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EDUARDO SEINCMAN

Tempo histórico,
tempo mítico:
som e silêncio em
Mozart
e Schoenberg
“A coruja de Minerva alça seu
EDUARDO
voo somente com o início do crepúsculo”
SEINCMAN
é professor do
(Hegel).
Departamento de
Comunicações e
Artes da ECA-USP
e autor de Do
Tempo Musical
(Via Lettera).
este ensaio, estabelece-se um paralelo en-
tre duas óperas que, além de distantes no
tempo, seriam aparentemente díspares: A
Flauta Mágica (1791), de Mozart, e Moisés
e Arão (1930-32), de Arnold Schoenberg.
Esse paralelo irá se esclarecer à medida que o

Arnold texto avançar. Mas, desde já, convém ressaltar


Schoenberg, que, a despeito de suas diferenças quanto ao
arte sobre
enredo, estilo de escrita e forma de atuação
pintura de Egon
Schiele no palco, essas obras possuem em comum o
fato de se debruçarem, criticamente, sobre a
própria linguagem da ópera. Em ambas, essa
“autocrítica” é dialeticamente posta em ação
por meio de dois eixos principais sobre os
quais convém refletir: tempo histórico-tempo
mítico; som-silêncio.
Em tese, uma obra já tão estudada e
encenada como A Flauta Mágica, de Mozart,
dispensaria maiores comentários. O mesmo
não cabe, entretanto, a Moisés e Arão, que,
mesmo nos dias de hoje, ainda permanece
distante de nossos palcos. Certamente, isso
se deve, por uma parte, a suas próprias
dificuldades musicais e cênicas e, por outra,
ao fato de o estilo de Schoenberg não fazer
qualquer espécie de concessão ao gosto Rainha promete a mão de sua filha se ele
médio do público que geralmente prefere for bem-sucedido. As Três Damas dão a
a ópera “tradicional”. Ou, quem sabe, não Tamino uma flauta mágica e a Papagueno,
teria sido a ópera de Schoenberg parcial- sininhos também mágicos, e ambos partem
mente obscurecida por Wozzeck (1914-21), para o castelo de Sarastro. A chegada pre-
de Alban Berg, que se tornou um ícone do cipitada de Papagueno acaba evitando que
expressionismo? De qualquer forma, como Pamina seja molestada por Monóstatos, um
previra o próprio compositor, Moisés e Arão mouro a serviço de Sarastro. Papagueno e
teve de esperar por mais de vinte anos por Pamina fogem em busca de Tamino, que
sua estréia. A partir de então, uma bem-su- chega ao castelo cujo sacerdote, devido ao
cedida sequência de apresentações, sob as voto de silêncio, não pode responder onde
batutas de um Hans Rosbaud, em Hamburgo está Pamina, dizendo apenas que ela está
(1954), de um Hermann Scherchen, em viva e que o “negro véu cairá” (referência
Berlim (1959), e de um George Solti, em à perversidade da Rainha da Noite e não
Londres (1960), permitiu que Willi Reich de Sarastro) quando Tamino “unir o amor
comentasse: “A intuição de que Moisés e fraterno ao templo, por um laço eterno”.
Arão é uma das mais importantes óperas Tamino fica ciente de que Pamina está viva.
de nosso tempo tornou-se uma certeza Papagueno e Pamina são confrontados por
absoluta” (Reich, 1981, p. 183). Monóstatos e seus três escravos, mas, utili-
Essa “ousadia” de traçar um contra- zando-se dos sininhos mágicos, eles conse-
ponto entre duas óperas aparentemente tão guem escapar. Finalmente, os apaixonados
diversas poderá, quem sabe, iluminá-las de Tamino e Pamina se encontram.
novos ângulos, o que não ocorreria caso
fossem abordadas isoladamente. O fato
de uma servir de espelho à outra poderá Ato II
revelar certas singularidades de cada uma
e permitirá averiguar se, para além de seu Sarastro e seus sacerdotes aceitarão
conflito, seria discernível alguma espécie de Tamino e Papagueno em sua confraria
continuidade entre ambas, algum processo do templo desde que eles cumpram com
que já estando presente em Mozart condu- sucesso três desafios: do silêncio, da água
ziria a Schoenberg. A fim de iniciar essa e do fogo. Enquanto Pamina dorme, Mo-
trajetória de análise, convém apresentar a nóstatos aproxima-se novamente, mas é
sinopse das óperas em questão. afastado pela Rainha da Noite, que dá um
punhal a sua filha e lhe diz que só não será
deserdada se matar Sarastro trazendo de
volta o Círculo do Sol com Sete Raios que
A FLAUTA MÁGICA está em seu peito e que um dia pertenceu
a seu pai. Monóstatos tenta mais uma vez
obrigar Pamina a amá-lo chantageando-a.
Ato I Nisso Sarastro entra e só não pune Mo-
nóstatos porque o terrível plano vingativo
O príncipe Tamino é salvo de um mons- da Rainha ainda é pior que sua atitude, e
tro pelas Três Damas da Rainha da Noite, sua confraria não é guiada por vingança ou
mas o passarinheiro Papagueno é que fica traição. Enquanto isso Papagueno é apre-
com os créditos. Para puni-lo por sua men- sentado a uma velha horrorosa que não é
tira, as Três Damas trancam sua boca com outra senão Papaguena disfarçada. Pamina
um cadeado de ouro. Elas dão a Tamino um se encontra com Tamino e Papagueno, que,
retrato de Pamina, filha da Rainha da Noite, devido ao voto de silêncio, não respondem
que teria sido abduzida por Sarastro. Apai- a suas perguntas e a deixam desesperada.
xonando-se imediatamente pela imagem de Pensando que Tamino não mais a ama, ela
Pamina, Tamino parte para resgatá-la. A carrega consigo o punhal para se matar.

