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ISSN 0102-700-X
ACERVO
R E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L
Neste número
ACERVO
REVISTA DO ARQUIVO NACIONAL
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da República
Dilma Vana Roussef
Secretária-Executiva da Casa Civil da Presidência da República
Erenice Alves Guerra
Diretor-Geral do Arquivo Nacional
Jaime Antunes da Silva
Coordenador-Geral de Acesso e Difusão Documental
Haroldo Mescolin Regal
Coordenadora de Pesquisa e Difusão do Acervo
Maria Elizabeth Brêa Monteiro
Editora
Cláudia Beatriz Heynemann
Conselho Editorial
Jaime Antunes da Silva, Presidente; Haroldo Mescolin Regal, Coace; Inez Stampa, Copra;
Maria Elizabeth Brêa Monteiro, Coped; Maria Esperança de Resende, Coreg; Maria Izabel de
Oliveira, Coged; Marilena Leite Paes, Coaco; Mauro Domingues de Sá, Copac; Mauro Lerner
Markowski, Codes; Renato Diniz, Coad; Samuel Maia dos Santos, Coadi; Valéria Maria
Morse Alves, Cocac; e Wanda de Cassia Santos Ribeiro, Codac
Conselho Consultivo
Ana Maria Camargo, Angela Maria de Castro Gomes, Boris Kossoy, Célia Maria Costa,
Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Helena Ferrez, Helena Corrêa Machado, Heloísa
Liberalli Belotto, Ilmar Rohloff, Jaime Spinelli, Joaquim Marçal, José Carlos Avelar, José
Sebastião Witter, Léa de Aquino, Lena Vânia Pinheiro, Margarida de Souza Neves, Maria
Inez Turazzi, Marilena Leite Paes, Regina Maria Wanderley e Solange Zúñiga
Tradução e Pesquisa de Imagens
Viviane Gouvêa
Preparação e Revisão
Alba Gisele Gouget, Mariana Simões e Maria Rita Aderaldo
Projeto Gráfico
André Villas Boas
Editoração Eletrônica
Judith Vieira
Capa
Alzira Reis e Tânia Cuba
Digitalização de Imagens
Flávio Ferreira Lopes
Pesquisa Bibliográfica
Mariana Lambert e Renata William
Apresentação
3
27
45
61
81
O Cativeiro na Arte
Representações oitocentistas do comércio de escravos no Brasil
Roberto Conduru
95
Ópera e Celebração
Os espetáculos da corte portuguesa no Brasil
Paulo Mugayar Kühl
113
131
147
Perfil Institucional
O Museu D. João VI
Sonia Gomes Pereira
159
Bibliografia
A P R E S E N T A Ç Ã O
Reconhecer essa clivagem pode deslocar No nosso romance histórico, o índio foi
as explicações habituais concernentes à objeto da política joanina. A legislação,
ópera na corte de d. João. Esse gênero as guerras, o trabalho escravo (disfar-
de espetáculo traz o teatro para a sede çado ou não), práticas que constituíram
do poder e, para Paulo Kühl, embora a tragédia indígena, assumem um for-
possa pertencer ao conjunto dos proje- mato no século XIX dado pela primazia
tos civilizatórios, expressa em grande da questão de terras, ainda que não se
medida o desejo próprio da corte de con- esquecesse do uso da mão-de-obra. O
tinuidade das encenações comuns à so- que se descreve está no artigo “Entre a
ciedade européia. O artigo analisa ainda brandura e a força”, de Maria Elizabeth
a montagem de O triunfo da América , Brêa Monteiro, conduzido através da le-
com música de José Maurício N. Garcia e gislação, dos relatos de viajantes, da
texto de Gastão Fausto da Câmara correspondência entre autoridades, pas-
Coutinho, por meio do próprio libreto, sando por Botocudos, Coroados,
mostrando o estranhamento que a ópera Kayapó, Mura, que nos conduzem, sem-
provoca, um sentimento inerente à pre- pre, a uma origem.
sença da corte.
O Perfil Institucional é do Museu D. João
É desse modo, por olhares viajantes e VI, integrante da Escola de Belas Artes
línguas estrangeiras, que se prefiguram da Universidade Federal do Rio de Janei-
narrativas históricas, romances, mescla- ro. De autoria de Sonia Gomes Pereira,
dos ao discurso naturalista. De Karen tem fôlego para seguir o percurso inicia-
do em 1816 com a Academia de Belas cesso revolucionário francês e descen-
Artes. Conhecemos aqui os desdobramen- dente da tradição lusa, que o Arquivo
tos ocorridos a partir de então, até que Nacional, em seus 170 anos, publica
coleções e políticas se sedimentassem. este número de Acervo. Em manuscritos,
mapas, livros raros, iconografia, o
E é também como instituição típica dos patrimônio arquivístico que conserva in-
projetos oitocentistas, herdeira do pro- terpela hoje os seus intérpretes.
Entrevista com
Maria Beatriz Nizza
da Silva
pendência do Brasil com d. Pedro como do clero português que insuflava do púl-
imperador, e por essa razão os 13 anos pito as camadas populares contra os in-
de permanência de d. João no Brasil são vasores que roubavam a prata das igre-
mal estudados, a não ser que o gênero jas e não respeitavam a casa de Deus.
biográfico assim o exija, como foi o caso
Longe do palco dos acontecimentos e da
com a biografia de d. João VI na coleção
guerra, o que se observou no Brasil foi
do Círculo de Leitores sobre os reis de
uma violenta reação antiinglesa, apesar
Portugal. Para a historiografia portugue-
de toda a propaganda desenvolvida por
sa é mais relevante estudar a situação
d. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois
européia que levou à partida da corte e
conde de Linhares, e por José da Silva
depois as invasões francesas, e analisar
Lisboa. A abertura dos portos em 1808
como os portugueses atuaram nessas cir-
inicialmente só beneficiou os ingleses, e
cunstâncias de guerra e de dificuldades,
as classes mercantis de Salvador e do Rio
do que saber o que o monarca fez en-
de Janeiro temeram a concorrência. Mas
quanto esteve no Rio de Janeiro. O livro
o mais grave foram os tratados de 1810
que estou terminando agora, e que pen-
com a Inglaterra e o compromisso de d.
so publicar em Portugal, destina-se pre-
João procurar abolir o tráfico de escra-
cisamente a preencher essa lacuna.
vos gradualmente. Sobretudo causaram
Acervo: No mundo das idéias, a invasão
Acervo revolta as apreensões de embarcações
pelo exército napoleônico e a subseqüen- baianas feitas pela Marinha inglesa. Foi
te vinculação aos ingleses veio a marcar muito difícil fazer aceitar no Brasil o li-
a supremacia de alguma tendência? Um beralismo econômico pregado por Adam
conservadorismo em resposta à Revolu- Smith, como foi difícil também fazer acre-
ção Francesa, a vitória do pensamento ditar na “filantropia” da Inglaterra na
liberal inglês, enfim, qual o legado políti- questão do tráfico negreiro.
co e cultural desse momento? Acervo: A chegada da corte é um acon-
Acervo
tecimento para todas as capitanias? De
Maria Beatriz: O que se passou em
que maneira ela repercute na então Amé-
Portugal não tem nada a ver com o Bra-
rica portuguesa? E ainda, que efeitos
sil. Por ocasião da ocupação de Lisboa
podem ser percebidos no Império, de
por Junot houve quem pedisse a Napoleão
modo geral?
uma Constituição semelhante à que ele
dera ao ducado de Varsóvia e também a Maria Beatriz
Beatriz: Este é um tema que ain-
aplicação do código civil napoleônico em da tem de ser aprofundado pelos histori-
Portugal; muitos militares portugueses adores. Estou convencida, contudo, de
serviram nos exércitos franceses na Eu- que a capitania da Bahia, ou melhor, a
ropa; alguns nobres apoiaram a presen- cidade de Salvador passou por transfor-
ça francesa e nada tinham contra um mações equivalentes àquelas que ocor-
monarca escolhido por Napoleão. A rea- reram no Rio de Janeiro, sobretudo do
ção por assim dizer nacionalista partiu ponto de vista cultural. Aliás a Bahia apa-
rece como um caso interessante na me- Joel Serrão. Nos meus estudos, quando
dida em que as principais mudanças uso a expressão “luso-brasileiro” é ape-
aconteceram ali por iniciativa privada. nas no sentido cultural, como expliquei
Enquanto no Rio a Impressão Régia per- exaustivamente no livro publicado em
tencia à Coroa, em Salvador foi um capi- Portugal, em 1999, A cultura luso-brasi-
talista, Manuel Antônio da Silva Serva, leira: da reforma da Universidade à In-
que resolveu aplicar seus capitais no dependência do Brasil . Como não é fácil
empreendimento de uma tipografia. Do encontrar esta obra no Brasil, transcre-
mesmo modo a Biblioteca Pública da vo aqui o parágrafo inicial da introdução:
Bahia foi criada graças ao espírito “Historiografias de cunho nacionalista,
associativo da elite baiana, enquanto no quer em Portugal quer no Brasil, têm
Rio a Biblioteca Real tardou a ser posta menosprezado o fato de que a elite cul-
à disposição dos leitores, pertencendo ta da metrópole e da colônia, sobretudo
estes sobretudo ao círculo cortesão. depois da reforma pombalina da Univer-
Quando as pesquisas avançarem em re- sidade de Coimbra e da criação da Aca-
lação às demais capitanias, talvez che- demia Real das Ciências de Lisboa, não
guemos à conclusão de que os avanços só circulava de um para outro lado do
durante o período joanino não foram tão Atlântico, como praticamente fazia as
grandes assim, se excetuarmos algumas mesmas leituras e recebia a mesma for-
melhorias nas comunicações com a aber- mação. Pouco importava que um d. Fran-
tura de estradas e caminhos e com o cisco de Lemos, reformador da Univer-
afastamento, ou até o extermínio, de sidade, tivesse nascido no Brasil, ou que
nações indígenas que atacavam os via- José Clemente Pereira, um dos
jantes e impediam a colonização. A guer- apoiantes de d. Pedro na independência,
ra aos Botocudos insere-se nessa estra- fosse natural do bispado da Guarda. Se
tégia de avançar a colonização no interi- lermos o que escreveram ignorando suas
or e de melhorar as comunicações, in- naturalidades, será difícil detectar se
clusive as fluviais. eram coloniais ou metropolitanos.” A eli-
te letrada de Portugal e Brasil possuía
Acervo: A senhora coordenou e escre-
Acervo
grande mobilidade geográfica e suas car-
veu em uma obra intitulada O império
reiras na magistratura ou na administra-
luso-brasileiro . Qual o sentido do luso-
ção implicavam a circulação de um con-
brasileiro? Além de expressar um proje-
tinente para o outro.
to ilustrado, ele se prolonga na
historiografia? Trata-se de fato de uma
Acervo: A senhora se dedicou à vida pri-
Acervo
identidade?
vada, ao cotidiano, à moda, aos casamen-
Maria Beatriz
Beatriz: Devo esclarecer que o tos; esses temas podem ser classificados
título da coleção para a qual me convi- como os de uma história cultural? Em que
daram não foi escolhido por mim, mas tendência ou perspectiva seus estudos se
pelos professores Oliveira Marques e inscrevem?
Maria Beatriz
Beatriz: Os meus estudos des- explorado ou mesmo o uso de fontes de
de a década de 1970 sobre o casamen- outra natureza, como os periódicos?
to, a família e o sistema de transmis-
Maria Beatriz
Beatriz: Nunca trabalhei com o
são do patrimônio familiar pertencem
fundo Negócios de Portugal, mas as infor-
simultaneamente a duas áreas, a histó-
mações que tenho a seu respeito, e so-
ria social e a história cultural, na medi-
bretudo o livro recente de Ana Canas Del-
da em que lidam com grupos sociais e
gado Martins, diretora do Arquivo Históri-
ao mesmo tempo com normas, sejam
co Ultramarino de Lisboa, intitulado
elas jurídicas ou religiosas. Já o estudo
Governação e arquivos: d. João VI no Bra-
do cotidiano leva em conta a distinção
entre vida urbana e vida rural, assim
sil, fazem-me crer ser esse fundo mais
importante para as relações entre a corte
como se prende mais às condições es-
no Rio de Janeiro e os governadores do
paciais desse dia-a-dia. Quando escre-
Reino, e também sobre a situação euro-
vo sobre formas de moradia, sobre o
péia, do que propriamente para a história
trajo, a alimentação, os meios de trans-
do Brasil joanino. Há contudo fundos no
porte, sobre trabalho e festa, sobre
Arquivo Nacional que ainda não foram su-
religiosidade e crenças, sobre violência,
ficientemente explorados, por exemplo, os
doença e atitudes perante a morte,
que se referem ao Ministério do Reino e
como fiz no meu livro Vida privada e
ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e
cotidiano no Brasil na época de d. Ma-
da Guerra, estando ainda por fazer uma
ria I e d. João VI (Lisboa, 1993), a
análise sistemática de sua documentação
espacialidade e a sociabilidade adqui-
sobretudo no que diz respeito, por um
rem um peso maior, bem como a cultu-
lado, às relações do governo central com
ra oral que podemos conhecer princi-
as capitanias, e, por outro, aos contatos
palmente através da documentação
com a Intendência Geral da Polícia e a vi-
inquisitorial.
gilância contra os espiões de Napoleão e
Acervo: Existem acervos tradicionais
Acervo
os emissários da América espanhola.
para a pesquisa do período joanino, como
o fundo Negócios de Portugal do Arquivo Entrevista concedida em dezembro
Nacional. A senhora indicaria algum con- de 2007 a Cláudia Heynemann. Co-
junto documental que ainda está por ser laborou Fabiano Vilaça dos Santos.
O
os duzentos anos da chegada da famí-
ano de 2008 situa-se em nos- lia real portuguesa e da respectiva cor-
so horizonte de expectativas te ao território da América portuguesa,
como signo de um acontecimen- sob a chefia do então príncipe regente
to histórico fundador cuja comemora- d. João e de sua mãe, a rainha d. Ma-
ção se constitui em exigência que é ao ria I. Enquanto comemoração, nela es-
tão associadas a História e a Memória, tica mais realista veio atribuir a deci-
não como coisas separadas mas, sim, são do príncipe d. João ao cumprimen-
entrelaçadas. to de promessa constante do acordo
com as autoridades britânicas antes da
Muito já se escreveu e com certeza muito
retirada de Lisboa, numa interpretação
ainda será escrito sobre a “transferência
que evidentemente desloca o próprio
da corte portuguesa para o Brasil”, tradicio-
eixo da discussão acerca da abertura
nalmente denominada, de maneira um tan-
dos portos .
to rebarbativa, convenhamos, de “trans-
migração da família real portuguesa” para Em março do mesmo ano, já no Rio de
seus domínios na América. Tal como ocor- Janeiro, onde chegou finalmente a seu
reu em 1908, quando as comemorações término a viagem da corte lusitana, teve
sublinharam principalmente o “Centenário início a transformação da acanhada ci-
da Abertura dos Portos”, muito se irá dis- dade-capital colonial na sede do que se
cutir acerca das interpretações propostas pretendia viesse a ser um “novo e pode-
para os acontecimentos de 1808, em es- roso império”. Situa-se aí a etapa inicial
pecial sobre o sentido que se lhes deve de um processo de múltiplas mudanças
atribuir numa perspectiva de longo prazo que, no seu conjunto, configuram a adap-
da história do Brasil e também, por que tação da monarquia absolutista lusa, ago-
não, para a história de Portugal. ra estabelecida nos trópicos, às implica-
ções do processo bastante complexo de
No final do mês de janeiro de 1808, na
interiorização da metrópole – principal
cidade do Salvador, onde havia aportado
conseqüência da travessia do Atlântico
uma parte da frota lusa, exatamente
pela corte lisboeta. 1
aquela que conduzia o príncipe d. João,
foi publicado o decreto de “abertura dos Chegada da corte e mudanças subse-
portos do Brasil às nações amigas”, fato qüentes tendem a situar-se de um ou
este associado por muito tempo à inte- outro lado da linha divisória, um tanto
ligência, conhecimentos de economia precária e bastante nebulosa, que se-
política e prestígio intelectual de José pararia os discursos históricos propria-
da Silva Lisboa, futuro visconde de mente ditos das elucubrações ficcionais
Cairu. Em anos mais recentes, uma crí- de um imaginário eminentemente popu-
C
objeto de comemoração reivindicado si-
omecemos por uma visita ao
multaneamente pela História do Brasil
termo comemoração. Comemo-
e pela Memória Nacional. Na verdade,
rar, na opinião de Ankersmit, 3
coube a esta última transformar o even-
como ato de lembrar alguma coisa , su-
to – a chegada de d. João às terras
gere que comemoração significa um even-
brasílicas e a sua presença aqui, até
to social e público. Assim, ao contrário
1821 – num dos mais conhecidos dos
do (re)lembrar, ou da lembrança, come-
“lugares de memória” de nossa consci-
morar é lembrar junto, ao passo que o
ência coletiva . Não tanto um lugar físi-
relembrar é antes de tudo um assunto
co, ou material, mas uma representa-
privado. Torna-se então um tanto proble-
ção simbólica.
mática a distinção estabelecida por
Assim, ao longo de dois séculos contra- Hobsbawm 4 entre o caráter privado e in-
pôs-se, ao realismo histórico, típico das certo da memória e o caráter público e
visões historiadoras, uma outra visão, verídico da história. Se a memória não é
típica do imaginário coletivo, de nature- necessariamente privada, ela pode tam-
za eminentemente simbólica. Cada uma bém participar da revelação pública da
dessas “visões” contém sua própria lógi- verdade. Nas origens do termo comemo-
ca – e sua verdade particular –, sendo ração está o verbo latino commemorare
necessário ao tratar de uma delas não – trazer à memória e, também, lembrar
perder de vista a outra, sobretudo quan- alguém de alguma coisa –, a meio cami-
lação aos textos historiográficos, sobre- Dessa forma, comemorar 1808 é tanto
tudo quando se trata de testemunhos um exercício de recordação, em que a
da memória, como vem a ser o caso na memória se incumbe de lembrar aspec-
chamada história oral. tos significativos dos acontecimentos de
começos do século XIX, aspectos que não
Desenvolvemos talvez um pouco além
devem cair no esquecimento, como um
da conta a problemática das relações
objeto historiográfico cuja importância se
entre a memória e a história, pois, não
revela através da investigação e da in-
apenas o nosso tema tem tudo a ver com
terpretação históricas acerca de sua na-
ela, mas também o panorama atual da
tureza e significação. O difícil, neste caso,
produção historiográfica parece ter-se
é assinalar com precisão os lugares que
transformado em arena de um conflito
competem à memória e à história na idéia
entre as duas. Basta-nos lembrar neste
que hoje se faz daquele evento. Entre a
caso dois textos: um de François Dosse,
crônica e o discurso histórico situam-se
L’histoire et la guerre des mémoires
variadas mediações, daí a necessidade
(2007), outro de Philippe Joutard, Re-
de marcar suas respectivas diferenças.
conciliar história e memória? (2007).
A crônica, mais colada aos próprios acon-
Quisemos também deixar claro que
tecimentos, confere veracidade às cons-
nem subsumimos a memória na histó-
truções da memória; o discurso históri-
ria, ou vice-versa, nem tampouco as en-
co, apegado às variadas formas de fon-
tendemos como entidades completamen-
tes documentais, busca elaborar sua pró-
te separadas uma da outra.
pria visão do objeto de comemoração, a
Apesar de não ser nossa intenção acres- partir, inclusive, da crítica rigorosa das
centar mais um texto comemorativo a próprias crônicas e de outros relatos con-
tantos já existentes, jamais poderemos temporâneos.
eliminar, ou mesmo separar com rigor,
Todavia, em tempos de comemorações
história e memória no contexto de uma
ancoradas em determinadas datas e fa-
abordagem historiográfica como esta.
tos, é sempre bastante difícil tentar se-
Nosso tema apresenta-se, assim, ao mes-
parar em cada matéria produzida a res-
mo tempo, como objeto de história e
peito de um certo evento fundador o que
como lugar de comemoração – e de me-
pertence de fato à história e o que pro-
mória! Enquanto objeto de história, per-
vém da elaboração memorial, mesmo
tence à história da história sua análise
porque é típico de tais matérias come-
no contexto da produção historiográfica
morativas a reivindicação comum de uma
que lhe é pertinente. Como objeto de co-
mesma pertença à história. Aliás, seria
memoração, uma espécie de lugar sim-
dos mais interessantes um trabalho de
bólico da memória coletiva, compete às
investigação que pudesse acompanhar,
diferentes instâncias culturais recordá-
passo a passo, o surgimento das diferen-
lo, cabendo aí à mídia um lugar de des-
tes imagens, relatos, ditos populares, que
taque na atualidade.
A
historiografia dos acontecimen- brasileiro.
tos de 1808 caracteriza-se, de A fim de melhor percebermos os caminhos
um ponto de vista bastante da produção historiográfica sobre o nos-
abrangente, pelo debate implícito ou ex- so tema, optamos por uma abordagem
plícito entre os historiadores de algu- que considera quatro períodos ou momen-
mas posições e tendências mais gerais tos historiográficos sucessivos. Não se tra-
q u e , p o r a s s i m d i z e r, p e r m e i a m o s ta, porém, de uma periodização canônica.
enfoques acerca do significado mais am- Iglésias, por exemplo,12 propôs uma divi-
plo da transferência da corte portugue- são em três momentos: o primeiro, de
sa para os seus domínios americanos. 1500 a 1838, correspondendo ao perío-
Apenas para exemplificar, lembremos do colonial e ao princípio do nacional, com-
dicotomias muito conhecidas, como con- preenderia livros que são mais crônicas
tinuidade e ruptura; conservadorismo e históricas do que história, ou seja, livros
liberalismo; reação versus revolução; que são mais fontes do que obras elabo-
romantismo versus cientismo; ou, en- radas; o segundo, de 1838 a 1931,
fim, o choque interpretativo entre a corresponderia à fundação do Instituto
ênfase historiadora, ora no espaço das Histórico e Geográfico Brasileiro, funda-
experiências, ora, ao contrário, no ho- mental para uma tomada de consciência
rizonte de expectativas. nacional, com a pesquisa e publicação de
Escrever a história da história da chega- séries documentais, e o desenvolvimento
da da corte portuguesa ao Brasil é uma de um conceito de história que teve como
tarefa impossível dentro dos parâmetros ponto culminante a História geral do Bra-
de um artigo como este. Afinal de con- sil, de Francisco Adolfo de Var nhagen;
tas, a historiografia brasileira dos sécu- enfim, o terceiro, de 1931 aos dias atu-
los XIX e XX é pródiga em referências ais, teria como ponto de partida a refor-
aos acontecimentos de 1808. A grande ma do ensino realizada por Francisco
maioria dos historiadores refere-se à che- Campos. Como se poderá ver, a seguir, a
gada de d. João: alguns se preocupam diferença maior entre os momentos apon-
com a narração dos acontecimentos, ou- tados refere-se ao período de 1870 a
tros preferem abordar as interpretações 1930, o qual, acreditamos, deve ser dis-
propostas para o evento, e, por último, tinguido daquele que o antecede.
há aqueles que dão prioridade ao signifi- 1 – A historiografia da época do roman-
cado da transferência da corte lusa. Exis- tismo – de começos do século XIX até
tem, assim, narrativas francamente des- mais ou menos 1870; 2 – A his-
Rio, a partir do morro da Glória, Maria Dundas Graham, Journal of a voyage to Brazil , 1824
do; orientá-lo, discernindo entre o emara- fio da narrativa iniciada na seção XLVIII,
Mas foi também ao longo desse perío- seguir tal independência vagamente
alguns dos temas e ícones mais identi- Preferiam divagar sobre o que se faria
com fatos e pessoas da época joanina qualquer, por uma série de sucessos
los, historiadores como Joaquim Caeta- abordou o tema que de fato nos interes-
no da Silva, Gottfried H. Handelmann, sa, d. João VI no Brasil – o historiador e
Candido Mendes de Almeida, Joaquim diplomata Oliveira Lima.36 Sua preocupa-
Norberto de Sousa e Silva, João Coelho ção maior foi sempre com a formação his-
Gomes, José Maria da Silva Paranhos tórica da nacionalidade brasileira, 37 su-
Júnior, o barão do Rio Branco, e, especi- blinhando o surgimento precoce de um
almente, Manoel Bomfim. 35
Mencionamos ideal nacionalista, já no século XVI, e o
estes nomes apenas para que se tenha papel dos movimentos nativistas, especi-
uma visão da variedade de textos histó- almente a resistência pernambucana às
ricos que foram produzidos à época de invasões holandesas. 38 Na biografia inte-
Capistrano. Não consta que tenham ido lectual que dele elaborou, Gilberto
além de uma consolidação das narrati- Freyre chamou-o de “Oliveira Lima, Don
vas e interpretações a respeito de 1808. Quixote Gordo”. 39 Segundo o juízo de
Outra coisa, porém, seria a análise teó- Iglésias, Oliveira Lima representa uma ou-
rica de seus respectivos discursos. tra fase na historiografia brasileira, ao
superar a crônica e a erudição vazia de
A culminação de um século de história e
senso crítico. Capistrano o considerava
memória: M. de Oliveira Lima (1867-1928)
um tanto superficial, e é verdade que
Entre intelectuais significativos de fins do suas principais referências eram os seus
século XIX e começos do XX, a exemplo amigos europeus ou europeizados. Seja
de Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, Sil- como for, pesquisou e escreveu muito.
vio Romero e Euclides da Cunha, preferi- Brigou também ou desentendeu-se com
mos fixar-nos naquele que mais de perto colegas de carreira e com historiadores
república, d. João foi alvo de uma sim- Longa em demasia seria a análise dos trin-
patia coletiva, impulsiva e sincera. Mes- ta capítulos em que se estrutura o grande
mo a partir de 1820, quando a revolu- livro de Oliveira Lima, desde “A partida”
ção liberal portuguesa agitava seus par- até “A desilusão do regresso”. Ao longo de
tidários em vários pontos da terra suas 790 páginas desenvolve-se a narrati-
brasílica, os virulentos panfletos, publi- va minuciosa e precisa de uma época de-
cados no Rio de Janeiro, tendiam a pou- cisiva da história do Brasil. Assim, somen-
par o monarca e não empregavam a seu te a título de amostra, veja-se como o au-
respeito senão expressões de amizade tor distingue os motivos imediatos do em-
e de veneração. barque – “a conselho do governo britânico
e escoltadas as suas naus por navios bri-
A crítica histórica não faz senão for-
tânicos –, e os de natureza mediata: “uma
talecer hoje uma feliz intuição na-
inteligente e feliz manobra política e não
cional... Como é que o bom senso
uma deserção covarde”, manobra esta que
ou, antes, o bom gosto da posteri-
já estava, há muito tempo, presente no
dade não haveria de descobrir, sob
horizonte de possibilidades da monarquia
o exagero das caricaturas grotescas,
lusa em caso de grave ameaça à sua so-
que os publicistas interessados par-
brevivência.
ciais têm esboçado, os traços verí-
dicos de sagacidade e de bondade. 41 Estilo narrativo e descritivo, mais voltado
para as questões políticas, diplomáticas
Fomos buscar todas essas avaliações crí-
e militares, assim como para as intrigas
ticas acerca de d. João e sua época em
palacianas, Oliveira Lima não deixou de
outro dos textos de Oliveira Lima, desta
dedicar capítulos preciosos à justiça, aos
vez de síntese, onde de maneira mais
índios, à cultura, à revolução de 1817 em
concisa ele refuta antigas versões e
Pernambuco, e assim por diante.
descaracteriza velhas caricaturas. É as-
sim, prossegue o nosso historiador, que Breves indicações, sumárias apreciações.
