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ACERVO

ISSN 0102-700-X

ACERVO
R E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L

Revista do Arquivo Nacional


VOLUME 21 • NÚMERO • 01 • JAN/JUN • 2008

Neste número

Francisco José Calazans Falcon


Jurandir Malerba
Karen Macknow Lisboa
Kirsten Schultz
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves

v.21, n o 1, jan/jun 2008


Guilherme Pereira das Neves
Maria Beatriz Nizza da Silva
Maria Elizabeth Brêa Monteiro
Paulo Mugayar Kühl
Roberto Conduru
Sônia Gomes Pereira

A CORTE NO BRASIL: 200 ANOS

A CORTE NO BRASIL A CORTE NO BRASIL


200 ANOS 200 ANOS
Presidência da República
Arquivo Nacional

ACERVO
REVISTA DO ARQUIVO NACIONAL

R IO DE J ANEIRO , V . 21, NÚMERO 1, JANEIRO / JUNHO 2008


© 2008 by Arquivo Nacional
Praça da República, 173
CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da República
Dilma Vana Roussef
Secretária-Executiva da Casa Civil da Presidência da República
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Diretor-Geral do Arquivo Nacional
Jaime Antunes da Silva
Coordenador-Geral de Acesso e Difusão Documental
Haroldo Mescolin Regal
Coordenadora de Pesquisa e Difusão do Acervo
Maria Elizabeth Brêa Monteiro
Editora
Cláudia Beatriz Heynemann
Conselho Editorial
Jaime Antunes da Silva, Presidente; Haroldo Mescolin Regal, Coace; Inez Stampa, Copra;
Maria Elizabeth Brêa Monteiro, Coped; Maria Esperança de Resende, Coreg; Maria Izabel de
Oliveira, Coged; Marilena Leite Paes, Coaco; Mauro Domingues de Sá, Copac; Mauro Lerner
Markowski, Codes; Renato Diniz, Coad; Samuel Maia dos Santos, Coadi; Valéria Maria
Morse Alves, Cocac; e Wanda de Cassia Santos Ribeiro, Codac
Conselho Consultivo
Ana Maria Camargo, Angela Maria de Castro Gomes, Boris Kossoy, Célia Maria Costa,
Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Helena Ferrez, Helena Corrêa Machado, Heloísa
Liberalli Belotto, Ilmar Rohloff, Jaime Spinelli, Joaquim Marçal, José Carlos Avelar, José
Sebastião Witter, Léa de Aquino, Lena Vânia Pinheiro, Margarida de Souza Neves, Maria
Inez Turazzi, Marilena Leite Paes, Regina Maria Wanderley e Solange Zúñiga
Tradução e Pesquisa de Imagens
Viviane Gouvêa
Preparação e Revisão
Alba Gisele Gouget, Mariana Simões e Maria Rita Aderaldo
Projeto Gráfico
André Villas Boas
Editoração Eletrônica
Judith Vieira
Capa
Alzira Reis e Tânia Cuba
Digitalização de Imagens
Flávio Ferreira Lopes
Pesquisa Bibliográfica
Mariana Lambert e Renata William

Acervo: revista do Arquivo Nacional. —


v. 21 n. 1(jan./jun. 2008). — Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2008.
v.21; 26 cm
Semestral
Cada número possui um tema distinto
ISSN 0102-700-X
1.A Corte no Brasil: 200 anos - Brasil -
I. Arquivo Nacional CDD 981
S U M Á R I O

Apresentação
3

Entrevista com Maria Beatriz Nizza da Silva


09

Chegada da corte - 200 anos


Romantismo e cientificismo
Francisco José Calazans Falcon

27

Alegrias e Infortúnios dos Súditos Luso-Europeus e Americanos


A transferência da corte portuguesa para o Brasil em 1807
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves

45

Sobre o Tamanho da Comitiva


Jurandir Malerba

61

A Crise do Império e a Questão da Escravidão


Portugal e Brasil, c.1700 - c.1820
Kirsten Schultz

81

O Cativeiro na Arte
Representações oitocentistas do comércio de escravos no Brasil
Roberto Conduru

95

Ópera e Celebração
Os espetáculos da corte portuguesa no Brasil
Paulo Mugayar Kühl
113

Da Expedição Científica à Ficcionalização da Viagem


Martius e seu romance indianista sobre o Brasil
Karen Macknow Lisboa

131

Entre a Brandura e a Força


Maria Elizabeth Brêa Monteiro

147

Perfil Institucional
O Museu D. João VI
Sonia Gomes Pereira

159

Bibliografia
A P R E S E N T A Ç Ã O

“É como se a mãe-pátria pretendesse 1808: a historiografia e os temas de


vincar fundamente de sua presença atu- sua escolha (com os pressupostos teó-
ante uma terra que logo depois terá de ricos que a informam) constituem, em
abandonar à sua sorte. Com efeito, si, a densa e renovada história do perío-
1821, que representa o terminus ad do joanino no Brasil. Esse difícil e es-
quem desta pesquisa, ainda é nitida- sencial começo, também uma síntese,
mente, no Brasil, um ano português, fica a cargo do artigo de Francisco
assim como 1822 já é em todos os sen- Calazans Falcon, que descreve a dupla
tidos o ano brasileiro, se aceitarmos trajetória em que se imbricam história
conhecida observação de Oliveira e memória para compreendermos a pro-
Lima”. Contradições do que seria uma dução dos historiadores entre o início
descolonização conduzida por portugue- do século XIX e a década de 1870, e
ses europeus, nas palavras de Sérgio daí ao limiar dos anos 1930. Entre a
Buarque de Holanda, qualificam esse crônica e o discurso histórico, Varnhagen,
tempo joanino no prefácio a Cultura e Capistrano e Oliveira Lima se desta-
sociedade no Rio de Janeiro (1808- cam em torno do fato reivindicado co-
1821), de Maria Beatriz Nizza da Silva. mo fundador.
A professora é a entrevistada deste
Essa inflexão situa-se em margens dis-
número e responde sobre o significado
tintas, em um dos pontos em que se
da chegada da Corte para o Rio de Ja-
esgarça a continuidade entre a Corte e
neiro e para as capitanias, os efeitos
a colônia. “Alegrias e infortúnios dos
em Portugal e as perspectivas historio-
súditos luso-europeus e americanos”,
gráficas sobre o tema.
de Lúcia Maria Bastos Pereira das Ne-
Transcorridos duzentos anos, tem-se a ves e Guilherme Pereira das Neves,
tarefa de eleger aspectos que iluminem mostra como se opuseram os sentimen-
tos de abandono e esperança a partir metodologia conduzida a partir da cultu-
da viagem e da instalação da corte no ra política que move aquela sociedade,
Rio de Janeiro. Localizada na raiz do com mercês, famílias, pessoas, categori-
movimento liberal de 1820 e da Inde- as historicamente constituídas.
pendência, a decisão de se estabele-
As invasões napoleônicas abalam a lógi-
cer na colônia ultramarina singularizou
ca de Antigo Regime e, em conseqüência
o acontecimento que, em poemas, me-
das alterações operadas no status da
mórias, jornais e registros oficiais, é
colônia, a realidade da escravidão que
também um desfecho.
sustenta e permeia o império português.
Mas antes, a cena do desembarque já A professora norte-americana Kirsten
trai um conflito, o da extensão da comiti- Schultz demarca o período entre o sécu-
va real que chega ao Rio de Janeiro, lu- lo XVIII e o marco de 1820 para refletir
gar de visibilidade do impacto da presen- sobre “A crise do império e a questão da
ça da corte no meio urbano e na própria escravidão”. Em seu artigo, percorremos
lógica do Império. Para Jurandir Malerba, as ruas da cidade colonial ao som dos
autor do artigo que desdobra a polêmica batuques que ecoavam em ouvidos como
em torno desses números, muito mais os de Souza Coutinho e Lavradio. A lite-
que os 514 indivíduos relacionados no ratura cristã ou ilustrada e as massas de
documento correspondente cruzaram o escravos nos centros urbanos punham em
oceano. Além dos resultados específicos, dúvida a metropolização do Brasil e os
o que mobiliza em seu artigo é, especial- imaginados ideais que deveriam acompa-
mente, a discussão historiográfica, a nhar esse processo.

Embarque da família real para o Brasil em 1807,


Álbum comemorativo da Exposição de Estampas Antigas sobre Portugal , 1946
Nas vilas e cidades brasileiras, com suas Lisboa, “Da expedição científica à
massas de escravos, passa a desfilar um ficcionalização da viagem” analisa o ro-
tipo até então muito raro, o viajante eu- mance Frey Apollonio, de autoria de Von
ropeu, além dos portugueses, e que vi- Martius (membro da expedição científica
nha geralmente em missões artísticas ou que se integrou à comitiva da imperatriz
científicas. Responsáveis pela produção Leopoldina), fruto de sua viagem ao Bra-
de uma extensa iconografia, povoaram o sil entre os anos 1817-1820. O livro, que
Oitocentos que emerge do artigo de só foi publicado 160 anos após seu tér-
Roberto Conduru. Esse tempo (que deve mino, tem como enredo uma missão
ser conectado também aos 120 anos da capuchinha e estabelece a relação semi-
Abolição) e um espaço específico – o dos nal entre romance e relato de viagem.
mercados de escravos – estão presentes Explorando os dilemas da colonização
na obra de artistas como Rugendas, européia, vista como processo civilizador,
Debret e Enders, que respondem às cir- e projetada sobre a mata equatorial, a
cunstâncias do tráfico e ao regime da obra de Martius, contrastada com auto-
escravidão e, diz o autor, enunciam ain- res precedentes vistos na perspectiva
da a autonomia da arte em relação às romântica, é analisada sob o prisma de
demais esferas. sua inscrição indianista.

Reconhecer essa clivagem pode deslocar No nosso romance histórico, o índio foi
as explicações habituais concernentes à objeto da política joanina. A legislação,
ópera na corte de d. João. Esse gênero as guerras, o trabalho escravo (disfar-
de espetáculo traz o teatro para a sede çado ou não), práticas que constituíram
do poder e, para Paulo Kühl, embora a tragédia indígena, assumem um for-
possa pertencer ao conjunto dos proje- mato no século XIX dado pela primazia
tos civilizatórios, expressa em grande da questão de terras, ainda que não se
medida o desejo próprio da corte de con- esquecesse do uso da mão-de-obra. O
tinuidade das encenações comuns à so- que se descreve está no artigo “Entre a
ciedade européia. O artigo analisa ainda brandura e a força”, de Maria Elizabeth
a montagem de O triunfo da América , Brêa Monteiro, conduzido através da le-
com música de José Maurício N. Garcia e gislação, dos relatos de viajantes, da
texto de Gastão Fausto da Câmara correspondência entre autoridades, pas-
Coutinho, por meio do próprio libreto, sando por Botocudos, Coroados,
mostrando o estranhamento que a ópera Kayapó, Mura, que nos conduzem, sem-
provoca, um sentimento inerente à pre- pre, a uma origem.
sença da corte.
O Perfil Institucional é do Museu D. João
É desse modo, por olhares viajantes e VI, integrante da Escola de Belas Artes
línguas estrangeiras, que se prefiguram da Universidade Federal do Rio de Janei-
narrativas históricas, romances, mescla- ro. De autoria de Sonia Gomes Pereira,
dos ao discurso naturalista. De Karen tem fôlego para seguir o percurso inicia-
do em 1816 com a Academia de Belas cesso revolucionário francês e descen-
Artes. Conhecemos aqui os desdobramen- dente da tradição lusa, que o Arquivo
tos ocorridos a partir de então, até que Nacional, em seus 170 anos, publica
coleções e políticas se sedimentassem. este número de Acervo. Em manuscritos,
mapas, livros raros, iconografia, o
E é também como instituição típica dos patrimônio arquivístico que conserva in-
projetos oitocentistas, herdeira do pro- terpela hoje os seus intérpretes.

Cláudia Beatriz Heynemann


Editora
R V O

Entrevista com
Maria Beatriz Nizza
da Silva

Maria Beatriz Nizza da Silva e teses e é autora de vários li-


nasceu em Portugal e formou- vros e artigos, entre eles, Cultu-
se em Ciências Históricas e Fi- ra no Brasil Colônia (1981); Sis-
losóficas pela Faculdade de tema de casamento no Brasil co-
Letras da Universidade de Lisboa, em lonial (1984); História da família no Bra-
1961. Foi professora titular de Teoria sil colonial (1998); A cultura luso-bra-
e Metodologia da História da Universi- sileira : da reforma da Universidade à In-
dade de São Paulo, pela qual se apo- dependência do Brasil (1999); Donas e
sentou em 1990, de História do Brasil plebéias na sociedade colonial (2002);
na Universidade Portucalense Infante D. Ser nobre no Brasil (2005); e A Gazeta
Henrique e na Universidade Aberta de do Rio de Janeiro, 1808-1822 : cultura
Lisboa. Orientou diversas dissertações e sociedade (2007). Também colaborou

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 3-8, jan/jun 2008 - pág.3


A C E

com artigos para a revista Acervo , do Maria Beatriz


Beatriz: Não há dúvida de que a
Arquivo Nacional. grande mutação foi de caráter cultural. É
difícil hoje tentar compreender o que fo-
Acervo: Com as comemorações dos 200
Acervo
ram três séculos de colonização sem im-
anos da corte no Brasil, é inevitável per-
prensa num território tão vasto como o
guntar: O que rememoramos? Qual o
Brasil. A elite colonial mal podia se ex-
sentido desse bicentenário? A produção
pressar, a menos que encontrasse em Lis-
historiográfica brasileira sobre o sentido
boa um mecenas disposto a publicar-lhe
do período joanino é vasta; o que des-
as obras. É evidente que as ordens reli-
ponta de mais novo ou surpreendente?
giosas, jesuítas, beneditinos etc. recor-
Há revisões?
riam a seus próprios meios de publica-
Maria Beatriz
Beatriz: As chamadas comemo-
ção com a ajuda dos respectivos conven-
rações não são mais do que um pretexto tos em Portugal, mas para os laicos a via
para a produção de eventos e de publi- da imprensa era extremamente árdua.
cações sobre um determinado tema, e
Muitos textos produzidos nesses três sé-
portanto tornam-se extremamente úteis. culos só foram conhecidos no século XIX.
No caso dos 200 anos da corte no Bra- Ora, a Impressão Régia e a tipografia de
sil, é de notar que elas se realizam so-
Manuel Antônio da Silva Serva na Bahia
bretudo no Rio de Janeiro e não em es- vieram acelerar a divulgação do saber
cala nacional, certamente porque foi a científico e até modificar a forma de en-
cidade que mais transformações sofreu sino, com a publicação das obras mais
com a presença do monarca em terras
necessárias à medicina, à história natu-
brasileiras. Não creio que a produção ral etc. Por outro lado o aumento da po-
historiográfica brasileira sobre o perío- pulação da nova sede da monarquia
do joanino seja tão vasta assim, e as
incrementou o comércio livreiro, e pode-
comemorações certamente vão trazer se dizer que no Rio de Janeiro era possí-
novos estudos e a publicação de novas vel encontrar as obras mais recentes nas
fontes, como foi o caso da correspondên-
várias áreas da cultura da época, inclusi-
cia de d. Leopoldina e de d. Carlota ve novelas e romances.
Joaquina. Mas ainda há muitos persona-
gens a serem estudados, e nota-se um Acervo: O que os anos 1807-1808 re-
Acervo

vazio historiográfico no que se refere à presentam para os historiadores portu-


ação do governo joanino em relação às gueses? A presença da corte no Brasil é
capitanias. relevante do ponto de vista da história
de Portugal?
Acervo: A historiografia assinala inú-
Acervo
meras transformações que incidem so- Maria Beatriz:
Beatriz É preciso deixar claro
bre a vida cultural e intelectual. O perí- que, para a historiografia portuguesa, o
odo joanino teria sido no Brasil, como período em que a monarquia teve sua
define Antonio Candido, a nossa época sede no Rio de Janeiro é tão traumático
das Luzes? quanto o processo separatista e a inde-

pág.4, jan/jun 2008


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pendência do Brasil com d. Pedro como do clero português que insuflava do púl-
imperador, e por essa razão os 13 anos pito as camadas populares contra os in-
de permanência de d. João no Brasil são vasores que roubavam a prata das igre-
mal estudados, a não ser que o gênero jas e não respeitavam a casa de Deus.
biográfico assim o exija, como foi o caso
Longe do palco dos acontecimentos e da
com a biografia de d. João VI na coleção
guerra, o que se observou no Brasil foi
do Círculo de Leitores sobre os reis de
uma violenta reação antiinglesa, apesar
Portugal. Para a historiografia portugue-
de toda a propaganda desenvolvida por
sa é mais relevante estudar a situação
d. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois
européia que levou à partida da corte e
conde de Linhares, e por José da Silva
depois as invasões francesas, e analisar
Lisboa. A abertura dos portos em 1808
como os portugueses atuaram nessas cir-
inicialmente só beneficiou os ingleses, e
cunstâncias de guerra e de dificuldades,
as classes mercantis de Salvador e do Rio
do que saber o que o monarca fez en-
de Janeiro temeram a concorrência. Mas
quanto esteve no Rio de Janeiro. O livro
o mais grave foram os tratados de 1810
que estou terminando agora, e que pen-
com a Inglaterra e o compromisso de d.
so publicar em Portugal, destina-se pre-
João procurar abolir o tráfico de escra-
cisamente a preencher essa lacuna.
vos gradualmente. Sobretudo causaram
Acervo: No mundo das idéias, a invasão
Acervo revolta as apreensões de embarcações
pelo exército napoleônico e a subseqüen- baianas feitas pela Marinha inglesa. Foi
te vinculação aos ingleses veio a marcar muito difícil fazer aceitar no Brasil o li-
a supremacia de alguma tendência? Um beralismo econômico pregado por Adam
conservadorismo em resposta à Revolu- Smith, como foi difícil também fazer acre-
ção Francesa, a vitória do pensamento ditar na “filantropia” da Inglaterra na
liberal inglês, enfim, qual o legado políti- questão do tráfico negreiro.
co e cultural desse momento? Acervo: A chegada da corte é um acon-
Acervo
tecimento para todas as capitanias? De
Maria Beatriz: O que se passou em
que maneira ela repercute na então Amé-
Portugal não tem nada a ver com o Bra-
rica portuguesa? E ainda, que efeitos
sil. Por ocasião da ocupação de Lisboa
podem ser percebidos no Império, de
por Junot houve quem pedisse a Napoleão
modo geral?
uma Constituição semelhante à que ele
dera ao ducado de Varsóvia e também a Maria Beatriz
Beatriz: Este é um tema que ain-
aplicação do código civil napoleônico em da tem de ser aprofundado pelos histori-
Portugal; muitos militares portugueses adores. Estou convencida, contudo, de
serviram nos exércitos franceses na Eu- que a capitania da Bahia, ou melhor, a
ropa; alguns nobres apoiaram a presen- cidade de Salvador passou por transfor-
ça francesa e nada tinham contra um mações equivalentes àquelas que ocor-
monarca escolhido por Napoleão. A rea- reram no Rio de Janeiro, sobretudo do
ção por assim dizer nacionalista partiu ponto de vista cultural. Aliás a Bahia apa-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 3-8, jan/jun 2008 - pág.5


A C E

rece como um caso interessante na me- Joel Serrão. Nos meus estudos, quando
dida em que as principais mudanças uso a expressão “luso-brasileiro” é ape-
aconteceram ali por iniciativa privada. nas no sentido cultural, como expliquei
Enquanto no Rio a Impressão Régia per- exaustivamente no livro publicado em
tencia à Coroa, em Salvador foi um capi- Portugal, em 1999, A cultura luso-brasi-
talista, Manuel Antônio da Silva Serva, leira: da reforma da Universidade à In-
que resolveu aplicar seus capitais no dependência do Brasil . Como não é fácil
empreendimento de uma tipografia. Do encontrar esta obra no Brasil, transcre-
mesmo modo a Biblioteca Pública da vo aqui o parágrafo inicial da introdução:
Bahia foi criada graças ao espírito “Historiografias de cunho nacionalista,
associativo da elite baiana, enquanto no quer em Portugal quer no Brasil, têm
Rio a Biblioteca Real tardou a ser posta menosprezado o fato de que a elite cul-
à disposição dos leitores, pertencendo ta da metrópole e da colônia, sobretudo
estes sobretudo ao círculo cortesão. depois da reforma pombalina da Univer-
Quando as pesquisas avançarem em re- sidade de Coimbra e da criação da Aca-
lação às demais capitanias, talvez che- demia Real das Ciências de Lisboa, não
guemos à conclusão de que os avanços só circulava de um para outro lado do
durante o período joanino não foram tão Atlântico, como praticamente fazia as
grandes assim, se excetuarmos algumas mesmas leituras e recebia a mesma for-
melhorias nas comunicações com a aber- mação. Pouco importava que um d. Fran-
tura de estradas e caminhos e com o cisco de Lemos, reformador da Univer-
afastamento, ou até o extermínio, de sidade, tivesse nascido no Brasil, ou que
nações indígenas que atacavam os via- José Clemente Pereira, um dos
jantes e impediam a colonização. A guer- apoiantes de d. Pedro na independência,
ra aos Botocudos insere-se nessa estra- fosse natural do bispado da Guarda. Se
tégia de avançar a colonização no interi- lermos o que escreveram ignorando suas
or e de melhorar as comunicações, in- naturalidades, será difícil detectar se
clusive as fluviais. eram coloniais ou metropolitanos.” A eli-
te letrada de Portugal e Brasil possuía
Acervo: A senhora coordenou e escre-
Acervo
grande mobilidade geográfica e suas car-
veu em uma obra intitulada O império
reiras na magistratura ou na administra-
luso-brasileiro . Qual o sentido do luso-
ção implicavam a circulação de um con-
brasileiro? Além de expressar um proje-
tinente para o outro.
to ilustrado, ele se prolonga na
historiografia? Trata-se de fato de uma
Acervo: A senhora se dedicou à vida pri-
Acervo
identidade?
vada, ao cotidiano, à moda, aos casamen-
Maria Beatriz
Beatriz: Devo esclarecer que o tos; esses temas podem ser classificados
título da coleção para a qual me convi- como os de uma história cultural? Em que
daram não foi escolhido por mim, mas tendência ou perspectiva seus estudos se
pelos professores Oliveira Marques e inscrevem?

pág.6, jan/jun 2008


R V O

Maria Beatriz
Beatriz: Os meus estudos des- explorado ou mesmo o uso de fontes de
de a década de 1970 sobre o casamen- outra natureza, como os periódicos?
to, a família e o sistema de transmis-
Maria Beatriz
Beatriz: Nunca trabalhei com o
são do patrimônio familiar pertencem
fundo Negócios de Portugal, mas as infor-
simultaneamente a duas áreas, a histó-
mações que tenho a seu respeito, e so-
ria social e a história cultural, na medi-
bretudo o livro recente de Ana Canas Del-
da em que lidam com grupos sociais e
gado Martins, diretora do Arquivo Históri-
ao mesmo tempo com normas, sejam
co Ultramarino de Lisboa, intitulado
elas jurídicas ou religiosas. Já o estudo
Governação e arquivos: d. João VI no Bra-
do cotidiano leva em conta a distinção
entre vida urbana e vida rural, assim
sil, fazem-me crer ser esse fundo mais
importante para as relações entre a corte
como se prende mais às condições es-
no Rio de Janeiro e os governadores do
paciais desse dia-a-dia. Quando escre-
Reino, e também sobre a situação euro-
vo sobre formas de moradia, sobre o
péia, do que propriamente para a história
trajo, a alimentação, os meios de trans-
do Brasil joanino. Há contudo fundos no
porte, sobre trabalho e festa, sobre
Arquivo Nacional que ainda não foram su-
religiosidade e crenças, sobre violência,
ficientemente explorados, por exemplo, os
doença e atitudes perante a morte,
que se referem ao Ministério do Reino e
como fiz no meu livro Vida privada e
ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e
cotidiano no Brasil na época de d. Ma-
da Guerra, estando ainda por fazer uma
ria I e d. João VI (Lisboa, 1993), a
análise sistemática de sua documentação
espacialidade e a sociabilidade adqui-
sobretudo no que diz respeito, por um
rem um peso maior, bem como a cultu-
lado, às relações do governo central com
ra oral que podemos conhecer princi-
as capitanias, e, por outro, aos contatos
palmente através da documentação
com a Intendência Geral da Polícia e a vi-
inquisitorial.
gilância contra os espiões de Napoleão e
Acervo: Existem acervos tradicionais
Acervo
os emissários da América espanhola.
para a pesquisa do período joanino, como
o fundo Negócios de Portugal do Arquivo Entrevista concedida em dezembro
Nacional. A senhora indicaria algum con- de 2007 a Cláudia Heynemann. Co-
junto documental que ainda está por ser laborou Fabiano Vilaça dos Santos.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 3-8, jan/jun 2008 - pág.7


R V O

Francisco José Calazans Falcon


Livre-docente da Universidade Federal
Fluminense, professor da Universidade Salgado de Oliveira.

Chegada da corte - 200 anos


Romantismo e cientificismo

Este artigo analisa a historiografia The present article analyses Brazilian


brasileira, de começos do século XIX historiography, from the early nineteenth
até os arredores de 1930, do ponto century through the 1930’s. It does so
de vista das narrativas que taking the narratives that contributed to
ajudaram a construir uma certa imagem da vinda build up a specific image of prince João’s arrival as
do príncipe d. João à testa da corte portuguesa, the head of the Portuguese court back in 1808 as
em 1808, principalmente os textos produzidos major standpoint. The writings of F. A. Varnhagen,
por F. A. Var nhagen, J. Capistrano de Abreu e M. J. Capistrano de Abreu e M. de Oliveira Lima were
de Oliveira Lima. the main concern of this work.
Palavras-chave: celebração; memória; Rio de Key-words: celebration; memory; joanin Rio de
Janeiro joanino; chegada da família real; Janeiro; arrival of royal family; opening of Brazil's
abertura dos portos . ports to foreign trade.

I NTRODUÇÃO mesmo tempo histórica e memorialista:

O
os duzentos anos da chegada da famí-
ano de 2008 situa-se em nos- lia real portuguesa e da respectiva cor-
so horizonte de expectativas te ao território da América portuguesa,
como signo de um acontecimen- sob a chefia do então príncipe regente
to histórico fundador cuja comemora- d. João e de sua mãe, a rainha d. Ma-
ção se constitui em exigência que é ao ria I. Enquanto comemoração, nela es-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 9-26, jan/jun 2008 - pág.9


A C E

tão associadas a História e a Memória, tica mais realista veio atribuir a deci-
não como coisas separadas mas, sim, são do príncipe d. João ao cumprimen-
entrelaçadas. to de promessa constante do acordo
com as autoridades britânicas antes da
Muito já se escreveu e com certeza muito
retirada de Lisboa, numa interpretação
ainda será escrito sobre a “transferência
que evidentemente desloca o próprio
da corte portuguesa para o Brasil”, tradicio-
eixo da discussão acerca da abertura
nalmente denominada, de maneira um tan-
dos portos .
to rebarbativa, convenhamos, de “trans-
migração da família real portuguesa” para Em março do mesmo ano, já no Rio de
seus domínios na América. Tal como ocor- Janeiro, onde chegou finalmente a seu
reu em 1908, quando as comemorações término a viagem da corte lusitana, teve
sublinharam principalmente o “Centenário início a transformação da acanhada ci-
da Abertura dos Portos”, muito se irá dis- dade-capital colonial na sede do que se
cutir acerca das interpretações propostas pretendia viesse a ser um “novo e pode-
para os acontecimentos de 1808, em es- roso império”. Situa-se aí a etapa inicial
pecial sobre o sentido que se lhes deve de um processo de múltiplas mudanças
atribuir numa perspectiva de longo prazo que, no seu conjunto, configuram a adap-
da história do Brasil e também, por que tação da monarquia absolutista lusa, ago-
não, para a história de Portugal. ra estabelecida nos trópicos, às implica-
ções do processo bastante complexo de
No final do mês de janeiro de 1808, na
interiorização da metrópole – principal
cidade do Salvador, onde havia aportado
conseqüência da travessia do Atlântico
uma parte da frota lusa, exatamente
pela corte lisboeta. 1
aquela que conduzia o príncipe d. João,
foi publicado o decreto de “abertura dos Chegada da corte e mudanças subse-
portos do Brasil às nações amigas”, fato qüentes tendem a situar-se de um ou
este associado por muito tempo à inte- outro lado da linha divisória, um tanto
ligência, conhecimentos de economia precária e bastante nebulosa, que se-
política e prestígio intelectual de José pararia os discursos históricos propria-
da Silva Lisboa, futuro visconde de mente ditos das elucubrações ficcionais
Cairu. Em anos mais recentes, uma crí- de um imaginário eminentemente popu-

Vista da cidade do Rio de Janeiro tomada da Igreja de N. S. da Glória,


Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresque et historique au Brésil , 1834-1839

pág.10, jan/jun 2008


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lar acerca de pessoas, fatos e circuns- do expressam percepções distintas ou


tâncias. Em comum, apenas a própria até mesmo opostas de um mesmo even-
ideologia comemorativa. Como evidênci- to e de suas circunstâncias.
as desta afirmação, encontram-se, de um
Compreende-se então que a comemora-
lado, produções amplamente difundidas
ção deste segundo centenário dos acon-
pela mídia nas quais se destacam as
tecimentos de 1808 está a exigir de to-
reconstituições de fatos e personagens,
dos nós uma percepção razoavelmente
não raro em termos francamente
crítica, tanto das diferenças como das
caricatos, e, de outro, o significativo cres-
relações entre a história e a memória, a
cimento de trabalhos de historiadores
fim de podermos melhor situar aí o lu-
cujo objeto de estudo e pesquisa é exa-
gar da comemoração. Segundo Pierre
tamente a transferência da corte lusa e
Nora, as comemorações expressam an-
suas conseqüências para o Brasil e Por-
tes de tudo a(s) forma(s) de nos relacio-
tugal, até, pelo menos, 1821-1822.
narmos com o passado, embora nada
Não apenas o ano de 1808, é claro, mas acrescentem à compreensão do passa-
tudo o que se lhe seguiu até o regresso do em si mesmo. 2
do já então d. João VI a Portugal, em
1821, ou, se assim preferirmos, até o C OMEMORAR – ENTRE MEMÓRIA E

“Grito do Ipiranga”, em 1822, constitui HISTÓRIA

C
objeto de comemoração reivindicado si-
omecemos por uma visita ao
multaneamente pela História do Brasil
termo comemoração. Comemo-
e pela Memória Nacional. Na verdade,
rar, na opinião de Ankersmit, 3
coube a esta última transformar o even-
como ato de lembrar alguma coisa , su-
to – a chegada de d. João às terras
gere que comemoração significa um even-
brasílicas e a sua presença aqui, até
to social e público. Assim, ao contrário
1821 – num dos mais conhecidos dos
do (re)lembrar, ou da lembrança, come-
“lugares de memória” de nossa consci-
morar é lembrar junto, ao passo que o
ência coletiva . Não tanto um lugar físi-
relembrar é antes de tudo um assunto
co, ou material, mas uma representa-
privado. Torna-se então um tanto proble-
ção simbólica.
mática a distinção estabelecida por
Assim, ao longo de dois séculos contra- Hobsbawm 4 entre o caráter privado e in-
pôs-se, ao realismo histórico, típico das certo da memória e o caráter público e
visões historiadoras, uma outra visão, verídico da história. Se a memória não é
típica do imaginário coletivo, de nature- necessariamente privada, ela pode tam-
za eminentemente simbólica. Cada uma bém participar da revelação pública da
dessas “visões” contém sua própria lógi- verdade. Nas origens do termo comemo-
ca – e sua verdade particular –, sendo ração está o verbo latino commemorare
necessário ao tratar de uma delas não – trazer à memória e, também, lembrar
perder de vista a outra, sobretudo quan- alguém de alguma coisa –, a meio cami-

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nho, portanto, entre a memória propria- “esquecendo-se do esquecido que ela


mente dita e o seu objeto ou conteúdo, mesma constrói”. Assim, segundo
de um lado, e a ação de lembrar algo. Todorov,9 quanto maior for a dimensão
coletiva e histórica da memória, maior
A comemoração apóia-se então na me-
será a margem para a sua invenção e
mória, mas esta última, segundo
para o seu uso e abuso. Longe de ser a
Halbwachs, 5 reduz-se a duas atitudes:
voz verdadeira do passado, a recordação
a autobiográfica e a histórica, as quais
é quem dá futuros ao passado, “numa
se implicam reciprocamente. A memó-
atividade de re-presentificação que, se
ria possui assim uma dimensão subjeti-
não for praticada, será devorada pela
va e outra social, ou, se preferirmos,
corrupção do tempo”. Assim, para de-
há uma memória pública que coexiste
sempenhar a sua função social, a memó-
com a memória privada. Catroga, 6 citan-
ria necessita das liturgias típicas das co-
do Ricoeur, sublinha que recordar é em
memorações centradas nos traços-vestí-
si mesmo um ato de alteridade , quer di-
gios daquilo que já não mais existe – lin-
zer, a memória é um processo relacional
guagem, imagens, relíquias, lugares, es-
e intersubjetivo. Mais importante, po-
crita, monumentos. Entende-se assim a
rém, é o fato de que a memória é uma
lógica dos lugares de memória analisa-
construção seletiva do passado. Cada
dos por Pierre Nora – a associação indis-
indivíduo retém de maneira afetiva uma
pensável da re-presentificação à
parte de seu próprio passado. Todavia,
espacialização. 10
se recordar é também esquecer, é com-
preensível que se tente preencher as Do ponto de vista de Paul Ricoeur, 11 se-
lacunas da amnésia de modo a construir ria talvez excessivo afirmar, quer a exis-
uma continuidade coerente. Daí, ainda tência de uma diferença radical, quer a
segundo Catroga, o caráter totalizador
7
de uma identidade entre memória e his-
e teleológico da recordação, pois se tra- tória. Trata-se aí, segundo ele, de uma
ta de uma espécie de previsão ao con- “relação indecisa”. A recordação e a
trário em que a história e a ficção se historiografia, por intermédio da imagi-
misturam. No limite, a evocação pode nação memorial e da imaginação histó-
não se restringir a evocar o passado rica, constroem representações, ou re-
mas a desejar transformá-lo, ou seja, presentificações, que interrogam os in-
acabar o que ficou inacabado, como dícios e traços que ficaram do passa-
assinalou Walter Benjamin – é a consci- do. Assim, se em termos ontológicos o
ência da dívida. 8
acontecido já não mais existe, no cam-
po das re-presentificações ele continua
Uma das características da memória é a
a ter futuro(s). A dialética entre a me-
de confundir a representação do passa-
mória e o esquecimento também se
do com a realidade passada, cercando-
acha presente na historiografia: daí a
se sempre que possível de elementos
necessidade de muitas cautelas em re-
garantidores da fidelidade do narrado,

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lação aos textos historiográficos, sobre- Dessa forma, comemorar 1808 é tanto
tudo quando se trata de testemunhos um exercício de recordação, em que a
da memória, como vem a ser o caso na memória se incumbe de lembrar aspec-
chamada história oral. tos significativos dos acontecimentos de
começos do século XIX, aspectos que não
Desenvolvemos talvez um pouco além
devem cair no esquecimento, como um
da conta a problemática das relações
objeto historiográfico cuja importância se
entre a memória e a história, pois, não
revela através da investigação e da in-
apenas o nosso tema tem tudo a ver com
terpretação históricas acerca de sua na-
ela, mas também o panorama atual da
tureza e significação. O difícil, neste caso,
produção historiográfica parece ter-se
é assinalar com precisão os lugares que
transformado em arena de um conflito
competem à memória e à história na idéia
entre as duas. Basta-nos lembrar neste
que hoje se faz daquele evento. Entre a
caso dois textos: um de François Dosse,
crônica e o discurso histórico situam-se
L’histoire et la guerre des mémoires
variadas mediações, daí a necessidade
(2007), outro de Philippe Joutard, Re-
de marcar suas respectivas diferenças.
conciliar história e memória? (2007).
A crônica, mais colada aos próprios acon-
Quisemos também deixar claro que
tecimentos, confere veracidade às cons-
nem subsumimos a memória na histó-
truções da memória; o discurso históri-
ria, ou vice-versa, nem tampouco as en-
co, apegado às variadas formas de fon-
tendemos como entidades completamen-
tes documentais, busca elaborar sua pró-
te separadas uma da outra.
pria visão do objeto de comemoração, a
Apesar de não ser nossa intenção acres- partir, inclusive, da crítica rigorosa das
centar mais um texto comemorativo a próprias crônicas e de outros relatos con-
tantos já existentes, jamais poderemos temporâneos.
eliminar, ou mesmo separar com rigor,
Todavia, em tempos de comemorações
história e memória no contexto de uma
ancoradas em determinadas datas e fa-
abordagem historiográfica como esta.
tos, é sempre bastante difícil tentar se-
Nosso tema apresenta-se, assim, ao mes-
parar em cada matéria produzida a res-
mo tempo, como objeto de história e
peito de um certo evento fundador o que
como lugar de comemoração – e de me-
pertence de fato à história e o que pro-
mória! Enquanto objeto de história, per-
vém da elaboração memorial, mesmo
tence à história da história sua análise
porque é típico de tais matérias come-
no contexto da produção historiográfica
morativas a reivindicação comum de uma
que lhe é pertinente. Como objeto de co-
mesma pertença à história. Aliás, seria
memoração, uma espécie de lugar sim-
dos mais interessantes um trabalho de
bólico da memória coletiva, compete às
investigação que pudesse acompanhar,
diferentes instâncias culturais recordá-
passo a passo, o surgimento das diferen-
lo, cabendo aí à mídia um lugar de des-
tes imagens, relatos, ditos populares, que
taque na atualidade.

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ajudaram a construir, aos poucos, a me- critivas, ao lado de interpretações que


mória coletiva a respeito dos tempos de ora privilegiam o significado mais ou me-
“D. João charuto”. nos imediato do evento, ora tentam situá-
lo numa perspectiva de médio ou longo
H ISTÓRIA DA HISTÓRIA prazo em relação ao processo histórico

A
historiografia dos acontecimen- brasileiro.
tos de 1808 caracteriza-se, de A fim de melhor percebermos os caminhos
um ponto de vista bastante da produção historiográfica sobre o nos-
abrangente, pelo debate implícito ou ex- so tema, optamos por uma abordagem
plícito entre os historiadores de algu- que considera quatro períodos ou momen-
mas posições e tendências mais gerais tos historiográficos sucessivos. Não se tra-
q u e , p o r a s s i m d i z e r, p e r m e i a m o s ta, porém, de uma periodização canônica.
enfoques acerca do significado mais am- Iglésias, por exemplo,12 propôs uma divi-
plo da transferência da corte portugue- são em três momentos: o primeiro, de
sa para os seus domínios americanos. 1500 a 1838, correspondendo ao perío-
Apenas para exemplificar, lembremos do colonial e ao princípio do nacional, com-
dicotomias muito conhecidas, como con- preenderia livros que são mais crônicas
tinuidade e ruptura; conservadorismo e históricas do que história, ou seja, livros
liberalismo; reação versus revolução; que são mais fontes do que obras elabo-
romantismo versus cientismo; ou, en- radas; o segundo, de 1838 a 1931,
fim, o choque interpretativo entre a corresponderia à fundação do Instituto
ênfase historiadora, ora no espaço das Histórico e Geográfico Brasileiro, funda-
experiências, ora, ao contrário, no ho- mental para uma tomada de consciência
rizonte de expectativas. nacional, com a pesquisa e publicação de
Escrever a história da história da chega- séries documentais, e o desenvolvimento
da da corte portuguesa ao Brasil é uma de um conceito de história que teve como
tarefa impossível dentro dos parâmetros ponto culminante a História geral do Bra-
de um artigo como este. Afinal de con- sil, de Francisco Adolfo de Var nhagen;
tas, a historiografia brasileira dos sécu- enfim, o terceiro, de 1931 aos dias atu-
los XIX e XX é pródiga em referências ais, teria como ponto de partida a refor-
aos acontecimentos de 1808. A grande ma do ensino realizada por Francisco
maioria dos historiadores refere-se à che- Campos. Como se poderá ver, a seguir, a
gada de d. João: alguns se preocupam diferença maior entre os momentos apon-
com a narração dos acontecimentos, ou- tados refere-se ao período de 1870 a
tros preferem abordar as interpretações 1930, o qual, acreditamos, deve ser dis-
propostas para o evento, e, por último, tinguido daquele que o antecede.
há aqueles que dão prioridade ao signifi- 1 – A historiografia da época do roman-
cado da transferência da corte lusa. Exis- tismo – de começos do século XIX até
tem, assim, narrativas francamente des- mais ou menos 1870; 2 – A his-

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toriografia cientificista e/ou historicista, quanto à produção historiográfica, inclu-


de 1870, aproximadamente, até o final sive em termos do tema que constitui
da década de 1920; 3 – A historiografia nosso objeto atual de estudo.
modernista dos novos descobridores do
Passemos então às características
Brasil , de 1930 até 1945-1950; 4 – A
historiográficas desses dois primeiros
historiografia contemporânea , de 1950
momentos.
aos dias atuais. Convém observar, no
entanto, que a referência a esses mo- Dos começos do século XIX até
mentos visa apenas a situar os textos 1870-1880 – V
Vaarnhagen
por nós selecionados na perspectiva mais
Ainda muito próximos dos acontecimen-
ampla da história da história do Brasil,
tos de 1808-1821, cronistas, sobretu-
sem qualquer intuito de exaustividade
do estes, e alguns historiadores
ativeram-se em geral a um tipo de
narrativa factual, minuciosa, não
raro pitoresca, acompanhada de
uma ou outra reflexão a respeito
do significado da mudança da cor-
te. Crônicas, relatos de viajantes,
relatórios consulares, correspon-
dência diversa, constituem a base
textual das variadas narrativas da
instalação da corte joanina no Rio
de Janeiro. Representam tais nar-
rativas as primeiras formas então
assumidas pela preocupação em
oferecer aos leitores uma perspec-
tiva suficientemente precisa e por-
menorizada acerca dos comporta-
mentos das principais personalida-
des, seu cotidiano, assim como a
descrição das principais circuns-
tâncias locais: a cidade, seus ha-
bitantes, composição social, cos-
tumes e hábitos os mais diversos,
tipos de habitações, atividades
econômicas, formas de convivên-
cia política e social.

Destaca-se, em primeiro lugar, a


Estatutos do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1839 History of Brazil, editada por

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Robert Southey, entre 18l0 e 1819, 13 da a primeira em 1854, em Madri, e em


bastante elogiada por Capistrano de 1857 no Rio de Janeiro (2. ed. amplia-
Abreu e Oliveira Lima, em 1907, e ana- da, Rio de Janeiro: Laemmert, 1877), e
lisada, em anos mais recentes, por a segunda, postumamente, na Revista do
Maria Odila da Silva Dias. 14 Dentre os IHGB, 1916, t. LXXIX (reeditada na mes-
que então escreveram diversas crônicas ma revista em 1938, v. 175). 17
ou anais a respeito dos principais su-
Contemporâneo da época do romantismo,
cessos do período, merecem ser aqui
tal como o foi também seu coetâneo, o
lembrados: José da Silva Lisboa e Luís
historiador luso Alexandre Herculano,
Gonçalves dos Santos, entre os cronis-
Var nhagen parece ter assimilado muito
tas, 15 e Pizarro e Araújo e Baltazar da
da estética romântica, especialmente em
Silva Lisboa, entre os autores de anais
seus textos de cunho mais literário. Como
referentes ao Rio de Janeiro. 16
h i s t o r i a d o r, Va r n h a g e n a p r o x i m a - s e
A História geral do Brasil metodologicamente da escola histórica
alemã , de Humboldt e Ranke, quer dizer,
Francisco Adolfo de Var nhagen (1816-
do historicismo ou historismo em termos
1878), autor de numerosos trabalhos,
do que seria a epistemologia do conheci-
tem, como obra principal, a História ge-
mento histórico presente em sua concep-
ral do Brasil , e, em segundo lugar, a His-
ção do trabalho historiador, 18 o que não
tória da Independência do Brasil , edita-

Rio, a partir do morro da Glória, Maria Dundas Graham, Journal of a voyage to Brazil , 1824

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o afasta, convém frisar-se, de muitos dos vés do descobrimento, colonização e es-


pressupostos românticos no plano tabelecimento da corte nos trópicos ,
ontológico. Tal como Ranke, tende a de- marca as origens do Estado e da nação
finir a história como um esforço de brasileiros, Var nhagen constrói em pers-
reconstituição integral do passado, a par- pectiva teleológica uma visão essencial-
tir da fidelidade absoluta aos aconteci- mente branca e européia da história da
mentos comprovados em fontes documen- colônia, na qual o Estado é força tutelar
tais fidedignas. Enfim, Varnhagen pode à e instrumento da formação de uma nova
primeira vista parecer um empirista nação. 22 Deriva destas premissas a pers-
positivista , da mesma forma que Ranke, pectiva de continuidade, ou seja, o ca-
mas, também neste caso, uma análise ráter não traumático da transição da si-
mais atenta permite-nos perceber que o tuação de colônia ao estatuto de país in-
seu empirismo não é de natureza filosó- dependente.
fica – como o empirismo britânico –, mas
Na opinião de Iglésias, Varnhagen foi um
apenas uma exigência metodológica em
dos maiores trabalhadores da história do
prol da pesquisa documental e da erudi-
Brasil, “para cuja bibliografia contribuiu
ção tal como era então comum na
decisivamente, criando um modelo de sín-
historiografia romântica. Entretanto,
tese que seria muito adotado e repeti-
como sublinhou Iglésias: “Pouco se inte-
do”, isto é, os famosos quadros de ferro
ressou por outro aspecto inovador de
d e Var n h a g e n , c o m o o s d e n o m i n o u
então, a teoria, para fundamentar esfor-
Capistrano de Abreu.
ço do historiador, colocando-o além da
narrativa, na busca da compreensão ou Vejamos agora como Francisco Adolfo

da interpretação.”19 de Var nhagen, visconde de Porto Segu-


ro, apresenta o episódio da “transmi-
Convém aqui sublinhar a sua visão predo-
gração da família real”, na sua História
minantemente política, ou seja, seu ver-
geral do Brasil , seção L, intitulada “Che-
dadeiro culto do Estado enquanto realiza-
gada do príncipe ao Brasil. Sua admi-
ção maior do espírito humano na histó-
nistração”. 23
ria: “Saber identificar o momento concre-
to para atuar é tarefa do homem de Esta- Logo ao início, Var nhagen, retomando o

do; orientá-lo, discernindo entre o emara- fio da narrativa iniciada na seção XLVIII,

nhado de acontecimentos o fio condutor que culminara na partida da real família

da história, é tarefa do historiador”. 20 de Lisboa, já anuncia ao leitor a nature-


za de seu estado de espírito: “e já nos
A Nação, o Estado e o Homem Brasilei-
tarda o sair-lhes a todos ao encontro, e
ro, eis as categorias do pensamento de
com os braços abertos se a ingenuidade
Va r n h a g e n p o s t a s e m r e l e v o p o r
da expressão não ofende a majestade”.24
Odália. 21 Ora, ao colocar a monarquia
A seguir, em relativamente poucas pági-
absoluta portuguesa como personagem
nas, Var nhagen condensa algumas das
principal do processo político que, atra-
idéias mais constantes e profundas de

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sua visão da história do Brasil. Primeiro, principalmente, com a natureza social de


o tom de admiração respeitosa pela tra- um e outro, tendo em vista uma dupla
dição monárquica lusa cuja continuidade hipoteca: da escravidão negra e das re-
a transferência da corte para o Brasil lações com as populações indígenas. In-
parece assegurar. Afirma, então: “E em felizmente, o excelente texto de Iglésias
verdade o senhor D. João foi, se não o interrompe-se neste ponto. Um título bas-
primeiro imperador, pelo menos o primei- tante vago – “Além Varnhagen” – anuncia
ro a proclamar a idéia de fundar no Bra- a parte que se segue, brilhante em vári-
sil um novo império”. 25 os momentos, sem dúvida, mas sem
aquela tessitura que com toda certeza
Preocupa-se Var nhagen menos com os
gostaria de ter produzido como quadro
acidentes e peripécias da chegada da
de referência das relações entre as obras
comitiva régia – tão do agrado dos cro-
dos diversos autores que vão a seguir ex-
nistas e dos amantes da petite histoire e
postos, cada um de per si .
seus episódios anedóticos, até os nossos
dias – e muito mais com as realizações Coube a Capistrano de Abreu, num du-
do governo de d. João e seus ministros, plo sentido, como continuação e como
sublinhando sempre o sentido de tudo que visão crítica, liderar a sucessão de
foi construído na nova metrópole como Var nhagen. Ao lugar-comum da continui-
preparação daquilo que já estaria inscri- dade, iria ele opor a perspectiva da rup-
to na lógica da administração portugue- tura, mas, sobretudo, à visão historiado-
sa: o caminho necessário e inevitável ra voltada para fora, estabeleceu ele uma
para a constituição da futura nação inde- visão contrária, direcionada para dentro,
pendente. Em poucas páginas, nosso his- para o interior, o sertão, introduzindo com
toriador desenvolve a idéia principal de força no discurso histórico o papel da
sua interpretação da história do Brasil: a geografia e o peso da presença do índio
da continuidade entre a Colônia e o Esta- durante o processo de exploração e con-
do imperial e, conseqüentemente, o pa- quista das imensas extensões interio-
pel já predeterminado historicamente que ranas. Trata-se então de uma história
desempenha a transmigração da família bastante distinta daquela escrita por
real lusa para o Brasil. 26
Var nhagen, tanto em sua temática quan-
to na forma de abordagem.
A historiografia cientificista
No contexto social e intelectual que ca-
Os historiadores, a partir da década de
racteriza a produção historiográfica do
1870, tendem a assumir uma perspecti-
período de 1870-80 a 1930-31, as nar-
va mais crítica, menos áulica talvez,
rativas e avaliações da transferência da
acerca do percurso histórico correspon-
corte portuguesa para o Brasil tendem
dente à formação colonial e ao Estado
a interessar-se menos pelos pormeno-
imperial. As preocupações maiores têm
res históricos da chegada e estabeleci-
a ver não só com a construção do pró-
mento da família real e mais pela inter-
prio Estado e a formação da nação, mas,

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pretação do seu significado, quer dizer, processo de independência. No último


do sentido que as transformações en- capítulo do primeiro dos livros citados,
tão desencadeadas deram ao processo significativamente intitulado “Três sécu-
de independência política e à estrutu- los depois”, Capistrano escreveu:
ração política e social do Império. Mui-
Vida social não existia, porque não
tos deles, aliás, contemporâneos da
havia sociedade; questões públicas
queda do Império e dos primeiros anos
tampouco interessavam e mesmo não
da República, tentam perceber nos acon-
se conheciam: quando muito sabem
tecimentos de 1808 algumas hipóteses
se há paz ou guerra, assegura
explicativas dos próprios rumos da his-
Lindley. 28 É mesmo duvidoso se sen-
tória do Brasil ao longo do século XIX.
tiam, não uma consciência nacional,
Pode-se então afirmar que, paralela-
mas ao menos capitanial, embora
mente ao lento trabalho de construção
usassem tratar-se de patrício e pai-
da memória de 1808, as interpretações
sano. Um ou outro leitor de livro es-
históricas, tanto aquelas produzidas por
trangeiro podia falar na possibilida-
historiadores como as que foram escri-
de da independência futura, princi-
tas por outros tipos de intelectuais – li-
palmente depois de fundada a repú-
teratos, sociólogos, políticos –, tendem
blica dos Estados Unidos da Améri-
a incluir em suas avaliações do período
ca do Norte e divulgada a fraqueza
de d. João VI no Brasil suas próprias
lastimável de Portugal.
inclinações e preocupações presen-
tistas, monarquistas ou republicanas. Não se inquiria, porém, o meio de con-

Mas foi também ao longo desse perío- seguir tal independência vagamente

do, provavelmente, que ganharam seus conhecida, tão avessa à índole do

lugares na memória coletiva de 1808 povo a questões práticas e concretas.

alguns dos temas e ícones mais identi- Preferiam divagar sobre o que se faria

ficados, em termos do senso comum, depois de conquistá-la por um modo

com fatos e pessoas da época joanina qualquer, por uma série de sucessos

em terras brasileiras. imprevistos, como afinal sucedeu.


