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Introdução - Importância Prática das Ciências Sociais

§ 1.° A luta de classe e as ciências sociais

Quando os sábios burgueses se referem a uma ciência qualquer,


assumem um ar misterioso como se se tratasse duma coisa do céu e não da
terra. No entanto qualquer ciência tem a sua origem nas necessidades da
sociedade ou das classes que a compõem. Ninguém se põe a contar as
moscas que estão sobre uma janela ou os passarinhos na rua. No entanto
contam-se, por exemplo, as cabeças de gado. Ninguém precisa dos primeiros
enquanto é útil conhecer os segundos. Mas não é suficiente conhecer a
natureza de onde tiramos tantas coisas úteis, as matérias primas etc.; é
necessário também, do ponto de vista prático, ter noções claras do que seja a
sociedade. A classe trabalhadora sente a cada momento, na sua luta, a
necessidade desse conhecimento. Para levar avante convenientemente o
combate contra as outras classes, ela deve prever a maneira pela qual essas
classes vão agir. E, para estar em condições de prever, é preciso conhecer as
razões que determinam a ação das diferentes classes, em diferentes situações.
Enquanto a classe operaria não conquistar o poder, ela será oprimida pelo
capital e obrigada a contar, na sua luta pela emancipação, com as maneiras de
agir das outras classes. Esta é a razão porque precisa saber do que depende e
como é determinada a conduta dessas classes. Somente as ciências sociais
podem resolver este problema. Depois de tomado o poder a classe proletária é
obrigada a lutar contra os estados capitalistas dos outros países e contra a
contrarrevolução, no seu próprio país; e nessa ocasião ela é obrigada a
resolver os problemas extremamente difíceis relativos à organização de
produção e distribuição. Como estabelecer um plano econômico de trabalho?
Como se servir dos intelectuais? Como converter ao comunismo, os
camponeses e a pequena-burguesia? Como formar administradores
experimentados, saídos da classe proletária? Como se aproximar das grandes
camadas que ainda não têm consciência da sua classe? Etc., etc... Questões
cuja solução exige um conhecimento profundo da sociedade, das classes que a
compõem, das particularidades delas e da sua conduta, em determinadas
condições. A solução destes problemas exige igualmente o conhecimento da
vida econômica e das concepções sociais dos diversos grupos da sociedade.
Em resumo ela exige a utilização pratica da ciência social. A tarefa prática da
reconstrução social só pode ser realizada com a aplicação de uma política
cientifica da classe proletária, isto é, de uma política baseada sobre a teoria
cientifica, posta á disposição dos proletários; a teoria fundada por Marx.
§ 2.º A burguesia e as ciências sociais

A burguesia de seu lado criou a sua própria ciência social, partindo das
suas próprias necessidades da vida prática.

Como classe dominante ela se vê obrigada a resolver um grande numero


de problemas: Como conservar a ordem capitalista? Como assegurar o
pretendido "desenvolvimento normal" da sociedade capitalista? Isto é, a
usurpação regular do lucro? Como organizar para este fim as instituições
econômicas? Qual a política a ser adotada com relação aos outros países?
Como garantir a sua dominação sobre a classe proletária? Como resolver as
divergências dentro do seu meio? Como preparar os quadros de seus
funcionários, de seus policiais, de seus sábios, de seu clero? Como organizar a
instrução de maneira a impedir que a classe proletária se torne uma classe de
selvagens, que destruam as máquinas, ficando, entretanto submissa aos seus
exploradores? Etc.

Eis a razão porque a burguesia precisa duma ciência social que a ajude a
se guiar na complexidade da vida social e que lhe forneça meios para resolver
os problemas práticos da existência.

É interessante verificar que os primeiros economistas burgueses ou sábios


especializados na economia, foram práticos saídos do alto comercio ou
homens ligados ao serviço do Estado. Ricardo, o maior teórico da burguesia,
era um banqueiro muito hábil.

§ 3.° O caráter de classe das ciências sociais

Os sábios burgueses se intitulam os representantes da "ciência pura",


dizem que as paixões terrestres, o conflito dos interesses, as dificuldades da
existência, a procura do lucro, e outras coisas vulgares e inferiores, não têm
relação com a sua ciência. Eles consideram as coisas como se o sábio fosse
um deus, sentado no cume de uma alta montanha e observando sem paixão a
vida social em toda a sua complexidade. Eles pensam (ou antes, eles dizem)
que a imunda "prática" não exerce influencia alguma sobre a "teoria" pura.

Está claro, pelo já exposto, que tudo isto é fantasia. Pelo contrario, a
ciência nasce da vida prática. Torna-se assim perfeitamente compreensível que
as ciências sociais tenham caráter de classe. Cada classe tem uma existência
prática que lhe é peculiar; os seus próprios problemas, seus interesses e suas
concepções particulares. A burguesia se esforça antes de tudo em conservar,
consolidar e tornar universal e eterna a dominação do capital. Quanto à classe
proletária, ela se preocupa antes de tudo em destruir o regime capitalista e
assegurar a dominação do proletariado, para reorganizar o mundo. Não é difícil
compreender que a burguesia tenha uma concepção do mundo,
completamente diferente da concepção proletária; que a ciência social da
burguesia seja uma, e que a do proletariado seja completamente diversa.

§ 4.º Porque motivo a ciência proletária é superior a ciência burguesa?

Esta é a questão que agora se nos apresenta. Se as ciências sociais têm


um caráter de classe, porque motivo é a ciência proletária superior a burguesa?
A classe proletária, tanto quanto a burguesia, têm os seus interesses, suas
aspirações, e sua própria vida prática. Elas são tão interesseiras uma quanto a
outra. O fato de uma classe ser boa, generosa, preocupada com o bem da
humanidade, e a outra cúpida, procurando somente o lucro, etc., mudará de
alguma maneira a questão?

Uma usa óculos vermelhos, a outra óculos brancos; porque serão os


óculos vermelhos superiores aos óculos brancos? Porque motivo será mais
fácil observar a realidade através de óculos vermelhos? Por que se enxerga
melhor com eles?

Antes de responder a estas questões é necessário refletir alguns instantes.

Vejamos qual é a situação da burguesia. Nós já observamos que antes de


tudo ela se interessa em manter a ordem capitalista; no entanto sabemos que
nada há de eterno debaixo do sol. Houve uma era de regime escravista e em
seguida outra de regime feudal; houve também, e há ainda, um regime
capitalista; conheceram-se ainda outras formas de sociedades humanas. Se
assim é — e isso é incontestável — pode-se tirar a seguinte conclusão: quem
quiser compreender corretamente a vida social, deve compreender antes de
mais nada que tudo muda e que uma forma social sucede a outra. Vamos
tomar, por exemplo, um senhor feudal, vivendo antes da libertação dos servos.
Era-lhe absolutamente impossível imaginar um regime onde os servos não
pudessem ser vendidos ou trocados por cães de caça.

Podia esse senhor feudal compreender as condições reais do


desenvolvimento social? Certamente que não. Por que: Pela simples razão
dele ter diante dos seus olhos, invés de óculos, espessa faixa. Ele era,
portanto, incapaz de enxergar um palmo diante do seu nariz, e não podia,
nestas condições, compreender o que se passava na sua frente.

O mesmo exatamente sucede com a burguesia. Sendo interessada em


conservar o regime capitalista, ela crê em sua solidez e na sua eternidade.
Este é o motivo pelo qual ela não pode observar certas particularidades e
fenômenos do desenvolvimento da sociedade capitalista, que indicam sua
fragilidade, sua decadência inevitável (ou mesmo sua decadência possível),
sua transformação em outra ordem social. É no estudo do exemplo da guerra
mundial e da Revolução que se pode observar claramente a falta de visão da
burguesia. Qual foi entre os sábios burgueses aquele que previu as
consequências da conflagração mundial? Ninguém. Quem dentre eles previu a
vinda da Revolução? Eles não fizeram mais que sustentar os seus governos
burgueses e prometer a vitória aos capitalistas dos seus países. No entanto
são fenômenos tais como o empobrecimento resultante da guerra e as
Revoluções proletárias, desconhecidos até então, que decidem do futuro da
humanidade e modificam o aspecto do mundo. Foi aqui precisamente que a
ciência burguesa nada previu.

Os comunistas, pelo contrario, representantes da ciência proletária,


previram este fenômeno. Isto se explica pelo fato do proletariado, não sendo
interessado na conservação da antiga ordem, poder ver mais longe do que a
burguesia.

É fácil compreender agora porque motivo a ciência proletária é superior á


ciência burguesa. Ela é superior porque estuda os fenômenos da vida social de
uma maneira mais larga e profunda, porque ela tem uma maior visão e observa
coisas que a ciência social burguesa é incapaz de enxergar. Compreende-se
assim que nós outros, marxistas, temos o direito de considerar a ciência
proletária como a verdadeira ciência e exigir que ela seja reconhecida como tal.

§ 5.° As diversas ciências sociais e a sociologia

A sociedade humana é extremamente complexa, e os fenômenos sociais


são por sua vez, muito complexos e variados. Temos que tratar dos fenômenos
econômicos, do regime econômico, da organização do Estado, da moral, da
religião, da ciência, da filosofia, das condições da família etc.... Todos estes
fenômenos se acham emaranhados e formam a torrente da vida social. Está
claro que é preciso estudar esta vida social, tão complexa, de diferentes pontos
de vista, e dividir a ciência em uma série de ciências particulares. Uma estuda
a vida econômica da sociedade (a ciência econômica) ou mesmo, as leis gerais
do regime capitalista, em particular (a economia política); outra estuda o direito
e o Estado e se subdivide por sua vez em vários ramos: uma outra estuda por
exemplo os costumes etc...

Em cada um desses domínios a ciência se divide por sua vez em duas


classes: umas estudam o que existiu numa certa época e em determinado
lugar; estas são as ciências históricas. Tomemos por exemplo as ciências do
direito: pode-se estudar e descrever em detalhe as origens do direito e do
Estado assim como as suas transformações: isto será a historia do direito.
Pode-se também estudar e procurar resolver problemas de ordem geral: o que
é o direito, quais são as condições do seu aparecimento e desaparecimento, de
que dependem as suas formas, etc...; isto será a teoria do direito. Estas
ciências são as ciências teóricas.
Existem entre as ciências sociais dois ramos muito importantes que não
estudam só um domínio da vida social, mas sim a vida social em toda a sua
complexidade; em outros termos elas não se detêm em observar um só gênero
de fenômenos (seja econômico, jurídico, religioso, etc.), mas eles estudam a
vida social no seu conjunto, todas as manifestações dos fenômenos sociais.
Estas ciências constituem de um lado a história e do outro a sociologia. Dito
isto, é fácil ver o que as diferencia. A historia segue e descreve a corrente da
vida social durante um intervalo de tempo e num determinado lugar (por
exemplo, a maneira como se desenvolvem a economia, o direito, a moral, a
ciência, etc.... na Rússia de 1700 a 1800, ou então na China do ano 2000 antes
de Cristo até o ano 1000 depois de Cristo, ou ainda na Alemanha depois da
guerra Franco-Alemã, de 1871, ou enfim, em uma outra época num país
qualquer, ou numa série de países). Quanto à sociologia, procura resolver
problemas de ordem geral: o que é sociedade? Quais são as razões do seu
desenvolvimento e de sua decadência? Quais são as relações entre os
diversos gêneros de fenômeno sociais (a economia, o direito, a ciência, etc...)?
Como explicar o seu desenvolvimento? Quais são as formas históricas da
sociedade? Como explicar suas variações? Etc., etc... A sociologia é a mais
geral e a mais abstrata das ciências sociais.

Ela é apresentada muitas vezes sob outras denominações: "filosofia da


história", "teoria do desenvolvimento histórico" etc... Vê-se pelo que precedem,
quais são as relações entre a história e a sociologia. Explicando as leis gerais
da evolução humana, a sociologia serve de método a historia. Se, por exemplo,
a sociologia estabelece uma lei geral segundo a qual as formas do Estado
dependem das formas da economia, um historiador, estudando uma dada
época, deve-se esforçar em encontrar a relação e indicar a forma concreta (isto
é, correspondente ao momento dado) em que ela se exprime. O historiador
fornece os materiais para as conclusões e as generalizações sociológicas,
porque essas conclusões não são tomadas arbitrariamente, e sim tiradas de
fatores históricos reais.

A sociologia, por sua vez formula um ponto de vista definido, um processo


de investigação, ou melhor, um método para a história.

§ 6.° A teoria do materialismo histórico considerada como sociologia


marxista

A classe proletária tem sua sociologia própria, conhecida pelo nome de


materialismo histórico. Os princípios desta teoria foram estabelecidos por
Marx e Engels. Ela é também chamada a concepção materialista da história, ou
mais simplesmente o "materialismo econômico". Essa teoria genial constitui o
mais preciso instrumento do pensamento e do conhecimento humano. É graças
a ela que o proletariado consegue se guiar no meio dos mais complicados
problemas da vida social e da luta de classe. É graças a ela que os comunistas
previram a guerra e a Revolução, a ditadura do proletariado, e a linha de
conduta dos partidos, dos grupos e das diferentes classes, no decorrer da
formidável efervescência que a humanidade atravessa. A presente obra é
consagrada á exposição e desenvolvimento desta teoria.

Certos camaradas pensam que a teoria do materialismo histórico não pode


de maneira alguma ser considerada como uma sociologia marxista e que ela
não pode ser exposta de uma maneira sistemática. Acham esses camaradas
que ela não é senão um método vivo de conhecimento histórico, que suas
verdades não podem ser provadas senão em se tratando de fenômenos
concretos e históricos. Junta-se a este argumento que a própria noção de
sociologia está muito mal definida: que entende-se por "sociologia", ora a
ciência da cultura primitiva e da origem das formas essenciais da comunidade
humana (por exemplo, a família), ora considerações extremamente vagas
sobre diferentes fenômenos sociais "em geral", ora a comparação arbitraria da
sociedade a um organismo (a escola orgânica ou biológica na sociologia).
Estes argumentos são falsos. Em primeiro lugar, a confusão que reina no
campo burguês não nos deve levar a criar outra entre nós. Que lugar deve
portanto ocupar a teoria do materialismo histórico? Não será na economia
política nem tão pouco na historia; seu lugar está na ciência geral da sociedade
e das leis de sua evolução, isto é, na sociologia. Por outro lado, o fato do
materialismo histórico constituir um método para a história, não diminui de
maneira alguma a sua importância como teoria sociológica. Muitas vezes uma
ciência mais abstrata fornece um ponto de vista (isto é um método) a uma
ciência menos abstrata. Este é o nosso caso, como já vimos acima.
Capítulo I - A Causa e o Fim das Ciências Sociais (Casualidade e
Finalidade)

§ 7° A regularidade dos fenômenos em geral e dos fenômenos sociais, em


particular.

Se observarmos os fenômenos naturais e sociais, verificamos que esses


fenômenos não se acham reunidos desordenadamente e sem que os
possamos compreender ou prever. Ao contrario basta estudar as coisas um
pouco mais de perto, para verificarmos que há nelas certa regularidade nos
fenômenos. O dia segue a noite e a noite o dia de uma maneira perfeitamente
regular. As estações se alternam, e ao mesmo tempo toda a série de
fenômenos que as acompanham se repetem todos os anos: as arvores
verdejam e perdem suas folhas, as diferentes espécies de pássaros chegam e
partem, os homens semeiam, colhem etc... Tomemos ainda outro exemplo
interessante. Depois das chuvas tépidas, os cogumelos crescem
abundantemente; existe mesmo um ditado: "crescer como os cogumelos
depois da chuva". Todos nós sabemos que uma semente de cevada caindo na
terra germina e em seguida, em certas condições, acaba por produzir uma
espiga.

Pelo contrario, nunca se viu esta espiga sair de um ovo de rã ou de uma


pedra de cal. Assim, tudo o que existe na natureza a começar pelo majestoso
movimento dos planetas, para terminar pelas sementes e os cogumelos, está
submetido a certa ordem, ou como se costuma dizer, a certas leis.

O mesmo acontece na vida social, isto é na vida da sociedade humana.


Por mais complicada e variada que seja esta vida, descobrimos nela certas
leis. Assim em todos os lugares onde o capitalismo se desenvolve (na América,
no Japão, na África ou na Austrália), desenvolve-se também e aumenta a
classe proletária; aparece o movimento socialista, a teoria marxista se espalha.
Juntamente com a produção cresce também a "cultura espiritual"; o numero de
intelectuais aumenta. Numa sociedade capitalista, em intervalos regulares,
produzem-se crises que se alternam com a expansão da indústria, do mesmo
modo que os dias se alternam com as noites. As grandes invenções
transformam a técnica; ao mesmo tempo a vida social se modifica rapidamente.
Vamos tomar ainda alguns exemplos. Se calcularmos o numero de
nascimentos humanos durante um ano, veremos que no ano seguinte o
acréscimo de população, expresso em porcentagem será aproximadamente o
mesmo. Se calcularmos a quantidade de cerveja consumida na Baviera
durante um ano, verificaremos que essa quantidade é mais ou menos
constante e aumenta com o crescimento da população. Se não existisse
nenhuma regularidade nem leis, é evidente que nada poderia ser previsto nem
feito. Hoje o dia segue a noite„ mais tarde, quem sabe se durante todo um ano
não será mais visto o dia. Neste inverno, tivemos neve no próximo veremos
florescer as laranjeiras. Na Inglaterra, a classe proletária se desenvolveu
juntamente com o capitalismo, mas no Japão, veremos quem sabe, aumentar
as propriedades fundiárias. Hoje em dia, o pão é cozido num forno, mas
amanhã, quem sabe, se o diabo intervier, os pinheiros passarão a produzi-lo.

Entretanto, na realidade ninguém pensa desta maneira. Todos sabem


perfeitamente que as arvores nunca produzirão pães. Todos observam que
existe certa regularidade, que há leis que regem os fenômenos, tanto na
natureza como na sociedade. A primeira função da ciência é justamente
descobrir esta regularidade.

Esta regularidade (lei) na natureza e na vida social não depende de


maneira alguma do conhecimento humano. Em outras palavras, as leis são
objetivas, independentes do conhecimento dos homens. A primeira função da
ciência consiste em descobrir esta regularidade; em encontra-la no meio do
caos dos fenômenos. Marx considerava o sinal característico do conhecimento
cientifico o fato dele dar uma:

"totalização de um numero importante de determinações e


de relações" em oposição a uma "representação caótica"
("Introdução á critica da economia política", Stuttgart 1920,
pag. 35).

Este caráter da ciência que "sistematiza", "ordena", "organiza", cria um


"sistema", etc. É reconhecido por todo o mundo. É assim que Mach (no
"Conhecimento e Erro") define o processo do pensamento cientifico como uma
adaptação dos pensamentos aos fatos e de pensamentos a pensamentos. O
professor inglês P. Pearson escreve:

"não são os fatos que constituem por si mesmos uma


ciência, e sim o método pelo qual eles são interpretados".

O método original da ciência consiste em "classificar" os fatos, o que não


constituí uma simples reunião de fatos e sim uma "reunião sistemática": (citado
pela edição russa da "Gramática e Ciência" de P. Pearson, pag. 26 e 100). No
entanto, a grande maioria dos filósofos burgueses contemporâneos considera
que o papel da ciência não consiste em descobrir esta regularidade (estas leis),
que existem objetivamente, e sim inventar estas leis com o auxílio do raciocínio
humano; é claro, porém, que a alternância dos dias e das noites, das estações,
a transformação regular dos fenômenos naturais e sociais, existe
independentemente do que deseja ou deixa de desejar o raciocínio de um
sábio burguês. A regularidade destes fenômenos, isto é, as leis ás quais eles
estão submetidos, são de ordem objetiva.

§ 8.° O caráter das leis na ciência. Formas pelas quais se nos apresenta a
questão.

Se esta regularidade, à qual nos referimos acima, aparece nos fenômenos


naturais e sociais, trata-se agora saber em que consiste. Quando estamos em
presença de um mecanismo de relojoaria de movimento regular, quando
observamos a excelente maneira pela qual se acham ajustadas as
engrenagens, começamos a compreender as razões de seu movimento. O
relógio está construído de acordo com um plano preestabelecido; esse
instrumento é construído para um determinado fim, e cada parafuso está
colocado visando certo fim. Mas passar-se-ão de forma análoga os fatos no
universo? Os planetas evoluem segundo trajetórias determinadas; a natureza
conserva sabiamente as formas mais desenvolvidas da vida. Basta estudar a
construção do olho de um animal para se verificar imediatamente quão
habilmente ele está construído para o fim que se destina. E tudo o que existe
na natureza está, com efeito, de acordo com a sua finalidade: a toupeira que
vive debaixo da terra é cega, mas por outro lado, tem um excelente ouvido; os
peixes que vivem à grandes profundidades e submetidos a uma forte pressão,
têm a necessária resistência (fora da agua eles estouram), etc... E na
sociedade humana, de que maneira se passam as coisas? Não tem a
humanidade o seu grande fim — o comunismo? Todo o desenvolvimento
histórico não a conduz a este fim? E se assim é, si tanto na natureza como na
sociedade, tudo tem seu fim, que nós nem sempre compreendemos, mas que
consiste em um aperfeiçoamento indefinido, não poderão todos os fenômenos
ser estudados do ponto de vista deste fim? Assim, as leis de que nos referimos
se apresentarão como leis de finalidade (ou leis teleológicas: "télos" em grego
— "fim"). Esta é uma das maneiras de se apresentar a questão do caráter das
leis.

Outra maneira de apresentar a questão prove do fato de cada fenômeno


ter a sua causa. A humanidade marcha para o comunismo, porque na
sociedade capitalista aparece o proletariado, que não encontra espaço
suficiente dentro, dela; a toupeira vê mal e ouve bem, porque, durante milhares
de anos as condições naturais influíram nestes animais, porque as
transformações provocadas por elas foram transmitidas por hereditariedade, e
ao mesmo tempo, sobreviveram e se multiplicaram os seres que mais
facilmente podiam sobreviver, isto é, os que melhor se achavam adaptados ao
ambiente. O dia e a noite se alternam, porque a terra gira em torno do seu eixo
e apresenta; ao sol alternadamente um e outro hemisfério, etc... Em todos
estes casos não se apresenta a questão da finalidade (não se pergunta "por
quê?"), pergunta-se qual é a causa do fenômeno (isto é "como?"). Esta é a
maneira que se apresenta a questão, seguindo o principio da causalidade (da
palavra "causa"). As leis que governam a marcha dos fenômenos são assim
submetidas ao principio da causalidade.

Há, portanto, um conflito entre a causalidade e a finalidade. Precisamos


antes de mais nada solucionar esse conflito.

§ 9.° Doutrina da finalidade (teleologia) em geral e critica da doutrina.


Finalidade imanente.

Não será difícil compreender a inconsistência da teleologia se


considerarmos a finalidade como principio universal, isto é se considerarmos a
concepção segundo a qual tudo está submetido a fins determinados. Com
efeito, o que é o fim? A concepção do "fim" pressupõe a existência de alguém
que tenha em mira esse fim como tal, isto é, de uma maneira consciente. Um
fim não pode existir separadamente daquele que o visa. Uma pedra não visa
fim algum, nem tão pouco o sol, ou um planeta ou todo o sistema solar, ou
mesmo a Via-Láctea. O fim é uma concepção que só pode ser aplicada a seres
vivos e conscientes, tendo os seus desejos, fazendo desses desejos um fim e
tendendo a satisfazê-los (isto é, aproximando-se desse fim). Somente um
selvagem não poderia conceber que um marco divisório se proponha a uma
finalidade. O selvagem anima a natureza e anima a pedra. É por este motivo
que nele domina a "teleologia", e uma pedra age para ele como se fosse um
homem consciente. Os partidários da doutrina da finalidade parecem-se com
este selvagem como duas gotas de água, pois para eles, o mundo inteiro tem o
seu "fim" proposto por um desconhecido. Vemos assim, claramente que as
concepções do fim, e de finalidade são simplesmente inaplicáveis ao mundo
em geral, e que as leis a que obedecem os fenômenos não se acham
submetidas a nenhuma finalidade.

Não é difícil descobrir as fontes da discórdia entre os partidários da


teleologia e da causalidade. Desde a época em que a sociedade humana se
dividiu em diferentes grupos, dos quais uns (a minoria) governam, ordenam,
dominam, e os outros executam, são governados e obedecem, os homens
começaram a encarar o mundo de conformidade com esse estado de coisas.
Da mesma maneira que há sobre a terra reis, assim também deve existir no
mundo inteiro um rei celeste, um juiz celeste, com as suas tropas celestes e
seus generais (os estrategistas supremos). Começou-se a considerar o
universo como o produto de uma vontade criadora que se ocupa em criar fins e
traçar o seu "plano divino". É por este motivo que a regularidade dos
fenômenos foi considerada como a expressão dessa vontade divina. O filósofo
grego Aristóteles disse: "A natureza, é o fim".

A palavra grega "nomos" (lei) significava ao mesmo tempo a "lei natural" e


a lei moral (isto é, uma regra moral, um preceito), e também simplesmente a
ordem, a medida, a harmonia.

"Ao mesmo tempo em que se alargava o poder imperial, a


jurisprudência da antiga Roma se transformou em uma
espécie de teologia laica, e seu desenvolvimento ulterior
seguiu paralelamente à teologia dogmática. A lei começou
a significar uma norma (regra de conduta, N. B.), tendo
sua fonte num poder superior, — no de um imperador
celeste em teologia, ou bem de um deus terrestre em
jurisprudência, — e prescrevendo aos seres submetidos a
uma determinada regra de conduta" (E. Spektorsky:
"Estudos sobre a filosofia das ciências sociais". Varsóvia,
1907, pag. 158).

O sistema de leis da natureza foi considerado como um sistema de


legislação divina. O celebre sábio Kepler dizia que o mundo físico tinha as suas
"pandectas" (pandectas: coleção de leis do imperador Justiniano).
Encontramos concepções semelhantes, ainda mais tarde. Assim os fisiocratas
(economistas franceses do tempo da Revolução), que foram os primeiros a
descrever a sociedade capitalista, misturaram as leis às quais estão
submetidos os fenômenos naturais e sociais, com as do Estado e com os
decretos das potências celestes. Assim, por exemplo, François Quesnay
escreve:

“As leis que constituem as sociedades são leis de ordem


natural e as mais vantajosas para o gênero humano.”

"Estas leis foram estabelecidas para a perpetuidade pelo


autor da Natureza."

"A observância destas leis naturais e fundamentais do


corpo político, deve ser mantida por intermédio de uma
autoridade tutelar, estabelecida para a sociedade..."
(François Quesnay: "O despotismo da China", Capitulo 8º,
§ 1 e 2).
Não é difícil verificar como estas leis da "autoridade tutelar" (isto é dos
agentes policiais da burguesia) se apoiam habilmente sobre o "Criador
celeste", que elas devem por sua vez sustentar.

Poder-se-ia citar um grande numero de exemplos. Todos eles provam a


mesma coisa, a saber, que a doutrina da finalidade se apoia na religião. De
acordo com a sua origem, ela transporta as relações grosseiras e barbaras de
submissão e escravidão, de um lado, e de dominação, do outro, para o mundo
inteiro. Na sua própria base, ela é constrangida à explicação cientifica, e se
apoia sobre a fé. É uma doutrina de "beatos", qualquer que seja o caldo em
que venha disfarçada. Mas como podemos então explicar os fenômenos cuja
"conformidade ao plano preestabelecido" salta aos olhos (a estrutura dos
diferentes organismos, "de conformidade com um plano", o progresso social, o
aperfeiçoamento das espécies animais e do homem, etc...)? Se nós nos
colocarmos num ponto de vista grosseiramente finalista e se
responsabilizarmos Deus e seu "plano", verificaremos imediatamente a
insanidade de semelhante "explicação". É por esta razão que a doutrina da
finalidade é concebida por alguns de uma maneira mais séria e toma então a
forma da "doutrina da finalidade imanente" (isto é, da finalidade ligada
interiormente aos fenômenos naturais e sociais).

Antes de passar ao estudo desta questão, talvez seja melhor dizer


algumas palavras sobre as "explicações" religiosas. Um economista burguês
muito inteligente, Boehm-Bawerk, citou o seguinte exemplo:

"Vamos supor que para explicar a estrutura do universo eu


emita uma teoria segundo a qual todo o universo seria
composto de uma quantidade incalculável de gnomos
(diabinhos), cujo movimento incessante produziria todos
os fenômenos. Ora, estes pequenos gnomos são
invisíveis, não emitem ruído, não têm cheiro e é
impossível agarra-los pela cauda. Tente-se desmentir tal
"teoria"! É impossível provar diretamente que ela é falsa,
pois ela se acha escondida atrás da invisibilidade dos
fugitivos gnomos. Apesar disto, todo o mundo vê
perfeitamente que isto não passa duma bobagem. Por
quê? Pela simples razão de não existir nem um fato que
venha confirmar tal concepção.”.

Tais são, mais ou menos, as pretendidas explicações de ordem religiosa.


Elas são baseadas sobre um sistema de forças desconhecidas, ou então sobre
a fragilidade da nossa razão. Foi assim que um Santo Padre da Igreja propôs
como principia: "Eu creio porque é absurdo" (Credo quia absurdum). Segundo
os princípios do Cristianismo, Deus é um, mas ao mesmo tempo, existe uma
Trindade divina. Evidentemente isto é contrário à tabuada de multiplicação.
Mas dizem-nos que "nossa fraca razão não pode compreender este mistério".
Certamente, com um raciocínio desta espécie, é possível justificar qualquer
extravagância.

Em que consiste a teoria da "finalidade imanente"? Rejeita-se nela a ideia


duma força misteriosa no sentido grosseiro da palavra. Fala-se somente no fim
que se revela pouco a pouco com a marcha dos acontecimentos, do fim, ligado
interiormente ao próprio processo do desenvolvimento. Tomemos um exemplo.
Vamos admitir que estamos em presença duma espécie de um animal. Com o
tempo e como consequência de toda uma série de causas, ele se transforma
adaptando-se cada vez mais às condições naturais. Os órgãos de um animal
se aperfeiçoam gradativamente, isto quer dizer que eles progridem. Ou então,
tomemos, se quiserdes a sociedade humana. Qualquer que seja a maneira
pela qual encaremos o seu futuro (que o seu futuro seja socialista ou que adote
outra forma), não se pode negar que o tipo humano se aperfeiçoa, que o
homem se torna cada vez mais "civilizado", "mais aperfeiçoado", e que nós,
chamados solenemente os reis da natureza, "seguimos o caminho da
civilização e do progresso". Do mesmo modo que a estrutura dos animais vai-
se adaptando a um fim determinado, a sociedade humana se aperfeiçoa cada
vez mais, isto é, torna-se mais adaptada a um fim. Aqui, o fim (a perfeição) se
descortina no processo da evolução. Ele não é predeterminado por uma
divindade, mas surge qual a rosa que desabrocha do botão, à medida que o
botão se desenvolve e se transforma, devido a causas determinadas, numa
rosa.

Será concludente esta teoria? Não, não é, é uma insanidade teleológica


sutil e mascarada. Devemos protestar antes de tudo contra a concepção de um
fim que não é proposto por ninguém. É o mesmo que se falar em pensamentos
sem pessoas que pensam, de vento sem espaço vazio ou de humidade sem
água. Quando os homens falam do fim "ligado interiormente" ao fenômeno,
eles pressupõem tacitamente a existência de uma "força interior" incorpórea,
que se propõe a seus fins. Esta força misteriosa pouco se parece exteriormente
ao deus que é pintado grosseiramente sob a forma de um velho de barbas
brancas; mas, na realidade, trata-se ainda aqui de um deus presente e
invisível, sutilmente imaginado pelo pensamento humano. Tornamos a
encontrar aqui a mesma teoria da finalidade que já foi analisada acima. A
teleologia "doutrina da finalidade" conduz assim diretamente à teologia
(doutrina de deus).
Volvemos agora a finalidade imanente na sua forma pura. Para isto, o
melhor é analisar a ideia do progresso geral (do aperfeiçoamento geral), ideia
que sobretudo serve de base aos partidários da teleologia imanente.

Como se vê, é mais difícil neste caso combater o ponto de vista teológico,
"o elemento divino" não aparece de uma maneira clara nesta teoria. No entanto
não é difícil compreender em que se baseia esta teoria, se estudarmos o
processo de sua evolução em conjunto, isto é, se estudarmos não somente as
formas e as espécies (dos animais, das plantas, dos homens, da natureza
inorgânica), que sobreviveram, mas ainda aquelas que têm perecido ou estão
perecendo. O famoso progresso aplicar-se-á forçosamente a todas estas
formas? Certamente que não. Os "mamutes" que já existiram não existem
mais; é dos nossos tempos o desaparecimento dos "uros", e em geral, pode-se
dizer que uma infinita quantidade de formas vivas desapareceram. E os
homens? Dá-se o mesmo com eles. Onde estão os Incas e os Aztecas, que
viveram outrora na America? Já nem nos lembramos deles. Entretanto, dentre
as inúmeras sociedades e de espécies, algumas sobrevivem e "se
aperfeiçoam". Que significa por conseguinte "o progresso"? Significa
simplesmente que entre, digamos, 10.000 combinações desfavoráveis à
evolução (combinações diferentes de condições), há uma ou duas favoráveis.

Se não enxergamos senão as condições favoráveis e os resultados


favoráveis é evidente que tudo parecerá no mais alto grau "em conformidade
com o seu fim" e perfeitamente milagroso. Mas os partidários da finalidade
imanente não olham absolutamente o reverso da medalha: os inúmeros casos
de desaparecimento de sociedades e de espécies. Entretanto, se
reconduzirmos a questão ao fato de existirem boas e más condições de
desenvolvimento, que os bons resultados correspondem às condições
favoráveis e os maus às desfavoráveis (o que é muito mais freqüente), todo o
quadro muda e perde o seu caracter divino e teleologico.

Um teleólogo russo, outrora marxista, e que se transformou em seguida


em padre ortodoxo e pregador "progromista" do general Wrangel (Sérgio
Bulgakof) escreveu numa coleção intitulada "Os problemas do Idealismo"
(edição russa, Moscou pag. 8-9.):

"Juntamente com a concepção da evolução, do


desenvolvimento sem fim e sem razão, nasce igualmente
a concepção do progresso e da concepção teleólogica,
onde a causalidade e a revelação do fim ultimo, se
identificam completamente como nos sistemas
metafisicos".
Vemos assim claramente qual é a base psicológica das concepções
teleologicas. A alma de um burguês inquieto que sente a sua própria fragilidade
é sedenta de consolação. A marcha da evolução, tal qual ela existe na
realidade, não lhe aprás, não sendo dirigida por nenhuma razão ou finalidade
salutar. É muito mais agradável adormecer, depois de um bom jantar, quando
se sabe que existe alguém que toma conta de nós!

É necessário observar que se encontramos algumas vezes


em Marx e Engels definições, que tem aparência exterior das condições
teleologicas, isto não constitui senão uma metáfora e uma maneira de exprimir
um pensamento por imagens; quando Marx diz que o valor é um agregado de
músculos, nervos, etc...., somente os adversários mais encarniçados da classe
proletária, tais como Pierre Strouvé, podem jogar com as palavras e procurar o
valor nos próprios músculos.

§ 10. A finalidade nas ciências sociais

Se falarmos da concepção teleólogica quando aplicada à natureza morta


ou aos animais, exceptuando o homem, a insanidade desta teoria aparece
claramente. De que finalidade pode-se falar quando não existe fim algum?
Quando porém nos referimos á sociedade e aos homens, o caso muda de
figura. Uma pedra não se propõe a fins; no caso duma girafa podemos ter
duvidas; o homem pelo contrario, difere das outras partes da natureza, pelo
fato dele se propor fins. Marx se exprime a este respeito da maneira seguinte:

"A aranha executa trabalhos que nos recordam os de um


tecelão, e a abelha pode causar inveja, com seus alvéolos
de cera, à um arquitecto de origem humana. Mas o que
distingu logo a principio o último dos arquitectos da melhor
das abelhas? é que o arquitecto concebe a sua
construção antes de começa a executala. No fim do
processo de trabalho, chegamos a um resultado que já
existia ideologicamente desde o inicio na concepção do
operário. Este último, não somente provoca uma mudança
de formas na natureza, mas realiza ao mesmo tempo, na
natureza, seu fim, do qual ele tem conciencia, fim que
determina o aspecto e os meios do seu trabalho prático
como uma lei, fim ao qual deve submeter a sua vontade.
Esta submissão não constitue uma ação em separado.
Além da tensão dos orgãos que trabalham na própria
corrente do trabalho, o homem necessita de uma vontade
dirigida para um fim, de uma vontade que se manifeste
como a atenção". (Marx: O Capital, vol. I, pag. 140, ed.
alemã).

Marx traça aqui uma nitida linha de demarcação entre o homem e o resto
do mundo. Tem ele razão? Certamente, pois ninguém pode contestar que o
homem se propõe a fins determinados. Veremos agora quais as conclusões
que disso tiram os partidários do "método de finalidade" nas ciências sociais.

Vamos estudar para este fim a opinião do nosso mais eminente


adversário, o sábio alemão Rudolph Stammler, que escreveu outróra uma
grande obra contra o marxismo, intitulada: "A economia e o direito do ponto de
vista do materialismo histórico".

Qual é o objecto das ciências sociais? — pergunta Stammler. E responde:


as ciências sociais estudam os fenômenos sociais. Estes têm particularidades
que não existem em nenhum outro fenômeno. Eis porque há necessidade de
ciências particulares (sociais). Em que consiste o caracter particular, o sinal
particular dos fenômenos sociais? A esta questão, Stammler responde: a
característica dos fenômenos sociais reside no fato deles serem regulados de
uma maneira exterior pelas normas do direito (leis, decretos, ordens, etc...). Se
estas regras não existissem não existiriam nem o direito nem a sociedade. Se a
sociedade existe, isto significa que a sua vida está encerrada dentro de certas
normas, às quais ela se adapta, como o ferro fundido se adapta a um molde.

Stammler formula o seu pensamento da seguinte maneira:

"Este fato (determinante N. B.) é determinado por sua vez


por uma regra de conduta e de vida comum estabelecida
pelos homens. Uma regulamentação exterior das relações
entre os homens, torna possivel pela primeira vez a
concepção da vida social considerada como objecto
particular. Esta regulamentação aparece como o ultimo
acontecimento ao qual se reduz aparentemente todas as
considerações sobre a sociedade e suas particularidades".
(Pag. 83 da 2.ª edição alemã.).

Mas se a regularidade constitue um dos traços essenciais dos fenômenos


sociais é bem claro, diz Stammler, que esta regularidade é de ordem
teleólogica. Com efeito, quem "regula" a vida social e o que significa "regular"?
São os homens que o fazem estabelecendo certas normas (regras de conduta)
para atingir certos fins, propostos concientemente por eles mesmos. Resulta
daí, segundo Stammler, uma diferença enorme entre a natureza e a sociedade,
entre a evolução social e natural (vida social, segundo Stammler, é uma coisa
de alguma maneira oposta á natureza), e por conseguinte entre as ciências
naturais e as ciências sociais. As ciências sociais são ciências submetida à
finalidade; enquanto que as naturais estudam os fenômenos do ponto de vista
das causas e conseqüências. Justifica-se este ponto de vista? Será justo
admitir duas espécies de ciências, das quais umas estão afastadas das outras
assim como a terra do céu. Certamente que não, e vejamos porque.

Admitamos por um instante que a característica fundamen tal da


sociedade consiste no fato dos homens regularem conscientemente, por meio
do direito, as suas relações mutuas, de que não possamos indagar porque
motivo os homens regulam as suas relações em um dado momento e em
determinado lugar, de uma certa maneira, e em outros lugares e tempos
diferentes, de maneira diferente. Tomemos um exemplo: A República burguesa
alemã de 1919-1920 "regula" as relações sociais fuzilando os operários; a
Republica proletária dos Soviets pelo contrario as "regra" fuzilando os
capitalistas contra-revolucionários. A legislação dos Estados burgueses tem por
fim consolidar, alargar e reforçar a dominação do capital; os decretos de um
Estado proletário, têm por seu lado o fim de destruir a dominação do capital e
garantir a do trabalho. Se agora quisermos compreender cientificamente, isto é,
explicar estes fenômenos, será suficiente dizer simplesmente que os fins são
diferentes? Todo o mundo compreenderá que evidentemente isto não é
suficinte, pois pode-se perguntar porque motivo os "homens" se propõem em
uma ocasião, um certo fim e noutra, um fim diferente? Esta pergunta acarreta a
resposta seguinte: porque, num caso é o proletariado que está no poder, e no
outro é a burguesia; a burguesia deseja uma coisa porque as condições de sua
vida provocam nela certos desejos, enquanto que as condições de vida dos
operários provocam outros desejos, etc... Em resumo, logo que queremos
compreender na sua realidade os fenômenos sociais, somos obrigados
imediatamente a nos propor a pergunta "porque" isto é, de indagar quais são
as causas destes fenômenos, ainda que estes sejam a prova da existência de
um fim humano. Por conseguinte, mesmo que se os homens regulassem tudo
de uma maneira conciente e se tudo se passasse na sociedade conforme aos
seus desejos, não é a teleologia que pode explicar os fenômenos, mas o
estudo da causa desses fenômenos, isto é, a pesquisa da causalidade. Vemos
assim, que nessa questão, não existe nenhuma diferença entre as ciências
sociais e as ciências naturais.

Refletindo bem, verifica-se imediatamente que não pode ser de outra


maneira. Com efeito, não fazem o homem e a sociedade humana, qualquer
que ela seja, parte da natureza? Não faz o gênero humano parte do mundo
animal? Aquele que o nega ignora o A.B.C. da ciência contemporânea. E se o
homem e a sociedade humana fazem parte da natureza, seria altamente
extranho que esta parte se achasse em plena contradição com todo o resto da
natureza. Não é difícil perceber que ainda aqui, os partidários da teleologia
deixam transparecer a idéia da origem divina da natureza humana, isto é, a
mesma idéia ingênua que já examinámos anteriormente.

Vemos assim até que ponto a doutrina da finalidade é inaplicável, mesmo


admitindo-se que uma regulamentação exterior (o direito) constitua o traço
essencial da sociedade. Mesmo neste caso, a teleologia "para nada serve".
Entretanto, na realidade, a regulamentação "exterior" não constitui de nenhuma
maneira o traço essencial da sociedade. Quase todas as sociedades que
existiram até hoje (e a sociedade capitalista em particular) distinguiram-se pela
ausência de regulamentação, pelo seu regime anárquico no conjunto dos
fenômenos sociais, a regulamentação que institue a ordem, como foi o desejo
dos legisladores, não desempenhou de maneira alguma um papel decisivo. E
como se passarão as coisas na sociedade futura (comunista)? Não haverá
então nenhuma regulamentação "exterior" (jurídica). Com efeito, os homens do
novo regime, concientes, educados no espirito de solidariedade no trabalho,
não necessitarão de nenhum constrangimento exterior (tornaremos a falar nisto
de uma maneira detalhada no capitulo seguinte). Assim, a teoria de Stammler
não tem nenhum valor, mesmo deste ponto de vista. E o único método certo
para estudar cientificamente os fenômenos sociais é aquele que os examina do
ponto de vista da causalidade.

Através da teoria de Stammler, percebe-se claramente a ideologia de um


funcionário de Estado capitalista, ideologia que considera como eternas, coisas
que são apenas temporárias. Com efeito, o Estado e o direito são os produtos
de uma sociedade de classe, cujas diferentes partes estão em luta constante, e
as vezes extremamente encarniçada. É evidente que os princípios jurídicos e a
organização de Estado da classe governante são as condições de existência
dessa sociedade. Mas, precisamente, o quadro deve mudar inteiramente em
uma sociedade destituída de classes. Não é por conseguinte possível
considerar as relações históricas que constantemente evoluem (o Estado, o
direito) como características permanentes de toda sociedade, qualquer que ela
seja.

Por outro lado, Stammler se esquece de tomar em consideração um outro


fato. Acontece freqüentemente que as leis e normas do poder do Estado, com
o auxilio das quais a classe dominante quer atingir um certo resultado
conduzem, em conseqüência de uma evolução elementar e da anarquia social,
a outros resultados diferentes daqueles que eram almejados. O melhor
exemplo disso nos foi trazido pela guerra mundial. Com efeito, por meio de
uma série de medidas governamentais (mobilização do exercito e da marinha,
operações militares sob a direção do poder de Estado, etc.) a burguesia dos
diferentes países queria atingir fins bem determinados.

E o que foi que aconteceu?

Qual foi o resultado? Uma Revolução do proletariado contra a burguesia.


Como é possível explicar isto, colocando-se questão sob o ponto de vista
piedoso e teleologico de Stammler? É evidentemente impossível fazelo. Qual e
o motivo desse engano? É que Stammler superestima a "regulamentação" e
menospreza a marcha elementar da evolução, de maneiras que, no fim de
contas, toda a sua concepção é destituída de base.

§ 11.° — Causalidade e finalidade. Explicação das causas como método


de explicação cientifica

Resulta do que precede que somos obrigados a nos propor a questão da


causa cada vez que queremos explicar um certo fenômeno, e em particular, o
da vida social. Todas as tentativas de uma pretendida explicação de ordem
teleólogica não se inspiram na realidade se não na fé religiosa e por isso nada
esclarecem. Assim, a resposta à questão essencial de saber quais são as leis
que regem os fenômenos naturais e sociais, qual a sua regularidade, é a
seguinte: existe na natureza e na sociedade, objetivamente (isto é, quer
queiramos, quer não, quer seja do nosso conhecimento quer não), uma lei
causal dos fenômenos.

O que é uma lei causal? É uma relação necessária, constante e bem


patente entre os fenômenos; por exemplo, o volume dos corpos aumenta com
a temperatura, um liquido suficientemente aquecido se transforma em vapor, a
circulação fiduciaria quando excessiva provoca a desvalorização da moeda;
enquanto existir o capitalismo, haverá forçosamente guerras; se a pequena
produção existe ao mesmo tempo que a grande produção em um mesmo país,
esta ultima no fim de contas acabará vencendo a primeira; se o proletariado
ataca o capital, este ultimo se defende por todas as maneiras que se acham ao
seu alcance; se a produtividade do trabalho cresce, os preços baixam; se uma
certa quantidade de veneno fôr introduzida no organismo humano, o homem
morre, etc. etc... Pode-se dizer, em resumo, que toda lei causai se exprime
pela fórmula seguinte: se estamos em presença de um certo fenômeno,
forçosamente outros a ele se seguirão. Explicar um fenômeno, encontrar a sua
causa, significa descobrir um outro fenômeno do qual depende o primeiro,
explicar assim a relação causal entre eles. Enquanto esta relação não fôr
estabelecida o fenômeno permanece inexplicado. Uma vez descoberta esta
relação, e depois de verificado que ela é com efeito constante, estamos na
presença de uma explicação cientifica (causal). Essa explicação é a única
cientifica, tanto em relação aos fenômenos naturais quanto aos da vida social.
Ela regeita todo caracter divino, toda intervenção de forças sobrenaturais,
todos os restos inúteis dos tempos passados e permite ao homem dominar
tanto as forças da natureza quanto as forças sociais.

Alguns se opõem á concepção da causalidade e da lei causai pelo fato


desta concepção, como vimos acima, ter sua origem na errônea representação
dum legislador divino. Na verdade esta é sua origem, por assim passar-se
freqüentemente na linguagem humana. Diz-se por exemplo, o sol sobe, o sol
se deita, apesar de ninguém acreditar que o sol ande sobre duas ou quatro
pernas. Entretanto, era assim que se pensava outróra. O mesmo acontece com
a palavra "lei". Quando se diz a "lei domina" ou então "rege" não se deve de
modo algum compreender que, no primeiro dos dois fenômenos (causa e
efeito), se encontra um pequeno deus invisivel que o governa. A relação causal
é apenas uma relação entre fenômenos, que é encontrada constantemente, e
nada mais. Esta maneira de encarar a causalidade não prejudica de forma
alguma a ciência.
Capítulo II - Determinismo e Indeterminismo (Necessidade e Livre Arbítrio)

§ 12. O problema da liberdade e da não liberdade da vontade individual

Como já vimos, certas leis são observadas na vida social como também na
vida da natureza. Entretanto, algumas duvidas sérias podem subsistir a este
respeito. São, com efeito, os homens que determinam os fenômenos sociais. A
sociedade é composta de homens que pensam, que refletem, que sentem, que
se propõem fins, que agem. Um faz uma coisa, um outro ás vezes faz o
mesmo, um terceiro age de maneira diferente, etc... O resultado destes atos
constitui um fenômeno social. Sem homem, não haveria nem sociedade nem
fenômenos sociais. Vejamos o resultado disto. Se os fenômenos sociais
obedecem a certas leis, e são o resultado das ações humanas, é evidente que
os atos de qualquer homem dependem também de alguma coisa. Assim, o
homem e sua vontade não são livres, mas ligados e submetidos por sua vez a
certas leis. Se assim não fosse, se cada homem e sua vontade de nada
dependessem, qual seria então a origem da regularidade dos fenômenos
sociais? Ela não poderia existir. Isto é evidente. Se todos os homens,
mancassem a sociedade seria uma sociedade de mancos: não poderia existir
sociedade diferente.

Mas por outro lado, como explicar a falta de liberdade da vontade


humana? Não decide o homem por si mesmo o que ele quer fazer? Eu quero
beber, eu bebo; eu quero ir a uma reunião, eu decido a minha ida. Uma noite
os camaradas propõem uns de ir ao teatro, outros a outro lugar; eu resolvi ir ao
teatro, eu mesmo faço a minha escolha. Não é o homem livre na escolha? Não
é o homem senhor dos seus atos? Não é o homem senhor dos seus desejos e
de suas aspirações? Será ele um boneco, um simples joguete de que forças
desconhecidas manobram os cordéis? Não sabe cada homem, por sua própria
experiência, que ele pode decidir, escolher, agir livremente?

Esta questão é conhecida, em filosofia, como o problema do livre arbítrio,


da liberdade ou da falta de liberdade humana. A teoria que afirma que a
vontade humana é livre (independente) se chama indeterminismo (teoria do
livre arbítrio). A teoria que afirma que a vontade humana não é livre e que está
submetida a certas condições, chama-se determinismo (teoria da falta de
liberdade da vontade). É preciso, por conseguinte, que decidamos qual das
duas é a verdadeira.

Vejamos primeiro aonde nos leva o indeterminismo, se o acompanharmos


até as suas ultimas conseqüências. Se a vontade humana é livre e de nada
depende, isto significa que ela não é produto de uma causa. Mas se assim for,
a que ponto chegaremos? Chegaremos à velha teoria religiosa do Antigo
Testamento. Com efeito, vejamos porque: tudo no mundo se passa segundo
certas leis determinadas, tudo no mundo, a começar pela multiplicação das
pulgas e acabando pelo movimento do sistema solar, tem suas causas;
somente, a vontade do homem a elas não está submetida. Ela constitui uma
exceção única e estranha. O homem não faz mais parte da natureza, mas é
uma espécie de divindade acima do mundo. Por conseguinte, a teoria do livre
arbítrio conduz diretamente à religião que nada explica, onde não há mais
ciência, mas uma fé cega em feitiçarias, em mistérios, no sobrenatural, no
absurdo.

Evidentemente, há aqui alguma coisa que choca. Para explicarmos este


fato, consideremos o seguinte: muitas vezes, quase sempre, confunde-se a
sensação da independência com a independência objetiva (real, independente
da nossa consciência). Tomemos um exemplo. Vamos supor um orador numa
reunião pública. Ele toma um copo d’água e bebe avidamente. O que é que ele
sente quando segura o copo? Decide por si mesmo beber a água. Ninguém o
obriga a isto. Ninguém o força. Ele tem a completa sensação da liberdade; ele
resolveu por si mesmo que ele tem necessidade de beber água e não de
dançar. Ele tem a sensação da sua liberdade. Mas quererá isto dizer que ele
agiu sem causa e que sua vontade é realmente independente? De modo
algum. E todo homem inteligente perceberá imediatamente do que se trata. Ele
dirá: "O orador esta com a garganta seca". Isto significa que como
consequencia do esforço feito pelo orador, certas modificações se produziram
na sua garganta, modificações que provocaram o desejo de beber água. Esta é
a causa; uma modificação produzida no organismo (causa fisiológica) provocou
um certo desejo. Segue-se que é preciso não confundir a sensação do livre
arbítrio, a sensação de independência com a ausência de causa, com a
independência dos desejos e ações humanas. Essas duas coisas são
completamente diferentes. E é sobre a sua confusão que estribam
habitualmente todos os raciocínios dos deterministas, que querem a todo custo
estabelecer a "origem divina", particular, do "espírito humano". B.
Spinoza (morto em 1677), filósofo entre os mais eminentes, disse que a maioria
desses filósofos consideram de uma maneira completamente falsa "o homem
da natureza, como sendo um Estado dentro do Estado". Pois eles pensam que
o homem invés de se submeter à ordem natural a contraria, que ele, o homem,
possui um poder ilimitado e não depende senão de si mesmo. (Obras
de Spinoza: "Ética", Paris, 1871, Charpentier & Cie. pag. 107). Mas na
realidade esta falsa concepção é determinada pelo fato dos homens não
conhecerem as causas exteriores de seus próprios atos. (pag. 113 da edição
francesa). É assim que uma criança imagina que deseja livremente o leite de
que se alimenta; se ela está zangada, pensa que é livremente que quer se
vingar; se ela tem medo, que decide livremente a sua fuga (pag. 115 da edição
francesa). Leibnitz (morto em 1717) dizia também que muitas vezes as causas
dos atos são desconhecidas pelos homens, e que isso provocava a ilusão da
liberdade absoluta. Leibnitz citava a esse respeito o exemplo de uma agulha
magnética que, se ela pudesse pensar, regozijar-se-ia certamente de se virar
constantemente em direção ao pólo norte (G. G. Leibnitz, "Opera Omnia",
Tomus I, Genevra, Apud fratres de Tournes, 1768, pag. 155).

O mesmo pensamento foi expresso por D. Merejkofsky, antes dele se ter


tornado um louco apocalíptico e antibolchevista:

Se a gota de chuva
Pensasse como você,
Ao cair na hora fatal
Do alto dos céus,
Ela diria:
"Não é uma força inconsciente
Que me dirige
É pela minha própria vontade
Que eu caio em orvalho
Sobre um campo sedento."

Na realidade, os homens desmentem completamente na prática a doutrina


do livre arbítrio. Com efeito, se a vontade humana não dependesse de nada,
não seria possível agir, pois seria impossível contar com o que quer que seja,
ou prever.

Imaginemos por exemplo, um especulador que vai ao mercado.

Ele sabe que lá fará o comercio e negociará, que cada comerciante pedirá
os seus preços, que os compradores se esforçarão para comprar o mais barato
possível, etc. Mas ele não espera encontrar no mercado homens que andem
sobre quatro pés ou que uivem como lobos. Poderão objetar que este exemplo
não tem significação. Absolutamente. Analise-mo-lo convenientemente. Porque
não andam os homens de quatro pés?

Porque isto não está na sua natureza. E no entanto os palhaços andam


sobre quatro pés. Isto é devido ao fato da sua vontade ser determinada por
outras condições e quando o mesmo especulador vai ao circo, ele prevê que aí
encontrará homens andando sobre quatro pés "contra a natureza". Por que
motivo querem os compradores comprar o mais barato possível? Justamente
por serem compradores. A sua situação como compradores os "obriga" a
procurar as mercadorias a preços baixos e dirigem nesse sentido os seus
desejos, a sua vontade, as suas ações. E se os homens fossem vendedores?
Eles agiriam em sentido contrario. Procurariam vender o mais caro possível.
Resulta portanto daí, que a vontade de nenhum modo é independente, mas é
determinada por toda uma série de causas, e que os homens não poderiam
agir se o contrario se desse.

Analisemos a questão sob um outro aspecto. Sabe-se geralmente que um


homem embriagado tem desejos "absurdos" e que ele pratica atos também
"absurdos". Sua vontade funciona muito diferentemente do que a de um
homem no estado normal. Por que? A razão disto é o envenenamento pelo
álcool. É suficiente introduzir uma certa quantidade dessa substancia no
organismo humano, para que a "divina vontade" nos leve ao absurdo. A coisa é
clara. Tomemos um outro exemplo: Dá-se de comer a qualquer pessoa
alimentos salgados. Infalivelmente, esta quererá "em toda a liberdade" beber
mais do que habitualmente. Aqui também, a razão é evidente. Mas se a mesma
pessoa se alimenta "normalmente"? Esta beberá então uma quantidade
"normal" de água; esta "quererá" beber tanto quanto as outras. Como vemos
ainda neste caso, a vontade depende de certas causas, como nos casos
extraordinários.

O homem começa a amar quando chega à idade da puberdade. O homem


muito esgotado é tomado de um "desespero sombrio". Em resumo, os
sentimentos e a vontade do homem dependem do estado do seu organismo e
da situação em que ele se achar. Sua vontade, assim como tudo na natureza, é
determinada por certas causas e o homem não constitui nenhuma exceção no
mundo: o homem quer se cocar atrás da orelha (acha-se ali uma pequena
espinha) ou então ele pratica uma ação heróica: pouco importa, tudo tem sua
causa. Certamente, às vezes é difícil encontrar essas causas, mas já isto é
uma outra questão. Descobriram-se porventura todas as causas no domínio da
natureza viva? Absolutamente não. Entretanto, não é pelo fato de tudo não ter
sido ainda explicado que se pode concluir que é impossível encontrar-se a
explicação.

É preciso observar que não são somente os acontecimentos normais que


estão submetidos à lei da causalidade, e sim os fenômenos é que dela
dependem.

As doenças psíquicas dão-nos disso um exemplo patente. A que lei, a que


"ordem" obedecem em aparência os desejos incoerentes, estranhos e
monstruosos das doenças psíquicas e dos loucos? No entanto eles têm suas
causas, que determinam tais atos de seus autores. Isto significa que a lei da
causalidade mantém-se em vigor mesmo nos casos de loucura.
É nesses fatos que se baseia a classificação das doenças psíquicas.
Distinguem-se quatro espécies de causas: 1.º A hereditariedade (a sífilis, a
tuberculose, etc...); 2.º as contusões (traumatismos); 3.º os envenenamentos';
4.º o esgotamento e os choques morais (Serbsky: As doenças mentais). Veja-
se, por exemplo, a descrição de um acesso de febre delirante:

"os doentes têm a impressão de que se está tramando


alguma coisa contra eles, de que todas as pessoas que o
cercam tomam parte na conspiração, à qual se juntam,
não somente os visinhos, mas mesmo os animais
domésticos e os objetos inanimados, etc.". (A. Bernstein:
"A febre delirante").

Este tipo de febre provêm muitas vezes do alcoolismo. Veja-se ainda a


descrição de uma crise de paralisia progressiva (conseqüência da sífilis):

primeiro a desordem psíquica, futilidade de espírito,


cinismo, falta completa de desconfiança; em segundo
lugar, o delírio (mania de grandeza, o doente se crê
miliardario, rei); a terceira fase: abatimento geral (P.
Rosenbach: "A paralisia progressiva").

Conforme as partes do cérebro que são atingidas, a direção da vontade se


modifica. Toda a prática medica, alusiva às doenças nervosas, é baseada nas
relações entre a vida psíquica e certas causas determinadas. Foi
intencionalmente que tomamos os mais variados exemplos. O seu estudo nos
mostra que a vontade, os sentimentos e os atos do homem são sempre
determinados por uma certa causa, quaisquer que sejam as condições,
ordinárias ou extraordinárias, normais ou anormais; as ações humanas são
portanto sempre "determinadas, definidas". A doutrina do livre arbítrio
(indeterminismo) é, na realidade, a forma requintada de uma concepção semi-
religiosa, forma que nada explica, que é contraria a todos os fatos e que
constitui um obstáculo ao desenvolvimento da ciência. O determinismo é a
única concepção justa.

§ 13. A resultante das vontades individuais numa sociedade não


organizada

Sem duvida alguma a sociedade é formada de indivíduos e todo fenômeno


social é composto de um grande numero de vontades, atos, sensações e
sentimentos individuais.
Em outros termos, o fenômeno social é o resultado (ou, como se diz às
vezes, a "resultante") dos fenômenos individuais. A questão do preço pode-nos
fornecer um exemplo claro. Vendedores e compradores encontram-se no
mercado. Uns possuem mercadorias, outros dinheiro. Uns e outros têm seus
fins definidos: cada um avalia de determinada maneira sua mercadoria e seu
dinheiro, faz suas compras e negocia. Como conseqüência dessa confusão
estabelece-se o preço no mercado. Não se trata mais dos desejos de um
vendedor ou comprador particular; estamos em presença de um fenômeno
social, que é o resultado de uma luta entre as "vontades" particulares. O
mesmo acontece com os outros fenômenos sociais. Tomemos, por exemplo, a
época das revoluções. Os homens agem de uma maneira mais ou menos
enérgica e se entrechocam. É como conseqüência dessa luta entre os homens,
que depois da "vitória da Revolução" nasce um novo regime.

"Determinadas relações sociais, — escreve Marx, — são


produtos humanos, da mesma maneira que os são o
pano, o linho, etc......." (Carl Marx. Miséria da filosofia.)

Mas aqui, podemos estar em presença de dois casos diferentes que têm
as suas particularidades. Vejamos quais são: No primeiro, estamos em
presença duma sociedade desorganizada, isto é, por exemplo, uma sociedade
baseada sobre a troca de mercadorias ou capitalista; no outro, estamos em
presença de uma sociedade organizada: Comunista. Vamos antes estudar o
primeiro caso, vamos tomar para isto um exemplo típico que já foi citado: a
fixação do preço. Qual é a relação entre o preço fixado no mercado e o desejo,
avaliação e as intenções de cada um dos indivíduos que vai ao mercado? Está
claro que este preço não corresponde exatamente aos seus desejos. Para uma
grande parte das pessoas que vieram ao mercado ele é simplesmente
desastroso: seja para aqueles que, "a esse preço", nada podem comprar, e se
vão embora com os seus níqueis e com a barriga vazia, seja para aqueles que
se arruínam, por ser o preço muito baixo para eles. Todo o mundo sabe que
uma massa de artesãos, de pequenos comerciante e de pequenos
proprietários arruinou-se porque os grandes fabricantes inundaram o mercado
de mercadorias a preço vil; os pequenos comerciantes se arruinaram porque
não podiam sustentar a concorrência com os preços estabelecidos sob a
influencia da grande quantidade de mercadorias atiradas ao mercado pelos
grandes capitalistas.

Já citamos acima um exemplo característico, o da guerra imperialista,


durante a qual muitos capitalistas quiseram-se enriquecer; no entanto, seguiu-
se uma ruína geral, e desta ruína, nasceu a Revolução dirigida contra os
capitalistas, que, evidentemente, não a tinham desejado.
O que significa tudo isto? que, numa sociedade desorganizada, onde a
produção não é regulamentada, onde existem classes em luta, onde nada é
feito segundo um plano, mas sob a pressão de forças cegas, o fenômeno social
não concorda com o desejo da maioria. Ou então, como disseram muitas
vezes Marx e Engels, os fenômenos sociais são independentes da consciência,
do sentimento e da vontade dos homens. Esta "independência da vontade dos
homens" não significa que os acontecimentos da vida social ocorrem sem a
participação dos homens, mas que o produto social desta vontade (destas
vontades) numa sociedade desorganizada, e em presença duma evolução
inconsciente não concorda com os fins propostos por um grande numero de
homens e seguem muitas vezes caminho oposto (o homem quis se enriquecer
e, no fim de contas, arruinou-se.) Toda uma série de criticas dirigidas contra o
marxismo é baseada sobre a incompreensão desta "independência" da
vontade, da qual falam Marx e Engels. Vamos citar a propósito algumas linhas
de Engels ("Ludwig Feuerbach"). Engels escreve:

Na historia "nada acontece sem que haja uma intenção


consciente para um fim desejado". Entretanto, "muito
raramente acontece aquilo que foi proposto; na maior
parte dos casos numerosos desejos e fins se entrecruzam
e se combatem mutuamente... É assim que os
inumeráveis choques das vontades particulares e dos atos
individuais criam sobre o cenário da historia uma situação
análoga aos fenômenos que dominam na natureza,
inconsciente. Os fins dos atos agiram como desejos, ou
mesmo, se em aparência eles correspondem aos fins
desejados, não deixam de ter no fim de contas,
conseqüências muito diferentes das esperadas" (pag. 44
da edição alemã).

"Os homens fazem a sua história, qualquer que ela seja,


cada um almeja o seu fim individual proposto
conscientemente; é a resultante destas vontades, agindo
em diferentes direções, e a sua ação diferente sobre o
mundo exterior, que constitui a historia... Mas... as
inúmeras vontades particulares que agem na historia
provocam na maior parte dos casos resultados muito
diferentes, e, ás vezes, completamente opostos aos que
se almejam..." Pag. 44 e 45).

Resulta do que precede que, numa sociedade desorganizada, como aliás


em toda a sociedade, os acontecimentos se realizam não "apesar", mas pela
vontade dos homens. Mas aqui o homem é dominado por uma força
inconsciente que é um produto das vontades particulares.

Examinemos o fato seguinte: Uma vez obtido uma certa resultante social
das vontades particulares, esta resultante social determina a conduta do
indivíduo. É necessário sublinhar esta proposição, pois ela é muito importante.

Comecemos ainda pelo mesmo exemplo de que nos servimos duas vezes,
o da fixação dos preços. Vamos supor que uma libra de cenoura no mercado
custa um tanto. É evidente que os novos compradores e vendedores encaram
de antemão os preços e fazem deles aproximadamente a base dos seus
cálculos. Em outros termos, o fenômeno social (preço) determina fenômenos
particulares ou individuais (a avaliação). O mesmo acontece em outros casos.
Um artista principiante se apóia para realizar sua obra, sobre toda a evolução
da arte, assim como sobre os sentimentos e tendências do seu meio. Qual é a
fonte de ação de um político? Ela é determinada pelo ambiente em que ele
age; ele quer, ou fortificar um determinado regime, ou combatê-lo. Isto depende
do lado em que ele se coloca, do meio no qual ele vive, da classe social ou
então dos desejos sociais que o inspiram. Assim sua vontade é determinada
pelas condições sociais.

Vimos mais acima que, uma sociedade desorganizada, os acontecimentos


se passam as vezes de maneira completamente oposta aos desejos dos
homens. Pode-se dizer a este respeito, que "o produto social" (o fenômeno
social) domina os homens não somente definindo a sua conduta, mas ainda
contrariando os seus desejos.

Assim, com respeito a uma sociedade desorganizada, podemos


estabelecer as seguintes proposições:

1. — Os fenômenos sociais são o produto do entrelaçamento


das vontades, dos sentimentos, dos atos individuais, etc...
2. — Os fenômenos sociais determinam a cada momento a
vontade individual de cada um.
3. — Os fenômenos sociais não exprimem a vontade dos
indivíduos tomados em particular; habitualmente, eles são
contrários a esta vontade, eles forçosamente a dominam, de
modo que cada indivíduo sente muitas vezes a pressão do
elemento social. (Exemplos: Um comerciante arruinado, um
capitalista derrubado pela Revolução e que antes desejava a
guerra etc.)
§ 14. A vontade organizada coletivamente (a resultante das vontades
individuais numa sociedade organizada, comunista)

— Vejamos agora como se passam os acontecimentos numa sociedade


comunista. Cessa de existir a anarquia na produção. Não há mais nem classes,
nem luta de classes, nem oposição de interesses de classe, etc... Não há mais
tampouco contradição entre os interesses pessoais e os interesses da
sociedade. Achamo-nos em presença de uma associação fraternal de
produtores que trabalham para si mesmos, segundo um plano preestabelecido.

O que acontece com a vontade individual? É evidente que esta sociedade


é composta também de homens, e o fenômeno social é a resultante das
vontades individuais. Mas o modo pelo qual se forma esta resultante, o meio
pelo qual a ela se chega, é muito diferente daquele que vimos numa sociedade
desorganizada. Para melhor compreender esta diferença, comecemos por dar
ainda um pequeno exemplo: vamos imaginar que estamos em presença de
uma sociedade ou de um grupo de pessoas que estão de acordo entre si.
Todas elas têm o mesmo fim, é em comum que elas resolvem certas questões,
encaram as dificuldades e enfim, tomam uma decisão comum, segundo a qual
elas agem. A sua ação comum, assim como a sua decisão já são um "produto"
coletivo. Mas este ultimo já não é uma força exterior, grosseira, elementar, que
contradiz a vontade de cada um. Ao contrario, a possibilidade de satisfazer
cada desejo particular é aqui muito maior. Cinco homens resolvem levantar
juntamente uma pedra. Nenhum deles a pode levantar sozinho; os cinco a
levantam sem dificuldade. A decisão comum não contradiz o desejo de cada
um deles; ao contrario, ela ajuda a realizar este desejo.

É da mesma maneira, bem que numa escala imensamente maior, e de


maneira mais complicada, que as coisas se passarão em uma sociedade
comunista. (Por esta ultima, compreendemos, não mais a época de uma
ditadura do proletariado, nem aquela dos primeiros passos do comunismo, mas
uma sociedade desenvolvida, verdadeiramente comunista, onde não há mais
classes, onde não há mais Estado nem normas legais exteriores). Em uma tal
sociedade, todas as relações entre os homens serão claras para cada um e a
vontade social será uma vontade organizada. Não teremos mais aqui uma
resultante elementar, "independente" da vontade de cada um, mas uma
decisão social tomada com todo conhecimento de causa. É por isto que nela
não pode suceder o que sucede em uma sociedade capitalista. "O produto
social" já não domina mais os homens, são os homens senhores de suas
decisões, pois são eles que decidem e decidem conscientemente. Não se pode
dar o fato de um fenômeno social ser prejudicial à maioria da sociedade.
Entretanto não resulta do que precede que a vontade social, tanto quanto
a individual, em uma sociedade comunista, de nada dependem, ou que, em um
regime comunista, domine o livre arbítrio, e que o homem se torne subitamente
um ser sobrenatural ao qual a lei de causalidade não mais se aplica.

Não. No regime comunista, o homem continua sendo uma parcela da


natureza, parcela submetida à lei universal da causalidade. Com efeito, todo
indivíduo não dependerá do ambiente? Certamente que sim. Ele não agirá
como um selvagem da África central, ou então como um banqueiro da Casa
Pierpont Morgan &Cia. ou ainda como um hussardo da guerra imperialista. Ele
agirá como membro de uma sociedade comunista. Isto é evidente. Mas o que
significa isto? Que o ambiente geral determinará a sua vontade. Assim todo o
mundo compreenderá que uma sociedade comunista será obrigada também a
lutar com a natureza, e, por conseguinte, as condições desta luta determinarão
a conduta dos homens, etc... Em uma palavra, a teoria do determinismo
guardará inteiramente a sua força, também na sociedade comunista.

Podemos assim estabelecer as seguintes proposições no que se refere à


uma sociedade organizada:

1. — Os fenômenos sociais resultam do entrelaçamento das


vontades, dos sentimentos, dos atos, etc..., individuais. Este
processo não é o produto de uma força elementar cega, mas de
uma força organizada nos domínios de maior importância.
2. — Os fenômenos sociais determinam a cada momento a
vontade dos homens tomados em particular e não a contrariam.
3. — Os fenômenos exprimem a vontade dos homens e em
geral, não a contradizem, os homens são donos de suas decisões
e não sentem nenhuma pressão do elemento social, este último
sendo substituído por uma organização social racional.

Escreveu Engels que a humanidade, passando ao comunismo, fazia "um


salto do reinado da necessidade para o da liberdade". Certos sábios burgueses
concluíram daí que segundo Engels, o determinismo cessava de agir em um
sociedade comunista. Um tal raciocínio é baseado sobre a incompreensão
grosseira e sobre uma deformação do marxismo. Na realidade, Engels quis
dizer com isto, muito justamente, que a evolução em uma sociedade comunista
tomava um caráter consciente e organizado, não mais inconsciente e cego. Os
homens sabem o que preciso fazer e como é preciso agir em determinadas
circunstancias.

"A liberdade é uma necessidade da qual se tem


consciência".
§ 15. O pretendido acaso, em geral:

— Para compreende ainda melhor a que ponto os fenômenos são


determinados, preciso analisar o que significa o pretendido acaso. Com efeito
muitas vezes deparamos com o acaso, tanto na vida quotidiana como na vida
social. Certos sábios interessaram-se particularmente pelo "papel do acaso" e
pela sua significação na historia. Falamos muitas vezes no acaso: Um homem
foi esmagado "por acaso" na rua; alguém foi morto "por acaso" por uma telha
que caiu dum telhado; comprei "por acaso", um livro muito raro; ou então,
encontrei "por acaso" numa cidade desconhecida, um homem que não via há
vinte anos, etc... Outros exemplos: O jogo de cara e coroa, ou então os dados.
É por acaso que saiu coroa e que eu ganhei; é por acaso que saiu cara e eu
perdi. Como acontece isto, e qual é a relação entre o acaso e a lei, ou então, o
que vem a dar na mesma, entre o acaso e a necessidade causal?

Examinemos esta questão de perto. Vamos tomar primeiramente o


exemplo do jogo de cara e coroa. Por que motivo saiu por exemplo "cara"?
Será verdade que isto não foi resultado de nenhuma causa? Isto, certamente
não é exato. Saiu cara, porque é dado a uma certa forma da moeda, porque lhe
dei um certo movimento, com certa força, dirigida de um certo lado, porque a
moeda caiu sobre uma certa superfície, etc... Se todas estas condições se
repetissem, sairia sem dúvida novamente cara. A mesma coisa poder-se-ia
repetir uma terceira vez. Mas não é possível, quando se atira a moeda, calcular
todas estas condições; todo o problema consiste nisto. A menor mudança de
posição da mão, do movimento de um dedo, da força com que foi atirada a
moeda, produz imediatamente o seu efeito. As causas que provocam aqui o
efeito (cara ou coroa) não podem praticamente ser previstas. Elas existem mas
não as podemos adivinhar, e por conseguinte, não as conhecemos. É à nossa
ignorância que neste caso damos o nome de "acaso".

Vamos tomar outro exemplo: Encontrei na rua, por acaso, um amigo que
não via há vinte anos. Haverá causas para este encontro? Certamente que sim:
É sob a influencia de causas definidas que saí em um dado momento, que
segui um certo caminho com uma determinada velocidade; sob a influencia de
outras causas, meu amigo havia começado a sua caminhada seguindo um
certo itinerário, com determinada velocidade. Está claro que a ação paralela
destas duas causas diferentes deveria infalivelmente produzir o nosso
encontro. Por que, chamo eu a este encontro de "acaso"? Por uma razão muito
simples: Porque eu não conhecia as causas que haviam feito agir o meu
amigo, porque eu não sabia que ele morava na mesma cidade e por
conseguinte, eu não pude prever o nosso encontro.
Se de duas ou mais correntes (séries) de causas que se entrecruzam, e
nós só conhecemos uma delas, o fenômeno devido a este cruzamento nos
parece "acaso", bem que na realidade ele esteja submetido à uma lei. Eu só
conheço uma das correntes (uma só série) de causas, daquelas que agem
sobre a minha caminhada; a outra série, que influi sobre a ação de meu amigo
me é desconhecida. É por essa razão que eu não prevejo cruzamento das
duas séries, é por essa razão que o cruzamento (o encontro) me parece devido
ao "acaso". Assim, no sentido próprio da palavra, nenhum fenômeno é produto
do acaso, isto é, sem causa. Pode-nos tão somente parecer, enquanto
ignoramos a sua causa, que ele seja produto do acaso.

Spinoza já o havia visto, quando afirmava

"que um fenômeno é considerado como produto do acaso


unicamente por falta de conhecimentos suficientes", "a
ordem das causas estando escondida para nós".

Encontramos em Mill (o "Sistema da lógica"), depois de uma analise muito


justa, o seguinte pensamento:

"É um erro dizer que um dado fenômeno é devido


a um acaso. Temos apenas o direito de dizer: dois ou
mais fenômenos se reúnem por acaso; eles existem ou se
seguem: um depois do outro somente por acaso. Isto quer
dizer que as relações mutuas são independentes de
qualquer ligação causal; não existe entre eles nenhuma
relação de causa e efeito; eles não são tão pouco as
conseqüências de uma mesma causa, nem de causas
ligadas entre elas por uma lei qualquer de coexistência,
nem mesmo da disposição das causas primarias".

Estas ultimas palavras não são exatas. O fato é, (o exemplo do encontro)


que eu não saí, de minha casa, porque meu amigo saiu da sua, nem vice-
versa. Mas se nós tivemos uma "disposição de causas" dada, isto é, se nós
sabemos que eu saí em um certo momento, por um dado caminho e a
velocidade conhecida, e se nós conhecemos os mesmos dados com referencia
ao meu amigo, ficaremos de posse das causas do nosso encontro. Tudo isto é
tão pouco acidental e independente da "disposição das causas" quanto um
eclipse do sol ou da lua, que é determinado pela posição particular dos
planetas.

§ 16. O "acaso" histórico: — Visto o que precede, é fácil examinar o


problema do pretendido "acaso histórico".
Se tudo se passa essencialmente em conformidade com leis, e se em
geral, nada existe de acidental, isto é, independente de qualquer causa, é claro
que o acaso histórico não pode tão pouco existir. Todo acontecimento histórico,
por mais acidental que nos pareça, é na realidade, perfeitamente submetido a
certas condições: Entende-se geralmente por acaso histórico o fenômeno que
tem lugar em virtude do entrecruzamento de varias series de causas, das quais
somente conhecemos uma.

Entretanto, ás vezes entende-se por acaso histórico um fato diferente.


Quando, por exemplo, se diz que a guerra imperialista teve necessariamente a
sua origem no desenvolvimento do capitalismo mundial, mas que, ao contrario,
o assassínio do arquiduque austríaco foi devido ao acaso; trata-se aqui de
duas coisas diferentes. Com efeito, quando se fala da necessidade
(necessidade causal, inevitável) da guerra imperialista, encara-se a imensa
importância das causas que influíram sobre a evolução social, causas que
provocam a guerra. A guerra por si mesma aparece como um fenômeno de
uma importância capital, isto é, um fenômeno que influi de uma maneira
decisiva sobre a seqüência posterior da historia da sociedade. Compreende-se
assim por "acaso histórico", o fenômeno que não representa um papel
importante no encadeamento dos acontecimentos sociais. Se este fenômeno
não se tivesse dado, o aspeto geral da evolução ulterior teria mudado tão
pouco, que ninguém disto se aperceberia. No exemplo que nos interessa,
pode-se dizer que a guerra teria arrebentado mesmo sem o assassínio do
arquiduque, pois este assassínio não foi o "fato essencial", porém o fato
essencial consistiu na concorrência encarniçada das potências imperialistas,
concorrência esta que, com a evolução da sociedade capitalista, se tornava
cada vez mais aguda.

Pode-se dizer que um tal fenômeno "acidental" não representa nenhum


papel na vida social, que não influi de nenhum modo sobre o destino da
sociedade, que em outros termos, ele é equivalente a zero? Se quisermos ser
precisos, é necessário responder negativamente. Pois qualquer fenômeno, por
mais insignificante que seja, influi na realidade sobre toda a evolução ulterior. A
questão é de saber qual a importância da modificação por ele provocada.
Quando se trata de fenômenos acidentais, no sentido indicado acima, esta
influencia, falando praticamente, é insignificante, infinitamente pequena. Mas
por menor que seja, nunca será igual a zero. Isto se torna visível no momento
em que encaramos a ação de tais "acasos" no seu conjunto. Consideremos o
exemplo seguinte: Suponhamos que se trate de estabelecer um preço; o preço
do mercado resulta do conflito de numerosas e variadas avaliações, da parte
dos vendedores e compradores. Se encararmos um só caso, uma só avaliação,
a oposição entre um só vendedor e um só comprador, um tal fenômeno, pode
ser considerado como "acidental". O comerciante Fernandes enganou a
senhora Junqueira. Do ponto de vista do preço do mercado, isto é do fenômeno
social, devido a oposição de varias avaliações, trata-se de um acaso. O que
aconteceu isoladamente a Fernandes terá alguma importância? A nós, só
interessa o resultado final, o fenômeno social, o que tem um caráter "típico"; é
o que se diz freqüentemente e com razão. Um caso isolado desempenha um
papel insignificante. Ele não tem importância, mas se experimentarmos
agrupar, em conjunto, um grande numero de "casos" semelhantes, veremos
imediatamente que o "acaso" começa a desaparecer. O papel e a significação
de muitos casos, a sua ação comum, influem imediatamente sobre a evolução
posterior. Pois os casos particulares nunca têm um valor nulo.

Vemos assim, examinando as coisas de perto, que não existe nenhum


fenômeno acidental na evolução histórica da sociedade: A insônia deKautsky,
que sonhou sobre os horrores da Revolução bolchevique, o assassínio do
arquiduque da Áustria, justamente antes da guerra, a política colonial da
Inglaterra, a guerra mundial em uma palavra, todos os fenômenos a começar
pelos mais insignificantes e terminando pelos mais trágicos da época presente,
não têm como origem o acaso: eles são todos provocados por certas causas,
isto é, eles são todos igualmente submetidos à necessidade causal.

§ 17. A necessidade histórica

— De acordo com o que precede, a noção do "acaso" deve ser excluída


das ciências sociais. Como tudo no mundo, a sociedade se acha submetida na
sua evolução, a uma lei.

É característico observar que a noção do acaso, conduz diretamente à


crença no sobrenatural, à fé em Deus. É sobre ela que se baseia a pretendida
"prova cosmológica" da existência de Deus. Ela diz. Se o mundo (cosmos) não
está submetido a uma lei, é evidente que deve existir uma causa primaria de
sua existência e de sua evolução. Esta pretendida prova é conhecida como "a
da contingência do mundo" (de contingentia mundi). Ela é encontrada,
em Aristóteles, Cícero, Leibnitz, Christian Wolff, e outros. A doutrina do acaso
começou a se desenvolver com a decadência e a decomposição da burguesia
(por exemplo, nos filósofos franceses Boutroux, Bergson, etc). A noção de
necessidade (necessidade causal) é contraria à do acaso.

"O que decorre fatalmente de causas determinadas é necessária". Quando


se diz que um certo fenômeno foi historicamente necessário isto quer dizer que
ele devia suceder fatalmente, independentemente do fato de ser bom ou mau.
Quando se fala de necessidade causal, não se trata da apreciação de um
fenômeno, nem de saber se ele é desejável ou indesejável; diz-se;
simplesmente que ele é inevitável. É preciso não confundir duas noções
completamente diferentes: A necessidade, no sentido do preciso, e a
necessidade causal. São duas coisas completamente diversas. Quando se fala
da necessidade histórica, não se pensa no que é desejável no sentido, por
exemplo, do progresso social, mas no que decorre inevitavelmente da marcha
da evolução social. É nesse sentido que eram necessárias tanto o
desenvolvimento das forças produtivas no século XIX, como a queda do
império romano, ou o desaparecimento da cultura cretense. O que é devido a
certas causas é necessário. Nem mais nem menos.

Vamos passar agora a outro problema bastante difícil, referente à mesma


necessidade.