Na verdade, o grande livro de Oliveira Lima
Numerosas anedotas burlescas, e
não poderia ser aqui resumido de modo
mesmo brejeiras, muito raramente
apropriado. Trata-se de texto extremamen-
autênticas, correm mundo a respei-
te denso, trabalhado com rigor documen-
to desse soberano, que nossos
tal, no qual o autor buscou reconstituir a
pais menoscabavam um pouco, por
totalidade de um processo complexo e dos
causa das histórias que tinham
mais ricos em sua diversidade de aspec-
ouvido contar por nossos avós,
tos. Algo que não fora tentado até então e
mais sensíveis aos ridículos das
que não seria ultrapassado até os dias de
aparências que ao valor dos resul-
hoje. Um clássico da historiografia nacio-
tados. Faltava-lhe realmente uma
nal, segundo Wilson Martins, igualmente
qualidade: a firmeza, e vós sabeis
apreciado por Gilberto Freyre, José
que a zombaria persegue facilmen-
Veríssimo e Octavio Tarquínio de Souza.43
te aos fracos. 42
A obra historiográfica de Oliveira Lima si- Joaquim Nabuco, Silvio Romero, Euclides
tua-se a meio caminho de um período que, da Cunha, Alfredo de Carvalho, Nina
como já anunciamos, tem Capistrano de Rodrigues, Manoel Bomfim, João Ribeiro,
Abreu como sua figura exponencial. A pro- entre os principais.44
dução historiográfica de tal período abran-
ge contribuições não só, ou não tanto, de C ONCLUSÃO PARCIAL
O
historiadores propriamente ditos como de entorno de 1930 é sempre um
outros intelectuais pertencentes a variadas território minado para o histo-
especializações no campo das humanida- riador. Todavia, é impossível
des, alguns mais chegados à perspectiva evitá-lo. Ainda que se relegue a Revolu-
historiográfica de Capistrano, outros dele ção de 1930 a uma espécie de pano de
distanciados ou mesmo em franca oposi- fundo, não se pode ignorar que, um pou-
ção. Note-se que não se trata aqui de ami- co antes, um pouco após aquele ano, vá-
zades ou laços pessoais, que, de fato, exis- rios fatos marcam o processo historio-
tiram em muitos casos, mas da afinidade gráfico brasileiro: 1927 é o ano da morte
maior ou menor com uma certa maneira de J. Capistrano de Abreu; 1931 é a Re-
de escrever história, fora das preocupa- forma Francisco Campos; 1933 são os pri-
ções hegemônicas da política e dos fastos meiros trabalhos realmente inovadores de
militares. Uma outra maneira, portanto, de Caio Prado Júnior e de Gilberto Freyre,
abordar o problema da nação e do povo logo seguidos por Raízes do Brasil, de
brasileiros. Tais seriam assim os casos de Sérgio Buarque de Holanda (1936).
N O T A S
1. SILVA DIAS, Maria Odila Leite. A interiorização da metrópole e outros estudos . São Pau-
lo: Alameda, 2005. p. 7-37.
2. NORA, Pierre et al. Les lieux de mémoire . v. I: La Republique. Paris: Gallimard, 1984. p.
XIV.
3. ANKERSMIT, F. R. Commemoration and national identity. Textos de História – Memória,
Identidade e Historiografia. Brasília: UnB, v. 10, n. 1-2, p. 16-18, 2002.
4. HOBSBAWM, E. W. The historian between the quest for the universal and the quest for
identity. Diógenes , n. 168, 1994. p. 51-64.
5. CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia . Coimbra: Quarteto, 2001, p. 16-17,
numa referência, também, a M. Halbwachs, La mémoire colletive. Paris: Albin Michel, 1997.
6. ibidem, p. 17, numa citação de P. Ricoeur, Entre mémoire et histoire, Projet , n. 248,
1996-1997.
7. ibidem. p. 20-21.
8. ibidem. p. 21 e 49.
9. TODOROV, T. Les abus de la mémoire . Paris: Arléa, 1995.
10. NORA, Pierre. Les lieux de mémoire, v. III. Paris: Gallimard, 1992.
11. CATROGA, F. op. cit. p. 44, 49.
12. IGLESIAS, Francisco. Historiadores do Brasil . Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2000. p. 23-24.
13. SOUTHEY, Robert. History of Brazil , 1810, 1817, 1819. 3 v.
14. SILVA DIAS, Maria Odila da. O fardo do homem branco : Southey, historiador do Brasil.
São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1974.
15. Como exemplos de historiografia do princípio do século XIX, podem ser referidos: José
da Silva Lisboa, o qual, como cronista, escreveu: Memória dos benefícios políticos do
governo de el-rei nosso senhor d. João VI (1818) e História dos principais sucessos
políticos do Império do Brasil (1830); Luís Gonçalves dos Santos, Memórias para servir à
história do Reino do Brasil, divididas em três épocas de felicidade, honra e glória , escritas
no Rio, em 1821, e publicadas em Lisboa, em 1825; Cf. IGLESIAS. op. cit. p. 51.
16. Pizarro e Araújo escreveu e editou em nove tomos as Memórias históricas do Rio de
Janeiro e das províncias anexas... , em 1820-22; Baltazar da Silva Lisboa, autor dos
Anais do Rio de Janeiro, em sete volumes, publicados entre 1834 e 1835.
17. ODÁLIA, Nilo (org.). Varnhagen . São Paulo: Ática, 1979. Cf. às páginas 24-30 uma bibli-
ografia parcial de Varnhagen. No presente trabalho utilizamos a nona edição integral, em
5 tomos reunidos em 3 volumes, revista e anotada pelo prof. Helio Vianna. São Paulo:
Melhoramentos, 1978. Todas as citações que se seguem referem-se a esta última edição.
18. WEHLING, Ar no. Estado, história, memória : Var nhagen e a construção da identidade
nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 60-66.
19. IGLESIAS, Francisco. op. cit. p. 72.
20. WEHLING, Arno. op. cit. p. 74.
21. ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo : ensaios sobre o pensamento historiográfico de
Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 31-42.
22. ibidem. p. 25-27 e 45-47.
23. VARNHAGEN, F. A. de. História geral do Brasil . São Paulo: Melhoramentos, 1978. v. 3.
24. ibidem. p. 89.
25. ibidem. p. 90.
26. ibidem. p. 89-110.
27. ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de história colonial e Os Caminhos antigos e o
povoamento do Brasil . Brasília: Ed. UnB, 1982.
28. LINDLEY, Thomas. Narrative of a voyage do Brazil, London, 1905, p. 275, apud ABREU,
Capistrano de. Capítulos de história colonial , op. cit. p. 196-197.
29. ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de história colonial, capítulo 11. p. 199-200.
30. ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo . p. 14-17.
31. ABREU, J. Capistrano de. Ensaios e estudos (Crítica e história), 2ª série. Rio de Janeiro;
Brasília: Civilização Brasileira; INL, 1976. p. 41-60.
32. ibidem. p. 59-60.
33. Esses autores e suas respectivas obras vão citados por F. Iglesias, op. cit., às páginas
96 e 97. São escritores “de larga produção, mas de reduzido alcance, por vícios de
várias espécies”.
34. IGLESIAS, F. op. cit. p. 97-98.
35. ibidem. p. 98-117.
36. LIMA, M. de Oliveira. D. João VI no Brasil . 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
Prefácio de Wilson Martins. Segundo Iglesias, op. cit. p. 135-138, Oliveira Lima publicou
muitos volumes, todos de história ou de viagens, porém o mais importante deles é o D.
João VI no Brasil , acusado como responsável pelo culto do período, sendo certo, no
entanto, que “o texto é grandioso..., o mais importante até hoje sobre período decisivo
da trajetória nacional”.
37. LIMA, M. de Oliveira. Formação histórica da nacionalidade brasileira . Prefácios de Gilber-
to Freyre, José Veríssimo e M. E. Martinenche. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997 (ed.
original em francês, 1911).
38. ibidem. p. 151-169. Na página 156 o autor insere citação de Euclides da Cunha que
resume a interpretação deste último sobre as circunstâncias que explicam e justificam
as características de d. João VI como o homem absolutamente necessário ao meio e ao
momento histórico do Brasil.
39. FREYRE, Gilberto. Prefácio da edição brasileira da Formação histórica da nacionalidade
brasileira , de M. de Oliveira Lima, 1944.
40. O texto de Oliveira Lima demonstra, na prática, até que ponto se confundem, no esforço
de reconstituição de um certo passado, História e Memória. Daí decorre provavelmente o
conflito das interpretações/avaliações, entre os historiadores, a respeito da obra magna
do referido historiador.
41. LIMA, M de Oliveira, D. João VI no Brasil , capítulos 1, 2 e 3.
42. ibidem, p. 159 e ss. (Emancipação intelectual); p. 271 e ss. (O tráfico de escravos ); p.
465 e ss. (Administração e justiça: os interesses agrícolas e industriais); p. 487 e ss.
(O tratamento dos índios).
43. IGLESIAS, F. op. cit. p. 135-141; LIMA, M. de Oliveira, Formação histórica da nacionali-
dade brasileira , p. 151-169.
44. IGLESIAS, F. op. cit. p. 142-179.
Recebido em 11/12/2007
Aprovado em 27/12/2007
Este trabalho pretende analisar os This paper intends to analyse the feelings
sentimentos despertados pela transferência da aroused in the Portuguese subjects in
corte portuguesa para o Brasil em 1807, tanto Europe as much as in America by the
nos súditos lusos da Europa como nos súditos transfer of the Portuguese court to Brazil in
da América. Se, lá, o acontecimento gerou um 1807. If the event begot a sense of orphanhood
sentimento de orfandade e abandono, aqui, as and neglect there, here, the unprecedented
esperanças alçaram vôo com a presença inédita presence of a sovereign made hopes take flight.
de um soberano. Do processo, resultaram o Results of this process were the Portuguese
movimento português de 1820 e a movement of 1820 and the Brazilian
Independência do Brasil 1 . Independence.
Palavras-chave : Invasões Napoleônicas; corte Keywords: Napoleonic Invasions; Portuguese
portuguesa; Representações políticas. Court; Political representations.
E
“Duas coisas se não podem
m Lisboa, ao longo do mês de
exatamente descrever; nem
novembro de 1807, cresceram
a alegria e entusiasmo do
as murmurações em relação aos
povo do Brasil com a possíveis acontecimentos políticos que ame-
chegada da Família Real, açavam abalar o império português naquele
nem a tristeza e momento. Comentários sobre a movimen-
consternação do povo de tação das tropas francesas – inicialmente
Lisboa (depois de todo o concentradas na fronteira com a Espanha
reino) com a sua partida.” 2 e, em seguida, em marcha para invadir Por-
monarca, imagem de uma orfandade po- guerra, nem depois de feita a paz”. Além
lítica. Com certo exagero de cortesão, disso, desmembrado do Brasil, não jul-
Acúrsio das Neves, fortemente ligado ao gava que Portugal pudesse voltar a ser
príncipe regente, traduziu a situação ao uma monarquia, o que fazia aflorar, em
retratar o embarque deste último: sua ótica, o perigo republicano numa so-
ciedade despojada de seu rei e de uma
Queria falar e não podia; queria mo-
parcela de sua mais alta nobreza.14
ver-se e, convulso, não acertava a dar
um passo: caminhava sobre um abis- Entre as elites intelectuais e politizadas,
mo, e apresentava-se-lhe à imaginação já marcadas pelas idéias da Ilustração, a
um futuro tenebroso e tão incerto partida da corte produziu distintas reações.
como o oceano a que ia entregar-se. José Liberato Freire de Carvalho, redator
Pátria, capital, reino, vassalos, tudo do Investigador Português em Inglaterra
ia abandonar repentinamente, com (1814-1818) e do Campeão Português
poucas esperanças de tornar a pôr- (Londres, 1819-1821 e Lisboa, 1822-
lhes os olhos, e tudo eram espinhos 1823), considerou a “retirada” ou, antes,
que lhe atravessavam o coração.12 a “fugida tumultuosa” um ato de covardia
do governo. Para ele, essa atitude era re-
Concebendo-se a monarquia como uma
sultado de “um ministério imbecil”, “ven-
família, em cuja cabeça encontrava-se o
dido à política estrangeira” e presidido por
rei, na figura de um pai, como uma espé-
um “príncipe sem caráter, fraco e medro-
cie de viga mestra, indissoluvelmente
so”, que não soube ou não quis “fazer a
unido à nação, o autor dessas linhas, fiel
paz nem a guerra”. Além disso, pedira aos
aos princípios do Antigo Regime, reconhe-
portugueses que “recebessem como ami-
cia assim o papel singular que a presen-
gos, os seus conquistadores” e “obedeces-
ça física do soberano exercia entre seus
sem ao invasor”.15 Da mesma forma, em
súditos.13
jornais igualmente publicados em Londres,
Diante da situação, falava-se, na época, anos mais tarde, João Bernardo da Rocha
de um “sussurro melancólico e confuso Loureiro afirmou que estava “em Lisboa
do povo” ou de um povo indiscreto , que no quase milagroso dia em que S. A. R.
não sabia como expressar aquilo que partiu daí para os seus estados da Améri-
estava sentindo. Outros súditos revela- ca”. Segundo seu testemunho, o aconteci-
vam um profundo inconformismo, como mento “dava ares de um despejo de casa
o intratável José Agostinho de Macedo, aonde prendeu o fogo”, tendo ouvido “pro-
cujas Reflexões imparciaes, ou parecer pósitos de blasfêmia e desesperação” da
acerca da situação de Portugal depois da maioria do povo de Lisboa, que se via
sahida de S. A. R. para a América consi- “abandonado por esse modo em mãos de
deravam artificial e forçada a emigração franceses”.16 Cabe destacar, por outro
da corte, ficando “Portugal europeu no lado, que os dois redatores, após a expul-
estado de não poder subsistir como rei- são definitiva dos franceses, tinham emi-
no independente, nem continuando a
N
ças”. Referendando-o, uma proclamação
o entanto, nem todos os ilus-
anônima aos portugueses, transcrita no
trados viram na transferência
mesmo jornal, justificava a partida em
da corte essa imagem negati-
função do perigo inevitável. Ao mesmo
va. Francisco Soares Franco, médico da
tempo, não só confortava o povo ao di-
Real Câmara e partidário de reformas,
zer que “vosso príncipe arriscou-se nos
mas não de uma revolução, ao traduzir e
mares para vos assegurar a vossa Inde-
corrigir um escrito publicado em Londres,
pendência e dar um eterno apoio às vos-
admitiu a conveniência da ação do prín-
sas esperanças!”, como o exortava para
cipe regente como a única esperança de
“que com o vosso príncipe ao lado
salvação para Portugal, que, assim, pôde
desafieis o mundo inteiro”. 18
manter sua honra, sua segurança, sua
glória, assim como a do nome de portu- De uma maneira mais característica do
guês. Um rei abandonava a Europa trans- Antigo Regime, apesar da saudade que a
formada em “verdadeiro asilo de ignomí- ausência da família real deixava entre os
nia debaixo do cetro de um corso”, indo “pastores do Tejo”, opiniões favoráveis
residir no Novo Mundo, para fugir dessa à decisão vieram também à luz em di-
tirania. Era no Brasil que Portugal podia versas odes de homenagem.
transformar-se em uma potência. Era no
Vai, ó meu bom Pastor, Pai verdadeiro,
Brasil que, “libertado da tirania de
Vai do Brasil gozar o doce abrigo;
Bonaparte e da ignomínia da Espanha”,
Benigno o justo Céu seja contigo,
Portugal poderia puni-los e “vingar-se de
Quanto aos vis o declamo justiceiro.19
todos os males”. 17
Outros versos instavam que a travessia
Paralelamente, Hipólito José da Costa,
do Atlântico transcorresse sem proble-
nascido no Brasil, emigrado para a In-
mas, a fim de preservar a dinastia de
glaterra, fugindo das malhas da
Bragança e de modo que fosse possível
Inquisição em Lisboa, no primeiro nú-
proclamar a nova força do império por-
mero do Correio Braziliense , publicado
tuguês ao estender-se pelos mares afo-
em Londres, justificava a transferência
ra. “Com pasmo, o mundo contempla
da sede da monarquia para o Rio de Ja-
extasiado: A Régia Lusa Prole o mar
neiro, considerando a “sábia política do
transpondo / Por intacta manter de opró-
príncipe regente de Portugal em mudar
brio a vida”. E acrescentava:
a sua corte para o Brasil”, a fim de não
se repetir o que sucedera com os sobe- – Se a América feliz desfruta agora
Nossas prerrogativas,
ranos espanhóis. Destacava ainda a im-
de e seus arrabaldes por oito dias su- tomava por suposto que também se há
cessivos; a imediata divulgação, por “de escrever na mesma História o espíri-
editais, do fato, de modo que todo o to com que este Senado o recebeu.” Tais
povo pudesse preparar-se, esmerando- preocupações demonstravam a importân-
se nas demonstrações de regozijo; a dis- cia de que se revestia para a cidade a
tribuição, pelo Senado, da cera neces- presença dos soberanos. Em conseqüên-
sária para as casas que ficavam de fren- cia, ao descrever o “imenso povo luzido”
te para o palácio e para aquelas situa- que acompanhava o cortejo com expres-
das na praia de d. Manuel, aonde iriam sões de “viva o nosso príncipe”, destaca-
residir os criados da corte, assim como va o número de pessoas de ambos os
a iluminação, com gosto e elegância, do sexos que enchiam as ruas Direita e do
paço e do largo à sua volta por meio de Rosário “no seu pavimento e nas casas”,
pirâmides, balaústres e galerias de ma- emitindo “expressões sinceras de respei-
deira pelos ditos oito dias; da mesma to” e das quais os olhos vertiam “inúme-
forma, nesse local, havia de distribuir- ras lágrimas que confirma[vam] a since-
se “com simetria, a música dos regi- ridade de seus corações”.26
mentos para que, por turno, celebre
Merece igualmente menção, na descri-
com seus instrumentos, tão extraordi-
ção dessas festas, que se achavam liga-
nário sucesso”; cabia ainda à institui-
das “com a história de um sucesso, que
ção animar o povo a formar danças e
em todos os tempos, fará impressão aos
dar outros testemunhos de sua alegria;
corações portugueses”, um curioso qua-
por fim, após os oito dias de festas,
dro, sob forma de luminária. Ao alto, fi-
competia celebrar um outro Te Deum
cava o retrato de d. João, entre festões
na catedral, com a presença de todas
de rosas. Em seguida, de um lado, a fi-
as corporações e pessoas distintas da
gura de Lísia, com semblante lacrimo-
cidade, convidadas pelo Senado. 25
so; de outro, a África, de joelhos, colo-
Após a chegada da corte, ao reunir-se cava à disposição suas riquezas, en-
novamente, o Senado quis registrar a quanto a América, de manto real e
importância de seu papel nos aconteci- borzeguins, oferecia o coração que tinha
mentos, posto que, quando nas mãos. Abaixo, a pintura da nau, em
que tinha vindo S. A. R. e, na parte infe-
(...) nos anais da História Portuguesa
rior, as quadras:
e na do Gênero Humano, se há de es-
crever o memorável fato da saída do América feliz tens em teu seio,
Príncipe Regente Nosso Senhor dos Do novo Império o Fundador Sublime:
seus Reinos, e sua vinda para esta sua Será este o País das Santas Virtudes,
Cidade e Estados por motivo da guer- Quando o resto do Mundo é todo crime.
ra da Europa, que foi ultimamente per- Do grande Afonso a Descendência
segui-lo e inquietá-lo no meio de sua Augusta,
antiga Corte e Cidade de Lisboa Os Povos doutrinou do Mundo antigo:
Para a Glória esmaltar do novo Mundo que também se enraizava com a presença
Manda o Sexto JOÃO o Céu amigo. da corte no Rio de Janeiro.
Dístico à figura de Lísia
Possa este, para sempre memorável
Não chores Lísia
dia, ser celebrado com universal jú-
Os nossos soberanos
bilo por toda a América portuguesa,
Descansam entre
por uma dilatada série de séculos,
Os seus americanos
como aquele em que começou a rai-
Dístico à nau
ar a aurora da felicidade, prosperi-
E depois de sulcares
dade e grandeza, a que algum dia o
Os mares largos,
Brasil se há de elevar, sendo gover-
Terá assento etéreo,
nado de perto pelo seu soberano.
Como a d’Argos.
Sim, nós já começamos a sentir os
Iluminado de maneira indireta, o quadro saudáveis efeitos da paternal presen-
fazia um prospecto encantador na obs- ça de tão ótimo príncipe, que, sen-
curidade da noite. 27
do todo para os seus vassalos, não
perderá um só momento de promo-
Apesar desses arroubos, um manuscri-
ver a felicidade dos seus Estados do
to de 1815, do cirurgião da saúde e
Brasil, a mais bela, e rica porção do
da Casa Real José Antônio de Freitas,
globo; do que já Sua Alteza Real nos
talvez avaliasse melhor as ambigüida-
deu as mais evidentes provas, que
des envolvidas:
muito alentam as nossas esperanças,
V. A. R. não vê que, quando o Brasil de que viera ao Brasil a criar um
se alegra de receber a V. A. R., Lísia
grande império. 29
chora a sua ausência! Oh! Segredos
Esperança essa, de um grande império,
Divinos! Oh! Natureza apontadora de
que consta explicitamente do prefácio que
fatos! Oh! Deus! Oh! Monarca Sagra-
o bispo José Joaquim da Cunha de
do e Virtuoso Príncipe! Uma terra se
Azeredo Coutinho – personagem do cír-
festeja; outra chora! Uma se veste
culo de d. Rodrigo – escreveu, em 1811,
de luto e se cobre de tormentosa
para a nova edição de seu Ensaio sobre
cena pela Tua Retirada; outra, des-
o comércio (1816), quando declarava ale-
vanecida de se ver Contigo, mostra
grar-se, que “a minha Pátria vai gozar das
sua face risonha! Aqui se alegram os
prerrogativas de primeiro império do Novo
Astros; em Portugal, se cobrem de
Mundo”. 30 No entanto, a criação dessa
nuvens pretas! 28
nova unidade política, sonhada pelo pa-
Já Luiz Gonçalves dos Santos, testemunha dre Perereca, como Gonçalves dos San-
ocular do processo, em suas Memórias tos ficou conhecido, pelo criador do Se-
para servir à história do Brasil (1825), minário de Olinda e, com certeza, por
emprestava àquelas manifestações de re- muitos outros, exigia uma profunda trans-
gozijo e felicidade uma ambição mais alta, formação, tanto da capital, quanto das
engrenagens que faziam mover o mundo tribuía para aquilo que Nobert Elias de-
luso-brasileiro. nominou processo civilizador . 32 De ou-
tro, ainda que a estadia da corte fosse
No início do Oitocentos, a cidade do Rio
temporária, havia necessidade de que
de Janeiro ainda se mostrava tipicamen-
as instituições políticas se estabeleces-
te colonial. Espremida entre o mar e uma
sem e enraizassem, a fim de que a
série de manguezais insalubres,
monarquia portuguesa pudesse continu-
delineada por ruas estreitas e tortuosas,
ar a funcionar. Como resultado, a recri-
com casas desprovidas de comodidades
ação do aparelho central do Estado por-
e serviços públicos precários, faltava-
tuguês em terras americanas despertou
lhe, na expressão de uma testemunha,
a antiga colônia para uma moderniza-
“gente branca, luxo, boas estradas”. 31 A
ção segundo padrões europeus e, tal-
maior preocupação consistiu em difun-
vez de maneira menos evidente, nas
dir hábitos e adotar políticas públicas
condições de Antigo Regime então ain-
que tornassem o Rio de Janeiro o mais
da prevalecentes, passou a funcionar
semelhante possível a Lisboa. Multipli-
como um poderoso pólo de dinamismo
caram-se, desse modo, as obras em qua-
econômico, fazendo girar em torno da
se todas as ruas, e novas habitações
corte e de suas múltiplas repartições
passaram a ser construídas. Uma série
uma inédita quantidade de serviços e
de providências procurou tornar mais
de oportunidades.
regular e abrangente a novidade da va-
cinação contra a varíola, tendo em vis- Apesar disso, os primeiros atos da re-
ta, sobretudo, os escravos e a popula- gência joanina no Brasil acabaram im-
ção pobre em geral. Enquanto isso, o postos pela conjuntura do momento,
mercado consumidor propiciado pelos definida pelas guerras napoleônicas. Em
recém-chegados e pelos habitantes lo- primeiro lugar, a abertura dos portos
cais, preocupados em imitar as modas da colônia às nações amigas, em 28 de
da corte, favoreceu o desenvolvimento janeiro de 1808, quando d. João ainda
do comércio de luxo, emprestando à ci- se encontrava na Bahia. A medida im-
dade ares de capital européia; porém, plicou, no entanto, uma profunda modi-
na cidade, ecoava o enorme burburinho ficação para o império português, pois
das ruas, produzido por indivíduos de representava o fim do monopólio comer-
raças, cores, línguas e costumes distin- cial pela metrópole, que definia a situ-
tos, que deixavam o visitante estrangei- ação colonial do Brasil de acordo com
ro aturdido. as concepções mercantilistas. Ainda que
inicialmente obscurecida pelos efeitos
Alterava-se, assim, decisivamente o es-
muito mais graves da ocupação france-
tilo de vida no Brasil. De um lado, a ins-
sa e das lutas que se seguiram, a deci-
talação, na cidade, de uma sociedade
são assentou, porém, um duro golpe em
de corte, cujos hábitos e exigências ten-
Portugal continental. Uma vez expulsos
diam a difundir-se pela população, con-
D
munificente mão do senhor d. João
VI a brilhante coroa, que cinge hoje e Londres, os jornais publica-
a sua fronte, e o real manto de púr- dos por portugueses cada vez
pura, com que cobre a sua antiga mais acentuavam a inversão de
nudez; já o seu nome tinha feito cé- papéis entre Brasil e Portugal e insisti-
lebre entre os povos da terra, que à am que o centro do império devia
porfia correm de todas as partes a retornar àquela nação. Nesse sentido,
demandar os seus portos; já os po- o Campeão Português, Amigo do Rei e
derosos monarcas europeus enviam do Povo , de autoria do já citado José
ante o trono, o primeiro ereto, e fir- Liberato de Carvalho, afirmava que Por-
mado na América, embaixadores, en- tugal encontrava-se reduzido “a uma
viados e ministros, a prestar as suas progressiva decadência, sendo obriga-
congratulatórias homenagens, ou a do a constantes sacrifícios, “ora em
tratar de interesses recíprocos dos homens, ora em dinheiro”, que se des-
seus vassalos; [...] já finalmente vi- tinavam ao Brasil. Portanto, os portu-
mos com a maior exultação entrar gueses encontravam-se “sem rei e qua-
na sua capital a filha de um César, se sem pátria”, gemendo em silêncio e
para dar a mão de esposa ao prínci- permanecendo “órfãos”. 35 Atribuía-se,
pe herdeiro do seu imenso, e assim, ao processo de autonomia do
Brasil, consolidado com a sua elevação tuição para Portugal. Do outro, porém,
a Reino Unido, o estado lastimável em permaneciam em vigor as trevas repre-
que se encontravam a economia e as sentadas pelos mecanismos de repres-
finanças em Portugal, que fora duramen- são do Antigo Regime, tais como a cen-
te atingido não só com a transferência sura, a delação e a Inquisição, assim
volumosa e contínua de créditos públi- como subsistia o medo de qualquer
cos e particulares para a Corte do Rio conspiração contra a união sagrada do
de Janeiro, como também com os pe- trono com o altar, o que levava a en-
sados encargos militares e a drástica xergar não só princípios de sedição nos
recessão no comércio luso-brasileiro. mais triviais pretextos, mas igualmente
Além disso, a virtual tutela inglesa so- jacobinos perigosos em quaisquer indi-
bre Portugal e a ausência do soberano víduos de comportamento ou idéias um
abalavam a auto-estima dos portugue- pouco desviantes das normas predomi-
ses. Sinal desse mal-estar, após a acla- nantes. Dessa incongruência, resultou,
mação de d. João VI, o jornal O Portu- no reino, a conspiração de Gomes
guês passou a denominar de “governo Freire de 1817, severamente reprimi-
Tupinambá” a corte no Brasil. da, assim como, na América, mutatis
mutandis , a revolta pernambucana do
No interior de uma mesma cultura polí-
mesmo ano, igualmente sufocada a fer-
tica, bastante homogênea, as alegrias
ro e fogo. Lá, os liberais afrancesados
e os infortúnios de outrora, de um lado
de 1808, não obstante, sobreviveram,
e outro do Atlântico, começavam a en-
acabando por dar origem ao partido que
contrar projetos distintos para traduzir
fez a Regeneração de 1820. Cá, libe-
as diferentes modalidades de apreen-
rais ou não, no Rio de Janeiro, perma-
são do mundo, que se foram desenvol-
neciam satisfeitos com a hegemonia
vendo ao longo desses anos. Em Portu-
alcançada sobre o império como um
gal, no intervalo tumultuado entre a
todo, que lhes permitia viver à sombra
partida da corte, no final de 1807, e a
da corte, que lhes oferecia oportunida-
volta de d. João VI à Europa, em 1821,
des cotidianas e lhes acenava com mai-
a ausência do rei, substituída pela mão
ores benesses no futuro.
forte de uma debilitada regência do rei-
no, trouxe à tona essas tensões. É ver- Esse equilíbrio precário rompeu-se na
dade que, de um lado, indivíduos cada segunda metade de 1820. Em agosto,
vez mais numerosos esperavam que as o movimento liberal do Porto deu início
luzes de um governo esclarecido fossem ao processo de substituição de mitos e
capazes de trazer as ansiadas refor- representações mágicas das monarqui-
mas, como o pequeno grupo de as tradicionais por outras linguagens po-
afrancesados que, em maio de 1808, líticas, herdeiras dos princípios de
tinha levado a Junot uma representa- 1789, em que a palavra constituição
ção, solicitando um projeto de consti- servia de conceito central. No Brasil,
agora desprovido do primeiro rei acla- tensões no seio das elites, que o fascí-
mado na América, o choque propiciado nio da corte encobrira, e o ressurgimen-
pela literatura de circunstância trazida to daquelas contradições entre o Rio de
do reino, e logo reproduzida e alargada Janeiro e as províncias, que somente
aqui, não tardou a revelar a incompati- muito mais tarde encontraram uma so-
bilidade entre as duas principais par- lução, por mais insatisfatória que fos-
tes do império. Ao divórcio de 1822 se. Doravante, Brasil e Portugal haveri-
seguiu-se, porém, o aparecimento de am de percorrer caminhos distintos, ig-
norando-se em geral um ao outro, em-
bora partilhassem, mais do que gosta-
riam de reconhecer, alegrias e infortú-
nios muito semelhantes.