Sempre a mesma mandriice intelectu-
João Capistrano de Abreu (1853-1927)
al de Bequimão e dos Mascates! 29
Trata-se por excelência de um historia-
Que nos desculpem essa citação um tanto
dor do período colonial, isto é, do Brasil-
longa. Acreditamos, porém, que ela é bas-
colônia (com perdão dos caçadores de
tante ilustrativa de alguns dos pontos es-
anacronismos de plantão). Dois de seus
senciais que marcam a revisão crítica dos
textos fundamentais, Capítulos de histó-
“quadros de ferro” de Varnhagen levada a
ria colonial e Os caminhos antigos e o
cabo por Capistrano de Abreu. Represen-
povoamento do Brasil , 27 não se preocu-
tou este último, de fato, uma verdadeira
pam, como nos parece lógico, com os
mutação historiográfica, pois, agora, em
eventos de 1808 nem tampouco com o
lugar da continuidade, havia ruptura, em

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vez da teleologia do Estado, a formação sa, pressionada pelas ameaças francesas


da nação se desloca da esfera político-ad- e britânicas. Daí então, em breves pala-
ministrativa e do protagonismo da monar- vras, a partida da corte para o Brasil, em
quia absoluta metropolitana para o campo 29 de novembro, e a chegada à cidade
social e econômico: é o povoamento, a di- do Salvador, Bahia, em 22 de janeiro de
mensão espacial ou geográfica da conquista 1808. Finalmente, alguns comentários à
e ocupação do território – as explorações, carta régia de 28 de janeiro que abriu
os caminhos antigos. A nação surge assim os portos do Brasil ao comércio das na-
como muito variada regionalmente, tendo ções amigas. Até onde podemos perce-
como pano de fundo aquele sertão ignora- ber, Capistrano se mostra mais propen-
do até então pela historiografia. Ao pas- so a atribuir a decisão régia a antigas e
sar, conforme expressão sua, de uma his- reiteradas pressões britânicas, agora
tória externa para uma história interna, verbalizadas por lord Strangford, e, quan-
Capistrano irá pôr em destaque a impor- to ao mais, limita-se a transcrever um
tância do elemento indígena na constitui- manuscrito de Tomás Antônio de Vila
ção do povo brasileiro, em oposição à na- Nova Portugal, no qual consta que José
ção branca e européia entrevista por da Silva Lisboa e Antônio da Silva Lisboa
Varnhagen. 30
teriam convencido o ministro de Estado
d. Fernando José de Portugal da impor-
Como já se poderia antecipar a partir
tância de “fazer assinar por El-Rei o de-
da leitura do parágrafo final do texto an-
creto para abrir todos os portos do Bra-
teriormente citado, Capistrano atribui a
sil às nações estrangeiras”. 32
sucessos imprevistos a conquista da in-
dependência política. Em seus Ensaios e Além dos trabalhos produzidos por
estudos , 2ª série, 31
encontra-se um arti- Capistrano de Abreu, observa-se, ao lon-
go intitulado “28 de janeiro”, publicado go do mesmo período citado, que conti-
no Jornal do Commercio de 28 de janei- nuaram a aparecer obras escritas no
ro de 1908, em comemoração ao 1º Cen- velho estilo, isto é, crônicas e anais, bem
tenário da Abertura dos Portos. Nesse como se pode notar a presença de alguns
artigo, Capistrano faz um longo retros- autores que cultivam um certo
pecto dos principais acontecimentos eu- eruditismo, não raro mais aparente que
ropeus desde a reunião dos Estados Ge- real. Tal seria, por exemplo, o caso dos
rais em Versalhes, em maio de 1789. A textos produzidos por João Manuel Pe-
seguir, aborda os acontecimentos ibéri- reira da Silva e por Alexandre José de
cos com atenção especial à correspon- M e l o M o r a i s , p a i e f i l h o . 33 S e g u n d o
dência entre o príncipe regente d. João e Iglésias, na linha erudita cabem os maio-
Napoleão Bonaparte, imperador dos fran- res louros aos estudiosos regionais,
ceses. Na realidade, Capistrano privile- como, apenas para exemplificar, João
gia a exposição dos fatos que caracteri- Francisco Lisboa.34 Ainda devem ser ci-
zam a difícil situação da corte portugue- tados, na impossibilidade de aqui analisá-

pág.20, jan/jun 2008


R V O

los, historiadores como Joaquim Caeta- abordou o tema que de fato nos interes-
no da Silva, Gottfried H. Handelmann, sa, d. João VI no Brasil – o historiador e
Candido Mendes de Almeida, Joaquim diplomata Oliveira Lima.36 Sua preocupa-
Norberto de Sousa e Silva, João Coelho ção maior foi sempre com a formação his-
Gomes, José Maria da Silva Paranhos tórica da nacionalidade brasileira, 37 su-
Júnior, o barão do Rio Branco, e, especi- blinhando o surgimento precoce de um
almente, Manoel Bomfim. 35
Mencionamos ideal nacionalista, já no século XVI, e o
estes nomes apenas para que se tenha papel dos movimentos nativistas, especi-
uma visão da variedade de textos histó- almente a resistência pernambucana às
ricos que foram produzidos à época de invasões holandesas. 38 Na biografia inte-
Capistrano. Não consta que tenham ido lectual que dele elaborou, Gilberto
além de uma consolidação das narrati- Freyre chamou-o de “Oliveira Lima, Don
vas e interpretações a respeito de 1808. Quixote Gordo”. 39 Segundo o juízo de
Outra coisa, porém, seria a análise teó- Iglésias, Oliveira Lima representa uma ou-
rica de seus respectivos discursos. tra fase na historiografia brasileira, ao
superar a crônica e a erudição vazia de
A culminação de um século de história e
senso crítico. Capistrano o considerava
memória: M. de Oliveira Lima (1867-1928)
um tanto superficial, e é verdade que
Entre intelectuais significativos de fins do suas principais referências eram os seus
século XIX e começos do XX, a exemplo amigos europeus ou europeizados. Seja
de Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, Sil- como for, pesquisou e escreveu muito.
vio Romero e Euclides da Cunha, preferi- Brigou também ou desentendeu-se com
mos fixar-nos naquele que mais de perto colegas de carreira e com historiadores

Recibo de carga do brigue escuna Aurora, Salvador, 10 de março de 1818

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 9-26, jan/jun 2008 - pág.21


A C E

em função da sua facilidade em criticar ta maneira cristalizou uma visão positi-


e polemizar. va das principais personagens e ações
mais diretamente associadas às grandes
A obra D. João VI no Brasil caiu sob me-
transformações da ex-colônia. Ao pre-
dida na comemoração do primeiro cen-
tender ser apenas um historiador bem
tenário da chegada da família real e da
informado e isento, Oliveira Lima dese-
corte portuguesa ao Brasil. Contra os
nhou e fixou as linhas mestras de uma
detratores da personalidade do príncipe
imagem que consagrava em seus aspec-
d. João, as críticas ao parasitismo da cor-
tos mais positivos a época de d. João,
te, e as ironias sobre as querelas inter-
elevando-a à categoria de lugar simbóli-
mináveis entre anglófilos e francófilos,
co por excelência da própria memória
Oliveira Lima optou pela análise o mais
nacional.40
objetiva possível, no seu entender, da
documentação farta e arduamente Ao buscar o refúgio do Brasil, onde fun-
pesquisada em acervos europeus e dou (ou refundou) seu governo, d. João
norteamericanos. Assim, relativizando colocou o imenso oceano entre ele e
aqui e ali, contrapondo sempre à petite Napoleão. Custou-lhe muito deixar Por-
histoire o balanço minucioso das reali- tugal, embora não tenha sido realmente
zações, com ênfase na preparação das uma fuga, mas, sim, uma inteligente es-
condições de possibilidade do processo tratégia de sobrevivência. “Fundador da
de independência, Oliveira Lima de cer- nacionalidade brasileira”, como tido na

Registro da abertura dos portos brasileiros


ao comércio exterior, Salvador, 29 de janeiro de 1808

pág.22, jan/jun 2008


R V O

república, d. João foi alvo de uma sim- Longa em demasia seria a análise dos trin-
patia coletiva, impulsiva e sincera. Mes- ta capítulos em que se estrutura o grande
mo a partir de 1820, quando a revolu- livro de Oliveira Lima, desde “A partida”
ção liberal portuguesa agitava seus par- até “A desilusão do regresso”. Ao longo de
tidários em vários pontos da terra suas 790 páginas desenvolve-se a narrati-
brasílica, os virulentos panfletos, publi- va minuciosa e precisa de uma época de-
cados no Rio de Janeiro, tendiam a pou- cisiva da história do Brasil. Assim, somen-
par o monarca e não empregavam a seu te a título de amostra, veja-se como o au-
respeito senão expressões de amizade tor distingue os motivos imediatos do em-
e de veneração. barque – “a conselho do governo britânico
e escoltadas as suas naus por navios bri-
A crítica histórica não faz senão for-
tânicos –, e os de natureza mediata: “uma
talecer hoje uma feliz intuição na-
inteligente e feliz manobra política e não
cional... Como é que o bom senso
uma deserção covarde”, manobra esta que
ou, antes, o bom gosto da posteri-
já estava, há muito tempo, presente no
dade não haveria de descobrir, sob
horizonte de possibilidades da monarquia
o exagero das caricaturas grotescas,
lusa em caso de grave ameaça à sua so-
que os publicistas interessados par-
brevivência.
ciais têm esboçado, os traços verí-
dicos de sagacidade e de bondade. 41 Estilo narrativo e descritivo, mais voltado
para as questões políticas, diplomáticas
Fomos buscar todas essas avaliações crí-
e militares, assim como para as intrigas
ticas acerca de d. João e sua época em
palacianas, Oliveira Lima não deixou de
outro dos textos de Oliveira Lima, desta
dedicar capítulos preciosos à justiça, aos
vez de síntese, onde de maneira mais
índios, à cultura, à revolução de 1817 em
concisa ele refuta antigas versões e
Pernambuco, e assim por diante.
descaracteriza velhas caricaturas. É as-
sim, prossegue o nosso historiador, que Breves indicações, sumárias apreciações.
Na verdade, o grande livro de Oliveira Lima
Numerosas anedotas burlescas, e
não poderia ser aqui resumido de modo
mesmo brejeiras, muito raramente
apropriado. Trata-se de texto extremamen-
autênticas, correm mundo a respei-
te denso, trabalhado com rigor documen-
to desse soberano, que nossos
tal, no qual o autor buscou reconstituir a
pais menoscabavam um pouco, por
totalidade de um processo complexo e dos
causa das histórias que tinham
mais ricos em sua diversidade de aspec-
ouvido contar por nossos avós,
tos. Algo que não fora tentado até então e
mais sensíveis aos ridículos das
que não seria ultrapassado até os dias de
aparências que ao valor dos resul-
hoje. Um clássico da historiografia nacio-
tados. Faltava-lhe realmente uma
nal, segundo Wilson Martins, igualmente
qualidade: a firmeza, e vós sabeis
apreciado por Gilberto Freyre, José
que a zombaria persegue facilmen-
Veríssimo e Octavio Tarquínio de Souza.43
te aos fracos. 42

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 9-26, jan/jun 2008 - pág.23


A C E

A obra historiográfica de Oliveira Lima si- Joaquim Nabuco, Silvio Romero, Euclides
tua-se a meio caminho de um período que, da Cunha, Alfredo de Carvalho, Nina
como já anunciamos, tem Capistrano de Rodrigues, Manoel Bomfim, João Ribeiro,
Abreu como sua figura exponencial. A pro- entre os principais.44
dução historiográfica de tal período abran-
ge contribuições não só, ou não tanto, de C ONCLUSÃO PARCIAL

O
historiadores propriamente ditos como de entorno de 1930 é sempre um
outros intelectuais pertencentes a variadas território minado para o histo-
especializações no campo das humanida- riador. Todavia, é impossível
des, alguns mais chegados à perspectiva evitá-lo. Ainda que se relegue a Revolu-
historiográfica de Capistrano, outros dele ção de 1930 a uma espécie de pano de
distanciados ou mesmo em franca oposi- fundo, não se pode ignorar que, um pou-
ção. Note-se que não se trata aqui de ami- co antes, um pouco após aquele ano, vá-
zades ou laços pessoais, que, de fato, exis- rios fatos marcam o processo historio-
tiram em muitos casos, mas da afinidade gráfico brasileiro: 1927 é o ano da morte
maior ou menor com uma certa maneira de J. Capistrano de Abreu; 1931 é a Re-
de escrever história, fora das preocupa- forma Francisco Campos; 1933 são os pri-
ções hegemônicas da política e dos fastos meiros trabalhos realmente inovadores de
militares. Uma outra maneira, portanto, de Caio Prado Júnior e de Gilberto Freyre,
abordar o problema da nação e do povo logo seguidos por Raízes do Brasil, de
brasileiros. Tais seriam assim os casos de Sérgio Buarque de Holanda (1936).

N O T A S
1. SILVA DIAS, Maria Odila Leite. A interiorização da metrópole e outros estudos . São Pau-
lo: Alameda, 2005. p. 7-37.
2. NORA, Pierre et al. Les lieux de mémoire . v. I: La Republique. Paris: Gallimard, 1984. p.
XIV.
3. ANKERSMIT, F. R. Commemoration and national identity. Textos de História – Memória,
Identidade e Historiografia. Brasília: UnB, v. 10, n. 1-2, p. 16-18, 2002.
4. HOBSBAWM, E. W. The historian between the quest for the universal and the quest for
identity. Diógenes , n. 168, 1994. p. 51-64.
5. CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia . Coimbra: Quarteto, 2001, p. 16-17,
numa referência, também, a M. Halbwachs, La mémoire colletive. Paris: Albin Michel, 1997.
6. ibidem, p. 17, numa citação de P. Ricoeur, Entre mémoire et histoire, Projet , n. 248,
1996-1997.
7. ibidem. p. 20-21.

pág.24, jan/jun 2008


R V O

8. ibidem. p. 21 e 49.
9. TODOROV, T. Les abus de la mémoire . Paris: Arléa, 1995.
10. NORA, Pierre. Les lieux de mémoire, v. III. Paris: Gallimard, 1992.
11. CATROGA, F. op. cit. p. 44, 49.
12. IGLESIAS, Francisco. Historiadores do Brasil . Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2000. p. 23-24.
13. SOUTHEY, Robert. History of Brazil , 1810, 1817, 1819. 3 v.
14. SILVA DIAS, Maria Odila da. O fardo do homem branco : Southey, historiador do Brasil.
São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1974.
15. Como exemplos de historiografia do princípio do século XIX, podem ser referidos: José
da Silva Lisboa, o qual, como cronista, escreveu: Memória dos benefícios políticos do
governo de el-rei nosso senhor d. João VI (1818) e História dos principais sucessos
políticos do Império do Brasil (1830); Luís Gonçalves dos Santos, Memórias para servir à
história do Reino do Brasil, divididas em três épocas de felicidade, honra e glória , escritas
no Rio, em 1821, e publicadas em Lisboa, em 1825; Cf. IGLESIAS. op. cit. p. 51.
16. Pizarro e Araújo escreveu e editou em nove tomos as Memórias históricas do Rio de
Janeiro e das províncias anexas... , em 1820-22; Baltazar da Silva Lisboa, autor dos
Anais do Rio de Janeiro, em sete volumes, publicados entre 1834 e 1835.
17. ODÁLIA, Nilo (org.). Varnhagen . São Paulo: Ática, 1979. Cf. às páginas 24-30 uma bibli-
ografia parcial de Varnhagen. No presente trabalho utilizamos a nona edição integral, em
5 tomos reunidos em 3 volumes, revista e anotada pelo prof. Helio Vianna. São Paulo:
Melhoramentos, 1978. Todas as citações que se seguem referem-se a esta última edição.
18. WEHLING, Ar no. Estado, história, memória : Var nhagen e a construção da identidade
nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 60-66.
19. IGLESIAS, Francisco. op. cit. p. 72.
20. WEHLING, Arno. op. cit. p. 74.
21. ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo : ensaios sobre o pensamento historiográfico de
Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Unesp, 1997. p. 31-42.
22. ibidem. p. 25-27 e 45-47.
23. VARNHAGEN, F. A. de. História geral do Brasil . São Paulo: Melhoramentos, 1978. v. 3.
24. ibidem. p. 89.
25. ibidem. p. 90.
26. ibidem. p. 89-110.
27. ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de história colonial e Os Caminhos antigos e o
povoamento do Brasil . Brasília: Ed. UnB, 1982.
28. LINDLEY, Thomas. Narrative of a voyage do Brazil, London, 1905, p. 275, apud ABREU,
Capistrano de. Capítulos de história colonial , op. cit. p. 196-197.
29. ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de história colonial, capítulo 11. p. 199-200.
30. ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo . p. 14-17.
31. ABREU, J. Capistrano de. Ensaios e estudos (Crítica e história), 2ª série. Rio de Janeiro;
Brasília: Civilização Brasileira; INL, 1976. p. 41-60.
32. ibidem. p. 59-60.
33. Esses autores e suas respectivas obras vão citados por F. Iglesias, op. cit., às páginas
96 e 97. São escritores “de larga produção, mas de reduzido alcance, por vícios de
várias espécies”.
34. IGLESIAS, F. op. cit. p. 97-98.
35. ibidem. p. 98-117.
36. LIMA, M. de Oliveira. D. João VI no Brasil . 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
Prefácio de Wilson Martins. Segundo Iglesias, op. cit. p. 135-138, Oliveira Lima publicou
muitos volumes, todos de história ou de viagens, porém o mais importante deles é o D.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 9-26, jan/jun 2008 - pág.25


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João VI no Brasil , acusado como responsável pelo culto do período, sendo certo, no
entanto, que “o texto é grandioso..., o mais importante até hoje sobre período decisivo
da trajetória nacional”.
37. LIMA, M. de Oliveira. Formação histórica da nacionalidade brasileira . Prefácios de Gilber-
to Freyre, José Veríssimo e M. E. Martinenche. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997 (ed.
original em francês, 1911).
38. ibidem. p. 151-169. Na página 156 o autor insere citação de Euclides da Cunha que
resume a interpretação deste último sobre as circunstâncias que explicam e justificam
as características de d. João VI como o homem absolutamente necessário ao meio e ao
momento histórico do Brasil.
39. FREYRE, Gilberto. Prefácio da edição brasileira da Formação histórica da nacionalidade
brasileira , de M. de Oliveira Lima, 1944.
40. O texto de Oliveira Lima demonstra, na prática, até que ponto se confundem, no esforço
de reconstituição de um certo passado, História e Memória. Daí decorre provavelmente o
conflito das interpretações/avaliações, entre os historiadores, a respeito da obra magna
do referido historiador.
41. LIMA, M de Oliveira, D. João VI no Brasil , capítulos 1, 2 e 3.
42. ibidem, p. 159 e ss. (Emancipação intelectual); p. 271 e ss. (O tráfico de escravos ); p.
465 e ss. (Administração e justiça: os interesses agrícolas e industriais); p. 487 e ss.
(O tratamento dos índios).
43. IGLESIAS, F. op. cit. p. 135-141; LIMA, M. de Oliveira, Formação histórica da nacionali-
dade brasileira , p. 151-169.
44. IGLESIAS, F. op. cit. p. 142-179.

Recebido em 11/12/2007
Aprovado em 27/12/2007

pág.26, jan/jun 2008


R V O

Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves


Professora titular da Uerj, pesquisadora do CNPq, cientista
do Nosso Estado/Faperj, pesquisadora principal do Pronex/Faperj/CNPq
intitulado “Dimensões da cidadania”, coordenado por José Murilo de Carvalho.
Guilher me Pereira das Neves
Professor associado I da UFF, pesquisador do CNPq, nível 2, e
pesquisador principal do projeto Pronex/Faperj/CNPq intitulado
“Raízes do privilégio”, coordenado por Ronaldo Vainfas.

Alegrias e Infortúnios dos Súditos


Luso-Europeus e Americanos
A transferência da corte
portuguesa para o Brasil em 1807

Este trabalho pretende analisar os This paper intends to analyse the feelings
sentimentos despertados pela transferência da aroused in the Portuguese subjects in
corte portuguesa para o Brasil em 1807, tanto Europe as much as in America by the
nos súditos lusos da Europa como nos súditos transfer of the Portuguese court to Brazil in
da América. Se, lá, o acontecimento gerou um 1807. If the event begot a sense of orphanhood
sentimento de orfandade e abandono, aqui, as and neglect there, here, the unprecedented
esperanças alçaram vôo com a presença inédita presence of a sovereign made hopes take flight.
de um soberano. Do processo, resultaram o Results of this process were the Portuguese
movimento português de 1820 e a movement of 1820 and the Brazilian
Independência do Brasil 1 . Independence.
Palavras-chave : Invasões Napoleônicas; corte Keywords: Napoleonic Invasions; Portuguese
portuguesa; Representações políticas. Court; Political representations.

E
“Duas coisas se não podem
m Lisboa, ao longo do mês de
exatamente descrever; nem
novembro de 1807, cresceram
a alegria e entusiasmo do
as murmurações em relação aos
povo do Brasil com a possíveis acontecimentos políticos que ame-
chegada da Família Real, açavam abalar o império português naquele
nem a tristeza e momento. Comentários sobre a movimen-
consternação do povo de tação das tropas francesas – inicialmente
Lisboa (depois de todo o concentradas na fronteira com a Espanha
reino) com a sua partida.” 2 e, em seguida, em marcha para invadir Por-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 27-44, jan/jun 2008 - pág.27


A C E

tugal – ocupavam as conversas nos cafés, interesses da Inglaterra em Portugal,


local de preferência para a discussão, com como o fechamento dos portos a seus
“demasiada liberdade” (como se dizia na navios, o seqüestro dos bens e a prisão
época), de todos os objetos relacionados dos súditos britânicos residentes no país,
à situação política da Europa. Versos, boa- as quais colocaram o tradicional aliado
tos, pasquins e notícias diversas traduzi- em pé de guerra, com a ameaça velada
am a angústia de uma população que as- de bombardear Lisboa, como fizera com
sistia, sem saber ao certo o que estava Copenhagen menos de dois meses antes.
em jogo, à indecisão da corte portuguesa,
Assim, diante da notícia de que tropas
que buscava conservar-se neutra e acaba-
francesas já tinham entrado em territó-
va tornando o país vulnerável, ao mesmo
rio português, “havendo-se esgotado to-
tempo, diante de duas nações inimigas
dos os meios de negociação e não ha-
entre si, a França e a Inglaterra.
vendo esperança alguma discreta que
Afinal, desde a assinatura do Tratado de por tais expedientes se removesse o
Tilsit entre França e Rússia, em julho de perigo iminente que ameaça a existên-
1807, a situação agravara-se. Resolvidas cia da Monarquia, soberania e indepen-
as pendências no leste europeu, os fran- dência de S. A. R.”, na madrugada de
ceses voltaram sua atenção para o oes- 25 de novembro, o Conselho de Estado
te, ou seja, para a Península Ibérica. Os decidiu a partida da corte portuguesa
acontecimentos precipitaram-se. Após com destino ao Brasil. A solução não era
uma série de concessões portuguesas em nova, nem deixara de haver preparação
face das exigências francesas, em 11 de para implementá-la. No entanto, cumpria
novembro de 1807, o Moniteur Universel, acelerar o embarque, pois curto era o
jornal oficial da França imperial, publi- tempo disponível.4
cava não só o Tratado de Fontainebleau
Analisar tanto os sentimentos dos súditos
com a Espanha, que dividia Portugal em
lusos na Europa e na América, quanto o
três partes, como a decisão de Napoleão
impacto causado em suas vidas pela trans-
Bonaparte de destronar a dinastia de
ferência da corte portuguesa para o Brasil
Bragança. 3 A essa altura, na esperança
é a proposta deste trabalho. Se, do lado
de ainda aplacar a ira do temível corso,
de lá do Atlântico, restou um sentimento
foram decretadas, entre 20 de outubro
de orfandade e abandono, do lado de cá,
e 5 de novembro, medidas contrárias aos
as esperanças alçaram vôo, com a presen-
ça inédita de um soberano em terras ame-
ricanas. Com o passar dos anos, desse pro-
cesso resultaram transformações que pos-
sibilitaram à antiga colônia projetar-se
como a peça central do mundo luso-brasi-
leiro, convertendo-se no pólo geográfico em
Assinatura de Napoleão Bonaparte,
Tratado de paz entre França e Portugal , 1801 relação ao qual se definiam as principais

pág.28, jan/jun 2008


R V O

opções do sistema imperial. Somada às a reinar, não sucedendo “à sua Coroa, o


dificuldades enfrentadas por Portugal, essa que sucedeu à de Sardenha e de Nápo-
posição acabou por inverter, não só na prá- les e o que talvez entre no projeto das
tica, como também na sensibilidade dos grandes potências que suceda a todas
contemporâneos, a concepção tradicional: as Coroas de segunda ordem na Euro-
se o reino europeu via-se reduzido a uma pa”. E continuava:
posição de inferioridade, o Rio de Janeiro
V. A. R. tem um grande império no
passava a adquirir o lugar de metrópole,
Brasil e o mesmo inimigo que ataca
inclusive em relação ao restante da Amé-
agora com tanta vantagem, talvez tre-
rica portuguesa. Desses descontentamen-
ma e mude de projeto, se V. A. R. o
tos resultaram, ao final do processo, tan-
ameaçar de que se dispõe a ir ser im-
to o Movimento Liberal português de 1820
perador naquele vasto território,
e suas vicissitudes ao longo das décadas
adonde pode facilmente conquistar
seguintes, quanto a independência do Bra-
as colônias Espanholas e aterrar em
sil e as hesitações da nova nação.
pouco tempo as de todas as potên-
* * * cias da Europa.6

A opção extrema da transferência da A idéia de preservar a monarquia portu-


corte para os domínios da América fora guesa comandava tais raciocínios, mas
aventada inicialmente, nas condições di- merece destaque que seus autores vis-
fíceis da Restauração de 1640, pelo pa- lumbrassem a possibilidade de constituir
dre Antônio Vieira e, posteriormente, igualmente um novo império , que pode-
não deixou de ser lembrada em outros ria, inclusive, vir a englobar as colônias
momentos de tensão. Por conseguinte, espanholas, uma opção que não deixou
não surpreende que tenha sido retoma- de ser novamente ventilada em 1807.
da no início do século XIX frente à grave
Depois de argumentar durante anos que,
situação política internacional em que
sem os domínios ultramarinos, Portugal
Portugal tentava garantir sua neutralida-
em breve não passaria de uma província
de. Em 1801, quando da Guerra das
Laranjas, contra a Espanha, d. José
Maria de Souza, morgado de Mateus, em
parecer de 14 de abril, recomendava
que o príncipe regente se retirasse para
o Brasil, “donde ameaçaria todas as co-
lônias espanholas” e poderia vir a fun-
dar “o maior império do Mundo”.5 O mar-
quês de Alorna, em carta ao príncipe,
após a derrota portuguesa nesse confli-
to, revelava idêntica opinião. Importava
Selo do Tratado de paz
que a dinastia de Bragança continuasse
entre França e Portugal, 1801

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 27-44, jan/jun 2008 - pág.29


A C E

de Espanha, também Rodrigo de Souza Portanto, o que se discutiu e decidiu nas


Coutinho, em 1803, insistia que a euro- reuniões do Conselho de Estado portu-
péia não era “a melhor e mais essencial guês ao longo dos meses de agosto a no-
parte da Monarquia”, posto que, depois vembro de 1807, com a presença de d.
que ela tivesse sido devastada “por uma Rodrigo, não era algum plano inusitado
longa e sanguinolenta guerra”, ainda res- e, sim, uma idéia que ressurgia nos mo-
tava “ao soberano e aos seus povos” a mentos de tensão internacional, como
oportunidade de criar um poderoso im- era este, frente à pressão napoleônica.
pério no Brasil, “donde se volte a recon- Dessa forma, após os últimos preparati-
quistar o que se possa ter perdido na vos, naturalmente tumultuados, o em-
Europa”. Nesse caso, no entanto, o mi-
7
barque da corte ocorreu no final da tar-
nistro pressupunha uma perspectiva mais de de 27 de novembro, retardando-se,
ampla, de acordo com as reflexões que contudo, a partida, sob a proteção da
vinha fazendo desde que fora represen- esquadra inglesa, que bloqueava o Tejo,
tante diplomático de Portugal em Turim, até 29, em função dos ventos desfavo-
que não implicava apenas em um deslo- ráveis. No dia seguinte, entravam em
camento transitório da corte, mas que Lisboa as tropas de Junot.
representava, sobretudo, uma profunda
Se a partida há muito já estava planeja-
reforma do império português como um
da, como precaução, a sua execução, em
todo, conduzida de acordo com os princí-
curto prazo, acabou trazendo inúmeros
pios ilustrados que partilhava.

Carta do marquês de Alorna


aconselhando o príncipe d. João a sair de Portugal, 1801

pág.30, jan/jun 2008


R V O

problemas, pois a relutância e a indeci- vadida por exército inimigo: estes a


são em partir propiciaram o açodamento recordarem-se dos males que iam
e a desordem que caracterizaram o mo- sofrer ficando sem protetores e no
mento do embarque. “Nos dias 27, 28 e meio dos terríveis franceses; aque-
29 de novembro de 1807, a desgraça, a les ao lembrarem-se dos incômodos
desordem e o espanto existiam por toda e perigos de tão longínqua viagem. 10
a parte em Lisboa, quer em terra quer
Além disso, a maior parte das famílias,
em mar: palácios se despiam, com a
em conseqüência da confusão reinante,
maior rapidez”; casas eram fechadas;
acabou por se dividir no embarque, ao
“ricos móveis e carros de elevado custo
entrar no primeiro navio que encontras-
embarcavam sem as devidas cautelas ou
se; “as bagagens, em grande parte, fica-
tiveram de ser abandonados nas praias”.8
ram em terra, e muita da que embarcou
Na descrição dos contemporâneos, “apa-
foi em navios onde não iam seus donos,
receram pelas ruas e pelas praias de
e isto fez com que a corte sofresse gran-
Belém bandos errantes de pessoas de
des privações na sua longa viagem para
ambos os sexos e de todas as idades,
o Brasil”. Registradas anos depois em
em cujos rostos estavam pintadas a má-
suas memórias, eram essas as observa-
goa e a desesperação”. Baús, pacotes,
ções de um menino de cinco anos, José
caixas amontoavam-se ao longo do cais
Trazimundo, futuro marquês de Frontei-
no Tejo, abandonados, sem conseguir
ra e Alorna, que permaneceu em Portu-
embarque. As provisões da esquadra, al-
gal, mas presenciou a despedida de vá-
gumas se tinham “consumido com o tem-
rios membros de sua família para o Bra-
po, outras por descaminhos”. Os tonéis
sil. Afirmava ainda que nunca se esque-
de água de certas naus tinham-se extravi-
cera das “lágrimas” que viu derramar
ado, sendo necessário fazer outros, de
“tanto ao povo, como aos criados da Casa
“madeira nova”, o que era impróprio:
Real e aos soldados que estavam no lar-
“tudo foi confusão e desarranjo para se
go de Belém”. Muitos tinham a convicção
aprontar em poucos dias o puro indispen-
de que davam “o derradeiro adeus à pá-
sável para uma viagem tão distante”. 9
tria e aos amigos, pela avançada idade
A partida, ainda que não fosse uma fuga que já contavam”.11
precipitada e repentina, trouxe muitos
A retirada da corte e a conseqüente
transtornos tanto para aqueles que fica-
acefalia da monarquia – enquanto “a au-
ram na antiga sede do império português,
toridade soberana boiava no oceano”,
como para os que partiram:
como exprimiu o embaixador em Londres,
Copiosas e tristes lágrimas derrama- Domingos de Souza Coutinho – quebravam
ram-se por esta ocasião, uns chora- o pacto entre senhor e vassalos, revestin-
vam a separação de pais, maridos e do-se de uma enorme dimensão simbóli-
filhos e mais pessoas queridas; ou- ca para as populações do Antigo Regime,
tros a criticar a posição da pátria in- ao criar um sentimento de ausência do

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A C E

monarca, imagem de uma orfandade po- guerra, nem depois de feita a paz”. Além
lítica. Com certo exagero de cortesão, disso, desmembrado do Brasil, não jul-
Acúrsio das Neves, fortemente ligado ao gava que Portugal pudesse voltar a ser
príncipe regente, traduziu a situação ao uma monarquia, o que fazia aflorar, em
retratar o embarque deste último: sua ótica, o perigo republicano numa so-
ciedade despojada de seu rei e de uma
Queria falar e não podia; queria mo-
parcela de sua mais alta nobreza.14
ver-se e, convulso, não acertava a dar
um passo: caminhava sobre um abis- Entre as elites intelectuais e politizadas,
mo, e apresentava-se-lhe à imaginação já marcadas pelas idéias da Ilustração, a
um futuro tenebroso e tão incerto partida da corte produziu distintas reações.
como o oceano a que ia entregar-se. José Liberato Freire de Carvalho, redator
Pátria, capital, reino, vassalos, tudo do Investigador Português em Inglaterra
ia abandonar repentinamente, com (1814-1818) e do Campeão Português
poucas esperanças de tornar a pôr- (Londres, 1819-1821 e Lisboa, 1822-
lhes os olhos, e tudo eram espinhos 1823), considerou a “retirada” ou, antes,
que lhe atravessavam o coração.12 a “fugida tumultuosa” um ato de covardia
do governo. Para ele, essa atitude era re-
Concebendo-se a monarquia como uma
sultado de “um ministério imbecil”, “ven-
família, em cuja cabeça encontrava-se o
dido à política estrangeira” e presidido por
rei, na figura de um pai, como uma espé-
um “príncipe sem caráter, fraco e medro-
cie de viga mestra, indissoluvelmente
so”, que não soube ou não quis “fazer a
unido à nação, o autor dessas linhas, fiel
paz nem a guerra”. Além disso, pedira aos
aos princípios do Antigo Regime, reconhe-
portugueses que “recebessem como ami-
cia assim o papel singular que a presen-
gos, os seus conquistadores” e “obedeces-
ça física do soberano exercia entre seus
sem ao invasor”.15 Da mesma forma, em
súditos.13
jornais igualmente publicados em Londres,
Diante da situação, falava-se, na época, anos mais tarde, João Bernardo da Rocha
de um “sussurro melancólico e confuso Loureiro afirmou que estava “em Lisboa
do povo” ou de um povo indiscreto , que no quase milagroso dia em que S. A. R.
não sabia como expressar aquilo que partiu daí para os seus estados da Améri-
estava sentindo. Outros súditos revela- ca”. Segundo seu testemunho, o aconteci-
vam um profundo inconformismo, como mento “dava ares de um despejo de casa
o intratável José Agostinho de Macedo, aonde prendeu o fogo”, tendo ouvido “pro-
cujas Reflexões imparciaes, ou parecer pósitos de blasfêmia e desesperação” da
acerca da situação de Portugal depois da maioria do povo de Lisboa, que se via
sahida de S. A. R. para a América consi- “abandonado por esse modo em mãos de
deravam artificial e forçada a emigração franceses”.16 Cabe destacar, por outro
da corte, ficando “Portugal europeu no lado, que os dois redatores, após a expul-
estado de não poder subsistir como rei- são definitiva dos franceses, tinham emi-
no independente, nem continuando a

pág.32, jan/jun 2008


R V O

grado para a Inglaterra em virtude de per- portância de fundar-se o novo “Império


seguições que sofreram por parte da re- do Brasil”, afirmando mesmo o direito
gência do reino, ao criticarem o Antigo da dinastia de Bragança de “se apossar
Regime português e defenderem o estabe- daquela parte das colônias espanholas,
lecimento de instituições livres. que lhe ficarem ao alcance de suas for-

N
ças”. Referendando-o, uma proclamação
o entanto, nem todos os ilus-
anônima aos portugueses, transcrita no
trados viram na transferência
mesmo jornal, justificava a partida em
da corte essa imagem negati-
função do perigo inevitável. Ao mesmo
va. Francisco Soares Franco, médico da
tempo, não só confortava o povo ao di-
Real Câmara e partidário de reformas,
zer que “vosso príncipe arriscou-se nos
mas não de uma revolução, ao traduzir e
mares para vos assegurar a vossa Inde-
corrigir um escrito publicado em Londres,
pendência e dar um eterno apoio às vos-
admitiu a conveniência da ação do prín-
sas esperanças!”, como o exortava para
cipe regente como a única esperança de
“que com o vosso príncipe ao lado
salvação para Portugal, que, assim, pôde
desafieis o mundo inteiro”. 18
manter sua honra, sua segurança, sua
glória, assim como a do nome de portu- De uma maneira mais característica do
guês. Um rei abandonava a Europa trans- Antigo Regime, apesar da saudade que a
formada em “verdadeiro asilo de ignomí- ausência da família real deixava entre os
nia debaixo do cetro de um corso”, indo “pastores do Tejo”, opiniões favoráveis
residir no Novo Mundo, para fugir dessa à decisão vieram também à luz em di-
tirania. Era no Brasil que Portugal podia versas odes de homenagem.
transformar-se em uma potência. Era no
Vai, ó meu bom Pastor, Pai verdadeiro,
Brasil que, “libertado da tirania de
Vai do Brasil gozar o doce abrigo;
Bonaparte e da ignomínia da Espanha”,
Benigno o justo Céu seja contigo,
Portugal poderia puni-los e “vingar-se de
Quanto aos vis o declamo justiceiro.19
todos os males”. 17
Outros versos instavam que a travessia
Paralelamente, Hipólito José da Costa,
do Atlântico transcorresse sem proble-
nascido no Brasil, emigrado para a In-
mas, a fim de preservar a dinastia de
glaterra, fugindo das malhas da
Bragança e de modo que fosse possível
Inquisição em Lisboa, no primeiro nú-
proclamar a nova força do império por-
mero do Correio Braziliense , publicado
tuguês ao estender-se pelos mares afo-
em Londres, justificava a transferência
ra. “Com pasmo, o mundo contempla
da sede da monarquia para o Rio de Ja-
extasiado: A Régia Lusa Prole o mar
neiro, considerando a “sábia política do
transpondo / Por intacta manter de opró-
príncipe regente de Portugal em mudar
brio a vida”. E acrescentava:
a sua corte para o Brasil”, a fim de não
se repetir o que sucedera com os sobe- – Se a América feliz desfruta agora
Nossas prerrogativas,
ranos espanhóis. Destacava ainda a im-

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É porque Jove quer que a manifestar sua preocupação com a saí-


Lusa glória, da do príncipe regente e sua real família
Por difíceis trabalhos se acrisole. para os estados do Brasil, mas, ao mes-
Se Proteu mais dissera, mo tempo, congratulava-se com a “real
Com pasmo a Lei do Fado executaríeis, resolução” tomada por d. João, uma vez
Que ao fim do Orbe o do Luso Im- que iria ser “um soberano independente
pério estende. 20
nos seus vastos Estados; do que é me-
lhor do que ficar a ser por outrem gover-
De modo semelhante, o já mencionado
nado e muito mais por aqueles que não
Acúrsio das Neves considerava que a
têm religião, nem boa fé”.22
Europa devia assombrar-se com esse
sucesso, pela sua novidade e por seus Apesar de tantos entusiasmos, prevale-
resultados. Sem dúvida, diante da fúria ceu, contudo, para aqueles que perma-
napoleônica, outros soberanos europeus neceram na metrópole, uma situação de
de reinos periféricos tinham procurado angústias e de maus pressentimentos. Ao
abrigo em terras de sua soberania. Carlos contrário, enquanto perdurasse a crise
Emanuel IV, rei do Piemonte, apesar da na Europa, o Brasil tornava-se a sede da
invasão do reino por tropas francesas em monarquia, fato cujas conseqüências de
1798, manteve sua soberania ao deslo- longo alcance para as regiões portugue-
car-se para a Sardenha, onde se conser- sas de ambos os lados do Atlântico não
vou a sede da monarquia até o final dos eram tão difíceis de prever, em particu-
conflitos napoleônicos. De igual maneira, lar, a nova dimensão do império, em que
quando da invasão francesa em 1799 (e Rodrigo de Souza Coutinho insistia.
novamente em 1806), o soberano de
À viagem de quase sessenta dias, sem o
Nápoles foi transportado para a Sicília,
alívio de qualquer escala, não faltaram
junto com a família real, escoltado pelos
tempestades e doenças, separando-se
navios do almirante inglês Nelson. 21
alguns navios do corpo principal da es-
Se outras cortes haviam saído do berço quadra por força das condições de nave-
de suas sedes, nenhuma delas havia, con- gação. A nau em que vinha o príncipe
tudo, cruzado um oceano. Portugal foi a regente aportou na Bahia, em 22 de ja-
única potência européia de segunda or- neiro de 1808. Era o primeiro monarca
dem, nesse período, cuja soberania, ain- a pisar no Novo Mundo. Após o desem-
da que exercida por d. João do outro lado barque, ele seguiu da Ribeira até a Sé,
do Atlântico, preservou-se através de um para assistir a um Te Deum , com o mai-
novo império, ao qual o antigo reino logo or aparato possível que a terra podia ofe-
se viu incorporado. Tal atitude constituía recer. Alas de militares, da nobreza, re-
para alguns um fato inacreditável. Em ligiosos e confrarias de quase todas as
carta ao cônsul português com data de freguesias acompanhavam-no em procis-
dezembro de 1807, o primeiro ministro são. Pelas ruas do trajeto, as casas es-
do imperador do Marrocos não deixou de tavam todas “armadas de cortinas e as

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janelas de colchas de várias qualidades”. D. João, entretanto, após pouco mais de


Salvas ecoavam de todas as fortalezas e um mês, continuou seu caminho, entran-
de alguns navios. “Em uma palavra, tudo do, em 7 de março de 1808, na baía da
[era] alegria”. 23 Guanabara.

Manifestações e súplicas insistiram para Com notícias certas da partida de Sua


que Sua Alteza Real optasse por esta- Alteza Real de Lisboa, confirmadas pela
belecer-se na cidade de Salvador. Justi- chegada à cidade das naus extraviadas
ficavam o pedido não só em virtude de no percurso, os preparativos no Rio de
a Bahia ser “a cidade metropolitana”, a Janeiro não demoraram a ter início, re-
antiga residência do vice-reinado, mas, velando as esperanças suscitadas na
sobretudo, em função “da notoriedade América pelo auspicioso acontecimento.
do caráter sensível e extremamente afe- Já em 16 de janeiro, reunia-se o Sena-
tuoso” que distinguia seus habitantes. 24
do da Câmara em ato de vereança, com
a presença do juiz presidente
e mais vereadores, o qual, de-
cidido a dar “todas as provas
de seu amor, da sua fidelida-
de e do seu respeito, para
com Sua Alteza Real, Sua
Augusta Mãe e as outras de-
mais pessoas reais”, acordou
“unanimemente que se deviam
fazer todas as despesas que
fossem precisas em tais oca-
siões”. Entre as iniciativas pre-
vistas, incluíam-se: a realiza-
ção, no dia da chegada de Sua
Alteza Real, de um Te Deum
na igreja do Carmo, sem des-
cuidar da música indispensá-
vel ao ato; o oferecimento, a
Sua Alteza Real e a todas as
demais pessoas reais, de um
refresco; a apresentação dos
cumprimentos do Senado da
Câmara, por si e em nome do
povo, a Sua Alteza Real e mem-
bros da comitiva; o estabele-
Gravura alegórica à retirada providencial da corte cimento de luminárias na cida-
portuguesa, Ângelo Pereira, Os filhos de el-rei d. João VI, 1946

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de e seus arrabaldes por oito dias su- tomava por suposto que também se há
cessivos; a imediata divulgação, por “de escrever na mesma História o espíri-
editais, do fato, de modo que todo o to com que este Senado o recebeu.” Tais
povo pudesse preparar-se, esmerando- preocupações demonstravam a importân-
se nas demonstrações de regozijo; a dis- cia de que se revestia para a cidade a
tribuição, pelo Senado, da cera neces- presença dos soberanos. Em conseqüên-
sária para as casas que ficavam de fren- cia, ao descrever o “imenso povo luzido”
te para o palácio e para aquelas situa- que acompanhava o cortejo com expres-
das na praia de d. Manuel, aonde iriam sões de “viva o nosso príncipe”, destaca-
residir os criados da corte, assim como va o número de pessoas de ambos os
a iluminação, com gosto e elegância, do sexos que enchiam as ruas Direita e do
paço e do largo à sua volta por meio de Rosário “no seu pavimento e nas casas”,
pirâmides, balaústres e galerias de ma- emitindo “expressões sinceras de respei-
deira pelos ditos oito dias; da mesma to” e das quais os olhos vertiam “inúme-
forma, nesse local, havia de distribuir- ras lágrimas que confirma[vam] a since-
se “com simetria, a música dos regi- ridade de seus corações”.26
mentos para que, por turno, celebre
Merece igualmente menção, na descri-
com seus instrumentos, tão extraordi-
ção dessas festas, que se achavam liga-
nário sucesso”; cabia ainda à institui-
das “com a história de um sucesso, que
ção animar o povo a formar danças e
em todos os tempos, fará impressão aos
dar outros testemunhos de sua alegria;
corações portugueses”, um curioso qua-
por fim, após os oito dias de festas,
dro, sob forma de luminária. Ao alto, fi-
competia celebrar um outro Te Deum
cava o retrato de d. João, entre festões
na catedral, com a presença de todas
de rosas. Em seguida, de um lado, a fi-
as corporações e pessoas distintas da
gura de Lísia, com semblante lacrimo-
cidade, convidadas pelo Senado. 25
so; de outro, a África, de joelhos, colo-
Após a chegada da corte, ao reunir-se cava à disposição suas riquezas, en-
novamente, o Senado quis registrar a quanto a América, de manto real e
importância de seu papel nos aconteci- borzeguins, oferecia o coração que tinha
mentos, posto que, quando nas mãos. Abaixo, a pintura da nau, em
que tinha vindo S. A. R. e, na parte infe-
(...) nos anais da História Portuguesa
rior, as quadras:
e na do Gênero Humano, se há de es-
crever o memorável fato da saída do América feliz tens em teu seio,
Príncipe Regente Nosso Senhor dos Do novo Império o Fundador Sublime:
seus Reinos, e sua vinda para esta sua Será este o País das Santas Virtudes,
Cidade e Estados por motivo da guer- Quando o resto do Mundo é todo crime.
ra da Europa, que foi ultimamente per- Do grande Afonso a Descendência
segui-lo e inquietá-lo no meio de sua Augusta,
antiga Corte e Cidade de Lisboa Os Povos doutrinou do Mundo antigo:

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R V O

Para a Glória esmaltar do novo Mundo que também se enraizava com a presença
Manda o Sexto JOÃO o Céu amigo. da corte no Rio de Janeiro.
Dístico à figura de Lísia
Possa este, para sempre memorável
Não chores Lísia
dia, ser celebrado com universal jú-
Os nossos soberanos
bilo por toda a América portuguesa,
Descansam entre
por uma dilatada série de séculos,
Os seus americanos
como aquele em que começou a rai-
Dístico à nau
ar a aurora da felicidade, prosperi-
E depois de sulcares
dade e grandeza, a que algum dia o
Os mares largos,
Brasil se há de elevar, sendo gover-
Terá assento etéreo,
nado de perto pelo seu soberano.
Como a d’Argos.
Sim, nós já começamos a sentir os
Iluminado de maneira indireta, o quadro saudáveis efeitos da paternal presen-
fazia um prospecto encantador na obs- ça de tão ótimo príncipe, que, sen-
curidade da noite. 27
do todo para os seus vassalos, não
perderá um só momento de promo-
Apesar desses arroubos, um manuscri-
ver a felicidade dos seus Estados do
to de 1815, do cirurgião da saúde e
Brasil, a mais bela, e rica porção do
da Casa Real José Antônio de Freitas,
globo; do que já Sua Alteza Real nos
talvez avaliasse melhor as ambigüida-
deu as mais evidentes provas, que
des envolvidas:
muito alentam as nossas esperanças,
V. A. R. não vê que, quando o Brasil de que viera ao Brasil a criar um
se alegra de receber a V. A. R., Lísia
grande império. 29
chora a sua ausência! Oh! Segredos
Esperança essa, de um grande império,
Divinos! Oh! Natureza apontadora de
que consta explicitamente do prefácio que
fatos! Oh! Deus! Oh! Monarca Sagra-
o bispo José Joaquim da Cunha de
do e Virtuoso Príncipe! Uma terra se
Azeredo Coutinho – personagem do cír-
festeja; outra chora! Uma se veste
culo de d. Rodrigo – escreveu, em 1811,
de luto e se cobre de tormentosa
para a nova edição de seu Ensaio sobre
cena pela Tua Retirada; outra, des-
o comércio (1816), quando declarava ale-
vanecida de se ver Contigo, mostra
grar-se, que “a minha Pátria vai gozar das
sua face risonha! Aqui se alegram os
prerrogativas de primeiro império do Novo
Astros; em Portugal, se cobrem de
Mundo”. 30 No entanto, a criação dessa
nuvens pretas! 28
nova unidade política, sonhada pelo pa-
Já Luiz Gonçalves dos Santos, testemunha dre Perereca, como Gonçalves dos San-
ocular do processo, em suas Memórias tos ficou conhecido, pelo criador do Se-
para servir à história do Brasil (1825), minário de Olinda e, com certeza, por
emprestava àquelas manifestações de re- muitos outros, exigia uma profunda trans-
gozijo e felicidade uma ambição mais alta, formação, tanto da capital, quanto das

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engrenagens que faziam mover o mundo tribuía para aquilo que Nobert Elias de-
luso-brasileiro. nominou processo civilizador . 32 De ou-
tro, ainda que a estadia da corte fosse
No início do Oitocentos, a cidade do Rio
temporária, havia necessidade de que
de Janeiro ainda se mostrava tipicamen-
as instituições políticas se estabeleces-
te colonial. Espremida entre o mar e uma
sem e enraizassem, a fim de que a
série de manguezais insalubres,
monarquia portuguesa pudesse continu-
delineada por ruas estreitas e tortuosas,
ar a funcionar. Como resultado, a recri-
com casas desprovidas de comodidades
ação do aparelho central do Estado por-
e serviços públicos precários, faltava-
tuguês em terras americanas despertou
lhe, na expressão de uma testemunha,
a antiga colônia para uma moderniza-
“gente branca, luxo, boas estradas”. 31 A
ção segundo padrões europeus e, tal-
maior preocupação consistiu em difun-
vez de maneira menos evidente, nas
dir hábitos e adotar políticas públicas
condições de Antigo Regime então ain-
que tornassem o Rio de Janeiro o mais
da prevalecentes, passou a funcionar
semelhante possível a Lisboa. Multipli-
como um poderoso pólo de dinamismo
caram-se, desse modo, as obras em qua-
econômico, fazendo girar em torno da
se todas as ruas, e novas habitações
corte e de suas múltiplas repartições
passaram a ser construídas. Uma série
uma inédita quantidade de serviços e
de providências procurou tornar mais
de oportunidades.
regular e abrangente a novidade da va-
cinação contra a varíola, tendo em vis- Apesar disso, os primeiros atos da re-
ta, sobretudo, os escravos e a popula- gência joanina no Brasil acabaram im-
ção pobre em geral. Enquanto isso, o postos pela conjuntura do momento,
mercado consumidor propiciado pelos definida pelas guerras napoleônicas. Em
recém-chegados e pelos habitantes lo- primeiro lugar, a abertura dos portos
cais, preocupados em imitar as modas da colônia às nações amigas, em 28 de
da corte, favoreceu o desenvolvimento janeiro de 1808, quando d. João ainda
do comércio de luxo, emprestando à ci- se encontrava na Bahia. A medida im-
dade ares de capital européia; porém, plicou, no entanto, uma profunda modi-
na cidade, ecoava o enorme burburinho ficação para o império português, pois
das ruas, produzido por indivíduos de representava o fim do monopólio comer-
raças, cores, línguas e costumes distin- cial pela metrópole, que definia a situ-
tos, que deixavam o visitante estrangei- ação colonial do Brasil de acordo com
ro aturdido. as concepções mercantilistas. Ainda que
inicialmente obscurecida pelos efeitos
Alterava-se, assim, decisivamente o es-
muito mais graves da ocupação france-
tilo de vida no Brasil. De um lado, a ins-
sa e das lutas que se seguiram, a deci-
talação, na cidade, de uma sociedade
são assentou, porém, um duro golpe em
de corte, cujos hábitos e exigências ten-
Portugal continental. Uma vez expulsos
diam a difundir-se pela população, con-

pág.38, jan/jun 2008


R V O

os invasores e restabelecida a paz, as pa, em 1821. 33 A transferência da corte


casas de comércio portuguesas, assim para o Rio de Janeiro, a ocupação de
como as manufaturas locais, que se ti- Portugal pelos franceses (e a presença
nham desenvolvido no final do século inglesa, em seguida) e os tratados co-
XVIII, logo descobriram que, apesar de merciais de 1810 com a Inglaterra havi-
não estarem excluídas do mercado bra- am criado profundas cesuras no impé-
sileiro, expunham-se, doravante, à com- rio português. De um lado, ficara a anti-
petição dos produtos e negociantes de ga metrópole, exangue, com a perda de
outras nacionalidades, em particular, os suas funções anteriores e desprovida da
ingleses, em condições bastante des- proximidade de um soberano, que, nos
vantajosas, que resultavam da assina- quadros mentais do Antigo Regime, re-
tura dos tratados de Aliança e Amizade presentava a possibilidade de correção
e de Comércio e Navegação com a In- das injustiças sofridas. De outro, a anti-
glaterra, em 1810. ga colônia do Brasil, vivendo o poderoso
influxo de sua recém abertura ao mun-
Tais estímulos positivos, contudo, não
do, num momento de guerras, que valo-
deixaram de criar, com o passar dos
rizava as matérias-primas que produzia,
anos, outros resultados e tensões ines-
e, sobretudo, com acesso ao círculo de
peradas no interior do império. “Não po-
poder à volta de d. João. Nessas condi-
demos deixar de considerar que a Mo-
ções, conservar a unidade do império,
narquia Portuguesa tem dois interesses
como a lucidez de Palmela, discípulo de
distintos, o Europeu e o Americano, os
Rodrigo de Souza Coutinho, fazia ver,
quais nem sempre se podem promover
exigia a atenção tanto aos interesses
juntamente, mas que não devem em
portugueses quanto aos brasileiros,
caso nenhum sacrificar um ou outro”,
“sem sacrificar um ao outro”. Tarefa
afirmava, em 1819, Pedro de Sousa e
quase, senão de todo, impossível, uma
Holstein, conde de Palmela, perceben-
vez que se aprofundava a distância en-
do com clareza as questões em torno
tre as partes de cada lado do Atlântico
das quais se orientava a política da Co-
do império português, ao mesmo tempo
roa portuguesa entre a paz européia de
em que cresciam os ressentimentos, nas
1814 e o retorno de d. João VI à Euro-
demais regiões da América, provocados

Vista geral da cidade do Rio de Janeiro,


Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresque et historique au Brésil , 1834-1839

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 27-44, jan/jun 2008 - pág.39


A C E

pela hegemonia que o Rio de Janeiro, riquíssimo império; quando para


como Corte, assumira. cúmulo de tanta honra chegou tam-
bém o dia da sua glória com a
Em 1818, a aclamação do príncipe como
exaltação ao trono do primeiro so-
o monarca d. João VI, do Reino Unido de
berano, que cingiu a coroa no Novo
Portugal, Brasil e Algarves, emprestou
Mundo. Tal foi o dia 6 de fevereiro
uma nova dimensão à opção cada vez
deste presente ano de 1818, dia
mais clara pela via americana da monar-
sempre glorioso, e memorável dos
quia portuguesa, que o áulico José da
fastos brasileiros, em que vimos re-
Silva Lisboa logo procurou enaltecer com
presentar-se na praça principal des-
a sua Memória dos beneficios politicos
ta Corte do Brasil a cena mais mag-
do governo de d. João VI , vinda então à
nífica, e brilhante, que se pode ima-
luz no Rio de Janeiro. Também o padre
ginar [...]. 34
Luís Gonçalves dos Santos tece uma
curiosíssima narrativa para explicar e Fato inédito, a aclamação de d. João VI
descrever o acontecimento. Segundo ele, na América reforçava a ascendência do
já com a proclamação do Reino Unido em Rio de Janeiro sobre o restante do país,
16 de dezembro de 1815, assim como o peso político da parte bra-
sileira no interior do império, aspecto
[…] o índio do Brasil havia deposto
este que não podia deixar de melindrar
o cocar, e as plumas, com que se
os sentimentos dos súditos no continen-
adornara até [então], e recebido da
te europeu.

D
munificente mão do senhor d. João
VI a brilhante coroa, que cinge hoje e Londres, os jornais publica-
a sua fronte, e o real manto de púr- dos por portugueses cada vez
pura, com que cobre a sua antiga mais acentuavam a inversão de
nudez; já o seu nome tinha feito cé- papéis entre Brasil e Portugal e insisti-
lebre entre os povos da terra, que à am que o centro do império devia
porfia correm de todas as partes a retornar àquela nação. Nesse sentido,
demandar os seus portos; já os po- o Campeão Português, Amigo do Rei e
derosos monarcas europeus enviam do Povo , de autoria do já citado José
ante o trono, o primeiro ereto, e fir- Liberato de Carvalho, afirmava que Por-
mado na América, embaixadores, en- tugal encontrava-se reduzido “a uma
viados e ministros, a prestar as suas progressiva decadência, sendo obriga-
congratulatórias homenagens, ou a do a constantes sacrifícios, “ora em
tratar de interesses recíprocos dos homens, ora em dinheiro”, que se des-
seus vassalos; [...] já finalmente vi- tinavam ao Brasil. Portanto, os portu-
mos com a maior exultação entrar gueses encontravam-se “sem rei e qua-
na sua capital a filha de um César, se sem pátria”, gemendo em silêncio e
para dar a mão de esposa ao prínci- permanecendo “órfãos”. 35 Atribuía-se,
pe herdeiro do seu imenso, e assim, ao processo de autonomia do

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R V O

Brasil, consolidado com a sua elevação tuição para Portugal. Do outro, porém,
a Reino Unido, o estado lastimável em permaneciam em vigor as trevas repre-
que se encontravam a economia e as sentadas pelos mecanismos de repres-
finanças em Portugal, que fora duramen- são do Antigo Regime, tais como a cen-
te atingido não só com a transferência sura, a delação e a Inquisição, assim
volumosa e contínua de créditos públi- como subsistia o medo de qualquer
cos e particulares para a Corte do Rio conspiração contra a união sagrada do
de Janeiro, como também com os pe- trono com o altar, o que levava a en-
sados encargos militares e a drástica xergar não só princípios de sedição nos
recessão no comércio luso-brasileiro. mais triviais pretextos, mas igualmente
Além disso, a virtual tutela inglesa so- jacobinos perigosos em quaisquer indi-
bre Portugal e a ausência do soberano víduos de comportamento ou idéias um
abalavam a auto-estima dos portugue- pouco desviantes das normas predomi-
ses. Sinal desse mal-estar, após a acla- nantes. Dessa incongruência, resultou,
mação de d. João VI, o jornal O Portu- no reino, a conspiração de Gomes
guês passou a denominar de “governo Freire de 1817, severamente reprimi-
Tupinambá” a corte no Brasil. da, assim como, na América, mutatis
mutandis , a revolta pernambucana do
No interior de uma mesma cultura polí-
mesmo ano, igualmente sufocada a fer-
tica, bastante homogênea, as alegrias
ro e fogo. Lá, os liberais afrancesados
e os infortúnios de outrora, de um lado
de 1808, não obstante, sobreviveram,
e outro do Atlântico, começavam a en-
acabando por dar origem ao partido que
contrar projetos distintos para traduzir
fez a Regeneração de 1820. Cá, libe-
as diferentes modalidades de apreen-
rais ou não, no Rio de Janeiro, perma-
são do mundo, que se foram desenvol-
neciam satisfeitos com a hegemonia
vendo ao longo desses anos. Em Portu-
alcançada sobre o império como um
gal, no intervalo tumultuado entre a
todo, que lhes permitia viver à sombra
partida da corte, no final de 1807, e a
da corte, que lhes oferecia oportunida-
volta de d. João VI à Europa, em 1821,
des cotidianas e lhes acenava com mai-
a ausência do rei, substituída pela mão
ores benesses no futuro.
forte de uma debilitada regência do rei-
no, trouxe à tona essas tensões. É ver- Esse equilíbrio precário rompeu-se na
dade que, de um lado, indivíduos cada segunda metade de 1820. Em agosto,
vez mais numerosos esperavam que as o movimento liberal do Porto deu início
luzes de um governo esclarecido fossem ao processo de substituição de mitos e
capazes de trazer as ansiadas refor- representações mágicas das monarqui-
mas, como o pequeno grupo de as tradicionais por outras linguagens po-
afrancesados que, em maio de 1808, líticas, herdeiras dos princípios de
tinha levado a Junot uma representa- 1789, em que a palavra constituição
ção, solicitando um projeto de consti- servia de conceito central. No Brasil,

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 27-44, jan/jun 2008 - pág.41


A C E

agora desprovido do primeiro rei acla- tensões no seio das elites, que o fascí-
mado na América, o choque propiciado nio da corte encobrira, e o ressurgimen-
pela literatura de circunstância trazida to daquelas contradições entre o Rio de
do reino, e logo reproduzida e alargada Janeiro e as províncias, que somente
aqui, não tardou a revelar a incompati- muito mais tarde encontraram uma so-
bilidade entre as duas principais par- lução, por mais insatisfatória que fos-
tes do império. Ao divórcio de 1822 se. Doravante, Brasil e Portugal haveri-
seguiu-se, porém, o aparecimento de am de percorrer caminhos distintos, ig-
norando-se em geral um ao outro, em-
bora partilhassem, mais do que gosta-
riam de reconhecer, alegrias e infortú-
nios muito semelhantes.