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Papagueno, ao descobrir o disfarce de Pa- fruta, o fruto em ouro, o ouro em êxtase, o
paguena, é, no entanto, obrigado a separar- êxtase em alma”. Trai, dessa forma, a pureza
se dela, e também resolve se matar. Três dos ideais de Moisés, mas convence o Povo
Meninos convencem Pamina do contrário a segui-lo pelo deserto.
e ela se encontra com Tamino para juntos
vencerem a prova do fogo e da água. Os
mesmos Três Meninos evitam o suicídio de Ato II
Papagueno lembrando-lhe que ele possui
os sininhos mágicos através dos quais trará A cena se passa nos pés do Monte Sinai.
Papaguena de volta. A despeito de Papa- Apesar das tentativas de Arão para restabe-
gueno fracassar em guardar silêncio, ele é lecer a confiança, os israelitas, impacientes
perdoado e poderá desposar Papaguena. A com o sumiço de Moisés, ameaçam matar
Rainha, as Três Damas e Monóstatos serão seus representantes espirituais, os Setenta
engolidos pelo alçapão sendo confinados à Anciãos, e imploram por um deus visível.
“noite eterna”. Arão, coletando suas joias, funde para eles
um Bezerro de Ouro. Eles iniciam uma or-
gia profana de bebedeira, dança e sacrifício
diante do Bezerro, levando ao suicídio, es-
MOISÉS E ARÃO tupro e assassinato. Moisés desce do Monte
Sinai, portando as Tábuas da Lei e com sua
palavra, destrói a imagem de ouro. Atemo-
Ato I rizado, o povo sai deixando Moisés e Arão
sozinhos. Arão defende suas ações alegando
O primeiro ato possui quatro cenas. Na que ele está fazendo apenas o que lhe foi
primeira, D’us, através da Voz da Sarça pedido, interpretando as palavras de Moisés
Ardente (sexteto vocal), instrui Moisés a em termos compreensíveis ao povo. Enfu-
tirar os israelitas da escravidão no Egito recido, Moisés esmaga uma das Tábuas.
e levá-los à Terra Prometida. Moisés, que Guiado por uma coluna de fumaça, o povo
tem a língua travada, recua diante da ousa- toma o partido de Arão e se põe a caminho
dia dessa tarefa, e D’us designa seu irmão da Terra Prometida. Moisés prostra-se ao
Arão para ser seu porta-voz. Moisés e Arão solo em desespero, e diz: “Fui derrotado!
encontram-se no deserto e discutem sua Então foi tudo loucura, tudo o que pensei,
tarefa; eles são confrontados pelos cada e isso não pode e não deve ser dito! Oh
vez mais receosos Setenta Anciãos e pelo palavra, tu palavra que me faltas”1.
Povo israelita, que não acredita que Moisés
e seu D’us os libertarão do jugo ao faraó. •••
Moisés acha que fracassou em sua tarefa,
mas os israelitas, que primeiramente rejei- Para discutir, em profundidade, os
taram a ideia de serem guiados por um D’us dois eixos principais apontados – tempo
invisível, são persuadidos a se revoltar e histórico-tempo mítico, som-silêncio –, a
partir para a Terra Prometida graças a três base de apoio principal é o Ensaio sobre a
milagres que Arão realiza: transforma o Origem das Línguas (1781), de Rousseau.
cajado de Moisés em serpente, fulmina sua Interessa, em particular, a concepção rous-
1 O terceiro ato da ópera
mão com lepra para em seguida curá-la e, seauniana de que, em seu início, a língua foi não foi terminado, restando
finalmente, transforma as águas do Nilo em simultaneamente poesia e música, as quais, apenas o texto preparado
por Schoenberg. O próprio
sangue. Os israelitas se unem, mas temem posteriormente, separaram-se. Além disso, compositor havia sugerido
passar fome no deserto. Moisés lhes diz que, enfatizando a experiência sonora da lin- que ele poderia ser lido
após o segundo ato, mas isso,
“no deserto, a pureza de pensamento vos guagem, Rousseau a pensa como forma de em geral, não é praticado,
nutrirá, sustentará e desenvolverá”, mas é comunicação, destacando a íntima conexão pois anula a enorme força
dramática e a contundência
Arão quem os convence afirmando que “o entre linguagem e sociedade: a língua surge do fechamento da ópera
Todo-Poderoso pode transformar a areia em como antídoto à violência; é o meio pelo com o Ato II.

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qual se estabelecem os vínculos sociais; é de suas especificidades. Primeiramente,
apaixonada e “quente”; há, na linguagem, Moisés e Arão.
um sentido de verticalidade, de relação entre Moisés é uma personagem “intocável” e
aparência e essência. Quando, por questões incomunicável. Quando D’us lhe pede para
civilizatórias, a língua se tornar mais “fria” ser Seu profeta e tirar o povo escravizado
e racional, limitando-se a associar o nome do Egito, Moisés, sentido as proporções
à coisa, ela empobrecerá e a comunicação descomunais de tal tarefa, replica: “Estou
deixará de existir. velho. Deixe-me cuidar de meu rebanho
Tomando como premissa esses e outros em silêncio” (Moisés e Arão, Ato I, Cena 1).
pontos importantes da ótica rousseauniana, Desde aqui, portanto, o silêncio dá mostras
vamos partir de algumas indagações que de ser uma importante questão.
serão respondidas ao longo do ensaio: Quando D’us diz a Moisés: “através de
seus ouvidos [referindo-se ao povo] você
• Que relações ambas as óperas estabele- fará milagres e através de seu cajado eles o
cem entre o sensível e o inteligível? Seria respeitarão e reconhecerão sua sabedoria”,
possível, a partir do sensível, alcançar o Moisés replica: “mas minha língua é trava-
inteligível, isto é, a “luz da razão”, em A da; posso pensar, mas não falar” (Moisés
Flauta Mágica, e o “D’us Único, Eterno, e Arão, Ato I, Cena 1).
Onipresente, Invisível e Irrepresentável”2, Tendo uma língua travada, como con-
em Moisés e Arão? vencer o povo escravizado a fugir do Egi-
• De que forma se apresenta, nas óperas, a to e comunicar-lhe um “unvorstellbarer
questão da união/separação entre poesia Gotter”, um D’us “irrepresentável porque
e música de que fala Rousseau? invisível, porque incomensurável, porque
• Se para Rousseau a palavra escrita é “pa- infinito, porque eterno, porque onipresente,
lavra morta”, isto é, destituída da força da porque onipotente” (Moisés e Arão, Ato I,
voz, seria a ópera um campo privilegiado Cena 2)?
para a discussão das relações entre fala e Moisés não pode se comunicar: quem
canto na experiência estética? se incumbirá de tamanha tarefa?
• De que forma as óperas relacionam som e D’us dá a resposta: “Arão será ilumina-
silêncio, falar (cantar) e calar? Que papéis do, ele será a sua boca!” (Moisés e Arão,
e significados o silêncio assume em cada Ato I, Cena 1).
ópera? Schoenberg, em um lance de mestre,
• Haveria alguma relação entre a autocrí- traduzirá essa questão comunicacional para
tica do classicismo iluminista de Mozart a linguagem musical: a Moisés (barítono),
e a do modernismo expressionista de que possui a “língua travada”, é reservado
Schoenberg? o sprechgesang3, e a Arão (tenor agudo) é
• Estariam presentes nas óperas os mitos destinado o canto propriamente dito, através
rousseaunianos do “estado de natureza” e do qual ele irá comunicar-se com o povo
do “bom selvagem”? Em caso afirmativo, e tentar convencê-lo. Contudo, expressar
poder-se-ia abordá-los a partir da distinção a ideia de D’us através da linguagem, que
entre tempo histórico e tempo mítico? apela aos sentidos humanos, é sempre
• Dado que a ópera é uma “obra de arte insuficiente. Cantando, Arão distorce e
total”, de que modo as várias lingua- corrompe a verdade impronunciável, o que,
gens nelas presentes relacionam-se para Moisés, é inaceitável. Assim, a parceria
entre si? Quais são suas diferenças entre ambos, embora útil do ponto de vista
nesse aspecto? político, adquire, para o restante do drama,
2 Palavras iniciais de Moisés na
Introdução da ópera (Ato as proporções de um conflito existencial e
1, Cena 1): “Einziger, ewiger, Para responder a essas indagações metafísico decisivo. Esse embate insolúvel
allgegenwärtiger, unsichtbarer
und unvorstellbarer Gott!”. promovendo uma análise conjunta e com- já está anunciado desde o primeiro encontro
3 Canto falado: meio-termo
parativa de ambas as óperas, é preciso, dos irmãos no deserto (Moisés e Arão, Ato
entre a fala e o canto. antes, discutir separadamente algumas I, Cena 2): ao “canto falado” de Moisés