N O T A S
1. Agradecemos a Fabiano Vilaça dos Santos, doutorando da USP, e Ana Carolina Galante,
mestranda da Uerj, a pesquisa e transcrição de diversos documentos que integram este
texto.
2. Jornada do sr. d. João VI ao Brasil, em 1807. Códice original anônimo em PEREIRA,
Ângelo. Os filhos de el-rei d. João VI . Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1946.
p. 114.
3. São inúmeras as descrições sobre os acontecimentos políticos desses últimos momen-
tos da corte portuguesa em Lisboa. Ver, especialmente, OLIVEIRA LIMA, Manuel de. D.
João VI no Brasil [1908]. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. PEREIRA, Ângelo. D.
João VI : o príncipe e o rei: a retirada da família real para o Brasil. v. 1. Lisboa: Empresa
Nacional de Publicidade, 1956. PEREIRA, Ângelo. Os filhos de el-rei D. João VI.
MANCHESTER, Alan K. A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. In:
KEITH, Henry H.; EDWARDS, S. F. Conflito e continuidade na sociedade brasileira . Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 177-217. SCHWARCZ, Lilia M. (com Paulo Cesar
de Azevedo e Angela Marques da Costa). A longa viagem da biblioteca dos reis : do
terremoto de Lisboa à Independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
O´NEIL, Thomas. A viagem da família real portuguesa para o Brasil . Rio de Janeiro: José
Olympio; Secretaria das Culturas, 2007.
4. Das decisões finais, participaram apenas seis dos 18 conselheiros nomeados em 1796:
alguns haviam falecido, como o duque de Lafões, outros estavam em missão no exterior
ou tinham sido afastados do cargo, como é o caso de José de Seabra da Silva. Cf.
MARTINS FILHO, Enéas (org.). O Conselho de Estado português e a transmigração da
família real em 1807 . Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1968. p. 3-4 e, para a citação, p.
70-71.
5. Parecer de d. José Maria de Sousa. In: PEREIRA, Ângelo. D. João VI: a retirada... v. 1. p. 86.
6. ARQUIVO NACIONAL. Rio de Janeiro. Coleção Negócios de Portugal. Caixa 712, pac. 2,
doc. 3. Carta do Marquês de Alorna aconselhando d. João a vir para o Brasil. 30 de maio
de 1801.
7. Parecer de Rodrigo de Souza Coutinho de 16 de agosto de 1803. In: PEREIRA, Ângelo.
op. cit. p. 131. Ver ainda COUTINHO, Rodrigo de Souza. Memória sobre o melhoramento
dos domínios de Sua Majestade na América (1797 ou 1798). In: ____. Textos políticos,
econômicos e financeiros (1783-1811) . Introdução e direção de edição Andrée Mansuy
Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993. p. 47-66.
8. IHGB. Lata 345, doc. 7, s.d. MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudos históricos sobre
Portugal e Brasil.
9. ACÚRSIO DAS NEVES, J. Obras completas de José Acúrsio das Neves : história geral da
invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste reino. Estudos introdutórios
de Antonio Almodovar e Armando de Castro. v. 1. Porto: Afrontamento, 1984. p. 224.
10. IHGB. Lata 345, doc. 7, s.d. MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudos históricos sobre
Portugal e Brasil.
11. BARRETO, José Trazimundo Mascarenhas (dom). Memórias do marquês de Fronteira e
d’Alorna . Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926. p. 30-33.
12. ACÚRSIO DAS NEVES, J. Obras completas de José Acúrsio das Neves : história geral da
invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste reino. Estudos introdutórios
de Antonio Almodovar e Armando de Castro. v. 1. Porto: Afrontamento, 1984.
13. ACÚRSIO DAS NEVES, J. História geral da invasão dos franceses ... v. 1, p. 223. Para
uma visão das semelhanças do ocorrido em Portugal com a Espanha e suas possessões,
ver GUERRA, François-Xavier.. Moder nidad e independencias : ensayos sobre las revoluci-
ones hispánicas. México: Mapfre; Fondo de Cultura Económica, 1993. p 150-156.
14. apud SILVA, Innocencio Francisco da. Memórias para a vida íntima de José Agostinho de
Macedo . Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1898. p. 57-58.
15. Cf., respectivamente, CARVALHO, José Liberato Freire de. Ensaio histórico-político so-
bre a constituição e governo do reino de Portugal . 2. ed. mais correta e aumentada.
Lisboa: Imprensa Nevesiana, 1843, p. 197, e CARVALHO, José Liberato Freire de. Memó-
rias da vida de ... [1855]. Introdução de João Carlos Alvim. 2. ed. Lisboa: Assírio e
Alvim, 1982, p. 36.
16. O Portuguez (1814), apud BOISVERT, Georges. Un pionnier de la propagande libérale au
Portugal : João Bernardo da Rocha Loureiro (1778-1853). Paris: Fundação Calouste
Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1982. p. 70.
17. SOARES FRANCO, Francisco. Exame das causas que alegou o Gabinete de Tulherias para
mandar contra Portugal os exércitos francês e espanhol, em novembro de 1807. Lisboa:
Impressão Régia, 1808, passim, e Reflexões sobre a conduta do príncipe regente de Por-
tugal, revistas e corrigidas por ... Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1808. p. 9.
18. CORREIO BRAZILIENSE ou ARMAZEM LITERÁRIO, Londres, v. 1, n. 1, jun. 1808, p. 57-
65 (citação à p. 61), e n. 4, set. 1808, p. 329-330.
19. J. P. R. de C. Idílio pastoril, sentimental, queixas maviosas e saudades ternas dos pas-
tores do Tejo na ausência dos seus amabilíssimos maiorais . Lisboa: Impressão Régia,
1808. p. 8.
20. LOPES, Joaquim José Pedro. Ode à saída da real família portuguesa para o Brasil . No
dia, eternamente memorável, de 29 de novembro de 1807. Porto: s.d., 1808. p. 3 e 6.
21. GODECHOT, Jacques. Piémont-Sardaigne. In: TULARD, Jean (dir.). Dictionnaire Napoléon .
Nouvelle edition, revue et augmentée. v. 2. Paris: Arthème Fayard, 1999. p. 505.
GODECHOT, Jacques. Naples. In: TULARD, Jean (dir.). op. cit. p. 375-376.
22. ACÚRSIO DAS NEVES, J. História geral da invasão dos franceses ... v. 1. p. 317.
23. IHGB. DL 399, doc. 2. Passagem da senhora d. Maria I, a rainha de Portugal, do príncipe
regente d. João e mais família real pela cidade da Bahia para o Rio de Janeiro. Manuscri-
to anônimo. Agradecemos a gentileza da colega Regina Wanderley ao chamar a atenção
para este documento. A transcrição do original foi realizada por ela.
24. IHGB. Lata 102, pasta 3 [1808]. Súplica da Câmara da cidade da Bahia para se estabele-
cer a corte ali com preferência à cidade do Rio de Janeiro.
Jurandir Malerba
Professor da Unesp. Autor, entre outros,
de A corte no exílio e A Independência brasileira : novas dimensões.
Sobre o Tamanho
da Comitiva
J
á faz mais de uma década que acadêmico, distinguiram essa obra ao
pesquisei sobre a permanência da comentá-la publicamente. Entre meus
família real no Rio de Janeiro, com leitores, tive o privilégio de receber a
vistas à confecção da minha tese de dou- crítica abalizada de profissionais como
torado. Desde que foi publicada, com o Marco Morel, Gilberto Vasconcelos, José
título A corte no exílio , intelectuais de Carlos Barreiro, Iara Lis Souza, Luiz Ge-
nomeada, pertencentes ou não ao meio raldo Silva, Manolo Florentino, Antonio
do e que o Rio de Janeiro teve sua vel acomodar oito, 12, 13, 15 ou 20
Não posso deixar de dizer que conside- Neste momento da leitura, senti-me o
rei curiosa a defesa fiel e intransigente mais logrado dos historiadores – daque-
por Gonçalves da tese de Cavalcanti. Mais les que, por não terem experiência de
ainda porque tive a oportunidade de vê- pesquisa em arquivo, engrossam o nú-
lo reiterá-la em outros momentos, parti- mero dos irresponsáveis que vivem a re-
cularmente em resenhas que fez a obras petir balelas e disparates. É possível
de outros autores. O questionamento da que eu, como Líbano Soares, tenha in-
tese consagrada na historiografia de que corrido no “velho vício acadêmico que
15 mil pessoas acompanharam d. João obriga mestrandos e doutorandos a só
é mais contundente ainda, por exemplo, citar autores consagrados pela cúpula
na resenha que ele faz da obra de Carlos ‘intelectual’”. Só isso poderia explicar
Eugênio Líbano Soares sobre capoei- nossa falha.
ragem escrava no Rio de Janeiro. Depois
Afinal, Cavalcanti prova, com base em
dos elogios, aponta os dois momentos em
documentos do ANRJ e da Biblioteca
que o resenhado pecara ao mencionar o
do Palácio da Ajuda, de Lisboa, que
número fatídico de 15 mil. Afirma que
não passou de 250 o número de pes-
fizera referência ao número sem citar as
soas que embarcaram com o príncipe
fontes porque não haveria qualquer fon-
regente a 29 de novembro de 1807,
te a referendá-lo.
fugindo das tropas napoleônicas. E
que, no decorrer de 1808, chegaram,
É uma balela que vem sendo irres-
no máximo, mais 250. 8
ponsavelmente repetida por muitos
Mas enganam-se aqueles que pensam se
historiadores, inclusive em trabalhos
encerrar aí o círculo dos historiadores de-
recentes. Se o erro é aceitável em
senganados que vivem a papagaiar as
historiadores 'alérgicos' ao pó dos
invencionices e os disparates propalados
arquivos, que preferem quase sem-
pela historiografia. Outros três historiado-
pre repetir o que lêem em obras im-
res ingênuos receberam a crítica
pressas, é inadmissível em Soares,
impiedosa de Adelto Gonçalves, por reite-
decididamente um pesquisador nato .
rar a insana (termo de Gonçalves) tese dos
Se tivesse prestado menos reverên-
15 mil. Em sua contribuição ao livro Via-
cia à brasilianista Mary C. Karasch e
gem incompleta: a experiência brasileira,
consultado mais o seu companhei-
a grande transação, organizado por Carlos
ro de Arquivo Nacional do Rio de Ja-
Guilherme Mota, Nestor Goulart Reis Filho
neiro (ANRJ), Nireu Cavalcanti, ou
lido a sua tese de doutoramento, A [...] passa adiante a balela de que 12
cidade de São Sebastião do Rio de mil portugueses vieram com a famí-
Janeiro : as muralhas, sua gente, os lia real, concluindo que, ‘com suas
construtores, 1710-1810 (Universi- carruagens e outros modos de vida
dade Federal Fluminense), não teria e a intensificação da vida política,
repetido o disparate. 7 contribuíram certamente para mudan-
ças nas formas de uso e vivência das Nireu de Oliveira Cavalcanti! “Segundo
ruas e praças’ (do Rio de Janeiro). 9
o pesquisador, não chegou a 250 o nú-
Há de se convir que não se trata de his- tanto, de obrigação ética dos historiado-
toriadores inexperientes. Em que res a precisão dos fatos. Em segundo lu-
Soriano, Rocha Martins, Pedro Calmon, gar, e mais importante para mim, cabe
Luis Norton, Oliveira Lima, Oliveira discutir essa questão por um imperativo
Martins, Tobias Monteiro, Otávio metodológico: como se produz conheci-
Tarquínio de Sousa, Alan Manchester mento histórico? E mais, quem, como e
embasavam-se para se expor publica- onde se valida esse conhecimento?
mente, ao emitir e reiterar a tese de que
Gonçalves se impressiona com o fato de
a comitiva que acompanhou a família real
que “parte das fontes primárias consul-
girava em torno de 15 mil almas? E to-
tadas por Cavalcanti também está citada
dos nós, posteriores – que não temos no
na bibliografia de Malerba”. Trata-se, é
sangue o dom da perspicácia e somos
claro, do códice 730, Papéis relativos à
alérgicos ao pó dos arquivos e tomados
vinda da família real para o Brasil (Rela-
pelo velho vício acadêmico de citar ape-
ção das pessoas que vieram e das naus
nas “autores consagrados pela cúpula ‘in-
que fizeram o transporte), 24 1808, per-
telectual” –, só fizemos repetir, geração
tencente ao Arquivo Nacional, e da Rela-
após geração, tais “balelas e disparates”.
ção das pessoas que saíram desta cida-
De minha parte, acredito que vale a pena de para o Brasil, em companhia de
aceitar o desafio da crítica e oferecer a S.A.R., no dia 29/11/1807 , do acervo do
réplica. O exercício é válido, sobretudo, Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
em função de dois fatores. Primeiro, por- ro. Como eu disse antes, 25 o códice do
que essa questão, à exceção talvez do Arquivo Nacional é bem menos completo
interesse dos especialistas em história do que a listagem do IHGB. Em todo o
naval, 22
não constitui em si um objeto de códice 730, há apenas dois mapas mais
reflexão. 23
Mas ao senso comum ela soa detalhados. À página 12, encontra-se o
importante. As efemérides do bicentenário “mapa do atual estado do Bergantim de
da transferência da corte vão ensejar S.A.R. o Voador, cuja soma atinge 150
esse tipo de discussão, inclusive nos gran- pessoas”. 26 À página 16, temos o outro
des meios de comunicação. Trata-se, por- “mapa do estado atual da guarnição da
Frente principal do edifício, que faz o centro na rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, 1812.
fragata Minerva, que soma 326 pesso- a Relação das pessoas existente no IHGB
as”. 27
Portanto, um total de 476 pesso- e enumera os nomes lá constantes che-
as, próximo dos 458 migrados levanta- ga a um total de 514 pessoas. Eis o de-
dos por Gonçalves e Cavalcanti. safio metodológico. Acontece que, em
história, dois mais dois nem sempre – a
Na Relação das pessoas , existente no
rigor, quase nunca – somam quatro. A lis-
IHGB, encontramos todos os nomes que
ta, que parece, à primeira vista, exata,
são familiares aos estudiosos do perío-
fornece indicações valiosas, principalmen-
do, os grandes títulos, os serviçais. Ve-
te quando é lacônica. Por exemplo, jun-
mos que embarcaram grandes famílias,
to ao nome do marquês de Vagos, filho,
como a do duque de Cadaval, os mar-
há a indicação “e alguns criados”. Antô-
queses de Vagos, Torres Novas, Anadia,
nio Araújo de Azevedo também veio es-
Angeja, Bellas, os condes de Belmonte,
coltado por “alguns criados”. O mesmo
Caparica, Redondo e Cavalheiros, o mar-
acontece com o marquês de Angeja.
quês do Lavradio. E mais os estadistas
Consta que o conde de Belmonte, sua
da coroa, como d. Rodrigo de Souza
mulher e o conde seu filho vieram acom-
Coutinho, Thomas Antonio Vilanova Por-
panhados por “criados e criadas”. Quem
tugal, d. Fernando José de Portugal. O
visa saber o tamanho da comitiva preci-
círculo estreito da corte certamente con-
sa responder a essas questões: quantos
correu para servir ao rei, como atesta a
eram esses criados? Teriam vindo sós ou
presença de pessoas como Francisco
traziam suas famílias?
Rufino de Souza Lobato, Inácio da Cos-
ta Quintela, José de Oliveira Pinto E por falar nisso, são inúmeras as indi-
Botelho Mosqueira, o físico-mor do rei- cações de pessoas que vieram com suas
no Manoel Vieira da Silva e José Correia “famílias”. A rigor, das 514 que com-
Picanço, primeiro cirurgião da Câmara – põem a Relação , mais de cinqüenta vie-
e mais uma bateria de varredores, re- ram acompanhadas por familiares, en-
posteiros, damas e demais serviçais. E tre elas:
comerciantes famosos, como Joaquim
O conde de Caparica, d. Francisco
José de Siqueira e Manoel Velho da Sil-
de Menezes da Silveira e Castro, com
va, cujos nomes são seguidos da indica-
sua mulher e filhos;
ção “negociantes”. 28 Ombreando esses
O conde de Cavalheiros, sua mulher,
homens e mulheres de alto coturno, ha-
irmão, e família;
via anônimos a servi-los, como Bernardo
José, “homem pardo, criado de varrer”, José Egídio Alves de Almeida, com
que acompanhou a família do duque de sua mulher e família;
Cadaval, ou um tal Miguel José, “preto,
D. Josefa Joaquina Marianna Breco
criado de Francisco de Paula Maggesi”.
da Silveira, viúva do desembargador
Mas não é tanto a qualidade desses no- José Maurício da Gama, com duas
mes o que aqui nos interessa. Quem toma filhas e um filho;
Anna Joaquina, viúva e filhos, assis- Antonio Pedro Fortuna, dito, com a
tente na rua de São Felix; sua família;
José Alvarenga, contramestre da dita autor dessa lista diferenciar que uma pes-
[cozinha], e sua família; soa tenha vindo “com sua família” ou, no
caso de “Thomas Franco, capitão-de-fraga-
José Pedro, cozinheiro, com a sua
ta, com toda a sua família”? Não creio.
família;
Note-se que o autor da lista diferencia “fa-
José Leite, tenente do Regimento de
mílias”, reiteradamente mencionadas, de
Infantaria n o 4, com sua família;
outras ocorrências. Por exemplo, Vicente
José Caetano, fiel dos Portos, com a José, contramestre dos navios, veio acom-
sua família; panhado “com sua mulher e filhos”, assim
família;
gada da Marinha, “com sua mulher e fi-
lhos”, o mesmo sendo válido para o conde
Manoel Simões, cozinheiro com a sua
de Caparica. Quer isso dizer que “mulher
família;
e filhos” não são sinônimos de “família”?
Antonio Faustino Lamprea, com a sua Para além dessa distinção, na listagem dis-
família; crimina-se ainda quando os acompanhan-
Thomas Franco, capitão-de-fragata, tes são apenas “irmãos”, “suas tias”, “sua
vamente cadastradas. Sobre este último serem muito caras no presente”. Roga
ponto, posso indicar pelo menos quatro que tenha seu pago equiparado ao do
indícios, encontrados ao acaso. maestro Marcos Antonio Portugal, que
o suplicante agora requer, devia pre- do de que subsistir pede a V.A.R. a mercê
tender quando o referido padre pe- de lhe mandar contribuir uma pensão.”36
diu a aposentadoria, para ele, ou as
Esse documento data de 5 de setembro
pagar adiantadas por seis meses se-
de 1808, seis meses após o desembar-
gundo a lei, ou apresentar o título
que da família real. Embora conste que
pelo qual mostrou-se que a renda
o marquês de Angeja se fez acompanhar
havia ser paga pela Real Fazenda. 33
de criados, o nome de Antonio José Nunes
Ora, os nomes de Antonio Abrantes e também não consta da Relação .
João Mazzoni constam entre os oito pa-
A questão que aqui se impõe é: quantos
dres e freis listados na Relação das pes-
mais acompanharam a família real na
soas que saíram desta cidade para o Bra-
fuga de Lisboa para o Rio de Janeiro e
sil , mas o solicitante padre José de Sousa
não se encontram contabilizados nos re-
Carvalho, que também acompanhou o
gistros oficiais?
príncipe regente na travessia atlântica,
não consta ali! 34 Por fim, merecem atenção as conjeturas
de Kenneth Light, especialista em histó-
Por fim, em quarto lugar e como mais um
ria naval. Light pondera que, no número
exemplo das práticas de solicitação de
de 15 mil pessoas aceito pela historio-
graças e da generosidade do soberano,
grafia, estariam incluídas as guarnições da
encontrei no fundo da Casa Real e Impe-
esquadra naval; mesmo se estas estives-
rial do Arquivo Nacional um pedido de
sem incompletas, acredita ele, aquele
graça de um pintor, que explica seu me-
número nunca seria inferior a seis mil
recimento nestes termos:
pessoas. Quanto ao número de embarca-
Antonio José Nunes, pintor pensio- ções, concorda que não se pode ter cer-
nado por S. A. R., e discípulo do pri- teza. O livro de quartos da nau capitânia
meiro pintor da Câmara e Corte, Do- “Hibernia” reportava, a 29 de novembro
mingos Antonio de Siqueira, teve a de 1807, que 56 navios estavam à vista:
honra de acompanhar a S.A. para esta 16 da esquadra portuguesa, nove do es-
cidade do Rio de janeiro, vindo na quadrão britânico e, por conseguinte, 31
nau Príncipe Real, e em companhia navios mercantes.37
do ilustríssimo e excelentíssimo mar-
Em suma, a resposta para a questão do
quês de Angeja , e desde que chegou
tamanho da comitiva da família real que
tem estado empregado com obras que
aportou no Rio de Janeiro em 1808 não
S.A.R. lhe imcumbiu [...]. 35
pode ser reduzida a uma mera discus-
Há uma minuta escrita pelo visconde de são algébrica. Tanto é assim que os his-
Rio Seco que resume tudo isso, nesse teor: toriadores se deparam com ela há qua-
“Antonio Jose Nunes, pintor pensionado e se duzentos anos. Porém, a matemática
empregado no Real Serviço de V.A., teve a dos historiadores, que não pode ser tão
honra de acompanhar a V.A.R. E não ten- exata quanto a dos engenheiros, arqui-
tetos e jornalistas, reclama de nós o nos falta conhecer jaz perdida no silên-
respeito pelos que nos precederam e nos cio dos arquivos. Porém, independente-
autoriza a aceitar como plausíveis as ava- mente da precisão, a história do perío-
liações de que, com a família real, veio do joanino veio se escrevendo sempre,
uma comitiva cuja dimensão pode osci- e cada vez melhor, desde o século XIX.
lar entre seis e 15 mil pessoas. Esse é Acredito que assim continuará, antes que
um dado realmente fundamental para algum iluminado encontre o documento
quem entende que os historiadores al- perdido que resolveria de uma vez por
mejam contar a história “tal como acon- todas a questão do tamanho da comiti-
teceu”, à moda dos preciosismos dos va. Se é que ele existe. Enquanto isso,
antiquários, para quem a história que a história segue.
N O T A S
1. Cf. SOUZA, Iara Lis Carvalho. O rei na América. Espaço Plural , Centro de Estudos, Pes-
quisas e Documentação da América Latina (Cepedal), ano III, n. 7, 2001. p. 32. BARREIRO,
José Carlos. Para além de uma história das elites. Espaço Plural , ano III, n. 7, 2001. p.
31. SILVA, Luiz Geraldo. O espetáculo da monarquia. Espaço Plural , ano III, n. 7, 2001.
p. 1; p. 30. VASCONCELOS, Gilberto. Começo tropical do teatro da política. Folha de
São Paulo, São Paulo, 13 nov. 2000. ALMEIDA PRADO, Antônio Lázaro. Saber contar a
história. Voz da Terra , Assis, 27 dez. 2000. PIRES, Pablo. Revoluções da corte. O tempo ,
Belo Horizonte, 4 nov. 2000. Cader no Magazine. SARAIVA, Renata. O espetáculo da
realeza no Rio de Janeiro do século XIX. Valor , Rio de Janeiro, 23 out. 2000. PISA,
Daniel. Dores e charmes de uma nação entre dois mundos. O Estado de São Paulo, São
Paulo, 7 jan. 2001. Caderno 2. MACAULAY, Neill. A corte no exílio. Hispanic American
Historical Review , ano 85, v. 1, p. 138-139, 2005. Resenha.
2. MOREL, Marco. Civilizados e radicais no século XIX. Jornal do Brasil , Rio de Janeiro, 9
dez. 2000. Caderno Idéias. p. 5.
3. ibidem.
4. GONÇALVES, Adelto. A boa vida da corte no Rio de Janeiro. Jornal da Tarde , Rio de
Janeiro, 21 out. 2001. Caderno de sábado. p. 20.
5. ibidem.
6. ibidem. Grifo meu.
7. GONÇALVES, Adelto. Capoeiragem: rebeldia e habilidade negra no Rio. Resenha a
SOARES, Carlos Eugenio Líbano A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no
R i o d e J a n e i r o ( 1 8 0 8 - 1 8 5 0 ) . C a m p i n a s : E d . d a U N I C A M P, 2 0 0 1 b . D i s p o n í v e l e m :
<http://www.unicamp.br/cecult/resenhas_vh/resenha_capoeira1.pdf>. Acesso em: 9
fev. 2007. Grifos meus.
8. ibidem. Grifo meu.
9. REIS FILHO, Nestor Goulart. Urbanização e modernidade entre passado e futuro: (1808-
1945). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta : a experiência brasileira, a
grande transação. São Paulo: Ed. Senac, 2000. p. 83-117. passim.
10. CERVO, Amado Luiz. Depois das caravelas : as relações de Portugal e o Brasil (1808-
2000). Lisboa: Instituto Camões, 2000. passim.
11. GONÇALVES, Adelto. Invencionices e disparates. Disponível em: <http://blog. comunidades.
net/adelto/index.php?op=arquivo&pagina=100&mmes=07&anon=2005>. Acesso em: 24 set.
2007. Grifo meu.
12. ibidem.
13. GONÇALVES, Adelto. D. João revisitado. Disponível em: <http://blog.comunidades.net/
adelto/index.php?op=arquivo&idtopico=226711>. Acesso em: 1 abr. 2008. Texto de 9
de fevereiro de 2008.