N O T A S
1. Agradecemos a Fabiano Vilaça dos Santos, doutorando da USP, e Ana Carolina Galante,
mestranda da Uerj, a pesquisa e transcrição de diversos documentos que integram este
texto.
2. Jornada do sr. d. João VI ao Brasil, em 1807. Códice original anônimo em PEREIRA,
Ângelo. Os filhos de el-rei d. João VI . Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1946.
p. 114.
3. São inúmeras as descrições sobre os acontecimentos políticos desses últimos momen-
tos da corte portuguesa em Lisboa. Ver, especialmente, OLIVEIRA LIMA, Manuel de. D.
João VI no Brasil [1908]. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. PEREIRA, Ângelo. D.
João VI : o príncipe e o rei: a retirada da família real para o Brasil. v. 1. Lisboa: Empresa
Nacional de Publicidade, 1956. PEREIRA, Ângelo. Os filhos de el-rei D. João VI.
MANCHESTER, Alan K. A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. In:
KEITH, Henry H.; EDWARDS, S. F. Conflito e continuidade na sociedade brasileira . Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 177-217. SCHWARCZ, Lilia M. (com Paulo Cesar
de Azevedo e Angela Marques da Costa). A longa viagem da biblioteca dos reis : do
terremoto de Lisboa à Independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
O´NEIL, Thomas. A viagem da família real portuguesa para o Brasil . Rio de Janeiro: José
Olympio; Secretaria das Culturas, 2007.
4. Das decisões finais, participaram apenas seis dos 18 conselheiros nomeados em 1796:
alguns haviam falecido, como o duque de Lafões, outros estavam em missão no exterior
ou tinham sido afastados do cargo, como é o caso de José de Seabra da Silva. Cf.
MARTINS FILHO, Enéas (org.). O Conselho de Estado português e a transmigração da
família real em 1807 . Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1968. p. 3-4 e, para a citação, p.
70-71.
5. Parecer de d. José Maria de Sousa. In: PEREIRA, Ângelo. D. João VI: a retirada... v. 1. p. 86.

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R V O

6. ARQUIVO NACIONAL. Rio de Janeiro. Coleção Negócios de Portugal. Caixa 712, pac. 2,
doc. 3. Carta do Marquês de Alorna aconselhando d. João a vir para o Brasil. 30 de maio
de 1801.
7. Parecer de Rodrigo de Souza Coutinho de 16 de agosto de 1803. In: PEREIRA, Ângelo.
op. cit. p. 131. Ver ainda COUTINHO, Rodrigo de Souza. Memória sobre o melhoramento
dos domínios de Sua Majestade na América (1797 ou 1798). In: ____. Textos políticos,
econômicos e financeiros (1783-1811) . Introdução e direção de edição Andrée Mansuy
Diniz Silva. Lisboa: Banco de Portugal, 1993. p. 47-66.
8. IHGB. Lata 345, doc. 7, s.d. MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudos históricos sobre
Portugal e Brasil.
9. ACÚRSIO DAS NEVES, J. Obras completas de José Acúrsio das Neves : história geral da
invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste reino. Estudos introdutórios
de Antonio Almodovar e Armando de Castro. v. 1. Porto: Afrontamento, 1984. p. 224.
10. IHGB. Lata 345, doc. 7, s.d. MAIA, Emílio Joaquim da Silva. Estudos históricos sobre
Portugal e Brasil.
11. BARRETO, José Trazimundo Mascarenhas (dom). Memórias do marquês de Fronteira e
d’Alorna . Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926. p. 30-33.
12. ACÚRSIO DAS NEVES, J. Obras completas de José Acúrsio das Neves : história geral da
invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste reino. Estudos introdutórios
de Antonio Almodovar e Armando de Castro. v. 1. Porto: Afrontamento, 1984.
13. ACÚRSIO DAS NEVES, J. História geral da invasão dos franceses ... v. 1, p. 223. Para
uma visão das semelhanças do ocorrido em Portugal com a Espanha e suas possessões,
ver GUERRA, François-Xavier.. Moder nidad e independencias : ensayos sobre las revoluci-
ones hispánicas. México: Mapfre; Fondo de Cultura Económica, 1993. p 150-156.
14. apud SILVA, Innocencio Francisco da. Memórias para a vida íntima de José Agostinho de
Macedo . Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1898. p. 57-58.
15. Cf., respectivamente, CARVALHO, José Liberato Freire de. Ensaio histórico-político so-
bre a constituição e governo do reino de Portugal . 2. ed. mais correta e aumentada.
Lisboa: Imprensa Nevesiana, 1843, p. 197, e CARVALHO, José Liberato Freire de. Memó-
rias da vida de ... [1855]. Introdução de João Carlos Alvim. 2. ed. Lisboa: Assírio e
Alvim, 1982, p. 36.
16. O Portuguez (1814), apud BOISVERT, Georges. Un pionnier de la propagande libérale au
Portugal : João Bernardo da Rocha Loureiro (1778-1853). Paris: Fundação Calouste
Gulbenkian; Centro Cultural Português, 1982. p. 70.
17. SOARES FRANCO, Francisco. Exame das causas que alegou o Gabinete de Tulherias para
mandar contra Portugal os exércitos francês e espanhol, em novembro de 1807. Lisboa:
Impressão Régia, 1808, passim, e Reflexões sobre a conduta do príncipe regente de Por-
tugal, revistas e corrigidas por ... Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1808. p. 9.
18. CORREIO BRAZILIENSE ou ARMAZEM LITERÁRIO, Londres, v. 1, n. 1, jun. 1808, p. 57-
65 (citação à p. 61), e n. 4, set. 1808, p. 329-330.
19. J. P. R. de C. Idílio pastoril, sentimental, queixas maviosas e saudades ternas dos pas-
tores do Tejo na ausência dos seus amabilíssimos maiorais . Lisboa: Impressão Régia,
1808. p. 8.
20. LOPES, Joaquim José Pedro. Ode à saída da real família portuguesa para o Brasil . No
dia, eternamente memorável, de 29 de novembro de 1807. Porto: s.d., 1808. p. 3 e 6.
21. GODECHOT, Jacques. Piémont-Sardaigne. In: TULARD, Jean (dir.). Dictionnaire Napoléon .
Nouvelle edition, revue et augmentée. v. 2. Paris: Arthème Fayard, 1999. p. 505.
GODECHOT, Jacques. Naples. In: TULARD, Jean (dir.). op. cit. p. 375-376.
22. ACÚRSIO DAS NEVES, J. História geral da invasão dos franceses ... v. 1. p. 317.
23. IHGB. DL 399, doc. 2. Passagem da senhora d. Maria I, a rainha de Portugal, do príncipe
regente d. João e mais família real pela cidade da Bahia para o Rio de Janeiro. Manuscri-
to anônimo. Agradecemos a gentileza da colega Regina Wanderley ao chamar a atenção
para este documento. A transcrição do original foi realizada por ela.
24. IHGB. Lata 102, pasta 3 [1808]. Súplica da Câmara da cidade da Bahia para se estabele-
cer a corte ali com preferência à cidade do Rio de Janeiro.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 27-44, jan/jun 2008 - pág.43


A C E

25. BIBLIOTECA NACIONAL. Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. II-35,4,1. Preparatórios


(preparativos) no Rio de Janeiro para receber a família real.
26. idem.
27. Relação das festas que se fizeram no Rio de Janeiro , quando o príncipe regente N. S. e
toda a Sua real família chegaram pela primeira vez àquela capital. Ajuntando-se algumas
particularidades igualmente curiosas e que dizem respeito ao mesmo objeto. Lisboa:
Impressão Régia, 1810. p. 7-9.
28. BIBLIOTECA DA AJUDA (Lisboa). Oração em ação de graças por motivos da feliz salvação
de S. A. R. o príncipe regente Nosso Senhor chegada a salvamento a este país capital do
Rio com os fatos mais notáveis acontecidos no Norte pela sua ausência e no Brasil pela
sua respeitável presença oferecida ao amor da nação por José Antonio de Freitas cirur-
gião da Saúde e da Casa Real. 49-111. 39 n. 19. Rio de Janeiro, 1815. 24 ff.
29. SANTOS, Luís Gonçalves dos. Memórias para servir o reino do Brasil . v. 1. Belo Horizon-
te: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. p. 187.
30. MORAES, Rubens Borba de (dir.). Obras econômicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho
(1794-1804) . Apresentação de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Companhia Edito-
ra Nacional, 1966. p. 62.
31. Carta do conde de Palmela para a condessa, sua mulher, 22 de junho de 1821, apud
NORTON, Luís. A corte de Portugal no Brasil . 2. ed. il. São Paulo: Ed. Nacional; Brasília:
INL, 1979. p. 85.
32. ELIAS, Norbert. O processo civilizacional . v. 1. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
33. ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império : questão nacional e questão colonial na
crise do Antigo Regime português. Porto: Afrontamento, 1993. p. 329-369. Citação à p.
355.
34. SANTOS, Luís Gonçalves dos. Memórias ... v. 2. p. 151.
35. O Campeão Portuguez, Amigo do Rei e do Povo . Londres, n. 1, jul. 1819, e n. 3, ago.
1819.

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R V O

Jurandir Malerba
Professor da Unesp. Autor, entre outros,
de A corte no exílio e A Independência brasileira : novas dimensões.

Sobre o Tamanho
da Comitiva

Não há consenso entre os especialistas There is no consensus among


sobre o número de pessoas que specialists on the extent of the entou-
acompanharam a família real de Lisboa rage that escorted the Portuguese royal
para o Rio de Janeiro em 1808. Este family from Lisbon to Rio de Janeiro in
ensaio pretende fornecer uma contribuição a esse 1808. This assay aims at to contribute to this
debate, argumentando a favor da plausibilidade debate by arguing in favor of the consolidated
da tese de que comitiva era constituída por cerca thesis that defends that 15 thousand people
de 15 mil pessoas. is a plausible number.
Palavras-chave: fuga da corte portuguesa para o Keywords: escape of Portuguese royal family to
Brasil; comitiva de d. João; Brasil joanino. Brazil; prince Joãos’s entourage; joanin Brazil.

J
á faz mais de uma década que acadêmico, distinguiram essa obra ao
pesquisei sobre a permanência da comentá-la publicamente. Entre meus
família real no Rio de Janeiro, com leitores, tive o privilégio de receber a
vistas à confecção da minha tese de dou- crítica abalizada de profissionais como
torado. Desde que foi publicada, com o Marco Morel, Gilberto Vasconcelos, José
título A corte no exílio , intelectuais de Carlos Barreiro, Iara Lis Souza, Luiz Ge-
nomeada, pertencentes ou não ao meio raldo Silva, Manolo Florentino, Antonio

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A C E

Lázaro de Almeida Prado e Neill joanino, entre os quais a maneira como


Macaulay, entre outros. 1
se deu a instalação da corte no Rio de Ja-
neiro. Foi Morel quem primeiro me alertou
Um tópico levantado na época, em uma para o consenso da historiografia quanto
resenha, chamou-me a atenção. Dizia res- ao número de pessoas que teriam feito a
peito ao número de pessoas que acompa- travessia atlântica junto com a família real.
nharam a família real de Lisboa para o Rio Esse número, que soava exagerado ao pes-
de Janeiro em 1807-1808. Em generosa quisador dos primeiros jornais e panfletos
resenha sobre o meu livro, um dos maio- que circularam na corte, gira em torno dos
res conhecedores da história do Rio de 15 mil embarcados. Contra esse consen-
Janeiro no primeiro quartel do século XIX, so, Morel evoca a tese do arquiteto Nireu
o historiador Marco Morel, referia-se à boa
2
Cavalcanti, defendida em 1997 e até aque-
oportunidade que ele suscitava para se le momento inédita, intitulada A cidade de
reverem aspectos importantes do período São Sebastião do Rio de Janeiro: as suas

D. Carlota Joaquina do Brasil. Ângelo Pereira. Os filhos de el-rei d. João VI...1946

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R V O

muralhas, sua gente, os construtores Em seguida, Gonçalves constrói seu argu-


(1710-1810), na qual, mento apresentando os manuscritos e as
obras impressas que corroborariam a tese
[...] após trabalhar com habitual se-
dos quinhentos migrados. Depois de rela-
riedade em documentação diversi-
cionar todas as fontes em que se ampara
ficada e refletir sobre ela, conclui que
Cavalcanti, oriundas de diversos arquivos
na comitiva de 1808 chegaram ape-
portugueses e brasileiros, defende que
nas 211 pessoas, além de 14 mem-
aquele estaria mais bem fundamentado do
bros da família real, sucedidos por
que toda a historiografia, pois, além das
233 em 1809, o que dá um total de
fontes primárias que dão suporte ao seu
458 pessoas. Como imaginar que 15
livro, tem a seu favor a própria lógica:
mil homens e mulheres (8% da po-
pulação de Lisboa) fugiram em segre- Não dá para admitir que fosse possí-

do e que o Rio de Janeiro teve sua vel acomodar oito, 12, 13, 15 ou 20

população aumentada em 20% de um mil pessoas nas naus que zarparam

dia para o outro? As embarcações de Lisboa pouco antes da chegada do

não comportavam tanta gente. 3 esfrangalhado exército de Junot [...].


Além disso, a decisão foi tomada em
Outro leitor do meu livro, logo após sua
apenas dois dias, quando o príncipe
publicação, também questionou o núme-
regente soube do iminente avanço da
ro de 15 mil trânsfugas, apoiando-se na
tropa de Junot, o que tornaria impos-
mesma obra do arquiteto e historiador
sível arregimentar tanta gente. 5
Nireu Cavalcanti. Adelto Gonçalves, em
E arremata:
resenha intitulada “A boa vida da corte
no Rio de Janeiro”, depois de estranhar Portanto, pode-se facilmente concluir
que eu tenha aceitado sem crítica a tese que tudo o que se escreveu sobre a
consagrada da historiografia – como a influência da corte no Rio de Janeiro
obra de José Luiz Soriano, segundo a qual está superdimensionado, o que inclui
15 mil pessoas teriam aportado por aqui a informação de que milhares de ca-
–, afirma que eu seguia o exemplo de ou- riocas foram desalojados para ceder
tros historiadores desavisados, como Lilia suas residências aos que chegavam.
Schwarcz e Nestor Goulart. Nosso grande Esse tipo de situação até ocorreu,
pecado era justamente desconhecer a tese mas não nas proporções que se lê
de Nireu Oliveira Cavalcanti, em que “ga- na maioria dos livros que tratam do
rante que não chegou a quinhentos o nú- assunto. Como, infelizmente, Malerba
mero de pessoas que acompanharam d. não elucida esta questão, embora o
João, contando inclusive os 14 membros seu trabalho mereça muitos elogios,
da família real. O curioso é que boa par- a esperança é que algum editor mais
te das fontes primárias consultadas por atilado se disponha a publicar o mais
Cavalcanti também está citada na biblio- rápido possível a tese de Nireu
grafia de Malerba”. 4 Cavalcanti. 6

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A C E

Não posso deixar de dizer que conside- Neste momento da leitura, senti-me o
rei curiosa a defesa fiel e intransigente mais logrado dos historiadores – daque-
por Gonçalves da tese de Cavalcanti. Mais les que, por não terem experiência de
ainda porque tive a oportunidade de vê- pesquisa em arquivo, engrossam o nú-
lo reiterá-la em outros momentos, parti- mero dos irresponsáveis que vivem a re-
cularmente em resenhas que fez a obras petir balelas e disparates. É possível
de outros autores. O questionamento da que eu, como Líbano Soares, tenha in-
tese consagrada na historiografia de que corrido no “velho vício acadêmico que
15 mil pessoas acompanharam d. João obriga mestrandos e doutorandos a só
é mais contundente ainda, por exemplo, citar autores consagrados pela cúpula
na resenha que ele faz da obra de Carlos ‘intelectual’”. Só isso poderia explicar
Eugênio Líbano Soares sobre capoei- nossa falha.
ragem escrava no Rio de Janeiro. Depois
Afinal, Cavalcanti prova, com base em
dos elogios, aponta os dois momentos em
documentos do ANRJ e da Biblioteca
que o resenhado pecara ao mencionar o
do Palácio da Ajuda, de Lisboa, que
número fatídico de 15 mil. Afirma que
não passou de 250 o número de pes-
fizera referência ao número sem citar as
soas que embarcaram com o príncipe
fontes porque não haveria qualquer fon-
regente a 29 de novembro de 1807,
te a referendá-lo.
fugindo das tropas napoleônicas. E
que, no decorrer de 1808, chegaram,
É uma balela que vem sendo irres-
no máximo, mais 250. 8
ponsavelmente repetida por muitos
Mas enganam-se aqueles que pensam se
historiadores, inclusive em trabalhos
encerrar aí o círculo dos historiadores de-
recentes. Se o erro é aceitável em
senganados que vivem a papagaiar as
historiadores 'alérgicos' ao pó dos
invencionices e os disparates propalados
arquivos, que preferem quase sem-
pela historiografia. Outros três historiado-
pre repetir o que lêem em obras im-
res ingênuos receberam a crítica
pressas, é inadmissível em Soares,
impiedosa de Adelto Gonçalves, por reite-
decididamente um pesquisador nato .
rar a insana (termo de Gonçalves) tese dos
Se tivesse prestado menos reverên-
15 mil. Em sua contribuição ao livro Via-
cia à brasilianista Mary C. Karasch e
gem incompleta: a experiência brasileira,
consultado mais o seu companhei-
a grande transação, organizado por Carlos
ro de Arquivo Nacional do Rio de Ja-
Guilherme Mota, Nestor Goulart Reis Filho
neiro (ANRJ), Nireu Cavalcanti, ou
lido a sua tese de doutoramento, A [...] passa adiante a balela de que 12
cidade de São Sebastião do Rio de mil portugueses vieram com a famí-
Janeiro : as muralhas, sua gente, os lia real, concluindo que, ‘com suas
construtores, 1710-1810 (Universi- carruagens e outros modos de vida
dade Federal Fluminense), não teria e a intensificação da vida política,
repetido o disparate. 7 contribuíram certamente para mudan-

pág.48, jan/jun 2008


R V O

ças nas formas de uso e vivência das Nireu de Oliveira Cavalcanti! “Segundo
ruas e praças’ (do Rio de Janeiro). 9
o pesquisador, não chegou a 250 o nú-

Em Depois das caravelas : as relações mero de pessoas que acompanharam o


príncipe regente e sua mãe, a rainha d.
entre Portugal e o Brasil (1808-2000), o
Maria I, nas 19 naus que zarparam de
historiador Amado Luiz Cervo também in-
correu no pecado de afirmar que d. João, Lisboa, sob a proteção inglesa, às vés-
peras da chegada da tropa invasora do
na fuga, “levava consigo 36 navios da
general Junot”. 12
esquadra portuguesa e uma comitiva de
aproximadamente 15 mil pessoas”. 10 No Ainda recentemente Gonçalves volta à
entanto, ameniza Gonçalves: carga contra a desavisada historiografia
[...] até que os dois historiadores que, a exemplo de Oliveira Lima, conti-
foram “comedidos” porque Lilia nua repetindo o número primeiramente
Moritz Schwarcz, em As barbas do auferido por O’Neill dos 15 mil migrados
imperador (Companhia das Letras, na fuga, sem se preocupar, porém, em ir
São Paulo, 1998), pág. 35, aumen- ao Arquivo:
tou o disparate para 20 mil. Nenhum
Nireu Cavalcanti, autor de O Rio de
dos três historiadores cita as fontes
Janeiro setecentista (Rio de Janeiro,
documentais em que teriam colhido
Jorge Zahar Editor, 2004 foi o único
a informação. Provavelmente, repeti-
historiador, até agora, que esteve no
ram dados que leram em livros im-
ANRJ para conferir essas listas. Fez
pressos mais antigos. E pior: não
as contas e concluiu que o número
pararam nem para refletir . 11
de pessoas que desembarcaram no
O alívio para Gonçalves é que a verda- Rio de Janeiro em 1808 e 1809 não
de voltou a reinar, uma vez que essa in- passou de 444, 'entre as quais 60
formação foi documentalmente des - membros da família real e da alta no-
mentida na tese de doutoramento de... breza portuguesa que chegaram ao

Planta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 1812. Arquivo Nacional

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 45-60, jan/jun 2008 - pág.49


A C E

Rio de Janeiro nos dois anos em Em sua síntese da história do Brasil,


questão'. Mas a maior parte dos his- de 1947, fazendo coro com a maioria
toriadores ainda prefere se aferrar dos autores referidos, Pedro Calmon
aos números de O´Neill porque, afi- destaca o grotesco do espetáculo do
nal, é mais fácil repetir o que já está embarque.
impresso. E ninguém gosta de admi-
Jamais sucedera cousa semelhante:
tir erros ou corrigir equívocos. 13
a emigração d’um governo, com as
suas principais pessoas, os seus ar-
Antes de contrapor, ao questionamento
quivos, os seus livros, o seu mobi-
visceral de Adelto Gonçalves, os proce-
liário, tudo o que pode ser removi-
dimentos por meio dos quais acabei
do, empacotado, instalado nos po-
concordando que o número dos migra-
rões dos barcos, enquanto o povo,
dos com d. João rondava os 15 mil, tal-
comovido e triste, só tinha cóleras
vez ajude a redimir meus erros mostrar
e injúrias para os ‘afrancesados’, os
de quem estou acompanhado nesse des-
suspeitos de colaboração com o ini-
vario. Portanto, vamos a um pequeno
migo... Umas dez mil pessoas acu-
passeio pela historiografia. Luz
mularam-se nas oito naus, quatro
Soriano 1 4 calcula que, para o Brasil,
fragatas e quatro brigues e corvetas.
havia migrado metade do capital portu-
Onde trezentas eram demais, aper-
guês, junto com cerca de 15 mil pesso-
taram-se 1.600 . 18
as. Rocha Martins 1 5 fornece detalhes
Calmon menciona dados fornecidos por
minuciosos da fuga e calcula em cerca
um observador direto desses aconteci-
de 13.800 o número dos fugitivos.
mentos, José Teodoro Biancardi. Em
Pandiá H. Castello Branco, em texto
suas Cartas americanas , cuja primeira
apresentado no I Congresso de História
edição é de 1809, diz Biancardi que o
Nacional organizado pelo IHGB, reitera
príncipe regente ficara na nau “Príncipe
o número clássico: “Era tão numeroso
Real” com mais 1.600 pessoas; dona
o séqüito de d. João, que foi preciso
Carlota, na “Afonso”, com outras 1.200;
equipar uma esquadra de oito naus, 12
as infantas, na “Rainha”, com 1.500; na
brigues, três fragatas e duas charruas,
“Count Heinrich”, embarcaram 1.300;
saindo ao todo cerca de 15 mil pesso-
na “Martim de Freitas”, outras mil; na
as, a maior parte composta de nobres,
“Príncipe do Brasil”, mais 600, e assim
ministros, funcionários, negociantes e
por diante.19
creados [sic]”. 16 Já Luis Norton, em seu
livro cuja primeira edição é de 1938, Com a verve irônica que caracteriza sua
afirma que “cerca de 15 mil pessoas clássica História do Império : a elabora-
procuraram alojamento na esquadra ção da Independência, Tobias Monteiro
(composta de oito naus, três fragatas, fornece detalhes pitorescos do embarque,
dois brigues, uma escuna de guerra e a exemplo de d. Maria, que, depois de um
uma charrua de mantimentos)”. 17 longo período de reclusão causado pela

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insanidade mental, teve lampejos de luci- Alan Manchester, em texto escrito em


dez durante o tumulto do embarque, ao 1967, intitulado justamente “A transfe-
ordenar aos berros “Não corram tanto! rência da corte portuguesa para o Rio de
Acreditarão que estamos fugindo!” e inda- Janeiro”, detalha minuciosamente a ope-
gando-se “por que fugir sem ter combati- ração, desde a tomada da decisão – que,
do?”. Monteiro cita suas fontes: “Rubio co- no auge dos conflitos decorrentes do blo-
lhe essa informação na obra de Bouchot, queio continental, começou na sessão do
História de Portugal e suas colônias . Tam- Conselho de Estado em 12 de agosto de
bém de Monglave, insere as mesmas fra- 1807 –, o embarque, até a instalação da
ses da rainha na Correspondance de d. corte no Rio de Janeiro. No tocante ao
Pèdre I, e Oliveira Martins, na sua Histó- embarque, afirma:
ria de Portugal.” Quanto ao tamanho da
Com Junot em Abrantes o tempo tor-
comitiva, é ponderado:
nou-se extremamente limitado. Embo-
ra quase todos eles precisassem ser
Cerca de 15 mil pessoas reuniram-se
transportados de Mafra, o embarque
a bordo da esquadra. Talvez este nú-
dos membros da família real correu
mero, citado por mais de um histori-
bem. Variam muito as estimativas, mas
ador, não seja exagerado; a marque-
aproximadamente umas 10 mil pesso-
sa de Abrantes conta 13.800; Olivei-
as tomaram os navios entre a manhã
ra Lima recorda o cálculo de um ofi-
de 25 e a noite de 27 de novembro. 21
cial inglês, segundo o qual, só a bor-
do do Príncipe Real , onde vinha d. Em nota, Manchester escrutina suas fon-
João , acumulavam-se mil e seiscen- tes: Ângelo Pereira, Thiers, Tobias
tas pessoas. Muita gente dormia no Monteiro, Pereira da Silva, Boiteux e
tombadilho, ou nem sempre achava muitas fontes primárias, avaliando inclu-
onde dor mir. 20
sive o tamanho da frota.

Papéis relativos à vinda da família real para o Brasil , 1808.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 45-60, jan/jun 2008 - pág.51


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Há de se convir que não se trata de his- tanto, de obrigação ética dos historiado-
toriadores inexperientes. Em que res a precisão dos fatos. Em segundo lu-
Soriano, Rocha Martins, Pedro Calmon, gar, e mais importante para mim, cabe
Luis Norton, Oliveira Lima, Oliveira discutir essa questão por um imperativo
Martins, Tobias Monteiro, Otávio metodológico: como se produz conheci-
Tarquínio de Sousa, Alan Manchester mento histórico? E mais, quem, como e
embasavam-se para se expor publica- onde se valida esse conhecimento?
mente, ao emitir e reiterar a tese de que
Gonçalves se impressiona com o fato de
a comitiva que acompanhou a família real
que “parte das fontes primárias consul-
girava em torno de 15 mil almas? E to-
tadas por Cavalcanti também está citada
dos nós, posteriores – que não temos no
na bibliografia de Malerba”. Trata-se, é
sangue o dom da perspicácia e somos
claro, do códice 730, Papéis relativos à
alérgicos ao pó dos arquivos e tomados
vinda da família real para o Brasil (Rela-
pelo velho vício acadêmico de citar ape-
ção das pessoas que vieram e das naus
nas “autores consagrados pela cúpula ‘in-
que fizeram o transporte), 24 1808, per-
telectual” –, só fizemos repetir, geração
tencente ao Arquivo Nacional, e da Rela-
após geração, tais “balelas e disparates”.
ção das pessoas que saíram desta cida-
De minha parte, acredito que vale a pena de para o Brasil, em companhia de
aceitar o desafio da crítica e oferecer a S.A.R., no dia 29/11/1807 , do acervo do
réplica. O exercício é válido, sobretudo, Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
em função de dois fatores. Primeiro, por- ro. Como eu disse antes, 25 o códice do
que essa questão, à exceção talvez do Arquivo Nacional é bem menos completo
interesse dos especialistas em história do que a listagem do IHGB. Em todo o
naval, 22
não constitui em si um objeto de códice 730, há apenas dois mapas mais
reflexão. 23
Mas ao senso comum ela soa detalhados. À página 12, encontra-se o
importante. As efemérides do bicentenário “mapa do atual estado do Bergantim de
da transferência da corte vão ensejar S.A.R. o Voador, cuja soma atinge 150
esse tipo de discussão, inclusive nos gran- pessoas”. 26 À página 16, temos o outro
des meios de comunicação. Trata-se, por- “mapa do estado atual da guarnição da

Frente principal do edifício, que faz o centro na rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, 1812.

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fragata Minerva, que soma 326 pesso- a Relação das pessoas existente no IHGB
as”. 27
Portanto, um total de 476 pesso- e enumera os nomes lá constantes che-
as, próximo dos 458 migrados levanta- ga a um total de 514 pessoas. Eis o de-
dos por Gonçalves e Cavalcanti. safio metodológico. Acontece que, em
história, dois mais dois nem sempre – a
Na Relação das pessoas , existente no
rigor, quase nunca – somam quatro. A lis-
IHGB, encontramos todos os nomes que
ta, que parece, à primeira vista, exata,
são familiares aos estudiosos do perío-
fornece indicações valiosas, principalmen-
do, os grandes títulos, os serviçais. Ve-
te quando é lacônica. Por exemplo, jun-
mos que embarcaram grandes famílias,
to ao nome do marquês de Vagos, filho,
como a do duque de Cadaval, os mar-
há a indicação “e alguns criados”. Antô-
queses de Vagos, Torres Novas, Anadia,
nio Araújo de Azevedo também veio es-
Angeja, Bellas, os condes de Belmonte,
coltado por “alguns criados”. O mesmo
Caparica, Redondo e Cavalheiros, o mar-
acontece com o marquês de Angeja.
quês do Lavradio. E mais os estadistas
Consta que o conde de Belmonte, sua
da coroa, como d. Rodrigo de Souza
mulher e o conde seu filho vieram acom-
Coutinho, Thomas Antonio Vilanova Por-
panhados por “criados e criadas”. Quem
tugal, d. Fernando José de Portugal. O
visa saber o tamanho da comitiva preci-
círculo estreito da corte certamente con-
sa responder a essas questões: quantos
correu para servir ao rei, como atesta a
eram esses criados? Teriam vindo sós ou
presença de pessoas como Francisco
traziam suas famílias?
Rufino de Souza Lobato, Inácio da Cos-
ta Quintela, José de Oliveira Pinto E por falar nisso, são inúmeras as indi-
Botelho Mosqueira, o físico-mor do rei- cações de pessoas que vieram com suas
no Manoel Vieira da Silva e José Correia “famílias”. A rigor, das 514 que com-
Picanço, primeiro cirurgião da Câmara – põem a Relação , mais de cinqüenta vie-
e mais uma bateria de varredores, re- ram acompanhadas por familiares, en-
posteiros, damas e demais serviçais. E tre elas:
comerciantes famosos, como Joaquim
O conde de Caparica, d. Francisco
José de Siqueira e Manoel Velho da Sil-
de Menezes da Silveira e Castro, com
va, cujos nomes são seguidos da indica-
sua mulher e filhos;
ção “negociantes”. 28 Ombreando esses
O conde de Cavalheiros, sua mulher,
homens e mulheres de alto coturno, ha-
irmão, e família;
via anônimos a servi-los, como Bernardo
José, “homem pardo, criado de varrer”, José Egídio Alves de Almeida, com
que acompanhou a família do duque de sua mulher e família;
Cadaval, ou um tal Miguel José, “preto,
D. Josefa Joaquina Marianna Breco
criado de Francisco de Paula Maggesi”.
da Silveira, viúva do desembargador
Mas não é tanto a qualidade desses no- José Maurício da Gama, com duas
mes o que aqui nos interessa. Quem toma filhas e um filho;

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 45-60, jan/jun 2008 - pág.53


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Francisco Inácio, capitão-de-fragata, João..., contramestre de navios, com


com sua família; a sua família;

Francisco José Beiras, piloto, com Manoel Francisco, taberneiro, assis-


sua família; tente na travessa do Pasteleiro, com
a sua família;
João..., morador da rua do Paço dos
Negros, com a sua família; Mônica Palmilhadeira, assistente na
dita travessa, com a sua família;
José Alves Victória, sargento-mor re-
formado com a sua família; Antonio do Rosário, mestre das naus,
com a sua família;
João Correa, escrivão das naus, com
sua família; Sebastião Pedro de Mello Povoas,
guarda Marinha, com suas tias;
João Batista de Azevedo Coutinho e
Montauri, com sua família; Manoel da Silva Franco, e a sua fa-
mília, na rua Bella da Rainha;
Antonio Gomes, mestre da nau Prín-
cipe do Brasil, com a sua família; José Maria de Azevedo, Feitor do Pes-
cado, com seus irmãos reposteiros
O capitão-tenente ocupado no Servi-
e seus tios;
ço da Esquadra, com sua família;
Luis Gomes, reposteiro da Casa Real,
Francisco Joaquim, capitão-de-fraga-
com sua família;
ta, com sua família;
José de Almeida, mestre carteiro, e
João Manoel, oficial do contrato do
sua família;
Tabaco, com sua família;
Thomas Antonio Carneiro, criado par-
Vasco José de Paiva, capitão-tenen-
ticular de S.A.R., com sua família;
te, com sua família;
Joaquim Bernardo, cabeleireiro, e
Francisco Ignácio Gerardo, capitão- sua família, assistente em Queluz
de-fragata, com a sua família; de Baixo;

Henrique da Fonseca Prego, capitão- João Brusco, varredor do quarto do


de-mar-e-guerra, com sua família; príncipe, com a sua família;

Francisco Bonifácio, sargento-de-mar- Pedro Fortuna, cozinheiro da Casa


e-guerra com a sua família; Real, com a sua família;

Anna Joaquina, viúva e filhos, assis- Antonio Pedro Fortuna, dito, com a
tente na rua de São Felix; sua família;

Joaquim Manoel de Paiva, escrivão da João Duarte, cozinheiro da dita [Casa


mesa dos Vinhos, e sua família; Real], com sua família;

Francisco Gomes, segundo-tenente Vicente Paulino, mestre da cozinha


com a sua família; real, e sua família;

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José Alvarenga, contramestre da dita autor dessa lista diferenciar que uma pes-
[cozinha], e sua família; soa tenha vindo “com sua família” ou, no
caso de “Thomas Franco, capitão-de-fraga-
José Pedro, cozinheiro, com a sua
ta, com toda a sua família”? Não creio.
família;
Note-se que o autor da lista diferencia “fa-
José Leite, tenente do Regimento de
mílias”, reiteradamente mencionadas, de
Infantaria n o 4, com sua família;
outras ocorrências. Por exemplo, Vicente
José Caetano, fiel dos Portos, com a José, contramestre dos navios, veio acom-
sua família; panhado “com sua mulher e filhos”, assim

Luis Fernandes, cozinheiro com a sua


como José Maria, capitão-tenente de bri-

família;
gada da Marinha, “com sua mulher e fi-
lhos”, o mesmo sendo válido para o conde
Manoel Simões, cozinheiro com a sua
de Caparica. Quer isso dizer que “mulher
família;
e filhos” não são sinônimos de “família”?
Antonio Faustino Lamprea, com a sua Para além dessa distinção, na listagem dis-
família; crimina-se ainda quando os acompanhan-

Thomas Franco, capitão-de-fragata, tes são apenas “irmãos”, “suas tias”, “sua

com toda a sua família; mulher” ou “seus irmãos reposteiros”. Por-


tanto, considerando o conhecimento assen-
Francisco Xavier de Noronha
tado sobre a família patriarcal estendida
Torrezão, oficial da Secretaria de Es-
presente em Portugal e trazida para o Bra-
tado com a sua família;
sil desde a época da colonização, podemos
O capitão-tenente João da Fonseca, supor que “família” envolve, para além do
com a sua família; núcleo pai, mulher e filhos, mais alguns
João Inglês, porteiro da Cana, com círculos concêntricos de agregados, inclu-
a sua família; sive não-consangüíneos.30

Vicente José, contramestre dos na- É, no mínimo, temeroso fazer-se uma


vios, com sua mulher e filhos; contagem simples a partir das listas

Francisco Pedro, Mestre da Ribeira,


onomásticas oferecidas pelas fontes dis-

com a sua família; poníveis, sem se atentar para essas ou-


tras informações escondidas nas suas
Felipe Antonio, Guardião da Ribeira,
entrelinhas.
com a sua família;
Há ainda outros questionamentos a se fa-
José Maria, capitão-de-mar-e-guerra,
zer a essa documentação. Obviamente,
e sua família;
quando consideramos todos os relatos so-
José Maria, capitão-tenente de Brigada
bre o tumulto do embarque, reiterado por
da Marinha, com sua mulher e filhos.29
simplesmente todos os autores citados
São os detalhes que me chamam a aten- neste ensaio, há que se considerar que nem
ção. Seria uma mera questão de estilo do todas as pessoas embarcadas foram efeti-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 45-60, jan/jun 2008 - pág.55


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vamente cadastradas. Sobre este último serem muito caras no presente”. Roga
ponto, posso indicar pelo menos quatro que tenha seu pago equiparado ao do
indícios, encontrados ao acaso. maestro Marcos Antonio Portugal, que

Em primeiro lugar, o caso do segundo-te- [...] recebe mais cinqüenta moedas


nente da Armada Real Paulino Joaquim para casas, além dos mais criados,
Leitão, que oferecera um daqueles poe- que Vossa Majestade foi servido fa-
mas encomiásticos, destilando todo o zer-lhe a mesma graça; e porque o
ardor da mais devota vassalagem, ao suplicante se acha empenhado para
príncipe regente: “A Esquadra Portugue- suprir as indispensáveis despesas da
sa que transportou aos Estados do Brasil sua numerosa família. Implora a pie-
os soberanos de Portugal, elogio ofereci- dade, e generosidade de Vossa Ma-
do a Sua Alteza Real o príncipe regente jestade, para que seja servido con-
nosso Senhor”. Leitão acompanhou a fa- templar o suplicante na mesma con-
mília real; na dedicatória a d. João, de- formidade que se pratica com Mar-
pois de todos os encômios, oferta e ex- cos Antonio; visto ser o suplicante
põe o motivo de ser de sua obra: um dos mestres mais antigos, e ter a
honra de servir a Vossa Majestade há
É por tão plausível motivo, Real Se-
cinqüenta anos . 32
nhor, que eu confio em que V.A.R. se
não dignará aceitar, e defender debai- O terceiro exemplo remonta ao segundo
xo dos seus régios auspícios (visto dia de janeiro de 1818, quando vemos
que me é necessário um mecenas, e chegar às secretarias de Estado outra con-
que ninguém mais o pode ser em as- tenda por causa do famigerado sistema
suntos de semelhante natureza) este de aposentadorias. Um proprietário de
limitado tributo da minha gratidão, casas reclamava o recebimento do aluguel
este irrefragável testemunho dos por meio do sistema, já que em sua casa
meus incansáveis esforços para me se instalara, no ano anterior, o padre José
tornar útil por todos os modos. 31
de Carvalho Sousa. Em minuta ao rei, seu
secretário lhe explicava que:
O segundo caso consta no fundo Casa
Real e Imperial do Arquivo Nacional do Ao lugar de confessor não é nato o
Rio de Janeiro e diz respeito ao pedido pagamento das casas; e por conse-
de aumento de vencimentos feito por um guinte o meu parecer é que o supli-
mestre de dança do Paço, de resto nega- cante o deve haver do referido pa-
do pelo visconde do Rio Seco. Pedro dre, que quer chamar ao seu lugar
Colona reclamava do seu diminuto orde- essa obrigação, a exemplo dos pa-
nado, que vinha recebendo pelo real dres frei Antonio Abrantes, e Mazzoni,
bolsinho particular; as treze moedas e a quem Vossa Majestade por graça
meia por mês que passou a receber no especial fez mercê em atenção a te-
Rio eram insuficientes para suas despe- rem acompanhado a Vossa Majesta-
sas, sobretudo o aluguel de casas, “por de para esta Corte . O pagamento que

pág.56, jan/jun 2008


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o suplicante agora requer, devia pre- do de que subsistir pede a V.A.R. a mercê
tender quando o referido padre pe- de lhe mandar contribuir uma pensão.”36
diu a aposentadoria, para ele, ou as
Esse documento data de 5 de setembro
pagar adiantadas por seis meses se-
de 1808, seis meses após o desembar-
gundo a lei, ou apresentar o título
que da família real. Embora conste que
pelo qual mostrou-se que a renda
o marquês de Angeja se fez acompanhar
havia ser paga pela Real Fazenda. 33
de criados, o nome de Antonio José Nunes
Ora, os nomes de Antonio Abrantes e também não consta da Relação .
João Mazzoni constam entre os oito pa-
A questão que aqui se impõe é: quantos
dres e freis listados na Relação das pes-
mais acompanharam a família real na
soas que saíram desta cidade para o Bra-
fuga de Lisboa para o Rio de Janeiro e
sil , mas o solicitante padre José de Sousa
não se encontram contabilizados nos re-
Carvalho, que também acompanhou o
gistros oficiais?
príncipe regente na travessia atlântica,
não consta ali! 34 Por fim, merecem atenção as conjeturas
de Kenneth Light, especialista em histó-
Por fim, em quarto lugar e como mais um
ria naval. Light pondera que, no número
exemplo das práticas de solicitação de
de 15 mil pessoas aceito pela historio-
graças e da generosidade do soberano,
grafia, estariam incluídas as guarnições da
encontrei no fundo da Casa Real e Impe-
esquadra naval; mesmo se estas estives-
rial do Arquivo Nacional um pedido de
sem incompletas, acredita ele, aquele
graça de um pintor, que explica seu me-
número nunca seria inferior a seis mil
recimento nestes termos:
pessoas. Quanto ao número de embarca-
Antonio José Nunes, pintor pensio- ções, concorda que não se pode ter cer-
nado por S. A. R., e discípulo do pri- teza. O livro de quartos da nau capitânia
meiro pintor da Câmara e Corte, Do- “Hibernia” reportava, a 29 de novembro
mingos Antonio de Siqueira, teve a de 1807, que 56 navios estavam à vista:
honra de acompanhar a S.A. para esta 16 da esquadra portuguesa, nove do es-
cidade do Rio de janeiro, vindo na quadrão britânico e, por conseguinte, 31
nau Príncipe Real, e em companhia navios mercantes.37
do ilustríssimo e excelentíssimo mar-
Em suma, a resposta para a questão do
quês de Angeja , e desde que chegou
tamanho da comitiva da família real que
tem estado empregado com obras que
aportou no Rio de Janeiro em 1808 não
S.A.R. lhe imcumbiu [...]. 35
pode ser reduzida a uma mera discus-
Há uma minuta escrita pelo visconde de são algébrica. Tanto é assim que os his-
Rio Seco que resume tudo isso, nesse teor: toriadores se deparam com ela há qua-
“Antonio Jose Nunes, pintor pensionado e se duzentos anos. Porém, a matemática
empregado no Real Serviço de V.A., teve a dos historiadores, que não pode ser tão
honra de acompanhar a V.A.R. E não ten- exata quanto a dos engenheiros, arqui-

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tetos e jornalistas, reclama de nós o nos falta conhecer jaz perdida no silên-
respeito pelos que nos precederam e nos cio dos arquivos. Porém, independente-
autoriza a aceitar como plausíveis as ava- mente da precisão, a história do perío-
liações de que, com a família real, veio do joanino veio se escrevendo sempre,
uma comitiva cuja dimensão pode osci- e cada vez melhor, desde o século XIX.
lar entre seis e 15 mil pessoas. Esse é Acredito que assim continuará, antes que
um dado realmente fundamental para algum iluminado encontre o documento
quem entende que os historiadores al- perdido que resolveria de uma vez por
mejam contar a história “tal como acon- todas a questão do tamanho da comiti-
teceu”, à moda dos preciosismos dos va. Se é que ele existe. Enquanto isso,
antiquários, para quem a história que a história segue.

N O T A S
1. Cf. SOUZA, Iara Lis Carvalho. O rei na América. Espaço Plural , Centro de Estudos, Pes-
quisas e Documentação da América Latina (Cepedal), ano III, n. 7, 2001. p. 32. BARREIRO,
José Carlos. Para além de uma história das elites. Espaço Plural , ano III, n. 7, 2001. p.
31. SILVA, Luiz Geraldo. O espetáculo da monarquia. Espaço Plural , ano III, n. 7, 2001.
p. 1; p. 30. VASCONCELOS, Gilberto. Começo tropical do teatro da política. Folha de
São Paulo, São Paulo, 13 nov. 2000. ALMEIDA PRADO, Antônio Lázaro. Saber contar a
história. Voz da Terra , Assis, 27 dez. 2000. PIRES, Pablo. Revoluções da corte. O tempo ,
Belo Horizonte, 4 nov. 2000. Cader no Magazine. SARAIVA, Renata. O espetáculo da
realeza no Rio de Janeiro do século XIX. Valor , Rio de Janeiro, 23 out. 2000. PISA,
Daniel. Dores e charmes de uma nação entre dois mundos. O Estado de São Paulo, São
Paulo, 7 jan. 2001. Caderno 2. MACAULAY, Neill. A corte no exílio. Hispanic American
Historical Review , ano 85, v. 1, p. 138-139, 2005. Resenha.
2. MOREL, Marco. Civilizados e radicais no século XIX. Jornal do Brasil , Rio de Janeiro, 9
dez. 2000. Caderno Idéias. p. 5.
3. ibidem.
4. GONÇALVES, Adelto. A boa vida da corte no Rio de Janeiro. Jornal da Tarde , Rio de
Janeiro, 21 out. 2001. Caderno de sábado. p. 20.
5. ibidem.
6. ibidem. Grifo meu.
7. GONÇALVES, Adelto. Capoeiragem: rebeldia e habilidade negra no Rio. Resenha a
SOARES, Carlos Eugenio Líbano A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no
R i o d e J a n e i r o ( 1 8 0 8 - 1 8 5 0 ) . C a m p i n a s : E d . d a U N I C A M P, 2 0 0 1 b . D i s p o n í v e l e m :
<http://www.unicamp.br/cecult/resenhas_vh/resenha_capoeira1.pdf>. Acesso em: 9
fev. 2007. Grifos meus.
8. ibidem. Grifo meu.
9. REIS FILHO, Nestor Goulart. Urbanização e modernidade entre passado e futuro: (1808-
1945). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta : a experiência brasileira, a
grande transação. São Paulo: Ed. Senac, 2000. p. 83-117. passim.

pág.58, jan/jun 2008


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10. CERVO, Amado Luiz. Depois das caravelas : as relações de Portugal e o Brasil (1808-
2000). Lisboa: Instituto Camões, 2000. passim.
11. GONÇALVES, Adelto. Invencionices e disparates. Disponível em: <http://blog. comunidades.
net/adelto/index.php?op=arquivo&pagina=100&mmes=07&anon=2005>. Acesso em: 24 set.
2007. Grifo meu.
12. ibidem.
13. GONÇALVES, Adelto. D. João revisitado. Disponível em: <http://blog.comunidades.net/
adelto/index.php?op=arquivo&idtopico=226711>. Acesso em: 1 abr. 2008. Texto de 9
de fevereiro de 2008.
14. SORIANO, Simão José da Luz. História de el-rei d. João VI primeiro rei constitucional de
Portugal e do Brasil em que se referem os principais atos e ocorrências do seu governo
bem como algumas particularidades de sua vida privada. Lisboa: Universal, 1866. p. 59.
15. MARTINS, Rocha. A corte de Junot em Portugal. Lisboa: Gomes de Carvalho, 1910. p.
16. BRANCO, Pandiá H. de T. Castello. A corte portuguesa no Brasil. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 1, p. 417-436, 1914. Particularmente, p. 425.
17. NORTON, Luís. A corte de Portugal no Brasil. 2. ed . São Paulo: Companhia Editora Naci-
onal, 1979. p. 14.
18. CALMON, Pedro. História do Brasil. v. 4: O império 1800-1889. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1947. p. 25. Grifo meu.
19. Calmon refere-se a BIANCARDI, José Theodoro. Cartas americanas, publicadas por ...
Lisboa: Alcobia, 1820. Em obra anterior, a biografia de d. João VI, Calmon já apresenta-
va aqueles números, com uma colorida descrição do embarque: “[Napoleão] Calculara
reunir em Bayona os reis da península num desterro comum – e eis que um deles, o mais
astuto, se metia nos seus barcos, com quinze mil pessoas [...] e abalava para ultramar
mudando de nação!”. Cf. CALMON, Pedro. O rei do Brasil : vida de d. João VI. 2. ed.
aum. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943. p. 109.
20. Tobias Monteiro refere-se à obra de BOUCHOT, August. Histoire du Portugal et ses colonies .
Paris: Hachette, 1854. As Cortes mandavam imprimir as cartas trocadas entre d. Pedro e
d. João e distribuí-las avulsamente para os deputados. Eugène de Monglave traduziu-as
para francês e publicou-as em Paris, em 1827. Cf. MAR TINS, J. P. Oliveira. História de
Portugal . 3. ed. emendada. Lisboa: Viúva Bertrand, 1882. (A primeira edição é de 1879.)
Tobias Monteiro refere-se às memórias de Laure Permont, mulher do general Junot, pri-
meiro duque de Abranches. Cf. ABRANTES, Laure Junot, duchesse d’. Mémoires de mme.
la duchesse d’Abrantès, ou souvenirs historiques sur Napoléon, la Révolution, le
Directoire, le Consulat, l’Empire et la Restauration. Paris: Ladvocat, 1831-1835. Tam-
bém LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil (1808-1821). v. 3. 2. ed. Rio de
Janeiro: José Olímpio, 1945; MONTEIRO, Tobias. História do império. v. 1: A elaboração
da independência. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p. 66-67. Otávio Tarquínio de Sousa
não oferece um montante, um total de pessoas que teriam embarcado com a família,
mesmo aproximadamente, mas atenta à qualidade da comitiva, depois de referir-se à
polêmica historiográfica em torno da composição da frota – o que, de resto, até hoje
não se resolveu categoricamente! Cf. SOUSA, Otávio Tarquínio de. A vida de d. Pedro I .
São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. p. 54 ss.
21. MANCHESTER, Alan. A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. In: HENRY,
H. Keith; EDWARDS, S. F. Conflito e continuidade na sociedade brasileira. Tradução de
José Lourenço de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 177-217. O tre-
cho citado encontra-se na página 183.
22. Vale a pena destacar o trabalho de Kenneth Light, que, em correspondência com o
autor, pondera que as oito naus de linha, quatro fragatas, uma corveta, dois brigues e
uma charrua trouxeram pouco mais de seis mil pessoas ao Brasil na viagem da família
real em 1808. Cf. LIGHT, Kenneth. A viagem da família real para o Brasil (1807-1808).
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , Rio de Janeiro, ano 158, n. 397,
p. 1035-1044, out.-dez. 1997. LIGHT, Kenneth. Carta para Jurandir Malerba . Rio de
Janeiro, 15/01/2003.
23. A tese que eu defendo em A Corte no exílio prescinde desse dado. Importa mais, para
sustentá-la, que a população do Rio de Janeiro praticamente dobrou durante os 13 anos
em que a família real permaneceu no Brasil, embora esse número também não seja
consensual. Não há censos precisos para a população do período. Louis de Freycinet
estima a população fluminense em 60 mil almas em 1808; aproximadamente 130 mil, dez

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 45-60, jan/jun 2008 - pág.59


A C E

anos depois (segundo o marquês do Lavradio); 150 mil em 1821 é a estimativa de


Henderson: “[...] two-thirds of which are negroes, mulatoes, and others, exhibiting every
variety of complexion”. Spix e Martius calcularam em 120 mil almas a população da cidade
e 420 mil a província. SPIX, J. B. von; MARTIUS, von. Viagem pelo Brasil . Tradução de
Lúcia F. Lahmeyer. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. Cf. FREYCINET, Louis
de. Voyage au tour du monde. Interpris par ordre du Roi [...] Executé sur les corvettes de
S. M. L’Oranie et la Physicienne, pendant les années 1817, 1818, 1819 et 1820. Paris,
Chez Pillet Aîné Imprimeur-Libraire, 1827 (8 v), v. 1, p. 193; HENDERSON, James. A history
of Brazil, comprising its geography, commerce, colonization, aboriginal inhabitants, &c .
Londres: Longman, Hurst, Rees, Orme and Brown, 1821, p. 72. Mawe, em 1808, arriscava
em 100 mil habitantes a população do Rio. Cf. MAWE, John. T ravels in the interior of
Brazil, particularly in the gold and diamond district of that country, by authority of the
Prince of Portugal ... Londres: Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, 1812, p. 97;
Denis dizia haver “no início do século” cerca 80 mil e ao seu tempo 260 mil almas. Cf.
DENIS, Fernand. Brasil. v. 1 Trad. Lisboa: L. C. da Cunha, 1844, p. 175. Luccock, em
minha opinião o mais rigoroso observador estrangeiro do Rio joanino, apresenta a cifra de
60 mil, dos quais um terço composto de brancos ou mulatos claros. Cf. LUCCOCK, John.
Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil . Trad. Milton de S. Rodrigues.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975, p. 28; Ernst Ebel, que esteve no Rio em
1824, fala em 180 mil a 200 mil almas, “dos quais dois terços são negros”. Cf. EBEL,
Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. Trad. Joaquim de S. Leão Fº. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972, p. 187. Cf. IHGB - Mss. Côrte e província do
Rio de Janeiro. Mapa da população da... 1821, 7 fls. (lata 77).
24. ANRJ. Papéis relativos à vinda da família real para o Brasil. (Relação das pessoas que
vieram e das naus que fizeram o transporte.) 1808. Códice 730.
25. MALERBA, J. A corte no exílio. Civilização e poder no Brasil às vésperas da Independên-
cia . São Paulo: Companhia das Letras, 2000, capítulo 1, nota 1, p. 310.
26. Na listagem que gentilmente me forneceu Kenneth Light, esse número é de 135 pessoas.
Cf. LIGHT, Kenneth. Carta para Jurandir Malerba . Rio de Janeiro, 15/01/2003.
27. 349 nas contas de Light. Duas embarcações que têm referências no códice 730 – a
fragata Andorinha, página 19, e o navio Conceição, p. 21 – não constam na listagem de
Light, assim composta: naus de linha – Príncipe Real, Afonso Albuquerque, Rainha de
Portugal, Conde D. Henrique, Martim de Freitas, D. João de Castro, Medusa, Príncipe do
Brasil; fragatas – Golfinho, Minerva, Urânia, Thetis; corveta – Voador; brigues – Lebre,
Vingança; escuna – Curiosa. Cf. Light, ibidem.
28. Para um tratamento prosopográfico desses nomes, ver Malerba, A corte no exílio , Civili-
zação e poder no Brasil às vésperas da Independência . São Paulo: Companhia das Le-
tras, 2000, capítulo 5.
29. IHGB. RELAÇÃO das pessoas que saíram desta cidade para o Brasil, em companhia de
S.A.R., no dia 29/11/1807, lata 490, pasta 29.
30. Para citar apenas dois clássicos: FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala : formação
da família brasileira sob o regime patriarcal. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1952; e HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil . 17. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1984.
31. LEITÃO, Paulino Joaquim. A esquadra portuguesa que transportou aos Estados do Brasil
os soberanos de Portugal, elogio oferecido a Sua Alteza Real o príncipe regente nosso
Senhor por ... Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1820.
32. ANRJ. Casa Real e Imperial. Caixa 2, pacote 2, doc. 104. Grifo meu.
33. ibidem.
34. ANRJ. Casa Real e Imperial. Caixa 2, pacote 3, doc 137.
35. ANRJ. Casa Real e Imperial. Caixa 1, pacote 2, n. 19. Grifo meu.
36. ibidem.
37. LIGHT, Kenneth. Carta para Jurandir Malerba . Rio de Janeiro, 15/01/2003.

Recebido em 03/10/2007
Aprovado em 28/10/2007

pág.60, jan/jun 2008


R V O

Kirsten Schultz
The Cooper Union for the Advancement of Science and Art, Nova York, NY

A Crise do Império
e a Questão da Escravidão
Portugal e Brasil, c.1700 - c.1820

Este artigo apresenta uma visão geral dos This article provides an overview of debates
debates acerca do império português e da on empire and slavery in the late eighteenth
escravidão em fins do século XVIII e início do and early nineteenth centuries in the
XIX. Mereceram atenção especial o modo pelo Portuguese empire. Particular attention is
qual as invasões napoleônicas em Portugal e a paid to the ways in which the Napoleonic
transferência da corte para o Rio de Janeiro renovaram invasion of Portugal and the transfer of the court
as discussões sobre a instituição da escravidão, e a to Rio de Janeiro renewed debates on the
preocupação, articulada pelas autoridades reais e institution of slavery and to the concerns,
pela Intendência de Polícia da Corte, em definir o articulated by royal officials and Rio’s police
caráter da escravidão na nova corte. intendant, with defining the features of slavery
Palavras-chave : escravidão; império português; within the new royal court.
Intendência de Polícia; Rio de Janeiro; Keywords: slavery; Portuguese empire; police
metropolização. intendancy; Rio de Janeiro; metropolitanization.