Vamos admitir que estamos diante de uma sociedade humana, que se


duplicou em vinte anos. Poderemos concluir que a produção nesta sociedade
aumentou. Se ela não tivesse aumentado, a sociedade não se teria podido
duplicar. Se a sociedade cresceu, a produção deve também ter aumentado.
Este exemplo não precisa de comentários. Mas o que significa isto? Nós vamos
procurar aí a causa do desenvolvimento social de um modo particular, causa
que constitui uma condição necessária de desenvolvimento. Se essa condição
não for preenchida não temos desenvolvimento. Se estamos na presença de
um desenvolvimento, é que esta causa existe.

Este exemplo nos conduz ás seguintes considerações: No principio deste


trabalho, expulsamos sem piedade a teleologia. E agora parece que a estamos
introduzindo nós mesmos. Com efeito, como se propõe a questão? Para que a
sociedade se desenvolva, para que esta sociedade possa se duplicar, é preciso
que a produção aumente. O desenvolvimento da sociedade é o fim, "télos". O
desenvolvimento da produção é um meio para realizar este fim. A lei da
evolução é uma lei teleológica. Parece portanto que pecamos contra a ciência
e que caímos nos braços dos padres.

Mas aqui trata-se de coisa muito diferente, que nenhum relação tem com a
teleologia. Com efeito, partimos aqui da proposição que a sociedade aumentou
(no caso presente, partimos mesmo do fato da sociedade ter aumentado). Mas
ela poderia também não ter aumentado. E se ela não se tivesse desenvolvido,
se por exemplo, ela tivesse diminuído de metade, poderíamos tirar, seguindo o
mesmo método, a seguinte conclusão: A sociedade tendo diminuído de
metade, e isto, por efeito de uma sub-alimentação, é evidente que a produção
diminuiu. No entanto ninguém se lembrará de ver um "fim" na destruição da
sociedade. Ninguém poderá dizer neste caso: o fim é de diminuir a sociedade
pela sub-alimentação; o meio que conduz a este fim é a redução da produção.
Não temos portanto no caso presente, nada a ver com a finalidade
(teleológica). Trata-se simplesmente de um método particular de investigação
de condições (causas), de acordo com os resultados.

A condição necessária de evolução é conhecida pelo nome de


necessidade histórica. É neste sentido que a Revolução francesa, sem a qual o
capitalismo não se teria podido desenvolver, constituía uma necessidade
histórica, ou então, da mesma forma a pretendida "libertação dos servos" de
1861, sem a qual o capitalismo russo não teria podido continuar a se
desenvolver. É neste sentido que o socialismo é uma necessidade histórica, a
evolução social posterior sendo impossível sem ele. Se a sociedade se
desenvolve, teremos infalivelmente o socialismo. É neste sentido
que Marxe Engels falam da "necessidade social".

O método que consiste em procurar as condições necessárias de


conformidade com os fatos reais (ou supostos), foi muitas vezes empregado
porMarx e Engels, bem que se tenha prestado pouca atenção a este fato. No
entanto o Capital é inteiramente construído desta maneira. Tome-se uma
sociedade onde circule a mercadoria, com todos os seus elementos. Ela existe.
Como pode ela "existir? Resposta: Se ela existe, só pode ser com a condição
de existir uma lei para o valor. Uma grande quantidade de mercadorias é
trocada. Como é isto possível? Isto só é possível graças à condição de existir
um sistema monetário ("a necessidade social do dinheiro"). O capital "se
acumula" de acordo com leis que regulam a circulação das mercadorias. Como
é isto possível? Isto só é possível, porque o valor da força de trabalho é menor,
do que o do produto, etc. etc.

§ 18. O problema da possibilidade das ciências sociais e das previsões


neste domínio

Resulta de tudo que precede que para as ciências sociais, tanto quanto
para as ciências naturais, as previsões são possíveis, previsões não
charlatanescas, mas cientificas. Sabemos, por exemplo, que os astrônomos
podem, com a maior exatidão, predizer os eclipses do sol ou da lua, o
aparecimento dos cometas e de um grande numero de estrelas cadentes. Os
meteorologistas podem prever o tempo: o sol, o vento, a tempestade, a chuva.
Nada há de misterioso nestas previsões. Assim, o astrônomo conhece as leis
que determinam o movimento dos planetas. Ele conhece as órbitas do sol, da
terra,da lua, etc. Ele sabe também com que velocidade eles se movem e onde
se acham em um dado momento. O que há de admirável portanto que se
possa, nestas condições calcular o momento em que a lua, colocando-se entre
a terra e o sol, produza um eclipse? Será possível a mesma coisa nas ciências
sociais? Certamente que sim. Com efeito, se conhecemos as leis de evolução
social, isto é, as vias que seguem inevitavelmente as sociedades, a direção da
evolução, não teremos dificuldade em definir o futuro social. Varias vezes tais
previsões já foram feitas na ciência social, previsões estas que se realizaram
inteiramente. Graças ao conhecimento das leis de evolução social, foram
previstas as crises econômicas, a desvalorização da moeda, a guerra
universal, a Revolução social como resultado da guerra; previmos a conduta de
diversos grupos, classes e partidos durante a Revolução; previmos por
exemplo, que os socialistas-revolucionários russos, depois da Revolução
proletária, se transformariam num partido contra-revolucionário; muito tempo
antes da Revolução, mais ou menos em 1890, os marxistas russos previram o
desenvolvimento inevitável do capitalismo na Rússia, e, ao mesmo tempo, o
aumento do movimento operário. Centenas de exemplos de previsões desta
natureza poderiam ser citadas. Não há nada de extraordinário nisto se
conhecemos as leis do processo histórico. Não podemos por enquanto prever a
data em que um certo acontecimento se realizará. De fato, não conhecemos
ainda as leis de evolução social a ponto de as podermos exprimir em
algarismos exatos. Ignoramos a velocidade dos processos sociais, mas já
podemos indicar a sua direção.

M. Bulgakof, escreve no seu livro intitulado "Capitalismo e Agricultura


(1900-vol. 11.°):

"Marx achava possível medir e definir o futuro baseando-


se no passado e no presente, e no entanto, cada época
traz para a evolução histórica, fatos novos e forças novas;
a potência criadora da historia não se esgota. Eis porque
toda previsão do futuro baseada sobre dados do presente
conduz fatalmente (!!!) a um erro... A cortina que encobre
o futuro é impenetrável".

O mesmo autor escreve na "Filosofia da Economia" (1.ª parte: O mundo


como economia, 1912-pag. 272):

"previsões muito mais modestas não podem ser feitas


pela ciência social senão com grandes restrições; "As
tendências da evolução", estabelecidas pela ciência e que
favorecem o socialismo têm muito poucas relações com
"as leis das ciências naturais", com as quais Marx as
confunde. Não são senão "leis empíricas... A sua lógica é
de natureza diferente daquela, por exemplo, das leis
mecânicas..."

Tomamos estas citações nas obras do professor Bulgakof, como um


espécime muito característico do método pelo qual se "refuta" o marxismo.
Examinemos estas refutações mais de perto. M. Bulgakof considera que as leis
da evolução capitalista, por exemplo, não são senão "leis empíricas". Como se
sabe entende-se pelo nome de "leis empíricas" uma sucessão regular de
fenômenos no decurso dos quais não se pode dizer que descobrimos as
relações de causa e efeito. Assim, por exemplo, observou-se que as crianças
do sexo feminino nascem em proporções um pouco maiores que as crianças
masculinas. Mas não conhecemos as causas deste fenômeno. As "leis" como
esta, têm com efeito, uma outra "natureza lógica", mas as da evolução
capitalista não são absolutamente da mesma natureza. Elas exprimem
relações de causa e efeito. Assim por exemplo, a lei da concentração dos
capitais não é de nenhuma maneira uma "lei empírica", mas realmente
cientifica, ao mesmo título que as estabelecidas pelas ciências naturais. Com
efeito, quando estamos em presença de empreendimentos industriais,
pequenos ou grandes, que rivalizam entre si, a vitória dos grandes é
necessária. Aqui, conhecemos a relação de causa e efeito, e é a razão porque
podemos prever a vitória infalível da grande produção, tanto no Japão quanto
na África central.

A nossa primeira citação de Bulgakof não é senão literatura. A historia traz


"fatos novos", a "potência criadora da historia é inesgotável", etc...! Mas a
evolução da natureza traz igualmente com ela "fatos novos". Estes fatos novos
aparecem nas ciências naturais ou matemáticas com a sua "natureza lógica".
Uma só coisa é verdadeira no que diz Bulgakof: não conhecemos tudo. Mas
não se pode concluir daí a negação da ciência.

É característico, entre outras coisas, que na sua filosofia da economia,


M. Bulgakof fala muito e seriamente dos anjos, do pecado original, de Santa
Sofia, etc... Tudo isto tem realmente uma "outra natureza lógica e se parece
enormemente com a ciência dos charlatães, contra a qual protesta M. Bulgakof.

A doutrina do determinismo no domínio dos fenômenos sociais e a


possibilidade de prever na ciência encontraram um grande numero de
contraditores. Vamo-nos deter na critica feita por Stammler. Este pergunta aos
marxistas, para os quais o socialismo é tão inevitável quanto um eclipse do sol,
por que motivo procuram eles realizar o socialismo.

"De duas uma — diz Stammler — ou bem o socialismo


virá como um eclipse de lua, e então é inútil se esforçar,
lutar, organizar um partido da classe proletárias etc...; do
mesmo modo que ninguém se lembrará de organizar um
partido para ajudar a realização de um eclipse de lua; se
organizais um partido, lutais etc., isto quer dizer que o
socialismo pode não se realizar, mas vos quereis que ele
venha, e é por este o motivo porque lutais, e assim sendo
ele não pode ser considerado como inevitável".

Não é difícil ver, depois do que ficou dito, no que consiste o erro de
Stammler. O eclipse de lua não depende nem direta nem diretamente da
vontade humana, ele não depende de nenhum modo dos homens. Todos os
homens, sem distinção de classe, de sexo, de idade, ou de nacionalidade,
poderiam morrer que isto não impediria a realização de um eclipse de lua. O
caso se passa diferentemente nos fenômenos sociais. Estes se realizam pela
vontade dos homens. Um fenômeno social sem os homens, sem a sociedade,
é a mesma coisa do que um quadrado redondo, ou gelo frito. O socialismo se
realizará inevitavelmente, porque os homens, as diversas classes da sociedade
humana agirão infalivelmente de maneira a realizá-lo, e em condições que
determinarão sua vitória. O marxismo não nega a vontade; ele a explica.
Quando os marxistas organizam e conduzem à batalha o partido comunista,
isto não é mais do que uma expressão da necessidade histórica, que é
determinada pela vontade e pelos atos dos homens.

O determinismo social, isto é, a doutrina pela qual todos os fenômenos


sociais são determinados, têm as suas causas, das quais eles são o efeito
necessário, que não deve ser confundido com o fatalismo. O fatalismo, é a
crença num "destino" cego e inevitável, destino que pesa sobre tudo e ao qual
tudo está submetido. A vontade humana nada é. O homem não representa
uma grandeza dotada de um certo poder de ação; ele é simplesmente um
instrumento passivo. Esta doutrina, ao contrario do determinismo, nega a
vontade humana, como fator da evolução.

Acontece freqüentemente que este "destino" seja personificado por seres


semelhantes aos deuses. Tais são a "Moira" dos antigos gregos, as "Parcas"
dos romanos. Em alguns doutores da igreja (por exemplo, em Santo
Agostinho), este papel é representado pela doutrina da predestinação, que é
encontrado numa forma mais característica ainda em Calvino (R. Wipper: A
Igreja e o Estado em Genebra no XVI. º século). A expressão mais patente do
fatalismo é encontrada no Islã. Entretanto, não se pode negar que os social-
democratas tenham certa inclinação para o fatalismo; é somente entre os
social-democratas, aliados à burguesia, que o marxismo degenerou em uma
teoria fatalista. O melhor exemplo desta degenerescência fatalista do marxismo
é representado por G. Cunow, cuja "filosofia" toda pode ser expressa na
seguinte proposição: "A historia sempre tem razão", e eis a razão porque não
se pode lutar nem contra a guerra mundial nem contra o imperialismo. Toda
insurreição comunista dos operários é considerada por ele, não como a
manifestação de uma necessidade histórica, mas como uma tentativa exterior e
incompreensível para violentar as leis da evolução histórica.
Capítulo III - O Materialismo Dialético

§ 19. O materialismo e o idealismo na filosofia. O problema da


objetividade

Examinando a questão da vontade humana, a questão de saber se ela era


livre ou determinada por certas causas, como aliás tudo no mundo, concluímos
que era necessário colocar-se no ponto de vista determinista. Vimos que a
vontade humana nada tem de divino, que ela dependia de causa exteriores e
do estado do organismo humano. Eis-nos chegados ao problema mais
importante, que preocupou durante milhares de anos o pensamento humano,
ao problema das relações entre a matéria e o espírito. Fala-se correntemente
da "alma" e do "corpo". Distinguimos em geral dois gêneros de fenômenos.
Alguns deles têm uma certa extensão, ocupam um certo lugar no espaço, são
percebidos pelos nossos sentidos: podem ser vistos, ouvidos, tocados, etc. São
chamados fenômenos materiais. Os outros não ocupam lugar no espaço, não
podem ser tocados nem vistos; tal é por exemplo, o pensamento, a vontade ou
uma sensação. Todos sabem que eles existem. Descartes considerava este
fato como uma prova suficiente da existência do homem. Ele disse: "Eu penso
logo existo". E no entanto não se pode tocar nem sentir o pensamento humano,
ele não tem cor, e não pode ser medido diretamente com um metro. Tais
fenômenos chamam-se psíquicos ou espirituais. Quais são as relações que
existem entre estes dois gêneros de fenômenos? Será o espírito ou a matéria
"'o começo de todas as coisas"? Qual é o fenômeno original? Qual é o
fenômeno principal? Será a matéria que dá origem ao espírito, ou então o
espírito à matéria? Tal é o problema fundamental da filosofia. Da resposta a
esta pergunta, dependem outras questões que tocam o problema das ciências
sociais.

Vamos tentar examinar esta questão, tanto quanto possível, sob todos os
aspectos. Devemos antes de tudo ter em vista que o homem faz parte da
natureza. Não sabemos com certeza se existem outros seres organizados de
uma maneira superior, sobre outros planetas. Certamente que existem, pois
que o numero de planetas é infinito. Mas vemos claramente que o ser pensante
que se chama homem nada tem de divino, de exterior ao mundo, e que ele não
caiu na terra vindo de um mundo desconhecido, misterioso. Ao contrario,
sabemos pelas ciências naturais que o homem é um produto da natureza, uma
parte desta natureza submetida às leis gerais. É pelo exemplo deste mundo
que nós conhecemos, vemos que os fenômenos psíquicos, que o pretendido
"espírito", constituem uma parcela ínfima de todos os fenômenos. De outro lado
sabemos que o homem descende de outros animais e que no fim de contas "os
seres viventes" não apareceram sobre a terra senão no fim de um certo tempo.
Quando a terra não era ainda um planeta extinto, mas um globo incandescente,
no gênero do nosso atual sol, não havia vida sobre ela, nem seres pensantes.
Foi da natureza "morta" que se desenvolveu a natureza viva e foi da viva que
saiu aquela que pensa. Existia a princípio uma matéria que não podia pensar, e
dela se formou a natureza pensante: o homem. Se assim é — e as ciências
naturais o provam, — está claro que foi a matéria que gerou o espírito e não o
espírito a matéria. Pois não acontece nunca e em nenhum lugar, que os filhos
sejam mais velhos que os pais. O "espírito" apareceu mais tarde. Foi ele, por
conseguinte, que foi o filho e não o pai, ao contrario do que desejam dele fazer
os admiradores demasiadamente fervorosos do "espiritual". Sabemos também
que o espírito aparece ao mesmo tempo que a matéria quando organizada de
certa maneira.

Não é um balão vazio nem um buraco, nem o "espírito" sem matéria que
pensa, e sim o cérebro humano, uma parte do organismo humano. E o
organismo humano é a matéria organizada de uma maneira extremamente
complexa.

Em quarto lugar explica-se claramente pelo que precede, por que motivo a
matéria pode existir sem o espírito, enquanto que o espírito não pode existir
sem a matéria. A matéria existiu antes que o homem pensante tivesse
aparecido; a terra existiu bem antes da aparição de qualquer "espírito" sobre
esta terra.

Em outros termos, a matéria existe objetivamente, independentemente do


"espírito". Ao contrario, os fenômenos psíquicos, o pretendido espírito, não
existe nunca e em parte alguma sem a matéria, independentemente dela. Os
pensamentos não existem sem cérebro, os desejos sem o organismo que
deseja. O "espírito" é sempre fortemente ligado á "matéria" (foi somente na
Bíblia que ele planava por cima dos abismos). Em outras palavras, os
fenômenos psíquicos, os fenômenos da consciência não são outra coisa senão
uma qualidade da matéria organizada de outra maneira, sua "função" (a função
de uma grandeza qualquer é uma outra grandeza que depende da primeira).
Tomemos, o homem, por exemplo. Ele é uma maquina delicadamente
organizada. Destruí esta organização, desorganizai-a, decomponde-a, cortai-a
em pedaços, e o "espírito" desaparecerá imediatamente. Se os homens
dispusessem de meios para reconstituir todo este sistema, de tal maneira que o
organismo humano começasse novamente a trabalhar, em outros termos, se
os homens tivessem um meio de recompor, de reorganizar as parcelas
materiais como elas eram antes, se eles pudessem em uma palavra, dar corda
ao homem como se dá corda a um relógio, a consciência se restabeleceria
imediatamente: Concerte o teu relógio e ele recomeçará a funcionar;
reconstitua o organismo humano e ele recomeçará a pensar. Certamente os
homens não chegaram até este ponto. Mas nós já vimos, ao examinar o
problema do determinismo, que o estado de "espírito", o estado de consciência
depende do estado do organismo. Envenenai o organismo com álcool, e a
consciência se tornará obscura, o "espírito" titubeará. Tornai a pôr o organismo
em seu estado normal (administrai-lhe um antídoto) e o "espírito" recomeçará a
trabalhar como de costume. Isto prova claramente que a consciência depende
da matéria ou, em outros termos, que o "pensamento" depende do organismo.
Já dissemos e ficou visto que os fenômenos psíquicos constituem uma
propriedade da matéria organizada de uma certa maneira. Pode haver nestes
limites certas flutuações, diversas formas de organização da matéria, por isto
mesmo, formas diferentes da vida psíquica. O homem, com o seu cérebro está
organizado de uma maneira; ele tem a mais completa vida psíquica, ele tem
uma verdadeira consciência. Um cão está organizado de outra maneira, e esta
é a razão porque a vida psíquica de um cão difere da do homem; uma minhoca
é constituída ainda de maneira diferente, e por esta razão o "espírito" de uma
minhoca é muito pobre e não pode de maneira alguma ser comparado ao
espírito humano. Uma pedra, por exemplo, pela sua organização constitui uma
matéria inanimada, ela não tem nenhuma vida psíquica. Uma organização
particular e complicada da matéria, é necessária para que a vida psíquica
possa aparecer, e a que chamamos consciência. Sobre a terra, esta
consciência aparece somente quando existe a matéria organizada, tal como o
organismo humano, com o seu instrumento complexo: o cérebro.

Assim, o espírito, não pode existir sem a matéria, a matéria pode existir
muito bem sem o espírito, pois que existiu antes dele, o (espírito) é uma
qualidade particular da matéria, organizada de uma maneira particular.

É assim que se resolve o problema das relações entre o materialismo e o


idealismo, na filosofia.

O matenallsmo considera a matéria como causa primaria e fundamental! O


idealismo ao contrario, considera em primeiro lugar o espírito. Para os
materialistas, o espírito é um produto da matéria; para os idealistas, ao
contrario, é a matéria que é o produto do espírito.

Não é difícil ver que o idealismo, isto é, a doutrina que considera as idéias,
"o espírito", como base de tudo que existe, não é outra coisa senão uma forma
amenizada das concepções religiosas. O sentido destas concepções religiosas
consiste precisamente no fato de uma força divina e misteriosa estar colocada,
acima da natureza, de que a força humana é considerada como uma faísca
dessa força divina, e de que o homem é um ser eleito por Deus. O ponto de
vista idealista conduz no seu desenvolvimento a uma série de absurdos, que os
filósofos das classes dominantes defendem muitas vezes com muita seriedade.
Neste caso estão principalmente as concepções que negam o mundo exterior,
isto é a existência objetiva das coisas e dos outros homens independentemente
da consciência humana. A forma extrema deduzida do idealismo é o solipismo
(da palavra latina "solus" — só). Os solipsistas raciocinam da seguinte maneira:
O que me é dado diretamente? Minha consciência e nada mais, a casa que eu
vejo é minha sensação, o mesmo acontece com o homem a quem eu falo. Em
uma palavra, nada existe fora de mim mesmo; somente meu "eu" existe, minha
consciência, minha essência espiritual; nenhum mundo exterior independente
de mim existe: Tudo isto, é criação do meu espírito. Pois eu não conheço
senão a minha vida interior, da qual eu não posso me desembaraçar.

Tudo o que eu vejo, ouço, provo, tudo que eu penso, tudo isto, são minhas
sensações, minhas imagens, meus pensamentos. Esta filosofia absurda, da
qual Schopenhauer disse que não poderia encontrar adeptos sinceros senão
num hospício de alienados (o que não impediu ao mesmo Schopenhauer de
considerar o mundo como vontade e representação, isto é, de ser um idealista
da mais pura essência) é desmentido a todo momento pela prática humana. Os
homens comem, empreendem uma luta de classes, calçam os sapatos, colhem
flores, escrevem livros, casam-se; ninguém duvida um só instante que o mundo
exterior exista, isto é, ninguém duvida da existência da comida que se come,
dos sapatos que se calçam, das mulheres com que nos casamos, etc.
Entretanto, todos estes absurdos decorrem das proposições essenciais do
idealismo. Com efeito, se o "espírito" é a base de tudo, o que faremos do
tempo em que o homem não existia ainda? De duas uma: Ou bem é preciso
admitir que existiu um espírito não humano, divino, no gênero daquele ao qual
se referem os antigos contos judaicos e a Bíblia, ou então é preciso dizer que a
própria época antiga não é senão o fruto do trabalho de minha imaginação. A
primeira hipótese conduz ao que chamamos de "idealismo objetivo". O
idealismo objetivo admite a existência de um mundo exterior independente de
"minha" consciência. Mas ele vê a essência deste mundo no princípio
espiritual, em um Deus ou numa "razão superior" que substitui às vezes o
Deus; numa "vontade universal" e em outras fantasias diabólicas deste gênero.
A segunda hipótese conduz diretamente ao solipsismo através do idealismo
subjetivo, que não admite senão a existência dos seres espirituais, dos seres
pensantes individuais. Não é difícil ver que o solipsismo constitui a forma mais
consequente do idealismo. Com efeito, qual é a fonte, qual é a base do
idealismo? Porque crê ele que o princípio espiritual é o primeiro e o essencial?
Por que ele considera, no fim de contas, que só existem as sensações, que me
são fornecidas diretamente. Mas se assim é, a minha própria existência fica tão
duvidosa como a de um objeto qualquer, como a de qualquer outro homem, e
entre eles a de meus próprios pais. Aqui, o solipsismo se mata a si mesmo,
mas ele mata ao mesmo tempo todo o idealismo na filosofia, pois
desenvolvendo logicamente as concepções idealistas, ele conduz ao absurdo
mais completo, que contradiz a cada passo a prática humana.

É preciso não confundir "o idealismo prático" e o "materialismo" com o


materialismo e idealismo teóricos. São coisas que nada têm de comum com as
doutrinas que acabamos de analisar. Dá-se o nome de idealista, no sentido
prático da palavra, a um homem dedicado a uma idéia e pronto a fazer todos
os sacrifícios por ela. Está claro que um tal idealista pode ser o adversário mais
encarniçado do idealismo filosófico, do idealismo teórico. Um comunista que
sacrifica a sua vida é um idealista prático, e ao mesmo tempo materialista até a
medula dos ossos. Um burguês que suspira pelo bom Deus tem habitualmente
concepções muito idealistas, o que não impede de ser bastante covarde,
obtuso e egoísta.

Considera-se habitualmente o filósofo grego Platão como o pai do


idealismo filosófico. Segundo ele, com efeito, não existem objetivamente
senão" idéias" (conceitos), não homens, peras, carrinhos, mas idéia do homem,
da pera, e do carrinho. Todas estas idéias modelo e preexistentes, planam
"acima do céu", tal o espírito divino, "a idéia superior", a "idéia do bem'. Um
certo desvio para o idealismo subjetivo foi feito a princípio pelos filósofos
gregos conhecidos pelo nome de sofistas (Protágoras, Gorgeas, etc...) que
emitiram a proposição segundo a qual "o homem é a medida de todas as
coisas". Na idade média, as idéias de Platão eram consideradas como os
modelos, de acordo com os quais Deus cria todas as coisas visíveis. Por
exemplo, a pulga visível é criada por Deus, segundo uma "idéia" da pulga, que
está colocada num "mundo para além da razão". Nos tempos modernos, foi o
bispo Berkeley que desenvolveu da maneira mais consequente o ponto de vista
do idealismo subjetivo na Inglaterra; segundo ele, somente o espírito existe,
todo o resto não é senão a sua representação. Na Alemanha, Fichte pensava
que o objeto (mundo exterior) não existe sem o sujeito (o espírito que
conhece), e a matéria é a expressão da idéia. Segundo Schelling, as idéias são
a essência das coisas, tendo por base a eternidade divina. Segundo Hegel,
tudo o que existe não é senão a manifestação da "Razão objetiva", que se
desenvolve por si mesma. Segundo Shopenhauer o mundo é vontade e
representação. Segundo Kant, o mundo objetivo existe ("a coisa em si"), mas
dele não se pode ter conhecimento, pois a sua natureza é imaterial. Na filosofia
moderna, o idealismo, dividiu-se em diversas tonalidades, e reforçou-se
consideravelmente com a tendência da burguesia para o misticismo e o
mistério. É o sinal de uma profunda decadência da burguesia que,
desesperada, procura uma consolação espiritual.
A primeira corrente filosófica materialista é encontrada nos filósofos gregos
da escola jônica, que consideravam a matéria como base de tudo o que existe,
mas que pensaram ao mesmo tempo que toda a matéria tinha até certo ponto a
propriedade da percepção. Por este motivo são estes filósofos chamados
"hilozoistas" (isto é, em grego, os que animam a matéria).

Certamente, estes primeiros passos não deram grandes resultados. Assim


Thales procurou a base de tudo que existe na água, Anaximenes no ar,
Heráclito no fogo, Anaximandro numa substancia indefinida e que envolve tudo
(ele a chamou "infinito" ou "ilimitado"); é preciso acrescentar aos hilozoístas os
estóicos, segundo os quais tudo o que existe é material. O materialismo foi em
seguida desenvolvido pelos gregos Demócrito e Épicuro e o latino
Lucrecio. Demócrito assentou genialmente as bases da teoria dos átomos.
Segundo ele, o mundo é composto de parcelas materiais ínfimas que se
movem e cujas combinações criam o mundo visível. Na idade média, eram em
gerai ruminadas as concepções idealistas. O filósofo B. Spinoza desenvolveu
as idéias dos materialistas hilozoístas de uma maneira brilhante e profunda. Na
Inglaterra, foi Hobbes (1578-1679) quem defendeu os princípios materialistas.
É a época da preparação da grande Revolução francesa, que produziu toda
uma série de filósofos materialistas de primeira ordem, tais
como: Diderot, Helvetius, Holbach (cuja obra principal "Sistema da natureza"
apareceu em 1770).

La Metrie ("O homem maquina", 1748). Este grupo de filósofos da


burguesia, nessa época revolucionaria, formulou de uma maneira magnífica a
teoria materialista (ver N. Beltov: "Contribuição ao desenvolvimento da
concepção monista da historia" e V. Lenin: "Materialismo e Empiro
Criticismo"). Diderot ridicularizou com fineza os idealistas do gênero
de Berkeley.

"Houve, diz ele, um momento de loucura, quando um


cravo consciente imaginou que ele era o único cravo
existente no mundo e que toda a harmonia do universo
pertencia a ele".

No século XIX, o materialismo foi desenvolvido na Alemanha por Ludwig


Feuerbach que exerceu influencia sobre Marx e Engels; estes dois últimos
formularam a mais perfeita teoria do materialismo. Eles ligaram o materialismo
a um método dialético (do qual falaremos adiante) e aplicaram a doutrina
materialista às ciências sociais, expulsando assim o idealismo do seu ultimo
reduto. É natural que a burguesia no seu gatismo, babe sobre o materialismo,
invocando o velho bom Deus. É lógico também que o materialismo se torne a
teoria revolucionaria da jovem classe revolucionaria — o proletariado.
§ 20. A concepção materialista nas ciências sociais

É evidente que o debate entre o materialismo e o idealismo não pode


deixar de ter repercussão nas ciências sociais. Com efeito, examinemos a
sociedade humana. Vemos nela fenômenos de gêneros diferentes. Há os de
"ordem superior": A religião, a filosofia, a moral. Encontramos também a
política do Estado com suas leis, novas idéias nos diferentes domínios, troca
de mercadorias e a distribuição dos produtos, a luta das diferentes classes
entre si; a produção dos diferentes objetos: da cevada, do feijão, dos calçados,
das maquinas, segundo as condições de tempo e de espaço. Como fazer para
estudar esta sociedade? Por que lado começar? O que deve ser considerado
como essencial? Como primordial? O que é secundário, derivado?
Evidentemente, aí estão, na sua essência, os mesmos problemas que a
filosofia formula e que dividem filósofos em dois grandes campos: materialistas
e idealistas. Pode-se, com efeito, imaginar, de um lado, que os homens
aplicam ao estudo da sociedade o método seguinte: A sociedade é composta
de homens, os homens pensam, agem, desejam, se inspiram de idéias, de
pensamentos, de "opiniões", de onde se conclui: "As opiniões governam o
mundo", as mudanças de opinião, as mudanças de ponto de vista dos homens,
constituem a causa primaria de tudo o que se passa numa sociedade; por
conseguinte, a ciência social deve estudar em primeiro lugar este lado do
problema, a "consciência social". Isto seria o ponto de vista idealista nas
ciências sociais. Mas vimos acima que o idealismo presume que se admite a
independência das idéias relativamente aos fatos materiais, e que pelo
contrario, estas idéias dependem de coisas divinas e misteriosas. Eis a razão
pela qual a concepção materialista se liga diretamente à mística e às fantasias
diabólicas nas ciências sociais, e por conseguinte, conduz à destruição da
ciência social e à sua substituição pela fé, pela crença numa Providência ou
outra coisa análoga. É assim que Bossuet, no seu "discurso sobre a historia
universal" em 1682, declarou que se encontra na historia a direção divina do
gênero humano". O filósofo idealista alemão Lessing afirmava que a historia é
"a educação do gênero humano por Deus"; Fichte dizia que a razão é que agia
na historia; Schelling, que a historia é uma "revelação constante do absoluto,
revelação que se descobre pouco a pouco, isto é, em ultima analise, a
revelação de Deus". Hegel, o maior filósofo do idealismo definia a historia
universal como "um desenvolvimento inteligente e necessário do espírito
universal". Podíamos citar ainda um grande numero de exemplos, mas os que
acabamos de dar são suficientes para mostrar a que ponto as concepções
filosóficas tem ligação estreita com as ciências sociais.

Assim, as ciências sociais e a sociologia idealista observam na sociedade,


antes de tudo as "idéias" desta sociedade: Elas consideram a sociedade, ela
mesma, como fenômeno psíquico e material; a sociedade, segundo eles, é
uma mistura de desejos, de sentimentos, de pensamentos, de vontades
humanas, que se entrecruzam, formando infinitas combinações; em outros
termos, é a psicologia social e a consciência social, o "espírito" da sociedade.
Pode-se entretanto examinar a sociedade de outra maneira. Vimos, ao estudar
o problema do determinismo, que a vontade humana não era livre, que ela era
determinada pelas condições exteriores da existência humana. A sociedade
não estará submetida às mesmas leis? Onde encontrar a chave para explicar a
consciência social? Do que depende ela?

Ao formularmos estas perguntas, estamos em presença da concepção


materialista das ciências sociais. A sociedade humana é um produto da
natureza, tanto quanto o gênero humano na sua totalidade. Ela depende desta
natureza. Ela não pode existir sem tirar desta natureza tudo que lhe é útil. E ela
extrai estas coisas úteis por meio da produção. Ela não age sempre de uma
maneira consciente. Somente uma sociedade organizada trabalha segundo um
plano preestabelecido. Pelo contrario, uma sociedade desorganizada tudo faz
de uma maneira inconsciente: Assim por exemplo, em regime capitalista, um
fabricante que quer obter maiores lucros aumenta com este fim a produção (e
não para ajudar a sociedade humana); um camponês produz para se nutrir e
para vender uma parte de seus produtos, afim de pagar os impostos; um
artesão, para se manter tanto quanto possível e para tentar progredir; um
operário, para não morrer de fome. E acontece, no fim de contas que a
sociedade continua a viver mal e mal. A produção material e seus meios ("as
forças materiais produtivas"), eis o que constitui a base da existência de uma
sociedade humana. Sem esta produção, nenhuma "consciência social",
nenhuma "cultura espiritual" é possível, do mesmo modo que um pensamento
não pode existir sem o cérebro. Examinaremos detalhadamente este problema
mais tarde. Contentemo-nos, no momento, de examinar o seguinte:
Representemo-nos duas sociedades humanas, uma de selvagens, a outra
capitalista em declínio. Na primeira, todo o tempo é gasto na procura da
alimentação por meio da caça, da pesca, da colheita de raízes, da cultura de
plantas, etc.; encontramos nela muito poucas "ideias", "cultura espiritual", etc.
Estamos diante de animais, de semi-macacos. Na outra sociedade, vemos uma
rica "cultura espiritual", toda uma torre de Babel, a moral, o direito, com suas
leis interminável, as ciências, a filosofia, a religião, a arte, a começar pela
arquitetura e acabando pelas gravuras de modas. Ao mesmo tempo, a
burguesia dominante tem a sua própria torre de Babel, os proletários possuem
outra, os camponeses uma terceira, etc.. Em uma palavra, como se diz
habitualmente, "a rica cultura espiritual", o "espírito" social, as "idéias"
cresceram aqui em proporções consideráveis. Como pôde este espírito se
desenvolver? Quais foram as condições que determinaram o seu crescimento?
O desenvolvimento da produção material, o poder crescente do homem sobre a
natureza, o aumento da produtividade do trabalho-humano. É somente depois
disto que o homem não é mais obrigado a sacrificar todo o seu tempo ao duro
trabalho material: Os homens têm momentos de repouso que se lhes permitem
pensar, refletir, fazer um trabalho intelectual, de criar uma "cultura" espiritual.

Assim, do mesmo modo que a natureza é no fundo a mãe do espírito, e


não o espírito o pai da matéria, assim também, numa sociedade, não é a
"cultura espiritual" social ("a consciência social") que cria a matéria social, isto
é, a produção material, mas ao contrario, é o desenvolvimento desta matéria
social, que forma a base da, por assim dizer, "cultura espiritual". Em outros
termos, a vida espiritual da sociedade depende, e não pode deixar de
depender, do estado da produção material, do grau de desenvolvimento das
forças produtivas da sociedade. A vida espiritual da sociedade é, como dizem
os sábios, função das forças produtivas. Qual é a essência desta função? De
que maneira depende a vida espiritual da sociedade das forças produtivas?
Veremos isto mais tarde. Indiquemos somente no momento que, segundo esta
concepção, a sociedade se apresenta evidentemente não como um "organismo
psíquico", não como um conjunto de opiniões diferentes, pertencendo ao
domínio do "belo", do "puro", e do "sublime", mas antes de tudo como uma
organização de trabalho (Marx dizia às vezes: "Organismo produtor"). Este é o
ponto de vista materialista em sociologia. Como sabemos, a concepção
materialista não nega a existência das "idéias". Marx, referindo-se ao grau de
consciência mais elevado, da teoria cientifica, exprimiu-se da seguinte maneira:

"cada teoria se transforma em força material, quando as


massas delas se apoderam".

Mas os materialistas não se podem contentar em dizer que "os homens


pensaram assim". Eles perguntam entre si por que motivo os homens
pensaram de uma certa maneira em certo momento e lugar, e diferentemente
em outras condições. Porque, em uma sociedade civilizada, pensam os
homens muito e produzem montanhas de livros, e porque não fazem o mesmo
os selvagens? A explicação disto está nas condições materiais da vida social.
É assim que o materialismo nos permite explicar os fenômenos da "vida
espiritual" da sociedade. O idealismo, pelo contrario, é incapaz de o fazer. Para
ele, as "idéias" se desenvolvem por si mesmas, independentemente desta
"miserável terra". Esta é a razão pela qual os idealistas são obrigados a
recorrer a Deus para poder dar um arremedo de explicação:

"Este Bem", escreveu Hegel na sua "Filosofia da Historia",


esta razão, na sua forma mais completa, é Deus. Deus
governa o mundo, e a historia universal constitui a
substancia do seu reino, a realização de seu plano.
(Philosophie der Geschichte, Reklams Verlag, pag. 74).

Recorrer a este velho infeliz que sendo, segundo seus adoradores, a


própria perfeição, é obrigado a criar ao mesmo-tempo que Adão, as pulgas e
as prostitutas, os assassinos e os pesteados, a fome e a miséria, a sífilis e a
cachaça para punir os pecadores criados por ele, e pecando por sua vontade,
e, para representar eternamente esta comédia diante do mundo-admirado,
recorrer a Deus, tal é o destino inevitável da teoria idealista. Mas, do ponto de
vista cientifico, esta "teoria" nos leva ao absurdo.

E é assim que, nas ciências sociais por sua vez, o único ponto de vista
justo é o ponto de vista materialista.

A aplicação da concepção materialista às ciências sociais foi feita de


maneira consequente por Marx e Engels. No mesmo ano (1859) em que
apareceu o livro de Marx "Contribuição à Economia Política", no
qual Marx esboçou sua doutrina sociológica (a teoria do materialismo histórico)
apareceu também a obra principal do grande sábio inglês Charles Darwin (A
origem das espécies) na qual Darwin mostrou e provou que as modificações na
fauna e na flora se produzem sob a influencia das condições materiais da
existência. Entretanto, não resulta daí que se possa aplicar diretamente à
sociedade as leis de Darwin. O problema consiste em mostrar de que maneira
as leis gerais das ciências naturais se manifestam na sociedade humana e,
qual é a forma particular sob a qual elas podem ser aplicadas á sociedade
humana. Marx criticou acerbamente aqueles que não o compreenderam. Ele
escreveu a propósito de um sábio alemão F. A. Lange:

"Sr. Lange fez, bem o vedes, uma grande descoberta.


Pode-se submeter a historia, parece, a uma só grande lei
natural. Esta lei natural está encerrada em uma só
frase: the struggle for life (a luta pela existência), (a
expressão de Darwin, aplicada assim, torna-se uma frase
sem sentido...). Por conseguinte, invés de analisar
este "struggle for life" e ver como ele se manifestou
historicamente nas diferentes formas sociais, resta
somente fazer uma coisa: substituir toda luta concreta pela
frase: "struggle for life". (Cartas a Kugelmann, carta de 27
de junho de 1870).

É claro que Marx teve antecessores, e particularmente na pessoa dos


socialistas utópicos (Saint Simon). Mas a concepção materialista nunca foi
estudada a fundo antes de Marx, pela única maneira susceptível de criar a
verdadeira sociologia científica.

§ 21. O ponto de vista dinâmico e as relações dos fenômenos entre si

Tudo o que se passa na natureza e na sociedade pode ser examinado de


duas maneiras diferentes. Uns crêem que nada muda: "Assim é e assim será
sempre". Nada se produz de novo. Outros pensam, ao contrario, que nem na
natureza nem na sociedade, nada há nem pode haver de imutável. "O que foi
passou" e "isto não voltará jamais". Esta segunda concepção, esta segunda
maneira de examinar tudo o que existe, se chama dinâmica ("dynames", em
grego: força, movimento), a primeira se chama estática. Qual das duas é justa?
O mundo será constante e imutável? Ou então ao contrario, mudará ele
constantemente e, não será mais hoje o que ele foi ontem? Um só golpe de
vista sobre a natureza é suficiente para nos mostrar que nada há de imutável.
Outrora, os homens pensavam que a lua e as estrelas não se mexiam e que
elas eram fincadas no céu como pregos de ouro; que a terra também era
imóvel, etc... Agora, nós sabemos que as estrelas e a lua e a nossa terra giram
com uma rapidez vertiginosa através de espaços imensos. Mais ainda,
sabemos agora que as mais ínfimas partículas de matéria, os átomos, são
compostos de partículas ainda menores, que são chamados electrons que
giram no interior do átomo, como os corpos celestes do sistema solar em torno
do sol. E são eles que compõem o mundo. O que pode haver de constante no
mundo, si todas estas parcelas que o compõem se movem com maior
velocidade que o vento? Outrora, os homens pensavam também que existiam
tantas plantas e animais quantas Deus havia criado: o burro, a doninha, o
percevejo e o bacilo da lepra, a filoxera e o elefante, a rosa e a urtiga — tudo
isto existe tal qual Deus criou nos primeiros dias do mundo. Não há tantas
espécies de animais e plantas quantas Deus quis criar. As plantas e os animais
que existem hoje sobre a terra, parecem-se muito pouco com aqueles que
existiram outrora. Não encontramos senão esqueletos, impressões na pedra,
ou no gelo, de restos de animais enormes e de plantas que existiram há
milhares de anos: lagartos voadores gigantescos (pterodactilos), fetos
gigantescos, florestas inteiras petrificadas (o carvão não é senão a madeira das
florestas primitivas), verdadeiros monstros, tais como
os ictiosauros, os brontosauros, etc.... Eis o que já existia e não existe mais.
Por outro lado, não existiam nem pinheiros, bétulas, nem vacas, nem carneiros,
— em uma palavra, tudo se transformou sob o sol. E infelizmente! Os homens,
descendentes dos macacos peludos, não existiam ainda: eles só apareceram
na terra há relativamente pouco tempo. Não nos admiramos mais vendo as
espécies animais e as plantas se transformarem. Admiramo-nos tanto menos
que já chegamos às vezes a fazer melhor do que o próprio Deus: um bom
criador de porcos, escolhendo bem a alimentação e cruzando as espécies
criteriosamente pode criar pouco a pouco novas raças: os porcos de Yorkshire
que não podem andar de tão gordos, são criação do homem, da mesma forma
que as rosas pretas e as diferentes espécies de animais domésticos e de
plantas. E o próprio homem não muda também quase a olhos vistos? O
operário russo do tempo da Revolução parece-se no que quer que seja ao
slavo selvagem caçador, dos tempos antigos?

A raça, o aspecto dos homens mudam como tudo no mundo. Que


conclusões podemos tirar daí? Que evidentemente, nada existe de imutável,
nada é fixo no mundo. Tudo muda, tudo se move. Ou, em outros termos, as
coisas fixas, os objetos não existem na realidade, existem apenas processos. A
mesa sobre a qual escrevo neste momento não é absolutamente uma coisa
imóvel: ela muda a cada instante. É verdade que ela muda de uma maneira
imperceptível para o olho e o ouvido humano. Mas no fim de longos, longos
anos, ela apodrece e torna-se em pó. De um só golpe? Não certamente, mas
como resultado do que anteriormente se passou. As partículas desta mesa
serão perdidas? Não, elas terão tomado uma outra forma, elas serão levadas
pelo vento, elas serão uma parte do solo, nutrirão as plantas e se
transformarão em tecidos vegetais, etc.: mudança eterna, eterna viagem de
formas sempre novas. O mundo não é mais do que matéria em movimento. Eis
porque para se compreender um fenômeno, é preciso examiná-lo em sua
origem (como, de onde e porque tem ele lugar), no seu desenvolvimento e no
seu fim; em uma palavra, em movimento e não no decurso de um repouso
imaginário. Esta concepção dinâmica se chama também dialética (a dialética
tem ainda outros sinais característicos dos quais falaremos adiante).

Já, a antiga filosofia grega, distinguia os dois pontos de vista o dinâmico e


o estático. A escola dos eleatas, com Parmenides à frente, ensinava que tudo o
que existe é imóvel. O ser, segundo Parmenides é eterno, constante, imutável,
uno, indivisível, imóvel, inteiro, uniforme, e se parece com uma esfera em
repouso. Um dos eleatas, Zenon, tentou provar com raciocínios muito sutís que
qualquer movimento é impossível. Heráclito, pelo contrario, ensinava que nada
é imutável, ele afirmava que tudo muda, que tudo corre". Segundo Heráclito, é
impossível entrar duas vezes num mesmo rio, pois ele muda todo momento.
Um filósofo da mesma escola Cratiles, dizia que era impossível banhar-se
mesmo uma só vez num mesmo rio, porque este muda
constantemente. Demócrito considerava também o movimento como a base de
tudo, especialmente o movimento retilíneo dos átomos. Entre os filósofos
modernos, Hegel, do qual Marx foi discípulo, insistia particularmente sobre o
movimento e o "tornar". Mas, para Hegel, é um movimento do espírito que
serve de base ao mundo, enquanto que Marx, segundo suas próprias palavras,
pôs de pé a dialética de Hegel, substituindo o movimento do espírito pelo da
matéria. Nas ciência naturais desde o princípio do século XIX prevaleceu a
opinião expressa pelo celebre naturalista Lineu. Há tantas espécies quantas
Deus criou (teoria da constância das espécies). O representante mais em voga
da opinião contrária foi Lamarck, e depois dele Charles Darwin, ao qual já nos
referimos acima, e que definitivamente rejeitou as antigas concepções.

Do fato de estar o mundo constantemente em movimento resulta a


necessidade de se examinarem os fenômenos nas suas relações mutuas e não
como fenômenos absolutamente separados (isolados).

Todas as partes do mundo são, na realidade, ligadas entre si e influem


umas sobre as outras. Basta uma modificação mínima num lugar para que tudo
mude. Qual é a importância desta mudança? Isto é outra questão, mas
mudança sempre há. Tomemos um exemplo. Os homens, admitamos,
abaterem as florestas da margem do Volga. Devido a isto, a umidade se
conserva menos, o clima varia dentro de certo limite, baixam as águas dos rios,
a navegação se torna mais difícil, torna-se necessário pôr em movimento um
maior numero de dragas, de fabricar um maior numero desses aparelhos, de
empregar mais homens na sua fabricação, etc; por outro lado, os animais que
habitavam estas florestas desaparecem, outras espécies animais aparecem, os
antigos morrem ou partem para países onde haja florestas etc.. Mas podemos
encarar outras questões: se o clima muda, é evidente que o estado de todo o
planeta muda também, e desta maneira a mudança do clima do Volga exerce a
sua influencia mais ou menos em toda parte. Mas, na realidade, se o aspecto
da terra muda, por pouco que seja, é evidente que as relações entre a terra e a
lua ou o sol mudam também. Escrevo neste momento sobre papel, movo a
minha pena, minha ação produz uma ação sobre a mesa, a mesa exerce uma
pressão sobre a terra, e assim se produz uma série de outras modificações.
Movendo a pena, eu agito o ar, e as suas ondas perdem-se não sabemos
onde. Pouco importa que todas estas modificações sejam ínfimas, elas não
deixam por isso de existir. Tudo está ligado no mundo por liames inextricáveis,
nada está isolado, nada independe do exterior. Em outros termos, nada há no
mundo que seja absolutamente isolado. Certamente, não podemos sempre
observar as relações gerais entre os fenômenos: referindo-nos por exemplo, à
criação de galinhas não podemos, está visto, formular problemas astronômicos
concernentes ao sol e à lua; isto seria perfeitamente ridículo, pois essas
considerações sobre as relações gerais entre os fenômenos de nada nos
serviriam na ocorrência. Mas, examinando problemas teóricos, somos muitas
vezes obrigados a tomar em consideração estas relações. É preciso muitas
vezes contar com elas na vida prática. Quando se diz que um fulano não
enxerga um palmo adiante do nariz, o que entendemos por isto? Entendemos
que ele estuda o seu pequeno canto como um fenômeno isolado, à margem de
tudo o que envolve este seu campo. O camponês leva os seus produtos ao
mercado e pensa fazer bons negócios. Ora, acontece que os preços estão tão
baixos que ele não pode cobrir as suas despesas. Como acontece isto? A
razão disto é que o camponês está ligado por meio do mercado a outros
produtores. Ele percebe que foi produzido e trazido ao mercado uma tal
quantidade de trigo que os preços caíram. Porque motivo enganou-se o nosso
camponês? Porque ele não viu (e ele não pôde ver do seu pequeno recanto) os
liames que o ligam ao mercado mundial. Invés de se enriquecer depois da
guerra, a burguesia se encontrou em frente a uma Revolução operaria. Por
que? Porque a guerra estava ligada a toda uma série de fenômenos que a
burguesia não havia observado. Os mencheviques, os socialistas-
revolucionários, os social-patriotas de todos os países afirmaram que o
poder bolchevique não se manteria senão muito pouco tempo na Rússia. Por
que cometeram eles este erro? Porque consideraram a Rússia como um caso
isolado, sem relação com a Europa ocidental, separadamente da Revolução
mundial em progresso, que ajuda os bolcheviques. Quando se diz
correntemente e com muita razão que é preciso pesar todas as circunstancias
com isto se diz que é preciso examinar um fenômeno ou certo problema nas
suas relações com os outros fenômenos e com as outras circunstancias, em
geral.

Assim, o método dialético de investigação de tudo que existe exige um


estudo de todos os fenômenos, primeiro nas suas relações mutuas
indissolúveis e segundo, no seu movimento.

§ 22. O ponto de vista histórico nas ciências sociais

Do fato de tudo se mover no mundo e de tudo estar ligado


indissoluvelmente, decorrem certas consequências determinadas para as
ciências sociais.

Estamos diante de uma determinada sociedade humana. Teria ela sempre


sido organizada da mesma maneira? Absolutamente não. Conhecemos formas
extremamente variadas de sociedades humanas. Assim, na Rússia, por
exemplo, desde o mês de novembro de 1917, é a classe operaria que está no
poder; ela é seguida pelos camponeses; a burguesia está segura; e uma parte
(cerca de dois milhões) fugiu para o estrangeiro. As fábricas, as usinas, as vias
férreas estão nas mãos do Estado operário. Outrora, antes de 1917 era a
burguesia e a nobreza que estavam no poder e que possuíam tudo, enquanto
os camponeses e os operários trabalhavam para eles. E tempos mais antigos
ainda, antes da libertação dos servos, em 1861, a burguesa era principalmente
comercial e existiam poucas usinas. Quanto aos nobres, estes possuíam os
camponeses como se possui o gado; eles podiam maltratá-los, vendê-los, ou
trocá-los. Se nos transportarmos a épocas muito afastadas, encontramos
povos nômades e semi-selvagens. Todas estas coisas são tão pouco
semelhantes entre si, que um nobre do tempo da servidão, amador do knout e
de cães de caça, ressuscitado por milagre e trazido a uma reunião de comitê
de usina ou de soviet, seria capaz de sucumbir de uma ruptura de aneurisma.

Conhecemos também outras formas de sociedades. Na Grécia antiga, por


exemplo, no tempo em que filosofavam os Platões e os Heráclitos, tudo era
baseado sobre o trabalho dos escravos, que constituíam a propriedade de
grandes proprietários do solo. No antigo Estado americano dos Incas, a
economia nacional era regulada e organizada, ela se achava nas mãos da
classe dos nobres e dos sacerdotes, uma espécie de classe intelectual, que
governava o país e dirigia a economia nacional, como classe dominante,
colocada acima de todas as outras. Poderia-mos dar grande número de outros
exemplos para mostrar que a estrutura social muda constantemente. Isto
absolutamente não quer dizer que a evolução do gênero humano esteja
continuamente progredindo, isto é, tendendo para um aperfeiçoamento
constante. Nós já vimos que havia casos em que sociedades humanas muito
desenvolvidas pereceram. Assim pereceu, entre outros, o país dos sábios
gregos e dos proprietários de escravos. Mas a Grécia e Roma ao menos
exerceram uma influencia enorme sobre a marcha posterior dos
acontecimentos: Eles serviram de adubo para a história. Mas aconteceu
também que civilizações inteiras desapareceram sem deixar traços de si.
Eduardo Mayer escreve da seguinte maneira a respeito dos vestígios de uma
das mais antigas "civilizações", vestígios descobertos na França por meio de
escavações:

"...estamos diante da civilização do homem primitivo em


pleno desenvolvimento... civilização que foi destruída em
seguida por uma catástrofe grandiosa e que não exerceu
influência alguma sobre as épocas posteriores. Não existe
nenhuma ligação histórica entre esta civilização paleolítica
e os princípios da época neolítica"... (Ed.
Mayer: Geschichte des Altertuns, 1.º volume, 2.ª edição
página 245).

Mas se não há sempre desenvolvimento, sempre há movimento e


transformação, mesmo se o fim é a decomposição e a morte.

Não nos apercebemos deste movimento apenas porque a ordem social


muda. Não, a vida social se modifica incontestavelmente em todas as suas
manifestações. A técnica da qual se serve a sociedade, evolui: é suficiente
comparar os machados e as pontas de lanças em sílex com um martelo pilão,
um dínamo, um telefone sem fio; a moral e os costumes mudam: Sabe-se, por
exemplo, que certos povos comem com prazer os seus prisioneiros, coisa que
mesmo um imperialista francês é incapaz de fazer diretamente; ele se contenta
em cortar as orelhas dos cadáveres pelas mãos de suas tropas negras que
salvam a civilização; em alguns povos existia o costume de matar os velhos e
as crianças do sexo feminino e este costume era considerado como altamente
moral e sagrado. O regime político muda: Vimos com nossos próprios olhos o
absolutismo substituído por uma Republica democrática e em seguida pela dos
Soviets; as concepções cientificas, a religião, as condições de existência, as
relações entre os homens se transformam. O que nos parece habitual, não foi
sempre assim: os jornais, o sabão, a roupa, não existiram sempre, nem tão
pouco o Estado, a crença em Deus, o capital ou os fuzis. Mesmo nossas
concepções do falso e do feio mudam igualmente. As formas da família não
são tão pouco imutáveis: Sabemos muito bem que existe a poligamia, a
poliandria, a monogamia e as "ligações irregulares". Em uma palavra, a vida
social tanto quanto tudo na natureza está sujeita à continuas transformações.

Certamente, a sociedade humana passa por diversos graus, por diferentes


formas de desenvolvimento ou de decadência.

Resulta daí, primeiramente, que é preciso compreender bem e examinar


cada uma destas formas sociais em todas as suas particularidades. Isto quer
dizer que não se pode aplicar a mesma medida em todas as épocas, em todos
os tempos, em todas as formas sociais. Não se pode misturar sem distinção os
servos, os escravos, os proletários. Não é possível deixar de ver a diferença
entre um proprietário de escravos grego, um russo nobre que comanda servos
e um industrial capitalista. O regime de escravidão, tem os seus traços
próprios, seu desenvolvimento particular. A servidão representa uma outra
espécie de regime, o capitalismo uma terceira, etc. E o comunismo é o regime
do futuro; é um regime todo particular. O período de transição que conduz ao
comunismo, a época da ditadura do proletariado, constitui um regime a parte.
Cada um destes regimes tem seus traços particulares, que devem ser
estudados. Somente então, compreenderemos o processo de transformação.
Com efeito, se cada forma social tem os seus traços particulares, ela deve
também estar submetida a leis de evolução particulares, a leis particulares de
movimento. Tomemos, como exemplo, o regime capitalista. Marx escreveu no
"Capital" que se propusera como problema "descobrir a lei do movimento da
sociedade capitalista". Neste intuito, Marx teve de explicar todas as
particularidades do capitalismo, todos os seus traços característicos. E foi
somente desta maneira que Marx conseguiu descobrir "a lei do movimento" e
predizer a desaparição inevitável da pequena produção em proveito da grande,
o crescimento do proletariado, o conflito entre este e a burguesia, a Revolução
da classe operaria e, ao mesmo tempo, a passagem ao regime da ditadura do
proletariado. Não é desta maneira que procede a maioria dos historiadores
burgueses. Eles assimilam, por exemplo, frequentemente, os comerciantes da
antiguidade aos capitalistas contemporâneos, e a plebe parasita da Grécia e de
Roma aos nossos proletários contemporâneos. A burguesia precisa destes
processos para mostrar a vitalidade do capitalismo e para provar que a revolta
dos proletários nada pode produzir, do mesmo modo que a insurreição dos
escravos da antiga Roma nada produziu. E entretanto, os "proletários",
romanos nada têm de comum com os operários modernos, do mesmo modo
que os comerciantes de Roma têm muito pouca semelhança com os
capitalistas de nossa época. O regime todo era outro; não é portanto de
espantar que a marcha da evolução da sua existência fosse também outra.
Segundo Marx, "cada período histórico tem suas leis... mas logo que a vida
ultrapassa o período de uma dada evolução, que ela sai de um determinado
estágio, e passa para um outro, ela começa a ser governada por outras leis".
(K. Marx "O Capital", vol. l.°). Quanto á sociologia, esta ciência social mais
geral, que estuda não as formas particulares da sociedade, mas a sociedade
em geral, é importante estabelecer esta proposição como uma espécie de
palavra de ordem para as ciências sociais particulares, em frente às quais a
sociologia, como já sabemos, desempenha o papel de um método de pesquisa.

Em segundo lugar é preciso estudar cada forma particular no processo de


sua transformação interna. É preciso não pensar que uma forma social imóvel
substitui outra forma social também imóvel. Nunca acontece em uma
sociedade que o capitalismo, por exemplo, exista durante um certo tempo em
uma forma cristalizada, e que ele seja substituído em seguida por um regime
socialista também imóvel. Na realidade, cada uma destas formas, evolui
continuamente durante toda a sua existência. Examinemos um pouco a época
capitalista. O capitalismo teria sido sempre o mesmo? Absolutamente que não.
Sabemos que ele atravessou "estágios" diferente na sua evolução: O
capitalismo comercial, industrial, financeiro com sua política imperialista, o
capitalismo de Estado durante a guerra mundial. Mas, mesmo nos limites de
cada um destes períodos, conservou-se o capitalismo imóvel? Não. Se ele
estivesse imóvel, uma de suas formas não teria podido se transformar em
outra. Na realidade cada estágio precedente preparava o seguinte. Assim, por
exemplo, durante o período do capitalismo industrial, tivemos o processo da
centralização do capital. É sobre esta base que se desenvolveu em seguida o
capitalismo financeiro, com seus bancos e seus "trustes."

Em terceiro lugar, é preciso estudar cada forma social nas suas origens e
na sua desaparição inevitável, isto é, relativamente a outras formas sociais.
Nenhuma forma social cai do céu; ela constitui uma consequência necessária
do estado precedente. É difícil às vezes determinar exatamente os limites onde
uma acaba e a outra começa; um período superpõe-se ao outro. Em geral, as
etapas históricas não têm tamanhos fixos e imóveis; são processos, formas de
flutuação vital que mudam continuamente. Para compreender
convenientemente uma destas formas, é preciso encontrar esta raiz no
passado, examinar as causas de seu aparecimento, as condições de sua
formação, as formas motrizes de seu desenvolvimento. É também necessário
estudar as causas de seu fim inevitável, a direção do movimento ou, como se
diz, as "tendências da evolução" que determinam a desaparição inevitável
dessa forma e preparo á sua substituição por um regime social novo. Assim,
cada etapa constitui um elo que se liga por suas duas extremidades a outros
elos. Mas se os sábios burgueses o compreendem às vezes, quando se trata
do passado, é-lhes completamente impossível admitir que no presente, o
capitalismo, está destinado a morrer. Eles aceitam a pesquisa das raízes do
capitalismo, mas têm medo de pensar que também é preciso procurar as
condições que conduzirão o capitalismo à sua ruína.

"É no esquecimento deste fato que consiste, por exemplo,


toda a essência dos economistas contemporâneos, que
afirmam a perenidade e a harmonia das relações sociais
existentes" (K. Marx: "Eínleitung zu einer Kritik der
politischen Oekonomie", p. XVI).

O capitalismo saiu do regime feudal graças ao desenvolvimento da


circulação das mercadorias. O capitalismo se dirige para o comunismo pela
ditadura do proletariado. É somente depois de ter examinado a relação do
capitalismo com o regime precedente, assim como sua transformação
necessária em comunismo, que nós compreenderemos esta forma social. É da
mesma maneira que devemos estudar qualquer outra forma social. Esta é outra
condição do método dialético; este ultimo pode também ser chamado de
concepção histórica, cada forma nele sendo examinada não como eterna, mas
também como historicamente passageira, como aparecendo em um
determinado momento histórico, para desaparecer em outro.

Esta concepção histórica de Marx nada tem de comum com a pretensa


"escola histórica" do direito e da economia política. Esta escola reacionária
considera seu dever principal provar a lentidão de todas as transformações e
defender todas as puerilidades antigas, em virtude da sua idade histórica
venerável. É a respeito desta escola que Hehri Heine escreve com razão:

Não vá à Fulda, não vá lá, meu amigo;


Lá o ar é pesado e pernicioso;
Tome cuidado com a polícia e os policiais:
E com toda a escola histórica
(Contos de inverno)

Manter as "santas tradições" — tal é a imperiosa necessidade que se


impõe á burguesia. Resulta daí desde logo que os fenômenos, cujas origens se
encontram em um determinado período histórico, são considerados como
eternos, impostos por Deus, e, portanto, imutáveis. Vamos citar alguns
exemplos:

1.º: O Estado. Sabemos muito bem hoje em dia que o Estado é uma
organização de classe, que ele não pode existir sem classes; que o Estado
acima de todas as classes, é uma fantasia como um quadrado redondo, e que
o Estado nasceu em um certo período da evolução humana.

Mas, consultemos os sábios burgueses, e mesmo os melhores!

E. Mayer escreve:

"Observei muitas vezes, há uns trinta anos, entre os cães


que enchem as ruas de Constantinopla, até onde pôde
chegar a formação de agrupamentos orgânicos de
animais; eles se organizam em grupos rigorosamente
separados nos diferentes bairros, onde não é permitida a
entrada de cães estranhos, e todas as noites os cães do
quarteirão organizam reuniões em uma praça deserta,
reuniões estas que duravam meia hora aproximadamente
e eram acompanhadas de latidos fortes. Pode-se, por
conseguinte, falar neste caso em Estados de cães
limitados no espaço". (E. Mayer: "Geschichte des
Altertums. Elemente der Anthropologie", pag. 7).

Nada admira, que depois disto Meyer considere o Estado como uma
propriedade imutável da sociedade humana! Se até os cães têm os seus
Estados (e, por conseguinte, leis, direitos, etc.) como poderiam os homens
dispensá-los?

2.°: É de uma maneira análoga que os economistas burgueses consideram


o capital. Sabemos perfeitamente que o capitalismo, como o próprio capital,
não existiu sempre.

Os capitalistas e os operários são formações históricas que nada têm de


eternas. Entretanto, os sábios burgueses sempre definiram o capital como se o
capital e o regime capitalista sempre tivessem existido. Assim, Torrens
escreve:

"Na primeira pedra que o selvagem atira contra a caça, na


primeira vara que ele usa para colher frutos... vemos a
apropriação de objetos com o fim de adquirir outros, e
descobrimos assim a origem do capital". (K. Marx, "o
Capital", t. 1, anotação).

"É assim que um macaco que derruba nozes é um


capitalista" (é verdade que sem operário)!

Os economistas burgueses mais modernos não raciocinam melhor. Para


provar a perenidade do poder, são os coitados forçados a equiparar cachorros
a Lloyds Georges; macacos a Rothschilds.

3.º: Os burgueses que estudam a questão do imperialismo definem


frequentemente este ultimo como uma tendência de qualquer forma vital para a
sua expansão. Sabemos perfeitamente que o imperialismo, é a política do
capital financeiro, que o próprio capital financeiro nasceu somente no fim do
século XIX como forma econômica dominante. Mas os sábios burgueses disso
não se preocupam. Para mostrar que "sempre foi assim e que sempre será
assim", eles elevam a galinha que cisca ao nível dos imperialistas, porque ela
"anexa" o grão! O cão estadista, o macaco capitalista e a galinha imperialista
caracterizam suficientemente o nível da ciência burguesa moderna.

§ 23. As contradições na evolução histórica

Assim, é a lei da variação, a lei do movimento incessante que constitui a


base de tudo. Dois filósofos, um antigo (Heráclito), outro mais moderno (Hegel),
como vimos defenderam a concepção segundo a qual tudo o que existe muda
e se move. Mas eles não se limitaram a isto. Formularam também a pergunta
de como se processa este movimento. E foi assim que descobriram o fato das
variações serem provocadas pelas contradições internas crescentes, por uma
luta interior.

"A luta é a mãe de tudo o que se passa", dizia Heráclito.

"A contradição, é aquilo que impele para


frente", escreveu Hegel.

Esta proposição é incontestavelmente exata. Com efeito, imaginemos um


instante que não haja no mundo nenhum conflito de forças, nenhuma luta, que
as forças diferentes não sejam dirigidas umas contra as outras. O que
significaria isto? Significaria que o mundo inteiro se acha em estado de
equilibro, isto é, em estado de estabilidade inteira e absoluta, em estado de
completo repouso, excluindo qualquer movimento. Onde vemos nós o
repouso? Ele existe nos lugares onde todas as parcelas, todas as forças se
encontram de tal forma relacionadas que entre elas não haja lugar para
conflito, noutras palavras, onde não existe nenhuma contradição, nenhuma
oposição de forças em luta, onde o equilíbrio jamais se rompe, onde domina,
pelo contrario, uma perfeita estabilidade. Mas nós já sabemos que de fato "tudo
se move", "tudo corre". O repouso, a estabilidade absoluta não existem. Vamos
explicar isto de uma forma mais precisa.

Como sabemos, a biologia (ciências dos organismos) fala em adaptação.


Compreende-se pelo nome de adaptação um estado de coisas em que aquilo
que se adapta à outra pode coexistir por muito tempo com ela. Se, por
exemplo, se diz que uma espécie de animais "adaptou-se" à um certo meio,
isto quer dizer que ela pode viver neste meio; ela se habituou a este ultimo, e
suas qualidades são tais que lhe permitem viver nele. Uma toupeira está
"adaptada" às condições que ela encontra debaixo da terra, um peixe está
adaptado à água; mas jogai uma toupeira na água ou enterrai um peixe, ambos
morrerão.

Observamos também um fenômeno análogo na, por assim dizer, natureza


"morta"; assim, a terra não cai sobre o sol, e sim gira em torno dele, sem nele
"esbarrar". O sistema solar por inteiro se encontra em relação com o resto do
universo de tal maneira que ele pode existir de uma forma durável, etc. Aqui,
fala-se habitualmente, não mais de adaptação, mas de equilíbrio entre os
corpos, entre os sistemas de corpos, etc.

Enfim, observamos também um fenômeno análogo na sociedade. A


sociedade vive bem ou mal no meio da natureza; a ela se "adaptou" mais ou
menos bem, com ela se acha em equilíbrio mais ou menos instável. Enquanto
vive, as suas diferentes partes estão adaptadas umas às outras de tal maneira
que a sua coexistência é possível; com efeito, os capitalistas e os operários
coexistem já há muito tempo!

Por estes exemplos, se vê que na realidade, trata-se em ambos os casos


de uma mesma coisa: do equilíbrio. Se assim é, porque falar em contradições e
em lutas? Ao contrario, a luta é uma ruptura de equilíbrio! Pois bem, o equilíbrio
que observamos na natureza e na sociedade não é absoluto e nem imóvel: é
um equilíbrio instável. Toda a questão repousa nisto; o que significa este
termo? significa que o equilíbrio uma vez estabelecido logo se destrói, para se
restabelecer em outra base, e ser novamente destruído. E assim por diante.
A noção exata de equilíbrio é mais ou menos a seguinte:

"Diz-se que um determinado sistema está em equilíbrio


quando não pode por si mesmo sair desse estado, isto é,
sem o auxilio de uma energia exterior".

Se, por exemplo, forças que se equilibram mutuamente exercem uma


pressão sobre um corpo qualquer, este ultimo se acha em estado de equilíbrio;
é suficiente diminuir ou aumentar uma destas forças para que o equilíbrio seja
destruído.

Se um corpo volta rapidamente ao seu equilíbrio momentaneamente


rompido, diz-se que o equilíbrio é estável; no caso contrario, isto é, quando o
corpo não volta ao estado de equilíbrio anterior diz-se que o equilíbrio é
instável. Nas ciências naturais, distingue-se o equilíbrio mecânico, químico,
biológico (Ver "Handworterbuch der Naturwissenschaften", tomo 2, pag. 470-
518). Pode-se ainda exprimir isto de outra maneira. Existem no mundo forças
diferentes dirigidas umas contra as outras. Elas não se equilibram mutuamente
senão em casos excepcionais. É então que vemos aparecer um estado de
"repouso", isto é, que a "luta" real entre estas forças não é aparente. Mas basta
que uma destas forças mude para que as "contradições internas" apareçam,
para que o equilíbrio se rompa, e um outro equilíbrio se estabelece então, cujo
princípio será outro, com combinações de forças diferentes, etc. O que
podemos concluir daí? Concluímos que a "luta", as "contradições", isto é, os
antagonismos entre as forças dirigidas diferentemente determinam o
movimento.

Por outro lado, vemos também aqui a forma destes processos: em primeiro
lugar, o estado de equilíbrio, em segundo lugar a ruptura deste equilíbrio, em
terceiro lugar o restabelecimento do equilíbrio em uma base nova. Em seguida,
a história recomeça: o novo equilíbrio torna-se o ponto de partida de uma nova
ruptura de equilíbrio, e assim por diante, até o infinito. Temos diante dos olhos,
em conjunto, o processo dum acontecimento determinado pelo
desenvolvimento das contradições internas.

Hegel, apercebeu-se deste caráter do movimento e exprimiu-o da seguinte


maneira: ele denominou o equilíbrio primitivo "tese"; a ruptura de equilíbrio,
"antítese", isto é, oposição; o restabelecimento de equilíbrio sobre uma nova
base, "síntese" (estado de unificação na qual todas as contradições entram em
acordo). É a este caráter do movimento de tudo o que existe, expresso em uma
formula composta de três partes (a tríade), que Hegel deu o nome de dialética.
O termo "dialética" significava para os antigos gregos a arte de falar, de
discutir. Como é que se discute quando dois homens se contradizem? Um diz
uma coisa, outro uma coisa contraria (esse "nega" aquilo que diz o primeiro);
enfim, "a verdade nasce da discussão" e contém aquilo que era verdadeiro nas
duas afirmações (a síntese). É também da mesma maneira, que se desenvolve
o processo do pensamento. Hegel, sendo idealista, representava tudo como o
desenvolvimento independente do espírito. Está claro que ele nunca pensou
em rupturas de equilíbrio. As qualidades do pensamento, este sendo uma coisa
espiritual e primaria, eram para ele, por esta razão, as qualidades da
existência. A este propósito, Marx escreveu

"o método dialético não somente difere, quanto ao fundo,


do método de Hegel, mas ainda ele lhe é completamente
oposto. ParaHegel, o processo do pensamento, que ele
transforma, sob o nome de idéia, em um sujeito
independente, é a sua manifestação exterior. Para mim,
ao contrario, a idéia não é mais do que o mundo material
traduzido e transformado pelo cérebro humano." "A
dialética de Hegel está colocada de pernas para cima. É
preciso colocá-la de cabeça para cima, para descobrir o
núcleo racional sob o seu envelope místico". (Marx: "O
Capital", tomo 1, prefacio).

Para Marx, a dialética, isto é, o desenvolvimento pelas contradições, é,


antes de tudo, a lei de "existência", a lei do movimento da matéria, a lei do
movimento da natureza e da sociedade. O processo do pensamento não é
senão a sua expressão. O método dialético, a maneira dialética de pensar é
indispensável, porque ela permite apanhar a dialética da natureza.

Nós consideramos perfeitamente possível traduzir a linguagem "mística",


como a chamou Marx, da dialética de Hegel, para a linguagem da mecânica
moderna. Há relativamente pouco tempo quase todos os marxistas protestaram
contra as definições de ordem mecânica. Eles agiram assim porque a antiga
concepção dos átomos considerava estes últimos como parcelas isoladas, sem
nenhuma ligação umas com as outras. Na hora atual, graças à teoria dos
elétrons e dos átomos considerados como sistemas inteiros, análogos ao
sistema solar, não há mais razão para temer as definições mecânicas. A
corrente mais adiantada do pensamento cientifico formula em toda parte o
problema exatamente desta maneira. Marx faz claramente alusão a uma
maneira análoga de formular a pergunta (a teoria do equilíbrio entre os diversos
ramos da produção, a teoria do valor do trabalho que se prende a ela, etc.).
Podemos considerar qualquer objeto seja ele uma pedra, um ser vivo, a
sociedade humana ou outro, como um composto de elementos ligados entre si.
Em outros termos, podemos examinar este conjunto como um sistema. Cada
objeto deste gênero (sistema) não existe no vazio; ele está envolto por outros
elementos da natureza que constituem o seu ambiente (meio). Para uma
arvore que cresce em uma floresta, seu meio é constituído por outras arvores,
pelos riachos, pela terra, pela erva, os arbustos, etc., com todas as suas
qualidades. Para um homem, o ambiente, é a sociedade humana, dentro da
qual ele vive (daí vem o termo "meio"). Para a sociedade humana, o meio é
constituído pela natureza exterior, etc. Existe uma relação constante entre o
meio e o sistema. O "meio" exerce uma influencia sobre o "sistema"; este
ultimo influi por sua vez sobre o "meio". Devemos em primeiro lugar responder
a uma questão de princípio: Quais são as relações entre o meio e o sistema?
Como podem ser determinadas? Quais são as suas formas? Que significação
têm elas para o sistema?

Entre estas relações, distinguimos imediatamente três tipo principais:

1.° O equilíbrio estável. — O equilíbrio estável se produz quando as


relações mutuas entre o meio e o sistema se exprimem por um estado de
coisas constante, ou então por desordens passageiras, depois das quais o
sistema volta ao estado primitivo. Suponhamos, por exemplo, uma espécie de
animais vivendo na estepe. O meio em si não muda, a quantidade de
alimentação necessária para essa espécie permanece constante. A quantidade
de feras tão pouco muda: Todas as moléstias de origem microbiana (tudo isto
compõe o "meio") reinam nas mesmas proporções. O que acontecerá então?
Em geral, o numero dos animais, ficará invariável: uns morrerão ou perecerão
por culpa das feras, outros nascerão, mas a espécie em questão, em tais
condições do meio, será considerada tal qual ela sempre foi. Temos aqui um
exemplo de estagnação. Por que? Porque a relação entre o sistema (a espécie
de animais considerada) e o seu meio permanece invariável. Temos aqui um
caso de equilíbrio estável. Este ultimo não está sempre em um estado de
completa imobilidade. O movimento pode existir, mas cada ruptura de equilíbrio
é seguida pelo seu restabelecimento sobre a base antiga. Neste caso, a
oposição entre o meio e o sistema se repete constantemente na mesma
relação quantitativa. O mesmo exemplo nos é oferecido por uma sociedade em
estagnação (tornaremos a falar disto em detalhe mais adiante). Se a relação
entre a sociedade e a natureza permanece a mesma, isto é, se esta sociedade,
pela sua produção, tira da natureza tanta energia quanto ela mesma perde, a
oposição entre a sociedade e a natureza se reproduzirá sempre na sua forma
antiga. A sociedade não sai do lugar, e estamos em presença de um equilíbrio
estável.
2.° O equilíbrio instável com sinal positivo (o desenvolvimento do sistema).
— De fato, o equilíbrio estável não existe. Não é senão uma ficção "ideal". Na
realidade, a relação entre o meio e o sistema nunca se reproduz nas mesmas
proporções. Em outros termos, a ruptura de equilíbrio não traz, na realidade, a
reconstituição deste sobre a mesma base, mas, pelo contrario, um novo
equilíbrio que se estabelece em uma nova base. Vamos supor por exemplo,
voltando aos animais dos quais já tratamos acima, que a quantidade de feras
diminuiu por uma razão qualquer e que, pelo contrario, a quantidade de
alimentos aumentou. Não é duvidoso, que neste caso, o numero de animais
aumentará. Nosso "sistema" se desenvolverá, um novo equilíbrio se
estabelecerá sobre uma base mais elevada. Estamos aqui em presença de um
desenvolvimento. Em outras palavras, a oposição entre o meio e o sistema
mudou quantitativamente.

Se invés de animais, tomamos uma sociedade humana e supomos que a


relação entre ela e a natureza muda de tal forma que a sociedade tira da
natureza mais energia do que perde (o solo se tornou fértil ou então
inventaram-se novos instrumentos, etc.), então essa sociedade crescerá, e não
mais marcará passo. O novo equilíbrio será cada vez diferente. A oposição
entre a sociedade e a natureza se reproduzirá cada vez sobre uma mesma
base "mais elevada", graças a qual o sistema aumentará, e se desenvolverá.
Estamos aqui em presença de um equilíbrio por assim dizer, de sentido
positivo.

3.º Equilíbrio instável, com sinal negativo (a destruição do sistema). — Um


caso absolutamente contrario pode-se apresentar, quando o equilíbrio se
estabelece sobre uma base "inferior". Vamos supor por exemplo, que a
quantidade de alimentos tenha diminuído para os nossos animais, ou então,
que o numero de feras que deles se alimentavam tenha aumentado. Neste
caso, nossa espécie tenderá a "desaparecer". O equilíbrio entre o meio e o
sistema se restabelecerá cada vez à custa de uma parte deste sistema; as
oposições se reproduzirão sobre uma outra base no sentido negativo.
Examinemos o exemplo da sociedade. Vamos supor que a relação entre a
natureza e a sociedade muda de tal forma que esta última seja obrigada a
perder cada vez mais energia e receber cada vez menos (o solo se esgota, os
meios técnicos pioram, etc.). Então, o novo equilíbrio se restabelecerá cada
vez sobre uma base inferior, em detrimento da sociedade, e uma parte desta
perecerá. Teremos aqui um movimento no sentido negativo, a sociedade
caminhará para a decomposição e a morte.
Pode-se reduzir todos os casos a um destes três. Na base do movimento,
como já vimos, acha-se na realidade, a oposição entre o meio e o sistema,
oposição que renasce continuamente.

Mas o problema apresenta ainda um outro aspecto. Não falamos até este
momento senão nas contradições entre o meio e o sistema, nas contradições
externas. Mas existem também contradições internas, no interior do próprio
sistema. Cada sistema é composto de diferentes elementos ligados entre si; a
sociedade humana é composta de homens; a floresta, de arvores e arbustos;
um rebanho, de animais; um monte, de pedras, etc... É entre estes elementos
componentes que se encontra um grande numero de oposições, de encontros,
de conflitos. Um equilíbrio absoluto não prevalece. Se, estritamente falando o
equilíbrio absoluto entre o meio e o sistema nunca se realiza, não existe tão
pouco um tal equilíbrio entre os elementos do mesmo sistema.

É pelo exemplo do sistema mais complexo, o da sociedade humana, que


melhor verificamos isto. Não encontramos nele um numero infinito de
contradições? A luta das classes é a expressão mais clara destas
"contradições sociais" e sabemos que "a luta de classes é a alavanca da
historia". As oposições entre as classes, entre os agrupamentos, entre as
idéias, as oposições entre os modos de produção e de repartição, a desordem
na produção — a anarquia capitalista da produção — tudo isto forma uma
corrente sem fim de contradições e constitui outras tantas contradições no
interior do sistema, devidas à própria estrutura desta última (contradições da
estrutura). Entretanto, estas contradições por si mesmas não destroem a
sociedade. Elas podem destruí-la (quando por exemplo as duas classes em
luta perecem em uma guerra civil), mas elas podem muitas vezes não destruí-
la.

Neste ultimo caso, é preciso que exista um equilíbrio instável entre os


elementos da sociedade. A analise deste equilíbrio será objeto de nosso estudo
ulterior. No momento só uma coisa nos importa: não se pode considerar a
sociedade, como o fazem frequentemente os sábios burgueses, como se não
existissem no seu seio contradições. Ao contrario, o estudo cientifico da
sociedade pressupõe o exame desta do ponto de vista das contradições que
ela encerra. "A evolução" histórica é uma evolução contraditória.

É preciso que detenhamos nossa atenção também sobre um fato ao qual


voltaremos muitas vezes nesta obra. Como já dissemos, há duas espécies de
contradições: entre o meio e o sistema e entre os elementos do próprio
sistema. Existirá uma ligação qualquer entre estes dois fenômenos?

Basta refletir um instante para responder afirmativamente.


É evidente que a estrutura interior do sistema (o equilíbrio interno) deve
mudar segundo as relações existentes entre o sistema e o meio. A relação
entre o sistema e o meio é um fator que determina com efeito o estado do
sistema; as formas essenciais de seu movimento (decadência,
desenvolvimento, estagnação), são determinadas por esta relação.

Examinemos a questão da seguinte maneira: Vimos acima que o caráter


do equilíbrio entre a sociedade e a natureza determina a linha essencial do
movimento social. Nestas condições a estrutura interna poderá desenvolver-se
por muito tempo em uma direção contraria? Certamente que não. Admitamos
que estamos tratando de uma sociedade em desenvolvimento. Será possível
que, nestas condições, a estrutura interna da sociedade piore continuamente?
Certamente que não. Se entretanto, graças à sua estrutura, a situação interna
se agrava, enquanto a sociedade em si se desenvolve, isto é, se a sua
desordem interna aumenta, isto prova que estamos em presença de uma nova
contradição entre o equilíbrio interno e externo. O que acontecerá então? Se a
sociedade continua a se desenvolver ela será obrigada a se reconstruir; isto
quer dizer que a sua estrutura interna deverá se adaptar ao caráter do
equilíbrio externo. Por conseguinte: o equilíbrio interno (da estrutura) é um fator
que depende do equilíbrio externo. Ele é "função" deste equilíbrio externo.

§ 24. A teoria das transformações por saltos e a teoria das


transformações revolucionárias nas ciências sociais

Falta-nos agora examinar o ultimo lado do método dialético, a saber: a


teoria das transformações por saltos. Como sabemos, existe uma opinião muito
generalizada, segundo a qual a natureza não dá saltos (natura non facit
saltus). Esta sábia locução é usada habitualmente para provar de uma maneira
"sólida" a impossibilidade da Revolução, bem que as Revoluções continuem a
existir, apesar de todos os sábios professores. Mas, na realidade, será a
natureza tão moderada e ordenada quanto afirmam?

Hegel escreve a este respeito na sua "ciência da lógica" ("Wissenschaft


der Logic", Hegels Werke, 2.ª edição, v. 3, pag. 434):

"Diz-se que a natureza ignora os saltos e isto é claro


quando se trata de uma simples aparição ou desaparição
no sentido de um desenvolvimento gradual; ora, a
transformação não é somente quantitativa, mas também
qualitativa, e consiste na aparição de uma coisa nova,
diferente, na ruptura da forma do ser."

O que significa isto?


