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[antes de mais]

Isso deve ser um exercício de subtração, dizia o bruxo. Há coisas demais, há perpetuamente coisas
demais. Subtração, primeiro, de tudo aquilo que poderia ter perdido na chuva. A que me haveria de
servir tanto papel? A que me serve? Não passam de fórmulas e dizeres e provérbios. São amuletos, a
bem dizer. A bem dizer, dizia o bruxo: parece que se perdeu a manha de usá-los, ao mesmo tempo
em que se ganhou o estranho gosto de os desprezar. Aguardo, enquanto isso, sem pesar; ora brotam,
ora desbotam. Uma hora (um outro agora), quem sabe, debandam todos, vagabundos, e sem alarde,
pelos fundos. Pelo que sei, há no mundo ainda quem carregue no bolso os seus poemas de outro
mundo. Haveria que pensá-los e pensar - o que raios é ter um poema? Carregar consigo, diz o outro.
Carregar e disparar - raios que os partam (balas no coração, sem dúvida) que de além partam, que
essa cor não passa da ação - a coloração - no sol de outro mundo. A fissura ao fundo é o que faz
tudo.

Pois bem, se não poemas, então fraturas – se não versos, frases quebradas, uns futuros; trazem de
tudo. Mas o que trazem as frases, a bem dizer? E o que traem os que as trazem, se mal dizem?
Haveria que pensar - afinal, o que é um verso e o seu avesso? Frase que não atrasa nem acaba,
talvez, que acaba contradizendo a seguinte, reiterando a anterior - essa, dizem, era a arte do
ensaísta, a(n)dança - mas acaba: o poema, ao cabo, parece um micro-sistema, cada um tendo - cada
poema, a cada dia - a sua própria poesia, que é ainda outro sistema, maior mas aberto: um ovo e sua
desova. Já viu uma flor, boquiaberta? Parece que acaba, e reaparece, e recabendo mostra que
estavam todos no plano errado: as formigas também acabam, uma.por.uma, e, sendo tantas, fazem
linha, costurando, e não acaba nunca. 'Modo de existência.' Acaba no buraco, mas aí todo mundo
também acaba (virando uma outra coisa). Resta o rastro.

Pois bem, se não no bolso, então na terra, ou então no braço, ou no cabelo e no jeito de andar - o
corpo todo sendo: um caleidoscópio fincado no mundo, girando, esse caleidoscópio gigante,
girando. Perde-se o eixo e as estribeiras, e o que resta? Escreveram, ou escreverão jamais o que
resta, além das próprias mãos? Ânsia de gente, essa ânsia de eternidade na inscrição - a gente
também passa, e passam mãos (sem escrever) - essa ânsia de angústia, própria dessa nossa idade
(disse ao pai), toda essa ansiedade.

O papel tem por isso uma vantagem, que é durar pouco: corre o risco. Perdi uma vez trocentos
riscos, fugitivos, uma constituição inteira na avenida, num dia de sol, vendo passar uma estrela
atravessando os ares pela terra. Ironia da lei, que o arisco fuja.

Já não sei bem o que teria perdido na chuva, e, a bem dizer, nem sei o que teria talvez encontrado.
Marcas e vislumbres, sem dúvida: indícios do que não vi. São visões daquilo que, ali, naquele
instante, nem ninguém poderia ver - e o que não daria! o que não daríamos para contemplar o
invisível! Não guardam, entretanto, o próprio instante, nem poderiam, pois que o estendem. Há que
entender o instante, experimentando o seguinte, e assim por diante, que assim se caminha pela
chuva, e assim me explico. O poema, por hipótese, é a própria vida - diz o bruxo.

Isso tudo só para dizer que, apesar de tudo, há coisas de menos. Perpetuamente coisas de menos, e é
em parte por isso que é preciso subtrair: destruir e liberar. Há que se entender sobre o que é isso, a
vida. Não a minha, nem a de outro: a vida mesma entre tantos. O acerto e o erro foram o mesmo, e
foi deixar abertas todas (as duas janelas): a cortina majestosamente se apoderou da brisa-em-vento
e, sem escrúpulos, derrubou, violentamente, o vaso, que o chão despedaçou. Tudo assim, sem
cerimônia, e só com um baque - e acabou. Acostumado à ventania, ouvi só o vaso, e bem quando
deixava, tão devasso, de ser vaso. Mau agouro, ou mera e vã trivialidade, fui obrigado a meter a
planta minúscula num vaso enorme, e ela já não para mais em pé.
Os cacos reencontrei nas Alagoas, trabalhados e polidos. Não colados - quem cola pedras preciosas?
- nem colhidos, mas acolher, como se escolhessem versos, se assim fosse possível. Haveria que
perguntar: o que é ter um poema? carregar consigo? o que é andar?

Muros e mares de Matilde! Mulher que caminhas, vem e ensina o que é isso, caminhar - sozinhos
sabemos somente o vão, e entre vãos a ver os mares, entre os muros e os altares e se perder, mas
que dizer de andar? Que andas nos dizendo, mulher, como andas nos benzendo? Orar e orar: a igreja
ao topo mas atrás do porto o mar!, mas ora essa? Sabes dizer, mulher, o que raios é amar?

[...]

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