os quanto outras formas de trabalho tão de inserção no mercado de tra-
níveis atuais das disparidades balho que os não negros, no
por cor no mercado de traba- típicas do mercado de trabalho he- período recente.
lho, mas, principalmente, inves- A igualdade da parcela
tigar um comportamento inédi-
terogêneo brasileiro, como o traba- de negros na PIA e na PEA indi-
to, nunca antes observado no lho por conta própria. ca uma mudança de compor-
mercado de trabalho do muni- tamento inédita no município,
cípio, que é o nivelamento do pois, pelo menos nas últimas
nível de inserção na força de trabalho entre negros e não duas décadas, a maior inserção de negros no mercado de
negros. Isso estaria sinalizando uma tendência à igualdade trabalho determinava que a PEA tivesse uma maior percenta-
de condições por cor? A próxima seção busca justamente ca- gem de negros que na PIA. Também é importante dizer que
racterizar esse novo fenômeno do mercado de trabalho. A se- esse fenômeno tem sido mais facilmente observado no âm-
gunda seção trata de apresentar as mensurações do desem- bito do município, sendo essas transformações menos per-
prego por cor dos moradores de BH. Na seção seguinte anali- ceptíveis nos municípios do entorno, que compõem a RMBH.
sa-se o perfil do ocupado negro e não negro e, na sequência, Essa transformação fica mais evidente ao analisar a
avalia-se os diferenciais de renda entre esses segmentos taxa de participação, que mede a proporção de pessoas com
sociais. O texto finaliza com algumas considerações finais, 10 anos ou mais, inseridas na força de trabalho (isto é, a
resgatando as principais questões abordadas. Também são razão entre a PEA e a PIA). Em 1996, primeiro ano completo
levantadas algumas hipóteses suscitadas pelos dados apre- de pesquisa da PED na capital mineira, detectava-se que a
sentados, que pautariam uma agenda de pesquisa futura. taxa de participação dos negros era de 59,9%, ao passo que

*
Doutor em Demografia (Cedeplar/UFMG), mestre em Economia (Cedeplar/UFMG). Coordenador da PED-RMBH, pelo DIEESE, e pesquisador do Cedeplar/
UFMG. E-mail: mario@dieese.org.br.
**
Mestrando em Economia (PUC-RS), especialista em Gestão Pública Participativa e coordenador regional da PED-RMPA, pelo DIEESE. E-mail: ems@dieese.org.br.
***
Economista (UFRGS) e coordenadora técnica do Sistema PED, pelo DIEESE.
****
1
Mestre em Economia (Cedeplar/UFMG) e supervisora técnica do ER-MG/DIEESE.
O presente estudo foi produzido no âmbito do convênio entre a Prefeitura de Belo Horizonte e o DIEESE.
30 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Tabela 1 - Estimativas de negros e não negros no mercado de trabalho - Município de Belo Horizonte - 2008

Fonte: PED-RMBH - Convênio FJP, SEDESE, SEADE-SP e DIEESE - apoio MTE/FAT.


Elaboração: Escritório Regional do Dieese em Minas Gerais.

a dos não negros era de apenas 56,2%. os negros, essa razão elevava para 14,4%. Já entre os jovens
De lá para cá, até 2007, esse indicador, para ambos de 18 a 24 anos, essas taxas eram de 65,9% e 76,8%, res-
os segmentos analisados, variou muito, entre outros fatores, pectivamente entre não negros e negros, no mesmo ano.
em decorrência de mudanças conjunturais do mercado de Com maiores escolaridade e qualificação, os não ne-
trabalho. Apesar dessas variações, a taxa de participação dos gros, na fase adulta, tornavam-se mais aptos a ocupar cargos
negros sempre se conservava superior a dos não negros. e postos de trabalho que exigissem mais capacitação e que,
Isso mudou em 2008, quando ambas as taxas assumiram o por isso, eram de melhor qualidade e mais bem remunera-
mesmo valor, indicando igualdade de nível de inserção no dos. A maior receptividade do setor produtivo em ocupar e
mercado de trabalho por cor, ao apontar que 60,3% dos indi- empregar a mão de obra com esse perfil (mais identificada
víduos (de negros e de não negros) de 10 anos e mais esta- com a dos não negros) acabava se traduzindo em uma taxa
vam inseridos na força de trabalho. de participação maior que a dos negros. Nas idades de 25 a
O fato de os negros estarem historicamente mais in- 39 anos, essa taxa era de 86,8% entre os não negros, contra
seridos no mercado de trabalho - o que é mostrado pelos 83,7% entre os negros, em 2008.
diferenciais das taxas de participação, ano a ano, até 2007 - Graças à melhor colocação no mercado de trabalho na
justifica-se nos comportamentos particulares de negros e não terceira idade, a maior parte dos não negros já tinha amea-
negros ao longo de suas trajetórias de vida. Em síntese, pode- lhado recursos e condições materiais que lhes permitissem
se mencionar três características básicas que identificam o aposentar, seja pela formação de patrimônio, seja por terem
ciclo de vida dos negros em relação ao mercado de trabalho2: contribuído com a previdência social. Assim, parte expressiva
1ª) Ainda crianças ou adolescentes, os negros eram dos não negros com esse perfil etário saía do mercado de
chamados a trabalhar para ajudarem no orçamento domésti- trabalho num passado relativamente recente.
co, pois, não raro, pertenciam a famílias com baixa renda, Mas esse movimento vem diminuindo para os não
sendo filhos de pais com a vida profissional marcada pelo negros, ao ponto de a sua taxa de participação apresentar-se
desemprego e inserções vulneráveis no mercado de traba- continuamente maior que a dos negros com esse perfil etá-
lho. rio, a partir de 2005, quando esse indicador foi de 18,7% para
2ª) No ápice da vida profissional (aproximadamente os não negros, contra 17,5% entre os negros. Em 2008 essa
entre os 25 e 50 anos), os negros não se encontravam ocu- diferença de níveis de participação se acentuou, abrindo um
pando postos de trabalho muito melhores que aqueles que hiato de 2,7 pontos percentuais, uma vez que a taxa de partici-
desempenhavam quando mais jovens3. Essa falta de mobili- pação de não negros havia sido de 21,2% e de 18,5% entre os
dade deve-se ao fato de que a inserção precoce no mercado negros.
de trabalho muitas vezes lhes custava um maior nível de es- Na base dessas novas transformações, o que parece
colaridade e qualificação profissional que lhes poderia dar a motivar a elevação da taxa de participação de 60 anos e mais
possibilidade de uma trajetória profissional mais profícua na parece ser o adiamento à saída do mercado de trabalho, que
fase adulta mais produtiva. Dessa forma, desalento, desem- tem sido mais acentuado entre os não negros. Entre 1996 e
prego e bicos (trabalhos precários), caracterizavam a situa- 2008, a taxa de participação de negros, originalmente em
ção desses adultos em relação ao mercado de trabalho. 67,6%, saltou para os atuais 70,8%. Esse movimento foi mai-
3ª) Quando chegam à terceira idade, em decorrência or entre os não negros que, de 66,8%, em 1996, havia passa-
de toda essa trajetória conturbada no mercado de trabalho, do para 74,4% da PIA. Foi a partir de 2002 que os não negros
os negros, em geral, não contam com poupança ou condi- trocaram com os negros a posição de segmento com maior
ções materiais suficientes para diminuírem o ritmo de ativi- taxa de participação e, como na faixa etária superior, tendo
dade produtiva. Com isso, muitas vezes se veem obrigados a esse hiato ampliado para 3,6 pontos percentuais com as ta-
permanecerem inseridos em formas vulneráveis de ocupa- xas de participação de não negros e negros em 74,4% e 70,8%,
ção, apesar da diminuição da força física e da saúde. respectivamente, em 2009.
Com os não negros, a situação era bem diferente, a Cumpre ressaltar que o perfil global de negros e não
começar por contarem com uma renda familiar maior, o que negros foi (e será), crescentemente, influenciado pelos fenô-
lhes permitia manter crianças e adolescentes mais tempo menos que estão sendo observados no segmento etário su-
dentro das escolas e afastados do mercado de trabalho. Na perior, dado o acelerado processo de envelhecimento da po-
Tabela 2, isso é demonstrado pela menor taxa de participa- pulação brasileira e, em particular, do município de BH.
ção dos não negros do que dos negros, nas faixas etárias de
10 a 17 anos e mesmo de 18 a 24 anos, durante todo o Taxas de desemprego
período analisado. Mais recentemente, em 2008, 10,8% das A taxa de desemprego total é um dos principais indica-
crianças e dos adolescentes de 10 a 17 anos não negros dores a aferir as reais dificuldades de cada segmento social
estavam inseridos na força de trabalho, ao passo que, entre em efetivamente conseguir ocupação, ao se inserir na PEA. A

2
3
Essa questão é trabalhada, de forma mais aprofundada, no estudo do DIEESE (2001).
Segundo Braga e Rodarte (2006), em geral, os postos de trabalho ocupados por adolescentes e jovens de cor exigiam grande esforço físico, tinham
grande jornada de trabalho e baixo rendimento, entre outras características.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 31
Tabela 2 - Taxa de participação, por cor, segundo faixa etária - Município de Belo Horizonte - 1996/1999/2003/2008

Fonte: PED-RMBH - Convênio FJP, SEDESE, SEADE-SP e DIEESE - apoio MTE/FAT.


Elaboração: Escritório Regional do Dieese em Minas Gerais.

partir da evolução dessa taxa, pode-se, inicialmente, identifi- Entre os ocupados, o setor de serviços representou
car três momentos ocorridos no mercado de trabalho de BH: mais de metade de todos os trabalhadores, sendo 53,7%
1) os anos finais da década de 1990, caracterizados pelo dos ocupados negros e 64,3% dos não negros, em 2008
agravamento da crise do mercado de trabalho; 2) os primei- (Tabela 4). A presença dos negros na construção civil (8,0%)
ros anos da década atual, até o choque econômico de 2003, superou a de não negros (4,6%), sendo um setor, tipicamente
marcados pela melhora relativa das condições, mas com um masculino, onde se encontram tanto engenheiros como pro-
aumento da ocupação não suficientemente capaz de acom- fissionais de escolaridade mais baixa. O emprego domésti-
panhar o crescimento da PEA e conter o desemprego; e 3) o co, tipicamente feminino e onde não se exige nível de instru-
último quinquênio, que pode ser tipificado por um inédito pe- ção elevado, absorveu em 2008, 10,3% dos negros e apenas
ríodo de recuperação do mercado de trabalho4. 3,6% dos não negros.
Por esses dados, fica também evidente que, apesar Ao longo do período analisado, os perfis da ocupação
de serem mais inseridos na força de trabalho, até 2007, os dos negros e não negros quase não se alteraram. Contudo,
negros sempre encontraram mais obstáculos na conquista vale destacar o gradual aumento da importância do comércio
de uma ocupação que os não negros, devido aos diferenci- na ocupação dos negros (de 13,3%, em 1996, para os atuais
ais de taxas de desemprego, em todo o tempo de análise. 15,6%), o que pode estar sugerindo redução da discriminação
Essas diferenças foram reforçadas no início da década atual, pela aparência.
com o aumento do desemprego dos negros, concomitante a Em relação à posição na ocupação, observa-se que
uma leve redução dos não negros. Essas mesmas diferen- os negros têm uma inserção mais vulnerável, não só por se-
ças, contudo, foram atenuadas nos últimos cinco anos, uma rem mais absorvidos nos serviços domésticos (o que já foi
vez que a redução do desemprego dos negros foi mais inten- discutido acima), mas também pelo fato de ser a inserção de
sa que dos não negros. Ainda assim, no último ano da análi- autônomo, notadamente para o serviço público, ainda muito
se, a taxa de desemprego dos negros era expressivamente representativo do trabalho dos negros (15,4%), em 2008 (Ta-
maior que a dos não negros (9,2% e 7,7%, respectivamente). bela 5). Acresce a isso, a baixa proporção de empregadores
Por faixa etária, negros e não negros apresentavam o entre os negros (3,2%), se comparada aos não negros (7,4%)
mesmo comportamento, com taxas de desemprego mais al- e também dos assalariados do setor público (11,5% e 17,8%
tas para as faixas etárias mais jovens (Tabela 3). Contudo, entre os negros e os não negros, respectivamente).
observa-se que a desigualdade por cor se aprofundava na Quanto ao aspecto da evolução das diferentes formas
medida em que se avançava para as faixas etárias mais al- de inserção em mais de uma década, deve-se considerar a
tas. Isso possivelmente está relacionado com os desníveis crescente parcela de ocupados de cor negra sob proteção
de escolaridade entre negros e não negros nas gerações dos direitos trabalhistas, dado o aumento de assalariados
mais antigas, o que resultava na maior dificuldade de negros com carteira assinada no setor.
de encontrar trabalho. Rendimento médio dos ocupados
No comparativo de 2008 e 1996, constata-se que o
desemprego cresceu unicamente entre crianças e adoles- O rendimento do trabalho é um dos principais indica-
centes de 10 a 17 anos, para ambos os segmentos analisa- dores da qualidade do trabalho, sendo também um dos mais
dos, o que sugere, para fins de políticas públicas, a necessi- importantes atributos a medir os níveis de disparidades de
dade de estimular o adiamento à entrada no mercado de inserções ocupacionais entre diferentes segmentos sociais.
trabalho e a maior permanência de jovens na escola. Os dados para BH por cor dos ocupados reforçam as consta-
tações de estudos anteriores5 que mostram grandes con-
Características dos postos de trabalho trastes de renda, ao apontar que os negros recebiam, ape-
A maior adversidade encontrada pelos negros não se nas, pouco mais da metade (54,5%) da renda dos não ne-
verificava apenas na busca de inserção produtiva (medida gros, equivalendo a R$ 934,00 e R$ 1.715,00 respectivamen-
pelas diferenças de taxas de desemprego de negros e não te, em 2008 (Tabela 6 e Gráfico 1).
negros), mas também na maior precariedade dos postos de Numa abordagem de trajetória de vida dos ocupados,
trabalho que ocupavam, vencida a etapa de conquista dos nota-se que os negros, quando crianças e adolescentes de
postos de trabalho. Isso pode ser constatado mesmo nos 10 a 17 anos, ingressavam no mercado de trabalho com uma
números mais agregados relativos à ocupação. diferença mais reduzida de renda vis-à-vis a dos não negros.

4
Essa periodização reflete, em grande medida, as fases que o mercado de trabalho passou nas regiões metropolitanas analisadas pela PED, que é apresentado por
Schneider e Rodarte (2006).
5
Ver DIEESE (2001) e estudos como o do DIEESE (2005) e Pinheiro et al. (2008), que detalham ainda mais as especificidades do mercado de trabalho por cor,
ao desagregar os dados também por sexo e, assim, identificam a dupla discriminação enfrentada pelas mulheres negras.
32 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Tabela 3 – Taxa de desemprego total, por cor, segundo faixa etária – Município de Belo Horizonte – 1996/1999/2003/2008

Fonte: PED-RMBH - Convênio FJP, SEDESE, SEADE-SP e DIEESE - apoio MTE/FAT.


Elaboração: Escritório Regional do Dieese em Minas Gerais.