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impõe-se, fortemente, a melodia lírica e ARÃO: Este cajado os guiará. (Atira o cajado
em ritmo ternário, de Arão, acompanhada no chão.) Vejam, uma serpente!
da “pastoril” instrumentação para flauta e CORO: Fujam! A serpente cresce! Ela se con-
harpa. Assim, Arão canta e encanta seu torce! Vejam, ela se volta contra todos!
povo, enquanto Moisés o “desencanta”. Só ARÃO: Na mão de Moisés, um cajado rígido:
D’us, representado aqui pela Voz da Sarça a Lei; em minha mão, uma ágil serpente:
Ardente, pode sobrepor a fala ao canto, a inteligência”.
pois é o único capaz de reunir a ideia e sua
realização4. O silêncio da palavra é correlato ao “si-
A epopeia é contada aqui de maneira lêncio” da visão. A verdadeira compreensão
mítica, tipicamente judaica, já que Moisés, não se dá por via dos sentidos: “Fechem
calando-se, silenciando-se, atua como se seus olhos, tapem seus ouvidos! Só assim
fosse o próprio D’us que ele prega. Guia seu poderão vê-lo e ouvi-lo”. E isso toca na
povo mantendo-se afastado: é tão inapreen- questão ética: “O justo o verá”.
sível e incompreensível quanto D’us. Percebendo que Arão não consegue
No início (Ato I, Cena 4), Arão tentará convencer o povo, a frase de Moisés (“a
traduzir fielmente ao povo a pregação de minha ideia é impotente na palavra de
Moisés: Arão!”) sugeriria que a palavra de Arão é
“fraca”. Mas, como quem detém o poder é,
“ARÃO: Fechem seus olhos, tapem seus em última instância, quem domina a palavra,
ouvidos! Só assim poderão vê-lo e ouvi- Arão (exigindo “silêncio” e arrancando o
lo. Nenhum vivente o vê e compreende de cajado das mãos de Moisés) proclama: “Eu
outra forma!”. sou a palavra e o ato!”, e transforma-o
em serpente. Assim, os milagres de Arão
Mas o Coro (Povo) não o compreende: transformam suas palavras em atos cuja
persuasão situa-se na visão, na imagem.
“CORO: Não pode ser ele jamais visto? É Mas, como o sensível não pode dar conta
ele eternamente invisível? Como? Teu D’us da plenitude do inteligível, para Moisés,
todo-poderoso não pode tornar-se visível Arão é tradutor e traidor: sua “arte” é jogo
diante de nós?”. de aparências. Isso ficará ainda mais patente
no segundo ato da ópera: afastando-se para
Arão, tentando argumentar, insiste mais o “mundo superior” do Monte Sinai, Moisés
uma vez: “abandona” o povo que irá idolatrar a “arte
pela arte” do Bezerro de Ouro, pura forma
“ARÃO: O justo o verá. material e sensorial que trará irracionalida-
CORO: Fique longe de nós com seu D’us, de, morte, estupro e violência5.
com esse Todo-Poderoso. Não queremos O mundo está cindido: não há comu-
ser libertados através dele! nicação e transcendência possível entre os
MOISÉS: Todo-Poderoso, minha força se mundos inferior e superior. Nesse sentido,
4 As vozes reinam no pri-
exauriu, a minha ideia é impotente na pa- a frase de Arão é sintética e reveladora: meiro ato. No segundo
lavra de Arão!”. “Na mão de Moisés, um cajado rígido: a ato, Schoenberg inver te
essa tendência, e a música
Lei; Em minha mão, uma ágil serpente: a orquestral da “Dança em
Para convencer o povo, Arão se vê então inteligência”. Moisés é retidão e rigidez Torno do Bezerro de Ouro”
obrigado a operar três milagres visíveis: o – Arão é flexibilidade e malícia; Moisés é
dominará a cena até que
Moisés retorne do Monte
do cajado, o da lepra e o do sangue. ideia – Arão é expressão; Moisés é pensa- Sinai com as Tábuas da Lei.
mento – Arão é ação. Esse binômio Moi- 5 Essa temática da arte como
“ARÃO (Exclama): Silêncio! sés-Arão vai além da singularidade de suas ilusão e pacto diabólico
é uma constante e está
SEIS VOZES SOLISTAS: Arão! personagens: expressa uma cosmogonia, presente em muitas obras
ARÃO (Arrancando o cajado das mãos de um paradigma desmembrado em visões literárias dos período antes
e pós-Segunda Guerra Mun-
Moisés): Eu sou a palavra e o ato! de mundo ao mesmo tempo antagônicas e dial, tal como Doutor Fausto,
CORO: Arão, que fazes? complementares. de Thomas Mann.