A
invasão napoleônica da penín- império na Ásia entrava em de-clínio, en-
sula Ibérica em 1807-1808 quanto o Brasil emergia como uma pos-
representou um clímax dramá- sessão rica não apenas em recursos agrí-
tico para a crise imperial pela qual Por- colas, mas também minerais, extraídos
tugal vinha passando desde o século para benefício da metrópole. Embora a
XVIII. No final do século XVII, o lendário economia do império prosperasse, sua vi-

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abilidade se encontrava ameaçada pelo O SÉCULO XVIII LUSO - BRASILEIRO

E
que o conselheiro do rei Rodrigues da
m Portugal e no seu império, o
Costa descreveu, em 1732, como uma
século XVIII foi uma época de
distribuição desigual dos bens econômi-
reformas. Os conflitos militares
cos e políticos. Em contraste com o po-
portugueses com os holandeses haviam
tencial aparente do Brasil, Portugal era
passado, assim como as incertezas
um país pequeno, geopoliticamente frá-
advindas com a Restauração que pôs fim
gil frente ao resto da Europa. À medida
à União Ibérica. Os funcionários da Co-
que a emigração diminuía ainda mais a
roa portuguesa poderiam voltar sua aten-
população portuguesa, a perspectiva de
ção para as circunstâncias econômicas e
se encontrar riquezas no Brasil ameaça-
políticas do reino e suas possessões ul-
va exacerbar o desequilíbrio, exaurindo
tramarinas. De acordo com eles, tais cir-
a lógica do império. Como especulou
cunstâncias muito exigiriam da Coroa: o
Rodrigues da Costa, “a maior parte e a
Estado da Índia sofrera perdas irrepa-
mais rica não sofrerá ser dominada pela
ráveis, tanto para rivais europeus como
menor, mais pobre”. 1 Em novembro de
para a resistência local.2 Os conseqüen-
1807, a Coroa decidiu mudar a corte
tes prejuízos comerciais traziam também
para o Brasil, o que aparentemente re-
uma diminuição de prestígio. Na Europa,
solveria o dilema. A partir da sua nova
a difícil situação de Portugal manifesta-
moradia, no Rio de Janeiro, súditos por-
va-se no Tratado de Methuen, de 1703,
tugueses proclamavam que a mudança
segundo o qual a Inglaterra controlaria o
para o Brasil salvara a monarquia portu-
setor de produção de vinho do Porto –
guesa tanto da ameaça de Napoleão,
um arranjo que, de acordo com Duc de
quanto do que um conselheiro descrevia
Choiseul, ministro de Luís XV, significava
como os “excessos” da Revolução Fran-
que “Portugal deveria ser visto como uma
cesa, revelando o Brasil como o lugar
colônia inglesa”.3
certo para a conquista da glória imperial
que a monarquia portuguesa vira recusa- Mas as bases do prestígio português não

da em solo europeu. Ainda assim, a estavam totalmente perdidas. À medida

reconfiguração do espaço imperial origi- que o poder português na Ásia e Europa

nou novas contradições e ameaças. Se o se enfraquecia, seu potencial na Améri-

Brasil deixara de ser colônia, como cer- ca aumentava. No último quartel do sé-

tos homens de Estado começaram a ar- culo XVII, a busca por depósitos mine-

gumentar, como compreender então a rais no interior do Brasil intensificou-se,

existência de realidades coloniais, em es- e acabou por produzir resultados: minas

pecial a instituição da escravidão? Neste de ouro e diamante. Na década de 1720,

trabalho examino as ramificações desse intelectuais de Salvador da Bahia, admi-

dilema no contexto da invasão tindo que o Brasil se tornara, literalmen-

napoleônica e as transformações no im- te, a jóia da coroa portuguesa, reivindi-

pério luso-brasileiro que a precederam. cavam o reconhecimento de que o poder

pág.62, jan/jun 2008


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imperial havia de fato se transferido do panhias de comércio. Para intensificar o


Leste para o Oeste. As aspirações na controle real sobre seus territórios na
Ásia, proclamou um poeta, resultaram em América, a Coroa portuguesa fundou no-
desilusão, pois a Ásia confrontara a rea- vas vilas e cidades, organizou regimen-
lidade de que a América, “Elevada, subli- tos locais de cavalaria e infantaria auxili-
me, e soberana,/ não só te não consen- ar e criou juntas da fazenda em cada
te a primazia/ mas com heróico zelo/ capitania. 6 Embora os problemas na ad-
nem ainda te aceita em paralelo […]”. 4 ministração colonial persistissem depois
Na Europa, Luís da Cunha, embaixador da morte de José I e da subseqüente da
em Paris e delegado nas negociações de queda de Pombal, o legado do marquês
Utrecht, apresentou à Coroa uma avalia- incluía uma nova geração de homens de
ção mais dramática das recentes trans- Estado que haviam sido educados no con-
formações políticas e econômicas. Reco- texto das reformas universitárias por ele
nhecendo a inversão da hierarquia impe- iniciadas. No último quartel do século
rial que posteriormente Montesquieu atri- XVIII, Rodrigo de Sousa Coutinho, diplo-
buiria ao império espanhol, Cunha pro- mata e estudioso de ciências naturais,
pôs que a corte real se transferisse para apoiava consistentemente o argumento
o Brasil, para defender “os interesses de de Pombal segundo o qual a Coroa deve-
comércio” e forjar a expansão territorial ria explorar de forma mais intensa e efi-
no Novo Mundo. 5 ciente seu território americano, como
forma de contrapor a fragilidade de Por-
Embora a proposta de Luís da Cunha fos-
tugal na política imperial européia. 7
se, naquele momento, deixada de lado,
ela refletia uma consciência das transfor- Contudo, os tratados, as fortalezas e os
mações no império e da ascendência do agentes alfandegários não poderiam re-
Novo Mundo que orientaram a política e solver todos os problemas da administra-
a prática portuguesas durante o século ção imperial, e nem erguer uma ponte
XVIII, em especial os esforços para tor- que cobrisse o vasto espaço colonial e
nar a administração da economia brasi- atravessasse o mar que separava a au-
leira mais eficiente. Com a negociação toridade real do seu território na Améri-
do Tratado de Madri (1750), os portugue- ca. Por isso, como argumentou Rodrigo
ses também asseguraram a reivindicação Monteiro, a Coroa também buscou con-
sobre os territórios na bacia amazônica. solidar sua imagem na América e culti-
Então, durante o reinado de José I (1750- var a fidelidade dos seus vassalos ao lon-
77), seu poderoso primeiro-ministro, o go dos séculos XVII e XVIII. Os brasilei-
marquês de Pombal, procurou substituir ros eram convocados a participar de co-
os já decadentes lucros da economia de memorações suntuosas do círculo de
mineração pela instalação e comercia- eventos do cotidiano real, corroborando
lização da agricultura no Amazonas, além assim tanto a sua lealdade coletiva à
de estender concessões às novas com- Coroa quanto a sua filiação à comunida-

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de imperial. Entretanto, como explicou dentro do império.10 Se, na correspondên-


Pedro Cardim, essa celebração local da cia imperial do século XVIII, o Brasil dei-
monarquia também sublinhava a xou de ser discutido como uma “conquis-
“subalternização” política do Brasil. En- ta”, foi porque o conceito igualmente
quanto em Portugal as cidades não ape- subordinante de “colônia” o suplantara.
nas comemoravam os referidos eventos,
De fato, no final do século XVIII, mesmo
mas também ocasionalmente recebiam
enquanto Sousa Coutinho, então ministro
o monarca em suas aparições públicas,
da Marinha e Negócios Ultramarinos
no Brasil a sua ausência fazia supor “que
(1796-1801), buscava promover a “con-
a realeza achava que esse território era
solidação, e reunião de todas as partes
indigno de ser visto”. 8 O que Rodrigues
da monarquia”, integrando brasileiros
da Costa, conselheiro do rei, descrevia
nos níveis mais altos da administração
como “dificuldade de recurso à Corte”,
imperial, 11 funcionários da Coroa servin-
para os que residiam no Brasil poderia
do no Brasil levantavam dúvidas acerca
ser entendido como ausência de uma prá-
do potencial para unidade e lealdade dos
tica visível de justiça. 9 Portanto, a com-
vassalos americanos do rei. Entre os re-
preensão mais ambiciosa da Coroa no que
latos otimistas referentes à agricultura
se refere à “sua função colonizadora”
tropical e sugestões para aumentar a efi-
(para usar o termo de Monteiro) – mani-
ciência institucional, encontramos refe-
festa em seus esforços para revitalizar a
rências à natureza problemática da po-
extração de riqueza e também a sua ad-
pulação brasileira. O marquês de
ministração – não implicava um entendi-
Lavradio explicava, em 1779, que, uma
mento inovador das hierarquias políticas

Africanos de Benguela e Angola, Johann Moritz Rugendas, Voyage pittoresque dans le Brésil, 1835

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vez que a maioria da população se cons- rua e a cacofonia de “línguas diversas”.14


tituía de “povos de gentes de pior educa- Vilhena e Lavradio alertavam que essas
ção, de um caráter o mais libertino, como diferenças culturais e sociais ameaçavam
são negros, mulatos, cabras, mestiços, a autoridade política. Vilhena escreveu
e outras gentes semelhantes”, a desor- que a dependência do trabalho escravo
dem social seria inevitável. O alerta foi tornou a população branca e pobre da
repetido quase na íntegra por seu suces- Bahia ociosa, arrogante e insubordinada.
sor, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Assim ele apresentou o problema ao seu
Sousa, ao fim de sua estadia no Brasil. 12 correspondente: “Por que só há de que-
Cronistas residentes no Brasil ao final do rer mandar quem nada mais soube que
século XVIII também apontam a escravi- obedecer?”. Os pobres, os errantes, as
dão institucionalizada e a população de pessoas de cor, imaginava Lavradio,
escravos, ex-escravos e seus descenden- eram da mesma forma suscetíveis a agen-
tes como uma fonte de criminalidade, das políticas subversivas trazidas por vi-
vadiagem, promiscuidade sexual e doen- sitantes estrangeiros indesejáveis. Para
ças. 13
Em Salvador, Luís dos Santos conter o potencial subversivo e auxiliar
Vilhena argumentava que tais circunstân- a defesa e segurança locais, Lavradio
cias negativas permeavam todos os as- apoiava a instauração de regimentos de
pectos da vida no Brasil, pois o espaço milícias de homens de cor. 15
público tinha de ser definido por algo que
Tanta preocupação com as conseqüências
não era a cultura e os costumes portu-
da escravidão datava da experiência por-
gueses: “batuques bárbaros”, danças de

Africanos de Benguela e Angola

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 61-80, jan/jun 2008 - pág.65


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tuguesa com o apresamento e o tráfico de aos maus-tratos, mas oferecia também


africanos. Contudo, esses relatos são de uma nova proposta ao limitar a duração
um tempo em que, por todo o mundo atlân- da escravidão como forma de trabalho
tico, a instituição da escravidão vinha sen- na colônia. 19 Em 1764, um panfleto anô-
do alvo de intenso escrutínio e críticas, nimo publicado em Lisboa desafiava
tanto de homens instruídos como de ho- muitas idéias européias acerca da Áfri-
mens de Estado. 16
Dentre os estudos ca e dos africanos citadas para justifi-
mais elaborados a respeito do assunto car a escravidão. 20 A obra Nova, e curi-
encontravam-se os dos jesuítas estran- osa relação de um abuso emendado... ,
geiros que residiam no Brasil. A obra de diálogo entre um mineiro e um letrado
Jorge Benci, Economia cristã dos senho- passado em Portugal, reiterava muitos
res no governo dos escravos (1700), cen- argumentos contra punições cruéis, in-
surava os maus-tratos aplicados aos es- citando os proprietários a aceitarem as
cravos, testemunhados por ele quando regulamentações locais, e, acima de
vivia em Salvador, em fins do século tudo, atacando todas as explicações
XVII. 17
Observações similares foram fei- bíblicas relativas às origens das diferen-
tas por André João Antonil em Cultura e ças apresentadas pelos africanos e as
opulência do Brasil (1711). Todavia, preocupações dos europeus com os
embora Benci e Antonil criticassem a for- negros.”Tenha um homem a cor que ti-
ma de escravidão praticada e os hábitos ver, é certo que é filho de Adão”, afir-
arraigados – e embora ambos recomen- mava o letrado, em resposta ao que dis-
dassem formas de garantir a moralidade sera o mineiro: “os negros não são gen-
do regime –, nenhum deles desafiava as te como nós”. “É um abuso [contra a
resistentes justificativas para a escravi- razão] introduzido entre muitas pesso-
dão que permeavam o discurso cristão. as, imaginarem que os pretos foram nas-
Como prisioneiros de guerra, argumen- cidos só para serem escravos”, avança
tava Benci, os escravos haviam sido pou- a explicação do primeiro, já próximo do
pados da morte e portanto tinham a obri- fim do diálogo. Ainda assim, e como em
gação de obedecer, enquanto os proprie- outros tratados de meados daquele sé-
tários tinham o dever cristão de serem culo que apresentavam posições
justos com seus escravos ao alimentar, antiescravistas, Nova, e curiosa relação
punir e no trabalho. 18
não condenava a instituição da escravi-
dão em si, fosse de um prisma moral ou
Em meados do século XVIII, a literatura
jurídico. Embora explicasse ao mineiro
dedicada às reformas era mais ampla e
que “os pretos não são nossos escravos
menos condescendente. Em Etíope res-
porque são pretos”, ele também obser-
gatado, empenhado, sustentado, corrigi-
va, sem aprofundar a questão, que “há
do, instruído, e libertado... , de 1758,
outras razões políticas e permitidas para
Manuel Ribeiro Rocha, português residen-
se reputarem como tais”, para justificar
te no Brasil, repetia as antigas críticas
a prática da escravidão. 21

pág.66, jan/jun 2008


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Já no último quartel do século XVIII, as sem acabar com o tráfico de escravos? 22


análises reformistas da escravidão pare- Portanto, a questão imperial passou das
cem ter atingido seu auge no mundo luso- lamúrias enunciadas no início do século
brasileiro. O comentário mais contunden- XVIII – a vulnerabilidade e fragilidade
te e extenso a respeito da escravidão econômica de Portugal sem seus territó-
feito naquela época era uma defesa da rios ultramarinos – para uma justificati-
instituição que nada tinha de ambígua. va da manutenção, tanto do tráfico de
Ex-proprietário de engenho nascido no escravos, quanto do uso de mão-de-obra
Brasil, o bispo Azeredo Coutinho aponta- escrava no trabalho agrícola na virada do
va os fundamentos bíblicos para a escra- século XIX.
vidão, em Análise sobre a justiça do co-
Fosse a escravidão crucial para a viabili-
mércio do resgate dos escravos da costa
dade do império e, sobretudo, para a
da África (1798). Contudo, sua principal
economia de Portugal, como insistia
preocupação era definir a “razão políti-
Azeredo Coutinho, ou fonte de vulnera-
ca” para a escravidão no contexto de uma
bilidade e perigo, como sugeriam alguns
economia colonial. Adaptando argumen-
funcionários que trabalhavam no Brasil,
tos característicos do iluminismo europeu
no final do século XVIII, ela era compre-
contra a escravidão, Azeredo Coutinho se
endida como prática exclusivamente co-
opunha ao ideal dos “direitos naturais” e
lonial. Em 1761, um decreto estabelecia
liberdade absoluta, insistindo que os ho-
que escravos africanos que aportassem
mens nasciam em sociedade e que, por-
em Portugal seriam declarados livres; e,
tanto, a sociedade, e apenas ela, defini-
em 1773, um segundo decreto libertava
ria seus direitos. Descrevendo um encon-
todos os escravos do reino. Portanto,
tro mutuamente benéfico entre “nações
embora o século XVIII se definisse, para
civilizadas” e “nações bárbaras”, ele ar-
os portugueses, pela emergência de um
gumentava que os portugueses tinham o
império americano (ou luso-brasileiro),
direito de defender seus interesses nacio-
ele ainda estava marcado por distinções
nais por meio do tráfico de escravos e
políticas, sociais e culturais entre a me-
do uso de africanos escravizados na pro-
trópole e a colônia.23 Em Nova, e curiosa
dução agrícola. Afinal de contas, explica-
relação, publicado em Portugal depois do
va, os lucros que Portugal obtinha em
primeiro decreto, tais diferenças
razão do “grande comércio da Europa”
afloravam no diálogo do mineiro com o
eram produto do seu comércio colonial
letrado. Depois de mencionar os infames
com tabaco, algodão, café e arroz, “uma
excessos em relação a trabalho e má
riquíssima agricultura, que vem suprir a
alimentação sofridos pelos escravos no
que falta a Portugal no terreno da Euro-
Brasil, o mineiro explica que a sua con-
pa”. “Que seria da agricultura das colô-
tenda com o seu próprio escravo surgiu
nias, e por conseqüência de Portugal, ele
quando ele renegou um acordo de
perguntava, se aqueles “que se dizem
alforria. O escravo reagira, segundo ele,
defensores da humanidade” conseguis-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 61-80, jan/jun 2008 - pág.67


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servindo-o com um zelo mínimo; e o mi- gumentavam que abandonar uma alian-
neiro, por sua vez, retaliou, tentando ça histórica com a Inglaterra daria aos
“vendê-lo para o Brasil, só para que lá britânicos, donos de uma força naval su-
com rigoroso castigo acabasse a vida”. perior, uma oportunidade para se apos-
Essa possibilidade levou o escravo a ape- sar de territórios portugueses na Améri-
lar para sua irmandade local, cujos privi- ca. O príncipe regente d. João optou pela
légios impediam tal venda. 24
Essa troca aliança com os ingleses, acompanhada de
sugere que, embora para os homens de sua partida do reino para evitar a pró-
Estado a noção do potencial brasileiro pria captura, deixando o governo nas
contrabalançasse a fragilidade de Portu- mãos de uma regência.25 Uma vez no Bra-
gal em meio às outras nações, o império sil, membros da corte portuguesa procu-
oitocentista também se definia pelas di- ravam responder ao desafio francês.
ferenças que continha. O Brasil era uma Como argumentava José da Silva Lisboa,
colônia porque, como argumentava economista político e homem de Estado,
Azeredo Coutinho, sua agricultura susten- na América a corte portuguesa poderia
tava a economia metropolitana. E seu “erguer fronte altiva, para se fazer res-
aspecto era colonial porque marcado peitar das nações amigas, e suplantar
pela brutalidade exigida para sustentar assaltos de inveja e malignidade de quais-
um regime escravista em expansão, e quer perturbadores públicos”.26
para disciplinar uma população que era
A despeito dessa retórica, a presença do
tão africana quanto européia. As contra-
monarca e da corte real em solo ameri-
dições apresentadas pela civilidade eu-
cano levantou questões imediatas acer-
ropéia em relação à rigidez colonial en-
ca do status do Brasil e da configuração
contrariam sua exposição máxima no
política do império. De fato, passava a
Brasil, quando o império de Portugal se
ser “absurdo”, como explicava Silva Lis-
defrontou com o desafio napoleônico.
boa, “considerar colônia a terra de resi-
dência do soberano”. 27 Outro expatriado
E SCRAVIDÃO E METROPOLIZAÇÃO

Q
português explicava que, com a transfe-
uando Napoleão anunciou seus rência da corte, “se mudou a política da
objetivos imperiais para a pe- Europa e talvez do universo”: a presença
nínsula Ibérica, exigindo ade- de d. João emprestava um certo “tom ao
são ao bloqueio continental imposto à Novo Mundo e fez desaparecer o nome
Inglaterra, os esforços realizados pelos de colônia”. 28 Quando, em 1815, a Co-
portugueses para manter a política de roa elevou o Brasil à condição de “rei-
neutralidade ruíram. A partir daquele no”, o evento foi comemorado localmen-
momento, uma escolha teria de ser fei- te com a invocação de metáforas secula-
ta: capitular diante de Napoleão ou apoi- res acerca do triunfo da civilização euro-
ar os ingleses. Embora o governo portu- péia sobre a selvageria indígena. A “anti-
guês percebesse que seu império corre- ga nudez” da América, escreveu um cro-
ria risco em ambos os casos, muitos ar-

pág.68, jan/jun 2008


R V O

nista no Rio, cobria-se agora com a “co- imoralidade que supostamente permeava
roa brilhante” e “o real manto de púrpu- as sociedades escravistas. Um exilado
ra” do próprio monarca português. 29
alegava que o Brasil era uma “Babilônia
moderna”, onde a escravidão corrompia
Livrar-se do nome “colônia”, contudo, não
tanto escravos quanto seus donos. 31 Um
significou automaticamente o fim das prá-
trabalho sobre educação explicava que
ticas e realidades coloniais. A instituição
as crianças portuguesas criadas por es-
da escravidão, em particular, contradizia
cravos e vivendo no meio deles sofriam
francamente a metropolização do Brasil,
uma confusão destrutiva de hierarquias
o que a colocava sob escrutínio renova-
sociais e aprendiam uma fusão entre as
do. Tanto Salvador, onde d. João desem-
línguas africana e portuguesa. 32 Em um
barcou, quanto a capital Rio de Janeiro
tratado sobre o clima local, o estudioso
eram cidades em que a população escra-
português Manuel Vieira da Silva denun-
va era abundante. 30 Os exilados de Por-
ciava o que ele chamava de promiscuida-
tugal reagiam à população do seu novo
de e falta de higiene produzidas pela in-
local de moradia repetindo as lamen-
trodução de africanos recém-chegados
tações comuns no século XVIII sobre a
nos lares dos residentes das cidades. O

A lady going to visit, Henry Koster, Travels in Brazil , 1816

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trabalho era tão barato, ele alegava, que adotavam a prática de comprar escravos
a maioria dos moradores sucumbira a “uma com o objetivo de alugá-los como traba-
vida ociosa” e de vícios. 33
lhadores em obras públicas. Embora a
prática de alugar escravos fosse aparen-
Entretanto, essas reclamações não impe-
temente legal, de acordo com o
diram a continuação do uso do trabalho
intendente de polícia, o “desejo de tirar
escravo na cidade. Ao contrário:
logo lucro deles [escravos recém-chega-
concomitantemente à crescente utiliza-
dos]” resultava que menos atenção era
ção dos escravos na agricultura no inte-
dada à sua disciplina e à inculcação de
rior do estado do Rio de Janeiro, a de-
moralidade religiosa.
manda por serviços e trabalhadores pes-
soais para a cidade, cujos portos agora A recém-criada instituição da Intendên-
se encontravam abertos, levou ao aumen- cia de Polícia assumiu a tarefa de polici-
to da população escrava em geral no Rio ar a prática da escravidão que, como os
de Janeiro, na década de 1810. De acor- cronistas e funcionários de fins do sécu-
do com o intendente de polícia da Corte, lo XVIII registraram, era fonte de desor-
ao longo da década que se seguiu à ins- dem bem antes da chegada de d. João.
talação da família real, a população do- Muito da atividade da intendência envol-
brou, chegando a oitenta mil, mas o au- via prender e (como admitiu em um ofí-
mento do número de escravos na cidade cio o intendente de polícia) atormentar
deu-se numa proporção pelo menos duas escravos. As razões dadas para as de-
vezes maior do que a de exilados e imi- tenções oficiais variavam de roubo, per-
grantes europeus. Como relatou o turbação da ordem e posse de armas,
intendente, os exilados logo adquiriram até agressão e homicídio; as punições
escravos “ao modo do país, por haver incluíam chibatadas, trabalhos forçados,
dificuldade de achar brancos, como em ou ambos. Embora essas ações policiais
Portugal, por os seus serviços”. 34 O ar- pretendessem apoiar os proprietários de
quivista real, Luís Marrocos, que recla- escravos, elas também permitiam que a
mava que a vida no Brasil era como uma intendência, em nome da Coroa, definis-
penalidade, contou, alarmado, como os se os aspectos da escravidão na cidade.
escravos “freqüentemente” assassina- De fato, o intendente esforçou-se por
vam, envenenavam, estupravam seus reformar ou restringir algumas das práti-
mestres. Ele endossava o uso do “terror” cas da escravidão que se afiguravam ina-
contra os escravos, nos processos de dis- dequadas ao novo status de corte da ci-
ciplina e punição, embora admitisse os dade. Ele considerava os padrões de hi-
benefícios da propriedade de escravos: giene no mercado e no cemitério de es-
“o meu preto é muito manso”, escrevia cravos no mínimo deficientes, além de
ele, satisfeito, ao seu pai, em 1811, “e caracterizar a prática de chibatadas pú-
tem-me muito respeito”. 35
Exilados, inclu- blicas como “verdadeiramente indecen-
indo membros da corte real, também te dentro de uma Corte”. 36 Essas tentati-

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vas de metropolizar a escravidão, reali- visitar o palácio e denunciar castigos ex-


zadas para aprimorar a ordem na capital cessivos, requerer intervenção real em
real, poderiam levar à confrontação com conflitos e pedir que a Coroa resolvesse
proprietários de escravos. Uma senten- polêmicas ligadas à sua busca por
ça de trabalhos forçados em conseqüên- alforria.37
cia de uma suposta vadiagem, por exem-
Embora historicamente a concessão de
plo, removeria temporariamente um es-
mercês pelo soberano incluísse escravos
cravo do serviço do seu dono. Para mui-
e pessoas de cor residentes em todos os
tos proprietários, este potencial para in-
territórios portugueses, o intendente
tervenção no relacionamento entre eles
aconselhava a Coroa a não estender o
e seus escravos tornou-se mais ameaça-
direito de petição aos escravos do Rio.
dor à medida que os escravos passaram
“A idéia”, ele avisava, de “que S.M. pro-
a usar a intervenção real como uma es-
tege a sua causa, os fará arredar dos
tratégia. Poucos meses depois da trans-
serviços de seus senhores para serem
ferência da corte, de acordo com os re-
pretendentes de sua liberdade; e desen-
gistros da intendência, alguns escravos
ganados de a não conseguirem, se desvi-
se aproveitavam de momentos em que
arão de tornar a casa e serviços dos srs.
não se encontravam sob vigilância para

O mercado de escravos, Sir Henry Chamberlain,


Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1818-1820 , 1943

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e aí se tornam fugitivos, salteadores de proprietários assumiam em relação aos


estrada, e inimigos mais perigosos dos escravos. “[A]s leis de Sua Majestade”,
senhores”. 38
Para incentivar a Coroa a explica o intendente, “podiam jamais so-
desconsiderar as petições de escravos e frer que um senhor desumano pudesse
desencorajar os cativos a se aproxima- ter mais liberdade do que a autoridade
rem do palácio em busca de desagravo, pública” a respeito dos escravos: em ou-
o intendente lançou dúvidas sobre a ve- tras palavras, a autoridade absoluta da
racidade das suas reivindicações e monarquia se enfraquecia sempre que os
alertou que o aumento da população ne- proprietários de escravos agiam de for-
gra livre levaria à “anarquia”. Como al- ma que o monarca não poderia. Numa
ternativa, propunha aos solicitantes es- época em que a idéia republicana vinda
cravos buscar soluções no sistema judi- da Europa e dos Estados Unidos repre-
cial estabelecido. sentava um desafio, os apelos dos escra-
vos à autoridade real absoluta – e, por-
Contudo, a persistência de solicitantes
tanto, seu respeito implícito, mesmo que
escravos – alguns dos quais citavam as
estratégico – não poderiam ser ignorados.
desvantagens insuperáveis com que se
Em conseqüência, como os escravos no
defrontavam nos processos judiciais, pos-
Rio persistissem em buscar a interven-
to que estes favoreciam “os ricos” – for-
ção real, o soberano se tornou parte do
çava o intendente e outros funcionários
processo de manutenção do que o
reais a assumirem um papel na media-
intendente descrevia como um “equilí-
ção das contendas. Punições excessivas,
brio” entre os proprietários e os escra-
em especial, eram freqüentemente vis-
vos na cidade. O próprio d. João nos dá
tas como motivo legítimo para se buscar
um exemplo espetacular da habilidade e
desagravo, uma vez que a crueldade con-
disposição da Coroa para limitar a auto-
tribuía, de acordo com o intendente, para
ridade dos proprietários de escravos
a desordem pública na cidade. Assim, nos
quando ele decide intervir em um
anos de 1810, conforme os escravos
chicoteamento público com que sua co-
abordavam o palácio para resistir a tais
mitiva se deparara durante um passeio.39
punições, tornou-se “costume”, segundo
o intendente, colocá-los sob custódia pro- A questão das restrições reais aos pro-
tetora enquanto suas solicitações eram prietários de escravos tornou-se mais
analisadas, “para não dever-se fomentar aguda no contexto da guerra. A manu-
a insubordinação dos escravos nesse tenção da ordem e do “equilíbrio” era
país”. E, argumentava o intendente em particularmente importante, diante da
correspondência à Coroa, havia a neces- vulnerabilidade da monarquia tanto na
sidade de uma “medida fixa” que reduzi- Europa quanto na América: muitos afir-
ria os maus-tratos e acabaria com a “ili- mavam que a população escrava consti-
mitada liberdade”, generalizada, “mal- tuía um ponto fraco na defesa cultural e
entendido e arbitrário domínio” que os política contra Napoleão. Durante a Guer-

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ra Peninsular, rumores e relatórios dizi- Alguns observadores do início do século


am que Napoleão enviara “emissários” ao XIX pensavam que o conflito seria evita-
Brasil com a intenção explícita de fomen- do mudando-se a natureza da população
tar uma insurreição escrava. Para preve- escrava. Por exemplo, em 1822 um es-
nir uma desordem mortal, argumentava critor anônimo alegava que o Brasil pre-
o intendente, a Coroa deveria insistir para cisava diminuir a sua dependência do trá-
que os proprietários de escravos abor- fico de escravos, estimulando a reprodu-
dassem o castigo de uma forma mais ção entre a população doméstica. Espe-
paternalista e moderada. rava-se que tal estratégia acentuasse a
aquiescência dos escravos à sua vida no
A derrota de Napoleão, contudo, não dis-
Brasil, diminuindo a influência das cultu-
solveu o espectro da insurreição. Relató-
ras africanas sobre eles: “[P]retender ci-
rios e correspondência oficiais continua-
vilizar o Brasil, e promover a sua pros-
vam a alimentar os medos em relação à
peridade e segurança, transplantando
“reação das raças”, à “guerra domésti-
para ele a negraria da África, é um ab-
ca”: havia negros e escravos, dizia o
surdo o mais extravagante e nocivo.
intendente, que “falam, e sabem do su-
Cada nova importação de escravos, são
cesso fatal da ilha de São Domingos”.
novos combustíveis que se acumulam no
Mesmo os oficiais que argumentavam que
vulcão.”41 Entretanto, outros críticos ques-
a ordem pública e política poderia se re-
tionavam não apenas o tráfico de escra-
conciliar com a escravidão levantavam
vos e seus supostos efeitos, mas a pró-
dúvidas acerca das conseqüências a lon-
pria instituição da escravidão. De fato,
go prazo da escravidão disseminada, e
alguns escravos relacionavam explicita-
preocupavam-se com a hostilidade poten-
mente a transferência da corte real ao
cial dos ex-escravos e negros livres para
fim da escravidão: “Nosso Sinhô chegô,
com a elite proprietária de escravos. “Ho-
cativêiro já acabô”, era o seu canto à
mens forros”, escreveu o intendente em
chegada de d. João no Rio de Janeiro. 42
um relatório, “são mais amigos dos ou-
Tais expectativas eram percebidas com
tros negros seus parceiros, e de que des-
excitação por funcionários da Coroa no
cendem, e dos mulatos com quem mais
Rio. “Todos sabem”, dizia o intendente
convivem do que dos brancos”. 40 Consi-
poucas semanas depois da chegada da
derando-se essas divisões aparentemen-
família real, “que os muitos milhares de
te profundas entre a sociedade brasilei-
escravos que existem no Brasil têm es-
ra e a sua força de trabalho, a questão
tado esperançados, de que a vinda de
relativa a se o Brasil seria fonte de gló-
S.A. aqui os vinha libertar dos seus cati-
ria, prosperidade e segurança para a
veiros”.43
Coroa – como muitos diziam – permane-
ceu sem resposta durante longo tempo Mas, embora o intendente e outros fun-
depois da travessia do Atlântico pela fa- cionários rejeitassem as reivindicações
mília real. dos escravos, a lógica das esperanças

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escravas – de que, uma vez que a escra- dência, José Bonifácio de Andrada e Sil-
vidão tinha sido abolida na antiga metró- va afirmava que a escravidão traía a
pole, naturalmente seria erradicada na moralidade cristã, e rejeitava o apelo
nova – era percebida por membros influ- feito por alguns defensores da escravi-
entes da elite luso-brasileira. Seguindo- dão ao “bárbaro direito público das anti-
se à transferência da corte, tanto em ofí- gas nações”.46 Para Silva Lisboa, econo-
cios e correspondência, quanto em tra- mista político que escreveu na metade da
balhos publicados, intelectuais do Esta- década 1810, a violação da “razão natu-
do começaram a renovar a análise críti- ral” perpetrada pela escravidão era sim-
ca a que a instituição resistira durante o plesmente indesculpável: alegar que a
século XVIII. 44
Eles o fizeram em meio a escravidão trazia os africanos para o cris-
desafios crescentes enfrentados pela es- tianismo não passava de “pretexto”.47
cravidão em todo o mundo atlântico: o
Juntamente com referências repetidas
fim violento da escravidão no Haiti, o
aos “horrores” e problemas morais da
encerramento das atividades de comér-
escravidão, esses críticos explicitavam
cio de escravos no império britânico, o
a incompatibilidade entre escravidão e
fim da importação de escravos nos Esta-
vitalidade e desenvolvimento econômi-
dos Unidos e a restrição ao comércio de
cos, vistos como fundamentais depois da
escravos ao sul do Equador, negociada
abertura dos portos brasileiros ao co-
no Congresso de Viena. Apesar da resis-
mércio com outras nações. De acordo
tência aos esforços das forças britânicas
com Maciel da Costa, a escravidão fazia
no sentido de interromper o tráfico ao
parte de um sistema colonial antigo que,
sul do Equador, os próprios portugueses
ao forjar uma economia quase exclusi-
chegavam à conclusão de que no longo
vamente agrícola, produzia dependência
prazo a escravidão não tinha mais futuro
e, portanto, vulnerabilidade, em relação
no Brasil. Como escreveu Maciel da Cos-
às demandas externas. Segundo ele, a
ta, funcionário real, em 1821, a “intro-
“ciência econômica” havia provado a
dução dos escravos africanos” e a manu-
necessidade de se incentivar a ativida-
tenção “indefinida” da escravidão se opu-
de industrial, assim como o comércio e
nham à “prosperidade e segurança” do
a agricultura. 48 As conseqüências econô-
Estado.45

A
micas negativas da escravidão também
s críticas à escravidão no sé- incluíam o cultivo de uma disposição à
culo XIX argumentavam, assim indolência entre a população como um
como os textos cristãos do todo. Andrada e Silva alegava, além dis-
século XVIII, que essa instituição era in- so, que a escravidão criava uma classe
justa. A prática da escravidão “ofende os de proprietários de terra mais compro-
direitos da humanidade”, acusava Maciel metida com o luxo do que com a “perfei-
da Costa. Dirigindo-se à Assembléia ção” da agricultura e da indústria por
Constituinte de 1823, depois da Indepen- meio da inovação científica. 49

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Além dos aspectos econômico e moral, vidão. Um homem não pode ser “objeto
as críticas à escravidão do início do sé- de propriedade”, já que ele não é uma
culo XIX também se referiam aos pro- coisa. Um sistema político e social fun-
blemas políticos e sociológicos produzi- damentado numa contradição filosófica
dos por essa instituição. De acordo com desse naipe era, continuava ele, “um
o ministro exilado português Vila Nova edifício fundado em areia solta, que a
Portugal, a escravidão privara o Brasil mais pequena borrasca abate e desmo-
de um “povo” porque os escravos e seus rona”. Em suma, a escravidão era fonte
descendentes eram incapazes de parti- de desordem potencialmente catastrófi-
lhar o “espírito nacional”. 50
De modo si- ca e de corrupção. O comércio de es-
milar, Silva Lisboa alegava que o Brasil cravos, “este comércio de carne huma-
precisava de uma população “natural, na”, era, declarava ele com uma poten-
cordata, e legítima”, em vez de uma que te metáfora, “um cancro que rói as en-
fosse “estrangeira, bárbara, e tranhas do Brasil.” 53
abusiva”. 51 Também para Maciel da Cos-
Mais especificamente, aquilo que os crí-
ta, o “vício radical” da escravidão corroía
ticos do início do século XIX viam como a
a noção de comunidade política. O status
dimensão cultural da escravidão levou-os
jurídico peculiar dos escravos contradi-
a duvidar de que uma nacionalidade unifi-
zia o ideal de uma “verdadeira popula-
cada poderia ser forjada antes do fim da
ção”, que, ele explicava, jamais poderia
instituição. Como explicava Andrada e
consistir de um povo “sem pessoa civil,
Silva, interesses imperiais desejavam
sem propriedade, sem interesses, nem
que o brasileiro fosse “um povo mescla-
relações sociais”. Os escravos, insistia
do e heterogêneo, sem nacionalidade, e
ele, eram “desligados de todo vínculo
sem irmandade, para melhor nos escra-
social e, por conseqüência, perigosos”:
vizar”. 54 A “multiplicação indefinida de
eles eram “conduzidos unicamente pelo
uma população heterogênea, desligada de
medo do castigo e, por sua mesma con-
todo vínculo social”, colocava um “risco
dição, inimigos dos brancos”. 5 2 Para
iminente e inevitável” para o Brasil por-
Andrada e Silva, a corrupção que a es-
que, de acordo com Maciel da Costa, pro-
cravidão trazia para a política residia no
duzia um grupo de pessoas “inimigas da
recurso perverso aos direitos de propri-
classe livre”. Embora Maciel da Costa
edade. Considerando que a propriedade
alegasse que insurreições radicais como
“foi sancionada para bem de todos, qual
a haitiana representavam uma ameaça
o bem”, ele indagava, “obtém o escravo
menor do que os esforços estrangeiros
de perder todos os seus direitos natu-
de fomentar a rebelião entre os escra-
rais” e passar por uma transformação
vos brasileiros, ele também alertava que
de “pessoa a cousa”? A resposta não
se o Brasil “sucumbiu[sse]”, como ocor-
formulada a esta pergunta é que era o
rera em Santo Domingo, significaria a
“direito da força”, e não o “direito da
“África transplantada para o Brasil”. 55
propriedade” a estar em jogo na escra-

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Esse tipo de alternância entre referências samento e um tratamento melhor dispen-


às contradições filosóficas da escravidão sado aos escravos). Embora Silva Lisboa
e a diversidade cultural entre os próprios não partilhasse da oposição de Maciel da
escravos sugere que, no discurso anti- Costa à defesa britânica pelo fim da es-
escravista do início do século XIX, as ori- cravidão, da mesma forma ele insistia
gens africanas dos escravos eram a ques- que o processo de extinção deveria ser
tão central. Esses mesmos críticos escre- gradual, relacionando-o aos projetos de
viam que os africanos eram “bárbaros imigração européia.60 A Representação de
por nascimento, educação e gênero de Andrada e Silva incluía 32 artigos que
vida”; eles careciam de “talento”; consti- serviriam para regular tanto a continui-
tuíam uma “estrangeira, bárbara e dade da prática da escravidão como a sua
abusiva” população no Brasil. 56
Mesmo eventual abolição. O problema para to-
Andrada e Silva, que sugeria a possibili- dos esses críticos residia não apenas em
dade de construir, por meio de um pro- quem realizaria o trabalho nas planta-
cesso de “amalgamação”, “um todo ho- ções brasileiras, mas também na natu-
mogêneo e compacto”, expressava preo- reza política e cultural do novo império
cupação com a “natureza” dos africanos, americano e, depois de 1822, da “nação”
medo da sua falta de “civilização”, en- que o Brasil iria se tornar.
quanto outros críticos defendiam a “bela
Portanto, a solução para a crise pela qual
raça dos homens portugueses”, “valentes
passava a monarquia portuguesa alimen-
cidadãos do nosso próprio sangue”, como
tava uma outra crise. A transferência da
base para o futuro político do Brasil.57 De
corte para o Rio de Janeiro resolvia a
fato, nos anos de 1810, oficiais reais,
crise gerada pela vulnerabilidade
incluindo o intendente de polícia, apoia-
geopolítica de Portugal, oferecendo uma
vam programas de recrutamento de eu-
oportunidade de renovar a prosperidade
ropeus “brancos” para virem ao Brasil
imperial. Mas a realocação também exi-
com a intenção explícita de deslocar os
gia que se lidasse diretamente com lega-
escravos africanos.58
dos do império no Brasil. Os funcionári-
A despeito de tantas ansiedades, contu- os presentes na cidade do Rio de Janei-
do, os críticos da escravidão do início do ro buscavam formas de reconciliar a es-
século XIX defendiam apenas “a gradual cravidão com “a residência de Sua Alte-
e prudente extinção da escravatura”. 59 za Real nesta cidade”. Policiar escravos
Maciel da Costa apresentou seu texto e proprietários para garantir a ordem
como uma refutação das declarações da política e econômica, contudo, não
imprensa britânica de que o fim da es- erradicaria as preocupações da elite re-
cravidão no Brasil estava próximo, e in- lativas às realidades econômica, política
cluía recomendações a respeito de como e social produzidas pela escravidão. A
a população escrava poderia ser mantida nova configuração do império criada pela
sem mais importação (ele defendia o ca- transferência desfez-se quando o Brasil

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declarou sua Independência em 1822, 1830: a escravidão, ele observava, im-


sob a égide do herdeiro soberano d. passível, era um “contrato entre a vio-
Pedro I. A elite residente no Brasil her- lência e a não resistência [...] e os povos
dara uma noção do potencial americano que o têm admitido na sua organização
e, por isso, batizou o novo Estado de “Im- têm pago bem caro esta violação do di-
pério do Brasil” – mas herdara também reito natural”. 62 Dom João foi recebido
um pessimismo em relação à população como libertador pelos escravos do Rio de
“heterogênea” do novo Estado e uma Janeiro, que pressupunham que a escra-
ambivalência em relação à escravidão, vidão seria abolida na nova corte real,
que lhe permitia criticá-la sem contudo assim como ocorrera na antiga. Mas a
aboli-la. No século XIX, as elites brasilei- incapacidade das elites em ampliar a
ras continuavam a falar a respeito de uma “metropolização” para abarcar a escra-
eventual abolição, mas adiaram a ação vidão africana implicou sua própria pri-
até a chegada do final do século. Enquanto são nos grilhões das práticas coloniais.
isso, a escravidão forneceu a base para
uma lucrativa economia de exportação,
ao mesmo tempo em que constituiu o que Este artigo foi publicado em Common
um legislador brasileiro descreveria como Knowledge, v. 11, n. 2 (Spring), p.
“uma tão negra mancha nas nossas insti- 264-282, 2005, sob o título “The
tuições políticas”. 61
O embaraço em que crisis of empire and the problem of
se encontrava a elite pós-colonial propri- slavery: Portugal and Brazil, c. 1700-
etária de escravos foi bem resumido por 1820“. Copyright Duke University
um de seus membros em fins da década Press. Tradução de Viviane Gouvêa.

N O T A S
1. Antônio Rodrigues da Costa apud SOUZA, Laura de Mello e BICALHO, Maria Fernanda
Baptista. 1680-1720: O império deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
p. 97. Sobre o problema da imigração de Portugal, ver BOXER, Charles Ralph. The golden
age of Brazil, 1675-1750 : growing pains of a colonial society (1962). Nova York: St.
Martins, 1995. p. 48-49.
2. SUBRAHMANYAM, Sanjay. The Portuguese empire in Asia, 1500-1700 : a political and
economic history. Londres: Longman, 1993. p. 164-179.
3. Citado em MAXWELL, Kenneth. Pombal, paradox of the enlightenment. Cambridge:
Cambridge University Press, 1995. p. 111.
4. Caetano de Brito e Figueiredo, Canção. In: CASTELLO, José Aderaldo de. O movimento
academicista no Brasil 1641-1820/22. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1969.
v. 1, t. 3, p. 325.

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5. CUNHA, Luiz da. Instruções inéditas de D. Luis da Cunha a Marco Antônio de Azevedo
Coutinho (1736) . Coimbra, Portugal: Imprensa da Universidade, 1929. p. 208-209;
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. The spirit of the laws (1748). Nova York:
Cambridge University Press, 1989. p. 396.
6. MAXWELL, Kenneth. op. cit. p. 88-89, 114, 118-130.
7. SCHULTZ, Kirsten. T ropical Versailles : empire, monarchy, and the Portuguese royal court
in Rio de Janeiro, 1808-1821. Nova York: Routledge, 2001. p. 25-27.
8. CARDIM, Pedro. Entradas solenes: rituais comunitários e festas políticas, Portugal e
Brasil, séculos XVI e XVII. In: JANSCÓ, István e KANTOR, Iris (orgs.). Festa : cultura e
sociabilidade na América portuguesa, v. 1. São Paulo: Hucitec, Edusp, Fapesp, Imprensa
Oficial, 2001. p. 124.
9. Citado em SOUZA, L. M. e BICALHO, M. F. op. cit. p. 87.
10. MONTEIRO, Rodrigo. O rei no espelho : a monarquia portuguesa e a colonização da Amé-
rica, 1640-1720. São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2003. p. 322-23.
11. COUTINHO, Rodrigo de Sousa. Memória […] sobre o melhoramento dos domínios de Sua
Majestade na América (1797). Brasília 4 (1949). p. 407. Sobre as idéias de Sousa Coutinho
acerca da integração da elite brasileira para contrapor a insurreição americana, ver
MAXWELL, Kenneth R. The generation of the 1790s and the idea of Luso-Brazilian empire.
In: ALDEN, Dauril (ed.). Colonial roots of modern Brazil . Berkeley: University of California
Press, 1973. p. 107-144. Sobre a conspiração republicana conhecida por Inconfidência
Mineira, ver MAXWELL, Kenneth. Conflicts and conspiracies : Brazil and Portugal, 1750-
1808. Cambridge: Cambridge University Press, 1973.
12. LAVRADIO, Luís de Almeida Portugal, Marquês de. Relatório do marquês de Lavradio,
vice-rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luís de Vasconcelos e Sousa, que o
sucedeu no Vice-Reinado (1779). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ,
n. 16, janeiro de 1843, p. 424, 430; SOUSA, Luís de Vasconcelos e. Ofício do […] com
a cópia da relação instrutiva e circunstanciada para ser entregue ao seu sucessor. Revis-
ta do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , n. 13, abril de 1842, p. 34.
13. SILVA LISBOA, Balthazar da. Anais do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Seignot-Plancer,
1834-35. p. 140.
14. VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII [Recopilação de notícias soteropolitanas
e brasílicas (1802)]. Salvador: Ed. Itapuã, 1969. t. 1, p. 134-36.
15. LAVRADIO, Luís de Almeida Portugal, Marquês de, op cit., p. 423-424, 430; VILHENA, L.
S., op cit., p. 137-139. Sobre raça e serviço militar no Brasil, ver KRAAY, Hendrik. Race,
State, and Armed Forces in Independence–era Brazil: Bahia, 1790s-1840s. Stanford, CA:
Stanford University Press, 2001. p. 82-105.
16. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Iberian expansion and the issue of black slavery: changing
Portuguese attitudes, 1440-1770. American Historical Review , v. 83, n. 1, p. 16-42,
february 1978. p. 29, 33.
17. BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos (1700) . São Pau-
lo: Editoral Grijalbo, 1977.
18. VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão : os letrados e a sociedade escravista no Brasil
colonial. Petrópolis: Vozes, 1986. CARVALHO, José Murilo. Luso-Brazilian thought on
slavery and abolition. Itinerario v. 17, n. 1, p. 79-91, 1993.
19. ROCHA, Manuel Ribeiro Rocha. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido,
instruído, e libertado … (1758). Petrópolis: Vozes; São Paulo: CEHILA, 1992.
20. ANÔNIMO. Nova, e curiosa relaçaõ de hum abuzo emendado, ou evidencias da razaõ e hum
dialogo entre hum letrado, e hum mineiro. Lisboa: Na Oficina de Francisco Borges de Sousa,
1764. Facsimile em Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira , v. 8, n. 4, 1967.
21. ibidem. p. 2-4, 7.
22. COUTINHO, José Joaquim da Cunha Azeredo. Analyse sobre a justiça do commercio do
resgate dos escravos da costa da Africa (1798). Lisboa: Na Nova Oficina de João Rodrigues
Neves, 1808. p. 73-74. O texto original em francês foi publicado em Londres, em 1798;
e em inglês, em 1807.
23. A articulação mais rigorosa dessa idéia encontra-se em MAXWELL, K. The Generation of
the 1790s...

pág.78, jan/jun 2008


R V O

24. ANÔNIMO. op cit. p. 6.


25. S o b r e a s n e g o c i a ç õ e s e a d i p l o m a c i a e n v o l v i d a s n a t r a n s f e r ê n c i a d a c o r t e , v e r
MANCHESTER, Alan K. British preeminence in Brazil, its rise and decline : a study in
European expansion (1933). Nova York: Octagon, 1964; MANCHESTER, Alan K. The transfer
of the Portuguese court to Rio de Janeiro. In: KEITH, Henry H. e EDWARDS, S. F. (eds.).
Conflict and continuity in Brazilian society. Columbia: University of South Carolina Press,
1969; ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império : questão nacional e questão colo-
nial na crise do Antigo Regime português. Porto, Portugal: Ed. Afrontamento, 1998.
26. LISBOA, José da Silva. Memória dos benefícios políticos do governo de El-Rey Nosso
Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818. p. 115.
27. ibidem. p. 68, 114. Grifo do original.
28. Arquivo Histórico do Itamaraty (Rio de Janeiro, Brasil). Heliódoro Jacinto de Araújo Car-
neiro a Tomás Antônio Vila Nova Portugal. [Londres], march 3, 1818, lata 180, maço 1.
29. Carta de lei, 16 de dezembro de 1815. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1815; SANTOS,
Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à história do Reino do Brasil (1825). Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. t. 2, p. 151.
30. Para os números dos censos contemporâneos, ver KRAAY, op cit., p. 18; KARASCH,
Mary. Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850 . Princeton, NJ: Princeton University Press,
1987. p. 61-62.
31. Correspondência anônima, e também do conde de Borba à condessa de Borba, transcri-
ta em PEREIRA, Ângelo. Os filhos de El-Rei D. João VI . Lisboa: Empresa Nacional de
Publicidade, 1946. p. 123, 140.
32. ANÔNIMO. Plano em que se dão as idéas geraes de educação e se mostra o estado em
que ella se acha no Brasil .... Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1822. p. 20.
33. SILVA, Manuel Vieira da. Reflexões sobre alguns meios propostos por mais conducentes
para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Impressão Régia,
1808. p. 18-19.
34. Paulo Fernandes Viana, intendente de polícia, citado em SCHULTZ, K. op cit. p. 122.
35. MARROCOS, Luiz Joaquim dos Santos. Cartas de Luiz Joaquim dos Santos Marrocos .
Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Ministério de Educação, 1939. p. 42.
36. Sobre os esforços da intendência em policiar os escravos, ver ALGRANTI, Leila Mezan. O
feitor ausente : estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-1822. Petrópolis:
Vozes, 1988; e SCHULTZ, K. op cit. p. 119-31.
37. Sobre petições dos escravos na corte real do Rio de Janeiro, ver SCHULTZ, K., op cit., p.
165-176.
38. Fernandes Viana, intendente de polícia, citado em SCHULTZ, K., op. cit., p. 167. Sobre
os precedentes das petições de escravos no século XVIII, ver RUSSELL-WOOD, A. J. R.
‘Acts of grace’: Portuguese monarchs and their subjects of African descent in eighteenth-
century Brazil. Journal of Latin American Studies , v. 32, n. 2, p. 307-332, maio de
2000.
39. Ver SCHULTZ, K. op cit. p. 174-75.
40. Fernandes Viana apud SCHULTZ, K. op cit. p. 122.
41. ANÔNIMO. Considerações sobre o estado de Portugal desde a sahida d’el rei de Lisboa
em 1807 até o presente. Indicando algumas providencias para a consolidação do reino
unido (1822). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , v. 26 1873. p. 183.
42. KARASCH, M. op cit. p. 239.
43. Fernandes Viana citado em SCHULTZ, K. op. cit. p. 166.
44. ROCHA, Antonio Penalves. Idéias antiescravistas da ilustração na sociedade escravista
brasileira. Revista Brasileira de História , v. 20, n. 39, p. 43-79, 2000.
45. COSTA, João Severiano Maciel da. Memória sobre a necessidade de abolir a introdução
dos escravos africanos no Brasil, sobre o modo e condições com que esta abolição se
deve fazer e sobre os meios de remediar a falta de braços que ela pode occasionar
(1821). In: SALGADO, Graça (org.). Memórias sobre a escravidão . Rio de Janeiro: Arqui-
vo Nacional, 1988. p. 15.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 61-80, jan/jun 2008 - pág.79


A C E

46. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Representação à Assembléia Geral Constituinte e
Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura. In: Escritos Políticos. São Paulo:
Ed. Obelisco, 1964. p. 51.
47. LISBOA, José da Silva op cit. p. 161, 165-66.
48. COSTA, J. S. M. op cit. p. 24-26.
49. ANDRADA E SILVA, J. B., op. cit.; LISBOA, José da S., op. cit. p. 163, 165-69; COSTA,
J. S. M. op cit. p. 23-24.
50. PORTUGAL, Tomás António de Vilanova. Sobre a questão da escravatura, n.d. [1814].
Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, MS I-32, 14, 22.
51. LISBOA, José da S. op cit. p. 163-64.
52. COSTA, J. S. M. op cit. p. 20-21.
53. ANDRADA E SILVA, J. B. op cit. p. 57-58.
54. ibidem. p. 48.
55. COSTA, J. S. M. da op cit. p. 13, 21-22. Os textos brasileiros contra a escravidão,
observa Celia Maria Marinho de Azevedo, defendiam uma percepção das divisões sociais
criadas pela escravidão em referência ao Espírito das leis, de Montesquieu. Ver AZEVE-
DO, Celia Maria Marinho de. Abolitionism in the United States and Brazil : a comparative
perspective. New York: Garland, 1995. p. 10.
56. COSTA, J. S. M. op cit. p. 20-23; LISBOA, José da S., op cit., p. 163-64; LISBOA, José
da S., Observações sobre a franqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no
Brasil (1810). In: ROCHA, Antonio Penalves (org.). José da Silva Lisboa, Visconde de
Cairu . São Paulo: Editora 34, 2001. p. 221.
57. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio, op cit., p. 49; LISBOA, José da S. Memória.... , op.
cit. p. 171; COSTA, J. S. M. op cit. p. 27.
58. SCHULTZ, K. op cit. p. 208-9.
59. COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense v. 24 (1822). In: LIMA SOBRINHO, Barbosa
(org.). Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra e Insti-
tuto Nacional do Livro, 1977. p. 606.
60. COSTA, J. S. M. op cit. p. 15; LISBOA, José da S. op cit. p. 164.
61. Deputado Montezuma, 23 de setembro de 1823, Diário da Assembléia Geral, Constituin-
te, e Legislativa do Império do Brasil , v. 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1823. p.
90. Sobre a fragilidade relativa das justificativas para a escravidão no século XIX, ver
WEINSTEIN, Barbara. The decline of the progressive planter and the rise of subaltern
agency: shifting narratives of slave emancipation in Brazil. In: JOSEPH, Gilbert (ed.).
Reclaiming the political in Latin American history : essays from the North. Durham, NC:
Duke University Press, 2001. p. 86-89.
62. TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brasileiro (1839). São Paulo: Companhia
das Letras, 2001. p. 50.

Recebido em 25/05/2007
Aprovado em 10/06/2007

pág.80, jan/jun 2008


R V O

Roberto Conduru
Professor adjunto de História e Teoria da Arte na Uerj, com atuação
nos Programas de Pós-Graduação em Artes e Educação. Membro do Comitê
Brasileiro de História da Arte, pró-cientista Faperj/Uerj e pesquisador do CNPq.

O Cativeiro na Arte
Representações oitocentistas
do comércio de escravos no Brasil

Analisando obras produzidas por The text focus on works which figures
Auguste François Biard, Jean-Baptiste slave commerce made by Auguste
Debret, Johann Moritz Rugendas, Paul François Biard, Jean-Baptiste Debret,
Harro-Harring, Thomas Ender, W. Read Johann Moritz Rugendas, Paul
e outros, no século XIX, que representam a Harro-Harring, Thomas Ender, W. Read and
comercialização de escravos, é possível refletir others, in the XIX century, to think the social
sobre alguns aspectos da condição social dos condition of Africans and Afro-descendents
africanos e afro-descendentes que foram as slaves in Brazil, the means of icono-
escravizados no Brasil, das práticas e meios de graphic representation, as well as art in that
representação, bem como da arte nessa conjuntura. social situation.
Palavras-chave: escravidão; mercado de negros; Keywords: slavery; slave market; Afro-brazility;
afro-brasilidade; arte no Brasil. Brazilian art.