Tabela 4 - Distribuição dos ocupados, por cor, segundo setor de atividade - Município de Belo Horizonte - 1996/1999/2003/2008

Fonte: PED-RMBH - Convênio FJP, SEDESE, SEADE-SP e DIEESE - apoio MTE/FAT.


Elaboração: Escritório Regional do Dieese em Minas Gerais.
(1) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria.

Tabela 5 – Distribuição dos ocupados, por cor, segundo posição na ocupação – Município de Belo Horizonte – 1996/1999/2003/2008

Fonte: PED-RMBH - Convênio FJP, SEDESE, SEADE-SP e DIEESE - apoio MTE/FAT.


Elaboração: Escritório Regional do Dieese em Minas Gerais.

Em 2008, a renda dos negros nessa faixa etária equivalia a anteriores que diagnosticavam o aumento da escolaridade
88,8% da renda dos não negros. À medida que transcorria a como um dos principais fatores a definir uma melhor inser-
vida profissional, a renda dos negros, apesar de crescer em ção ocupacional. Isso ocorreu tanto entre negros como não
valor, perdia, gradualmente, em relação à renda dos não ne- negros. Ilustra isso o fato de a renda dos ocupados com en-
gros, chegando a equivaler a 50,9% do valor pago ao trabalho sino superior corresponder a quatro vezes a renda dos ocu-
dos não negros na faixa etária de 60 anos e mais. Isso sugere pados com ensino fundamental incompleto, para ambos os
que os efeitos cumulativos do aumento da educação, experi- segmentos sociais analisados, como mostra a Tabela 7.
ência e qualificação profissional acabavam acentuando as Isso não implica dizer, contudo, que o aumento da es-
diferentes inserções por cor e cristalizando as disparidades colaridade eliminaria por completo as desigualdades de ren-
sociais. da entre negros e não negros. Os dados de 2008, assim
A evolução da renda, ao contrário do que ocorreu com como dos anos anteriores, mostram que em todos os níveis
as taxas de participação e de desemprego, não reduziu as de instrução, as rendas médias dos negros eram menores
desigualdades por cor, mas sim as reforçou. Entre 1996 e que as dos não negros. Vale destacar, inclusive, que a dife-
2008, a renda dos negros obteve pequena majoração de me- rença de renda de negros e não negros com ensino superior
ros 0,6%, enquanto a renda dos não negros crescia 6,3%. completo era proporcionalmente maior que as diferenças de
Em relação ao nível de instrução, os dados do municí- renda, por cor, entre indivíduos com apenas o fundamental
pio de BH reiteram as constatações presentes em análises incompleto, no último ano de análise. Mais do que isso, deve-
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 33
se sublinhar que a evolução da renda nos níveis mais escola- de desemprego por cor. Além disso, quando ocupados, os
rizados reforçou, ao invés de diminuir, as disparidades por negros frequentemente preenchiam postos de trabalho de
cor, entre 1996 e 2008. maior vulnerabilidade, o que implicava, entre outras coisas,
rendimentos menores que dos não negros. Exemplifica isso
Considerações finais as prevalências de negros nos empregos domésticos e de
Os dados mais recentes da PED sobre o mercado de ocupados como autônomos que trabalham para o público
trabalho no município de Belo Horizonte mostraram que as (isto é, os trabalhadores por conta própria).
diferenças identificadas entre os segmentos de negros e não O presente estudo, contudo, buscou ir além de consta-
negros em estudos anteriores, em grande medida, continua- tar a permanência de problemas conhecidos de desigualda-
ram presentes e mesmo se acentuaram, em alguns casos. de por cor, ao chamar a atenção para um novo fenômeno que
Evidenciou-se aqui que as dificuldades na busca de empre- é o nivelamento do nível de inserção de negros e não negros
go e ocupação continuaram flagrantemente maiores entre os no mercado de trabalho, o que é apontado pela igualdade das
negros que os não negros, através dos desníveis das taxas taxas de participação, por cor, em 2008. Antes de isso ocorrer,

Tabela 6 – Rendimento real* médio dos ocupados, por cor, segundo faixa etária – Município de Belo Horizonte – 1996/1999/2003/2008

Fonte: PED-RMBH - Convênio FJP, SEDESE, SEADE-SP e DIEESE - apoio MTE/FAT.


Elaboração: Escritório Regional do Dieese em Minas Gerais.
(*) Inflator utilizado: IPCA - BH (IPEAD).

Gráfico 1 – Rendimento médio dos negros em relação ao dos não negros, por faixa etária – Município de Belo Horizonte – 1996/2008

Fonte: PED-RMBH - Convênio FJP, SEDESE, SEADE-SP e DIEESE - apoio MTE/FAT.


Elaboração: Escritório Regional do Dieese em Minas Gerais.
Tabela 7 – Rendimento real* médio dos ocupados, por cor, segundo nível de instrução – Município de BH – 1996/1999/2003/2008

Fonte: PED-RMBH - Convênio FJP, SEDESE, SEADE-SP e DIEESE - apoio MTE/FAT.


Elaboração: Escritório Regional do Dieese em Minas Gerais.
(*) Inflator utilizado: IPCA - BH (IPEAD);
(1) Inclui indivíduos com ensino médio incompleto;
(2) Inclui indivíduos com ensino superior incompleto;
(3) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria.
34 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
o negro constituía o segmento historicamente com maior in-
serção no mercado de trabalho. Em linhas gerais, isso se REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
dava porque os negros, em comparação com os não negros, BRAGA, Thaiz S., RODARTE, Mario M. S. A inserção ocupacional e
tendiam a entrar na força de trabalho em idade mais jovem e o desemprego dos jovens: o caso das regiões metropolitanas de
lá permanecer mesmo na terceira idade. Salvador e Belo Horizonte. Pesquisa & Debate (Online)., v.17, p.103
No novo cenário, os não negros parecem adotar o com- - 123, 2006.
portamento do adiamento à saída do mercado de trabalho DIEESE. A mulher negra no mercado de trabalho metropolitano: in-
nas faixas etárias mais elevadas, o que, antes, era praticado serção marcada pela dupla discriminação. Estudos e Pesquisas.
mais recorrentemente pelos negros. Isso não quer dizer que Ano II, N. 14. Nov./2005.
os negros tenham, de forma generalizada, passado a se apo- Disponível em: <http://www.dieese.org.br/esp/
sentar mais cedo agora, mas apenas que o adiamento à estpesq14112005_mulhernegra.pdf >. Acesso em 31 mar. 2009.
saída do mercado de trabalho tem sido mais intenso entre os DIEESE. A situação do trabalho no Brasil. São Paulo: DIEESE, 2001.
não negros, nos últimos anos. Dado o processo de envelhe- PINHEIRO, Luana et al. Retrato das desigualdades de gênero e raça.
cimento, esses movimentos atuais com indivíduos de 40 anos 3. ed. Brasília: IPEA: SPM: UNIFEM, 2008. 36p.
e mais tendem a se refletir mais nas estatísticas globais no SCHNEIDER, Eduardo M. RODARTE, Mario M. S. Evolução do merca-
presente que no passado. do de trabalho metropolitano entre meados das décadas de 1990 e
Embora explicar esse fenômeno fuja aos objetivos 2000. São Paulo em Perspectiva, v. 20, p. 74-102, 2006.
desse texto, pode-se aventar algumas hipóteses que justifi-
quem o novo comportamento diferenciado por cor, na terceira
idade. Uma delas seria o aumento do estímulo para manter
pessoas com maior idade na ativa, por parte de alguns seto- Abstract
res que valorizam a experiência, tal como os ramos de saúde
e educação, nos serviços. Nesse caso, a seletividade por cor
decorreria, principalmente, da maior escolaridade e melhor The article describes how the labor market was
trajetória profissional dos não negros. Uma outra hipótese characterized for negroes (black and mulatto people) and
seria o impacto das majorações recorrentes do salário míni- non-negroes (white and yellow), in Belo Horizonte city, in
mo no piso dos benefícios da Previdência Social, ao longo da 2008 and in the previous years. Furthermore, the study
década atual, o que daria à parcela dos negros idosos a pos- examined the employed negroes and non-negroes profiles,
sibilidade de se aposentar e, efetivamente, abandonar inser- identifying the activity sectors in which they were absorbed,
ções precárias. Novos estudos, contudo, devem ser feitos
com o fim de testar essas e outras hipóteses. Todavia, o con- as well as, the different forms of insertion, not only in the
junto de indicadores por cor indica que ainda se está longe formal portion, but also in other work forms so typical in the
de uma situação de maior igualdade e que algumas tendênci- heterogeneous Brazilian labor market as the self –
as à diminuição das disparidades ainda são muito tímidas. employment.