Hegel fala da passagem da quantidade à qualidade. Vamos explicar isto
com um exemplo muito simples. Vamos supor que aquecemos água. Enquanto
a temperatura estiver abaixo de 100°, ela não entrará em ebulição e não se
transforma em vapor. Suas parcelas se agitam cada vez mais rapidamente mas
não surgem na superfície em estado de vapor. Não observamos senão uma
transformação de quantidade, as partículas se agitam cada vez mais
rapidamente, a temperatura sobe, mas a água continua água, com todas as
suas qualidades. A quantidade muda continuamente, mas a qualidade
permanece a mesma. Mas quando a água chegar à temperatura de 100°, isto
é, no ponto de ebulição, ela começa a ferver bruscamente, como se as
parcelas, que giravam com uma velocidade vertiginosa, tivessem perdido a
cabeça e saltado à tona em forma de bolhas de vapor. A água deixa de ser
água: ela torna-se vapor, gás. É uma nova matéria, tendo novas qualidades.
Aqui notamos duas particularidades principais no processo de transformação.

Em primeiro lugar, num certo grau de movimento, as transformações


quantitativas provocam modificações qualitativas (ou, como se diz mais
brevemente: "a quantidade se transforma em qualidade"); em segundo lugar,
esta passagem da quantidade à qualidade faz-se por um salto, a continuidade
e a "gradação" sendo bruscamente transtornadas. A água não se transforma
constantemente e em sábia progressão, primeiro em um "pequeno" vapor, que
em seguida se torna um "grande vapor. Ela não ferveu até um certo momento,
mas começou a fazê-lo no momento em que chegou a um certo "ponto". É a
isto que se denomina um salto.

A transformação da quantidade em qualidade é uma das leis essenciais do


movimento da matéria, que pode ser seguida na natureza e na sociedade,
literalmente passo a passo. Suspendei um peso a um fio e juntai pouco a
pouco pesos suplementares. Até um certo limite, o fio resiste, mas logo que
ultrapassarmos um certo limite, ele se quebra instantaneamente (por salto).
Condensai o vapor numa caldeira. Até um certo momento, tudo irá bem;
somente o ponteiro do manômetro (instrumento que indica a pressão do vapor)
marcará uma mudança quantitativa da pressão exercida pelo vapor sobre as
paredes da caldeira. Mas logo que a agulha tiver passado de um certo limite, a
caldeira arrebentará. A pressão do vapor foi um pouco maior do que a
resistência das paredes. Até este momento, as transformações quantitativas
não tiveram como consequência um "salto", uma transformação qualitativa,
mas chegando a um certo ponto, a caldeira estourou. Muitos homens são
incapazes de levantar uma pedra; um homem se junta a eles, e eles ainda não
conseguem levantá-la; chega uma mulher fraca e todos era conjunto levantam
a pedra. Foi necessário um muito pequeno suplemento de força, e com ele, foi
possível levantar a pedra. Tomemos ainda um exemplo no domínio da
sensação humana. Existe um conto de Léon Tolstoi intitulado "três pães e um
bolinho", que trata do seguinte: um homem tinha fome e não conseguia matá-
la; ele come um pão e a fome continua; ele come um outro e a fome persiste; o
mesmo acontece depois do terceiro; mas depois de comer o bolinho, ele
percebe repentinamente que não tem mais fome. Ele começa então a se
injuriar por não ter comido em primeiro lugar o bolinho; não teria sido preciso,
diz ele, comer os três pães. Entretanto, está claro que o homem se engana.
Aqui também, a transformação qualitativa, a passagem da sensação de fome à
sensação de saciedade, produz-se mais ou menos por "salto" (depois do
bolinho). Mas esta transformação qualitativa foi preparada por uma
transformação quantitativa: se ele não tivesse comido os pães, o bolinho não o
teria saciado.

Vemos assim que é absurdo negar os "saltos" e de falar somente em


progressão prudente. Na realidade, frequentemente encontramos saltos na
natureza e o ditado segundo o qual "a natureza não dá saltos" não é senão a
expressão de um medo dos "saltos" na sociedade, isto é, a expressão do medo
das revoluções.

É característico verificar que as antigas teorias burguesas relativas ao


problema da origem do mundo eram teorias catastróficas, certamente muito
ingênuas e inexatas. Assim é, por exemplo, a teoria de Cuvier. Ela foi
substituída em seguida pela teoria da evolução que trouxe muita coisa nova,
mas que, por princípio, negava os saltos. Em geologia, por exemplo, assim são
as teorias Lyell ("Principies of Geology); mas, desde o fim do século passado,
viram-se aparecer novamente teorias que reconhecem o importante papel
desempenhado pelos saltos. Assim a teoria do botânico De Vries ("La theorie
des Mutations": "mutation" — mudança súbita", que afirma, que de tempos em
tempos, como consequência de modificações anteriores, produzem-se
transformações súbitas, que em seguida, se consolidam e tornam-se o ponto
de partida de uma nova evolução. Não se vai longe hoje em dia com as antigas
concepções que negavam os "saltos". Estas concepções (Leibnitz diz, por
exemplo: "Tudo na natureza caminha gradativamente e nada por saltos") se
originam evidentemente no conservadorismo social.

Se os sábios burgueses negam o caráter contraditório da evolução, eles o


fazem de medo da luta de classe e com o fim de encobrir as contradições
sociais. Da mesma maneira, o medo dos saltos se baseia no medo da
revolução. Toda esta sabedoria se reduz ao seguinte raciocínio: a natureza
ignora os saltos que não existem e não podem existir. Portanto, proletários, não
pensai em fazer a Revolução!
Mas nota-se aqui com clareza a que ponto a ciência burguesa contradiz os
postulados científicos os mais essenciais. Com efeito, todos sabem que houve
um grande numero de revoluções É impossível negar a Revolução inglesa ou a
grande Revolução Francesa ou ainda a de 1848, ou enfim a Revolução Russa
de 1917-1921. E, se estes saltos se produzem na vida social, não compete à
ciência "negá-los", isto é, esconder-se diante da realidade como o avestruz,
mas sim compreendê-los e explicá-los.

As revoluções na sociedade são o equivalente dos saltos na natureza.


Elas não são devido a surpresas. Elas são preparadas pela evolução anterior,
como a ebulição da água é preparada pelo aquecimento ou a explosão da
caldeira pela crescente pressão do vapor sobre as suas paredes. A revolução
na sociedade, é a sua reconstrução, "a modificação do sistema no ponto de
vista de sua estrutura"; ela decorre infalivelmente como consequência de uma
contradição entre a estrutura da sociedade e as necessidades de seu
desenvolvimento.

Diremos adiante como isto se produz. No momento, é preciso saber uma


coisa:

"tanto na sociedade quanto na natureza, certas coisas se


fazem por saltos; na sociedade, tanto quanto na natureza,
estes saltos são preparados pela marcha anterior dos
acontecimentos ou em outros termos, na sociedade e na
natureza a evolução (desenvolvimento gradual) conduz
para a Revolução (salto): os saltos pressupõem uma
modificação continua, e a modificação contínua conduz
aos saltos. São dois momentos necessários do mesmo
processo" (Plekhanov: "Criticas de nossas criticas", 1903.)

O problema das contradições na evolução e dos saltos constituem um dos


pontos essenciais da teoria. Toda uma série de escolas e de tendências
burguesas podem ser hostis à teleologia, favorável ao determinismo, etc. Mas
elas tropeçam cada vez que tocam neste problema.

A teoria de Marx não é uma teoria evolucionista, mas revolucionaria. É por


esta razão que ela é inaceitável para os teóricos da burguesia. E é por esta
razão que eles estão prontos a "admitir" tudo nesta teoria, com exceção... da
dialética revolucionaria. A sua critica do marxismo segue habitualmente a
mesma linha. Assim, por exemplo, o professor alemão Werner Sombart se
inclina respeitosamente diante de Marx enquanto se trata de evolução, mas ele
começa imediatamente a atacá-lo quando verifica os elementos revolucionários
do marxismo. Teorias completas são forjadas com este fim. Marx, dizem, é um
sábio enquanto é evolucionista, mas, logo que ele se torna, mesmo em teoria,
revolucionário, deixa de ser sábio, deixa-se levar por paixões revolucionárias e
abandona a ciência. O Sr. Pierre Strouvé, ex-marxista, autor do primeiro
manifesto da social-democracia russa, tornou-se, em seguida, líder
monarquista e principal teórico da contra-revolução; também começou a sua
critica de Marx pela teoria dos saltos. Plekhanov, que era então revolucionário,
escreveu a este respeito:

"O sr. Strouvé encarregou-se de nos mostrar que a


natureza não dá saltos, e que o intelecto (a razão) não os
admite. Como se explica isto? Talvez não tenha ele em
vista senão o seu próprio intelecto que, com efeito, não
suporta saltos pela simples razão de que o Sr. Strouvé,
como se diz, não pode suportar uma certa ditadura
("Critica de nossas criticas"). A pretensa "escola orgânica",
os "positivistas", os partidários de Spencer, os
evolucionistas, etc., são todos adversários dos saltos, pois
eles não gostam de "uma certa ditadura".
Capítulo IV - A Sociedade

§ 25. Concepções dos agregados. Agregados lógicos e reais

Não são somente os corpos simples que se apresentam a nós como


entidades (por exemplo, uma folha de papel, uma vaca ou o sr. tal). Falamos
frequentemente de unidades complexas, de grandezas complexas. Estudando
o movimento de uma população, dizemos: o numero de nascimentos do sexo
masculina aumentou de tanto, em um certo espaço de tempo. Este "numero de
crianças do sexo masculino" se apresenta como uma quantidade completa,
composta de unidades particulares e considerada como um todo (ou agregado
estatístico). Falamos também em floresta, classe, sociedade humana, e
sentimos imediatamente que temos diante de nós uma quantidade composta,
considerada como um todo, mas sabemos ao mesmo tempo que este todo é
composto de elementos independentes até um certo ponto: a floresta é
composta de arvores, de arbustos, etc. uma classe — de homens particulares,
pertencentes à esta classe. Estas quantidades complexas são denominadas
agregados.

Já vimos, entretanto, pelos exemplos citados, que estes agregados podem


ser diferentes: quando falamos das crianças do sexo masculino nascidas em
1921, ou da floresta de Fontainebleau, sente-se distintamente a diferença. Em
que consiste essa diferença? Não é difícil notá-la. Com efeito, quando falamos
das crianças, estas ultimas não estão ligadas, realmente, na vida, e por si
mesmo; uma se encontra em determinado lugar, outra em outro lugar, uma não
influi de maneira alguma sobre a outra, cada uma vive aparte. Somos nós que
as unimos, somos nós que as recenseamos, somos nós que fazemos delas um
agregado. Este é imaginado, feito sobre o papel, mas não é de maneira alguma
vivo e nem real. Tais agregados artificiais são denominados fictícios ou lógicos.
Isto se apresenta diferentemente quando falamos de sociedade, floresta ou de
classe. Aqui, a união dos elementos que as compõem não é somente fictícia
(lógica). Com efeito, temos diante de nós uma floresta com suas arvores, seus
arbustos, suas ervas, etc. Não vemos aqui uma união na vida? Certamente que
sim. A floresta não é uma simples reunião de elementos diversos, pois todas
estas parcelas influem continuamente umas sobre as outras, ou como se diz,
acham-se em relação de reciprocidade permanente. Abatei uma parte destas
arvores e é possível que uma parte das que ficam morra, por falta de umidade;
por outro lado, em outro lugar, outras arvores crescerão melhor, pois recebem
mais sol. Assim, estamos em presença da "ação recíproca" das partes que
compõem "a floresta", e esta ação é perfeitamente real e não imaginada por
nós com um certo fim. Mas ainda: esta ação recíproca é durável e continua
enquanto existe o agregado. Estes agregados são denominados agregados
reais.

É preciso não esquecer entretanto que todas estas diferenças são muito
relativas. Com efeito, estritamente falando, as unidades "simples" não existem.
Um senhor fulano de tal, é realmente, uma colônia de células, isto é, um corpo
extremamente complexo. Um átomo, como sabemos, também se decompõe. E
nenhum limite de divisibilidade existindo em princípio, nenhuma "simplicidade"
existe tão pouco, no fim de contas. As diferenças que nós verificamos não
deixam de ter, apesar disso, um certo valor dentro de certo limite: um indivíduo
é um corpo simples e não agregado, quando considerado em relação à
sociedade; ele é um corpo composto, um agregado real, relativamente a uma
célula, etc. Quando queremos falar destas coisas sem as comparar, servimo-
nos do nome de sistema. De acordo com a sua essência, os termos "sistema" e
"agregado real" significam para nós a mesma coisa. A relatividade deste
"distinguo" aparece ainda de outro modo: estritamente falando, o mundo inteiro
é um agregado real e infinito, cujas partículas agem continuamente umas sobre
as outras. É assim que quaisquer objetos e elementos do mundo exercem uns
sobre os outros uma ação contínua. Entretanto, esta ação recíproca pode ser
mais ou menos direta ou indireta. Sobre isto é que se baseiam as diferenças a
que nos referimos acima; elas têm, repitamo-lo, o seu valor, se as
compreendermos dialeticamente, isto é, relativamente, dentro de certos limites
e "segundo as circunstancias".

§ 26. A sociedade como agregado real ou como sistema

Examinemos agora a sociedade sob este ponto de vista. É evidente que a


sociedade é um agregado real, no qual o processo de uma ação recíproca se
produz incessantemente entre as partes que o compõem. O senhor X foi ao
mercado, lá negociou, participou na formação de um preço de mercado, que
teve a sua repercussão sobre o mercado mundial e que influiu, se bem que
infinitamente pouco, sobre os preços mundiais; estes últimos influíram, por sua
vez, sobre o mercado do país em que habita o senhor X e sobre o próprio
mercado onde ele faz os seus negócios; de outro lado, ele comprou,
admitamos, um arenque; esta compra influiu sobre o seu orçamento; ele
precisa assim gastar o dinheiro que lhe resta de uma certa maneira, etc. etc.
Pode se enumerar aqui ainda milhares de outras influencias.

O senhor X casou-se. Para isto, ele comprou primeiro presentes e influiu


assim economicamente sobre outras pessoas; como cristão fiel, pois não é
um bolchevique qualquer, ele recorreu a um padre, reforçando assim a
organização da igreja, o que produziu uma certa influência sobre o papel social
da igreja e sobre o estado de espírito de uma determinada sociedade; ele
pagou o padre e aumentou assim a procura das mercadorias que os padres
compram habitualmente, etc. A mulher do senhor X teve filhos, o que por sua
vez, teve milhares e milhares de consequências. Imaginai somente o numero
de homens sobre os quais influiu por pouco que seja o casamento do senhor X!
O senhor X aderiu ao partido liberal para cumprir com o seu "dever de
cidadão". Ele começou a frequentar as reuniões e a sentir juntamente com
seus novos colegas, o mesmo ódio contra essa maldita populaça que se agita
e sustenta estes filhos do inferno: os bolcheviques. E a influência que ele
exerceu nestas reuniões tocou direta ou indiretamente um grande numero de
homens. Certamente, é difícil determinar esta influência; ela é pequena,
infinitamente pequena mas existe apesar disto. E qualquer que seja o raio de
ação do senhor X, veremos sempre que ele influiu sobre outros e outros
influíram sobre ele. Pois, em uma sociedade, tudo está ligado por milhões de
fios.

Começamos de propósito por um indivíduo, para mostrar como ele influi


sobre os outros. Vejamos agora que influência exerceram sobre ele os
fenômenos sociais. Admitamos, por exemplo, que a industria seja próspera; a
empresa da qual o senhor X é contador, tem lucros suplementares; o senhor X
recebe um aumento de ordenado. Arrebenta a guerra; o senhor X é mobilizado,
e defende a pátria dos seus patrões (crendo que defende a civilização) e é
morto na guerra... Tal é a força das relações sociais.

Se examinarmos a imensa quantidade de fatos agindo uns sobre os outros


na sociedade humana, apenas no nosso tempo, teremos diante dos olhos um
quadro grandioso. Somente, as relações elementares entre os homens,
relações que não são regulamentadas, por nada nem por ninguém, se
apresentam sob aspectos inumeráveis. Mas o numero de formas organizadas,
a começar pelo poder do Estado e acabando por um clube de jogadores de
xadrez, ou um clube de calvos já é suficientemente grande. Se levarmos em
conta o inumerável entrecruzar de todas estas formas, verificaremos que a vida
social representa uma verdadeira torre de Babel de influencias e de reações
recíprocas.

Sabemos que o fato de se produzirem num domínio qualquer relações de


caráter durável, constitui um agregado real, um "sistema". Aqui, é preciso
assinalar um ponto: para que exista um agregado real ou um sistema, não é
necessário que haja um índice de organização consciente das partes deste
sistema. Esta concepção de sistema se aplica tanto aos seres vivos, quanto
aos seres mortos; tanto aos "mecanismos" quanto aos "organismos". Há
entretanto velhacos que negam a própria sociedade, pela simples razão de
haver nesta sociedade outros sistemas particulares, sistemas internos na
sociedade (classes, grupos, partidos, clubes, sociedades e associações
diversas). Estamos entretanto em presença do fato destes sistemas e
agrupamentos interiores influírem reciprocamente uns sobre os outros (a luta
de classes e de partidos, a sua colaboração, etc.); de outro lado, os homens
que compõem estes agrupamentos diversos, podem em outros casos, reagir de
outra maneira sobre os outros homens (um capitalista e um operário que
comprarem para o seu uso próprio mercadoria de um mesmo capitalista); em
seguida, os próprios grupos, nas suas relações mútuas, não são organizados.
Obtemos assim um produto social inconsciente e "a resultante social" (ver mais
acima: capitulo 2.° o determinismo) é obtida de maneira desorganizada e
inconsciente (e assim será até a formação de uma sociedade comunista). E,
entretanto, apesar disto, forma-se o "produto" social, a resultante. Ela constitui
um fato, um fato real. Os preços mundiais são um fato, como também a
literatura mundial ou as vias de comunicação ou a guerra mundial; estes fatos
são suficientes para mostrar a existência, no momento atual, de uma sociedade
humana que ultrapassa as fronteiras dos Estados particulares.

Em geral, enquanto temos um circulo de relações mutuas constantes,


temos também um sistema particular, um agregado real particular.

"O mais vasto sistema de relações recíprocas que engloba


todas as relações mutuas duráveis entre os homens,
constitui a sociedade".

Definimos a sociedade como um agregado real ou como um sistema de


relações recíprocas, repelindo categoricamente todas as tentativas da "escola
orgânica" que tendem a assimilar a sociedade a um organismo.

O fim utilitário da teoria "orgânica" se revela na fábula da Menenios


Agrippa, patrício romano, aconselhando os plebeus em revolta. Os seus
argumentos eram de ordem puramente "orgânica": As mãos não devem agir
contra a cabeça, pois todo o corpo pereceria. A significação social da teoria
orgânica é justamente esta: a classe dominante, é a cabeça, os escravos e os
operários são os braços e as pernas, e como ninguém viu jamais na natureza
que as pernas e os braços tenham substituído a cabeça, conservai-vos
tranquilos, oprimidos!

Graças a este caráter de humildade da teoria orgânica, ela sempre teve e


tem ainda um grande sucesso no meio da burguesia. O "fundador" da
sociologia. Augusto Comte, considerava a sociedade como "um organismo
coletivo" o mais sério dos sociólogos burgueses, Herbert Spencer, acreditava
que a sociedade era alguma coisa de super orgânica e si bem que não tenha
consciência, tem contudo os seus órgãos, tecidos, etc... Segundo Worms, a
sociedade tem até a consciência, tal como um indivíduo, e Lilienfeld afirma
categoricamente que a sociedade é um organismo, tanto quanto um crocodilo
ou o próprio autor dessa teoria. Certamente, a sociedade tem alguma coisa de
comum com o organismo, mas ela tem também alguma coisa em comum com
o mecanismo. Isto são caracteres de qualquer agregado, de qualquer sistema.
Não estando dispostos a perder o nosso tempo com jogos infantis, nem a
procurar aquilo que corresponde, numa sociedade, ao fígado, ao apêndice ou
que fenômeno social corresponde a uma certa moléstia, somos obrigados a
rejeitar, a priori, qualquer tentativa semelhante. Isto tanto mais que os
partidários da teoria orgânica estão prestes a cair num verdadeiro misticismo e
a representar a sociedade sob a forma de um imenso animal, de alguma coisa
no gênero da famosa baleia(1), da fábula russa do "pequeno cavalo corcunda".

Assim, a sociedade existe como agregado real, como sistema de


elementos agindo reciprocamente uns sobre os outros, como sistema de
homens. Vimos acima a quantidade incalculável destas relações recíprocas
que existe na realidade. Entretanto, resulta do fato da sociedade existir, que
todas estas influências que se entrecruzam, todas estas forças e pequenas
forças inumeráveis dirigidas sobre planos extremamente variados, não
representam uma dança de loucos, mas seguem, por assim dizer, certos e
determinados canais, estão submetidas a uma lei de desenvolvimento interno.
Com efeito, se houvesse um caos completo, nenhum equilíbrio, mesmo
instável, poderia subsistir no interior da sociedade, isto quer dizer que a própria
sociedade deixaria de existir. Estudamos precedentemente a questão das leis
que regem as ações humanas, do ponto de vista do indivíduo (ver o capitulo 3).
Vamos examinar agora o mesmo problema, por assim dizer pelo outro lado,
examinando do ponto de vista da sociedade e das suas condições de
equilíbrio. Mas, aqui também, chegaremos ao mesmo resultado, isto é, a
reconhecer que o processo social está submetido a leis. A maneira mais fácil
de descobrir as leis do processo social, é examinar as condições de equilibro
social. Mas, antes disto, para abordar este assunto, é preciso que examinemos
mais detalhadamente o que é a sociedade. Pois não basta dizer que ela
constitui um sistema de homens, agindo uns sobre os outros. Não é suficiente
dizer que estas relações de reciprocidade entre os homens são duráveis. É
preciso explicar o seu caráter, o que os distingue dos outros sistemas, o que
constitui a sua base vital e a condição mais necessária de equilíbrio.

§ 27. — Caráter do laço social

As relações recíprocas entre os homens, relações que formam os


fenômenos sociais, são, como vimos acima, extremamente variadas. Mas é
preciso que formulemos agora a pergunta seguinte: Qual é a condição e a
duração destas relações? Ou, em outros termos, entre todas estas relações de
reciprocidade, qual é a condição essencial de equilíbrio de todo o sistema?
Qual é o tipo principal da ligação social, tipo sem o qual todos os outros não
poderiam existir?

Eis a nossa resposta: — Este laço essencial, é o do trabalho, que se


exprime antes de tudo no trabalho social, isto é, no trabalho consciente ou
inconsciente de um homem em proveito de um outro. Por que isto? Para
explicá-lo, basta supor o contrário. Admitamos por um instante que o laço do
trabalho entre os homens seja destruído, que os produtos (ou as mercadorias)
não circulem mais de um local a outro, que os homens cessem de trabalhar
uns para os outros, que o trabalho perca o seu caráter social. Qual seria o
resultado disto? O resultado seria o desaparecimento da sociedade. Citemos
ainda um exemplo: Um grupo de missionários vai para os países tropicais
pregar Deus e o Diabo. Desta maneira eles estabelecem um laço, por assim
dizer, superior e espiritual. Formulemos agora o seguinte problema: As ligações
entre os países de onde vieram os missionários e os "selvagens" poderão ser
sólidas se os navios não circularem frequentemente, se não houver trocas
regulares (e não fortuitas) entre eles, isto é, se laços de trabalho duráveis não
se estabelecerem entre o país "civilizado" e a pátria dos "selvagens"?
Certamente que não. Assim, todos os laços em geral, e no seu conjunto, não
podem ser sólidos senão quando existe um laço de trabalho. Este ultimo é a
condição essencial do equilíbrio do interior do sistema denominado sociedade
humana.

Pode-se ainda examinar este problema sob um outro aspecto. Sabemos já


que qualquer sistema, inclusive a sociedade humana, não existe no vácuo, e
não está tão pouco suspenso no ar: ele está envolvido de um certo "meio", e é
da relação entre o sistema e este meio que depende todo o resto. Se a
sociedade humana não estiver adaptada ao seu meio, ela não durará muito: a
sua cultura perecerá infalivelmente e tudo irá por água abaixo. Ninguém pode
negar este fato. Ele é irrefutável. Qualquer coisa que se diga, quaisquer que
sejam os argumentos dos sábios idealistas, ninguém poderá apresentar sequer
uma sombra de prova contra a nossa afirmativa: a vida inteira da sociedade, a
questão de sua vida ou de sua morte, está determinada pela relação entre a
sociedade e o meio, isto é, a natureza. Já a isso nos referimos mais acima e é
inútil voltar atrás. Mas qual é o laço social entre os homens que melhor
representa, e da maneira mais direta, estas relações com a natureza? Está
claro que é o laço do trabalho. O trabalho constitui o meio de contato entre a
sociedade e a natureza. É pelo trabalho que a sociedade tira da natureza a
energia, graças à qual ela vive e se desenvolve (se se desenvolve). O trabalho
representa a adaptação ativa dos homens à natureza. Em outros termos, o
processo da produção é o processo essencial e vital da sociedade. E, por
conseguinte, as relações do trabalho constituem o laço social fundamental. Ou,
como dizia Marx:

"é preciso procurar a anatomia da sociedade na sua


economia",

isto é, a estrutura da sociedade é a do seu trabalho (a sua "estrutura


econômica"). Assim, nossa definição da sociedade será a seguinte: A
sociedade é o mais vasto sistema de homens agindo uns sobre os outros,
sistema que engloba todas as suas relações duráveis e que se baseia sobre as
relações que derivam do trabalho.

Chegamos assim a uma concepção nitidamente materialista da sociedade.


A base de sua estrutura é constituída pelo laço do trabalho, do mesmo modo
que o processo material da produção constitui a base da vida.

Mas poderão apresentar, frequentemente, a seguinte objeção: "Muito bem,


admitamos que assim seja; mas, como se estabelecem os laços do trabalho?
Porventura os homens não conversam, não pensam enquanto estão
trabalhando? E não será então o laço de trabalho de ordem psíquica,
espiritual? Onde vemos aqui o materialismo? Não será tempo de desistir
dessas baboseiras materialistas? O que significam o vosso trabalho e as
vossas relações de trabalho, senão alguma coisa de psíquico?"

Estudemos este problema mais de perto. Ele o merece, porque doutra


forma aparecerão inúmeros mal-entendidos. Para maior clareza, tomemos
primeiro um exemplo muito simples. Imaginemos que temos diante de nós uma
usina em funcionamento. Nesta usina há trabalhadores simples, em seguida
diferentes operários qualificados; uns trabalham em uma maquina, outros em
outra; eles são também de profissões diferentes; há também nessa usina
contramestres, engenheiros, etc... Vejamos como Marx apresenta a questão
("O Capital" tomo 1):

"Observam-se diferenças essenciais entre os operários


efetivamente ocupados com as maquinas em
funcionamento (contam-se entre eles alguns ocupados em
observar e outros em alimentar a maquina motriz) e os
operários simples ou serventes dos primeiros (quase
sempre crianças). Entre os operários simples, estão
incluídos também os "feeders" (os que somente colocam
na maquina a matéria prima que serve para a fabricação).
Ao lado destas classes principais, encontramos ainda um
pessoal pouco numeroso, que é encarregado de observar
as maquinas, repará-las, como por exemplo os
engenheiros, os mecânicos, os carpinteiros, etc.."

Tais são as relações de trabalho entre os homens em uma usina. Como se


exprimem elas antes de tudo? Cada um está ocupado com o "seu trabalho",
mas este trabalho não é senão uma parte da ação geral, isto quer dizer que
cada operário se encontra em um lugar determinado, faz movimentos
determinados, entra em contacto material com as coisas e com outros
operários, despende uma certa quantidade de energia material.

Tudo isto são relações de ordem material, física. Certamente, todas estas
relações materiais e físicas têm também o seu lado "espiritual": os homens
pensam, trocam idéias, conversam, etc. Mas isto está determinado pela
maneira com que estão dispostos nos edifícios da usina, pelas maquinas em
que eles trabalham, etc.. Em outros termos, eles estão dispostos na usina
como corpos físicos determinados, e acham-se assim em relações físicas e
materiais definidas no espaço e no tempo. Isto é a organização material do
trabalho dos operários da usina, organização a queMarx dá o nome de
"operário coletivo"; temos diante de nós um sistema material de trabalho
humano. Quando este sistema de trabalho está em movimento, temos um
processo de trabalho material; os homens despendem a sua energia e fabricam
um produto material. Trata-se de um processo material que tem o seu lado
"espiritual".

O que acontece no nosso exemplo, isto é, na usina, tem lugar também em


dimensões muito maiores, e de maneira muito mais complexa, na sociedade
inteira. Pois a sociedade em seu conjunto representa um aparelho de trabalho
humano particular, onde a imensa maioria dos homens ou um grupo de
homens ocupa um lugar particular no processo do trabalho. Tomemos a
sociedade atual que engloba a pretensa "humanidade civilizada inteira", ou
ainda um circulo mais largo. Verificamos que o frumento é produzido
principalmente por certos países, o cacau por outros, os artigos metalúrgicos
ainda por outros, etc. E, mesmo nesses países, certas usinas fabricam uma
coisa, e outras uma outra. Os operários, os camponeses, os colonos, tanto
quanto os engenheiros, os contramestres, os organizadores de toda a espécie,
etc., colocados em diferentes pontos do mundo, espalhados sobre toda a
superfície da terra, trabalham todos na realidade, talvez sem o saberem, uns
para os outros. E quando as mercadorias circulam de um país a outro, da usina
ao mercado, do mercado, por intermédio do comerciante, ao consumidor, o que
isso significa? Significa que tudo isto constitui um laço material entre todos os
homens. Significa também que todos os trabalhadores formam um esqueleto
material, um aparelho de trabalho, da vida social que é uma só. Quando se
descreve, por exemplo, a vida das abelhas, ninguém estranha que se comece
por dizer quais são as diferentes espécies de abelhas, que trabalhos elas
executam, quais são as suas relações mútuas no tempo e no espaço, em uma
palavra, que se descreva o aparelho material do trabalho do "reino das
abelhas", e ninguém terá idéia de definir as abelhas nas suas colméias como
um agregado psíquico, como uma "associação espiritual", ainda que se fale do
instinto, da vida psíquica das abelhas, dos seus costumes, etc. Mas, por favor,
não injurieis da mesma maneira ao homem divino!

É natural que as relações psíquicas recíprocas as mais variadas, na


sociedade humana, são incomparavelmente mais ricas que as de um bando de
macacos de espécie superior. O "espírito" da sociedade humana, isto é, o
conjunto de todas as suas relações psíquicas, e superior ao "espírito" de um
bando de macacos tanto quanto o "espírito" do homem é superior ao do
macaco. Mas todos os ornamentos espirituais infinitamente variados,
complicados, extremamente ricos, de cores brilhantes, destas relações
psíquicas que compõem o "espírito" da sociedade contemporânea, têm
também o seu "corpo", sem o qual elas não poderiam existir, do mesmo modo
que o "espírito" de um homem sem corpo material não pode existir. E este
"corpo" é constituído pelo vigamento de trabalho, pelo sistema das relações
materiais entre os homens no processo do trabalho, ou, como dizMarx, o
sistema das relações de produção.

As meninas burguesas e ingênuas gritarão certamente contra a blasfêmia,


se explicarmos o perfume "divino" de um narciso pela excitação de uma coisa
tão prosaica quanto a mucosa do nariz. E entretanto um grande numero de
sábios burgueses não ultrapassa o nível dessas meninas. As vezes, ainda
ousam escarnecer a teoria "orgânica". Assim, por exemplo, o professor italiano
A. Loria, que pilhou e digeriu mal a Marx, escreveu na sua "sociologia":

"O sábio alemão Schaffle atinge o ridículo enumerando os


órgãos, tecidos, os centros motores e os nervos sociais.
Mas os outros sociólogos desta escola não são mais
moderados. Eles descrevem a anca social, o nervo
simpático e os pulmões sociais; o sistema dos vasos da
sociedade é representado, segundo eles, pelas caixas
econômicas; um professor da Sorbonne denominou o
clero um tecido adiposo. Um outro professor comparou as
fibras nervosas com os fios telegráficos... Um terceiro
chegou mesmo a distinguir os Estados masculinos e os
Estados femininos; os Estados masculinos são aqueles
que submetem os outros pela conquista, enquanto que os
Estados conquistados... são do sexo feminino".

Tudo isto está perfeito. Mas, vejamos um pouco em que ponto os sábios
burgueses, mesmo os melhores, tornam-se tímidos, quando chegam a tocar no
materialismo em sociologia! O professor E. Durkheim, por exemplo, no seu livro
sobre a "Divisão do Trabalho", depois de ter introduzido a concepção de
"densidade moral" (ele entende por este termo a frequência e a intensidade das
relações psíquicas recíprocas entre os homens) escreve:

"A densidade moral não pode portanto aumentar sem que


a densidade material aumente ao mesmo tempo..."

O que significa isto? Significa que a "troca espiritual" entre os homens


baseia-se numa "troca material", isto é, que a densidade e a frequência das
relações materiais e psíquicas condicionam a frequência e a densidade
correspondentes de suas relações espirituais. Isto é perfeitamente exato. Mas
o sr. Durkheim, depois de exprimir este pensamento materialista, amedronta-se
imediatamente e acrescenta: aliás, diz ele, é inútil (!!!) procurar qual das duas
(densidade moral ou densidade material) determinou a outra; basta saber que
elas são inseparáveis. (E. Durkheim: "Da divisão do Trabalho social", Paris
1893, pag. 283). E por que motivo é "inútil"? Porque é "vergonhoso" ser
materialista em uma sociedade burguesa!

A imensa maioria dos sociólogos burgueses contemporâneos estudam a


sociedade como um sistema psíquico, "organismo psíquico", ou outra coisa
parecida. Isto corresponde perfeitamente à concepção idealista. O defeito
principal dessas teorias consiste no fato delas destacarem o "espírito" da
"matéria", e tornarem assim este "espírito" inexplicável, isto é, divinizado. Com
efeito, vamos supor que a relação psíquica seja de uma certa espécie em uma
sociedade e diferente em outra. Assim, por exemplo, na Rússia, na época
de Nicolau Iº, reinava o "espírito" policial, o espírito de submissão e, pelo
contrario, na Rússia dos Soviets reina um "espírito" completamente diferente;
isto significa que as relações psíquicas mudaram completamente. Por que? As
teorias psicológicas da sociedade não poderão dar uma resposta clara a esta
questão. Pode-se julgar a que ponto são estas teorias insuficientes, pelo fato
de mesmo o conhecido filósofo idealista W. Wundt, reconhecê-lo:

"... o fato da evolução da vida psíquica depender do


ambiente físico, torna fictícias e inaceitáveis as leis
psicológicas que se diz preceder a todas as relações de
ordem física e que transformam a organização unicamente
em um meio para atingir os seus próprios fins." (Os
problemas da psicologia das nações).

A única concepção cientifica será aqui também a concepção materialista


(Marx falava em "organismo produtivo". Ver "O Capital", tomo 3º, 1ª parte).

§ 28. A sociedade e o indivíduo. Supremacia da sociedade sobre o


indivíduo

Não há duvida que a sociedade é composta de indivíduos. Se não


houvesse indivíduos, não haveria também sociedade; o fato é compreensível
por si mesmo. Entretanto, é preciso lembrar-se que uma sociedade não é
somente um simples ajuntamento de homens, ou a soma de indivíduos: Não é
suficiente adicionar todos os Paulos e todas as Marias para se obter uma
sociedade.

Já vimos que a sociedade é um agregado real (sistema); já vimos que


havia toda uma rede de relações mutuas entre os indivíduos, relações as mais
variadas e de valor desigual. O que isto significa? Que a sociedade,
considerada no seu conjunto, é mais do que a soma das partes que a
compõem. Ela não se reduz somente a esta soma. O mesmo se dá nos mais
variados sistemas, quer se trate de um organismo vivo ou de um mecanismo
inanimado. Tomemos, por exemplo, uma máquina qualquer, um simples
relógio. Decomponhamos estes objetos e reunamos todas as partes em um só
monte. Este monte representará a soma de suas partes. Mas não será a
maquina, não será o relógio. Por que? Porque lhe falta o laço definido, a
relação recíproca definida entre as diferente partes, relação que faz destas
partes diversas um determinado mecanismo. Que é que faz com que uma peça
qualquer seja uma parte do todo? A sua disposição particular. É exatamente da
mesma maneira que as coisas se passam na sociedade. Mas se os homens
não ocupassem no processo do trabalho e em dado momento um lugar
definido, se eles não estivessem unidos antes de tudo por um laço de trabalho,
nenhuma sociedade existiria.

É preciso levar em conta ainda um fenômeno que observamos na


sociedade: a sociedade representa, não somente um conjunto de indivíduos
particulares tendo relações comuns, e influindo diretamente uns sobre os
outros, mas também de grupos de homens tendo relações recíprocas, de
outros "agregados reais", intermediários, por assim dizer, entre a sociedade e o
indivíduo. Tomemos como exemplo a sociedade atual. Ela é imensa. Ela
abrange quase toda a humanidade, estando os homens dos diferentes países
ligados cada vez mais pelos laços do trabalho; a economia mundial existe e se
desenvolve. Mas esta sociedade, composta aproximadamente de um bilhão e
meio de homens que mantêm relações recíprocas, unidos por um laço
fundamental (o do trabalho) e por outros laços inumeráveis, contém em seu
interior sistemas particulares de homens agrupados de diferentes maneiras;
classes, Estados, organizações religiosas, partidos, etc.. Falaremos disso
detalhadamente mais adiante. No momento, importa-nos verificar o que segue:
Existe toda uma série de agrupamentos humanos no interior da sociedade; por
sua vez, estes agrupamentos são compostos evidentemente de indivíduos; as
relações recíprocas entre estes homens são habitualmente mais frequentes e
mais rápidas num só meio social do que as relações entre os homens em geral
(o filósofo e sociólogo alemão G. Simmel afirma, muito acertadamente, que em
geral, quanto mais o círculo dos homens que mantêm relações recíprocas é
restrito, tanto mais os laços que os unem são estreitos); mas estes
agrupamentos estão também em contacto entre eles. Assim, na sociedade, os
indivíduos influem frequentemente uns sobre os outros, não diretamente, mas
por intermédio de agrupamentos, de sistemas particulares, no interior do
sistema geral que é denominado sociedade humana. Com efeito, imaginemos
um determinado operário em uma sociedade capitalista. Com quem se
encontra ele mais amiúde? Com quem ele discute as diferentes questões, etc?
É claro que mais frequentemente com outros operários e muito mais raramente
com os artesãos, os camponeses ou com os burgueses. Vemos aqui um laço
de classe. Quanto às outras classes, o operário está muitas vezes em contacto
com elas, não como pessoa particular, como "indivíduo mas como membro de
sua classe e às vezes como membro de uma organização criada
conscientemente, de um partido, de um sindicato profissional, etc. O mesmo se
passa também em outros agrupamentos fora dos agrupamentos de classe: os
sábios frequentam sobretudo outros sábios, os jornalistas outros jornalistas, os
padres outros padres, etc.

No domínio material, sabemos que a sociedade não é um ajuntamento de


homens, que ela é mais do que uma simples soma, que a união entre os
homens e a sua determinada "posição" (Marx dizia "distribuição") no processo
do trabalho produzem alguma coisa mais diferente do que a "soma" e o
"monte". Mas a mesma coisa se produz igualmente no domínio da vida
psíquica ("espiritual"), que desempenha um papel muito importante. Já citamos
muitas vezes o exemplo do preço como resultado das avaliações de uma série
de pessoas particulares. O preço é um fenômeno social, uma "resultante"
social, um produto das relações recíprocas entre os homens; será o preço igual
à avaliação média? Não. o preço parecer-se-á com uma avaliação particular?
Também não. Pois uma avaliação particular é um negocio pessoal,
concernente a um só homem, ela "vive na sua alma" e unicamente na sua
alma, enquanto que o preço é uma coisa que oprime a cada um; é alguma
coisa de independente, com a qual é preciso contar, uma coisa objetiva, apesar
de não ser material (ver capitulo 2.°); o preço, em outros termos, é uma coisa
nova, e que tem a sua própria vida social, uma coisa independente dos homens
particulares, se bem que ele seja "feito" pelos homens. O mesmo acontece
com todos os outros fenômenos da vida psíquica ("espiritual"). A língua, o
regime político, a ciência, a arte, a religião, a filosofia, e toda uma série de
fenômenos de menor importância, tais como a moda, os costumes, as "regras
de civilidade", etc. etc, tudo isto são produtos da vida social, resultado das
relações recíprocas entre os homens, de suas relações constantes.

Do mesmo modo que a sociedade não é uma simples soma de homens,


assim também a vida espiritual da sociedade não é uma simples soma de
idéias e de sentimentos de homens particulares, mas ela é o produto de suas
relações recíprocas, ela é, até um certo ponto, uma coisa particular, nova, que
não pode ser reduzida a uma simples soma aritmética; uma coisa nova, que
resulta precisamente das relações recíprocas entre os homens.

São precisamente estes fatos que demonstram a necessidade das


ciências sociais. Wundt observa muito acertadamente que a

"vida comum de numerosos indivíduos tendo uma


organização idêntica, como também as relações mutuas
decorrentes desta vida sendo uma condição nova, devem
originar também fenômenos novos, com leis
particulares". (Os problemas da psicologia das nações.)

Um indivíduo não pode existir fora da sociedade, sem a sociedade, mau


grado a sociedade. Não é possível representar-se a sociedade como se
existissem homens isolados, existindo por assim dizer, em "estado natural", e
reunindo-se em seguida para formar a sociedade. Esta concepção era outrora
muito espalhada, mas ela é completamente falsa. Se nós examinamos passo a
passo a evolução da sociedade humana, vemos que ela se formou a partir da
tribo e não a partir de seres de aparência humana vivendo em lugares
diferentes, e que compreenderam subitamente um belo dia que era muito mais
cômodo (como eram inteligentes, estes selvagens!) viver juntos e começaram a
se reunir em sociedade, depois de se terem convencido uns aos outros em
reuniões publicas.

"O ponto de partida" (da ciência, N. B.), escreveu Marx, se


acha nos "indivíduos produzindo em sociedade", e por
conseguinte, na "produção social dos indivíduos". Um
caçador e um pescador isolados... pertencem ao domínio
da fantasia do século XVIII... A produção de indivíduos
isolados fora da sociedade... é tão absurda quanto o
desenvolvimento da linguagem sem homens que vivam
juntos e falem entre si". (K. Marx: Introdução a uma critica
da economia política).

A teoria do homem isolado que se une aos outros foi expressa de um


modo preciso por J. J. Rousseau, na obra "O Contrato Social" , aparecida em
1762: o homem nasce livre em estado natural. Para proteger a sua liberdade,
ele entra em relações com outros homens, e é baseado num "contrato social"
se cria uma sociedade, um Estado (Rousseau não distingue o Estado da
sociedade). "O tratado social tem por fim a conservação dos contratantes" (livro
2.°, cap. 5). Com efeito, Rousseau estuda, não a origem real da sociedade ou
do Estado, mas o ponto de vista da "razão", isto é, como deve ser concebida e
construída uma sociedade organizada. Aquele que infringe o "contrato" é
passível de punição. Se os reis abusam de sua força, é preciso expulsá-los, —
esta é a conclusão. Eis por que, apesar da inexatidão absoluta das concepções
de Rousseau, a sua doutrina desempenhou no mais alto grau um papel
revolucionário durante a grande Revolução francesa.

As qualidades sociais do homem não puderam se desenvolver senão no


seio da sociedade. É ridículo supor que o homem (e ainda mais um homem
selvagem) tenha compreendido a utilidade da sociedade sem tê-la jamais visto.
Seria com efeito o mesmo que o desenvolvimento da linguagem entre homens
que não falam e que se encontram espalhados por toda parte. O homem
sempre foi, segundo a expressão de Aristóteles,"um animal social", isto é, um
animal que sempre viveu em sociedade e nunca fora dela. Não é possível
imaginar-se que a sociedade humana se tenha "formado pouco a pouco"
(somente um comerciante, que organiza uma sociedade por ações, pode
pensar que a sociedade humana se criou mais ou menos pela mesma maneira,
e imaginar que as coisas se passaram por esta forma). Na realidade, a
sociedade sempre existiu, assim como o próprio homem, e nunca houve
homens fora da sociedade. O homem é um animal sociável "pela sua
natureza"; a sua "natureza" é social e muda com a sociedade; é por sua
"natureza", e não devido a um contrato ou a um tratado, que os homens vivem
em sociedade.

Se o homem sempre viveu em sociedade, isto é, se ele sempre foi homem


social, isto significa que o indivíduo sempre teve como meio a sociedade. E se
a sociedade sempre foi o meio em que viveu o indivíduo, não é difícil
compreender que este meio determinava o indivíduo; o indivíduo se desenvolve
segundo a natureza do meio, da sociedade: "Dize-me com quem andas e eu te
direi quem és!"
Aqui, aparece uma questão que sempre deu e dá ainda lugar a
discussões, a saber: — qual o papel dos indivíduos na história?

Entretanto, este,problema está longe de ser tão difícil quanto parece. O


indivíduo desempenhará ou não um papel qualquer na marcha dos
acontecimentos? Será ele igual a zero? Ou então, terá ele poder para qualquer
coisa? É evidente que a sociedade, sendo composta de indivíduos, os atos de
uma pessoa qualquer influem sobre o acontecimento social. Assim, o indivíduo
desempenha "um papel", assim os atos, os sentimentos, os desejos de
qualquer homem fazem parte integrante do fenômeno social. "Os homens
fazem a historia"; e desde que "os homens" são compostos de indivíduos, está
claro que o homem isolado não é igual a zero, mas representa uma certa força.
É o entrecruzamento, ou antes, são as relações mutuas entre estas forças que
determinam, como sabemos, o fenômeno social.

Por outro lado, se um homem isolado influi sobre a sociedade, não se


poderá saber que é que determina ação deste homem isolado? Sim, pode-se
saber. Sabemos perfeitamente que a vontade do homem não é livre, que ela é
determinada por condições exteriores. E estas condições exteriores sendo para
um homem isolado as condições sociais (condições da vida de família, de
grupo, de profissão, de classe, de toda sociedade em determinado momento),
a sua vontade, por conseguinte, é determinada por condições exteriores; é
nestas condições que ela encontra os motivos de sua atividade.; Assim, por
exemplo, um soldado russo do tempo de Kerensky via que o seu mister
caminhava para a ruína, que a vida se tornava cada vez mais difícil, que não se
enxergava o fim da guerra, que os capitalistas se enriqueciam, que a terra não
era dada aos camponeses. Todos estes fatos dão motivo para a sua ação,
como seja: acabar a guerra, apoderar-se da terra e, para isto, derrubar o
governo. Por conseguinte, o ambiente social determinou os motivos da ação.

O próprio ambiente limita a realização de um fim qualquer almejado pelo


indivíduo. Em 1917, Milioukov quis reforçar a influência da burguesia e apoiar-
se sobre os Aliados; mas nada conseguiu: o ambiente era tal
que Milioukov nada fez, nada pôde fazer.

Se examinarmos em seguida o indivíduo na sua evolução, apercebemo-


nos que realmente ele está recheado de influencias do seu meio. O homem é
"educado" na família, na rua, na escola. Ele fala a linguagem que e o produto
da evolução social, ele pensa por meio de concepções elaboradas por toda
uma série de gerações anteriores, ele vê em torno de si outros homens e o seu
modo de ser; ele vê diante de si uma certa ordem que influi sobre ele a todo
momento. Como uma esponja ele se embebe sempre de impressões novas.
Tudo isto contribui para "amoldá-lo" como indivíduo. Assim, na realidade, há
em cada indivíduo um conteúdo social. O próprio indivíduo isolado é o
resultado de uma condensação de influencias sociais muito concentradas.

Enfim, é preciso acentuar ainda um fato. Acontece frequentemente que o


papel desempenhado pelo indivíduo é bastante grande, devido ao lugar
particular e ao trabalho particular que ele fornece. Tomemos por exemplo um
exército e seu estado-maior. O estado-maior é composto apenas de alguns
indivíduos, enquanto um exército se compõe de centenas de milhares e às
vezes de milhões de homens. E, entretanto, todo o mundo sabe que a
importância de alguns indivíduos do estado-maior é muito maior do que a do
mesmo numero de pessoas no exército (de soldados ou oficiais). Se o inimigo
consegue aprisionar o estado-maior, isto pode significar às vezes a derrota de
todo o exército. Portanto, a importância destes indivíduos é bastante grande.
Examinemos isto mais de perto. O que valeria um estado-maior sem linhas
telefônicas, sem relações, sem informações, sem cartas, sem possibilidade de
dar ordens, sem disciplina, etc? Nada absolutamente. Os homens que
pertencem ao estado-maior seriam mais ou menos iguais aos outros membros
do exército. No que consiste a sua força e a sua importância? Elas são criadas
pelo laço social particular, pela organização, na qual estes homens trabalham.
Certamente, eles devem possuir uma certa capacidade para desempenhar as
suas funções (ter uma instrução suficiente ou então capacidades inatas,
desenvolvidas pela experiência, como se dava no caso de um grande numero
de generais de Napoleão ou de comandantes do Exercito Vermelho dos
Soviets). Mas, fora deste laço particular, eles perdem a sua força. Isto significa
que a possibilidade que tem o estado-maior de exercer uma influência sobre o
exército é dada pelo próprio exército, pela sua estrutura, pela sua organização,
pelo conjunto de relações existentes.

As coisas passam-se de maneira análoga na sociedade. Tomemos, por


exemplo, os chefes políticos., O seu papel, certamente, é incomparavelmente
maior do que o de um homem médio de uma classe ou de um partido qualquer.
Certamente, é preciso ter qualidades especiais, como inteligência, experiência,
etc., para ser chefe político; mas, está claro que, sem as organizações
apropriadas (partidos, associações, a sua tática particular para se aproximar
das massas, etc.) "os chefes" não poderiam desempenhar um tal "papel". A
força dos laços sociais dá, por sua vez, uma força a certos indivíduos
eminentes. Não é diferente o que acontece quando se trata dos inventores,
sábios, etc... Eles não podem se "desenvolver" senão em certas condições.
Suponhamos que o inventor, bem dotado por sua natureza, não tenha podido
elevar-se; ele nada aprendeu, nada leu, e foi obrigado a fazer um trabalho
completamente diferente, como o comercio de fazendas. O seu "talento" foi
afogado: ninguém se aperceberá de sua existência. Como não é possível
imaginar-se um chefe fora de um exército, também é impossível imaginar um
inventor sem maquinas, sem aparelhos, sem certos homens. Ao contrario, se o
nosso comerciante de fazendas tivesse conseguido elevar-se, ele poderia
talvez tornar-se um novo Edison. Poderíamos citar um grande numero de
exemplos análogos. É natural que, em todos estes casos, a influência da
sociedade se exerce de modo a só permitir que alguém se "eleve" em coisas
de que a sociedade (uma classe, um grupo, ou a sociedade em geral)
necessita.

Assim, são os laços sociais que dão a força aos indivíduos — esta é a
conclusão dos exemplos precedentes.

Esta concepção desenvolveu-se com muita dificuldade. As suas causas


foram explicadas de maneira clara pelo camarada M. N. Pokrovsky(História da
civilização russa, 1.ª parte).

"Um historiador, pela sua própria posição


pessoal, é um trabalhador intelectual, em
primeiro lugar, e em segundo, si nós
considerarmos os traços mais particulares, ele é
ao mesmo tempo um homem que escreve, um
homem de letras. Não é de admirar que ele
considere o trabalho intelectual como a coisa
principal da história, e as obras literárias desde
os poemas e os romances até os Tratados de
filosofia e ciências, como os fatos essenciais da
cultura. Mas isto ainda não basta; os
trabalhadores intelectuais, e isto é bastante
natural, deixaram-se levar pelo mesmo orgulho
que ditou aos faraós as inscrições elogiosas.
Começaram por crer que eram eles que faziam
a historia".

É preciso acrescentar ainda que este ponto de vista profissional coincidia


com o das classes, dos agrupamentos dominantes, da minoria que comandava
a imensa maioria. Não é difícil verificar que o fato de pôr em relevo os chefes, e
antes de tudo os reis, os príncipes, etc, e em seguida os gênios, é da mesma
ordem de idéias que a concepção religiosa; pois a força social que a sociedade
dá ao indivíduo é ocultada, e, ao invés dela, vê-se o próprio indivíduo, força
inexplicável, isto é, "divina" por sua essência. O filósofo russo W. F. Soloviev
assim o exprimiu de maneira admirável (A justificação do bem, capitulo IV,
citado por Khvostiv: A teoria do processo histórico):
"Os homens providenciais, que nos revelaram uma
religião superior e que esclareceram a humanidade, não
eram a princípio os criadores destes bens. Tudo o que
eles deram, foi herdado por eles mesmos dos gênios
históricos universais, dos heróis aos quais devemos
também o nosso reconhecimento. Devemos reconstituir, o
mais completamente possível, toda a linhagem dos
nossos antepassados espirituais, dos homens pelos quais
a providência dirigia a humanidade no caminho da
perfeição... É nesses "vasos eleitos" que reside aquilo que
Ele (o pai celestial) neles colocou, é nestas imagens
visíveis da Divindade invisível que A reconhecemos e A
glorificamos."

Não é necessário responder detalhadamente a esta mixórdia, ela por si diz


tudo.

Resulta do que foi dito anteriormente que um indivíduo age sempre como
indivíduo social, como membro, parte de um agrupamento de uma classe da
sociedade. O "indivíduo" tem sempre um conteúdo social; assim, para
compreender a evolução da sociedade é preciso partir do estudo das
condições sociais e passar em seguida, si for necessário, ao indivíduo, e não
proceder de maneira inversa. É pelo estudo das relações sociais, pelo exame
das condições de qualquer vida social, da vida de uma classe, de um
agrupamento profissional, da família, da escola, etc., que nós podemos explicar
mais ou menos bem a evolução do indivíduo; mas não poderíamos explicar a
evolução da sociedade pelo estudo do desenvolvimento do indivíduo, porque
cada indivíduo agindo de uma maneira qualquer deve levar em conta, antes de
tudo, aquilo que já foi feito na sociedade. Assim, por exemplo, um comprador
que vai ao mercado para procurar calçados ou pão. Como os avalia ele? É
evidente que ele adapta de ante-mão a sua avaliação pessoal ao preço que já
existe ou que já foi estabelecido no mercado. Um inventor constrói uma nova
maquina; ele parte daquilo que já existe, da técnica e da ciência dadas, das
exigências que apresenta o seu trabalho prático, etc. Em uma palavra, se nós
esforçarmos, como o fazem certos sábios burgueses, em explicar os
fenômenos sociais segundo os fenômenos pessoais (psicológicos ou
individuais) nós chegaremos, não a uma explicação, mas a um círculo vicioso:
Um fenômeno social (o preço, por exemplo), será explicado por um fato
pessoal (por exemplo, pela avaliação da mercadoria por um fulano qualquer), e
esta avaliação deverá ser explicada pelo preço com que o mesmo fulano teve
que contar. Qual seria o resultado de uma explicação destas? "A terra repousa
sobre uma baleia, a baleia está sobre a água e água sobre a terra" — como diz
uma fábula russa. Chegaremos forçosamente ao mesmo resultado, cada vez
que quisermos estabelecer o caráter da sociedade pelo estudo dos indivíduos e
pela sua conduta. Por consequência, é necessário partir da sociedade, pois,
como já vimos, é no meio social que o indivíduo encontra os móveis para a sua
ação; é no meio social e nas condições de seu desenvolvimento que ele
encontra os limites da sua atividade: são as condições sociais que determinam
o seu papel, etc. A sociedade domina o indivíduo, ou, como dizem os sábios,
existe uma supremacia da sociedade sobre o indivíduo.

§ 29. As sociedades em formação

Do fato do homem, enquanto homem, sempre ter vivido em sociedade,


não resulta absolutamente que novas sociedades não possam formar-se ou as
antigas desenvolver-se.

Suponhamos que em determinada época existem, em diversos pontos do


globo, aglomerados humanos. Suponhamos em seguida que estes
aglomerados não tenham entre si nenhuma relação: eles são separados por
montanhas, por rios, por mares, e não atingiram ainda um grau de civilização
suficiente para permitir que eles transponham estes obstáculos. Se acontecer
que eles entrem em contacto uns com os outros, isto não se produz senão
raramente e de uma maneira irregular: Não pode haver relações estáveis entre
eles.

Estamos nós, neste caso, em presença de uma só sociedade considerável


que abrange estes aglomerados humanos particulares? Absolutamente não.
Estamos em presença não de uma só sociedade, mas de tantas sociedades
quantas são as aglomerações. Por que? Porque é o laço do trabalho, "a
relação de produção", que forma a ossatura ou esqueleto do corpo social, que
constitui a base, o traço característico principal da sociedade. No exemplo
citado mais acima, este laço entre as aglomerações não existe; por
conseguinte, estamos em presença não de uma só sociedade, mas de
sociedades diferentes, tendo cada uma a sua própria história.

Quando nos referimos a "homens", podemos reuni-los, não em uma só


sociedade, mas reuni-los como homens, para distingui-los dos outros animais,
ou em outros termos, pode-se considerá-los como uma coisa particular
(homens) do ponto de vista biológico, isto é, da mesma espécie biológica (não
pulgas, girafas ou elefantes, mas de uma só espécie: homens). Mas, do ponto
de vista da ciência social, da sociologia, não existe aqui nenhuma unidade,
nenhuma sociedade; não tratamos aqui de uma espécie, mas de varias
sociedades. Para que haja unidade biológica, é preciso que os animais em
questão tenham a mesma estrutura, os mesmos órgãos, etc; a unidade
sociológica exige que os animais-homens trabalhem em conjunto, e não uns
paralelamente aos outros, nem tão pouco ao mesmo tempo, mas em comum.

Certamente, numerosos são aqueles que contestam que as sociedades


sejam agregados fechados. Assim, o professor Wipper escreve (Os Novos
Horizontes da Ciência Histórica. O Mundo Contemporâneo):

"É possível que, desde o princípio da civilização, as


sociedades completamente fechadas, a economia natural
pura, nunca tenham existido. As relações comerciais, a
colonização, as migrações, e a propaganda, existiram
desde tempos imemoriais. Sem duvida, um trabalho
independente era executado também localmente: muitas
coisas foram realizadas simultaneamente, nos limites
geográficos e em condições diferentes por esforços
independentes. Mas é possível também que, mais
frequentemente ainda, o estágio seguinte da evolução
tenha sido atingido de um só salto, graças a uma lição
prematura, insuficientemente compreendida, mas devido
sobretudo a uma fonte estranha e em seguida esquecida".

Entretanto, se uma sociedade absolutamente fechada nunca existiu, não


deixa de ser verdade que as trocas entre as diferentes sociedades humanas
eram extremamente reduzidas. Assim, por exemplo, que relações duráveis
poderiam ter existido entre os povos europeus e a America antes da viagem
de Cristóvão Colombo? Mas, entre os próprios povos europeus, a ligação era
muito fraca na idade média, por exemplo. Por conseguinte, não se pode falar
destes casos, de uma sociedade humana: A humanidade era nessa época,
apenas, uma unidade biológica.

Suponhamos agora que entre nossas sociedades apareçam em primeiro


lugar relações de ordem militar e em seguida de ordem comercial. Estas
relações comerciais tornam-se cada vez mais duráveis, e há um momento em
que uma sociedade não pode mais viver sem a outra; umas produzem
principalmente uma coisa, as outras uma outra; estes produtos são trocados e
assim uma trabalha para a outra, deixando este trabalho de ter um caráter
fortuito para se tornar regular, indispensável à existência das duas
"sociedades". Que acontece então? Teremos uma só sociedade de dimensões
maiores. Ela foi formada pela reunião das duas sociedades distintas.

Mas um processo contrario também é possível. Em certas condições, uma


sociedade pode dividir-se em varias outras; isto acontece nos períodos de
decadência.
O que podemos concluir destes fatos? Que a sociedade não é uma
entidade fixa. Podemos observar o processo de formação de uma sociedade.
Nós o vimos, por exemplo, na segunda metade do século XIX e no princípio do
século XX. Relações cada vez mais estreitas se estabelecem entre os
diferentes países por vias diversas (graças às guerras coloniais, ao aumento
das trocas, às importações e exportações de capitais, graças às ligações de
população de um país ao outro, etc.). Relações econômicas duráveis (e não
fortuitas) se estabelecem entre os países e, em ultima analise, laços de
trabalho. A economia mundial nascia, o capitalismo mundial se desenvolvia, e
as suas diferentes partes influíam umas sobre as outras. Ao mesmo tempo que
se deslocavam sobre um plano internacional os homens e as coisas, as
mercadorias, os capitais, os operários, os comerciantes, os engenheiros, etc.,
uma poderosa torrente de idéias cientificas, artísticas, filosóficas, políticas,
religiosas e outras transitava de um país para outro. As trocas mundiais
materiais arrastavam atrás de si as trocas espirituais. Foi assim que começou a
se formar uma só sociedade humana, tendo urna só história.
Capítulo V - O Equilíbrio Entre a Sociedade e a Natureza

§ 30. A natureza como meio para a sociedade

Se estudarmos a sociedade como sistema, o meio no qual ela evolui será


representado pela "natureza exterior", isto é, primeiramente pelo nosso planeta
com todos os seus caracteres naturais. Não é possível imaginar uma
sociedade humana fora desse meio que lhe fornece a alimentação. Esta é a
sua significação vital. Entretanto, seria ingenuidade considerar a natureza do
ponto de vista da finalidade; seria ingenuidade dizer que o homem é o rei da
natureza e que tudo na natureza é feito para satisfazer as necessidades
humanas. Realmente, a Natureza combate às vezes o homem de maneira tão
violenta que pouca coisa resta para o "rei da natureza".

É somente depois de uma luta longa e obstinada contra a natureza que o


homem começa a domá-la.

Entretanto, o homem, como espécie animal, e a sociedade humana, são


produtos da natureza, uma parte deste todo infinito. O homem jamais poderá
sair da natureza, e mesmo quando ele a submete, ele não faz mais do que
explorar as leis da natureza para os seus próprios fins. É portanto
compreensível que a natureza deva exercer uma grande influência sobre o
desenvolvimento da sociedade humana. Antes de começar a estudar as
relações que se estabelecem entre o homem e a natureza, assim como as
formas nas quais se exprime a influência da natureza sobre a sociedade
humana, é preciso primeiro que examinemos os lados pelos quais a natureza
toca o homem mais de perto. É bastante olhar em torno de nós para verificar a
dependência da sociedade relativamente à natureza:

"A terra (é preciso incluir neste termo também a água do


ponto de vista econômico) que fornece ao homem a sua
alimentação, os seus meios brutos de subsistência, existe
sem nenhum concurso de sua parte, como objeto
universal do trabalho humano. Todos os objetos que por
meio do trabalho o homem tira de suas relações diretas
com a terra, são objetos de trabalho dados pela natureza:
Assim, por exemplo, o peixe que é pescado, a arvore que
é abatida na mata virgem, o mineral que é extraído da
terra. Guarda-comida primitivo do homem, a terra é
também o primeiro arsenal de seus meios de trabalho. Ela
lhe fornece, por exemplo, a pedra que ele emprega na sua
funda, ou para desgastar, cortar, etc..."
(Karl Marx, Capital, tomo I).

A natureza aparece diretamente como um objeto de trabalho em certos


ramos da indústria (industria mineira, caça, agricultura em parte, etc...). Em
outros termos, é ela que fornece a matéria prima necessária para a fabricação
e para uma série de meios de existência. Além disto, como já dissemos, o
homem se serve das leis da natureza para lutar contra ela.

"Ele utiliza as propriedades mecânicas, físicas e químicas


dos corpos para obrigá-los a agir segundo os seus fins
como forças que devem influir sobre outros corpos".

O homem explora a força do vapor, da eletricidade, etc... a gravidade etc...


etc... Se assim é, é compreensível que o estado da natureza em determinado
lugar e em dado momento não pode deixar de influir sobre a sociedade
humana. O clima (grau de umidade, regime dos ventos, temperatura, etc...), o
relevo do solo (as montanhas e os vales, a distribuição das águas, a natureza
dos rios, a existência dos metais, dos minerais, etc..), o litoral (se o país é
marítimo), o regime das águas, a existência de certas espécies de animais e de
plantas, etc..., eis os principais fatores que influem sobre a sociedade humana.
É impossível pescar baleias sobre a terra; é difícil desenvolver
convenientemente a agricultura nas montanhas; não se pode explorar as
florestas em um deserto; não é possível nos países frios viver durante o
inverno debaixo de uma tenda; é inútil aquecer as casas nos países quentes;
nos lugares onde o solo não fornece metais, não haverá ferraduras nas patas
dos cavalos.

Examinando mais detalhadamente a influência da natureza, chegamos às


seguintes observações:

Repartição das terras firmes e dos mares: — O homem, em geral, é um


animal terrestre. O mar age de duas maneiras: Em primeiro lugar ele divide.
Esta é a razão por que o mar muitas vezes serviu de fronteira natural; por outro
lado, em certo grau de evolução, o mar torna-se, ao contrário, a melhor via de
comunicação. O litoral influi principalmente pela sua maior ou menor
adaptabilidade à formação de portos. A maioria dos portos modernos foram
mesmo criados em conformidade com as comodidades naturais do litoral, com
poucas exceções (por exemplo, Cherburgo). A superfície da terra, agindo pela
sua fauna e pela sua flora, exerce igualmente uma influência direta, se bem
que diferente, segundo o grau de desenvolvimento da civilização,
principalmente sobre as vias de comunicação (atalhos, caminhos, vias férreas,
túneis, etc.).
As pedras e os minerais: — As construções são elevadas de acordo com a
natureza das pedras de que se dispõe: nas montanhas, encontra-se sobretudo
a pedra dura (granito, porfiro, basalto, xisto, etc...); nos vales encontra-se
sobretudo uma pedra mole. Quanto aos minerais e aos metais, a sua
importância aumentou sobretudo nestes últimos tempos (o ferro, o carvão).
Certos minerais foram a causa principal das migrações e da colonização (o
chumbo atraiu os fenícios para o Norte, o ouro para a África do sul e a Índia
oriental; o ouro e a prata atraíram os espanhóis para a America, etc...). É
segundo a localização das minas de carvão e de ferro que se repartem os
diferentes centros de industria pesada. O caráter do solo determina, antes de
tudo, a flora e o clima.

As águas continentais: — Em primeiro lugar a água tem importância como


água potável (ver o seu "preço" no deserto); em seguida, ela desempenha um
grande papel na agricultura (conforme a sua quantidade, é preciso drenar ou
irrigar o solo); sabe-se a grande importância que tem para a agricultura as
inundações provocadas pelos grandes rios (Nilo, Ganges etc), e a influência
que este fato exerceu sobre a civilização egípcia e hindu. Por outro lado, a
água tem uma grande importância como força motriz (os moinhos de água são
uma das mais antigas invenções; foi em torno deles que se desenvolveram as
cidades; nos tempos modernos a água é usada para a eletrificação como
"hulha branca", sobretudo na América, Alemanha, Suíça, Noruega, Suécia e
Itália Enfim, é preciso ainda sublinhar o grande papel que representa o sistema
de águas como sistema de comunicação (certos sábios dão a isto importância
particular).

O clima age sobre os homens principalmente pela influência que exerce,


sobre a produção. No domínio da agricultura, é do clima que depende a
escolha das culturas; o clima determina também a duração da estação agrícola
(assim, por exemplo, na Rússia, a estação de trabalhos agrícolas é muito curta,
enquanto que em certos países, mais próximos dos trópicos, ela dura quase o
ano inteiro); por isto mesmo, o clima influi também sobre a indústria, liberando
a mão de obra, etc. Ele desempenha igualmente um papel muito importante
nos transportes (caminhos para os trenós, no inverno, portos fechados ou não
para o gelo, rios, etc.).

O clima frio exigem trabalho mais intenso para a alimentação, o vestuário,


as habitações, o aquecimento artificial, etc. Passa-se mais tempo dentro de
casa no Norte e ao ar livre nos trópicos.

A flora age de diversas maneiras: nos estágios inferiores da civilização, é


do caráter das florestas que dependem os caminhos (matas impenetráveis); é a
madeira que determina caráter das construções, do aquecimento, etc; a caça
depende da qualidade das plantas da mata ou da estepe; dela dependem
também a agricultura e a criação.

A fauna representava para os povos primitivos uma força inimiga


poderosa; em geral, ela constituía para eles uma fonte alimentação e, portanto,
um objeto de caça e de pesca; mais tarde, ela determinou a domesticação de
animais e exerceu assim uma certa influência sobre a produção e os
transportes (animais de tiro).

O mar, como meio de transporte, desempenhou e desempenha ainda um


papel importante. O transporte dos viajantes e das mercadorias é mais barato
através do mar; além disto, apresenta um largo campo de exploração para um
grande número de indústrias (a pesca, a caça às focas, às baleias, etc.) (Ver A.
Hettener: Die geographischen Bedingungen der menschlicken Wirtschaft, (As
condições geográficas da economia humana), emGrundriss der
Socialokonomik, Esquema da economia social, de Gottel-Herkner. Tubingen,
1914).

A influência das condições climatéricas é caracterizada


pelo fato seguinte: baseando-nos sobre o estudo da carta
das temperaturas anuais, médias (das linhas
(1)
isotérmicas) "Pode-se observar que as aglomerações
humanas mais importantes estão agrupadas entre duas
isotérmicas extremas a de + 16.° e a de + 4.°. A isotérmica
de + 10° define com exatidão suficiente o eixo central
desta zona climatérica e da civilização; é ali que se acham
agrupadas as cidades mais ricas e mais povoadas do
mundo: Chicago, New York, Filadélfia, Londres, Viena,
Odessa, Pequim. Sobre a isotérmica + 16.° se encontram
São Luiz, (dos Estados Unidos), Lisboa, Roma,
Constantinopla, Osaka, Kyoto, Tókio). Sobre a isotérmica
+ 4.°; (Quebec, Cristiania, Stokolmo, Leningrad, Moscou).
Ao sul da isotérmica + 16.°, a titulo de exceção, acham-se
disseminadas algumas cidades cuja população passa de
100.000 homens (México, Nova Orleans, Cairo,
Alexandria, Teerã, Calcutá, Bombaim, Madras, Cantão). O
limite setentrional ou a isotérmica + 4.°, tem um caráter
mais absoluto: Ao norte desta linha não há mais cidades
importantes, excetuando Winnipeg (Canadá) e alguns
centros administrativos da Sibéria (L. I. Metchnikov: A
civilização e os grandes rios históricos, teoria geográfica
do desenvolvimento das sociedades modernas).(2)
§ 31. Relações entre a sociedade e a natureza. Processos de produção e
de reprodução

Sabemos já que as causas de mudança de um determinado sistema


devem ser procuradas nas relações entre este sistema e o seu meio. Sabemos
também que mesmo os traços principais da evolução (o progresso, a
estagnação ou a destruição dum sistema) dependem particularmente das
relações entre um dado sistema e o seu meio. É portanto nas variações destas
relações que se deve procurar a causa que provoca a variação do próprio
sistema Mas onde devemos procurar as relações entre a sociedade e a
natureza, se estas variam continuamente?

Já vimos que estas relações variáveis provêm do domínio do trabalho


social. Com efeito, de que modo se exprime o processo de adaptação da
sociedade humana à natureza? Ou em outros termos, em que consiste o
estado do equilíbrio instável entre a sociedade e a natureza?

A sociedade humana, enquanto vive, é obrigada a procurar sua energia


material no mundo exterior; ela não pode existir de outra maneira. Ela se
adapta tanto melhor à natureza quanto mais energia dela retira: é somente
quando a quantidade desta energia aumenta que estamos em presença do
desenvolvimento de uma sociedade. Admitamos, por exemplo, que num belo
dia todas as empresas deixem de funcionar, as fabricas, usinas, minas, vias
férreas, o trabalho dos campos e nas florestas, sobre a terra e sobre os mares.
A sociedade não poderia durar nem oito dias, porque, mesmo para viver das
reservas, é necessário transportar, descarregar, distribuir.

"Toda criança sabe que qualquer nação pereceria de


fome, se ela parasse o seu trabalho, já não digo por um
ano, mas por algumas semanas apenas. (K. Marx: Carta a
Kugelmann).

Os homens trabalham a terra, recolhem o milho, a cevada, o trigo, criam


os animais, cultivam o algodão, linho, cânhamo, cortam o mato, tiram a pedra
das pedreiras e satisfazem assim as suas necessidades de alimentação,
vestuário e habitação. Eles extraem o carvão e o minério de ferro das
profundezas da terra, constroem máquinas de aço, com auxilio das quais
penetram na natureza em diferentes direções, transformando a terra inteira
numa oficina gigantesca, onde os homens malham com martelos, inclinam-se
sobre as bancas, cavam a terra, seguem a marcha regular de máquinas
monstruosas, cavam túneis nas montanhas, cortam os oceanos com seus
navios, transportam a correspondência através dos ares, envolvem a terra com
uma rede de trilhos, colocam cabos no fundo dos oceanos, e em toda parte, a
começar pelas cidades tentaculares, tumultuosas, para acabar nos cantos
perdidos de nossa terra, correm atarefados como formigas, trabalhando para o
seu "pão quotidiano", adaptam-se à natureza, e adaptam esta ultima a si
mesmos. Uma parte da natureza — o meio, — o que aqui chamamos a
natureza exterior, — opõe-se a uma outra parte, a sociedade humana. A forma
de contacto entre estas duas partes de um mesmo todo é constituída pelo
processo do trabalho humano. O trabalho é antes de tudo um processo que
tem lugar entre o homem e a natureza, processo no qual o homem determina
por sua própria atividade, regra e controle, a troca das matérias entre se
mesmo e a natureza. Ele se opõe como força natural à essência da
natureza. (O Capital tomo I). O contacto direto entre a sociedade e a natureza,
isto é, a transferência de energia da natureza à sociedade, é um processo
material.

"Para assimilar nova substancia em forma adaptada à sua


própria vida, o homem põe em movimento as forças
naturais que pertencem ao seu corpo: as mãos e os pés, a
cabeça e os dedos." (ibid.).

Este processo material de "troca das matérias" entre a sociedade e a


natureza constitui precisamente a relação essencial entre o meio e o sistema,
entre as "condições exteriores" e a sociedade humana.

Para que a sociedade possa continuar a existir, é necessário que o


processo da produção se renove constantemente. Suponhamos que, em certo
momento, tenha sido produzida uma determinada quantidade de trigo,
calçados, caminhos, etc., e que durante o mesmo período tudo isto foi
consumido. Está claro que a produção teve que recomeçar um novo ciclo de
movimentos. Ela deve renovar-se constantemente, um elo deve seguir-se a
outro. O processo da produção, considerado no ponto de vista da repetição
destes elos (ou como se diz, dos ciclos de produção), chama-se processo de
reprodução. Para que este tenha lugar, é necessário que todas essas
condições materiais se realizem. Por exemplo, para produzir tecidos, é preciso
ter teares; para fazer os teares, é preciso aço, para o aço é preciso carvão e
minério; para transportar estes últimos, são necessárias as vias férreas e, por
conseguinte, trilhos, locomotivas, etc., assim como estradas, navios, etc.; são
necessárias também as usinas, entrepostos, etc.. Em uma palavra, é
necessário toda uma série de produtos materiais de naturezas diferentes. Não
é difícil verificar que estes produtos materiais desaparecem no processo da
produção, uns mais rapidamente, outros menos: a alimentação dos tecelões é
consumida, os teares gastam-se, os edifícios envelhecem e exigem
reparações, as locomotivas se estragam, os dormentes e trilhos se deterioram.
Assim, a substituição contínua, graças à produção dos mais variados objetos,
deteriorados ou desaparecidos, é a condição necessária para a reprodução. A
cada momento, a sociedade humana, para continuar o processo da
reprodução, necessita de uma certa quantidade de alimentos, de edifícios, de
produtos da industria, de transportes, etc... Todos estes objetos precisam ser
produzidos para que a sociedade mantenha o seu nível de vida, a começar
pelo trigo e pela cevada, o carvão e o aço, para acabar pelos microscópios ou
o giz empregado nas escolas, pelas encadernações de livros ou pelo papel de
jornal, pois todas estas coisas fazem parte da vida material da sociedade, são
partes materiais integrantes do processo geral de reprodução.

Assim, "a troca de materiais" entre a sociedade e a natureza deve ser


considerada como um processo material. É com efeito um processo material,
porque diz respeito a objetos materiais (objetos de trabalho, meios de trabalho
e produtos que deles resultam — tudo isto são objetos materiais); por outro
lado, o próprio processo de trabalho constitui uma perda de energia fisiológica
(dos nervos, músculos, etc...) que aparece materialmente na ação física dos
homens que trabalham.

"Se estudarmos todo este processo do ponto de vista de


seu resultado, isto é, do produto, então os meios e objetos
do trabalho constituirão os meios de produção e o próprio
trabalho será um trabalho produtivo" (Capital — tomo 1).

O caráter material do trabalho produtivo é também reconhecido,


pudicamente pelos sábios burgueses, quando se dedicam "a uma
especialidade". Assim, o professor Herkner (H. Herkner: Arbeit und
Arbeitsteilung — Trabalho e Divisão do Trabalho) escreve:

"Se quisermos explicar a essência do trabalho, é preciso


tomar em consideração duas espécies de fenômenos: Em
primeiro lugar, o trabalho físico se manifesta por
determinados movimentos exteriores. Assim, a mão
esquerda de um ferreiro segura com tenazes um pedaço
de ferro aquecido ao rubro e o coloca sobre a bigorna,
enquanto que a mão direita dá uma forma ao objeto do
seu trabalho, a golpes de martelo. Pode-se determinar
neste caso o número, o aspecto e a grandeza dos
resultados do trabalho... Pode-se descrever todo o
processo do trabalho", etc...

Herkner chama a isto trabalho "no sentido objetivo". Por outro lado, pode-
se estudar o mesmo processo do ponto de vista dos pensamentos e dos
sentimentos que animam o trabalhador. Isto será o estudo "do trabalho no
sentido subjetivo". Como procuramos as relações entre a sociedade e a
natureza, e como estas relações se exprimem justamente pelo trabalho objetivo
(material), podemos por enquanto deixar de lado a parte "subjetiva" do
processo. Assim, precisamos estudar a produção material de todos os
elementos materiais (componentes, objetos) necessários para o processo da
reprodução.

Entretanto, o fato dos instrumentos de medida, por exemplo, serem objetos


materiais e a sua fabricação ser do domínio da produção material, necessária
para o processo da reprodução, não resulta daí absolutamente, como o
afirma Kautsky (Neue Zeit — 15.° ano, volume 1.°, pag. 233)
eCunow (Produktions-weise und Produktionsverhaltnisse nach Marxscher
Auffassung O modo de produção e as relações de produção
segundo Marx,Neue Zeit, 39.° ano, vol. pag. 408), que as matemáticas e os
estudos matemáticos dependem também da produção, porque são necessárias
para a produção. E entretanto, se todos os homens emudecessem
subitamente, e se não houvesse outras maneiras de comunicar a palavra
desaparecida, a produção cessaria também. Assim, a linguagem é tão
necessária para a reprodução como muitas outras coisas em qualquer
sociedade humana. Mas seria ridículo considerar a linguagem como um
elemento de produção. Não temos que nos preocupar aqui tão pouco de uma
outra questão, que parece "árdua", saber o que é que apareceu em primeiro
lugar: a galinha ou o ovo (a sociedade ou a produção)? Esta pergunta não tem
cabimento. É impossível imaginar a sociedade sem produção, como também
não se pode falar em produção quando não existe a sociedade. O que importa
é isto: será verdade, sim ou não, que a transformação de sistemas seja
determinada pela transformação das relações entre elas e o seu meio? Se
assim é a questão será a seguinte: onde devemos procurar esta transformação
quando se trata da sociedade? Resposta: no trabalho material. Formulada
assim a questão, a maior parte das refutações "profundas" ao materialismo
histórico perde a sua significação, e torna-se claro que é aqui que é preciso
procurar "a causa das causas" da evolução social. Voltaremos a este ponto
mais adiante.

"As trocas materiais" entre o homem e a natureza consistem, como já


vimos, em tirar energia material da natureza exterior, e infundi-la na sociedade;
a perda de energia humana (a produção) provém do fato de retirar-se energia
da natureza, energia que deve ser fornecida à sociedade (distribuição dos
produtos entre os membros da sociedade) e assimilada por ela (consumo); esta
assimilação é a base de uma perda ulterior; é desta maneira que gira a roda da
reprodução. O processo da reprodução, tomado no seu conjunto, contêm
igualmente diversos elementos que constituem um todo, uma unidade, cuja
base continua a ser entretanto o processo da produção. Com efeito, é fácil de
compreender que a sociedade humana toca de mais perto e de maneira mais
direta à natureza exterior, no processo da produção: há um atrito com a
natureza justamente por este lado: esta é a razão porque, no processo da
reprodução, o lado produtivo determina tanto a distribuição quanto o consumo.

O processo da produção social é a adaptação da sociedade humana à


natureza exterior. Mas trata-se de um processo ativo. Quando uma espécie
animal qualquer se adapta a natureza, ela se submete, na realidade, à
influência do meio. Quando se trata da sociedade humana, ela se adapta ao
meio, adaptando-o a si mesma. Ela está submetida à ação da natureza
enquanto objeto, mas, ao mesmo tempo, ela própria transforma a natureza em
objetos para o seu uso. Assim, por exemplo, quando a coloração de certas
espécies de insetos ou pássaros começa a se assemelhar à cor do ambiente
no qual vivem estas espécies, isto não é resultado de esforços feitos por estes
organismos, nem da ação destas espécies sobre a natureza exterior. Este
resultado foi obtido aqui ao preço da perda de uma quantidade imensa de
indivíduos durante milênios e graças à sobrevivência de certos indivíduos mais
aptos e que se cruzaram constantemente. Os fatos se passam diferentemente
na sociedade humana. Ela luta contra a natureza, ela abre sulcos na terra, abre
caminhos através das matas impenetráveis, ela domina as forças da natureza,
fazendo-as servir para seus próprios fins; ela muda o próprio aspecto da terra.
Não é uma adaptação passiva, mas ativa. É nisto sobretudo que a sociedade
humana se distingue das outras sociedades animais.

Os fisiocratas (economistas franceses do século XVIII) já o


compreenderam perfeitamente. Assim, Nicolas Baudeau (Primeira Introdução à
Filosofia Econômica ou Analise dos Estados Policiados, 1767. Coleção dos
economistas e dos reformadores sociais da França, publicada por Dubois,
Paris, p. 2) diz:

"Todos os animais trabalham diariamente na procura do


gozo dos produtos espontâneos da natureza, isto é, dos
alimentos que a terra por si mesma lhes fornece. Certas
espécies mais industriosas juntam e conservam estes
esmos produtos para deles gozarem no futuro... Somente
o homem, destinado a estudar os segredos da natureza e
de sua fecundidade... se propôs suprir a isto procurando,
pelo seu trabalho, produtos mais úteis, em número maior
do que aquele que a superfície da terra inculta e selvagem
lhe poderia fornecer. Esta arte, mãe de tantas outras
artes, pela qual nos dispomos, solicitamos, e por assim
dizer, forçamos a terra a produzir o que nos convém, isto
é, o que é útil ou agradável, é talvez um dos caracteres
mais nobres e mais distintos do homem sobre a terra".