“A carne mais barata do tura dos portos às nações amigas, em


mercado é a carne negra” 1 1808, o Brasil passou a ser cada vez

C
mais percorrido por portugueses e estran-
om a vinda da corte portuguesa geiros, independentes ou participantes de
para a América do Sul, o esta- missões científicas e artísticas. Além de
belecimento da capital do impé- aumentar a produção e a difusão de co-
rio português no Rio de Janeiro e a aber- nhecimentos sobre o ambiente físico e

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 81-94, jan/jun 2008 - pág.81


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cultural brasileiro, as ações e obras des- tros, no século XIX, que representam a
ses agentes resultaram muitas vezes em comercialização de escravos, é possível
curtos-circuitos sócio-culturais, dando con- refletir sobre alguns aspectos da condi-
tinuidade ao processo de expansão e ção social dos africanos e afro-descenden-
autocrítica do pensamento europeu. tes que foram escravizados no Brasil, das
práticas e meios de representação, bem
Da imensa iconografia produzida por eu-
como da arte nessa conjuntura.
ropeus e nativos, artistas, cientistas e
amadores, integrantes ou não das mis-
Selecionar as imagens não por autoria ou
sões, uma boa parte dedica-se a repre-
sentar aspectos da presença de africa- data de produção, mas agrupá-las em um
conjunto delineado a partir de um tema,
nos e afro-descendentes no Brasil. Nes-
é constituir uma série que sugere a exis-
se grupo também vasto de imagens so-
bressai um tema: a escravidão. Permea- tência de um tipo específico em meio à
variada tipologia imagética relacionada à
das por saberes técnicos e artísticos pós-
afro-brasilidade. A análise dessas ima-
iluministas, as representações das práti-
cas inomináveis de servidão dos negros gens com vistas à configuração do tipo
precisa ressaltar os elementos comuns
explicitam imediatamente a tensão deri-
entre elas, que tendem a serem vistos
vada do confronto do processo de escla-
recimento supostamente em difusão na como objetivos e, portanto, capazes de
evidenciar a constância e uniformidade
ex-colônia e a manutenção de estruturas
de determinadas práticas do comércio
arcaicas no vice-reino, depois no reino
unido e, em seguida, na nova nação, du- escravista, assim como dos modos de
representá-las, pondo em questão o ca-
rante o Império – tensão que persiste na
ráter dessas obras. Entretanto, mesmo
República, ou seja, até hoje.
que almeje a fixação do tipo, a análise
Nesse subconjunto, é possível e oportu-
deve atentar aos elementos inusitados e
no destacar algumas obras que represen-
detalhes excepcionais que emergem aqui
tam uma cena crucial da escravidão: o
e ali nas obras, permitindo entrever olha-
comércio de seres humanos. 2 As figura-
res mais ou menos individuais de seus
ções de africanos e afro-descendentes
autores – “Suas produções são testemu-
tratados como coisas, exibidos, postos à
nhos reveladores de seus valores mo-
venda e adquiridos como mercadorias por
rais, de suas concepções estéticas e ideo-
outros humanos também são emble-
lógicas diante da cena constrangedora da
máticas do processo de confronto dos
comercialização do homem pelo ho-
agentes da razão ocidental com os hor-
mem” 9 – e até, talvez, de maneira en-
rores contra e/ou por ela produzidos.
viesada, dos sujeitos representados. Isto
Analisando obras produzidas por Auguste faz as obras funcionarem como brechas
François Biard, Jean-Baptiste Debret,
3 4
artísticas que deixam escapar vozes su-
Johann Moritz Rugendas, 5
Paul Harro- postamente aprisionadas, sejam in-
Harring, Thomas Ender, W. Read e ou-
6 7 8
flexões na tipologia representacional ou

pág.82, jan/jun 2008


R V O

notas de resistência ao processo de as obras da série aqui configurada foram


coisificação dos seres. produzidas em momentos antecedentes
ou posteriores ao fim do tráfico de afri-
Assim, essas obras trazem consigo ten-
canos e africanas, participando, assim,
sões e limites aos ideais e às práticas de
do debate intenso e da campanha contra
emancipação da e pela arte: tanto os de-
o comércio de escravos e a própria es-
correntes de seu rebaixamento à condi-
cravidão, mas também estão conectadas
ção de registro das estruturas sociais – a
ao processo por meio do qual a arte pro-
arte como modalidade da história e das
curou constituir-se como esfera autôno-
ciências sociais, com suas realizações
ma em relação aos demais campos de
entendidas como documentos –, quanto
ação e reflexão humana.
os derivados dos confrontos com estru-
turas sociais arcaicas, violentas, os quais Além disso, tomar o tema da escravidão
podem implicar a arte como alienação para repensar os influxos e intercâmbios
e/ou como denúncia social. Isto porque culturais processados no Brasil a partir de

Interior de uma residência de ciganos.


Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresque et historique au Brésil , 1834-1839

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 81-94, jan/jun 2008 - pág.83


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1808 é um modo de contornar ao lado do outro, sentados ou deitados


efemérides. Articulando duas “datas re- em bancos que remetem o olhar contem-
dondas” – os 200 anos da vinda da corte porâneo às prateleiras dos atuais merca-
portuguesa aos 120 da assinatura da Lei dos: organizados por etnias com panos de
Áurea e à conseqüente abolição da escra- diferentes cores (amarelo e rosa), como
vatura no país –, é possível delinear refle- a atual setorização e diferenciação dos
xões anticelebrativas e críticas que dis- produtos por marcas e embalagens; vigi-
cutam a continuidade contemporânea das ados pelo cigano, como, hoje, mercadori-
relações sociais e figurações pretéritas. as, trabalhadores e consumidores são
controlados pelas câmeras de vigilância
***
de empresários abstratizados e invisíveis.
A questão central nessas obras de Biard,
Associado às comparações feitas por
Debret, Rugendas, Harro-Harring, Ender,
Debret em seu texto, sobre os ciganos
Read e outros é o comércio de seres, o
como comerciantes de escravos e cava-
que abrange, entre outros aspectos, a exi-
los,10 esse modo de representar indica cla-
bição e a avaliação das mercadorias, as-
ramente a condição entre a coisa e o ani-
sim como o cerne da atividade comerci-
mal que se atribuía aos negros naquela
al: o processo de venda e compra. Quan-
conjuntura social.
to à exposição das pessoas, o modo mais
ou menos rígido de representá-lo é um Já Ender resume a cena de sua obra à
dado a explicitar a coisificação dos se- dinâmica de venda, avaliação, compra e
res. Não menos coisificados são os hu- testemunho, com poucos personagens:
manos representados no momento de dois homens brancos negociam uma ne-
exame e aquisição por outros. gra sob a observação de um religioso.
Da mesma forma, Venda de escravo , de
Interior de uma residência de ciganos, de
autor desconhecido,11 concentra-se na
Debret, é dividida em planos: no primei-
negociação, com vendedor, comprador e
ro, uma varanda, as ciganas refestelam-
um casal de negros. A crueza sintética
se; no pátio, há negros e negras traba-
dessas imagens explicita-se verbalmen-
lhando em diferentes atividades caseiras,
te no “Recibo de compra e venda de um
um deles, inclusive, sofrendo castigo físi-
escravo de nome Benedito, de nação cri-
co; ao fundo, meio amontoados, constitu-
oulo”, 12 no qual a figura reitera de modo
indo grupos, negros para serem vendidos.
sucinto a operação de compra e venda
Se, nessa obra, Debret explicita o modo
atestada pelo documento.
de armazenamento dos negros enquanto
mercadoria, bem como suas possibilida- A segmentação descritiva feita por essas
des de uso no ambiente doméstico, em obras acerca da comercialização de ne-
Mercado da rua do Valongo , o foco é o gros – armazenar, exibir, avaliar e nego-
espaço comercial: a disposição das mer- ciar – mantém-se, internamente, na obra
cadorias e a comercialização em si. É di- de Read, que pode ser dividida em duas
reta a figuração dos negros dispostos um partes pelo eixo vertical ao centro, ten-

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do o vendedor como elo de comunicação “não é melhor?”, “quanto custa?” –, en-


entre elas: à esquerda, estão as merca- quanto outro homem, mais velho, permi-
dorias; à direita, a cena descrita no títu- te-se apalpar outra negra posta à venda.
lo – Comerciante de Minas regateando . Esta mistura é levada ao limite em Ven-
da de escravos no Rio de Janeiro , de
A cena multifocal de Rugendas – Merca-
Biard, que é um verdadeiro aglomerado
do de negros – embaralha exposição,
de coisas, animais e pessoas (vendedor,
venda e compra, pois há tanto conjuntos
negros e compradores).
de mercadorias em exposição, quanto um
provável comprador avaliando os negros A questão não é só o que essas obras
à venda, além de um subgrupo constituí- representam, mas, especialmente, como
do por um comerciante e um freguês que o fazem. Nesse sentido, importa a
discutem um possível negócio. Harro- ambiência das cenas. Em Interior de uma
Haring também prefere mostrar o ema- residência de ciganos , Debret represen-
ranhado de ações e sentidos presente na ta o cativeiro dos negros imiscuído à casa
comercialização de negros: em sua cena, dos proprietários – do outro lado do lar-
um jovem homem branco parece estar go pátio ensolarado, aberto e permeável
apresentando as qualidades de uma de ao interior da casa –, mostrando como a
suas mercadorias, uma mulher negra, a ordem aviltante perpassava o cotidiano,
uma mulher branca, que cutuca outra ne- assim como hoje estão contíguas,
gra e parece fazer perguntas – “e essa?”, naturalizadas, cenas de exploração de

Mercado de negros, Johann Moritz Rugendas, Voyage pittoresque dans le Brésil , 1835

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 81-94, jan/jun 2008 - pág.85


A C E

humanos por humanos no cotidiano de sem correntes ou outros modos de apri-


diferentes espaços (casa, trabalho, praia, sionamento, se queriam fazê-lo, ou se
futebol, samba, quermesse etc.). No tex- sabiam impossível essa idéia, devido às
to que complementa Mercado da rua do práticas de vigilância, controle e punição
Valongo , Debret retoma a contigüidade difundidas no e pelo espaço. Sob a égide
entre loja e residência dos ciganos ven- da Igreja Católica – uma cruz no topo de
dedores de escravos – “A porta aberta uma torre sineira ao longe, uma escultu-
dá para um pequeno pátio que separa o ra da Virgem Maria com o menino Jesus
armazém da moradia onde se encontram sobre o arco de entrada do recinto
a dona da casa, a cozinha e os escravos avarandado –, a escravidão segue tran-
domésticos” –, 13
corroborando a imagem qüilamente o seu curso. Nesse sentido,
de um espaço que se abre para dentro, a pequena janela gradeada, localizada na
sem escape. parede à esquerda, relembra a condição
de cárcere, contradizendo a clara
Também a cena de Read configura a loja
limpidez do espaço, configurado um pou-
adjacente ao cativeiro como um ambien-
co dinamicamente devido à ordem não
te fechado, um recinto tosco e lúgubre,
muito rígida de disposição das pessoas.
com teto baixo, janela gradeada que im-
pede o acesso à cidade e uma porta que Venda de escravo e “Recibo de compra e
conecta o espaço de comercialização ao venda de um escravo de nome Benedito,
de armazenamento – portanto sem indi- de nação crioulo” também configuram
car qualquer solução de liberdade para espaços opressores porque exíguos, in-
os negros. O espaço representado por dicados a partir dos seres e coisas pou-
Harro-Haring – confuso, com colunas e cas. Ender representa a venda de uma
arcos de diferentes alturas – também é negra com ambiência mínima, pratica-
fechado, apesar de algumas aberturas mente no vazio: apenas um pedaço de
que levam a elementos opacos, à chão é esboçado, com suaves sombras
clausura. Confusão e cerramento alcan- aquareladas que se estendem para além
çam um tom mais alto na bagunça repre- da cena. Menos que abstrair o lugar, a
sentada por Biard, na qual o espaço mal não caracterização do ambiente indica
é definido por traços tênues, que emer- como em todo e qualquer terreno a con-
gem do amontoado de coisas e seres. juntura da escravidão persistia e prospe-
rava, não se restringindo a esse ou àque-
Em forte contraste, o espaço comercial
le recinto, perpassando os espaços, as
retratado por Rugendas é claro e nada
mentes, o futuro.
enclausurado, já que três arcos desiguais
abrem a perspectiva para uma paisagem Nesses ambientes, são poucos os objetos
bucólica e deixam a luz entrar calidamen- representados, o que indica as condições
te, configurando um ambiente aberto e precárias e infames a que eram submeti-
sereno que faz perguntar se os negros dos os negros. Na aquarela de Ender, não
não poderiam escapar, posto que estão há utensílios além dos elementos que as

pág.86, jan/jun 2008


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pessoas trazem no corpo. No espaço lúgu- até permitia aos negros reunirem-se em
bre configurado por Harro-Haring, são pou- torno do fogo para cozinhar e conversar.
cas as coisas presentes – caixas, esteiras
e trouxa –, em meio às quais estão dispos- Os diversos elementos presentes na cena
tas as escravas à venda. Em Venda de es- de Biard – móveis, instrumentos musicais,
cravo e no “Recibo de compra e venda de livros, objetos e outros utensílios domés-
um escravo de nome Benedito, de nação ticos – só servem para reiterar a
crioulo”, os poucos objetos que delineiam coisificação dos negros na comer-
as cenas referem-se aos brancos, com cialização. Na casa de ciganos desenha-
negros em pé ou recostados. Na obra de da por Debret, as muitas coisas repre-
Read, os parcos objetos – mesa, cadeiras, sentadas pertencem obviamente aos pro-
livro de registros, pena, chicotes – também prietários, não havendo indícios delas no
estão relacionados aos homens brancos, espaço onde os negros esperam para se-
aos senhores, já que os negros
sentam-se diretamente no chão,
e apenas um deles parece estar
sentado em uma esteira, meio à
parte, vendo os acontecimentos,
quase fora da cena, como um
observador. Na litografia de
Rugendas, há uma mesa, duas
cadeiras, um banco, muitas es-
teiras e até um fogareiro. No
banco e nas esteiras, estão dei-
tados, sentados ou em pé os ne-
gros, embora uma negra e um
negro apareçam sentados em ca-
deiras. Ela é uma vendedora de
quitutes, provavelmente uma es-
crava ao ganho ou já alforriada,
e portanto ocupa uma situação
social diferenciada – evidencian-
do como a estratificação social
permitia certa mobilidade, que
implicava outros usos da cultura
material. O homem sentado na
cadeira parece ser mais um ne-
gro posto à venda, sugerindo um
comerciante mais humano, que
Recibo de compra e venda de um
configurava um clima ameno e escravo de nome Benedito, Rio de Janeiro, 1851

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 81-94, jan/jun 2008 - pág.87


A C E

rem vendidos. Não é muito diferente o re- gra ao ganho com vestido e xale, sinali-
cinto por ele figurado como mercado, com zando com as vestes as diferentes posi-
o cigano sentado em uma grande cadeira ções sociais dos negros, o que reapare-
com braços e espaldar adornados – uma ce em Venda de escravo, com o casal en-
“poltrona velha”, no dizer do autor –, 14 volto em pequenos pedaços de tecido e
com uma moringa e um chicote ao lado, a mulher negra com fios e outros adere-
enquanto os negros estão dispostos em ços. E nas imagens de Debret há negros
simples bancos ou no chão. Nesse espa- envoltos em panos sumários esperando
ço, contudo, destaca-se um pano pendu- a venda e negros mais paramentados nas
rado no gradil de madeira que protege o tarefas domésticas, embora quase todos
sótão, o qual “serve de dormitório aos ne- estejam seminus, em contraste com a
gros”: é amarelo, na versão aquarelada, complexidade maior dos trajes de pro-
e, portanto, poderia ser mais uma veste prietários, vendedor e comprador. A obra
classificatória dos negros, mas parece de Read também permite ver como as
pertencer menos ao lugar representado roupas eram indícios de distinções étni-
(a loja) do que ao meio de representação co-culturais: os brancos recobertos de
(a gravura). Funcionando como elemento diferentes modos, caracterizando fun-
que anima a simetria algo rígida da com- ções e posicionamentos sociais; os ne-
posição, uma voluta a quebrar o equilí- gros seminus, com panos mínimos, alguns
brio arquitetônico, essa peça de tecido com gorros. Na cena de Harro-Haring, as
denuncia uma vontade artística, expres- sombrinhas das compradoras são o ele-
siva, remetendo a obra para além do sim- mento do vestuário que acentua a oposi-
ples registro analítico-documental. ção entre os parcos trajes das negras –
torços e vestidos curtos, que provocam
Naquele processo social e nessa série de a exibição forçada de coxas e seios – e a
imagens, a indumentária não é um ele- indumentária variada e rica das brancas,
mento menor. A maioria dos negros e ne- “fidalgamente trajadas”, 15 quase total-
gras aparecem seminus, em forte con- mente recobertas com chapéus, xales,
traste com as roupas e adereços dos bolsas, babados. Na obra de Biard e no
brancos. Na obra de Ender, a mulher “Recibo de compra e venda de um escra-
cobre-se com um pano amarrado à cin- vo de nome Benedito, de nação crioulo”,
tura e ostenta um fio no pescoço, enquan- excepcionalmente, os negros aparecem
to os homens brancos têm trajes varia- vestidos, ainda que portem trajes bem
dos: diferentes calçados, calças, camisas, mais simples do que os usados por ven-
coletes, casacas, gravatas, chapéus, ben- dedores e compradores.
gala, óculos, hábito, terço. Na litografia
de Rugendas, reincide a representação O fato de mulheres e homens aparece-
dos negros seminus, envoltos com panos rem ora cobertos, ora vestidos nas ima-
de diferentes modos, alguns portando gens de Rugendas e Debret induz a acre-
fios, três com chapéus e a provável ne- ditar que a exposição dos corpos era fa-

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cultativa e, portanto, uma atitude volun- jeitos representados às proporções e po-


tária, deliberada, de pessoas apresenta- ses dos modelos acadêmicos, como na
das como seres amorais que viviam em obra de Rugendas, seja ao caracterizar
condições quase animalescas. Contudo, ao os negros quase como animais. À medida
apresentar majoritariamente seminus os que se repete na série, essa degradação
corpos negros, essas obras levam a pen- revela-se menos um dado dos seres re-
sar que a exibição do corpo era obrigató- presentados e mais um vício dos códigos
ria, fosse no real, nos acontecimentos de representação dos artistas e, portan-
registrados, ou ao menos na representa- to, da imagem que constituem do outro.
ção, nas cenas artisticamente compostas, Trata-se de uma degenerescência que aca-
de modo a constituir e reforçar a imagem ba por entranhar-se na própria auto-ima-
dos negros como seres degenerados. gem. Na obra de Read, enquanto os ne-
gros são representados com caricaturas
Tal reflexão chama a atenção para a se-
animalescas típicas, evidentemente artifi-
xualidade que perpassa muitas dessas
ciais, os brancos revelam expressões va-
cenas. Em sua economia sintética de gran-
riadas de alheamento: falso desinteresse,
de força expressiva, a imagem de Ender
afetamento, displicência, enfado – senti-
explicita como a sexualidade é latente,
mentos que denunciam o desconforto,
implícita ao exame dos corpos – dentes,
mas também a naturalização de práticas
seios, musculatura etc. – feito, em princí-
abjetas e, portanto, algumas verdades da
pio, para averiguar a saúde dos negros.
modernidade sócio-cultural em curso na
Já Harro-Haring explicita o tenso jogo se-
sociedade brasileira. Semelhante é a ima-
xual que subjaz ao comércio de escravos:
gem de alienação de uma mulher branca
desde a nudez imposta às negras amar-
na obra de Harro-Haring, a qual parece
radas e, portanto, vulneráveis às inves-
estar um pouco alheia à cena de compra
tidas, passando pela mão do jovem ven-
e venda de pessoas que presencia, como
dedor que bolina sua mercadoria enquan-
se aquilo não lhe dissesse respeito, como
to a exibe, pela sombrinha da mulher que
se ela não se beneficiasse daquele esta-
trata o corpo como objeto disponível a seu
do de coisas. Esses modos de represen-
bel-prazer, culminando no comportamen-
tação explicitam uma questão inerente a
to declaradamente lúbrico do possível
essas obras: é possível ao espectador
comprador idoso.
identificar-se nelas com alguém?
Essa estratégia de desumanização tam-
bém sobressai das representações dos No entanto, as obras não figuram os ne-
corpos negros, de seus traços, máscaras, gros apenas como coisas e quase-animais
poses, gestos, de “modo a marcar a dis- submissos, pois também falam de sua
tância entre o negro e o branco civiliza- humanidade. Embora mostrem como
do, padrão ideal de raça e cultura”. 16
Essa eram objetificados, as imagens indicam
violência é evidente, seja quando acomo- como os seres escravizados resistiam,
da as especificidades corpóreas dos su- preservavam sua condição humana. Em-

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bora lide com poucos elementos, Ender árduo viver dos negros escravizados nos
não deixa de representar o pudor e a dois lados do Atlântico. Outro, ainda, até
recusa da negra em se exibir ao possível parece entregar-se à contemplação, de-
comprador e aos demais observadores, bruçado sobre a mureta, observando a
infinitos que são os corpos e olhares que paisagem bucólica ou a vida urbana do
o papel em branco faz imaginar nessa porto que o casario e a caravela suge-
cena tão alusiva. Na representação de rem, embora também possa estar pla-
Harro-Haring, as negras também resistem nejando uma fuga, a conquista da liber-
ao jogo comercial e sexual, tentam fugir dade, o retorno à África.
à violência com a dinâmica possível a
Debret explicita a humanidade que resis-
seus corpos atados, recusando-se a as-
te ao cativeiro e extravasa essas repre-
sumir a condição de mercadoria e obje-
sentações do exótico. Assim, preocupa-
to sexual: uma mantém o corpo hirto e
se com a diversidade de reações dos
olha para o alto, altiva em relação aos
negros frente à condição de escravos,
seres que a tentam coisificar; outra vira
tanto entre as nações quanto em cada
o corpo e mira a direção oposta à mu-
uma delas, em desenho e texto, configu-
lher que a cutuca; a terceira gira o corpo
rando em imagem o que descreve ver-
o quanto pode, fugindo ao toque do ho-
balmente:
mem que a bolina.
O brasileiro discerniria pela fisionomia
os caracteres distintivos de cada um
Na cena de Rugendas, as atitudes vari-
dos negros colocados na fila à esquer-
am bastante: enquanto comerciante e
da da cena. O primeiro atormentado
freguês discutem um possível negócio, os
por coceiras e que cede à necessida-
cativos têm comportamentos variados.
de de se esfregar, é velho e sem dúvi-
Em torno de um fogareiro, estão reuni-
da sem energia; o segundo, ainda
das as mulheres, provavelmente trocan-
sadio, é mais indiferente; o terceiro é
do experiências de quando viviam em
de gênio triste; o quarto, paciente; o
regiões diversas, com suas culturas par-
quinto, apático; os dois últimos, sos-
ticulares, e foram capturadas, separadas
segados. [...] Os seis ao fundo, qua-
de seus familiares, misturadas a pesso-
se da mesma nação, são todos sus-
as de outras sociedades, vendidas e
cetíveis de fácil civilização. 17
trazidas ao Brasil, para serem novamen-
te comercializadas, separadas e mistu- Para além dos jogos de comércio e sexo,
radas de acordo com a vontade de seus que atualizam os valores dominantes na
proprietários. Alguns homens estão de estrutura social vigente, como sintetiza-
pé, sentados ou deitados sobre esteiras, do magistralmente por Ender, certas
aparentemente cordatos, à mercê do obras falam de jogos praticados pelos
destino. Três encontram-se de pé e con- seres escravizados. Na obra de Read,
versam com a vendedora de quitutes – alguns negros jogam com coisas e entre
trocam, provavelmente, experiências do si: uns são participantes, outros assisten-

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tes, agachados ou em pé, de perto ou de cena especial representada por


longe – e os brancos não parecem se Rugendas. No Mercado de negros por ele
importar com isso, se é que o notam. Os figurado, destaca-se o negro, à direita,
cativos podem estar reinventando, com que desenha sobre a parede, alheio ao
poucos elementos, a lúdica da vida, como que acontece à sua volta, enquanto al-
se quisessem preservar o ânima e esque- guns o observam, inclusive um provável
cer a cena contígua, a venda de um ne- comprador. A imagem indica um feito
gro como eles, não passivos e alienados, excepcional: sem maiores cerceamentos,
mas silenciosamente resistentes frente ao um escravo representa à luz do dia; um
seu destino social. No Mercado da rua do cativo vale-se das artes plásticas como
Valongo , de Debret, as crianças ao cen- meio de auto-representação.

A
tro também parecem jogar entre si. Essa
situação não é de todo veros-
reincidência traz a pergunta: são brinca-
símil. Primeiro, porque os de-
deiras esses jogos, práticas alienadas de
senhos no muro não condizem
divertimento infantil e adulto? Ou méto-
com os modos de representar das cultu-
dos de adivinhação característicos de
ras de onde provieram os africanos tra-
crenças e ritos religiosos que pretendi-
zidos como escravos ao Brasil. Além dis-
am interferir no processo em curso, na
so, segundo se sabe, a representação dos
vida? Isto, por sua vez, remete ao tópico
africanos e afro-descendentes era restri-
da religião, que pode ser estendido à
ta: em geral, representavam-se ou por
obra de Rugendas: é só comida ou tam-
meio dos códigos europeus, fosse incor-
bém mandinga o que fazem as mulheres
porando-os ou infiltrando seu imaginário
junto ao fogo naquele mercado de escra-
em cenas da religião católica, ou por meio
vos? Apesar de não explicitá-lo visual ou
de imagens utilizadas nas religiões de
verbalmente, Debret deixa indícios da
matrizes africanas, que praticavam mais
persistência das práticas religiosas afro-
ou menos às escondidas. A representa-
descendentes quando fala de uma “espé-
ção pública de suas vidas cotidianas na
cie de dança”: “Nesse mercado, conver-
América dependeu de mãos e olhos alhei-
tido às vezes em salão de baile por li-
os, esteve sob o controle de figuras como
cença do patrão, ouvem-se urros ritmados
Carlos Julião, Jean-Baptiste Debret,
dos negros girando sobre si próprios e
Rugendas, Thomas Ender e outros, mui-
batendo o compasso com as mãos” –, 18
tos outros, durante a escravidão, depois
embora permaneça a questão sobre es-
e, a rigor, até hoje, quando esse tipo de
ses ritos acontecerem apenas devido à
iconografia – cenas da vida exótica nos
tolerância dos comerciantes ou também
trópicos – ainda é produzida e consumida
em função da resistência dos negros.
mundo afora.

Outro modo de evidenciar humanidade, Mas podemos pensar se Rugendas não


escape e resistência à condição abjeta a pretendeu ir além do documento, da obri-
que foram submetidos os negros, é uma gação de retratar a situação imediatamen-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 81-94, jan/jun 2008 - pág.91


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te visível, ultrapassando a realidade para algo opressivo devido à profundidade rasa


representar, mais do que viu, o que sen- que comprime as figuras, a sociabilida-
tiu. Com sua gravura, ele estaria nos di- de brasileira, e não só os negros. Embo-
zendo: apesar da situação abominável, de ra seja mais arejada e equilibrada, a
todas as limitações e dores, os africanos pequena imagem que ilustra o “Recibo de
e afro-descendentes escravizados soube- compra e venda de um escravo de nome
ram resistir e preservar sua cultura artís- Benedito, de nação crioulo” também opri-
tica – não só a criação, mas também a me, por indicar a extensão infinita da
fruição estética, suas práticas e saberes, ordem escravista, como na imagem de
sua humanidade. Isso evidencia igualmen- Ender. Já Read arma a sua cena com uma
te como, na arte, a imagem transita en- perspectiva um pouco incongruente, acen-
tre realidade e ficção, entre a verdade, o tuada pelos barretes de madeira do teto,
verossímil e até, quem sabe, a mentira. com múltiplos pontos de fuga, que deter-
minam um espaço comprimido e disfor-
Tais considerações nos levam a pensar me que faz levantar uma questão: em que
na veracidade dessa série de imagens, medida a tensão na representação deri-
nos modos de representar, figurar e dar va do tema representado e não de uma
a ver. Venda de escravo tem um espaço suposta imperícia técnico-artística? Esse

Vendedor de arruda, Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresque et historique au Brésil , 1834-1839

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conflito é igualmente perceptível na má situação não poderia ser mais abjeta.


coadunação de elementos arquitetônicos, Trata-se de um adoçamento visual de
pessoas e coisas, assim como da pers- estruturas, situações e atitudes brutais,
pectiva, na obra de Harro-Haring, a qual, passível de ser conectado ao modo como,
assim, pode ser vista ao mesmo tempo atualmente, Sebastião Salgado concilia
em sentido oposto: vãos curvos e volu- em suas fotos temas aviltantes e modos
mes roliços ecoariam as voltas e giros clássicos de representação – o que indi-
dos corpos seminus das negras, denunci- ca a persistência, na arte engajada na
ando a violência sexual que domina a denúncia social, da prática de tornar o
cena e estendendo ao espaço sua resis- abjeto visualmente aceitável.
tência ao aviltamento.
Complexa é a problemática da escravi-
Se as imagens de Debret aqui tratadas dão, do comércio de humanos por huma-
parecem harmônicas em termos de deli- nos, e igualmente a da arte. Porque, em
neamento de espaços e figuras, a obra última instância, essas imagens foram
de Rugendas apresenta algumas descon- feitas para fim semelhante ao tema que
tinuidades na proporção entre as coisas retratam: serem exibidas também para
e seres representados, que contrasta avaliação, compra, mostra, juízo, aquisi-
com o tom brando com que ele configura ção – um processo sem fim –, dada a
sua cena. Sua litografia expõe com luz condição da obra de arte como merca-
suave, sem dramaticidade, uma cena do doria no processo de mercantilização de
terrível cotidiano da servidão: humanos tudo e todos em curso. Portanto, não são
vendidos por outros humanos. Embora apenas representações artísticas do ca-
tenha como pano de fundo uma paisagem tiveiro o que essas obras apresentam,
plácida e esteja situada em um espaço pois elas implicam pensar também a arte
arquitetônico equilibrado, harmonioso, a como cativeiro e a arte cativa.

N O T A S
1. YUKA, Marcelo; SEU JORGE; CAPPELLETTE, Wilson. A carne. Intérprete: Elza Soares. In:
SOARES, Elza. Do cóccix até o pescoço . São Paulo: Maianga Discos, 2002.
2. O conjunto aqui reunido expande a seleção analisada em KOSSOY, Boris; CARNEIRO,
Maria Luiza Tucci. O olhar europeu : o negro na iconografia brasileira do século XIX. São
Paulo: Edusp, 2002. p. 55-69.
3. BIARD, Auguste François. Venda de escravos no Rio de Janeiro . 11,1 x 17,2 cm. Ilustra-
ção do livro Deux anées au Brésil . Paris: Hachette, 1862. Reproduzido em AGUILAR,

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 81-94, jan/jun 2008 - pág.93


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Nelson (org.). Mostra do redescobrimento : negro de corpo e alma. São Paulo: Associa-
ção Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000. p. 271.
4. DEBRET, Jean-Baptiste. Interior de uma residência de ciganos . 1834-1839. Ilustração do
livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil . Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Edusp,
1978. p. 263. DEBRET, Jean-Baptiste. Mercado da rua do Valongo . 1834-1839. Ilustração
do livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil . op. cit. p. 259. DEBRET, Jean-Baptiste.
Loge (sic) da rua do Valongo . c. 1820-1830. Aquarela, 17,5 x 26,5 cm, MEA 0231. Repro-
duzido em CARDOSO, Rafael; BANDEIRA, Julio; SIQUEIRA, Vera Beatriz. Castro Maya cole-
cionador de Debret . São Paulo: Capivara; Rio de Janeiro: Museus Castro Maya, 2003. p.
233.
5. RUGENDAS, Johann Moritz. Mercado de negros . c. 1835. Litografia colorida à mão, 35,5
x 51,3 cm. Reproduzido em AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do redescobrimento : negro
de corpo e alma. op. cit. p. 267.
6. HARRO-HARRING, Paul. Inspeção de negras recentemente chegadas da África . 1840. Re-
produzido em KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O olhar europeu : o negro
na iconografia brasileira do século XIX. op. cit. p. 65.
7. ENDER, Thomas. Uma negra é vendida . c. 1817-1818. Aquarela e lápis, 15,5 x 16,8 cm.
Reproduzido em WAGNER, Robert; BANDEIRA, Julio. Viagem ao Brasil nas aquarelas de
Thomas Ender : 1817-1818. t. II. Petrópolis, RJ: Kapa, 2000. p. 595.
8. READ, W. Comerciante de Minas regateando . s.d. Publicado em A.P.D.G. Sketches of
Portuguese life, manners, costume and character . Londres: B. Whittaker, 1826. p. 298.
Reproduzida em KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O olhar europeu : o negro
na iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 2002. p. 59.
9. KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. op. cit. p. 55.
10. DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil . Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Edusp, 1978. p. 258.
11. Anônimo. Venda de escravo . c. 1829. Aquarela, guache e tinta ferrogálica, 18 x 23,5 cm.
Reproduzida em AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do redescobrimento : negro de corpo e
alma. op. cit. p. 271.
12. “Recibo de compra e venda de um escravo de nome Benedito, de nação crioulo”. 4/10/
1851. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Reproduzido em KOSSOY, Boris; CARNEIRO,
Maria Luiza Tucci. O olhar europeu : o negro na iconografia brasileira do século XIX. op.
cit. p. 69.
13. DEBRET, Jean-Baptiste. op. cit. p. 261.
14. ibidem. p. 260.
15. KOSSOY, Boris; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. op. cit. p. 56.
16. ibidem. p. 55.
17. DEBRET, Jean-Baptiste. op. cit. p. 260.
18. ibidem. p. 258.

Recebido em 03/01/2008
Aprovado em 27/01/2008

pág.94, jan/jun 2008


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Paulo Mugayar Kühl


Professor do Instituto de Artes da Unicamp.
Doutor em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Ópera e Celebração
Os espetáculos
da corte portuguesa no Brasil

O artigo trata dos espetáculos apresentados The article deals with opera performances
no Rio de Janeiro após a chegada da corte in Rio de Janeiro after the arrival of the
portuguesa ao Brasil. São abordados Portuguese court. It discusses aspects of
aspectos da celebração, da função do teatro celebration, the function of theater and the
e do papel dos espetáculos com música role spectacles with music had in tribute
nas homenagens à família real. O caso de O triunfo ceremonies to the royal family. It also debates the
da América é discutido em detalhes. 1 particular case of O triunfo da América .
Palavras-chave: ópera; Rio de Janeiro; corte Keywords: opera; Rio de Janeiro; Portuguese
portuguesa; século XIX. court; nineteenth century.

A
transferência da corte portu- inéditos. A criação da Imprensa Régia
guesa para o Brasil em 1808 dá igualmente um impulso, antes impos-
trouxe diversas mudanças sível, para as publicações, vindo daí
para o país e deixou um rastro de do- boa parte da documentação sobre ópe-
cumentos antes inusitados. No caso es- ra que conhecemos hoje em dia: os
pecífico da ópera e do teatro, a presen- libretos e as referências da Gazeta do
ça da família real estimulou novos es- Rio de Janeiro . Se até 1808 são pou-
petáculos e procedimentos até então cas as menções a espetáculos, a partir

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 95-112, jan/jun 2008 - pág.95


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desse momento crescem paulatinamen- como postiça ou não autêntica. Na ver-


te as informações sobre o funcionamen- dade, a presença de um teatro de ópera
to dos teatros. Contudo, até o início da italiana no Rio de Janeiro, a partir de
década de 1820, os registros das apre- 1813, nos moldes dos teatros europeus,
sentações operísticas são muito seleti- com um repertório italiano razoavelmen-
vos: praticamente só se conhecem os te atualizado, despertou, no mínimo, a
espetáculos apresentados perante a curiosidade de alguns estrangeiros e, às
família real em ocasiões de celebração, vezes, as críticas de alguns brasileiros,
que não devem ser confundidos com a pois eram infindáveis os problemas do
totalidade das produções. 2
Estas, de país em geral e da cidade do Rio de Ja-
fato, ainda são pouco conhecidas e pro- neiro em particular. Como justificar a
vavelmente continuarão assim, devido presença do teatro e os constantes sub-
à escassez de documentos. sídios que lhe eram dados? Como enten-
der a presença da “monstruosa” ópera
Um primeiro comentário deve ser feito
em um lugar que parecia não ter um tea-
sobre o repertório e sobre o que se en-
tro recitado em português merecedor de
tende por “ópera” neste contexto. Tra-
alguma atenção? A discrepância entre
dicionalmente, a palavra está associa-
aquilo que a cidade do Rio de Janeiro era
da a espetáculos inteiramente musi-
– tacanha na arquitetura segundo alguns,
cados, que, no âmbito luso-brasileiro,
suja na visão de todos, com os mais vari-
seriam mais propriamente as óperas
ados problemas – e a riqueza da produ-
italianas. Caberia ainda uma distinção
ção operística é uma constante nos es-
entre serenatas, elogios e outros gêne-
critos, sobretudo dos anos 1820. Se
ros dramáticos “menores” com música.
para outras atividades, como a criação
No presente artigo, entendemos ópera
de cursos superiores e de nível médio,
em sentido amplo, a saber, espetácu-
ou a fundação do Jardim Botânico, de
los teatrais, em italiano ou português,
uma academia de ciências e até mesmo
em que a música está presente, em sua
de belas-artes, já podia haver
totalidade ou não. O que nos interessa
estranhamento, o que dizer da ópera?
é a estrutura de tais espetáculos, que
seguem as diversas convenções poéti-
As justificativas para a presença de um
cas da ópera de matriz italiana, e a
teatro de ópera no Rio de Janeiro são
maneira como são percebidos pelo pú-
as mais variadas. A primeira, a mais
blico carioca. 3
simples, e talvez mais verdadeira, vem
Estudar a ópera da corte no Brasil, em do próprio interesse da corte portugue-
meio às mais diversas crises políticas e sa pela música e pela ópera. Assim, no
econômicas pelas quais passava o país, Brasil, o desejo de d. João era manter,
pode parecer um esforço desesperado tanto quanto possível, a seqüência de
para compreender ou justificar uma ati- apresentações de óperas que conhece-
vidade que a todo tempo se apresentava ra em Portugal. Outra justificativa, tam-

pág.96, jan/jun 2008


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bém comum, seria a necessidade de di- de um eventual progresso cultural do Bra-


versão. O preconceito moderno tende sil, mas com um papel diferente, se com-
a rejeitar a abordagem da produção cul- parado ao da Academia de Belas-Artes.
tural como divertimento, assim como a Apesar de todas as dificuldades de insta-
associação entre obras de arte e home- lação e funcionamento desta, o governo
nagem aos soberanos, mas a justifica- de d. João, e depois o de d. Pedro, preo-
tiva é totalmente plausível no contexto cupou-se em atribuir à pintura, à escultu-
da ópera nos séculos XVIII e XIX. O ra e à arquitetura um papel fundamental
constante mau humor dos teóricos com na criação da imagem do rei, da monar-
relação à ópera, sobretudo no que diz quia e do Estado de modo geral.4 A ópera
respeito a seus exageros e defeitos, é pode até ter tido função semelhante,
diretamente proporcional ao sucesso como no caso dos elogios cantados ou das
junto ao público. A ópera, espalhada ações dramáticas alegóricas com trechos
pelo mundo, era um dos espetáculos musicais. Contudo, ópera no Brasil, du-
prediletos, ao mesmo tempo em que o rante muito tempo, foi ópera italiana, em
teatro era o lugar privilegiado da vida italiano, sem um projeto governamental
em sociedade. claro para a atividade. A necessidade de
criação de uma ópera nacional só surgiu
Outra explicação estaria ligada à necessi- em um momento posterior, e talvez não
dade de uma missão civilizatória no Bra- se tenha realizado completamente. Des-
sil, mas aqui são necessárias algumas res- se modo, a ópera italiana não se insere
salvas. De fato, a ópera, enquanto espetá- em um grande projeto de construção, nem
culo teatral, poderia até participar mesmo após a Independência.

Vista da sala de espetáculos na praça do Rossio,


Jacques Étienne Victor Arago, Voyage autor du monde ..., 1824-1826

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 95-112, jan/jun 2008 - pág.97


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A posição ambígua do Teatro São João, 5 quando delas nos aproximamos, nossa
inaugurado em 1813, instituição parti- leitura e nossa escuta ainda são muito
cular que recebe a corte e suas come- balizadas por tudo o que veio depois,
morações, não ajuda a esclarecer o pa- dificultando ainda mais um exame
pel da ópera. Um dos interesses funda- aprofundado.
mentais do empresário era manter a
O período analisado tem atraído nos úl-
saúde financeira da casa, ou seja, apre-
timos anos o interesse de diversos pes-
sentar espetáculos que agradassem ao
quisadores das mais variadas áreas:
público. A comemoração no teatro po-
historiadores da arte, da política, da
deria auxiliar tal tarefa, mas o empre-
música em geral. Alguns estudos sobre
endimento não podia contar apenas com
a ópera também apareceram e, sem
a presença da família real. Conseqüen-
dúvida, a maior referência ainda é a
temente, o repertório deveria apresen-
infatigável pesquisa de Ayres de
tar alguma variedade e tocar o gosto do
Andrade sobre Francisco Manuel da
público. É igualmente difícil para um ob-
Silva. 6 O autor rastreou numerosas in-
servador moderno embrenhar-se no re-
formações sobre as mais diversas pes-
pertório apresentado no início do sécu-
soas ligadas ao mundo musical brasi-
lo XIX, pois parecemos estar em meio
leiro na primeira metade do século XIX.
a nomes de fantasmas que, aparente-
A única dificuldade para um pesquisa-
mente, produziram incansavelmente nu-
dor hoje em dia é a falta de referênci-
merosas óperas. Dentre todos, o único
as precisas sobre os documentos utili-
nome mais conhecido é o de Rossini.
zados pelo autor.
Este, contudo, ainda está muito mais
***
associado a algumas comédias, como O
barbeiro de Sevilha , ou a Cenerentola , Segundo os registros escritos, a função
enquanto, na época, sua marca mais desejada para o teatro era muito clara:
importante esteve nas óperas sérias, civilizar, educar e distrair. Já para o pú-
como Tancredi ou Semiramide . Ao me- blico em geral, pode-se supor que a fi-
nos, Rossini, nos últimos trinta anos, nalidade principal era apenas a distra-
vem sendo recuperado e estudado sis- ção e o prazer. Essa tensão entre as
tematicamente, mas o que dizer de com- recomendações de teóricos e legislado-
positores como Puccitta, Paer, Gnecco res e o público é antiga na história do
e tantos outros? E Marcos Portugal, es- teatro e das artes em geral. De um lado,
quecido, vilipendiado e desprezado? Cer- existe a tentativa de se garantir a qua-
tamente, a sombra criada pelas obras lidade dos espetáculos, que é entendi-
do compositor de Pésaro não ajudou a da como respeito a determinadas nor-
manter um interesse pelos outros no- mas artísticas e morais; de outro, há
mes. O problema é justamente este: diversos fatores que levariam à deca-
nomes. É quase impossível conhecer as dência de qualidade, especialmente o
obras desses compositores e, mesmo interesse de empresários em conquis-

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R V O

tar o público, aliado à vulgarização do lação e ao maior grau de elevação e


gosto. No Rio de Janeiro, no início do grandeza em que hoje se acha pela
século XIX, a situação não é muito dife- minha residência nela, e pela con-
rente. Não existe um comentário espe- corrência de estrangeiros e de ou-
cífico sobre a função da ópera, e sim tras pessoas que vêm das extensas
com relação ao teatro. Isso se deve em províncias de todos os meus esta-
parte à dificuldade de classificação do dos [...]. 7
espetáculo operístico e também ao pre-
conceito com relação à mistura de tex- No decreto que concede a exclusividade

to e música. ao São João, novamente a importância


da casa é citada: “Querendo que o Real
Na legislação sobre os teatros no Brasil,
Teatro de São João possa permanecer
nas primeiras décadas do século XIX, sua
com a decência e esplendor que convêm
função civilizatória é constantemente lem-
ao estado atual da cidade do Rio de Ja-
brada. No decreto de criação do Teatro
neiro”. 8 O mesmo teor marca a decisão
São João, lê-se:
que concede uma loteria ao teatro que
Fazendo-se absolutamente necessá- deve ser construído no Maranhão, “que
rio nesta capital que se erija um tea- além de servir para entretenimento ao
tro decente e proporcionado à popu- povo, pode, sendo bem dirigido, concor-

Praça do teatro, Thomas Ender,


O velho Rio de Janeiro através das gravuras de Thomas Ender , s.d.

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A C E

rer muito para a sua civilização, e para protegidos pelos governos como es-
emendar e corrigir os seus costumes: há tabelecimentos próprios para dar aos
por bem fazer-lhe mercê de poder anual- povos lícitas recreações e até saudá-
mente extrair uma loteria”. 9 veis exemplos das desastrosas con-
seqüências dos vícios, com que se
Em 1822, quando é criada a comissão
despertem em seus ânimos o amor
que deve examinar o teatro para me-
da honra e da virtude [...]. 13
lhorar seu funcionamento, afirma-se na

N
decisão:
ão se trata apenas de uma
Desejando S. A. R. o príncipe regen- concepção legal da função
te que o Teatro de São João possa dos teatros; certamente, a
continuar como dantes no seu exer- regulamentação jurídica das atividades
cício e que os habitantes desta cida- teatrais é reflexo de uma necessidade
de não sejam privados de um diver- de ordem prática, a saber, controlar a
timento que, servindo-lhes de ino- vida em sociedade em um local com
cente distração dos trabalhos da vida grandes atrativos. A justificativa
doméstica e pública, pode também civilizatória também pode ser tomada
concorrer mui eficazmente para refor- como uma proposta retórica, mas não
mar os costumes e aperfeiçoar a ci- é exatamente o caso. Desde a chegada
vilização [...]. 10 da corte portuguesa, diversas providên-

Quando, no mesmo ano, o Teatro São João cias foram tomadas para a transforma-

precisa ser socorrido por um novo conjun- ção do país em geral e da cidade do Rio

to de extrações de loterias, a justificativa de Janeiro em particular: a vinda de

é: “desejando eu proteger este estabeleci- artistas estrangeiros para formação de

mento pelos atendíveis e conhecidos moti- uma escola, a criação de museus, de

vos por que os teatros são favorecidos em um jardim botânico, de academias mili-

todas as nações civilizadas”.11 tares e de ciências, a instituição de cur-


sos variados (de primeiras letras, de
Para a criação de um teatro em Campos,
direito etc.) e outras medidas, entre
novamente uma loteria é concedida, com
elas a criação e o funcionamento do
a ressalva: “lembra [...] às autoridades
teatro. Claro, o espírito civilizador por-
competentes para se guardar a polícia
tuguês estava intimamente associado às
necessária em tais estabelecimentos,
tradições da corte e, no caso dos tea-
cujo fim deve ser for mar, e não corrom-
tros, ao pensamento moralista de de-
per os costumes”. 12 Finalmente, após o
terminados autores, tais como L. A.
incêndio no São João, a necessidade de
Muratori e L. Riccoboni. Assim, cultura
sua reconstrução é justificada da seguin-
e civilização estão, nos casos português
te maneira:
e brasileiro deste período, intimamente
Tomando em consideração que os te- ligadas à corte e seus espetáculos e a
atros são em todas as nações cultas questões morais e religiosas.

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Nem sempre, contudo, os rumos toma- Aqui, as críticas e protestos eram tanto
dos pelo teatro estariam de acordo com contra o virtuosismo vocal, como contra
as propostas apregoadas pelos teóricos. o repertório em si. Na verdade, são duas
Alguns autores da segunda metade da coisas intimamente ligadas: o repertório
década de 1820 apontavam “abusos” do favorece o estrelismo, e este, as “árias
teatro e de seu repertório. Veja-se, por intermináveis” e os “garganteados”. Note-
exemplo, uma carta de 18 de maio de se que é uma argumentação tradicional
1827 enviada ao Spectador Brasileiro : na história da crítica de ópera, revelan-
do uma insatisfação perene e talvez in-
Depois de haver lido em diversos au- solúvel. A ópera, gênero híbrido e mons-
tores que o teatro é a escola dos bons truoso, seria incapaz de cumprir a ver-
costumes, vou assiduamente às re- dadeira missão do teatro; ou melhor, a
presentações da ópera bufa e baile ópera, como está, ou como esteve em
pantomímico, com o fim de conhe- determinados períodos, seria apenas
cer os princípios de moral que con- uma distração, um apelo infindável aos
têm os garganteados de um castrati prazeres do ouvido, sem regras próprias.
[sic], e as piruetas da bela Heloise ; Existe na tradição da história da crítica
porém minha assiduidade não me há de ópera um saudosismo constante em
tornado melhor em costumes, ainda relação a períodos “áureos”, como o dos
que me persuado haver muito pioneiros do final do século XVI e início
ganhado, debaixo de outros pontos do XVII, ou ainda os do início do século
de vista: com efeito vim a saber o XVIII, ou de Gluck e suas reformas. Con-
que é rabo de gato , pulo de tatu , tudo, justamente esses compositores e
passo de zéfiro etc., e concebi ad- suas obras não tiveram exatamente um
miração pelas árias de música italia- grande sucesso perante o público. Ou
na que jamais acabam. É verdade que seja, existe uma antinomia incontestável
a minha admiração teve por muitas entre o público ignorante e as obras de
vezes de sustentar terríveis choques, qualidade. Não parece ser esse o caso
quer por causa dos cantores e do Rio de Janeiro no período estudado.
cantarinas que de vez em quando dei- Aparentemente, diante dos registros exis-
xam escapar notas discordantes de tentes, o teatro desempenhava sua fun-
seu peito palpitante e enfraquecido, ção recreativa com brilhantura. Quanto
quer por causa de uma multidão de à função educativa, a ópera parecia es-
objetos chocantes postos debaixo tar liberada de tal fardo, ao menos nes-
dos meus olhos, quer enfim por cau- se momento.
sa das comodidades que, bem como
os mais apaixonados, estimo encon- Devemos ter em mente que os espetá-
trar em um lugar de reunião pública, culos, sobretudo aqueles em homena-
onde vou procurar horas de recreio gem à família real, eram maiores que
e de descanso. 14 uma representação teatral. Em diversos

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relatos, percebemos que grande parte camente relacionada a comemorações,


da cidade do Rio de Janeiro envolvia-se no entanto, o fato de a Euridice de Peri
nas festividades mais elaboradas: edi- e Caccini ter sido apresentada como par-
fícios eram decorados, iluminavam-se te das comemorações do casamento de
os principais monumentos e ruas, retra- Henrique IV e Maria de Médicis não pa-
tos dos soberanos eram expostos, pro- rece incomodar os historiadores, ainda
cissões eram realizadas, bandas e pe- que toda a estrutura do mito antigo te-
quenas orquestras tocavam, as missas nha sido transformada especialmente
solenes possuíam música, poemas eram para a ocasião.
recitados ou escritos especialmente
A homenagem ao rei era uma obrigação
para a ocasião, os navios ancorados
dos poetas, não só por necessidade de
davam salvas com tiros de canhão. É
sobreviver ou por subserviência: o rei é
importante enumerar esses detalhes
o representante da pátria e por isso deve
para entendermos o funcionamento do
ser homenageado, e o panegírico repre-
espetáculo em si e sua íntima relação
senta a gratidão, não a tentativa de se
com a homenagem.
conseguir algo. Como afirma Ruedas de
la Serna a respeito da relação entre po-
É difícil para a mentalidade contempo-
etas árcades e o poder real, “Uma das
rânea aceitar, e às vezes até mesmo to-
funções da Arcádia era, por isso, a de
lerar, a promiscuidade entre a produção
formar grandes oradores, panegiristas
artística e o poder político. Entretanto,
que, dominando os segredos da eloqüên-
a maior parte da história das artes este-
cia, fossem capazes de ‘comover, arre-
ve, e às vezes continua, profundamente
batar e persuadir’ as pessoas, a fim de
associada a uma determinada classe e
contribuir para o engrandecimento da
ao poder. Mas ainda nos causa grande
monarquia portuguesa”. 15
estranhamento ler os diversos poemas,
O próprio Garção, em sua Oração ter-
libretos e textos em geral escritos em
ceira (4 de março de 1763), 16 lembra-
homenagem aos reis, rainhas, príncipes,
va que uma das funções dos poetas era
princesas e demais “grandes do reino”.
eternizar a ação dos bons reis e que os
Aliás, o esquecimento em que se encon-
árcades deveriam lançar-se à emprei-
tra boa parte da produção de óperas e
tada de criar poesias para d. José, so-
serenatas no Brasil é fruto dessa mes-
bretudo porque era um rei digno de tal
ma dificuldade. É estranho notar, mes-
homenagem.
mo com os usuais problemas de defini-
ção de gênero dramático, como parcela Se [a] nós para louvarmos o nosso
significativa da bibliografia sobre o as- soberano nos fosse preciso tecer elo-
sunto desconsidera a produção dos “pró- gios mentirosos, invectivas contra os
logos dramáticos” e outras obras do gê- vícios, seria justo o nosso receio.
nero apresentadas no Brasil. A história Mas cantar as virtudes verdadeiras,
da ópera italiana também está intrinse- ações notoriamente grandes; efeitos

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de clemência, da justiça, da genero- música, serviram como prólogo a obras


sidade, não pode deixar de ser uma mais longas (não é certa a presença da
ação bem aceita daquele ânimo jus- música), seguidas pela exibição dos re-
to, que não costuma deixar a virtude tratos dos homenageados, com a clara
sem prêmio. 17 proposta de tornar presentes os ausen-
tes, e pelos cantos de louvor.
Feitas essas ressalvas, é possível então
examinar o conjunto dos espetáculos no Os dias de comemoração no Rio de Ja-
contexto das homenagens. Dentro do pró- neiro também eram aproveitados para
prio teatro, sobretudo em alguns dias de se publicarem diversos despachos e
maior comoção pública, a seqüência e o para a concessão de graças. Note-se
conjunto das homenagens também são que, com isso, a comemoração em si
significativos: vivas aos soberanos, poe- nunca estava restrita à apresentação no
sias em comemoração à ocasião, hino teatro; como já se escreveu acima, a ce-
nacional, um elogio dramático, a ópera lebração ia desde o embelezamento da
propriamente dita, e nos intervalos apre- cidade até a publicação de despachos ofi-
sentações de dança. Nem sempre todos ciais. Se Debret reconhecia o enfado nos
os elementos estavam presentes, mas o longos elogios, lembramos que, para ou-
conjunto das festividades seguia aproxi- tros espectadores, a oportunidade de ir
madamente essa seqüência. ao teatro e ver de perto a família real

V
parecia sobrepujar qualquer defeito das
ale lembrar que, em Portugal,
apresentações. 20
já havia esse tipo de espetá-
culo, com algumas variações; Contudo, diferentemente do que acon-
às vezes, a homenagem e a comemora- tecia em Portugal no século XVIII, a
ção estavam embutidas na própria tra- ópera em si, no Brasil, mantinha suas
ma da ópera, em outros casos fora dela, características. Se nas apresentações
através de licenças finais e diversos ou- da corte em Portugal, pelo menos até a
tros recursos. 18
No Brasil, também no abertura do Teatro São Carlos, as obras
século XVIII, há exemplos de procedi- eram concebidas diretamente em fun-
mentos como esse. Os dois únicos ção da homenagem, não só com licen-
libretos do século XVIII conhecidos até ças e elogios, mas também com a es-
o momento, referentes a apresentações colha de temas que de algum modo se
no Brasil, dão uma idéia clara do que relacionavam com a ocasião celebrada,
acontecia no teatro em uma noite de no Brasil, seguindo um pouco as modi-
homenagem. Aódia e Drama , apresen- ficações ocorridas já no teatro de Lis-
tados no Pará em 1793, 19
por ocasião boa, o corpo central da ópera mantinha-
do nascimento da princesa Maria Tere- se intacto. Em Lisboa, ainda era possí-
sa, filha de d. João e d. Carlota vel encontrar exemplos de apresenta-
Joaquina, mostram-nos uma seqüência ções em que, quando a família real es-
clara da homenagem: as peças, com tava presente, o final, por exemplo, era