Considerações sobre a desigualdade racial


no mercado de trabalho da RMBH
ANDRÉA ALCIONE DE SOUZA*

A
discriminação por raça ou por cor no Brasil se
manifesta de inúmeras formas, em todos os
espaços e instituições. Nos últimos dez anos
observamos a ampliação das pesquisas e dos
O objetivo deste trabalho é
trabalhos acadêmicos que privilegiam a questão racial na apresentar uma discussão sobre
análise da crise social brasileira. No caso das análises sobre
a estrutura sócio-ocupacional da população negra, a maioria as desigualdades raciais do
destes trabalhos aponta a existência de uma escala social
que coloca homens brancos no grau mais elevado, seguido mercado de trabalho da Região
pelas mulheres brancas, homens negros e no último patamar
as mulheres negras. Para os dois últimos grupos desta escala Metropolitana de Belo Horizonte,
se observa as piores condições de inserção no mercado de
trabalho, com a ocupação de postos mais precários, mal
a partir de dados recentes
remunerados e menos protegidos. apresentados pelos órgãos
Pobreza, raça e trabalho oficiais de pesquisa, analisando
A partir da década de 90, a reestruturação produtiva
influenciou as grandes áreas metropolitanas do país, também as possíveis formas de
transformando o padrão de urbanização em algumas
localidades. Segundo Mendonça (2005), a expansão das discriminação racial que ocorrem
atividades terciárias e o deslocamento das elites dirigentes no cotidiano das organizações.
para as áreas periféricas da RMBH - consequências das
alterações decorrentes da reestruturação produtiva - não
*
Professora do curso de Administração e doutoranda em Ciências Sociais pela PUC/MINAS.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 35
significaram alteração do padrão de ocupação do espaço como pessoa de referência. Já para as famílias negras e
urbano, nessa região. Ao contrário, essas alterações pardas, esse número sobe para 64%4 .
aprofundaram a distância física entre os grupos, além de No mercado de trabalho metropolitano, a discrimina-
contribuir para a expansão das periferias precárias. Para essa ção racial, somada à ausência de equidade entre os sexos,
autora, a distribuição da população na Região Metropolitana coloca as mulheres negras em pior situação, relativa aos
de Belo Horizonte reproduz o padrão “centro-periferia” que se demais grupos: homens brancos e negros e mulheres bran-
caracteriza por além das condições precárias e do cas. Apesar dos avanços, a não superação das desigualda-
direcionamento diferenciado de recursos públicos existentes des de gênero ainda é uma questão importante no debate
nas áreas mais pobres, pela ocupação dispersa do espaço das desigualdades sociais.
urbano, distância física entre ricos e pobres, sistema de As mulheres aumentaram a sua participação na po-
transporte baseado em ônibus para os trabalhadores e em pulação economicamente ativa nos últimos dez anos, e in-
carros para as classes médias e altas. gressaram em setores, até então, pouco ocupados pela mão
Estudos recentes1 demonstram que, com relação à de obra feminina. Mas algumas dessas conquistas não são
distribuição dos grupos sócio-ocupacionais, a maioria dos compartilhadas por todo o conjunto de trabalhadoras. Sobre
trabalhadores menos qualificados está concentrada nos es- a situação das mulheres negras, dados recentes do DIEESE
paços periféricos, ou em grandes favelas atreladas às regi- (2005) apontam para a existência de uma dupla discrimina-
ões centrais. Nestes espaços, trabalhadores mal remunera- ção nos mercados de trabalho metropolitanos: de gênero e
dos vivenciam, ao mesmo tempo, a pobreza e a exclusão de raça. As mulheres negras são maioria, por exemplo, no
social. trabalho doméstico dessas regiões5 :
Para Lavinas (2002), a pobreza é um fato urbano, não A incorporação de mulheres negras, comparativamente
apenas porque a maioria dos pobres vive nas cidades e áre- às não negras no serviço doméstico, é mais um traço da
as metropolitanas, mas também, porque a reprodução da desvantajosa situação em que se encontram as afro-
pobreza é mediada pela reprodução das condições de vida descendentes. De fato, entre as regiões analisadas, exceto
nas cidades, por meio da dinâmica do mercado de trabalho e em Salvador, onde apenas 6,7% das não negras encontram-
demais aspectos, que formam a interação entre a sociedade se no emprego doméstico, parece predominar um
civil, o Estado e o Mercado. Para essa autora, tratar de exclu- determinado padrão na concentração das mulheres não
são social é tomar um registro mais amplo do que a ausên- negras nesta atividade – em torno de 13%. Já entre as negras,
cia de renda. A exclusão social exige novas formas de gestão a incorporação no emprego doméstico ficou, no biênio 2001-
urbana, que possibilitem a todos os atores sociais participar 2002, sempre em patamares superiores aos 20%, chegando
de padrões de sociabilidade, existentes em cada localidade. a alcançar, nas áreas metropolitanas de Porto Alegre e São
Pobreza, trabalho e exclusão são categorias que definem o Paulo, 33,6% e 30,0%, respectivamente. (DIEESE, 2005, p.
lugar de determinados grupos sociais no Brasil, evidencian- 25).
do a necessidade de construção de políticas públicas, na Como negros e negras estão ocupando postos de tra-
área do trabalho e da gestão das cidades, para a redução balho mais vulneráveis e precários, a situação da renda e da
das desigualdades sociais. ausência de outros ativos – materiais e simbólicos – acaba
No conjunto dessas desigualdades, a questão racial por reservar a esse grupo outro tipo de problemática: a ques-
pode ser considerada como uma importante dimensão da tão da segregação urbana.
crise social brasileira (HASENBALG, 2005). Apesar de, Segundo Ribeiro e Santos Junior (2003), no antigo
aproximadamente, 45%2 da população brasileira ser negra padrão centro periferia, era possível observar a articulação de
ou parda, esse grupo tem experimentado, ao longo da história, forças que, por intermédio da união dos atores sociais, ga-
situações de discriminação racial, que, em comparação com rantiam, de certo modo, uma condição de vida mais digna
os demais grupos sociais, resultam em uma pior qualidade para os trabalhadores de tais áreas. Com a reestruturação
de vida. Os negros, de acordo com várias pesquisas produtiva e o fim do assalariamento (característica da socie-
socioeconômicas, estão submetidos às piores condições da dade fordista) os laços de solidariedade existentes nas peri-
vida urbana e às condições desfavoráveis de inserção no ferias das cidades se enfraqueceram, dificultando, assim, a
mercado de trabalho. formação de ações coletivas. Wacquant (2001), citado por
Dados oficiais 3 demonstram que, com relação aos Queiroz e Santos Ribeiro (2003), afirma existir uma
negros, observam-se taxas de desemprego mais elevadas, sobreposição de desigualdades que, no caso norte-ameri-
maior presença em postos de trabalhos mais desqualificados, cano, por exemplo, atua sobre os guetos negros e pobres
além de eles serem menos protegidos e mais vulneráveis. daquele país. Segundo esse autor:
Além disso, todos os dados oficiais, em qualquer metodologia A estigmatização dos guetos negros, o abandono des-
adotada, mostram que negros e negras recebem tes espaços pelas classes médias e pelo Estado e a instaura-
rendimentos inferiores, quando comparados aos não negros. ção de uma economia da pilhagem seriam responsáveis pela
Informações do Instituto Brasileiro de Geografia e sua “desertificação social” e “alienação territorial”, fazendo
Estatística (IBGE), relativas a 2001, mostram que, quando se com que o gueto deixe de exercer o papel de suporte de uma
analisam os dados da população que vive com até meio vida comunal existente anteriormente, na qual seus morado-
salário mínimo de rendimento familiar per capita, levando-se res encontravam recursos materiais e imateriais (WACQUANT
em consideração a cor, observa-se que apenas 34,8% se apud QUEIROZ E SANTOS RIBEIRO, 2003, p. 86).
declararam brancas, enquanto 64,9% se declararam negras
Assim, é importante compreender, com clareza, como
ou pardas. Já nas famílias com rendimento superior a dois
ocorre, no Brasil, a articulação de condições desfavoráveis
salários mínimos, a sub-representação é relativa às pessoas
de ocupação do espaço urbano e de inserção no mercado de
negras e pardas. A desigualdade racial também está presente
trabalho, que, aliado à discriminação de gênero e raça, aca-
na estrutura familiar do Brasil. Os indicadores mostram que,
bam por contribuir para o aumento da vulnerabilidade social
para as famílias brancas, apenas 27% possuíam uma mulher
de negros e negras, frente a outros grupos sociais.
1
Metodologia de classificação socioespacial das unidades espaciais homogêneas - anexo 2. (MENDONÇA, 2005)
2
Dados da PNAD de 2003.
3
Dados do CENSO (2000); Atlas do Negro (2002) e PNAD (2003).
4
Dados da PNAD - Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio - referentes a 2001 -, divulgados na publicação do IBGE, sobre a situação da população brasileira,
2002. Considera-se que no Brasil, o tipo mais comum de arranjo familiar é ainda o nuclear, composto pelo casal e seus respectivos filhos.
5
Análise realizada na RM de Belo Horizonte, Distrito Federal, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo.
36 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
As desigualdades raciais no mercado
de trabalho metropolitano O tema das cotas no mercado de
O mercado de trabalho da Região Metropolitana de
Belo Horizonte reproduz as desigualdades raciais observa-
trabalho é polêmico e sempre encon-
das em outros espaços urbanos. Quando analisamos os tra defensores favoráveis e contrári-
dados sobre desemprego, por exemplo, observamos que a
população negra (homens e mulheres) apresenta as maio- os com argumentos bem construídos.
res taxas. No período de agosto de 2006 a julho de 2007,
segundo dados do DIEESE (2007), para uma taxa de 10,3% dessa raça. “Isso significa que apenas 1 em cada 2.850
de não negros desempregados havia uma taxa de 14,3% de funcionários negros chega a essa posição máxima, contra 1
negros nesta mesma situação. Com relação ao desemprego diretor branco para cada 479 trabalhadores da mesma cor”
é preciso ressaltar que, ao analisarmos a escolaridade, ob- (TOLEDO, 2002: 6). Mesmo assim, observam-se diferenças
serva-se que as taxas de desemprego de toda a população salariais entre esses profissionais. O diretor negro receberá
crescem à medida que aumentam os anos de estudo. Mas em média R$ 4.134,40. Já o seu colega branco receberá,
para as pessoas com o nível superior completo, as taxas de aproximadamente, R$ 10.568,80.
desemprego tendem a diminuir. No entanto, mesmo consi- Outro dado que demonstra o significado da discrimi-
derando o aumento da escolaridade, a disparidade entre ne- nação de negros e pardos no mundo do trabalho foi evidenci-
gros e não negros permanece. Na RMBH, a taxa de desem- ado em 1997, pelo advogado paulista Hédio Silva Júnior, que
prego das mulheres negras mais escolarizadas era de 18,4% realizou uma pesquisa sobre “Direito e relações raciais na
contra uma taxa de 8,1% de homens não negros desempre- cidade de São Paulo”. Os dados foram coletados em 15 dele-
gados. Este dado indica que o aumento do nível educacional gacias da cidade em 1996 e 1997. O pesquisador analisou
não tem implicado na redução das disparidades entre ne- 250 boletins de ocorrência. Segundo suas conclusões, pelo
gros e não negros. menos seis em cada dez casos de discriminação racial es-
Outra informação importante apresentada pelo tão relacionados com ofensas no local de trabalho. Nenhum
DIEESE (2007) para este mesmo período se refere à inser- caso estudado resultou em condenação.
ção vulnerável no mercado de trabalho. Este órgão define o Em Belo Horizonte, as denúncias contra racismo no
emprego vulnerável como aquele sem carteira assinada, tra- ambiente de trabalho podem ser realizadas na Delegacia
balhadores familiares não remunerados e empregados do- Regional do Trabalho, que trata da questão como uma das
mésticos. Com relação à ocupação destes postos de traba- muitas formas de assédio moral. Mas é a atuação das orga-
lho em Belo Horizonte, observa-se que 35,4% do total dos nizações não governamentais de cunho racial e dos movi-
ocupados negros estão nesta situação. No grupo dos não mentos negros organizados que fazem a diferença no que se
negros 26,4% estão em postos precários. Quando compara- refere à denúncia e a divulgação de práticas racistas dentro e
mos a taxa da inserção vulnerável das mulheres negras fora do ambiente de trabalho em Belo Horizonte (CARDOSO,
(43,9%) com a mesma situação do homem não negro (23,1%) 2002).
podemos ter mais clareza da dimensão da desigualdade no No campo das políticas sociais, as discussões estão
mercado de trabalho. focadas na construção de políticas públicas que garantam:
A pesquisa do DIEESE aponta outros dados importan- a) a adoção de programas de capacitação econômica, finan-
tes como a diferença de rendimentos médios no trabalho ceira, gerencial e tecnológica das comunidades negras e in-
principal. Em 2007, na RMBH, a mulher negra, com curso dígenas que proporcionem desenvolvimento de capacidades
superior, ganhava em média R$ 1.867,00 e a mulher não empreendedoras;
negra, com a mesma escolaridade, ganhava R$ 2.061,00. b) a abertura de linhas de crédito especiais para empreende-
Esses dados são importantes para compreendermos dores de grupos discriminados;
que ainda há um longo caminho a ser percorrido quando
falamos de equidade entre gênero e raça no mercado de c) a efetiva implantação da convenção 111 da Organização
trabalho. No entanto, a discriminação racial não aparece Internacional do Trabalho (OIT), que se refere à discrimina-
apenas nos números. A prática cotidiana do preconceito racial ção no emprego e na profissão;
está presente no mundo do trabalho desde a contratação até d) o apoio na adoção de políticas de diversidade em empre-
a ocupação de cargos por negros e não negros nas sas públicas e privadas;
organizações. Segundo o editorial do jornal Folha de S.Paulo, e) fortalecimento de programas de capacitação para inser-
publicado em 04/09/97, sobre o racismo no trabalho, um ção de homens e mulheres negros de uma forma mais posi-
requisito mais comum em anúncios de emprego excluía os tiva no mercado de trabalho; e
candidatos que não apresentassem “boa aparência”. Na f) adoção de políticas de ação afirmativa nos níveis mais altos
prática, o recado visava negros, pardos ou outras aparências dos três níveis de governo e implantação de políticas de co-
indesejáveis para uma sociedade que discrimina os negros. tas para o preenchimento de vagas no setor público. (SEPPIR-
De acordo com uma pesquisa do Datafolha realizada GOVERNO FEDERAL, 2004).
em 2002 (TOLEDO, 2002) 19% dos negros declararam que De todas as políticas elencadas acima, a adoção de
já se sentiram discriminados no trabalho por causa de sua cotas raciais para preenchimento de vagas é a que mais
cor. Se comparado com o percentual de brancos que já se mobiliza o debate sobre a adoção de políticas com recorte de
sentiram assim - 2% -, percebe-se que o racismo é uma raça e gênero no país. Estratégias e formatos da política de
prática constante no trabalho. A pesquisa mostra que o grau cotas ainda estão indefinidos no cenário brasileiro. A despei-
de discriminação varia segundo a cor da pele, sendo de 11% to disso, há fortes indícios de que esse será um dos temas
entre os pardos e de 9% entre os orientais. As situações e as centrais na agenda de discussão das empresas socialmen-
formas de discriminação também são diferenciadas por raça. te responsáveis no Brasil. No entanto, o tema das cotas no
Entre os negros, a principal reclamação foi com relação ao mercado de trabalho e em outras instituições é polêmico e
processo de seleção, quando se sentiram preteridos em fun- sempre encontra defensores favoráveis e contrários com ar-
ção de sua cor. Já para os orientais, as principais queixas gumentos bem construídos.
eram com relação às piadas e insultos nos locais de trabalho. Segundo Teodósio e Souza (2005), a adoção de cotas
A pesquisa também aponta outros dados interessantes. se destinaria a todos os cargos em organizações públicas,
Em dezembro de 2000, havia no Brasil apenas 345 diretores privadas e não-governamentais, mas em especial nas posi-
de empresas que se declararam negros. Esse dado reforça ções gerenciais ou que exigem especialização e qualificação
a dificuldade de ascensão profissional de um trabalhador técnica. Sobre essa questão eles elaboraram um quadro que
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 37
Controvérsia em torno de cotas raciais nas organizações brasileiras
sintetiza os principais pontos de impasse.
Argumentos Favoráveis
Argumentos Contrários
Existência de dívida histórica dos grupos dominantes
com relação aos negros. Gerações que não são responsáveis por essa dívida
Os melhores e mais qualificados entre os negros histórica pagarão o “preço” dela
serão contratados primeiro através das cotas. Pessoas ineficientes e desqualificadas serão inseridas
A política de cotas é uma estratégia de ação afirmativa, nas organizações.
ou de discriminação positiva. Não se pode tratar igualmen- Trata-se de uma iniciativa discriminatória, aumentando
te quem está em condição desfavorável pois isso, sim, se- a resistência ao negro no trabalho e na sociedade.
ria injusto e discriminatório. Impossibilidade de se definir quem é ou não negro no
O racismo no país não é um fenômeno biológico, mas Brasil, devido à miscigenação das raças.
político. Outros grupos desfavorecidos exigirão cotas, tais como
Outros grupos socialmente desfavorecidos também indígenas, homossexuais, dentre outros, sobrecarregando
têm o direito a sua inclusão no trabalho e na sociedade. as organizações com suas demandas e inviabilizando a
A política de cotas é uma estratégia para levar trabalho política de cotas.
e renda a grupos desfavorecidos. Reformar a escola públi- Melhor estratégia de inclusão social não é gerar traba-
ca, elevando sua qualidade, exige tempo e investimento. lho e renda diretamente, mas investir em educação de qua-
A maioria dos pobres no Brasil é constituída por ne- lidade para os negros.
gros. A exclusão das organizações brasileiras é principal- Cotas, se adotadas, devem contemplar não apenas os
mente um problema de discriminação racial, sobretudo em negros, mas as pessoas de baixa renda. A exclusão nas
cargos de gerência e de grande exposição/visibilidade do organizações brasileiras não se deve a preconceito racial,
ocupante na mídia. mas por condição de renda.
O contato cotidiano do negro com outras étnicas-raças Organizações adotarão políticas de cotas por imposi-
nas organizações derrubará gradativamente o preconceito. ção legal, sem terem a vocação e o compromisso efetivo
com a mudança da cultura organizacional.

Fonte: Teodosio, Armindo dos Santos de Souza e Souza, Andréa Alcione. A inserção do afro-descendente no mercado de trabalho brasileiro: desafios e dilemas para
a construção de políticas étnicas nas organizações. In: Ashley, Patrícia Almeida (coord). Ética e Responsabilidade social nos negócios. Ed. Saraiva, São Paulo, 2005.

Considerações Finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
As desigualdades raciais observadas no mercado de traba-
lho da RMBH causam um impacto perverso para a população CARDOSO, Antônio Marcos. O movimento negro em Belo Hori-
negra desta região. Ocupando cargos mais vulneráveis e com zonte: 1978-1998. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Minas Ge-
menores chances de ascensão profissional, a maioria dos
rais. Belo Horizonte, 2002.
negros ainda experimenta um ciclo de pobreza e exclusão
DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos So-
que se soma e aprofunda os problemas das desigualdades cioeconômicos. Estudos e pesquisas: escolaridade e trabalho:
sociais no Brasil. Assim, a questão das relações raciais não desafios para a população negra nos mercados de trabalho
deve ser compreendida como uma temática de interesse ex- metropolitano. Ano 3- n.o. 37 – novembro de 2007
clusivo destes grupos . O enfrentamento da discriminação DIEESE. Mulher negra: dupla discriminação nos mercados de
racial em todas as instituições e principalmente no mercado trabalho metropolitanos. Boletim do DIEESE, edição especial, São
de trabalho é atualmente um dos maiores desafios da socie- Paulo, 2005.
dade brasileira. Neste sentido, as políticas públicas para a HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no
promoção da igualdade racial e as ações afirmativas que Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
podem e devem ser adotadas no setor privado têm um papel LAVINAS, Lena. Pobreza e exclusão: traduções regionais de
importante na redução das assimetrias raciais no Brasil. duas categorias da prática. Revista Econômica, v.4, n.1, pg. 25-
59, junho de 2002, impressa em out de 2003.
MENDONÇA, Jupira Gomes. Estrutura socioespacial na RMBH
Abstract nos anos 2000: há algo de novo. Belo Horizonte, 2005. Texto não
publicado.
RIBEIRO, Luiz César Queiroz e SANTOS JUNIOR, Orlando Alves
The objective of this work is to present a discussion dos. Democracia e segregação urbana: reflexões sobre a rela-
about the racial inequalities in the labor market in the ção entre cidade e cidadania na sociedade Brasileira. Revista
metropolitan region of Belo Horizonte, through the recent Eure, Santiago do Chile, dezembro de 2003.
data presented by the official research organs, also SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igual-
dade Racial – Governo Federal. Texto para discussão para o
analyzing the possible racial discrimination forms which encontro estadual de entidades negras. Brasília, 2004 ( mimeo)
occur in the organizations routine. TEODOSIO, Armindo dos Santos de Souza e SOUZA, Andréa
Alcione. A inserção do afro-descendente no mercado de traba-
lho brasileiro: desafios e dilemas para a construção de políticas
étnicas nas organizações. In: Ashley, Patrícia Almeida (coord).
Ética e Responsabilidade social nos negócios. Ed. Saraiva, São
Paulo, 2005.
TOLEDO, José Roberto. Negro ganha menos, oriental recebe
mais. Folha de S.Paulo. São Paulo, 24/03/2002, caderno trabalho
(especial), p. 1 e 6.