14. SORIANO, Simão José da Luz. História de el-rei d. João VI primeiro rei constitucional de
Portugal e do Brasil em que se referem os principais atos e ocorrências do seu governo
bem como algumas particularidades de sua vida privada. Lisboa: Universal, 1866. p. 59.
15. MARTINS, Rocha. A corte de Junot em Portugal. Lisboa: Gomes de Carvalho, 1910. p.
16. BRANCO, Pandiá H. de T. Castello. A corte portuguesa no Brasil. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 1, p. 417-436, 1914. Particularmente, p. 425.
17. NORTON, Luís. A corte de Portugal no Brasil. 2. ed . São Paulo: Companhia Editora Naci-
onal, 1979. p. 14.
18. CALMON, Pedro. História do Brasil. v. 4: O império 1800-1889. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1947. p. 25. Grifo meu.
19. Calmon refere-se a BIANCARDI, José Theodoro. Cartas americanas, publicadas por ...
Lisboa: Alcobia, 1820. Em obra anterior, a biografia de d. João VI, Calmon já apresenta-
va aqueles números, com uma colorida descrição do embarque: “[Napoleão] Calculara
reunir em Bayona os reis da península num desterro comum – e eis que um deles, o mais
astuto, se metia nos seus barcos, com quinze mil pessoas [...] e abalava para ultramar
mudando de nação!”. Cf. CALMON, Pedro. O rei do Brasil : vida de d. João VI. 2. ed.
aum. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943. p. 109.
20. Tobias Monteiro refere-se à obra de BOUCHOT, August. Histoire du Portugal et ses colonies .
Paris: Hachette, 1854. As Cortes mandavam imprimir as cartas trocadas entre d. Pedro e
d. João e distribuí-las avulsamente para os deputados. Eugène de Monglave traduziu-as
para francês e publicou-as em Paris, em 1827. Cf. MAR TINS, J. P. Oliveira. História de
Portugal . 3. ed. emendada. Lisboa: Viúva Bertrand, 1882. (A primeira edição é de 1879.)
Tobias Monteiro refere-se às memórias de Laure Permont, mulher do general Junot, pri-
meiro duque de Abranches. Cf. ABRANTES, Laure Junot, duchesse d’. Mémoires de mme.
la duchesse d’Abrantès, ou souvenirs historiques sur Napoléon, la Révolution, le
Directoire, le Consulat, l’Empire et la Restauration. Paris: Ladvocat, 1831-1835. Tam-
bém LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil (1808-1821). v. 3. 2. ed. Rio de
Janeiro: José Olímpio, 1945; MONTEIRO, Tobias. História do império. v. 1: A elaboração
da independência. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p. 66-67. Otávio Tarquínio de Sousa
não oferece um montante, um total de pessoas que teriam embarcado com a família,
mesmo aproximadamente, mas atenta à qualidade da comitiva, depois de referir-se à
polêmica historiográfica em torno da composição da frota – o que, de resto, até hoje
não se resolveu categoricamente! Cf. SOUSA, Otávio Tarquínio de. A vida de d. Pedro I .
São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. p. 54 ss.
21. MANCHESTER, Alan. A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. In: HENRY,
H. Keith; EDWARDS, S. F. Conflito e continuidade na sociedade brasileira. Tradução de
José Lourenço de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 177-217. O tre-
cho citado encontra-se na página 183.
22. Vale a pena destacar o trabalho de Kenneth Light, que, em correspondência com o
autor, pondera que as oito naus de linha, quatro fragatas, uma corveta, dois brigues e
uma charrua trouxeram pouco mais de seis mil pessoas ao Brasil na viagem da família
real em 1808. Cf. LIGHT, Kenneth. A viagem da família real para o Brasil (1807-1808).
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , Rio de Janeiro, ano 158, n. 397,
p. 1035-1044, out.-dez. 1997. LIGHT, Kenneth. Carta para Jurandir Malerba . Rio de
Janeiro, 15/01/2003.
23. A tese que eu defendo em A Corte no exílio prescinde desse dado. Importa mais, para
sustentá-la, que a população do Rio de Janeiro praticamente dobrou durante os 13 anos
em que a família real permaneceu no Brasil, embora esse número também não seja
consensual. Não há censos precisos para a população do período. Louis de Freycinet
estima a população fluminense em 60 mil almas em 1808; aproximadamente 130 mil, dez
Recebido em 03/10/2007
Aprovado em 28/10/2007
Kirsten Schultz
The Cooper Union for the Advancement of Science and Art, Nova York, NY
A Crise do Império
e a Questão da Escravidão
Portugal e Brasil, c.1700 - c.1820
Este artigo apresenta uma visão geral dos This article provides an overview of debates
debates acerca do império português e da on empire and slavery in the late eighteenth
escravidão em fins do século XVIII e início do and early nineteenth centuries in the
XIX. Mereceram atenção especial o modo pelo Portuguese empire. Particular attention is
qual as invasões napoleônicas em Portugal e a paid to the ways in which the Napoleonic
transferência da corte para o Rio de Janeiro renovaram invasion of Portugal and the transfer of the court
as discussões sobre a instituição da escravidão, e a to Rio de Janeiro renewed debates on the
preocupação, articulada pelas autoridades reais e institution of slavery and to the concerns,
pela Intendência de Polícia da Corte, em definir o articulated by royal officials and Rio’s police
caráter da escravidão na nova corte. intendant, with defining the features of slavery
Palavras-chave : escravidão; império português; within the new royal court.
Intendência de Polícia; Rio de Janeiro; Keywords: slavery; Portuguese empire; police
metropolização. intendancy; Rio de Janeiro; metropolitanization.
A
invasão napoleônica da penín- império na Ásia entrava em de-clínio, en-
sula Ibérica em 1807-1808 quanto o Brasil emergia como uma pos-
representou um clímax dramá- sessão rica não apenas em recursos agrí-
tico para a crise imperial pela qual Por- colas, mas também minerais, extraídos
tugal vinha passando desde o século para benefício da metrópole. Embora a
XVIII. No final do século XVII, o lendário economia do império prosperasse, sua vi-
E
que o conselheiro do rei Rodrigues da
m Portugal e no seu império, o
Costa descreveu, em 1732, como uma
século XVIII foi uma época de
distribuição desigual dos bens econômi-
reformas. Os conflitos militares
cos e políticos. Em contraste com o po-
portugueses com os holandeses haviam
tencial aparente do Brasil, Portugal era
passado, assim como as incertezas
um país pequeno, geopoliticamente frá-
advindas com a Restauração que pôs fim
gil frente ao resto da Europa. À medida
à União Ibérica. Os funcionários da Co-
que a emigração diminuía ainda mais a
roa portuguesa poderiam voltar sua aten-
população portuguesa, a perspectiva de
ção para as circunstâncias econômicas e
se encontrar riquezas no Brasil ameaça-
políticas do reino e suas possessões ul-
va exacerbar o desequilíbrio, exaurindo
tramarinas. De acordo com eles, tais cir-
a lógica do império. Como especulou
cunstâncias muito exigiriam da Coroa: o
Rodrigues da Costa, “a maior parte e a
Estado da Índia sofrera perdas irrepa-
mais rica não sofrerá ser dominada pela
ráveis, tanto para rivais europeus como
menor, mais pobre”. 1 Em novembro de
para a resistência local.2 Os conseqüen-
1807, a Coroa decidiu mudar a corte
tes prejuízos comerciais traziam também
para o Brasil, o que aparentemente re-
uma diminuição de prestígio. Na Europa,
solveria o dilema. A partir da sua nova
a difícil situação de Portugal manifesta-
moradia, no Rio de Janeiro, súditos por-
va-se no Tratado de Methuen, de 1703,
tugueses proclamavam que a mudança
segundo o qual a Inglaterra controlaria o
para o Brasil salvara a monarquia portu-
setor de produção de vinho do Porto –
guesa tanto da ameaça de Napoleão,
um arranjo que, de acordo com Duc de
quanto do que um conselheiro descrevia
Choiseul, ministro de Luís XV, significava
como os “excessos” da Revolução Fran-
que “Portugal deveria ser visto como uma
cesa, revelando o Brasil como o lugar
colônia inglesa”.3
certo para a conquista da glória imperial
que a monarquia portuguesa vira recusa- Mas as bases do prestígio português não
Brasil deixara de ser colônia, como cer- ca aumentava. No último quartel do sé-
tos homens de Estado começaram a ar- culo XVII, a busca por depósitos mine-
Africanos de Benguela e Angola, Johann Moritz Rugendas, Voyage pittoresque dans le Brésil, 1835
servindo-o com um zelo mínimo; e o mi- gumentavam que abandonar uma alian-
neiro, por sua vez, retaliou, tentando ça histórica com a Inglaterra daria aos
“vendê-lo para o Brasil, só para que lá britânicos, donos de uma força naval su-
com rigoroso castigo acabasse a vida”. perior, uma oportunidade para se apos-
Essa possibilidade levou o escravo a ape- sar de territórios portugueses na Améri-
lar para sua irmandade local, cujos privi- ca. O príncipe regente d. João optou pela
légios impediam tal venda. 24
Essa troca aliança com os ingleses, acompanhada de
sugere que, embora para os homens de sua partida do reino para evitar a pró-
Estado a noção do potencial brasileiro pria captura, deixando o governo nas
contrabalançasse a fragilidade de Portu- mãos de uma regência.25 Uma vez no Bra-
gal em meio às outras nações, o império sil, membros da corte portuguesa procu-
oitocentista também se definia pelas di- ravam responder ao desafio francês.
ferenças que continha. O Brasil era uma Como argumentava José da Silva Lisboa,
colônia porque, como argumentava economista político e homem de Estado,
Azeredo Coutinho, sua agricultura susten- na América a corte portuguesa poderia
tava a economia metropolitana. E seu “erguer fronte altiva, para se fazer res-
aspecto era colonial porque marcado peitar das nações amigas, e suplantar
pela brutalidade exigida para sustentar assaltos de inveja e malignidade de quais-
um regime escravista em expansão, e quer perturbadores públicos”.26
para disciplinar uma população que era
A despeito dessa retórica, a presença do
tão africana quanto européia. As contra-
monarca e da corte real em solo ameri-
dições apresentadas pela civilidade eu-
cano levantou questões imediatas acer-
ropéia em relação à rigidez colonial en-
ca do status do Brasil e da configuração
contrariam sua exposição máxima no
política do império. De fato, passava a
Brasil, quando o império de Portugal se
ser “absurdo”, como explicava Silva Lis-
defrontou com o desafio napoleônico.
boa, “considerar colônia a terra de resi-
dência do soberano”. 27 Outro expatriado
E SCRAVIDÃO E METROPOLIZAÇÃO
Q
português explicava que, com a transfe-
uando Napoleão anunciou seus rência da corte, “se mudou a política da
objetivos imperiais para a pe- Europa e talvez do universo”: a presença
nínsula Ibérica, exigindo ade- de d. João emprestava um certo “tom ao
são ao bloqueio continental imposto à Novo Mundo e fez desaparecer o nome
Inglaterra, os esforços realizados pelos de colônia”. 28 Quando, em 1815, a Co-
portugueses para manter a política de roa elevou o Brasil à condição de “rei-
neutralidade ruíram. A partir daquele no”, o evento foi comemorado localmen-
momento, uma escolha teria de ser fei- te com a invocação de metáforas secula-
ta: capitular diante de Napoleão ou apoi- res acerca do triunfo da civilização euro-
ar os ingleses. Embora o governo portu- péia sobre a selvageria indígena. A “anti-
guês percebesse que seu império corre- ga nudez” da América, escreveu um cro-
ria risco em ambos os casos, muitos ar-
nista no Rio, cobria-se agora com a “co- imoralidade que supostamente permeava
roa brilhante” e “o real manto de púrpu- as sociedades escravistas. Um exilado
ra” do próprio monarca português. 29
alegava que o Brasil era uma “Babilônia
moderna”, onde a escravidão corrompia
Livrar-se do nome “colônia”, contudo, não
tanto escravos quanto seus donos. 31 Um
significou automaticamente o fim das prá-
trabalho sobre educação explicava que
ticas e realidades coloniais. A instituição
as crianças portuguesas criadas por es-
da escravidão, em particular, contradizia
cravos e vivendo no meio deles sofriam
francamente a metropolização do Brasil,
uma confusão destrutiva de hierarquias
o que a colocava sob escrutínio renova-
sociais e aprendiam uma fusão entre as
do. Tanto Salvador, onde d. João desem-
línguas africana e portuguesa. 32 Em um
barcou, quanto a capital Rio de Janeiro
tratado sobre o clima local, o estudioso
eram cidades em que a população escra-
português Manuel Vieira da Silva denun-
va era abundante. 30 Os exilados de Por-
ciava o que ele chamava de promiscuida-
tugal reagiam à população do seu novo
de e falta de higiene produzidas pela in-
local de moradia repetindo as lamen-
trodução de africanos recém-chegados
tações comuns no século XVIII sobre a
nos lares dos residentes das cidades. O
trabalho era tão barato, ele alegava, que adotavam a prática de comprar escravos
a maioria dos moradores sucumbira a “uma com o objetivo de alugá-los como traba-
vida ociosa” e de vícios. 33
lhadores em obras públicas. Embora a
prática de alugar escravos fosse aparen-
Entretanto, essas reclamações não impe-
temente legal, de acordo com o
diram a continuação do uso do trabalho
intendente de polícia, o “desejo de tirar
escravo na cidade. Ao contrário:
logo lucro deles [escravos recém-chega-
concomitantemente à crescente utiliza-
dos]” resultava que menos atenção era
ção dos escravos na agricultura no inte-
dada à sua disciplina e à inculcação de
rior do estado do Rio de Janeiro, a de-
moralidade religiosa.
manda por serviços e trabalhadores pes-
soais para a cidade, cujos portos agora A recém-criada instituição da Intendên-
se encontravam abertos, levou ao aumen- cia de Polícia assumiu a tarefa de polici-
to da população escrava em geral no Rio ar a prática da escravidão que, como os
de Janeiro, na década de 1810. De acor- cronistas e funcionários de fins do sécu-
do com o intendente de polícia da Corte, lo XVIII registraram, era fonte de desor-
ao longo da década que se seguiu à ins- dem bem antes da chegada de d. João.
talação da família real, a população do- Muito da atividade da intendência envol-
brou, chegando a oitenta mil, mas o au- via prender e (como admitiu em um ofí-
mento do número de escravos na cidade cio o intendente de polícia) atormentar
deu-se numa proporção pelo menos duas escravos. As razões dadas para as de-
vezes maior do que a de exilados e imi- tenções oficiais variavam de roubo, per-
grantes europeus. Como relatou o turbação da ordem e posse de armas,
intendente, os exilados logo adquiriram até agressão e homicídio; as punições
escravos “ao modo do país, por haver incluíam chibatadas, trabalhos forçados,
dificuldade de achar brancos, como em ou ambos. Embora essas ações policiais
Portugal, por os seus serviços”. 34 O ar- pretendessem apoiar os proprietários de
quivista real, Luís Marrocos, que recla- escravos, elas também permitiam que a
mava que a vida no Brasil era como uma intendência, em nome da Coroa, definis-
penalidade, contou, alarmado, como os se os aspectos da escravidão na cidade.
escravos “freqüentemente” assassina- De fato, o intendente esforçou-se por
vam, envenenavam, estupravam seus reformar ou restringir algumas das práti-
mestres. Ele endossava o uso do “terror” cas da escravidão que se afiguravam ina-
contra os escravos, nos processos de dis- dequadas ao novo status de corte da ci-
ciplina e punição, embora admitisse os dade. Ele considerava os padrões de hi-
benefícios da propriedade de escravos: giene no mercado e no cemitério de es-
“o meu preto é muito manso”, escrevia cravos no mínimo deficientes, além de
ele, satisfeito, ao seu pai, em 1811, “e caracterizar a prática de chibatadas pú-
tem-me muito respeito”. 35
Exilados, inclu- blicas como “verdadeiramente indecen-
indo membros da corte real, também te dentro de uma Corte”. 36 Essas tentati-
escravas – de que, uma vez que a escra- dência, José Bonifácio de Andrada e Sil-
vidão tinha sido abolida na antiga metró- va afirmava que a escravidão traía a
pole, naturalmente seria erradicada na moralidade cristã, e rejeitava o apelo
nova – era percebida por membros influ- feito por alguns defensores da escravi-
entes da elite luso-brasileira. Seguindo- dão ao “bárbaro direito público das anti-
se à transferência da corte, tanto em ofí- gas nações”.46 Para Silva Lisboa, econo-
cios e correspondência, quanto em tra- mista político que escreveu na metade da
balhos publicados, intelectuais do Esta- década 1810, a violação da “razão natu-
do começaram a renovar a análise críti- ral” perpetrada pela escravidão era sim-
ca a que a instituição resistira durante o plesmente indesculpável: alegar que a
século XVIII. 44
Eles o fizeram em meio a escravidão trazia os africanos para o cris-
desafios crescentes enfrentados pela es- tianismo não passava de “pretexto”.47
cravidão em todo o mundo atlântico: o
Juntamente com referências repetidas
fim violento da escravidão no Haiti, o
aos “horrores” e problemas morais da
encerramento das atividades de comér-
escravidão, esses críticos explicitavam
cio de escravos no império britânico, o
a incompatibilidade entre escravidão e
fim da importação de escravos nos Esta-
vitalidade e desenvolvimento econômi-
dos Unidos e a restrição ao comércio de
cos, vistos como fundamentais depois da
escravos ao sul do Equador, negociada
abertura dos portos brasileiros ao co-
no Congresso de Viena. Apesar da resis-
mércio com outras nações. De acordo
tência aos esforços das forças britânicas
com Maciel da Costa, a escravidão fazia
no sentido de interromper o tráfico ao
parte de um sistema colonial antigo que,
sul do Equador, os próprios portugueses
ao forjar uma economia quase exclusi-
chegavam à conclusão de que no longo
vamente agrícola, produzia dependência
prazo a escravidão não tinha mais futuro
e, portanto, vulnerabilidade, em relação
no Brasil. Como escreveu Maciel da Cos-
às demandas externas. Segundo ele, a
ta, funcionário real, em 1821, a “intro-
“ciência econômica” havia provado a
dução dos escravos africanos” e a manu-
necessidade de se incentivar a ativida-
tenção “indefinida” da escravidão se opu-
de industrial, assim como o comércio e
nham à “prosperidade e segurança” do
a agricultura. 48 As conseqüências econô-
Estado.45
A
micas negativas da escravidão também
s críticas à escravidão no sé- incluíam o cultivo de uma disposição à
culo XIX argumentavam, assim indolência entre a população como um
como os textos cristãos do todo. Andrada e Silva alegava, além dis-
século XVIII, que essa instituição era in- so, que a escravidão criava uma classe
justa. A prática da escravidão “ofende os de proprietários de terra mais compro-
direitos da humanidade”, acusava Maciel metida com o luxo do que com a “perfei-
da Costa. Dirigindo-se à Assembléia ção” da agricultura e da indústria por
Constituinte de 1823, depois da Indepen- meio da inovação científica. 49
Além dos aspectos econômico e moral, vidão. Um homem não pode ser “objeto
as críticas à escravidão do início do sé- de propriedade”, já que ele não é uma
culo XIX também se referiam aos pro- coisa. Um sistema político e social fun-
blemas políticos e sociológicos produzi- damentado numa contradição filosófica
dos por essa instituição. De acordo com desse naipe era, continuava ele, “um
o ministro exilado português Vila Nova edifício fundado em areia solta, que a
Portugal, a escravidão privara o Brasil mais pequena borrasca abate e desmo-
de um “povo” porque os escravos e seus rona”. Em suma, a escravidão era fonte
descendentes eram incapazes de parti- de desordem potencialmente catastrófi-
lhar o “espírito nacional”. 50
De modo si- ca e de corrupção. O comércio de es-
milar, Silva Lisboa alegava que o Brasil cravos, “este comércio de carne huma-
precisava de uma população “natural, na”, era, declarava ele com uma poten-
cordata, e legítima”, em vez de uma que te metáfora, “um cancro que rói as en-
fosse “estrangeira, bárbara, e tranhas do Brasil.” 53
abusiva”. 51 Também para Maciel da Cos-
Mais especificamente, aquilo que os crí-
ta, o “vício radical” da escravidão corroía
ticos do início do século XIX viam como a
a noção de comunidade política. O status
dimensão cultural da escravidão levou-os
jurídico peculiar dos escravos contradi-
a duvidar de que uma nacionalidade unifi-
zia o ideal de uma “verdadeira popula-
cada poderia ser forjada antes do fim da
ção”, que, ele explicava, jamais poderia
instituição. Como explicava Andrada e
consistir de um povo “sem pessoa civil,
Silva, interesses imperiais desejavam
sem propriedade, sem interesses, nem
que o brasileiro fosse “um povo mescla-
relações sociais”. Os escravos, insistia
do e heterogêneo, sem nacionalidade, e
ele, eram “desligados de todo vínculo
sem irmandade, para melhor nos escra-
social e, por conseqüência, perigosos”:
vizar”. 54 A “multiplicação indefinida de
eles eram “conduzidos unicamente pelo
uma população heterogênea, desligada de
medo do castigo e, por sua mesma con-
todo vínculo social”, colocava um “risco
dição, inimigos dos brancos”. 5 2 Para
iminente e inevitável” para o Brasil por-
Andrada e Silva, a corrupção que a es-
que, de acordo com Maciel da Costa, pro-
cravidão trazia para a política residia no
duzia um grupo de pessoas “inimigas da
recurso perverso aos direitos de propri-
classe livre”. Embora Maciel da Costa
edade. Considerando que a propriedade
alegasse que insurreições radicais como
“foi sancionada para bem de todos, qual
a haitiana representavam uma ameaça
o bem”, ele indagava, “obtém o escravo
menor do que os esforços estrangeiros
de perder todos os seus direitos natu-
de fomentar a rebelião entre os escra-
rais” e passar por uma transformação
vos brasileiros, ele também alertava que
de “pessoa a cousa”? A resposta não
se o Brasil “sucumbiu[sse]”, como ocor-
formulada a esta pergunta é que era o
rera em Santo Domingo, significaria a
“direito da força”, e não o “direito da
“África transplantada para o Brasil”. 55
propriedade” a estar em jogo na escra-
N O T A S
1. Antônio Rodrigues da Costa apud SOUZA, Laura de Mello e BICALHO, Maria Fernanda
Baptista. 1680-1720: O império deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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3. Citado em MAXWELL, Kenneth. Pombal, paradox of the enlightenment. Cambridge:
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4. Caetano de Brito e Figueiredo, Canção. In: CASTELLO, José Aderaldo de. O movimento
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10. MONTEIRO, Rodrigo. O rei no espelho : a monarquia portuguesa e a colonização da Amé-
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MAXWELL, Kenneth R. The generation of the 1790s and the idea of Luso-Brazilian empire.
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14. VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII [Recopilação de notícias soteropolitanas
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15. LAVRADIO, Luís de Almeida Portugal, Marquês de, op cit., p. 423-424, 430; VILHENA, L.
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17. BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1700) . São Pau-
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19. ROCHA, Manuel Ribeiro Rocha. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido,
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dialogo entre hum letrado, e hum mineiro. Lisboa: Na Oficina de Francisco Borges de Sousa,
1764. Facsimile em Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira , v. 8, n. 4, 1967.
21. ibidem. p. 2-4, 7.
22. COUTINHO, José Joaquim da Cunha Azeredo. Analyse sobre a justiça do commercio do
resgate dos escravos da costa da Africa (1798). Lisboa: Na Nova Oficina de João Rodrigues
Neves, 1808. p. 73-74. O texto original em francês foi publicado em Londres, em 1798;
e em inglês, em 1807.
23. A articulação mais rigorosa dessa idéia encontra-se em MAXWELL, K. The Generation of
the 1790s...
46. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Representação à Assembléia Geral Constituinte e
Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura. In: Escritos Políticos. São Paulo:
Ed. Obelisco, 1964. p. 51.
47. LISBOA, José da Silva op cit. p. 161, 165-66.
48. COSTA, J. S. M. op cit. p. 24-26.
49. ANDRADA E SILVA, J. B., op. cit.; LISBOA, José da S., op. cit. p. 163, 165-69; COSTA,
J. S. M. op cit. p. 23-24.
50. PORTUGAL, Tomás António de Vilanova. Sobre a questão da escravatura, n.d. [1814].
Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, MS I-32, 14, 22.
51. LISBOA, José da S. op cit. p. 163-64.
52. COSTA, J. S. M. op cit. p. 20-21.
53. ANDRADA E SILVA, J. B. op cit. p. 57-58.
54. ibidem. p. 48.
55. COSTA, J. S. M. da op cit. p. 13, 21-22. Os textos brasileiros contra a escravidão,
observa Celia Maria Marinho de Azevedo, defendiam uma percepção das divisões sociais
criadas pela escravidão em referência ao Espírito das leis, de Montesquieu. Ver AZEVE-
DO, Celia Maria Marinho de. Abolitionism in the United States and Brazil : a comparative
perspective. New York: Garland, 1995. p. 10.
56. COSTA, J. S. M. op cit. p. 20-23; LISBOA, José da S., op cit., p. 163-64; LISBOA, José
da S., Observações sobre a franqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no
Brasil (1810). In: ROCHA, Antonio Penalves (org.). José da Silva Lisboa, Visconde de
Cairu . São Paulo: Editora 34, 2001. p. 221.
57. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio, op cit., p. 49; LISBOA, José da S. Memória.... , op.
cit. p. 171; COSTA, J. S. M. op cit. p. 27.
58. SCHULTZ, K. op cit. p. 208-9.
59. COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense v. 24 (1822). In: LIMA SOBRINHO, Barbosa
(org.). Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra e Insti-
tuto Nacional do Livro, 1977. p. 606.
60. COSTA, J. S. M. op cit. p. 15; LISBOA, José da S. op cit. p. 164.
61. Deputado Montezuma, 23 de setembro de 1823, Diário da Assembléia Geral, Constituin-
te, e Legislativa do Império do Brasil , v. 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1823. p.
90. Sobre a fragilidade relativa das justificativas para a escravidão no século XIX, ver
WEINSTEIN, Barbara. The decline of the progressive planter and the rise of subaltern
agency: shifting narratives of slave emancipation in Brazil. In: JOSEPH, Gilbert (ed.).
Reclaiming the political in Latin American history : essays from the North. Durham, NC:
Duke University Press, 2001. p. 86-89.
62. TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brasileiro (1839). São Paulo: Companhia
das Letras, 2001. p. 50.
Recebido em 25/05/2007
Aprovado em 10/06/2007
Roberto Conduru
Professor adjunto de História e Teoria da Arte na Uerj, com atuação
nos Programas de Pós-Graduação em Artes e Educação. Membro do Comitê
Brasileiro de História da Arte, pró-cientista Faperj/Uerj e pesquisador do CNPq.
O Cativeiro na Arte
Representações oitocentistas
do comércio de escravos no Brasil
Analisando obras produzidas por The text focus on works which figures
Auguste François Biard, Jean-Baptiste slave commerce made by Auguste
Debret, Johann Moritz Rugendas, Paul François Biard, Jean-Baptiste Debret,
Harro-Harring, Thomas Ender, W. Read Johann Moritz Rugendas, Paul
e outros, no século XIX, que representam a Harro-Harring, Thomas Ender, W. Read and
comercialização de escravos, é possível refletir others, in the XIX century, to think the social
sobre alguns aspectos da condição social dos condition of Africans and Afro-descendents
africanos e afro-descendentes que foram as slaves in Brazil, the means of icono-
escravizados no Brasil, das práticas e meios de graphic representation, as well as art in that
representação, bem como da arte nessa conjuntura. social situation.
Palavras-chave: escravidão; mercado de negros; Keywords: slavery; slave market; Afro-brazility;
afro-brasilidade; arte no Brasil. Brazilian art.