"...O homem, escreve o geógrafo L. Metchnikov (o.c), tem


em comum com todos os organismos a qualidade preciosa
graças à qual ele se adapta ao meio, mas domina todos
os outros pela sua aptidão particular e ainda mais
preciosa de adaptar o meio às suas necessidades".

Estritamente falando, os germens de uma adaptação ativa (pelo trabalho)


existem em certas espécies de animais, por assim dizer, sociáveis (nos
castores, que constroem diques, nas formigas que fazem formigueiros
gigantescos, utilizam os pulgões e certas plantas, nas abelhas, etc...). Por outro
lado, as formas primitivas do trabalho humano eram também semelhantes às
do trabalho instintivo dos animais.

§ 32. Forças produtivas. As forças produtivas como índice da relação


entre a natureza e a sociedade

Assim, o processo de troca de matérias entre a sociedade e a natureza, é


um processo de reprodução social. A sociedade perde neste processo a sua
energia humana de trabalho e recebe em troca uma quantidade determinada
de energia natural que ela assimila (os "objetos naturais"), como se
exprimia Marx. É evidente que o balanço desta operação tem uma importância
decisiva para a evolução da sociedade. O que ela recebe é mais do que ela
perde? E se é assim, de quanto é maior. Está claro que a grandeza do excesso
que ela recebe tem consequências muito importantes.

Vamos supor que uma sociedade qualquer seja obrigada a gastar todo o
seu tempo de trabalho para satisfazer as suas necessidades essenciais. Isto
significa que à medida que os produtos obtidos são consumidos, uma
quantidade igual é fabricada novamente, mas não em número maior. Neste
caso, a sociedade não tem o tempo necessário para criar uma quantidade
suplementar de produtos, para aumentar as suas necessidades, para criar
alguns produtos novos: ela consegue apenas manter o equilíbrio: ela vive para
o seu pão de cada dia; ela come aquilo que produz; come-se justamente o
necessário para poder trabalhar; todo o tempo é empregado na fabricação de
uma quantidade de produtos sempre constante. A sociedade marca passo num
nível miserável de vida. Não é possível aumentar as necessidades, vive-se
segundo os seus meios, e estes são muito restritos.
Admitamos agora que, devido a certas causas, a mesma quantidade de
produtos necessários seja obtida sem que o tempo de trabalho seja empregado
inteiramente; que seja suficiente a metade deste tempo (assim, por exemplo, a
tribo primitiva se transportou para um lugar onde a caça é duas vezes mais
abundante, e a terra duas vezes mais fértil; ou que o método de trabalhar a
terra se modificou, ou que foram inventados novos instrumentos de trabalho,
etc. etc.).

Desta maneira, a sociedade tem livre a metade do seu antigo tempo de


trabalho. Ela pode empregar este tempo ganho em novos ramos de produção:
na fabricação de novos instrumentos, na procura de novas matérias primas,
etc. e em seguida, em certos gêneros de trabalhos intelectuais. Assim, novas
necessidades podem nascer e desenvolver-se e, pela primeira vez, o
aparecimento e desenvolvimento da "cultura" torna-se possível. Se este tempo
ganho for empregado para aperfeiçoar, ao menos em parte, as antigas formas
de trabalho, empregar-se-á no futuro, para satisfazer as antigas necessidades,
não mais a metade do tempo de trabalho, mas um pouco menos (novos
aperfeiçoamentos aparecem no processo de trabalho); no ciclo seguinte da
reprodução, o tempo de trabalho diminuirá ainda mais, etc.; e o tempo livre
assim adquirido será empregado cada vez mais de um lado para a fabricação
de instrumentos, utensílios, de máquinas sempre novas, e de outro lado, para a
criação de novos ramos de produção, destinados a satisfazer a novas
necessidades, e enfim, para o desenvolvimento da cultura a começar pelas
categorias desta cultura que são mais ou menos ligadas ao processo da
produção.

Vamos supor agora que as necessidades que ocupavam anteriormente a


totalidade do tempo de trabalho exigem agora não mais a metade, mas o dobro
do tempo de antes (quando, por exemplo, a terra está cansada); é evidente que
neste caso, se não for possível modificar os métodos de trabalho, ou emigrar, a
sociedade sofrerá forçosamente um recuo; uma parte da sociedade perecerá
infalivelmente. Admitamos ainda que uma sociedade muito desenvolvida, tendo
uma "cultura" avançada, necessidades muito variadas, um grande número de
indústrias "artes e ciências" florescentes encontre obstáculos para satisfazer as
suas necessidades; que, por exemplo, como consequência de certas causas,
ela não seja mais capaz de dirigir o seu aparelho técnico (ele é, por exemplo, o
teatro de uma luta de classe incessante, luta na qual nenhuma classe
consegue vencer a outra, e o processo de produção, com toda a sua técnica
superior, cessa de funcionar); volta-se então aos velhos métodos de trabalho;
seria preciso, para satisfazer as antigas necessidades, perder uma quantidade
enorme de tempo, o que é impossível. A produção diminui, volta às suas
formas antigas; as necessidades se restringem, o nível de vida baixa; a flor
"das ciências e das artes" fenece; a vida espiritual se empobrece e a
sociedade, se o recuo em questão não é provocado por causas passageiras,
caminha para traz, volta "á barbárie".

O que há de notável em todos os casos citados acima? É que o


desenvolvimento da sociedade é determinado pelo rendimento ou
produtividade do trabalho social. Entende-se por produtividade do trabalho, a
relação entre a quantidade de produtos obtidos e a quantidade de trabalho
empregada; ou em outros termos, a produtividade do trabalho é a quantidade
de produtos obtidos em uma unidade de tempo de trabalho; por exemplo, a
quantidade de produtos obtida em um dia ou em uma hora, ou em um ano. Se
a quantidade de produtos obtidos em um dia de trabalho aumenta do dobro,
diz-se que a produtividade do trabalho dobrou; se ela diminui de metade, diz-se
que a produtividade de trabalho diminuiu de 50%.

É fácil de compreender que a produtividade de trabalho social exprime


muito exatamente todo o "balanço" das relações entre a sociedade e a
natureza. A produtividade do trabalho social constitui precisamente o índice
desta relação entre o meio e o sistema, relação que determina a situação do
sistema dentro do meio, e cujas transformações indicam as transformações
inevitáveis de toda a vida interna da sociedade.

Examinando o problema da produtividade social, é preciso contar também


como perda a parte do trabalho humano que foi empregada na confecção de
instrumentos de trabalho necessários. Se, por exemplo, um certo produto era
feito a mão quase sem auxilio de instrumentos, e se em seguida começou-se a
fabricá-lo com a ajuda de máquinas muito complicadas, e se, graças à
aplicação destas máquinas, a quantidade de produtos obtida aumentou do
dobro, isto não quer dizer que a produtividade do trabalho tenha dobrado para
toda a sociedade: não foi contada aqui a despesa de trabalho humano
empregado na fabricação das máquinas (ou antes, a parte deste trabalho que
se aplica ao produto devido ao gasto destas máquinas.). Assim, o aumento da
produção do trabalho será inferior ao dobro.

Detendo-se em detalhes, pode-se refutar a própria concepção da


produtividade do trabalho social na sua aplicação a toda sociedade, como o
faz, por exemplo, P. P. Maslov no seu "Capitalismo". Pode-se dizer que a
concepção da produtividade do trabalho não pode ser aplicada senão a ramos
particulares da produção: foi produzida este ano em um certo número de horas
de trabalho uma certa quantidade de calçados; no ano seguinte, durante o
mesmo tempo, fabricou-se duas vezes mais. Mas, como comparar e adicionar
a produtividade do trabalho no domínio da criação de porcos e no da cultura de
laranjas? Isto não é o mesmo que comparar a musica, a taxa de desconto e a
beterraba açucareira, coisa que Marx ridicularizava tão acerbamente? Pode-se
entretanto responder com dois argumentos: Em primeiro lugar, todos os
produtos úteis e socialmente assimiláveis são comensuráveis enquanto
energias úteis; não exprimimos a cevada, o frumento, a beterraba e a batata
em calorias? Se não conseguimos ainda exprimir assim praticamente outros
objetos, isto nada prova; basta saber que é possível. Por outro lado, podemos
comparar os diversos objetos complexos, por meios indiretos e complicados.
Não é possível explicá-lo aqui em detalhe. Citemos somente alguns casos mais
simples. Se, por exemplo, fabricou-se em certo número de horas de trabalho,
no decurso de um ano, mil pares de calçados, dois mil maços de cigarros e
vinte máquinas, e em outro ano, durante o mesmo tempo de trabalho, mil pares
de meias, mil novecentos e noventa e nove maços de cigarros, vinte e uma
máquinas e cem castiçais, podemos dizer, sem errar, que a produtividade do
trabalho aumentou, em geral. Pode-se opor ainda um outro argumento, que
consiste em dizer que não se produzem somente objetos de uso corrente, mas
também instrumentos de produção. Com efeito, do ponto de vista prático, isto
constitui uma grande dificuldade: entretanto, por métodos bastantes
complicados, podemos igualmente levar em conta este fato.

Assim, as relações entre a natureza e a sociedade se exprimem pela


relação entre a quantidade de energia útil criada de um lado, e a despesa de
trabalho social de outro, isto é, pela produtividade do trabalho social. Mas, a
despesa de trabalho social é, como já vimos, composta de duas partes: o
trabalho incluído nos meios de produção e o trabalho "viva", isto é, a despesa
de uma força viva de trabalho. Se nós examinarmos o grau de produtividade do
trabalho do ponto de vista das partes materiais que o compõem,
encontraremos três grandezas: 1ª a massa dos produtos fabricados; 2ª a
massa dos meios de produção; 3ª a massa das forças de trabalho, isto é, dos
operários vivos. Todas estas grandezas dependem umas das outras. Com
efeito, é evidente que se nós conhecemos a qualidade dos meios de trabalho e
dos operários, sabemos também quanto eles poderão produzir em determinado
tempo; duas grandezas determinam a terceira: o produto. Estas duas
grandezas tomadas em conjunto formam o que nós chamamos as forças
produtivas materiais da sociedade. Se soubermos quais os meios de produção
de que a sociedade dispõe, qual é a sua quantidade, quantos operários tem
essa sociedade, saberemos desde logo qual é a produtividade do trabalho
social, qual é o grau de dominação desta sociedade sobre a natureza, em que
medida esta sociedade domina a natureza, etc... Em outros termos, temos nos
meios de produção e nas forças de trabalho um índice preciso do grau de
desenvolvimento social.
Mas podemos estudar a questão de uma maneira um pouco mais
profunda. Podemos dizer que os meios de produção determinam por si
mesmos as forças de trabalho. Se, por exemplo, uma maquina de composição
entrou no sistema de trabalho social, operários especialistas aparecem
também. Os elementos que agem no processo do trabalho não constituem, tão
pouco, um aglomerado desordenado, mas um sistema onde cada objeto e cada
indivíduo se acham, por assim dizer, em seu lugar: uma coisa está adaptada a
outra. Por conseguinte, se temos os meios de produção, deduz-se daí que
temos também operários apropriados. Em seguida, entre os próprios meios de
produção, podem-se distinguir dois grupos importantes: as matérias primas e
os instrumentos de trabalho. É fácil observar que são justamente os
instrumentos de trabalho que constituem a parte ativa; é com eles que o
homem trabalha a matéria prima. Mas, se nos disserem que em determinada
sociedade existe um certo instrumento, pode-se daí concluir que existe também
a matéria prima correspondente (examinamos um caso de uma marcha normal
da reprodução). Deste modo, podemos dizer com absoluta certeza: o índice
material preciso das relações entre a sociedade e a natureza é dado pelo
sistema dos meios sociais de trabalho, isto é, pela técnica de uma determinada
sociedade. Nesta técnica exprimem-se as forças produtivas materiais da
sociedade e a produtividade do trabalho social. Assim como a estrutura dos
fragmentos de ossos tem grande importância para o estudo da organização
das espécies animais desaparecidas, também os fragmentos dos meios de
trabalho têm uma grande importância para o estudo das formações sociais e
econômicas desaparecidas (isto é, das sociedades de tipos diferentes. N. B.).

"As épocas econômicas não se distinguem pelo que é


produzido, mas pelo modo de produção e pelos meios de
trabalho empregado". (K. Marx: Capital, tomo I).

Pode-se ainda procurar resolver estes problemas de outra maneira.


Sabemos que os animais "se adaptam" à natureza. Em que consiste, antes de
tudo, esta adaptação? Na modificação dos diferentes órgãos destes animais:
as pernas, os maxilares, as barbatanas, etc..

É uma adaptação passiva, biológica, enquanto que a sociedade humana


se adapta ativamente, não biologicamente, mas tecnicamente.

"Os instrumentos de trabalho constituem o objeto ou o


conjunto de objetos que um operário coloca entre se e o
objeto de seu trabalho e que lhe servem para exercer a
sua ação sobre este objeto... Assim, o objeto dado pela
própria natureza torna-se um órgão de sua ação, órgão
que ajunta aos membros do seu corpo, aumentando
assim, mau grado a Bíblia, as dimensões naturais deste
ultimo". (Capital, t. 1).

É assim que a sociedade humana cria pela sua técnica um sistema


artificial de órgãos que exprimem a adaptação direta e ativa da sociedade, à
natureza. (Notemos, entre parênteses, que a adaptação física direta do homem
à natureza torna-se assim supérflua: comparado a um gorila, o homem é um
ser fraco; na sua luta contra a natureza, ele coloca diante de si não os
maxilares, mas um sistema de máquinas). Examinando o problema deste ponto
de vista, chegamos à mesma conclusão: o sistema técnico da sociedade é o
índice material preciso da relação entrega sociedade e a natureza.

Em outro ponto do Capital, diz Marx:

"Darwin despertou o interesse pela história da tecnologia


natural, isto é, pela história do desenvolvimento dos
órgãos, das plantas e dos animais, órgãos que
desempenham o papel de meios de produção para manter
a sua existência. A história do desenvolvimento dos
órgãos de produção do homem social, destas bases
materiais de toda organização social, não merecerá
também atenção A tecnologia revela a relação ativa entre
o homem e a natureza este processo direto de produção
pelo qual ele mantém a sua existência; ao mesmo tempo,
ela revela também o modo pelo qual se formam as
relações sociais e as concepções intelectual que daí
resultam...

"O emprego e a criação de meios de trabalho, se bem que


eles sejam comuns em sua forma embrionária a certas
espécies animais, constituem especificamente os traços
característico do processo do trabalho humano, e esta é a
razão por que Franklin definiu o homem como "a
toolmaking animal", isto é, como "um animal que fabrica
instrumentos". (Capital t. I).

É curioso verificar que os instrumentos primitivos foram, com efeito,


criados "à imagem" dos membros do corpo humano.

"Utilizando os objetos que se acham diretamente debaixo


da mão, dá-se aos instrumentos primitivos a forma de
membros humanos alongados, reforçados e mais
precisos." (Ernst Kapp: Grundlinieneiner Philosophie der
Technik — Esboço de uma Filosofia da Técnica —
Braunschweig 1877, p. 42). "Assim como o instrumento
contundente tem o seu, modelo no punho, também os
instrumentos cortantes derivam das unhas e dos dentes.
O martelo, com o seu lado cortante se transforma em
machado; o indicador levantado tendo uma unha aguda se
transforma na sua imagem técnica em verruma; uma fileira
de dentes em lima e serra, enquanto que a mão que
aperta e os dois maxilares se transformam em pinças e
tenazes. O martelo, o machado, a faca, a tesoura, o
virabrequim, a serra, a pinça, são instrumentos primitivos".
(Ibid. p. 43-44). Um dedo recurvado torna-se um gancho, a
concha da mão um recipiente; encontramos certos traços
da mão, do punho, dos dedos, etc, na espada, na lança,
no leme, na pá, no ancinho, etc..." (Ibid pag. 45).

É fácil ver como se processa a passagem dos instrumentos simples aos


mais complexos na vida primitiva:

"Um pau evolui de varias maneira: para cair pesadamente


sobre a cabeça do inimigo ele se transforma em tacape;
para cavar a terra e trabalhá-la, em pá; para atravessar a
caça, em dardo, etc..." (G. Lilienfeld: Wirtschaft und
Technik — A Economia e a Técnica em Grundriss der
Socialoekônomik — Esboço de Economia Social, 2ª parte,
pag. 228).

As relações existentes entre a técnica e a pretensa "riqueza da cultura"


saltam aos olhos. Basta comparar, por exemplo, a China moderna e o Japão.
Na China, como consequência de toda uma série de condições particulares, a
produtividade trabalho e da técnica social evolui muito lentamente, e a China
apresenta no momento o tipo de uma cultura relativamente estacionaria. São
os impulsos de uma nova técnica capitalista que exercem aqui uma influência
revolucionaria. Pelo contrario, o Japão deu nestas ultimas dezenas de anos um
passo gigantesco para a frente no domínio do desenvolvimento técnico; é
assim, que a cultura japonesa fez também progressos extremamente rápidos:
basta lembrar a ciência japonesa.

Na primeira metade da idade média que, do ponto de vista da cultura


geral, era muito inferior à sociedade antiga, a técnica deu um grande passo
para traz relativamente à antiguidade e muitos processos e invenções
mecânicas da antiguidade foram completamente esquecidos...
"á exceção da (técnica da guerra e da metalurgia do ferro
ligada a esta ultima". (V. K. Agafonov: A Técnica moderna.
O balanço da Ciência, tomo 3.°, pag. 16).

Está claro que não se pôde criar uma "riqueza intelectual" sobre uma tal
base técnica: a sociedade dispunha de muita pouca seiva para viver "uma vida
intensa". O progresso feito pela Europa corresponde ao desenvolvimento da
técnica capitalista (entre 1750 e 1850 a técnica sofreu uma verdadeira
revolução; inventou-se a maquina a vapor, os transportes a vapor, utilizou-se o
carvão, trabalhou-se o ferro por meio de processos mecânicos, etc...). Em
seguida aplicou-se a eletricidade, a técnica das turbinas, os motores Diesel, os
automóveis, a navegação aérea. Os meios técnicos da sociedade e as suas
forças produtivas atingem um nível sem precedentes. Não é de admirar que a
sociedade humana tenha podido nestas condições desenvolver "uma vida
espiritual" muito complexa e muito variada. Com efeito, se considerarmos o
florescimento das antigas culturas com a sua vida espiritual relativamente
complexa, veremos imediatamente como era atrasada a sua técnica em
comparação com a técnica capitalista da Europa moderna e da America. A
principal aplicação dos instrumentos mais ou menos complicados se limitava
aos trabalhos de construção, às aduções de água e às minas. A própria
obtenção da produção máxima era baseada, não sobre a perfeição dos
instrumentos, mas pela aplicação de uma massa colossal de forças vivas de
trabalho.

"Herodoto conta como 100.000 homens arrastaram pedras


durante três meses para a construção pirâmide de Keops
(2.800 A. C.) e como foram necessários 10 anos de
trabalhos de aterramento preparatórios para construir uma
estrada desde as pedreiras até ao Nilo". Agafonov, o. c.
pag. 5).

Vê-se pela definição de maquina que dá Vitruvio, o engenheiro de Roma


antiga, a que ponto a técnica era então relativamente pobre:

"a maquina, diz ele, é uma construção em madeira que


presta grande serviço para levantar as cargas". (Id. pag.
3). Estas "máquinas em madeira serviam sobretudo para
levantar cargas, exigindo aliás o emprego de uma
quantidade considerável de forças humanas ou animais".

§ 33. O equilíbrio entre a natureza e a sociedade, suas rupturas e seus


restabelecimentos
Se nós examinarmos agora todo o processo em seu conjunto, veremos
que o processo de reprodução é um processo de ruptura e de restabelecimento
constante entre a sociedade e a natureza.

Marx distingue a reprodução simples e a reprodução crescente.

Em que consiste a reprodução simples? Como sabemos, no processo de


produção, os meios de produção são consumidos (trabalha-se a matéria prima,
empregam-se diferentes materiais, tais como óleos lubrificantes, trapos, etc...;
as próprias máquinas, as edificações onde se trabalha, os instrumentos de
trabalho e as suas peças se desgastam); por outro lado despende-se também
a força de trabalho (quando os homens trabalham, eles se desgastam também,
a sua força de trabalho é consumida e certas despesas são necessárias para
reconstituir esta força). Para que o processo da produção possa continuar, é
preciso que no decurso desse processo, e por si mesmo, seja reproduzido
aquilo que foi gasto por ele. Assim, por exemplo, emprega-se na indústria têxtil,
como matéria prima, o algodão; os teares se gastam. Para que a produção
possa continuar, é preciso que, ao mesmo tempo, se colha algodão e se
construam teares. — De um lado, o algodão desaparece para se transformar
em tecido; de outro lado o tecido desaparece (ele é utilizado pelos operários,
etc.) o algodão reaparece. De um lado, os teares desaparecem e reaparecem
de outro. Em outros termos, os elementos necessários para a produção, uma
vez gastos, devem ser reconstituídos. É preciso que constantemente se possa
substituir tudo aquilo que é necessário para produção. Se esta substituição é
realizada na mesma proporção em que foi gasta, temos uma reprodução
simples. Isto corresponde a uma situação em que a produtividade do trabalho
social é invariável; as forças produtivas não mudam, a sociedade não caminha
nem para adiante, nem para trás. Não é difícil verificar que estamos aqui em
presença de um equilíbrio estável entre a sociedade e a natureza. Aqui, a
ruptura de equilíbrio (os produtos desaparecem), e o seu restabelecimento (os
produtos reaparecem) se renova constantemente, mas este restabelecimento é
sempre feito na mesma base: produz-se justamente tanto quanto foi gasto;
gasta-se novamente outro tanto e torna-se a produzir a mesma quantidade,
etc... A reprodução se faz sempre com o mesmo ritmo.

As coisas se passam diferentemente quando as forças produtivas


aumentam. Então, como vimos acima uma parte do trabalho social se libera e é
empregada em alargar a produção social (criam-se novos ramos desenvolvem-
se os antigos). Isto significa que não somente os elementos de produção que
existiam anteriormente são substituídos, mas que outros elementos novos são
introduzidos no ciclo da produção. A produção não segue aqui o mesmo
caminho, o mesmo ciclo, mas ela se alarga. Neste caso temos a reprodução
crescente. É fácil verificar que o equilíbrio aqui se restabelece de maneira
diferente: gasta-se uma certa quantidade, mas produz-se mais; o gasto
aumenta, a produção aumenta mais ainda. O equilíbrio se restabelece cada
vez sobre uma nova base, mais larga. Trata-se de um equilíbrio movei com um
resultado positivo.

Enfim, apresenta-se um terceiro caso; o da diminuição das forças


produtivas. Aqui, o processo de reprodução caminha para traz: a reprodução
torna-se cada vez menor. Consumiu-se uma certa quantidade, produziu-se
menos; consome-se menos, produz-se ainda menos.

Aqui, a reprodução não segue o mesmo movimento circular. Ela não se


alarga, mas ao contrario, o circulo se torna cada vez mais estreito; a base vital
da sociedade se retrai cada vez mais; o equilíbrio entre a sociedade e a
natureza se restabelece sobre uma nova base, mas esta diminui
constantemente.

Ao mesmo tempo, a própria sociedade não se adapta a esta nova base


restringida, senão ao preço de uma destruição parcial de si mesma. Temos
aqui um equilíbrio móvel negativo. A reprodução neste caso pode ser
denominada reprodução negativa crescente, ou então, sub-produção
crescente.

Examinamos esta questão por todas as suas faces, e em toda parte


verificamos o mesmo fato. Tudo se reduz, por conseguinte, ao caráter do
equilíbrio entre a sociedade e a natureza. As forças produtivas servindo de
índice preciso do equilíbrio, podemos julgar, segundo elas, do caráter do
equilíbrio. É evidente que o mesmo pode ser dito sobre a técnica da sociedade.

§ 34. As forças produtivas como ponto de partida para a analise


sociológica

De tudo o que precede resulta necessariamente a seguinte regra cientifica:

"Para estudar a sociedade, as condições de seu


desenvolvimento, suas formas, seu conteúdo, etc, é
preciso começar por uma analise das forças produtivas,
isto é, da base técnica da sociedade".

Examinemos com efeito alguns argumentos que foram apresentados ou


que podem ser apresentados contra este ponto de vista.
Vamos tomar em primeiro lugar as refutações dos sábios que admitem de
uma maneira geral a concepção materialista. Assim, G. Cunow diz(Neue
Zeit, 39° ano, vol. 2.°, pag. 350) que a técnica

"está ligada muito intimamente às condições naturais. A


presença de certas matérias primas, por exemplo, decide
se em princípio certas fôrmas da técnica podem ser
criadas e em que condições elas se desenvolverão. Nos
lugares, por exemplo, onde certas espécies de arvores, de
minérios, de fibras ou de conchas não existem, os
indígenas não podem aprender por se mesmos a trabalhar
estes materiais e fazer com eles instrumentos e armas".

Nós mesmos citamos, no princípio deste capitulo, alguns fatos que


mostram a influência das condições atuais. Por que não começar por eles? Por
que motivo o ponto de partida metodológico não será precisamente a natureza.
Ela influi incontestavelmente sobre a técnica mais o menos do modo a que se
refere Cunow. Por outro lado. todo mundo compreende que a natureza existiu
antes da sociedade. Não estaremos nós pecando contra "verdadeiro"
materialismo, quando tomamos como base para a analise o aparelho técnico e
material da sociedade humana?

Basta, porém, examinar este problema mais de perto para ver a que ponto
são pouco convincentes as provas apresentadas por Cunow. Sem minas de
carvão, evidentemente, não será possível extrair a hulha do solo. Mas,
infelizmente não se extrairá muito mais, se utilizarmos o dedo para cavar a
terra. E sobretudo será difícil procurar, pois os homens desconhecem até a sua
utilidade. As matérias primas não se encontram, como o pretende Cunow, na
natureza. As matérias primas, segundo Marx, são um produto do trabalho e
não se encontram no seio da natureza, como também não se encontra um
quadro de Rafael ou o colete do sr. Cunow. Cunow confunde as matérias
primas com o objeto de trabalho "possível"(3).Cunow esquece completamente
que uma técnica apropriada é necessária para que as arvores, o minério, as
fibras, etc, possam desempenhar o papel de matérias primas. O carvão não se
torna matéria prima senão quando a técnica se desenvolve ao ponto de
penetrar nas profundezas do subsolo e o extrair do reino das trevas para o
trazer à luz do dia.

A influência da natureza no próprio fornecimento de materiais, etc., é o


produto do desenvolvimento da técnica. Com efeito, enquanto a técnica não
aproximou s seus tentáculos do minério de ferro, este ultimo podia dormir o seu
sono de morte que sua influência sobre o homem era igual a zero.
A sociedade humana trabalha na natureza e sobre a natureza considerada
como seu objeto. Sobre isto não há duvida alguma. Mas os elementos que
existem na natureza são nela encontrados de maneira mais ou menos
constante; por este motivo eles não podem explicar as transformações. O que
varia é a técnica social que, certamente, se adapta a aquilo que existe na
natureza (ao nada não podemos adaptar nada, e não basta dispor de um
buraco para poder fundir um canhão). Se a técnica constitui a quantidade
variável e se é a transformação da técnica que provoca as variações de
relações entre a sociedade e a natureza, está claro que é nela que se deve
encontrar o ponto de partida da analise das transformações sociais(4).

L. Metchnikov exprime-se desta maneira absurda:

"Estou longe de me associar à teoria do fatalismo


geográfico, à qual se reprocha frequentemente o fato de
ela pregar o princípio da influência do meio (isto é, da
natureza, N. B.) que determina tudo na natureza. Na
minha opinião, devem-se procurar as transformações não
no próprio meio, mas nas relações que se estabelecem
entre o meio e as aptidões naturais dos seus habitantes
para a cooperação e para o trabalho social solidário.
Assim, o valor histórico de um determinado meio
geográfico, admitindo mesmo que do ponto a vista físico,
permanece imutável em qualquer circunstancia, pode e
deve variar segundo o grau de aptidão de seus habitantes
para o trabalho solidário voluntário". (p. 27-28).

Isto não impede, aliás, o mesmo Metchnikov de cair em outro excesso e de


superestimar "o fator geográfico". (Ver o relatório de Plekanov em "Critica de
nossas criticas"). O caráter passivo da influência da natureza é reconhecido
atualmente por quase todos os geógrafos, bem que a multidão dos sábios
burgueses não entenda absolutamente nada do que seja materialismo
histórico. Assim, Mac Farlane (John Mac Farlane; "Economic Geography" —
Geografia Econômica —, Londres, Isaac Pittman & Son), escreve a propósito
das "condições naturais da atividade econômica" (cap. 1.°):

"Estas condições físicas... não determinam em um sentido


absoluto o caráter da vida econômica, mas exercem sobre
ela uma influência que, sem duvida, é mais notável nos
períodos primitivos da história humana, mas que não é
menos real nas civilizações adiantadas, quando o homem
já aprendeu a se adaptar ao seu meio (ambiente) e a
receber dele uma quantidade crescente de bens".
Sabe-se o papel que desempenha o carvão e a que ponto a industria dele
depende. Entretanto, com as transformações introduzidas na técnica da
extração e da transformação da turfa, a importância da hulha pode diminuir
consideravelmente, e este fato acarreta um reagrupamento completo dos
centros industriais. Com a eletrificação, é o alumínio, que anteriormente
desempenhava um papel insignificante, que adquire uma importância
particular. A água, como fonte de força motriz, teve outrora uma importância
muito grande (roda d’água), em seguida ela a perdeu, e atualmente volta a
recuperá-la (as turbinas, a "hulha branca"). As relações de espaço na natureza
permanecem as mesmas, mas as vias de comunicação as encurtam para o
homem; com o desenvolvimento da navegação aérea, o quadro mudará ainda
mais.

Esta influência dos meios de transporte (grandezas muito variáveis em


função da técnica) tem uma importância decisiva, mesmo para a repartição
geográfica da industria. Encontram-se considerações muito interessantes, a
este respeito, na teoria de A. Werber sobre "a repartição dos centros
industriais". (Ver A. Weber: Industrielle Standortslehre e também Ueber die
Standorte der Industrien, 1ª parte: Reine Theorie desStandortes, 1909).

Encontramos a expressão poética da dominação crescente do homem


sobre a natureza, de sua força ativa, no Prometeu de Goethe:

Zeus,
cobre
o teu
céu
Com
as
nuven
s
E,
semel
hante
a uma
crianç
a
Que
corta
as
cabeç
as
dos
cardo
s,
Divert
e-te
com
os
carval
hos e
os
cume
s das
monta
nhas;
E,
entret
anto,
tu és
obriga
do
A me
deixar
a
minha
terra
E a
minha
choup
ana,
que
não
constr
uíste,
E a
minha
lareira
,
Da
qual
tu
inveja
s
O
calor.

Assim, está claro que as diferenças nas condições naturais podem explicar
as diferenças que existem na evolução dos diferentes povos, mas elas não
podem explicar a evolução da mesma sociedade. As diferenças naturais
tornam-se em seguida, depois da união destes povos em uma só sociedade, a
base da divisão social do trabalho.

"Não é a fecundidade absoluta do solo, mas a sua


diferenciação, a diversidade de seus produtos naturais,
que formam a base da divisão social do trabalho e que
obrigam o homem, como consequência da variedade das
condições naturais que o envolvem, a variar também as
suas próprias necessidades, suas aptidões e os meios de
produção. (Marx: Capital, tomo 1).

Um outro grupo de argumentos invocados contra a concepção da evolução


social exposta acima, é constituído pelos argumentos que indicam a
importância essencial e decisiva do acréscimo da população. A tendência à
multiplicação é infalivelmente inerente à natureza humana. Ela existiu em nós
antes da historia humana. É o único processo natural, animal, biológico que
tem existido antes da formação da economia social. Não estará este processo
na base de toda evolução? A densidade crescente da população não
determinará a marcha da evolução social?

Mas não é difícil verificar que a lei funciona aqui em sentido contrario: é do
grau de desenvolvimento das forças produtivas, ou o que vem a dar ao mesmo,
é do grau do desenvolvimento da técnica que depende a própria possibilidade
do acréscimo da população. O aumento do número de homens (aumento mais
ou menos estável) não é outra coisa senão um alargamento, um acréscimo do
sistema social. E este acréscimo não é possível senão quando as relações
entre a sociedade e a natureza variam de maneira favorável. Um maior número
de homens não pode existir sem que a base vital da sociedade se alargue. Ao
contrario, o retraimento desta base vital deve trazer fatalmente como
consequência uma diminuição do número de homens. Como se produzirá este
fato, isso é uma outra questão: será pela baixa da natalidade, ou pela
regulamentação da mesma, pela morte, pelo aumento da mortalidade como
consequência de moléstias, pelo desgaste prematuro dos organismos e uma
diminuição da longevidade? Pouco importa: esta relação essencial entre a base
vital da sociedade e a sua grandeza encontrará a sua expressão de uma ou de
outra maneira.
Além disto, é um erro representar o aumento da população como um
processo de multiplicação biológica e "natural". Este processo depende das
condições sociais as mais variadas: da divisão em classes, da separação
destas classes e, por conseguinte, da forma da economia social.

A forma da sociedade, a sua estrutura, dependem por sua vez, como o


provaremos adiante, do nível de desenvolvimento da técnica e o movimento da
população, isto é, a variação de sua densidade, não é tão simples. Somente os
ingênuos podem pensar que o problema da multiplicação é tão simples e
primitivo para os homens como para os animais. Assim, por exemplo, para que
a população possa aumentar, é preciso sempre, na sociedade humana, que as
forças produtivas tenham aumentado. Sem isto, como já vimos, o excedente da
população nada teria para comer. Mas, por outro lado, não é sempre para
todas as classes que o aumento dos bens materiais provoca uma multiplicação
reforçada: enquanto uma família proletária pode diminuir artificialmente o
número de seus filhos, por causa das dificuldades da vida, a mulher chique
foge da maternidade para não perder a sua elegância e um camponês francês
não quer ter mais de dois filhos para não dividir muito a herança. E é assim que
o movimento das populações dependem de toda uma série de condições
especiais, da forma da sociedade e da situação que as classes e grupos
particulares nela ocupam.

Por conseguinte, no que se refere à população, podemos dizer: é


indiscutível que o aumento da população pressupõe o desenvolvimento das
forças produtivas da sociedade; em segundo lugar, cada época, cada forma de
sociedade, a situação diferente das classes, determinam leis particulares para
os movimentos da população.

"A lei abstrata (universal, independente de um


determinada forma, N. B.) que rege a população, não
existe senão para as plantas e os animais, senão
enquanto o homem não se intromete historicamente neste
domínio..." "cada meio de produção histórica e particular
tem suas leis que determinam o movimento de população
particular e tendo uma significação histórica". (Karl
Marx:Capital t. 1).

Os meios históricos de produção, isto é, as formas da sociedade, são


determinados pelo desenvolvimento das forças produtivas, isto é, pelo
desenvolvimento da técnica. Assim, não são as leis do movimento da
população que constituem o fator decisivo, mas é o desenvolvimento das
forças produtivas e as leis que regem este desenvolvimento (ou diminuição),
que determinam o movimento da população.
A burguesia tentou, mais de uma vez, colocar no lugar das leis sociais
outras "leis" provando que a miséria das massas, estabelecida por Deus, é
inevitável e que esta situação é independente do regime social. É sobre isto
que se baseia a superestimação da "geografia" na doutrina do meio, quando se
forçam os fenômenos da natureza para explicar os acontecimentos históricos
(assim Ernst Miller "provava" que a marcha da história dependia do
magnetismo terrestre; Jevons explicava as crises industriais pelas manchas do
sol, etc). Entre estas tentativas podemos colocar também a do pastor e
economista inglês Robert Malthus, que via a fonte da miséria da classe
operária na tendência pecaminosa dos homens em se multiplicarem. A sua "lei
abstrata da população" consiste no seguinte: a população aumenta mais
depressa do que os meios de subsistência (os meios de subsistência em
progressão aritmética, isto é, como 1, 2, 3, 4, 5, etc.; a população em
progressão geométrica, isto é, como 2, 4, 8, 16, etc.). As concepções dos
sábios burgueses modernos começam a modificar-se radicalmente e a doutrina
de Malthus torna-se obsoleta: a causa disto é que em certos países (na França
e em outros) a natalidade diminui a tal ponto que começa a faltar soldados para
a burguesia, a carne para o canhão, e a burguesia faz todos os esforços para
incitar a classe operária e camponesa a procriar o mais possível.

Já os fisiocratas percebiam que o acréscimo da população dependia do


desenvolvimento das forças produtivas. Assim, Le Mercier de la Riviére, em
"l'Ordre naturele et essenciel des societés politiques", diz em substancia:

"Se os homens se alimentassem somente dos produtos


que a terra lhes fornece sem nenhum trabalho
preparatório, seria preciso dispor de uma enorme
quantidade de terra para aprovisionar um pequeno
número de homens; entretanto, sabemos por nossa
própria experiência que, graças à ordem física de nossa
constituição, temos tendência a nos multiplicar
consideravelmente. Esta qualidade natural seria
contraditória e marcaria uma desordem na natureza, se a
ordem natural da reprodução dos meios de existência não
lhe tivesse permitido a multiplicação na mesma escala e
nós mesmos nos multiplicássemos".

E diz ainda:

"não temo que venham com argumentos, citando certas


populações da América, para me provar que a ordem
natural dos nascimentos não torna necessária a cultura.
Eu sei que existem povos que não cultivam ou quase não
cultivam a terra, e apesar do solo e do clima lhes serem
igualmente favoráveis eles matam as crianças,
estrangulam os velhos, empregam certos medicamentos
para impedir o processo natural de nascimentos." (E.
Grosse: "Formen der Familie und Formen der
menschlichen Wirtschaft". — As formas da família e da
economia humana —, 1896).

E diz ainda, entre outras coisas:

"Os Boschimanos e os Australianos têm o habito de


usarem a "cinta da fome" por razões muito reais. Os
habitantes da Terra do Fogo sofrem constantemente a
fome. Nas histórias contadas pelos Esquimós, a fome
desempenha também um papel muito importante. É
evidente que uma população limitada por uma cultura tão
insuficiente, não chegará nunca a formar uma população
numerosa... É por esta razão que os caçadores primitivos
desvelam-se afim de que o seu número seja proporcional
aos seus meios de subsistência. Assim, na Austrália, o
infanticídio é muito comum. A grande mortalidade infantil
faz o resto".

Sabemos que existem, em algumas populações da Polinésia, leis segundo


as quais cada família só tem licença para ter um número restrito de filhos e
onde se paga uma multa se este número ultrapassar (P. Mombert: "Wirtschaft
und Bevoelkerung" — A economia e a População, — em "Grundriss der
Socialoekonomie" — Esquema de economia social, — 2.ª parte). Mombert cita
os fatos seguintes: depois de ter descrito o desenvolvimento econômico na
época carlovingiana (passagem ao sistema rotativo trienal), diz:

"como consequência do grande desenvolvimento da


produção de produtos alimentares, verificamos nessa
época um aumento extraordinário na população da
Alemanha".

No século XIX, a Europa fez um progresso imenso no domínio da


produção agrícola.

"E ao mesmo tempo a população na Europa começou a


crescer em tais proporções, que nunca no passado se
observou tamanho aumento". (Ib.).
Em seguida, começa um período em que a produção dos meios de
existência diminui. Que resulta daí? A emigração para a America. Na Rússia,
observam-se as mesmas leis. (Ver a este respeito os trabalhos do camarada
M. N. Pokrovsky).

Enfim, é preciso indicar ainda uma série de argumentos dirigidos contra a


teoria do materialismo histórico e especialmente as teorias conhecidas sob o
nome "teoria das raças". Vejamos em que consistem: A sociedade é composta
de homens, mas os homens entraram na história, nem todos iguais, mas
diferentes, tendo crânios, cérebros, pele, cabelos, estrutura física diferentes e
por conseguinte tendo aptidões diferentes. É compreensível, portanto, que
sejam muitos os que entram na arena da história e poucos os eleitos. Certos
povos se revelam "históricos", porque eles assim o são.

Seu nome aparece na boca de todo o mundo; todos os professores das


faculdades deles se ocupam; outros, "raças inferiores" por sua própria
natureza, são incapazes e nunca puderam fazer nada de extraordinário; os
representam como que um zero histórico. Estes povos não merecem o nome
de "povos históricos"; eles são quando muito o adubo da história, como, por
exemplo os povos coloniais de certos países "selvagens" que preparam o solo
para a civilização burguesa européia. É nesta diferença de raças que jaz a
causa do desenvolvimento diferente da sociedade. A raça é ponto de partida
para o estudo da história. Tal é, em seus traços gerais, a teoria das raças.

A respeito desta teoria, G. Plekanov escreveu com razão o seguinte:

"Quando se propõe a questão de saber qual é a causa de


um acontecimento histórico dado, acontece
frequentemente que homens sérios, que não são
absolutamente tolos, se contentam com resposta que
nada resolvem e que não apresentam senão um repetição
da pergunta em outros termos. Admitam que se interrogue
um "sábio" sobre uma das perguntas acima. Perguntai por
que motivo certos povos se desenvolvem com tão
espantosa lentidão, enquanto que outros seguem
rapidamente o caminho da civilização O "sábio" responde,
sem hesitar, que isto se explicar pelas qualidades da raça.
É compreensível a significação de uma tal resposta?
Certos povos se desenvolvem lentamente, porque a
qualidade de sua raça é tal que eles não podem se
desenvolver senão lentamente outros, pelo contrario,
tornam-se rapidamente civilizados, porque a qualidade de
sua raça consiste no fato deles se poderem desenvolver
rapidamente. (Critica nossas criticas).

A teoria das raças é em primeiro lugar contrária aos fatos. Considera-se a


raça negra como uma raça "inferior", incapaz de se desenvolver por sua própria
natureza. Entretanto, está provado que os antigos representantes desta raça
negra, os Kuchitas, haviam criado uma civilização muito elevada nas Índias
(antes hindus) e no Egito. A raça amarela, que não goza tão pouco de grande
favor, criou entre os chineses uma cultura que era infinitamente mais elevada
que a dos seus contemporâneos brancos; os brancos não eram então senão
meninos em relação a eles. Hoje em dia sabemos perfeitamente que a base
dos conhecimentos dos antigos gregos lhes foi transmitida pelos Assirios-
Babilonicos e Egípcios. Bastam estes fatos para mostrar que as explicações
tiradas dos argumentos das raças de nada servem. Entretanto, podem dizer-
nos: quem sabe se tendes razão, mas pode-se afirmar que um negro médio é
igual, por suas qualidades, a um europeu médio? Não se pode responder a
esta pergunta por uma saída virtuosa como o fazem certos professores liberais:
todos.os homens são iguais; segundo Kant, a personalidade humana constitui
um fim por si mesma; Jesus Cristo ensinava que não havia nem helênicos, nem
judeus, etc. (ver por exemplo, em Khvostov: "É provável que a verdade esteja
do lado dos defensores da igualdade dos homens... "A teoria do processo
histórico"). Pois, tender para a igualdade entre os homens, não significa
reconhecer a igualdade de suas qualidades, e aliás, tendemos sempre para
aquilo que ainda não existe, pois, e outro modo, arrombaríamos portas abertas.
Não procuramos no momento saber para o que devemos tender. O que nos
interessa é saber se existe uma diferença entre o nível de cultura dos brancos
e dos negros em geral. Certamente, esta diferença existe. Atualmente os
"brancos" são superiores aos outros. Mas isto o que prova? Prova que,
atualmente, as raças mudaram de posição. E esta conclusão contradiz a teoria
das raças. Com efeito, ela reduz tudo às qualidades de raças, à sua "natureza
eterna". Se assim fosse, esta "natureza" se teria feito sentir em todos os
períodos da história. O que podemos concluir daí? Que a própria "natureza"
muda constantemente com relação às condições de existência de uma
determinada "raça". Estas condições são determinadas pelas relações entre a
sociedade e a natureza, isto é, pelo estado das forças produtivas. Assim, a
teoria das raças não explica de nenhum modo as condições de evolução social.
Aparece também claramente aqui que é preciso começar a sua analise pelo
estudo do movimento das forças produtivas.

A respeito da concepção de raça e da distinção entre as, raças, uma


grande variedade de opiniões divide os sábios Topinard (citado por Metchnikov,
pag. 40) observa com razão que o termo "raça" é utilizado para fins muito
secundários: assim, por exemplo, as raças indo-germânica, alemã, eslava,
latina e inglesa, bem que estes termos não sirvam senão para definir
aglomerações de elementos antropológicos os mais variados. Na Ásia os
povos foram misturados tantas vezes e de maneira tão radical, que a raça mais
característica para este continente se encontra talvez em algum lugar do outro
lado do Pacifico ou perto do circulo Polar. Na África, o mesmo processo se
repetiu varias vezes. Na America, onde se passou um fato semelhante já no
período histórico, não se encontra mais raças primitivas; mas somente o
resultado de cruzamentos e misturas infinitas (Ed. Meyer). Meyer observa
muito judiciosamente:

"No que concerne a raça, é certamente possível que o


gênero humano tenha aparecido desde o princípio em
diferentes variedades ou então se tenha dividido desde o
princípio em espécies diferentes; parece-me que sob este
aspecto seja difícil exprimir uma opinião fundamentada.
Por outro lado, é absolutamente certo que todas as raças
humanas se misturaram continuamente... que nunca se
pôde, e que é em geral absolutamente impossível,
delimitá-las estritamente — o exemplo das populações do
vale do Nilo é típico neste ponto — e que o pretendido tipo
de raça pura não existe senão nos lugares onde os povos
foram isolados artificialmente uns dos outros, graças às
condições exteriores, como se verifica, por exemplo, na
Nova-Guiné e na Austrália. Entretanto, nada justifica a
suposição de que nos achamos aqui em presença de um
estado natural e primitivo do gênero humano; é muito mais
provável que esta homogeneidade seja, pelo contrario, o
resultado de um isolamento" (Ib.).

O professor R. Michels ("Wirtschaft und Rasse", — A economia e a raça —


em "Grundriss der Socialoekonomie", cita toda uma série de exemplos muito
interessantes que mostram a variabilidade das pretendidas qualidades de raça
no domínio do trabalho. Por exemplo

"a resistência dos trabalhadores chineses é extraordinária e os torna aptos


a carregar pesadas cargas. É por isto que utilizam tanto os "coolies chineses".
Entretanto, está claro que as "cargas" que são colocadas nas costas
dos coolies são determinadas ainda pelo seu estado de escravidão semi-
colonial. Consideram-se os negros como maus trabalhadores, e entretanto
existe um ditado francês: "trabalhei como um negro". Os negros tornavam-se
raramente patrões, mas eles foram boicotados pelos brancos, etc... Ainda há
alguns exemplos interessantes tirados do domínio das "diferenças nacionais":
"Quando se começou a construir na Alemanha as primeiras vias férreas, um
autor alemão advertia que de direito os caminhos de ferro não apresentavam
nenhum interesse para o caráter nacional alemão, porquanto este ultimo
baseava-se, felizmente, sobre o princípio do "festina lente" (apressa-te
devagar). Para se servir das estradas de ferro, é preciso um outro povo, uma
outra vida, um outro gênero de pensamento.Kant reprochava aos italianos as
suas tendências estreitamente praticas e o estado florescente de seus bancos.
Agora é preciso procurar alhures a fonte deste fenômeno, etc... Michels chega
a esta conclusão perfeitamente justa:

"O grau de capacidade econômica de um povo


corresponde ao grau de civilização técnica, intelectual e
moral que ele atingiu no momento em que o julgamos".

O maior número de absurdos foi dito pelos partidários da teoria das raças
durante a guerra, que eles quiseram também explicar pela luta das raças, bem
que a inépcia destas explicações fosse evidente para qualquer homem de
espírito são. (Os sérvios aliados aos japoneses guerreavam contra os búlgaros:
os ingleses com os russos contra os alemães, etc...). O representante mais
autorizado da teoria das raças, na sociologia, é Gumplowicz.
Capítulo VI - O Equilíbrio Entre os Elementos da Sociedade

§ 35. Laços que unem os diversos fenômenos sociais. Como deve ser
colocada a questão

Estudamos acima o problema do equilíbrio entre a sociedade e a natureza.


Vimos que esse equilíbrio é rompido e restabelecido constantemente, que
havia uma contradição constantemente sobrepujada e que aparecia novamente
para ser combatida e que nisto reside a causa essencial do desenvolvimento
ou da decadência social. É necessário agora olhar de perto, por assim dizer, "a
vida interior" da sociedade.

Quando formulamos perguntas sobre o grau de desenvolvimento social,


recebemos muitas vezes respostas como estas: "O grau de desenvolvimento
cultural é determinado pela quantidade de sabão que a sociedade emprega";
outros medem a sua altura pelo desenvolvimento da instrução, outros ainda
pela quantidade de jornais publicados, alguns pelo desenvolvimento da técnica
ou então da ciência, etc. Um professor alemão, Schulze-Gavernitz, no seu livro
"A grande indústria têxtil na Rússia", estabeleceu como princípio que o grau de
cultura é caracterizado pelo estado das latrinas. Assim, desde estas até às
obras mais sublimes do espírito humano, tudo é tomado como padrão para
medir o grau de desenvolvimento social.

Quem está com a razão? Qual das medidas é a verdadeira? E por que são
dadas tantas respostas disparatadas â mesma questão?

Se examinarmos um pouco mais de perto as respostas acima,


verificaremos com facilidade que cada uma delas é mais ou menos justa. O uso
do sabão não aumenta com efeito com o desenvolvimento da "cultura e da
civilização"? O número de jornais não cresce? A técnica ou a ciência não
fazem progressos? Certamente que sim. Que conclusão podemos tirar daí? A
de que os fenômenos sociais, em cada momento dado, estão ligados uns aos
outros. De que maneira, isto é outra questão, e nós vamos estudá-la. Mas os
laços que existem entre eles são indubitáveis, Eis a razão pela qual cada uma
das respostas que mencionamos era justa.

Do mesmo modo que a idade do homem pode ser definida


aproximadamente, seja segundo a composição ou a resistência de seus ossos,
seja segundo a sua fisionomia (matiz, rugas, sistema nervoso, etc.), seja
segundo o caráter de seus pensamentos, seja conforme a sua linguagem,
assim também podemos julgar o grau de desenvolvimento social segundo
diferentes sinais, uns estando ligados aos outros. Se nos mostrassem belas
obras de arte, se nos explicassem sistemas científicos complicados,
poderíamos dizer que uns e outros não podem aparecer senão numa
sociedade desenvolvida. O mesmo diríamos, si tivéssemos descoberto uma
técnica rica e complexa. Nos dois casos, teríamos razão.

Este laço, esta interdependência dos fenômenos sociais os mais diversos,


salta aos olhos. Basta formular uma série de perguntas para disto nos
convencermos. Seria possível, por exemplo, que aparecesse, há 100 anos,
uma poesia futurista? Certamente que não. Ou que os esquimós perdidos nas
geleiras inventem o telégrafo sem fios? Ou ainda, que a ciência contemporânea
preveja o futuro pelas estrelas? Ou, enfim, que o marxismo tenha aparecido na
idade média? Evidentemente, tudo isto é impossível. O futurismo não pôde
existir há 100 anos, porque a vida nessa época era mais calma, mais igual; e o
futurismo nasceu sobre o calçamento das grandes cidades com o barulho e o
movimento» no momento das paradas militares e da decadência da cultura
burguesa. É a poesia do "jazz-band" universal, poesia que não teria podido
aparecer há 100 anos, como um cardo não poderia crescer sobre um teto
recentemente pintado. Os esquimós, no meio do gelo, não poderiam inventar o
telégrafo sem fio, pois não são capazes de manejar nem o telégrafo comum. A
ciência contemporânea não perderá o seu tempo com infantilidades tais como
as profecias feitas pela consulta das estrelas, pois que a ciência atingiu o nível
bastante elevado para afastar estas bobagens. O marxismo não poderia ter
aparecido na idade média, porque o proletariado não existia ainda e porque a
teoria marxista não dispunha assim de uma base natural. Por outro lado, por
exemplo, a alta técnica, o proletariado, a enorme quantidade de jornais, o
reclame colossal dos "trustes", o futurismo, os aeroplanos, a teoria dos
elétrons, os dividendos de Rockfeller, as greves de mineiros, os partidos
comunistas, a Sociedade das Nações, a Terceira Internacional, a eletrificação,
os exércitos compostos de milhões de homens, Lloyd George, Lenine, etc....
tudo isto são fenômenos do mesmo tempo, da mesma época, como o poder do
papa, uma técnica relativamente pobre, a servidão, a ciência dos padres
(escolástica), a procura da pedra filosofal (graças à qual pode-se transformar
qualquer matéria em ouro), a Inquisição, as más estradas, os reis iletrados, a
comuna de vila, as feiticeiras e as corporações de ofícios, uma má língua latina
(falada e escrita pelos sábios), os cavaleiros andantes, etc., representam os
fenômenos de uma mesma época (a idade média). Não se pode
transplantar Lenine, Lloyd George e Krupp para a idade-média. Também não
se pode ver hoje em dia, na praça Vermelha, em Moscou, um torneio de
cavaleiros, em luta de morte, pelo sorriso de uma dama. "Outros tempos,
outras canções", "outros tempos, outros costumes".
Assim, não se pode duvidar que existem laços entre os fenômenos sociais,
uns estando "adaptados" aos outros. Em outros termos, existe um certo
equilíbrio no interior da sociedade entre os seus elementos, entre as partes que
a compõem, entre as diferentes espécies de fenômenos sociais.

Augusto Comte já havia observado que os diferentes aspectos da vida


social concordam uns com os outros em cada momento dado (é o que
denominamos "concensus"). O mesmo fato é acentuado com maior vigor por
Muller-Lyer (Die Phasen der Kultur, p. 334 — As fases da cultura):

"Na realidade não importa que função sociológica, não


importa que fenômeno cultural pode ser tomado como
escala para medir a altura atingida pela cultura, por
exemplo: a arte, a ciência, a moral, a economia, a
organização do Estado, a liberdade individual, a filosofia, a
situação social da mulher, etc.. incluindo o uso do sabão.
Seria perfeitamente diferente saber qual a escala
escolhida, se todos os fenômenos da civilização se
desenvolvessem com um paralelismo rigoroso e
perfeitamente proporcionados uns com os outros."

Um dos escritores mais modernos da burguesia alemã, acachapada pelos


acontecimentos, O. Spengler (Der Untergang des Abendlandes — O declínio
do ocidente — tomo 1. p. 8) escreve:

"Quem não ignora que existe um liame estreito entre a


forma antiquada de "polis" (polis: estado, cidade da antiga
Grécia, N. B.) e a geometria euclidiana, entre a
perspectiva na pintura a óleo da Europa ocidental e a
conquista do espaço pelas vias férreas, entre os telefones
e os canhões de longo alcance, entre os contrapontos da
musica instrumental e o sistema econômico de credito?"

Os exemplos de Spengler podem ser discutidos, mas não é possível negar


a idéia segundo a qual os mais variados fenômenos sociais estão ligados entre
si.

§ 36. Coisas, pessoas, idéias

Definimos mais acima a sociedade como um agregado humano.


Entretanto, num sentido mais largo, as coisas também fazem parte da
sociedade. Tomemos, por exemplo, a sociedade atual. Todas essas massas de
pedra das cidades, as construções gigantescas, as estradas de ferro, os
portos, as máquinas, as casas, etc., tudo isto constitui os "órgãos" materiais e
técnicos da sociedade.

Uma maquina fora da sociedade humana perde toda a sua significação


como maquina: ela se torna simplesmente um objeto exterior, uma combinação
de partes de aço, de madeira, etc., e nada mais. Admitamos que um
transatlântico gigantesco tenha ido a pique; quando esse monstro, com os seus
poderosos motores que fazem vibrar o seu corpo de aço, com seus milhares de
instrumentos, de utensílios, a começar pelos panos de cozinha e a terminar
pela estação radiotelegráfica, jaz como um peso morto no fundo dos mares,
toda a sua construção complicada perde sua importância social. As conchas
incrustam-se nos seus flancos, as algas marinhas cobrirão as partes de
madeira, os caranguejos habitarão as cabinas, etc.; o vapor deixa de ser um
vapor, pois ele perdeu a sua existência social, ele saiu da sociedade, ele
deixou de ser uma de suas partes integrantes, ele interrompeu o seu serviço
social e de um objeto social se tornou simplesmente uma coisa, como qualquer
objeto da natureza exterior que não importa diretamente à sociedade humana.
A técnica não se compõe somente de partes da natureza exterior, é o
prolongamento dos órgãos da sociedade, é a técnica social. Assim, podemos
falar de sociedade em um sentido mais largo que o emprestado até agora a
esta palavra. E então os objetos nela entrarão na sua "existência social", isto é,
antes de tudo no sistema técnico da sociedade. É isto que constitui a parte
material da sociedade, seu aparelho material de trabalho. Estritamente falando,
as coisas não se limitam somente aos meios de produção; elas podem não ter
senão uma relação muito afastada com a produção (se não tomarmos em
consideração que elas próprias são às vezes o resultado da produção
material); tais são, por exemplo, os livros, as cartas, os gráficos, os museus, as
galerias de quadros, as bibliotecas, os observatórios astronômicos e
meteorológicos, (trata-se sempre da sua parte material), os laboratórios, os
instrumentos de medida, os telescópios e microscópios, as retortas, etc., etc.
Todos estes objetos não tocam diretamente o processo da produção material e,
por conseguinte, não fazem parte da técnica especial, do conjunto das forças
produtivas materiais. Apesar disso, é fácil compreender o seu papel; eles não
são tão pouco simples pedaços da natureza exterior, eles têm também a sua
"existência social", eles entram também, por conseguinte, na concepção de
sociedade, compreendida no seu sentido mais lato, ao qual nos referimos
acima.

Vimos, no capítulo IV, que a sociedade representa um sistema de homens


reunidos. Vemos agora que as coisas também fazem parte desse sistema.
Entretanto, no sentido mais estreito da palavra, compreende-se, sob o nome de
sociedade, os homens e não uma simples reunião de homens, mas um sistema
unido. Estudamos estes homens a princípio como corpos materiais que
trabalham. Explicamos assim que a sociedade é antes de tudo uma
organização de trabalho, um sistema de trabalho, um aparelho de trabalho
humano. Mas sabemos muito bem que os homens não são simplesmente
corpos físicos; eles pensam, sentem, desejam, propõem-se fins, e trocam
continuamente suas idéias e seus desejos. Às relações entre os homens não
são somente relações materiais de trabalho; são também relações psíquicas,
"espirituais"; e a sociedade não produz somente objetos materiais; ela produz
também "valores espirituais": a ciência, a arte, etc., em outros termos, ela não
produz somente coisas, mas também idéias. E estas ultimas, uma vez
produzidas, compõem em conjunto sistemas inteiros de idéias. Temos assim
na sociedade elementos de três ordens diferentes: coisas, homens e idéias.
Certamente, seria absurdo pensar que estes elementos são completamente
independentes; todo mundo compreende que sem homens não haveria idéias,
que as idéias vivem somente nos homens e não nadam no espaço como o óleo
sobre a água. Mas não se segue daí que não possamos distingui-las. É
também evidente que deve existir, entre todos estes elementos, um certo
equilíbrio. Pode-se dizer mais ou menos que a sociedade não poderia existir se
a ordem das coisas, a ordem dos homens e a ordem das idéias não
correspondessem umas às outras. Mas é preciso, certamente, prová-lo de
maneira muito mais detalhada. Compreenderemos também, então, o laço que
existe entre os fenômenos, laço que salta aos olhos e ao qual nos referimos no
parágrafo precedente.

§ 37. A técnica social e a estrutura econômica da sociedade

Já provamos anteriormente que para estudar os fenômenos sociais é


preciso partir do exame das forças produtivas materiais e sociais, da técnica
social, do sistema dos instrumentos de trabalho. E preciso agora que
acrescentemos algumas explicações ao que já foi dito acima. Quando falamos
de técnica social, é preciso compreender com isto não um instrumento
qualquer, nem um amontoado de diversos instrumentos, mas um sistema
destes instrumentos, o seu conjunto, no seio da sociedade. É preciso que nos
representemos que, em uma dada sociedade, se acham dispersos em lugares
diferentes, mas numa certa ordem, ofícios e motores, instrumentos e
aparelhos, utensílios simples e complicados. Em alguns lugares, estão
concentrados em grandes massas (por exemplo nos centros de grande
indústria), em outros lugares, outros instrumentos estão dispersos. Mas, a cada
momento dado, os homens estando unidos pelo laço de trabalho, tendo
formado uma sociedade, todos os instrumentos de trabalho, grandes e
pequenos, simples e complicados, manuais e mecânicos, em uma palavra,
todos os que existem em uma sociedade dada e em dado momento, são na
realidade ligados entre si. (há certamente sempre um tipo de instrumento que
domina, máquinas e aparelhos complicados, na hora atual; anteriormente eram
utensílios movidos à mão; com o tempo a importância dos aparelhos e das
máquinas que funcionam automaticamente aumenta ainda mais). Em outras
palavras, podemos considerar a técnica social como um todo, sendo que cada
parte, em determinado momento, é socialmente necessária. No que consiste
esse fato? Por que podemos nós considerar a técnica social como um todo?
Como se exprime esta unidade de todas as partes do sistema técnico da
sociedade?

Afim de compreendermos este fato o mais claramente possível, vamos


supor que um belo dia, na Alemanha contemporânea, por exemplo, tivessem
milagrosamente desaparecido todas as máquinas que servem para a extração
do carvão. O que aconteceria? Todo mundo o compreenderá: quase toda
indústria cessaria de funcionar de um dia para outro. Não haveria combustível
para as fabricas e as usinas; todas as máquinas e todos os instrumentos
nestas usinas parariam, isto é, seriam eliminados do processo da produção. A
técnica de uma indústria teria influído assim sobre a técnica de quase todas as
outras indústrias. E isto significa que todas as "técnicas" dos ramos de
produção particulares formam objetivamente, na realidade, não somente no
nosso pensamento, mas um todo, uma técnica social única. A técnica social,
como já dissemos, não apresenta um amontoado de instrumentos de trabalhos
particulares, mas o seu sistema unido. Isto significa que todas as partes desse
sistema dependem de cada uma delas. Isso significa também que, em cada
momento dado, as diferentes partes dessa técnica são unidas em uma certa
proporção, em uma relação definida. Se em uma fabrica é preciso haver um
certo número de fusos para um certo número de teares, um certo número de
operários, etc., em toda sociedade, quando a reprodução social caminha
normalmente, a uma certa quantidade de fôrmas corresponde um número
determinado de máquinas e de utensílios mecânicos, uma quantidade definida
de meios de produção, tanto na indústria metalúrgica como na indústria têxtil,
química ou qualquer outra. Certamente, as relações não são aqui tão preciosas
como em uma fabrica tomada separadamente; entretanto, entre o "sistema
técnico" dos diferentes ramos de produção existe uma certa relação necessária
que se estabelece em uma sociedade desorganizada de maneira elementar e
conscientemente na sociedade organizada, mas que existe sempre. Não é
possível, por exemplo, que existam em uma fabrica dez vezes mais fusos do
que os necessários. Mas é também impossível que a produção de carvão seja
dez vezes maior do que é preciso, e que haja dez vezes mais máquinas e
instalações servindo para extrair o carvão do que o necessário para alimentar
os outros ramos de indústria. Do mesmo modo que existe um laço
determinado, uma relação definida entre os diferentes ramos de produção,
também há um laço determinado e uma relação definida entre as diferentes
partes da técnica social. É este fato que transforma a simples soma de
máquinas, de utensílios e de instrumentos em um sistema de técnica social.

Uma vez compreendido isto, compreender-se-á igualmente que cada


sistema dado de técnica social determina também o sistema de relação de
trabalho entre os homens.

Com efeito, será possível que o sistema técnico da sociedade, a estrutura


do seu aparelhamento, sejam de uma espécie e as relações entre os homens
de outra? Será possível, por exemplo, que o sistema técnico social seja a
técnica mecânica e que as relações de trabalho de produção sejam as dos
artesãos que trabalham a mão? É evidente que isto é impossível. Se a
sociedade existe, é preciso que haja um equilíbrio definido entre a sua técnica
e a sua economia, isto é, entre o conjunto de seus instrumentos de trabalho e a
sua organização de trabalho, entre o seu aparelho material de produção e o
seu aparelho produtivo humano.

Tomemos um exemplo. Comparemos a "sociedade antiga" com a


sociedade capitalista moderna. Comecemos pela técnica. A. Neuburger ("Die
Technik des Altertums". — A técnica da antiguidade — Voiglanders Verlag.
Leipzig, 1919), que é antes inclinado a exagerar do que a diminuir a
importância da técnica antiga, escreve:

"Aristóteles, nos seus "Problemas da Mecânica", nos dá


toda uma lista de instrumentos auxiliares (técnicos)
empregados pelos antigos. Entre estes instrumentos, ele
cita a alavanca com contrapeso, as balanças de braços
iguais, o balouço, as tenazes, a cunha, o machado, o
cabrestante, a roda, a polia, a funda, o leme, assim como
as rodas de cobre e de ferro com diferentes planos de
rotação e que não eram provavelmente senão rodas
dentadas" (p. 206).

São os meios técnicos mais elementares que são denominados "máquinas


simples" (alavanca, plano inclinado, cunha, etc...). Está claro que esses
instrumentos não nos levarão longe. O mesmo acontece com a trabalho dos
metais. Está claro que é somente a ossatura metálica das forças produtivas
que cria a princípio uma base solida para o seu desenvolvimento; entretanto, é
o ouro que é trabalhado em primeiro lugar; a maior parte do metal é utilizado
em geral para fabricar objetos que não servem para a produção. Somente a
arte do ferreiro apresenta uma exceção, produzindo instrumentos bastante
primitivos, graças ao emprego do martelo, da bigorna, das pinças, das tenazes,
da lima e de outros instrumentos simples (fabricavam-se sobretudo machados,
martelos, picaretas, ferraduras, pregos, correntes, forquilhas, pás, colheres,
etc.). A fundição servia sobretudo para fazer estatuas e outros objetos
improdutivos. Não é sem razão que Vitruvio definia, como vimos, a maquina:
"Um aparelho de madeira".

"Durante séculos inteiros, a técnica permaneceu cristalizada no mesmo


nível", diz Salvioli (Der Kapitalismus im Altertum — O capitalismo na
antiguidade), entendendo-se naturalmente por estas palavras, não uma
estagnação absoluta, mas um desenvolvimento relativamente lento da técnica
antiga.

A técnica deste gênero determinava por si mesma o tipo do operário, as


suas qualidades de trabalho, assim como as relações de trabalho e as relações
de produção.

O tipo do operário, em presença de uma nova técnica, não podia ser


senão o do artesão. Os ferreiros, carpinteiros, canteiros, tecelões, joalheiros,
mineiros, albardeiros, torneiros, seleiros, oleiros, tintureiros, vidreiros,
curtidores, serralheiros, etc., constituíam o tipo de operário produtor (Gustave
Glotz: "Le travail dans la Gréce ancienne", Felix Alcan, 1920, p. 265-276; Paul
Louis: "Le travail dans le monde romain" 912, p. 234-244). Assim a técnica
social determinava a qualidade da maquina viva de trabalho, isto é, o tipo de
operário e suas "qualidades" de trabalho. Mas a mesma técnica determinava
também as relações entre os trabalhadores. Com efeito, pelo fato mesmo de
vermos aqui espécies determinadas de trabalhadores, aparece claramente que
estamos em presença de uma divisão da produção em uma série de ramos e
em cada um deles executa-se somente uma espécie de trabalho. É a divisão
do trabalho.

Que é que determinava esta divisão de trabalho? Evidentemente, os


instrumentos apropriados de trabalho que existiam. Mas a forma desta divisão
de trabalho era igualmente determinada.

"A divisão do trabalho, diz em resumo Glotz, não permitia


que se chegasse aos mesmos resultados que nas
sociedades modernas, pois não era uma função do
maquinismo. Ela não indicava o regime das grandes
usinas, mas uma indústria pequena e média...". "A grande
produção era desconhecida no mundo antigo; ele nunca
saiu dos limites do oficio" (Salvioli).
Vejamos ainda uma forma de relações de trabalho e de produção, que se
apóia também sobre a técnica. Mesmo quando se trata de um trabalho
gigantesco, ele é muitas vezes executado pela organização de oficio. Também,
por ocasião da construção de um aqueduto em Roma, o Governo fez um
contrato com 3.000 (!) mestres pedreiros; eles mesmos trabalharam com os
seus escravos (ib., p. 139). Por outro lado, quando a produção era
relativamente grande, ela não pôde existir em presença de semelhante técnica
senão graças ao emprego de uma força extra econômica: era o caso do
trabalho dos escravos, dos quais exércitos inteiros eram trazidos depois de
cada guerra vitoriosa, vendidos no mercado, e enchiam os domínios e as
oficinas "ergastula". Com outra técnica, o trabalho dos escravos seria
impossível; os escravos estragam as máquinas complicadas e o seu trabalho
não apresenta nenhuma vantagem. Assim, mesmo um fenômeno tal como o do
trabalho dos escravos importados se explica, em condições históricas dadas,
pela presença de certos instrumentos de trabalho social. Examinemos ainda
um outro problema. Como se sabe, apesar do desenvolvimento bastante
considerável das relações comerciais capitalistas, a economia do mundo antigo
era em geral uma economia natural. Os homens não se achavam em relações
econômicas estreitas: as trocas eram muito menos desenvolvidas do que hoje
em dia; um grande número de produtos era fabricado nos grandes domínios
(latifundia), nas suas oficinas publicas e para o seu próprio uso. Tudo isto
representa igualmente um regime de trabalho determinado, um gênero
particular de relações de produção. E isto ainda se explica pelo fraco
desenvolvimento das forças produtivas, pela fraqueza da técnica. A produção,
com uma técnica semelhante, não podia atirar sobre o mercado um grande
excesso de produtos. Em uma palavra, vemos que as relações entre os
homens, no processo do trabalho, são determinadas pelo nível do
desenvolvimento técnico: a economia antiga está por assim dizer adaptada à
técnica antiga.

Comparemos agora com ela a sociedade capitalista, e em primeiro lugar a


sua técnica. Para dela termos um apanhado geral, basta lançar um golpe de
vista sobre a lista de certos ramos de produção. Não encaramos senão dois
grupos: a construção de máquinas, de instrumentos e de aparelhos de um lado,
e a indústria eletrotécnica de outro. Vejamos o quadro que obtemos:

I. Construção de máquinas, de instrumentos e de


aparelhos.
a) máquinas geradoras de força.
1. Locomotivas.
2. Locomoveis.
3. Outras máquinas geradoras.
b) máquinas de emprego geral.
1. Máquinas-utensílios para o trabalho
dos metais, da madeira, da pedra e de
outros materiais. 2- Bombas.
3- Aparelhos de elevação e de transporte
4.Outras máquinas.
c) máquinas especializadas.
1. Teares.
2. máquinas agrícolas.
3. máquinas especiais para a extração
de matérias primas.
4. máquinas especiais para a fabricação
de armas e munições.
5. máquinas especiais para as indústrias
de arte e de luxo.
6. Construções de máquinas variadas.
d) Oficinas para reparações de máquinas.
e) Caldeiras e aparelhos diversos.
1. Caldeiras a vapor.
2. Caldeiras, aparelhos e material para
certos ramos especiais de indústria
(excluindo as máquinas simples).
f) Utensílios para máquinas, peças
sobressalentes.
1. Utensílios para máquinas.
2. Peças sobressalentes.
g) Construção de moinhos.
h) Construção de navios e máquinas para
navios.
i) Construção de aeronaves e aeroplanos.
j) Aparelhos de proteção contra gazes,
k) Fabricação de meios de transporte.
1. Bicicletas e suas peças
sobressalentes.
2. Motores.
3. Construção de vagões de estrada de
ferro.
4. Construção de carros.
5. Fabricação de outros meios de
transporte, exceto os transportes aéreos
e marítimos.
l) Fabricação de relógios e peças sobres
alentes.
m) Fabricação de instrumentos de musica.
n) Instrumentos de ótica e aparelhos de
precisão, assim como as preparações
microscópicas e zoológicas.
1. Construção de instrumentos de ótica,
aparelhos de precisão e aparelhos
fotográficos.
2. Construção de instrumentos e
aparelhos de cirurgia.
3. Fabricação de aparelhos zoológicos e
microscópicos.
o) Fabricação de lâmpadas e quebra-luzes
(excetuando as lâmpadas elétricas).
II. indústria eletrotécnica. Fabricação de:
a) Dínamos e motores elétricos.
b) Acumuladores e elementos.
c) Cabos e fios isolados.
d) Aparelhos de medidas elétricas.
e) Aparelhos elétricos e de material
acessório.
f) Lâmpadas elétricas e projetores.
g) Aparelhos médicos.
h) Aparelhos de corrente fraca.
i) Isoladores elétricos.
j) Aparelhos elétricos para grandes
estabelecimentos.
k) Oficina de reparação de instrumentos
elétricos diversos.

(Rudolph Meerwarth "Einleitung in die Wir-tschaftstatistik". — Introdução à


estatística econômica. — Jena, Gustav Fischer, 1920. p. 43-44).

Basta comparar esta lista com as "máquinas" às quais se


refere Aristóteles e Vitruvio, para compreender a diferença enorme que existe
entre a técnica da sociedade antiga e da sociedade capitalista. Do mesmo
modo que a técnica antiga determinava a economia do mundo antigo, assim
também a técnica capitalista determina a economia moderna, a economia do
regime capitalista. Se fosse possível fazer o recenseamento da população da
Roma antiga, e a de Berlim ou de Londres hoje em dia, e dividir esta população
de acordo com as profissões e ofícios, veríamos nitidamente o abismo
profundo que nos separa da "antiguidade". Temos hoje em dia operários que
dependem da técnica mecânica e que não existiam então. Invés de artesãos
(de "fabri ferrarii" quaisquer), encontramos entre nós eletrotécnicos,
montadores, mecânicos, caldeireiros, torneiros, óticos, tipógrafos, litógrafos
"chaufeurs", ferroviários, condutores de martelos-pilões, de ceifadeiras e
combinados agrícolas, de tratores a vapor, engenheiros eletrotécnicos,
químicos, linotipistas, etc., etc. Tais operários não existiam nem mesmo de
nome, pois não existiam nem os ramos de indústria nem os instrumentos de
trabalho correspondentes. Mas, mesmo se passarmos aos operários que têm o
mesmo nome e trabalham em uma especialidade já existente anteriormente,
não se tratará mais dos mesmos operários. Com efeito, o que há de comum
entre um tecelão moderno que trabalha em uma grande usina têxtil e um
artesão ou escravo da Grécia ou da antiga Roma? Tratava-se de um homem
completamente diferente, que se sentiria em uma usina têxtil moderna como
Júlio César se sentiria em um vagão da estrada de ferro subterrânea de Nova-
York. Dispomos de outras forças operárias para um outro gênero de trabalho.
Nossas forças de trabalho constituem produtos de outra técnica, à qual elas
estão adaptadas.

Observamos mais acima que existe atualmente uma quantidade


considerável de ramos de indústria que outrora eram desconhecidos. Isto
significa antes de tudo que existe na sociedade capitalista uma divisão
diferente do trabalho social. Ora, a divisão de trabalho social representa uma
das condições essenciais da produção. Qual é a base da divisão de trabalho
moderno? Vê-se imediatamente que ela se baseia nos instrumentos modernos
de trabalho, no caráter, aspecto, e reunião das máquinas e dos instrumentos,
isto é, sobre a técnica da sociedade capitalista. Vejamos um pouco qual é o
aspecto que toma uma empresa moderna. Não é uma pequena unidade de
produção, não é um oficio de artesão, nem tampouco uma oficina domestica de
um grande proprietário de terras. Trata-se de uma organização pujante, na qual
entram milhares de homens colocados numa certa ordem, em pontos
determinados e executando um trabalho estritamente determinado. Tomemos
por exemplo uma empresa capitalista modelo como a fabrica de automóveis
Ford em Detroit (Estados Unidos); o seu aspecto especifico nos saltará
imediatamente aos olhos: uma exata divisão de trabalho, seu caráter mecânico,
o automatismo das máquinas, e o controle exercido pelos operários, uma série
lógica de operações, etc. Sobre plataformas em movimento são colocadas
peças do produto. Os operários de diferentes gêneros e diferentemente
qualificados, de pé perto de suas máquinas e de suas ferramentas, "operam"
sobre os produtos semi-trabalhados que se encontram sobre a plataforma.
Toda a marcha do trabalho é calculada com a aproximação de um segundo.
Cada movimento do operário é previsto, assim como o movimento de seu pé
ou de sua mão, ou cada inclinação de seu corpo. O "pessoal" segue a marcha
geral do trabalho, tudo se baseia no relógio, no cronometro. Esta divisão de
trabalho e sua "organização cientifica" são feitas segundo o sistema Taylor e
uma usina destas, se examinarmos a sua estrutura humana, isto é, as relações
entre os homens, constitui também ela própria uma relação de produção. O
que determina a colocação dos homens? O que determina as suas relações
mutuas? A técnica, o sistema de máquinas e suas combinações, a organização
do aparelhamento material da usina.

"Deve-se considerar o desenvolvimento da técnica


moderna como o fator mais decisivo da organização do
trabalho... Não há somente uma maquina na usina. As
máquinas são divididas em grupos. Elas se ligam umas às
outras, seja pelo seu tipo, seja pelas operações a
executar. A passagem do trabalho de um estágio para
outro, os transportes no interior da usina... se apresentam
aos olhos dos diretores técnicos como uma grandeza que
é preciso calcular e delimitar. O plano de trabalho, a
distribuição dos lugares ocupados pelos operários, o
transporte, são assim regulamentados, automatizados,
normalizados... transformando-se pouco a pouco em uma
maquina de precisão que garante o controle do trabalho
da empresa... No sistema geral desse movimento de
coisas, o movimento dos homens e a ação que exercem
sobre outros homens aparecem frequentemente como
fatores determinantes... O sistema de organização
cientifica nasceu" (A. Gastef: Nos taches. Organisation de
travail. Revue de Tlnstitute de Travail", n.° 1, 1921 —
Nossas tarefas. Organização do trabalho. Revista do
Instituto do Trabalho. —).

Para tomarmos conhecimento dos diferentes gêneros de usinas


metalúrgicas, vamos enumerar algumas indústrias russas, indústrias
mecânicas e elétricas, forjas, fundições, fabricas de caldeiras, laminadores,
fornos Martin, fornos Seemens, usinas de produtos químicos, usinas de
construção, fabricas de cadinhos, fabricas de carretas, etc. Nas usinas Putilof,
em 1914-1916, eram encontradas as seguintes categorias de operários:
serralheiros, ajustadores, torneiros de madeira, torneiros de metais, fundidores,
furadores, forjadores, chaufeurs, laminadores, mecânicos, marceneiros,
carpinteiros, tapeceiros, pintores, homens, mulheres, etc. ("La Revue
Métallurgiste" 1917). Vários nomes mostram que certas especialidades estão
ligadas a determinados instrumentos, máquinas, ferramentas. As combinações
determinadas destes instrumentos de trabalho, à sua repartição na empresa,
corresponde também a colocação dos homens. Esta ultima é determinada pela
primeira.

Assim, na grande indústria, as relações de produção são determinadas


pela técnica. E do mesmo modo que a técnica da Grécia e de Roma antigas
decorria das relações de produção correspondentes à pequena e média
produção, assim também as relações da grande produção decorrem da técnica
moderna. Entre a técnica social e a economia social, existe também um
equilíbrio relativo.

Enfim, vimos que o atraso da técnica da sociedade antiga trazia consigo a


fraca intensidade das trocas: ela dava à economia um caráter natural: os laços
entre as diferentes economias eram muito frouxos. Isto determina também
relações de produção bem determinadas. Pelo contrario, a técnica capitalista
moderna permite atirar sobre o mercado enormes massas de produtos. Por
outro lado, a divisão do trabalho tem como consequência o fato de toda a
produção se fazer para o mercado: o fabricante não usa ele próprio os milhões
de suspensórios que a sua usina fabrica! Assim, as relações de produção, no
que diz respeito à circulação de mercadorias, são também uma consequência
da técnica correspondente.

Examinamos a questão sob vários pontos de vista: 1.°) do ponto de vista


das forças de trabalho; 2.° do ponto de vista da produção, isto é, vimos em que
medida e em que proporção os homens estão organizados nas diferentes
empresas; 3.°) procuramos as relações existentes entre essas empresas. E em
toda parte, baseando-nos no exemplo de duas economias diferentes (antiga e
moderna), chegamos à conclusão de que sempre as combinações de
instrumentos de trabalho e a técnica social determinam as combinações e as
relações dos homens, isto é, a economia social. Entretanto, isto não representa
ainda senão um aspecto, uma parte das reações existentes na produção. É
preciso agora que estudemos um outro problema muito vasto e absolutamente
essencial: o das classes sociais. Falaremos disto adiante em detalhe, mas
examiná-la-emos aqui do ponto de vista das condições da produção.

Quando examinamos as relações entre os homens no processo da


produção, encontramos quase sempre (com exceção do por assim dizer
comunismo primitivo) que os homens se agrupam de maneira a que um
agrupamento não esteja ao lado, mas sim acima de outro. Vejamos as relações
que existem no regime da "servidão": no alto estão os proprietários, abaixo os
intendentes, gerentes, os empregados, mais baixo ainda os camponeses.
Tomemos as relações que existem na produção capitalista. Aqui também,
vemos que no processo do trabalho os homens não se dividem somente em
fundidores, montadores, ferroviários, etc., que, apesar da variedade de suas
ocupações, trabalham entretanto da mesma maneira e estão colocados no
mesmo nível da produção, mas que, aqui também, um grupo de homens se
acha no processo do trabalho acima de outro: os empregados acima dos
operários (o pessoal técnico médio: contra-mestres, engenheiros, agrônomos,
técnicos); acima dos empregados médios,estão os empregados superiores
(administradores, diretores); mais acima ainda os pretendidos proprietários das
empresas, os capitalistas, os grandes chefes e os grandes mestres do
processo da produção. Tomemos enfim um grande domínio de um rico
proprietário romano: existe aqui toda uma hierarquia; bem em baixo os
escravos, os "instrumentos falantes", "instrumenta vocalia", como os
denominam os romanos, para distingui-los dos "instrumentos semi-falantes",
isto é, do gado e dos instrumentos mudos" isto é, das coisas; depois dos
escravos vêem os fiscais, etc., em seguida os intendentes, por fim o
proprietário do domínio e sua honrada família (a mulher habitualmente à frente
de certos trabalhos domésticos). É preciso ser cego para não ver que estamos
aqui em presença de tipos diferentes de relações entre os homens que
trabalham. Todas as pessoas indicadas acima participam de uma ou de outra
maneira no processo do trabalho e se encontram assim em determinadas
relações umas com as outras. É preciso dividi-las em diferentes grupos: seja de
acordo com a sua especialidade e profissão, seja conforme a sua classe.
Quando nós dividimos segundo a profissão ou especialidade, temos os
forjadores, serralheiros, torneiros, etc., em seguida, engenheiros químicos,
engenheiros mecânicos, engenheiros especialistas em caldeiras, na tecelagem
ou nos locomóveis, etc. Entretanto, está claro que um serralheiro, um torneiro,
um mecânico constituem uma certa categoria, enquanto que um engenheiro,
um agrônomo, etc., constituem outra, e o capitalista que dispõe de tudo é coisa
muito diferente. Não se pode pôr todos esses homens no mesmo nível. É fácil
verificar que, apesar das diferenças que separam o trabalho de um serralheiro,
de um torneiro ou de um tipografo, as relações entre eles no processo geral do
trabalho são do mesmo gênero e que as existentes entre um serralheiro e um
capitalista são de um gênero absolutamente diferente. há uma coisa ainda mais
evidente: um serralheiro, um torneiro, um tipografo, todos em conjunto e cada
um separadamente, têm as mesmas relações com todos os engenheiros e as
mesmas, bem que ainda mais afastadas, com os gerentes superiores, mestres
da produção, "capitães de indústria" capitalistas.