38 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009


Relações raciais "questões menores" ou periféricas. Estas se arrastam desde o início
da República como a marca da pobreza no País, onde a exclusão
cedeu à idéia de "democracia racial" ancorada a um pensamento de
branqueamento da sociedade brasileira, um projeto irrealizável das
A Promoção da elites, pelo simples fato de o Brasil sempre ter sido de maioria negra e
mestiça, como vem confirmando desde o século XIX, os estudos e os
censos oficiais realizados.
Igualdade Racial Assim, nosso desenvolvimento na atualidade exige inclusão
universal dos excluídos. Nossos problemas não estão, por exemplo,
na nossa capacidade enérgica, na infertilidade do nosso solo, na
em Tempos de nossa dinâmica industrial e de serviços em larga escala, mas sim, na
baixa escolaridade, pois o ensino básico ainda é precário, devido a
ausência de políticas no passado. Lentamente o ensino técnico
Transformação deslancha e o ensino superior público de qualidade vai recuperando-
se da quase destruição da "onda" privatizante dos anos 1980 e 1990.
Sem embargo, a população negra e pobre em larga escala,
Social muito recentemente, passou a ter o direito à cidadania, de acessar
três refeições diárias com quantidade de calorias necessárias para
uma criança, por exemplo, ter bom desempenho na escola, e, para
JOÃO CARLOS NOGUEIRA* este êxito, as políticas de transferência de renda têm importância
destacada. Sendo assim, os investimentos feitos na área social com
políticas públicas fortes e estruturantes, os efeitos da crise
Este artigo trata inicialmente dos desumanizam menos e não socializam só os prejuízos, para os países
em desenvolvimento como o Brasil.
desafios da crise e sua profundidade. As crises sempre caminharam a passos largos ao longo da
história do capitalismo mundial, e os conflitos étnico-raciais palmilham
Em seguida desenvolve um breve todos os cenários ao longo do século XX e este início de novo milênio.
panorama das relações raciais, seus Panorama das relações raciais
O panorama das relações raciais e dos conflitos étnico-raci-
conflitos e as transformações sociais ais marcaram a política, a economia, e a cultura em âmbito nacional e
internacional. Estes conflitos em maior ou menor intensidade aconte-
protagonizadas pelos movimentos ceram em todos os continentes ao longo do século XX e início do
negros. Aborda num terceiro momento século XXI. W.E.B. Du Bois, militante e intelectual, um dos mais relevan-
tes da história da diáspora negra, afirmou que "o problema do século
uma concepção de desenvolvimento XX é o problema da barreira racial", assertiva que não carregava um
pessimismo acerca dos destinos da humanidade, mas sim, a evidência
social e econômico e conclui com um dos fatos. O intenso conflito racial pós-escravidão nas Américas, o
colonialismo-imperial espalhado por todos os cantos dos continentes,
breve diálogo entre as políticas de em particular no continente africano, e a intensa luta pelos direitos
civis na sociedade norte-americana, promoviam, no início do século
promoção da igualdade racial em nosso XX, um olhar sombrio no horizonte de um tempo nublado. Em seu
clássico "I am the smoke king- I am black", traduzido para o Brasil
tempo, e as transformações em curso. com o título" “As almas da gente negra", um ensaio literário seminal,
que revela ainda a irretocável grandeza de seu propósito, a liberdade
da "gente negra" como princípio para alcançar a democracia na Amé-

O s desafios colocados para a sociedade brasileira nos marcos


da crise sistêmica e estrutural, que marca mais profundamente a nos-
sa primeira década do século XXI, acompanhada das tragédias de 11
rica.
Otávio Ianni, sociólogo e pesquisador das relações raciais no
Brasil, no artigo “A racialização do mundo: globalização,
transnacionalização do trabalho e movimentos raciais”, argumentava
que "o século XX pode ser visto como um vasto cenário de proble-
de setembro em 2001, e as guerras no Oriente Médio, têm no sistema mas raciais. São problemas inseridos mais ou menos profundamen-
financeiro os componentes visíveis que atraem todas as atenções por te nas guerras e revoluções, nas lutas pela descolonização, nos
ser exatamente no coração do capitalismo central. No entanto, a crise ciclos de expansão e recessão das economias, nos movimentos de
é civilizatória, com marcas de desumanidade incomuns na América do mercado da força de trabalho, nas migrações, nas peregrinações
Norte (EUA), onde as corriqueiras notícias de elevados índices de religiosas e nas incursões e tropelias turísticas, entre outras carac-
homens negros encarcerados dividem as atenções com famílias de terísticas mais ou menos notáveis da forma pela qual o século XX
classe média branca, que perambulam pelas ruas sem casa, sem pode ser visto, em perspectiva geográfica ampla. São problemas
trabalho e com nenhuma esperança. raciais que emergem e desenvolvem no jogo das forças sociais,
Que em alguma medida vai sendo lentamente restabelecida conforme se movimentam em escala local, nacional, regional e mun-
com as eleições do candidato democrata eleito Barack Obama, cujos dial. Ainda que muitas vezes esses problemas pareçam únicos e
limites são evidentes para operar mudanças profundas no sistema de exclusivos, como se fossem apenas ou principalmente ‘étnicos’ ou
poder global, a crise tem injunções que conspiram desde a I Revolução ‘raciais’, a realidade é que emergem e desenvolvem no jogo das
Industrial, que por um lado, ofereceu avanços tecnológicos extraordi- forças sociais, compreendendo implicações econômicas, políticas
nários, mas também impôs padrões civilizatórios que sucessivamente e culturais" (IANNI, 1996, p. 1). 1,
comprometem as sociedades contemporâneas. O etnólogo Carlos Moore , também sociólogo e antropólogo,
O Brasil, melhor posicionado neste "novo" ambiente mundial, um dos mais brilhantes intelectuais na atualidade,
2
ancorado na tradi-
carrega contradições que o desafia enquanto Nação, e neste turno as ção do pensamento de Cheikh Anta Diop , em seu recente livro "Racis-
desigualdades étnico-raciais não podem ser compreendidas como mo e Sociedade: Novas Bases Epistemológicas para Entender o Ra-

*João Carlos Nogueira. Sociólogo, Doutorando pelo Instituto Politécnico de Tomar - Portugal (Universidade Erasmus Mundus). Membro do Núcleo de Estudos Negros.
Membro da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen).
1
Carlos Moore é doutor em Ciências Humanas e doutor em Etnologia pela Université de Paris (França), onde recebeu formação interdisciplinar (Etnologia, Sociologia e
Antropologia) e obteve o prestigiado Doutorado de Estado em 2003. Desde 2002, atua como Chefe de Pesquisa Sênior (Honorário) na Escola de Estudos de Pós-
Graduação e Pesquisa da University of the West Indies (UWI), Kingston (Jamaica).
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 39
As relações ra-
ciais produzi-
ram profundas
transformações
no mundo das
relações soci-
ais, econômi-
Foto: Glênio Campregher

cas e culturais,
sobretudo nas
últimas três dé-
cadas no Brasil.
cismo" fundamenta suas teses acerca de um passado conflituoso, de cal, nas representações dos movimentos sociais ou no âmbito do
um presente comprometido e de um futuro incerto em relação ao racis- Estado, quando não articuladas no plano de um projeto político, centrado
mo no mundo contemporâneo, afirmando que: "Todos fomos sociali- nas forças da militância negra organizada (entidades e movimentos),
zados na noção, bem familiar, de que o racismo fora uma construção os resultados tendem a serem pífios, quando não desastrosos.
ideológica; ou seja, uma elaboração intelectual com fins políticos e As experiências institucionais conhecidas, estudadas e
econômicos e, consequentemente, permeável à lógica (educação, publicizadas, indicam que a compreensão elementar que se deve con-
demonstração científica, pregação ético-moral). O racismo era uma siderar nos processos de negociação da agenda, são os jogos de
questão de indecência, ignorância ou vulgaridade, e nada mais. Ele interesse nos espaços da política e das decisões de caráter econômi-
podia ser facilmente vencido por meio da educação; da adoção de co. Reside neste universo uma parte importante da estratégia de com-
‘modais descentes’; da prédica religiosa e do 'abrandamento do co- bate ao racismo e a outra ponta intransferível que é a mobilização e
ração'. Esta visão geral era reconfortante, na medida em que impli- organização do movimento social anti-racismo.
cava que estávamos em controle da situação. Consequentemente, A conjuntura a qual devemos nos debruçar deve ser numa
nela se basearam todas as tentativas realizadas, em todas as par- perspectiva de longa duração, observando as tensões e os conflitos,
tes, desde a Segunda Guerra Mundial para cá, para exorcizar o a partir das forças que constroem alternativas positivas para o com-
mostro" (MOORE, 2007, p. 277). bate ao racismo e a promoção da igualdade racial, e também, sobretu-
No entanto, as mais fortes evidências históricas apontam para do, atendo àquelas que dificultam os processos de transformações
o sentido de que o racismo teria se construído historicamente, e não sociais, econômicas e culturais.
ideologicamente. E não se trata de uma questão semântica, senão de Relações raciais numa conjuntura transformações
uma diferença de fundo, implicando a adoção de novas bases
epistemológicas que possibilitem sua compreensão, afirma ainda, As relações raciais produziram transformações profundas
Moore: "...o racismo que se encontra na raiz dos desarranjos sociais no mundo das relações sociais, econômicas e culturais, sobretudo
extremos vivenciados em praticamente todos os paises do mundo, nas últimas três décadas no Brasil.
tornando-o a ultima fronteira do ódio no planeta" . A rearticulação dos movimentos sociais nos anos 1970 e 1980,
Três visões em tempos distintos e de lugares diversos, mas quando o movimento negro unificou suas principais pautas de luta em
com uma singularidade: o racismo como centralidade na análise sócio- torno do combate à violência policial, à educação e ao acesso ao
política, histórica e epistemológica. Rigorosamente, pensadores mercado de trabalho; o processo constituinte - com a promulgação da
sociais mais atentos à realidade para além das peripécias do merca- Constituição em 1988 - asseguram dois artigos fundamentais: a
do, organismos internacionais e governos com compromisso público e criminalização do racismo e a garantia da titulação das terras às co-
social, não podem ignorar a lógica da construção do poder e da domi- munidades quilombolas (Art. 68 DCT). A Marcha Zumbi dos Palmares,
nação, com base nas relações étnico-racial e de gênero, mais agra- ocorrida em 1995, e a Conferência de Durban, em 2001, sintetizam a
vadas ainda, no Continente Americano e Africano. capacidade de articulação do Movimento Negro, na medida que esta-
Assim, os conflitos étnico-raciais, o combate ao racismo e a va construindo ao longo deste tempo as condições objetivas para a
construção das políticas de promoção da igualdade racial não devem sustentabilidade das lutas e seus processos organizativos, que re-
ser compreendidos na lógica das análises imediatistas e instrumenta- sultaram em conquistas nos anos 1990 e neste início de século XXI.
listas. O exemplo mais clássico é a historia do crescimento econômico É evidente que essas transformações não são perceptíveis
em países como EUA, África do Sul e Brasil, que alcançaram elevadas ainda nos modelos econômicos, nas estruturas do poder judiciário e
taxas de crescimento e, mesmo assim, apresentaram baixo impacto na organização política do Estado brasileiro. Elas obedecem a uma
na diminuição das desigualdades raciais. Do mesmo modo, as peque- outra lógica; obedecem à lógica da desconstrução do racismo nas
nas conquistas no campo da política representativa, partidária e sindi- suas estruturas calcificadas.Ver, por exemplo, a realidade nas uni-