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Mas, para expressar musicalmente da ópera, é reforçada pela “mistura de gêne-
essa cisão fundante, Schoenberg não adota ros” adotada pela ópera que, de fato, além
apenas o conflito entre fala e canto, mas de possuir um conjunto de vozes atuando
igualmente dois procedimentos importan- como coro grego, foi pensada inicialmente
tes: de um lado, a série dodecafônica como como cantata e, em seguida, como oratório.
arquétipo sonoro, símbolo do “mundo Também não se pode desconsiderar a visão,
ideal” (Moisés); de outro, a densidade fí- de alguns, de que essa seria uma obra teatral
sica e sensorial da música expressionista, com música incidental. Para isso contribui,
símbolo do “mundo real” e “mundano” sem dúvida, o fato de o Coro ou parte dele
(Arão, Povo, etc.). se utilizar frequentemente do sprechgesang,
A ópera apresenta, portanto, uma que faz com que o texto adquira um caráter
aparência expressionista e uma essência livremente falado, mais de prosa do que
serial. propriamente operístico.
Quanto à sua essência serial, poder-se-ia Mas a adoção do serialismo expressio-
acreditar que a intenção de Schoenberg, ao nista terá outros desdobramentos, pois o
empregar do começo ao fim da ópera uma abandono do modelo tradicional da forma
mesma e única série dodecafônica, seria a sonata, com sua organicidade temporal
de garantir sua unidade. Mas não se trata progressiva, e o rompimento com a retórica
apenas disso: para apresentar um mundo clássico-romântica implicam a adoção de
sem saídas, “achatado” e escravizado, nada outros recursos técnicos e discursivos. Para
mais adequado que o dodecafonismo e sua tal, Schoenberg recorrerá, como boa parte
tendência intrínseca de promover a repeti- de seus contemporâneos, à música barro-
ção, quer pelo uso constante e cíclico das ca e renascentista, recolocando em uso a
doze notas cromáticas, quer pelo ininter- variação e a polifonia. Mas essas palavras
rupto reaparecimento da série básica e suas adquirem agora um novo sentido: a variação
derivações. Além disso – dada a ausência refere-se à “partição” – técnica de repartir
de melodias “cantaroláveis”, modulações, a série dodecafônica entre diversas vozes
cadências usuais e duplicações de oitava –, o fornecendo, assim, uma fonte inexaurível
ouvinte, não tendo condições de armazenar de linhas melódicas diferenciadas (mas
os elementos do discurso musical em seu cujo parentesco é difícil de perceber).
“teatro da memória”, prende-se ao “eterno” Com isso, o ouvinte não mais reconhecerá
presente dos acontecimentos, sendo arran- o tradicional “tema com variações”, mas
cado do tempo histórico para situar-se, mais “intuirá” a presença constante do arquétipo
propriamente, em um tempo mítico. A pró- sonoro7. Isso engendra uma nova espécie de
pria série dodecafônica, tal como utilizada, polifonia, pois, além do contraponto entre
realça esse aspecto, pois, além de possuir melodias, o ouvinte apreende a sequência
uma estrutura interna espelhada e autor- dos eventos como simultaneidade ou coe-
referente6, é menos utilizada como tema xistência, como verticalidade arquetípica,
melódico e mais como um arquétipo sonoro esmorecendo-se assim o tempo linear e as
subjacente a todos os acontecimentos. A relações de causa e efeito.
série afasta-se, portanto, do “humano” para Essas maneiras de estruturar a obra mu-
se comportar como uma espécie de Ein Sof: sical revelam Schoenberg como produto de
única, onipresente, invisível, ensimesmada seu tempo: é uma reação às crises sociais e
6 As últimas seis notas da série
são o retrógrado transposto
e intemporal, ela paira acima de tudo e de estéticas (na música, a crise da tonalidade e
das seis primeiras. todos, na “eternidade”. do allegro-de-sonata e, no campo literário,
7 Guardadas as devidas pro- Quanto à aparência, a música expressio- a crise do romance psicológico). Principal-
porções, a “Série Dode- nista, altamente dissonante e densa, borra os mente após a década de 1920, abandona-se
cafônica”, de Schoenberg,
assemelha-se ao “D’us”, limites entre declamação e canto, entre som o subjetivismo das eras anteriores e visa-se
de Moisés, ou à “Lei” e e ruído, entre harmonia/melodia e cor. Essa “[…] cada vez mais ao mito, no qual se ma-
ao “Castelo”, de Kafka: é
intemporal, inimaginável e
instabilidade proposital de colocar em sus- nifestam estruturas arquetípicas. No mito,
inexprimível. penso os limites das linguagens, inclusive a o homem – fundido com a vida universal

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– ainda não conquistou os contornos defini- Segundo Sacerdote); angelical e puro (Três
dos do Eu” (Rosenfeld, 1994, p. 21). Meninos); de príncipes “esclarecidos” e
De fato, na estruturação mítica, não é do amor espiritual (Tamino e Pamina); do
cada personagem singular ou um evento o “crime e castigo” (Monóstatos, Rainha
que compõe o todo, mas o inverso: a cena da Noite, Três Damas), da magia (flauta e
primordial (mito, parábola, etc.) desdo- sininhos), da Natureza (serpente, pássaros,
bra-se em diversas personagens e eventos animais da floresta) etc.
que são suas faces temporais8. Assim, em Esses reinos expressam-se por meio
Moisés e Arão, o tempo mítico sobrepuja das linguagens sonoras (ruído, balbucio,
o tempo histórico: passado e futuro dão palavra, canto), visuais (cores, imagens)
lugar à presentidade de um oráculo, o que e gestuais (comer, dançar, apontar, calar),
se realizará quaisquer que sejam as ações de presentes, em maior ou menor grau, em cada
suas personagens. Portanto, o apelo bíblico personagem de acordo com seu papel. Se em
não é tanto psicológico ou sociológico, mas Moisés e Arão a comunicação consiste em
místico, mítico e existencial. Como a es- um problema, aqui ela transborda: música,
truturação mítica não pode tergiversar, pois palavras, balbucios, cores, gestos permeiam
do contrário perde sua força de paradigma, o diálogo apaixonado entre os homens, dos
a ópera Moisés e Arão adota uma história homens com os animais e dos homens com
enxuta e de amplo conhecimento. Mas, a natureza. Se em Moisés e Arão o Povo
antes de desenvolver mais profundamente está reduzido às necessidades básicas e
a análise desses assuntos, é preciso abordar de sobrevivência, aqui se tem “fome de
A Flauta Mágica. linguagem”, linguagem que surge das ne-
cessidades morais, das paixões:
•••
“Todas as paixões aproximam os homens,
Tal como ocorre na relação entre Moisés forçados a se separarem pelas necessida-
e Arão, há, aqui, um conflito essencial entre des de procurar os meios de vida. Não foi
os mundos de Sarastro e da Rainha da Noi- a fome nem a sede, mas o amor, o ódio, a
te. Sabemos que Sarastro é o representante piedade, a cólera que lhes arrancaram as
do mundo solar, da iluminação, do reino primeiras vozes. Os frutos não fogem de
masculino da razão e que a Rainha da Noite nossas mãos, deles é possível alimentar-se
em tudo se lhe opõe: reino feminino do sem falar; persegue-se em silêncio a presa
obscurantismo, dos instintos primitivos, das que se quer comer: porém, para comover
paixões e da vingança. Mas, se na ópera de um jovem coração, para repelir um agres-
Schoenberg as posições encontram-se cris- sor injusto, a natureza dita acentos, gritos,
talizadas, na de Mozart há um contraponto lamentos. Eis as mais antigas palavras
constante entre os universos antagônicos, inventadas e eis por que as primeiras lín-
surgindo dessa tensão um drama em que guas foram cantantes e apaixonadas antes
as personagens podem mudar de posição, de serem simples e metódicas” (Rousseau,
vencer desafios e, portanto, evoluir. Essa 2003, p. 104).
palavra, tão cara ao classicismo iluminista,
sinaliza que as personagens e situações são Mozart nos apresenta esses diversos
humanas, ricas em diversidade e contradi- componentes, desde os “acentos, gritos
ções. Aqui, há uma diversidade de mundos: e lamentos” até as “línguas cantantes e
pré-mercantilista e idílico do “estado de apaixonadas”: os papagueados e balbucios
natureza” (Papagueno e Papaguena); ci- pré-linguísticos de Papagueno e Papague-
vilizado e monárquico (Sarastro, Rainha na; a agourenta e canora Rainha da Noite 8 Há, inclusive, quem encare
Moisés como sendo o para-
da Noite, Tamino e Pamina); da barbárie, com seu articulado bel canto vingativo; as digma por excelência, como
baixeza, perversidade e violência (Mo- exclamações, os gritos inarticulados mas sendo a “única” figura: as
demais seriam apenas seus
nóstatos, Rainha da Noite); do servilismo compreensíveis de Papagueno e Monósta- desdobramentos, projeções
(Escravos); das luzes (Sarastro, Orador, tos; a linguagem apaixonada de Tamino; a externas de sua psique.