C
mais percorrido por portugueses e estran-
om a vinda da corte portuguesa geiros, independentes ou participantes de
para a América do Sul, o esta- missões científicas e artísticas. Além de
belecimento da capital do impé- aumentar a produção e a difusão de co-
rio português no Rio de Janeiro e a aber- nhecimentos sobre o ambiente físico e
cultural brasileiro, as ações e obras des- tros, no século XIX, que representam a
ses agentes resultaram muitas vezes em comercialização de escravos, é possível
curtos-circuitos sócio-culturais, dando con- refletir sobre alguns aspectos da condi-
tinuidade ao processo de expansão e ção social dos africanos e afro-descenden-
autocrítica do pensamento europeu. tes que foram escravizados no Brasil, das
práticas e meios de representação, bem
Da imensa iconografia produzida por eu-
como da arte nessa conjuntura.
ropeus e nativos, artistas, cientistas e
amadores, integrantes ou não das mis-
Selecionar as imagens não por autoria ou
sões, uma boa parte dedica-se a repre-
sentar aspectos da presença de africa- data de produção, mas agrupá-las em um
conjunto delineado a partir de um tema,
nos e afro-descendentes no Brasil. Nes-
é constituir uma série que sugere a exis-
se grupo também vasto de imagens so-
bressai um tema: a escravidão. Permea- tência de um tipo específico em meio à
variada tipologia imagética relacionada à
das por saberes técnicos e artísticos pós-
afro-brasilidade. A análise dessas ima-
iluministas, as representações das práti-
cas inomináveis de servidão dos negros gens com vistas à configuração do tipo
precisa ressaltar os elementos comuns
explicitam imediatamente a tensão deri-
entre elas, que tendem a serem vistos
vada do confronto do processo de escla-
recimento supostamente em difusão na como objetivos e, portanto, capazes de
evidenciar a constância e uniformidade
ex-colônia e a manutenção de estruturas
de determinadas práticas do comércio
arcaicas no vice-reino, depois no reino
unido e, em seguida, na nova nação, du- escravista, assim como dos modos de
representá-las, pondo em questão o ca-
rante o Império – tensão que persiste na
ráter dessas obras. Entretanto, mesmo
República, ou seja, até hoje.
que almeje a fixação do tipo, a análise
Nesse subconjunto, é possível e oportu-
deve atentar aos elementos inusitados e
no destacar algumas obras que represen-
detalhes excepcionais que emergem aqui
tam uma cena crucial da escravidão: o
e ali nas obras, permitindo entrever olha-
comércio de seres humanos. 2 As figura-
res mais ou menos individuais de seus
ções de africanos e afro-descendentes
autores – “Suas produções são testemu-
tratados como coisas, exibidos, postos à
nhos reveladores de seus valores mo-
venda e adquiridos como mercadorias por
rais, de suas concepções estéticas e ideo-
outros humanos também são emble-
lógicas diante da cena constrangedora da
máticas do processo de confronto dos
comercialização do homem pelo ho-
agentes da razão ocidental com os hor-
mem” 9 – e até, talvez, de maneira en-
rores contra e/ou por ela produzidos.
viesada, dos sujeitos representados. Isto
Analisando obras produzidas por Auguste faz as obras funcionarem como brechas
François Biard, Jean-Baptiste Debret,
3 4
artísticas que deixam escapar vozes su-
Johann Moritz Rugendas, 5
Paul Harro- postamente aprisionadas, sejam in-
Harring, Thomas Ender, W. Read e ou-
6 7 8
flexões na tipologia representacional ou
Mercado de negros, Johann Moritz Rugendas, Voyage pittoresque dans le Brésil , 1835
pessoas trazem no corpo. No espaço lúgu- até permitia aos negros reunirem-se em
bre configurado por Harro-Haring, são pou- torno do fogo para cozinhar e conversar.
cas as coisas presentes – caixas, esteiras
e trouxa –, em meio às quais estão dispos- Os diversos elementos presentes na cena
tas as escravas à venda. Em Venda de es- de Biard – móveis, instrumentos musicais,
cravo e no “Recibo de compra e venda de livros, objetos e outros utensílios domés-
um escravo de nome Benedito, de nação ticos – só servem para reiterar a
crioulo”, os poucos objetos que delineiam coisificação dos negros na comer-
as cenas referem-se aos brancos, com cialização. Na casa de ciganos desenha-
negros em pé ou recostados. Na obra de da por Debret, as muitas coisas repre-
Read, os parcos objetos – mesa, cadeiras, sentadas pertencem obviamente aos pro-
livro de registros, pena, chicotes – também prietários, não havendo indícios delas no
estão relacionados aos homens brancos, espaço onde os negros esperam para se-
aos senhores, já que os negros
sentam-se diretamente no chão,
e apenas um deles parece estar
sentado em uma esteira, meio à
parte, vendo os acontecimentos,
quase fora da cena, como um
observador. Na litografia de
Rugendas, há uma mesa, duas
cadeiras, um banco, muitas es-
teiras e até um fogareiro. No
banco e nas esteiras, estão dei-
tados, sentados ou em pé os ne-
gros, embora uma negra e um
negro apareçam sentados em ca-
deiras. Ela é uma vendedora de
quitutes, provavelmente uma es-
crava ao ganho ou já alforriada,
e portanto ocupa uma situação
social diferenciada – evidencian-
do como a estratificação social
permitia certa mobilidade, que
implicava outros usos da cultura
material. O homem sentado na
cadeira parece ser mais um ne-
gro posto à venda, sugerindo um
comerciante mais humano, que
Recibo de compra e venda de um
configurava um clima ameno e escravo de nome Benedito, Rio de Janeiro, 1851
rem vendidos. Não é muito diferente o re- gra ao ganho com vestido e xale, sinali-
cinto por ele figurado como mercado, com zando com as vestes as diferentes posi-
o cigano sentado em uma grande cadeira ções sociais dos negros, o que reapare-
com braços e espaldar adornados – uma ce em Venda de escravo, com o casal en-
“poltrona velha”, no dizer do autor –, 14 volto em pequenos pedaços de tecido e
com uma moringa e um chicote ao lado, a mulher negra com fios e outros adere-
enquanto os negros estão dispostos em ços. E nas imagens de Debret há negros
simples bancos ou no chão. Nesse espa- envoltos em panos sumários esperando
ço, contudo, destaca-se um pano pendu- a venda e negros mais paramentados nas
rado no gradil de madeira que protege o tarefas domésticas, embora quase todos
sótão, o qual “serve de dormitório aos ne- estejam seminus, em contraste com a
gros”: é amarelo, na versão aquarelada, complexidade maior dos trajes de pro-
e, portanto, poderia ser mais uma veste prietários, vendedor e comprador. A obra
classificatória dos negros, mas parece de Read também permite ver como as
pertencer menos ao lugar representado roupas eram indícios de distinções étni-
(a loja) do que ao meio de representação co-culturais: os brancos recobertos de
(a gravura). Funcionando como elemento diferentes modos, caracterizando fun-
que anima a simetria algo rígida da com- ções e posicionamentos sociais; os ne-
posição, uma voluta a quebrar o equilí- gros seminus, com panos mínimos, alguns
brio arquitetônico, essa peça de tecido com gorros. Na cena de Harro-Haring, as
denuncia uma vontade artística, expres- sombrinhas das compradoras são o ele-
siva, remetendo a obra para além do sim- mento do vestuário que acentua a oposi-
ples registro analítico-documental. ção entre os parcos trajes das negras –
torços e vestidos curtos, que provocam
Naquele processo social e nessa série de a exibição forçada de coxas e seios – e a
imagens, a indumentária não é um ele- indumentária variada e rica das brancas,
mento menor. A maioria dos negros e ne- “fidalgamente trajadas”, 15 quase total-
gras aparecem seminus, em forte con- mente recobertas com chapéus, xales,
traste com as roupas e adereços dos bolsas, babados. Na obra de Biard e no
brancos. Na obra de Ender, a mulher “Recibo de compra e venda de um escra-
cobre-se com um pano amarrado à cin- vo de nome Benedito, de nação crioulo”,
tura e ostenta um fio no pescoço, enquan- excepcionalmente, os negros aparecem
to os homens brancos têm trajes varia- vestidos, ainda que portem trajes bem
dos: diferentes calçados, calças, camisas, mais simples do que os usados por ven-
coletes, casacas, gravatas, chapéus, ben- dedores e compradores.
gala, óculos, hábito, terço. Na litografia
de Rugendas, reincide a representação O fato de mulheres e homens aparece-
dos negros seminus, envoltos com panos rem ora cobertos, ora vestidos nas ima-
de diferentes modos, alguns portando gens de Rugendas e Debret induz a acre-
fios, três com chapéus e a provável ne- ditar que a exposição dos corpos era fa-
bora lide com poucos elementos, Ender árduo viver dos negros escravizados nos
não deixa de representar o pudor e a dois lados do Atlântico. Outro, ainda, até
recusa da negra em se exibir ao possível parece entregar-se à contemplação, de-
comprador e aos demais observadores, bruçado sobre a mureta, observando a
infinitos que são os corpos e olhares que paisagem bucólica ou a vida urbana do
o papel em branco faz imaginar nessa porto que o casario e a caravela suge-
cena tão alusiva. Na representação de rem, embora também possa estar pla-
Harro-Haring, as negras também resistem nejando uma fuga, a conquista da liber-
ao jogo comercial e sexual, tentam fugir dade, o retorno à África.
à violência com a dinâmica possível a
Debret explicita a humanidade que resis-
seus corpos atados, recusando-se a as-
te ao cativeiro e extravasa essas repre-
sumir a condição de mercadoria e obje-
sentações do exótico. Assim, preocupa-
to sexual: uma mantém o corpo hirto e
se com a diversidade de reações dos
olha para o alto, altiva em relação aos
negros frente à condição de escravos,
seres que a tentam coisificar; outra vira
tanto entre as nações quanto em cada
o corpo e mira a direção oposta à mu-
uma delas, em desenho e texto, configu-
lher que a cutuca; a terceira gira o corpo
rando em imagem o que descreve ver-
o quanto pode, fugindo ao toque do ho-
balmente:
mem que a bolina.
O brasileiro discerniria pela fisionomia
os caracteres distintivos de cada um
Na cena de Rugendas, as atitudes vari-
dos negros colocados na fila à esquer-
am bastante: enquanto comerciante e
da da cena. O primeiro atormentado
freguês discutem um possível negócio, os
por coceiras e que cede à necessida-
cativos têm comportamentos variados.
de de se esfregar, é velho e sem dúvi-
Em torno de um fogareiro, estão reuni-
da sem energia; o segundo, ainda
das as mulheres, provavelmente trocan-
sadio, é mais indiferente; o terceiro é
do experiências de quando viviam em
de gênio triste; o quarto, paciente; o
regiões diversas, com suas culturas par-
quinto, apático; os dois últimos, sos-
ticulares, e foram capturadas, separadas
segados. [...] Os seis ao fundo, qua-
de seus familiares, misturadas a pesso-
se da mesma nação, são todos sus-
as de outras sociedades, vendidas e
cetíveis de fácil civilização. 17
trazidas ao Brasil, para serem novamen-
te comercializadas, separadas e mistu- Para além dos jogos de comércio e sexo,
radas de acordo com a vontade de seus que atualizam os valores dominantes na
proprietários. Alguns homens estão de estrutura social vigente, como sintetiza-
pé, sentados ou deitados sobre esteiras, do magistralmente por Ender, certas
aparentemente cordatos, à mercê do obras falam de jogos praticados pelos
destino. Três encontram-se de pé e con- seres escravizados. Na obra de Read,
versam com a vendedora de quitutes – alguns negros jogam com coisas e entre
trocam, provavelmente, experiências do si: uns são participantes, outros assisten-
A
tro também parecem jogar entre si. Essa
situação não é de todo veros-
reincidência traz a pergunta: são brinca-
símil. Primeiro, porque os de-
deiras esses jogos, práticas alienadas de
senhos no muro não condizem
divertimento infantil e adulto? Ou méto-
com os modos de representar das cultu-
dos de adivinhação característicos de
ras de onde provieram os africanos tra-
crenças e ritos religiosos que pretendi-
zidos como escravos ao Brasil. Além dis-
am interferir no processo em curso, na
so, segundo se sabe, a representação dos
vida? Isto, por sua vez, remete ao tópico
africanos e afro-descendentes era restri-
da religião, que pode ser estendido à
ta: em geral, representavam-se ou por
obra de Rugendas: é só comida ou tam-
meio dos códigos europeus, fosse incor-
bém mandinga o que fazem as mulheres
porando-os ou infiltrando seu imaginário
junto ao fogo naquele mercado de escra-
em cenas da religião católica, ou por meio
vos? Apesar de não explicitá-lo visual ou
de imagens utilizadas nas religiões de
verbalmente, Debret deixa indícios da
matrizes africanas, que praticavam mais
persistência das práticas religiosas afro-
ou menos às escondidas. A representa-
descendentes quando fala de uma “espé-
ção pública de suas vidas cotidianas na
cie de dança”: “Nesse mercado, conver-
América dependeu de mãos e olhos alhei-
tido às vezes em salão de baile por li-
os, esteve sob o controle de figuras como
cença do patrão, ouvem-se urros ritmados
Carlos Julião, Jean-Baptiste Debret,
dos negros girando sobre si próprios e
Rugendas, Thomas Ender e outros, mui-
batendo o compasso com as mãos” –, 18
tos outros, durante a escravidão, depois
embora permaneça a questão sobre es-
e, a rigor, até hoje, quando esse tipo de
ses ritos acontecerem apenas devido à
iconografia – cenas da vida exótica nos
tolerância dos comerciantes ou também
trópicos – ainda é produzida e consumida
em função da resistência dos negros.
mundo afora.
N O T A S
1. YUKA, Marcelo; SEU JORGE; CAPPELLETTE, Wilson. A carne. Intérprete: Elza Soares. In:
SOARES, Elza. Do cóccix até o pescoço . São Paulo: Maianga Discos, 2002.
2. O conjunto aqui reunido expande a seleção analisada em KOSSOY, Boris; CARNEIRO,
Maria Luiza Tucci. O olhar europeu : o negro na iconografia brasileira do século XIX. São
Paulo: Edusp, 2002. p. 55-69.
3. BIARD, Auguste François. Venda de escravos no Rio de Janeiro . 11,1 x 17,2 cm. Ilustra-
ção do livro Deux anées au Brésil . Paris: Hachette, 1862. Reproduzido em AGUILAR,
Nelson (org.). Mostra do redescobrimento : negro de corpo e alma. São Paulo: Associa-
ção Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000. p. 271.
4. DEBRET, Jean-Baptiste. Interior de uma residência de ciganos . 1834-1839. Ilustração do
livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil . Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Edusp,
1978. p. 263. DEBRET, Jean-Baptiste. Mercado da rua do Valongo . 1834-1839. Ilustração
do livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil . op. cit. p. 259. DEBRET, Jean-Baptiste.
Loge (sic) da rua do Valongo . c. 1820-1830. Aquarela, 17,5 x 26,5 cm, MEA 0231. Repro-
duzido em CARDOSO, Rafael; BANDEIRA, Julio; SIQUEIRA, Vera Beatriz. Castro Maya cole-
cionador de Debret . São Paulo: Capivara; Rio de Janeiro: Museus Castro Maya, 2003. p.
233.
5. RUGENDAS, Johann Moritz. Mercado de negros . c. 1835. Litografia colorida à mão, 35,5
x 51,3 cm. Reproduzido em AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do redescobrimento : negro
de corpo e alma. op. cit. p. 267.
6. HARRO-HARRING, Paul. Inspeção de negras recentemente chegadas da África . 1840. Re-
produzido em KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O olhar europeu : o negro
na iconografia brasileira do século XIX. op. cit. p. 65.
7. ENDER, Thomas. Uma negra é vendida . c. 1817-1818. Aquarela e lápis, 15,5 x 16,8 cm.
Reproduzido em WAGNER, Robert; BANDEIRA, Julio. Viagem ao Brasil nas aquarelas de
Thomas Ender : 1817-1818. t. II. Petrópolis, RJ: Kapa, 2000. p. 595.
8. READ, W. Comerciante de Minas regateando . s.d. Publicado em A.P.D.G. Sketches of
Portuguese life, manners, costume and character . Londres: B. Whittaker, 1826. p. 298.
Reproduzida em KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O olhar europeu : o negro
na iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 2002. p. 59.
9. KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. op. cit. p. 55.
10. DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil . Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Edusp, 1978. p. 258.
11. Anônimo. Venda de escravo . c. 1829. Aquarela, guache e tinta ferrogálica, 18 x 23,5 cm.
Reproduzida em AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do redescobrimento : negro de corpo e
alma. op. cit. p. 271.
12. “Recibo de compra e venda de um escravo de nome Benedito, de nação crioulo”. 4/10/
1851. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Reproduzido em KOSSOY, Boris; CARNEIRO,
Maria Luiza Tucci. O olhar europeu : o negro na iconografia brasileira do século XIX. op.
cit. p. 69.
13. DEBRET, Jean-Baptiste. op. cit. p. 261.
14. ibidem. p. 260.
15. KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. op. cit. p. 56.
16. ibidem. p. 55.
17. DEBRET, Jean-Baptiste. op. cit. p. 260.
18. ibidem. p. 258.
Recebido em 03/01/2008
Aprovado em 27/01/2008
Ópera e Celebração
Os espetáculos
da corte portuguesa no Brasil
O artigo trata dos espetáculos apresentados The article deals with opera performances
no Rio de Janeiro após a chegada da corte in Rio de Janeiro after the arrival of the
portuguesa ao Brasil. São abordados Portuguese court. It discusses aspects of
aspectos da celebração, da função do teatro celebration, the function of theater and the
e do papel dos espetáculos com música role spectacles with music had in tribute
nas homenagens à família real. O caso de O triunfo ceremonies to the royal family. It also debates the
da América é discutido em detalhes. 1 particular case of O triunfo da América .
Palavras-chave: ópera; Rio de Janeiro; corte Keywords: opera; Rio de Janeiro; Portuguese
portuguesa; século XIX. court; nineteenth century.
A
transferência da corte portu- inéditos. A criação da Imprensa Régia
guesa para o Brasil em 1808 dá igualmente um impulso, antes impos-
trouxe diversas mudanças sível, para as publicações, vindo daí
para o país e deixou um rastro de do- boa parte da documentação sobre ópe-
cumentos antes inusitados. No caso es- ra que conhecemos hoje em dia: os
pecífico da ópera e do teatro, a presen- libretos e as referências da Gazeta do
ça da família real estimulou novos es- Rio de Janeiro . Se até 1808 são pou-
petáculos e procedimentos até então cas as menções a espetáculos, a partir
A posição ambígua do Teatro São João, 5 quando delas nos aproximamos, nossa
inaugurado em 1813, instituição parti- leitura e nossa escuta ainda são muito
cular que recebe a corte e suas come- balizadas por tudo o que veio depois,
morações, não ajuda a esclarecer o pa- dificultando ainda mais um exame
pel da ópera. Um dos interesses funda- aprofundado.
mentais do empresário era manter a
O período analisado tem atraído nos úl-
saúde financeira da casa, ou seja, apre-
timos anos o interesse de diversos pes-
sentar espetáculos que agradassem ao
quisadores das mais variadas áreas:
público. A comemoração no teatro po-
historiadores da arte, da política, da
deria auxiliar tal tarefa, mas o empre-
música em geral. Alguns estudos sobre
endimento não podia contar apenas com
a ópera também apareceram e, sem
a presença da família real. Conseqüen-
dúvida, a maior referência ainda é a
temente, o repertório deveria apresen-
infatigável pesquisa de Ayres de
tar alguma variedade e tocar o gosto do
Andrade sobre Francisco Manuel da
público. É igualmente difícil para um ob-
Silva. 6 O autor rastreou numerosas in-
servador moderno embrenhar-se no re-
formações sobre as mais diversas pes-
pertório apresentado no início do sécu-
soas ligadas ao mundo musical brasi-
lo XIX, pois parecemos estar em meio
leiro na primeira metade do século XIX.
a nomes de fantasmas que, aparente-
A única dificuldade para um pesquisa-
mente, produziram incansavelmente nu-
dor hoje em dia é a falta de referênci-
merosas óperas. Dentre todos, o único
as precisas sobre os documentos utili-
nome mais conhecido é o de Rossini.
zados pelo autor.
Este, contudo, ainda está muito mais
***
associado a algumas comédias, como O
barbeiro de Sevilha , ou a Cenerentola , Segundo os registros escritos, a função
enquanto, na época, sua marca mais desejada para o teatro era muito clara:
importante esteve nas óperas sérias, civilizar, educar e distrair. Já para o pú-
como Tancredi ou Semiramide . Ao me- blico em geral, pode-se supor que a fi-
nos, Rossini, nos últimos trinta anos, nalidade principal era apenas a distra-
vem sendo recuperado e estudado sis- ção e o prazer. Essa tensão entre as
tematicamente, mas o que dizer de com- recomendações de teóricos e legislado-
positores como Puccitta, Paer, Gnecco res e o público é antiga na história do
e tantos outros? E Marcos Portugal, es- teatro e das artes em geral. De um lado,
quecido, vilipendiado e desprezado? Cer- existe a tentativa de se garantir a qua-
tamente, a sombra criada pelas obras lidade dos espetáculos, que é entendi-
do compositor de Pésaro não ajudou a da como respeito a determinadas nor-
manter um interesse pelos outros no- mas artísticas e morais; de outro, há
mes. O problema é justamente este: diversos fatores que levariam à deca-
nomes. É quase impossível conhecer as dência de qualidade, especialmente o
obras desses compositores e, mesmo interesse de empresários em conquis-
rer muito para a sua civilização, e para protegidos pelos governos como es-
emendar e corrigir os seus costumes: há tabelecimentos próprios para dar aos
por bem fazer-lhe mercê de poder anual- povos lícitas recreações e até saudá-
mente extrair uma loteria”. 9 veis exemplos das desastrosas con-
seqüências dos vícios, com que se
Em 1822, quando é criada a comissão
despertem em seus ânimos o amor
que deve examinar o teatro para me-
da honra e da virtude [...]. 13
lhorar seu funcionamento, afirma-se na
N
decisão:
ão se trata apenas de uma
Desejando S. A. R. o príncipe regen- concepção legal da função
te que o Teatro de São João possa dos teatros; certamente, a
continuar como dantes no seu exer- regulamentação jurídica das atividades
cício e que os habitantes desta cida- teatrais é reflexo de uma necessidade
de não sejam privados de um diver- de ordem prática, a saber, controlar a
timento que, servindo-lhes de ino- vida em sociedade em um local com
cente distração dos trabalhos da vida grandes atrativos. A justificativa
doméstica e pública, pode também civilizatória também pode ser tomada
concorrer mui eficazmente para refor- como uma proposta retórica, mas não
mar os costumes e aperfeiçoar a ci- é exatamente o caso. Desde a chegada
vilização [...]. 10 da corte portuguesa, diversas providên-
Quando, no mesmo ano, o Teatro São João cias foram tomadas para a transforma-
precisa ser socorrido por um novo conjun- ção do país em geral e da cidade do Rio
vos por que os teatros são favorecidos em um jardim botânico, de academias mili-
Nem sempre, contudo, os rumos toma- Aqui, as críticas e protestos eram tanto
dos pelo teatro estariam de acordo com contra o virtuosismo vocal, como contra
as propostas apregoadas pelos teóricos. o repertório em si. Na verdade, são duas
Alguns autores da segunda metade da coisas intimamente ligadas: o repertório
década de 1820 apontavam “abusos” do favorece o estrelismo, e este, as “árias
teatro e de seu repertório. Veja-se, por intermináveis” e os “garganteados”. Note-
exemplo, uma carta de 18 de maio de se que é uma argumentação tradicional
1827 enviada ao Spectador Brasileiro : na história da crítica de ópera, revelan-
do uma insatisfação perene e talvez in-
Depois de haver lido em diversos au- solúvel. A ópera, gênero híbrido e mons-
tores que o teatro é a escola dos bons truoso, seria incapaz de cumprir a ver-
costumes, vou assiduamente às re- dadeira missão do teatro; ou melhor, a
presentações da ópera bufa e baile ópera, como está, ou como esteve em
pantomímico, com o fim de conhe- determinados períodos, seria apenas
cer os princípios de moral que con- uma distração, um apelo infindável aos
têm os garganteados de um castrati prazeres do ouvido, sem regras próprias.
[sic], e as piruetas da bela Heloise ; Existe na tradição da história da crítica
porém minha assiduidade não me há de ópera um saudosismo constante em
tornado melhor em costumes, ainda relação a períodos “áureos”, como o dos
que me persuado haver muito pioneiros do final do século XVI e início
ganhado, debaixo de outros pontos do XVII, ou ainda os do início do século
de vista: com efeito vim a saber o XVIII, ou de Gluck e suas reformas. Con-
que é rabo de gato , pulo de tatu , tudo, justamente esses compositores e
passo de zéfiro etc., e concebi ad- suas obras não tiveram exatamente um
miração pelas árias de música italia- grande sucesso perante o público. Ou
na que jamais acabam. É verdade que seja, existe uma antinomia incontestável
a minha admiração teve por muitas entre o público ignorante e as obras de
vezes de sustentar terríveis choques, qualidade. Não parece ser esse o caso
quer por causa dos cantores e do Rio de Janeiro no período estudado.
cantarinas que de vez em quando dei- Aparentemente, diante dos registros exis-
xam escapar notas discordantes de tentes, o teatro desempenhava sua fun-
seu peito palpitante e enfraquecido, ção recreativa com brilhantura. Quanto
quer por causa de uma multidão de à função educativa, a ópera parecia es-
objetos chocantes postos debaixo tar liberada de tal fardo, ao menos nes-
dos meus olhos, quer enfim por cau- se momento.
sa das comodidades que, bem como
os mais apaixonados, estimo encon- Devemos ter em mente que os espetá-
trar em um lugar de reunião pública, culos, sobretudo aqueles em homena-
onde vou procurar horas de recreio gem à família real, eram maiores que
e de descanso. 14 uma representação teatral. Em diversos
V
parecia sobrepujar qualquer defeito das
ale lembrar que, em Portugal,
apresentações. 20
já havia esse tipo de espetá-
culo, com algumas variações; Contudo, diferentemente do que acon-
às vezes, a homenagem e a comemora- tecia em Portugal no século XVIII, a
ção estavam embutidas na própria tra- ópera em si, no Brasil, mantinha suas
ma da ópera, em outros casos fora dela, características. Se nas apresentações
através de licenças finais e diversos ou- da corte em Portugal, pelo menos até a
tros recursos. 18
No Brasil, também no abertura do Teatro São Carlos, as obras
século XVIII, há exemplos de procedi- eram concebidas diretamente em fun-
mentos como esse. Os dois únicos ção da homenagem, não só com licen-
libretos do século XVIII conhecidos até ças e elogios, mas também com a es-
o momento, referentes a apresentações colha de temas que de algum modo se
no Brasil, dão uma idéia clara do que relacionavam com a ocasião celebrada,
acontecia no teatro em uma noite de no Brasil, seguindo um pouco as modi-
homenagem. Aódia e Drama , apresen- ficações ocorridas já no teatro de Lis-
tados no Pará em 1793, 19
por ocasião boa, o corpo central da ópera mantinha-
do nascimento da princesa Maria Tere- se intacto. Em Lisboa, ainda era possí-
sa, filha de d. João e d. Carlota vel encontrar exemplos de apresenta-
Joaquina, mostram-nos uma seqüência ções em que, quando a família real es-
clara da homenagem: as peças, com tava presente, o final, por exemplo, era
mudado, para atender aos costumes da que ocorria em Portugal, onde os aniver-
corte. 21
No Brasil, pelo menos segundo sários e dias onomásticos dos consortes e
os documentos disponíveis, já se res- príncipes em geral eram todos comemora-
peitava mais a “integridade” da obra, dos com apresentações. Isso nos conduz
mas a apresentação de retratos de mem- a uma outra questão: o Teatro São João
bros da família real, mesmo quando es- funcionava como um teatro da corte ou ti-
tavam presentes, ao final dos espetá- nha as características de um teatro parti-
culos, perpetua uma antiga tradição. cular? Do ponto de vista jurídico, era um
Ainda que aqui a função não seja, ne- teatro particular, recebia subsídios do Es-
cessariamente, representar os ausen- tado, mas deveria realizar suas atividades
tes, a solenidade é mantida. 22
como qualquer outro empreendimento co-
mercial. O problema é que os dados dis-
É importante lembrar que nem todas as
poníveis sobre seu funcionamento, da inau-
datas eram celebradas no teatro, já que
guração em 1813 até por volta de 1820,
alguns aniversários eram comemorados
apontam apenas apresentações ligadas à
no palácio real, com manifestações na
corte. Certamente, houve outras apresen-
cidade. 23 O beija-mão também acontecia
tações, mas, de acordo com os documen-
ao final de diversas solenidades. As apa-
tos, tem-se a impressão de que somente a
rições no teatro aconteciam nas ocasiões
corte usava o teatro, o que é falso. Há de
mais importantes, como o aniversário do
fato uma mistura entre o domínio privado
rei, da rainha ou do príncipe herdeiro,
e o da corte, que se confunde com o pró-
mas o calendário não seguia rigidamente
prio Estado. Em Lisboa, até a inauguração
as datas. De qualquer maneira, o teatro
do Teatro São Carlos, a maior parte dos
funcionava de fato como o espaço de so-
espetáculos de ópera acontecia nos tea-
ciabilidade por excelência. Maria
tros da corte (Ajuda, Salvaterra, Queluz),
Graham, em uma passagem de seu diá-
e eram apresentações promovidas e fre-
rio, afirma: “O dia, como de costume em
qüentadas pela família real, contando tam-
qualquer ocasião de interesse público,
bém com convidados. O São Carlos era um
findou no teatro”. 24 Vale lembrar que a
teatro de particulares, freqüentado tam-
viajante inglesa esteve no Rio de Janeiro
bém pela corte; já no Rio de Janeiro, tudo
em um período de grande fervor político,
devia ocorrer no Teatro São João. Assim,
mas, segundo os testemunhos de outros
os registros de que dispomos nesse pri-
escritores, o teatro era mesmo um lugar
meiro momento dizem respeito apenas a
para a manifestação pública.