2
Cheikh Anta Diop nasceu em Diourbel, Senegal em 29 de Dezembro de 1923. Era Físico de formação, mas considerado um dos principais historiadores egyptologists,
linguistas e antropólogo do mundo. Apresentou sua primeira dissertação de doutoramento em 1951 na Universidade de Sorbone (Paris), baseada na premissa que os
Faraós eram uma civilização africana, a qual foi rejeitada, e posteriormente publicada em 1955 pela Presence Africaine sob o titulo Nations Negres et Culture. De 1950
a 1953 foi Secretario Geral do Rassemblement Democratique Africain (DDR). Morreu no Senegal em 7 de Fevereiro de 1986.
3
Seafro no Rio de Janeiro, Comacon em Belo Horizonte, várias Coordenadorias e Assessorias, Superintendência no Estado de Goiás, Conselhos Estaduais e Municipais
para Assuntos da Comunidade Negra etc.
40 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
versidades públicas federais que adotaram o sistema de cotas, inde- Apesar da efervescência das iniciativas locais nos muni-
pendente da obrigatoriedade legal. Do mesmo modo, a criação do cípios, nos estados e regiões, havia um certo desgaste das ações
ProUni num sistema de contrapartida fiscal; o Brasil Quilombola e o isoladas, motivo esse, que faz crescer as articulações para a realiza-
Programa Terra Negra Brasil - que buscam garantir o acesso e a ção dos espaços nacionais, para consolidar aquelas consideradas
permanência na terra das comunidades quilombolas e dos trabalhado- de peso e com representatividades e legitimidade política.
res negros e negras no campo -; a Agenda Social Quilombola que Nesse sentido, os Encontros Nacionais, Seminários, Plenári-
articula uma diversidade de políticas e ações voltadas para comunida- as, Fóruns promovidos pelas organizações do movimento negro, ocor-
des negras rurais e quilombolas; a Implementação das Diretrizes ridos principalmente de 1995 a 2005, representaram um marco na luta
Curriculares para o Ensino da Historia da África e dos Afro-brasileiros contemporânea do movimento. É sempre importante observar que as
na Educação Básica; a Lei 10.639, e tantas outras de menor impacto. suas principais lideranças mantiveram o eixo estratégico de constru-
Por essas razões, as transformações na lógica da promoção da igual- ção de unidade política do movimento negro e de conquista do poder,
dade racial são longas e permanentes. que deve ser de forma transparente e consistente. Este método é
É importante notar que desde 1984, quando se intensificou o elemento político central na luta contra o racismo, o sexismo, machismo,
processo de abertura política no País, desenhando um novo ciclo de e todas as formas de discriminação e desigualdades.
desenvolvimento social e econômico, promovendo a radicalização do O Brasil vive um momento de sua história rico e contraditório.
debate sobre o papel do Estado, não foi mais possível ignorar tacita- Por um lado, nunca vivemos um processo democrático com tamanha
mente, como de costume, os sujeitos envolvidos nas lutas sociais. E é legitimidade política para conduzir as mudanças necessárias e re-
neste contexto que vão se materializando as reivindicações das lutas construir um novo projeto de nação. Por outro, a nossa própria histó-
anti-racismo, das mulheres e de gênero, dos povos indígenas, de ria, fundada na dominação patriarcal, no autoritarismo de classe, na
orientação sexual, portadores de deficiências, dos movimentos dos repressão de estado, nas distorções do sistema de representação
sem-terra e sem-teto, como tantas outras. É quando, na afirmação política, dificulta ainda as transformações necessárias que a socieda-
clássica de Eder Sader "novos personagens entraram em cena", com de pode realizar. Isso exige dos setores comprometidos com as trans-
outras atitudes políticas e determinações, exigindo um país democrá- formações da sociedade e do Estado, políticas que traduzam mudan-
tico e com liberdade plena. Não é um momento qualquer, estamos na ças de valores, mudanças na cultura e nos hábitos.
cabeceira do século XX, longo para Arrighi, G.(1996) e breve para Eric Precisamos levar em conta que a luta contra o racismo
Hobsbawm (1996). não é somente a garantia de equidade e de combate às desigualdades
E nesse caldeirão de acontecimentos, o movimento negro é sociais e econômicas. É necessário apostar numa profunda mudança
protagonista da sua própria história, é o elo principal das lutas contra de perspectiva cultural na medida em que o racismo e todas as formas
todas as formas de discriminação. Carrega, assim, o legado de vitóri- de discriminação alojam-se também no mundo das subjetividades, que
as e desafios colocados no presente e que, em grande medida, orien- se manifestam exatamente nas práticas cotidianas, na escola, no
tam os cenários futuros em pauta da luta anti-racismo e dos excluídos mundo do trabalho, nas instituições publicas, privadas e do Estado,
no Brasil. nos partidos, nas centrais sindicais etc. Na medida em que essas
Movimento negro como sujeito ativo nas mudanças relações fundamentam-se nas relações políticas e de poder, que é
histórico e estruturam a relações sociais, garantindo a longevidade da
A militância negra experimentou na década de 1980 uma ex- dominação. Mesmo com as crises cíclicas do capitalismo global e o
periência política decisiva: combinar a denúncia contra o racismo; surgimento de "novas" experiências em suas brechas, como o Fórum
fortalecer suas organizações e construir uma articulação estratégica Social Mundial e os Movimentos Anti-globalização, ainda não
com setores e atores sociais importantes, que buscassem o poder "tematizam" com a profundidade necessária os significados dos con-
político, sobretudo para a construção de uma nova hegemonia política flitos étnico-raciais.
nos marcos da democracia representativa, de um sistema capitalista Uma das características da crise do capitalismo global dos
dependente, e num pais em desenvolvimento, situação vigente no anos 1980 e 1990 é a forte crise do capitalismo dependente, onde os
Brasil (embora a utopia do socialismo sempre estivesse presente). E processos de transformações no mundo do trabalho reinventam-se
com estes objetivos, as alianças com o movimento sindical, com os em plano também global, agravando o crescente desemprego em to-
partidos políticos democráticos (cujos programas propunham o socia- dos os países. A globalização econômica, a expansão mundial da
lismo como utopia revolucionária), ONGs comprometidas com o com- produção industrial e de novas tecnologias promovida pela mobilidade
bate ao racismo, fortaleceram as teses que vieram a se consolidar irrestrita do capital e a total liberdade do comércio, ameaça verdadei-
neste início do século XXI. ramente a estabilidade do mercado global, único que estava sendo
Nesta estratégia assumida por alguns setores do movimento construído pelas organizações transnacionais lideradas pelos norte-
negro, três momentos expressaram a força viva da sociedade, se- americanos, principalmente.
denta por democracia, e decidida a substancializar mudanças profun- O paradoxal de nosso tempo é que a globalização econômica
das. O primeiro deles foi o movimento das “Diretas Já”, o segundo, o iniciada nos anos 1980 não fortalece o regime vigente do laissez-faire
processo constituinte, e o terceiro, as eleições para presidente da mundial. Ela trabalha para miná-lo. Nada se coloca em nível de merca-
república em 1989, seguramente uma das campanhas mais emocio- do global que o proteja contra as tensões sociais que nascem do
nantes da história da república. Esses foram momentos decisivos na desenvolvimento econômico bastante desigual entre as diversas so-
vida política do País,quando as lideranças negras comprometidas com ciedades do mundo e dentro delas. A repentina alternância de perío-
este jogo dialético, de combinações de forças, de radicalidade e nego- dos de crescimento e declínio das indústrias e dos meios de vida, as
ciações, souberam conduzir bem o roteiro da estratégia principal, que súbitas mudanças de produção e capital, o cassino da especulação
era e é o poder na perspectiva histórica do movimento negro, dos financeira, são todas essas condições que provocam reações políti-
movimentos sociais e populares. cas contrárias que desafiam as verdadeiras regras fundamentais do
A derrota eleitoral do campo democrático e popular, em 1989, livre mercado global.
trouxe consequências devastadoras. A mais perversa delas foi irrigar Nessa conjuntura de longa duração, colocam-se em disputa
o solo já fértil para as políticas neoliberais. A outra, foi a quase total as políticas de promoção da igualdade racial e a legitimidade do movi-
desestruturação da economia e da máquina pública do Estado e, por mento negro brasileiro e os movimentos anti-racismo no plano interna-
fim, o fortalecimento e alargamento das redes de corrupção instala- cional. Os meios de comunicação na sua grande maioria atacam vio-
das nas artérias dos poderes constituídos. Essa quase barbárie, cul- lentamente as políticas voltadas para a população negra, usando o
minou com o movimento “Fora Collor” e a sua posterior renúncia. falso argumento de que governo e movimento negro estão reinventando
Nos anos 1990, o movimento negro construiu momentos que o conceito de raça, e, com isso, incitando os conflitos raciais. As
vão dando contorno a uma estratégia que indicava estar correta. Uma respostas, se é que devem ser dadas, são com mais políticas.
militância quantitativamente mais preparada, um encontro de gera- Concretamente a implementação dessas ações públicas sem-
ções oriundas das universidades, sindicatos, partidos políticos, das pre será conflituosa.Um articulista de um meio de comunicação não
comunidades remanescentes de quilombos, das religiões de matriz fala por si só, ele representa poder e grupos organizados, interesses
africana, da música, do mundo artístico e cultural, das organizações e corporações, que sempre foram contrários a políticas de inclusão
não-governamentais, enfim, dos mais diversos pontos, onde a ação étnico-raciais.
era o combate ao racismo, preconceitos e todas as formas de discri- Estes desafios estão inseridos em um longo ciclo de cri-
minação. ses que atravessam os vários andares do desenvolvimento do
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 41
capitalismo global. Todo o processo de luta democrática construída Conclusão
no interior dos movimentos sociais, sindical e partidário, nos fi-
As transformações sociais são perceptíveis quando alteram
nais dos anos 1970 e início dos anos 1980, forjou símbolos e de forma efetiva e profunda a vida das pessoas, grupos, comunida-
conquistas que estão em disputas acirradas no plano ideológico, des e sociedades inteiras. Essas mudanças em âmbito comunitário ou
cujo objetivo é impedir os pequenos avanços em curso, principal- planetário precisam apresentar fortes impactos nas estruturas rígidas
mente os mais estruturantes como a titulação das terras que alicerçam as organizações de poder. Precisam desestabilizar
quilombolas, a educação em nível superior e o acesso ao trabalho. valores e, muitas vezes, desconstruir mitos que, pelo seu poder imagi-
Um "novo" paradigma? nário e subjetivo imortalizam mentiras e, com isso, falseam a realidade.
Paradoxalmente, as transformações sociais, econômicas e
Etnodesenvolvimento, economia solidária, desenvolvimento culturais, também carregam contradições intrínsecas aos seus pro-
social com inclusão, desenvolvimento territorial, como tantas ou- cessos, sobretudo quando não alcançam em seu desenvolvimento os
tras denominações e conceitos, aparecem como adjetivação de sujeitos ativos da sua base de mudanças e transformações. Assim foi
desenvolvimento, busca-se nestas "novas" propostas uma con- conduzido pelas "elites" brasileiras, em todos os períodos de nossa
cepção mais humana e ecológica de desenvolvimento, onde o história (Colônia, Império e República), quando se tratava de transfor-
paradigma não se limita à visão única do crescimento econômico mar a vida da maioria da população, evidentemente negra, mestiça e
em detrimento do investimento social. pobre.
Um país como o Brasil, com elevados índices de pobreza Em tempo de crise global e sistêmica, estrutural e civilizatória,
estrutural, não pode, evidentemente, lograr êxito como nação se a agenda pode ser mudada a partir da sociedade, dos movimentos
não atacar com determinação as gritantes desigualdades con- sociais. As políticas públicas, onde o Estado é o condutor, serão
centradas na população negra. Guerreiro Ramos, um dos mais traduzidas ao alcance de todos, sem a exclusão praticada largamen-
importantes sociólogos brasileiro, era categórico quanto às pro- te, embora com substanciais melhoras nos últimos anos, se estiverem
postas de possíveis saídas para os negros no Brasil já nos anos assegurados os pressupostos da democracia, portanto, a garantia da
1950, onde compreendia que somente o desenvolvimento econô- participação, do controle público e das liberdades com toda sua ampli-
tude. A promoção da igualdade racial tem provocado mudanças na
mico e com os destraves psicológicos agudizados em toda popu-
condução das políticas sociais no Brasil e cada vez mais precisa
lação brasileira em função dos quase quatro séculos de escravi- consolidar-se como política de Estado.
dão. "Desde que se define o negro como um (sujeito) normal da
população do país, como povo brasileiro, carece de significação
falar do problema do negro puramente econômico, destacado do REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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escolas, sem-universidades os quais, quando acessam e conse-
SANTOS, Boaventura S. A crítica da razão indolente contra o
guem permanecer no sistema, suplantam o desgastado conceito
desperdício da experiência. São Paulo. Ed. Cortez, 2000.
meritocrático em geral, sendo os melhores alunos de seus cursos.
SOUZA, Jessé. Multiculturalismo e Racismo. Uma comparação
Um novo paradigma de desenvolvimento pode estar sendo
Brasil/Estados Unidos. Brasília. Ed. Paralelo 15, 1997.
gestado a partir de novas práticas na realização de políticas pú-
blicas, onde sua centralidade sustente-se também numa "nova"
ética de relações sociais e nas práticas no exercício do poder, Abstract
onde as relações étnico-raciais na agenda do projeto de desen-
volvimento ganhe maior centralidade nas ações do poder público.
Atualmente existem mais de 285 organismos de políticas para a This article initially deals with the challenges of the
promoção de igualdade racial no Brasil, somados estados e muni- crisis and its profundity; afterward it develops a short overview
cípios, sendo emblemático em algumas capitais como Belo Hori- of the racial relations, its conflicts and the social
zonte, onde o Plano Municipal de Promoção da Igualdade Racial transformations protagonized by the black movements. In
tem forte reconhecimento da administração do Município, com ei-
xos de ação e orçamento definidos no âmbito do plano plurianual;
a third moment, it approaches a social and economic
e está em curso a II Conferência Nacional de Promoção da Igual- development conception and concludes with a brief dialog,
dade Racial, que mobiliza gestores e militantes e que deve conso- between the policies to promote the racial equality in our
lidar um Plano Nacional consistente, com as marcas dos povos time and the transformations in course.
excluídos e particularmente da população negra, que carrega neste
tempo as possibilidades das mudanças e transformações.
42 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Geografia

O Brasil Africano: população & território1


RAFAEL SANZIO ARAÚJO DOS ANJOS*

O Brasil é, antes de tudo, um país de dimensões continentais, historicidade espacial; do que está acontecendo, isto é, tem registrado
com uma historicidade em processo de reconstrução, uma os agentes que atuam na configuração geográfica atual e o que pode
diversidade étnica com conflitos, uma estrutura política com- acontecer, sendo possível capturar as linhas de forças da dinâmica
plexa, com extensas paisagens geográficas, diferentes níveis de trans- territorial e apontar as possibilidades da estrutura do espaço no futuro
fomação e alteração territorial, urbanização concentrada na faixa lito- próximo. Não podemos perder de vista que é essa a área do conheci-
rânea e com o desafio de assumir decisivamente a nação multicultural mento que tem o compromisso de tornar o mundo e suas dinâmicas
que formamos. Estes são pontos estruturais que preconizam a busca compreensíveis para a sociedade, de dar explicações para as trans-
de equilíbrio na sua sociedade e no seu território e, sobretudo, um formações territoriais e de apontar soluções para uma melhor organi-
tratamento ético. Por isso mesmo, se fazem necessárias, interpreta- zação do espaço. A geografia é, portanto, uma disciplina fundamental
ções mais amplas das suas formas de organização, principalmente os na formação da cidadania do povo brasileiro, que apresenta uma
elementos essenciais da sua real historiografia, das suas identidades heterogeneidade singular na sua composição étnica, socioeconômica
territoriais e dos componentes da sua pluralidade racial. e na distribuição espacial. O território é, na sua essência, um fato
Nesse sentido, a terra, o terreiro, o território e a territorialidade físico, político, social, econômico, categorizável, possível de dimensi-
assumem grande importância dentro da temática da pluralidade cultu- onamento, onde geralmente o Estado está presente e estão gravadas
ral brasileira, no seu processo de ensino, planejamento e gestão, prin- as referências culturais e simbólicas da população. Dessa forma, o
cipalmente no que diz respeito às características territoriais dos dife- território étnico seria o espaço construído, materializado a partir das
rentes grupos étnicos que convivem no espaço nacional. Preconiza- referências de identidade e pertencimento territorial e, geralmente, a
mos, que é possível apontar as espacialidades das desigualdades sua população tem um traço de origem comum. As demandas históri-
socioeconômicas e excludentes que permeiam a sociedade brasileira, cas e os conflitos com o sistema dominante têm imprimido a esse tipo
ou seja, um contato com um Brasil de matriz territorial complexa, multi- de estrutura espacial, exigências de organização e a instituição de
facetada, cuja população não está devidamente conhecida, nem valo- uma autoafirmação política/social/econômica/territoral.
rizada e que não pode ser interpretada de maneira simplista. Tratar da diversidade cultural brasileira num contexto geográ-
Podemos apontar as matrizes africanas presentes no país fico, visando reconhecer, representar e superar a discriminação aqui
como a referência cultural e étnica mais marcante na formação da existente, é ter uma atuação sobre um dos mecanismos estruturais da
nossa população e do nosso território. A incorporação verdadeira, o exclusão social, componente básico para caminhar na direção de uma
respeito e o espaço da cultura africana no Brasil, continua sendo uma sociedade mais democrática, na qual as populações de ascendência
das suas questões estruturais, que ainda merece investigação, co- africana no Brasil, principalmente, se sintam e sejam, de fato, brasilei-
nhecimento e ação, ou seja, alcançar o direito efetivo de uma participa- ros. Isto porque uma parte significativa desse contigente populacional
ção plena na vida nacional. Nesse sentido, as demandas para compre- não se sente pertencente ao Brasil, devido a tamanha exclusão.
ensão das complexidades da dinâmica da nossa sociedade são gran- No Brasil, onde a questão da cidadania é geralmente limitada,
des e existem poucas disciplinas mais bem colocadas do que a geo- mutilada, a situação da população afro-brasileira é emblemática. Al-
grafia e a cartografia para auxiliar na representação e interpretação guns aspectos geográficos merecem atenção nesta questão secular.
das inúmeras indagações desse momento histórico. Primeiro, a referência que o sistema brasileiro tem induzido ao longo
Com essas referências buscamos contribuir efetivamente para dos tempos, de maneira explícita e, às vezes, de forma subliminar, de
a ampliação e a continuidade das discussões, de maneira que o co- que o território da população afro-brasileira é do outro lado do Oceano
nhecimento da população brasileira, a educação geográfica étnica e a Atlântico, na África, como se aqui não fosse o seu lugar. Não tivesse
questão racial no Brasil sejam tratados com mais seriedade. o direito de ter terras e nem referência de identidade territorial aqui. O
país tem se declarado oficialmente europeu e essa estratégia de ne-
A geografia e a falta de pertencimento territorial gar os componentes africano e indígena é uma forma de registro do
A geografia é a ciência do território e este componente funda- desinteresse pelos problemas do preconceito, da tentativa de inferio-
mental, a terra, num sentido amplo, continua sendo o melhor instrumen- rização, da exclusão secular no sistema dominante e os pontos não
to de observação do que aconteceu, porque apresenta as marcas da são tratados eticamente.
Gráfico 1: Estimativa do número de africanos desembarcados em várias regiões do mundo -
séculos XV, XVI, XVII e XIX