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comunicação entre instrumentos “civiliza- SEGUNDA DAMA: Para que, no futuro, você
dos” (flauta transversal de Tamino) e “selva- nunca mais minta a estrangeiros.
gens” (flautinha de caniços de Papagueno); TERCEIRA DAMA: E nunca se vanglorie de
os sons mágicos da flauta de ouro (Tamino) feitos heroicos que outros realizaram.
e dos sininhos de prata (Papagueno); a lin- PRIMEIRA DAMA: Diga! Foi você que lutou
guagem simples e metódica, mas profunda, contra essa serpente? (Papagueno faz que
da música “hieroglífica” de Sarastro e seu não.)”
séquito de iluminados.
Mas, para transcender a expressão me- 2. IMAGEM
ramente sensível e atingir o inteligível, o Ato I, Cena III
iluminismo fará uso, por um lado, da lin-
guagem musical, com sua capacidade de ir TERCEIRA DAMA: Fomos nós, meu jovem,
além do sentido das palavras, e, por outro, que te salvamos. […] Olha! Isto foi enviado
do trunfo do silêncio9. Assim, sua grande pela grande princesa: é o retrato de sua filha.
mola propulsora é, como em Moisés e Arão, Se não permaneceres indiferente a essas
o binômio som-silêncio, que se desdobra em feições, felicidade, honra e glória te estarão
outros pares de oposição: gesticular/parali- destinadas, adeus! (Papagueno continua
sar, falar/calar, cantar/emudecer, tocar/não- gesticulando. Tamino, desde o momento em
tocar, olhar/não-olhar, todos permeados que recebeu o retrato, pôs-se a observá-lo,
pelos conflitos entre luz e sombra, dia e e o amor que o invade não deixa que escute
noite, razão e paixão, civilização e estado as últimas palavras das damas.)”
de natureza, sabedoria e ignorância, etc.
A partir de alguns trechos do libreto 3. SILÊNCIO CONTRA IMAGINA-
de A Flauta Mágica, pode-se mostrar de ÇÃO (OBSCENA); BELEZA CON-
que modo as várias formas de expressão TRA FORÇA E SEDUÇÃO; RUÍDO,
contribuem para formar esse universo co- GRITO E TREMOR
municacional ímpar10. Ato I, Cena V

1. SILÊNCIO, GESTO “TAMINO [ainda acreditando que Pamina fora


Ato I, Cena III arrancada de sua mãe, a Rainha da Noite,
No início da ópera, Tamino foi persegui- por ‘um demônio poderoso e cruel’]: Ó Pa-
do por uma serpente e então desmaiou. As mina! Arrancada de mim... em poder de um
Três Damas, que servem à Rainha da Noite, bandido obsceno! Talvez, nesse momento
mataram-na. As Três Damas se escondem e ele… que horrível pensamento!
Tamino (que troca os pássaros que apanha TRÊS DAMAS: Silêncio, meu jovem!
por alimentos e bebidas através das Três PRIMEIRA DAMA: Não blasfemes contra a
Damas) encontra Papagueno. Mentindo, amável virtude da Beleza. Apesar de todos
9 Na noite anterior à sua mor- Papagueno dá a entender que foi ele quem os tormentos que a Inocência padece, ela
te, Mozart teve um delírio matou a serpente. As Três Damas o casti- continua intocada. Nem a força nem a se-
em que se imaginava pre-
sente no Wiednertheater, gam: a Primeira Dama lhe dá água no lugar dução poderão arrastá-la para o caminho
na apresentação de A Flauta do vinho, a Segunda lhe traz pedra no lugar do vício.
Mágica. “Ele sussurrou à
sua esposa aquelas que se
de pão, ao passo que a Terceira anuncia: TAMINO: Dizei-me, senhoras, onde fica a
acredita serem suas últimas morada desse tirano? […] Eu vou salvar
palavras: ‘Silêncio! Silêncio!
“TERCEIRA DAMA: E, em vez de figos e doces, Pamina! E o bandido há de sucumbir à for-
Hofer [a primeira Rainha da
Noite] está cantando seu si tenho a honra de trancar a sua boca com ça de meus braços! Isso eu juro pelo meu
bemol agudo’” . esse cadeado de ouro. (Prende o cadeado amor! Pelo meu coração! (Logo se ouve
10 Logicamente, é essencial na boca de Papagueno, que expressa por um acorde violento seguido de música, que
que a leitura desses textos
seja acompanhada de sua gestos a dor que sente.) faz tremer a cena)”.
audição. (As palavras e PRIMEIRA DAMA: Quer saber por que a princesa
frases grifadas realçam as
está castigando você de modo tão extraordi- Tamino assusta-se e segue-se novo tro-
várias formas de expressão
apontadas.) nário hoje? (Papagueno faz que sim.) vão anunciando o recitativo e ária no 4 da

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Mozart e
Schoenberg em
desenho de Rita
Rosenmayer

Rainha da Noite afirmando que, se Tamino boca de Papagueno, que promete não
libertar sua filha, ele a terá para sempre: mentir mais.

“RAINHA DA NOITE: […] não tenho minha “TODOS (PAPAGUENO, TRÊS DAMAS): Se todo
filha ao meu lado; Vi minha alegria esvae- mentiroso tivesse um cadeado assim como
cer, raptada por um celerado. Ainda vejo o esse, sobre o ódio, calúnia e maldade, rei-
seu tremor, os calafrios de pavor, o pânico nariam o amor e a amizade”.
convulso, o trêmulo pulso. Vi quando a le-
varam de mim: ‘Socorro!’ Foi o que disse Em seguida, Tamino e Papagueno re-
então. Nada adiantou gritar assim, Pois cebem das Três Damas respectivamente a
meu esforço foi em vão”. flauta mágica de ouro e os sininhos mágicos
de prata.
4. GAGUEIRA E PERDA DA
ELOQUÊNCIA 5. ESPANTO, CORES
Ato I, Cena VII (no 5: Quinteto) Ato I, Cena XII
Papagueno vê, por uma janela, Pamina,
“PAPAGUENO (Aponta, triste, para o cadeado que foi acorrentada por Monóstatos.
que tem na boca): Hm, Hm, Hm, Hm… Hm,
Hm, Hm, Hm… “PAPAGUENO: Que moça linda encontrei! É
TAMINO: Bem fala o pobre em penitência: mais branca que o giz!
Perdeu de vez toda a eloquência”. MONÓSTATOS E PAPAGUENO [ao se defrontarem
– um verde, o outro negro – um se assusta com
Ato I, Cena VIII o outro]: Hu! É o di-a-bo em pessoa! Tem dó
As Três Damas tiram o cadeado da de mim... me perdoa! Hu! Hu! Hu!”

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Na Cena XIV Papagueno irá comentar: (Aponta para o coração. Toca. Imediata-
“Será que eu fiquei maluco me deixando mente surgem animais de toda espécie para
assustar assim? Se existem pássaros pretos escutá-lo. Quando Tamino para de tocar,
no mundo, por que não haveria também os animais fogem. Os pássaros cantam ao
gente preta?”. som da flauta.)
TAMINO: Que voz tão mágica e sonora! Doce
6. CALAR, FALAR DEMAIS flauta, tua melodia mesmo às feras traz ale-
Ato I, Cena XV(no 8: Finale) gria. Só Pamina fica de fora. (Toca) Pamina!
Tamino, acompanhado dos Três Meni- Pamina! Escuta a mim! Em vão! (Toca) Onde
nos, chega ao castelo de Sarastro, com três encontrar-te enfim? (Toca. Papagueno res-
templos: Sabedoria, Razão e Natureza. ponde, de fora, com sua flautinha)”.