óperas e representações freqüentadas
Um dado importante para o calendário de pela corte.
apresentações no Rio de Janeiro é que as
***
óperas, pelo menos aquelas de que temos
notícia, eram apresentadas nos aniversá- Vejamos agora um caso específico, o pri-
rios da rainha, d. Maria, e de d. João (como meiro de que se tem uma documenta-
príncipe regente ou rei), diferentemente do ção razoável. Trata-se de O triunfo da
co, e coros de música debaixo das ja- A indicação dos coros nas páginas 29,
nelas do Real Palácio”. 2 8 Não há indi- 31 e 32 também indica a presença de
cação precisa quanto à obra, ao com- música no espetáculo. Em nenhum docu-
positor ou ao libretista, e a redação do mento foram encontradas referências ao
texto torna difícil a identificação do compositor, mas Cleofe Person de Mattos
local: só os coros foram apresentados indica o nome de José Maurício Nunes
sob as janelas do Real Palácio? Garcia. 31 Sérgio Dias transcreveu a parti-
Tampouco existem no libreto referên- tura do Palácio de Vila Viçosa, que indi-
cias ao compositor ou à música, mas ca ser autógrafa. 32 Jean-Baptiste Debret
no texto há indicações de alguns per- dá a seguinte informação: “As conveni-
sonagens que cantam, como a Vingan- ências políticas determinaram, em fins de
ça, com a nítida separação entre o 1810 [sic], o casamento da princesa dona
recitativo e a ária de partida: Maria Teresa, filha mais velha de d. João
VI, com o infante dom Carlos de Espanha,
[...] Tão afrontosos títulos vos movam, seu primo [...]. Houve representação de
Que eu, justa como vós, não sofro gala no teatro real e profusa iluminação
injúrias. em toda a cidade”. 33
Trata-se do primeiro texto conhecido para dação de Roma, além de outras realiza-
teatro de autoria de Gastão Fausto da Câ- ções. Já aqui é possível pensar na vinda
mara Coutinho, depois responsável, en- da corte como o auspício de uma nova
tre outros, pelo Juramento dos Numes . 34 Roma. No encontro com a América, esta
Pelo que se depreende do conjunto de diz não querer a presença da Vingança
seus escritos, o autor estava intimamen- em suas terras, para em seguida narrar
te ligado a uma tradição calcada nas po- um estranho sonho em que, entre ou-
éticas clássicas, com especial interesse tras coisas, apareceu-lhe um deus anun-
na Ars poetica de Horácio. É igualmente ciando a chegada da corte. Novamente,
possível perceber, a partir de seus tex- a América diz que sua terra é de pure-
tos, um extenso conhecimento de varia- za, e que a Vingança não tem lugar. Em
dos autores, inclusive de libretistas e te- outra cena, surge a Gratidão narrando
óricos da ópera. O autor não escreveu seu sofrimento: ela havia escolhido a
exatamente libretos de óperas, ou pelo grande pátria das letras, a França, a
menos não teve a intenção de qualificar “nova Atenas”, como refúgio, mas lá
seus textos para o teatro com cenas de encontrou apenas regicidas. O sofrimen-
música dessa maneira. to é deixado de lado por causa da co-
memoração e da homenagem a d. João.
O triunfo da América é um drama para
O Fado ordena que a Poesia cante os
se recitar; trata-se de um “drama” por
feitos do monarca, para que nunca se-
conter ação das personagens Fado, Amé-
jam esquecidos:
rica, Vingança, Poesia, Gratidão e as Par-
cas. A ação propriamente dita é antece- Não vinga o nome dos heróis
dida por um elogio ao príncipe regente. prestantes
Uma preocupação constante em diversos Se a musa esquiva lhe denega
textos desse período era Napoleão e as encômios,
conseqüências das guerras na Europa, Se apiedada não vai no délio bosque;
como pode ser verificado nos artigos da No momento fatal que iguala os entes,
Gazeta do Rio de Janeiro . No caso do Seus feitos ilustrar, bordar seus fados
Triunfo, o “Tirano Usurpador” aparece no Com lápis diamantino, em prancha
elogio para ser contraposto à figura de de ouro;
d. João, que soube conduzir o povo lusi- Quantos, quantos heróis de glória
tano a um destino melhor. É precisamen- dignos,
te este o tema da obra: diante das atro- Antes dos Titos, antes dos Trajanos,
cidades regicidas e expansionistas dos Jazem nas sombras de perpétua noite,
franceses, a transferência da corte para Porque a musa não quis remissa e
o Brasil surge como um feito valoroso a frouxa
ser cantado. Dar-lhes renome no porvir cerrado! 35
Este afirma que tudo mudou; a Vingan- são, na qual personagens alegóricos de-
ça quer entender o que se passou, e o cidem os destinos dos governantes e da
Fado explica: humanidade. Diferentemente das óperas
em que se busca um espelhamento en-
Os mistérios recônditos que palpo
tre as personagens, a ocasião e os ho-
Vedados aos mortais, e a ti vedados,
menageados, 39 aqui a relação é mais di-
De aparentes matizes se ataviam,
reta. O universo em que a ação se de-
Nos sorrisos do bem, o mal se en-
sencadeia é mitológico e alegórico, mas
cobre,
as citações e referências aos homenage-
Dos reveses do mal, o bem ressurge. 36
ados e criticados são nominais. Paira, nos
Assim, da grande transformação, a prin-
discursos, uma teoria do bom monarca
cípio percebida como um mal, surge a
e das boas ações do governo, sempre
possibilidade de um futuro promissor:
contrapostas aos excessos da tirania,
Daqui dentre os dois rios espaçosos cujo exemplo maior é Napoleão. São
Que não temem rivais, e os não co- igualmente lembrados, na última cena,
nhecem, os portugueses ilustres e corajosos no
Por todo o continente, e além dos combate aos franceses; novamente, tais
mares, homens são comparados a deuses da
Se mova o leme do governo luso, mitologia. Note-se que, apesar de o es-
Daqui nasça a cadeia portentosa petáculo ter sido apresentado também
De nunca ouvidas, prósperas façanhas, como homenagem a um casamento, não
Tais os meus planos são, e assim o se faz referência a isso.
ordene. 37
não deve ser lido como um afago aos representando a cidade do Rio de Ja-
habitantes do Brasil ou uma consolação neiro, a esquadra portuguesa fundeada,
para os males da corte; nas diversas in- ouvindo-se a salva de tiros das fortale-
terpretações do significado da vinda dos zas, e finalmente com a exposição dos
portugueses para a colônia, sabe-se que retratos da família real.
a vontade de construir um novo império
***
com sede na América já era um plano
antigo, que, nesse novo momento, po- A ópera era um dos elementos centrais
N O T A S
1. Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a ópera da corte portuguesa no
Brasil, financiada pela Fapesp (processo nº 99/06621-8).
2. Para detalhes sobre o repertório, cf. KÜHL, Paulo Mugayar. Cronologia da ópera no Bra-
sil : século XIX (Rio de Janeiro). Campinas: Cepab-IA-Unicamp, 2003. Disponível em:
<http://www.iar.unicamp.br/cepab/opera/cronologia.pdf>. Acesso em: 4 out. 2007.
3. Os gêneros poéticos e musicais das obras de homenagem inserem-se numa
longuíssima tradição de inspiração italiana cujo modelo fundamental fora sempre
Metastasio. Quais então os critérios a serem considerados na tentativa de classifi-
car as obras? A presença de seres mitológicos? A presença da homenagem? O tama-
37. idem.
38. idem.
3 9 . C f . J O LY, J a c q u e s . U n ’ i d e o l o g i a d e l s o v r a n o v i r t u o s o . I n : D a g l ’ E l i s i a l l ’ i n f e r n o : i l
melodramma tra Italia e Francia dal 1730 al 1850. Florença: La Nuova Italia, 1990.
p. 84-94.
40. “De ti o início, a ti o fim; os cantos que encetei / a teu mandado, aceita-os; dá que em
torno às tuas têmporas / deslize, de permeio à hera, o louro da vitória”. In: VIRGÍLIO.
Bucólicas . São Paulo: Melhoramentos; Brasília: Ed. da UNB, 1982. p. 129.
41. O Fado, Domingos Botelho; A América, Joaquina Lapinha; A Vingança, Rita Feliciana; A
Poesia, Francisca de Assis; A Gratidão, Maria Cândida.
Recebido em 05/10/2007
Aprovado em 25/10/2007
Da Expedição Científica
à Ficcionalização da Viagem
Martius e seu
romance indianista sobre o Brasil
“U
“(...) a gente quer passar m novo descobrimento do
um rio a nado, e passa; Brasil”. Com essas palavras,
mas vai dar na outra banda Sérgio Buarque de Holanda
é num ponto muito mais se refere à vinda de numerosos estran-
baixo, bem diverso do que geiros à colônia portuguesa na América
em que primeiro se do Sul após a abertura dos portos em
pensou.” Guimarães Rosa, 1808 e, conseqüentemente, a derroca-
Grande sertão : veredas da do antigo sistema colonial. São comer-
Aves na lagoa junto ao São Francisco, J. B. Spix e K. F. Ph Von Martius, Reise in Brasilien, 1823-1831
C
Em 1831, quando da edição do terceiro onforme Martius escreveu em
volume da Reise in Brasilien , Martius ter- um breve prefácio assinado
minava o manuscrito de Frey Appolonio: com seu anagrama (infelizmen-
ein Roman aus Brasilien, seu primeiro e, te, incluído apenas de forma parcial na
provavelmente, único romance. Essa versão traduzida), o romance fundamen-
obra, que assina como Suitram, anagra- ta-se em acontecimentos reais. “Seus
ma do seu nome, aguardou mais de 160 personagens viveram”, revela o autor,
anos para ser editada. Em 1992, ela vem “conheci-as e tomei parte ativa de sua
a lume ao mesmo tempo na Alemanha e existência, ou então lhes ouvi narrar as
no Brasil, em versão traduzida. 7 Confor- experiências”. 9 A ação principal desen-
me o editor e tradutor, Erwin Theodor, rola-se na viagem pelo Amazonas aden-
Frey Apollonio pode ser compreendido tro, chegando até o rio Japurá – nos li-
como o “primeiro romance do Brasil, den- mites do Brasil com a atual Colômbia –,
tro e fora do país”, uma vez que este ponto mais ocidental que Martius real-
gênero, em sua forma mais apurada, te- mente pôde atingir. De fato, a figura de
ria chegado “tarde” por aqui. Esse cará- frei Apolônio aparece no volume dois de
ter pioneiro será por nós questionado Viagem pelo Brasil . Foi esse capuchinho
mais adiante. Theodor considera que o italiano que inspirou o personagem cen-
naturalista segue os cânones da literatu- tral do livro. O comerciante Riccardo, fiel
ra romântica, desvelando-se sua obra companheiro de viagem de Hartoman,
como um genuíno Bildungsroman , ou lembra o capitão Zani, experiente guia
seja, um romance de formação, tão apre- que conduziu os naturalistas Spix e
ciado na virada do século XVIII e primei- Martius na expedição pela região ama-
ras décadas do XIX. 8
zônica. E o personagem Hartoman é o
F
livro, com exceção de Gregório e Espe-
rada, não eram originários do Brasil, con- rei Apolônio é um nobre portu-
trariando a referência ao país que cons- guês cujas desgraças forçaram
ta no subtítulo da obra, como uma op- sua emigração da terra pátria,
ção do editor. Neste ponto, talvez seja resultando em uma peregrinação pelo
importante mencionar que nem Martius mundo que, de início, era laica, mas se
estava certo de como chamaria o roman- tornou religiosa. O personagem passa
ce, oscilando entre “Brasil”, ou “do Bra- por uma série de sofrimentos e prova-
sil”, como, por exemplo, Frey Apollonio, ções que o transformam, sintetizando a
Menschen und Naturgemälde : ein Roman crença no progresso da alma humana.
aus Brasilien, nach Erlebnissen und Termina seus dias dedicando-se à
Erzählungen von Carl Hartoman (ou seja, catequese de índios amazonenses.
Frei Apolônio, quadros humanos e da Riccardo é o imigrante florentino que,
natureza : um romance do Brasil, segun- marcado por inúmeras aventuras e aci-
do vivências e narrativas de Carl dentes ocorridos em solo europeu, con-
Hartoman), e a região da bacia do rio segue sua sorte no Novo Mundo.
Amazonas, como Frey Apollonio, Bilder Hartoman é o naturalista viajante ale-
vom Amazonasstrome, aus den Papieren mão cuja estadia na região amazônica é
C. Hartoman´s (Frei Apolônio, quadros do temporária, em função dos seus objeti-
rio Amazonas, segundo apontamentos de vos científicos. Tsomei e seus filhos
C. Hartoman). 12
Pachacutec e Oéli são incas – não da re-
gião do Amazonas para além das fron- palco de encontro e vivências inusitadas
teiras brasileiras, e sim das montanhas entre os personagens.
de Quito – que se refugiaram na solidão
Ao longo de toda a obra, o deslocamento
da selva amazônica brasileira. Lá se es-
geográfico de Hartoman conduz a narra-
tabeleceram para escapar da força des-
tiva, pontuando o tempo presente e o
truidora do colonizador europeu.
espaço físico no qual os personagens se
Há ainda um vulto misterioso (Abraham/ encontram. As longas conversas entre os
Santom) que, inexplicavelmente, surge e três principais personagens – Hartoman,
desaparece. No final da narrativa, após Apolônio e Riccardo – articulam, segun-
sua morte, revela-se aos leitores e per- do J o s é P a u l o P a e s , u m a e s t r u t u r a
sonagens que era o filho de Apolônio, dialógica de tipo platônico. 13 Nelas são
nascido nas “Arábias”. A bela índia Es- rememorados os dramas individuais de
perada, catequizada e fiel ao seu missio- cada protagonista, evocando um tempo
nário, e o índio Gregório, “companheiro passado. Amores malogrados, guerras,
de Martius”, são os únicos personagens revoluções e fugas, bem como aparições
nativos, que assumem certa relevância. sobrenaturais e coincidências misteriosas
O destino trágico de Esperada faz com mapeiam o percurso de suas vidas. Dife-
que não consiga se salvar de um surto renças religiosas (o protestantismo de
de varíola que assola a missão de Hartoman, o catolicismo de Apolônio, o
Apolônio, deixando entrever o aspecto deísmo de Riccardo, a ambigüidade do
trágico do encontro entre os europeus e credo de Abraham/Santon, o “paganismo”
a população indígena. dos índios), culturais (as diferentes ori-
gens dos personagens) e raciais reiteram
Os efeitos da colonização européia na
a concepção de um mundo cosmopolita,
América e a contradição do processo
por meio do qual o leitor migra das ma-
civilizador eurocêntrico formam o pano de
tas equatoriais ora para a Europa, ora
fundo da trama. Discutem-se as diferen-
para o Oriente, proporcionando uma di-
ças entre a Europa e o Novo Mundo, ques-
luição do espaço geográfico e temporal
tiona-se a crença na superioridade cultu-
da narrativa. Ainda segundo Paes, a li-
ral do branco, idealiza-se o ambiente na-
nha de argumentação desses diálogos não
tural dos trópicos, recorrendo ao tema da
segue linearmente das premissas às con-
lassitude do mundo europeu de cuja rea-
clusões, mas, sim, constrói-se em um vai-
lidade se deseja escapar. A paixão pela
e-vem de afirmações e contestações em
natureza selvagem e as oscilações
que se desenha um “campo de forças”
anímicas, provocadas pela percepção do
do qual Hartoman consegue extrair a sua
indivíduo como uma totalidade submeti-
lição, de acordo com os ditames de um
da a uma força misteriosa condutora dos
romance de formação. 14
destinos humanos, são projetadas na pu-
jança da mata equatorial. Esta se torna Em suma, em Frey Apollonio , nota-se a
um espaço romântico de meditações e recorrência de três assuntos: a especi-
A
ntes de avançar na análise, é do século XIX, não há um movimento lite-
preciso lembrar que essas rário no Brasil independente dos vínculos
temáticas inserem-se num con- europeus e também ex-metropolitanos.
texto maior. Ou seja, é possível perscru- Cândido advoga que a “literatura brasilei-
ra adquire consciência da sua re-
alidade – ou seja, da circunstân-
cia de ser algo diverso da portu-
guesa – depois da Independência”,
embora essa consciência emanas-
se muito mais de um desejo do que
da verificação objetiva de um es-
tado de coisas. “Com efeito, pou-
co havia nas débeis letras de en-
tão que permitisse falar em litera-
tura autônoma – seja pelas carac-
terísticas das obras, seja pelo nú-
mero reduzido de autores, seja,
principalmente, pela falta de arti-
culação palpável de obras, auto-
res e leitores de um sistema coe-
rente.”16 Esta consciência vislum-
brava a independência espiritual
dos laços com Portugal e, inspira-
da no historicismo, segundo o qual
a literatura é entendida como con-
seqüência direta dos fatores do
meio e da época, defendia a idéia
de que cada país e cada povo pos-
suía a sua própria literatura, com
características peculiares. Antonio
Cândido sugere que a grande hi-
José de Santa Rita Durão, Caramuru, 1781 pótese de trabalho dos literatos do
início do século XIX, que norteia o movi- representado pela incipiente consciência
mento romântico no Brasil, seria a idéia de uma individualidade própria do colono
de que o país tem uma natureza e uma português e do índio, dotado de uma bon-
população diferentes das de Portugal e dade natural, ainda que antropófago. Foi
também uma organização política distin- justamente a sua temática indianista e
ta – sendo a literatura relativa ao meio nativista que os românticos aproveitaram,
físico e humano, ela teria que ser dife- conforme se pode acompanhar na Histoire
rente da de Portugal. “Ser bom, literaria- littéraire do francês Ferdinand Denis.19 A
mente, significava ser brasileiro; ser bra- seu ver, Caramuru seria o “grande exem-
sileiro significava incluir nas obras o que plo de literatura nacional”, independente
havia de específico do país, notadamente de suas qualidades literárias. O rebate foi
a paisagem e o aborígine. Por isso o ouvido primeiramente na França, onde, em
indianismo aparece como timbre supre- 1829, é traduzido em prosa por François
mo de brasilidade.” 17 Eugène Garayde Monglave. E logo em se-
guida, em 1830, portanto antes que
Segundo o crítico, uma das referências bá-
Martius finalizasse seu romance, dois au-
sicas da literatura romântica brasileira en-
tores de “ínfima categoria literária”, Daniel
contra-se no poema épico Caramuru, do
Gavet e Philippe Boucher, publicaram
“brasileiro” Santa Rita Durão, publicado em
Jakaré-Ouassou ou les toupinambas,20 ro-
Lisboa no ano de 1781. Para os nossos
mance diretamente ligado ao tema do
fins, vale a pena reproduzir, ainda confor-
Caramuru e considerado o “primeiro ro-
me esse autor, os elementos que caracte-
mance indianista de assunto brasileiro”.
rizam Caramuru e sua recepção nos mei-
Nele, encontram-se os elementos que ca-
os literatos europeus. Trata-se de uma epo-
racterizariam a ficção indianista brasilei-
péia religiosa, antipombalina (a civilização
ra: “índio nobre e índio vil; branco nobre
se identificava com o catolicismo e se de-
e branco vil; colonizador piedoso e coloni-
via ao catequizador, em particular o jesuí-
zador brutal; amores impossíveis entre
ta); apresenta-se uma visão grandiosa e
branca e índio; linguagem figurada e poé-
eufórica da natureza – o locus amoenos
tica, para dar o tom da mente primitiva”. 21
se encontrava por todo o país; o homem
natural, ou seja, o índio, “aparece viven-
Essa dimensão pioneira da ficção indianista
do, sob certos aspectos, num estado de
entre os autores franceses tem mais um
pureza, cuja perfeição o europeu admira,
precursor. Em 1823, Édouard Corbière
não custando ver que seus princípios mo-
publica as Élegies brésiliennes, inspiradas
rais e a conduta decorrente são uma es-
em cantos regionalistas colhidos por algum
pécie de depuração dos ideais do branco”.18
viajante (talvez o próprio Ferdinand Denis)
Em síntese, há um movimento ambíguo na no sertão da Bahia. Para Cândido, os poe-
obra, que, de um lado, simboliza a mas de Corbière formariam o “primeiro li-
lusitanização do país por meio da iniciati- vro pré-romântico a tratar o aborígine bra-
va dos portugueses e, de outro, o nativismo sileiro por certos ângulos, retomados em
seguida por outros franceses”, como seja na prosa, ainda antes de Martius
Ferdinand Denis e os autores de Jakaré- ter publicado o seu romance “brasilei-
Ouassou. 22
E o próprio Denis, antecipando ro”. Pioneirismos à parte, o que aqui nos
as sugestões que fará em sua Histoire interessa sublinhar é o fato de que os
littéraire, publica, em 1824, as Scènes de europeus produziram obras inspiradas
la nature sous les tropiques suivies de em temáticas, por assim dizer, brasilei-
Camoens et Jose Índio. No texto, inclui um ras ou em autores brasileiros, como
episódio romanesco, “Os machakalis”, uma Santa Rita Durão. Também Martius, ho-
ficção indianista que repercutiu entre os mem erudito e que conhecia a bibliogra-
autores brasileiros. Em 1826, ao publicar fia sobre o Brasil, faz uma menção ao
a Histoire littéraire, Denis não somente poeta de Caramuru , que “cantou o des-
formula suas idéias para uma literatura cobrimento do Brasil”.24 No entanto, não
brasileira, mas também sintetiza as preo- sabemos se ele leu todos esses autores
cupações da literatura francesa contempo- franceses. Em todo caso, é notória a
rânea com a brasileira, popular, primitiva, comunhão temática que se manifesta na
medieval, cristã, sublinhando a necessida- literatura de língua francesa e alemã: a
de de que vindouros poetas e escritores exuberante natureza tropical, o
brasileiros explorassem a natureza e a indianismo e a caracterização das
temática indianista: especificidades do Brasil, ou de uma
região do Brasil, em oposição à Europa.
Que os poetas dessas regiões [Novo
No caso de Martius porém, com a parti-
Mundo] contemplem a natureza, que
cularidade de que o romance não exer-
se inspirem de sua grandeza, e em
ceu nenhum tipo de impacto na Europa,
poucos anos eles se tornarão iguais
tampouco no Brasil, por não ter sido
a nós, talvez nossos mestres (...). Que
publicado. Diferente dos autores france-
o poeta dessas belas regiões (...),
ses e dos próprios relatos de viagem e
após haver lançado um olhar compas-
do conjunto da obra científica de Martius
sivo para os séculos decorridos, ele
(em parte em co-autoria com Spix), que
a retome [a lira], e lamente as nações
tiveram ampla recepção no meio letra-
aniquiladas, excite uma piedade tar-
do brasileiro. 25
dia mas favorável aos restos das tri-
bos indígenas, e que esse povo exila- A DIMENSÃO INDIANISTA
do, diferente por sua cor e seus cos- DO ROMANCE
C
tumes, não seja esquecido nos can-
omo afirmamos anteriormente,
tos do poeta; que ele adote uma nova
nosso propósito é entender as
pátria – e ele mesmo a cante (...). 23
dimensões indianistas do ro-
Nota-se, portanto, que os assuntos “bra- mance Frei Apolônio. Conforme as suges-
sileiros” serviram de substrato igualmen- tões de José Paulo Paes, a obra toma
te aos franceses para a criação de obras forma por meio de uma estrutura
ficcionais, quer seja na poesia, quer dialógica do tipo platônico, possibilitan-
inferioridade natural dos indígenas ame- rica, nunca adversa, nem madrasta”. Vi-
ricanos, 28
defende a opinião de que eles vem afastados de todas aquelas necessi-
vivem num “desolador embotamento es- dades, “verdadeiras ou imaginárias”, de
piritual”. Em contrapartida, Riccardo pro- todos os “prazeres reais ou falsos” que
cura mostrar ao viajante que é “injusto mantêm os europeus acorrentados. E
(...) medir o caráter e a vida das pessoas reitera: “esses índios não são infelizes,
de acordo com as suas opiniões”. E consi- ou o são apenas onde nós, mais por ego-
dera ser um dever cristão reconhecer os ísmo do que por humanitarismo, resolve-
índios e não condená-los. Embora deixe mos cuidar de sua felicidade”. 30
transpirar certa tolerância, o comercian-
te não escapa de seu etnocentrismo, Riccardo traz argumentos suficientes para
focado no nítido interesse utilitarista e relativizar a pretensa felicidade do euro-
pragmático, senão explorador e peu. Polemiza igualmente com as concep-
colonialista: acredita que a Providência ções que defendem a inferioridade natu-
teria criado os índios a favor do “bran- ral dos índios e a sua ausência de
co”, do contrário não seriam tão solícitos, perfectibilidade,31 discussão na pauta do
não seriam seus fiéis remadores, não aju- dia nos círculos pensantes do século XIX.
dariam no trabalho da terra, e a própria Critica os missionários que não consegui-
viagem exploratória perderia, para am enxergar o índio como “nosso seme-
Hartoman, o seu maior atrativo, o aspec- lhante” e considera mesmo que a
to “exótico” e “bizarro”. Estas observa- catequização é supérflua, tendo em vis-
ções deixaram o naturalista aborrecido, ta que os índios, por meio de sua vida
apesar de reconhecer a sua pertinência. 29
simples e prazerosa, teriam uma “rela-
ção sagrada com o seu Criador”.32 E, com-
Em outra ocasião, a polêmica entre am- parando-os com os europeus, não os vê
bos é retomada. Martius reitera o seu como “inferiores”. Havia, na Europa,
olhar piedoso sobre os indígenas, por exemplos suficientes de ignorância e imo-
reconhecer a sua “boa índole” e, ao mes- ralidade. Acredita até ter encontrado mais
mo tempo, a sua incapacidade de sair de virtudes entre muitos desses “índios ru-
uma vida “uniforme e espiritualmente des, não iluminados por nenhum fulgor
pobre” para atingir um “estado mais ele- do Evangelho”. Indo ao encontro do que
vado da existência”. Se para Martius essa Antonio Cândido identifica como um dos
percepção evoca dor e tristeza, para elementos básicos nas ficções india-
Riccardo ela nada mais é que uma nistas, o discurso de Riccardo apresenta
constatação preconceituosa dos europeus os índios como figuras depuradas dos ide-
diante dos indígenas. No seu entender, ais brancos: neles bateria um “coração
os índios eram muito felizes, “talvez mais mais meigo, mais receptivo às verdadei-
felizes do que nós europeus, na camisa ras sensações de alegrias humanas e fa-
de força de nossa assim chamada cultu- miliares do que em muitos europeus”.
ra; felizes são no gozo de uma natureza Mais uma vez, as palavras do comercian-
M
a sua origem – eram refugiados das mon-
as eis que no romance surge
tanhas de Quito, onde os europeus havi-
um contraponto a esse deso-
am destruído a sua cultura. 41
lado cenário: os personagens
O encontro com esses indígenas deixou
incas Tsomei e Pachacutec. Hartoman re-
profunda impressão no viajante. À noite,
fere-se a Pachacutec como sendo “um in-
ele foi acometido por terríveis visões que
divíduo excepcional, extremamente raro
recontavam a história da América. Nes-
entre a raça vermelha”. Nota sua dife-
sas imagens apareceram
rença em relação aos outros índios que
conheceu, por recusar com muito ódio (...) horríveis figuras daqueles con-
nos olhos a aguardente que Hartoman lhe quistadores, em cujas veias ardia o
oferece – tradicional meio que os bran- fogo do inferno, cujos membros fér-
cos usavam para achegar-se aos índios. reos eram capazes de debelar a pró-
E pela primeira vez desde que se encon- pria dor com a mesma indiferença
trava entre os “selvagens” sentiu medo. com que liquidavam a vida do inimi-
No primeiro diálogo entre o naturalista e go. Pizarro e Almagro e o terrível mon-
o inca, em espanhol, há uma dimensão ge de Valverde atravessaram assim
anticolonialista e antieuropéia, reiterada o mar dos cadáveres americanos em
mais tarde pelas palavras de Tsomei. estertores, e até onde alcançavam os
Pachacutec alerta Hartoman de que os olhares do jovem [Hartoman], (...)
brancos só trouxeram para os índios do em toda parte o mesmo e pungente
Vede bem onde estais, padre! Não vos Agora sim, aparentemente mais despren-
o naturalista acha que “ esses seres, apa- que particularizaria a nação brasileira
rentados com os índios pelo sangue, eram em formação, corroborando o seu pro-
muito mais felizes, porque sofreram trans- cesso civilizador, em que os portugue-
formações mais profundas no espírito”. E ses ocupariam o papel de maior relevân-
aposta que esse seria o fruto de seus co- cia absorvendo os negros e indígenas. 49
rações iluminados pelo cristianismo. 47
N O T A S
1. Uma versão preliminar deste estudo encontra-se em LISBOA, Karen M. A utopia da gran-
de literatura: “Frey Apollonio”, um romance do Brasil. In: MONTEIRO, John M.; BLAJ,
Ilana (orgs.). História & utopias : textos apresentados no XVII Simpósio Nacional de
História. São Paulo: ANPUH, 1996. p. 340-45. Agradeço a Enrique Amayo as sugestões
feitas a esta versão.