É aqui que vemos as maiores diferenças entre os papéis, a importância, os


tipos, o caráter das relações entre os homens: o capitalista coloca os operários
na usina da mesma forma pela qual ele coloca as ferramentas; os operários de
modo algum "colocam" o capitalista (enquanto se trata do regime capitalista,
bem entendido): são eles que são "colocados" pelos capitalistas. Vemos aqui
as relações de dominação à submissão "Herrschafts und
Knechtsehaftsverhalfhiss", como diz Marx, "o comandante do capital",
(Kommando des Kapitals). É este papel completamente diferente que os
homens desempenham no processo da produção que constitui a base da
divisão dos homens em diversas classes sociais. Convém chamar a atenção
sobre um fato muito importante. Sabemos já por tudo o que precede que o
processo de repartição faz também parte do processo de reprodução social. O
processo de repartição constitui, por assim dizer, o reverso do processo de
reprodução social. O que é o processo de repartição, considerado mais de
perto? E de que modo está ele ligado ao processo de produção?
Marx escreve a este respeito ("Introduction à une critique de l'economie
politique" — Introdução a uma critica da economia política):

"A repartição, no sentido vulgar, apresenta-se como


repartição dos produtos; mais ainda, como alguma coisa
afastada da produção e independente em relação a ela.
Mas antes de se tornar a repartição dos produtos, ela é
antes de tudo uma repartição de instrumentos de
produção e é em segundo lugar, — o que constitui a
definição seguinte da mesma relação, a repartição dos
membros da sociedade entre os diferentes ramos da
produção (submissão coletiva dos indivíduos às relações
que existem na produção). A repartição dos produtos é
evidentemente o resultado da repartição que faz ela
própria parte do processo de produção e que determina a
composição da produção. Estudar a produção sem tomar
em consideração a repartição que dela faz parte, não é
senão um trabalho abstrato; pelo contrario, ao mesmo
tempo em que se dá esta repartição, que constitui um
elemento da produção, dá-se também a repartição dos
produtos".

É preciso analisar esta proposição de Marx.

Vemos antes de tudo que o processo de produção determina por si mesmo


o processo de repartição dos produtos. Se, por exemplo, a produção se faz em
explorações particulares e independentes (por empresas capitalistas
particulares ou por artesãos isolados), então, em cada exploração, não se
produz mais tudo de que necessita esta, mas um artigo especial (em uma
relógios, em outras pão, etc.); está claro que a repartição dos produtos se fará
por meio da troca. Os homens que fabricam fechaduras não podem com elas
vestir-se ou come-las. Os homens que fazem o pão, não podem com ele fechar
os armazéns de farinha; eles necessitam de fechaduras e de chaves.
Forçosamente, eles trocarão os seus produtos, farão comércio. Assim, a
distribuição dos produtos fabricados pelos homens que vivem em sociedade se
dará por via da troca. Da maneira por que se produz, decorre o modo pelo qual
se repartem os produtos. A repartição dos produtos não é uma coisa
independente do próprio produto, ao contrario, ela é determinada por ele e
constitui com ele uma parte da reprodução material da sociedade.

Entretanto, a própria produção implica duas outras espécies de repartição:


em 1.° lugar, a repartição dos homens, o lugar que ocupam no processo da
produção, conforme os papéis variados que desempenham no processo da
produção (é disto sobretudo que falamos no parágrafo precedente); em
segundo lugar, a repartição de instrumentos de produção entre esses homens.
Essas duas espécies de divisões fazem parte da produção. Com efeito,
tomemos os nossos exemplos que precedem, os exemplos referentes à
sociedade capitalista. Ali vemos uma "repartição dos homens". Esses homens
"repartidos", isto é, colocados na produção de maneira determinada, dividem-
se, como já vimos, em classes, e a base desta divisão é determinada pelo
papel que eles desempenham no processo da produção. Vejamos isto mais de
perto. A esta "repartição dos homens", aos diferentes papéis que esses
homens desempenham na produção, está ligada igualmente a repartição dos
meios de trabalho. O capitalista, o grande proprietário de terras, tem à sua
disposição os meios de trabalho (a fabrica e as máquinas, o domínio e as
oficinas de trabalho, a terra, as edificações), enquanto que um operário não
possui nenhum meio de produção, exceto a sua força de trabalho; o escravo,
não pode nem sequer dispor de seu próprio corpo, e o servo não se distingue
muito do escravo. Vemos assim que os diferentes papéis das classes na
produção se baseiam na repartição entre eles dos meios de produção. No
jornal londrino'"Le Peuple" (ns. 6|20, 20 de Agosto de 1859), referindo-se ao
livro de Marx: "Contribution a la critique de l'economie
politique", Engels escrevia:

"A economia política não fala das coisas, mas de relações


entre os homens, e em ultima analise, de relações entre
as classes e essas relações são sempre ligadas às coisas
e se apresentam como coisas".

O que isto significa? Vamos explicá-lo com alguns exemplos: tomemos as


relações habituais entre as classes duma sociedade capitalista, relações entre
os capitalistas e os operários. A que "coisa" estão elas ligadas? Aquela que se
encontra entre as mãos dos capitalistas, aos meios de produção dos quais
dispõem os capitalistas e que os operários não possuem. Estes meios de
produção servem aos capitalistas de instrumento para tirar lucro, instrumento
de exploração da classe operaria. Não são simplesmente coisas, mas coisas
tomadas na sua significação social particular. Em que sentido? No sentido de
que eles são não somente um meio de produção, mas também um meio de
exploração dos operários assalariados. Em outros termos essa "coisa" exprime
as relações entre as classes ou, como diz Engels, as relações entre as classes
estão ligadas às coisas. No nosso exemplo, essa "coisa" é o capital.

Assim, a forma particular das relações de produção, forma que consiste


em relações entre as classes, é determinada pelos diferentes papéis que esses
grupos de homens desempenham no processo de produção e pela repartição
entre eles dos produtos. A repartição dos produtos está ali inteiramente
contida.

Por que motivo percebe o capitalista lucro? Porque ele possui os meios de
produção, porque ele é capitalista.

As relações de produção entre as classes, isto é, as relações ligadas aos


diferentes modos de repartição dos meios de produção, têm uma importância
capital para a sociedade. São elas que determinam antes de tudo o aspecto
dessa sociedade, sua estrutura ou, como dizia Marx, sua estrutura econômica.

As relações de produção, como se vê agora, são extremamente variadas e


complexas. Se nos lembrarmos ainda que consideramos a repartição dos
produtos como uma parte da reprodução, compreenderemos facilmente que as
relações entre os homens no processo da repartição fazem parte das relações
de produção. As relações entre os homens na nossa sociedade complexa são
numerosas. As relações entre os comerciantes, banqueiros, empregados,
corretores, varejistas, operários, consumidores, vendedores, caixeiros-
viajantes, vendedores ambulantes, fabricantes, armadores, marítimos,
engenheiros, contra-mestres, etc., são todas elas relações de produção. Na
vida real, elas se emaranham nas combinações mais variadas e estranhas;
elas formam desenhos complicados. Entre esses desenhos há um essencial e
de particular importância, a saber, a relação existente entre os grandes
agrupamentos de homens, agrupamentos estes que são denominados classes
sociais. Dos gêneros das classes existentes, das relações entre essas classes,
do papel que elas desempenham na produção, da maneira por que são
distribuídos os instrumentos de trabalho, — de tudo isso depende também o
caráter da sociedade que temos diante de nós: os capitalistas no alto, o
operário assalariado em baixo, — eis aí a sociedade capitalista; o grande
proprietário de terras no alto, dispondo de todas as coisas e de todos os
homens integralmente, — eis o regime das escravidão; no alto os operários
dirigindo tudo, é o regime da ditadura do proletariado, etc. Quando as classes
não existem, isto não significa que a sociedade desapareceu. Isto significa
simplesmente que a sociedade de classe não existe mais. Tal é, por exemplo,
a sociedade comunista primitiva; tal será também a sociedade comunista do
futuro.

Temos agora um outro problema a resolver. Vimos anteriormente que as


relações de produção variam com a técnica social. Esta proposição será
aplicável às relações de produção que são ao mesmo tempo as relações entre
as classes? Basta lançar um golpe de vista sobre a marcha efetiva da evolução
de não importa que sociedade, para que nos convençamos imediatamente de
que essa proposição é justa. Assim, as enormes mudanças entre as classes se
produziram sob as vistas da geração atual. Apenas há algumas dezenas de
anos a classe dos artesãos independentes era ainda muito numerosa. Ela
principiou a fundir-se muito rapidamente. Por que? A técnica mecânica
desenvolveu-se e, com ela, a grande indústria, o sistema das fabricas. E, ao
mesmo tempo, o proletariado por sua vez aumentou; é assim que a grande
burguesia industrial se desenvolveu e os ofícios desapareceram pouco a
pouco. O agrupamento das classes tornou-se outro. E não pode ser de outro
modo. Com efeito, quando a técnica varia, a repartição do trabalho na
sociedade varia por sua vez, certas funções na produção desaparecem ou se
tornam menos importantes, outras aparecem e assim por diante. Ao mesmo
tempo, o agrupamento das classes também muda. Quando forças produtivas
da sociedade estão pouco desenvolvidas, a indústria é muito fraca, e a
economia social tem um caráter agrário, rural.

Nada de admirar que, em semelhante sociedade, sejam os campos que


dominem, e que à frente da sociedade se encontre a classe dos grandes
proprietários de terras. Ao contrario, quando as forças de produção constituem
na sociedade uma grandeza já bastante desenvolvida, vemos então uma
indústria pujante, cidades, vilas industriais, etc.. Mas por isto mesmo são as
classes urbanas que adquirem uma influência preponderante. Os nobres
passam ao segundo plano, cedendo o lugar à burguesia industrial ou a outras
frações da burguesia. O proletariado torna-se uma potência. É natural que o
reagrupamento continuo das classes pode mudar completamente a forma da
sociedade. Isto acontece quando a classe que estava em baixo sobe para o
poder. De que maneira isto se produz? Falaremos a este respeito no capítulo
seguinte. No momento basta dizer que as relações entre as classes que
constituem a parte mais importante das relações de produção, variam também
elas relativamente à variação das forças produtivas.

"Segundo o caráter dos meios de produção, variam


igualmente as relações sociais entre os produtores, as
condições de sua colaboração, assim como a sua
participação na marcha da produção. A invenção de um
instrumento de guerra novo, a arma de fogo, por exemplo,
muda forçosamente toda a organização interna do
exército, assim como as relações mutuas que ligam as
pessoas que fazem parte do exército e graça às quais ele
representa um conjunto organizado; enfim as relações
mutuas entre os exércitos por sua vez também variaram.
As relações sociais entre os produtores as relações
sociais da produção variam por conseguinte com a
transformação e desenvolvimento dos meios materiais de
produção, isto é, com o desenvolvimento das forças
produtivas" (K. Marx, "Capital et Salariat").

Em outros termos:

"A organização de cada sociedade é determinada pelo


estado de suas forças produtivas. Com a variação desse
estado se transforma forçosamente também, cedo ou
tarde, a organização social. Por conseguinte, ela se acha
em estado de equilíbrio instável sempre que sobem (ou
baixam, N. B.) as forças produtivas sociais". (G. Plekanov:
"La conception materialiste de l'histoire. Critique de nos
critiques").

O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica da


sociedade, ou por outra, os seus meios de produção. Este é o aparelho do
trabalho humano da sociedade, a sua "base real".

Se examinarmos as relações de produção, nós as levaremos para o


terreno da repartição dos homens no espaço. Como se exprime essa relação?
Pelo fato de cada homem, como já vimos, ter o seu lugar determinado como
um parafuso num mecanismo de relojoaria. É precisamente esta situação
determinada no espaço, "sobre o campo de trabalho", que faz dessa
"repartição", dessa "colocação", uma relação de trabalho social. Cada coisa,
evidentemente, se encontra no espaço e se move. Mas os homens estão
ligados aqui precisamente, por assim dizer, pelas posições determinadas de
trabalho que eles ocupam. É uma relação de ordem material, semelhante ô das
parcelas de um mecanismo de relojoaria. É preciso não esquecer que as
criticas ao materialismo histórico confundem constantemente essas noções,
aproveitando-se do fato da palavra "material" ter varias significações. Assim,
por exemplo, eles "levam" o processo histórico às "necessidades" ou aos
"interesses" materiais e triunfam facilmente do materialismo histórico, provando
com justeza que o "interesse" não é de modo algum uma coisa material, no
sentido filosófico da palavra, mas aparentemente qualquer coisa de psíquico.
E, com efeito, o interesse não é de modo algum a matéria. Mas o que é uma
desgraça, é que certos "partidários" do materialismo histórico (que
consideram Marx como um filósofo burguês qualquer e que não estão de
acordo com o materialismo filosófico) confundem também facilmente as coisas.
Assim, por exemplo, Max Adler, que concilia Marx com Kant, vê na sociedade
um conjunto de ações mutuas psíquicas: tudo para ele é psíquico (nota-se a
mesma coisa em A. A. Bogdanov: "Contribuition à la psychologie de la societé"
— Contribuição à psicologia da sociedade). Vejamos um espécime de
raciocínio deste gênero;
"Mas a relação não é de modo algum uma coisa material
no sentido filosófico do materialismo que coloca na
mesma categoria a matéria e a substancia animada. Em
geral é difícil colocar "a estrutura econômica", "base
material" do materialismo histórico, numa relação qualquer
com a "matéria" do materialismo filosófico, qualquer que
seja o sentido que lhe dermos... E isto concerne não
somente ao que exerce a ação, mas também ao que é
criado por esta ação. Os meios de produção... são antes
produtos do espírito humano..." (Max Zetterbaum:
"Contribuição à concepção materialista da história", na
coleção intitulada: "O Materialismo Histórico". Edição do
Soviet de Moscou, 1919.)

M. Zetterbaum desnorteia-se pelo fato das máquinas não serem feitas por
homens desprovidos de alma. Mas como os próprios homens não são
tampouco feitos por mortos, segue-se que tudo na sociedade é o produto do
espírito desprovido de corpo, de um espírito benfazejo. Por conseguinte, a
maquina é alguma coisa de psíquica; por conseguinte a sociedade não dispõe
de nenhuma "matéria". E entretanto percebe-se que a coisa não é exatamente
assim. Com efeito, mesmo o espírito mais puro não poderia ter criado nem os
homens, nem as máquinas sem a carne pecadora. E mais ainda, sem essa
carne pecadora, ele não teria ardido de desejo de fazer coisas semelhantes.
Mas o que fazer da "relação"? Explicá-lo-emos ainda uma vez ao Sr.
Zetterbaum. Esperamos que o Sr. Zetterbaum não protestará se falarmos do
sistema solar como sendo um sistema material. Mas o que é esse sistema e
porque é ele um sistema? Por uma razão muito simples, a saber que suas
partes integrantes (o sol, a terra e todos os outros planetas) se acham em
relações definidas uns com os outros, pois ocupam a cada momento dado um
lugar determinado no espaço. E do mesmo modo pelo qual o conjunto dos
planetas que estão em relações definidas entre si forma o sistema solar, assim
também o conjunto dos homens ligados pelas relações de produção forma a
estrutura econômica da sociedade, sua base material, seu aparelho humano.
Encontramos também emKautsky, que confunde sem razão a técnica e a
economia, passagens muito duvidosas (por exemplo na pagina 104 da obra
mencionada acima). A estas afirmações podemos opor a seguinte passagem
do escritor arquiburguês W. Sombart. Vejamos o que diz este sábio muito
pouco materialista:

"se nos servirmos de imagem, podemos falar da vida


econômica como de um organismo e emitir uma
proposição segundo a qual este ultimo é composto de um
corpo e de uma alma. O corpo determina a forma exterior,
na qual se desenvolve a vida econômica: as formas
econômicas e produtivas, as organizações múltiplas, no
meio das quais e por causa delas se dirigem a "vida
econômica", etc... Está claro que é preciso em primeiro
lugar colocar na rubrica da forma e da organização
econômica toda a estrutura econômica da sociedade. É
ela que constitui, se nos exprimirmos por imagens, o corpo
dessa sociedade. (Werner Sombart: "Der Bourgeois".
Edição Duncker und Humblot, Munich e Leipzig, 1913, p.
2).

§ 38. A superestrutura e suas formas

É necessário que procedamos agora ao exame das outras faces da vida


social. Temos diante de nós as seguintes séries de fenômenos sociais: a
estrutura política e econômica da sociedade (organização de seu poder
político, de suas classes, dos partidos, etc.), os costumes, leis e a moral (as
normas sociais, isto é, a regra de conduta dos homens); a ciência e a filosofia;
a religião, a arte, e enfim a linguagem — meio de comunicação entre os
homens. Denominam-se em geral todos esses fenômenos, com exceção da
estrutura política e social da sociedade, "cultura espiritual".

A palavra "cultura", de origem latina, supõe a ação de "cultivar". A cultura


indica por conseguinte tudo o que é "obra da atividade humana", no sentido
lato da palavra, isto é, tudo o que é produzido de uma maneira ou de outra pelo
homem social. "A cultura espiritual" é também um produto da vida social: ela é
feita pelo processo vital geral da sociedade. Assim, para compreende-la, é
preciso apresentá-la justamente como uma parte integrante desse processo
vital geral. E entretanto, certos sábios burgueses desejam, custe o que custar,
destacar essa "cultura espiritual" do processo vital da sociedade, isto é,
divinizá-la na realidade, fazer dela uma entidade particular, independente do
corpo e do espírito sem pecado. Assim, por exemplo, Alfred Weber ("La notion
sociologique de la culture. Discussion au II éme. Congrés Sociologique
Allemand". Tubingem. Edição Mohr, 1913), que denomina o crescimento da
vida social, sua complexidade e suas riquezas, processo da civilização exterior,
escreve:

"Mas nós sentimos (!) agora que a cultura está acima de


tudo isto, que nós compreendemos sob o nome de
evolução da cultura alguma coisa muito diferente... Não é
senão quando... a vida se torna alguma coisa que se
coloca acima das necessidades e da utilidade, que nós
estamos em presença de uma cultura" (XXX p. 10-11).

Em outros termos, a cultura é uma parte da vida, mas ela não é


determinada pelas "necessidades e utilidades da vida", isto é, ela provém da
sociedade sem ser determinada por ela. É evidente que uma tal concepção
conduz ao divorcio com a ciência e à sua substituição pela fé. Isto explica
porque Weber emprega o termo "nós sentimos".

Para passar a essa cultura "espiritual", é mais cômodo examinar em


primeiro lugar os traços mais gerais da estrutura político-social da sociedade,
esta ultima sendo determinada diretamente, como veremos adiante, pela sua
estrutura econômica.

A expressão mais patente da estrutura político-social da sociedade é o


poder de Estado. O que é o poder de Estado? Para responder a esta pergunta,
é preciso primeiro perguntar: como é possível a existência de uma sociedade
de classes? Pois se a sociedade é composta de classes diferentes, essas
classes têm também interesses diferentes. Uns possuem tudo, os outros quase
nada. Uns ordenam, comandam, apropriam-se dos frutos do trabalho alheio;
outros obedecem, executam ordens, entregam os frutos de seu próprio
trabalho. A posição das classes na produção e na repartição, isto é, as suas
condições de existência, o seu papel na sociedade, a sua "existência social",
determinam também uma certa consciência. Sabemos que tudo no mundo é
determinado por alguma coisa, que nada existe sem causa. Não é de admirar
que as dificuldades da situação das classes determinam também uma
diferença nos seus interesses, nos seus desejos, assim como também a luta
entre elas, luta às vezes de morte. Nestas condições, como pode ser atingido o
equilíbrio na estrutura de uma sociedade de classes? Como acontece que não
haja uma ruptura a cada instante? Como é possível a existência de uma
sociedade na qual, como dizia um homem publico inglês, existem, no meio de
uma nação, na realidade duas nações (isto é, duas classes).

Sabemos, entretanto, que a sociedade de classes existe e por conseguinte


deve haver uma condição de equilíbrio suplementar. É preciso que exista
alguma coisa desempenhando o papel de um laço que mantém as classes, não
deixando a sociedade quebrar-se, cair aos pedaços. Este laço, é o Estado. É
uma organização que entrava com seus inúmeros fios toda a sociedade e a
mantém na sua rede. Mas qual é essa organização? Donde provém? Pois
certamente ela não caiu do céu. Ela não pode ser uma organização sem
classe, os homens não pertencendo a uma classe para construir uma
organização fora das classes ou bem "acima das classes" apesar do que dizem
os sábios burgueses, A organização do Estado é "essencialmente a
organização de uma classe dominante".

Formulemos agora a seguinte pergunta: qual é a classe que "domina"? De


que classe é o poder do Estado o instrumento, este poder que obriga as outras
classes à obediência pelo constrangimento, pelas cadeias ideológicas e
espirituais seu aparelho imenso dividido em múltiplos ramos? Não será difícil
responder a essa pergunta, se nos lembrarmos de tudo o que foi dito
anteriormente. Representemo-nos, com efeito, a sociedade capitalista. É a
classe dos capitalistas que domina aqui a produção. Será possível que o
proletariado, por exemplo, domine no Estado de uma maneira durável? Não,
certamente. Pois então uma das condições essenciais de equilíbrio viria a faltar
e se produziria uma ou outra das seguintes alternativas: ou bem o proletariado
tomaria igualmente em mãos o poder sobre a produção, ou bem a burguesia
retomaria o poder de Estado. Assim, enquanto uma sociedade tendo uma
determinada estrutura econômica existe, sua organização de Estado deve ser
adaptada à sua organização econômica, em outros termos a estrutura
econômica de uma sociedade determina também a estrutura estatal e política.

Examinemos ainda uma questão. O Estado é uma organização imensa


que abrange todo o país e que domina vários milhões de homens. Essa
organização necessita de todo um exército de empregados, funcionários,
soldados, oficiais, legisladores, homens de leis, ministros, generais, etc. etc.,
Ela contém ainda camadas inteiras de homens dispostos uns acima de outros.
Na sua estrutura se refletem como em um espelho todas as relações de
produção. Numa sociedade capitalista, por exemplo, é a burguesia que chefia a
produção; o mesmo acontece com o Estado. Um proprietário de usina é
seguido imediatamente de um diretor de fabrica que ele próprio é às vezes
capitalista; as coisas se passam do mesmo modo, no Estado capitalista, com
os ministros, com os grandes chefes burgueses. É nesses meios que se
recrutam os generais do exército. A colocação média na produção é ocupada
pelo técnico e pelo engenheiro, pelo intelectual; os mesmos intelectuais
exercem as funções de empregados médios no aparelho de Estado e é entre
eles que são geralmente recrutados os oficiais. A classe operaria
correspondem os pequenos funcionários, soldados, etc. Certamente, existem
aqui algumas diferenças, mas em geral a estrutura do poder político
corresponde à estrutura da sociedade. Com efeito, imaginemos por um instante
que os pequenos funcionários, por um milagre qualquer, se tornem superiores
aos superiores. Isto equivaleria a dizer que a antiga classe dominante tivesse
deixado escapar de suas mãos o poder político. E isto não é possível senão
quando a sociedade por inteiro perde o seu equilíbrio, isto é, quando nos
achamos em presença de uma revolução. Mas essa revolução, por sua vez,
não pode deflagrar sem que modificações correspondentes se tenham
efetuado na produção; assim, como vemos, a estrutura do próprio poder
político reflete a estrutura econômica da sociedade, isto é, que as mesmas
classes ocupam os mesmos lugares.

Citemos alguns exemplos tirados de domínios e de épocas diferentes. No


antigo Egito, por exemplo, a direção da produção se confundia quase com a
administração do Estado. Os grandes proprietários fundiários se achavam tanto
à frente da produção como do Estado. A maior parte da produção era a do
Estado, baseada sobre a grande propriedade agrária. O papel dos
agrupamentos sociais da produção se confundia com a sua situação como
funcionários superiores, médios e inferiores desse Estado e como escravos (O.
Neurath: "Antike Wirtschaffosgeschichte", edição Teubner, 1909, p. 8).

"As famílias notáveis são certamente famílias rurais, mas


ao mesmo tempo elas representam a aristocracia dos
funcionários" (Max Weber: "Agrargeschichte" — História
Agrária — no Handworterbuch der Staatwissenschaften —
Dicionário das ciências sociais).

As vezes a ligação entre o poder de Estado e o comando da produção era


patente. No XV.° século, na Republica capitalista comercial de Florença,
dominava o banco dos Medicis:

"O banco dos Medicis e o tesouro florentino confundiram-


se completamente, e a falência da casa comercial dos
Medicis confundiu-se com a queda da Republica de
Florença". (M. Pokrovsky: "Le materiel economique,
Moscou, 1906).

Na segunda metade do século XVIII, os grandes proprietários fundiários


que exploravam os seus servos dominavam a produção russa, e também
detinham o poder de Estado, organizado em classe "nobre" privilegiada. E
quando os "Mojiks" levantaram o estandarte da revolta, conhecida na história
pelo nome de "revolta de Pougatchef", a "nobre" imperatriz Catarina IIª exprimiu
o verdadeiro sentido do poder político, participando como "proprietária fundiária
de Kazan" à formação de um regimento de cavalaria destinado a restabelecer a
ordem no meio da "populaça", o que provocou no meio dos nobres de Kazan
uma explosão de sentimentos de fidelidade. As relações que Catarina
entretinha com os filósofos franceses, amantes da liberdade, não a impediram
de introduzir, por exemplo, o direito de servidão na Ukrania. A. Tolstoi exprimiu
muito bem a ligação destes fatos:
Ao
grand
e
povo
Do
qual
sois a
mãe,
Devei
s dar
a
liberd
ade,
É a
liberd
ade
que
lhe
devei
s dar.
Ela
lhes
respo
ndeu:
"Senh
ores,
vós
me
confu
ndis".
E ela
se
apres
sou
A
reatar
os
ucrani
anos
à
gleba.
Na America contemporânea (Estados Unidos), é o capital financeiro, um
grupo de banqueiros e de organizadores de "trustes", que dirige tudo. O poder
político lhes pertence a tal ponto que as decisões do Parlamento são tomadas
em primeiro lugar nos bastidores do capital unificado.

Entretanto, a estrutura política e social da sociedade não se exprime


inteiramente pelo poder político. Tanto a classe dominante como as classes
oprimidas dispõem de numerosas organizações e de uniões as mais variadas.
Cada classe tem habitualmente a sua guarda avançada, os seus membros
mais "conscientes" que formam partidos políticos, lutando pelo poder. A classe
dominante tem geralmente o seu próprio partido; as classes oprimidas têm os
seus; as classes "médias" também. Existindo ainda outras subdivisões no
interior de cada classe, não é de admirar que uma classe possua às vezes
vários partidos, se bem que seus interesses mais constantes, mais sólidos,
mais essenciais sejam expressos por um só dentre eles. Além dos partidos
organizados, há ainda outras organizações: assim, por exemplo, os capitalistas
americanos têm hoje em dia as suas associações de luta contra os operários,
organizações especiais para as fraudes eleitorais (o que se
denomina Tammany-Hall), organizações de recrutamento, furadores de greve,
organizações de provocadores (agencia de policia e detetives particulares de
Pinkerton) e grupos escondidos aos olhos do mundo, graças a uma solida
conspiração das firmas capitalistas as mais influentes, assim como dos
políticos mais em voga, grupos cujas decisões são em seguida confirmadas
pelos órgãos oficiais do Estado. Na antiga Rússia, o papel de organização
auxiliar do Estado dos nobres era assumido pelos "Cem-negros", que tinham
mesmo ligações com a casa reinante dos Romanoff; em 1921, o mesmo papel
era desempenhado na Itália pelos fascistas, na Alemanha pelo Orguesch. As
classes oprimidas têm também, fora de seus partidos, uniões "econômicas"
diversas (os sindicatos profissionais, por exemplo), organizações de combate,
clubes; nessas organizações poderemos classificar os "bandos" de Stenka
Razin ou de Pugatchef. Numa palavra, todas as organizações que
empreendem uma luta de classe, a começar pela "juventude dourada", as
"corporações" alemãs de estudantes e acabando pelo Estado de um lado; a
começar pelos partidos e acabando pelos clubes do outro, todas fazem parte
da estrutura política e social da sociedade. Não é necessário fazer um grande
esforço intelectual para compreender o que determina a sua existência. É o
reflexo e a expresso das classes. Por conseguinte, aqui também a "economia"
determina a "política".

Mas, examinando essa "superestrutura política" da sociedade, podemos e


devemos tomar em consideração o seguinte fato: resulta, com efeito, dos
exemplos já citados que a superestrutura política não se limita a um só
aparelho humano. Do mesmo modo que toda a sociedade, ela é composta, por
sua vez, de combinações de coisas, homens e idéias. Tomemos o aparelho de
Estado, por exemplo. Nele encontramos a sua parte material, sua hierarquia,
suas idéias sistematizadas (normas, leis, decisões, etc.). Tomemos o exército;
é também uma parte do Estado, mas ele tem também, por sua vez, a sua
"técnica" (canhões, fuzis, metralhadoras, intendência), sua organização dos
homens "repartidos" segundo um certo modelo, e suas "idéias" que são
inculcadas a todos os membros do exército (idéia de obediência, disciplina,
etc.) por uma instrução militar complicada e por uma educação especial dos
homens. Se examinarmos o exército deste ponto de vista, chegamos sem
dificuldade aos seguintes resultados: a técnica do exército é determinada pela
técnica geral do trabalho produtivo em uma sociedade dada; não é possível
fazer um canhão se não se sabe fundir o aço, isto é, sem dispor dos
instrumentos correspondentes à produção. A repartição dos homens, a ordem
do exército, dependem da técnica militar e ao mesmo tempo da divisão da
sociedade em classes; do gênero dos armamentos depende a divisão do
exército em artilharia, infantaria, cavalaria, engenharia, etc.; daí os diferentes
gêneros de soldados, chefes, homens tendo funções particulares (os
telefonistas, por exemplo). De outro lado, a divisão da sociedade em classes
determina as camadas sociais que fornecem, por exemplo, os corpos de
oficiais, de chefes que dirigem a ação do exército, etc. Enfim, as idéias
especiais que animam o exército são determinadas, de um lado pelo regime do
exército (os regulamentos, o sentimento de disciplina, etc.) e de outro, pela
estrutura das classes da sociedade (no exército tzarista dizia-se: obedece ao
tzar, defende "a fé, o tzar e a pátria" e, no exército vermelho se diz: "seja
disciplinado para defender os trabalhadores contra os imperialistas"). Bastam
estes exemplos para se poder dizer: a superestrutura política e social é uma
coisa complexa, composta de elementos diversos ligados entre si. Em geral,
ela é determinada pela estrutura de classe da sociedade, estrutura que por sua
vez depende das forças produtivas, isto é, da técnica social. Certos elementos
dependem diretamente da técnica, "técnica militar"; outros tantos do caráter de
classe da sociedade (de sua economia), como também da "técnica" da própria
superestrutura ("a estrutura do exército"). Assim, todos esses elementos
dependem direta ou indiretamente do desenvolvimento das forças produtivas
sociais.

Um lugar particular é ocupado, entre as organizações humanas, pela


organização familiar, isto é, pelo conjunto dos maridos mulheres e filhos. Essa
organização dos sexos, que variava constantemente, tinha como base relações
econômicas definidas:
"a família é igualmente uma formação, não somente
social, mas ainda (e antes de tudo) econômica baseada
sobre a divisão do trabalho entre o homem e a mulher,
sobre a diferenciação sexual..." o casamento primitivo não
é outra coisa senão a expressão dessa união econômica
(Muller-Lyer, ob. cit. p. 110). (Marx: Capital, 1. "No interior
de uma família... efetua-se uma divisão natural de
trabalho, baseada na diferença dos sexos e da idade...").

A família não aparece como uma coisa solida... senão como consequência
de modificações do regime da tribo, que oferecia o caráter do comunismo
primitivo. (As formas primitivas das relações sexuais eram as de "relações
sexuais desordenadas", isto é, de ajuntamento livre e instável do homem e da
mulher). Vejamos como o Sr. N. Pokrovsky caracteriza a família primitiva dos
eslavos ("a grande família", a "zadruga" servia, "vélika kutsia", "a grande casa"
em sérvio); os membros de uma família destas, — operários da mesma
exploração, soldados dos mesmos destacamentos, enfim adoradores dos
mesmos deuses, participantes do mesmo culto ("Historia da Rússia", tomo 1,
1920). As bases econômicas de uma tal família são ainda melhor
caracterizadas pelo fato seguinte:

"Nós cometeríamos um grande erro, diz o Sr.


N. Pokrovsky, se atribuíssemos à esses laços do sangue
uma importância preponderante: eles existem geralmente,
mas não são absolutamente necessários. Uma
semelhante economia coletiva estava organizada
frequentemente no Norte por homens completamente
estranhos uns aos outros: unidos por um acordo
particular, eles fundavam um "lar" não para sempre, mas
por um certo período de tempo, por 10 anos, por
exemplo... Assim o laço econômico antecede aqui o laço
de sangue, de "parentesco", no sentido que damos a essa
palavra (ib.)".

As modificações de formas das relações familiares relativamente às


condições econômicas podem ser observadas também nos tempos modernos;
basta comparar uma família camponesa com uma família operaria ou com a de
um burguês contemporâneo.

A família camponesa é uma união sólida, tendo uma base de produção


direta.
"Como posso eu me arranjar sem mulher? A mulher é
indispensável, diz o camponês. É preciso mugir as vacas,
tratar dos porcos, preparar as refeições, lavar, tratar das
crianças, etc..".

A importância econômica da família é tão grande que o casamento é o


resultado de um cálculo econômico: "Precisa-se de uma dona de casa". Os
membros da mesma família são considerados do ponto de vista econômico,
como "trabalhadores" e como "consumidores". Tendo uma tal base, a família
relativamente estável, a família camponesa se distingue por uma solidez
patriarcal, enquanto ela não foi tocada pela influência "desmoralizadora" da
cidade. As coisas se passam de outro modo com o operário. De fato ele não
dispõe de casa própria. Sua "economia domestica" é toda ela de consumo; ele
não faz nada mais senão gastar o seu salário. De outro lado, a cidade com
seus restaurantes, suas lavanderias, etc., torna em geral a economia
domestica menos necessária. Enfim, a grande indústria contribui para a
"decomposição da família", obrigando a mulher-proletária a trabalhar na usina.
Todas estas circunstancias formam outras relações familiares, mais nobres,
menos estáveis. Na grande burguesia, a propriedade privada conserva a
família, mas o parasitismo crescente da burguesia, a formação no seu seio de
camadas inteiras de percebedores de rendas, transforma a mulher em objeto,
numa bonita boneca, mas sem cérebro, instrumento de prazer, "bibelot" de
toucador. As diversas formas de casamento (monogamia, poligamia, poliandra,
etc.) correspondem também a condições de evolução econômica. É preciso
não esquecer que as relações sexuais, tomadas em geral, não se limitavam
quase nunca às relações dentro dos quadros da família. Fenômenos tais como
a prostituição já aparecem na mais remota antiguidade. As formas e as
dimensões da prostituição são ligadas, por sua vez, com a estrutura econômica
da sociedade; basta lembrar o papel desempenhado pela prostituição no
regime capitalista. Há lugar para crer que, na sociedade comunista, a
prostituição e a família desaparecerão, ao mesmo tempo em que desaparecerá
definitivamente a propriedade privada e a opressão da mulher.

Passemos agora ao exame de outras "superestruturas". Os homens


estando tanto na sociedade, tomada no seu conjunto, quanto em certas frações
dessa sociedade, em luta direta uns contra os outros, resulta daí a necessidade
social das normas sociais (regras de conduta). Entre estas contam-se os
costumes, a moralidade, o direito e toda uma série de outras regras: "regras de
polidez", "etiquetas*, "cerimônias", etc...; de outro lado, os estatutos das
diferentes sociedades, organizações, corporações, etc...). Qual é a causa de
seu desenvolvimento? Ele é determinado simplesmente pelo desenvolvimento
dos antagonismos numa sociedade que cresce e se complica ao extremo... O
antagonismo mais profundo como nós já vimos, é o antagonismo entre as
classes. Também ele "exige" um regulador poderoso, susceptível de o dominar.
Como regulador aparece, como sabemos, o poder de Estado com seus
anexos, decretos denominados normas legais. Mas existe ainda um grande
número de antagonismos entre as classes e no interior das classes, profissões,
grupos, associações e as diferentes categorias de homens em geral. Todo
homem, fora da situação de classe, entra em contacto com todos os homens
imagináveis, é submetido a um grande número de influencias, que se
entrecruzam mutuamente; eles se encontram em diferentes situações que
mudam rapidamente, que se seguem, desaparecem e tornam a aparecer.
Estamos aqui em presença de continuas contradições. E, entretanto, a
sociedade continua a existir e existem sempre no seu seio grupos diversos que
têm, apesar de tudo, um caráter relativamente estável. Os capitalistas,
proprietários de empresas, comerciantes, aparecem no mercado como
concorrentes e entretanto, no interior do próprio Estado, eles se combatem a
golpes de faca e a sua classe não se desloca, porque seus membros rivalizam
entre si. Os compradores e vendedores têm interesses completamente
opostos. E entretanto, não chegam sempre a vias de fato. Entre os operários,
há desempregados que os capitalistas compram de bom grado, durante as
greves. Mas eles não conseguem comprar todo mundo e a união de classe dos
operários vence. Como isto é possível? Essa circunstancia é facilitada pela
existência de normas suplementares variadas além da lei. Essas normas
suplementares (regras de conduta) implantam-se no cérebro humano, agem,
por assim dizer, de dentro, parecem sagradas aos homens por sua própria
natureza e são seguidas mais devido ao impulso da consciência do que por
medo. Tais são, por exemplo, as regras da moral que, numa sociedade onde
circulam mercadorias, aparecem como eternas, inflexíveis e sagradas,
refulgindo de um fogo interior e obrigatórias para qualquer homem honesto.
Tais são os costumes "preceitos dos antepassados". Tais são "as regras de
polidez", "de bom viver", etc.

Entretanto, qualquer que seja a aparente "origem supra terrestre dessas


regras sagradas, não é difícil descobrir as suas raízes na terra, apesar do
medo que elas inspiram aos seus adoradores. Estudando-as, encontramos,
antes de tudo, dois fatos essenciais: em primeiro lugar, o caráter variável
destas regras, e em segundo lugar, o laço que as une com uma classe, um
grupo, uma profissão determinada, etc. Depois de descobrir estes fatos e
aprofundando-nos um pouco mais, veremos "que no fim de contas" eles
dependem da evolução das forças produtivas. Em geral, pode-se dizer que
essas regras traçam a linha de conduta pela qual se conserva uma dada
sociedade, ou uma classe ou um agrupamento ou um grupo no qual os
interesses provisórios de um homem isolado são subordinados aos interesses
do grupo.

Assim, essas normas são as condições de equilíbrio, emoções que


neutralizam até um certo ponto as contradições internas dos sistemas
humanos. É portanto fácil de compreender a razão por que elas devem
necessariamente concordar mais ou menos com o regime econômico da
sociedade. Formulemos somente a seguinte pergunta: quando a sociedade
existe, será possível que o sistema dos costumes e da moral que nela
dominam possa ser contrario durante muito tempo à sua estrutura essencial,
isto é, econômica? A resposta é clara. Uma tal situação não se pode prolongar
por muito tempo. Se os costumes e a moral que dominam em uma dada
sociedade fossem fortemente contrários ao seu regime econômico, uma das
condições essenciais de equilíbrio social viria a faltar. Na realidade, o direito, os
costumes e a moral que dominam numa dada sociedade concordam sempre
com as relações econômicas, têm as mesmas bases, modificam-se e
desaparecem com elas. Imaginemos o seguinte exemplo: sabemos que numa
sociedade capitalista são os capitalistas que dominam as coisas (os meios de
produção). Nas leis de um Estado capitalista isto se exprime pela lei da
propriedade privada, que é defendida por todo o aparelho do poder de Estado.
As relações de produção de uma sociedade capitalista são denominadas em
linguagem vulgar de relações de propriedade, e são estas que são protegidas
pelas leis. Seria possível, numa sociedade capitalista, que as normas jurídicas
(as leis) não defendessem as relações de propriedade, mas ao contrario as
destruíssem? Uma tal hipótese é evidentemente absurda, e o mesmo pode ser
dito da moral. "A consciência moral" da sociedade capitalista reflete e exprime
seu estado material. Tomemos ainda o mesmo exemplo da propriedade
privada. A moral diz que não é correto roubar, que é preciso ser honesto e não
tocar, sob nenhum pretexto, nos bens de outrem, isto é compreensível. Se, por
exemplo, este preceito não estivesse gravado no cérebro dos homens, a
sociedade capitalista se teria decomposto muito rapidamente.

Poderiam opor-nos o seguinte argumento: dizeis que tudo isto é muito


simples, e entretanto, os comunistas, por exemplo, não admitem que a
propriedade privada seja sagrada, mas não ousam dizer que o roubo é moral.
Assim, há coisas que são sagradas para todos e que não podem ser
explicadas por causas terrestres. Mas este argumento não está certo, apesar
de sua força aparente. Vejamos porque: em primeiro lugar, os comunistas não
defendem de modo algum a intangibilidade absoluta da propriedade privada. A
nacionalização das empresas constitui a expropriação da burguesia; ela é
despojada sem indenização. A classe operaria apodera-se "daquilo que não lhe
pertence", atenta portanto contra o direito da propriedade privada, "invade
despoticamente o domínio das relações de propriedade" (Marx). Em segundo
lugar, os comunistas são contra o roubo, por que? Porque se o operário isolado
se apoderasse das coisas pertencentes aos capitalistas, no seu interesse
pessoal, ele não poderia tomar parte numa luta geral e se transformaria, ele
próprio, num burguês. Ladrões de cavalos e arrombadores não serão nunca
elementos ativos da luta de classe, mesmo se eles forem da mais pura origem
proletária. Se um grande número de proletários se tornassem ladrões, a própria
classe se desagregaria e enfraqueceria. Eis a razão por que os comunistas
adotaram esta regra: não roube, para não decair. Isto não constitui uma norma
de defesa da propriedade privada, mas um meio de conservar a integridade da
classe operaria, de protegê-la contra a "desmoralização", contra a
decomposição, o meio de preveni-la contra os meios irregulares de dirigir os
proletários no seu próprio caminho. Isto é a regra de conduta da classe do
proletariado. Depois de tudo que foi dito, é inútil explicar mais amplamente que
as regras de conduta examinadas acima são determinadas pelas condições
econômicas da sociedade.

Certamente, as normas proletárias são contrarias às condizes econômicas


da sociedade capitalista. Mas nós falamos das normas dominantes. Quando as
normas de conduta proletárias se tornam por sua vez dominantes, é o fim do
capitalismo. Falaremos disto no capítulo seguinte).

Para explicar o que foi dito acima, citemos alguns exemplos. No domínio
sexual, em um certo estágio de desenvolvimento, quando o clã se apoiava
também sobre o lado do sangue e que os homens de um outro clã (isto é, na
realidade de outra sociedade) eram inimigos, não se considerava mal o
casamento entre parentes próximos e era considerado particularmente sagrada
a união com a própria mãe ou a filha (como, por exemplo, na antiga família
iraniana).

Quando as forças produtivas estavam ainda fracamente desenvolvidas e


que a economia social era insuficiente para entreter bocas inúteis, os costumes
e a moral julgavam necessário matar os velhos (segundo Heródoto, Estrabão e
outros historiadores antigos). É por causas análogas que se explica o costume
ao qual se refere Estrabão, segundo o qual os Velhos se envenenavam
voluntariamente. Pelo contrario, quando esses velhos desempenhavam um
certo papel na produção, ou na direção desta, o costume prescrevia o respeito
à velhice (ver E. Meyer: "Elemente der Aníropologie" — Elementos de
Antropologia, p. 31-32 e seguintes). A solidez do clã, a sua solidariedade na
luta com inimigos cruéis, exprimiam-se na vingança na qual participavam
também as mulheres. Basta lembrar as figuras de Brunhilda ou de Gudrun do
"Canto das Niebelungen"; vejamos como é caracterizada Gudrun, menos cruel
do que Brunhilda:

Ela
vingo
u
seus
irmão
s,
Ela
soltou
os
cães,
Ela
derra
mou o
sangu
e
Com
a
ponta
de
seu
sabre.

(O
canto
de
Sigur
d)

E. Meyer escreve com razão:

"O próprio conteúdo da moral, dos usos e do direito,


dependem do regime social que existe num momento
dado e das concepções da sociedade... Também podem
eles ter, em sociedades diferentes, e em épocas
diferentes, um caráter diametralmente oposto".

Na China antiga, o poder de Estado feudal dispunha de um grande número


de funcionários de diversas categorias, tinha uma importância enorme. A
dominação dessa camada burocrática e fundiária baseava-se ideologicamente
sobre a doutrina de Confúcio, composta de todo um sistema de regras de
conduta. Um dos artigos mais importantes dessa ciência moral era a doutrina
do respeito para com os superiores (Hiao):

"É preciso suportar a calunia, e até sofrer a morte, se isto


for útil para a honra do soberano; pode-se (e é preciso)
em geral corrigir por seu serviço fiel os erros do soberano
e é nisto que consiste o respeito (Hiao). (Max Weber:
"Gesammelte Aufsatze zur Religionssoziologie, —
Estudos sobre a religião e a sociologia, Tubingen, edição
Mohr, 1920, 1.° vol., pag. 419).

O atentado contra o "Hiao" constitui o único pecado. É bárbaro aquele que


não o compreender, aquele que não compreende o "decoro" (concepção
essencial da doutrina de Confúcio).

"A piedade (Hiao) para com o senhor feudal é posta no


mesmo pé que o respeito (Hiao) para com os pais,
mestres, chefes da hierarquia burocrática e seus
dignitários" (Ib. 446.).

A disciplina, tanto quanto o respeito, é uma das maiores virtudes.

"A desobediência é pior do que um pensamento covarde"


(Ib. 447).

A idéia que domina tudo é a de ordem.

"É melhor viver como um cão, mas em paz, do que ser um


homem em estado de anarquia, diz Tchen-Ki-Tong" (Ib.
457).

Como toda moral burocrática, a moral de Confúcio proibia evidentemente a


participação dos funcionários no trabalho destinado a adquirir as riquezas...
como a uma obra duvidosa do ponto de vista moral e indigna dessa "casta" (Ib.
447). Pode-se escolher seus amigos somente entre iguais, do ponto de vista
social; os ricos são melhores do que os pobres, porque eles podem cumprir
todas as cerimônias; o povo, o "estúpido povo" (Youn Min) é oposto ao
"gentleman" (literalmente: Ao homem-príncipe). É característico que todo esse
enorme sistema de regras de conduta que sustinha o regime feudal nobre,
denominava-se "Hung-Fan", isto é, o "grande plano" (ib. 457). O laço que une
essa doutrina à ordem social é evidente. E todas as numerosas "cerimônias
chinesas" se uniam na realidade à corrente ideológica dominante e serviu de
rede com malhas de seda destinada a embaraçar toda a sociedade e a
sustentar o regime correspondente.

Examinemos ainda os costumes dos cavaleiros franceses do Norte no XII


e XIII século. Os cavaleiros celebravam "as belas damas" e lutavam "por elas"
nos torneios. Mas a sua "concepção ideal do amor e da felicidade" tinha a
forma de "honra de casta" (Ver: Weltgeschichte — História do mundo, de H.
Helmold, volume 5, pag. 496, Leipzig und Wien, 1919). O papel principal da
cavalaria na sociedade era a guerra e as ações militares. Não é de admirar
então que "as normas" contribuíssem para criar um tipo militar de homens
formando uma classe particular:

"O cavaleiro que se revelava covarde era expulso, em


publico desonrado pelo arauto, maldito pela igreja; o
carrasco quebrava seus brasões e suas armas, seu
escudo era amarrado à cauda de um cavalo... etc.". "Os
torneios serviam de exercício na arte militar..." (Ib.).

Ao mesmo tempo que aparece a ordem capitalista, os costumes, a moral,


etc., mudam. A prodigalidade cede o lugar à paixão da economia e às virtudes
correspondentes.

"Não é a conduta de um senhor feudal que honra um


homem honesto, mas sim o de ter os negócios em
ordem". (W. Sombart: Oburguês).

É preciso viver de uma maneira "correta"... é preciso abster-se de qualquer


excesso, não se mostrar senão em boa sociedade Não se deve ser bêbado,
jogador, mulherengo, é preciso ir à missa e ao sermão do domingo, em uma
palavra, é preciso ser um bom... cidadão" com relação ao mundo exterior, e no
interesse de seus negócios; pois essa vida moral aumenta o credito" (Ib.).
Certamente, essa moral de tartufo protestante cedeu o lugar a uma outra,
quando a situação da burguesia mudou e quando os negócios da firma
cessaram de depender da conduta de seu proprietário.

Mostrar a variação do direito, relativamente ao regime econômico, é coisa


ainda mais fácil, o caráter de classe das leis sendo visível sempre e em toda
parte. Mas mesmo normas fortuitas como as da moda dependem, como se
pode provar, das condições sociais. Um burguês considera "inconveniente" não
estar corretamente vestido: é por ai que se afirma a marca de classe, é pelo
habito que se reconhecem "as pessoas corretas". Mesmo nos meios
revolucionários, encontra-se alguma coisa de semelhante. Assim, por exemplo,
durante a Revolução de 1905, havia uma moda de partido: os social-
democratas vestiam camisas pretas (sinal do proletariado), os socialistas-
revolucionários preferiam camisas vermelhas (camponeses revolucionários);
encontrar-se-ia dificilmente, numa grande cidade, uma dúzia de intelectuais,
tendo participado na Revolução, sem ter vestido um ou outro uniforme de
partido, tacitamente adotado.

Fora da moral de classe existem ainda outras formas de moral, como por
exemplo a moral profissional dos médicos, advogados, etc... Do mesmo modo
existe igualmente a moral dos ladrões, que é rigorosamente observada por
eles, de não se denunciar os seus. Assim, todas as normas que examinamos
acima constituem os laços que mantêm a unidade da sociedade, de uma
classe, de um grupo profissional determinado.

§ 39. A psicologia e ideologia sociais

Quando examinamos a origem da ciência e da arte, do direito e da moral,


etc., já encontramos diante de nós um certo número de sistemas bem
concatenados de imagens, pensamentos, regras de conduta, etc.. A ciência
consiste em pensamentos concatenados entre si, ajustados uns aos outros,
sistematizados, que envolvem com sua textura um objeto qualquer. A arte é um
sistema de sensações, sentimentos, imagens. A moral é um conjunto de regras
de conduta, tendo uma força persuasiva e penetrante, que são mais ou menos
rigorosamente ajuizadas umas às outras. O mesmo pode ser dito de muitas
outras ideologias. Mas, na vida social, descobrimos um imenso domínio de
valores não refletidos, não sistematizados, onde não encontramos uma ligação
obrigatória entre os valores. Tomai aquilo que denominamos «as idéias
correntes» sobre um objeto qualquer, em confronto com o pensamento
«cientifico» sobre o mesmo tema. O que verificamos em primeiro lugar, são
noções fragmentarias, idéias sem ordem e dispersas; teremos aí uma multidão
de contradições, de idéias insuficientemente meditadas, de bizarrias. Tudo isto
precisa ser trabalhado, examinado com a lente, criticado, verificado,
desembaraçado das contradições; mas então, já intervém a ciência. Ora, é
habitualmente sobre «as idéias correntes» que se vive. Entre a imensidade das
reações recíprocas que se produzem entre os homens e que constituem a vida
social, existe, no domínio das relações psíquicas, uma multidão desses
elementos não sistematizados: idéias fragmentárias, nas quais, entretanto, já
se exprime um certo conhecimento dos sentimentos e dos desejos, nas
relações dos homens entre si; gostos, modos pensar, representações não
refletidas, «semi-conscientes» confusas sobre «o bem» e o «mal», sobre «o
justo» e «o injusto», sobre «o belo» e o «feio»; hábitos e opiniões correntes,
quotidianas; tendências e idéias referentes à marcha da vida social;
sentimentos de alegria ou de tristeza, de aborrecimento e de cólera, sede de
luta ou desespero sem remissão, julgamentos variados, esperanças confusas,
ideais; pensamentos críticos e mordazes sobre a ordem estabelecida ou
disposição constante e muito agradável para achar que «tudo vai da melhor
maneira no melhor dos mundos»; sentimentos de insucesso e de desilusão,
inquietude dos maus dias, desejos de levar uma existência louca, ilusões
infinitas sobre o futuro ou temor do futuro, etc.. Todos esses fenômenos,
considerados na medida da vida social, constituem o que se denomina a
psicologia social. O que distingue a psicologia dita social ou coletiva
da ideologia é portanto, como vemos, o grau de sistematização.

A psicologia social apareceu mais de uma vez na ciência burguesa sob o


véu extremamente misterioso daquilo que se denomina «espírito nacional» ou
«espírito do nosso tempo»; e com efeito, entendia-se por isso uma espécie de
alma social única e universal no sentido mais literal. Entretanto, não existe
neste sentido um «espírito nacional», como também não existe uma sociedade
constituída como um organismo único tendo um só centro de consciência. Já
dissemos que seria ridículo representar-se a sociedade à moda da Baleia da
qual se fala na nossa lenda do Pequeno cavalo corcunda; seria absurdo
esperar ver no meio do mundo exterior

...
pavon
ear-se
Com
a
boca
aberta
,
monst
ruosa
Baleia
Cujos
flanco
s
gretad
os,
De
paliça
das
eriçad
as,
Abre
m-se
como
uma
planíc
ie
Cober
ta de
barba
s,
Onde
as
menin
as e
os
rapaz
es
Vão
colher
cogu
melos
...

Mas este monstro não existe, e não existe tampouco um «espírito


nacional» ou «alma nacional» no sentido mistérioso e místico que se dá a estas
palavras. E entretanto, falamos numa psicologia social que distinguimos da
psicologia individual. Como entender isto? Como resolver essa contradição?
Mas é muito simples! As realizações recíprocas que se produzem entre os
homens determinam uma psicologia especial em cadaindivíduo. O elemento
«social» existe não entre os homens, mas nas cabeças desses homens. Ora, o
que existe nessas cabeças, nesses cérebros, nesses espíritos é o produto das
influências mutuas das relações recíprocas que se entrecruzam, por
conseguinte não há outro elemento psíquico a não ser aquele que existe nos
indivíduos, constantemente mergulhados numa atmosfera de reação mutua,
nos indivíduos «socializados»: a sociedade é portanto um conjunto de homens
socializados e não um fabuloso Leviatã cujos órgãos seriam os indivíduos.

G. Simmel assim escreve, admiravelmente:

"Quando uma multidão, nos diz ele, demole um edifício,


ou pronuncia um julgamento, ou clama violentamente, os
atos dos indivíduos formam uma soma, e esta soma é um
acontecimento que designamos como um fato único,
como a realização de um sóconceito. E é então que se
produz uma importante substituição: o resultado exterior
de um conjunto de processos psicológicos individuais é
interpretado como resultado de um único processo de
conjunto, de um processo da alma coletiva" (G. Simmel:
Soziologie. Untersuchungen uber die Formen
Vergesellschaftung — "Investigações sobre as formas da
socialização" — Leipzig, 1908. Verlag Duncker und
Humbolt. Pag. 559-60).

Outro exemplo: Acontece às vezes que as relações recíprocas dos


indivíduos produzem qualquer coisa de novo e de mais considerável do que a
simples soma das tendências ou dos atos individuais.

''Se examinarmos as coisas bem de perto, neste caso,


trata-se do modo de agir dos indivíduos que se
encontram sob a influênciado ambiente; como resultado
desse ambiente, produzem-se transposições de tom
(Umstimmungen), transposições nervosas intelectuais,
hipnóticas (de sugestão), morais, por comparação com os
estados espirituais que existiriam fora desse ambiente e
de suas influencias. Mas se estas últimas, reagindo ainda
umas sobre as outras, modificam igualmente o estado
interior de todos os membros do grupo, está claro que a
sua ação comum (Totalaktion) seria diferente da ação de
cada uma das influencias quando ela se manifesta
isoladamente" (Ibidem, pag. 560).

Entretanto, nas expressões «alma racional», «espírito de nosso tempo» há


um certo sentido: estes termos indicam exatamente dois fatos que podem ser
observados em toda parte e sempre: em primeiro lugar o seguinte: que em
cada época, há uma tendência dominante nos pensamentos,
sentimentos, estados de alma, uma psicologia dominante que colora toda a
vida social; em segundo lugar: que essa psicologia dominante modifica se em
função do «caráter da época». isto é, em nossa linguagem, em função das
condições da evolução social.

A psicologia dominante numa sociedade reduz-se aos dois principais


elementos seguintes: em primeiro lugar: a caracteres psicológicos geraisque
podem ser encontrados em todas as classes da sociedade porque, apesar de
toda a diversidade das situações ocupadas por estas classes, pode haver
analogias entre estas situações; em segundo lugar a uma psicologia da classe
dominante que se impõe tão fortemente na sociedade a ponto de dirigir toda a
vida social, submetendo mesmo as outras classes à sua influência. Como
exemplo do primeiro destes elementos pode-se relembrar o que era visto nas
épocas do feudalismo: tanto no senhor como no camponês, havia traços
psicológicos comuns: apego às velhas coisas, rotina, tradições, submissão à
autoridade, «temor de Deus», estagnação do pensamento, aversão por todas
as novidades, etc.. Por que era assim? Em primeiro lugar, porque as duas
classes viviam numa sociedade estacionaria: o movimento psicológico vem
mais tarde das cidades. Em segundo lugar, porque o senhor feudal sendo
«soberano e pai» no seu domínio, o camponês, por seu lado, é também
«soberano e pai» na sua família». A família, nós o sabemos, é uma das
organizações de trabalho dessa época. Os laços do trabalho familiar na
economia camponesa desempenham ainda nos nossos dias um papel
importante. Compreende-se, portanto, que o regime patriarcal, a constituição
do trabalho de família, a autoridade indiscutida e o poder
do pater familiae tenham determinado uma psicologia correspondente: «Os
mais idosos sabem melhor o que se deve fazer». O espírito conservador da
nobreza feudal e dos camponeses em servidão, era «o espírito do tempo»
numa fase determinada da evolução social. Bem entendido, ao lado disto, na
psicologia social dominante, manifestavam-se outros elementos que
caracterizavam unicamente os senhores feudais e não se difundiam senão em
função da situação dominante da nobreza.

Por outro lado, vemos muito mais frequentemente a psicologia social —


entendamos: a psicologia social dominante — determinada pela psicologia
da classe dominante. Marx nos diz no Manifesto Comunista, capítulo 2.º:

«As idéias dominantes de uma época qualquer não foram


sempre senão as idéias de uma classe dominante».

O mesmo pode-se dizer da psicologia social que domina numa época


determinada. Já demos, no exame das ideologias, diversos exemplos de
sentimentos, pensamentos e estados de alma que dominavam nas sociedades.
Indaguemos agora, por exemplo, o que representava a psicologia do
Renascimento que se distinguia pelo seu amor pelas volúpias terrestres as
mais refinadas, que falava latim ou grego, que refinava na ciência, que tinha a
paixão de valorizar a personalidade para distingui-la do «vulgar», que
considerava com elegante desdém as superstições da Idade Média, etc.. Está
claro que esta psicologia nada tinha de comum, por exemplo, com a da classe
camponesa italiana de então. Esta psicologia era o produto da vida das cidades
comerciais e nas cidades ela era o resultado da existência, de
uma aristocracia de financeiros e de comerciantes. As cidades começavam
então a ganhar terreno sobre os campos, e eram banqueiros, aparentados com
a sociedade principesca, que nelas dirigiam os negócios. É a psicologia desta
camada social que se reconhece como sendo dominante para a época: os
monumentos do tempo são uma expressão viva disto. É preciso ainda notar
que à medida que se desenvolvem as forças produtivas, a classe dominante
apodera-se de poderosos meios; que lhes servem para formar, determinar a
psicologia das outras classes.

«Realmente... três ou quatro jornais de importância


mundial chegarão, no futuro, a determinar a opinião dos
jornais de provinda e, por conseguinte, a determinar «a
vontade do povo», como nos diz, sem constrangimento, o
filósofo da burguesia alemã contemporânea, Spengler.

Não deixa porém de ser evidente que, numa sociedade constituída em


classes, não existe uma «psicologia social» maciça, comum, uniforme. Não
existem, no melhor dos casos, senão certos traços comuns dos quais não
devemos exagerar a importância.

O mesmo pode-se dizer daquilo que se denomina "caráter de um povo",


"psicologia dos povos", etc..... Bem entendido, não é da conta dos
marxistas contestar "em princípio" certos traços comuns que podem existir
entre as diversas classes de um só e mesmo povo. Marx, numa certa
passagem, toma mesmo em consideração a influência da raça; ele escreve
com efeito:

"... A mesma base econômica — a mesma nas suas


condições essenciais — pode mostrar, devido a
circunstancias empíricas inúmeras e diversas, devido a
condições climatéricas, devido a relações de raça, de
influência histórica agindo exteriormente, etc., infinitas
variações na sua manifestação, o que não pode ser
compreendido senão pela análise dessas circunstancias
empíricas" (Karl Marx: Capital, III).

Em outros termos: se duas sociedades quaisquer passam pelo mesmo


grau de evolução (digamos: pelo feudalismo), elas apresentarão cada uma
certas particularidades (bem que secundárias, não modificando os "traços
essenciais"). Estas particularidades explicam-se por diversos desvios no
processo da evolução, como consequência de condições particulares da
evolução no passado. Seria absurdo negar estas particularidades, como
também não se podem contestar certos aspectos singulares do "caráter
nacional", do "temperamento", etc.. Bem entendido, uma psicologia
declasse não é ainda a prova da existência de certos caracteres "nacionais"
particulares; (Marx, por exemplo, dizia do filósofo Bentham que este era um
fenômeno "especificamente inglês"; Engels denominava o socialismo do
economista Rodbertus "um socialismo de junker prussiano", etc.). Eis porque o
Dr. E. Hunvicz. atualmente companheiro de Cunow na sua luta para a
exterminação dos bolchevistas, tem razão quando escreve que

"a psicologia profissional não exclui a psicologia popular" e


"o que se dá com a psicologia de casta dá-se com a
psicologia local: a psicologia de casta não impede a
existência da psicologia nacional" (E. Hurwicz: Die Seelen
der Volker. Verlage Fr. Perthes. Gotha, 1920. Pag. 14 e
15).

Mas é preciso observar que os marxistas explicam estas particularidades


nacionais pela marcha efetiva da evolução social e não se contentam em
apontá-las com o dedo; em segundo lugar, eles não exageram a importância
dessas particularidades e sabem "ver as arvores atrás da floresta", enquanto
que os simples partidários da "psicologia nacional", etc., são incapazes de
reconhecer a floresta; em terceiro lugar, os marxistas não
escrevem bobagens como o fazem constantemente os sábios e os semi-
sábios da pequena-burguesia, os fanfarrões que floreiam sobre o tema da
"alma popular". Todos sabem por exemplo que o pequeno-burguês russo
sempre considerou como característica de todo alemão o ser pequeno-
burguês. Ora, os operários alemães nos provam hoje em dia que isto não é
verdade. Todos sabem quantas tolices foram escritas e publicadas sobre "a
alma eslava". Quando, por exemplo, o mesmo Hurwicz descobre num arroubo
de imaginação que o bolchevismo não é senão o czarismo às avessas, quando
ele pretende reconhecer no bolchevismo os métodos de governo da autocracia,
o que ele mostra com isto não são as características da "alma russa", que
segundo ele explicariam esta identidade de métodos; mas ele manifesta a sua
qualidade de alma de pequeno-burguês internacional, apavorado pela
Revolução e que sustenta atualmente os partidos da social-democracia.

A psicologia de classe apóia-se sobre o conjunto das condições de


vida das classes respectivas e estas condições de vida são determinadas
pela situação das classes e pelas conjunturas econômicas, políticas e
sociais.

É preciso considerar, além disto, a complexidade de toda psicologia social.


Acontece por exemplo que psicologias de classe, absolutamente opostas no
fundo, apresentem analogias flagrantes na forma. Quando se produz por
exemplo uma luta de classes encarniçada, uma luta de morte, está claro
que, no fundo, os sentimentos, tendências, esperanças, desejos, aspirações,
ilusões, etc.. serão diferentes nas classes opostas; mas aforma, de seus
estados psíquicos, ardor extraordinário, violência apaixonada, fanatismo da luta
e mesmo um certo heroísmo particular, poderá apresentar certas analogias nas
duas classes.

Dissemos que a psicologia das classes é determinada pelo conjunto das


condições de vida de cada classe, condições que têm a sua base na situação
econômica de cada classe. Esta é a razão por que é absolutamente impossível
reduzir toda psicologia da classe ao interesse desta, como se faz às vezes. É
indiscutível que o interesse de classe determina essencialmente a luta de
classe. Mas a psicologia de classe a isto não se limita. Já vimos mais acima
que, na época da decadência do império romano, filósofos da classe dirigente
pregavam o suicídio e que esta propaganda obtinha sucesso porque
concordava com a psicologia desta classe dirigente, que era uma psicologia de
homens saciados e por conseguinte fartos de viver. Podemos perfeitamente
explicar a formação de semelhante psicologia; vemos que ela tem sua
raiz no parasitismo de uma classe dominante que nada fazia, e cuja existência
inteira se limitava a consumir sem cessar, a experimentar de tudo até se
enfastiar. Isto se explicava pela situação econômica dessa classe, pelo papel
que ela desempenhava (ou antes que ela não desempenhava) no trabalho do
país. A psicologia da saciedade e da morte era uma psicologia de
classe. Entretanto, é impossível dizer-se que, pregando o suicídio, Sêneca
exprimia um interesse de classe, mas, de outro lado, não se poderia concluir
que um suicídio ou um ato desse gênero nunca tenha relação com o interesse
de classe. As greves de fome nas prisões russas eram por exemplo atos de
luta de classe, modos de protestar e dar maior ímpeto à luta, atos simbólicos
que indicavam a solidariedade dos militantes e que os uniam no combate. Ora,
a luta se fazia em nome dos interesses de classe. Acontece às vezes que o
desespero se apodera das massas ou dos grupos, depois de uma grande
derrota na luta de classe. Isto tem uma certa relação com o interesse de
classe, mas uma relação de caráter muito particular: os homens eram levados
para a luta por razões secretas de interesse; mas eis o exército dos militantes
vencido, derrotado; produz-se então uma decomposição, há desespero na
derrota; e começa-se a esperar um milagre, foge-se da sociedade humana,
elevam-se os olhares para o céu. Depois da derrota dos grandes movimentos
populares que se produziram na Rússia no século XVII e que se colocavam
frequentemente sob o estandarte religioso, apareceram formas de protesto

«extremamente diversas, inspiradas pela desilusão e pelo


desespero»; «Pregava-se a fuga para o deserto ou o
suicídio pelo fogo». «Centenas e milhares de homens
sobem por espontânea vontade para a fogueira...
Exaltados, envolvendo-se numa mortalha branca, deitam-
se nos túmulos e esperam a hora comparecer diante de
Deus» (S. Melgunov: Os movimentos sociais.religiosos do
povo russo no século XVII, tomo 1, pag. 019).

Este estado de espírito é muito bem expresso em do poemas dessa época


citados por Melgunov:

Bela
solidã
o, ó
Mãe,
Longe
dos
rumor
es da
terra,
Seja
meu
asilo
e
reconf
orto...

Ou:

Num
ataúd
e feito
de
pinho,

Quero
esper
ar a
jazer
A
tromb
eta do
Julga
mento
...
Vemos assim que, examinando de perto a psicologia classe, encontramo-
nos em presença de um fenômeno mui complexo que não pode ser reduzido
somente ao interesse, mas que, entretanto, explica-se sempre pelas
circunstancias concretas nas quais a classe encontrou seu destino.

Na estrutura psicológica da sociedade, isto é, entre diferentes aspectos da


psicologia social, encontramos igualmente a psicologia do grupo, da profissão,
etc.

No interior de uma classe, podem existir diversos grupos: por exemplo, na


burguesia, encontramos o elemento financeiro e capitalista, o elemento
comercial, o elemento industrial, etc..; na classe operária, encontramos uma
aristocracia de operários qualificados ao lado de operários instruídos de modo
simples ou desprovidos completamente instrução profissional. Cada um desses
grupos tem interesses um pouco diferentes dos do grupo vizinho e assinala-se
por certos traços de caráter particular: por exemplo, o operário qualificado
gosta de seu oficio, ele se orgulha de ter passado a mestre e de se distinguir
dos outros; ele tem tendência a se aproximar da classe superior e gosta de pôr
um colarinho branco para se dar ares de burguês. A profissão imprime também
sua marca sobre a psicologia: quando, por exemplo, se reprocha os burocratas,
o que neles encontramos de ruim são certos traços de caráter devidos à
psicologia da profissão: espírito rotineiro, amor da papelada, preferência dada à
forma sobre o fundo (formalismo), etc.

Formam-se tipos profissionais cujas particularidades mentais decorrem


diretamente do gênero de ocupação e cuja psicologia dá origem a uma
ideologia especial.

«Os políticos profissionais, escreve Engels, os teóricos do


direito positivo, os especialistas do direito civil... perdem
todo contato com os fatos econômicos. Como, em cada
caso, os fatos econômicos devem revestir a forma jurídica
para serem sancionados sob a forma de leis, e como é
preciso, além disso, levar em conta o sistema de direito
existente, a forma jurídica é tudo e o conteúdo econômico
nada» (Ludwig Feuerbach).

A psicologia profissional revela o homem: alguns minutos de conversação


são suficientes para ver se temos diante de nós um caixeiro, um açougueiro ou
um jornalista. Estes tragos característicos da profissão são internacionais:
podem ser observados nos mais diferentes países.
Assim, paralelamente à psicologia de classe, que é a forma mais
acentuada e mais importante da psicologia social, existe uma psicologia de
grupo, uma psicologia profissional, etc.. E pode-se dizer que todo grupo de
homens (mesmo se for um clube de jogadores de xadrez ou de coristas)
imprime um certo traço no caráter da sociedade. Mas como a existência de um
grupo humano qualquer está ligada ao regime econômico da sociedade, é
deste regime que ela depende em última análise e todas as formas da
psicologia social formam uma grandeza que depende do modo de produção
social, da estrutura econômica da sociedade.

É bastante fácil agora determinar a relação da psicologia social e da


ideologia social. A psicologia social é de certa maneira um reservatório para a
ideologia. Pode-se compará-la a uma solução de cloreto de sódio em que se
depositam pouco a pouco os cristais da ideologia. Vimos, no princípio deste
parágrafo, que a ideologia se distingue por uma maior sistematização de seus
elementos, isto é, dos pensamentos, sentimentos, sensações, imagens, etc..
Que é que a ideologia sistematiza? Ela sistematiza aquilo que está pouco
sistematizado ou que não está absolutamente sistematizado, isto é, a
psicologia social. As ideologias são as cristalizações da psicologia
social. Vamos dar alguns exemplos. Já na aurora do movimento operário, a
classe operária tinha um sentimento de descontentamento, ela tinha idéia da
injustiça do regime capitalista, o desejo vago de substituí-lo por alguma coisa
diferente. Mas tudo isso era confuso, sem nexo. Não se tratava de uma
ideologia. Mas eis que aparecem fórmulas nítidas, coerentes, um sistema de
reivindicações (programa), um «ideal», etc.. É a isto que se dá o nome de
ideologia. Ou suponhamos ainda que a sensação do sofrimento e do desejo de
sair da sua situação se traduzem numa obra de arte qualquer: isto será
também uma ideologia. Evidentemente, não se pode sempre demarcar uma
linha de separação rigorosa. A ideologia não está separada da psicologia por
uma parede estanque. Na realidade, existe um processo contínuo de
concretização, de solidificação da psicologia social numa ideologia social. Por
isso, toda variação da psicologia social é acompanhada de uma variação da
ideologia social, o que observamos várias vezes no parágrafo precedente.
Quanto à psicologia social, ela varia em função das relações econômicas que
estão em via de constante transformarão, pois ao mesmo tempo se produz um
reagrupamento das forças sociais e as variações do nível das forças de
produção determinam a aparição de novas recepções sociais.

Agora que demos uma série do exemplos na análise das ideologias, é


inútil demorarmo-nos sobre a modificação da psicologia social e sobre a sua
ligação com as modificações da ideologia. Vamo-nos limitar a indicar que a
literatura atual estuda atentamente a questão do "espírito do capitalismo", isto
é. da psicologia dos empreendedores. Tais são os trabalhos de W. Sombart (O
burguês), de Max Weber e, nestes últimos tempos, de Hermann Levy: (Estudos
sociológicos sobre o povo inglês, Iena, 1920). Já no tomo 1.º
do Capital, Marx escrevia:

"O protestantismo desempenha um papel considerável na


gênese do capitalismo, mesmo que seja somente pela
transformação dos feriados tradicionais em dias úteis".

Em várias ocasiões, ele indicou que a mentalidade puritana, econômica e


ao mesmo tempo trabalhadora, obstinada, prosaica do protestantismo,
estranha à pompa e ao brilho do catolicismo, era a mentalidade da burguesia
no seu período de crescimento. Esta teoria valeu-lhe numerosos debiques.
Ora, agora, os sábios burgueses mais eminentes a retomam, mas
evidentemente sem atribuí-la a Marx. Sombart mostra que a acumulação dos
traços mais diferentes (sede de ouro, amor ao risco, espírito inventivo, aliados
à arte de saber contar, a razão fria e a moderação judiciosa) deu como
resultado «quilo que se denomina "mentalidade capitalista". Esta mentalidade,
naturalmente, não se formou por si mesma; ela se constituiu paralelamente à
modificação das relações sociais: ao mesmo tempo que o corpo do capitalismo
se fortificava seu espírito se desenvolvia; todos os traços fundamentais da
psicologia econômica se modificavam: na época pré-capitalista, a idéia
econômica fundamental do nobre era a da "conveniência", daquilo que "fica
bem para sua posição" (o dinheiro é feito para ser gasto, escrevia Tomaz de
Aquino); a economia era gerida de maneira irracional, sem contabilidade exata,
a tradição e a rotina dominavam; a vida desenrolava-se num ritmo lento (os
dias feriados formavam quase a metade do ano); a iniciativa e a energia
faltavam; a mentalidade capitalista, que sucedeu à mentalidade senhorial
feudal, está ao contrário fundada sobre a iniciativa, a energia, a rapidez, a
renuncia à rotina, a contabilidade racional e a reflexão, a sede de acumulação,
etc.. A transformação completa das relações de produção foi acompanhada de
uma transformação completa da mentalidade.

40. Os processos ideológicos como trabalho diferenciado

É possível e mesmo necessário abordar por outro lado a questão das


ideologias e das superestruturas em geral, afim de compreender estes
fenômenos extremamente importantes da vida social. Sabemos já que, pela
sua composição, as superestruturas representam uma grandeza complexa, em
que entram homens e coisas; quanto às ideologias, são por assim dizer
um produto espiritual. Se assim é — e isto é incontestável — precisamos
considerar a superestrutura no seu movimento (e por conseguinte, seus
processos ideológicos) como uma forma especial do trabalho social (mas não
da produção natural). No começo da «história humana», isto é, na época em
que o super-trabalho não existe, não há quase ideologia. Não é senão depois
da aparição do super-trabalho que, «ao lado da imensa maioria,
exclusivamente ocupada no labor físico, forma-se uma classe libertada do
trabalho direto de produção e ocupada da gerência das questões sociais:
direção do trabalho, administração do Estado, exercício da justiça, estudo das
ciências, produção das obras de arte, etc.. É assim que a lei da divisão do
trabalho forma a base da divisão em classes». (Engels: O desenvolvimento do
socialismo, da utopia à ciência). Numa passagem Marx declara que os padres,
juristas, homens de Estado, etc., são «castas ideológicas» (ideologische
Stande). Em outros termos, podemos considerar os processos ideológicos
como uma forma determinada de trabalho. Este trabalho não é a produção
material. Não é nem mesmo uma parte dela. Mas como nós já sabemos pela
análise das ideologias, elesurge da produção material e dela se destaca para
formar ramos especiais da atividade social. O crescimento da divisão do
trabalho exprime o crescimento das forças de produção da sociedade; é por
isso que o desenvolvimento das forças de produção é acompanhado de um
lado pela divisão do trabalho no domínio da produção material, e doutro pela
aparição do trabalho puramente ideológico que, ele também, se divide.

«A divisão do trabalho não é especifica do mundo


econômico; pode-se observar a sua influência crescente
nas regiões as mais diferentes da sociedade. As funções
políticas, administrativas, jurídicas se especializam cada
vez mais. O mesmo se dá com as funções artísticas e
cientificas. (E. Durkeim: Da divisão do trabalho
social, Paris, 1893, pag. 2).

Desse ponto de vista, toda a sociedade é como uma imensa, máquina de


trabalho com partes especiais para cada trabalho. O trabalho social comporta
duas divisões fundamentais: primeiro, o trabalho material, isto é, a produção;
segundo, todas as formas de trabalho que dizem respeito às superestruturas:
administração, política, etc., e também ao trabalho ideológico. Esse trabalho,
em conjunto, está organizado de acordo com o mesmo modelo que o trabalho
material. Ele comporta uma hierarquia de classe: no cume, os detentores dos
meios de produção; em baixo, os «não possuidores». Quase em todos os
domínios do trabalho «superestrutural» a situação é a mesma que no processo
de produção material, onde os que estão no cume representam um papel
especial pelo fato de que são eles os detentores dos meios de produção e,
portanto, acham-se igualmente no cume do processo de repartição. É assim no
exército, como vimos; é assim igualmente na ciência e na arte. Na sociedade
capitalista, por exemplo, um grande laboratório técnico está interiormente
organizado como uma empresa industrial. A organização dum teatro, com o
proprietário, o diretor, os artistas, os figurantes, os técnicos, os empregados, os
operários, lembra igualmente a de uma fábrica.

Por conseguinte (na medida em que se trata de uma sociedade de


classes) achamo-nos aqui em presença de diversas categorias de pessoas,
com funções diferentes, que estão socialmente ligadas a essas pessoas, e a
posição a mais elevada implica a posse do que se poderia chamar «meios
espirituais de produção», que constituem uma propriedade monopolizada de
classe; segue-se que na repartição dos produtos materiais (e é antes de tudo
do gozo de bens materiais que vivem os homens), os detentores destes «meios
espirituais de produção» recebem da produção geral uma parte relativamente
maior do que aqueles que estão debaixo deles.

Sabemos como as classes dirigentes são agarradas ao seu monopólio do


saber. Na antiguidade, os sacerdotes, únicos detentores do saber, fechavam a
entrada dos "templos da ciência" e não deixavam penetrar senão um número
reduzido de eleitos; além disso, o próprio saber se achava envolvido por um
véu de mistério divino e terrível, accessível unicamente a pequeno número de
"sábios" e de "justos". Para se ver a que ponto as classes reinantes
apreciavam esse monopólio, baeta ver-se a seguinte opinião do filósofo
idealista alemão Fr. Paulsen:

"Para aquele que, em virtude das relações sociais, está


ligado à profissão, cuja situação material seria a do
operário manual, não haveria nenhuma vantagem em
receber a instrução de um sábio; não somente por essa
instrução não melhorar a sua sorte, mas ao contrário, lhe
tornar a vida mais difícil." (Frederic Paulsen: Das modern
Bildungwesen in Kultur der Gegenwart, t. 1, p. 75. Note-se
de passagem que esta enorme edição da Cultura
Contemporânea, na qual tomou parte a elite dos
professores alemães, era dedicada a Guilherme II!).

Assim o honrado filósofo idealista considera o homem como preso, desde


o seio mesmo de sua mãe, aos grilhões do capital e lhe tira direito à instrução,
mesmo antes de sua vinda ao mundo.