“TRÊS MENINOS: O caminho leva ao teu Ato I, Cena XVI


destino: Hás de vencê-lo virilmente. Escu-
ta, pois, o nosso ensino: Sê firme, calado “P APAGUENO E P AMINA : Haverá alegria
e paciente. maior? Nosso amigo já nos escuta; Chegou-
TAMINO: Jovens gentis, dizei-me ainda: nos o som de sua flauta”.
Poderei eu salvar Pamina?
TRÊS MENINOS: Não nos cabe te revelar. Sê 8. MÚSICA:ADANÇADOS SININHOS,
firme, calado e paciente”. A PERFEIÇÃO DA HARMONIA
Ato I, Cena XVII
Em seguida, Tamino explica ao velho Papagueno e Pamina, através dos sini-
Sacerdote (Orador) do Templo da Sabedoria nhos mágicos que enfeitiçam Monóstatos
o que a Rainha da Noite alegou: que Pamina e seus Escravos fazendo-os dançar, conse-
teria sido sequestrada por Sarastro. guem livrar-se.

“ORADOR [respondendo a Tamino]: Uma “P AMINA E P APAGUENO : Agora estamos


mulher te enfeitiçou? Uma mulher fala perdidos!
demais. Crês tu em língua falaz?” PAPAGUENO: Quem não arrisca, não petisca!
Vamos, meus sinos queridos, Toquem até
Depois: sair faísca. Tilintando em seus ouvidos!
MONÓSTATOS E ESCRAVOS: Que som tão ale-
“TAMINO: Para onde a levou, o bandido? gre! Que som agradável! Laralá, laralá!
Sacrificada terá sido? Nunca ouvi algo tão formidável! Laralá,
ORADOR: Contar-te, filho, o ocorrido, Por Laralá! (Saem dançando).
ora, não me é permitido. PAMINA E PAPAGUENO: Tivesse um homem
TAMINO: Decifra-me, porém, o enigma. consigo sinos iguais a esses, Todo o seu
ORADOR: Meus votos selam-me a língua”. inimigo talvez desaparecesse. Assim ele
viveria na mais perfeita harmonia.
Mas, em seguida, aparecem Vozes (fora
de cena) dizendo a Tamino que Pamina ainda 9. SILÊNCIO: VENCENDO A
vive. De alegria, Tamino toca sua flauta. NATUREZA
Ato II, Cena III
7. MÚSICA E CORAÇÃO, MÚSICA Sarastro e seu séquito aceitam Tamino
E REINO ANIMAL, DIÁLOGO como um iniciado. Para isso aceita passar
INSTRUMENTAL pelos desafios do silêncio, da água e do fogo.
Ato I, Cena XV(cont.) O Orador e o Segundo Sacerdote fazem o
mesmo convite a Papagueno.
“TAMINO: Ah, se eu pudesse vos honrar, e
com minha flauta expressar, a cada nota, “PAPAGUENO: Lutar não é comigo. E, para
a gratidão que ressoa em meu coração! falar a verdade, também não estou procu-

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rando o saber. Eu sou homem da natureza; Mais uma vez não se contém e pretende
contento-me em comer, beber e dormir. E beijá-la (Ária no 13).
se um dia calhar de eu encontrar uma bela
mulherzinha…”. “MONÓSTATOS: Todos desfrutam do amor,
beijam e namoram com ardor. Não posso
Eles prometem-lhe, então, uma Papa- ter tal anseio, só porque um negro é feio!
guena, e Papagueno pergunta se antes ele Não terei um coração? Sou também de
poderá vê-la. carne e osso: sem mulher, viver não posso,
ou me consome a paixão. Quero, pois, já
“SEGUNDO SACERDOTE: Ver você pode, mas que estou vivo, beijos, namoros, sorrisos.
até que passe o tempo previsto, não pode Perdoa-me, doce lua, uma branca me fez
falar uma palavra com ela. Será que seu sua. O branco eu quero beijar, ó lua, escon-
espírito tem força de vontade bastante para de-te, pois! Se isso te contrariar, fecha os
segurar a língua? olhos para nós dois! (Lentamente avança
ORADOR: Também a ti, príncipe, os deuses para Pamina)”.
impuseram um silêncio salutar. Um descui-
do e estareis perdidos. Verás Pamina, mas 12. MORTE E ROMPIMENTO
não deves falar com ela. Aqui tem início o COM A NATUREZA
tempo das provas”. Ato II, Cena VIII (Ária no 14)

10. SILÊNCIO MASCULINO, FALA “RAINHA DA NOITE: Arde em meu peito a


FEMININA vingança infernal, sinto morte e desespero
Ato II, Cena V a me inflamar! Se não matar Sarastro o teu
Logicamente, Papagueno não consegue punhal, de filha nunca mais vou te chamar.
ficar quieto apesar dos apelos de Tamino. Serás banida e abandonada à própria sor-
te, rompidos serão, para sempre, os laços
“TAMINO: Papagueno, não fale mais, quer naturais, se não levares Sarastro à morte!
quebrar sua promessa? Com mulher, nada Deuses, ouvi as juras maternais! (Desapa-
de conversa! rece no alçapão).”
PAPAGUENO: Sempre calado e sempre ca-
lado!”. Monóstatos chantageia Pamina, toma-
lhe o punhal das mãos, ameaçando contar
Entram as Três Damas e ameaçam Ta- tudo o que ouviu a Sarastro. Ela só tem duas
mino comentando que a Rainha da Noite opções: amá-lo ou morrer. Ela não quer
entrou no Templo em segredo. Mas ele amá-lo e, no momento em que ele ameaça
e Papagueno permanecem calados. Elas apunhalá-la, entra Sarastro.
acabam desistindo e indo embora.
13. SILÊNCIO E CASTIGO
“TRÊS DAMAS: Vexadas, vamos vos deixar, Ato II, Cena XIII
ninguém falará com certeza! Forte é a alma
masculina, em vez de falar, raciocina”. Continua a peregrinação de Tamino e
Papagueno (com as cabeças cobertas) com
11. DESEJO, CORES, AMOR, o Orador e o Segundo Sacerdote
CORAÇÃO, FEIURA
Ato II, Cena VII “ORADOR: Os dois ficarão aqui sozinhos. Ao
Monóstatos observa Pamina dormindo soar dos trombones, entrarão. […] E mais
e comenta. uma vez, silêncio!
SEGUNDO SACERDOTE: Papagueno, aquele
“MONÓSTATOS: Essa moça ainda me deixa que romper seu voto de silêncio aqui, nes-
maluco! O fogo que arde em mim ainda há te lugar, será castigado pelos deuses com
de me consumir”. raios e trovões”.