*Geógrafo, pós-doutoramento em Cartografia Étnica (MRAC-BE), doutor em Informações Espaciais (EPUSP-BR/IRD-FR), professor assistente do Departamento de
Geografia/diretor do Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília. E:mail quilombo@unb.br.
1
Este artigo é parte das Conferências: Matrizes Africanas do Território Brasileiro, promovidas pelas Embaixadas do Brasil na República Democrática do Congo (Kinshasa)
e em Angola (Luanda), realizadas em parceria com a Universidade de Brasília e o Museu Real da África Central (Tervuren-Bélgica), em agosto de 2008.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 43
Importante lembrarmos que o tráfico de seres humanos da conceitos de toda a ordem. Entre os tipos de discriminação, a étnica,
África para o Novo Mundo foi, durante quase quatro séculos, uma das que atinge particularmente o contingente de ascendência africana no
maiores e mais rendosas atividades dos negociantes europeus, a tal país, é sem dúvida a de maior extensão social e territorial, devido à
ponto de se tornar impossível precisar o número de africanos e africa- grande expressão demográfica. Os problemas se revelam já quando
nas retirados de seu habitat, com sua bagagem cultural, a fim de se quer saber qual o número real de "negros" ou da população de
serem incorporados às tarefas básicas para formação de uma nova ascestralidade da África presentes no Brasil. A palavra "negro" foi
realidade econômica e social. As pesquisas divergem, ainda atualmen- uma invenção do colonialismo, do sistema escravista, da retirada de
te, sobre as estatísticas do período desta diáspora africana. É con- seres humanos do continente africano denominado "tráfico negreiro".
senso na comunidade científica, entretanto, de que a dinâmica do Secularmente, ficou associado a um significado pejorativo, de algo
tráfico trouxe problemas de despovoamento em numerosas áreas do ruim, que não é humano, mas relacionado a animal. Esse é um ponto de
continente. A barreira das condições ambientais e a resistência dos reflexão e correção histórica necessária, que requer ação política e
povos africanos à desestruturação de suas sociedades vão impor educacional consequente, pois está incorporado de forma consisten-
níveis diferenciados no território atingido pela retirada de populações te no pensamento social brasileiro. Se não fossem os negreiros e
para serem escravizadas. O Gráfico 1 (na página anterior) mostra seus navios, comerciantes de populações escravizadas no continen-
uma estimativa dos povos africanos desembarcados nos principais te africano, não existiriam os "negros", tratados como mercadoria. Daí
portos de diferentes regiões do mundo. Pelo menos dois aspectos são vem a "invenção" e promoção do engano secular denominado "raça
significativos de observação nos números representados: negra".
1. O Brasil apresenta a maior estatística, ultrapassando a casa Um dos problemas estruturais que dificultam a identificação e
dos quatro milhões de seres humanos transportados, fato que possi- a quantificação da população afro-brasileira está nessa mentalidade
bilita entender porque este foi o território, mais acabadamente escra- preconceituosa, está na falta de informações básicas que contami-
vista e, por sua vez, o de maior extensão racista. nam o pensamento social coletivo da população basileira. Um dos
2. Os franceses, os espanhóis e os britânicos, povos euro- grandes danos dessa problemática é a hipocrisia permanente e o não
peus de influência e pressão marcante no sistema escravista na Amé- tratamento do assunto de forma adequada e sistêmica.
rica, estão com dados em torno de um milhão seiscentos e cinquenta
africanos desembarcados. É evidente que o Brasil português incomo-
O espaço contemporâneo
dava pela dimensão territorial, o contingente populacional mobilizado e A questão demográfica do "Brasil africano" tem ficado histori-
a diversidade da dinâmica comercial. camente sem resposta adequada, por um conjunto complexo de fato-
O continente africano foi, ao longo de quatro séculos, o centro res. Um deles está relacionado aos critérios de aferição racial oficiais,
das atenções mundiais, da cobiça aos recursos minerais, da apropri- que levam à subestimação do numero real de cidadãos de matriz afro-
ação dos conhecimentos, da acumulação de capitais e da desestrutu- brasileira que integram o país. O IBGE, principal organismo responsá-
ração das sociedades e do Estado. Esse jogo de trocas estabelecido vel pela produção e divulgação das informações demográficas da
imprimiu relações precisas entre clientes e fornecedores dos dois nação, tem agrupado os indivíduos em brancos, pretos, amarelos e
lados do Atlântico e, estrategicamente, a distribuição das populações pardos, considerando brancos, pretos ou amarelos os que assim se
africanas dos seus diferentes reinos e nações foi realizada indiscrimi- declararem e os "outros" ficam classificados como pardos.
nadamente nos territórios da América. Rapidamente os mercados tran- A história recente dos censos realizados no território brasilei-
satlânticos se tornam mais importantes do que as antigas rotas dos ro reconstitui, muito bem, a negação e minimização da população de
mercados transaarianos (floresta-savana-deserto), por onde passa- ascendência na África existente no país. Se observarmos a evolução
vam e desaguavam o ouro, a cola e o africano escravizado. Esta rota da população "preta" e "parda", resenceada de 1940 a 2000, um dos
se tornou secundária, diante da força da ligação savana-floresta- aspectos relevantes constatados é que a discrepância entre os nú-
praias. Nas respostas territoriais da dinâmica do tráfico por quase meros sempre crescentes do contigente "pardo" ao longo das déca-
quatro séculos, o Brasil aparece com alguns destaques: foi o país das e os pequenos acréscimos dos registros de "pretos", com uma
contemporâneo de maior importação de populações africanas e regis- ocorrência de decréscimo (1940-1950), evidenciando que a expan-
tro de quilombos (antigos e territórios étnicos atuais); foi a nação na são demográfica da população denominada "preta" apresenta proble-
América do Sul que continuou impondo o sistema escravocrata, mes- mas para evoluir, ao contrário dos "pardos", cujas estatísticas históri-
mo depois da independência de Portugal (66 anos) e um dos últimos cas são de números significativos. Outro fato relevante é que, na
Estados a sair do regime escravista. década de 1970, não foram pesquisados e nem computados os dados
A extensão dos impérios africanos e a intensidade do comér- das distintas matrizes étnicas existentes no Brasil, comprometendo a
cio de povos da África, ao longo dos séculos da diáspora, nos apon- série histórica dos dados.
tam para uma dimensão ampla e de difícil reconstituição, que é a carac- Uma parte do contigente demográfico informado e desinfor-
terização etnográfica dos africanos e seus descendentes no Brasil. mado no Brasil, geralmente, sem identidade firmada e profundamente
São trazidos para constituir a formação do território brasileiro seres divididos nas suas referências individuais e familiares, se registram
humanos do tipo: Minas, Congos, Angolas, Anjicos, Lundas, Quetos, no recenseamento como "pardos"ou "brancos". A continuidade de
Hauças, Fulas, Ijexás, Jalofos, Mandingas, Anagôs, Fons, Ardas, uma postura do país de se "mostrar", de ser representado e de ser
dentre muitos outros, que possibilitaram o que podemos simplesmente valorizado a partir das referências européias, constitui um dos com-
denominar de afro-brasileiros, brasileiros de matriz africana ou popu- ponentes estruturais da negação das outras matrizes culturais exis-
lação de ascendência africana. Com estas denominações está escon- tentes. Seria uma forma consciente ou não de ser aceito ou inserido
dida ou embutida uma riqueza tipológica, ainda não devidamente estu- no sistema dominante, ou seja, de se sentir "dentro" de uma fronteira
dada e nem quantificada. social explícita dos “incluídos" e "excluídos" do sistema dominante.
Este é mais um fator geográfico que colabora para a falta de O grande contingente populacional registrado nas cidades de
uma referência ancestral de origem da população brasileira de matriz Salvador, Recife, São Luís, Belém, São Paulo e Rio de Janeiro, assim
africana, com interferências profundas na sua cidadania e no senti- como a concentração na faixa litorânea brasileira, são configurações
mento de pertencimento territorial. Colocar para esse contingente que espaciais que reafirmam a presença da população de ascendência
os seus antepassados foram "trazidos" do continente africano é vago, africana na estruturação do território, principalmente nas extensões
sem consistência, desrespeitoso, quando se trata de um espaço com onde vão se desenvolver os grandes ciclos econômicos. É relevante
30.277.467 Km2, o terceiro continente em extensão territorial do mun- lembrar que o desenvolvimento das atividades de produção de produ-
do e constituído por centenas de antigos reinos, impérios e grupos tos tropicais no sistema colonial foram impulsionados com as tecnolo-
étnicos desconhecidos da historiografia oficial do país. Esta demanda gias dos trópicos de referência africana e operacionalizados com a
secular, que possibilitaria uma ligação espacial mais referenciada, mais mão de obra de populações da África e de seus descendentes. Todo
precisa na África, continua sem resposta satisfatória e nem perspec- um processo de estruturação do espaço geográfico brasileiro se pro-
tiva de solução. Este contexto estrutural de fragilidade na unidade cessará com a formação de redes de cidades e de sistemas de circu-
nacional traz outra questão pouco tocada: como seria o processo de lação (viária e ferroviária) oriundos das dinâmicas econômicas do
solicitação de dupla cidadania da população de origem africana no capitalismo primitivo.
Brasil? Quais e quantos brasileiros poderiam solicitar esta possibilida- Não podemos perder de vista que a forma como o sistema
de de alargamento das suas referências familiares e de ancestralida- nacional lida com a população de referência africana é, na verdade, a
de? A nação ainda não tem como responder a estas indagações rele- maneira como lida consigo mesmo enquanto país: negando a sua ri-
vantes que permanecem "silenciosas" no bojo do sistema dominante. queza humana e cultural; não assumindo sua verdadeira identidade;
Importante não perdermos de vista que vários setores da po- negligenciando o trabalho realizado por outras matrizes étnicas; sen-
pulação brasileira continuam sendo vítimas de discriminação e pre- tindo-se superior, mas profundamente dependente; revelando uma
44 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
imagem que não corresponde a realidade; vivendo, portanto, de apa- que se refere ao continente africano é um entrave para uma perspec-
rência. Existe um atraso na mentalidade coletiva e das elites seculares, tiva real de democracia racial no país. Não podemos perder de vista
um equívoco nacional, isto porque o Brasil não precisa mais assumir o que entre os principais obstáculos criados pelo sistema a inserção da
racismo como estratégia para manutenção do poder histórico. população de matriz africana na sociedade brasileira, está a inferiori-
Se fizermos uma simulação e juntarmos as populações re- zação desta no ensino. Esse contexto somente poderá mudar com
censeadas pelo IBGE como "preta" e "parda" do Brasil no ano 2000, uma política educacional mais agressiva e com o foco direcionado
teremos 69.649.861 habitantes (47% do contingente nacional). Impor- para desmistificar o continente africano para a população do Brasil. O
tante lembrar o ditado popular: "de noite todos os gatos são pardos". dano principal dessa informação errônea é auxiliar na manutenção de
Ou seja, associado ao "pardo" está a indefinição da sua identidade, uma população preconceituosa às referências africanas e ser feita
do seu lugar na sociedade, da sua referência ancestral, em síntese, uma associação imediata aos afro-brasileiros e afro-brasileiras. Este
da sua territorialidade. São milhares de homens, mulheres, crianças e é um ponto estrutural para um processo de mudança, onde o ser
idosos que sentem internamente que não existe, ainda, um lugar defi- humano brasileiro de ascendência africana seja, de fato, mais respei-
nido na estrutura social do país. Por ser um contingente populacional tado no sistema.
oriundo de um processo secular de "mistura" étnica, as relações de Outro ponto estrutural, ainda dirigido ao setor decisório do
valor que foram associadas, sistematicamente, aos povos europeus, país, se refere à criação das condições necessárias para a realiza-
como o "modelo" de referência e aceito pelo sistema dominante, impri- ção de um censo demográfico mais realista e que retrate melhor a
mem vários desajustes nas formas de pensar, de se inserir e de se diversidade étnica brasileira. Este tema é complexo porque significa
enquadrar na sociedade brasileira. mudar os métodos de aferição da população e, por conseguinte, a
Existem evidências de que o contingente populacional brasi- possibilidade de registro oficial de um "Brasil Africano", até então sem
leiro de matriz africana não é minoria e essa é mais uma estratégia do evidência. Acreditamos, caso exista prioridade política, que ainda é
sistema de classificar os grupos discriminados de minorias, fazendo possível uma revisão dos procedimentos metodológicos do Censo de
supor que estes atingem um número de pessoas menor que o de fato, 2010, que poderia incorporar os avanços já conquistados nas cente-
utilizando-se de artifícios numéricos. Se assumirmos que a população nas de experiências de Censos Étnicos Escolares já realizados por
considerada como "parda" nesse censo é, de fato, uma população professores e diretores de escolas do pais.
mestiça que tem graus diferenciados de ascendência africana, ficará É importante não perder de vista que vivemos o momento
evidente que a população afro-brasileira não é minoria. histórico de redefinição de uma identidade no país para os afro-brasi-
Este é um momento oportuno para nos perguntarmos: o que leiros. Este processo de inclusão social constitui um desafio para as
seria a Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Maranhão, duas partes: um Brasil "maquiado de Europa" que está sendo pressi-
Goiás, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, enfim, o Brasil, onado para mudar, para incluir, para reconhecer cidadanias e direitos
sem a presença dos povos africanos e seus descendentes? Que históricos de outras matrizes culturais e étnicas e, do outro lado, a
configuração territorial de Brasil teríamos sem a presença da África? "África brasileira", secularmente excluída, aflorando os seus confli-
Como seria a nossa religiosidade? E as práticas medicinais? Os pa- tos internos, buscando formas eficazes de diálogo com o sistema e
drões construtivos e de arquitetura? E as formas de atividades agrí- com o desafio de minorar o "medo" do "Brasil europeu" de que não
colas? Estas são simulações necessárias para a reconstrução de vamos lhe tomar o Brasil. Podemos conviver com menos hipocrisia,
posturas, de conceitos errôneos e impressões cristalizadas da nos- mais respeito pelas diferenças e equilíbrio socioeconômico!
sa sociedade e do território brasileiro. No "fundo" o que não podemos Tomamos como premissa que as informações por si só não
perder de vista é que o Brasil é o que é, porque teve e tem as referên- significam conhecimento. Entretanto, elas nos revelam que, com o
cias africanas marcadas, irreversivelmente, no seu espaço geográfi- auxílio da ciência e da tecnologia, temos condições de colaborar na
co, na sua população e, sobretudo, na sua cultura. modificação das políticas pontuais e superficiais a fim de subsidiar a
As estatísticas apontam o Brasil como a segunda maior nação adoção de medidas concretas para alteração, de forma estrutural,
com população de ascendência africana do planeta e é com relação das situações das populações do "Brasil Africano".
a esse contingente que são computadas as estatísticas mais discrimi-
natórias e de depreciação socioeconômica. Nos piores lugares da
sociedade e do território, com raras exceções, estão as populações
afro-brasileiras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Numa grande cidade brasileira é possível verificar, sem con- ANJOS, R. S. A. "A utilização dos recursos da cartografia condu-
sultar estatísticas sofisticadas, a segregação socioespacial eviden- zida para uma África
te, como por exemplo: quem é o homem - mulher que pede esmola no desmistificada". Revista Humanidades. Brasília: Editora Universi-
sinal de trânsito? Qual o aspecto do ser humano que dorme na rua ou dade de Brasília, 6 (22): 12-32, 1989.
no metrô? Qual a referência da criança caracterizada como menino _____________ " A África, a geografia, o tráfico de povos africa-
ou menina de rua, ocorrente no espaço urbano do país? Qual o perfil nos e o Brasil. Revista Palmares em Ação. Brasília: Fundação
do morador, da moradora da "favela" brasileira? Quais as condições Cultural Palmares - MINc. Ano 1 No.2 : 56-66, 2002
do transporte coletivo que se direciona para a periferia das cidades? _____________ ."Coleção África-Brasil: Cartografia para o ensi-
Como é o cidadão que vai nesse ônibus ou trem? Estes lugares da no-aprendizagem". Brasília: Mapas Editora & Consultoria, 2ª. Edi-
sociedade são ocupados, predominantemente, por populações afro- ção. 2005 - BsB - DF.
brasileira. E, num país onde quase 50% do seu contingente populaci-
ANJOS, R.S.S. Quilombos: Geografia Africana - Cartografia Étnica
onal oficial é de matriz africana, constatamos que estamos diante de
- Territórios Tradicionais. Mapas Editora & Consultoria, 2009 - Bra-
um problema estrutural da nação. Nos espaços de ocupação privilegi-
sília - DF. 190 p.
ada e de valorização existe um outro extrato social e uma outra referên-
SANTOS, M. Pesquisa reforça preconceito. Folha de S. Paulo, São
cia étnica.
Paulo, 1995, Caderno Especial Domingo, p. 8.
Não é possível mais esconder que temos diferenças sociais,
econômicas, territoriais seculares e estruturais, para as quais os
"remédios" ainda estão chegando e os assuntos são empurrados
para um outro dia, para a próxima semana, no o mês que vem, para o
Abstract
próximo ano ou para o governo seguinte, que nunca chega. E os
séculos estão passando!
Dessa maneira, ser descendente do continente africano no The article proposes the reflections enlargement
Brasil, secularmente continua sendo um fator de risco, um desafio about the population distribution of African matrix in the
para manutenção da sobrevivência humana, um esforço adicional Brazilian territory formation. This piece of work is one of
para ter visibilidade no sistema dominante e, sobretudo, colocar uma the operationalized stages of the Afro- Brazilian Geography
energia adicional para ser - estar inserido. É uma luta secular contra
a exclusão territorial, social e econômica.
Project & Education and Territory Planning which has been
developed with the Applied Cartography Center and
Conclusões e recomendações Geographic Information (CIGA) of the Geography
Considerando-se que as construções analíticas e as especu- Department, University of Brasília.
lações não se esgotaram, concluímos e recomendamos o seguinte:
A questão do desconhecimento da população brasileira no
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 45
Planejamento