Esse caráter de monopólio da instrução foi a principal causa da resistência


tenaz dos intelectuais russos por ocasião da Revolução proletária. Pelo
contrário, uma das principais conquistas da Revolução proletária foi a abolição
deste monopólio.
Se considerarmos a produção material, veremos que ela se subdivide
numa série de ramos diversos; primeiramente, indústria e a agricultura, em
seguida uma quantidade enorme (numa sociedade capitalista desenvolvida) de
subdivisões secundárias, desde a indústria mineradora e a produção dos
cercais até à fabricação das agulhas e a cultura da alface. Dá-se exatamente o
mesmo no domínio das «superestruturas»: encontram-se nelas as grandes
subdivisões (ponhamos, por exemplo, as admitidas no passado, isto é, a
gestão de negócios, a elaboração de leis, as ciências, as artes, a filosofia e a
religião, etc..); do outro lado, cada uma dessas subdivisões compreende, por
seu turno, uma série de ramificações: a ciência, por exemplo, agora se ramifica
numa grande quantidade de especialidades diferentes, e da mesma forma a
arte. Prossigamos. Na produção material, como vimos, deve haver, se existe
uma organização social, uma certa proporção, por grosseira que seja, entre os
diferentes ramos da produção, sem o que não pode existir organização social.
Tomemos mesmo uma sociedade capitalista que ande a esmo, onde não existe
um plano geral de produção, onde reina, pelo contrário, o que se chama
«anarquia da produção», isto é, a falta de proporção entre os diferentes ramos
da produção; constatamos, apesar de tudo, por momentos, que essa
«anarquia» se organiza progressivamente; que essa grosseira ruptura de
proporções se corrige através de duras convulsões, é verdade, e não por muito
tempo, mas em todo caso se corrige por um certo tempo; se não fosse assim, a
primeira crise industrial seria o fim do capitalismo. Indaguemos agora se pode
existir numa sociedade um estado de coisas tal, que entre a produção material
e os outros aspectos não materiais de trabalho, não haja em absoluto nenhuma
proporção. A esta questão pode-se responder da seguinte forma: um tal estado
de coisas pode existir, mas então a sociedade não se pode desenvolver, e tem
de entrar em decadência. Se, por exemplo, mais trabalho é despendido para
sustentar os teatros, ou o aparelho do Estado, ou a Igreja, ou mesmo a arte,
então inevitavelmente as forças produtivas declinarão. Por que? Pela mesma
razão que faria cair a produção numa empresa em que um só trabalhasse onde
este se ocupasse em contar o que ele faz, onde dois cantassem para o animar
e onde um outro os controlasse a todos. Como ao mesmo tempo todos comem,
e não um só, está claro que uma tal empresa não se manteria muito tempo
com vida. Do outro lado, não é menos claro que se não existisse nenhuma
pessoa para fazer o cálculo dos produtos, ninguém para unificar o trabalho
dessa empresa, ninguém (nem todos juntos, nenhum deles) para coordenar de
uma forma qualquer a atividade de cada um dos membros, ninguém para
entrar em relações com o mundo exterior, então os negócios não marchariam
tampouco, por mais esforços que fizessem e por mais trabalho que pudessem
fornecer os operários os mais corajosos. Dá-se o mesmo, guardadas as
devidas proporções, na sociedade tomada em conjunto. Por conseguinte, se
uma ordem social existe de uma forma durável, é que existe nela um certo
equilíbrio, por menos estável que seja, entre o conjunto do trabalho material e o
conjunto do trabalho de caráter «superestrutural». Suponhamos um instante
que nos Estados Unidos da América desaparecessem numa noite todos os
sábios: matemáticos, mecânicos, químicos, físicos, etc. Uma produção do tipo
atual se tornaria impossível, pois ela está toda fundada no cálculo cientifico. A
produção entraria em regresso, suponhamos doutra parte que 90% dos
operários atuais se transformassem por um milagre qualquer em sábios
matemáticos que não participassemda produção. Resultaria na ruína
igualmente completa: a sociedade cairia de um só golpe, como uma chave na
água. Mas se em toda sociedade deve existir uma certa proporção (se bem
que, repitamo-lo os seus limites sejam extremamente grandes) entre o conjunto
do trabalho material e o conjunto do trabalho compreendido nas
«superestruturas», é preciso acrescentar dum outro lado que a repartição do
trabalho dentro das superestruturas não é em nada coisa indiferente. Da
mesma forma que entre os diferentes aspectos do trabalho material existe um
certo equilíbrio (os diferentes ramos do trabalho «tendem ao equilíbrio», como
disse Marx, no tomo 3, do Capital), da mesma forma entre os diferentes ramos
do trabalho intelectual deve haver um mínimo de equilíbrio. A repartição destes
«ramos de produção» intelectual é determinada naturalmente pelaestrutura
econômica da sociedade. Com efeito, por que, por exemplo, uma enorme
quantidade de trabalho popular no antigo Egito se encaminhava para a
construção de monumentos gigantescos de arte feudal: pirâmides, estatuas
colossais de Faraós, etc.. Porque a sociedade então, com sua estrutura
econômica, não podia se manter sem inculcar a todo momento aos escravos e
aos camponeses a idéia de grandeza e do poder divino daqueles que
reinavam. Não existiam então nem jornais nem agencias telegráficas. A arte
servia de comunicação intelectual. Era pois uma necessidade vital para esta
sociedade, e nada de extraordinário, portanto, que o orçamento do trabalho do
país lhe reservasse uma parte tão grande. Por que na Grécia, em fins do
século V.º, era «ética», a elaboração de regras morais, que tinha a
proeminência na esfera do trabalho intelectual? Porque, em presença da
enorme quantidade de contradições vitais entre as diferentes classes, dos
diferentes grupos e sub-grupos no momento em que o equilíbrio social se tinha
rompido em que estalavam os antigos «fundamentos» da sociedade era natural
que o que dizia respeito às relações entre homens, as relações de homem para
homem, que os problemas de organização destas relações se apresentassem
uma forma particularmente aguda, mesmo para as classes dirigentes, para as
quais era indispensável concertar por todos os meios possíveis os laços sociais
rompidos. Por que na América atual (nos Estados Unidos) a arte está tão
pouco desenvolvida, enquanto que a América é o primeiro país que criou em
toda sua amplidão a ciência da organização da produção (o Taylorismo,
psicotécnica, psicofisilogia do trabalho e outros ramos da ciência)? Porque arte
não é necessária para o mecanismo capitalista americano: os cérebros são
amoldados pela imprensa capitalista americana, que atingiu nesse domínio à
virtuosidade; pelo contrário, a questão da racionalização da produção de
inevitavelmente representar um papel no país dos «trustes» a «gestão
científica» (scientific management) é uma das grandes questões vitais de um
tal sistema econômico.

É assim que se estabelece também inevitavelmente, domínio do trabalho


de «superestrutura» (e por conseguinte, de todo trabalho ideológico) uma certa
proporção das partes que o compõem na medida em que a sociedade se acha
em estado de equilíbrio; além disso, esta proporção que fixa a repartição dos
diferentes ramos do trabalho intelectual, é determinada pela estrutura
econômica da sociedade e pelas exigências de sua técnica.

Essas considerações são confirmadas, entre outros, por um dos ramos do


trabalho intelectual: a escola. Com efeito, o que é a escola em geral, tanto a
superior como a secundaria e a inferior ou primaria? É, no conjunto do trabalho
social, uma ramificação onde se «ensina», isto é, onde se dá à força operária
uma competência determinada, um «ensino» especial, onde se faz de uma
simples força operária uma força operária particular. A língua popular diz:
estudar «para ser médico», «para ser advogado», «para ser oficial», «para ser
engenheiro», «para ser técnico», etc.. Mas dá-se o mesmo em todos os
domínios do ensino, isto é, deste processo especial no curso do qual os
homens adquirem qualidades particulares, que os tornam aptos ao
cumprimento de funções particulares mais ou menos especiais; sob este
aspecto, não existe diferença entre a escola profissional que forma os
serralheiros e o seminário donde saem sábios padres, ou os corpos de cadetes
do tempo dos czares que preparavam oficiais. Segue-se que a instituição de
escolas, uma divisão em diversas categorias (escolas comerciais, profissionais,
militares, estabelecimentos técnicos superiores, universidades, etc..)
correspondem à necessidade que sente uma dada sociedade de diferentes
modalidades de trabalho material ou espiritual que nela se ensina.

Aqui estão alguns exemplos que esclarecem esta idéia:

Na idade média, por exemplo, a escola estava toda ela


nas mãos dos padres. A sociedade feudal não podia viver
sem um formidável desenvolvimento da religião. Aí está
porque "as escolas dos mosteiros", das catedrais, cujo
número ultrapassava o das universidades, a vida em
colégios, o ensino na faculdade de artes, tudo trazia um
cunho monástico, claustral, tudo era concebido e
estabelecido de acordo com um espírito eclesiástico e
teológico". (Prof. Ziegler: Introdução à História da
Pedagogia).

"À parte um pequeno número de escolas especiais de medicina e de


jurisprudência, a generalidade das universidades, bem como as escolas
primarias, serviam principalmente para preparar cléricos". Ao lado existia uma
escola para a preparação de soldados-cavaleiros para estes, ''o ensino"
consistia em formar uma “força de trabalho" não eclesiástica, mas militar.
Ensinavam-se principalmente às crianças as sete "honorabilidades" do
cavaleiro; "além das seis artes físicas (equitare, natare, sagittare, cestibus
certare, aucupare, scassis ludere, isto é, equitação, natação, tiro de arco,
esgrima, caça, jogo de damas), contava-se também a arte de versificare, a
versificação e a música singen und sagen". É claro que se tratava aqui de
formar um tipo de homens particular, necessário para a sociedade feudal.

Mas eis que a cidade se desenvolve, a burguesia comercial também, etc..


E o que acontece? A resposta (e uma excelente resposta) nos é dada pelo
mesmo professor Ziegler:

"Porém, diz ele, novas necessidades aparecem em


matéria de ensino, noutro domínio. Os negociantes e
artesãos vivendo nas vilas florescentes tinham
necessidade duma instrução mais prática que a recebida
pelos sábios e cavaleiros. As comunas urbanas se
puseram a construir elas mesmo suas escolas, onde os
habitantes da cidade recebiam a instrução indispensável
que convinha ao seu estado." (Ziegler, loc. cit.).

Com o desenvolvimento do capitalismo industrial e o aumento da


necessidade de operários qualificados, mesmo no domínio do trabalho manual,
aparece o que se chama a escola profissional.

"Para manter a indústria nacional, os governos e artesãos


tiveram por fim que dar aos alunos a instrução profissional
que eles outrora recebiam na oficina do patrão que os
empregava." (N. Krupskaia: A instrução popular e a
democracia — 1921).

Depois, esta escola se transforma novamente por efeito do crescimento da


grande indústria e da nova procura de "contra-mestres, fiscais, auxiliares,
engenheiros, etc.." (ibidem). Ao mesmo tempo, o desenvolvimento colossal
dos estabelecimentos secundários e superiores de ensino especial, onde
as ciências naturais e as matemáticas representam um grande papel: institutos
superiores de comércio, academias agronômicas, etc.

É com muita franqueza na sua impudência que o filósofo idealista alemão


F. Paulsen, já citado, nos revela o sentido do ensino capitalista. Estas
passagens de sua obra são tão instrutivas, dão um quadro tão cru, que nós a
citamos integralmente (o que explica a franqueza de Paulsen, é que tudo que
ele escreve está num volume de tal espessura que não há perigo de o ver cair
nas mãos de um operário; ele escreve, portanto, unicamente para os tubarões
capitalistas e é por isso que ele se permite misturar algumas verdades à sua
tagarelice):

"O estado efetivo da instrução é sempre e por toda parte


essencialmente determinado pela forma da sociedade e
pela sua divisão... Na situação da instrução social se
reflete a da sociedade que a provocou. A sociedade tem
sempre uma dupla divisão: divisão segundo as formas do
trabalho social, e divisão segundo as relações de posse
(mais exatamente: da propriedade, N. B.). A primeira
divisão é uma divisão em profissões; das diferenças de
posse nasce a divisão em classes sociais. As duas
divisões têm uma influência sobre as condições de
ensino... as formas do trabalho social e a situação
profissional determinam em geral oobjeto do ensino; a
situação de classe, ou o estado de prosperidade das
famílias determina numa considerável medida o grau
de acesso da juventude aos diversos cursos
escolares. A sociedade quer e possui três espécies de
funções, três espécies de órgãos: motores, reguladores e
espiritualmente criadores e diretores. O primeiro grupo é
constituído por todos aqueles cujo trabalho exige antes de
tudo força e habilidade física; é aqui que se devem
classificar os operários da indústria e os artesãos, os
operários agrícolas e os pequenos camponeses, enfim
aqueles que, no comércio e no transporte, são
empregados na qualidade de órgãos executivos de última
categoria. O segundo grupo compreende aqueles cujo
trabalho profissional consiste em dirigir o processo do
trabalho social e garantir a instrução dos operários no
trabalho físico; é aqui que se alinham os fabricantes e
técnicos, os diretores de grandes empresas agrícolas, os
negociantes e os banqueiros, os funcionários superiores
do comércio e dos transportes, bem como os funcionários
inferiores do Estado e das municipalidades, finalmente, o
terceiro grupo é o das profissões que se denominam
ordinariamente "intelectuais" e cujo funcionamento exige
estudos independentes e o desenvolvimento dos
conhecimentos científicos; ligam-se a este último grupo os
pesquisadores e inventores, em seguida as pessoas que
ocupam os postos mais elevados da administração civil e
militar, na Igreja e na escola, enfim os médicos, os
técnicos colocados nas posições de direção, etc. "
(Paulsen- Kultur der Gegenwart, pag. 64, 65).

É a essa divisão em três grupos que corresponde a divisão das escolas


em três graus. Esta pequena história que nos narra Paulsen mostra-nos
perfeitamente bem o mecanismo da escola de uma parte, nela se forma a
quantidade desejada, o número almejado de operários para toda a espécie de
trabalho material e intelectual; do outro lado, as funções intelectuais superiores
estão indissoluvelmente ligadas a classes determinadas, graças ao que se
mantém o monopólio da instrução e com ele o regime capitalista. O único erro
de Paulsen é de se colocar, ele e seus colegas) muito acima dos fabricantes e
dos banqueiros, cujas botas os intelectuais lambem, por necessidade ou sem
ela.

Assim a escola nos revela, primeiro, o sentido prático, a raiz real de todas
as ideologias. Suponhamos que um matemático se insurja contra a nossa
opinião de que a sua ciência pura «tem um sentido absolutamente terrestre»,
nós lhe perguntaremos: por que então se ensinam estas matemáticas aos
filhos de comerciantes nas escolas comerciais, aos futuros geômetras nos
estabelecimentos de ensino agronômico, aos futuros técnicos nas escolas
técnicas, etc.? E se pretende que isto não são senão as migalhas da ciência,
perguntemos: por que os «matemáticos puros», que efetivamente não
representam nenhum papel na vida prática, não compreendem dela coisa
alguma e atrapalham todas as coisas? Por que fazem preleções a pessoas que
estudam «para serem engenheiros» ou «para serem geômetras»? E se,
cedendo ainda um passo, nosso contraditor nos opõe que existem sábios que
não ensinam a ninguém e não fazem conferencias, nós retrucaremos ainda:
sim, mas estes sábios não escreverão livros? Nesses livros, quem os lê, senão
os professores que ensinam os futuros engenheiros, os quais, com a sua
ciência, farão cálculos e planos para construção de pontes, de caldeiras a
vapor ou de estações elétricas? Em segundo lugar, a escola nos revela as
necessidades relativas que sente uma sociedade dada para as diferentes
formas do trabalho qualificado, inclusive as mais elevadas.
Portanto, de fato, o mesmo laço econômico que liga tojos os ramos do
trabalho material liga também todas as ciências entre si. E o mesmo se dá em
todos os ramos do trabalho intelectual. O trabalho material constitui sua base
constante e geral.

§ 41. O alcance das superestruturas

Somos levados agora a um exame mais detalhado do sentido das


superestruturas em geral e entre elas, das diferentes ideologias. Este sentido,
parece que melhor se pode esclarecer procedendo à critica das objeções que
ordinariamente são feitas pelos adversários da teoria do materialismo histórico.

Chocamo-nos aqui, antes de tudo, nas objeções contra as raízes práticas


das ideologias, contra a afirmação de que as «superestruturas» e as ideologias
tenham alcance auxiliar. Contra isto. argumenta-se com o fato de que muitas
vezes os saldos e os artistas não imaginam um só momento que suas idéias ou
suas obras de imaginação possam representar um papel prático qualquer. Ao
contrário, o sábio procura a «verdade pura», ele a procura por ela mesma; é
um apaixonado desta bela dama a Verdade e as idéias práticas nada têm a
fazer aqui: trata-se de um casamento de amor e não de um interesseiro. O
verdadeiro artista crer como o pássaro canta; ele ama a arte pela arte; é para
ele o alvo supremo, e nela e só nela vê o sentido da vida. Da mesma forma que
os juristas proclamaram: «Pereça o mundo, mas salve-se a «justiça» (vivat
justitia pereat mundus), da mesma forma o verdadeiro músico daria o mundo
inteiro por uma bela sinfonia. O verdadeiro artista vive para a arte, o verdadeiro
sábio para a ciência, o verdadeiro jurista para o Estado (em Hegel, por
exemplo, o Estado capitalista e junker prussiano é a manifestação suprema do
espírito do mundo na história da humanidade; como então não dar por ele a
própria pele?)

Em primeiro lugar, será bem verdade que seja este o pensamento e o


sentimento dos sábios e dos artistas? Talvez, como se diz, «encham a cabeça»
do respeitável publico, e o enganem na realidade sem escrúpulo algum?
Certamente, isto acontece também. Mas não se pode reduzir a questão,
mesmo parcialmente, ao desenvolvimento dessa consideração. É um fato que
o verdadeiro sábio, o verdadeiro artista, o jurista-teórico erudito ama sua
ciência como a si próprio, e não cogita absolutamente de nenhum lado prático
do seu trabalho. Isto está fora de duvida e poderia ser confirmado por milhares
de exemplos de toda espécie. Mas não é disso que principalmente se trata.
Pois a psicologia subjetiva da ideologia é uma coisa, e o papel objetivo da
ideologia outra. É uma coisa saber o que o homem pensa do seu trabalho; é
uma outra saber qual o alcance desse trabalho para a sociedade. São essas
questões, como qualquer um pode se certificar, muito diferentes uma da outra.
Representemo-nos como as coisas se passam de fato. Já o vimos, a ideologia,
(as matemáticas, por exemplo) sai sem duvida alguma de necessidades
práticas. Mas ela se especializou e fragmentou-se numa série de domínios
diferentes; o especialista que trabalha num desses domínios não vê que a
ciência satisfaz a uma necessidade prática. Ele se ocupa unicamente do «seu
negócio», e mais esse negócio lhe agrada, mais o seu trabalho é produtivo,
mais progride. Quanto a passar da aplicação de sua teoria à prática, é negócio
de outras pessoas que trabalham em outros domínios. Antigamente, quando
esta especialização não existia, o alcance prático da ciência era claro para
todos; agora está velado. Antigamente o desenvolvimento do saber servia,
mesmo no cérebro dos homens, para fins práticos. Agora, ele serve ainda para
fins práticos, mas no cérebro de especialistas isolados da vida prática ele
aparece como qualquer coisa de completamente independente desta prática. A
razão é fácil de se apanhar. Neste terreno também, o estado de espírito dos
homens é condicionado pelo seu gênero de vida. Com efeito, ao homem que
trabalha unicamente num domínio biológico, é inevitável que este domínio se
apresente como o umbigo da terra, ao redor do qual tudo gravita. Ele vive
eternamente no circulo das noções que se ligam a este ramo de atividade, pois,
como bem o indicou Engels (Ludwig Feuerbach, p. 52), toda a ideologia não
aparece ao seu autor

«senão uma operação, um trabalho sobre idéias,


consideradas como independentes, desenvolvendo-se por
se próprias, como entidades submetidas unicamente a
suas próprias leis».

Antigamente, antes da especialização, o homem raciocinava assim: É


preciso que eu reflita um pouco sobre esta «geometria» para que no próximo
ano a medida das terras aráveis se faça mais facilmente. Hoje, o especialista
matemático dirá: É preciso resolver esta questão a todo custo, é este o fim da
minha vida. E. Mach exprime esta idéia sob uma forma um pouco diferente,
mas o fundo é o mesmo. Ele escreve:

«Para o artesão, e ainda mais para o pesquisador,


o conhecimento o mai3 sumario, o mais simples, dum
processo natural determinado, que corresponde a um
esforço mínimo de gasto intelectual, transforma-se ele
próprio num fim econômico; e ao lado desse fim — se bem
que este conhecimento não tenha sido originariamente,
senão um meio de atingir um fim — se desenvolvem
tendências intelectuais correspondentes que exigem
satisfação, e que não cogitam mais, absolutamente, de
necessidades materiais». (E. Mach.: Geschichte der
Mechanik, 4.a edição, pag. 7). (As passagens grifadas o
foram por nós, N. B.).

Assim o sistema de superestruturas, desde a superestrutura político-social,


até a superestrutura filosófica inclusive, está ligado à base econômica e ao
sistema técnico duma sociedade dada, como um elo indispensável dos
fenômenos sociais.

Engels escrevia a este respeito, numa carta a Franz Mehring em data de


14 de julho de 1893:

"O trabalho ideológico é um processo que, sem duvida, é


conduzido por aquele que se chama pensador, de uma
forma consciente (mit Bewusstsein), mas falsamente
consciente (aber mit einem falschen Bewusstsein). As
verdadeiras forças motrizes, que o põem em movimento,
são por ele ignoradas: senão não seria um processo
ideológico. Assim ele se forja falsas ou aparentes forças
motrizes. Como se trata de um processo especulativo, ele
deduz o conteúdo e a forma da pura especulação, seja da
sua própria, seja de seus predecessores. Ele trabalha
exclusivamente com um material especulativo que recebe
sem a menor critica, como produto da especulação, e não
vai além até o processo mais afastado, independente, da
especulação; tudo isso lhe parece ir por si só, pois para
ele toda a atividade, porque tem por intermediário a
especulação, aparece-lhe em última análise como tendo
por base esta mesma especulação..." Daí "esta miragem
da história independente das instituições políticas, dos
sistemas jurídicos, de concepções ideológicas em todos
os domínios particulares da ciência, miragem que mais
que tudo cega muita gente". (F. Mehring: Qeschicfate der
Deutschen Sozialdemocratie, 5.ª edição, Stuttgart, 1913,
1.º volume, pag. 386).

Outra objeção comumente apresentada contra a nossa teoria apóia-se na


seguinte interpretação: de fato, dizem, não existe senão a economia, e tudo o
mais não são senão futilidades, qualquer coisa de uma ilusão, um nevoeiro,
uma miragem, que abusa dos olhos e não representa na realidade coisa
alguma; representa-se igualmente o materialismo histórico como segue:
existem diferentes «fatores» (forças que agem) na história: a economia, a
política, a arte, etc.; entre estes «fatores, alguns são muito importantes, os
outros sem importância alguma; o «fator» econômico é o único importante, os
outros são como a quinta roda da carroça, depois de se ter assim exposto o
ponto de vista marxista, começa-se a refuta-lo com veemência, provando em
nome do bom senso que existem, mesmo fora da economia, coisas que, elas
também, têm alguma importância. Um tal ponto de vista sobre a importância da
ideologia é totalmente incorreto, radicalmente falso. As superestruturas não são
em absoluto uma futilidade insignificante. Já demos exemplos em apoio disto:
suprimam o Estado capitalista — a produção capitalista se tornará impossível;
suprimam a ciência contemporânea. — suprimii-se-à ao mesmo tempo a
grande produção com a sua técnica; suprimam os meios de Comunicação
espiritual, a língua e a literatura, e a sociedade não poderá mais existir e cairá
em decomposição. É portanto uma afirmação sem fundamento dizer que a
teoria do materialismo histórico nega toda a importância às superestruturas em
geral e às ideologias em particular. A questão para os partidários da nossa
teoria (do materialismo histórico) não está absolutamente em negar a ideologia
e as superestruturas em geral, de considerá-las como um elemento inexistente
ou sem importância; a questão está em explicá-las. Isto é uma coisa muito
diferente, como nós já o sabemos pelo capítulo sobre odeterminismo e o
indeterminismo.

É da mesma forma errado raciocinar do ponto de vista da importância dos


«fatores» e dizer que a economia é um fator importante e, por exemplo, a
política ou a ciência um fator «não importante». Uma tal posição da questão
pode criar uma quantidade de mal entendidos. Como se pode, com efeito, falar
da importância dos «fatores» quando, sem a política capitalista, a economia
capitalista não pode existir? Propor a questão da importância relativa dos
«fatores», equivale a propor, por exemplo, questões como estas: O que é mais
importante, o cão da espingarda ou o cano? O braço esquerdo ou a perna
direita? A mola do relógio ou a engrenagem? E assim por diante. Pode-se, em
certos casos, dizer que uma coisa é mais importante do que outra (está fora de
duvida, por exemplo, que a economia é mais importante do que a coreografia),
mas em outros casos isto não é possível. Isto porque em todo sistema pode
haver partes igualmente indispensáveis para a existência do todo. O cão da
espingarda é tão importante quanto o cano (numa espingarda com cão, bem
entendido); algumas vezes um parafuso ínfimo do mecanismo é tão importante
como qualquer outra parte essencial, pois sem este parafuso nosso mecanismo
não é um mecanismo. Chegamos ao mesmo resultado se examinamos, como
fizemos mais acima, o trabalho «superestrutural» como parte do conjunto do
trabalho social. Que é mais importante para a indústria contemporânea, a
metalurgia ou a indústria mineradora? A pergunta é absurda: «Ambas são
indispensáveis». O que é mais importante, o trabalho propriamente material ou
a gestão de uma empresa? Um é inconcebível sem o outro para estados de
evolução determinados. É portanto uma coisa absurda expor as coisas como
se agissem de «fatores» simplesmente de importância maior ou menor. É uma
posição incorreta, confusa e sem valor da questão. «Na história do
desenvolvimento da ciência social, essa teoria (isto é, a teoria dos fatores),
representou o mesmo papel que a teoria das diferentes forças físicas na
história natural. Os progressos da história natural conduziram à doutrina
da unidade dessas forças, à doutrina moderna da energia. Da mesma forma
que os progressos da ciência social deveriam conduzir à substituição da teoria
dos fatores, este fruto da análise social, por um ponto de vista sintético sobre a
vida social», (N. Beltov-Plekanov: A concepção materialista da história, p. 313).
Convém assim rejeitar a teoria dos fatores. Mas então, no que fica o sentido da
separação entre a produção material e as superestruturas? E como se deverá
então compreender suas relações recíprocas?

Trata-se de se estabelecer a diferença de caráter entre as diversas


funções. A administração da produção não tem o mesmo papel que a própria,
produção. Qual é o seu papel? Ela evita atritos, atenua contradições,
sistematiza e coordena os diversos elementos de trabalho ou, para empregar
uma expressão corrente, faz sobressair uma regra determinada de trabalho,
uma «ordem» determinada. Da mesma forma nos outros domínios. Já vimos,
por exemplo, que a moral, os costumes e as leis coordenam a atividade dos
homens, mantem-nas em certos quadros, de forma a impedir a desagregação
da sociedade. Da mesma maneira para a ciência; esse ramo do trabalho não
faz em última análise (trata-se das ciências naturais) senão abrir o caminho ao
processo da produção, regulando-o, e regulando a sua marcha. E a filosofia?
Dela também, já vimos a verdadeira significação. A repartição do trabalho entre
as ciências engendra entre elas diversas contradições. É a filosofia que as
coordena, que lhes traz ordem e coesão, ou pelo menos se esforça por trazer
esta ordem.

Ela nasce das ciências da mesma forma que a administração da produção


nasce na produção tomada em si (e nesse sentido, ela é um fenômeno não
mais «primário», mas «secundário», não «fundamental», mas «derivado»); mas
doutro lado, ela administra até a um certo ponto as ciências, pois lhes traz o
que se chama «um ponto de vista geral», ou um «método», etc.

Tomemos um exemplo: a linguagem. A linguagem, Como vimos, nasce da


produção, evolui sob a influência da evolução social, isto é, ela se determina,
na sua evolução pelas leis da evolução social. Mas em que consiste o seu
papel? Ele coordena a atividade dos homens: pois a compreensão recíproca é
bem o aspecto mais simples do acordo e da coordenação das relações, dos
atos, parcialmente dos sentimentos, etc..
Estes exemplos são suficientes para fazer sobressair o sentido profundo
da separação estabelecida entre o domínio da produção material e o domínio
do trabalho ideológico ou de qualquer outro ligado às «superestruturas»; suas
relações consistem nisto, em que o trabalho ideológico, ao mesmo tempo que é
um elemento derivado, é ao mesmo tempo um princípio regulador. Em relação
ao conjunto da vida social, o essencial dessa diferença é a diferença de
funções.

Isto esclarece perfeitamente a questão da «influência de retorno» das


superestruturas sobre a base econômica e sobre as forças produtivas da
sociedade. Elas mesmas (as superestruturas) são engendradas pelas relações
econômicas e pelas forças produtivas que determinam estas relações. Mas têm
elas do seu lado uma influência sobre estas últimas? Depois do que ficou dito
mais acima, está claro que elas não podem deixar de o ter. Elas podem ser
uma força de evolução, podem também, em condições determinadas, ser um
obstáculo à evolução. Mas de uma forma ou de outra, elas têm sempre uma
influência sobre a base econômica e sobre o estado das forças produtivas.
Noutras palavras, entre as diversas séries defenômenos sociais existe um
processo incessante de ação recíproca. A causa e o efeito se substituem um
ao outro.

Mas se reconhecemos esta ação recíproca, em que ficam os fundamentos


da teoria marxista? Da mesma forma é este ponto de vista da ação recíproca o
da maioria dos sábios burguêses. Portanto, onde está a nossa tese, segundo a
qual base da análise deve ser dada pelas forças produtivas e as relações de
produção? Não demolimos nós com as nossas próprias mãos o que edificamos
nas páginas precedentes?

Estas duvidas podem, é certo, impressionar por um momento o leitor. Mas


elas não têm fundamento. Porque, dentre todas as ações recíprocas, as
influencias entrelaçadas, etc., uma coisa se conserva invariável: em todo
momento dado, a estrutura interna da sociedade é determinada pelas relações
desta sociedade com o meio exterior, isto é, pelo estado das forças produtivas
materiais sociais; e estas transformações formais são determinadas pelos
movimentos das forças produtivas. A «teoria das ações recíprocas» limita-se a
reconhecer estas ações recíprocas. Ela não vai mais longe. Vemos bem que
todas estas inumeráveis séries de fatos que se produzem no interior da
sociedade, as influencias se entrecruzando ao infinito, os choques, as
interferências de forças e de elementos da sociedade, que tudo isto, se produz
dentro de quadros gerais, dados pelas relações entre a sociedade e a
natureza. Estão livres os nossos adversários de tentar destruir este estado de
fato, que Goethe já conhecia, em linhas gerais, quando escrevia
nas Metamorfoses dos animais:

(Alie Glieder bilden sich aus nach ew'gen


Gesetzen,
Und die seltenste Forni bewarhrt im Geheimem
das Urbild.
Also bestimiTit die Gestalt die Lebensweise des
Tieres,
Und die Weise, zu leben; sie wirkt auf alie
Gestalien
Machtig zuruck. So zeigt sich fest die
geordgnete Bildung,
Wefche zum Wechsel sich neigt durch
aussenrlich wirkende Wesen).

Todos os membros se desenvolvem segundo leis naturais, — e a forma


mais estranha guarda no fundo a imagem original. — Assim a sua feição
determina o gênero de vida do animal, — e esse gênero de vida, por seu turno,
age consideravelmente — sobre toda feição. Assim aparece fixa ordem da
criação, — que se inclina à metamorfose sob ação do ser exterior.

Este estado de coisas é incontestável. E nessas condições, está claro que


a análise deve expressamente partir das forças produtivas; que a
interdependência ao infinito entre as várias partes da sociedade não suprimem
em absoluto a dependência fundamental, ativa «no fim de contas», a mais
profunda de todas, aquela que estabelece um laço de efeito para causa entre
todos os fenômenos sociais e a evolução das forças produtivas; que a
multiplicidade das causas que fazem sentir a sua ação na sociedade não
contradiz em nada a existência de uma lei única de evolução social.

Não podemos citar aqui todas as objeções dos diferentes sábios


burgueses; o seu número é legião. De fato eles repetem sempre a mesma
coisa de uma forma mortalmente aborrecida. Daremos por exemplo uma das
últimas tentativas "criticas". Eis como o professor V. M. Khvostov expõe a
doutrina de Marx:

"Ela consiste em linhas gerais (!) nisto, que entre todos os


fatores (!) históricos, o que aparece no primeiro plano é o
fator econômico (!)... todos os outros fenômenos se
encadeiam sob a influência unilateral (!) das relações
econômicas". (Teoria do processo histórico pag. 315).
Depois do que dissemos, é inútil insistir sobre a fidelidade com que M.
Khvostov expõe a teoria de Marx. A verdade nos obriga a dizer que ele não
constitui uma exceção. Pelo contrário, quanto mais gasta erudição em
"refutar" Marx, mais se revela a sua ignorância em expor as suas doutrinas.

Eis aqui, para dar uma idéia da "refutação" (do mesmo professor):

"Creio (!) que é próprio do homem uma grande variedade


de aspirações. Em primeiro lugar, ele pensa na
conservação do seu ser físico, e por isso, possui certa
atividade. Em segundo lugar, ele pensa no conhecimento
do mundo que o cerca e de si próprio, e esta tendência é
inata, independente de qualquer cálculo material. Em
terceiro lugar, o homem tem ainda necessidades tais
como, por exemplo, a aspiração do poder, da liberdade.
Existem no homem necessidades religiosas, estéticas,
necessidades de simpatia para com outrem e de outrem,
etc..".

Depois dessa salada de necessidades, o sr. Khvostov conclui "que uma


explicação monista (isto é, de conjunto, partindo de uma unidade qualquer, N.
B.)... é impossível", por enquanto, este só exemplo permite mostrar todo o
absurdo da oposição "kvostoviana" da questão (posição extraordinariamente
espalhada entre os "sábios" do mundo inteiro), e a necessidade, precisamente
de uma explicação monista. O que é com efeito senão uma irrisão ao
pensamento cientifico, atribuir à religião, ao poder, etc. a qualidade de
categorias eternas? Nem mesmo ao espírito do autor vem a idéia de propor o
problema da sua explicação. A religião existe no mundo. Como a explica? Por
uma necessidade religiosa. O poder existe no mundo. Por que? Aí está, porque
existe a necessidade do poder. Não é isto outra coisa senão a explicação do
sono pela "virtude dormitiva". Será que isto explica seja o que for? Por esta
forma pode-se sem esforço e sem pensar um só instante "explicar" tudo o que
se quer: o Estado se explica pela necessidade do Estado, a arte pela
necessidade da arte, o circo pela necessidade do circo, as explicações à moda
de Khvostov pela necessidade de explicações à Khvostov, e assim por diante,
até o infinito. Mas uma tal "teoria do processo histórico" não nos serve de nada.
"O próprio do homem é a aspiração à liberdade": mas isto não é verdade!
Tome-se Nicolau II durante o seu reinado. Será que a sua natureza e a da sua
classe o faziam "aspirar" à liberdade em geral? Evidentemente que não. Assim,
esta nobre aspiração não é, mau grado Khvostov, propria de todos os homens.
E desde que se constatou isto, o problema se propõe imediatamente por si só:
por que se encontra esta aspiração em alguns homens e não em outros? É
então que se é obrigado a indagar — que horror! — as condições da existência
destes homens, etc.. Dá-se o mesmo com as outras "várias necessidades" de
Khvostov. Protestando contra uma explicação monista ou de conjunto, os
sábios burgueses protestam de fato contra toda explicação em geral.

§ 42. Os princípios constitutivos da vida social

Chegamos agora a um problema geral que se apresenta depois dos


raciocínios desenvolvidos mais acima. Eis aqui em que consiste este problema.
Vimos que a psicologia, a ideologia, a economia social se distinguem por um
certo número de traços típicos. Não será possível apanhar esses traços? Não
se poderá neste caos, neste verdadeiro oceano de fenômenos econômicos,
políticos, sócio-psicológicos, ideológicos, extrair um núcleo do que é
fundamental, decisivo, achar o que constitui o traço característico dum
«momento dado», duma «época» dada? Não nos parecerá aqui que o laço que
liga entre si todos os fenômenos sociais se manifestará nisto, que os diferentes
fenômenos sociais terão entre si qualquer coisa de comum? Vimos que todos
são «em última análise determinados pelas forças produtivas e pelas relações
produção? Então, como exprimir esse laço em algumas palavras? E como
proceder à solução desta questão?

Tomemos um dos fenômenos mais «subtis» e mais complexos da vida


espiritual, a arte. Vimos que em cada época ela tem o seu «estilo» especial,
isto é, um caráter particular que se exprime por formas particulares. Estas
formas particulares (lembremo-nos, por exemplo, da arte egípcia)
correspondem a um conteúdo particular, este conteúdo a uma ideologia
determinada, esta ideologia a uma psicologia determinada, esta psicologia a
uma economia determinada, esta economia, finalmente, a um grau definido da
evolução das forças produtivas.

Mas se em todos os domínios da vida social constatamos um conjunto


de formas determinadas não podemos nós falar do «estilo» de todos os
domínios da vida? Certamente que sim. Pode-se falar do «estilo» da ciência
com tanta razão como do da arte. Pode-se falar de um estilo da vida, isto é, de
formas particularmente típicas desta vida (vide, por exemplo, sobre o «estilo»
da vida, Simmel: Filosofia do Dinheiro, p. 480), pode-se falar num certo sentido
do estilo da economia social, e então, sob o nome de estilo desta economia,
compreender-se-á simplesmente o que Marxchama «relações de produção»,
os modos de produção, ou a «estrutura econômica da sociedade». Da mesma
forma que o estilo de uma construção qualquer se define pela reunião dos
elementos que o compõem, da mesma forma o «estilo» da economia social se
exprime nas particularidades das relações de produção, no «aspecto e no
modo particular» de unificação dos elementos do todo social.
(«O aspecto e o modo particular desta unificação
diferenciam as épocas econômicas particulares da
estrutura social», Marx,Capital, t. 2, p. 12).

Mas ao lado do «modo de produção», existe também nm «modo de


representação». É o «estilo» da ideologia geral de uma época dada, isto é,
este modo particular de reunião das idéias, dos pensamentos, dos sentimentos,
das imagens, que é característico de uma época determinada, esta «unidade
de formas do pensamento cientifico da concepção do mundo e da concepção
da vida», como se exprime o professor Marbe (Karl Marbe: A unidade de
formas do mundo. Pesquisas de filosofia e de ciência positiva).

Assim, somos levados a confrontar o «modo de produção» de um lado, e o


«modo de representação» do outro. Em outras palavras: somos levados a
confrontar o «estilo» econômico de uma sociedade dada e seu «estilo»
ideológico. Um tal confronto é admissível? De tudo quanto vimos no nosso
exame das superestruturas em geral e das ideologias em particular, decorre de
uma forma absolutamente indiscutível que temos plenamente o direito de
proceder a esta confrontação.

Esclareçamos com um exemplo. Tomemos a sociedade feudal. Seu estilo


econômico pode ser expresso pelo princípio de uma solida hierarquia,ou, o que
vem a dar no mesmo, pela idéia da ordem (classificação). Eis
como Marx caracteriza o feudalismo:

«Em lugar do homem independente, encontramos aqui


cada indivíduo em estado de dependência, tanto os
servos como os proprietários territoriais, tanto os vassalos
como os senhores, tanto os leigos como os clérigos. A
dependência pessoal caracteriza de uma forma tão
decisiva as relações sociais da produção material quanto
às (outras) esferas da vida estabelecidas sobre esta
produção». (Capital, t. 1, pag. 43).

Esses caracteres da economia e das outras «esferas da vida» constituem


precisamente o «estilo» de uma época. Dependência hierárquica na economia;
dependência hierárquica nas outras «esferas da vida»; «estilo» hierárquico
de toda atividade intelectual. Não vimos nós com efeito que todo estado de
espírito do homens estava nesta época impregnado de religião? E a religião é
bem um sistema de idéias onde tudo se explica pelomodo da hierarquia,
pela ordem (classificação). A ciência está penetrada da idéia de ordem, a arte
também, e esta ordem encontra sua expressão até no estilo da arte. A ordem,
eis o «estilo» de toda a vida dessa época. Até na unidade deste estilo vê-se a
dependência do «modo de representação» com relação ao «modo de
produção», do «sistema de idéia», do «sistema das coisas», isto é, pelas forças
produtivas materiais da sociedade. Pois bem, isto que constitui o eixo dum
«estilo», como num momento dado a hierarquia ou a ordem (classificação), é a
isto que se pode chamar um princípio constitutivo da vida social. Vemos que
ele tem por base as relações de produção.

Esta unidade do estilo da vida salta de tal forma aos olhos, que uma série
de sábios mesmo burgueses subscrevem integralmente esta idéia. É assim,
por exemplo, que Carl Lamprecht edifica uma doutrina "dominante", isto é, do
tipo dominante de psicologia, o qual muda com as condições de cada época; a
antiga dominante desaparece e uma nova aparece, um novo "estilo de vida" se
constitui (A ciência moderna e a história).

Se ligarmos o problema proposto por Hammacher à questão dos princípios


constitutivos, torna-se bastante fácil resolve-lo. Este sábio levanta contra a
teoria do materialismo histórico a objeção que se segue:

"Fica sempre o problema de saber por que só as relações


econômicas encontram acesso na alma da história" (O
sistema filosófico econômico do marxismo).

Esse enigma é de fácil solução. O que tem uma influência sobre as


pessoas, não são só os acontecimentos econômicos, mas tudo o que se
encontra na esfera da sua experiência. Ora, os princípios constitutivos gerais
são determinados pelas relações de produção, que por conseguinte se
"refletem" nos domínios ideológicos. É na religião que podemos melhor
constatá-lo. Evidentemente, a luz do sol, o trovão, a morte, o sono e todos os
outros fenômenos, tudo isto "tinha acesso à alma da história". Mas a idéia de
divindade, de "forças superiores", da "classificação" não aparece na
representação do mundo senão com o advento da classificação na vida social.
É neste quadro que se encerram todos os fenômenos "correspondentes", entre
os quais o sono e a morte. Por que, nos despotismos sangrentos, o deus
principal era geralmente o deus da guerra? Porque, sendo o deus da guerra,
ele se tornava por isto mesmo o deus do trovão e do raio, como forças as mais
temíveis, as mais "guerreiras" da natureza; a tempestade e os fenômenos
semelhantes produziam uma impressão sobre a "alma da história", mas
a forma era dada pelo quadro das relações sociais. Pode-se perguntar por que
as relações sociais condicionam uma forma determinada? Donde provém esta
conexão interna? É muito simples. Isto provém de que o meio social tem nas
relações de produção o seu fundamento vital. "... A unidade de forma dos
fenômenos psíquicos pode ser relacionada com a unidade de forma das
condições destes fenômenos". Uma série de fatos deste domínio "aparecem
como produtos da civilização. Huber mostrou que, nas experiências feitas a
respeito de Associações de idéias, a qualidade das palavras-reações depende
da profissão e dos hábitos de vida das pessoas submetidas à experiência" (K.
Marbe, op. cit., p. 52), isto é, que as respostas dadas a perguntas idênticas (por
exemplo, dizer uma palavra, não importa qual) dependiam do gênero de vida
das pessoas interrogadas. Será de espantar depois disto que a psicologia e a
ideologia social dependam do modo de produção da vida material, e com ele,
das forças produtivas?

§ 43. Tipos de estruturas econômicas e tipos diversos de sociedades

Examinando a questão da sociedade, encontramos tipos históricos


definidos de sociedades. E isto que significa? Que não existe uma sociedade
«em geral»-que na realidade uma sociedade existe sempre sob um invólucro
histórico determinado qualquer; que ela traz o uniforme do seu tempo. É
perfeitamente compreensível. Sabemos que uma sociedade (não importa qual)
é um conjunto de pessoas que exercem umas sobre as outras uma ação
recíproca constante; estas inúmeras influencias recíprocas têm por base as
relações que o trabalho cria entre essas pessoas, o sistema de relações de
produção, se se tomam essas relações e estas influencias mutuas num
instante dado. Mas esse sistema de relações de produção é constituído por um
conjunto de pessoas dispostas de uma maneira definida, de pessoas que se
unem não simplesmente pelo laço do trabalho, mas por um tipo determinado de
laço de trabalho. Está claro, pois, que a sociedade não existe senão sobre uma
base de trabalho definida; e como a esta base definida, a este «modo de
produção» definido corresponde também um «modo de representação»
definido, é igualmente compreensível que é aquilo mesmo que dá também o
tipo de toda sociedade, duma sociedade no seu conjunto, e não só na sua
parte de produção material e econômica. A técnica duma sociedade está ligada
ao seu modo de produção, o modo de produção como modo de representação,
e esta união do sistema material, do sistema humano e do sistema espiritual
faz duma sociedade um tipo social bem determinado. Da mesma forma que no
reino animal distinguimos várias espécies animais, vários gêneros, várias
famílias, etc., da mesma forma, na sociologia, distinguimos diversos gêneros
de sociedades. Disto já falamos várias vezes. Mas é preciso aqui frisar a idéia
fundamental deste parágrafo, a saber que esta diferença entre «gêneros»
sociais, os tipos de sociedade, pode ser apanhada sem esforço não somente
na esfera econômica, como também, em qualquer série de fenômenos
sociais. Um tipo de sociedade pode caracterizar-se pela sua ideologia ou pela
sua economia. Da arte feudal se pode chegar às relações de produção feudais
ou à religião feudal ou ao caráter da psicologia feudal em geral, etc., e assim
em todos os casos. É por isso, por exemplo, que pela decifração de qualquer
monumento literário descoberto pelos arqueólogos, podemos representar os
diferentes aspectos das relações dos povos desaparecidos e imaginar o seu
gênero de vida. Lendo o código de Hamurabi, ressuscitamos a vida econômica
da Babilônia; pela Ilíada e pelaOdisséia podemos julgar da história da Grécia
homérica, e assim por diante.

Assim, as formas históricas da sociedade, o caráter


de determinação destas formas, dizem respeito não somente à base
econômica, mas também a todo conjunto dos fenômenos sociais, pois a
estrutura econômica determina a estrutura política e a estrutura ideológica.
Dado um termo, o outro também o será. Não se segue evidentemente que um
tipo de sociedade seja separado do outro, por fronteiras tão marcadas que não
deixem lugar a nenhum elemento comum a estas sociedades diferentes.

«As estreitas linhas divisórias da abstração separam tão


pouco as épocas da história da sociedade humana,
quanto as épocas da história da terra.» (Capital, t. 1).

Pelo contrário, a vida real nos mostra em cada tipo social, em cada nova
estrutura social, os restos de antigas formações econômicas às vezes muito
consideráveis e que representam um grande papel. Se tomarmos, por exemplo,
a sociedade capitalista contemporânea, encontraremos uma grande quantidade
de vestígios de antigas instituições econômicas. Toda a importante camada
camponesa com sua economia particular é essencialmente o resto da época
feudal, da mesma forma o artesanato, etc.. O capitalismo «puro» supõe uma
burguesia e um proletariado, e não supõe nem camponeses nem artesãos,
nem nada de parecido. Portanto, se na estrutura econômica uma tal «pureza»
não pode existir, está claro que no domínio ideológico também haverá
inevitavelmente uma certa «mistura de idéias». Noutras palavras, podem-se
encontrar na sociedade capitalista tantos traços de ideologia feudal quantos se
quiser; na aristocracia fundiária, no campesinato, nas «classes rurais» que se
apóiam sobreantigas relações agrárias, onde se conservou um certo número
de traços antigos.

«... Supõe-se em teoria (trata-se aqui da teoria da


economia capitalista, N. B.) que as leis do modo de
produção capitalista se desenvolvem na sua pureza. Mas,
na realidade, nunca se tem mais que uma aproximação, e
essa aproximação é tanto maior quanto o modo capitalista
de produção está mais desenvolvido e que o emaranhado
com os vestígios de estados econômicos anteriores
desaparecem em parte». (Capital, t. 3, p. 154).
Ao mesmo tempo que se produz o entrelaçamento
de formas econômicas, haverá também, fatalmente, o entrelaçamento de
formas ideológicas. Eis por que não existe nunca nem um «modo de produção»
absolutamente único, nem, com mais razão, um «modo de representação»
absolutamente único (dissemos «com muito mais razão», porque o «modo de
representação» é diferente nas diversas classes, mesmo quando elas
pertençam a uma só e mesma cultura econômica tomada na sua pureza
virginal). Todavia, não se segue absolutamente que não possamos ou
devamos distinguir diversos tipos de relações de produção e de formas
ideológicas. Pois em qualquer sociedade existente há sempre um
tipo dominante determinado de relações de produção, e por conseguinte, um
«modo de representação» também determinado e dominante. É com razão
que W. Sombart diz:

«Eu distingo uma época na vida econômica pelo espírito


da vida econômica, com a condição que um espírito
determinado seja realmente dominante num momento
dado». (O burguês, p- 6).

Exatamente da mesma forma falava Marx, a respeito do capitalismo, duma


«forma social na qual domina o modo capitalista de produção» (Teoria sobre a
mais valia, t. 1, p. 424). Da mesma forma em zoologia distinguimos o macaco
do homem, apesar dos seus traços de semelhança; distinguimos pelo exame
das formas sociais uma forma da outra, apesar dos seus traços comuns,
embora nas formas «superiores» encontremos comumente restos
perfeitamente inúteis, incompreensíveis à primeira vista, de aspectos antigos.

No terceiro capítulo deste livro já indicamos que, no exame da sociedade,


é indispensável discernir a forma social que tem a sua raiz
nasparticularidades da estrutura econômica. Este ponto de vista já provocou
mais de uma vez os protestos da ciência burguesa oficial, a quem desagrada
toda a idéia de reedificação radical das relações sociais. Os próprios sábios
burgueses reconhecem agora que é bem aqui que está o nó da questão. Assim
o dr. Bernard Odenbreit escreve:

"Marx, como é natural para um "revolucionário",


considerava de um modo particularmente agudo o caráter
histórico transitório das constituições sociais. A esta idéia
geral no domínio das ciências sociais junta-se um
conhecimento conscientemente critico do domínio mais
estreito da economia política..." (Pleige, Contribuição à
ciência política, 1.o caderno; D. Odenbreit: A teoria
comparativa da indústria em Karl Marx).
Aí estamos! Considerar "de uma forma aguda o que se transforma, isto
não se pode encontrar senão em revolucionários". Está aqui, como já sabemos,
uma das principais causas da proeminência das ciências sociais do
proletariado revolucionário sobre as ciências sociais da burguesia contra-
revolucionária.

Se tomarmos a mais antiga das formas de sociedade conhecidas, que se


chama o Comunismo primitivo, veremos que a seu tipo de relações de
produção, onde a «individualidade» trabalhadora não se separou ainda da
«horda», correspondem também suas formas particulares de consciência: nada
de religião, nenhuma idéia de classificação social, nem mesmo a idéia de
personalidade, de separação, de particular, de individual. Mas consideremos
a sociedade feudal, «cujos traços essenciais são de um lado a fragmentação
do país numa quantidade de feudos independentes, de principados, e de
senhorios privilegiados, e de outro lado, a união desses feudos por laços
contratuais de vassalagem». (N. P. Silvanski: Ofeudalismo na antiga Rússia, p.
45). Aqui, o estilo da economia tem um caráter hierárquico, o estilo da
«política» tem o mesmo caráter e assim também o «estilo» da ideologia. Como
já vimos, em tudo domina a idéia de ordem (classificação). Na base se
encontra a grande propriedade fundiária («nenhuma terra sem senhor», tal é o
adágio que caracteriza esse edifício econômico), imóvel e fixa. Os laços
econômicos são os laços entre proprietários e servos; eles são fixos, imóveis,
imutáveis do ponto de vista dos membros da sociedade feudal; tudo está
«amarrado», «preso» ao seu lugar no sistema hierárquico. E da mesma forma
na superestrutura política, que refletia essas relações de produção.

«A tendência hierarquizante da vida feudal foi erigida em


teoria e em sistema pelos juristas do XIII.º século (trata-se
aqui do feudalismo europeu, N. B.)... Os pregadores viam
facilmente uma divisão horizontal da sociedade
considerada como um todo, mesmo se ela se divide em
senhores e servos. Eles lembravam aos servos as
palavras do apostolo, que ordenava aos escravos
obedecerem ao senhor. «Deus pôs sobre a terra os reis,
os duques e outras pessoas, a quem ordenou que
mandassem nos outros. Foram colocados por Deus para
que os pequenos dependessem dos fortes». (L. N.
Karsavine: A cultura na idade média).

Toda concepção do mundo é religiosa, isto é, penetrada do princípio de


ordem (classificação), e como se diz ainda, «autoritário»; daí sua imobilidade,
seu tradicionalismo; a ciência é, antes de tudo, uma interpretação da tradição e
das Sagradas Escritores; a arte é «divina» e exalta na sua forma e no seu
conteúdo as forças «superiores», celestes e terrestres; a moral dominante é
uma moral de fidelidade, de orgulho nobiliário, de culto da gloriosa recordação
dos antepassados, de respeito ao «bom sangue» e à «nobre extração»; aquod
liced Jove, non liced bovi», o que é permitido a Júpiter não o é a um boi. Numa
palavra, temos sob as vistas um «modo» social particular, uma forma particular
de sociedade, de suas bases econômicas até às formas mais «elevadas» da
consciência social.

Consideremos agora a sociedade capitalista. Sua base econômica é


constituída por um gênero de relações completamente diferentes.

«A oposição entre o poder da propriedade fundiária que


se apóia sobre relações pessoais entre servos e
senhores, e o poder impessoal do dinheiro está
claramente expressa em dois ditados franceses:
«Nenhuma terra sem senhor». «O dinheiro não tem
senhor». (Marx, Capital, I).

Esta tese de Marx nos revela uma das dependências econômicas


fundamentais da sociedade capitalista, a saber, o laço que une as empresas
por meio do mercado, e que faz surgir o poder impessoal deste mercado, e o
poder impessoal, «abstrato» do dinheiro. A coisa tem ainda, contudo, outro
aspecto. O poder social impessoal do dinheiro transformado em capital
encontra, apesar de tudo, um senhor, na medida em que a simples produção
de mercadorias se transforma em produção capitalista.

«Da mesma forma que no ouro são apagadas todas as


diferenças qualitativas das mercadorias, o ouro por sua
vez tal como umleveller(1) radical, apaga todas as
diferenças. Mas o dinheiro é ele mesmo uma mercadoria,
uma coisa palpável que se pode tornar a propriedade de
cada um. Esta força social se torna desta forma uma força
particular dum homem tomado em particular». (Capital, t.
I).

Daí decorre o segundo traço da economia da sociedade capitalista, seu


caráter de hierarquia. Este traço também é brilhantemente evidenciado
por Marx. Ele escreve no capítulo sobre o trabalho coletivo (Capital, t. I):

«A direção capitalista é quanto à forma, despótica. À


medida que o trabalho coletivo se desenvolve sobre uma
grande escala, este despotismo toma formas particulares
e adequadas... O capitalismo se libera de todo trabalho
manual, desde que seu capital atinge uma certa grandeza
mínima, a partir da qual se torna possível a produção
capitalista no sentido próprio da palavra; da mesma forma,
a fiscalização direta e constante de operários isolados, ou
de grupos de operários, passa desde então a uma
categoria particular de operários assalariados. Tanto
quanto um exército precisa de uma hierarquia de
superiores militares, uma massa de operários reunidos
num trabalho comum, sob o comando de um só e mesmo
capital, precisa de oficiais superiores, industriais
(administradores, gerentes), e de sub-oficias (inspetores,
contra-mestres, etc.), que, durante o processo do trabalho,
dirigem em nome do capital. O trabalho de fiscalização se
fixa neles como sua função exclusiva».

Assim, o modo de produção capitalista tem um duplo caráter: de um lado,


é o conjunto de «empresas» separadas, particulares, ligadas entre se pelo laço
anárquico do mercado e da troca, e onde o poder elementar do mercado
domina toda empresa particular; doutro lado, é um sistema hierárquico de
«comando do capital». Nada de extraordinário que sobre a base de um
tal modo de produção se eleve um modo de representaçãocorrespondente.
Seu «estilo» deve refletir este duplo caráter. Com efeito, o «modo de
representação» do mundo capitalista se caracteriza, de um lado por aquilo
que Marx chamou o fetichismo da mercadoria, doutro por este mesmo princípio
de «ordem» (classificação) que observamos também na sociedade feudal. A
reunião destes dois «princípios constitutivos» nos dá o estilo fundamental do
«modo de representação» que rege o mundo capitalista.

Que é o fetichismo da mercadoria?

Na sociedade capitalista mercantil, a empresa trabalha


«independentemente» para o mercado desconhecido. No fundo, cada trabalho
é aqui uma parcela do trabalho social e todas as partículas dependem umas
das outras. Mas isto se passa de tal maneira, que o laço social entre os
homens,que trabalham de fato uns para os outros escape aos olhos humanos.
Se tivéssemos diante de nós uma sociedade socialista, onde tudo caminha de
acordo com um plano, seria claro para todos que os homens trabalham uns
para os outros, que cada aspecto separado do trabalho não é senão uma
partícula do conjunto do trabalho social. As relações entre os homens seriam
claras, nada os mascararia; mas não é assim no mundo capitalista. Aqui, este
laço de trabalho entre os homens é invisível, esconde-se aos homens. Por que
se esconde? Pelo mercado. No mercado, as mercadorias passam, compram-se
e se vendem. Mas não são os homens que racionalmente dominam o mercado,
é o mercado que com seu preço domina os homens. Os homens vêem
o movimento das coisas, e no entanto não compreendem que trabalham uns
para os outros, que estão todos ligados pelo laço geral do trabalho. Este laço
de trabalho que os une lhes aparece sob o aspecto particular do extraordinário
poder das coisas, das mercadorias, sob o aspecto do «valor» dessas
mercadorias. As relações entre os homens parecem-lhes relações entre as
coisas. Eis aí o fetichismo da mercadoria, esta atribuição às coisas de
propriedades extraordinárias, enquanto o seu movimento dissimula na
realidade o trabalho mutuo dos homens. É este fetichismo, pelo qual «as
relações sociais definidas entre os homens... tomam aos seus olhos a forma
fantástica de relações entre as coisas (Marx), que constitue a particularidade
distintiva do «modo de representação» capitalista. Já vimos como os sábios,
artistas, filósofos, etc., da classe burguesa se revoltam quando ouvem falar nas
raízes sociais da ciência, da arte e da filosofia. Eles são fetichistas até à
medula dos ossos; pois não vêem o laço social, não podem compreender que
seu trabalho divino e inspirado é, ele também, uma parte do conjunto do
trabalho social.

O fetichismo do mundo capitalista aparece com relevo singular no domínio


do que se chama as normas morais ou a "ética", de que os sábios professores
tanto gostam de falar. Já explicamos que as normas éticas são regras de
conduta indispensáveis à vida da sociedade, da classe ou do grupo profissional
etc.. Elas têm a significação de regras auxiliares sociais indispensáveis.
Contudo, na sociedade fetichista, esta significação humana e social que elas
possuem não é consciente. Pelo contrário estas normas, isto é, estas regras
técnicas de conduta, aparecem como um "dever" suspenso sobre os homens,
como uma força exterior, quase divina, de coação: este inevitável fetichismo
ético foi muito bem expresso pelo genial filósofo burguês Emanuel Kant, na sua
teoria do "imperativo categórico".

É de uma forma completamente diferente que o proletariado deve encarar


este assunto. Ele não se pode fazer arauto do fetichismo capitalista. Para ele,
as normas da sua conduta são regras dum mesmo valor técnico do que
aquelas a que obedece o carpinteiro para fazer uma cadeira. Quando o
carpinteiro quer fazer uma cadeira, ele serra, prega, cola, etc.. Isto decorre do
processo mesmo do seu trabalho. Ele não irá se ocupar das regras de
preparação da madeira ou do quer que seja estranho, que pertença a um outro
domínio que não o seu. Da mesma forma o proletariado na sua luta social. Se
ele quer conquistar o comunismo, deverá fazer isto e aquilo, exatamente como
o carpinteiro que quer fazer uma cadeira. E tudo que se conforma com este fim
deve ser feito. A "ética" se transforma pouco a pouco para o proletariado em
simples regras técnicas de conduta, facilmente compreensíveis e necessárias
para chegar ao comunismo e que, assim, deixam de ser uma ética. Na
verdade é da essência mesmo da ética ser um conjunto de regras dissimuladas
sob um invólucro fetichista. O fetichismo é a essência da ética. Lá onde
desaparece este fetichismo, também desaparece a ética. Não virá ao espírito
de pessoa alguma chamar os estatutos de uma cooperativa ou de um partido
de "ética" ou de "moral". Isto porque nesses casos cada um conhece o
sentido humano deste estatuto. A ética supõe um nevoeiro fetichista onde
mais de um perde o seu caminho. Assim o proletariado precisa de normas de
conduta, e normas muito precisas, mas não de uma ética, molho fetichista para
uma iguaria util. Está claro que o proletariado não se libertará por si, de um só
golpe, do fetichismo da sociedade mercantil em que vive. Mas isto já é questão
diferente.

O fetichismo da ideologia capitalista mercantil se combina com o princípio


da «ordem» (classificação), e esses dois princípios fundamentais constituem o
eixo do modo de representação capitalista, o quadro em que se insere o seu
cometido ideológico. Assim, a sociedade capitalista é, ela também,
uma espécie de sociedade, com traços particulares, característicos, em todos
os «andares» da vida social, até as mais altas construções ideológicas
compreendidas. Assim, um tipo de cultura econômica supõe tombem um tipo
de estrutura social e política e um tipo de estrutura ideológica. A sociedade tem
um «estilo» fundamental em todas as manifestações dominantes da sua vida.

44§. Caráter contraditório da evolução: Equilíbrio "exterior" e equilíbrio


"interno" da sociedade

Examinamos nos parágrafos precedentes o fenômeno do equilíbrio social.


Mas não devemos perder de vista um só instante a circunstancia de que se
trata de um equilíbrio instável, isto é, de um estado de coisas tal que o
equilíbrio se rompe constantemente para se restabelecer noutra base, rompe-
se novamente e assim por diante. Noutros termos, temos diante de nós um
processo contraditório; temos não um estado de repouso nem de adaptação
absoluta, mas uma luta de contradições, um processo dialético de movimento.
Por conseguinte, quando examinamos a estrutura da sociedade, isto é, as
relações entre as suas partes, não devemos absolutamente nos representar
qualquer harmonia perfeita entre essas partes. Pois toda estrutura tem as suas
contradições; em toda forma social, fundada sobre classes, essas contradições
são singularmente acentuadas. Contudo, mesmo aqueles sociólogos
burgueses que vêem o laço que une os diversos fenômenos sociais, não
compreendem absolutamente o caráter de contradição interna das formas
sociais.
Toda a escola do «fundador» da sociologia burguesa, Augusto Comte, é
particularmente curiosa sob este ponto de vista. Na sua doutrina existe um laço
entre todos os fenômenos sociais (é o que ele chama o consenso), e é este
laço que constitui a «ordem». Mas as contradições desta «ordem», e em
particular aquelas que conduzem esta ordem à destruição inevitável, não são
analisadas por ele. Pelo contrário, para os partidários do materialismo dialético,
este lado da questão é um dos mais, senão o mais importante de fato, como já
vimos, as contradições dum sistema dado são precisamente aquilo que o põe
em movimento, o que conduz a uma transformação de formas no processo do
desenvolvimento ou da decadência social.

Examinando a estrutura social, vimos que essas transformações são


ligadas às mudanças das relações entre a sociedade e a natureza.
Chamávamos este último equilíbrio de exterior, enquanto dávamos ao equilíbrio
entre as diversas ordens de fenômenos sociais o nome de equilíbriointerno da
sociedade. Se agora considerarmos toda sociedade do ponto de vista do
caráter de contradição da evolução, uma série de problemas surgirá diante de
nós: antes de tudo veremos que cada ordem de fenômenos sociais traz em se
as suas contradições (por exemplo, na economia, as contradições entre as
diversas funções do trabalho; na estrutura social e política, contradições entre
as classes; na ideologia, contradições entre os sistemas ideológicos das
classes, etc., sem falar numa série de outras contradições); distinguiremos
depois sem esforço as contradições entre a economia e a política (quando por
exemplo, as normas jurídicas «atrasam» sobre a evolução econômica, e que,
por exemplo, uma «reforma» qualquer se torna urgente; entre a «economia» e
a «ideologia», entre a «psicologia» e a «ideologia» (quando por exemplo se faz
sentir a necessidade de qualquer coisa de novo, e que esta coisa ainda não se
constituiu, ainda não se fundiu numa forma ideológica); entre a ciência e a
filosofia, etc.. Estas são contradições entre as diferentes ordens de fenômenos
sociais. Tanto as segundas como as primeiras dizem respeito ao equilíbrio
interno. Mas existe também contradição entre a sociedade e a natureza,
ruptura de equilíbrio entre a sociedade e o meio ambiente, que encontra sua
expressão no movimento das forças produtivas. É este o domínio do equilíbrio
exterior. Sabemos já que existe ainda um caso extremamente importante de
contradição. É a contradição entre o movimento das forças produtivas e da
estrutura social e econômica (e toda outra espécie de estrutura) da sociedade.
Entram aqui em conflito as relações que existem entre a sociedade e a
natureza, e as relações que se constituíram no interior da sociedade. Não é
difícil ver que esse conflito, esta contradição, deve inelutavelmente representar
um papel de grande importância na vida da sociedade, pois ele abala os
«fundamentos do edifício existente» e os «alicerces» sobre que repousa uma
ordem dada de coisas.
Não fizemos aqui mais do que indicar as principais questões que as
contradições sociais apresentam. O estudo destas questões será o objeto do
capítulo seguinte, em que examinaremos a sociedade em movimento; até
agora estudamos principalmente a estrutura da sociedade, a estrutura de uma
fórmula social dada. Falta-nos agora falar das passagens duma estrutura a
outra. E é importante notar aqui mais uma vez, que a lei do equilíbrio social é a
lei de um equilíbrio instável que não somente não exclui, mas pelo
contrário supõe os antagonismos, as contradições, os defeitos de adaptação,
os conflitos, a luta, e — o que é particularmente importante — a inclutabilidade,
em condições determinadas, de catástrofes e de revoluções. Nossa teoria
marxista é uma teoria revolucionária.
Capítulo VII - Ruptura e Restabelecimento do Equilíbrio Social

§ 45 — O processo das transformações sociais e as forças produtivas

O processo das transformações sociais está, como sabemos, em ligação


com a transformação do estado das forças produtivas. Este movimento das
forças produtivas, assim como o movimento e reagrupamento de todos os
elementos da sociedade que estão ligados a ele, não é outra coisa que o
processo de perpetua ruptura do equilíbrio social e do seu contínuo
restabelecimento. Com efeito, suponhamos um movimento progressivo das
forças produtivas. E disso, que resulta? Primeiro e antes de tudo, que entre a
técnica social e a economia social nasce uma contradição: o sistema sai do seu
equilíbrio. As forças produtivas ganham um certo avanço. Donde: deve dar-se
um certo reagrupamento dos homens. Por que? Porque não havendo
equilíbrio, o sistema não pode subsistir por muito tempo. Esta contradição se
resolve. Como? Precisamente por este reagrupamento dos homens; a
economia se «adapta» ao estado das forças produtivas, à técnica social. Mas o
reagrupamento dos homens no processo econômico supõe necessariamente o
seu reagrupamento na estrutura social e política da sociedade (uma outra
combinação de partidos, do seu poder, etc..); depois a mesma circunstância
provoca necessariamente a transformação das leis (jurídicas, morais e outras).
Isto porque não é senão por esta forma que se resolve a contradição, ou, o que
vem a dar no mesmo, que se restabelece o equilíbrio entre os sistemas dos
homens e o das normas. Ora, dá-se o mesmo com toda a psicologia da
sociedade e toda sua ideologia. É o que muito bem expôs Plekanov:

«É pelo aparecimento, pela transformação e destruição


das associações de idéias sob a influência do
aparecimento, transformação e destruição de certas
combinações de forças sociais que se explica numa
medida considerável a história das ideologias» (N.
Beltov, Da compreensão materialista da história, «Crítica
de nossos críticos», p. 333).

A nova «combinação» dos homens entra em conflito com a velha


combinação das idéias (com as velhas associações de idéias). Aqui rompeu-se
o equilíbrio interior. Ele se restabelece numa nova base, quando aparece uma
nova combinação de idéias, isto é, a psicologia social e a ideologia social se
põem de acordo para que o equilíbrio seja novamente rompido, e assim por
diante.
Apresenta-se aqui uma questão muito importante, tanto do ponto de vista
teórico como do prático.

Podemos, com efeito, imaginar-nos o restabelecimento do equilíbrio social


sob duas formas: sob a forma de uma adaptação lenta (evolutiva) dos
elementos do conjunto social, ou sob a de bruscas transformações. A história
nos ensina que tem havido e ainda há revoluções. São fatos históricos. Quando
é que eles se produzem? Quando é que se já uma curta adaptação recíproca
dos vários elementos da sociedade, e quando uma explosão? Onde está
o fundo deste conflito, desta colisão que se exprime pela revolução?

Em ligação com este problema surge toda uma série de problemas de


dinâmica social. Com efeito, sabemos que toda sociedade, qualquer que ela
seja, está continuamente num processo incessante de transformações, de
reagrupamentos interiores, de remodelações de forma e conteúdo. Sabemos
que este processo está ligado à evolução das forças produtivas. Contudo,
constatamos de um lado transformações nos limites duma só e mesma
estrutura social, e do outro, a passagem duma «espécie» de sociedade a outra,
substituição dum «modo de produção» por outro. Quando é que se dá um ou
outro destes fenômenos? É preciso também responder a esta pergunta.

Encontra-se em Marx, na Crítica da Economia Política, uma descrição


geral do processo do movimento social. Eis como ele descreve tal processo:

«Em certo estágio de sua evolução, as forças produtivas


materiais da sociedade entram em contradição com as
relações de produção em vigor, ou, o que é a expressão
jurídica do mesmo fato, com as relações de propriedade
no interior das quais elas até então se tinham movido. De
formas de evolução das forças produtivas, estas relações
se transformam em obstáculos a esta evolução. Abre-se
então uma época de revolução social. Com a derrubada
dos fundamentos econômicos, produz-se, de uma maneira
mais ou menos lenta ou rápida, uma transformação de
toda a monstruosa superestrutura. No exame de tais
transformações é preciso distinguir constantemente entre
a transformação material nas condições econômicas da
produção, o que se pode constatar com a exatidão duma
análise de história natural, e entre as formas jurídicas,
políticas, religiosas ou filosóficas, numa palavra,
ideologias em geral, sob as quais os homens tomam
consciência deste conflito e o utilizam na luta. É tão difícil
julgar o indivíduo pelo que ele pensa de se próprio, como
julgar tais momentos de transformação pela sua
consciência; é indispensável, pelo contrário, explicar esta
consciência à luz do conflito que se observa entre as
forças produtivas sociais e as relações de produção».

Assim, segundo Marx, a transformação, a revolução se produz quando o


equilíbrio entre as forças produtivas da sociedade e os traços fundamentais da
sua estrutura econômica se rompe. Aí está o fundo do conflito que a revolução
deve resolver. Trata-se aqui, por conseguinte, da passagem de uma forma a
outra. Mas enquanto a estrutura econômica torna possível o desenvolvimento
das forças produtivas, as transformações sociais não assumem o caráter
de desordem: elas se produzem na «ordem da evolução».

Examinaremos em seguida esta questão com maiores detalhes.


Queremos, contudo, desde já, chamar a atenção para um
ponto: segundo Marx, a causa duma revolução não reside de forma alguma no
conflito da economia com o direito, como afirma uma quantidade de críticos do
Marxismo, mas no conflito entre as forças produtivas e a economia. E isto não
é em absoluto a mesma coisa. Veremos em «seguida por que as cousas assim
se passam.

§ 46. As forças produtivas, a estrutura social e econômica

Dissemos que a causa de uma revolução, duma passagem violenta dum


tipo de sociedade a outro, deve ser procurada no conflito que estala entre as
forças produtivas, seu crescimento, de um lado, e a estrutura econômica da
sociedade, isto é, as relações de produção, do outro. Pode se objetar a isto,
por exemplo, o seguinte: Será que a evolução das relações de produção não é
condicionada pelo movimento das forças produtivas? Não será a transformação
a mais progressiva das relações de produção resultado dum conflito entre as
forças produtivas e as velhas relações «caducas» de produção?
Representemo-nos o crescimento das forças produtivas na sociedade
capitalista. Sabemos que com este crescimento produziram-se também
importantes reagrupamentos dos homens no processo econômico. Assim o
desaparecimento da antiga «classe média», o aniquilamento do artesanato, o
crescimento do proletariado, o aparecimento de formidáveis empresas. A
textura humana da produção se transforma perpetuamente. Melhor, não haverá
uma passagem duma forma de capitalismo a outra, por exemplo, do
capitalismo industrial ao capitalismo financeiro, sem a menor revolução? E no
entanto, todas estas transformações eram a expressão de uma constante
ruptura de equilíbrio, de um incessante conflito entre as forças produtivas e as
relações de produção. No seu crescimento, as forças produtivas se chocavam
com as relações do artesanato, rompeu-se o equilíbrio: a economia do
artesanato já não correspondia aos progressos da técnica. O equilíbrio rompido
se restabelecia constantemente sob uma nova base: pois paralelamente
crescia também uma nova economia que «correspondia» à técnica, etc..
Segue-se, portanto, evidentemente, que todo conflito entre as forças produtivas
e as relações de produção não provoca necessariamente uma revolução, e que
o problema é, por conseguinte, muito mais complexo. Para se analisar o
problema do gênero de conflito que provoca uma crise revolucionária, convém
dirigir-se à análise, ao exame das diferentes espécies de relações de produção.

Por relações de produção entendemos, como já se sabe toda espécie de


relações possíveis entre as pessoas que aparecem no processo da vida social
e econômica, isto é, no processo da produção, que em se também inclui a
repartição dos meios de produção, e no processo da distribuição dos produtos.
Está claro que estas relações de produção são extremamente variadas: o
especulador que compra em Paris ações de um «trust» americano de botões,
entra por isso mesmo em relação de produção com os operários e
proprietários, contra-mestres e engenheiros das fábricas compreendidas neste
«trust». O banqueiro que emprega contadores está em relação determinada de
produção para com eles. Da mesma forma, o carpinteiro está em relações
determinadas de produção com o torneiro que trabalha na mesma oficina, ou
com a quitandeira que lhe vende um arenque no mercado, ou com o contra-
mestre e o vigia. Mas o mesmo carpinteiro está também em relações
determinadas de produção com o pescador que apanhou o arenque e o tecelão
que produziu, entre outros, o tecido da sua calça, etc., etc.. Numa palavra,
temos realmente, diante de nós, uma quantidade enorme de relações de
produção variadas, heterogêneas, que diferem entre elas em gênero e em
espécie.

O problema consiste em introduzir uma classificação qualquer entre estas


diferentes espécies de relações, e esforçar-se em apanhar em que gênero de
relações de produção é preciso que haja conflito, para que se desencadeie
uma revolução.

Para procurar a solução deste problema de outra forma que pelo simples
chuchar de dedos, e resolve-lo de acordo com a realidade, convém considerar
como, de fato, se realizaram as revoluções, isto é, como se resolveu a
contradição entre a evolução das forças produtivas e a base econômica da
sociedade. É inútil lembrar que este conflito sempre se resolveu pelos
homens, e isto por uma cruel luta de classes. Que resultado se obtinha depois
da vitória da revolução? Em primeiro lugar, um deslocamento do poder
político. Em segundo lugar, um deslocamento das classes no processo da
produção, uma transformação na repartição dos meios de produção que, como
sabemos, está na mais estreita ligação com a situação das classes. Noutras
palavras: a luta no tempo da revolução tem por objetivo a apropriação dos
meios de produção mais importantes que, numa sociedade fundada sobre
classes, estão nas mãos de uma classe, a qual consolida ainda esta
dominação sobre as coisas, e por conseguinte sobre as pessoas, pelo poder da
sua organização política.

Chegamos aqui ao ponto decisivo da nossa pesquisa, que diz respeito a


estas relações de produção que a revolução deve fazer saltar, se a sociedade
é capaz de prosseguir na evolução de suas forças produtivas. Marx, no tomo III
do Capital (2.a parte), propõe a questão com toda a sua acuidade, destacando
de todo o conjunto das relações de produção a sua
parte fundamental, especifica.

«Uma forma econômica especifica, na qual um trabalho


suplementar não retribuído é por assim dizer roubado dos
produtores diretos, determina uma relação
de senhores a sujeitados, tal como nasce imediatamente
da produção mesma e por seu turno tem sobre ela uma
influência determinante. É sobre isto que se funda toda a
conformação do corpo social econômico que decorre das
próprias relações de produção e ao mesmo tempo sua
forma, especifica política. Encontramos cada vez o
mistério o mais secreto, o fundamento escondido de toda
construção social e, por conseguinte, também da
forma política, que representa relações de soberania e
dependência, numa palavra, de toda forma especifica
de Estado... nas relações imediatas dos detentores dos
meios de produção com os produtores imediatos.»

Como, em consequência, se passam as coisas? Duma forma muito


simples. Entre toda variedade de relações de produção, um gênero se destaca
pela sua importância: aquele que exprime as relações entre as classes que têm
os principais meios de produção e as outras classes que não possuem senão
os meios secundários, ou que não possuem nenhum. A classe dominante na
economia domina também na política, e reforçapolíticamente um tipo dado de
relações de produção, garantindo um processo de produção que a favorece...
«A política é uma expressão concentrada da economia», como diz uma das
resoluções do IX Congresso do P. C. Russo.

Pode-se ainda exprimi-lo em termos um pouco diferentes. Trata-se, nós o


vemos, não de todas as relações de produção, de qualquer espécie, mas das
relações de domínio econômico — apoiado nas relações determinadas com o
mundo material — e dos meios de produção. Para falar a linguagem dos
legisladores e juristas, trata-se das relações de propriedade fundamentais, das
relações de propriedade de classe dos meios de produção. Estas «relações de
propriedade» não são qualquer coisa de diferente das relações de produção
fundamentais. São exatamente a mesma coisa, mas expressa noutros termos,
em linguagem jurídica e não econômica. São precisamente estas relações,
ligadas à dominação econômica duma classe, que esta classe procura
conservar, fortalecer e alargar a todo preço.

Nestes quadros, todas as mutações possíveis «de ordem evolutiva»


podem-se produzir; mas sair destes quadros não é possível, senão pela
transformação revolucionária. Por exemplo: nos limites das relações de
propriedade capitalista, pudemos assistir ao desaparecimento do artesanato,
ao aparecimento de novas formas de empresas capitalistas, à vinda ao mundo
de uniões capitalistas antes desconhecidas, à ruína de membros particulares
da classe burguesa (falências); alguns membros isolados da classe operária
podem chegar à situação de pequenos proprietários e em seguida
empresários; novas camadas sociais podem crescer (por exemplo, o que se
chama a «nova classe média», isto é, os técnicos intelectuais) e assim por
diante. Mas a classe operária não se pode tornar detentora dos meios de
produção; não pode alcançar o poder, ter direitos na produção, dispor dos
meios fundamentais de produção. Noutras palavras, qualquer que seja a
transformação que se possa efetuar sob a influência das forças produtivas nas
relações de produção, seu eixo fundamental permanece. E se entra em conflito
com as forças de produção, ele se rompe. E é isto a revolução que assegura a
passagem a uma outra forma social.

«Na medida em que o processo do trabalho é um simples


processo entre o homem e a natureza, seus elementos
simples conservam-se idênticos em todas as formas
sociais de sua evolução. Mas toda forma histórica
determinada deste processo faz avançar a evolução de
seus fundamentos materiais e das suas formas sociais.
Chegada a um certo grau de maturidade, uma
forma.histórica dada é afastada e cede seu lugar a uma
forma superior. A hora desta crise aparece quando a
contradição e oposição entre as relações de repartição de
um lado, e por consequência os aspectos históricos
determinados das relações de produção correspondentes,
e doutro lado as forças produtivas, atingem uma certa
amplitude e uma certa profundidade. Produz-se então o
choque entre a evolução material da produção e sua
forma social» (Capital tomo III, parte 2).

Assim a revolução se produz quando se apresenta um conflito agudo entre


as forças produtivas que se desenvolvem, que não cabem mais no quadro das
relações de produção, e as ditas relações, isto é, as «relações de
propriedade», e os meios de produção. Então este quadro «estala».

Não é difícil compreender por que as coisas se passam assim e não de


outra forma. Não é difícil porque são estas relações de produção que
apresentam o aspecto mais fixo, mais conservador: é que exprimem o domínio
econômico exclusivo de uma classe, firmado e refletido por seu domínio
político. É natural que um tal invólucro, que materializa os
interesses fundamentais de uma classe, seja mantido por esta classe até o
último limite possível, enquanto as mutações que se operam no interior deste
invólucro, isto é, as mutações parciais, que deixam na sua integridade os
princípios fundamentais duma sociedade, podem-se produzir, e se produzem,
relativamente sem dor. Segue-se entre outras coisas que não existe revolução
«puramente política»; toda revolução é uma revolução social, isto é, que
desloca classes; e toda revolução social é uma revolução política. Isto porque
não é possível derrubar as relações de produção sem derrubar a força política
destas relações; inversamente, derrubar o poder político significa derrubar o
poder de uma classe também no domínio econômico, pois «a política é a
expressão concentrada da economia». Responder-se-á a isto: comparai a
revolução francesa com a revolução bolchevique russa; no primeiro caso,
houve revolução política; no segundo, social; na
revoluçãobolchevique triunfante, a política e as transformações políticas não
representaram maior papel que na revolução francesa, mas as transformações
no domínio das relações de produção não são nem mesmo comparáveis.

Esta «objeção» não faz senão confirmar o que acima já dissemos.


Consideremos com efeito as coisas sob o seu aspecto político. É perfeitamente
claro que na época da revolução francesa o poder passou das mãos de um
grupo de proprietários às mãos de outro grupo também de proprietários. A
burguesia derrubou o Estado dos proprietários territoriais e organizou o Estado
da burguesia industrial, enquanto na Rússia a organização dos proprietários de
qualquer categoria foi completamente varrida. A transformação política foi
muito mais profunda. Tanto mais que o deslocamento das relações de
produção (nacionalização da indústria, supressão do domínio dos proprietários
territoriais, germens de sociedade socialista, etc..) foi mais profundo.

Em resumo, a causa de uma revolução é um conflito entre as forças


produtivas e as relações de produção, baseadas, estas na
organizaçãopolítica da classe dominante. Estas relações de produção
dificultam a tal ponto a evolução das forças produtivas, que elas devem
necessariamente ser abolidas para que a sociedade possa seguir na sua
evolução. E se não podem ser abolidas, elas esmagam e sufocam o
desenvolvimento das forças produtivas, e toda a sociedade estagna ou
retrocede, isto é, passa por um período de decadência.

A transformação revolucionária que acompanha a passagem de uma


forma de sociedade de classe a outra aparece como uma colisão entre forças
produtivas e as relações de produção. Mas pergunta-se, quando se produz tal
transformação? Sim, porque a contradição entre as forças produtivas e as
relações de propriedade duma sociedade dada não aparece bruscamente, não
cai inopinadamente do céu como um aguaceiro. Ela se revela e se manifesta
muito antes da revolução, desenvolve-se por muito tempo, e não é senão como
resultado desta revolução que ela se resolve pela ruptura destas relações de
produção que punham obstáculo ao evolver posterior das forças produtivas.
Chega-se a este «ponto de ebulição» no momento em que no próprio seio das
antigas relações de produção as novas já chegaram de forma latente à
maturidade.

«Uma formação social não perece nunca antes de se


terem completamente desenvolvido todas as forças
produtivas que ela pode conter; e novas relações de
produção, superiores, não entram jamais em cena antes
que suas condições materiais de existência não tenham
sido primeiramente chocadas sob a asa da mesma antiga
sociedade». (Marx, Crítica da Economia Política, prefacio).

Que significa isto? Tomemos um exemplo na época contemporânea.