2. HOLANDA, Sérgio Buarque de. A herança colonial: sua desagregação. In: ____ (org.). His-
tória geral da civilização brasileira . 4. ed. t. II. v. 1. São Paulo: Difel, 1976. cap. 1. p. 13.
3. MOTA, Carlos Guilher me. Europeus no Brasil à época da Independência. In: ____ (org.).
1822 : dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 60.
4. A missão científica de d. Leopoldina contou com o botânco Emanuel Pohl, o mineralo-
g i s t a R o c h u s S c h ü c h , o n a t u r a l i s t a G i u s e p p e R a d i , o z o ó l o g o J o h a n n N a t t e r e r, o
entomologista Johann Christian Mikan, o botânico Heinrich Wilhelm Schott, o pintor
Thomas Ender, o caçador Ferdinand Wilhelm Sochor, e os desenhistas G. K. Frick, Johann
Buchberger e Franz Joseph Frühbeck.
5. Johann Baptist von Spix nasceu em 1781, em Höfstadt an der Aisch. Estudou filosofia,
teologia e medicina em Würzburg, doutorando-se em medicina e especializando-se em
zoologia. Antes de viajar ao Brasil, realizou expedições científicas na França, Itália e
Suíça. Foi membro de várias academias científicas. Morreu em 1826, seis anos após o
retorno da viagem pelo Brasil, e não pode concluir suas pesquisas. Carl Friedrich Philipp
von Martius nasceu em 1794, em Erlangen. Estudou medicina, doutorando-se em botâ-
nica. Foi professor da Universidade de Munique e membro de várias academias cientí-
ficas, entre elas o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Além de sua mo-
numental obra botânica, escreveu textos sobre etnografia e historiografia brasileira. Ao
contrário de Spix, Martius ainda viveu muito tempo (morreu em 1868), tornando-se,
por assim dizer, um especialista sobre o Brasil, sobretudo no campo da botânica e da
etnografia indígena. Sem sombra de dúvida, a viagem pelo Brasil serviu de inesgotável
fonte para suas pesquisas e textos literários. Para mais dados sobre os autores, ver
LISBOA, Karen M. A nova Atlântida de Spix e Martius : natureza e civilização na “Viagem
pelo Brasil” (1817-1820). São Paulo: Hucitec; Fapesp, 1997.
6. SPIX, J. B.; MARTIUS, C. F. P. von. Reise in Brasilien auf befehl Sr. Majestät Maximiliam
Joseph I. Königs von Baiern in den jahren 1817-1820 . Theil 1-3 und Atlas. München;
Leipzig: M. Lindauer, I. J. Lentner, Friedrich Fleischer, 1823-1831. A versão brasileira,
Viagem pelo Brasil , foi editada em 1938, pelo IHGB, com tradução de Lúcia Furquim
Lahmeyer, e teve várias reedições.
7. MARTIUS, C. F. F. von. Frey Apollonio : ein roman aus Brasilien. Berlin: Dietrich Reimer
Verlag, 1992. A tradução: ____. Frei Apolônio : um romance do Brasil. Organização e
tradução de Erwin Theodor. São Paulo: Brasiliense, 1992. Não há razões evidentes que
expliquem por que Martius não publicou o romance. Segundo Theodor, ele corrigiu anos
mais tarde uma cópia do manuscrito, de outro punho, que talvez devesse ser encami-
nhado para alguma editora. THEODOR, Erwin. Nachwort. In: MARTIUS, C. F. F. von. op.
cit. p. 155. Vale lembrar que Martius, a essa altura da vida, já galgara razoável importân-
cia nos meios acadêmicos, o que talvez o inibisse de publicar literatura ficcional.
8. THEODOR, Erwin. Apresentação. In: MAR TIUS, C. F. F. von. op. cit. p. VI-VII.
9. MARTIUS, C. F. F. von, apud THEODOR, Erwin. Apresentação. In: MARTIUS, C. F. F. von.
op. cit. p. XI.
10. THEODOR, Erwin. op. cit. p. XIII.
11. Vale ressalvar que, na história pré-colombiana, a figura de Pachacutec ocupa um impor-
tante lugar. Como soldado e guerreiro, ampliou o poderio inca, fundando o Império
Incaico. Como imperador (de 1438 a 1471), fez uma série de reformas técnico-adminis-
trativas. O significado de seu nome deixa entrever o seu relevante papel na formação do
império: o reformador da terra. No romance, porém, não há referências diretas ao perío-
do ou à figura histórica do líder.
12. THEODOR, Erwin. Nachwort. In: MARTIUS, C. F. F. von. op. cit. p. 155-56.
13. PAES, José Paulo. Utopia e distopia nas selvas amazônicas. Nossa América , São Paulo,
n. 2, 1993. p. 59-60.
14. idem.
15. Ver nota 7.
16. CANDIDO, Antonio. Estrutura literária e função histórica. In: ____. Literatura e socieda-
de . 3. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1973. p. 169-192.
17. ibidem. p. 170-171, grifo no original.
18. ibidem. p. 176-178.
19. DENIS, Ferdinand. Resumé de l‘histoire littéraire du Portugal suivi du resumé de l‘histoire
littéraire du Brésil . Paris: Lecointe et Durey, 1826.
20. GAVET, Daniel; BOUCHER, Philippe. Jakaré-Ouassou ou les toupinambas. Paris: Chronique
Brésilienne, Timothée de Hay, 1830.
21. CANDIDO. op. cit. p. 185-188, grifo no original.
22. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira . v. I. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia,
1981. 2v. p. 282-286.
23. DENIS, Ferdinand apud HAZARD, Paul. As origens do romantismo no Brasil. Tradução
de Fernando Nery. Revista da Academia de Letras , Rio de Janeiro, v. XXV, n. 69, set.
1927. p. 31-33.
24. SPIX, J. B.; MARTIUS, C. F. P. von. Viagem pelo Brasil . v. 1. São Paulo: Edusp; Itatiaia,
1982. 3v. p. 247.
25. Aqui vale mencionar o minucioso estudo de Flora Süssekind acerca da recepção e
transculturação da literatura de viagem européia no Brasil e a fundação de nossa litera-
tura romântica oitocentista. SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui . São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
26. MARTIUS, C. F. P. von. op. cit. p. 11.
27. ibidem. p. 67.
28. Dados os limites deste texto, não aprofundaremos as questões relativas à “irradiação das
luzes” setecentistas e à decorrente “redescoberta” da América, fomentando discussões
para sustentar a argumentação eurocêntrica de idéias detratoras sobre o continente ame-
ricano. As longas polêmicas que daí emergiram, tanto no pensamento europeu como no
americano, até o século XIX, o historiador italiano Antonello Gerbi denominou a “disputa
do Novo Mundo”. Essa disputa, a seu ver, dividiu-se em dois momentos: o primeiro lança
as teses da “debilidade” ou “imaturidade” natural do continente americano com a Histoire
naturelle, générale et particulère , do conde de Buffon. As idéias deste naturalista francês,
bem como as de seus maiores interlocutores, os abades Cornellius de Pauw e Guillaume
Raynal, alicerçam os marcos inaugurais da controvérsia, ao impor a imagem da inferiorida-
de e da debilidade da terra e do homem autóctone americano (meridional), da degradação
irreversível, como uma das “regras mais importantes desse primeiro passado humano do
Novo Mundo”, conforme reitera Michèle Duchet. Segundo Gerbi, a revisão das concepções
buffonianas, feitas por ele mesmo e por retificações do meio científico, finalizam a fase
inicial da disputa. A segunda etapa é sinalizada pela formulação de novas interpretações
da natureza e do “selvagem” americano. Enquanto a Europa impõe o seu papel de propul-
sora das Luzes ao resto do mundo, o cenário da polêmica aumenta com a independência
dos Estados Unidos, o movimento Sturm und Drang , as guerras de independência política
nas colônias hispânicas e o romantismo europeu. Nessa segunda fase, o entusiasmo de
Alexander von Humboldt pela natureza tropical do Novo Mundo opõe-se às teses detratoras
do filósofo Hegel, marcando os pólos extremos da discussão. GERBI, Antonello. La dispu-
ta del Nuevo Mundo . 1. ed. Tradução de Antonio Alatorre. México, DF: Fondo de Cultura
Económica, 1960. DUCHET, Michèle. Antropologia y historia en el siglo de las luces. Tra-
dução de Francisco Gonzalez Aramburo. México, DF: Siglo Vientiuno, 1975. p. 179. Para
mais detalhes sobre as idéias de Spix e Martius no contexto da polêmica sobre o Novo
Mundo, ver LISBOA, Karen. op. cit.
29. MARTIUS, C. F. P. von. op. cit. p. 24-25.
30. ibidem. p.160-164.
31. Conforme K. Heinz Kohl, coube a Rousseau a conceituação do princípio da perfectibilidade
humana. Marco distintivo entre o mundo animal e a espécie humana, a perfectibilité é
condição imprescindível para a história da humanidade. Esse princípio revela a capaci-
dade do ser humano de desenvolver, com a ajuda das condições exter nas, todas as
demais capacidades. Por outro lado, a liberdade da espécie humana em relação às impo-
sições da natureza também podem significar a perda da conquista dessas capacidades,
levando à decadência. Rousseau atribui a esse princípio um duplo significado, pois
pode ser a razão de todo bem ou mal do progresso. Nesse sentido, a história da huma-
nidade não é previsível e pode alcançar o “paraíso” ou decair na “catástrofe”. KOHL, Karl
Heinz. Entzauberter Blick . Frankfurt a/M.: Suhrkamp, 1986. p. 181 e ss. Esse conceito-
chave na teoria humanista de Rousseau perpetua-se no pensamento do século XIX, cujos
teóricos, contudo, defendiam a perfectibilidade como um “acesso ao ‘estado de civiliza-
ção’ e à ‘virtude’”. SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças . São Paulo: Companhia
das Letras, 1993. p. 44-45.
32. ibidem. p. 10.
33. ibidem. p. 160-164.
34. ibidem. p. 18.
35. Essa concepção decadentista acerca do paradeiro dos indígenas americanos Martius
advogará no tratado “Como se deve escrever a história do Brasil”. A questão da possibi-
lidade ou não de os “índios” serem civilizáveis acompanha toda a sua obra, desde o
relato de viagem até os estudo etnográficos. Martius ora aceita a idéia da perfectibilidade
dos índios, o que implicaria a sua capacidade de se civilizar por meio da educação, ora
os rebaixa à subcategoria de semi-humanos, afastando-os da espécie humana, ora os vê
condenados ao extermínio por razões naturais. Para mais detalhes, ver LISBOA, Karen M.
op. cit. p. 143-168 e MARTIUS, C. F. P. von. Como se deve escrever a história do Brasil.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , Rio de Janeiro, v. 6, n. 24, 1845,
p. 381-403.
Recebido em 10/09/2007
Aprovado em 29/09/2007
Entre a Brandura
e a Força
O artigo analisa os principais diplomas This article analyses the principal legal
legais relativos às populações indígenas que diplomas related to the indigenous
vigoraram durante a presença da corte populations that were in effect during the stay
portuguesa no Brasil e reflete sobre o ideário, of the Portuguese Court in Brazil and reflects
na forma de memórias e planos, que inspirou about the ideas, expressed by memories and
ou subsidiou a formulação da legislação plans, that inspired or subsidized the formulation
indigenista nesse período. of the indigenous legislation in this period.
Palavras-chave: política indigenista; indigenismo; Keywords: indigenous politics; “indigenismo”;
legislação indigenista; século XIX. indigenous legislation; nineteenth century.
A
transferência do poder real Nesse período, os índios, como um todo,
para o Brasil, em 1808, em após esforços espontâneos ou induzidos
virtude da invasão napoleônica de ajustamento e de integração à socie-
de Portugal, promoveu, entre outras ini- dade dominante, foram relegados a um
ciativas para modernizar e europeizar a estado de marginalidade e de progressi-
colônia, a intensificação do caráter re- va diminuição populacional, tornando-se
pressivo das leis contra as populações insignificantes como entidades demográ-
indígenas. ficas ou culturais e inexistentes como
Família de Botocudos.
Alcide Dessalines d'Orbigny, Voyage pittoresque dans les deux Amériques, 1836
outra, toda ou quase toda a população efeitos vão variar entre a possibilidade
indígena remanescente, entregue à justi- de adaptação ou a eventualidade da des-
ficação da missão civilizadora que cabia truição de populações e extinção de po-
às coroas européias, tanto no plano in- vos autônomos.
terno como nos outros continentes, sub-
Na Amazônia, a escravização nas formas
metidos a uma irreversível onda de ex-
mais tradicionais – apresamento direto,
pansão colonial européia.
estímulo à guerra indígena para compra
Desde a conquista do continente ameri- de prisioneiros – continuava. Sabia-se da
cano, e em particular do território brasi- sobrexploração dos índios pelos direto-
leiro, a questão indígena se define pela res e pelos que os empregavam. Em ge-
dominação de mão-de-obra. Aldear os ral, pagava-se a eles menos do que aos
índios, reuni-los e sedentarizá-los, sob outros trabalhadores, comprava-se mais
domínio missionário ou leigo, era prática barata sua produção e lhes vendiam mais
comum desde meados do século XVI, com caras as mercadorias.
vista a abastecer os colonos de braços
Na capitania do Rio de Janeiro, a presen-
para o trabalho. O estabelecimento de
ça dos índios Coroados e Puris era a mai-
aldeamentos o mais próximo dos empre-
or ameaça à ocupação portuguesa dos
endimentos particulares ou públicos era
seus sertões, em especial no médio vale
garantia de custos menores e reserva de
do rio Paraíba. A região para onde a cria-
mão-de-obra, tornando, por conseguinte,
ção de gado ganhava impulso, dada a ne-
constantes os descimentos 1 para as regi-
cessidade crescente de abastecimento
ões a serviço da expansão econômica na
das minas de ouro, no século XVIII, e, mais
colônia.
tarde, o aumento do mercado interno de-
Ao longo da história colonial, a escravidão corrente da instalação da sede do reino,
dos índios foi abolida várias vezes. No sé- além da circulação de produtos agrícolas
culo XVIII, o Diretório Pombalino (1755- como fumo, farinha de mandioca, charque,
1798) se configurou como a expressão toucinho, fumo, usados na troca mercan-
mais clara e favorável à liberdade dos ín- til intercolonial e atlântica, sofre transfor-
dios. Todavia, declarada ou disfarçada, a mações significativas com a montagem de
escravidão indígena perdurou até pelos fazendas de café e a ampliação da produ-
menos meados do século XIX. ção açucareira de Campos.2
Nessa perspectiva, quanto mais distan- No século XIX, ocorre uma mudança no
tes dos centros de produção e exporta- caráter da questão indígena, que passa
ção, menos intensa a economia, mais a ser identificada, com maior intensida-
rarefeita a população colonial e mais “sel- de, com a posse, ocupação e disputa de
vagens” os índios. Nas franjas geográfi- terras e a conquista de espaço, não
cas das produções agrícolas, pecuárias descurando, contudo, do quesito mão-de-
e extrativistas desenvolvem-se relações obra. Ao serem os índios aldeados, cada
de tensão entre índios e colonos, cujos aldeamento recebia terras para a sobre-
E
deias sob a proteção do Estado. Caso
ssas medidas davam margem a
contrário, tropas de fazendeiros fariam
abusos sem limites. A compra de
esses ataques de uma forma mais vio-
crianças indígenas, chamadas
lenta e arrasadora, freqüentemente le-
kurukas , por uma bagatela ou seu rapto
vando os prisioneiros à escravidão. 15
para venda eram práticas freqüentes. 12
Saint-Hilaire, quando de sua passagem
Apesar da inflexível tendência que carac-
por Minas Gerais na década de 1820,
teriza o seu governo no que respeita a
registra que, nas margens do rio
índios, d. João VI adota, em casos espe-
Jequitinhonha, já não havia crianças
ciais, uma atitude mais branda com gru-
nas tribos que maior comunicação ti-
pos sabidamente pacíficos e cuja atra-
nham com os portugueses. 13 Acredita-
ção possa trazer benefícios ou atender a
va-se que a entrega dessas crianças in-
interesses da população regional. Encon-
dígenas a famílias de fazendeiros impor-
tram-se, nessa categoria, os índios de
tantes e altos funcionários da adminis-
diversas vilas do Ceará, Pernambuco e
tração provincial era o único meio de
Paraíba que, “tendo consideração à fide-
civilizá-las inteiramente, já que deixa-
lidade e amor à minha real pessoa, mar-
riam de conviver com seus pais e seus
charam contra os revoltosos que, na vila
hábitos bárbaros. 1 4
do Recife, tinham atentado levantar-se
Os efeitos de tal política fixaram-se per- contra a minha real soberania”. Como
manentemente por meio da institu- recompensa, foram distinguidos por um
C
a qualquer tipo de ataque mais violento.
onvém ressaltar que a preocu-
Essas unidades não passavam, em geral,
pação do Estado com a questão de “simples cabanas onde ficavam 4 a 5
indígena, nas áreas de frontei- soldados, completamente isolados na
ra, decorre do estabelecimento de con-
mata”, o que sugere um exagero em re-
flitos entre segmentos populacionais que lação à capacidade ofensiva dos índios,
disputavam o mesmo território. O gran- inspirada no preconceito e na necessida-
de objetivo de sua intervenção, na ver-
de de “limpar” os sertões da presença
dade, não era evitar o extermínio dos indígena. 19 Tanto os quartéis como a fe-
grupos indígenas, mas criar mecanismos rocidade das populações indígenas eram,
que evitassem o retardamento da conquis-
em grande medida, construções ideológi-
ta do novo espaço e a perda dos investi- cas que atendiam a interesses econômi-
mentos particulares e estatais realizados cos e políticos.
até então, ameaçados pela posição dos
índios de se recusarem a abandonar seus
Nos territórios dos atuais estados de Mi-
territórios e se engajar como trabalha-
nas Gerais e Espírito Santo, a justificati-
dores nas atividades produtivas de inte-
va para os quartéis e destacamentos ins-
resse dos colonizadores. 17
talados a partir de 1808 residia na ne-
Estreitamente associada aos interesses cessidade de estabelecer uma linha de
econômicos expressos na conquista de defesa das propriedades e da vida dos
colonos, que tomou um ritmo mais ace- 1808, iam combater os Botocudos em
lerado com a chegada da família real ao Minas Gerais, no Espírito Santo e no sul
Brasil e a ampliação dos incentivos eco- da Bahia, e recebiam metade do soldo
nômicos, o aumento do mercado de con- dos outros pedestres. 21
sumo interno, do investimento na rede
Havia em Curitiba aldeias de “índios ca-
viária, e a maior agilidade administrati-
çadores” incumbidos pelo governo de
va, decorrente da premência em trans-
combater os selvagens e rechaçá-los das
formar a colônia na sede do governo
terras cultivadas. No Pará e no atual
metropolitano. Era fundamental intensi-
Amazonas, os Mundurucu foram exten-
ficar a comunicação entre as províncias
samente utilizados para combater os
adotando métodos persuasivos de apro-
Mura e, mais tarde, os Cabanos.
ximação com as populações indígenas,
que se resumiam, na prática, na oferta Outro uso freqüente dos índios era no
de comida e de instrumentos como ma- apoio às instalações militares e às no-
chados e facões, combinada a práticas vas rotas comerciais entre as várias
violentas, quando necessário. províncias. Nessas rotas, estabeleciam-
se aldeias das quais se esperavam que
Além de militares, as tropas eram com-
abrissem e mantivessem estradas, for-
postas por índios aldeados e por vadios
necessem canoeiros, fizessem lavouras
e degredados. A opção pelos índios de-
capazes de abastecer os viajantes e
corria do desconhecimento da área a ser
servissem, em geral, de apoio e de
conquistada pelos colonos e da falta de
mão-de-obra.
recursos para a compra de armas, mu-
nição e equipamentos. Esses índios Enfim, o Estado usava os índios como
“mansos e aliados” surgiam como alter- povoadores em lugares distantes, o que,
nativa para a solução desses óbices à em tempos remotos favorecera as rela-
expansão e à conquista: conheciam bem ções com grupos nas fronteiras. Em 1809,
o espaço físico, os hábitos e técnicas após haver declarado guerra aos índios
de combate dos opositores e as formas de Guarapuava, d. João acrescenta:
de obter alimentos nas matas, além de
Não é conforme aos meus princípios
usarem armamentos e munições de fá-
religiosos, e políticos o querer esta-
cil e gratuita reposição, como os arcos
belecer minha autoridade nos Cam-
e as flechas. 2 0
pos de Guarapuava, e território adja-
Com relação às guerras intertribais, a cente por meio de mortandades e
política adotada era a de estimular ações crueldades contra os índios, extirpan-
que acentuassem o antagonismo entre os do as suas raças, que antes desejo
vários grupos, para torná-los irreconcili- adiantar, por meio da religião e civi-
áveis. O uso bélico dos índios se esten- lização, até para não ficarem deser-
deu a alvos não tradicionais: índios “man- tos tão dilatados e imensos sertões,
sos” eram parte das tropas que, em e que só desejo usar da força com
Paraíba e o rio Preto. O autor fornece Vilhena, a persuasão por meio do ensino
outros dados sobre a região: de práticas agrícolas, da introdução de
ferramentas e do convencimento sobre
A venda da Aldeia das Cobras é pro-
a superioridade da cultura européia se-
priedade de dois franceses que há
ria mais eficaz para que os índios enten-
muito tempo habitam neste distrito,
dessem “que não pretendemos as suas
muito me elogiaram sua fertilidade.
terras, mas sim sua amizade, o seu tra-
Estes homens haviam feito, pelas
to, não o seu mal, mas fazer-lhes todo o
próprias mãos, considerável planta-
bem possível”.
ção de café nas terras do desem-
bargador Loureiro, homem desmora- Seria prudência o fazê-los ver traba-
lizado por causa dos costumes e a lhar em diferentes ofícios para exci-
falta de probidade. Achando que não tar-lhes o amor da agricultura, haven-
cumpria as cláusulas a que se obri- do cuidado ao princípio em dar-lhes
gara para com eles, e temendo algu- saída ao supérfluo das suas colhei-
ma trapaça, venderam as plantações tas por troca daqueles gêneros de
por 200$000 réis, antes que produ- que mais necessitassem ou apeteces-
zissem. E asseguram que, neste ano, sem. E este seria um dos meios mais
comprador ou o próprio Loureiro, eficazes para avivar-lhes a curiosida-
que ficou em seu lugar, lucrarão dois de [e persistência] no trabalho: de
mil cruzados. 26
dia em dia iriam necessariamente
sentindo novas necessidades e, sem
Concomitante à legislação referente às
que o pressentissem, se veriam
populações indígenas, uma série de me-
engolfados no luxo e se viriam a abrir
mórias e de planos é formulada nesse
duas grandes portas, uma para a agri-
período, com o objetivo de apresentar
cultura, e para o comércio a outra. 27
recomendações acerca das estratégias
mais adequadas sobre como lidar com A “Memória sobre a civilização dos índi-
essa categoria étnica, que compõe peri- os e distribuição das matas”, escrita em
fericamente a população brasileira. 1816 pelo desembargador Antonio José
O
da Silva Loureiro, é um exemplo dos ob-
professor régio Luís dos Santos
jetivos que se tentaram impor à política
Vilhena, em “Reflexões políti-
indigenista no período. Nesse documen-
cas sobre as 24 colônias per-
to, Loureiro procura dar solução a duas
tencentes a Portugal, e muito principal-
questões relevantes: submeter os índios
mente as do Estado do Brasil na América
e tomar ou converter suas terras em
meridional”, defende o desenvolvimento
grandes propriedades:
da agricultura como um dos pilares para
o crescimento da colônia e o emprego A Civilização dos Índios, no meu
“mais [da] arte do que [da] força” no tra- pensar, é objeto mui fácil, logo que
to com as populações indígenas que ha- se descortinem as matas, reduzindo-
bitavam todo o território brasileiro. Para se os terrenos à agricultura, é mes-
pensar a questão indígena. Para se com- sido educados como convinha, pois
VI”, de José da Silva Lisboa, 29 visconde natural e hereditária, que é para eles
1818, em que propugna o fim do tráfico ção de uma vida mais folgada e cô-
Coroa portuguesa serviram como preâm- engajamento do índio como força de tra-
bulo para um debate que se intensificará balho, mesmo no regime de servidão as-
no Império, em torno não dos fins de uma segurado pela permissiva legislação co-
política indigenista, e sim dos seus mei- lonial de d. João VI, mantida durante o
os. A questão consistia em exterminar Primeiro Império. Nesse sentido, não é
sumariamente os índios, distribuí-los aos de se estranhar que a Constituição de
moradores ou cativá-los com brandura. 1824 sequer mencione a questão indí-
gena, que se tornou competência das As-
***
A
sembléias Legislativas Provinciais. A per-
s possíveis esperanças de que manência desses velhos interesses pode
a independência do Brasil trou- também ser constatada pela leitura do
xesse uma ordem mais justa Regulamento interino para o aldeamento
foram frustradas pelo governo de d. e civilização dos índios Botocudos do rio
Pedro I, que, em relação aos índios, ado- Doce da província do Espírito Santo , en-
tou uma política tão opressiva quanto a viado ao presidente daquela província
de seu pai, a despeito dos projetos em 28 de janeiro de 1824, por João
indigenistas de cunho mais liberal leva- Severiano Maciel da Costa, marquês de
dos às Cortes de Lisboa e à Assembléia Queluz, constituinte em 1824, ministro
Constituinte do Império do Brasil por po- de Pedro I, Ministro de Estrangeiros no
líticos influentes, como José Bonifácio de gabinete de 1827, além de outras fun-
Andrada e Silva, 33
nas quais não encon- ções de destacada importância política.
traram apoio, nem mereceram discussão Dado o considerável número de índios
quanto ao mérito de suas proposições. Botocudos existentes nas margens do rio
O desinteresse quase unânime com que Doce, o ministro Maciel da Costa afirma-
foram recebidos os projetos relativos à va, em ofício, ser essencial “contentar e
“civilização dos índios”, tanto em Lisboa aproveitar já aldeando-os e dispondo-os
quanto no Rio de Janeiro, revelam que para a civilização, no que tanto ganham
o crescimento e a expansão das popula- a humanidade, religião e o estado”, 34 o
ções de origem européia no Brasil tor- que, sem dúvida, se coadunava com os
navam dispensável e pouco atraente o compromissos de seu autor.