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mudado, para atender aos costumes da que ocorria em Portugal, onde os aniver-
corte. 21
No Brasil, pelo menos segundo sários e dias onomásticos dos consortes e
os documentos disponíveis, já se res- príncipes em geral eram todos comemora-
peitava mais a “integridade” da obra, dos com apresentações. Isso nos conduz
mas a apresentação de retratos de mem- a uma outra questão: o Teatro São João
bros da família real, mesmo quando es- funcionava como um teatro da corte ou ti-
tavam presentes, ao final dos espetá- nha as características de um teatro parti-
culos, perpetua uma antiga tradição. cular? Do ponto de vista jurídico, era um
Ainda que aqui a função não seja, ne- teatro particular, recebia subsídios do Es-
cessariamente, representar os ausen- tado, mas deveria realizar suas atividades
tes, a solenidade é mantida. 22
como qualquer outro empreendimento co-
mercial. O problema é que os dados dis-
É importante lembrar que nem todas as
poníveis sobre seu funcionamento, da inau-
datas eram celebradas no teatro, já que
guração em 1813 até por volta de 1820,
alguns aniversários eram comemorados
apontam apenas apresentações ligadas à
no palácio real, com manifestações na
corte. Certamente, houve outras apresen-
cidade. 23 O beija-mão também acontecia
tações, mas, de acordo com os documen-
ao final de diversas solenidades. As apa-
tos, tem-se a impressão de que somente a
rições no teatro aconteciam nas ocasiões
corte usava o teatro, o que é falso. Há de
mais importantes, como o aniversário do
fato uma mistura entre o domínio privado
rei, da rainha ou do príncipe herdeiro,
e o da corte, que se confunde com o pró-
mas o calendário não seguia rigidamente
prio Estado. Em Lisboa, até a inauguração
as datas. De qualquer maneira, o teatro
do Teatro São Carlos, a maior parte dos
funcionava de fato como o espaço de so-
espetáculos de ópera acontecia nos tea-
ciabilidade por excelência. Maria
tros da corte (Ajuda, Salvaterra, Queluz),
Graham, em uma passagem de seu diá-
e eram apresentações promovidas e fre-
rio, afirma: “O dia, como de costume em
qüentadas pela família real, contando tam-
qualquer ocasião de interesse público,
bém com convidados. O São Carlos era um
findou no teatro”. 24 Vale lembrar que a
teatro de particulares, freqüentado tam-
viajante inglesa esteve no Rio de Janeiro
bém pela corte; já no Rio de Janeiro, tudo
em um período de grande fervor político,
devia ocorrer no Teatro São João. Assim,
mas, segundo os testemunhos de outros
os registros de que dispomos nesse pri-
escritores, o teatro era mesmo um lugar
meiro momento dizem respeito apenas a
para a manifestação pública.
óperas e representações freqüentadas
Um dado importante para o calendário de pela corte.
apresentações no Rio de Janeiro é que as
***
óperas, pelo menos aquelas de que temos
notícia, eram apresentadas nos aniversá- Vejamos agora um caso específico, o pri-
rios da rainha, d. Maria, e de d. João (como meiro de que se tem uma documenta-
príncipe regente ou rei), diferentemente do ção razoável. Trata-se de O triunfo da

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R V O

América , com música de José Maurício ( canta )


N. Garcia e texto de Gastão Fausto da Sou como o raio
Câmara Coutinho. 25
A obra foi apresen- Baixando à terra,
tada em 13 de maio de 1810, como Farpada serra
parte das comemorações do casamen- Faço estalar.
to da princesa da Beira, d. Maria Tere- A mágoa extrema,
sa, com d. Pedro Carlos de Bourbon e Que esta alma encerra,
Bragança, e do aniversário do príncipe Exige guerra,
regente d. João. Na Gazeta do Rio de Quer-se vingar.
Janeiro do mesmo dia, nos “Avisos”, há ( vai-se ) 29
a informação de que “saiu à luz O tri-
O mesmo para a América:
unfo da América , drama que se recitou
no Real Teatro do Rio de Janeiro, com- Vai doce Gratidão, que eu já te sigo.

posto e oferecido a S. A. R. o príncipe ( canta )


A negros desgostos,
regente N. S., por d. Gastão Fausto da
Câmara Coutinho”. 26 No libreto, não há Pungentes fadigas,

indicação da data de apresentação, mas Promessas amigas


Vão hoje dar fim.
o Padre Perereca confirma a apresen-
tação do drama no dia 13 de maio. 27 A Renascem as d’oiro

Gazeta de 19 de maio, ao comentar a Idades antigas,

festa do casamento, relata: “À noite Ó príncipe abrigas

houve ópera, a que foram convidados Teus fados assim.

todos os membros do corpo diplomáti- ( vai-se ) 30

co, e coros de música debaixo das ja- A indicação dos coros nas páginas 29,
nelas do Real Palácio”. 2 8 Não há indi- 31 e 32 também indica a presença de
cação precisa quanto à obra, ao com- música no espetáculo. Em nenhum docu-
positor ou ao libretista, e a redação do mento foram encontradas referências ao
texto torna difícil a identificação do compositor, mas Cleofe Person de Mattos
local: só os coros foram apresentados indica o nome de José Maurício Nunes
sob as janelas do Real Palácio? Garcia. 31 Sérgio Dias transcreveu a parti-
Tampouco existem no libreto referên- tura do Palácio de Vila Viçosa, que indi-
cias ao compositor ou à música, mas ca ser autógrafa. 32 Jean-Baptiste Debret
no texto há indicações de alguns per- dá a seguinte informação: “As conveni-
sonagens que cantam, como a Vingan- ências políticas determinaram, em fins de
ça, com a nítida separação entre o 1810 [sic], o casamento da princesa dona
recitativo e a ária de partida: Maria Teresa, filha mais velha de d. João
VI, com o infante dom Carlos de Espanha,
[...] Tão afrontosos títulos vos movam, seu primo [...]. Houve representação de
Que eu, justa como vós, não sofro gala no teatro real e profusa iluminação
injúrias. em toda a cidade”. 33

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Trata-se do primeiro texto conhecido para dação de Roma, além de outras realiza-
teatro de autoria de Gastão Fausto da Câ- ções. Já aqui é possível pensar na vinda
mara Coutinho, depois responsável, en- da corte como o auspício de uma nova
tre outros, pelo Juramento dos Numes . 34 Roma. No encontro com a América, esta
Pelo que se depreende do conjunto de diz não querer a presença da Vingança
seus escritos, o autor estava intimamen- em suas terras, para em seguida narrar
te ligado a uma tradição calcada nas po- um estranho sonho em que, entre ou-
éticas clássicas, com especial interesse tras coisas, apareceu-lhe um deus anun-
na Ars poetica de Horácio. É igualmente ciando a chegada da corte. Novamente,
possível perceber, a partir de seus tex- a América diz que sua terra é de pure-
tos, um extenso conhecimento de varia- za, e que a Vingança não tem lugar. Em
dos autores, inclusive de libretistas e te- outra cena, surge a Gratidão narrando
óricos da ópera. O autor não escreveu seu sofrimento: ela havia escolhido a
exatamente libretos de óperas, ou pelo grande pátria das letras, a França, a
menos não teve a intenção de qualificar “nova Atenas”, como refúgio, mas lá
seus textos para o teatro com cenas de encontrou apenas regicidas. O sofrimen-
música dessa maneira. to é deixado de lado por causa da co-
memoração e da homenagem a d. João.
O triunfo da América é um drama para
O Fado ordena que a Poesia cante os
se recitar; trata-se de um “drama” por
feitos do monarca, para que nunca se-
conter ação das personagens Fado, Amé-
jam esquecidos:
rica, Vingança, Poesia, Gratidão e as Par-
cas. A ação propriamente dita é antece- Não vinga o nome dos heróis
dida por um elogio ao príncipe regente. prestantes
Uma preocupação constante em diversos Se a musa esquiva lhe denega
textos desse período era Napoleão e as encômios,
conseqüências das guerras na Europa, Se apiedada não vai no délio bosque;
como pode ser verificado nos artigos da No momento fatal que iguala os entes,
Gazeta do Rio de Janeiro . No caso do Seus feitos ilustrar, bordar seus fados
Triunfo, o “Tirano Usurpador” aparece no Com lápis diamantino, em prancha
elogio para ser contraposto à figura de de ouro;
d. João, que soube conduzir o povo lusi- Quantos, quantos heróis de glória
tano a um destino melhor. É precisamen- dignos,
te este o tema da obra: diante das atro- Antes dos Titos, antes dos Trajanos,
cidades regicidas e expansionistas dos Jazem nas sombras de perpétua noite,
franceses, a transferência da corte para Porque a musa não quis remissa e
o Brasil surge como um feito valoroso a frouxa
ser cantado. Dar-lhes renome no porvir cerrado! 35

A Vingança surge e se diz responsável A Poesia está receosa e vacila, pois


pelo fim de Tróia e pela conseqüente fun- sabe que tudo é corrompido pelo Fado.

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Este afirma que tudo mudou; a Vingan- são, na qual personagens alegóricos de-
ça quer entender o que se passou, e o cidem os destinos dos governantes e da
Fado explica: humanidade. Diferentemente das óperas
em que se busca um espelhamento en-
Os mistérios recônditos que palpo
tre as personagens, a ocasião e os ho-
Vedados aos mortais, e a ti vedados,
menageados, 39 aqui a relação é mais di-
De aparentes matizes se ataviam,
reta. O universo em que a ação se de-
Nos sorrisos do bem, o mal se en-
sencadeia é mitológico e alegórico, mas
cobre,
as citações e referências aos homenage-
Dos reveses do mal, o bem ressurge. 36
ados e criticados são nominais. Paira, nos
Assim, da grande transformação, a prin-
discursos, uma teoria do bom monarca
cípio percebida como um mal, surge a
e das boas ações do governo, sempre
possibilidade de um futuro promissor:
contrapostas aos excessos da tirania,
Daqui dentre os dois rios espaçosos cujo exemplo maior é Napoleão. São
Que não temem rivais, e os não co- igualmente lembrados, na última cena,
nhecem, os portugueses ilustres e corajosos no
Por todo o continente, e além dos combate aos franceses; novamente, tais
mares, homens são comparados a deuses da
Se mova o leme do governo luso, mitologia. Note-se que, apesar de o es-
Daqui nasça a cadeia portentosa petáculo ter sido apresentado também
De nunca ouvidas, prósperas façanhas, como homenagem a um casamento, não
Tais os meus planos são, e assim o se faz referência a isso.
ordene. 37

Na verdade, no decorrer do texto, exis-


A ordem final do Fado é que a Vingan-
te pouca ação; as falas são extremamen-
ça destrua os franceses, ao mesmo
te discursivas e a ação torna-se mais
tempo em que prevê um feliz retorno
lenta. A proposta do espetáculo é a ho-
a Portugal:
menagem: desde o início, com a citação
Tempo virá (que o Fado é competente
do trecho das Bucólicas, 40 passando pelo
Futuros revelar) em que risonho
elogio, seguindo os diversos discursos de
Volvas do Tejo às lúcidas areias;
exaltação a d. João e aos portugueses,
Lá te esperam mandando a vista aos
o objetivo é dar um sentido preciso e
mares
positivo à transferência da corte. O “tri-
Teus generosos filhos que não sabem
unfo” da América é justamente a gran-
Jamais degenerar, que de ti dignos,
de transformação e o novo início que
E apartados de ti, jamais souberam
poderia significar a presença da corte no
Riscar teu nome dos briosos peitos. 38
Rio de Janeiro. A América apresenta-se
O texto não se distancia da grande tradi- como uma terra pura, talvez inculta, uma
ção em que episódios da história recen- “selvática bruteza”, na fala da Vingan-
te são transportados a uma outra dimen- ça, mas o lugar de um novo começo. Isso

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 95-112, jan/jun 2008 - pág.107


A C E

não deve ser lido como um afago aos representando a cidade do Rio de Ja-
habitantes do Brasil ou uma consolação neiro, a esquadra portuguesa fundeada,
para os males da corte; nas diversas in- ouvindo-se a salva de tiros das fortale-
terpretações do significado da vinda dos zas, e finalmente com a exposição dos
portugueses para a colônia, sabe-se que retratos da família real.
a vontade de construir um novo império
***
com sede na América já era um plano
antigo, que, nesse novo momento, po- A ópera era um dos elementos centrais

deria ser realizado. na vida social carioca, tanto por estar


envolvida com cerimônias da corte, como
As partes musicais são a ária da Améri- por sua capacidade de atrair o público.
ca (“A negros desgostos”), o coro da Mesmo com a escassez de documentos
cena cinco (“Ó príncipe regente”) e o relativos a outras apresentações, é pos-
coro final (“Salve ditoso”). A ária da Vin- sível supor que os espetáculos de ópera
gança perdeu-se ou não foi escrita. A tinham grande repercussão junto aos
lista dos “atores” indica nomes ligados freqüentadores dos teatros cariocas. O
ao teatro recitado; 41
sabe-se, contudo, próprio fato de, após o incêndio do Tea-
que eles cantavam, e a ária da América tro São João, terem sido montadas “Aca-
indica a necessidade de uma boa can- demias de Música”, em uma sala impro-
tora. O espetáculo terminava, segundo visada nas ruínas, revela que as pessoas
a indicação do libreto, com o cenário acorriam às apresentações e, de certa

Pano de boca executado no Teatro da Corte para a coroação de d. Pedro I,


Jean-Baptiste Debret, Voyage pittoresque et historique au Brésil , 1834-1839

pág.108, jan/jun 2008


R V O

maneira, delas precisavam. Para a corte ados problemas econômicos e políticos.


portuguesa, a necessidade era patente: O controle da qualidade dos espetáculos,
desde o século XVIII, espetáculos de ópe- ou pelo menos a intenção, estava igual-
ra estiveram intimamente ligados ao ca- mente presente, e coube, em determina-
lendário da família real e, conseqüente- do momento, a Marcos Portugal. Figura
mente, do Estado português. Mesmo no curiosa do mundo operístico, o composi-
Brasil, enquanto colônia que aos poucos tor, que saiu de Portugal para a Itália,
saía de um longo período de dormência, depois retornando à terra natal, veio ao
a corte quis ver seus espetáculos repre- Brasil para nunca mais compor uma ópe-
sentados; e mais, não satisfeito com as ra. Boa parte dos documentos relativos
instalações da Casa da Ópera, d. João a todos esses assuntos desapareceu,
promove a construção de um novo tea- deixando espaço para diversas
tro. Para um observador a distância, as conjecturas e questões ainda não soluci-
contradições da empreitada parecem onadas. Sempre resta a impressão de ter
óbvias; talvez também o fossem na épo- existido mais do que conhecemos, e não
ca, mas esse quase inexplicável desejo é sem prazer que verificamos a forte pre-
de ópera italiana e de espetáculos em sença da ópera em um momento tão con-
português parecia sobrepor-se aos vari- turbado da história do Brasil.

N O T A S
1. Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a ópera da corte portuguesa no
Brasil, financiada pela Fapesp (processo nº 99/06621-8).
2. Para detalhes sobre o repertório, cf. KÜHL, Paulo Mugayar. Cronologia da ópera no Bra-
sil : século XIX (Rio de Janeiro). Campinas: Cepab-IA-Unicamp, 2003. Disponível em:
<http://www.iar.unicamp.br/cepab/opera/cronologia.pdf>. Acesso em: 4 out. 2007.
3. Os gêneros poéticos e musicais das obras de homenagem inserem-se numa
longuíssima tradição de inspiração italiana cujo modelo fundamental fora sempre
Metastasio. Quais então os critérios a serem considerados na tentativa de classifi-
car as obras? A presença de seres mitológicos? A presença da homenagem? O tama-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 95-112, jan/jun 2008 - pág.109


A C E

nho do espetáculo? O número de atos? O conteúdo alegórico? Para detalhes, cf.


JOLY, Jaques. Les fêtes théâtrales de Métastase à la cour de Vienne (1731-1767) .
Clermont-Ferrand: Faculté des Lettres et Sciences humaines de l’Université de
Clermont-Ferrand II, 1978.
4. Cf. LIMA, Valéria A. Esteves. A viagem pitoresca e histórica de Debret : por uma nova
leitura. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Unicamp, Campinas, 2003.
5. Para detalhes sobre os teatros cariocas, antes e depois da chegada da corte, cf.
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista . Rio de Janeiro: Zahar, 2004; LIMA,
Evelyn F. W. Arquitetura do espetáculo : teatros e cinemas na for mação da Praça Tiradentes
e da Cinelândia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000.
6. ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu tempo : 1808-1865, uma fase do
passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos. Rio de Janeiro: Cole-
ção Sala Cecília Meireles, 1967. Títulos recentes sobre a música no período são: GIRON,
L. Antônio. Minoridade crítica : a ópera e o teatro nos folhetins da corte. São Paulo:
Edusp; Rio de Janeiro, Ediouro, 2004; MONTEIRO, Maurício. A construção do gosto :
música e sociedade na corte do Rio de Janeiro, 1808-1821. Tese (Doutorado em Histó-
r i a ) – F a c u l d a d e d e F i l o s o f i a , L e t r a s e C i ê n c i a s H u m a n a s , U S P, S ã o P a u l o , 2 0 0 1 ;
PACHECO, Alberto J. V. Cantoria joanina : a prática vocal carioca no início do século
XIX sob influência da corte portuguesa. Tese (Doutorado em Música) – Instituto de
Artes, Unicamp, Campinas, 2007.
7. Decreto de 28/05/1810.
8. Decreto de 30/08/1817.
9. Decisão nº 41 de 13/09/1817.
10. Decisão nº 48 de 22/05/1822.
11. Decreto de 26/12/1822.
12. Decisão nº 10 de 25/01/1823.
13. Decreto de 26/08/1824.
14. Carta de leitor publicada no Spectador Brasileiro , em 18/05/1827, assinada por O Con-
seqüente.
15. RUEDAS DE LA SERNA, Jorge Antonio. Arcádia : tradição e mudança. São Paulo: Edusp,
1995. p. 19.
16. GARÇÃO, Correa. Obras poeticas e oratorias . Roma: Typographia dos Irmãos Centenari,
1888. p. 503-512.
17. GARÇÃO, Correa. op. cit. p. 509.
18. Para detalhes, cf. KÜHL, Paulo Mugayar. Os libretos de Gaetano Martinelli e a ópera de
corte em Portugal (1769-1795) . Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1998.
19. ARAGÃO E LIMA, José Eugênio de. Aódia . Drama recitado no Teatro do Pará antes da
ópera nele representada pelos auxiliares do regimento denominado da cidade em aplau-
so do fausto nascimento de Sua Alteza Real A Sereníssima Senhora d. Maria Tereza
Augusta sucessora do reino e dos domínios de Portugal. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu
Ferreira, 1794. Do mesmo autor: Drama . Recitado no Teatro do Pará ao princípio das
óperas e comédia nele postas pelo doutor juiz presidente da Câmara, e vereadores, do
ano de 1793. Em aplauso do fausto nascimento de Sua Alteza Real A Sereníssima Senho-
ra d. Maria Tereza Princesa da Beira e Presuntiva herdeira da coroa de Portugal. Lisboa:
Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1794. Ambos os textos podem ser lidos em versão
eletrônica na página <http://www.iar.unicamp.br/cepab/libretos/libretos.htm>.
20. Cf. Maria Graham, que em seu Diário manifesta a curiosidade de conhecer o príncipe e a
princesa no teatro. GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil . Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1990. p. 220-221.
2 1 . Ruders, narrando suas experiências em Lisboa, descreve seu espanto diante da mu-
dança do final na ópera Gli Orazi e i Curiazi : “A Catalani entrou nela [a tragédia] pela
primeira vez mas nessa noite estava incomodada no peito e quase sem voz. O final
da peça surpreendeu-me, embora eu soubesse que ela era dada em honra de S. A. R.
o príncipe regente. Precisamente no momento em que Marcus Horatius (Prann), no

pág.110, jan/jun 2008


R V O

auge da cólera, devia apunhalar a irmã Horatia (Catalani), apareceu a imagem do


regente de Portugal, ao fundo, num transparente, e essa aparição produziu um tal
efeito que Prann já não pôde matar a Catalani, e que Crescentini, anteriormente
assassinado por ele, surgiu em cena, juntamente com toda a companhia: atores,
atrizes, dançarinos e dançarinas, entre as quais La Hutin, representando não sei
que deusa casta, se fazia notar pelos seus longos cabelos flutuantes, que lhe che-
gavam às curvas das pernas, e que ao dançar espalhavam por todo o teatro uma
nuvem de pó. E assim, após um momento de canto e dança, entremeados de
genuflexões, caiu o pano, pondo fim a toda essa balbúrdia. / Para dar ensejo aos
demais habitantes da cidade, de ver como as coisas se passam diante da corte, ao
dia seguinte foi levado à cena o mesmo espetáculo, com a mesma soberba ilumina-
ção e o mesmo a-propósito final, só com a diferença de ser pago” (carta de 24/11/
1801). RUDERS, Carl Israel. Viagem em Portugal : 1798-1802. Lisboa: Biblioteca Na-
cional, 1981. p. 240.
22. Não se conhecem os retratos expostos. Provavelmente, eram pinturas ou desenhos rea-
lizados em tecido, uma vez que quadros a óleo deviam ser muito grandes para serem
vistos pelo público; além disso, a iluminação do teatro provocaria muitos reflexos nas
obras, dificultando ainda mais a visão.
23. A Gazeta do Rio de Janeiro , em tais ocasiões, usava um texto que mais parecia uma
fórmula: “Concorreu ao paço o corpo diplomático e grande número de pessoas das
classes mais distintas para terem a honra de cumprimentarem a SS. AA. RR. por tão
dignos motivos; pelos quais estiveram embandeiradas as fortalezas e embarcações sur-
tas neste porto, e deram as salvas de costume”.
24. GRAHAM, Maria. op. cit. p. 218.
25. O libreto pode ser lido em COUTINHO, Gastão F. da C. O triunfo da América . Rio de
Janeiro: Impressão Régia, 1810. Disponível em: <http://www.iar.unicamp.br/cepab/
libretos/triunfo.htm>. Acesso em: 4 out. 2007.
26. Gazeta do Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, 13 maio. 1810, Seção Avisos.
27. SANTOS, Luiz Gonçalves dos (Padre Perereca). Memórias para servir à história do reino
do Brasil . t. I. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. p. 255.
28. Gazeta do Rio de Janeiro , Rio de Janeiro, 19 maio 1810.
29. COUTINHO, Gastão F. da C. op cit. p. 16.
30. ibidem, p. 20.
31. Cf. MATTOS, Cleofe P. de. José Maurício Nunes Garcia : biografia. Rio de Janeiro: Minis-
tério da Cultura, 1997. p. 76.
32. In: BERNARDES, Ricardo (org.). Música no Brasil : séculos XVIII e XIX. v. III: Corte de D.
João VI. Obras profanas de José Maurício Nunes Garcia, Sigismund Ritter von Neukomm,
Marcos Portugal. Rio de Janeiro: Funarte, 2002. p. 69-89.
33. DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil . t. III. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989. p. 60.
3 4 . Enquanto não for encontrado um libreto da Ulissea , atribuído por C. P. de Mattos ao
autor, a lista de suas obras é a seguinte: Parabéns ao príncipe regente nosso senhor
e à pátria pelos presságios felizes da restauração de Portugal . Dedicados ao sereníssimo
senhor infante Almirante general pelo autor d. Gastão Fausto da Câmara Coutinho,
primeiro-tenente da Real Armada. Rio de Janeiro: Impressão Regia, 1808; O triunfo da
América . Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1810; O juramento dos Numes . Rio de
Janeiro: Impressão Régia, 1813; Resposta defensiva e analítica à censura que o reda-
tor do Patriota fez ao drama intitulado O juramento dos Numes. Rio de Janeiro:
Impressão Régia, 1813; Recenseamento ao pseudo-exame que o redator do Patriota
fez à Resposta defensiva e analítica do autor do Juramento dos Numes [...]. Rio de
Janeiro: Impressão Régia, 1814; O challe (Drama familiar em dois atos). Lisboa: Im-
pressão de Alcobia, 1823; O estalajadeiro de Milão (Drama joco-sério em três atos).
Lisboa, 1824; Leonide (Comédia famosa intitulada [...], em três atos). Lisboa: 1823;
Paráfrase da Epístola aos Pisões, comumente denominada Arte poética de Quinto
Horacio Flacco, com anotações sobre muitos lugares . Lisboa: Typographia de José
Batista Morando, 1853.
35. COUTINHO, Gastão F. da C. op cit.
36. idem.

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37. idem.
38. idem.
3 9 . C f . J O LY, J a c q u e s . U n ’ i d e o l o g i a d e l s o v r a n o v i r t u o s o . I n : D a g l ’ E l i s i a l l ’ i n f e r n o : i l
melodramma tra Italia e Francia dal 1730 al 1850. Florença: La Nuova Italia, 1990.
p. 84-94.
40. “De ti o início, a ti o fim; os cantos que encetei / a teu mandado, aceita-os; dá que em
torno às tuas têmporas / deslize, de permeio à hera, o louro da vitória”. In: VIRGÍLIO.
Bucólicas . São Paulo: Melhoramentos; Brasília: Ed. da UNB, 1982. p. 129.
41. O Fado, Domingos Botelho; A América, Joaquina Lapinha; A Vingança, Rita Feliciana; A
Poesia, Francisca de Assis; A Gratidão, Maria Cândida.

Recebido em 05/10/2007
Aprovado em 25/10/2007

pág.112, jan/jun 2008


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Karen Macknow Lisboa


Professora adjunta da Universidade
Federal de São Paulo. Doutora em História Social.

Da Expedição Científica
à Ficcionalização da Viagem
Martius e seu
romance indianista sobre o Brasil

Neste texto, discute-se a dimensão In this essay we discuss the indianismo of


indianista do romance de formação Frey the Bildungsroman Frey Apollonio, from
Apollonio, do naturalista botânico the Bavarian naturalist C. F. von Martius
alemão C. F. von Martius (escrito em 1831 (written in 1831, published in 1992).
e publicado em 1992), analisando-o Against the background of a Brazilian
no contexto da intertextualidade de autores literature early in the 19th century, we
brasileiros e franceses, no que tange às analyze the novel in regard to the dialogue
caracterizações da literatura indianista como between Brazilian and French authors
representante de uma literatura nacional about the prospect of the indianismo in
e do que era “brasileiro”. 1 literature as an example of a Brazilian
Palavras-chave: literatura de viagem; india- national literature.
nismo; romance de formação; romantismo; Keywords: travel literature; indianismo;
Carl F. von Martius. Bildungsroman; romanticism ; Carl F. von Martius.

“U
“(...) a gente quer passar m novo descobrimento do
um rio a nado, e passa; Brasil”. Com essas palavras,
mas vai dar na outra banda Sérgio Buarque de Holanda
é num ponto muito mais se refere à vinda de numerosos estran-
baixo, bem diverso do que geiros à colônia portuguesa na América
em que primeiro se do Sul após a abertura dos portos em
pensou.” Guimarães Rosa, 1808 e, conseqüentemente, a derroca-
Grande sertão : veredas da do antigo sistema colonial. São comer-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 113-130, jan/jun 2008 - pág.113


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ciantes, artistas, imigrantes, naturalistas, napoleônicas e do rearranjo do concer-


diplomatas, mercenários, educadoras, to das nações, firma-se o casamento
vindos de diferentes regiões do Velho entre os Bragança e a Casa da Áustria:
Mundo e dos EUA, que, motivados por o herdeiro do trono, d. Pedro, terá d.
diferentes objetivos, investigam minuci- Leopoldina, arquiduquesa da Áustria,
osamente o país. Essa abertura de fron-
2
como sua legítima esposa. É esse epi-
teiras inédita conferiu ao país um cará- sódio histórico, em 1817, que motiva a
ter cosmopolita, especialmente nas prin- Coroa austríaca a enviar, no séqüito de
cipais cidades portuárias, e de d. Leopoldina, um grupo de naturalis-
internacionalização, tributários dos inte- tas e estudiosos em missão científica
resses neocolonialistas das nações ao reino nos trópicos. 4
hegemônicas européias, sobretudo da
Já na Baviera, o rei Maximiliano José I,
Grã-Bretanha. 3
que era sogro de Francisco I da Áustria,
Politicamente, a inversão do status co- pai de Leopoldina, fazendo bom uso dos
lonial resulta, em 1815, na elevação do laços sangüíneos e de corte, não perde a
Brasil a Reino Unido de Portugal e oportunidade de enviar os seus súditos
Algarves, cuja sede passa a ser o Rio Carl Friedrich Phillip von Martius e Johann
de Janeiro. No contexto das negocia- Baptist von Spix com o séquito da
ções de paz na Europa pós-guerras arquiduquesa. Martius, botânico jovem e

Aves na lagoa junto ao São Francisco, J. B. Spix e K. F. Ph Von Martius, Reise in Brasilien, 1823-1831

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promissor, e Spix, experiente zoólogo, O livro narra os episódios de uma mis-


estavam incumbidos pela Real Academia são catequizadora – que malogrou –
de Ciências de Munique, sob os auspícios conduzida por Apolônio, um velho frei
do rei, de realizar uma audaciosa expe- capuchinho. Obedecendo a uma ordem
dição pelo Brasil. 5 Ao longo de três anos, superior, o experiente frei fora incumbi-
percorreram cerca de dez mil quilôme- do de catequizar os índios muras, no rio
tros, que resultaram nos fascinantes vo- Japurá. Em sua missão, Apolônio é acom-
lumes Reise in Brasilien , publicados em
6
panhado por Riccardo, um comerciante
Munique entre 1823 e 1831. No presen- de origem florentina que, além de procu-
te texto, porém, não nos deteremos a fa- rar salsaparrilha, deveria proteger o an-
lar sobre essa relevante obra, e sim so- cião. E a eles juntou-se Hartoman, o na-
bre Frey Apollonio , um romance escrito turalista alemão, alter ego de Martius,
por Martius e ambientado na Floresta cujo objetivo era estudar a natureza e a
Amazônica, por onde viajou, com Spix, população indígena.
durante nove meses.
F ICÇÃO E RELATO DE VIAGEM

C
Em 1831, quando da edição do terceiro onforme Martius escreveu em
volume da Reise in Brasilien , Martius ter- um breve prefácio assinado
minava o manuscrito de Frey Appolonio: com seu anagrama (infelizmen-
ein Roman aus Brasilien, seu primeiro e, te, incluído apenas de forma parcial na
provavelmente, único romance. Essa versão traduzida), o romance fundamen-
obra, que assina como Suitram, anagra- ta-se em acontecimentos reais. “Seus
ma do seu nome, aguardou mais de 160 personagens viveram”, revela o autor,
anos para ser editada. Em 1992, ela vem “conheci-as e tomei parte ativa de sua
a lume ao mesmo tempo na Alemanha e existência, ou então lhes ouvi narrar as
no Brasil, em versão traduzida. 7 Confor- experiências”. 9 A ação principal desen-
me o editor e tradutor, Erwin Theodor, rola-se na viagem pelo Amazonas aden-
Frey Apollonio pode ser compreendido tro, chegando até o rio Japurá – nos li-
como o “primeiro romance do Brasil, den- mites do Brasil com a atual Colômbia –,
tro e fora do país”, uma vez que este ponto mais ocidental que Martius real-
gênero, em sua forma mais apurada, te- mente pôde atingir. De fato, a figura de
ria chegado “tarde” por aqui. Esse cará- frei Apolônio aparece no volume dois de
ter pioneiro será por nós questionado Viagem pelo Brasil . Foi esse capuchinho
mais adiante. Theodor considera que o italiano que inspirou o personagem cen-
naturalista segue os cânones da literatu- tral do livro. O comerciante Riccardo, fiel
ra romântica, desvelando-se sua obra companheiro de viagem de Hartoman,
como um genuíno Bildungsroman , ou lembra o capitão Zani, experiente guia
seja, um romance de formação, tão apre- que conduziu os naturalistas Spix e
ciado na virada do século XVIII e primei- Martius na expedição pela região ama-
ras décadas do XIX. 8
zônica. E o personagem Hartoman é o

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 113-130, jan/jun 2008 - pág.115


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alter ego de Martius. Trata-se de um Em uma possível polêmica na escolha do


apelido – assim revela um diário inédito título, uma vez que ignoramos o favorito
do autor – que lhe foi conferido em uma de Martius, há uma diferença de sentido
hospedaria, quando de sua morada em entre as variantes que fazem menção ao
Munique na juventude. 10 Gregório, o ín- Brasil e as que se referem à bacia do
dio companheiro, também participou de Amazonas. Enquanto a primeira sugere
uma etapa da viagem, de 1817 a 1820. a abstração de uma territorialidade nacio-
E a índia Esperada, que morre vítima de nal e, por conseguinte, poderia ser inter-
varíola, talvez seja uma abstração da pretada como uma imagem de Brasil, a
menina miranha que, com um menino da segunda prioriza uma região geográfica
tribo dos juris, foi levada pelos natura- específica, com características próprias,
listas à Europa. Ambos morreram alguns regionais e não nacionais. Em todas as
meses depois em Munique. Já para os opções, no entanto, prevalece a indica-
personagens incas Pachacutec, 1 1 sua ção de que se trata de apontamentos de
irmã e o pai Tsomei, não há indicações viagem do naturalista Hartoman, indican-
biográficas que os relacionem diretamen- do, nesse sentido, a preocupação com a
te a Martius. verossimilhança que o autor queria em-
prestar a sua obra.
Nota-se que os personagens principais do
A TEMÁTICA DO ROMANCE

F
livro, com exceção de Gregório e Espe-
rada, não eram originários do Brasil, con- rei Apolônio é um nobre portu-
trariando a referência ao país que cons- guês cujas desgraças forçaram
ta no subtítulo da obra, como uma op- sua emigração da terra pátria,
ção do editor. Neste ponto, talvez seja resultando em uma peregrinação pelo
importante mencionar que nem Martius mundo que, de início, era laica, mas se
estava certo de como chamaria o roman- tornou religiosa. O personagem passa
ce, oscilando entre “Brasil”, ou “do Bra- por uma série de sofrimentos e prova-
sil”, como, por exemplo, Frey Apollonio, ções que o transformam, sintetizando a
Menschen und Naturgemälde : ein Roman crença no progresso da alma humana.
aus Brasilien, nach Erlebnissen und Termina seus dias dedicando-se à
Erzählungen von Carl Hartoman (ou seja, catequese de índios amazonenses.
Frei Apolônio, quadros humanos e da Riccardo é o imigrante florentino que,
natureza : um romance do Brasil, segun- marcado por inúmeras aventuras e aci-
do vivências e narrativas de Carl dentes ocorridos em solo europeu, con-
Hartoman), e a região da bacia do rio segue sua sorte no Novo Mundo.
Amazonas, como Frey Apollonio, Bilder Hartoman é o naturalista viajante ale-
vom Amazonasstrome, aus den Papieren mão cuja estadia na região amazônica é
C. Hartoman´s (Frei Apolônio, quadros do temporária, em função dos seus objeti-
rio Amazonas, segundo apontamentos de vos científicos. Tsomei e seus filhos
C. Hartoman). 12
Pachacutec e Oéli são incas – não da re-

pág.116, jan/jun 2008


R V O

gião do Amazonas para além das fron- palco de encontro e vivências inusitadas
teiras brasileiras, e sim das montanhas entre os personagens.
de Quito – que se refugiaram na solidão
Ao longo de toda a obra, o deslocamento
da selva amazônica brasileira. Lá se es-
geográfico de Hartoman conduz a narra-
tabeleceram para escapar da força des-
tiva, pontuando o tempo presente e o
truidora do colonizador europeu.
espaço físico no qual os personagens se
Há ainda um vulto misterioso (Abraham/ encontram. As longas conversas entre os
Santom) que, inexplicavelmente, surge e três principais personagens – Hartoman,
desaparece. No final da narrativa, após Apolônio e Riccardo – articulam, segun-
sua morte, revela-se aos leitores e per- do J o s é P a u l o P a e s , u m a e s t r u t u r a
sonagens que era o filho de Apolônio, dialógica de tipo platônico. 13 Nelas são
nascido nas “Arábias”. A bela índia Es- rememorados os dramas individuais de
perada, catequizada e fiel ao seu missio- cada protagonista, evocando um tempo
nário, e o índio Gregório, “companheiro passado. Amores malogrados, guerras,
de Martius”, são os únicos personagens revoluções e fugas, bem como aparições
nativos, que assumem certa relevância. sobrenaturais e coincidências misteriosas
O destino trágico de Esperada faz com mapeiam o percurso de suas vidas. Dife-
que não consiga se salvar de um surto renças religiosas (o protestantismo de
de varíola que assola a missão de Hartoman, o catolicismo de Apolônio, o
Apolônio, deixando entrever o aspecto deísmo de Riccardo, a ambigüidade do
trágico do encontro entre os europeus e credo de Abraham/Santon, o “paganismo”
a população indígena. dos índios), culturais (as diferentes ori-
gens dos personagens) e raciais reiteram
Os efeitos da colonização européia na
a concepção de um mundo cosmopolita,
América e a contradição do processo
por meio do qual o leitor migra das ma-
civilizador eurocêntrico formam o pano de
tas equatoriais ora para a Europa, ora
fundo da trama. Discutem-se as diferen-
para o Oriente, proporcionando uma di-
ças entre a Europa e o Novo Mundo, ques-
luição do espaço geográfico e temporal
tiona-se a crença na superioridade cultu-
da narrativa. Ainda segundo Paes, a li-
ral do branco, idealiza-se o ambiente na-
nha de argumentação desses diálogos não
tural dos trópicos, recorrendo ao tema da
segue linearmente das premissas às con-
lassitude do mundo europeu de cuja rea-
clusões, mas, sim, constrói-se em um vai-
lidade se deseja escapar. A paixão pela
e-vem de afirmações e contestações em
natureza selvagem e as oscilações
que se desenha um “campo de forças”
anímicas, provocadas pela percepção do
do qual Hartoman consegue extrair a sua
indivíduo como uma totalidade submeti-
lição, de acordo com os ditames de um
da a uma força misteriosa condutora dos
romance de formação. 14
destinos humanos, são projetadas na pu-
jança da mata equatorial. Esta se torna Em suma, em Frey Apollonio , nota-se a
um espaço romântico de meditações e recorrência de três assuntos: a especi-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 113-130, jan/jun 2008 - pág.117


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ficidade da natureza tropical, as tensões tar esses assuntos, sobretudo o primeiro


e oposições entre os europeus e os índi- e o segundo, em outras obras do perío-
os, e a comparação entre o Novo e o Velho do, questionando desde já o pioneirismo
Mundo. Dada a extensão dessas de Frei Apolônio, considerado por Theodor
temáticas, concentramos o presente tex- “o primeiro romance do Brasil”.15 Apoian-
to na questão indígena. do a nossa reflexão nos estudos de Anto-
nio Cândido, podemos concordar com
O CONTEXTO DA OBRA Theodor que, nessas primeiras décadas

A
ntes de avançar na análise, é do século XIX, não há um movimento lite-
preciso lembrar que essas rário no Brasil independente dos vínculos
temáticas inserem-se num con- europeus e também ex-metropolitanos.
texto maior. Ou seja, é possível perscru- Cândido advoga que a “literatura brasilei-
ra adquire consciência da sua re-
alidade – ou seja, da circunstân-
cia de ser algo diverso da portu-
guesa – depois da Independência”,
embora essa consciência emanas-
se muito mais de um desejo do que
da verificação objetiva de um es-
tado de coisas. “Com efeito, pou-
co havia nas débeis letras de en-
tão que permitisse falar em litera-
tura autônoma – seja pelas carac-
terísticas das obras, seja pelo nú-
mero reduzido de autores, seja,
principalmente, pela falta de arti-
culação palpável de obras, auto-
res e leitores de um sistema coe-
rente.”16 Esta consciência vislum-
brava a independência espiritual
dos laços com Portugal e, inspira-
da no historicismo, segundo o qual
a literatura é entendida como con-
seqüência direta dos fatores do
meio e da época, defendia a idéia
de que cada país e cada povo pos-
suía a sua própria literatura, com
características peculiares. Antonio
Cândido sugere que a grande hi-
José de Santa Rita Durão, Caramuru, 1781 pótese de trabalho dos literatos do

pág.118, jan/jun 2008


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início do século XIX, que norteia o movi- representado pela incipiente consciência
mento romântico no Brasil, seria a idéia de uma individualidade própria do colono
de que o país tem uma natureza e uma português e do índio, dotado de uma bon-
população diferentes das de Portugal e dade natural, ainda que antropófago. Foi
também uma organização política distin- justamente a sua temática indianista e
ta – sendo a literatura relativa ao meio nativista que os românticos aproveitaram,
físico e humano, ela teria que ser dife- conforme se pode acompanhar na Histoire
rente da de Portugal. “Ser bom, literaria- littéraire do francês Ferdinand Denis.19 A
mente, significava ser brasileiro; ser bra- seu ver, Caramuru seria o “grande exem-
sileiro significava incluir nas obras o que plo de literatura nacional”, independente
havia de específico do país, notadamente de suas qualidades literárias. O rebate foi
a paisagem e o aborígine. Por isso o ouvido primeiramente na França, onde, em
indianismo aparece como timbre supre- 1829, é traduzido em prosa por François
mo de brasilidade.” 17 Eugène Garayde Monglave. E logo em se-
guida, em 1830, portanto antes que
Segundo o crítico, uma das referências bá-
Martius finalizasse seu romance, dois au-
sicas da literatura romântica brasileira en-
tores de “ínfima categoria literária”, Daniel
contra-se no poema épico Caramuru, do
Gavet e Philippe Boucher, publicaram
“brasileiro” Santa Rita Durão, publicado em
Jakaré-Ouassou ou les toupinambas,20 ro-
Lisboa no ano de 1781. Para os nossos
mance diretamente ligado ao tema do
fins, vale a pena reproduzir, ainda confor-
Caramuru e considerado o “primeiro ro-
me esse autor, os elementos que caracte-
mance indianista de assunto brasileiro”.
rizam Caramuru e sua recepção nos mei-
Nele, encontram-se os elementos que ca-
os literatos europeus. Trata-se de uma epo-
racterizariam a ficção indianista brasilei-
péia religiosa, antipombalina (a civilização
ra: “índio nobre e índio vil; branco nobre
se identificava com o catolicismo e se de-
e branco vil; colonizador piedoso e coloni-
via ao catequizador, em particular o jesuí-
zador brutal; amores impossíveis entre
ta); apresenta-se uma visão grandiosa e
branca e índio; linguagem figurada e poé-
eufórica da natureza – o locus amoenos
tica, para dar o tom da mente primitiva”. 21
se encontrava por todo o país; o homem
natural, ou seja, o índio, “aparece viven-
Essa dimensão pioneira da ficção indianista
do, sob certos aspectos, num estado de
entre os autores franceses tem mais um
pureza, cuja perfeição o europeu admira,
precursor. Em 1823, Édouard Corbière
não custando ver que seus princípios mo-
publica as Élegies brésiliennes, inspiradas
rais e a conduta decorrente são uma es-
em cantos regionalistas colhidos por algum
pécie de depuração dos ideais do branco”.18
viajante (talvez o próprio Ferdinand Denis)
Em síntese, há um movimento ambíguo na no sertão da Bahia. Para Cândido, os poe-
obra, que, de um lado, simboliza a mas de Corbière formariam o “primeiro li-
lusitanização do país por meio da iniciati- vro pré-romântico a tratar o aborígine bra-
va dos portugueses e, de outro, o nativismo sileiro por certos ângulos, retomados em

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seguida por outros franceses”, como seja na prosa, ainda antes de Martius
Ferdinand Denis e os autores de Jakaré- ter publicado o seu romance “brasilei-
Ouassou. 22
E o próprio Denis, antecipando ro”. Pioneirismos à parte, o que aqui nos
as sugestões que fará em sua Histoire interessa sublinhar é o fato de que os
littéraire, publica, em 1824, as Scènes de europeus produziram obras inspiradas
la nature sous les tropiques suivies de em temáticas, por assim dizer, brasilei-
Camoens et Jose Índio. No texto, inclui um ras ou em autores brasileiros, como
episódio romanesco, “Os machakalis”, uma Santa Rita Durão. Também Martius, ho-
ficção indianista que repercutiu entre os mem erudito e que conhecia a bibliogra-
autores brasileiros. Em 1826, ao publicar fia sobre o Brasil, faz uma menção ao
a Histoire littéraire, Denis não somente poeta de Caramuru , que “cantou o des-
formula suas idéias para uma literatura cobrimento do Brasil”.24 No entanto, não
brasileira, mas também sintetiza as preo- sabemos se ele leu todos esses autores
cupações da literatura francesa contempo- franceses. Em todo caso, é notória a
rânea com a brasileira, popular, primitiva, comunhão temática que se manifesta na
medieval, cristã, sublinhando a necessida- literatura de língua francesa e alemã: a
de de que vindouros poetas e escritores exuberante natureza tropical, o
brasileiros explorassem a natureza e a indianismo e a caracterização das
temática indianista: especificidades do Brasil, ou de uma
região do Brasil, em oposição à Europa.
Que os poetas dessas regiões [Novo
No caso de Martius porém, com a parti-
Mundo] contemplem a natureza, que
cularidade de que o romance não exer-
se inspirem de sua grandeza, e em
ceu nenhum tipo de impacto na Europa,
poucos anos eles se tornarão iguais
tampouco no Brasil, por não ter sido
a nós, talvez nossos mestres (...). Que
publicado. Diferente dos autores france-
o poeta dessas belas regiões (...),
ses e dos próprios relatos de viagem e
após haver lançado um olhar compas-
do conjunto da obra científica de Martius
sivo para os séculos decorridos, ele
(em parte em co-autoria com Spix), que
a retome [a lira], e lamente as nações
tiveram ampla recepção no meio letra-
aniquiladas, excite uma piedade tar-
do brasileiro. 25
dia mas favorável aos restos das tri-
bos indígenas, e que esse povo exila- A DIMENSÃO INDIANISTA
do, diferente por sua cor e seus cos- DO ROMANCE

C
tumes, não seja esquecido nos can-
omo afirmamos anteriormente,
tos do poeta; que ele adote uma nova
nosso propósito é entender as
pátria – e ele mesmo a cante (...). 23
dimensões indianistas do ro-
Nota-se, portanto, que os assuntos “bra- mance Frei Apolônio. Conforme as suges-
sileiros” serviram de substrato igualmen- tões de José Paulo Paes, a obra toma
te aos franceses para a criação de obras forma por meio de uma estrutura
ficcionais, quer seja na poesia, quer dialógica do tipo platônico, possibilitan-

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do o confronto entre as diversas posições visão pragmática, opõem-se Hartoman e


dos personagens e o seu aprendizado. É Apolônio. Para o naturalista, o pujante
possível perscrutar um triângulo dialógico mundo natural é visto como um obstácu-
Hartoman-Riccardo-Apolônio, no qual lo para o progresso humano movido pela
cada um representa um tipo de discurso história: “a natureza, de tão viçosa, so-
diante do que os europeus devem e po- brepõe-se à história, não permitindo que
dem fazer na América: o discurso utilitá- ela reclame seus direitos, e o homem vê-
rio de Riccardo, o idealista de Hartoman se despojado de sua dignidade e relevân-
e o catequético de Apolônio. cias históricas”. Por isso, advoga que so-
mente o “verdadeiro europeu” tem condi-
Desse modo, o utilitarismo de Riccardo ções de levar a sua “pátria a todos os
sintetiza-se na opinião de que o importan- cantos, todos os mares e todas as regi-
te na irradiação da civilização no Novo ões”, impulsionado pelo seu caráter de “hu-
Mundo não é a religião cristã, como acham manidade cristã” e desta forma concor-
Apolônio e Martius, mas sim, por assim rendo para o processo civilizador. 26 Frei
dizer, os progressos tecnológicos. A essa Apolônio comunga com esta visão idealis-
ta e eurocêntrica de Hartoman,
sendo ele próprio porta-voz da mis-
são européia no Novo Mundo. Ele
estava convicto de que sua perma-
nência nas selvas do Brasil pode-
ria “surtir efeitos, capazes de be-
neficiar ainda os netos” da popu-
lação indígena. Apostava que a
“benção do cristianismo e da cul-
tura européia” somente se assegu-
raria com o convívio diário com os
“semi-selvagens”, praticando “jus-
tiça” e “amor”. 27

Riccardo entra em confronto com


o discurso catequético de
Apolônio e com a visão inicialmen-
te depreciativa que Hartoman pos-
sui acerca dos índios. No capítulo
“Selvagem”, trava-se discussão
exemplar em que as diferentes
posturas se revelam. O naturalis-
ta Hartoman, ainda muito absor-
Índio Juri, J. B. Spix e K. F. Ph von Martius,
Reise in Brasilien, 1823-1831 vido nas teses que demonstram a

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inferioridade natural dos indígenas ame- rica, nunca adversa, nem madrasta”. Vi-
ricanos, 28
defende a opinião de que eles vem afastados de todas aquelas necessi-
vivem num “desolador embotamento es- dades, “verdadeiras ou imaginárias”, de
piritual”. Em contrapartida, Riccardo pro- todos os “prazeres reais ou falsos” que
cura mostrar ao viajante que é “injusto mantêm os europeus acorrentados. E
(...) medir o caráter e a vida das pessoas reitera: “esses índios não são infelizes,
de acordo com as suas opiniões”. E consi- ou o são apenas onde nós, mais por ego-
dera ser um dever cristão reconhecer os ísmo do que por humanitarismo, resolve-
índios e não condená-los. Embora deixe mos cuidar de sua felicidade”. 30
transpirar certa tolerância, o comercian-
te não escapa de seu etnocentrismo, Riccardo traz argumentos suficientes para
focado no nítido interesse utilitarista e relativizar a pretensa felicidade do euro-
pragmático, senão explorador e peu. Polemiza igualmente com as concep-
colonialista: acredita que a Providência ções que defendem a inferioridade natu-
teria criado os índios a favor do “bran- ral dos índios e a sua ausência de
co”, do contrário não seriam tão solícitos, perfectibilidade,31 discussão na pauta do
não seriam seus fiéis remadores, não aju- dia nos círculos pensantes do século XIX.
dariam no trabalho da terra, e a própria Critica os missionários que não consegui-
viagem exploratória perderia, para am enxergar o índio como “nosso seme-
Hartoman, o seu maior atrativo, o aspec- lhante” e considera mesmo que a
to “exótico” e “bizarro”. Estas observa- catequização é supérflua, tendo em vis-
ções deixaram o naturalista aborrecido, ta que os índios, por meio de sua vida
apesar de reconhecer a sua pertinência. 29
simples e prazerosa, teriam uma “rela-
ção sagrada com o seu Criador”.32 E, com-
Em outra ocasião, a polêmica entre am- parando-os com os europeus, não os vê
bos é retomada. Martius reitera o seu como “inferiores”. Havia, na Europa,
olhar piedoso sobre os indígenas, por exemplos suficientes de ignorância e imo-
reconhecer a sua “boa índole” e, ao mes- ralidade. Acredita até ter encontrado mais
mo tempo, a sua incapacidade de sair de virtudes entre muitos desses “índios ru-
uma vida “uniforme e espiritualmente des, não iluminados por nenhum fulgor
pobre” para atingir um “estado mais ele- do Evangelho”. Indo ao encontro do que
vado da existência”. Se para Martius essa Antonio Cândido identifica como um dos
percepção evoca dor e tristeza, para elementos básicos nas ficções india-
Riccardo ela nada mais é que uma nistas, o discurso de Riccardo apresenta
constatação preconceituosa dos europeus os índios como figuras depuradas dos ide-
diante dos indígenas. No seu entender, ais brancos: neles bateria um “coração
os índios eram muito felizes, “talvez mais mais meigo, mais receptivo às verdadei-
felizes do que nós europeus, na camisa ras sensações de alegrias humanas e fa-
de força de nossa assim chamada cultu- miliares do que em muitos europeus”.
ra; felizes são no gozo de uma natureza Mais uma vez, as palavras do comercian-

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te teriam abalado a cabeça do naturalis- qualquer religião que seja”, Apolônio


ta alemão, que, a partir daquele momen- apresenta uma série de argumentos ba-
to, acreditava ser “um observador impar- seados na sua experiência de catequese
cial da vida familiar dos índios”. 33 e no conhecimento que tinha dos mitos e
das línguas indígenas, provando sua
Apesar dessa imagem idealizada dos indí-
suscetibilidade ao cristianismo. Hartoman
genas, Riccardo não rejeita a necessida-
passou, daí por diante, a enxergar os
de de “civilizar” o índio e nele incutir a
“selvagens” sob uma “luz mais amena” e
noção de propriedade e do cultivo da agri-
respeitar a “velha máxima de que ‘todos
cultura, além dos valores europeus: “nada
os homens são irmãos’ (...), vindo a en-
é mais importante do que acostumá-lo ao
carar a missão apostólica de seu amigo
desempenho das habilidades européias na
com maior confiança”. 36
conquista do seu sustento de existência”.34
Mas os trágicos acontecimentos que aco-
Hartoman também contesta as posições
metem a missão de Apolônio no Japurá
de Apolônio. O naturalista expõe de iní-
e na aldeia de Guri põem em cheque os
cio, claramente, o quanto considera os
resultados da obra catequizadora. O con-
indígenas debilitados, aduzindo sua visão
tato com os muras, razão principal da
decadentista: “a humanidade americana
missão, malogrou. E, entre os coretus, o
parece-me ser uma imensa ruína. São
número de neófitos teria aumentado ra-
restos decadentes de poderosa constru-
pidamente, até o cacique, que se
ção, erguida há tempo – há milhares de
cristianizou, ser assassinado pelo próprio
anos provavelmente –, colossal, grave e
povo, por ter sido considerado um trai-
fantástica”. Recusando qualquer possibi-
dor. Apolônio decide voltar para Guri,
lidade de superar essa degeneração, e
porém encontra a aldeia assolada pela
duvidando mesmo da eficiência da edu-
varíola, e vários índios mortos, entre eles
cação cristã, adverte: “o [que] quer que
a jovem Esperada.
tente fazer com esses homens vermelhos,
não conseguirá desenvolver nesse mate- Aos olhos de Hartoman, antes ainda de
rial humano nem nova humanidade e nem reavaliar as suas teorias decadentistas
recuperar a sua antiga e nobre civiliza- sobre os índios americanos, Esperada
ção”. 35
Apolônio, obviamente, não aceita emerge, por assim dizer, como uma es-
esta tese, querendo convencê-lo dos re- perança (o nome dela não é fortuito),
sultados positivos obtidos até aquele de um lado, no sucesso da atuação da
momento graças ao esforço das missões “humanidade cristã” na colônia e, de
religiosas. Acredita que três séculos não outro, na capacidade dos “selvagens”
foram suficientes para realizar a grande de absorver a “civilização”. Explorando
obra, por isso urge ter “paciência”. Dian- mais uma vez a temática da depuração
te da desconfiança de Hartoman de que dos ideais europeus projetados nos ín-
os índios, em verdade, não teriam “ne- dios, Esperada não somente seria mais
cessidade íntima do cristianismo, ou de bela, mas também “pura, inocente e

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diáfana, como um ser paradisíaco”. Ela Japurá “veneno, inimizade, perjúrio e


representa a perfeita imagem do “autócto- escravidão”. 39 Por isso merecem ser odi-
ne” submisso, que de bom grado aceita ados pelo seu povo.40
uma relação paternalista com o frei
Hartoman é finalmente recebido na al-
Apolônio, a ponto de admirá-lo devotamen-
deia de Tsomei. O que antes havia nota-
te . 37 A s u a a d m i r a ç ã o s e e s t e n d e a
do de especial em Pachacutec era válido
Hartoman, a quem prestou ajuda. Alfabe-
para todos os seus habitantes. Um “so-
tizada e interessada em leituras, tornou-
pro de civilização” os elevaria acima dos
se uma assistente do naturalista, “tão há-
“selvagens comuns”. A indumentária
bil quanto curiosa”. Sua adulação seria ta-
branca, os adornos de penas coloridas,
manha, que não somente queria aprender
a beleza cativante da irmã de Pachacutec
alemão, mas também que ele a levasse
– alta e clara – e as ricas plantações cul-
ao seu país, “onde tudo é bonito e maravi-
tivadas pelos habitantes da aldeia fize-
lhoso, como no paraíso”.38 Contudo, como
ram com que Hartoman se sentisse
já mencionado, Esperada não sobrevive a
“transportado a outro país”, resultado de
um surto de varíola que viceja em sua al-
mais um quadro do olhar depurado de
deia. Com ela enterram-se simbolicamen-
valores europeus: virtudes, ordem, bele-
te as esperanças dos brancos para com o
za e idealização da vida natural, porém
destino dos indígenas.
já sedentária. Tsomei revela a Hartoman