A estrutura capitalista é o conjunto das relações de produção da sociedade


capitalista, cujo eixo é o conjunto das relações entre operários e capitalistas,
relações que, como já sabemos, se exprimem pelos objetos (Capital). Por
conseguinte, a estrutura capitalista da sociedade se define, em primeiro lugar,
pela combinação das relações que existem entre os capitalistas tomados à
parte, e as relações entre os operários também tomados à parte. A estrutura
capitalista não se reduz de forma alguma só às relações internas da classe dos
capitalistas; do mesmo modo, sua «essência» não consiste nas relações entre
os operários. Esta «essência» se encontra na reunião destes dois grupos de
relações de produção. É mesmo esta a relação de produção fundamental do
capitalismo, este laço que reúne e liga as duas classes fundamentais, que cada
qual por sua vez traz em si um conjunto de relações de produção (relações
entre os capitalistas de um lado, entre os operários do outro). Se perguntarmos
agora de que maneira «amadurece», no interior do antigo modo de produção
determinado, um novo «modo de produção», descobriremos, tomando para
exemplo ainda o capitalismo, o seguinte:

No interior das relações de produção do capitalismo, isto é, no interior


da combinação das classes, uma parte destas relações de produção é ao
mesmo tempo o fundamento duma nova ordem, socialista. Com efeito, já vimos
o que Marx considera como base da ordem socialista. É de um lado a
centralização dos meios de produção (isto é, das forças produtivas) e é em
seguida (e é isto que se relaciona com as relações de produção), o
trabalho socializado, isto é, antes de tudo as relações no interior da classe
operária, todo o conjunto das relações de produção no proletariado, o laço de
produção entre todos os operários. São precisamente estas relações de
produção, que consistem na colaboração, que, amadurecendo no seio das
relações de produção capitalistas em geral, são a pedra sobre a qual se
erguerá o templo do futuro.

Eis aqui mais alguma coisa que nos deve esclarecer. Vimos mais acima
que a camada de uma revolução reside no conflito entre as forças produtivas e
as relações fundamentais de produção ou relações de propriedade.

Vimos agora que esta contradição de base encontra sua expressão numa
contradição de produção, a saber, na contradição entre uma parte das relações
de produção do capitalismo e uma outra parte destas relações. Com efeito.
Está claro que o trabalho social e centralizado, encarnado pelo proletariado,
torna-se cada vez menos compatível com a dominação econômica (e por
conseguinte política) dos capitalistas. Este «trabalho socializado» exige uma
economia metódica e não suporta a anarquia das classes. Ele exprime a
tendência da sociedade moderna para a organização; ora, esta organização
não pode ser obtida da sociedade capitalista. Isto porque a sociedade fundada
sobre classes é uma sociedade contraditória, portanto inorganizada. Ora, está
claro que os capitalistas não podem, não querem aniquilar seu domínio de
classe. Por conseguinte, para que surjam possibilidades de organização «em
toda linha», é preciso acabar com a dominação dos capitalistas. Temos assim
sob nossas vistas um conflito entre estas relações de produção que são
encarnadas no proletariado, e as que se encarnam na burguesia.

Isto nos permite compreender a sequência. É certo que são


os homens que fazem a história. Por conseguinte, é inútil acrescentar que um
conflito entre as forças produtivas e as relações de produção não se manifesta
pelo fato dos meios de produção, máquinas inertes, numa palavra,objetos, se
«levantarem» contra os homens. Uma tal suposição seria monstruosa e
irrisória. Que se passa então? Passa-se evidentemente que a evolução das
forças produtivas coloca os homens em relações de contradição marcada e
que o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção encontra
sua expressão num conflito entre os homens, num conflito entre
classes. Acabamos justamente de ver como isto se dá. As relações de
colaboração entre os operários se exprimem nos homens vivos,
no proletariado, com seus interesses, suas aspirações, sua força e seu poder
social. E vice-versa, a base das relações de produção do capitalismo, que
domina e oprime, também se exprimem em homens vivos, na classedos
capitalistas. Todo conflito encontra sua expressão na luta violenta de classes,
na luta revolucionária do proletariado contra a classe capitalista.

Os trovadores oportunistas da social-democracia, no gênero de H. Cunow,


gostam de se alongar sobre o tema da "maturidade imperfeita" das relações
atuais; e para se justificarem apelam para... Marx, que ensinava que nenhuma
forma de produção é substituída por outra enquanto deixa ainda lugar à
evolução das forças produtivas. E estes "homens de espírito" começam a
galopar pelo mundo todo para mostrar que existem ainda aldeias na África
Central, onde ainda não há Bancos, e onde vivem ainda selvagens nus.

Podemos opor esta afirmação:

"a guerra mundial, o inicio de uma era revolucionária, etc.,


são precisamente a expressão desta maturidade
objetiva de que é questão. Pois este conflito da mais alta
intensidade foi a consequência dum antagonismo chegado
ao apogeu e que se produzia continuamente e
se desenvolvia no seio do sistema capitalista. Sua
capacidade de abalo é o índice bastante exato da grande
evolução capitalista e a expressão trágica da absoluta
incompatibilidade do desenvolvimento posterior das forças
produtivas com o invólucro das relações capitalistas de
produção que as encerra. É bem isto
este zusammenbruch, este krack tantas vezes previsto
pelos criadores do comunismo cientifico." (N. Bukharin, A
Economia do Período de Transição).

§ 47. A revolução e suas fases

O ponto de partida da revolução é, como dissemos, um conflito entre as


forças produtivas e as relações de produção, conflito que coloca numa situação
particular a classe portadora do novo modo de produção, e «determina» de
uma forma precisa sua consciência e sua vontade. As premissas da revolução
são portanto a modificação profunda da consciência duma nova classe,
a revolução ideológica na classe que será o coveiro da antiga sociedade.

É indispensável pararmos neste ponto. Antes de tudo, é preciso lembrar


que esta revolução tem uma base material. Depois é preciso compreender
nitidamente porque se trata assim de uma transformarão violenta na
consciência de uma nova classe, dum processo revolucionário.Examinemos
esta questão com atenção. Toda ordem social, como se aprendeu nos
capítulos anteriores, não repousa unicamente sobre os fundamentos
econômicos: pois qualquer que seja a ideologia reinante numa ordem de coisas
dada, ela não é senão o laço que sustem esta ordem.

As ideologias não são simplesmente acidentes, mas círculos de gêneros


diversos que encerram como um tonel o corpo social, e o mantém em
equilíbrio. Perguntemos agora o que aconteceria se a psicologia e a ideologia
das classes oprimidas estivessem numa posição de hostilidade declarada
contra a ordem de coisas reinante. Está claro que, nestas condições, esta
ordem não poderia mais se manter. Consideremos com efeito uma forma
qualquer de sociedade, e nos convenceremos imediatamente que enquanto
subsistir esta sociedade reina, em geral e em conjunto, uma mentalidade e
uma ideologia de paz civil. Isto se torna particularmente claro se tomamos por
exemplo o capitalismo no inicio da guerra de 1914-1918. Certamente, a classe
operária tinha desenvolvido uma ideologia independente da da burguesia. E
que vemos nós? Mesmo no seio da classe operária existia uma crença
extraordinariamente forte na estabilidade da ordem capitalista, um certo apego
ao Estado capitalista, uma psicologia de paz civil. Era preciso toda uma
revolução psicológica e ideológica para que uma classe se levantasse
efetivamente contra outra. E quando se efetua esta revolução ideológica e
psicológica? Quando a evolução objetiva coloca a classe oprimida numa
«situação insuportável», quando esta classe vê e adquire uma consciência
nítida de que «na ordem de coisas atual não há possibilidades de melhoria
possível», «que não existe saída», «que isto não pode durar». Isto se produz
quando o conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações
de produção provocou o rompimento do equilíbrio social, e a impossibilidade de
restabelecê-lo em suas antigas bases. Prossigamos tomando por exemplo a
revolução proletária. A classe operária, como já vimos, desenvolveu no curso
da evolução capitalista da humanidade uma psicologia e uma ideologia mais ou
menos hostil à ordem existente. É no Marxismo que esta ideologia recebeu a
sua expressão a mais marcada, a mais nítida, a mais significativa e a mais
profunda. No entanto, na consciência das massas, e por este fato de que o
capitalismo ainda podia se desenvolver, que ele se desenvolvia e podia mesmo
melhorar os salários graças ao saque e à exploração sem piedade das
colônias, por este fato o capitalismo não era em absoluto «insuportável» à
consciência das massas operárias. Melhor ainda. Na classe operária européia
e norte-americana se estabeleceu mesmo uma «comunidade de interesses»
particulares com o «Estado nacional capitalista». Ao mesmo tempo, o
Marxismo de Marx, nascido no solo da revolução de 1848, se transformava nos
partidos operários num «Marxismo II.ª Internacional» todo especial, que traía, e
desnaturava a doutrina de Marx, mesmo sobre a revolução social, o
empobrecimento do proletariado, a queda inevitável do capitalismo, a ditadura
do proletariado, etc.. Tudo isto encontrou sua expressão na traição dos partidos
sociais-democratas e no estado de espírito patriótico da classe operária em
1914. Foi preciso que a guerra e suas consequências aparecessem como
expressão das contradições do regime capitalista, para mostrar, ou melhor,
começar a mostrar, que «isto não podia mais durar». À psicologia, e à ideologia
de paz civil, substituíram-se uma psicologia e uma ideologia de guerra civil, e
no domínio puramente ideológico, o «Marxismo» da II.ª Internacional cedeu seu
lugar ao verdadeiro Marxismo, isto é, ao comunismo cientifico.

Assim, esta revolução nas idéias é constituída, pelo krack da antiga


psicologia e da antiga ideologia, rompidas pela irrupção de fatos próprios da
vida social, e pela instauração duma ideologia e duma psicologia novas e
verdadeiramente revolucionárias.

A canalha social democrata não o compreenderá jamais. Pelo contrário,


ela quer apresentar a coisa da seguinte forma: no terreno da miséria e da fome,
não pode haver revolução proletária, por conseguinte toda revolução que se
produza nesse terreno não é uma "verdadeira" revolução. É interessante opor a
isto a forma pela qual Marx encara as coisas; num artigo por ele assinado no
"New York Tribune" de 2 de fevereiro de 1854, lemos:

"não podemos esquecer que existe na Europa uma sexta


potencia que, a um momento dado, afirmará seu poder
sobre as outras cinco chamadas "grandes potencias"
todas juntas, fazendo-as tremer diante de si. Esta
potencia, é a revolução. Depois de longo silêncio e retiro,
ela é novamente chamada para a frente de batalha
pela crise e pela fome... Não é preciso senão um sinal
para que a sexta mais poderosa das potencias entre em
cena com todo o esplendor da sua armadura, a espada na
mão... Este sinal será dado pela guerra européia
ameaçadora".

Assim, Marx não adiantava este raciocínios imbecis sobre a


impossibilidade duma revolução proletária, depois de uma guerra, sobre a
impossibilidade de edificar a revolução sobre a fome, etc.. Marx se enganava
sobre o ritmo da evolução, mas ele geralmente apanhou o esquema essencial
dos acontecimentos: crise, fome, guerra.

A segunda fase da revolução é a revolução política isto é, a tomada do


poder por uma nova classe. Aqui a psicologia revolucionária da nova classe
entra em ação. A classe oprimida se choca diretamente com a força
concentrada da classe reinante, o seu aparelho de Estado. Para quebrar essa
oposição, a classe nova, no processo da luta, desorganiza, destrói numa
medida maior ou menor a organização do Estado adversário, e em parte com
antigos elementos, em parte com novos, instaura sua organização de Estado.
É aqui indispensável notar e frisar que a «tomada do poder» por uma nova
classe não pode consistir numa simples passagem da mesma organização de
Estado de uns para outros. Uma idéia assim ingênua das coisas foi
extremamente difundida até em meios socialistas. Portanto, em Marx e Engels,
consta expressamente a destruição do poder antigo e a organização de um
novo. É muito compreensível. Com efeito, a organização de Estado é a
expressão suprema do poder da classe reinante, é a sua fortaleza, sua força
concentrada, seu principal aparelho de luta, sua principal arma defensiva
contra a classe oprimida. Como então poderá a classe oprimida quebrar a
oposição da classe opressora, deixando intacto seu principal instrumento de
opressão? Como vencer um inimigo sem desorganizar as forças deste inimigo?
Evidentemente, de duas uma: ou as forças da classe reinante conservam-se
tais quais, e então a revolução está por definição vencida; ou então a revolução
é vencedora e isto subentende a desorganização, a destruição das forças (isto
é, em primeiro lugar, a organização do Estado) da classe dirigente. E como a
força material do poder do Estado encontra sua principal expressão na força
armada, está claro que este trabalho preliminar de destruição deve-se dirigir
principalmente contra o antigo exército. Mostrou-nos isto, entre outros
exemplos, a revolução inglesa do século XVII, que destruiu o aparelho de
Estado do poder dos reis e proprietários fundiários, seu exército, etc.. e instituiu
o exército revolucionário dos puritanos e a ditadura de Cromwell. Isto nos é
ainda demonstrado pela revolução francesa, que desfocou o exército real e
instituiu o exército revolucionário, edificado sobre novos princípios. Isto é
finalmente demonstrado e provado pela revolução russa de 1917 e dos anos
seguintes, que destruiu o aparelho de Estado dos proprietários fundiários e da
burguesia, que dissolveu o exército imperialista e edificou um novo Estado,
dum tipo absolutamente sem precedentes, e um exército revolucionário novo.
Assim, a fase política da revolução não consiste em tomar a nova classe a
antiga máquina deixada intacta, mas demoli-la, mais ou menos (conforme a
classe que procede à transformação social), eedificar uma organização nova,
isto é, combinar de uma nova forma homens e coisas, e sistematizar duma
nova forma as idéias correspondentes.

A terceira fase da revolução é a revolução econômica. Consiste em


utilizar-se a classe vencedora do poder que adquiriu como de uma alavanca
para a transformação econômica, acabando de destruir as relações de
produção do antigo tipo e ajudando a se desenvolver e consolidar as novas
relações que já amadureciam na antiga ordem, mas em contradição com ela.
Eis como Marx definiu este período da revolução, examinando a revolução do
proletariado:

«O proletariado aproveitará da sua dominação política


para arrancar inteiramente à burguesia todo o capital, para
centralizar nas mãos do Estado, isto é, do proletariado
organizado como classe dominante, todos os meios de
produção, e para aumentar, na medida do possível, a
massa das forças produtivas (este último ponto, como
vemos, não vem senão mais tarde, e se relaciona
propriamente com o período seguinte, N. B.). Isto não
pode evidentemente se dar sem irrupções despóticas no
direito de propriedade e nas relações burguesas de
produção, e por conseguinte, por meio de medidas que
aparecem economicamente insuficientes e insustentáveis
mas que, na marcha da evolução, saem do seu próprio
quadro e são inevitáveis como meios de transformação
radical de todo modo de produção» (Manifesto
Comunista).

Noutra passagem do Manifesto, Marx fala do proletariado que,

«como classe no poder, transformará pela violência as


antigas relações de produção».

Aqui se apresenta uma nova questão muito importante e


fundamental: como, num caso típico, se produz, e deve inelutavelmente se
produzir, esta reorganização das relações de produção?

A maneira pela qual, antigamente, a social-democracia representava as


coisas era a mais simples: uma nova classe, no caso o proletariado, «afasta»
os que estão à frente do processo econômico, dizendo «Vão-se embora,
imbecis!»; os «imbecis» retiram-se, mais ou menos empurrados pelo
proletariado, que recebe completo e intacto o aparelho social de produção, todo
pronto, amadurecido no seio de Abraão capitalista. O proletariado se instala à
frente do processo econômico, e está tudo acabado: a produção segue sem
embaraços, a continuidade do processo de produção não se rompe e a
sociedade toda escorrega, sem choques, pelo caminho da ordem, socialista
desabrochada. Examinemos contudo com maior atenção a revolução nas suas
relações com a produção. O que indicam antes de tudo estas relações de
produção do ponto de vista do processo do trabalho? Não são outra coisa
senão um aparelho humano complexo de trabalho, um sistema de pessoas
mutuamente ligadas umas às outras, já o sabemos, segundo um
tipo determinado. Mas além disto — e isto é especialmente importante — as
funções de trabalho dos diversos grupos de pessoas numa sociedade de
classes são ligadas ao seu papel de classe, por assim dizer, germinadas com
ele. Por conseguinte, a transposição das classes é, numa certa medida,
a destruição do antigo aparelho de trabalho, e a construção de
um novo, exatamente como na fase política da revolução. É lógico que
resultará, inevitavelmente, por um certo período, um declínio das forças
produtivas: toda reconstrução exige despesas. Da mesma forma, compreende-
se que o grau de destruição do antigo aparelho, a importância
das demolições depende em primeiro lugar da importância do deslocamento
que se observa nas classes. Nas revoluções burguesas, por exemplo, o poder
de comando na produção passa de um grupo de proprietários a outro; mas o
princípio da propriedade fica em vigor, o proletariado conserva-se no lugar
onde estava. Por conseguinte, a demolição, a destruição da antiga ordem é
aqui muito menos importante que no caso em que a camada inferior da
pirâmide, o proletariado, procura chegar ao cume. Neste caso, é necessário um
abalo profundo. A antiga cadeia: burguesia, alta classe intelectual, média
classe intelectual, proletariado, estala. O proletariado conserva-se mais ou
menos só. Contra ele estão todos os outros. Dai uma inevitável desorganização
temporária da produção, desorganização que se prolonga enquanto o
proletariado não dispôs os homens segundo uma outra ordem, e não os uniu
por um laçodoutro tipo, isto é, enquanto não estabeleceu um novo equilíbrio de
estrutura da sociedade.

Estas idéias foram expostas pelo autor da presente obra no seu livro A
Economia do período de transição (veja-se especialmente o capítulo III), ao
qual remetemos os camaradas que queiram conhecer mais em detalhe as
considerações desenvolvidas a este respeito. Não faremos aqui senão uma
série de reparos complementares. Antes do mais, até que ponto pode esta
opinião ser considerada como ortodoxa? Pensamos que é precisamente este o
ponto de vista de Marx sobre a questão. Um fato
característico: Marx empregava aqui exatamente a mesma expressão que a
propósito da destruição do Estado. Escrevia que o invólucro das relações de
produção capitalista "saltava" (Capital, tomo I); em outras passagens fala da
"decomposição" e da "refundição". Compreende-se bem que quando as
relações de produção "saltam", isto não pode deixar de agitar a "continuidade
do processo de produção", o que seria, é natural, muito mais agradável. É
provavelmente também esta idéia que transparece em Marxquando diz que "a
irrupção despótica" do proletariado é economicamente "insustentável", mas em
seguida ela se justifica e, por assim dizer, encontra sua compensação.

Outra observação: Fazem-nos uma porção de objeções a propósito


da Nova Economia Política (N.E.P.) na Rússia. Indica-se que na nossa
"Economia do período de transição" ocupamo-nos em fazer com parcialidade a
defesa do partido comunista russo, que agira como macaco em loja de louça. E
agora, dizem, a vida provou que não era preciso destruir o antigo aparelho e
que estamos tão calmos como o bando de Scheidman. Noutros termos: a
destruição do aparelho capitalista de produção foi um fato da realidade russa e
absolutamente não uma lei geral da passagem de uma forma de sociedade
(capitalista) para uma outra (socialista). Esta "objeção" se apóia visivelmente
numa "serena" incompreensão das coisas. Os operários russos não podiam
"soltar" os capitalistas, etc.., senão depois de abalar suas bases e se terem
consolidado no poder, isto é, depois de terem estabelecido nas suas linhas
gerais o novo equilíbrio social. Mas nossos críticos querem começar pelo fim.
Com efeito, até no aparelho de Estado (por exemplo, o exército) deixamos
entrar numerosos quadros de oficiais do antigo regime e os colocamos em
funções de comando. Poderíamos fazer a mesma coisa no começo da
revolução? Poderíamos então ter deixado de destruir o antigo exército
czarista? Não seriam então os operários que lhes imporiam sua própria
direção, mas eles quem imporiam a deles aos operários. É isto coisa
suficientemente provada pela política dos ministros Scheidman—Noske na
Alemanha, Otto Bauer. Renner na Áustria, Vandervelde na Bélgica, etc..

Terceiro reparo: a nova política econômica na Rússia decorre, numa


proporção de 9 para 10, do caráter camponês do país, isto é, de condições
especificamente russas.

Quarto reparo: É evidente que o que temos em vista é um tipo de marcha


dos acontecimentos. Mas em condições particulares, pode-se dar um estado
de coisas tal que não haja destruição: por exemplo, se o proletariado vencer
nos países de primeira importância, então é possível que a burguesia com todo
o seu aparelho capitule de uma só vez.

O ponto de vista que acabamos de expor não afirma em absoluto que se


trata unicamente de homens isolados. Ele afirma que as diversas camadas
hierárquicas dos homens se separam umas das outras; o proletário rompe com
as demais camadas (técnicos, burguesia, etc.), mes ele mesmo, como conjunto
de homens, mais se agrega em um conjunto homogêneo, pelo menos numa
parte considerável. Está mesmo aí a base dasnovas relações de produção (já
vimos mais acima que "o trabalho socializado", representado principalmente
pelo proletariado, é justamente o que amadureceu nos quadros do antigo
regime econômico).

Enfim, a quarta e última fase da revolução é a revolução técnica. Depois


que se atingiu um novo equilíbrio social, isto é, depois da constituição de um
novo invólucro estável para as relações de produção, que possa servir de
forma à evolução das forças produtivas, a partir de um ponto determinado
começa a sua evolução acelerada: desaparecidos os obstáculos, a sociedade
começa uma ascensão até então desconhecida. Introduzem-se novos
instrumentos, forma-se uma nova base técnica, produz-se a revolução técnica.
E desde então começa o período «normal», «orgânico» de desenvolvimento da
nova forma social, que se constitui uma psicologia e uma ideologia
correspondentes.

Recapitulemos. O ponto de partida do desenvolvimento da revolução foi,


como vimos, a ruptura do equilíbrio entre as forças produtivas e as relações de
produção. Isto se dá na ruptura do equilíbrio entre as diversas categorias das
relações de produção. Por seu turno, esta última ruptura de equilíbrio conduz à
ruptura de equilíbrio entre as classes, que se manifesta antes de tudo na
destruição da ideologia de paz social. Produz-se em seguida uma brusca
ruptura de equilíbrio político e sua restauração numa base nova, em seguida
uma brusca ruptura do equilíbrio da estrutura econômica e sua restauração
também numa nova base, enfim o aparecimento dum novo fundamento técnico.
Assim a sociedade começa a se desenvolver sobre uma nova base de vida, e
todas as funções vitais fundamentais tomam outro aspecto histórico.

§ 48. As leis do período de transição e da decadência

Estudando o processo da revolução, que não é outra coisa que o processo


da passagem duma sociedade duma forma a outra, chegamos à conclusão de
que, iniciando-se pelo choque das forças produtivas e das relações de
produção, este processo percorre diversas fases da ideologia à técnica, isto é,
parece, segundo uma ordem invertida.

Para ver como se passam as coisas, tomemos um exemplo concreto,


digamos, a revolução proletária.

H. Cunow, novo crítico de Marx, opôs as seguintes passagens extraídas,


uma da Miséria da Filosofia e outra do Manifesto Comunista. A primeira diz:
«A classe operária no curso da evolução transforma a
sociedade burguesa em uma associação tal que excluirá
as classes e as contradições entre elas, por uma
associação onde não haverá propriamente poder político,
pois que o poder político é justamente a expressão oficial
das contradições no interior da sociedade civil».

Na outra passagem, Marx assim define o curso dos acontecimentos:

«Se o proletariado se une como classe na sua luta contra


a burguesia, ele se torna pela revolução a classe
dominante, e como classe dominante abolirá pela
violência as suas antigas relações de produção; ora, ao
mesmo tempo que estas relações, ele destrói as
condições de existência das contradições de classes em
geral, e entre outras, a sua própria dominação de classe».

A este propósito, Cunow observa o seguinte (ob. cit, vol. I, pag. 321):

«Isto (trata-se da passagem do Manifesto, N. B.) é sob o


ponto de vista sociológico quase a inversão completa da
frase mais acima citada da Miséria da Filosofia. Assiste-se
lá (na Miséria, N. B.) no curso da evolução social. primeiro
à supressão da divisão em classes, e é somente em
seguida que por efeito deste mesmo fato a base do antigo
poder político é derrubada, e produz-se uma nova
conquista «política» (!). No Manifesto Comunista, pelo
contrário, a conquista do poder do Estado dá-se antes de
tudo e somente em seguida, por meio da transformação
deste poder, é que se produz o deslocamento das
relações de produção capitalista; em seguida, por sua
queda progressiva, o desaparecimento da oposição de
classe, e ao mesmo tempo, finalmente, a supressão das
classes em geral».

Assim Cunow afirma que na Miséria Marx é um sábio evolucionista e


no Manifesto um revolucionário insensato. O sr. Cunow mente cinicamente,
pois sabe perfeitamente que a Miséria da Filosofia apela para a «luta
sangrenta» («Luta Sangrenta ou Morte. É só assim que a história apresenta a
questão»). Mas examinemos a coisa em si. Na primeira passagem citada
de Marx, trata-se do período que se segue à conquista do poder e ao
desaparecimento progressivo do poder do proletariado. Não se fala na
«conquista política». O poder do proletariado é desde o inicio compreendido
como um elemento condenado a desaparecer. Da mesma forma na passagem
do Manifesto. Assim, está fora de dúvida que Marx considerava a conquista do
poder político, (isto é, a destruição da antiga máquina de Estado e a
organização duma nova, original) como uma condição para a destruição das
relações de produção por meio da expropriação violenta dos expropriadores.
Por conseguinte, aqui também, está-se diante de uma «ordem invertida». A
análise vai, não da economia à política, mas desta àquela. De fato, se as
relações de produção são transformadas com auxilio da alavanca do poder
político, segue-se que a economia é aqui determinada pela política.
E Cunow não terá agora razão de dizer que nós temos aqui uma sociologia em
contradição com a verdadeira sociologia de Marx?

Não, certamente, não tem razão. Ele não faz mais que falsificar Marx, e
age como um vulgar falsário.

Com efeito. Não se deve perder de vista o ponto de partida de todo o


processo. Onde está tal ponto? No conflito entre a evolução das forças
produtivas e as relações de produção. É esta a base do processo, o ponto
inicial de toda reorganização social. Quando interrompe o processo a sua
marcha louca? Quando se constitui um novo equilíbrio na estrutura da
sociedade. Noutras palavras, a revolução começa porque as relações de
propriedade se tornaram um entrave ao desenvolvimento das forças
produtivas; a revolução, para falar por metáforas, «desempenha o seu papel»
quando se edificam novas relações de produção, podendo servir de forma à
evolução das forças produtivas. E que há entre estes dois pontos da
revolução? A influência em torno das superestruturas.

Vimos nos capítulos precedentes que as superestruturas não são


elementos «passivos» do processo social: são também forças determinadas.
Seria ridículo contestá-lo, e o sr. Cunow, ele mesmo, não tem a audácia de
levantar alguma objeção. O que se produz aqui é precisamente um processo,
muito ampliado no tempo, de influência ambiente; esta extensão no tempo
decorre do caráter catastrófico de todo o processo, da supressão de todas as
funções comuns. Num período normal, toda contradição entre as forças
produtivas e a economia, ou outra qualquer, se resolve rapidamente, exerce
rapidamente sua influência sobre a superestrutura, em seguida a
superestrutura sobre a economia e as forçar produtivas, e o circulo recomeça
sem cessar. Mas aqui, esta acomodação mutua das diferentes partes do
mecanismo social se opera de uma forma áspera, cruel, como preço de
sacrifícios prodigiosos; as próprias contradições tomam uma amplitude
formidável. Nada de extraordinário, portanto, que o processo de influência em
torno das superestruturas (ideologia política — conquista do poder,
transformação deste poder para o refazimento das relações de produção) seja
longo, enchendo todo um período histórico. É aí que reside a originalidade do
período de transição, coisa perfeitamente incompreensível para o sr. Cunow.

É indispensável não perder de vista o que aqui se segue. Toda força que
se prende às superestruturas, e entre outras, o poder concentrado de uma
classe, um poder de Estado, é uma força. Mas esta força não é
ilimitada. Nenhuma força pode fazer o que está acima dela. Por que então, se
acha limitada a força política da nova classe que vem tomar o poder? Pelo
estado das forças econômicas dadas e, por conseguinte, das forças produtivas.
Noutras palavras: esta transformação das relações econômicas, que pode ser
realizada com o auxilio da alavanca política, depende ela mesma do estado
anterior das relações econômicas. Não se poderia melhor explicá-lo que com o
exemplo da revolução proletária russa. A classe operária tomou em 1917 o
poder nas suas mãos. Ela, porém, não poderia nem pensar em centralizar e
socializar a economia pequeno-burguesa, particularmente a economia
camponesa. Tornou-se claro em 1921 que a economia russa resistira ainda
mais do que se esperava, e que as forças do Estado proletário bastavam
apenas para conservar socializada a grande indústria, e assim mesmo nem
toda ela.

Atendamos agora ao seguinte: Vimos mais atrás que o processo


revolucionário interrompe o desenvolvimento das forças produtivas, melhor,
que ele rebaixa o nível destas forças. É indispensável esclarecer esta idéia e o
sentido deste fenômeno.

Uma sociedade inorganizada, cujo exemplo concreto mais típico é a


sociedade capitalista mercantil, se desenvolve sempre por saltos. Todos sabem
agora que, por exemplo, o capitalismo traz em si guerras e crises industriais.
Ninguém ignora que estas guerras e estas crises são o «atributo inevitável» da
ordem capitalista. Que indica esta lei se a considerarmos do ponto de vista das
forças produtivas da sociedade? Tomemos antes as crises. O que se dá em
tempos de crise? A parada das empresas, o aumento da falta de trabalho, a
diminuição da produção, a ruína e a perda duma quantidade de empresas,
sobretudo as pequenas, numa palavra, a ruína parcial das forças
produtivas. Ao mesmo tempo, ao lado disto, a ascensão das formas de
organização do capitalismo: a consolidação das maiores empresas, o
desenvolvimento dos «trusts» e outras fortes uniões monopolizadoras. E
depois da crise? Um novo ciclo de evolução, uma nova ascensão sobre
uma nova base, com formas superiores de organização, que dão um novo
impulso à evolução das forças produtivas. Assim, é pelo preço de uma crise, e
de uma perda considerável de forças produtivas, que a crise adquire a
possibilidade de uma evolução posterior.

Dá-se a mesma coisa, até um limite determinado, nas guerras capitalistas.


Elas são a expressão da concorrência capitalista. São acompanhadas duma
queda temporária das forças produtivas. Mas depois os Estados da burguesia
são aumentados, os fortes tornam-se ainda mais fortes, os pequenos foram
absorvidos; o capital se centralizou numa escala mundial, adquiriu um campo
de exploração mais vasto, os quadros da evolução das forças produtivas se
alargaram, e depois de um declínio temporário, o processo de acumulação
tomou novo impulso.

A mesma lei se aplica na evolução geral da sociedade capitalista.


Sabemos já que a significação da revolução é aniquilar os obstáculos ao
desenvolvimento das forças produtivas. Mas, porquanto pareça estranho,
aniquilando estes obstáculos, ela aniquila também temporariamente uma parte
das próprias forças produtivas. E isto é tão inevitável quanto às crises no
regime capitalista.

Assim, a passagem da sociedade de uma forma a outra se acompanha de


um rebaixamento temporário das forças produtivas, rebaixamento sem o qual
toda evolução posterior é impossível.

A lei do período de transição se distingue da lei da decadência em que,


neste último caso, não há passagem a uma forma superior de economia; a
queda das forças produtivas se manifesta até que a sociedade receba um
abalo, um choque exterior qualquer, ou até que encontre seu equilíbrio numa
base inferior, depois do que começa uma «repetição do passado» ou um
estado prolongado de estagnação, mas, em nenhum caso, uma forma superior
de relações econômicas.

Se analisamos as camadas da decadência constatamos que em geral elas


se reduzem ao seguinte: as relações de propriedade dadas não se podem
romper; por conseguinte, elas se tornam obstáculos à evolução, pesando em
torno sobre as forças produtivas, que «cedem», por assim dizer,
constantemente. Isto se pode produzir, por exemplo, quando na revolução as
forças, das classes em presença são aproximadamente iguais, de tal forma que
nem uma nem outra pode vencer, e que a sociedade toda deperece. Aqui, o
conflito entre as forças produtivas e as relações de produção determinou duma
maneira definida a vontade das classes, mas a revolução não ultrapassou sua
primeira fase. As classes se entre devoram, nenhuma consegue obter a vitória,
a produção se extingue, a sociedade agoniza. Ou então pode acontecer que a
classe vitoriosa não está em condições de desempenhar as funções que
assumiu. Ou ainda, podemos nos imaginar que as coisas não foram até a
revolução, mas que a evolução das forças produtivas chegou a um ponto onde
determinou um agrupamento todo particular das classes; de um lado uma
classe reinante parasita e de outro lado uma classe oprimida completamente
sem força. Então, também, não haverá revolução; haverá simplesmente, mais
cedo ou mais tarde, uma decomposição e uma decadência, por assim dizer
«exangue». Pode enfim haver um tipo misto de revolução. Neste caso, vemos
que o desenvolvimento das forças produtivas conduz a uma economia tal e a
tais «superestruturas», que sua influência ambiente paralisa a evolução das
forças produtivas e as impele para baixo. E cedendo as forças produtivas, não
é preciso acrescentar que também baixará o nível de todo o conjunto da vida
social.

§ 49. A evolução das forças produtivas e a materialização dos fenômenos


sociais [acumulação da cultura)

Quando examinamos o processo da produção e reprodução num período


de crescimento das forças produtivas, notamos esta lei geral: nos períodos de
crescimento sempre a maior parte do trabalho é despendido na produção de
instrumentos de produção. Com auxilio destes meios de produção sempre em
aumento e que entram para a técnica social, uma parte cada vez menor de
trabalho vai dando quantidades cada vez maiores de produtos úteis de toda
espécie. O trabalho manual de preparação de instrumentos de produção
absorvia antes relativamente pouco tempo; com instrumentos miseráveis, sem
valor, feitos à mão, os homens, com esforço considerável, tinham uma
produtividade reduzidíssima. Pelo contrário, nas sociedades evoluídas, uma
parte enorme do trabalho social é gasto na produção de poderosos
instrumentos de trabalho, máquinas e aparelhos destinados a produzirem em
massa outros instrumentos de produção, tais como usinas consideráveis,
entrepostos, geradores de energia elétrica, etc.. Um grande gasto de forças
humanas é feito neste sentido. Mas em compensação, com estes poderosos
meios de produção, o trabalho vivo se torna de uma produtividade inaudita: as
«despesas adiantadas» são reembolsadas com usura.

Na sociedade capitalista, esta lei encontra sua expressão no crescimento


relativo do capital constante em comparação com o variável. A parte do
trabalho dedicada à construção de usinas, máquinas, etc., cresce mais
depressa que a dedicada ao salário dos operários. Ou, noutras palavras, na
evolução das forças produtivas da sociedade capitalista, o capita constante
cresce mais depressa que o variável. Isto pode ainda ser expresso de outra
forma: no desenvolvimento das forças produtivas, estas se repartem
constantemente de forma diferente, de tal sorte que uma parte cada vez maior
só é colocada nos ramos que produzem meios de produção.
Assim, o crescimento das forças produtivas, a acumulação do poder do
homem sobre a natureza, se exprimem no fato de que o «peso especifico»
dos objetos, do trabalho morto, da técnica social, vai sempre em aumento.

Perguntamos agora se não se produzem fenômenos análogos nos outros


domínios da vida social. Eis o que nos confere o direito de propor esta questão.
Vimos mais acima que o trabalho relativo às superestruturas é também um
trabalho diferenciado, cindido, separado do trabalho material. Vimos também
que a superestrutura, por sua estrutura interna, contém simultaneamente
elementos materiais, humanos e ideológicos no sentido próprio dessa palavra.
Como se produz, portanto, aqui a acumulação desta cultura intelectual? Não
haverá aqui alguma analogia com o processo material da produção, e no caso
afirmativo, como ela se manifesta?

Digamo-lo já: existe uma analogia, e ela se manifesta nisto, que a


ideologia social se materializa, se fixa nas coisas, se acumula ela também sob
a forma de objetos perfeitamente materiais. Com efeito, lembremo-nos das
fontes de que nos servimos para ressuscitar as antigas «culturas intelectuais»,
o que chamamos os «monumentos» das épocas passadas, os restos de
bibliotecas antigas, os livros, as inscrições, as estatuas, os quadros, os
templos, os instrumentos de música encontrados, os milhares de
outras coisas. Estes objetos são para nós como que a forma fixada,
materializada, da ideologia de épocas afastadas, e por eles podemos com
aproximação julgar da psicologia dos contemporâneos, da sua ideologia,
exatamente da mesma forma que, pelos instrumentos de trabalho, fazemos um
juízo sobre o grande desenvolvimento das forças produtivas e em parte
também da economia destas épocas. Notemos ainda o seguinte: No trabalho
de superestrutura, no ideológico, os meios de prazer representam ao mesmo
tempo meios de produção ulterior. Examinemos, por exemplo, uma galeria de
quadros. Estes quadros são para o publico que os contempla um motivo de
prazer. Mas são ao mesmo tempo meios de produção, não certamente
comparáveis aos pincéis ou à tela, mas em todo o caso meios de produção
dum caráter particular. Isto por que, por eles, as gerações
seguintes aprendem. Quando surge uma nova escola artística, uma nova
corrente de pintura ela não cai do céu: nasce das que a precederam, mesmo
quando as ataca violentamente, quando «nega» e destrói o antigo sistema
ideológico. Nada nasce do nada. Do mesmo modo que em política, em tempos
de revolução, o antigo Estado é destruído, mas que o novo é até certo ponto
constituído de elementos antigos, ligados entre si de uma outra forma, assim
também no domínio ideológico, mesmo nas rupturas mais bruscas, há
transmissão e ligação com o passado: o novo não se constrói sobre uma
«tabula rasa» absoluta. Os quadros são para os artistas um meio de produção,
experiências artísticas acumuladas, ideologia condensada, a partir da qual
começa neste domínio todo o movimento ulterior.

A isto pode-se objetar mais ou menos o seguinte: que contradição


grosseira é esta! Que existe de comum entre a alta doutrina cristã e os sinais
materiais traçados em caracteres negros sobre um pergaminho ou um papel?
Que existe de comum entre aquilo e o couro de porco com que se encaderna o
Evangelho? Que existe de comum entre a sabia ideologia e a massa de
velharias acumuladas nas bibliotecas? Todos os argumentos deste gênero
repousam num mal entendido. Certamente nem o papel tomado em si, nem os
materiais ornamentais, nem o couro de porco teriam significado algum para nós
se não os considerássemos na sua, existência social. Vimos no § 30 deste
livro que mesmo a máquina tomada fora do seu laço social é simplesmente um
pedaço de metal, madeira, etc.. Porém ela possui ao mesmo tempo uma
existência social como objeto utilizado pelo homem, no processo de trabalho.
Da mesma forma: fora da sua existência física como um pedaço de papel, ele
tem também sua vida social; ele é compreendido como livro no processo da
leitura. E é aqui que precisamente ele se manifesta como ideologia
concentrada, como meio de produção ideológica.

Se abordamos por esse lado a questão da acumulação de cultura


intelectual, veremos sem esforço que esta acumulação tem precisamente lugar
sob formas concretas, e de certa forma se precipita em deposito palpável,
material. Tanto mais o domínio da cultura intelectual é «rico», mais grandioso,
mais amplo é o domínio desses «fenômenos sociais materializados». Para falar
por metáforas (e sem esquecer que se trata apenas de uma analogia), a
carcaça material da cultura intelectual constitui «o capital de base» desta
cultura; é tanto mais rica quanto ele é mais considerável, o que novamente,
«em última análise», depende do nível de evolução das forças produtivas
materiais. Inscrições ingênuas, mascaras, ídolos grosseiros, desenhos sobre
pedra, monumentos artísticos, manuscritos de papiros, «livros» de pergaminho,
etc. — e mais tarde galerias, museus, jardins botânicos, laboratórios, jornais,
etc. — tudo isto é a experiência acumulada, materializada da humanidade. As
novas prateleiras de livros, com os livros novos que constantemente se
ajuntam aos que já lá estão, mostram-nos, de uma forma concreta, a
colaboração de uma quantidade de gerações que se sucedem umas às outras
numa sequencia ininterrupta.

§ 50. O processo de reprodução da vida social no seu conjunto

Podemos agora recapitular brevemente.


Entre a sociedade e a natureza produz-se constantemente uma «troca de
substancias», um processo de reprodução social, de trabalho que se repete por
ciclos e que constantemente substitui o que está errado, alarga sua base,
paralelamente à revolução das forças produtivas, o que dá à sociedade a
possibilidade de alargar constantemente as fronteiras da sua vida.

Mas o processo da produção de produtos materiais é ao mesmo tempo um


processo de relações econômicas dadas.

«O processo capitalista de produção, diz Marx,


considerado como qualquer coisa de contínuo, isto é,
como processo de reprodução, não produz unicamente
mercadorias, mas também produz e reproduz esta relação
mesma que se chama capital, isto é, de um lado o
capitalista, e doutro, o operário
assalariado». (Capital, tomo I).

Esta fórmula de Marx não é somente verdadeira para o modo capitalista de


produção; é verdadeira em geral. Se, por exemplo, tomarmos a economia
escravagista da antiguidade, cada ciclo de produção será acompanhado por
este fato de que o senhor de escravos receberá a sua parte, os escravos a sua,
que também no ciclo seguinte o dono de escravos desempenhará um papel, o
escravo outro; que em caso de ampliação da reprodução a mudança consistirá
apenas no aumento da parte do senhor, do seu poder, do número de seus
escravos, da massa de trabalho suplementar por ele fornecida. Assim o
processo de reprodução material é ao mesmo tempo um processo de
reprodução das relações de produção, o envoltório histórico dentro do qual ele
se coloca. Doutra parte, o processo de reprodução material é um processo de
constante reprodução das forças operárias correspondentes.

«O homem ele próprio, diz Marx, considerado


simplesmente como força trabalhadora em si, é um objeto
da natureza, uma coisa, viva sem dúvida e consciente de
ser uma coisa; e mesmo seu trabalho aparece com uma
exteriorização concreta da sua força»(Capital, tomo I).

Mas nos diversos períodos históricos, em correlação com a técnica da


sociedade, o modo de produção, etc., tem-se forças operárias definidas, a
saber, forças operárias de qualificação adequada. O processo de reprodução
reproduz constantemente esta qualificação. Noutras palavras: o processo de
reprodução social reproduz não somente as coisas, mas também «as coisas
vivas», isto é, operários qualificados de forma determinada; ele reproduz
também as relações entre eles; ele traz, no caso de alargamento, as correções
correspondentes ao novo nível das forças produtivas, dispondo nesse caso de
outros homens, de outra forma qualificados, doutras «máquinas vivas», de
outros postos do campo de trabalho. Mas deixa imutáveis (se não se trata de
um período revolucionário de transição) o plano fundamental das relações de
produção, reproduzindo-o constantemente numa escala cada vez maior.

Se se quer dar ao conjunto das diferentes forças de qualificação das forças


de trabalho o nome de fisiologia social, pode-se dizer que o processo de
reprodução reproduz constantemente a economia da sociedade, e, por
consequência, sua fisiologia.

Mas ao mesmo tempo que o processo de reprodução material, gira toda a


gigantesca máquina da vida social; há a reprodução das relações entre
classes, reprodução das relações de organização do Estado, reprodução das
relações que dizem respeito aos diferentes ramos do trabalho ideológico.
Paralelamente a essa reprodução de conjunto da vida social, reproduzem-se
também constantemente as contradições sociais. As contradições parciais que
aparecem como ruptura do equilíbrio consecutiva a um choque vindo da
evolução das forças produtivas, se resolvem constantemente pela reconstrução
parcial da sociedade nos quadros do modo de produção que é o seu. Mas as
contradições fundamentais, que decorrem da essência mesma da estrutura
econômica dada, estas se reproduzem sobre uma base que constantemente se
alarga, até que seu crescimento alcance tais dimensões, que elas conduzem à
catástrofe. Desaba então toda a antiga formação das relações de produção, e
para que a sociedade possa se desenvolver, é preciso que se estabeleça uma
nova forma de relações de produção.

«A evolução das contradições duma forma histórica dada


de produção é o único meio histórico da sua deslocação e
reforma».(Capital, t. 1).

Este momento se acompanha de uma interrupção temporária do processo


de reprodução, da sua ruptura, que encontra sua expressão na ruína duma
parte das forças produtivas. A refundição geral de todo aparelho de trabalho
humano, a reorganização de todos os laços humanos conduz a um novo
equilíbrio, e a sociedade começa um novo ciclo histórico de sua evolução,
alargando sua base técnica e acumulando sua experiência social, que cada vez
serve de ponto de partida a todo movimento para frente, qualquer que ele seja.
Capítulo VIII - As Classes e a Luta de Classes

§ 51. Classe, condição, profissão

É-nos agora indispensável entrar mais a fundo na questão das classes e


da luta de classes. Sabemos já pelo que precede o papel relevante que
desempenham as classes na evolução da sociedade humana. A própria
estrutura social, em uma sociedade fundada sobre as classes, é determinada
pela sua divisão em classes, as relações mutuas dessas classes, etc.; toda
mudança importante na vida social, é de uma maneira ou de outra ligada à luta
de classes; toda passagem da sociedade de uma forma a outra se realiza por
uma luta sem tréguas entre as classes. É precisamente por isso
que Marx e Engels começaram o Manifesto Comunista por estas palavras:

«Até os nossos dias, a história de toda a sociedade não


tem sido senão a história das lutas de classes».

Que é, pois, uma classe?

Pelo que foi exposto mais acima, já demos, em tragos largos, a resposta a
esta pergunta. Precisamos agora examinar o assunto mais de perto. Já vimos
que por classe social se entende um conjunto de pessoas desempenhando um
papel análogo na produção, tendo no processo da produção, relações idênticas
com outras pessoas, sendo essas relações expressas também nas
coisas (meios de trabalho). Daí decorre que, no processo de repartição dos
produtos, cada classe é unida pela identidade de sua fonte de rendimentos,
pois as relações de repartição dos produtos são determinadas pela relação de
sua produção. Os trabalhadores têxteis e metalúrgicos não constituem duas
classes diferentes, porém uma únicaclasse, pois diante de outros homens
(engenheiros, capitalistas) eles se encontram em relações idênticas. Do
mesmo modo os possuidores de uma mina de carvão, duma usina de ladrilhos
e duma fabrica de espartilhos formam uma única categoria de classe: pois,
mau grado as diferenças físicas entre as coisas com as quais se ocupam, eles
estão perante os homens, no processo da produção, em relações idênticas (de
«domínio»), as quais se exprimem também nas coisas (O Capital).

Assim, na base da divisão da sociedade em classes se encontram


as relações de produção. Um dos modos de ver mais comuns, é a divisão em
classes segundo o índice «ricos» e «pobres». Se um homem tem no bolso
dinheiro e um outro tem duas vezes mais, segue-se que eles pertencem a duas
classes diferentes. Considera-se aí ou a dimensão das posses, ou o nível de
vida. Um sociólogo inglês (D'Ett) elaborou um quadro completo de divisão em
classes: a primeira classe, a mais baixa (os pés rapados) tem um orçamento de
despesas de 18 «shillings» por semana; a segunda classe, de 25 «shillings»; a
terceira, de 45, etc.. (Cf. o trabalho muito minucioso, e além disso marxista, do
professor S. I. Solntsev: As classes sociais. Os momentos mais importantes na
evolução do problema das classes, e as doutrinas fundamentais (em russo).
Tomsk, 1919. p. 268-399). Por simples que seja semelhante maneira de ver,
ela é perfeitamente ingênua e absolutamente falsa. Segundo esse ponto de
vista, por exemplo, seriamos levados, na sociedade capitalista, a excluir do
proletariado um operário metalúrgico ou um linotipista, e em troca, inscrever um
camponês pobre ou um artista na classe operária. A «classe» mais
revolucionária seria então o «lumpen-proletariat» (o proletariado andrajoso), e
seria nele que se deveria fundar as esperanças como força que deveria realizar
a passagem a uma forma superior de sociedade. De outro lado, dois
banqueiros, dos quais um é três vezes mais rico que o outro, deveriam ser
agrupados em classes diferentes. Ora, a experiência quotidiana nos mostra
que categorias diferentes de operários se reúnem muito mais rapidamente na
ação, o que não acontece com operários e artistas, e operários e camponeses,
etc.. O camponês não se sente membro da mesma classe que o operário. Ao
contrário, dois banqueiros, quando mesmo um deles seja dez vezes mais rico
do que o outro, se sentem membros de uma única família bem amada.

«O conteúdo da bolsa — escrevia Marx na Miséria da


Filosofia — é uma diferença puramente quantitativa, com
o auxilio da qual dois indivíduos de uma única e mesma
classe podem excelentemente ser lançados um contra o
outro».

Em outros termos, a diferença de «riqueza» não pode servir de critério


suficiente para definir a classe, ainda que tendo uma ação determinada mesmo
nos quadros de uma única e mesma classe.

Outra teoria bastante espalhada é a que toma por fundamento da divisão


da sociedade em classes o processo da repartição, isto é, a partilha da renda
social. Falando-se, por exemplo, da sociedade capitalista, a partilha da renda
em três partes principais: lucro, renda e salário, serve de base à delimitação de
três classes: capitalistas, proprietários territoriais, proletários (assalariados); a
parte de cada um deles, sendo dada uma grandeza determinada da renda
social, não pode ser aumentada senão à custa da parte de uma das outras
classes. Eis porque os membros de uma classe são ligados entre si pela
comunidade e homogeneidade de seus interesses de um lado, e são por outro
lado opostos às outras classes pela contradição de seus interesses com os
dessas outras classes.
Se esta teoria não nos leva a procurar quem recebe mais ou quem recebe
menos, e a raciocinar como acima, então se apresenta inevitavelmente uma
questão: por que as pessoas ligadas entre si como classe, se reproduzem
como classe? Porque, na sociedade capitalista, existem diferentes espécies de
rendimentos? Onde está a causa da estabilidade dessas diferentes espécies
de rendimento? É bastante apresentar esta questão para que se veja de um só
golpe a realidade. Esta estabilidade repousa sobre as relações entre os
homens e os meios de produção, os quais por sua vez exprimem as relações
entre os homens no processo da produção. O papel dos homens na produção
e a posse dos meios de produção, isto é, a «repartição dos homens» e a
«repartição dos meios de produção», são elementos estáveis nos limites de um
modo de produção dada. Desde o instante que dizeis capitalismo, tereis de um
lado uma categoria de pessoas dirigindo o processo da produção e, ao mesmo
tempo, dispondo de todos os meios de produção, e de outro lado uma
categoria de pessoas trabalhando sob o comando das primeiras, submetendo-
lhes sua força de trabalho e produzindo para elas valores mercantis. É
precisamente por esta razão que, no domínio da repartição dos produtos do
trabalho (isto é, na partilha da renda) se encontram igualmente leis
determinadas. Em outros termos, chegamos à constatação de que os aspectos
mais importantes da produção — «repartição dos homens», «repartição das
coisas» — constituem igualmente as bases das relações de classes.

Com efeito, nós não poderíamos chegar a outra conclusão. Abordemos,


pois, a questão por outro lado; vamos formulá-la de um modo mais geral. É
claro que cada classe é um certo «complexo real», isto é, um conjunto de
pessoas submetidas sem cessar a ações recíprocas, de «homens viventes»
que mergulham por suas raízes na vida da produção e, por seus pensamentos,
elevam-se até às nuvens. É um sistema humano, parcial e particular no interior
do grande sistema que nós chamamos sociedade humana. Segue-se
evidentemente que nós devemos abordar a classe pelomesmo lado que nós
abordamos a sociedade. Em outros termos: a análise das classes deve partir
da produção. Naturalmente as classes se diferenciam uma da outra por
diferentes aspectos: Sobre o plano da produção, sobre o plano da repartição,
sobre o plano político, sobre o plano ideológico, sobre o plano psicológico. Um
plano depende do outro, todos esses fenômenos são ligados reciprocamente
um ao outro: não se podem ligar rebentos burgueses a raízes econômicas do
proletariado, o que seria pôr uma sela em uma vaca. Mas, precisamente este
laço está condicionado, no fim de contas, pela situação da classe no processo
da produção. Eis porque se deve definir uma classe segundo o seu índice
deprodução.
Em que se distingue a classe social da condição social? (as «ordens» do
antigo regime). Por classe, já o sabemos, entende-se uma categoria de
pessoas reunidas por um papel comum no processo da produção, um conjunto
de pessoas das quais cada uma se encontra em relações semelhantes em face
de outros participantes do processo da produção. Ao passo que
por condição entende-se grupos de pessoas unidas por sua situação comum
na ordem jurídica da sociedade. Os grandes proprietários territoriais são de
uma classe. Os nobres (em russo: «dvorianié») são uma condição. Por que?
Porque os grandes proprietários territoriais são assinalados por um índice
determinado na economia e produção, ao passo que não é esse o caso dos
nobres. O nobre tem direitos jurídicos determinados, fixados pela lei do Estado
em que ele vive, e privilégios ligados à sua «nobre condição». Mas,
economicamente, este nobre pode estar de tal modo empobrecido que pode
acontecer justamente que ele reúna os dois extremos; ele, pode ser mesmo um
proletário «pé-rapado», mas como condição ele não cessa de ser nobre (tal o
«barão dos Bas-Fonds», de Máximo Gorki). Tomemos outro exemplo. Sob o
governo do czar, lia-se sobre o passaporte de muitos operários: «Fulano,
camponês de tal governo, tal distrito, tal cantão». Este camponês nunca
trabalhou como camponês; ele nasceu na cidade e tinha desde a sua infância
trabalhado como operário assalariado. Vê-se aqui claramente a diferença entre
a classe e a condição (isto é, no ponto de vista das leis czaristas que dividiam
assim os homens segundo as suas condições): este homem, pelo seu índice
de classe é um operário, e pelo seu índice de condição, ele é um camponês.
Mas aqui apresenta-se desde logo a questão seguinte: nós sabemos que a
«política» (nela compreendido o direito) é a «expressão concentrada da
economia». Podemos então parar no direito, sem descer mais profundamente?

Certamente que não; não dizíamos nós há pouco, justamente raciocinando


sobre as classes, que era importante para nós, do ponto de vista do método,
abordar os agrupamentos sociais expressamente pelo lado da produção?
Como então pretender resolver a questão pelo lado das «condições»?

Ouçamos antes de tudo o que diz sobre esta questão o professor Solntsev,
o autor do trabalho mais solido sobre as classes:

«Os grupos de condições socialmente desiguais


aparecem, diz ele, não sobre o terreno das relações do
processo do trabalho, nem sobre o terreno das relações
econômicas, mas antes de tudo sobre o terreno das
relações do Direito e do Estado. A condição é uma
categoria jurídica e política, e como tal pode se manifestar
sob diferentes formas... Diante da diferença da divisão em
condições, a de classes aparece sobre as bases das
relações econômicas...» (loc. cit., p. 22).

Todavia, não é a condição unicamente a classe «revestida» de uma


categoria «juridico-política»? A isto, Solntsev responde negativamente.
Entretanto, ele próprio indica que, por exemplo, no mundo antigo, «a ordem
das condições não podia deixar de refletir as diferenças de classes...» (loc. cit.,
25), que «a luta de classes reveste a forma particular da luta de condições»,
(loc. cit, 26). Esta posição extremamente embrulhada da questão obriga-nos a
esforçar-nos em procurar uma fórmula mais clara.

Tomemos um exemplo. No tempo da grande revolução francesa,


designava-se sob o nome de «terceiro estado» (isto é, «terceira condição»)
uma mistura de diversas classes, ainda mal diferenciadas então umas das
outras: ele compreendia a burguesia, os operários e as classes intermediarias
(artífices, pequenos comerciantes, etc.). Todos pertenciam ao terceiro estado.
Por que? Porque, juridicamente, eles não eram «nada» em comparação com
os proprietários territoriais feudais privilegiados. O «terceiro estado» era a
expressão jurídica do bloco das classes levantadas contra os senhores do
poder. Logo, classe e condição (ou «estado») podem não coincidir. Mas sob a
crosta da condição oculta-se necessariamente a realidade de classe (há aqui
uma condição, e não uma, porém várias classes, na verdade classes, e não
alguma coisa de incerto como aparecia pouco mais ou menos a Solntsev).

Por outro lado, a não coincidência entre a classe e a condição pode ser de
gênero diverso, como já falamos mais atrás: um homem pode pertencer a uma
«classe inferior» e a uma «condição superior» (por exemplo, um nobre
economicamente arruinado servindo de porteiro ou de chauffeur); e vice-versa,
ele pode pertencer a uma condição inferior, e à classe dirigente superior (tal um
grande comerciante, saído dos camponeses abastados, dos «kulaks»). Isto,
que quer dizer? Onde haverá aqui um «conteúdo de classe sob uma crosta
econômica»? É claro que isso não existe. Como pois exprimir teoricamente
este «fato irredutível»?

Para encontrar, também aqui, a solução exata da questão, é indispensável


estudá-la não do ponto de vista de um caso isolado, mas do ponto de vista das
relações típicas nos quadros de uma organização econômica determinada.
Fixemos nossa atenção sobre a circunstância fundamental seguinte: as
condições foram suprimidas pelas revoluções burguesas, pelo desenvolvimento
das relações capitalistas. Se examinarmos por que o capitalismo não pôde
tolerar a existência das condições, chegaremos sem dificuldade às deduções
seguintes: nas formas pré-capitalistas da sociedade, todas as relações eram
muito mais conservadoras, o ritmo da vida muito mais lento, as mudanças
muito menos frequentes que no capitalismo. A classe reinante — a aristocracia
territorial — era aí, podemos dizer, hereditária. E é essa
espantosa imobilidade das relações que tornam possível a firmeza dos
privilégios de classe de uma parte, e das obrigações de outra, por uma
quantidade de normas jurídicas; essa imobilidade permitia revestir uma classe
(ou classes) com a denominação de «condição». Assim, no seu conjunto as
«condições» marchavam lado a lado com as classes, ou melhor, grupos de
classes, em sua oposição a uma classe qualquer. Mas a penetração das
relações capitalistas comerciais, muito mais fluida e móbil, deu um golpe
violento nessa correlação: «O homem de baixa condição» furou, os «novos
ricos» apareceram; o fenômeno tornou-se vulgar; uma parte dos proprietários
territoriais passou a ser constituída pelos capitalistas, uma outra empobreceu-
se e caiu na miséria, a terceira se mantém no seu antigo nível, etc.. Deste
modo a mobilidade das relações capitalistas tirou toda a base à existência das
condições. O período transitório de decomposição das relações feudais tinha
tido sua expressão na ausência crescente de correlação entre o conteúdo
econômico das classes e o seu invólucro jurídico de condições. Um tal período
desenvolveu a falta de correlação, que devia inevitavelmente conduzir à queda
de todo o sistema das condições. O invólucro das condições se manifestou
incompatível com o desenvolvimento das relações de produção capitalista, do
mesmo modo que o invólucro das classes se manifestou por sua vez
incompatível com a evolução futura das forças produtivas. Eis por
que Marxescrevia na Miséria da Filosofia:

«A condição da libertação da classe operária é a abolição


de todas as classes, exatamente como a condição do
terceiro estado... era a supressão de todas as «ordens».

E Engels, em seu comentário, anexava a esta página a nota seguinte:

«Trata-se aqui das «condições (ou «ordens») no sentido


histórico das «condições» do Estado feudal, das
«condições» gozando de privilégios definidos e
delimitados. A revolução burguesa aboliu as condições
com todos os seus privilégios. A sociedade burguesa
conhece somente as classes. Eis por que designar o
proletariado com o nome de «quarto estado» está em
contradição absoluta com a história».

Assim, para o período dos sistemas pré-capitalistas estáveis, as condições


ou «ordens» eram a expressão jurídica das classes; a não coincidência
crescente destes elementos (a ruptura de equilíbrio entre o conteúdo de classe
e a forma jurídica de condição) foi provocada pelo desenvolvimento das
relações capitalistas e pela decomposição das antigas classes feudais, tanto as
inferiores como as superiores: no sistema feudal, o camponês como classe
coincidia em geral com o camponês como condição; porém, mais tarde, os
camponeses formam a burguesia agrícola e o proletariado, duas classes
opostas: ora, a forma «condição» fica a mesma: é claro que ela devia
desaparecer.

Convém agora definir exatamente uma terceira categoria ligada às


questões estudadas. Convém saber o que é profissão. É claro que a profissão
está ligada ao processo do trabalho. Ela se diferencia da classe, em primeiro
lugar porque a repartição em profissão não segue as relações dos homens
entre si, mas suas relações com as coisas; ela considera sobre que coisas e
com que coisas eles trabalham, que coisa eles elaboram. O serralheiro se
distingue do marceneiro e do pedreiro, não por que eles tenham relações
diversas com os capitalistas, mas porque o serralheiro trabalha o metal, ao
passo que o marceneiros trabalha a madeira e o pedreiro a pedra.

Entretanto, não se pode dizer que não se trata aqui senão de coisas, pois
a profissão é, apesar de tudo, ao mesmo tempo uma relação social;no
processo da produção, em que operários de profissões diversas são ligados
entre si pelas normas do processo da produção, há evidentemente entre os
homens relações determinadas. Porém, por mais diferentes que sejam estas
relações, todas elas se apagam diante das diferenças existentes sob o ponto
de vista principal e fundamental: as diferenças entre o trabalho dirigente e o
trabalho executante, as diferenças expressas pelas relações de propriedade.

A divisão em profissões, repousando sobre as relações entre os homens,


as quais decorrem de suas relações técnicas com os instrumentos, os métodos
e o objeto do trabalho, não coincidem de nenhum modo nem com a divisão do
trabalho em trabalho dirigente e trabalho subordinado, nem com a «repartição
dos meios de produção» que lhe correspondem, isto é, com as relações de
propriedade sobre estes meios de produção.

Eis porque é falsa a afirmação do professor Solntsev, a saber que a


profissão é "uma categoria natural-técnica" (sublinhada pelo autor, N. B.), que
ela é inata nas relações humanas mesmo no período pré-histórico, e em todos
os estádios viventes, que "é uma categoria não histórica, não de ordem social"
(op, cit., p. 21) enfim, que é uma categoria eterna. A profissão torna-se
profissão porque uma espécie determinada de trabalho liga-seordinariamente
ao homem durante a vida: o sapateiro está por toda sua vida ligado ao seu
banco. Mas nada prova que tivesse sido sempre assim e que será sempre
assim. O automatismo crescente da técnica libertará os homens desta
necessidade e mostrará quanto esta categoria, como as outras, era
simplesmente de ordem histórica.

Agora que já vimos a diferença que separa a classe da condição e da


profissão, é-nos preciso parar ainda nesta questão: quais são as classes
existentes. Nós julgamos poder dar, pouco mais ou menos, a divisão seguinte:

I — As classes fundamentais de uma determinada forma social (as classes


no sentido próprio da palavra). As classes deste gênero são em número
de duas: a classe dirigente e detentora dos meios de produção de um lado; a
classe executante, privada dos meios de produção e trabalhando para a
primeira, do outro lado. A forma especifica, particular desta relação de
exploração econômica e de servidão determina também a forma da sociedade
de classe que ela caracteriza. Por exemplo: se as relações entre a classe
dirigente e a classe executante se reproduzem por meio da compra de força de
trabalho no mercado, há capitalismo; se elas se reproduzem por meio da
compra de homens ou da pilhagem, ou por outros meios, mas sem compra de
nenhuma força de trabalho, e se, além disto, a classe dirigente dispõe não
somente da força de trabalho, mas «da alma e do corpo» do explorado, há
escravidão, etc..

No que concerne ao capitalismo, considera-se habitualmente que há


nele três classes fundamentais. Isto parece confirmado por uma certa
passagem do fim do tomo III do Capital, de Marx, onde o "manuscrito é
interrompido", e onde está encaixada uma análise das classes da sociedade
capitalista. Eis a passagem:

"Os proprietários de uma força de trabalho, os


proprietários do capital e os proprietários fundiários, cujas
fontes respectivas de rendas são o salário, o lucro e a
renda, constituem as três grandes classes da sociedade
contemporânea, repousando sobre o modo capitalista de
produção."

Mas do fato de que o grupo dos proprietários fundiários forma uma grande
"classe", não se segue que ela seja uma das classes fundamentais. Assim,
em Marx, nós encontramos a seguinte passagem, à qual se refere também mui
judiciosamente o professor Solntsev:

"O trabalho passado e o trabalho vivo são os dois fatores


em oposição mutua sobre os quais repousa a produção
capitalista, o capitalista e o operário assalariado são os
únicos funcionários e fatores da produção, cujas relações
mutuas decorrem do caráter da produção capitalista.... A
produção, como o nota James Mill, poderia sem
inconveniente continuar a sua marcha, mesmo que os
proprietários fundiários particulares desaparecessem e
que o seu lugar fosse tomado pelo Estado... Este fato, na
origem do qual se encontra a essência mesma do modo
capitalista de produção em oposição ao modo feudal, ao
modo antigo, etc., — este fato de que as classes
participando diretamente na produção se resumem a
duas, capitalistas e assalariados, excluídos
os proprietários fundiários (sublinhado por nós, N. B.),
os quais não vêm senão post festum, e graças a relações
determinadas de propriedade que não apareceram no
terreno do modo capitalista de produção, mas que para aí
se transportaram do seio da economia
feudal(sublinhado por nós, N. B.)... este fato constitui
a diferença especifica da produção capitalista e sua
expressão teórica adequada." (Marx: Teoria sobre a mais
valia. T. II, pp. 292-299).

E Marx fala do mesmo modo quando se refere à questão da


nacionalização da terra.

As classes fundamentais se subdividem por sua vez em sub-classes, em


frações diversas: por exemplo, na sociedade capitalista, a burguesia dominante
fraciona-se em burguesia indústria!, burguesia comercial, banqueiros, etc.; a
classe operária se fraciona em operários qualificados e não qualificados.

II — As classes intermediarias. Podemos aqui enumerar agrupamentos


econômico-sociais que, não sendo restos de uma ordem antiga, e aparecendo
como indispensáveis ao regime no qual eles se encontram, ocupam um lugar
intermediário entre a classe dirigente e a classe explorada. Tal é, por exemplo,
na sociedade capitalista, a classe dos técnicos intelectuais.

III — As classes de transição. — Contamos aqui grupos vindos de uma


forma precedente da sociedade, e que, na forma atual, se decompõem, dando
nascimento a diversas classes com funções opostas na produção. Tais são,
por exemplo, na sociedade capitalista, os artífices e os camponeses. É uma
herança do regime feudal, que dá nascimento a elementos tanto burgueses
como proletários. Tomemos o campesinato. No capitalismo ele se decompõe
constantemente em camadas diversas, ou, como diz a ciência econômica, ele
se diferencia: do camponês médio sai o pequeno kulak; do grande camponês,
um açambarcador qualquer; depois, um degrau mais e vós tereis o mais
autentico burguês, e do outro lado, um proletariado se forma igualmente por
graus: camponês pobre, camponês sem cavalo, meio-operário ou operário
temporário, por fim proletário puro.

IV — Os tipos de classes mistas. Contamos aqui grupos que pertencem,


ao mesmo tempo, por um lado a uma classe e por outro a outras classes.
Assim um ferroviário que possui um pequeno sitio e toma ao seu serviço um
jornaleiro, é, em relação à companhia de caminhos de ferro, um operário, e em
relação ao seu empregado, um patrão, etc..

V — Enfim, convém classificar à parte o que se chama os grupos dos


«desclassificados», isto é, os grupos de pessoas saídas dos quadros de todo
trabalho social: lumpen proletariat, mendigos, «boêmios», vagabundos e
outros.

Quando nós analisamos um «tipo abstrato» de sociedade, isto é, uma


forma social qualquer pura, nós nos preocupamos somente, ou quase somente,
com as classes fundamentais. Ao contrário, quando vamos observar no seu
movimento a realidade concreta, então é natural que temos de contar com toda
a miscelânea dos tipos das relações sociais e econômicas.

A causa geral da existência das classes é determinada por Engels no Anti-


Duhring, da maneira seguinte:

"... Todas as contradições históricas que até o presente


têm existido entre exploradores e explorados, governantes
e oprimidos, têm as suas raízes na produtividade
relativamente não evoluída do trabalho humano. Desde
que a população trabalhando efetivamente está de tal
modo absorvida pelo seu trabalho indispensável que não
lhe sobra tempo para cuidar dos negócios gerais da
sociedade inteira — divisão do trabalho, negócios do
Estado, arte, ciência, etc. — enquanto isso for assim deve
sem dúvida existir uma classe particular, que, livre do
verdadeiro trabalho, se ocupe dessas coisas, sem
desfalecimentos, graças ao privilegio de que goza de
lançar um fardo cada vez mais pesado sobre os ombros
das massas trabalhadoras".

Noutra passagem. Engels repete quase a mesma coisa, dizendo que a


sociedade se divide em duas classes, e acrescenta, para resumir:
"lei da divisão do trabalho, eis em suma o que está na
base da divisão em classes".

O professor Solntsev, criticando G. Schmoller, o qual vê na divisão do


trabalho a fonte principal da formação das classes, replica à referencia por ele
feita de Engels, da maneira seguinte:

"Engels põe efetivamente o processo da formação das


classes em próxima ligação com o processo de divisão do
trabalho; mas... para Engels, a divisão do trabalho não é
senão uma condição natural e técnica indispensável da
formação das classes sociais e não a sua causa; a causa
fundamental da formação das classes, Engels a
via, não na divisão do trabalho, mas nas relações de
produção e de repartição, isto é, no processo de caráter
puramente econômico", (op. cit., p. 203, sublinhado por
nós, N. B.).

Como já vimos acima, examinando a questão da profissão, não se


pode opor a divisão do trabalho às relações de produção, pois que a divisão do
trabalho é ela também um dos aspectos das relações de produção. O erro
de Schmoller (Cf. G. Schmoller: Die Tatschen der Arbeitsteilung "Os fatos da
divisão do trabalho". Jahrbucher, 1890, e do mesmo: Das Wesen der
Arbeitsteilung und Klassenbildung "A divisão do trabalho e a formação das
classes", Jahrbucher, 1890), consiste em que ele apaga a diferença entre
divisão profissional e divisão em classes, esforçando-se por espalmar as
contradições de classe segundo o espírito da escola orgânica, A teoria de L.
Gumplovitch e de F. Oppenheimer sobre a origem das classes, tirada da
"violência extra-econômica"' não compreende a diferença entre uma teoria
abstrata da sociedade e a marcha concreta dos acontecimentos históricos. Na
realidade histórica, o papel da violência extra-econômica, ou conquista foi
muito grande e teve sua influência sobre o processo da formação das classes.
Mas em uma pesquisa puramente teórica, é indispensável deixar isto de lado.
Suponhamos que analisamos "uma sociedade abstrata" na sua evolução:
mesmo aí apareceriam classes, em virtude do que se chamam as "causas
internas da evolução", como o demonstraEngels. Em suma, o papel das
conquistas etc., não é senão um fator (muito importante) de complicações.

§ 52. O interesse de classe

Vimos pelo que precede, que as classes são grupos particulares de


homens, «complexos reais» diferindo uns dos outros pelo seu papel na
produção, que encontra sua expressão nas relações de propriedade. Mas
sabemos também que com estes dois lados do processo de produção coexiste
um terceiro lado — o processo de repartição dos produtos sob tal ou qual
forma. A produção corresponde à distribuição.

Às formas de produção correspondem as de repartição. À posição das


classes na produção, corresponde sua posição na repartição. O antagonismo
entre classe dirigente e classe dirigida, classe detendo em monopólio os meios
de produção e classe não possuindo os meios de produção, acha a sua
expressão no antagonismo das rendas, na contradição entre as partes de
produtos elaborados cabendo a cada classe na partilha da massa total dos
produtos. Uma semelhante diferença de condição de existência (maneira de
viver) entre classes determina também a sua «consciência». As contradições
entre condições de vida (maneira de viver) acham a sua expressão a mais
imediata na formação de interesses de classe. A expressão a mais primitiva e
ao mesmo tempo a mais comum dos interesses de classe é o desejo das
classes de aumentar sua parte na repartição da massa dos produtos.

No sistema da sociedade fundada sobre as classes, o processo da


produção é ao mesmo tempo um processo de exploração econômica dos
trabalhadores manuais. Eles produzem mais do que recebem. E não somente
porque uma parte dos produtos fabricados (na sociedade capitalista, valores) é
destinada a ampliar a produção (na sociedade capitalista, à acumulação), mas
também porque a classe trabalhadora sustenta os proprietários dos meios de
produção, trabalha para eles. Eis porque os interesses mais gerais da minoria
no poder podem ser formulados como a aspiração de manter e ampliar as
possibilidades da exploração econômica, e os interesses da maioria explorada,
como a aspiração de se libertar dessa exploração. Ao passo que a primeira
fórmula dada acima fala somente de uma sociedade dada e não sai de seus
limites, a segunda implica a questão da própria existência duma determinada
sociedade.

Mas a estrutura econômica de uma sociedade é, já o sabemos, fixada na


sua organização de Estado e reforçada por uma quantidade infinita de
superestruturas. Não há pois motivo para nos admirarmos de que o interesse
econômico de classe tome a mascara de interesse político, cientifico, religioso,
etc.. Assim os interesses de classe se desenvolvem em todo um
sistema abraçando os mais diversos domínios da vida social. Esses interesses
sistematizados, reunidos em feixe pelo interesse geral de classe, conduz à
construção do que se chama o «ideal social», que aparece sempre como a
quinta-essência dos interesses de classe.

Examinando a questão dos interesses de classe, é preciso fixar ainda a


nossa atenção sobre alguns pontos.
É indispensável, primeiramente, distinguir os interesses duráveis e gerais e
os interesses transitórios, passageiros. Os interesses «passageiros» podem
estar em contradição objetiva com os interesses duráveis. Do ponto de vista
dos interesses transitórios, por exemplo, os operários ingleses têm agido
judiciosamente vivendo em paz com a burguesia inglesa e defendendo-a
durante a guerra imperialista; eles têm, com essa atitude, defendido mesmo a
alta dos salários de que eles gozam à custa dos trabalhadores coloniais. Mas
ao mesmo tempo, rompendo com esse ato a solidariedade dos operários em
geral e fazendo frente única com os «seus» patrões, eles prejudicaram os
interesses gerais e duráveis de sua própria classe.

Em segundo lugar, é indispensável distinguir, por um lado os interesses


corporativos, os interesses de grupo, e por outro os interesses gerais de
classe. Por exemplo, quando, na sociedade capitalista, a burguesia no poder
suborna uma aristocracia operária (operários qualificados), os interesses
particulares deste grupo não coincidem mais com os interesses de todo o
conjunto da classe operária: são interesses de grupo e não de classe; ou
então, quando, em tempo de guerra, os especuladores da burguesia infringem
tanto quanto podem as regras comerciais elaboradas pelo seu próprio estado
burguês, o qual faz a guerra no interesse da burguesia como classe. Vêem-se
aqui os interesses de grupo da fração comerciante-especuladora (os
«tubarões») da burguesia, interesses que em semelhante caso se afastam dos
interesses da burguesia como classe.

Terceiro, é indispensável não perder de vista a mudança de princípio da


direção dos interesses correntes de uma classe, que se produz ao mesmo
tempo que a mudança de princípio de sua situação social. Tomemos um
exemplo. Na sociedade capitalista, o proletariado tem por interesse o mais
durável e o mais geral a supressão da ordem capitalista. Por conseguinte, é
segundo esse plano que se estabelecem seus interesses parciais: estes
consistem em conquistar posições estratégicas e em minar a sociedade
burguesa. Melhorar sua situação material, aumentar seu poder social, reunir
suas forças para atacar o sistema capitalista inteiro, eis ao que conduz a tarefa
do proletariado. Mas eis que o proletariado preencheu a sua missão histórica.
Ele destruiu a antiga máquina do Estado, construiu uma nova, um novo
equilíbrio social se terá constituído; o proletariado passa a ocupar o lugar da
classe dirigente provisória. É claro que a direção de seus interesses muda
então, radicalmente: todos os seus interesses particulares, examinados do
ponto de vista dos interesses gerais, se estabelecem sobre o plano
da consolidação e da evolução das novas relações, de sua organização e da
resistência a toda tentativa destruidora. Esta transformação dialética é a
consequência da evolução dialética do próprio proletariado, o que se «tem
constituído como poder político».

Em que consiste, pois, a síntese dessas duas direções de interesses


opostos? É sua unidade superior: a edificação de uma nova forma social,
trazida pelo proletariado, edificação que pressupõe a destruição do velho
invólucro que impedia a evolução das forças produtivas.

Toda classe nova que é capaz não somente de destruir o antigo sistema
de relações sociais, mas também de construir novo sistema, que por
consequência é capaz de se tornar a organizadora de uma sociedade nova,
deve inevitavelmente dar a seus interesses uma cor de produção, isto é,
abordar as questões sociais não do ponto de vista da partilha e da simples
repartição, mas do ponto de vista da destruição das antigas formas, em nome
da construção de formas que implicam uma produção mais perfeita,
e forças produtivas mais poderosas.

§ 53. Psicologia de classe e ideologia de classe

A diferença de condições de existência material, base da divisão da


sociedade em classes, põe seu estigma sobre toda a consciência das classes,
isto é, sobre a psicologia e ideologia de classe. Sabemos já, pelo que precede,
que a psicologia de classe, ou mais exatamente a psicologia duma classe, não
coincide sempre com o interesse material dessa classe (por exemplo, a
psicologia do desespero, da renuncia ao mundo, a tendência para o suicídio,
etc..) mas que ela deriva sempre e é sempre determinada pelas condições de
vida dessa classe. Vejamos agora alguns exemplos da maneira pela qual se
determina realmente uma psicologia e uma ideologia de classe.

Tomemos antes de tudo um exemplo prático, da vida corrente, de fatos


comuns. Todos têm conhecimento da discussão havida na Rússia entre
marxistas e socialistas-revolucionários, sobre qual a classe que levaria a
sociedade ao socialismo; os marxistas afirmavam que seria a classe obreira, o
proletariado; os socialistas-revolucionários esforçavam-se por todas as
maneiras em demonstrar que a classe campesina suplantaria o proletariado.
Os fatos deram toda razão aos marxistas: os camponeses têm sustentado o
proletariado na sua luta contra os fidalgos e os capitalistas; eles os sustentam
porque o proletariado protege a terra campesina e proporciona à economia
campesina a possibilidade de se desenvolver, porém eles discordam
completamente da «comuna», eles se apegam com todas as suas forças às
antigas formas de propriedade da terra, de cultura da terra, da sua velha
economia em geral. Como explicar este fenômeno? E como explicar ao mesmo
tempo o heroísmo do proletariado na luta e o incomensurável apoio com que
ele acolheu a edificação socialista e a ideologia comunista? Por outro lado, se
pretendermos atribuir a solução da questão ao fato do mujik não ser tão pobre,
então porque não foi o proletariado andrajoso, porque não foram os miseráveis,
os desclassificados, etc., que forneceram os efetivos da luta?

Para respondermos a isto, poderemos formular a questão preliminar, a de


saber quais os traços que deve ter a classe que pode executar a metamorfose
da sociedade e levá-la da sua estrada capitalista para o caminho socialista.

1.º Deve ser uma classe que no regime capitalista é explorada


economicamente e oprimida politicamente. Senão, é evidente que não terá
razões suficientes para se revoltar contra a ordem capitalista; ela não poderá
então, em caso algum, sublevar-se contra ela.

2.º Segue-se que essa classe deve também, numa expressão simplista,
ser uma classe pobre; senão ela não poderá comparar sua pobreza à riqueza
das outras classes.

3.º Ela deve ser uma classe produtora. Senão, se ela não tomar parte
direta na criação dos valores, ela pode, na hipótese mais favorável, destruir,
mas nunca construir, criar, organizar.

4.º Ela não deve estar ligada à propriedade privada. Pois, se tivermos uma
classe cuja existência material estiver vinculada à propriedade privada, é
facilmente compreensível que ela aspirará ao aumento do que é «seu», sua
propriedade, e nunca na abolição da propriedade privada, queé o objetivo do
comunismo.

5.º Ela deve enfim ser uma classe unificada pelas condições de sua
existência, e habituada ao trabalho em comum, ao trabalho feito ombro a
ombro, um ao lado do outro. Pois, doutro modo, ela não será capaz nem de
desejar e nem de realizar uma sociedade tal que seja a encarnação do trabalho
social, do trabalho de camaradagem. E ainda mais, ela não seria mesmo capaz
de levar adiante uma luta organizada, ela não seria capaz de organizar um
novo poder político.

Comparemos agora estes diversos índices num quadro, e examinemos


qual é a classe que dentre os nossos três grupos satisfaz melhor a estas
exigências. Assinalemos com + aquela que satisfizer a cada índice, e com — a
que não satisfizer.

Campesinato Proletariado Proletariado


andrajoso

1. Exploração econômica + — +

2. Opressão política + + +

3. Pobreza + + +

4. Produtividade + — +

5. Sem vínculos com a propriedade


— + +
privada

6. Unidade na produção, trabalho em


— — +
comum

Vemos aqui claramente como se apresenta a questão. Falta muito à classe


campesina, para ser uma classe realmente comunista; ela está ligada
à propriedade, por ela está presa e serão precisos ainda muitos anos para
processar-se a sua reeducação, fato que não é possível senão quando o poder
do Estado está nas mãos do proletariado. O campesinato não é unido na
produção, ele não está habituado ao trabalho social e à produtividade
unificada; ao contrário, toda a alma do camponês está no seu pedaço de terra:
ele está acostumado com a economia individual e não social. Quanto ao
proletariado andrajoso, seu principal defeito está na ausência do trabalho
produtivo. Ele poderá destruir, porém não está habituado a construir. Sua
ideologia é frequentemente representada pelos anarquistas. Um homem de
espírito disse que o seu programa se compunha de dois artigos: Art. 1.º: «Não
haverá nada». Art. II.º: «Ninguém se encarregará da execução do artigo
precedente».

Tocamos assim o laço que une a condição da existência material com a


psicologia e a ideologia de classe ou de grupo que daí resultam: no
proletariado, ódio ao capital e ao seu Estado, espírito revolucionário, hábito de
agir duma maneira organizada, psicologia de camaradagem, atitude criadora,
produtiva, desprezo ao passado, atitude negativa em face da «sacrossanta
propriedade privada» alicerce da sociedade burguesa, etc.; no
campesinato, apego à propriedade privada, que o torna hostil a todas as
inovações, individualismo, desconfiança de tudo que ultrapassa ao seu
horizonte estreito; no proletariado andrajoso, negligencia e inconsistência, ódio
às velharias e ao mesmo tempo impotência e inércia na construção, na
organização, individualismo desorganizados caráter fantasista. A uma tal
psicologia, uma ideologia correspondente: no proletariado, comunismo
revolucionário; no campesinato, ideologia de propriedade; no proletariado
andrajoso, anarquismo instável e histérico. É evidente que uma vez que se
tenha por base semelhante psicologia e ideologia, é ela que dá o traço
característico geral a toda uma psicologia e ideologia duma classe ou dum
grupo correspondente.

Nas antigas discussões entre marxistas e socialistas-


revolucionários russos, estes últimos apresentavam a questão sob o ponto de
vista da filantropia, da "ética", da "piedade" para com os "irmãos inferiores" e
outras tolices de fidalgos intelectuais. Para a maioria dos "ideólogos" deste
gênero, a questão de classes era uma questão de ética de intelectuais
torturados pelos remorsos da consciência, que visavam derrubar a autocracia,
que não lhes oferecia muito espaço, ensaiavam apoiar-se sobre o mujik (uma
vez que este não lhes tinha incendiado os castelos dos seus tios e tias), e
esforçavam-se em conquistar sua confiança, redimindo as faltas cometidas por
um nobre "auxilio aos humilhados e aos ofendidos". Enquanto que para os
marxistas não era questão nem de lamurias e nem de filantropia, mas da exata
avaliação das capacidades das classes, para saber qual seria a atitude que
tomaria inevitavelmente cada uma delas na iminência da luta pelo socialismo.