N O T A S
1. Para a compreensão da prática dos descimentos e de outras categorias classificatórias,
como tapuio e mestiço , ver MOREIRA NETO, Carlos de Araujo. Índios da Amazônia : de
maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988. p. 37-72.
2. FRAGOSO, João Luiz Ribeiro. Homens de grossa aventura : acumulação e hierarquia na
praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830) . Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
(Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, 1). FLORENTINO, Manolo; FRAGOSO, João Luiz
Ribeiro. Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária elite mercantil em
uma economia colonial tardia Rio de Janeiro, c.1790-c.1840 . Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001.
Recebido em 29/04/2008
Aprovado em 17/05/2008
P E R F I L I N S T I T U C I O N A L
O Museu D. João VI
Sonia Gomes Pereira
Historiadora da arte, museóloga e professora titular da Escola
de Belas Artes da UFRJ. Coordena o Projeto de Revitalização
do Museu D. João VI da EBA/UFRJ, apoiado pela Petrobras.
Este artigo apresenta a história e descreve o This article focus on the history and the collec-
acervo do Museu D. João VI da Escola de tion of the D. João VI Museum, which belongs to
Belas Artes da UFRJ. Enfatiza, ainda, o the School of Fine Arts of the Federal University
projeto para sua revitalização, realizado com of Rio de Janeiro. Besides, it emphasizes its revita-
patrocínio da Petrobras, que altera seu conceito lization project sponsored by Petrobras that intends
museológico básico, investindo na organização to change its basic musicological concept, opening
de uma reserva técnica que será disponibilizada the technical reserves to the public for research.
ao público para pesquisa. Keywords: D. João VI Museum of the School of Fine
Palavras-chave: Museu D. João VI; museu Arts; university museum (Federal University of Rio de
universitário; ensino artístico. Janeiro); artistic teaching.
A
moderna para os padrões da época. Cri-
criação da Academia de Belas ada no bojo da contratação da chamada
Artes, em 1816, foi um dos Missão Francesa, a academia teve, no
inúmeros atos de d. João VI, entanto, de esperar dez anos para ser
durante a permanência da corte portu- efetivamente aberta, em 1826, já como
guesa no Brasil, que visavam conferir ao Academia Imperial de Belas Artes, ocu-
N
E, pouco depois, em 1908, transfere-se
para a nova sede, um prédio eclético pro- o decorrer dessa longa traje-
jetado pelo arquiteto Adolfo Morales de tória, a antiga academia/esco-
Los Rios, pai. O prédio da ENBA, la reuniu um extenso acervo
construído simultaneamente com a Biblio- de obras de arte. Uma parte provinha da
teca Nacional e o Teatro Municipal, forma- coleção real trazida pela corte portuguesa
em 1808. Outra veio para o Brasil, em sor Almir Paredes Cunha, preocupado
1816, com Joaquim Lebreton, o chefe com a sua conservação, resolveu reuni-
da Missão Francesa. Mas o maior conjun- las, criando um museu, a que foi dado o
to é oriundo da própria academia, fruto nome D. João VI, em homenagem ao cri-
de suas diversas atividades: exercícios de ador da instituição mais que centenária.
alunos, “envios” dos pensionistas, cópi-
3
O museu foi organizado pela museóloga
as de obras dos mestres mais importan- Ecyla Castanheira Brandão, e seu mobi-
tes da tradição européia, material didáti- liário expositivo, desenhado por Almir
co usado nos ateliês, obras vencedoras Gadelha – ambos professores da ENBA –,
de concursos, como o Prêmio de Viagem ocupando um amplo espaço no segundo
ao Exterior, as seleções para contratação andar do prédio da reitoria, junto à pró-
de professores e as Exposições Gerais pria escola, que ocupa quatro andares
ou Salões. (primeiro, segundo, sexto e sétimo) do
mesmo prédio.
Em 1937, mesmo ano em que foi criado
o Serviço de Patrimônio Histórico e Artís- Assim, desde sua fundação, o Museu D.
tico Nacional, a enorme coleção da aca- João VI dedica-se basicamente à preser-
demia/escola foi desmembrada. A maior vação e ao acesso àquele acervo por um
parte – e também a que foi considerada público universitário, em especial pro-
a mais nobre na época – passou a cons- fessores e alunos da Escola de Belas
tituir o Museu Nacional de Belas Artes. O Artes, que o utilizam como complemen-
restante, em geral de caráter mais didá- to a diversas disciplinas, tais como De-
tico, continuou nas salas de aula e nos senho, Restauração, História da Arte,
ateliês da ENBA. Mas tudo continuava no entre outras.
mesmo prédio da avenida Rio Branco. O O acervo, tanto museológico quanto
MNBA ocupava a parte da frente, voltada arquivístico, tornou-se uma referência
para a Rio Branco, e a ENBA, a parte importante para pesquisadores da arte
posterior, voltada para as ruas México e brasileira do século XIX e boa parte do
Araújo Porto Alegre. Nos relatos de mui- XX. Essa vocação para a pesquisa tem-
tos artistas, aparecem referências à con- se destacado de forma crescente ao lon-
vivência estimulante entre a ENBA e o go dessas décadas, atraindo estudiosos
MNBA nessa época, assim como à circu- de fora da UFRJ, de outros estados e,
lação dos alunos e jovens artistas pela eventualmente, do exterior, interessa-
vizinhança: a Biblioteca Nacional, o Tea- dos na pesquisa in loco de suas fontes
tro Municipal, as livrarias e, naturalmen- primárias, em grande parte ainda inex-
te, os bares. ploradas. 4
Transferidas para a Ilha do Fundão em Além disso, o Museu D. João VI tem di-
1975, essas obras continuaram inicial- vulgado o seu acervo por meio da partici-
mente nas salas e nos ateliês da escola. pação em várias exposições de importân-
Mas, em 1979, o então diretor, profes- cia nacional – como a Mostra dos 500
Anos –, assim como atendido regularmen- A biblioteca de obras raras engloba cer-
te às solicitações de fotografia do seu ca de quatro mil livros, entre eles o de
acervo para fins editoriais. As peças de Grandjean de Montigny sobre a arquite-
destaque do museu para esses fins têm tura toscana, escrito em 1815.
sido os desenhos arquitetônicos de
O arquivo inclui dois grupos de docu-
Grandjean de Montigny; as telas proveni-
mentos. O primeiro corresponde a 118
entes dos Prêmios de Viagem ao Exterior
livros, com cerca de duzentas páginas
– especialmente de Vitor Meireles e Pedro
cada, contendo os registros manuscri-
Américo; a coleção de aquarelas de José
tos da documentação regular da acade-
Reis de Carvalho; uma sanguínea de
mia/escola – como as atas da Congre-
Portinari; entre outros.
gação, as matrículas nos cursos e os
programas e julgamentos dos diversos
O ACERVO DO M USEU D. JOÃO VI
O
concursos –, com um total estimado de
acervo histórico-artístico atual- 23.600 páginas. O segundo grupo refe-
mente conservado pela Escola re-se à documentação avulsa – reunida
de Belas Artes da UFRJ com- em 120 caixas, com entre dez e 15 en-
preende, na verdade, três coleções com- velopes, cada um com cerca de vinte
plementares: uma biblioteca de obras documentos que podem somar três a
raras, um arquivo e uma coleção de quatro páginas, estimando-se um total
obras de artes visuais. de 118.000 páginas –, que compreen-
de correspondências, certidões, decla-
rações relativas aos professores e alu-
nos da instituição, como é o caso da car-
ta enviada em 1857 pelo pintor Eugène
Délacroix, membro correspondente da
academia em Paris.
obras que tiveram e ainda têm funções A aferição da aprendizagem do aluno era
didáticas ou são resultantes das ativida- feita por meio de concursos, com provas
des pedagógicas de uma escola de artes. práticas que iam desde as mais simples,
para iniciantes, até o grau máximo: o
O sistema pedagógico acadêmico contin-
concurso para o Prêmio de Viagem ao
ha certamente um caráter teórico e ide-
Exterior. A contratação de professores
ológico, que manteve sempre sua adesão
era igualmente realizada através de con-
às diretrizes dominantes da tradição ar-
cursos, em que os candidatos deviam
tística ocidental, mas o ensino em si ca-
produzir obras sobre um mesmo tema
racterizava-se pelo pragmatismo, em que
proposto pelo júri.
importavam, sobretudo, a relação direta
entre mestre e aluno e a experiência prá- Durante grande parte do século XIX, pre-
tica no ateliê. dominaram as obras de temas históri-
cos ou retratos. No entanto, a partir da
Os métodos do ensino artístico acadêmico
passagem do XIX para o XX, outros gê-
apoiavam-se essencialmente na prática da
neros tornaram-se importantes, como as
cópia, tanto de obras da Antigüidade greco-
paisagens, as naturezas-mortas e as ce-
romana, quanto dos grandes mestres do
nas do cotidiano. Ao lado desses temas
Renascimento, além do estudo da figura
estritamente artísticos, há no acervo
humana, envolvendo estudos de anatomia
obras que evidenciam a importância do
e de modelo vivo.
Estudo para cena do dilúvio, Gravura de Aléxis François Girard utilizada como recurso
pedagógico para exercício de cópia na Academia Imperial de Belas Artes, Museu D. João VI
D
numa linha de pesquisa sobre a história
esde a sua criação em 1979, do ensino artístico no Brasil, tomando
como referido anteriormente, o como estudo de caso a sua própria traje-
Museu D. João VI atende a pro- tória como instituição.
fessores e alunos da graduação e da pós-
A motivação para o interesse nesse estudo
graduação e pesquisadores de todo o país
é evidente. Por um lado, é a nossa própria
e, eventualmente, do exterior.
história – no sentido em que ainda vivemos,
Trata-se de um acervo importante para na escola de hoje, os sucessos e as limita-
a memória da produção artística brasi- ções de um sistema de ensino artístico que,
leira nos séculos XIX e XX, pois é notó- apesar de muito reformado, guarda linhas
rio que a academia/escola de Belas Ar- de continuidade com o passado. Por outro
tes desempenhou, ao longo de sua tra- lado, as fontes privilegiadas para esse es-
jetória de mais de 180 anos, um papel tudo – grande parte das obras e dos docu-
central na história das artes visuais do mentos ligados diretamente às questões de
nosso país, sendo referência obrigató- ensino – encontram-se na própria escola,
ria tanto na formulação do ensino ofici- no Museu D. João VI.
al, quanto no funcionamento do sistema
Várias iniciativas foram tomadas pela pós-
das artes, sobretudo através da sua
graduação da EBA nessa frente de traba-
vinculação aos salões e às premiações,
lho. Foi desenvolvida uma série de pes- inventário científico e sistemático dos
quisas avançadas – dissertações, teses e acervos museológico e arquivístico. Em
pesquisas de pós- doutoramento com pro- uma primeira etapa, a realização des-
fessores, alunos e pesquisadores ligados se inventário possibilitou a publicação
à escola (alguns destes últimos por meio do Catálogo do acervo de artes visuais ,
de bolsas da Capes, CNPq e Faperj). 7
em 1996. 1 0
C
anos da Escola de Belas Artes: 1816-
om o apoio do CNPq, foi desen-
1996” . Seu desenvolvimento foi coor-
volvido o projeto de pesquisa
denado pelas professoras Myriam
“180 Anos da Escola de Belas
Andrade Ribeiro de Oliveira e Sonia
Artes: 1816-1996”, de agosto de 1995
Gomes Pereira e, em sua segunda eta-
a julho de 1999. A base de desenvolvi-
pa, contou com a participação da funcio-
mento do projeto foi a realização de um
nária Jurema Palmeira. 11
E
assim como a edição do novo catálogo.
ntre os 3.736 projetos inscritos
no Programa Petrobras Cultural A questão da reserva técnica do Museu
2004/2005, apenas 141 foram D. João VI acabou tomando dimensões
contemplados, após um processo de se- muito mais amplas do que as imaginadas
leção pública. Entre eles, “Memória da na elaboração original do projeto
arte brasileira dos séculos XIX e XX: Petrobras, pois envolvia a tomada de
revitalização do Museu D. João VI – UFRJ”. decisão sobre um velho problema que
Após a aprovação no Ministério da Cultu- afligia o museu: a necessidade de uma
ra, na rubrica da Lei Rouanet, foi implan- solução para as infiltrações no teto de
tado a partir de agosto de 2005, com tér- suas instalações.
mino previsto para dezembro de 2007. 12 Como já foi dito, desde sua criação em
O edital do Programa Petrobras Cultural 1979, o museu passou a ocupar um am-
destacava dois objetivos para a área de plo espaço no segundo andar do prédio
Preservação e Memória: identificação,
pesquisa, conservação e disponibilização
de acervos e coleções representativas da
memória da produção artística no Brasil
e publicação de obras de referência para
a memória das artes no Brasil.
da reitoria da UFRJ. O local, com cerca no. Basta dizer que a nossa escola pos-
de 1.200 m , foi dividido basicamente em
2
sui atualmente cerca de 1.800 alunos,
três setores: as salas da Seção Técnica, como já foi citado, envolvendo a necessi-
a Reserva Técnica e a ampla Exposição dade de manutenção de salas de aula,
Permanente, onde um circuito cronológi- ateliês, oficinas, laboratórios – muitos
co apresentava as etapas mais importan- com exigência de equipamentos sofisti-
tes da história da academia/escola: a che- cados e que se tornam ultrapassados com
gada da Missão Francesa; a primeira ge- uma velocidade cada vez maior. As ver-
ração de artistas brasileiros formados bas, portanto, são sempre insuficientes
pela academia; a geração da passagem para toda essa demanda, tanto do ensi-
do século e a ENBA; e a história mais no propriamente dito quanto do museu.
recente da EBA.
A segunda constatação diz respeito à uti-
No entanto, a partir do final da década lização do acervo – até em razão de sua
de 1980, o museu começou a apresen- localização num campus universitário
tar problemas de infiltração em sua co- afastado do centro da cidade e, portan-
bertura, constituída por pequenas cúpu- to, fora do circuito de consumo cultural
las de concreto e acrílico, comprometen- da cidade. Assim, a perspectiva de
do também a iluminação do espaço. Des- revitalização não poderia se colocar nos
de então, vários projetos foram feitos mesmos padrões da maioria dos museus
para que a universidade empreendesse e espaços culturais da cidade, em que o
as obras de recuperação, mas o seu cus- apelo à visitação geral é um elemento
to elevado e as dificuldades orçamentá- importante nos seus critérios de julga-
rias impediram a solução do problema. mento para utilização de recursos e es-
tabelecimento de prioridades.
Finalmente, em 2006, foi decidido pela
Congregação da EBA o deslocamento do No nosso caso, o museu é, essencial-
museu para um outro local, no sétimo mente, universitário, voltado para o uso
andar do mesmo prédio da reitoria. No de professores e alunos da instituição e
entanto, a mudança que está sendo im- para os pesquisadores, que têm um in-
plantada não é apenas de lugar, mas, teresse direto em suas fontes primári-
sobretudo, de conceito museológico. E é as. Mais que isso, o museu atende a uma
exatamente esse ponto que nos parece escola de artes, e o seu acervo deve
importante discutir com mais detalhes. servir ao seu propósito original, aquele
que promoveu a própria constituição da
Ao longo dos quase trinta anos de exis-
coleção: servir de instrumento de estu-
tência do Museu D. João VI, algumas
do e observação aos alunos para a com-
constatações puderam ser feitas. A pri-
preensão da tradição artística que
meira e mais evidente são as enormes
embasou a trajetória da arte ocidental
dificuldades financeiras para a manuten-
e até mesmo para a discussão sobre os
ção de um museu numa instituição públi-
métodos de formação do artista.
ca voltada prioritariamente para o ensi-
Desta forma, o acervo do Museu D. João disso, tem servido de base para uma das
VI serve às aulas de Desenho e História principais linhas de pesquisa da pós-gra-
da Arte, e é usado como laboratório nas duação da escola, com uma produção sig-
disciplinas ligadas à restauração, contri- nificativa de dissertações, teses e publi-
buindo na formação dos alunos de gra- cações sobre a história da instituição e a
duação e como apoio à pesquisa aos alu- questão do ensino artístico.
nos de pós-graduação, pois, para todos
O projeto museológico do novo Museu D.
os profissionais no campo da
João VI foi feito pela professora Sonia
visualidade, é importante a compreen-
Gomes Pereira e apóia-se em duas premis-
são tanto da tradição quanto da
sas básicas. A primeira, como já foi dito,
contemporaneidade.
é a disponibilização da reserva técnica ao
Ainda como museu universitário, atende público. A segunda, o acondicionamento e
a estudiosos de todo o Brasil e mesmo a apresentação do acervo na nova reserva
do exterior, uma vez que seu acervo é técnica, inicialmente seguindo o critério do
importante para a compreensão da arte meio artístico (desenho, pintura, gravura,
brasileira dos séculos XIX e XX. Além escultura etc.) e, depois, o critério temático
(exemplos, temas históricos, mitológicos,
alegóricos, decoração arquitetônica, orna-
mento vegetal, estudo anatômico e assim
por diante). Essa decisão é sustentada pela
convicção de que o acervo do Museu D.
João VI, salvo algumas exceções, tem mais
importância como coleção, como série de
objetos, do que propriamente pelas obras
individualmente. Além disso, no meu pró-
prio trabalho de pesquisa, tem ficado cada
vez mais claro que, no universo do ensino
e da produção acadêmica, as escolhas dos
artistas eram muito mais tipológicas do que
artísticas.15 O projeto, portanto, investiu na
compra de trainéis deslizantes, estantes e
mapotecas para armazenamento do acer-
vo, além de equipamentos para controle
climático e de segurança da nova reserva
técnica. O projeto museográfico do novo
Museu D. João VI é da arquiteta Marize
Malta, também professora da EBA/UFRJ.
Equipamentos (trainéis deslizantes Em segundo lugar, ao manter unidos o mu-
para pinturas e estantes para esculturas)
da nova Reserva Técnica do Museu seu, o Arquivo e a Biblioteca de Obras
D. João VI, adquiridos pelo Projeto Petrobras
N O T A S
1. GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos históricos : cami-
nhos da historiografia, São Paulo, n. 1, p. 5-27, 1988. SANTOS, Afonso Carlos Marques
dos. A Academia Imperial de Belas Artes e o projeto civilizatório do Império. In: PEREI-
RA, Sonia Gomes (org.). 180 anos da Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/
UFRJ, 1997. p. 127-146.
2. PEREIRA, Sonia Gomes. A reforma urbana de Pereira Passos e a construção da identidade
carioca . 2. ed. Rio de Janeiro: Pós-Graduação da EBA/UFRJ, 1998.
3. O vencedor do Prêmio de Viagem ao Exterior recebia uma pensão para permanecer al-
guns anos na Europa (em geral na Itália ou na França) estudando no ateliê de algum
mestre afamado. A cada ano, devia cumprir obrigações, com grau crescente de dificulda-
de: esses exercícios eram enviados para o Brasil para serem analisados pelos professo-
res da academia. Dessa avaliação dos “envios” dependia a manutenção da pensão.
4. Vários pesquisadores de outros estados têm utilizado as fontes primárias do Museu D.
João VI para o desenvolvimento de suas pesquisas. Como exemplo, podemos citar:
DIAS, Elaine Cristina. Félix-Émile Taunay : cidade e natureza no Brasil . Tese (Doutorado
em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Cam-
pinas, Campinas, 2005.
5. A maior parte da historiografia sobre a arte brasileira foi escrita sob o ponto de vista
modernista. Assim, a sua relação com o passado estruturou-se, de um lado, na mitificação
do período colonial e, de outro, na condenação e no desprezo pela arte do século XIX,
considerada, grosso modo , acadêmica, mero pastiche da arte européia, sobretudo fran-
cesa. Essa abordagem trouxe alguns problemas sérios. Um deles foi a falta de proteção
ao patrimônio do século XIX, muitas vezes demolido com o aval dos próprios órgãos
encarregados de sua preservação. Outro problema foi a crítica apaixonada e militante
que fez com que a maioria dos estudos sobre a trajetória dessa instituição fosse marcada
pelo maniqueísmo: a rejeição a priori de tudo o que tivesse a ver com a academia/
escola, ou então a sua defesa incondicional, freqüentemente em um discurso laudatório
vazio. É importante enfatizar que essa reavaliação não deve tomar, na minha opinião, a
conotação de pura e simples reabilitação da arte acadêmica, mas, sim, estar inserida em
um cenário mais amplo de reavaliação crítica de toda a arte do século XIX, que vem
sendo processada desde os anos 60 na Europa e nos Estados Unidos e a partir dos anos
80 no Brasil.
6. PEREIRA, Sonia Gomes. Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro: revisão
historiográfica e estado da questão. Revista Arte & Ensaios , Rio de Janeiro, n. 8, p. 72-
83, 2001.
7. Seria impossível listar as teses e dissertações que têm sido desenvolvidas no âmbito do
Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ sobre a história do ensino
artístico. A título de exemplo, destaco algumas pesquisas mais recentes: SÁ, Ivan Coe-
Recebido em 04/12/2007
Aprovado em 21/12/2007
B I B L I O G R A F I A
ABREU, João Capistrano de. Ensaios e estudos (Crítica e história), 2ª série. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
AGUILAR, Nelson. Mostra do Redescobrimento : negro de corpo e alma. São Paulo: As-
sociação Brasil 500 Anos Artes Visuais; Fundação Bienal de São Paulo, 2000.
______. O feitor ausente : estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-
1822. Petrópolis: Vozes, 1988.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas : identidade e cultura nas
aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
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I M A G E N S
A PRESENTAÇÃO
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de Estampas Antigas sobre Portugal por artistas estrangeiros dos séculos XVI a XIX,
realizada nos Museus Nacionais de Arte Antiga, de Lisboa e de Soares dos Reis . Porto:
Maranus-Empresa Industrial Gráfica do Porto Ltda., 1946. OR 1582 Bib.
Rio, visto do morro da Glória. GRAHAM, Maria Dundas. Journal of a voyage to Brazil
and residence there during part of the 1821, 1822, 1823 . London: Longman Group
Limited, 1824. OR 0595 Bib – p. 16.
Selo do tratado de paz entre França e Portugal estabelecendo o fechamento dos portos
portugueses na Europa aos navios da Inglaterra e fixando os limites entre a Guiana Fran-
cesa e o Brasil. Paris, 9 de outubro de 1801. Negócios de Portugal. Códice 740 – p. 29.
Jurandir Malerba
Planta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Impressão Régia,
1812. Ministério da Viação e Obras Públicas. 4Y Map 534 – p. 49.
Papéis relativos à vinda da família real para o Brasil (Relação das pessoas que vieram
e das naus que fizeram o transporte), 1808. Negócios de Portugal. Códice 730 – p. 51.
Frente principal do edifício para o sul, que faz o centro na rua do Ouvidor. José da
Silva Moniz, primeiro arquiteto dos Paços Reais e encarregado das Obras Públicas
por Carta do Príncipe Regente. Rio de Janeiro, 1812. Proveniência desconhecida. F2
Map 373 – p. 52.
A lady going to visit. KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Longman, 1816. OR
0951 – p. 69.
ESCRAVOS NO B RASIL
Roberto Conduru
Mercado de negros. RUGENDAS, Johann Moritz. Voyage pittoresque dans le Brésil . Pa-
ris: Engelmann & Cie., 1835. OR 2119 Bib – p. 85.
Vista da sala de espetáculos na praça do Rossio. ARAGO, Jacques Étienne Victor. Voyage
autor du monde: fait par ordre du Roi sur les corvettes de S. M. l’Uranie et la Physicienne,
pedant les années 1817,1818,1819 et 1820. Paris: Imprimerie en Taille-Douce de
Langlois, 1824-1826. OR 2126 Bib – p. 97.
Praça do teatro. ENDER, Thomas. O velho Rio de Janeiro através das gravuras de Thomas
Ender . São Paulo: Melhoramentos, s.d. ACG06053 – p. 99.
Aves na lagoa junto ao São Francisco. J. B. Spix e K. F. Von Martius, Ph. Reise in
Brasilien... in den Jahren 1817 bis 1820 ... München: Gedruckt bei M. Lindauen, 1823-
1831. Álbum 46, prancha 43 – p. 114.
José de Santa Rita Durão. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. Lisboa:
Regia Officina Typographica, 1781. OR 0022 Bib 1781 – p. 118.
Índio Juri. J. B. Spix e K. F. Von Martius, Ph. Reise in Brasilien... in den Jahren 1817 bis
1820... München: Gedruckt bei M. Lindauen, 1823-1831. Álbum 46, prancha 7 – p. 121.
Or namentos e utensílios dos camacans. PHILIPP, Maximilien Alexander, prinz von Wied-
Neuwied. Voyage au Brésil dans les années 1815, 1816 et 1817 . Paris: Arthus Bertrand,
Libraire, 1821-1822. OR 1753 Atlas Bib – p. 141.
O M USEU D. J OÃO VI
Sonia Gomes Pereira
Carta manuscrita do pintor francês Eugene Délacroix, de 1857, aceitando ser membro
correspondente da Academia Imperial de Belas Artes. Arquivo do Museu D. João VI/
EBA/UFRJ – p. 150.
Estudo para cena do dilúvio. Gravura de Aléxis François Girard utilizada como recurso
pedagógico para exercício de cópia na Academia Imperial de Belas Artes. Museu D.
João VI/EBA/UFRJ – p. 151.
Higienizaçäo do acervo do Museu D. João VI, realizada pelo Projeto Petrobras. Dese-
nho de modelo vivo, conhecido como “academia” – p. 154.
Instruções aos
Colaboradores
Coletânea: REIS FILHO, Daniel Aarão XII. Informações sobre o periódico po-
e SÁ, Jair Ferreira de (orgs.). Ima- dem ser solicitadas pelo telefone
gens da revolução: documentos polí- (21) 2179-1253 ou via e-mail
ticos das organizações clandestinas (difusaoacervo@arquivonacional.gov.br).