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14. SILÊNCIO: ALERTA E “TRÊS MENINOS (Seguram-lhe o braço): Ó
SOLILÓQUIO infeliz, espera aí! Se teu marido te visse, à
Ato II, Cena XIV dor, talvez, sucumbisse; pois ama somente
a ti.
“PAPAGUENO (Após uma pausa): Tamino! PAMINA [caindo em si]: Quê? Ele me cor-
Tamino! respondia? Seu amor por mim escondia,
TAMINO (Alertando): Psshh! olhando para o outro lado? Por que, então,
P APAGUENO : Que vida engraçada! Eu ficou calado?
estaria bem melhor na minha casinha de TRÊS MENINOS: Não podemos dizer isso,
palha ou no bosque. Lá, pelo menos, eu mas vais vê-lo apesar disso!”
escutaria os pássaros cantarem de vez
em quando. 16. MÚSICA: MAGIA DO SOM,
TAMINO (Alertando): Psshh! DESAFIOS
P APAGUENO : Comigo mesmo eu posso Ato II, Cena XXVIII
falar. E com você também; nós somos Dois Homens de Armaduras comentam:
homens…”. “uma mulher que a noite e a morte desafia,
é digna de nossa confraria”. Tamino e Pa-
15. SILÊNCIO: PARADOXOS E mina poderão se falar novamente e juntos
AMBIGUIDADES vencerão, com a ajuda da flauta mágica, o
Ato II, Cena XVIII desafio do fogo.
Pamina encontra-se com Tamino, que
guarda silêncio absoluto. “PAMINA: Toca tua flauta encantada; que
ela nos guarde pela estrada. Meu pai, num
“PAMINA: Estás aqui? Bons deuses! Obri- instante de magia, talhou-a na madeira fria
gada por me conduzires por esse caminho. de um carvalho milenar, com a tempestade
Ouvi a flauta e, como uma flecha, corri a trovejar. Vem, toca tua flauta encantada,
atrás do som. Mas estás triste? Não vais que ela nos guie na horrível estrada.
dizer nem uma palavra à tua Pamina? TAMINO E PAMINA: Que o alegre som vos
TAMINO (Suspira): Ah! transporte pela noite escura da morte!”
PAMINA: Como? Tenho de evitar tua com-
panhia? Não me amas mais?” 17. SILÊNCIO E CEGUEIRA: ESPERA
E CONTAGEM REGRESSIVA
O “diálogo” continua dessa forma e ela Ato II, Cena XXIX
pergunta a Papagueno: Cansado de ser maltratado pela vida,
Papagueno resolve cometer suicídio en-
“PAMINA: Papagueno, me diga, o que há forcando-se.
com seu amigo?
PAPAGUENO [de boca cheia, segura com as “PAPAGUENO: Boa noite, mundo cruel! Já
duas mãos a comida e faz sinal para que que tanto me maltrata, das lindas moças me
ela se vá]: Hm! Hm! Hm! afasta, então chega! Então eu morro; belas
PAMINA: Como? Você também? Expliquem- donzelas, socorro! Se uma vier se apiedar,
me ao menos a razão desse silêncio. antes que eu vá me enforcar, pois bem, eu
PAPAGUENO: Psst! (Aponta para fora)”. largo de mão! Basta dizer: sim… ou não.
Nada escuto! Nada vejo! (Olha em torno de
Depois disso, Pamina pretende se matar si). Então esse é o seu desejo? Papagueno,
e na cena seguinte (XIX) Papagueno co- mãos à obra! Mate a vida que lhe sobra!
menta: “Viu Tamino? Eu também sei me (Olha em torno de si) Espero ainda uma
calar quando é preciso. É, numa situação vez, até contar: um, dois, três. (Toca sua
dessas, eu sou homem”. Na Cena XXVII, flauta.) Um. (Olha em torno de si; toca)
os Três Meninos, impedindo que Pamina Dois. (Olha em torno de si) O dois já se
se mate, dizem: desfez (Toca) Três! (Olha em torno de si)

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Pois bem, fico no três! Nada mais há sob o Ato II, Cena Final
céu. Boa noite, mundo cruel!”
“MONÓSTATOS, RAINHA DA NOITE E TRÊS
18. MAGIA DA MÚSICA DAMAS: Nosso poder foi esmagado, todos
Ato II, Cena XXIX (cont.) nós à noite eterna confinados”.

“TRÊS MENINOS (Descem voando): Deixe 21. CANTO DAS LUZES: FULGOR
soarem seus sininhos, sua amada virá di- DO DIA
reitinho”. Ato II, Cena Final (cont.)

19. PAPAGUEADOS “SARASTRO: Foi a noite expulsa pelo ful-


Ato II, Cena XXIX (cont.) gor do dia, que anulou o falso poder da
Os Três Meninos buscam Papaguena hipocrisia.
(sem disfarces). Quando Papagueno e Papa- CORO DOS SACERDOTES: Glória aos inicia-
guena se veem, ambos gaguejam musical- dos! Da noite, vencedores! A Isis e Osíris
mente com vários ritornellos as sílabas Pa… Graças e louvores! A força triunfou, e por
Pa…, etc. e têm uma atuação cômica. prêmio, abençoa o Saber e a Beleza com
eterna coroa”.
20. SILÊNCIO DAS SOMBRAS: NOITE
ETERNA •••
Ato II, Cena XXX
Monóstatos, Rainha da Noite e as Três A ação do silêncio (imposto ou autoim-
Damas surgem de dois alçapões carregando posto) e da música permite que a comunica-
tochas negras nas mãos. ção aprofunde tanto os laços sociais quanto o
crescimento espiritual individual. Silenciar,
“MONÓSTATOS: Silêncio! Silêncio! Silêncio! seja sob a forma de castigo (cadeado para
No templo, já vamos entrar. trancar a boca mentirosa de Papagueno) ou
RAINHA DA NOITE E TRÊS DAMAS: Silêncio! de desafio (Tamino não responde a Pamina,
Silêncio! Silêncio! No templo, já vamos que resolve então se matar), é impor uma
entrar. ética a um mundo de injustiças e apelos me-
MONÓSTATOS: Cumpri a promessa, majesta- ramente sensoriais (Monóstatos); é opor-se
de: Vossa filha vou desposar”. às trevas, ao obscurantismo e à ignorância
das ardilosas “forças do mal” (Rainha da
A Rainha da Noite e as Três Damas Noite); é abandonar a ingenuidade do “es-
confirmam essa promessa quando irrompe tado de natureza” (Papagueno); através da
o surdo rolar de trovões e ruído de água. “firmeza, silêncio e paciência”, é passar
da minoridade à maioridade atingindo o
“MONÓSTATOS: Silêncio! Ouço um horrível esclarecimento dos templos da sabedoria e
clamor, como trovão e queda d’água”. da razão (reino de Sarastro); é a capacidade
de refletir criticamente a própria situação.
A Rainha da Noite e as Três Damas o A outra face do silêncio é o som: a
confirmam. música pode expressar o obscurantismo do
mal (árias da Rainha da Noite) e também
“MONÓSTATOS: No templo estarão reunidos. dominá-lo com seus instrumentos mágicos
Lá serão por nós surpreendidos, e a beatice (flauta de Tamino e sininhos de Papagueno).
da terra, extirpada com o poder do fogo e Só a música tem condições de preencher
da espada. e de transcender o sentido das palavras
MONÓSTATOS E TRÊS DAMAS: Ó grande Rai- aumentando-lhes a força de persuasão. À
nha da Noite, da vingança, sede o açoite. música é dada a magia de expressar o que de
(Ouve-se um altíssimo acorde: trovões, outra forma não pode ser dito. Mas se silên-
raios, tempestade)”. cio-música é um binômio, seus respectivos