Um bom estudo (se bem que conservador e apologético, destinado a


sustentar toda reação) sobre a psicologia do campesino, nos é apresentado
no trabalho do pastor evangélico A. l'Houet: Zur Psychologie des Bauerntums
("Da psicologia do campesinato", 2.ª edição, 1920, de Mohr, Tubingen, em
alemão). O sábio eclesiástico cristão aprecia a classe camponesa "em primeiro
lugar" como... reservatório de saúde corporal, espiritual, moral e religiosa,
como tesouro militar para o país (Reichskriegsschatz: o autor quer dizer —
"como carne para canhão", N. B.), etc.. (op. cit., IV). O pastor Houet, que, no
número dos caracteres do campesinato, conta a sua homogeneidade (massa
homogenia), sua separação do resto do mundo, seu tradicionalismo, etc., dá
muito justa definição da ideologia da classe camponesa. Apenas entusiasma-
se com frequência justamente por aquilo que nós consideramos como a
"idiotice da vida camponesa" (Marx). Ele exalta, por exemplo, a inércia do
camponês, sua repugnância por tudo que é novo:

"... Em face do amor à novidade, o camponês pertence a


um outro mundo, aquele que coloca acima de tudo os
tempos antigos, que conserva firmemente os fundamentos
vitais do passado, que continua a fiar os antigos fios....
Com o inconveniente dele "atrasar o seu tempo", "não
caminhar passo a passo com ele"; em compensação, com
a vantagem de que todas as suas manifestações de vida,
precisamente em virtude dessa unilateralidade, se
distinguirem favoravelmente pela sua segurança, sua
seriedade e seu valor durável" (op. cit,. p. 16).

Esta rotina se manifesta por toda parte:

"Conservação dos antigos lugares de estabelecimento,


conservação da antiga casa, conservação dos antigos
bens, costumes, nomes; conservação do dialeto, da velha
poesia popular, da velha estrutura espiritual, do antigo tipo
de fisionomia! Por toda parte, o mesmo espírito
conservador..." (ibidem).

O sr. Houet regozija-se extremamente pelo fato de serem as habitações


dos camponeses, em 1871, pouco diferentes do que eram na idade da pedra
(pag. 17). Ele se regozija com o simplismo e pobreza hereditária da alma do
camponês, de que o

"número dos seus problemas da vida, como sejam


religiosos, morais, de arte e outros quaisquer, serem
extremamente restritos" e de que "a mesma concepção
destes problemas se transmite de geração em geração"
(op. cit., pag. 29);

mas ele não se regozija pelo fato de que esse espírito limitado, esta
"idiotice" que não é a falta, mas a desgraça dos camponeses, seja quebrado
pelo vapor e pela eletricidade, pois, admirai! este princípio de tradição conduz
"à simples, à antiga e grandiosa existência". A gravidade, a desconfiança e a
avareza, a cupidez do proprietário, etc., são, bem entendido, louvados por
todas as maneiras por este pastor (ex. pag. 63), e isto ocupando páginas e
páginas inesgotáveis.

Os exemplos apresentados mostram bem o essencial da psicologia e da


ideologia de classe dos proprietários agrários e de seus curas e pastores, que
se esforçam em salvaguardar e lisonjear os caracteres do camponês que o
impedem de "marchar de acorda com a sua época".

Na nobreza fundiária, (isto é, entre os proprietários feudais) a psicologia de


classe se caracteriza também por um inevitável espírito conservador e
reacionário, cruamente expresso, de tal forma que não existe nenhum paralelo
em nenhuma outra classe, E é bem compreensível: os proprietários feudais são
com efeito os representantes supremos da sociedade feudal, a qual "entregou
sua alma a Deus", além de tudo. O culto da tradição, das "formas solidas", da
família aristocrática e da "ancestralidade" (de seus privilégios, de sua gloria, de
seu "valor"), simbolicamente expresso na "arvore genealógica"; os "serviços" e
os "méritos", o feudo, a "honra", os costumes convenientes à "nobreza", o
desprezo aos "plebeus", o direito às relações sexuais e outras somente com
"iguais", são tais os traços característicos desta antiga classe dirigente.
(Conforme Simmel: Sociologia, digressão sobre a nobreza — em alemão —
pgs. 737 e 399).

A psicologia e a ideologia das classes da sociedade burguesa isto é, das


classes urbanas, é muito mais dócil. A burguesia, sobretudo no período de sua
evolução, quando ela não estava diretamente ameaçada pela revolução
proletária, não se caracteriza absolutamente por um conservadorismo
semelhante ao da nobreza. Seu traço predominante é seu individualismo,
decorrente da luta pela concorrência, o racionalismo, fruto do ''cálculo
econômico", como fundamentos vitais desta classe; a psicologia e a
ideologia liberal repousam sobre "a iniciativa", a "liberdade de
empreendimento". Especialmente sobre a psicologia econômica da burguesia
em diversos estádios de sua evolução, encontraremos bastantes observações
interessantes em Sombart (der Bourgeois) e em Max Weber (ob. cit.). Sombart,
por exemplo, remonta até a aparição do espírito de empreendimento. Este
devia constituir-se pela fusão de três tipos psicológicos: o conquistador, o
organizador e o mercador. O "conquistador" dá a possibilidade de projetar um
plano e de realizá-lo: ele tem a resistência e a firmeza, a elasticidade, a energia
intelectual, a capacidade de intensificar os seus esforços, a força de vontade; o
organizador deve saber dispor coisas e gentes de modo a atingir
o maximum de resultado útil; o comerciante, o mercador distingue-se pela sua
capacidade de discutir com não importa quem e de ganhar o seu negócio
(Sombart. ob. cit. cap. V: L'essence de l'esprit d'entreprise, pgs. 69-399). É pela
combinação desses traços que se caracteriza a burguesia na época do seu
aparecimento.

Quanto à psicologia do proletariado, dela já nos ocupamos anteriormente,


e é sobretudo do que mais falamos neste livro.

É claro que a psicologia e a ideologia das classes mudam em correlação


com as trocas da «maneira de ser social» dessas classes, como nós já o
notamos nos capítulos precedentes, mais de uma vez.

Convém fazer aqui mais uma observação. De tudo que nós dissemos
ressalta claramente que a psicologia das classes intermediarias é
igualmente intermediaria, a dos grupos mistos, igualmente mista, etc.. É isto
que explica que, por exemplo, a pequena-burguesia e o campesinato
«hesitem» constantemente entre o proletariado e a burguesia, que «tem nelas
duas almas», e assim por diante.
«Sobre as diferentes formas da propriedade, sobre o que
se chama as condições de existência, se eleva toda uma
superestrutura de sentimentos diversos e originalmente
constituídos, de ilusões e modos de pensar e conceber a
vida. Toda a classe as cria e as forma sobre a base
material e sobre as relações sociais correspondentes».
(Marx, Le 18 Brumaire).

§ 54. «Classe em si» e «classe para si»

A psicologia e a ideologia de classe, a consciência que uma classe tem de


seus interesses, não somente passageiros, mas duráveis e gerais, decorre da
posição dessa classe na produção. Mas isso não significa absolutamente que
essa posição dessa classe na produção provoque dum só golpe, nessa classe,
a noção de seus interesses gerais e fundamentais. Ao contrário, podemos dizer
que isso não acontece quase nunca. Então na vida real, primeiro, o processo
de produção percorre diversos estádios de sua evolução e as contradições da
estrutura econômica não se descobrem senão no curso da evolução ulterior;
segundo, uma classe não cai por acaso do céu, mas ela se constitui, por assim
dizer, inconscientemente, a partir de diferentes outros grupos sociais (classes
de transição, intermediarias e outras, camadas, agrupamentos sociais em
geral); terceiro, passa-se ordinariamente um certo tempo, antes que a
experiência da luta dê a uma classe sua consciência de classe, tendo seus
interesses particulares, seus desejos, suas aspirações próprias dela e
exclusivamente dela, seus «ideais» sociais, que a opõe de modo decisivo a
todas as outras classes da sociedade da qual ela faz parte; enfim, quarto, não
se deve esquecer o trabalho de nivelamento psicológico e ideológico que
pratica constantemente a classe no poder, tendo nas mãos o organismo do
Estado, afim de, duma parte, aniquilar os rebentos da consciência de classe,
nas classes oprimidas, e de outra, inculcar-lhes por todos os meios possíveis a
ideologia da classe dominante, ou então fazer-lhe penetrar numa medida mais
ou menos intensa a influência dessa ideologia, ou até, finalmente, implantá-la à
força. Todas estas circunstâncias tornam possível uma situação tal, que uma
classe já exista, embora como um conjunto de pessoas desempenhando um
papel determinado no processo da produção, conquanto não exista ainda como
classe consciente de si mesma. A classe então existe, mas ela «não é ainda
consciente». Ela existe como fator de produção; ela existe como complexo
determinado de relações de produção. Mas não existe ainda como força social
independente, que saiba o que quer, ao que aspira, e que tenha consciência de
sua personalidade, da oposição dos seus interesses aos das outras classes,
etc..
Para designar esses diversos estados no processo da evolução das
classes, Marx emprega duas expressões: Ele chama classe «em si» uma
classe não tendo ainda consciência de si mesma; e chama classe «para si»
aquela que já tenha adquirido consciência do seu papel social. Na Misére de la
Philosofie, (Stuttgart, 1920, pags. 161, 162) Marx declara:

"As primeiras tentativas dos trabalhadores se unirem uns


aos outros, tomam sempre a forma de coalizões. A
indústria pesada une num só e mesmo laço uma massa
de gente desconhecida entre si, a concorrência os divide
quanto aos seus interesses; mas a manutenção do salário
a um nível conveniente, esse interesse comum contra seu
patrão, une-os em um só pensamento comum de
resistência, em uma coalizão (por "coalizão", entende-se
nessa passagem, em todo este trecho, união de
trabalhadores, N. B.). Assim a coalizão tem
constantemente um fim duplo: pôr fim à concorrência entre
trabalhadores, a fim de ficar em estado de fazer
concorrência comum ao capitalista. Embora o fim
primordial da resistência seja somente a manutenção do
salário a um nível conveniente, as coalizões, isoladas ao
começo, se formam à medida que os capitalistas por seu
lado, sob a pressão, se unem em grupos e, contra o
capital em vias de constante unificação, a defesa das
associações torna-se ainda mais importante para eles do
que a defesa do salário. Nessa luta, verdadeira guerra
civil, todos os elementos se unem e se desenvolvem para
a próxima batalha. Uma vez atingido esse objetivo, a
coalizão toma seu outro caráter: político.

"As relações econômicas transformaram em seguida uma


massa da população em trabalhadores. A dominação do
capital criou para essa massa uma situação comum, de
interesses comuns. Assim essa massa aparece já como
uma classe em relação ao capital, mas não ainda como
uma classe em si mesma. Na luta da qual nós indicamos
algumas fases, a massa acha-se a si própria, constitui-se
como classe em si mesma. Os interesses que ela defende
tornam-se interesses de classe". (O grifo é nosso, N. B.).

§ 55. As formas da solidariedade relativa dos interesses


Do que acabamos de dizer ressalta já a possibilidade, em condições
determinadas, duma solidariedade relativa das classes. É necessário, não
obstante, distinguir aqui duas formas principais dessa solidariedade relativa.

Em primeiro lugar, essa solidariedade pode ser tal que ela una o interesse
permanente de uma classe com o interesse temporário de outra, esse interesse
temporário contradizendo os interesses gerais dessa classe.

Em segundo lugar, essa solidariedade pode ser tal que não


exista contradição, como se tratasse da coincidência do interesse durável
duma classe com o interesse transitório de uma outra, ou de interesses
transitórios das duas partes.

Para explicar o primeiro caso, tomemos como exemplo a guerra


imperialista de 1914-18, e ensaiemos a análise da atitude dos trabalhadores no
começo dessa guerra. É um fato conhecido que na maior parte dos grandes
países, os mais evoluídos sob o ponto de vista capitalista, os trabalhadores,
esquecendo os seus interesses internacionais e gerais de classe, atiraram-se
em defesa de suas «pátrias». Ora, sob estas «pátrias» se ocultavam, em
realidade, as organizações de Estado da burguesia, isto é, as organizações da
classe do capital. Por consequência, a classe trabalhadora partiu em defesa
das organizações econômicas, marchando umas contra as outras numa guerra
de concorrência para a repartição dos mercados de escoamento, de mercados
de matérias primas, de esferas de expansão do capital. É claro que houve aqui,
da parte dos trabalhadores, traição aos seus interesses de classe. Não
obstante, qual era o fundo da questão? Onde residia a causa oculta a mais
profunda dessa monstruosa negação, conscientemente sustentada pelos
partidos sociais-democratas oportunistas? Essa causa, era a solidariedade
relativa entre o proletariado e a burguesia dos países capitalistas financeiros.
Eis aí sobre que ela se baseava. Representemo-nos toda economia mundial.
Na inumerável rede de fios que se entrecruzam — as relações de produção —
existem nós fortes e espessos: os grandes países capitalistas. Lá se encontram
os grupos «nacionais» da burguesia, organizados politicamente. Eles se
assemelham às gigantescas empresas, aos grandes trustes, que «trabalham»
nos limites da economia mundial. Tanto mais um desses Estados é poderoso,
mais ele explora sem piedade a sua periferia econômica: colônias, esferas de
influência, semi-colônias, etc.. Com a evolução da sociedade capitalista, a
situação da classe trabalhadora deveria piorar. Mas os estados rapaces da
burguesia, escorchando até arrancar sangue suas enormes possessões
coloniais e «esferas de influência», induzem «seus» trabalhadores a interessar-
se na exploração das colônias. Assim se cria uma «comunidade de interesses»
relativa, entre a burguesia imperialista e o proletariado. Dessas relações de
produção germina também a psicologia e ideologia correspondente, que se liga
à renascença da idéia de pátria. O raciocínio era dos mais simples: se «nossa»
indústria (em realidade, dever-se-ia dizer: «a indústria de nossos patrões»)
desenvolve-se, o salário de seu lado aumentará; e a indústria se desenvolve
quando ela possui mercados e esferas de colocação de capital; então a classe
trabalhadora é interessada na política colonial da burguesia; então, é
necessário defender «a indústria da pátria», é necessário bater-se pelo seu
lugar ao sol. E daí decorre todo o resto: celebração da potencia da pátria, da
grande nação, etc., e também aranzeis empolados ao infinito sobre a
humanidade, a civilização, a democracia, o desprendimento e outros temas que
tiveram curso nos primeiros tempos da guerra. Era com a ideologia de
«imperialismo obreiro», que a classe trabalhadora traía seus interesses
permanentes gerais pelas migalhas que lhe atirava a burguesia, oprimindo os
trabalhadores e semi-trabalhadores das colônias. E, feitas as contas, a marcha
da guerra e o período do após-guerra mostraram à classe trabalhadora que ela
tinha jogado uma má cartada, que os interesses duráveis de uma classe são
mais importantes do que seus interesses passageiros. Então começa um
processo de rápida «revolucionarização».

O professor Tugan Baranovski, já falecido, que se considerava como


"quase marxista'', mas que encontrou tempo, durante a revolução russa, de ser
por um momento ministro branco (isso por excesso de "ética": ele reprovava
sem cessar a Marx de não ser bastante "ético" e de se deixar levar demasiado
pelo ódio de classe, o que é, certamente, muito pouco filantrópico), esse Tugan
Baranovski fazia ainda a Marx a objeção seguinte:

"Marx, dizia ele, não vê a solidariedade de interesses e


nega-a na sociedade capitalista. Portanto "na defesa da
independência proletária do Estado (do Estado burguês,
N. B.) todas as classes estão igualmente interessadas
quanto ao ponto de vista ideal. No domínio econômico, o
Estado serve não somente de base à dominação de uma
classe, mas também de auxilio à evolução econômica e ao
aumento da soma total da riqueza nacional, o que
corresponde aos interesses de todas as classes sociais
como coletividade. A isto acrescenta-se também a missão
educadora do Estado, que está diretamente interessado
no progresso da cultura e na elevação do nível intelectual
da população nacional, quando mais não seja, pela razão
do poderio político e econômico estar ligado à "cultura"."
(Tugan-Baranovski. Theorische Grundiangen des
Marxismus — "Fundamentos teóricos do marxismo" — em
russo).

O sr. Cunow (op. cit., vol. IL pag. 78-79) cita esta passagem de Tugan e a
aprova, afirmando somente que aí Tugan confunde interesses sociais e
interesses do Estado. Mas, realmente, Cunow confunde o ponto de vista
revolucionário de Marx com o ponto de vista de traição da social-democracia
de Scheidemann. A argumentação de Tugan—Cunow é pueril. Desde o
momento em que o Estado não se preocupa somente de opressão,mas
também de..., então todas as classes aí estão interessadas. Brava gente!
Deste modo, pode-se provar tudo que se deseja. Depois que os trustes não se
preocupam somente de exploração, mas também de produção, eles são de
utilidade publica. E assim por diante. Aí vê-se com que tolices o
sr. Cunow enche dois volumes "de estudos" sobre a sociologia
marxista! Cunow, deste modo, bate o record sobre todos os falsificadores do
marxismo, por sua cínica insolência.

"De acordo com a doutrina de Marx — escreve ele, às


páginas 77 e 399 do segundo volume da sua obra —
aquela vontade geral, na qual se baseava a antiga filosofia
social, não existe absolutamente, porque a sociedade não
é uma coisa concreta com interesses absolutamente
idênticos, (Que sociedade!) mas ela é dividida em classes
(isto não é mau, mas enfim, que faz Cunow do Estado?
De quem este exprime a vontade? N. B.). Mas existem
perfeitamente interesses sociais universais, porque (notai
bem!) como a vida e a atividade social são impossíveis
sem uma certa ordem, todos os membros da sociedade —
desde que não neguem pertencer à sociedade — estão
interessados na manutenção da uma tal ordem: mas
como, em virtude de suas diversas posições dentro dessa
ordem social, têm um ideal de ordem diversa, visto não
serem identicamente interessados nas regras de ordem
particular, eles encaram estas regras sob o ponto de vista
de sua classe, isto é, sob prismas diferentes".

Em linguagem vulgar: — há indivíduos que pensam, por exemplo, que no


regime capitalista a burguesia se interessa pelo regime, e o proletariado pela
queda do mesmo. Absolutamente! No fim Cunow se adianta e explica: visto
que a vida é impossível sem ordem, todos estão interessados em manter o
capitalismo. Mas considerando que os operários têm "um ideal" diferente, —
pois bem, Cunow os autoriza a que critiquem as "regras particulares". Mas se
fizerem mais qualquer coisa, então... adeus, — cairão de chofre entre os
indivíduos que negam pertencer à sociedade. Eis aí o marxismo corrigido e
completado pelo sr. Cunow!

Tomemos ainda o período da evolução da classe operária, quando esta


ainda se achava em «relações patriarcais» com seus patrões, em cada
empresa tomada à parte; a prosperidade da empresa, dada a fragilidade dos
laços sociais em geral, interessa os operários no sucesso do patrão. Os
operários e seu «benfeitor», aquele que os «alimentava», aquele que lhes dava
trabalho, ilustram também a questão do papel da solidariedade relativa dos
interesses em detrimento dos interesses comuns da classe em seu conjunto.

Há aqui alguma analogia com a comunhão dos interesses dos escravos e


dos senhores de escravos no mundo antigo, na medida que havia ainda
«escravos de escravos» (por exemplo, os «vicarii» romanos); os escravos que
possuíam escravos, eram por esse fato considerados possuidores de escravos,
e compreende-se bem que nesse terreno eles tinham uma «comunhão de
interesses» com os senhores de escravos «do primeiro grau», por assim dizer.

Nas atuais cooperativas agrícolas da Europa ocidental, observa-se


frequentemente que os camponeses vão lado a lado com os proprietários de
terras e com seus patrões agrícolas e capitalistas: eles se ligam com aqueles
no terreno da venda de seus produtos agrícolas; eles se opõem à população
urbana, como seus fornecedores, interessados em preços elevados,
exatamente como está nisto interessado o grande proprietário agrícola.

Mas as este exemplo nos conduz, desde já, fora dos limites da primeira
forma de solidariedade relativa das classes, porquanto na realidade ela
constitui pouco a pouco no seio da classe camponesa uma verdadeira
burguesia agrícola, que em nada se distingue da burguesia agrícola hereditária.

Como segunda forma de solidariedade relativa entre classes, na qual essa


solidariedade relativa se pôs em contradição com os interesses permanentes
das classes, pode-se designar antes de tudo os casos onde se formam blocos
de classes contra um inimigo comum. Num determinado grau de evolução,
esse fato é perfeitamente possível. Por exemplo, durante a revolução francesa,
(na sua primeira fase) ela tinha contra o regime feudal, tanto na economia,
como na política, diversas classes: burguesia, pequena-burguesia, proletariado.
Todos esses agrupamentos tinham um interesse comum na derrubada do
feudalismo. Em seguida, naturalmente, o bloco comum se desagregou e a
pequena-burguesia, em seu conjunto, em luta contra a grande burguesia,
passou à contra-revolução, desembaraçou-se ao mesmo tempo, sem dó nem
piedade, de todas as tentativas de movimentos independentes do proletariado,
(execução dos «enragés», etc.). Temos aqui um exemplo de solidariedade de
classes não contradizendo os interesses gerais e duráveis das mesmas.

§ 56. Luta de classes e paz de classes

Os diferentes graus de interesses originam diferentes aspectos da luta.


Sabemos agora que todo o interesse de uma parte de uma determinada classe
não representa por si só um interesse de classe. O interesse dos operários de
uma usina isolada, se contradiz os interesses das outras partes da classe
operária — não é um interesse de classe, mas um interesse de grupo; mas
mesmo se tivermos presente o interesse de um grupo de operários não
contrariando os interesses de outros grupos, mas, contudo, não unindo ainda
esses grupos, não existe ainda aqui, de fato, nem na consciência das massas,
o interesse de classe e por conseguinte, rigorosamente falando, a luta de
classes ainda não existe: quando muito, o que existe são germens de interesse
de classe e germens de luta de classes. O interesse de classe aparece quando
ele opõe uma classe ou outra. A luta de classe aparece quando ela opõe uma
classe contra outra, na ação. Em outros termos: A luta de classes propriamente
dita só se desenvolve num determinado grau de evolução da sociedade de
classes; noutras fases desta evolução, ela pode aparecer também como
gérmen (quando se assiste a uma luta entre parcelas isoladas de classes, uma
luta que não se eleva à altura dos princípios de classes, não envolvendo nem
unindo uma classe como tal), ou como forma oculta «latente» (já que não há
luta aberta, mas sim «resistência passiva», um descontentamento surdo com o
qual, de bom ou mau grado, a classe dominante deve contar).

«Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo,


mestre-artesão e aprendiz, numa palavra, opressores e
oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa
guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra
que termina sempre, ou por uma transformação
revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição
simultânea das duas classes em luta». (Manifesto
Comunista, sublinhado por nós, N. B.).

Vamos dar alguns exemplos para ilustrar o que se acaba de dizer.

Suponhamos que na época da escravatura, num latifúndio qualquer, se


produza uma revolta com saque de bens, depredações, etc.. isto ainda não é a
luta de classes no sentido próprio da palavra: É um assalto isolado de uma
pequena parcela da classe dos escravos; todo o resto da classe está calma,
um punhado se mete numa luta incruenta; mas esse punhado se acha isolado,
ele se compõe de poucos homens: a classe propriamente dita não entra em
jogo; aí não há oposição de classe contra classe. É porém diferente quando os
escravos sublevados sob a direção dum Spartacus fazem uma verdadeira
guerra civil para a libertação dos escravos: neste caso são
levantadas massas de escravos, isto é de fato uma luta de classe.
Suponhamos ainda que assistimos a uma greve de operários de uma usina
visando aumento de salários; todos os outros operários ficam em silencio e
sem ação nas suas colocações, isso ainda não significa mais do que o gérmen
de luta de classes, pois a classe propriamente dita não entra em ação. Mas
tomemos o caso, por exemplo, de uma «onda de greves»: isto já é a luta de
classes, porque aí uma classe se opõe a outra classe. Não se trata dum
interesse de grupo pondo em movimento um grupo, mas dum interesse de
classe, lançando em movimento uma classe: Isso é de fato uma luta de classe,
no sentido próprio da palavra. Tomemos ainda um exemplo: Um
descontentamento ainda vago, turvo, se expande largamente entre os
camponeses servos; ele pode irromper, mas por qualquer motivo ele não se
produz; os escravos têm medo, e eles não empreendem a luta, mas eles
começam a «resmungar». Aí está uma forma «latente» de luta, aludida
no Manifesto Comunista.

Assim, por luta de classe entende-se uma luta em que uma classe se opõe
à ação de outra. Daí deduz-se um axioma de grande importância, que«toda
luta de classe é uma luta política» (Marx). Com efeito, o que se passa quando a
classe oprimida se dirige como força de classe contra a classe opressora? Isto
significa que a classe oprimida procura minar as bases da «ordem existente».
E como a organização do poder da «ordem existente» é a organização de
Estado da classe dirigente, compreende-se perfeitamente que toda ação
da classe oprimida é objetivamente dirigida contra a máquina estatal da classe
dirigente, mesmo que aqueles que tomam parte na luta da classe oprimida
disto não tenham consciência no princípio.

Toda ação deste gênero tem por consequência inevitável um


caráter político.

Consideremos por exemplo os sindicalistas revolucionários, ou os


«Operários Industriais do Mundo» (Industrial Workers of the World — abreviado
I. W. W.) da América. Eles nem querem ouvir falar em luta política.

É que por luta política, como bons oportunistas ingênuos que são, eles só
entendem a luta parlamentar. Suponhamos, portanto, que os I. W. W.
organizem, não uma greve geral, mas apenas uma greve de foguistas, mineiros
e metalúrgicos. Quem não compreenderia toda a enorme
importânciapolítica que tomaria inevitavelmente esta greve? Por que? Porque
neste caso os quadros do proletariado seriam atirados à luta. Porque uma
semelhante greve seria perigosa para a burguesia como classe. Porque ela
ameaçaria fazer uma brecha na máquina da burguesia organizada. Porque
consequentemente ela seria objetivamente dirigida contra o poder de Estado
da burguesia.

No Manifesto Comunista, Marx descreve claramente, tomando o exemplo


do proletariado, essa transformação de episódios isolados da luta em luta de
classes. No começo,

''às vezes os operários triunfam; mas esse triunfo é


efêmero. O verdadeiro resultado da suas lutas, não é
tanto o sucesso imediato, mas antes a solidariedade
crescente dos trabalhadores. Essa solidariedade é
facilitada pelo aumento dos meios de comunicação, que
permite aos operários de localidades diferentes se porem
em contacto. As vezes basta esse contacto para
transformar as numerosas lutas locais, que em toda parte
revelam o mesmo caráter, numa luta nacional, numa luta
de classes. Mas toda luta de classes é uma luta
política".

Nas Cartas a Sorge (em alemão, pag. 42) Marx define da seguinte maneira
esta transformação dos conflitos separados em luta de classes, isto é, em luta
política. (A carta é escrita em alemão misturado com palavras em inglês):

"O movimento político da classe obreira tem,


naturalmente, por objetivo a conquista do poder político; e
para isso, evidentemente, uma organização preliminar da
classe obreira desenvolvida até a um certo ponto e tendo
nascido dela própria na luta econômica, é indispensável.
Mas do outro lado, todo movimento no qual a classe
operária se atira, como classe contra as classes
dominantes, e visa constrange-las por uma pressão
exterior, é um movimento político".

O sr. Cunow, que fez essa citação (op. cit., t. II, pag. 59), assim o explica:

"'... A um determinado grau de evolução do processo


econômico em seu conjunto, surgem classes sociais
distintas, que em virtude de sua participação neste
processo têm seus interesses econômicos particulares e
procuram lhes dar um caráter político".
Este comentário não é absolutamente exato, porque Cunow dissimula o
que é fundamental, o que Marx faz sobressair em primeiro plano: a oposição de
princípios de classe para classe, onde toda luta é uma parte do processo da
luta geral para o poder e para o domínio na sociedade.

O professor Hans Delbruck, no seu artigo excepcionalmente insolente: A


concepção da história em Marx (Preussische Jahr-buecher, vol. 182, caderno
2, pp. 157 e 399) "critica" a teoria da luta de classes, e assim fazendo revela
uma ignorância verdadeiramente surpreendente dos problemas do marxismo.
Na página 165 ele afirma que Marx não distinguia classe de condição; à página
166 ele afirma que em Roma antiga não houve a "desaparição de duas classes
em luta" desde que a queda do Império Romano é um fato incontestável: havia
no princípio guerras civis e em seguida nem os senhores vencedores, ou os
escravos vencidos, se sentem capazes de fazer a sociedade progredir. Na
página 167, ele diz que jamais houve feudalismo na Inglaterra! Na página 169
ele "refuta" Marx, mostrando que os camponeses caminham às vezes lado a
lado com os junkers (V. sobre este ponto o que dissemos mais atrás) e assim
por diante. Mas o cumulo de suas "objeções" é este: Delbruck cita um texto
descoberto pelo célebre egiptólogo Ehrmann, que fala duma revolução no Egito
antigo, onde os escravos teriam galgado o poder. O texto tem algo de curioso,
que parece até ter sido escrito por um Merejkovsky ou outro grande senhor
branco enfurecido contra os bolcheviques. Aí se pintam os horrores os mais
tremendos. E o sr. Delbruck exclama num tom terrível: Eis aí vossa luta de
classes! Mas o respeitável professor alemão não se lembra que ele cai em
contradição quando acrescenta (pag. 171) que semelhante estado de coisas
durou "trezentos anos". Mesmo um asno compreenderia que viver trezentos
anos sem produção e numa anarquia absoluta é impossível. De sorte que a
coisa deixa de ser tão terrível, e que a argumentação de Delbruck, apoiando-se
no caso sobre o sentimento dum "burguês apavorado", é simplesmente
ridícula.

Encontram-se também impagáveis objeções sobre a teoria de Marx em J.


Delevsky (Os antagonismos sociais e a luta de classes na história, em russo,
São Petersburgo, 1910). Eis sua objeção principal: Ele cita a seguinte
passagem de Engels (prefacio do 18 Brumário, de Marx):

"Ninguém descobriu antes de Marx a grande lei do


movimento histórico, isto é, que toda luta histórica, quer se
realize no domínio político, religioso, filosófico, ou
qualquer outro domínio ideológico, não é senão a
expressão mais ou menos clara da luta de classes
sociais".
Citando este trecho, o sr. Delevsky concorda com Sombart, propondo-se a
completar o princípio da luta de classes pelo "princípio da luta das nações". A
réplica de Plekanof, mostrando que nada havia a completar aí porque a luta de
classes é uma noção do domínio dos processos internosda sociedade e não
de vínculos entre sociedades, não parece satisfazer o sr. Delevsky.

"De duas uma — diz ele — ou bem existem na base da


história dois princípios ou então não há mais do que um...
se há dois princípios, o da luta de classes e o da luta das
nações, então qual é a lei que rege o segundo princípio...?
E se... não há senão o princípio da luta de classes, então
qual é o sentido da distinção entre a luta no interior da
sociedade, e a luta entre as sociedades...? Ou serão
talvez as sociedades, as nações, os Estados, também
classes?" (pag. 92).

Essa saída é "sui generis". Examinemos, portanto, a questão em si.


Poderá haver duas causas fundamentais: pode-se tratar ou bem de uma
única sociedade (por exemplo, a atual economia mundial); retalhada em
organizações de Estado, de frações ''nacionais'' da burguesia mundial; ou
então de sociedades inteiramente distintas, quase sem ligações entre si (por
exemplo, quando se trava uma luta entre dois povos diferentes, dos quais um,
suponhamos, seja de outra parte do mundo, coisa que certamente já se deu
mais de uma vez na história: assim por exemplo, a conquista do México pelos
espanhóis). No primeiro caso a luta entre burguesias é um modo particular
da concorrência capitalista. Mas só o sr. Delevsky pode ter a idéia bizarra, de
que a teoria da luta de classes exclui, por exemplo, a concorrência capitalista.
Isto é uma forma de antagonismo no interior de classes, que, entretanto, não
podem em caso algum mudar os fundamentos de uma estrutura de produção
conhecida. Se a teoria de Marxreconhece a possibilidade duma solidariedade
relativa entre classes, ela também reconhece a possibilidade dum antagonismo
relativo no interior das classes. Mas haverá uma objeção à teoria da luta de
classes? Quanto ao segundo caso, temos aí uma questão de método. A teoria
da evolução da sociedade é uma teoria da evolução duma sociedade abstrata,
e está inteiramente justificado que ela não tenha, rigorosamente falando,
relação com as sociedades concretas. Sua análise tem por alvo: Que é a
sociedade em geral, e quais são as leis de sua evolução? Se nós passamos
destas questões a outras mais concretas, e entre outras, aquela das relações
entre as diversas sociedades, encontramos certamente leis particulares, mas
que também não estarão em contradição com a teoria marxista; e isso não
porque as sociedades sejam diversas classes (esta suposição do sr. Delevsky
é simplesmente absurda), mas porque a "expansão" em si tem causas
econômicas; porque, por exemplo, a conquista viria inevitavelmente a favor do
reagrupamento das forças de classe; porque, em semelhantes casos, é sempre
o modo de produção mais levado que obtém a vitória, etc.. Mas tudo isso não
abala de forma alguma a teoria da luta de classes.

Portanto, vimos acima que as classes oprimidas não levam sempre a uma
luta de classes no sentido próprio da palavra. Mas isso, como vimos mais
adiante, não implica absolutamente que em períodos de relativa calma «tudo
esteja calmo, apaziguado, sob a vigilância divina». Isso significa apenas que a
luta de classes lá está, em seu estado latente, ou no estado embrionário: é daí
que se desenvolve a luta de classes no sentido próprio da palavra. Precisamos
então nos recordar da dialética que considera tudo em movimento, em vias de
acontecer; momentaneamente pode não haver luta de classes, mas «ela se
prepara». É assim que as coisas se passam do lado das classes oprimidas. E
do lado das classes dominantes? Estasdirigem constantemente a luta de
classes. Pois o caráter aparente da organização de Estado mostra que a classe
dominante se constituiu como uma classe para si mesma, quanto ao poder
político. Isto faz supor uma plena consciência dos interesses fundamentais da
classe que guia a luta contra as classes opostas aos seus interesses (contra a
sua ameaça direta e contra a sua ameaça possível) e isto por todos os meios
que lhe fornece a máquina do Estado.

§ 57. Luta de classes e poder político

A questão do Estado, como superestrutura determinada pela base


econômica, já foi estudada mais atrás (V. § 38). É no momento indispensável
abordá-lo sob outro prisma, examiná-lo sob um ponto de vista especial, sob o
ponto de vista da luta de classes. Antes de tudo, é preciso frisar-se novamente,
de modo mais categórico, que o organismo de Estado é um organismo
exclusivamente de classe, «uma classe constituída em poder político», «a
violência social duma classe concentrada e organizada» (Marx). A classe
oprimida, portadora de uma nova forma de produção, se transforma, como já
vimos, no desenvolvimento da luta de classe, numa classe de per si; na luta
igualmente ela cria suas organizações de combate, que se tornam pouco a
pouco organizações que arrastam atrás de si toda a classe em questão.
Quando se produz uma revolução, uma guerra civil, etc.., estas organizações
se atiram contra o inimigo e aparecem como células embrionárias de
um novo aparelho de Estado sob forma direta ou disfarçada. Tomemos por
exemplo a grande revolução francesa.

«Os clubes populares, ou jacobinos, foram as antigas


sociedades dos Amigos da Constituição, outrora
burgueses, depois democráticos, montagnards, sans-
culottes, fanáticos, partidários da igualdade e da união...
Foram fundados para fins educativos populares, antes
para a propaganda do que para a ação; mas as
circunstâncias os forçaram a agir no domínio político, e,
(quando a pequena-burguesia subiu ao poder, N. B.) eles
se imiscuíram diretamente na administração... Pelo
decreto de 12 de frimaire, os jacobinos tornaram-se em
toda França instrumentos da escolha e da nomeação dos
funcionários» (Aulard: História política da Revolução
Francesa, pags. 386 e 387).

«Finalmente... foram as sociedades jacobinas que


mantiveram... a unidade e salvaram a pátria» (ibidem).

Durante a revolução inglesa o «Conselho do Exercito», corpo


revolucionário composto de oficiais, pôs seus homens no «Conselho de
Estado». Durante a revolução russa, os órgãos de combate dos obreiros e dos
soldados — os soviets — e o partido revolucionário extremista — formaram os
organismos de base do novo Estado.

Contra a concepção do Estado como Estado de classe e do seu poder


como poder político, opõem-se duas objeções principais:

A primeira diz: O traço predominante dum Estado é ser uma administração


centralizada. É por isso — dizem por exemplo, os anarquistas, — que toda
administração centralizada significa a existência dum poder de Estado. Por
conseguinte, na sociedade comunista avançada, por exemplo, onde a
economia estará de acordo com um plano, ainda aí haverá um Estado. Este
raciocínio repousa inteiramente sobre um ingênuo erro burguês: a ciência
burguesa vê, em lugar de relações sociais, relações materiais ou técnicas. Mas
é claro que o «espírito» do Estado não está nas coisas, mas sim nas
relações sociais; não na administração centralizada, como tal, mas na periferia
das classes da administração centralizada. Exatamente como o capital não é
uma coisa (por exemplo, uma máquina), e sim uma relação social entre o
empregado e seu patrão, relação expressa nas coisas, da mesma maneira a
centralização não é absolutamente na essência uma centralização
de Estado, ela se torna «do Estado», desde que ela exprime relações de
classes.

Já examinamos, em parte a segunda objeção contra a teoria «de classe»


do Estado, que é ainda mais tola e ridícula.Ela parte disso, de que o Estado
preenche uma série de funções de utilidade geral (por exemplo, o Estado
capitalista contemporâneo constrói suas estações elétricas, hospitais, vias
férreas, etc.). Este argumento reúne de uma maneira chocante o social-
democrata Cunow, o socialista-revolucionário da direita Delevsky, o
conservador Delbruck, e até mesmo.... o imperador babilônico Hamurabi! Mas
este respeitável quarteto não se engana menos redondamente, porque a
existência de funções de utilidade geral do Estado não modifica em nada o
caráter puramente de classe do poder político. A classe dominante, para poder
explorar as massas, aumentar o campo desta exploração, favorecer sua
marcha «normal», deve recorrer a empresas de «utilidade geral» de diferentes
espécies. Por exemplo, sem o desenvolvimento da rede das vias férreas, o
capitalismo não pode desenvolver-se; sem escolas profissionais, não terá a
força obreira eficiente; sem institutos científicos, não haverá progresso na
técnica capitalista, e assim por diante. Mas em todas as medidas semelhantes,
o poder político dos capitalistas raciocina e age no interesse de sua classe. Já
apresentamos o exemplo do trust. O trust também guia a produção, sem a qual
a sociedade não poderia viver. Mas ele a guia partindo de um cálculo de
classe. Tomemos qualquer antigo Estado de propriedade fundiária despótica,
do gênero do Estado dos faraós do Egito. Enormes trabalhos de regularização
do movimento das águas eram socialmente necessários. Mas o Estado
faraônico os protegia e os empreendia, não para nutrir os esfomeados ou por
se incomodar com o bem de todos, mas porque eles eram o prelúdio
indispensável do processo de produção, que era ao mesmo tempo
um processo de exploração. O cálculo de classe — tal era, nesse caso, o
objetivo do Estado. Por conseguinte, esta ordem de instituições do Estado não
é de maneira alguma uma prova da falsidade do ponto de vista de classe.

Uma outra ordem de medidas de utilidade geral é provocada pela ofensiva


das «classes inferiores». Tal é, por exemplo, a legislação obreira dos países
capitalistas. Partindo desta constatação, numerosos sábios (V. por exemplo
Takhtaref) consideram que o Estado não é um organismo puramente de classe,
pois ele é fundado sobre um compromisso. Basta refletir sobre isso por um
instante, para descobrir-se o fundo da questão. Será, por exemplo, que o
capitalista cessa de ser um «capitalista, na acepção da palavra», desde que,
sob a ameaça de uma greve, considere mais vantajoso, para si mesmo, ceder?
Evidentemente não. O mesmo sucede quanto ao Estado. Bem entendido, o
Estado de classe pode fazer concessões às outras classes, do mesmo modo
que no nosso exemplo o patrão faz concessões aos operários. Mas não se
deduz daí absolutamente que cesse por isso de ser puramente de classe para
se tornar um organismo de bloco das classes, isto é, um organismo
efetivamente de utilidade geral.
Isso naturalmente não é o sr. Cunow que o compreende. Porém, dá prazer
ver como o cínico professor Hans Delbruck, já citado, mete a ridículo esses
muito doutos falsificadores do marxismo:

"A diferença entre nós outros, burgueses de espírito social


e político, e vós. é apenas de um degrau. Mais alguns
passos no caminho que trilhais, amáveis senhores, e a
neblina marxista se dissipará" (loc. cit., pag. 172).

§ 58. Classe, partido, chefes

Quando se fala de uma classe, entende-se um grupo de pessoas reunidas


por uma circunstância comum na produção, por conseguinte, por uma
circunstância comum na repartição e partindo de interesses comuns (interesses
de classe). Entretanto, seria uma ingenuidade supor que cada classe constitui
um todo perfeitamente homogêneo, onde todos os partidos são iguais, onde
João é semelhante a Pedro.

Para esclarecer com um exemplo, tomemos o trabalhador contemporâneo.


Não se trata aqui unicamente de desigualdade de espírito ou de capacidade.
Mesmo a situação, a «maneira de viver» das diversas partes da classe obreira,
não é idêntica. Isto provém: Primeiro, porque não há perfeita homogeneidade
das unidades econômicas; segundo, porque a classe trabalhadora não cai do
céu já feita, mas forma-se constantemente entre os camponeses, artesãos,
pequena-burguesia urbana, etc., isto é, entre os demais grupos da sociedade
capitalista.

Não está claro, com efeito, que o operário de uma grande usina
magnificamente instalada e o operário de uma pequena oficina sejam duas
cousas diferentes? Aqui a causa da heterogeneidade é a heterogeneidade das
empresas e de todo o seu regime de trabalho. Uma outra causa é o tempo da
permanência na classe proletária: Um camponês que acaba de entrar numa
usina é diferente dum operário que ali trabalha desde a sua infância.

A diferença do «modo de vida» se reflete na consciência. O proletariado


não é mais homogêneo em sua consciência que na sua posição social. Ele
é mais ou menos homogêneo comparado às outras classes. Mas se
examinarmos esses diversos partidos, obtêm-se o quadro que acabamos de
esboçar.

Assim, quanto à sua consciência de classe, isto é, em relação aos seus


interesses mais duráveis, gerais, não comparativos, não de grupos, não
grosseiramente materiais, nem pessoais, e sim os seus interesses gerais de
classe, a classe operária é dividida numa série de grupos e subgrupos, como
se fosse uma única corrente, composta de uma série de elos, cuja solidez seja
variável.

É esta heterogeneidade de classe que torna um partido indispensável.

Com efeito, suponhamos por um instante que a classe operária seja


perfeita e absolutamente homogênea. Ela poderia então a qualquer tempo agir
como massa compacta. Para a direção de todas as suas ações, poder-se-ia
escolher os homens ou os grupos por turnos: uma organização continua de
direção seria supérflua, essa necessidade não se faria sentir.

A realidade é bem diferente. A luta da classe operária é inevitável. Uma


direção é indispensável para esta luta. Ela é tanto mais indispensável, quanto
mais o adversário é forte, astuto, e a luta contra o mesmo é uma luta incruenta.
Quem deve dirigir toda a classe? Qual de suas partes? Está claro: a mais
avançada, a mais educada e a mais unida.

É esta parte que é o partido.

O partido não é uma classe, mas uma parte da classe, talvez uma parte
muito restrita, mas o partido é a cabeça da classe. Eis porque é o cumulo
do absurdo opor o partido à classe. O partido da classe operária é o que
exprime do melhor modo os seus interesses de classe. Pode-
sedistinguir classe e partido do mesmo modo que se distingue a cabeça do
resto do corpo. É impossível opô-los, da mesma forma que é impossível
decapitar um homem sob o pretexto de lhe prolongar a vida.

Do que depende, nestas condições, o sucesso da luta? Das relações


normais entre as diferentes partes da classe operária, e antes de tudo, das
relações normais entre o partido e os sem-partido. É preciso, de um lado, dirigir
e comandar; doutro, educar e convencer. Sem educação e sem convicção, não
é possível dirigir. De um lado é preciso que o partido seja compacto e
organizado à parte, como fazendo parte da classe operária. Doutro, ele deve
unir-se mais e mais estreitamente às massas sem partido, atraindo-as cada vez
mais para dentro de sua organização. O crescimento moral e intelectual duma
classe encontra em suma a sua expressão no crescimento do partido desta
classe. E inversamente, o declínio duma classe se exprime no declínio de seu
partido ou na diminuição de sua influência sobre os sem partido.

Acabamos de ver que a heterogeneidade duma classe tem por resultado a


necessidade dum partido desta classe. Mas as condições de vida capitalista e
o baixo nível intelectual não somente da classe operária, mas também de
outras classes, criam uma situação tal que à vanguarda do proletariado, isto é,
ao seu próprio partido, também falta homogeneidade. Ele é mais ou menos
homogêneo se o compararmos às outras partes da classe operária, mas se
tomarmos as diferentes partes desta vanguarda, isto é, do partido em si
mesmo, põe-se facilmente a descoberto esta heterogeneidade interna.

Retomamos aqui, ponto por ponto, o mesmo raciocínio que há pouco para
a classe.

Imaginemos um caso contrário à realidade, a saber, uma homogeneidade


perfeita do partido, sob todos os pontos de vista: quanto à consciência de
classe, quanto à experiência, quanto à arte de dirigir, etc.. Não haveria então
necessidade de chefes. As funções de «chefe» poderiam ser assumidas
sucessivamente por cada um, sem mal para a causa.

Mas, de fato, esta plena homogeneidade não existe, mesmo


na vanguarda. E aí está a causa fundamental da absoluta necessidade de
agrupamentos mais ou menos estáveis de pessoas dirigentes, designadas pelo
nome de «chefes», «guias», «dirigentes», etc..

Os bons chefes são chefes porque exprimem da melhor forma as justas


tendências do partido. E do mesmo modo que é absurdo opor o partido à
classe, será absurdo opor o partido aos seus chefes.

É contudo isto que temos feito, quando opunhamos a classe operária aos
partidos social-democratas ou às massas organizadas de operários a seus
chefes. Mas nós o fizemos e o fazemos para destruir a social-democracia,
para destruir a influência da burguesia, que toma por seus intermediários os
chefes social-traidores. Mas seria estranho transportar tais métodos de
destruição das organizações inimigas para nós mesmos, e apresentar isto
como expressão do nosso espírito revolucionário por excelência.

Descobre-se uma situação análoga nas outras classes. Tomemos por


exemplo a Inglaterra contemporânea. A burguesia é aí a classe dominante,
mas ela governa pelo partido de Lloyd George ou de Stanley Baldwin, e o
partido de Lloyd George ou de Stanley Baldwin governa por intermédio dos
seus chefes.

Isto mostra bem, entre outras coisas, a inépcia das lamentações proferidas
contra a ditadura do partido bolchevista na Rússia, ditadura que os inimigos da
revolução opõem à ditadura da classe operária. Depois do que acabamos de
dizer, compreende-se bem que uma classe dirige por intermédio da sua
cabeça, isto é, do partido. E é somente desta forma que pode dirigir. Portanto,
suprimindo-se a cabeça, isto é, o partido, atinge-se com o mesmo golpe a
própria classe, como classe para si, fazendo dela, invés duma força social
consciente e independente, um simples fator de produção, nada mais.

Não é este naturalmente o modo de ver do sr. Heinrich Cunow. Ele


protesta contra o caráter de classe dos partidos em geral. Eis sua
argumentação (op. cit., t. II, p. 68):

"Um partido não pergunta a quem quer que seja que


queira aderir a ele: "Pertences a esta ou aquela classe?"
O partido social-democrata também não faz esta
indagação. Pode aderir quem quer que reconheça os seus
princípios fundamentais e suas reivindicações,
seu programa. E este programa contém, não só
reivindicações econômicas determinadas, provocadas
pelo interesse, mas também, na mesma forma que o
programa de outros partidos, opiniões determinadas,
políticas e filosóficas, exteriores à esfera dos
interesses materiais. (A última frase grifada por nós, N.
B.). Certamente a base da maior parte dos partidos é um
agrupamento determinado de classe; mas pela sua
estrutura, todo partido é ao mesmo tempo uma formação
ideológica, o representante dum complexo particular
de pensamentos políticos. E muitas pessoas entram
num partido não devido aos seus interesses particulares
nem da classe que representam, mas porque são atraídas
por este complexo ideológico".

Estes argumentos do principal teórico social-democrata atual são


extremamente instrutivos. O sr. Cunow, sem suspeitar de nada, opõe os
pontos de vista políticos e filosóficos do partido às suas reivindicações
econômicas. Que é isto, cidadão Cunow? Que resta do vosso marxismo? O
programa é o mais alto grau da tomada de consciência de todos os
"complexos ideológicos". Os "pontos de vista políticos e filosóficos" não estão
suspensos nas nuvens, nascem das contradições da existência destas classes.
Não somente não contradizem, mas pelo contrário, exprimem estas condições
de existência, e tanto quanto se trata de reivindicações de programa, está claro
que as partes filosóficas e políticas servem de invólucro à sua parte econômica.

A mesma coisa pode-se estudar no partido do sr. Cunow, a social-


democracia alemã. Como ela incorpora um número crescente de não
operários, e se separa da classe operária, apoiando-se, dentro da classe
operária, sobretudo na sua aristocracia qualificada, o complexo ideológico e
político do seu "programa" também se transforma. Nas suas reivindicações,
tornou-se extremamente moderada: e eis a razão por que, ideologicamente, a
social-democracia alemã faz um marxismo deslavado, castrado, um
"marxismo" do sr. Cunow; eis porque ela escolhe para comentador do seu
programa o sr. Bernstein, há longo tempo traidor do marxismo, e para filósofo
oficial o sr. Vorlaender, idealista kantiano.

§ 59. As classes como instrumento de transformação social

Se se encara a sociedade como um sistema que evolui objetivamente, vê-


se que a passagem dum sistema de classe (duma «formação social» de
classe) a outro, se processa através de uma luta violenta de classes. As
classes são, na evolução objetiva do processo das transformações sociais, o
aparelho vivo e fundamental de transmissão, por meio do qual se produz toda a
transformação do conjunto das relações vitais da sociedade. A estrutura da
sociedade se transforma pelos homens e não ao lado deles e sem eles; as
relações de produção são um produto da atividade e da luta humana, da
mesma forma que o fio ou o tecido (Marx). Mas se no meio da infinita
quantidade de vontades individuais indo para as direções as mais diversas, e
dando afinal uma certa resultante social, tentamos isolar as direções
fundamentais, obteremos alguns feixes homogêneos de vontades: estes serão
as vontades de classe. A sua oposição é particularmente sensível nas
revoluções, isto é, quando a sociedade toda se abala na passagem duma
forma de classe para outra.

Mas, doutro lado, sob as leis da evolução da vontade de classe, no


emaranhado de idéias diferentes, no choque de vontades de classe opostas e
diversas, escondem-se as leis mais profundas da evolução objetiva, que, em
cada fase, determina os fenômenos de ordem voluntária.

Doutro lado, sabemos que os efeitos da vontade são definidos pelas


condições exteriores, isto é, que as mudanças de condições susceptíveis de
serem produzidas pela influência em torno da vontade dos homens, são
limitadas pelo estado precedente destas condições. Assim, a luta de classes e
a vontade de classe constituem o aparelho de transmissão que funciona na
passagem duma estrutura social para outra.

Nesta passagem, a nova classe deve agir como organizadora e


portadora duma nova forma de vida social e econômica. Uma classe que não é
portadora duma nova forma de produção, não pode «refundir» a sociedade.
Pelo contrário, a força de classe que encarna as relações de produção em
gestação, e mais progressivas, constitui a alavanca viva da transformação
social. Assim a burguesia, portadora de novas relações de produção, duma
nova estrutura econômica, transportou, com as suas revoluções, toda a
sociedade das antigas vias feudais para as novas vias da evolução burguesa;
assim o proletariado, portador e organizador do modo socialista de produção,
sob a sua fórmula primitiva de classe, transporta a sociedade, que
objetivamente não pode viver sobre sua antiga base, das vias burguesas para
as vias proletárias.

§ 60. A sociedade sem classes do futuro

Tocamos aqui numa questão que tem sido pouco esclarecida pela
literatura marxista. Eis no que ela consiste. Vimos mais acima que a classe
dirige por intermédio do partido, o partido por intermédio dos chefes; que classe
e partido têm, por assim dizer, o seu quadro de comando. Este quadro é
tecnicamente indispensável, porque, como vimos, ele nasce da
heterogeneidade da classe e da não-homogeneidade intelectual dos membros
do partido. Noutras palavras, cada classe tem seus organizadores. Se se
encara por este lado a evolução da sociedade, chega-se naturalmente a propor
esta questão: é possível a sociedade sem classes de que falam os marxistas?

Com efeito, sabemos que as classes, elas mesmas, derivam


organicamente, como Engels frisou, da divisão do trabalho, da necessidade de
funções organizadoras para a evolução da sociedade. Ora, está claro que a
sociedade futura não precisará menos deste trabalho organizador. Pode-se, é
verdade, responder a isto que na sociedade futura não haverá propriedade
privada nem formação da sociedade privada.

Ora, estas relações de propriedade privada são precisamente o que


constitui essencialmente uma classe.

Mas existe contra isto uma contra-argumentação. Assim, por exemplo, o


professor Robert Michela, no seu interessantíssimo trabalho Zur Sociologie des
Parteiwesen in der modernen Demokratie (Sociologia dos partidos na
democracia contemporânea), Leipzig, edição do Dr. Werkner Klinhkardt, 1910
(em alemão) escreve (p. 370):

«Existem ainda sobre este ponto dúvidas muito reais, cujo


exame atento leva à integral negação da possibilidade
dum Estado (mais exatamente: duma sociedade, N. B.)
sem classes. A gestão dum enorme capital (isto é, meios
de produção, N. B.)... dá aos administradores um poder
pelo menos igual ao que lhes daria a posse dum capital
privado, a propriedade privada».
Desta forma, toda evolução social se apresenta no máximo como uma
troca, de grupos de chefes (V. Vilfredo Pareto com a sua teoria daCirculação
das elites).

Importa examinar esta questão. Pois se esta teoria é certa, a dedução que
R. Michels tira, a saber, que os socialistas podem vencer, mas não
osocialismo, também o é.

Tornemos antes um exemplo. Quando a burguesia domina, ela domina,


sabemo-lo, não simultaneamente por todos os membros de sua classe, mas
por seus chefes. No entanto sabe-se e vê-se bem que isto não produz nenhum
desmembramento no interior da burguesia. Os senhores nobres reinavam na
Rússia por meio de seus funcionários superiores, que representavam todo um
quadro, toda uma camada social. E no entanto, esta camada não se opunha,
como classe, aos demais senhores. Por que? Por esta razão muito simples:
porque a situação vital destes últimos não diferia em nada da dos primeiros; o
nível intelectual era também, em linhas gerais, o mesmo, e é sempre na classe
dos senhores que se recrutavam aqueles que «dirigiam» o aparelho do Estado.

Aí está porque Engels tinha perfeitamente razão quando escrevia que as


classes são, até um certo momento, a consequência do insuficiente
desenvolvimento das forças produtivas: é preciso administrar, e «não existem
sempre meios suficientes para remunerar convenientemente a administração».
Daí, paralelamente ao desenvolvimento das funções organizadoras,
socialmente indispensáveis, o crescimento simultâneo da propriedade privada.
Mas a sociedade comunista é uma sociedade onde as forças produtivas são
muito desenvolvidas e se desenvolvem muito depressa. Por consequência, não
existe nela base econômica para a criação duma classe dominante particular.
Porquanto — mesmo se supomos um poder estável de administradores,
segundo Michels — será um poder de especialistas sobre máquinas, e não
sobre homens. Com efeito, como poderiam eles realizar este domínio sobre
homens? Não teriam nenhum meio para isto. Michels admite um ponto
fundamental e decisivo: toda posição dominante e administrativa tem sido até
hoje pretexto para a exploração econômica. Mas um poder fechado, estável,
dum grupo de homens, não seria possível nem mesmo sobre as máquinas.
Porquanto a base das bases desaparecerá para a formação de grupos
monopolizadores deste gênero, ou seja o que Michels classifica na eterna
categoria de «incompetência da massa». A «incompetência da massa» não é
absolutamente atributo obrigatório de toda vida em comum: ela é precisamente,
ela também, um produto de condições econômicas e técnicas, que agem por
intermédio da situação intelectual geral e das condições de educação. A
sociedade futura verá uma grandiosa superprodução de organizadores, de
forma que não haverá mais estabilidade de grupos dirigentes.

A questão é muito mais árdua no período de transição do capitalismo ao


socialismo, isto é, para o período da ditadura proletária. A classe operária
vence no momento em que não é — e não pode ser — uma massa
homogênea. Ela vence em condições de declínio das forças produtivas e de
insegurança das massas. Esta é a razão por que uma tendência para a
«degenerescência», isto é, para a separação duma camada dirigente, como
gérmen de classe, aparecerá fatalmente. Mas doutro lado, ela será paralisada
por duas tendências opostas: o crescimento das forças produtivas e a
supressão do monopólio de instrução. A reprodução em grande escala de
técnicos e de organizadores em geral, saídos do seio da classe operária,
cortará pela raiz qualquer nova classe eventual. O resultado da luta dependerá
somente de saber quais as tendências que se mostrarão mais fortes.

Assim a classe operária, tendo à sua disposição um instrumento tão belo


como a teoria marxista, deve lembrar-se que é por suas mãos que se constitui
e que se estabelecerá definitivamente uma ordem de relações sociais tal que
se diferenciará em princípio de todas as formações sociais do passado: da
horda comunista primitiva, por isto que será uma sociedade de homens de alta
cultura, conscientes deles mesmos e dos outros; das formas fundadas sobre
classes, por isto que, pela primeira vez, a existência do homem será
assegurada não somente para alguns grupos isolados, mas para toda a massa
dos homens, massa que cessará de ser massa e se tornará sociedade humana
única, harmonicamente construída.
Suplemento: Breves notas sobre o problema da Teoria do Materialismo
Histórico

No meu livro «Teoria do Materialismo Histórico», procurei não somente


expor de novo o que tinha sido dito antes, mas ainda dar-lhe outras fórmulas e,
além disso, precisar e desenvolver os princípios do materialismo histórico, fazer
avançar o estudo dos problemas que ele comporta. Como é
sabido, Engels dizia, pouco antes de sua morte, que não se tinha dado senão
os primeiros passos no domínio do materialismo histórico. Assim, a tarefa
imediata que incumbia aos discípulos dos grandes mestres, lhe parecia ser a
de trabalhar no desenvolvimento desses problemas teóricos. Porém, tal é a
força do conservantismo inerente ao pensamento humano, que muitos são
organicamente incapazes de compreender esta tarefa (1). Entretanto, o estudo e
a solução destes problemas estão na ordem do dia. A literatura dos nossos
adversários tem aumentado formidavelmente. Nós devemos proceder a um
contra-ataque, e isto sobre a base ampliada de nossas próprias teses
teóricas. Nestas «breves notas» eu tentarei justificar as «inovações» que se
encontram em minha obra e que, afirmo, estão inteiramente conformes com «a
interpretação a mais ortodoxa, a mais materialista e a mais revolucionária
de Marx»(2)

1.º O «Mecânico» e o «Orgânico»

Até os últimos tempos opunham-se estas noções em nosso meio. No


domínio das ciências sociológicas, nós, marxistas, protestávamos contra «a
explicação mecânica», preferindo falar de laços «orgânicos», etc., se bem que
fossemos completamente estranhos aos preconceitos do que se chama a
escola orgânica, em sociologia.

Depois, dois fatores decisivos apareceram: em primeiro lugar a falência


das concepções sobre a estrutura da matéria; em seguida, o desenvolvimento
extraordinário do idealismo na ciência burguesa oficial. A revolução na teoria
sobre a estrutura da matéria mudou completamente a concepção do átomo
como unidade absolutamente isolada. Ora, é precisamente esta concepção do
átomo que se trazia para o indivíduo («átomo» e «indivíduo» se traduzem em
russo por uma única e mesma palavra: «indivisível»). As «Robinsonadas» nas
ciências sociológicas correspondiam exatamente aos átomos da antiga
mecânica. Entretanto, no domínio das ciências sociológicas, tratava-se
precisamente de conseguir «Robinsonadas». Era preciso enérgica e
resolutamente pôr em primeiro plano o ponto de vista social, o que havia sido
feito de maneira genial porMarx, opondo-se às teorias dos individualistas
burgueses, compreendendo entre eles os brilhantes «clássicos» da economia
política (Smith eRicardo). Os protestos contra o elemento «mecânico» no
domínio das ciências sociológicas eram então justificados? Evidentemente que
sim.

Mas é preciso não se limitar a lembrar termos, sem compreender a


essência da questão. Agora, o que é justo dialeticamente se transforma em seu
contrário. Pois a concepção atual da matéria transtornou as antigas idéias. O
átomo isolado e desprovido de qualidade morreu. O elemento do vinculo, da
interdependência, da eclosão de qualidades novas, etc., foi restabelecido em
todos os seus direitos. Opor o «mecânico» ao «orgânico» é, deste ponto de
vista, uma falta de senso.

Por outro lado, a extensão que o idealismo tomou na ciência e na filosofia


burguesa conduziu ao misticismo «orgânico. A concepção de «vida» tornou-se
mística (Bergson, Drisch e seus compadres). Que se segue daí? Que é
preciso, na nossa ideologia, renunciar à antiga oposição entre o mecânico e o
orgânico, se quisermos seriamente lutar pela concepção materialista do mundo
em geral e pela sociologia materialista em particular.

2.º Dialética e teoria do equilíbrio

Marx, sabe-se, despiu à dialética de seu invólucro místico, expondo a tese


segundo a qual a dialética, como categoria do pensamento, é o reflexo da
dialética no processo do pensar real, material, pois o «ideal» não é senão o
«material» traduzido no cérebro humano numa língua especifica. Entretanto,
tenta-se ainda, e de mais em mais frequentemente, destacar o processo
pensado do processo material, transformar a dialética em uma construção
puramente ideológica, em um método ao qual não corresponde nenhuma
realidade. A este respeito, o «austro-marxismo», com o seu teórico Max Adler,
é típico. Como combater-se este desvio manifestamente antimaterialista do
marxismo? É claro que é preciso pôr em evidencia a raiz material da
dialética, isto é, encontrar nas formas da matéria em movimento aquilo ao que
«corresponde» a fórmula dialética de Hegel. O choque incessante das forças, a
desagregação, o desenvolvimento dos sistemas, a formação de sistemas
novos e o seu próprio movimento, em outros termos, a destruição contínua do
equilíbrio, o seu restabelecimento sobre uma outra base, restabelecimento
seguido de uma nova destruição, e assim por diante, eis o que corresponde de
maneira real à tríade de Hegel. Que trás de «novo» esta interpretação? No
fundo, nada. Ela porém sublinha o processo material e o movimento da
forma material. Em outras palavras, tem-se aqui a dialética do
pensamentomaterial, expressa ideologicamente pela tríade hegueliana.
Increpar esta formulação por ser mecânica, é errar, e isto porque não se
pode opor a mecânica atual à dialética. Se a mecânica não é dialética, isto é,
se o movimento no seu conjunto não é dialético, que fica então da dialética? Ao
contrário, o movimento constitui, se assim nos podemos exprimir, a alma
material do método dialético e sua base objetiva.

Marx e Engels despiam a dialética de seu invólucro místico na ação, isto é,


nela aplicando, de maneira materialista, o método dialético no estudo dos
diferentes domínios da natureza e da sociedade. Trata-se agora de fazer uma
exposição teórica sistemática deste método e de assentá-lo sobre uma
argumentação igualmente teórico sistemática. Chega-se a este resultado
precisamente pela teoria do equilíbrio.

Há ainda um argumento, e não dos menores, em favor da teoria do


equilíbrio. Esta teoria desembaraça a concepção do mundo de um certo
elemento teleológico inevitavelmente ligado à formulação hegueliana, que
repousa sobre a evolução imanente do «espírito». Em lugar de evolução,
eunicamente de evolução, ela permite ver também os casos de destruição das
formas materiais. Por isso mesmo, ela constitui uma formula mais geral das leis
que regem os sistemas materiais em movimento, fórmula que é, além disso,
expurgada de todo elemento idealista.

3.º Teoria do equilíbrio e forças produtivas

A questão fundamental para a teoria do materialismo histórico é a de saber


porque se tomam as forças produtivas como causa final, como causa que tudo
explica (em última análise). Sobre este ponto há uma diferença bem marcada
entre os marxistas (aí compreendidos os marxistas ortodoxos, os comunistas).
Frequentemente conduz-se a questão para a «teoria dos fatores», teoria,
manifestamente sem valor, ao mesmo tempo que se substitui a noção das
forças produtivas pelas das relações de produção («fator econômico»). Muitas
vezes levanta-se a questão do ovo e da galinha do ponto de vista da sua
«gênese». A solução que dá o próprio Plekanov (no ponto de vista
monista) não é satisfatória. Como ele apresenta a questão? Ele toma a
controvérsia entre duas correntes de pensamentos: uma que afirma: «as
opiniões regem o mundo» e outra que assevera que «as condições de vida
criam o homem». Para empregar a nossa terminologia, diríamos
superestruturas e base. A superestrutura influi sobre a base? Sim. A base influi
sobre a superestrutura? Sim, igualmente. E Plekanov reconhecia que, posta
assim, a questão é insolúvel. Onde está pois a solução? Segundo Plekanov,
ela está no fato de que estas duas grandezas que influem uma sobre a outra
dependem de uma terceira (as forças produtivas). É isso justamente que
resolve todo o problema.
Não é entretanto difícil de ver que, desta maneira, a questão não é senão
afastada e não resolvida. Com efeito, a superestrutura e a base influem elas
por sua vez sobre as forças produtivas? Sim. E estas sobre aquela? Sim,
igualmente. Assim a questão apresenta-se de novo, sobre outra base, e é tudo.

É esta a questão central da sociologia. Pois se a isso não se responde no


espírito do monismo metodológico e procura-se entrincheirar-se atrás da
«teoria dos fatores», não se tratará mais, como o faz notar com justeza o
professor burguês alemão E. Brandenburg:

«senão de uma diferença quantitativa na apreciação das


influencias econômicas e espirituais»(3).

Mas então ter-se-á uma teoria que antes de tudo nada absolutamente
explica e por conseguinte nada tem de marxista.

O professor Brandenburg inclina-se graciosamente diante desta assim dita


teoria marxista. Mas eis aqui o que ele diz da verdadeira concepção
materialista da história:

«Ela quer ligar todas as variações da vida em comum dos


homens às mudanças que sobrevêm no domínio das
forças produtivas; mas ela não pode explicar porque estas
últimas devem, elas próprias, mudar constantemente e
porque esta mudança deve necessariamente se efetuar
na direção do socialismo»(4)

É precisamente esta fórmula do professor Brandenburg que melhor pode


nos servir para pôr no justo lugar a nossa própria metodologia na solução do
problema sociológico em questão, problema que, eu repito, é capital.

A única resposta justa a esta questão é esta: as forças produtivas


determinam a evolução social porque elas exprimem a correlação entre a
sociedade, conjunto real determinado, e o seu meio... Ora a correlação entre o
meio e o sistema é uma grandeza determinando, em última análise, o
movimento de não importa que sistema.

Está aí uma das leis gerais que regem a dialética da forma em movimento.
É o quadro no qual se produzem os deslocamentos moleculares das forças e
onde se atam, se desatam e se entrecruzam as inúmeras ações, reações e
contradições. Que as forças produtivas sofram modificações sob a influência da
«base» e das «superestruturas», a constatação dessas influencias não altera
em nada este fato fundamental: a correlação entre a sociedade e a natureza, a
quantidade de energia material sobre a qual vive e sociedade e que é
susceptível de toda a sorte de transformações no processo da vida social, é
cada vez uma grandeza determinante.

É assim, e unicamente assim, que pode ser resolvido o problema


fundamental da teoria do materialismo histórico.

4.º Relações de produção

Segundo Marx, as relações de produção são a base material da


sociedade. Entretanto, entre numerosos grupos marxistas (ou, antes, pseudo-
marxistas), existe uma tendência irresistível para «espiritualizar» esta base
material. Os progressos da escola e do método psicológicos na sociologia
burguesa não podiam deixar de «contaminar» os meios marxistas e semi-
marxistas. Este fenômeno caminhava de par com a influência crescente
da filosofia acadêmica idealista. Puseram-se a reproduzir em obras inferiores a
construção de Marx, introduzindo-lhe sob a sua basematerial a base
psicológica «ideal», a escola austríaca (Böhm-Bawerk), de L. Word e tutti
quanti. Presentemente também, a iniciativa parte outra vez do austro-marxismo
teoricamente em decadência. Põem-se a tratar da base material no espírito do
«Pickwick Club». O econômico, o modo de produção passaram para a
categoria inferior de reações psíquicas. O alicerce sólido
do material desapareceu do edifício social.

Na literatura russa, esta transformação psicológica do marxismo foi


proseguida sistematicamente nas obras de A. Bogdanov. Segundo Bogdanov,
a própria técnica não é uma coisa material, mas a habilidade dos homens, a
arte de trabalhar com o auxilio de instrumentos determinados, um treino
psicológico, por assim dizer.

É evidente que um tal marxismo «psiquizado» afasta-se nitidamente


do materialismo sublinhado «con amore» por Marx, em sociologia.

Como pois considerar o caráter material das relações de produção?

Na literatura marxista, não se deu, segundo me parece, resposta precisa a


esta questão, e é o que explica em parte que construções «psicológicas», às
quais não se pode negar uma certa unidade e uma certa lógica, exercem ainda
influência sobre espíritos marxistas(5).

Como resolver este problema? O adversário trás uma série de argumentos


sérios. O mais importante é que a concepção das relações entre os homens
pressupõe a ação psíquica recíproca destes últimos. O laço de trabalho se
torna assim um vinculo de ordem psíquica e como não se pode duvidar que a
criação e a manutenção dessas relações constituem um processo psicológico
resultante de atos psíquicos objetivando-se sobre o plano social, o caráter
social psíquico da «base» se acha por isso mesmo estabelecido.

Eu afirmo que a esta argumentação nada foi oposto em nossos meios. Eis
porque eu proponho uma solução nova, materialista, do problema, solução
conforme as de Marx. Ei-la:

Como relações de produção, eu entendo a coordenação dos homens


(considerados como «máquinas vivas») pelo trabalho no espaço e no tempo.O
sistema dessas relações é tão pouco «psíquico» quanto um sistema planetário
com o seu sol. A determinação do seu lugar em cada ponto cronológico, eis o
que constitui um sistema. Deste ponto de vista, toda atribuição de caráter
psíquico desaparece pela base. E o fato de que os elementos psíquicos são
um fator intermediário, não destrói nem afeta o encadeamento do nosso
argumento: toda superestrutura serve de fator intermediário no processo de
reconstituição em comum da vida social.

Eu considero esta solução como a única justa e como a única materialista.


Só ela, além disso, permite refutar Adler e seus pares.

5.º Superestrutura e ideologia. Estrutura das superestruturas

A análise destes fenômenos sociais, no seu «corte» estático(6), tem sido


extremamente insuficiente.

Daí uma série de mal entendidos, erros, assim como impasses teóricos e
explicações falsas ou fictícias. Por exemplo, caía-se sobre um laboratório
cientifico, com seus instrumentos de trabalho, suas relações particulares de
trabalho, etc.. Concluia-se daí que o trabalho de laboratório (por extensão, todo
trabalho cientifico) se refere à produção. Proseguindo mais longe o
desenvolvimento desta tese, acabava-se por achar que todo o trabalho
socialmente útil é um trabalho produtivo. Resultado: tudo reentrava na
«produção», e a teoria marxista se transformava em explicação absurda da
parte pelo todo, nada mais do que isso. Ou melhor, não se sabia onde colocar,
no esquema arquitetural de Marx, fenômenos tais como uma associação
científica, um aparelho burocrático, uma sociedade filosófica, um observatório
astronômico.

Eis porque eu propus, em meu livro, separar as


noções ideologia e superestrutura, tomando esta última como noção mais larga
e mais geral. A ideologia é o sistema de idéias, de sentimentos, de imagens, de
normas, etc.. A superestrutura engloba ainda muitas outras coisas. Nas
superestruturas é preciso distinguir três esferas principais:

1. — A técnica da superestrutura, os «instrumentos de


trabalho» (utensílios de laboratório nas ciências; casas, canhões,
máquinas de calcular, diagramas, etc., no aparelho estático;
pincéis, instrumentos de música, etc., na arte, etc.).
2. — As relações entre os homens (associação científica,
organização burocrática, relações das pessoas em um «atelier»
artístico, coordenação dos músicos em uma orquestra).
3. — Os sistemas de idéias, de imagens, de normas, de
sentimentos, etc.. (ideologia).

Eu procurei ainda levar esta análise adiante, isto é, esboçar as linhas de


um fracionamento e de uma diferenciação ainda maior (notadamente na
música). Assim desaparecia uma série de dificuldades, e o método histórico-
materialista tornava-se mais exato e mais preciso.

6.º Dependência das superestruturas em relação à base

O ponto de vista acima exposto permite apresentar, de maneira muito mais


concreta, a questão da dependência das superestruturas em relação à base e,
em seguida, às forças produtivas. O vício fundamental da posição sumaria da
questão residia e reside na indeterminação da noção de dependência ou de
determinação. Foi o que deu lugar a «desvios» nos meios marxistas e
vizinhanças. É bastante citar, entre muitas outras, as obras do camarada
Chuliatikov (Justificação do capitalismo na filosofia da Europa Ocidental), ou de
Eleutheropulos e outros. Nossos inimigos, em suas críticas, têm, muitas vezes,
explorado esta divergência. Entretanto, se se distingue em cada superestrutura
os elementos que a constituem, não é difícil demonstrar que ela é: 1.º a
dependência concreta desses elementos em relação um ao outro; 2.º sua
dependência em relação aos elementos das outras superestruturas; 3.º a
dependência destes últimos em relação à base; 4.º a dependência direta
destes elementos em relação à base; 5.º sua dependência da técnica, etc.. Por
isso mesmo desaparecem todos os «desvios», simplificação, vulgarização,
posição sumária da questão. Ao contrário, isso impõe, é verdade, ao
investigador a obrigação de «cavar» profundamente a análise da
superestrutura que ele estuda, isto é, de se entregar a um trabalho
extremamente minucioso. Mas convenhamos que isso não pode constituir um
argumento contra as minhas «inovações».

7.º As superestruturas como esferas de trabalho diferenciado


Eu me propus igualmente analisar as superestruturas do
ponto desvista do trabalho. Não é sem razão que Marx falava de «produção
intelectual» e de «clãs» ideológicos (ideologische Stands). Eu não falarei aqui
do valor pratico destas questões, especialmente para a nossa época e para o
nosso partido. Eu me limitarei a justificar de maneira puramente teórica este
«aspecto» da questão.

Em primeiro lugar, o ponto de vista mencionado acima esclarece


maravilhosamente a questão da correlação existente entre a
produção materiale as produções «intelectuais» e mostra com evidencia o
absurdo que há em apresentar a questão em bloco também neste domínio
(tudo o que é «útil», é produção). Com uma tal solução da questão, é claro que
o trabalho intelectual de alguma forma deriva constantemente, depois
sediferencia da produção material; as questões casuísticas sutis concernentes
às categorias situadas mesmo nos confins destes domínios, são
metodologicamente afastadas, do mesmo modo que as «terríveis» questões
concernentes aos agrupamentos sociais intermediários e outras grandezas
variáveis.

Em segundo lugar, uma tal maneira de apresentar a questão permite


explicar a necessidade da aparição de tal ou qual gênero de trabalho
superestrutural, assim como a disposição particular dos diferentes ramos deste
trabalho, isto é, suas dimensões relativas numa determinada sociedade.
(Antes, parece-me, não se propunham questões como a da proporção entre o
trabalho material e o trabalho não material, entre os diferentes gêneros de
trabalho «espiritual» e assim por diante. Entretanto, isto é indispensável, para
explicar toda uma série de fenômenos essenciais. Compare-se, por exemplo, o
valor pratico que tem para nós a questão da produção material e do aparelho
administrativo burocrático).

8.º O modo de representação e os princípios formando a vida social

Como teórico, eu julguei dever pôr em primeiro plano a tese de Marx sobre
o «modo de representação» (Vortstellimgsweise), tese que todo mundo
esqueceu. Não resta dúvida que, em Marx, esta concepção era correlativa à do
«modo de produção». Em outros termos, a um modo dado de produção
corresponde um modo de representação adequado a este último e determinado
por ele. Marx não expôs a questão do modo de representação com uma lógica
tão clara e tão precisa como a do modo de produção. Mas, várias notas
isoladas (por exemplo, sobre a necessidade de estudar a questão dos «clãs
intelectuais», etc..) mostram claramente seu ponto de vista sobre a maneira de
colocar estes problemas. Assim se resolve a questão concernente ao «estilo»
fundamental único da vida social, da base à cumeeira, assim como o caráter
historicamente relativo de todas as ideologias, consideradas não do ponto de
vista de seus princípios (que podem ser eternos), mas do ponto de vista
dos tipos de ligaçãoexistentes entre elas, dos princípios particulares de
coordenação que são o índice constitutivo da concepção do «modo de
representação».

9.º A fisiologia humana e as leis da evolução social

Eu procurei conduzir para um terreno inteiramente novo os debates


intermináveis sobre a correlação das leis da biologia e da sociologia, etc..
Assim, eu considero as particularidades fisiológicas dos agrupamentos
humanos, assim como as particularidades psicológicas que lhes correspondem,
como a qualificação das forças de trabalho determinadas da
sociedade (particularidades psico-fisiológicas do carregador, do músico, do
industrial, do comerciante, do espião, do chauffeur, do oficial, etc.). Esta
solução do problema não implica de nenhum modo este
absurdo desdobramento das «leis» que se encontra a cada instante mesmo
nas melhores obras marxistas (de um lado, as leis da biologia, da fisiologia,
etc., do outro, as da evolução social). Na realidade, há aí dois aspectos de uma
única coisa. Um só e mesmo fenômeno é considerado de diferentes pontos de
vista. A estrutura psico-fisiológica do carregador e a qualificação de seu
trabalho não são duas grandezas diferentes, mas duas maneiras de considerar
uma única e mesma grandeza. É o que aparece com uma clareza particular no
estudo do taylorismo, da psicotécnica, etc..

10.º Materialização dos fenômenos sociais

Outra «inovação» minha é a teoria que expus sobre a materialização dos


fenômenos sociais, sobre o processo especial de acumulação da cultura, que
se produz quando a psicologia e a ideologia sociais se condensam e se
cristalizam sob forma de coisas, tendo uma existência social original. Estas
psicologia e ideologia sociais materializadas se tornam, por sua vez, o ponto de
partida de toda evolução ulterior (livros, bibliotecas, galerias de arte, museus,
etc.). Se a materialização dos fenômenos sociais é uma das leis fundamentais
do desenvolvimento da sociedade, é claro que é por aí que é preciso começar
a análise nos domínios correspondentes (isto é, nas superestruturas). Aqui
ainda, o ponto de vista materialista encontra uma nova confirmação(7).

11.º A lei do período de transição e a lei da decadência

Uma das objeções capitais levantadas contra o materialismo histórico, é a


da, suposta essência mística, em Marx, das forças produtivas, que devem, não
se sabe porque, se desenvolver custe o que custar. É preciso reconhecer que,
em suas obras, numerosos marxistas «exigem» este desenvolvimento. Marx,
porém, pessoalmente, não está por isso, pois ele tem por muitas vezes
assinalado o caso de «destruição das duas classes em luta» e, ao mesmo
tempo, de toda a sociedade, portanto de suas forças produtivas. A questão de
saber se a sociedade é destinada a se desenvolver ou a perecer, não pode ser
resolvida de maneira abstrata nem em um sentido nem em outro. Ela não pode
ser solucionada senão sobre uma base concreta.

Do mesmo modo, está demonstrado empiricamente que os períodos de


transição, acompanhados de revoluções, estão ligados a uma decadência
temporária, mais ou menos prolongada, das forças produtivas.

Por consequência, a fórmula habitual das bases teóricas do materialismo


histórico que começa pelas palavras: «O crescimento das forças produtivas», é
por demais restrito, pois ela não abrange nem as épocas de decadência, nem
os períodos transitórios revolucionários.

Eis porque, ainda aqui, como teórico, eu julguei de meu dever fazer a
análise da lei destes fenômenos que têm desempenhado um papel importante.
E isto é tanto mais necessário fazê-lo, quanto, sem esta análise, é impossível
compreender o período atual. Assim pois caracterizei socialmente com
precisão, e nos quadros gerais da teoria, estes períodos como período de
regressão das forças produtivas sob a influência das superestruturas, com
limitação constante deste fenômeno pelo estado anterior das forças
produtivas; em outros termos, caracterizei a lei fundamental destes períodos
como o processo temporário da reação das superestruturas (nos casos de
período transitório até o momento em que se estabelece um novo equilíbrio
social).

Por outra parte, esforcei-me por dar a fórmula das fases necessárias no
processo da revolução, apoiando.me em parte, (como na Economia do período
de transição) sobre as observações do camarada Kritzman, a quem cabe a
prioridade da solução deste problema. Deste modo a teleologia foi expulsa do
seu último refugio.

Eu não mencionei aqui senão as minhas principais «inovações». Eu


poderia enumerar uma série de outras, notadamente no que concerne à
doutrina das classes, às relações entre os chefes e o partido, à doutrina da
revolução, etc.. Infelizmente, falta-me o tempo. Eu me desculpo portanto, junto
ao leitor, do caráter fragmentário destas «breves notas». Como se pôde ver, os
problemas que temos diante de nós são bastante complexos. Na medida de
minhas forças, procurei resolve-los. Para todo homem inteligente, e com mais
forte razão para todo bolchevique, é claro que a tendência geral das minhas
«inovações» está conforme à interpretação ortodoxa, revolucionária e
materialista de Marx. Aceitarei com reconhecimento toda observação
proveitosa, pois aqui, como em qualquer outro domínio, uma ampla
colaboração é indispensável. «Mas, dirá talvez o leitor, como se explica que
nenhum dos vossos críticos tenha mesmo mencionado todos esses problemas
importantes, fundamentais?»

«Perguntai ao vento nos campos», como dizia Knut Hamsun, em outra


circunstância.

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