M
a sua origem – eram refugiados das mon-
as eis que no romance surge
tanhas de Quito, onde os europeus havi-
um contraponto a esse deso-
am destruído a sua cultura. 41
lado cenário: os personagens
O encontro com esses indígenas deixou
incas Tsomei e Pachacutec. Hartoman re-
profunda impressão no viajante. À noite,
fere-se a Pachacutec como sendo “um in-
ele foi acometido por terríveis visões que
divíduo excepcional, extremamente raro
recontavam a história da América. Nes-
entre a raça vermelha”. Nota sua dife-
sas imagens apareceram
rença em relação aos outros índios que
conheceu, por recusar com muito ódio (...) horríveis figuras daqueles con-
nos olhos a aguardente que Hartoman lhe quistadores, em cujas veias ardia o
oferece – tradicional meio que os bran- fogo do inferno, cujos membros fér-
cos usavam para achegar-se aos índios. reos eram capazes de debelar a pró-
E pela primeira vez desde que se encon- pria dor com a mesma indiferença
trava entre os “selvagens” sentiu medo. com que liquidavam a vida do inimi-
No primeiro diálogo entre o naturalista e go. Pizarro e Almagro e o terrível mon-
o inca, em espanhol, há uma dimensão ge de Valverde atravessaram assim
anticolonialista e antieuropéia, reiterada o mar dos cadáveres americanos em
mais tarde pelas palavras de Tsomei. estertores, e até onde alcançavam os
Pachacutec alerta Hartoman de que os olhares do jovem [Hartoman], (...)
brancos só trouxeram para os índios do em toda parte o mesmo e pungente

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quadro de destruição e morte: em vas medicinais na nossa selva, tem a


toda parte a luta do homem contra minha permissão”. 44 Que por trás das
o homem. (...) A morte havia reco- palavras ingênuas de Tsomei soa a voz
lhido aquela raça e tudo era silên- interessada do naturalista bávaro que
cio nos campos e nas florestas do viaja em missão oficial financiada pela
Novo Mundo. 42
Coroa e a Real Academia de Ciências
de Munique, não surpreende. Aqui se
A resistência indígena se cristaliza, na
defende a idéia de uma ciência
prática, quando Apolônio e Hartoman
pretensamente neutra, cujos objetivos
procuram Tsomei para lhe pedir apoio em
estariam desvinculados de interesses
sua missão “benfazeja” de levar igreja e
econômicos e (geo)políticos e que, por
escola aos muras. Este logo os adverte,
isso, pode se sobrepor à religião e es-
lembrando que não é índio de seu “reba-
tar a serviço da humanidade. Essa neu-
nho” e que ninguém de seu povo havia
tralidade, obviamente, a história já se
pedido o “estabelecimento de sua Igre-
encarregou espírito. 45
ja” naquelas paragens:

Vede bem onde estais, padre! Não vos Agora sim, aparentemente mais despren-

procurei, vós me procuraste. (...) Di- dido de seus preconceitos europeus,

rijo-me a vossos cabelos brancos, e Hartoman experiencia uma “identificação


não a vossa boca, pois a boca do afetiva” com os índios, segundo a qual
europeu enganou os vermelhos des- se fecundaria a identificação entre o eu-
de que chegou a este país. Sobre gre- ropeu e o “selvagem”. E esta poderia ser
lhas de ferro serrastes o meu sangue, a atitude básica para um olhar menos
flagelastes meu suor por vil dinheiro. eurocêntrico.46
Não pode haver sociedade entre nós. 43
No entanto, o problema da colonização e
Apolônio reconheceu que “de nada adi- o choque entre os brancos e os índios não
antava opor-se a tal energia”, mesmo se resolvem. Quando Hartoman já estava
se tentasse lhe explicar que ele, como se distanciando da costa brasileira, avista
o próprio Tsomei, pertencia aos melho- uma pequena ilha lindamente arborizada.
res de seu povo, de forma que os “pe- Ao aportar nela, encontra um lugar de “paz
cados” que os outros europeus comete- e alegria”. Hartoman faz uma criteriosa des-
ram contra os índios não deveriam crição da idílica vida que levariam esses
distanciá-los. Enfim, o malogro da mis- ilhéus. “Pela primeira vez lhe era dado ver
são era inevitável. O mesmo já não se na realidade o que até agora só conhecia
pode dizer acerca da missão científica como fábula aformoseante, como represen-
de Hartoman. Enquanto Tsomei e tação poética idealizante do paraíso”. Sua
Pachacutec recusam qualquer relação e população, entretanto, não era formada
colaboração com Apolônio, a atividade por índios puros, mas sim por mestiços de
de Hartoman não sofre qualquer obje- sangue branco que “jactavam-se de serem
ção: “esse jovem ali, que procura er- cristãos”. Voltando atrás em suas opiniões,

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o naturalista acha que “ esses seres, apa- que particularizaria a nação brasileira
rentados com os índios pelo sangue, eram em formação, corroborando o seu pro-
muito mais felizes, porque sofreram trans- cesso civilizador, em que os portugue-
formações mais profundas no espírito”. E ses ocupariam o papel de maior relevân-
aposta que esse seria o fruto de seus co- cia absorvendo os negros e indígenas. 49
rações iluminados pelo cristianismo. 47

Para concluir este breve ensaio, pode-se


Nota-se que, em Frei Apolônio , esta ima- afirmar que, em Frei Apolônio , o “timbre
gem utópica deve, por um lado, resol- supremo da brasilidade”, repetindo as pa-
ver o impasse criado pelo malogro da mis- lavras de Antonio Cândido, reside certa-
são de Apolônio e pela paulatina trans- mente na temática da natureza tropical,
formação da consciência de Hartoman que não foi o nosso objeto de análise. E
face à violência da colonização européia ele ecoa menos na idealização do índio
na América e, por outro, neutralizar ora brasileiro – e mais no idealizar de uma
o pragmatismo utilitarista, ora as opi- sociedade composta por mestiços de bran-
niões quase anticolonialistas e idealizan- cos e índios, cristianizados e europeizados.
tes acerca da bondade natural dos indí- Essa talvez seja, no contexto da literatu-
genas de Riccardo. Vale recordar que, ra romântica estrangeira sobre o Brasil,
na epopéia religiosa de Caramuru , a ci- a particularidade do romance Frei
vilização se identifica com o catolicismo Apolônio. Além disso, a dimensão
e a religião serve de “argamassa que liga indianista do romance escapa das frontei-
as partes e solve as contradições” da ras brasileiras ao introduzir a imagem
trama colonizadora. 48
Em Frei Apolônio , depurada do indígena inca. Por ser consi-
também se projeta uma resolução apoi- derado aos olhos europeus de Hartoman
ada na religião cristã, não necessaria- como culturalmente “superior” ao “selva-
mente católica, cuja eficiência, porém, gem brasileiro”, é ele o representante da
se daria graças à miscigenação entre o “raça vermelha” capaz de formular um
branco e o índio. Até que ponto esse discurso de resistência, pautado, no en-
processo de mistura racial implicaria a tanto, nos valores europeus e não de fato
sobreposição da cultura européia em indígenas. Aqui vale citar J. C. Mariategui,
detrimento da indígena não é uma ques- que, ao caracterizar a “literatura
tão relevante na paradisíaca ilha de indigenista” no Peru (que, no Brasil, Cân-
Hartoman. Já para Martius, a questão dido chama de indianista), sublinha que
da miscigenação, como se sabe, será ela não nos pode dar uma “versão rigoro-
assunto em ulteriores textos. Mais de samente realista do índio. Ela deve ideá-
uma década após o término de Frei lo e estilizá-lo. Também não pode nos dar
Apolônio , o naturalista sugere, no trata- a sua própria alma”, porque ela não é ver-
do “Como se deve escrever a história do d a d e i r a m e n t e i n d í g e n a ,50 ainda que
Brasil”, que a mistura racial entre bran- Martius tenha tentado compreender a sua
cos, índios e negros seria um fenômeno cultura por meio de observações etnoló-

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gicas. E Hartoman, no romance, aponta a civilização por meio do convívio com os


para uma possível rotação na perspectiva brancos (tese de Riccardo), ou do seu cru-
eurocêntrica em relação ao indígena. zamento com os brancos (tese de
Martius), não estava tão desprendida do
Enquanto a literatura indianista no Brasil
contexto político e das intenções de inte-
imperial, inspirada em autores europeus,
grar ou assimilar, ou exter minar o índio
foi tomando cada vez mais corpo, com a
da sociedade.
preocupação de forjar na imagem do (ex-
tinto) índio (tupi) o símbolo da brasilidade, Por fim, a dúvida de Martius acerca do
no campo da política indigenista observa- título do romance talvez fosse decorrên-
se um vácuo, um vazio que se manifesta cia de uma tensão que enxergava entre
na guerra “justa” travada contra os uma idéia de Brasil, representada pela
botucudos, considerados bugres, na Amazônia, cuja população autóctone
escravização ilegal de índios em geral e “brasileira” estaria condenada ao desa-
na morosidade para aprovar uma legisla- parecimento, e uma idéia de Amazônia,
ção que regulamentasse o funcionamento que abrigaria almas de todas as partes
dos aldeamentos. Nesse sentido, se a li- do mundo, emprestando àquela região
teratura indianista não nos pode mostrar uma dimensão internacional e cosmopo-
“a alma indígena”, a discussão acerca de lita, o que faria jus ao momento históri-
sua “perfectibilidade” e capacidade de ab- co pelo qual a antiga colônia portuguesa
sorver o cristianismo (tese de Apolônio) e na América estaria passando após 1808.

N O T A S
1. Uma versão preliminar deste estudo encontra-se em LISBOA, Karen M. A utopia da gran-
de literatura: “Frey Apollonio”, um romance do Brasil. In: MONTEIRO, John M.; BLAJ,
Ilana (orgs.). História & utopias : textos apresentados no XVII Simpósio Nacional de
História. São Paulo: ANPUH, 1996. p. 340-45. Agradeço a Enrique Amayo as sugestões
feitas a esta versão.
2. HOLANDA, Sérgio Buarque de. A herança colonial: sua desagregação. In: ____ (org.). His-
tória geral da civilização brasileira . 4. ed. t. II. v. 1. São Paulo: Difel, 1976. cap. 1. p. 13.
3. MOTA, Carlos Guilher me. Europeus no Brasil à época da Independência. In: ____ (org.).
1822 : dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 60.
4. A missão científica de d. Leopoldina contou com o botânco Emanuel Pohl, o mineralo-
g i s t a R o c h u s S c h ü c h , o n a t u r a l i s t a G i u s e p p e R a d i , o z o ó l o g o J o h a n n N a t t e r e r, o
entomologista Johann Christian Mikan, o botânico Heinrich Wilhelm Schott, o pintor
Thomas Ender, o caçador Ferdinand Wilhelm Sochor, e os desenhistas G. K. Frick, Johann
Buchberger e Franz Joseph Frühbeck.
5. Johann Baptist von Spix nasceu em 1781, em Höfstadt an der Aisch. Estudou filosofia,
teologia e medicina em Würzburg, doutorando-se em medicina e especializando-se em
zoologia. Antes de viajar ao Brasil, realizou expedições científicas na França, Itália e
Suíça. Foi membro de várias academias científicas. Morreu em 1826, seis anos após o

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retorno da viagem pelo Brasil, e não pode concluir suas pesquisas. Carl Friedrich Philipp
von Martius nasceu em 1794, em Erlangen. Estudou medicina, doutorando-se em botâ-
nica. Foi professor da Universidade de Munique e membro de várias academias cientí-
ficas, entre elas o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Além de sua mo-
numental obra botânica, escreveu textos sobre etnografia e historiografia brasileira. Ao
contrário de Spix, Martius ainda viveu muito tempo (morreu em 1868), tornando-se,
por assim dizer, um especialista sobre o Brasil, sobretudo no campo da botânica e da
etnografia indígena. Sem sombra de dúvida, a viagem pelo Brasil serviu de inesgotável
fonte para suas pesquisas e textos literários. Para mais dados sobre os autores, ver
LISBOA, Karen M. A nova Atlântida de Spix e Martius : natureza e civilização na “Viagem
pelo Brasil” (1817-1820). São Paulo: Hucitec; Fapesp, 1997.
6. SPIX, J. B.; MARTIUS, C. F. P. von. Reise in Brasilien auf befehl Sr. Majestät Maximiliam
Joseph I. Königs von Baiern in den jahren 1817-1820 . Theil 1-3 und Atlas. München;
Leipzig: M. Lindauer, I. J. Lentner, Friedrich Fleischer, 1823-1831. A versão brasileira,
Viagem pelo Brasil , foi editada em 1938, pelo IHGB, com tradução de Lúcia Furquim
Lahmeyer, e teve várias reedições.
7. MARTIUS, C. F. F. von. Frey Apollonio : ein roman aus Brasilien. Berlin: Dietrich Reimer
Verlag, 1992. A tradução: ____. Frei Apolônio : um romance do Brasil. Organização e
tradução de Erwin Theodor. São Paulo: Brasiliense, 1992. Não há razões evidentes que
expliquem por que Martius não publicou o romance. Segundo Theodor, ele corrigiu anos
mais tarde uma cópia do manuscrito, de outro punho, que talvez devesse ser encami-
nhado para alguma editora. THEODOR, Erwin. Nachwort. In: MARTIUS, C. F. F. von. op.
cit. p. 155. Vale lembrar que Martius, a essa altura da vida, já galgara razoável importân-
cia nos meios acadêmicos, o que talvez o inibisse de publicar literatura ficcional.
8. THEODOR, Erwin. Apresentação. In: MAR TIUS, C. F. F. von. op. cit. p. VI-VII.
9. MARTIUS, C. F. F. von, apud THEODOR, Erwin. Apresentação. In: MARTIUS, C. F. F. von.
op. cit. p. XI.
10. THEODOR, Erwin. op. cit. p. XIII.
11. Vale ressalvar que, na história pré-colombiana, a figura de Pachacutec ocupa um impor-
tante lugar. Como soldado e guerreiro, ampliou o poderio inca, fundando o Império
Incaico. Como imperador (de 1438 a 1471), fez uma série de reformas técnico-adminis-
trativas. O significado de seu nome deixa entrever o seu relevante papel na formação do
império: o reformador da terra. No romance, porém, não há referências diretas ao perío-
do ou à figura histórica do líder.
12. THEODOR, Erwin. Nachwort. In: MARTIUS, C. F. F. von. op. cit. p. 155-56.
13. PAES, José Paulo. Utopia e distopia nas selvas amazônicas. Nossa América , São Paulo,
n. 2, 1993. p. 59-60.
14. idem.
15. Ver nota 7.
16. CANDIDO, Antonio. Estrutura literária e função histórica. In: ____. Literatura e socieda-
de . 3. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1973. p. 169-192.
17. ibidem. p. 170-171, grifo no original.
18. ibidem. p. 176-178.
19. DENIS, Ferdinand. Resumé de l‘histoire littéraire du Portugal suivi du resumé de l‘histoire
littéraire du Brésil . Paris: Lecointe et Durey, 1826.
20. GAVET, Daniel; BOUCHER, Philippe. Jakaré-Ouassou ou les toupinambas. Paris: Chronique
Brésilienne, Timothée de Hay, 1830.
21. CANDIDO. op. cit. p. 185-188, grifo no original.
22. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira . v. I. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia,
1981. 2v. p. 282-286.
23. DENIS, Ferdinand apud HAZARD, Paul. As origens do romantismo no Brasil. Tradução
de Fernando Nery. Revista da Academia de Letras , Rio de Janeiro, v. XXV, n. 69, set.
1927. p. 31-33.
24. SPIX, J. B.; MARTIUS, C. F. P. von. Viagem pelo Brasil . v. 1. São Paulo: Edusp; Itatiaia,
1982. 3v. p. 247.

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25. Aqui vale mencionar o minucioso estudo de Flora Süssekind acerca da recepção e
transculturação da literatura de viagem européia no Brasil e a fundação de nossa litera-
tura romântica oitocentista. SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui . São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
26. MARTIUS, C. F. P. von. op. cit. p. 11.
27. ibidem. p. 67.
28. Dados os limites deste texto, não aprofundaremos as questões relativas à “irradiação das
luzes” setecentistas e à decorrente “redescoberta” da América, fomentando discussões
para sustentar a argumentação eurocêntrica de idéias detratoras sobre o continente ame-
ricano. As longas polêmicas que daí emergiram, tanto no pensamento europeu como no
americano, até o século XIX, o historiador italiano Antonello Gerbi denominou a “disputa
do Novo Mundo”. Essa disputa, a seu ver, dividiu-se em dois momentos: o primeiro lança
as teses da “debilidade” ou “imaturidade” natural do continente americano com a Histoire
naturelle, générale et particulère , do conde de Buffon. As idéias deste naturalista francês,
bem como as de seus maiores interlocutores, os abades Cornellius de Pauw e Guillaume
Raynal, alicerçam os marcos inaugurais da controvérsia, ao impor a imagem da inferiorida-
de e da debilidade da terra e do homem autóctone americano (meridional), da degradação
irreversível, como uma das “regras mais importantes desse primeiro passado humano do
Novo Mundo”, conforme reitera Michèle Duchet. Segundo Gerbi, a revisão das concepções
buffonianas, feitas por ele mesmo e por retificações do meio científico, finalizam a fase
inicial da disputa. A segunda etapa é sinalizada pela formulação de novas interpretações
da natureza e do “selvagem” americano. Enquanto a Europa impõe o seu papel de propul-
sora das Luzes ao resto do mundo, o cenário da polêmica aumenta com a independência
dos Estados Unidos, o movimento Sturm und Drang , as guerras de independência política
nas colônias hispânicas e o romantismo europeu. Nessa segunda fase, o entusiasmo de
Alexander von Humboldt pela natureza tropical do Novo Mundo opõe-se às teses detratoras
do filósofo Hegel, marcando os pólos extremos da discussão. GERBI, Antonello. La dispu-
ta del Nuevo Mundo . 1. ed. Tradução de Antonio Alatorre. México, DF: Fondo de Cultura
Económica, 1960. DUCHET, Michèle. Antropologia y historia en el siglo de las luces. Tra-
dução de Francisco Gonzalez Aramburo. México, DF: Siglo Vientiuno, 1975. p. 179. Para
mais detalhes sobre as idéias de Spix e Martius no contexto da polêmica sobre o Novo
Mundo, ver LISBOA, Karen. op. cit.
29. MARTIUS, C. F. P. von. op. cit. p. 24-25.
30. ibidem. p.160-164.
31. Conforme K. Heinz Kohl, coube a Rousseau a conceituação do princípio da perfectibilidade
humana. Marco distintivo entre o mundo animal e a espécie humana, a perfectibilité é
condição imprescindível para a história da humanidade. Esse princípio revela a capaci-
dade do ser humano de desenvolver, com a ajuda das condições exter nas, todas as
demais capacidades. Por outro lado, a liberdade da espécie humana em relação às impo-
sições da natureza também podem significar a perda da conquista dessas capacidades,
levando à decadência. Rousseau atribui a esse princípio um duplo significado, pois
pode ser a razão de todo bem ou mal do progresso. Nesse sentido, a história da huma-
nidade não é previsível e pode alcançar o “paraíso” ou decair na “catástrofe”. KOHL, Karl
Heinz. Entzauberter Blick . Frankfurt a/M.: Suhrkamp, 1986. p. 181 e ss. Esse conceito-
chave na teoria humanista de Rousseau perpetua-se no pensamento do século XIX, cujos
teóricos, contudo, defendiam a perfectibilidade como um “acesso ao ‘estado de civiliza-
ção’ e à ‘virtude’”. SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças . São Paulo: Companhia
das Letras, 1993. p. 44-45.
32. ibidem. p. 10.
33. ibidem. p. 160-164.
34. ibidem. p. 18.
35. Essa concepção decadentista acerca do paradeiro dos indígenas americanos Martius
advogará no tratado “Como se deve escrever a história do Brasil”. A questão da possibi-
lidade ou não de os “índios” serem civilizáveis acompanha toda a sua obra, desde o
relato de viagem até os estudo etnográficos. Martius ora aceita a idéia da perfectibilidade
dos índios, o que implicaria a sua capacidade de se civilizar por meio da educação, ora
os rebaixa à subcategoria de semi-humanos, afastando-os da espécie humana, ora os vê
condenados ao extermínio por razões naturais. Para mais detalhes, ver LISBOA, Karen M.
op. cit. p. 143-168 e MARTIUS, C. F. P. von. Como se deve escrever a história do Brasil.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , Rio de Janeiro, v. 6, n. 24, 1845,
p. 381-403.

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36. MARTIUS, C. F. P. von. op. cit. p. 91-97.


37. ibidem. p. 55.
38. ibidem. p. 85-86. Significativo nos parece o fato de que, ao contrário do ocorrido na
viagem de Spix e Martius, aqui a personagem indígena formula o desejo de sair da
floresta para conhecer a civilização. Esperada pode ser vista como uma idealização da
menina miranha, que foi embarcada à força para a Europa e cujo trágico destino é
completamente recalcado no romance.
39. Se Martius conhecia a Nueva cronica y buen gobierno , de Guaman Poma de Ayala, escri-
to nas primeiras décadas do século XVII, não sabemos. Pois somente no início do sécu-
lo XX ela é publicada para um público maior. É interessante lembrar que nela descrevem-
se a história do imperador Pachacutec (e de outros) bem como os usos e costumes
incas. Segundo a análise de Mary Luise Pratt, o texto de Guaman Poma pode ser visto
como uma “auto-etnografia”, em que o autor utilizou-se de recursos literários e lexicais
europeus e quechuas para falar sobre a própria história e cultura numa perspectiva
anticolonialista e de resistência. PRATT, Mary Luise. Os olhos do império , relatos de
viagem e transculturação. Tradução de Jézio Hernani Bonfim Gutierre. Bauru: Edusc,
1999. p. 33-35. Como já aduzido acima, a figura de Pachacutec no romance não é o
imperador, mas o nome é significativo, sobretudo se considerado um possível conheci-
mento da obra de Guaman Poma por parte de Martius.
40. MARTIUS, C. F. P. von. op. cit. p.123-131.
41. ibidem. p. 123-131.
42. ibidem. p. 132-133.
43. ibidem. p. 140-141.
44. ibidem. p. 142.
45. ibidem. p. 216.
46. Neste ponto vale lembrar a análise de Claude Lévi-Strauss, para quem J. J. Rousseau
pode ser considerado o fundador das ciências do homem e aquele que antecipou por
um século os ditames da antropologia moderna, justamente por orientar a observação
sobre a humanidade a partir de um “duplo princípio”: “o da identificação com o outro, e
mesmo com o mais ‘outro’ de todos os outros, ou seja, um animal; e o da recusa da
identificação consigo mesmo, isto é, a recusa de tudo o que pode tornar o eu ‘aceitá-
vel’”. LÉVI-STRAUSS, Claude. Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem.
Tradução de Tânia Jatobá. In: ____. Antropologia estrutural II . 3. ed. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1989. p. 47.
47. MARTIUS, C. F. P. von. op. cit. p. 217-19, grifo no original.
48. CANDIDO, Antonio. Estrutura literária e função histórica. op. cit. p. 179.
49. Para mais detalhes, ver GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópi-
cos: o IHGB e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos , Rio de Janeiro, n.
1, 1988, p. 5-27. LISBOA, Karen M. op. cit. p. 179 e ss.
50. MARIATEGUI, José Carlos. O processo da literatura. In: ____. Sete ensaios de interpreta-
ção da realidade peruana. Tradução de Salvador Obiol de Freitas et al . São Paulo: Alfa
Omega, 1975. p. 245-46.

Recebido em 10/09/2007
Aprovado em 29/09/2007

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Maria Elizabeth Brêa Monteiro


Pesquisadora do Arquivo Nacional.
Mestre em História Política pela Uerj.

Entre a Brandura
e a Força

O artigo analisa os principais diplomas This article analyses the principal legal
legais relativos às populações indígenas que diplomas related to the indigenous
vigoraram durante a presença da corte populations that were in effect during the stay
portuguesa no Brasil e reflete sobre o ideário, of the Portuguese Court in Brazil and reflects
na forma de memórias e planos, que inspirou about the ideas, expressed by memories and
ou subsidiou a formulação da legislação plans, that inspired or subsidized the formulation
indigenista nesse período. of the indigenous legislation in this period.
Palavras-chave: política indigenista; indigenismo; Keywords: indigenous politics; “indigenismo”;
legislação indigenista; século XIX. indigenous legislation; nineteenth century.

A
transferência do poder real Nesse período, os índios, como um todo,
para o Brasil, em 1808, em após esforços espontâneos ou induzidos
virtude da invasão napoleônica de ajustamento e de integração à socie-
de Portugal, promoveu, entre outras ini- dade dominante, foram relegados a um
ciativas para modernizar e europeizar a estado de marginalidade e de progressi-
colônia, a intensificação do caráter re- va diminuição populacional, tornando-se
pressivo das leis contra as populações insignificantes como entidades demográ-
indígenas. ficas ou culturais e inexistentes como

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sujeitos de direito. O inexorável proces- vadas, com a presença de índios em vá-


so de diminuição numérica dos grupos rias regiões impedindo ou dificultando a
indígenas, que levou muitos deles à expansão dessas empresas agrárias. Tra-
extinção, teve seqüência desde meados ta-se de um período dinâmico em termos
do século XVIII e por todo o XIX, chegan- de expansão das fronteiras, de incremen-
do, em meados do XX, ao seu ponto má- to das atividades econômicas e de incor-
ximo. As profundas transformações ocor- poração de novas áreas ao circuito co-
ridas no século XIX, em todos os níveis mercial, fortemente influenciado pelas
da vida do país – econômico, demográ- prescrições fisiocratas de crescimento
fico, sociocultural, político-administrativo econômico com base na agricultura, na
–, constituem, em grande medida, a ori- qualidade da força de trabalho e na ca-
gem e explicação das condições atuais pacidade de acumulação de capitais para
da feição indígena deste país. reinvestimento em atividades produtivas.

Ao tratar a problemática indígena no sé- Os problemas concernentes aos indíge-


culo XIX, é indispensável correlacionar os nas não serão eventos isolados, limita-
valores e os interesses dominantes da dos a determinados grupos, áreas ou si-
estrutura agrária do país, que começa a tuações, mas fenômenos genéricos e uni-
se desenvolver em grandes fazendas pri- versais, afetando, de uma forma ou de

Família de Botocudos.
Alcide Dessalines d'Orbigny, Voyage pittoresque dans les deux Amériques, 1836

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outra, toda ou quase toda a população efeitos vão variar entre a possibilidade
indígena remanescente, entregue à justi- de adaptação ou a eventualidade da des-
ficação da missão civilizadora que cabia truição de populações e extinção de po-
às coroas européias, tanto no plano in- vos autônomos.
terno como nos outros continentes, sub-
Na Amazônia, a escravização nas formas
metidos a uma irreversível onda de ex-
mais tradicionais – apresamento direto,
pansão colonial européia.
estímulo à guerra indígena para compra
Desde a conquista do continente ameri- de prisioneiros – continuava. Sabia-se da
cano, e em particular do território brasi- sobrexploração dos índios pelos direto-
leiro, a questão indígena se define pela res e pelos que os empregavam. Em ge-
dominação de mão-de-obra. Aldear os ral, pagava-se a eles menos do que aos
índios, reuni-los e sedentarizá-los, sob outros trabalhadores, comprava-se mais
domínio missionário ou leigo, era prática barata sua produção e lhes vendiam mais
comum desde meados do século XVI, com caras as mercadorias.
vista a abastecer os colonos de braços
Na capitania do Rio de Janeiro, a presen-
para o trabalho. O estabelecimento de
ça dos índios Coroados e Puris era a mai-
aldeamentos o mais próximo dos empre-
or ameaça à ocupação portuguesa dos
endimentos particulares ou públicos era
seus sertões, em especial no médio vale
garantia de custos menores e reserva de
do rio Paraíba. A região para onde a cria-
mão-de-obra, tornando, por conseguinte,
ção de gado ganhava impulso, dada a ne-
constantes os descimentos 1 para as regi-
cessidade crescente de abastecimento
ões a serviço da expansão econômica na
das minas de ouro, no século XVIII, e, mais
colônia.
tarde, o aumento do mercado interno de-
Ao longo da história colonial, a escravidão corrente da instalação da sede do reino,
dos índios foi abolida várias vezes. No sé- além da circulação de produtos agrícolas
culo XVIII, o Diretório Pombalino (1755- como fumo, farinha de mandioca, charque,
1798) se configurou como a expressão toucinho, fumo, usados na troca mercan-
mais clara e favorável à liberdade dos ín- til intercolonial e atlântica, sofre transfor-
dios. Todavia, declarada ou disfarçada, a mações significativas com a montagem de
escravidão indígena perdurou até pelos fazendas de café e a ampliação da produ-
menos meados do século XIX. ção açucareira de Campos.2

Nessa perspectiva, quanto mais distan- No século XIX, ocorre uma mudança no
tes dos centros de produção e exporta- caráter da questão indígena, que passa
ção, menos intensa a economia, mais a ser identificada, com maior intensida-
rarefeita a população colonial e mais “sel- de, com a posse, ocupação e disputa de
vagens” os índios. Nas franjas geográfi- terras e a conquista de espaço, não
cas das produções agrícolas, pecuárias descurando, contudo, do quesito mão-de-
e extrativistas desenvolvem-se relações obra. Ao serem os índios aldeados, cada
de tensão entre índios e colonos, cujos aldeamento recebia terras para a sobre-

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vivência física e a integração dos índios nericamente, os grupos de língua não


com o mundo colonial. O alvará de 23 tupi, que viviam, em sua maior parte,
de novembro de 1700 mandava demar- afastados do litoral. A conquista de seus
car uma légua em quadra para cada al- territórios se fez com maior truculência
deia. A partir do século XIX, as dimen- e os portugueses consideravam-nos
sões dessas terras atribuídas aos incivilizáveis. Eram, pois, identificados
aldeamentos passam a variar em função como Tapuia os Botocudos, Coroados,
de sua localização, disponibilidade de Kayapo, Mura. O inglês Henry Koster, que
mão-de-obra, importância econômica da viveu no Nordeste entre 1809 e 1820,
região em que se localizavam, entre ou- registra, em seu livro Viagens ao Nordes-
tros requisitos. te do Brasil, em relação aos índios do
Maranhão: “Os índios não podem ser es-
O incremento da população nas áreas li- cravizados, ou, pelo menos, já não são
torâneas força a expansão da coloniza- caçados como gado bravo, prática anti-
ção para novas regiões. Os últimos terri- gamente comum. O nome que se dá, aqui
tórios indígenas ocupados em áreas pró- e em Pernambuco, a todos os índios sel-
ximas à costa são metodicamente inva- vagens é Tapuia, e Caboclo é aplicado
didos. Já em 1806, na Bahia, fazia-se ao índio domesticado”.5
guerra de extermínio contra os índios
“bravos” e aldeamentos para aqueles A carta régia de 13 de maio de 1808, 6
considerados “mansos”. A classificação
3
mandando fazer a “guerra ofensiva” aos
dos índios em duas categorias – domésti- Botocudos 7 de Minas Gerais, contém os
cos e bravos – consiste em uma estraté- elementos básicos da nova política de
gia legitimadora para a promoção de guer- opressão e renova quase literalmente os
ras justas ou de projetos de educação argumentos utilizados nos séculos XVI e
para ensinar-lhes práticas agrícolas ou XVII para a destruição dos Aimorés e
outros ofícios, fazendo, assim, com que outros grupos. Considerando ainda a car-
perdessem sua índole bárbara, sujeitan- ta régia de 1º de abril de 1809, que re-
do-os às leis e elevando-os, por conse- gulamenta as ações oficiais e privadas
guinte, à condição humana. 4 A essa sub- na condução das expedições punitivas,
divisão, sobrepõe-se uma outra classifi- e o aviso de d. Rodrigo de Souza
cação, que distingue os grupos indígenas Coutinho, conde de Linhares, de 19 de
em Tupi e Tapuia. Os primeiros são aque- fevereiro de 1811, “aprovando as medi-
les com os quais já se fazia contato des- das tomadas sobre fundação de novas
de a chegada dos portugueses ao conti- colônias nas terras ocupadas pelos Índi-
nente e que, em sua grande maioria, os Botocudos Antropófagos”, percebe-se
eram considerados assimilados e figura- que essas medidas partem da convicção
vam como símbolo da brasilidade em di- de que os Botocudos do rio Doce entra-
ferentes manifestações artísticas e lite- vavam o desenvolvimento regional e a
rárias. Por Tapuia, denominavam-se, ge- interiorização dos colonos, tendo em vis-

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ta o seu comportamento belicoso e ar- ficação da produção, pela expansão da


redio, o que se constituía em um perigo população branca e, principalmente, pela
permanente. Os métodos até então uti- subjugação dos grupos indígenas hostis
lizados para dominá-los não tinham al- ou resistentes ao regime de trabalho ser-
cançado o resultado almejado, só res- vil. Informações de Martius8 e do cônego
tando o uso da força “enquanto durasse André Fernandes de Souza9 não deixam
sua ferocidade”, descrita como práticas dúvidas sobre a extensão e gravidade da
animalescas, diante das quais nada va- violência com que eram habitualmente
lem quaisquer “meios humanos” para tratadas as populações indígenas dessa
civilizá-los e aldeá-los. região, no final do século XVIII e começo
do seguinte. Os índios eram transferidos
Em relação à Amazônia, as decisões so- habitualmente de suas aldeias tradicionais,
bre os indígenas subordinavam-se estri- separados de suas comunidades e famíli-
tamente aos interesses do domínio colo- as, e descidos para os centros regionais,
nial, que devia ser assegurado e amplia- onde eram empregados em trabalho ser-
do pela abertura de vias de comunica- vil ou simplesmente vendidos e tratados
ção e comércio, pelo aumento e diversi- como escravos.

Os Puris em suas florestas. Maximilien Alexander Philipp,


prinz von Wied-Neuwied, Voyage au Brésil dans les années 1815, 1816 et 1817, 1821-1822

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A carta régia datada de 5 de setembro cias de igual teor contra os índios


de 1811, que aprova o plano do desem- Kaingang.
bargador Joaquim Teotônio Segurado, de
A essas disposições legais, segue-se uma
abertura das comunicações entre Goiás
série de outras, cuja tônica é a repres-
e Pará e da colonização dos territórios
são. Restabelece-se o sistema de bandei-
incultos que se estendem entre as duas
ra, quer de tropas de linha, quer de par-
capitanias, expressa claramente sua ins-
ticulares. Abre-se um período de caça ao
piração na ação contra os Botocudos de
índio, indiscriminada e fora de controle,
Minas Gerais e explicita a violência com
na medida em que se oferecem vanta-
que essas populações deveriam ser tra-
gens de toda ordem aos que se lanças-
tadas. Esse diploma legal aprovava a
sem a este tipo de banditismo ou
constituição de uma sociedade de co-
“pioneirismo”. O índio capturado nessas
mércio, com todos os privilégios e facili-
entradas era automaticamente dado a
dades para a implantação da navegação
seu apresador por 15 anos, o que equi-
regular do Tocantins e o estabelecimen-
vale a uma sentença de morte, uma vez
to de colônias ao longo desse rio, fican-
que a taxa de sobrevivência em cativei-
do franqueado, se necessário, o uso da
ro era bastante baixa devido aos maus
força contra aqueles grupos indígenas
tratos, ao peso do trabalho e a toda sor-
que insistissem em não viver tranqüilos
te de privações. Cabe citar, mais uma
e sujeitos às leis e em cometer hostili-
vez, a carta régia de 1º de abril de
dades contra os fiéis vassalos do prínci-
1809, que une o batismo à escravidão.
pe regente. Para aqueles, só se poderia
O momento do batismo sela o tempo em
aplicar a força armada,
que o índio – criança ou adulto – viverá
[...] meio de que se deve lançar mão em cativeiro.
para conter e repelir as nações
[...] quando seja obrigado a declarar
Apinagé, Chavante, Cherente e
a guerra aos índios, que então pro-
Canoeiro, porquanto, suposto que
ceda a fazer e deixar fazer prisionei-
os insultos que elas praticam
ros de guerra pelas bandeiras que ele
tenha[m] origem no rancor que con-
primeiro autorizar a entrar nos cam-
servam pelos maus tratamentos que
pos, pois sem essa permissão nenhu-
experimentaram da parte de alguns
ma bandeira poderá entrar, nem fa-
comandantes das aldeias, não resta
zer prisioneiros os índios que encon-
presentemente, outro partido a se-
trar, bem entendido que esta prisão
guir senão intimidá-las, e até destruí-
ou cativeiro só durará 15 anos con-
las se necessário for, para evitar os
tados desde o dia em que forem
danos que causam”. 10
batizados e desse ato religioso que
Nesse mesmo ano, a carta régia de 5 se praticará na primeira freguesia por
de novembro dirigida ao governador da onde passarem se lhes dará certidão
capitania de São Paulo ordena providên- na qual se declare isso mesmo exce-

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tuando porém os prisioneiros ho- cionalização das funções do “bugreiro”,


mens e mulheres de menor idade pois caçador profissional de índios que alcan-
que nesses o cativeiro dos 15 anos çou maior importância e notoriedade na
se contará ou principiará a correr aos guerra aos Kaingang de São Paulo e
homens da idade de 14 anos, e nas Paraná e nas lutas contra os índios de
mulheres da idade de 12 anos, de- Goiás, Mato Grosso, Maranhão e Pará.
clarando também que o proprietário O major graduado Francisco de Paula
do índio guardará sempre a certidão Ribeiro, comandante, no Maranhão, das
para mostrar o tempo de cativeiro que tropas militares de controle dos índios
ele deve sofrer, e ficará exposto a selvagens e encarregado de executar as
declarar-se livre o índio, se acaso ordens do príncipe regente, com expres-
perder a certidão e não puder tirar sas determinações sobre como dominar
outra, bem entendido que os servi- os índios que impediam a expansão eco-
ços do índio prisioneiro de guerra nômica em diversas regiões do Brasil,
poderão vender-se de uns a outros pondera como essas cartas régias eram
proprietários pelo espaço de tempo favoráveis aos índios selvagens, pois lhes
que haja de durar o seu cativeiro, e davam a chance de fazer as pazes e, no
segundo mostrar a certidão que sem- caso de serem atacados e dominados, de
pre o deve acompanhar. 11 poderem ser conduzidos a viver em al-

E
deias sob a proteção do Estado. Caso
ssas medidas davam margem a
contrário, tropas de fazendeiros fariam
abusos sem limites. A compra de
esses ataques de uma forma mais vio-
crianças indígenas, chamadas
lenta e arrasadora, freqüentemente le-
kurukas , por uma bagatela ou seu rapto
vando os prisioneiros à escravidão. 15
para venda eram práticas freqüentes. 12
Saint-Hilaire, quando de sua passagem
Apesar da inflexível tendência que carac-
por Minas Gerais na década de 1820,
teriza o seu governo no que respeita a
registra que, nas margens do rio
índios, d. João VI adota, em casos espe-
Jequitinhonha, já não havia crianças
ciais, uma atitude mais branda com gru-
nas tribos que maior comunicação ti-
pos sabidamente pacíficos e cuja atra-
nham com os portugueses. 13 Acredita-
ção possa trazer benefícios ou atender a
va-se que a entrega dessas crianças in-
interesses da população regional. Encon-
dígenas a famílias de fazendeiros impor-
tram-se, nessa categoria, os índios de
tantes e altos funcionários da adminis-
diversas vilas do Ceará, Pernambuco e
tração provincial era o único meio de
Paraíba que, “tendo consideração à fide-
civilizá-las inteiramente, já que deixa-
lidade e amor à minha real pessoa, mar-
riam de conviver com seus pais e seus
charam contra os revoltosos que, na vila
hábitos bárbaros. 1 4
do Recife, tinham atentado levantar-se
Os efeitos de tal política fixaram-se per- contra a minha real soberania”. Como
manentemente por meio da institu- recompensa, foram distinguidos por um

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tratamento benigno pelo governo, sendo territórios e na abertura de novas vias


dispensados do pagamento de vários sub- de comunicação estava a opção em ins-
sídios impostos e quotas à Fazenda Pú- talar quartéis e destacamentos ao longo
blica e aos seus diretores. 16 dos caminhos de penetração. 18 Essa polí-
tica era uma das peças de um projeto
Percebe-se que as questões que, prova-
mais amplo de criação de incentivos à
velmente, mais influíram para que a polí-
conquista e colonização dos sertões, cuja
tica indigenista durante a regência e pos-
relevância residia em garantir, simulta-
terior reinado de d. João VI tivesse es-
neamente, terra, mão-de-obra e seguran-
sas características são ditadas por preo-
ça aos que se propusessem a enfrentar
cupações oriundas, por um lado, da área
tal empreendimento. A conquista e a in-
econômica, e, por outro, de uma inquie-
corporação de terras eram a meta
tação de natureza político-militar. Os
estabelecida, em detrimento de preocu-
motivos de ordem econômica que impu-
pações quanto à preservação dos seus
seram a adoção de uma política indi-
ocupantes originais, vistos como estorvos
genista explicitamente repressiva decor-
ou obstáculos à expansão. Cabe mencio-
reram da expansão da ocupação efetiva
nar que, na maioria dos casos, os quar-
ou, pelos menos, dos direitos de proprie-
téis que se instalavam ao longo dos rios e
dade privada sobre novas áreas, que, em
rotas de passagem não dispunham de
muitos casos, tinham que ser conquista-
infra-estrutura que pudesse fazer frente
das aos índios.

C
a qualquer tipo de ataque mais violento.
onvém ressaltar que a preocu-
Essas unidades não passavam, em geral,
pação do Estado com a questão de “simples cabanas onde ficavam 4 a 5
indígena, nas áreas de frontei- soldados, completamente isolados na
ra, decorre do estabelecimento de con-
mata”, o que sugere um exagero em re-
flitos entre segmentos populacionais que lação à capacidade ofensiva dos índios,
disputavam o mesmo território. O gran- inspirada no preconceito e na necessida-
de objetivo de sua intervenção, na ver-
de de “limpar” os sertões da presença
dade, não era evitar o extermínio dos indígena. 19 Tanto os quartéis como a fe-
grupos indígenas, mas criar mecanismos rocidade das populações indígenas eram,
que evitassem o retardamento da conquis-
em grande medida, construções ideológi-
ta do novo espaço e a perda dos investi- cas que atendiam a interesses econômi-
mentos particulares e estatais realizados cos e políticos.
até então, ameaçados pela posição dos
índios de se recusarem a abandonar seus
Nos territórios dos atuais estados de Mi-
territórios e se engajar como trabalha-
nas Gerais e Espírito Santo, a justificati-
dores nas atividades produtivas de inte-
va para os quartéis e destacamentos ins-
resse dos colonizadores. 17
talados a partir de 1808 residia na ne-
Estreitamente associada aos interesses cessidade de estabelecer uma linha de
econômicos expressos na conquista de defesa das propriedades e da vida dos

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colonos, que tomou um ritmo mais ace- 1808, iam combater os Botocudos em
lerado com a chegada da família real ao Minas Gerais, no Espírito Santo e no sul
Brasil e a ampliação dos incentivos eco- da Bahia, e recebiam metade do soldo
nômicos, o aumento do mercado de con- dos outros pedestres. 21
sumo interno, do investimento na rede
Havia em Curitiba aldeias de “índios ca-
viária, e a maior agilidade administrati-
çadores” incumbidos pelo governo de
va, decorrente da premência em trans-
combater os selvagens e rechaçá-los das
formar a colônia na sede do governo
terras cultivadas. No Pará e no atual
metropolitano. Era fundamental intensi-
Amazonas, os Mundurucu foram exten-
ficar a comunicação entre as províncias
samente utilizados para combater os
adotando métodos persuasivos de apro-
Mura e, mais tarde, os Cabanos.
ximação com as populações indígenas,
que se resumiam, na prática, na oferta Outro uso freqüente dos índios era no
de comida e de instrumentos como ma- apoio às instalações militares e às no-
chados e facões, combinada a práticas vas rotas comerciais entre as várias
violentas, quando necessário. províncias. Nessas rotas, estabeleciam-
se aldeias das quais se esperavam que
Além de militares, as tropas eram com-
abrissem e mantivessem estradas, for-
postas por índios aldeados e por vadios
necessem canoeiros, fizessem lavouras
e degredados. A opção pelos índios de-
capazes de abastecer os viajantes e
corria do desconhecimento da área a ser
servissem, em geral, de apoio e de
conquistada pelos colonos e da falta de
mão-de-obra.
recursos para a compra de armas, mu-
nição e equipamentos. Esses índios Enfim, o Estado usava os índios como
“mansos e aliados” surgiam como alter- povoadores em lugares distantes, o que,
nativa para a solução desses óbices à em tempos remotos favorecera as rela-
expansão e à conquista: conheciam bem ções com grupos nas fronteiras. Em 1809,
o espaço físico, os hábitos e técnicas após haver declarado guerra aos índios
de combate dos opositores e as formas de Guarapuava, d. João acrescenta:
de obter alimentos nas matas, além de
Não é conforme aos meus princípios
usarem armamentos e munições de fá-
religiosos, e políticos o querer esta-
cil e gratuita reposição, como os arcos
belecer minha autoridade nos Cam-
e as flechas. 2 0
pos de Guarapuava, e território adja-
Com relação às guerras intertribais, a cente por meio de mortandades e
política adotada era a de estimular ações crueldades contra os índios, extirpan-
que acentuassem o antagonismo entre os do as suas raças, que antes desejo
vários grupos, para torná-los irreconcili- adiantar, por meio da religião e civi-
áveis. O uso bélico dos índios se esten- lização, até para não ficarem deser-
deu a alvos não tradicionais: índios “man- tos tão dilatados e imensos sertões,
sos” eram parte das tropas que, em e que só desejo usar da força com

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aqueles que ofendem os meus têm concorrido para erigir fábricas de


vassalos, e que resistem aos bran- mineração e trabalhos de agricultura nes-
dos meios de civilização que lhes tes terrenos novamente restaurados”.
mando oferecer. 22 Entre essas providências, destacam-se:

[...] em primeiro lugar: que no territó-


A decretação de guerra ofensiva no Es-
rio resgatado das incursões dos índi-
pírito Santo decorreu de uma decisão
os Botocudos, ou ainda outros quais-
do governo central, para evitar que os
quer, considereis como devolutos to-
índios combatidos em Minas Gerais bus-
dos os terrenos que, tendo sido da-
cassem refúgio naquela capitania e, as-
dos em sesmarias anteriormente, não
sim, garantir o comércio pelo rio Doce.
foram demarcados, nem cultivados
Diante das limitações econômicas e
até a presente época [...]. Em segun-
demográficas, a Coroa portuguesa pas-
do lugar: que daqui em diante
sou a financiar o empreendimento nessa
permitais a cada um dos comandan-
capitania, inclusive como uma forma de
tes nas suas respectivas Divisões que
superar o desinteresse e a resistência
possam demarcar e assinalar terrenos
dos moradores capixabas em se deslo-
proporcionais às fabricas dos que
carem para o sertão. 23 Criavam-se novos
forem entrando, ficando depois estes
estímulos aos colonos, garantido-lhes
novos proprietários que entrarem de
acesso às terras conquistadas. As terras
posse, obrigados a procurar o título
tomadas aos índios eram consideradas
legítimo das sesmarias (...). 24
devolutas, e caberia aos comandantes
A firme deliberação em conceder, para
das divisões a designação e a demarca-
instalação de colônias agrícolas, terras
ção dos terrenos entre os colonos que
“infestadas” pelos temíveis Botocudos
se responsabilizassem pelo registro do
suscitou a carta régia de 13 de julho de
título da sesmaria concedida. Pela carta
1809, dirigida ao capitão-general de Mi-
régia de 2 de dezembro de 1808, “so-
nas Gerais, Pedro Maria Xavier de Ataíde
bre a civilização dos índios, a sua educa-
e Melo, solicitando o alargamento para
ção religiosa, navegação dos rios e cultu-
dez anos do prazo para regularização das
ra dos terrenos”, o príncipe regente de-
sesmarias.
termina, com base nas observações do
governador e capitão-general da capitania Nessa linha, vê-se a provisão da Mesa do
de Minas Gerais, algumas providências Desembargo do Paço, de 3 de agosto de
“mui saudáveis tanto para promover a ci- 1819, que concedia a Caetano José
vilização dos índios que têm mostrado Teixeira licença para erigir, às suas cus-
querer viver pacificamente aldeados de- tas, uma vila em terras de sua proprie-
baixo da proteção de minhas leis, logo dade, situadas às margens do rio Grajaú,
que viram cessar a tirania dos índios confluente do Mearim, “com franca na-
Botocudos, como também para favorecer vegação para o mar”, onde havia uma
o estabelecimento de alguns sujeitos que aldeia dos índios Akroás.

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Alguns testemunhos da época mostram tor se refere nessas considerações so-


o caráter fortemente impositivo das rei- bre a política agrária do governo é uma
vindicações de grandes proprietários parte da capitania do Rio de Janeiro, pró-
agrários, oriundos, principalmente, da xima à fronteira de Minas, onde está hoje
nobreza imigrada, que, naturalmente, situado o município de Valença. Em
deveria ter grande influência nas decisões 1819, quando Saint-Hilaire percorreu
do governo português. 25
O botânico fran- pela primeira vez a região, havia ali a
cês Auguste Saint-Hilaire, em sua “Segun- aldeia das Cobras e, praticamente, ne-
da viagem a São Paulo”, registra que, no nhum outro morador, senão indígenas. Na
período imediatamente após a vinda da segunda viagem, em 1822, o autor con-
família real portuguesa para o Brasil, fo- tou mais de sessenta casas e uma pe-
ram extraordinariamente aumentadas as quena igreja de pedra em processo de
concessões de terras, o que favoreceu o construção, dando-se ao povoado o nome
enriquecimento de famílias próximas ao da vila de Valença. A aldeia indígena e
círculo da corte ou das quais d. João de- suas terras passaram a constituir a sede
pendia dos serviços. O local a que o au- de um distrito que se estende entre o

Ornamentos e utensílios dos camacans. Maximilien Alexander Philipp,


prinz von Wied-Neuwied, Voyage au Brésil dans les années 1815, 1816 et 1817, 1821-1822

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Paraíba e o rio Preto. O autor fornece Vilhena, a persuasão por meio do ensino
outros dados sobre a região: de práticas agrícolas, da introdução de
ferramentas e do convencimento sobre
A venda da Aldeia das Cobras é pro-
a superioridade da cultura européia se-
priedade de dois franceses que há
ria mais eficaz para que os índios enten-
muito tempo habitam neste distrito,
dessem “que não pretendemos as suas
muito me elogiaram sua fertilidade.
terras, mas sim sua amizade, o seu tra-
Estes homens haviam feito, pelas
to, não o seu mal, mas fazer-lhes todo o
próprias mãos, considerável planta-
bem possível”.
ção de café nas terras do desem-
bargador Loureiro, homem desmora- Seria prudência o fazê-los ver traba-
lizado por causa dos costumes e a lhar em diferentes ofícios para exci-
falta de probidade. Achando que não tar-lhes o amor da agricultura, haven-
cumpria as cláusulas a que se obri- do cuidado ao princípio em dar-lhes
gara para com eles, e temendo algu- saída ao supérfluo das suas colhei-
ma trapaça, venderam as plantações tas por troca daqueles gêneros de
por 200$000 réis, antes que produ- que mais necessitassem ou apeteces-
zissem. E asseguram que, neste ano, sem. E este seria um dos meios mais
comprador ou o próprio Loureiro, eficazes para avivar-lhes a curiosida-
que ficou em seu lugar, lucrarão dois de [e persistência] no trabalho: de
mil cruzados. 26
dia em dia iriam necessariamente
sentindo novas necessidades e, sem
Concomitante à legislação referente às
que o pressentissem, se veriam
populações indígenas, uma série de me-
engolfados no luxo e se viriam a abrir
mórias e de planos é formulada nesse
duas grandes portas, uma para a agri-
período, com o objetivo de apresentar
cultura, e para o comércio a outra. 27
recomendações acerca das estratégias
mais adequadas sobre como lidar com A “Memória sobre a civilização dos índi-
essa categoria étnica, que compõe peri- os e distribuição das matas”, escrita em
fericamente a população brasileira. 1816 pelo desembargador Antonio José

O
da Silva Loureiro, é um exemplo dos ob-
professor régio Luís dos Santos
jetivos que se tentaram impor à política
Vilhena, em “Reflexões políti-
indigenista no período. Nesse documen-
cas sobre as 24 colônias per-
to, Loureiro procura dar solução a duas
tencentes a Portugal, e muito principal-
questões relevantes: submeter os índios
mente as do Estado do Brasil na América
e tomar ou converter suas terras em
meridional”, defende o desenvolvimento
grandes propriedades:
da agricultura como um dos pilares para
o crescimento da colônia e o emprego A Civilização dos Índios, no meu
“mais [da] arte do que [da] força” no tra- pensar, é objeto mui fácil, logo que
to com as populações indígenas que ha- se descortinem as matas, reduzindo-
bitavam todo o território brasileiro. Para se os terrenos à agricultura, é mes-

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mo de suma necessidade a civiliza- ções com que esta abolição se deve


ção dos índios, não só porque dela fazer e sobre os meios de remediar a
resultam grandes vantagens à agricul- falta de braços que ela pode ocasionar”
tura, mas mesmo por um motivo po- (1821), João Severiano Maciel da Cos-
lítico, que não está fora das vistas ta, 31 futuro marquês de Queluz e ho-
de V. Maj ., a quem a história das
e
mem de formação liberal na Faculdade
nações é tão presente. 28
de Direito de Coimbra, faz críticas ao
comércio de escravos e à permanência
A motivação política aludida pelo
do sistema escravista, e dedica um ar-
desembargador está em consonância com
tigo à função das populações indígenas
o temor de uma rebelião em cadeia que,
como mão-de-obra:
começada entre grupos indígenas autô-
nomos, se estendesse aos escravos, Parecerá a muita gente que os índios
mestiços e brancos pobres. Nesse mes- que temos avilados, por isso que já
mo manuscrito, Antonio Loureiro ponde- conhecem alguma coisa os cômodos
ra, ainda, sobre o sistema de distribui- da sociedade civil, deverão gozar da
ção de terras públicas, que ele conside- plenitude dos direitos e prerrogativas
ra moroso, dispendioso e um obstáculo da liberdade social como os mais ci-
ao desenvolvimento da agricultura. dadãos. Todavia, nós, que os conhe-

Outros personagens de destaque na es- cemos e tratamos e governamos, so-

trutura política da corte se ocuparam em mos de opinião contrária. Não tendo

pensar a questão indígena. Para se com- sido educados como convinha, pois

preender o contexto no qual a legislação que não foram habituados a um tra-

indigenista se aplica e se legitima, desta- balho regular nem aprenderam a tirar

ca-se a “Memória dos benefícios políticos um partido fácil da agricultura, se os

do governo d’El-Rei Nosso Senhor, d. João deixarem a si sós, com a preguiça

VI”, de José da Silva Lisboa, 29 visconde natural e hereditária, que é para eles

de Cairu, publicada no Rio de Janeiro em o sumo bem e sem nenhuma ambi-

1818, em que propugna o fim do tráfico ção de uma vida mais folgada e cô-

de escravos negros da África e defende moda, nada farão. 32

o emprego da mão-de-obra indígena, “de


A despeito de os motivos das ações
que já se vão vendo excelentes resulta-
dirigidas aos índios serem de ordem
dos para a lavoura e comércio, devem
fundiária ou para apresamento de mão-
multiplicar os braços úteis, e vigorosos
de-obra, o que se observa é a conquista
dos naturais do país, a quem se franquei-
do espaço, quer pela extinção dos índios,
am os meios e estímulos legítimos de tra-
quer pelo controle sobre essas popula-
balho regular, e amor de governo”. 30
ções. Percebe-se que a destruição dos
Em “Memória sobre a necessidade de índios se deu, sobretudo, por processos
abolir a introdução dos escravos afri- mesquinhos e sem vozes dissonantes. Os
canos no Brasil, sobre o modo e condi- últimos anos da colônia e a instalação da

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Coroa portuguesa serviram como preâm- engajamento do índio como força de tra-
bulo para um debate que se intensificará balho, mesmo no regime de servidão as-
no Império, em torno não dos fins de uma segurado pela permissiva legislação co-
política indigenista, e sim dos seus mei- lonial de d. João VI, mantida durante o
os. A questão consistia em exterminar Primeiro Império. Nesse sentido, não é
sumariamente os índios, distribuí-los aos de se estranhar que a Constituição de
moradores ou cativá-los com brandura. 1824 sequer mencione a questão indí-
gena, que se tornou competência das As-
***

A
sembléias Legislativas Provinciais. A per-
s possíveis esperanças de que manência desses velhos interesses pode
a independência do Brasil trou- também ser constatada pela leitura do
xesse uma ordem mais justa Regulamento interino para o aldeamento
foram frustradas pelo governo de d. e civilização dos índios Botocudos do rio
Pedro I, que, em relação aos índios, ado- Doce da província do Espírito Santo , en-
tou uma política tão opressiva quanto a viado ao presidente daquela província
de seu pai, a despeito dos projetos em 28 de janeiro de 1824, por João
indigenistas de cunho mais liberal leva- Severiano Maciel da Costa, marquês de
dos às Cortes de Lisboa e à Assembléia Queluz, constituinte em 1824, ministro
Constituinte do Império do Brasil por po- de Pedro I, Ministro de Estrangeiros no
líticos influentes, como José Bonifácio de gabinete de 1827, além de outras fun-
Andrada e Silva, 33
nas quais não encon- ções de destacada importância política.
traram apoio, nem mereceram discussão Dado o considerável número de índios
quanto ao mérito de suas proposições. Botocudos existentes nas margens do rio
O desinteresse quase unânime com que Doce, o ministro Maciel da Costa afirma-
foram recebidos os projetos relativos à va, em ofício, ser essencial “contentar e
“civilização dos índios”, tanto em Lisboa aproveitar já aldeando-os e dispondo-os
quanto no Rio de Janeiro, revelam que para a civilização, no que tanto ganham
o crescimento e a expansão das popula- a humanidade, religião e o estado”, 34 o
ções de origem européia no Brasil tor- que, sem dúvida, se coadunava com os
navam dispensável e pouco atraente o compromissos de seu autor.