Pobreza, inserção no mercado de trabalho,


aspectos demográficos sob a ótica do
quesito raça/cor em Belo Horizonte
RODRIGO NUNES FERREIRA*
LUÍS HENRIQUE FREITAS DINIZ**
DANIELLE RAMOS DE MIRANDA PEREIRA***
ÁLIDA ROSÁRIA SILVA FERREIRA****

O artigo busca contribuir com a discus-


são sobre a necessidade de focalização
das políticas públicas, no que diz respeito
às políticas sociais afirmativas, especifica-
mente no caso de cotas para negros. Para
isso são apresentados alguns indicadores
relativos aos diferenciais por cor, no âmbi-
to do município de Belo Horizonte e de sua
Região Metropolitana.
O s rumos recentes das políticas públicas, principalmen-
te no que diz respeito às políticas sociais afirmativas, colo-
de baixa renda como um todo e não se limitar às populações
afro-descendentes. Existem ainda setores que argumentam
cam na ordem do dia a questão da focalização, enquanto que a política de cotas centrada na população negra poderia
forma de incrementar a eficácia de tais políticas. Muito embo- ter um efeito socialmente desagregador ao afirmar a diferen-
ra exista certo consenso quanto a necessidade de focalização ça de cor e de raça, conceitos biologicamente ultrapassados.
das políticas sociais, a escolha do foco gera polêmica, o que É nesse contexto que este trabalho se insere, buscan-
é normal em se tratando de uma luta distributiva por recursos do contribuir com esta discussão, no âmbito do município de
públicos. Esta polêmica toma contornos peculiares no caso Belo Horizonte e de sua Região Metropolitana, a partir da ob-
específico das políticas de cotas, sobretudo das cotas para servação de alguns indicadores relativos aos diferenciais por
negros. cor. Vale destacar que o conceito de cor, que vem causando
Por um lado, os defensores destas políticas argumen- grande polêmica nos dias de hoje, parte da auto-identifica-
tam pela dívida histórica para com estas populações e pela ção, que baliza as varáveis relativas a esta questão no Censo
precariedade da inserção social destas populações posteri- Demográfico de 2000 (IBGE) e na Pesquisa de Emprego e
ormente à abolição da escravidão, sobretudo no mercado de Desemprego (DIEESE).
trabalho, seja pela baixa qualificação relativa a esta popula- Distribuição espacial e estrutura etária da população
ção ou pela discriminação social sofrida pela mesma. Neste
sentido, as cotas para negros seriam em parte uma repara- Para subsidiar a discussão, bem informada, de políti-
ção para com esta população, e paralelamente uma forma cas sociais afirmativas, é importante conhecer a participação
de dar instrumentos que facilitem a sua inserção no mercado relativa dos grupos na população e como eles se distribuem
de trabalho, ponto fundamental para a sua emancipação real. no espaço. Ademais, como a estrutura etária influencia o re-
Por outro lado, aqueles que se colocam contra estas sultado das políticas públicas, é essencial considerar as dife-
políticas se dividem em dois grupos principais. O primeiro renças entre as pirâmides etárias das raças/cores.
argumenta pela manutenção de um sistema baseado no Dessa forma, conforme ilustra o Gráfico 1, em Belo
mérito acadêmico, que teoricamente busca potencializar a Horizonte a população branca representava 53,6% da popula-
produção de conhecimento, por meio de um sistema de alta ção total de Belo Horizonte em 2000, enquanto a parda e a
seletividade com relação a recursos humanos. O segundo preta correspondiam, respectivamente, a 37,2% e a 8% , per-
argumenta que as cotas deveriam ter por foco a população fazendo, juntas, um percentual de 45,2% do total.

* Geógrafo e mestre em Geografia pela UFMG, gerente de Indicadores da Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento da PBH
** Economista e mestre em Geografia pela UFMG.
*** Economista pela UFJF e doutora em Demografia pela UFMG, pesquisadora da Fundação João Pinheiro.
**** Estatística e mestre em Demografia pela UFMG, técnica da Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento da PBH.
46 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Gráfico 1: População de Belo Horizonte por raça/cor, 2000 Figura 2: IQVU e distribuição espacial da população
parda e preta - Belo Horizonte (2006)
0,6%
0,3% 0,2%
8%

53,6%
37,2%

Branca Parda Preta Indígena Amarela Ignorado

Fonte: Censo Demográfico, IBGE, 2000

Na cidade de Belo Horizonte, a população parda apre-


senta maior participação relativa, entre 47,3% e 57,7%, nas
áreas de ponderação (AP) que formam grande parte das regi-
ões de Venda Nova, Norte e Nordeste - principalmente nas
áreas de ponderação Copacabana, Piratininga, Mantiqueira/
Sesc, Serra Verde, Jaqueline, Isidoro Norte, Ribeiro de Abreu,
Belmonte, São Paulo/Goiânia e Baleia. Ao sul da cidade, a
maior participação relativa da raça/cor parda encontra-se na
área de ponderação Jatobá. Na regional Centro-Sul a partici-
pação relativa dos pardos na população diminui, chegando
essa raça/cor a representar apenas entre 5,3% e 15,8% da
população.
Por sua vez, em geral, a população preta representa
não mais que 15,1% na maioria das áreas de ponderação,
tendo a participação diminuída na região central da cidade. As
exceções ficam por conta das áreas de ponderação forma- Estrutura etária
das pelos grandes aglomerados Baleia, Serra e Morro das Dada a importância que tem essa informação na for-
Pedras, nas quais a participação da população preta está mulação de políticas públicas voltadas para segmentos es-
entre 15,1% e 18,6%. pecíficos da população, é essencial conhecer as diferenças
Considerando as populações parda e preta e/ou semelhanças entre as estruturas etárias relativas por
concomitantemente, vale ressaltar que elas predominam, com raça/cor da população de Belo Horizonte no ano de 2000.
participação relativa acima de 50%, nas três regionais ao nor- Comparando as cinco pirâmides etárias, de acordo
te da cidade (Venda Nova, Norte e Nordeste) em praticamente com a Figura 3, observa-se que a pirâmide referente à popu-
todas as áreas de ponderação, com exceção das APs Venda lação parda apresenta formato ligeiramente mais jovem do
Nova e Planalto, onde a participação relativa das referidas que aquelas referentes às raças/cores branca e preta. Vale
populações não chega a 50%. Similarmente à situação da ressaltar que a maior participação relativa no grupo etário de
população parda, as participações das populações parda e 0 a 14 anos encontra-se na estrutura etária da população
preta, conjuntamente, vão diminuindo na medida em que se parda (27,3%), seguida pela referida participação observada
caminha dos extremos da cidade para a região central, em na população branca (22,8%) e na população preta (20,1%).
que chega a atingir apenas entre 7,3% e 30%. Diferentemen- As menores participações relativas desse grupo etário
te, a participação relativa da população branca apresenta-se correspondem àquelas verificadas nas populações indígena
mais concentrada no centro, representado entre 80% e 92,2% (15,9%) e amarela (18%).
da população residente em quase todas as APs da Regional No grupo etário de 15 a 24 anos todas as raças/cores
Centro-Sul e da AP Estoril/Buritis/Pilar Oeste. Nas regionais apresentaram percentuais próximos a 10% em ambos os
Venda Nova, Norte e Nordeste essa participação não atinge sexos, com exceção da raça/cor amarela em que se destaca
50% em praticamente todas as áreas de ponderação. um percentual de 15,3% para as jovens mulheres nessa fai-
Resultado de um processo histórico de segregação, a xa etária. Para o grupo de mulheres entre 15 e 49 anos, ou
condição social da população parda/negra se reflete no terri- seja, para aquelas mulheres em idade reprodutiva, vale des-
tório urbano, estando esse grupo alojado, em sua maioria, tacar que sua participação relativa foi em torno de 30%, sem
em espaços de urbanização mais precária. É o que se visualiza considerar a população amarela em que esse percentual foi
na Figura 2 quando se sobrepõem ao mapa1 do Índice de de 34,9%. As participações relativas correspondentes a pes-
Qualidade de Vida Urbana de Belo Horizonte a distribuição soas com mais de 60 anos variaram entre 7,1%, para a raça/
espacial da população negra e parda. Observa-se que a mai- cor parda, e 12,4%, para a raça/cor indígena. Considerando
or concentração desta população acontece justamente nas todas as raças/cores, a participação relativa das mulheres
Unidades de Planejamento com baixo IQVU, principalmente nessa faixa etária é maior que a dos homens. Ademais, para
nas áreas periféricas e de grandes aglomerados. Ou seja, a as mulheres indígenas com 60 anos ou mais, a participação
distribuição espacial diferenciada de negros e brancos refle- relativa (9%) é praticamente o dobro das observadas nas
te também um acesso desigual aos recursos urbanos. raças/cores amarela (4,7%) e parda (4,2%).

1
Sobre o IQVU consultar: PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE (PBH). O Índice de Qualidade de Vida Urbana. Belo Horizonte, Assessoria de
Comunicação Social da PBH. 1996; NAHAS, M., ESTEVES, O., VIEIRA, C., BRAGA, F. Qualidade de Vida Urbana em Belo Horizonte na década de 1990: o
que dizem os indicadores? Pensar BH BH/Política Social, nº 17 - março/maio de 2007. Belo Horizonte. Prefeitura de Belo Horizonte/Câmara Intersetorial de Políticas
Sociais. 2007 - Trimestral.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 47
Figura 3: Pirâmides Etárias para a População de Belo Horizonte por raça/ cor (2000)