N O T A S
1. Para a compreensão da prática dos descimentos e de outras categorias classificatórias,
como tapuio e mestiço , ver MOREIRA NETO, Carlos de Araujo. Índios da Amazônia : de
maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988. p. 37-72.
2. FRAGOSO, João Luiz Ribeiro. Homens de grossa aventura : acumulação e hierarquia na
praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830) . Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
(Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, 1). FLORENTINO, Manolo; FRAGOSO, João Luiz
Ribeiro. Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária elite mercantil em
uma economia colonial tardia Rio de Janeiro, c.1790-c.1840 . Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001.

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R V O

3. Há registros de aldeamentos no rio de Contas para os índios Gren (Guerén); ao sul de


Ilhéus, os Tupiniquim foram reunidos pelos jesuítas no aldeamento Nossa Senhora da
Escada de Olivença. Os Mongoió, no Saco do Rio Pardo e no Santo Antonio da Cruz, nas
proximidades de Vitória da Conquista; os Kamakan, em São Pedro de Alcântara (Ferra-
das) e no Catolé; os Kariri-Sapuya, em Pedra Branca e Santa Rosa (atuais municípios de
Santa Terezinha e Pau-Brasil). Para uma análise política de aldeamentos indígenas no sul
da Bahia, ver PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Caminhos de ir e vir e caminho sem volta :
índios, estradas e rios no sul da Bahia. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1982.
4. Ver carta régia encaminhada ao governador e capitão-general da capitania de Minas Ge-
rais, em 2 de dezembro de 1808, que dispõe sobre a civilização dos índios, sua educa-
ção religiosa, navegação dos rios e cultura dos terrenos.
5. KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. 2. ed. Recife: Secretaria de Educação e
Cultura, 1978. p. 184.
6. Ver <www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br>.
7. Nome genérico e depreciativo empregado para diferentes grupos indígenas autônomos
que viviam nas florestas do vale do rio Doce, Mucuri, Jequitinhonha, Prado, a poucos
mil quilômetros da sede do governo central.
8. SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Karl F. P. von. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1938. 3v.
9. SOUZA, André Fernandes de. Notícias geográficas da capitania do Rio Negro no grande
rio Amazonas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro , Rio de Janeiro, v.
10, p. 411-504, 1848.
10. CUNHA, M. C. da. (org.). Legislação indigenista do século XIX : uma compilação, 1808-
1889. São Paulo: Edusp; Comissão Pró-Índio de São Paulo, 1992. p. 80.
11. ibidem, p. 70-71.
12. Um kuruka custava cerca de cem mil réis, enquanto um escravo africano era vendido a
um valor seis vezes maior.
13. SAINT-HILAIRE, Augustin François César Prouvençal de. Viagem ao Espírito Santo e rio
Doce . Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1974.
14. PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. O tempo da dor e do trabalho: a conquista dos territóri-
os indígenas nos sertões do leste. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade
de São Paulo, 1998.
15. GOMES, Mercio. O índio na história : o povo Tenetehara em busca da liberdade. Petrópolis:
Vozes, 2002. p. 201.
16. O decreto de 25 de fevereiro de 1819 concede “aos índios de diversas vilas do Ceará
Grande, Pernambuco e Paraíba diversas graças e mercês pelo serviço prestado contra os
revoltosos da Vila do Recife”.
17. Ver PARAÍSO, M. H. B. op. cit.
18. Os quartéis tinham sob seu controle alguns destacamentos, que eram estruturas sim-
ples, quase precárias, onde ficavam lotados poucos soldados e, em caráter excepcional,
algum oficial.
19. EGLER, Walter Alberto. A zona pioneira ao norte do Rio Doce. Revista Brasileira de Geo-
grafia , Rio de Janeiro, v. 13, n.2, p. 223-264, abr.-jun. 1951. p. 234.
20. Ver decreto que “manda or ganizar um Regimento de Milícias Guaranis a cavalo e três
Companhias de Cavalaria Miliciana, na província de Missões”, datado de 9 de julho de
1811.
21. Ver carta régia sobre a guerra aos índios Botocudos, de 13 de maio de 1808.
22. Carta régia que aprova o plano de povoar os campos de Guarapuava e de civilizar os
índios bárbaros que infestam aquele território, de 1º de abril de 1809.
23. De acordo com a historiadora Janaína Amado, a categoria sertão é entendida como uma
área extensa, afastada do litoral, de natureza ainda indomada, habitada por índios selva-
gens e animais bravios, sobre a qual as autoridades tinham pouca informação e controle
insuficiente. Define-se, assim, como sertão qualquer espaço pouco habitado, não incor-
porado à civilização, em que o “progresso” ainda não chegou. A distância não se restrin-

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ge meramente a uma conotação geográfica. A idéia de distância está associada ao afas-


tamento do poder público e dos projetos modernizadores. AMADO, Janaína. Região,
sertão, nação. Estudos Históricos , Rio de Janeiro, n. 15: História e Região, p. 145-151,
jan.-jun. 1995.
24. CUNHA, M. C. da. op. cit. p. 66-67.
25. Um importante porta-voz dessa aristocracia agrária é o bispo fluminense dom José Joa-
quim da Cunha de Azeredo Coutinho, autor de Concordância das Leis de Portugal e das
Bulas Pontifícias das quais umas permitem a escravidão dos pretos da África e outras
proíbem a escravidão dos índios do Brasil, 1808 (Arquivo Nacional, 1988, Publicações
Históricas, 89).
26. SAINT-HILAIRE, Augustin François César Prouvençal de; TAUNAY, Affonso d’ Escragnolle.
Segunda viagem a São Paulo e quadro histórico da província de São Paulo . São Paulo:
Livraria Martins, [1953]. p. 23-24.
27. VILHENA, Luís dos Santos. Pensamentos políticos sobre a colônia . Rio de Janeiro: Ar-
quivo Nacional, 1987. (Publicações Históricas, 87). p. 70.
28. Ver MOREIRA NETO, C. A. Os índios e a ordem imperial . Brasília: CGDOC/Funai, 2005. p.
241.
29. Foi deputado da Real Junta de Comércio e desembargador da Casa de Suplicação.
30. LISBOA, José da Silva. Memória dos benefícios políticos do governo de El-Rey Nosso
Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818. p. 176.
31. Foi membro do Conselho de d. João VI e governador da Guiana Francesa, quando esteve
ocupada por tropas portuguesas. Mais tarde, no governo de Pedro I, foi ministro do
Império e encarregado da pasta de Estrangeiros. No exercício das funções do primeiro
cargo, o marquês de Queluz teve, necessariamente, que tratar em detalhe de problemas
político-administrativos das populações indígenas brasileiras.
32. COSTA, J. S. M. da et. al. Memórias sobre a escravidão . Introdução de Graça Salgado.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional; Brasília: Fundação Petrônio Portella, Ministério da Jus-
tiça, 1988. (Publicações Históricas, 88). p. 41.
33. O texto do projeto de José Bonifácio “Apontamentos para a civilização dos índios bra-
vos do Império do Brasil” encontra-se digitalizado no sítio eletrônico <http://
www.obrabonifacio.com.br>.
34. COSTA, J. S. Maciel da. Ofício de encaminhamento do Regulamento. Palácio do Rio de
Janeiro em 28/01/1824. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
Janeiro, v. 6, 1844. p. 488-489.

Recebido em 29/04/2008
Aprovado em 17/05/2008

pág.148, jan/jun 2008


R V O

P E R F I L I N S T I T U C I O N A L

O Museu D. João VI
Sonia Gomes Pereira
Historiadora da arte, museóloga e professora titular da Escola
de Belas Artes da UFRJ. Coordena o Projeto de Revitalização
do Museu D. João VI da EBA/UFRJ, apoiado pela Petrobras.

Este artigo apresenta a história e descreve o This article focus on the history and the collec-
acervo do Museu D. João VI da Escola de tion of the D. João VI Museum, which belongs to
Belas Artes da UFRJ. Enfatiza, ainda, o the School of Fine Arts of the Federal University
projeto para sua revitalização, realizado com of Rio de Janeiro. Besides, it emphasizes its revita-
patrocínio da Petrobras, que altera seu conceito lization project sponsored by Petrobras that intends
museológico básico, investindo na organização to change its basic musicological concept, opening
de uma reserva técnica que será disponibilizada the technical reserves to the public for research.
ao público para pesquisa. Keywords: D. João VI Museum of the School of Fine
Palavras-chave: Museu D. João VI; museu Arts; university museum (Federal University of Rio de
universitário; ensino artístico. Janeiro); artistic teaching.

A LONGA TRAJETÓRIA DA A CADEMIA país e a sua capital, o Rio de Janeiro,


E E SCOLA DE B ELAS A RTES uma infra-estrutura digna de uma nação

A
moderna para os padrões da época. Cri-
criação da Academia de Belas ada no bojo da contratação da chamada
Artes, em 1816, foi um dos Missão Francesa, a academia teve, no
inúmeros atos de d. João VI, entanto, de esperar dez anos para ser
durante a permanência da corte portu- efetivamente aberta, em 1826, já como
guesa no Brasil, que visavam conferir ao Academia Imperial de Belas Artes, ocu-

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pando um prédio neoclássico construído va um conjunto de caráter monumental,


pelo arquiteto Grandjean de Montigny, na que marcava o final da recém-aberta ave-
travessa das Belas Artes. O prédio foi nida Central (hoje Rio Branco), parte
demolido, e parte de sua fachada – o prioritária do projeto de modernização do
pórtico com frontão – foi levada para o Rio de Janeiro no mandato do prefeito
Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde Pereira Passos. Junto àqueles dois, o
se encontra até hoje, ao fundo da ala- prédio da ENBA constituía um final mo-
meda de palmeiras imperiais. numental para a seqüência de edifícios
ecléticos que ladeavam a avenida Cen-
Os atritos entre artistas franceses e por-
tral desde o seu início, na praça Mauá. 2
tugueses, além das dificuldades próprias
daqueles tempos de mudanças políticas A escola permaneceu nesse local até 1975,
importantes, dificultaram as primeiras quando, já incorporada à Universidade
décadas de vida da academia. Mas, a par- Federal do Rio de Janeiro, foi transferida
tir de 1834, com a direção do pintor Félix- para o campus da Ilha do Fundão, passan-
Émile Taunay, ela consolidou sua posição do a ocupar parte do prédio da Faculdade
de primeira escola oficial dedicada ao de Arquitetura e Urbanismo – uma cons-
ensino artístico no Brasil, com a criação trução moderna, projeto do arquiteto Jor-
das Exposições Gerais – mais tarde cha- ge Moreira –, que hoje é mais conhecida
madas de Salões – e dos Prêmios de Via- como o prédio da Reitoria.
gem ao Exterior. Sobretudo no reinado de Atualmente, a Escola de Belas Artes, além
Pedro II, a instituição alcançou muito pres- dos cursos tradicionais, como pintura,
tígio, especialmente em razão do impacto escultura e gravura, oferece outros, ca-
das grandes encomendas oficiais, em ge- racterísticos da sociedade moderna, tais
ral pinturas históricas que narravam fa- como desenho industrial e comunicação
tos importantes da história do país, tanto visual. São, ao todo, oito cursos de gra-
antiga, como a expulsão dos holandeses, duação e dois de pós-graduação, reunin-
quanto recente, como a Guerra do do um conjunto de cerca de 1.800 alu-
Paraguai. Dessa forma, a academia de- nos. Assim, é nesse ambiente bastante
sempenhou um papel importante no pro- animado – típico de uma escola de artes
jeto de construção do imaginário da na- – que se encontra o Museu D. João VI.
ção recém-independente.1
A COLEÇÃO DA ACADEMIA / ESCOLA , O
Com a República, é transformada em
M USEU N ACIONAL DE B ELAS A RTES
Escola Nacional de Belas Artes, em 1890.
E O M USEU D. J OÃO VI

N
E, pouco depois, em 1908, transfere-se
para a nova sede, um prédio eclético pro- o decorrer dessa longa traje-
jetado pelo arquiteto Adolfo Morales de tória, a antiga academia/esco-
Los Rios, pai. O prédio da ENBA, la reuniu um extenso acervo
construído simultaneamente com a Biblio- de obras de arte. Uma parte provinha da
teca Nacional e o Teatro Municipal, forma- coleção real trazida pela corte portuguesa

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R V O

em 1808. Outra veio para o Brasil, em sor Almir Paredes Cunha, preocupado
1816, com Joaquim Lebreton, o chefe com a sua conservação, resolveu reuni-
da Missão Francesa. Mas o maior conjun- las, criando um museu, a que foi dado o
to é oriundo da própria academia, fruto nome D. João VI, em homenagem ao cri-
de suas diversas atividades: exercícios de ador da instituição mais que centenária.
alunos, “envios” dos pensionistas, cópi-
3
O museu foi organizado pela museóloga
as de obras dos mestres mais importan- Ecyla Castanheira Brandão, e seu mobi-
tes da tradição européia, material didáti- liário expositivo, desenhado por Almir
co usado nos ateliês, obras vencedoras Gadelha – ambos professores da ENBA –,
de concursos, como o Prêmio de Viagem ocupando um amplo espaço no segundo
ao Exterior, as seleções para contratação andar do prédio da reitoria, junto à pró-
de professores e as Exposições Gerais pria escola, que ocupa quatro andares
ou Salões. (primeiro, segundo, sexto e sétimo) do
mesmo prédio.
Em 1937, mesmo ano em que foi criado
o Serviço de Patrimônio Histórico e Artís- Assim, desde sua fundação, o Museu D.
tico Nacional, a enorme coleção da aca- João VI dedica-se basicamente à preser-
demia/escola foi desmembrada. A maior vação e ao acesso àquele acervo por um
parte – e também a que foi considerada público universitário, em especial pro-
a mais nobre na época – passou a cons- fessores e alunos da Escola de Belas
tituir o Museu Nacional de Belas Artes. O Artes, que o utilizam como complemen-
restante, em geral de caráter mais didá- to a diversas disciplinas, tais como De-
tico, continuou nas salas de aula e nos senho, Restauração, História da Arte,
ateliês da ENBA. Mas tudo continuava no entre outras.
mesmo prédio da avenida Rio Branco. O O acervo, tanto museológico quanto
MNBA ocupava a parte da frente, voltada arquivístico, tornou-se uma referência
para a Rio Branco, e a ENBA, a parte importante para pesquisadores da arte
posterior, voltada para as ruas México e brasileira do século XIX e boa parte do
Araújo Porto Alegre. Nos relatos de mui- XX. Essa vocação para a pesquisa tem-
tos artistas, aparecem referências à con- se destacado de forma crescente ao lon-
vivência estimulante entre a ENBA e o go dessas décadas, atraindo estudiosos
MNBA nessa época, assim como à circu- de fora da UFRJ, de outros estados e,
lação dos alunos e jovens artistas pela eventualmente, do exterior, interessa-
vizinhança: a Biblioteca Nacional, o Tea- dos na pesquisa in loco de suas fontes
tro Municipal, as livrarias e, naturalmen- primárias, em grande parte ainda inex-
te, os bares. ploradas. 4

Transferidas para a Ilha do Fundão em Além disso, o Museu D. João VI tem di-
1975, essas obras continuaram inicial- vulgado o seu acervo por meio da partici-
mente nas salas e nos ateliês da escola. pação em várias exposições de importân-
Mas, em 1979, o então diretor, profes- cia nacional – como a Mostra dos 500

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Anos –, assim como atendido regularmen- A biblioteca de obras raras engloba cer-
te às solicitações de fotografia do seu ca de quatro mil livros, entre eles o de
acervo para fins editoriais. As peças de Grandjean de Montigny sobre a arquite-
destaque do museu para esses fins têm tura toscana, escrito em 1815.
sido os desenhos arquitetônicos de
O arquivo inclui dois grupos de docu-
Grandjean de Montigny; as telas proveni-
mentos. O primeiro corresponde a 118
entes dos Prêmios de Viagem ao Exterior
livros, com cerca de duzentas páginas
– especialmente de Vitor Meireles e Pedro
cada, contendo os registros manuscri-
Américo; a coleção de aquarelas de José
tos da documentação regular da acade-
Reis de Carvalho; uma sanguínea de
mia/escola – como as atas da Congre-
Portinari; entre outros.
gação, as matrículas nos cursos e os
programas e julgamentos dos diversos
O ACERVO DO M USEU D. JOÃO VI

O
concursos –, com um total estimado de
acervo histórico-artístico atual- 23.600 páginas. O segundo grupo refe-
mente conservado pela Escola re-se à documentação avulsa – reunida
de Belas Artes da UFRJ com- em 120 caixas, com entre dez e 15 en-
preende, na verdade, três coleções com- velopes, cada um com cerca de vinte
plementares: uma biblioteca de obras documentos que podem somar três a
raras, um arquivo e uma coleção de quatro páginas, estimando-se um total
obras de artes visuais. de 118.000 páginas –, que compreen-
de correspondências, certidões, decla-
rações relativas aos professores e alu-
nos da instituição, como é o caso da car-
ta enviada em 1857 pelo pintor Eugène
Délacroix, membro correspondente da
academia em Paris.

O museu propriamente dito agrega um


acervo assim constituído: oitocentas gra-
vuras, 837 desenhos, 65 desenhos
arquitetônicos, 480 pinturas, 560 escul-
turas, 595 diplomas de premiação, 253
porcelanas, 167 fotografias, 47 têxteis,
22 móveis, 4.928 moedas/medalhas e
nove vitrais. Esse conjunto de obras com-
preende, na verdade, duas coleções dis-
tintas: a Coleção Didática e a Coleção
Jeronymo Ferreira das Neves.
Carta manuscrita do pintor
francês Eugene Délacroix, de 1857,
A Coleção Didática abrange a maior par-
aceitando ser membro correspondente
da Academia Imperial de Belas Artes te do acervo do Museu D. João VI. São

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R V O

obras que tiveram e ainda têm funções A aferição da aprendizagem do aluno era
didáticas ou são resultantes das ativida- feita por meio de concursos, com provas
des pedagógicas de uma escola de artes. práticas que iam desde as mais simples,
para iniciantes, até o grau máximo: o
O sistema pedagógico acadêmico contin-
concurso para o Prêmio de Viagem ao
ha certamente um caráter teórico e ide-
Exterior. A contratação de professores
ológico, que manteve sempre sua adesão
era igualmente realizada através de con-
às diretrizes dominantes da tradição ar-
cursos, em que os candidatos deviam
tística ocidental, mas o ensino em si ca-
produzir obras sobre um mesmo tema
racterizava-se pelo pragmatismo, em que
proposto pelo júri.
importavam, sobretudo, a relação direta
entre mestre e aluno e a experiência prá- Durante grande parte do século XIX, pre-
tica no ateliê. dominaram as obras de temas históri-
cos ou retratos. No entanto, a partir da
Os métodos do ensino artístico acadêmico
passagem do XIX para o XX, outros gê-
apoiavam-se essencialmente na prática da
neros tornaram-se importantes, como as
cópia, tanto de obras da Antigüidade greco-
paisagens, as naturezas-mortas e as ce-
romana, quanto dos grandes mestres do
nas do cotidiano. Ao lado desses temas
Renascimento, além do estudo da figura
estritamente artísticos, há no acervo
humana, envolvendo estudos de anatomia
obras que evidenciam a importância do
e de modelo vivo.

Estudo para cena do dilúvio, Gravura de Aléxis François Girard utilizada como recurso
pedagógico para exercício de cópia na Academia Imperial de Belas Artes, Museu D. João VI

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desenho e da pintura na documentação e constituindo um interlocutor indispen-


de expedições científicas. sável, mesmo para seus opositores.

A segunda coleção do acervo, a Coleção Representa, portanto, um estudo de caso


Jeronymo Ferreira das Neves, foi doada privilegiado, uma vez que revela toda a
à ENBA em 1947. De caráter bastante problemática da arte brasileira nos sé-
eclético, reúne pinturas, esculturas, gra- culos XIX e XX: a relação com o Estado e
vuras, tecidos, móveis, imaginária, porce- a participação em projetos políticos; a
lana, prataria, numismática e livros raros, interação com os movimentos artísticos
em sua maioria de origem européia. Des- europeus e a construção da modernidade
tacam-se nesse conjunto as obras do sé- possível no Brasil; a questão do ensino
culo XV – como o medalhão italiano de artístico e, posteriormente, a inserção no
cerâmica esmaltada, proveniente do ate- ambiente universitário. 5
liê de Luca della Robbia, e uma pintura
A consciência das limitações e lacunas
flamenga, atribuída a Quentin Metsys – e
da historiografia tradicional e das possi-
peças do século XVI – como uma pintura
bilidades de outras leituras na
anônima, provavelmente espanhola, e o
reavaliação crítica da academia/escola 6
políptico português, atribuído ao Mestre
levou a pós-graduação da Escola de Be-
do Tríptico de Morryson.
las Artes – depois Programa de Pós-Gra-
duação em Artes Visuais (mestrado e
A PESQUISA SOBRE O ACERVO DO
doutorado) – a investir desde os anos 90
M USEU D. J OÃO VI

D
numa linha de pesquisa sobre a história
esde a sua criação em 1979, do ensino artístico no Brasil, tomando
como referido anteriormente, o como estudo de caso a sua própria traje-
Museu D. João VI atende a pro- tória como instituição.
fessores e alunos da graduação e da pós-
A motivação para o interesse nesse estudo
graduação e pesquisadores de todo o país
é evidente. Por um lado, é a nossa própria
e, eventualmente, do exterior.
história – no sentido em que ainda vivemos,
Trata-se de um acervo importante para na escola de hoje, os sucessos e as limita-
a memória da produção artística brasi- ções de um sistema de ensino artístico que,
leira nos séculos XIX e XX, pois é notó- apesar de muito reformado, guarda linhas
rio que a academia/escola de Belas Ar- de continuidade com o passado. Por outro
tes desempenhou, ao longo de sua tra- lado, as fontes privilegiadas para esse es-
jetória de mais de 180 anos, um papel tudo – grande parte das obras e dos docu-
central na história das artes visuais do mentos ligados diretamente às questões de
nosso país, sendo referência obrigató- ensino – encontram-se na própria escola,
ria tanto na formulação do ensino ofici- no Museu D. João VI.
al, quanto no funcionamento do sistema
Várias iniciativas foram tomadas pela pós-
das artes, sobretudo através da sua
graduação da EBA nessa frente de traba-
vinculação aos salões e às premiações,

pág.152, jan/jun 2008


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lho. Foi desenvolvida uma série de pes- inventário científico e sistemático dos
quisas avançadas – dissertações, teses e acervos museológico e arquivístico. Em
pesquisas de pós- doutoramento com pro- uma primeira etapa, a realização des-
fessores, alunos e pesquisadores ligados se inventário possibilitou a publicação
à escola (alguns destes últimos por meio do Catálogo do acervo de artes visuais ,
de bolsas da Capes, CNPq e Faperj). 7
em 1996. 1 0

Em 1996, com o apoio do CNPq e da Como havia sido criado um padrão de


Capes, foi realizado o seminário 180 registro único, foi possível, em um se-
anos da EBA , de 20 a 22 de novembro, gundo momento, a organização de um
com a participação de pesquisadores de Banco de Dados Informatizados que per-
vários estados, sendo os Anais desse mitiu agilizar a identificação e a locali-
evento publicados em 1997. 8 zação das peças do acervo, além de pos-
sibilitar o cruzamento de informações
Em 2001, foi lançado o livro 185 anos da
entre diversas categorias – autoria, títu-
Escola de Belas Artes, divulgando pesqui-
lo, datação, técnica e material –,
sas desenvolvidas em dissertações, teses
otimizando o acesso do pesquisador às
e estágios de pós-doutorado de professo-
fontes primárias.
res, alunos e pesquisadores ligados à EBA.9
Esse projeto contou com uma equipe
Mas, neste artigo, eu gostaria de enfocar
formada por professores, funcionários
melhor dois projetos visando uma inser-
e alunos da Escola de Belas Artes e do
ção mais direta no Museu D. João VI: o
Núcleo de Computação Eletrônica –
projeto “180 anos da Escola de Belas Ar-
ambos da UFRJ –, assim como de técni-
tes: 1816-1996”, desenvolvido de 1995
cos externos – a maioria museólogos e
a 1999 com o apoio do CNPq, e o projeto
arquivistas, provenientes, respectiva-
“Memória da arte brasileira dos séculos
mente, da Escola de Museologia da
XIX e XX: revitalização do Museu D. João
Unirio e do Arquivo Nacional. A partir
VI da EBA/UFRJ”, iniciado em agosto de
da idéia do professor Carlos Zilio de que
2005 com o patrocínio da Petrobras.
era preciso dar maior visibilidade ex-
O PROJETO CNP Q DE 1995 A 1999: terna ao acervo do Museu D. João VI, e

INFORMATIZAÇÃO DOS ACERVOS com a colaboração da então coordena-

MUSEOLÓGICO E ARQUIVÍSTICO DO dora, professora Cybele Vidal Neto


Fernandes, foi elaborado o projeto “180
M USEU D. J OÃO VI

C
anos da Escola de Belas Artes: 1816-
om o apoio do CNPq, foi desen-
1996” . Seu desenvolvimento foi coor-
volvido o projeto de pesquisa
denado pelas professoras Myriam
“180 Anos da Escola de Belas
Andrade Ribeiro de Oliveira e Sonia
Artes: 1816-1996”, de agosto de 1995
Gomes Pereira e, em sua segunda eta-
a julho de 1999. A base de desenvolvi-
pa, contou com a participação da funcio-
mento do projeto foi a realização de um
nária Jurema Palmeira. 11

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 147-158, jan/jun 2008 - pág.153


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O PROJETO P ETROBRAS A PARTIR DE No momento, estamos empenhados nas


2005: CONSERVAÇÃO , REVITALIZAÇÃO últimas tarefas: a reorganização da re-
E DIVULGAÇÃO DO M USEU D. J OÃO VI serva técnica, que deve ser finalizada,

E
assim como a edição do novo catálogo.
ntre os 3.736 projetos inscritos
no Programa Petrobras Cultural A questão da reserva técnica do Museu
2004/2005, apenas 141 foram D. João VI acabou tomando dimensões
contemplados, após um processo de se- muito mais amplas do que as imaginadas
leção pública. Entre eles, “Memória da na elaboração original do projeto
arte brasileira dos séculos XIX e XX: Petrobras, pois envolvia a tomada de
revitalização do Museu D. João VI – UFRJ”. decisão sobre um velho problema que
Após a aprovação no Ministério da Cultu- afligia o museu: a necessidade de uma
ra, na rubrica da Lei Rouanet, foi implan- solução para as infiltrações no teto de
tado a partir de agosto de 2005, com tér- suas instalações.
mino previsto para dezembro de 2007. 12 Como já foi dito, desde sua criação em
O edital do Programa Petrobras Cultural 1979, o museu passou a ocupar um am-
destacava dois objetivos para a área de plo espaço no segundo andar do prédio
Preservação e Memória: identificação,
pesquisa, conservação e disponibilização
de acervos e coleções representativas da
memória da produção artística no Brasil
e publicação de obras de referência para
a memória das artes no Brasil.

Assim, atendendo a essas especifi-


cações, o nosso projeto estruturou-se em
torno de quatro pontos básicos: a
higienização do acervo; a atualização e
disponibilização do Banco de Dados
Informatizados, contendo o inventário
dos acervos museológico e arquivístico;
a reorganização da reserva técnica; e a
edição de um novo catálogo do museu.

A higienização do acervo museológico


foi realizada entre agosto de 2005 e se-
tembro de 2006. 1 3 A atualização dos
inventários informatizados estendeu-se
de abril de 2006 a abril de 2007, re-
sultando na disponibilização de um ban- Higienização do acervo do Museu D. João VI,
co de dados on-line, no sítio do museu. 14 realizada pelo Projeto Petrobras. Desenho
de modelo vivo, conhecido como “academia”

pág.154, jan/jun 2008


R V O

da reitoria da UFRJ. O local, com cerca no. Basta dizer que a nossa escola pos-
de 1.200 m , foi dividido basicamente em
2
sui atualmente cerca de 1.800 alunos,
três setores: as salas da Seção Técnica, como já foi citado, envolvendo a necessi-
a Reserva Técnica e a ampla Exposição dade de manutenção de salas de aula,
Permanente, onde um circuito cronológi- ateliês, oficinas, laboratórios – muitos
co apresentava as etapas mais importan- com exigência de equipamentos sofisti-
tes da história da academia/escola: a che- cados e que se tornam ultrapassados com
gada da Missão Francesa; a primeira ge- uma velocidade cada vez maior. As ver-
ração de artistas brasileiros formados bas, portanto, são sempre insuficientes
pela academia; a geração da passagem para toda essa demanda, tanto do ensi-
do século e a ENBA; e a história mais no propriamente dito quanto do museu.
recente da EBA.
A segunda constatação diz respeito à uti-
No entanto, a partir do final da década lização do acervo – até em razão de sua
de 1980, o museu começou a apresen- localização num campus universitário
tar problemas de infiltração em sua co- afastado do centro da cidade e, portan-
bertura, constituída por pequenas cúpu- to, fora do circuito de consumo cultural
las de concreto e acrílico, comprometen- da cidade. Assim, a perspectiva de
do também a iluminação do espaço. Des- revitalização não poderia se colocar nos
de então, vários projetos foram feitos mesmos padrões da maioria dos museus
para que a universidade empreendesse e espaços culturais da cidade, em que o
as obras de recuperação, mas o seu cus- apelo à visitação geral é um elemento
to elevado e as dificuldades orçamentá- importante nos seus critérios de julga-
rias impediram a solução do problema. mento para utilização de recursos e es-
tabelecimento de prioridades.
Finalmente, em 2006, foi decidido pela
Congregação da EBA o deslocamento do No nosso caso, o museu é, essencial-
museu para um outro local, no sétimo mente, universitário, voltado para o uso
andar do mesmo prédio da reitoria. No de professores e alunos da instituição e
entanto, a mudança que está sendo im- para os pesquisadores, que têm um in-
plantada não é apenas de lugar, mas, teresse direto em suas fontes primári-
sobretudo, de conceito museológico. E é as. Mais que isso, o museu atende a uma
exatamente esse ponto que nos parece escola de artes, e o seu acervo deve
importante discutir com mais detalhes. servir ao seu propósito original, aquele
que promoveu a própria constituição da
Ao longo dos quase trinta anos de exis-
coleção: servir de instrumento de estu-
tência do Museu D. João VI, algumas
do e observação aos alunos para a com-
constatações puderam ser feitas. A pri-
preensão da tradição artística que
meira e mais evidente são as enormes
embasou a trajetória da arte ocidental
dificuldades financeiras para a manuten-
e até mesmo para a discussão sobre os
ção de um museu numa instituição públi-
métodos de formação do artista.
ca voltada prioritariamente para o ensi-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 147-158, jan/jun 2008 - pág.155


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Desta forma, o acervo do Museu D. João disso, tem servido de base para uma das
VI serve às aulas de Desenho e História principais linhas de pesquisa da pós-gra-
da Arte, e é usado como laboratório nas duação da escola, com uma produção sig-
disciplinas ligadas à restauração, contri- nificativa de dissertações, teses e publi-
buindo na formação dos alunos de gra- cações sobre a história da instituição e a
duação e como apoio à pesquisa aos alu- questão do ensino artístico.
nos de pós-graduação, pois, para todos
O projeto museológico do novo Museu D.
os profissionais no campo da
João VI foi feito pela professora Sonia
visualidade, é importante a compreen-
Gomes Pereira e apóia-se em duas premis-
são tanto da tradição quanto da
sas básicas. A primeira, como já foi dito,
contemporaneidade.
é a disponibilização da reserva técnica ao
Ainda como museu universitário, atende público. A segunda, o acondicionamento e
a estudiosos de todo o Brasil e mesmo a apresentação do acervo na nova reserva
do exterior, uma vez que seu acervo é técnica, inicialmente seguindo o critério do
importante para a compreensão da arte meio artístico (desenho, pintura, gravura,
brasileira dos séculos XIX e XX. Além escultura etc.) e, depois, o critério temático
(exemplos, temas históricos, mitológicos,
alegóricos, decoração arquitetônica, orna-
mento vegetal, estudo anatômico e assim
por diante). Essa decisão é sustentada pela
convicção de que o acervo do Museu D.
João VI, salvo algumas exceções, tem mais
importância como coleção, como série de
objetos, do que propriamente pelas obras
individualmente. Além disso, no meu pró-
prio trabalho de pesquisa, tem ficado cada
vez mais claro que, no universo do ensino
e da produção acadêmica, as escolhas dos
artistas eram muito mais tipológicas do que
artísticas.15 O projeto, portanto, investiu na
compra de trainéis deslizantes, estantes e
mapotecas para armazenamento do acer-
vo, além de equipamentos para controle
climático e de segurança da nova reserva
técnica. O projeto museográfico do novo
Museu D. João VI é da arquiteta Marize
Malta, também professora da EBA/UFRJ.
Equipamentos (trainéis deslizantes Em segundo lugar, ao manter unidos o mu-
para pinturas e estantes para esculturas)
da nova Reserva Técnica do Museu seu, o Arquivo e a Biblioteca de Obras
D. João VI, adquiridos pelo Projeto Petrobras

pág.156, jan/jun 2008


R V O

Raras, a escola agrupa, em um mesmo de Belas Artes da UFRJ trabalhar no


espaço, um verdadeiro centro de memó- sentido de garantir a preservação de seu
ria da instituição – facilitando, dessa for- acervo e ampliar as possibilidades de
ma, não apenas os cuidados com conser- utilização dessas fontes primárias para
vação e vigilância, mas o acesso dos usuá- os pesquisadores – não apenas desta uni-
rios ao seu acervo histórico e artístico. versidade ou do Rio de Janeiro, mas de
todo o Brasil e mesmo do exterior – in-
Assim, graças ao patrocínio da
teressados no estudo da arte brasileira
Petrobras, está sendo possível à Escola
dos séculos XIX e XX.

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UFRJ, 1997. p. 127-146.
2. PEREIRA, Sonia Gomes. A reforma urbana de Pereira Passos e a construção da identidade
carioca . 2. ed. Rio de Janeiro: Pós-Graduação da EBA/UFRJ, 1998.
3. O vencedor do Prêmio de Viagem ao Exterior recebia uma pensão para permanecer al-
guns anos na Europa (em geral na Itália ou na França) estudando no ateliê de algum
mestre afamado. A cada ano, devia cumprir obrigações, com grau crescente de dificulda-
de: esses exercícios eram enviados para o Brasil para serem analisados pelos professo-
res da academia. Dessa avaliação dos “envios” dependia a manutenção da pensão.
4. Vários pesquisadores de outros estados têm utilizado as fontes primárias do Museu D.
João VI para o desenvolvimento de suas pesquisas. Como exemplo, podemos citar:
DIAS, Elaine Cristina. Félix-Émile Taunay : cidade e natureza no Brasil . Tese (Doutorado
em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Cam-
pinas, Campinas, 2005.
5. A maior parte da historiografia sobre a arte brasileira foi escrita sob o ponto de vista
modernista. Assim, a sua relação com o passado estruturou-se, de um lado, na mitificação
do período colonial e, de outro, na condenação e no desprezo pela arte do século XIX,
considerada, grosso modo , acadêmica, mero pastiche da arte européia, sobretudo fran-
cesa. Essa abordagem trouxe alguns problemas sérios. Um deles foi a falta de proteção
ao patrimônio do século XIX, muitas vezes demolido com o aval dos próprios órgãos
encarregados de sua preservação. Outro problema foi a crítica apaixonada e militante
que fez com que a maioria dos estudos sobre a trajetória dessa instituição fosse marcada
pelo maniqueísmo: a rejeição a priori de tudo o que tivesse a ver com a academia/
escola, ou então a sua defesa incondicional, freqüentemente em um discurso laudatório
vazio. É importante enfatizar que essa reavaliação não deve tomar, na minha opinião, a
conotação de pura e simples reabilitação da arte acadêmica, mas, sim, estar inserida em
um cenário mais amplo de reavaliação crítica de toda a arte do século XIX, que vem
sendo processada desde os anos 60 na Europa e nos Estados Unidos e a partir dos anos
80 no Brasil.
6. PEREIRA, Sonia Gomes. Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro: revisão
historiográfica e estado da questão. Revista Arte & Ensaios , Rio de Janeiro, n. 8, p. 72-
83, 2001.
7. Seria impossível listar as teses e dissertações que têm sido desenvolvidas no âmbito do
Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ sobre a história do ensino
artístico. A título de exemplo, destaco algumas pesquisas mais recentes: SÁ, Ivan Coe-

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 147-158, jan/jun 2008 - pág.157


A C E

lho de. Academias de modelo vivo e bastidores da pintura acadêmica brasileira : a


metodologia de ensino do desenho e da figura humana na matriz francesa e sua adapta-
ção no Brasil do século XIX ao início do século XX . Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ,
2004; UZEDA, Helena Cunha de. Ensino acadêmico e modernidade : o curso de arquitetu-
ra da Escola Nacional de Belas Artes 1890-1930 . 2006. Tese (Doutorado em Artes Visu-
ais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2006; OLIVEIRA, Ana Slade Carlos de. Arquitetura moderna brasileira e as experiências
de Lucio Costa na década de 1920. 2007. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) –
Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007; VALLE, Arthur
Gomes. A pintura da Escola Nacional de Belas Artes na 1ª República (18890-1930) : da
formação do artista aos seus modos estilísticos . 2007. Tese (Doutorado em Artes Visu-
ais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2007. Várias dessas pesquisas têm sido divulgadas, de forma resumida, pela Revista
Arte & Ensaios , do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ.
8. 180 anos da Escola de Belas Artes. In: PEREIRA, Sonia Gomes (org.). SEMINÁRIO EBA
180, Rio de Janeiro. Anais ... Rio de Janeiro: PPGAV/EBA/UFRJ, 1997. Apresentação.
9. PEREIRA, Sonia Gomes (org.). 185 anos da Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: PPGAV/
EBA/UFRJ, 2001. p. 221.
10. MUSEU D. JOÃO VI. Catálogo do Acervo de Artes Visuais do Museu D. João VI . Rio de
Janeiro: Pós-graduação da EBA/UFRJ/CNPq, 1996. p. 286.
11. A equipe era integrada por 12 bolsistas do CNPq de diversas categorias: apoio técnico,
aperfeiçoamento e iniciação científica. Vários desses bolsistas eram alunos da UFRJ,
além de alguns técnicos externos à universidade, mas todos museólogos – como Ivan
Coelho de Sá, Maria Cristina Negrão, Ruth Nina Levy, entre outros – ou arquivistas –
como Celina Coelho, do Arquivo Nacional. O sistema para o Banco de Dados
Informatizados foi elaborado pelo professor Pedro Manoel da Silveira, do Núcleo de
Computação Eletrônica da UFRJ. O apoio do CNPq possibilitou a compra, em 1998, de
equipamentos (seis computadores, duas impressoras e três aparelhos de ar-condicio-
nado) para o desenvolvimento do projeto e a instalação da sala de consulta para os
pesquisadores.
12. A partir da sugestão da diretora da EBA/UFRJ, professora Angela Ancora da Luz, apresen-
tamos à Petrobras o projeto, que é coordenado pela professora Sonia Gomes Pereira.
13. A higienização do acervo foi realizada sob a coordenação da museóloga Mariza Vilela e
da equipe formada por Cristina Rios de Castro e Vera Lúcia Car minatti, com a participa-
ção de Cecília Barreto Pinto e Hilário Ferreira da Silva – todos alunos da EBA/UFRJ.
Atualmente, o acervo de pintura está recebendo um tratamento de conservação, liderado
pela restauradora Maria Alice Castelo Branco e pela equipe formada por Cristina Rios de
Castro, Vera Lúcia Carminatti e Andréia da Silva Santos, com a participação de Hilário
Ferreira da Silva – todos alunos da EBA/UFRJ.
14. O endereço do sítio é <www.museu.eba.ufrj.br>. A conferência do acervo foi realizada,
inicialmente, por Reginaldo Rocha, e depois por Cristina Rios de Castro e Vera Lúcia
Carminatti – todos alunos da EBA/UFRJ –, além dos funcionários do Museu D. João VI:
Ana Maria Moura de Alencar (coordenadora do museu), Danilo Basto Silva e Hamilton
Malhano. Para a expansão do Banco de Dados e elaboração do site , contamos com o
analista de sistemas Alexandre Wrigg e a designer Martha Werneck, ambos alunos da
UFRJ.
15. PEREIRA, Sonia Gomes. Desenho, composição, tipologia e tradição clássica: uma dis-
cussão sobre o ensino acadêmico do século XIX. Revista Arte & Ensaios , Rio de Janeiro,
n. 10, p. 40-49, 2003. PEREIRA, Sonia Gomes. A historiografia da arquitetura brasileira
no século XIX e os conceitos de estilo e tipologia. Revista Estudos Ibero-Americanos ,
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Recebido em 04/12/2007
Aprovado em 21/12/2007

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Durham: Duke University Press, 2001.

pág.168, jan/jun 2008


A PRESENTAÇÃO
Embarque da família real para o Brasil em 1807. Álbum comemorativo da Exposição
de Estampas Antigas sobre Portugal por artistas estrangeiros dos séculos XVI a XIX,
realizada nos Museus Nacionais de Arte Antiga, de Lisboa e de Soares dos Reis . Porto:
R V O
Maranus-Empresa Industrial Gráfica do Porto Ltda., 1946. OR 1582 Bib.

I M A G E N S

A PRESENTAÇÃO
Embarque da família real para o Brasil em 1807. Álbum comemorativo da Exposição
de Estampas Antigas sobre Portugal por artistas estrangeiros dos séculos XVI a XIX,
realizada nos Museus Nacionais de Arte Antiga, de Lisboa e de Soares dos Reis . Porto:
Maranus-Empresa Industrial Gráfica do Porto Ltda., 1946. OR 1582 Bib.

C HEGADA DA CORTE – 200 ANOS : ROMANTISMO E CIENTIFICISMO

Francisco José Calazans Falcon

Vista da cidade do Rio de Janeiro tomada da Igreja de N. S. da Glória. DEBRET, Jean-Baptiste.


Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d’un artiste français au Brésil, depuis
1816 jusqu’en 1831... Paris: Firmind Didot Frères, 1834-1839. OR 1909 – p. 10.

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Estatutos do Instituto Histórico e


Geográfico Brasileiro , instalado no Rio de Janeiro no dia 21 de outubro de 1838, sob
os auspícios da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional: debaixo da imediata pro-
teção de S.M.I. o Senhor D. Pedro II, reformados em Assembléia Geral de 10 de no-
vembro de 1839. Rio de Janeiro: Typ. de J.E.S. Cabral, 1839. 13 p.; 21cm. (Wanderley
Pinho). FOR 0987 – p. 15.

Rio, visto do morro da Glória. GRAHAM, Maria Dundas. Journal of a voyage to Brazil
and residence there during part of the 1821, 1822, 1823 . London: Longman Group
Limited, 1824. OR 0595 Bib – p. 16.

Recibo de carga do brigue escuna Aurora. Salvador, 10 de março de 1818. Junta do


Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Caixa 373 – p. 21.

Abertura dos Portos Brasileiros ao Comércio Exterior. Salvador, 29 de janeiro de 1808.


Alfândega da Bahia. Códice 212 – p. 22.

A LEGRIAS E INFORTÚNIOS DOS SÚDITOS LUSO - EUROPEUS E AMERICANOS : A

TRANSFERÊNCIA DA C ORTE PORTUGUESA PARA O B RASIL EM 1807


Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves

Assinatura de Napoleão Bonaparte. Tratado de paz entre França e Portugal estabele-


cendo o fechamento dos portos portugueses na Europa aos navios da Inglaterra e fixan-
do os limites entre a Guiana Francesa e o Brasil. Paris, 9 de outubro de 1801. Negóci-
os de Portugal. Códice 740 – p. 28.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 159-170, jan/jun 2008 - pág.169


A C E

Selo do tratado de paz entre França e Portugal estabelecendo o fechamento dos portos
portugueses na Europa aos navios da Inglaterra e fixando os limites entre a Guiana Fran-
cesa e o Brasil. Paris, 9 de outubro de 1801. Negócios de Portugal. Códice 740 – p. 29.

Carta do marquês de Alorna aconselhando o príncipe d. João a sair de Portugal. Castelo


Branco, 3 de maio de 1801. Negócios de Portugal. Painel 25, caixa 712 – p. 30.

Gravura alegórica à retirada providencial da corte portuguesa. PEREIRA, Ângelo. Os


filhos de El-Rei D. João VI : reconstituição histórica com documentos inéditos que, na
sua maioria, pertenceram ao Real Gabinete. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade,
1946. OR 4385 – p. 35.

Vista geral da cidade do Rio de Janeiro. DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage pittoresque


et historique au Brésil , ou séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en
1831... Paris: Firmind Didot Frères, 1834-1839. OR 1909 – p. 39.

S OBRE O TAMANHO DA COMITIVA

Jurandir Malerba

D. Carlota Joaquina do Brasil. PEREIRA, Ângelo. Os filhos de El-Rei d. João VI :


reconstituição histórica com documentos inéditos que, na sua maioria, pertenceram ao
Real Gabinete. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1946. OR 4385 – p. 46.

Planta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Impressão Régia,
1812. Ministério da Viação e Obras Públicas. 4Y Map 534 – p. 49.

Papéis relativos à vinda da família real para o Brasil (Relação das pessoas que vieram
e das naus que fizeram o transporte), 1808. Negócios de Portugal. Códice 730 – p. 51.

Frente principal do edifício para o sul, que faz o centro na rua do Ouvidor. José da
Silva Moniz, primeiro arquiteto dos Paços Reais e encarregado das Obras Públicas
por Carta do Príncipe Regente. Rio de Janeiro, 1812. Proveniência desconhecida. F2
Map 373 – p. 52.

A CRISE DO IMPÉRIO E A QUESTÃO DA ESCRAVIDÃO : P ORTUGAL E B RASIL ,


C .1700- C .1820
Kirsten Schultz

Africanos de Benguela e Angola. RUGENDAS, Johann Moritz. Voyage pittoresque dans le


Brésil . Paris: Engelmann & Cie., 1835. OR 2119 Bib – p. 65.

A lady going to visit. KOSTER, Henry. Travels in Brazil. London: Longman, 1816. OR
0951 – p. 69.

O mercado de escravos. CHAMBERLAIN, Sir Henry. Vistas e costumes da cidade e arredores


do Rio de Janeiro em 1818-1820. Rio de Janeiro: Kosmos, 1943. OR 1985 Bib – p. 71.

pág.170, jan/jun 2008


R V O

O CATIVEIRO NA ARTE : REPRESENTAÇÕES OITOCENTISTAS DO COMÉRCIO DE

ESCRAVOS NO B RASIL
Roberto Conduru

Interior de uma casa de ciganos. DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage pittoresque et


historique au Brésil , ou séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en
1831... Paris: Firmind Didot Frères, 1834-1839. OR 1909 – p. 83.

Mercado de negros. RUGENDAS, Johann Moritz. Voyage pittoresque dans le Brésil . Pa-
ris: Engelmann & Cie., 1835. OR 2119 Bib – p. 85.

Recibo de compra e venda de um escravo de nome Benedito, de nação crioulo, Rio de


Janeiro, 4 de outubro de 1851. Litografia Ludwig & Briggs. Família Rego Martins Cos-
ta . AP 56, caixa 1, pacote 1 – p. 87.

Vendedor de arruda. DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil ,


ou séjour d’un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu’en 1831... Paris: Firmind
Didot Frères, 1834-1839. OR 1909 – p. 92.

Ó PERA E CELEBRAÇÃO : OS ESPETÁCULOS DA CORTE PORTUGUESA NO B RASIL


Paulo Mugayar Kühl

Vista da sala de espetáculos na praça do Rossio. ARAGO, Jacques Étienne Victor. Voyage
autor du monde: fait par ordre du Roi sur les corvettes de S. M. l’Uranie et la Physicienne,
pedant les années 1817,1818,1819 et 1820. Paris: Imprimerie en Taille-Douce de
Langlois, 1824-1826. OR 2126 Bib – p. 97.

Praça do teatro. ENDER, Thomas. O velho Rio de Janeiro através das gravuras de Thomas
Ender . São Paulo: Melhoramentos, s.d. ACG06053 – p. 99.

Pano de boca executado para a representação extraordinária dada no Teatro da Corte


por ocasião da coroação de dom Pedro I, imperador do Brasil. DEBRET, Jean-Baptiste.
Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d’un artiste français au Brésil, depuis
1816 jusqu’en 1831... Paris: Firmind Didot Frères, 1834-1839. OR 1909 – p. 108.

DA EXPEDIÇÃO CIENTÍFICA À FICCIONALIZAÇÃO DA VIAGEM : M ARTIUS E SEU

ROMANCE INDIANISTA SOBRE O B RASIL


Karen Macknow Lisboa

Aves na lagoa junto ao São Francisco. J. B. Spix e K. F. Von Martius, Ph. Reise in
Brasilien... in den Jahren 1817 bis 1820 ... München: Gedruckt bei M. Lindauen, 1823-
1831. Álbum 46, prancha 43 – p. 114.

José de Santa Rita Durão. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. Lisboa:
Regia Officina Typographica, 1781. OR 0022 Bib 1781 – p. 118.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 159-170, jan/jun 2008 - pág.171


A C E

Índio Juri. J. B. Spix e K. F. Von Martius, Ph. Reise in Brasilien... in den Jahren 1817 bis
1820... München: Gedruckt bei M. Lindauen, 1823-1831. Álbum 46, prancha 7 – p. 121.

E NTRE A BRANDURA E A FORÇA

Maria Elizabeth Brêa Monteiro

Família de Botocudos. D’ ORBIGNY, Alcide Dessalines. Voyage pittoresque dans les


deux Amériques : resumé general de tous les voyages. Paris: Chez L. Tenré, Libraire-
Éditeur, 1836. OR 1433 – p. 132.

Os Puris em suas florestas. PHILIPP, Maximilien Alexander, prinz von Wied-Neuwied.


Voyage au Brésil dans les années 1815, 1816 et 1817 . Paris: Arthus Bertrand, Libraire,
1821-1822. OR 1753 Atlas Bib – p. 135.

Or namentos e utensílios dos camacans. PHILIPP, Maximilien Alexander, prinz von Wied-
Neuwied. Voyage au Brésil dans les années 1815, 1816 et 1817 . Paris: Arthus Bertrand,
Libraire, 1821-1822. OR 1753 Atlas Bib – p. 141.

O M USEU D. J OÃO VI
Sonia Gomes Pereira

Carta manuscrita do pintor francês Eugene Délacroix, de 1857, aceitando ser membro
correspondente da Academia Imperial de Belas Artes. Arquivo do Museu D. João VI/
EBA/UFRJ – p. 150.

Estudo para cena do dilúvio. Gravura de Aléxis François Girard utilizada como recurso
pedagógico para exercício de cópia na Academia Imperial de Belas Artes. Museu D.
João VI/EBA/UFRJ – p. 151.

Higienizaçäo do acervo do Museu D. João VI, realizada pelo Projeto Petrobras. Dese-
nho de modelo vivo, conhecido como “academia” – p. 154.

Equipamentos (trainéis deslizantes para pinturas e estantes para esculturas) da nova


Reserva Técnica do Museu D. João VI, adquiridos pelo Projeto Petrobras – p. 156.
Todas as imagens utilizadas nos artigos, à exceção do Perfil Institucional, foram
selecionadas no acervo arquivístico e bibliográfico do Arquivo Nacional.

pág.172, jan/jun 2008


R V O

Instruções aos
Colaboradores

I . A revista Acervo , de periodicidade se- I V. O m a t e r i a l p a r a p u b l i c a ç ã o d e v e


mestral, dedica cada número a um ser encaminhado em uma via im-
tema distinto, e tem por objetivo di- pressa e uma em disquete ou por
vulgar e potencializar fontes de pes- intermédio de e-mail com arquivo
quisa nas áreas de ciências humanas anexado, no programa Word 7.0 ou
e sociais e documentação. Acervo compatível.
aceita somente trabalhos ainda inédi-
V. Os textos devem ter entre 10 e 15
tos em português, sob a forma de ar-
laudas (fonte Times New Roman;
tigos e resenhas.
corpo 12; entrelinha 1,5 linha), ex-
II. Todos os textos recebidos são subme- cetuando-se as resenhas, com apro-
tidos ao Conselho Editorial, que pode ximadamente cinco laudas. Devem
recorrer, se necessário, a pareceristas. conter de três a cinco palavras-cha-
ve e vir acompanhados de resumo
III.O editor reserva-se o direito de efetu-
em português e inglês, com cerca
ar adaptações, cortes e alterações nos
de cinco linhas cada. Após o título
trabalhos recebidos para adequá-los
do artigo, constam as referências
às normas da revista, respeitando o
do autor (instituição, cargo,
conteúdo do texto e o estilo do autor.
titulação).
Os textos em língua estrangeira são
traduzidos para o português. VI.Devem ser enviadas também de três

Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, nº 1, p. 159-170, jan/jun 2008 - pág.173


A C E

a cinco imagens em preto e bran- de esquerda de 1961 a 1971. São


co, com as respectivas legendas e Paulo: Marco Zero, 1985.
referências, preferencialmente
Artigo em coletânea: LUZ, Rogerio.
com indicação, no verso, sobre sua
Cinema e psicanálise: a experiência
localização no texto. As ilustrações
ilusória. In: Experiência clínica e ex-
devem ser remetidas em papel fo-
periência estética . Rio de Janeiro:
tográfico no tamanho de 10x15cm
Revinter, 1998.
ou escaneadas em alta resolução
(tamanho da imagem: mínimo de Artigo em periódico: JAMESON, Fredric.
10x15cm; resolução: 300dpi; for- Pós-modernidade e sociedade de con-
mato: TIF). sumo. Novos Estudos CEBRAP. São
Paulo: nº 12, jun. 1985, p.16-26.
VII. As notas figuram no final do tex-
to, em algarismo arábico, dentro Tese acadêmica: ANDRADE, Ana
dos padrões estipulados pela Maria Mauad de Sousa. Sob o sig-
ABNT. A citação bibliográfica deve no da imagem : a produção da foto-
ser completa quando o autor e a grafia e o controle dos códigos de
obra estiverem sendo indicados representação social da classe do-
pela primeira vez. Ex: ORTIZ, Re- minante no Rio de Janeiro, na pri-
nato. A moderna tradição brasi- meira metade do século XIX.
leira. São Paulo: Brasiliense, 1990. Tese (Doutoramento em his-
1991. p. 28. tória), Universidade Federal
Fluminense, Niterói.
VIII. Em caso de repetição, utilizar ORTIZ,
Renato, op. cit., p. 22. X. Caso o artigo ou resenha seja publi-
cado, o autor terá direito a cinco
IX. A bibliografia é dispensável. Caso
exemplares da revista.
o autor considere relevante, deve
relacioná-la ao final do trabalho. XI. As colaborações poderão ser envia-
Essas referências serão publicadas das para o seguinte endereço:
na seção BIBLIOGRAFIA, figurando
Revista Acervo
em ordem alfabética, dentro dos
p a d r õ e s d a A B N T, c o n f o r m e o s Arquivo Nacional – Coordenação Ge-
exemplos abaixo: ral de Acesso e Difusão Documental

Livro: FERNANDES, Florestan. A re- Praça da República, 173, Bloco B,


volução burguesa no Brasil . Rio de sala B002, Centro – Rio de Janeiro –
Janeiro: Zahar, 1976. RJ – Brasil – CEP: 20211-350

Coletânea: REIS FILHO, Daniel Aarão XII. Informações sobre o periódico po-
e SÁ, Jair Ferreira de (orgs.). Ima- dem ser solicitadas pelo telefone
gens da revolução: documentos polí- (21) 2179-1253 ou via e-mail
ticos das organizações clandestinas (difusaoacervo@arquivonacional.gov.br).

pág.174, jan/jun 2008

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