Fonte: Censo Demográfico Brasileiro, 2000

Diferenciais por cor nos principais indicadores grupo, extraído por meio de dados pré-concebidos em traba-
socioeconômicos lhos do DIEESE a partir de dados da PED (Pesquisa de Em-
prego e Desemprego), divide a população entre negros e não
Os indicadores aqui analisados serão divididos em negros. Embora não tenha sido possível a compatibilização
dois grupos. O primeiro contém um mix dos principais indi- dos conceitos/termos utilizados, à medida que a segunda pes-
cadores socioeconômicos contemporâneos, sobretudo aque- quisa agrega a população preta e parda em um mesmo gru-
les ligados à pobreza e a temas como educação e caracterís- po, estes foram os melhores dados encontrados sobre a ques-
ticas da moradia, e se refere especificamente ao município tão do mercado de trabalho, contemplando a desagregação
de Belo Horizonte. O segundo grupo trata da questão da in- para a Região Metropolitana e categorias de raça/cor.
serção no mercado de trabalho e se refere à RMBH
O primeiro grupo de indicadores, extraídos do Censo Contexto socioeconômico
2000, utiliza as categorias brancos, pretos, pardos (os três O primeiro indicador analisado é o percentual de indi-
principais grupos populacionais) e outros (que contempla a víduos abaixo da linha de pobreza (renda domiciliar per capita
população indígena, a população amarela e outros grupos mensal inferior a 1/2 salário mínimo) e da linha de indigência
com participação de baixa relevância estatística). O segundo (renda domiciliar per capita mensal inferior a 1/4 do salário
48 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
mínimo). Observa-se que, muito embora a população preta O quinto indicador analisa a inserção das categorias
apresente o pior resultado dentre os grupos, o que parece se de raça/cor no sistema de Ensino Fundamental e Médio, por
diferenciar mais são os brancos em relação às outras clas- meio da taxa líquida de matrículas. O que se observa é que
ses em geral, sendo que enquanto a população negra, parda embora a ordenação sugerida nos indicadores anteriores se
e outros apresentem resultados próximos: 20,12%, 18,61% e mantenha, no ensino fundamental a taxa de líquida matrícula
17,07% respectivamente, no caso da linha de pobreza, e apresenta uma relativa equalização. O mesmo não ocorre no
6,53%, 6,14% e 6,00% no caso da linha de indigência, a po- caso do ensino médio, em que a população branca apresen-
pulação branca apresenta resultados de 8,16% e 2,68% res- ta resultados acima de 90%, com 91,16%, enquanto que a
pectivamente. população preta e parda apresenta uma taxa de 81,28% e
Tabela 1: Percentual da população, por cor, abaixo da linha de pobreza e da linha 83,10% respectivamente (Tabela 5)
de indigência do município de Belo Horizonte - 2000 Tabela 5: Taxa líquida de matrículas, por raça/cor, do ensino fundamental e médio
do município de Belo Horizonte - 2000
Raça/Cor Linha de Pobreza Linha de Indigência
Branca 8,16 2,68 Raça/Cor Ensino Fundamental Ensino Médio
Preta 20,12 6,53 Branca 95,26 91,16
Parda 18,61 6,14 Preta 93,48 81,28
Outras 17,07 6,00 Parda 93,80 83,10
Fonte: IBGE, Censo 2000 Outras 79,15 72,30
Os dados da Tabela 2 apresentam a distribuição da Fonte: IBGE. Censo 2000
população abaixo da linha de pobreza e da linha de indigência No Ensino Superior os resultados são mais contun-
por categoria de raça/cor. Observa-se que os pardos repre- dentes quanto aos diferenciais entre as categorias de raça/
sentam a maior parte da população abaixo das linhas de po- cor. Neste nível de ensino a população branca aparece com
breza e indigência, 52,84% e 52,93% respectivamente, segui- 81,43% dos indivíduos matriculados em cursos de nível su-
dos pelos brancos com 33,32% nos dois casos. Devido a perior, enquanto que a população parda participa com 15,55%
menor participação relativa na população total, a população e a população preta com apenas 2,21%.
negra aparece apenas em terceiro lugar, representando
12,34% da população pobre e 12,15% da população indigen- Inserção no mercado de trabalho
te da capital mineira. Analisando agora a inserção no mercado de trabalho
Tabela 2: Participação das cores na população abaixo da linha de pobreza e da da população negra e não negra na RMBH, percebemos que
linha de indigência do município de Belo Horizonte - 2000 a participação dos negros nas populações em idade ativa,
economicamente ativa e ocupada aproximam-se bastante
Raça/Cor Linha de Pobreza Linha de Indigência de 56%. Por outro lado, entre os desempregados existe uma
Branca 33,32 33,32 maior proporção de negros, 63,7%.
Preta 12,34 12,15
Tabela 6: Participação da população negra e não negra na população em idade
Parda 52,84 52,93 ativa, população economicamente ativa, ocupados e desempregados da Região
Outras 1,50 1,60 Metropolitana de Belo Horizonte - 2006/2007
Total 100,00 100,00
Fonte: IBGE. Censo 2000 Indicador Negra Não negra
PIA 56,4 43,5
O terceiro indicador, renda média por categoria de raça/ PEA 56,9 43,1
cor, apresenta uma situação parecida ao primeiro, com uma
Ocupados 55,6 44,4
renda menor da população preta, porém bastante próxima à
Desempregados 63,7 36,3
renda da população parda (R$ 255,84 e R$ 294,75 respecti-
vamente), enquanto a população branca apresenta uma ren- Fonte: DIEESE. PED 2006
da média de R$ 778,62 (Tabela 3). Essa maior participação dos negros na população
A população classificada como outros apresenta uma desempregada é reflexo de uma taxa de desemprego maior
renda intermediária de R$ 421,42. Esta população apresenta entre a população negra, de 14,3%, frente a uma taxa de 10,3%
uma particular dificuldade de análise por se tratar de um gru- da população branca. A situação é particularmente mais gra-
po com alta heterogeneidade interna. ve entre a população negra feminina, que apresenta uma
Tabela 3: Renda média, por raça/cor, do município de Belo Horizonte - 2000 taxa de desemprego de 18,4% (Tabela 7).
Raça/Cor Renda Média (R$ de 2000) Tabela 7: Taxa de desemprego da população negra e não-negra, por sexo, da
Região Metropolitana de Belo Horizonte - 2006/2007
Branca 778,62
Preta 255,84 Sexo Negra Não negra Total
Parda 294,75 Masculino 18,4 12,8 -
Outras 421,42 Feminino 10,7 8,1 -
Fonte: IBGE. Censo 2000 Total 14,3 10,3 12,6
Os dados sobre a média de anos de estudo por cate- Fonte: DIEESE. PED 2006
goria de raça/cor mostram um maior diferencial para a popu-
lação branca, com 7,78 anos de estudo, enquanto que as Esta situação parece estar ligada, em grande medida,
populações pretas e pardas apresentam um resultado próxi- ao nível de qualificação da população aqui classificada como
mo com 5,41 e 5,55 respectivamente (Tabela 4). negra. Isto porque 56,4% desta população concentra-se, do
ponto de vista da qualificação, nas faixas de fundamental com-
Tabela 4: Média de anos de estudo, raça/cor, município de Belo Horizonte - 2000 pleto, fundamental incompleto e analfabeto, faixas que apre-
Raça/Cor Anos de Estudo
sentam taxas de desemprego de 18,5% e 13,4% nos dois
primeiros casos, respectivamente. No caso da população não
Branca 7,78
negra estas mesmas faixas participam com apenas 36,2%
Preta 5,41
da população ocupada, que se concentra nas faixas de mé-
Parda 5,55 dio completo e superior completo, responsáveis por 63,1%
Outras 5,70 destas população, cujas taxa de desemprego são de 12% e
Fonte: IBGE. Censo 2000 4,5% respectivamente.
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 49
Tabela 8: Renda média da população negra e não negra, por gênero e classe de ocupação, da Região Metropolitana de Belo Horizonte - 2001/2002

Negra Não negra


Classe de Ocupação Total Razão
Mulheres Homens Total Mulheres Homens Total
Assalariados 751 582 712 659 793 970 891 0,74
Autônomo 598 366 622 535 494 831 701 0,76
Empregador 1.884 1.288 1.896 1.707 1.693 2.161 2.025 0,84
Empregado Doméstico 248 243 326 246 246 - 253 0,97
Trabalhador Familiar - - - - - - - -
Outros 2.119 1.646 2.394 2.091 2.038 2.228 2.145 0,97
Total 722 478 744 620 713 1.037 886 0,70
Fonte: DIEESE. PED 2006

A distribuição desigual de negros e não negros in- de trabalho, sobretudo por meio de incrementos na sua
seridos no mercado de trabalho por níveis de qualificação qualificação. A política de cotas, de forma geral, se encaixa
educacional acaba por agravar o diferencial de salários neste perfil, desde que se observe que não basta a
entre eles. A análise por grupo de qualificação educacio- titulação dessas populações. Vale destacar que as políti-
nal mostra que a remuneração média dos negros repre- cas de cotas, embora sejam uma alternativa de combate à
senta entre 80% a 87% da remuneração média dos não pobreza, não são as únicas, nem são suficientes. Políti-
negros. Entretanto, como esses dois grupos estão distri- cas como a melhoria da qualidade de ensino nas escolas
buídos desigualmente entre os grupos educacionais, sen- públicas, e a universalização do ensino médio podem ter
do maior a inserção dos não negros nos grupos de maior impactos importantes e podem mesmo extinguir, a longo
qualificação - o que representa possibilidade de auferir prazo, a necessidade de cotas. Além disso, faz-se neces-
maiores salários -, quando se analisa o total da popula- sário a retomada dos investimentos em escolas técnicas
ção ocupada esse diferencial passa para 62%, ou seja, a e de formação profissional, enquanto política de inserção
remuneração média dos negros é de apenas 62% da e qualificação para o mercado de trabalho, ponto funda-
auferida pelos não negros. mental para o combate à pobreza, além de ter impactos
O diferencial em termos de qualificação determina decisivos sobre o desenvolvimento econômico local.
a inserção em ocupações tradicionalmente com menores
remunerações. O que se observa na Tabela 8 é uma mai-
or inserção da população negra masculina nas atividades
Abstract
autônomas e da população negra feminina no trabalho
doméstico, ocupações que apresentam remunerações The article aims to contribute to the discussion about
médias de R$ 598,00 e R$ 248,00, respectivamente, abai- the need on focusing the public policies concerned to the
xo da média de R$ 722,00. Cabe destacar, ainda, a baixa affirmative social policies, specifically in the case of quotas
participação da população negra na ocupação de empre-
gador (3,5%), que apresenta uma remuneração bastante
for black people. So, it is presented some indicators related
superior à média (R$ 1.884,00), frente a 8,4% dentre os to the differentials by color, in the scope of Belo Horizonte
não negros. municipality and its Metropolitan Region.
.
Conclusões
A formulação e a avaliação de políticas públicas re-
querem o conhecimento do contexto demográfico e
socioeconômico em que estão inseridas. O estudo mos-
tra que, somadas, a população preta e parda representa
45,2% da população residente de Belo Horizonte em 2000,
e estavam especialmente concentradas nas regionais
Venda Nova, Norte, Nordeste e Barreiro, nas quais repre-
sentavam mais de 50% da população residente na maior
parte das APs que formam essas regionais. Em relação
às diferenças na estrutura etária por raça/cor, é importan-
te ressaltar que a população parda registra a maior parti-
cipação relativa entre os que têm até 14 anos de idade
(27,3%), grupo etário que inclui aqueles com idade ade-
quada para cursar o ensino fundamental.
Também ficou claro o diferencial entre a população
branca e as demais populações no que diz respeito a sua
inserção no mercado de trabalho, seja com relação à ocu-
pação, ao nível de renda e ao desemprego. Este diferenci-
al, conforme se tentou mostrar, parece estar intimamente
ligado aos diferenciais de pobreza e educação, o que re-
mete ao "círculo vicioso" de perpetuação da pobreza, que
relaciona baixa renda a baixas oportunidades e à pobreza.
Dessa forma, fazem-se necessárias políticas que
impactem na inserção dessas populações ao mercado
50 PENSAR/BH POLÍTICA SOCIAL - MAIO DE 2009
Resenha ção gradativa do trabalho escravo pelo trabalho livre.
No segundo capítulo, “Racismo e República: o de-
bate sobre o branqueamento e a discriminação racial no Bra-
sil”, Luciana Jaccoud discute as bases e pressupostos do
pensamento racista que se estrutura após a abolição. Lem-
As políticas públicas bra a autora que, se o projeto de branqueamento da popula-
ção se estrutura no momento da abolição, a ação estatal cor-
respondente irá vigorar até os anos 30 do século XX. Neste
e a desigualdade momento entra em cena a valorização da miscigenação e do
mulato, próprios da ideologia da democracia racial, que só

racial no Brasil 120 irá arrefecer sua hegemonia no final daquele século. Jaccoud
trata também, neste capítulo, de certas correlações entre de-
sigualdade racial e social1
anos após a abolição No terceiro capítulo da publicação, “Desigualdade
Racial e Mobilidade Social no Brasil: um balanço das teori-
as”, Rafael G. Osório traz uma releitura de alguns dos princi-
pais estudiosos da questão racial brasileira, buscando re-
construir a trajetória desta questão na academia. Para Osório,
a tradição sociológica2 de estudos sobre desigualdade racial
sempre enfatizou a relação entre classe e raça, tendo como
pano de fundo a experiência da escravidão de africanos e
descendentes no Brasil por mais de três séculos. Este dado,
tratado pelo autor como “condição inicial” está presente na
inferência sobre estratificação socioeconômica em todos os
estudos analisados, com variável entendimento sobre a mo-
bilidade social.
No quarto e quinto capítulos, Sergei Soares analisa
a situação atual da população negra no Brasil, tomando por
base os dados da série PNAD/IBGE. No quarto capítulo “A
demografia da cor: a composição da população brasileira de
1890 a 2007”, o autor destaca que, no século passado, a
população negra perdeu sua condição de maioria numérica
principalmente graças à política de imigração adotada pelo
Estado brasileiro entre 1890 e 1930. No quinto capítulo “A
trajetória da desigualdade: a evolução da renda relativa dos
negros no Brasil”, Soares trata dos fatores de redução da
desigualdade de renda entre negros e brancos, destacando
que a diferença da renda média entre negros e brancos dimi-
nuiu no período entre 1987-2007.
No sexto capítulo, “O combate ao racismo e à desi-
gualdade: O desafio das Políticas Públicas de Promoção da
Igualdade Racial”, Luciana Jaccoud traz uma panorâmica das
ações e programas para o enfrentamento da desigualdade
racial no país. A autora qualifica, por ordem de surgimento,
em três gerações as políticas públicas de combate à discri-
minação racial e à desigualdade racial desenvolvidas desde

E m novembro de 2008, o Instituto de Pesquisa Econômi-


ca Aplicada (Ipea) lançou o livro “As políticas públicas e a de-
fins dos anos 1980.
Já no sétimo capítulo, que traz o título “À guisa de
conclusão: o difícil debate da questão racial e das políticas
sigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição”. Uma públicas de combate à desigualdade e à discriminação racial
coletânea de trabalhos trazendo reflexões de análise históri- no Brasil”, o economista Mário Theodoro pontua uma prová-
ca e de conjuntura, tanto através da interpretação de dados, vel agenda para superação dos principais estrangulamentos
quanto pelo acompanhamento e avaliação de políticas públi- que sofrem as políticas de combate a discriminação racial e
cas voltadas para a questão racial. de promoção da igualdade racial. Admite Theodoro que a cons-
O economista Mario Theodoro é o organizador da trução da questão racial como campo de intervenção política
publicação e autor do primeiro e sétimo capítulos. Escrevem ainda carece de conclusão adequada.
ainda neste trabalho: a socióloga Luciana Jaccoud, autora do Esta publicação traz uma contribuição bastante am-
segundo e sexto capítulos; o sociólogo Rafael Guerreiro pla ao debate sobre desigualdade racial e políticas públicas
Osório, autor do terceiro capítulo; e o economista Sergei Soa- no Brasil, e mais uma vez o IPEA e estes renomados pesqui-
res, autor do quarto e quinto capítulos. sadores trazem subsídio consistente para as discussões em
No primeiro capítulo, Theodoro traz um apanhado his- torno do futuro do país. Este trabalho não somente reconhece
tórico sobre o mercado de trabalho brasileiro e a influência da avanços na recente história brasileira no que diz respeito a
questão racial na formação do mesmo. Neste artigo, “A forma- esta questão, mas estabelece críticas duras ao Estado e, de
ção do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil”, forma ainda mais corajosa, propõe positivamente aquilo que
partindo do séc. XIX, o autor destaca o processo de substitui- ainda há por ser feito.

1
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mário Theodoro (org.) Luciana Jaccoud Rafael Guerreiro e Osório Sergei Soares - Brasília, 2008
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL MAIO DE 2009 51
PENSAR BH/POLÍTICA SOCIAL
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