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papéis também podem se inverter: assim é mais virtude ou espaço de reflexão, mas
como o silêncio é um espaço de tempo em sintoma de irracionalidade, fragmentação,
que as ondas sonoras ainda reverberam em individuação e esgarçamento do tecido
nossos ouvidos e memória, a música pode social. O silêncio torna-se um sintoma de
atuar como um sonoro silêncio preenchendo desumanização e incomunicabilidade: pas-
as fissuras da comunicação não-verbal. mado, o homem se dá conta de que já não
Para Moisés, as linguagens e suas formas há qualquer espécie de transcendência e que
de manifestação são um erro, uma forma de tudo o que um dia fora sólido e estabelecido
adoração da imagem, a queda do homem desmanchou-se no ar. Nos termos de Rous-
no mundo sensorial e físico. Aqui, a música seau, poder-se-ia afirmar que esse homem
e a palavra opõem-se ao silêncio, há um moderno “voltou” a uma era de violência,
conflito insuperável entre o sensível e o porém, com uma diferença: sabendo que
inteligível. Em A Flauta Mágica, ao invés, os mecanismos de eloquência e sedução
o sensível é condição e degrau necessário da linguagem (de massa) são armas por
ao desvelamento do inteligível. vezes muitos mais perigosas e eficientes
Essa cumplicidade entre som e silêncio, do que as da força bruta, ele procurará
que atravessa a ópera inteira de Mozart, já anulá-los. E o campo artístico não foge
fica patente desde a Abertura: no compasso desse paradoxo: é que para refletir em suas
inicial do “Adagio”, há três acordes segui- obras a nova “desordem” civilizatória, os
dos respectivamente de três pausas (com criadores irão minar as linguagens a partir
fermatas a fim de valorizá-las!)11; segue- de seu interior, e o silêncio das notas e das
se o “Allegro” cujo acorde final está na palavras, assim como o branco do papel
dominante (si bemol maior). Aqui Mozart e das telas, irá pouco a pouco arruinar os
brinca com seus ouvintes, pois esse último antigos modelos retóricos e discursivos.
acorde (de uma cadência forte) é seguido Rousseau, aparentemente um pessimista,
de uma pausa dando a impressão de ser o apontou criticamente para esse processo
ponto final da Abertura quando, na verdade, que conduziria da fé otimista no poder da
é a chave para a “inesperada” introdução linguagem iluminista à desconfiança da era
(“Adagio”) da seção de Desenvolvimento moderna em relação à linguagem e seus
com seus acordes repetidos, só que na do- perigosos ardis.
minante (si bemol)
Mozart tira, pois, o máximo proveito “Longe de ser o maravilhoso espelho da
do fato de o som só adquirir sentido co- Razão, o lugar da verdade, a linguagem
municativo pela imposição do silêncio e seria sempre o lugar do mal-entendido e
pelo distanciamento por ele propiciado. do engodo, um biombo interposto entre os
Ele tem consciência de que o sensível (vi- homens” (apud Prado Jr., 2008, p. 18).
brar, falar) e o inteligível (silenciar, calar)
são mutuamente dependentes. Assim, no Isso poderia ter sido tranquilamente
universo iluminista de Mozart, o silêncio afirmado por Moisés e, de fato, sua pos-
torna-se uma virtude: é o distanciar-se do tura é de tal forma semelhante à crítica de
mundo para compreendê-lo e colocá-lo a Rousseau sobre a linguagem que o ques-
serviço da própria humanidade. É por essa tionamento de Foucault pode se aplicar a
razão que o silêncio não se restringe à es- ambos indistintamente:
fera “gramatical” e extrapola para o âmbito
“retórico” interferindo, assim, no próprio “Por ter querido algo melhor que a comu-
desenvolvimento das personagens: sua pre- nicação humana convencional, não estaria
sença eleva Tamino, e sua ausência não dá ele condenado a sofrer a ausência de co-
condições a que o “selvagem” Papagueno municação? Não se tornaria ele prisioneiro
11 Não há como não pensar voe acima de seu mundo “natural”. de uma rede de signos que, em vez de lhe
no paralelo desse trecho
com o início da 5a Sinfonia,
A ópera de Schoenberg reflete o perío- revelarem a alma dos outros, o remetem à
de Beethoven. do entreguerras em que o silêncio já não sua própria angústia ou o trazem de volta

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ao seu passado? Tal parece, de fato, ter som-silêncio, ou seja, pela manifestação da
sido, para Rousseau [ou Moisés], o poder língua enquanto ato sonoro:
dos signos: em vez de lhe darem acesso
ao mundo, foram (como para Narciso, a “Na leitura, o olho treinado do Gramático ou
superfície do espelho) o instrumento atra- do Lógico deve subordinar-se a um ouvido
vés do qual o eu se torna escravo de seu atento à melodia que dá vida aos signos:
próprio reflexo” (Foucault, apud Prado Jr., estar surdo à modulação da voz significa
2008, p. 22). estar cego às modalidades do sentido”
(Prado Jr., 2008, p. 31).
Essa leitura nos permite constatar que,
de fato, tanto o silêncio de Moisés quanto Embora a potência da ópera provenha
o Bezerro de Ouro são sintomas de uma era especialmente do ato sonoro, não se pode,
narcísica12, do “Eu” que não consegue ver contudo, menosprezar a força da imagem,
a si mesmo pelos olhos do “Outro”: que se liga intimamente à imaginação:
Tamino apaixona-se à primeira vista por
“Para bem apreciar a ação dos homens é pre- Pamina olhando a imagem de seu retrato,
ciso examiná-los em todas as suas relações, e Papagueno aceita ficar com a horrorosa
e é isso que absolutamente não nos ensinam Mulher Velha, pois necessita de “alguma
a fazer: quando nos colocamos no lugar dos mulherzinha”. Já no mundo de Moisés e
outros, colocamo-nos sempre como somos, Arão, a imagem tem a reversa: realça a detur-
já modificados, não como eles devem ser; e pação da ideia pura de Moisés empregando
quando pensamos julgá-los racionalmente uma estética expressionista “mundana” que
apenas comparamos seus preconceitos aos nega o “belo” e adota o grotesco, o baixo
nossos” (Rousseau, 2003, p. 144). e mesmo o abjeto. Isso poderia nos levar
a pensar que, enquanto A Flauta Mágica
Já em Mozart, esse colocar-se no lugar caminharia na direção da leveza e da as- 12 Na montagem de 2006
do outro é plenamente factível, nem que o cese espiritual, Moisés e Arão teria uma de Moisés e Arão (Coro
outro seja, aqui, um estranho ser do rous- tendência à pesadez material. No entanto, da Ópera Estatal de Viena
e Coro da Filarmônica Es-
seauniano “estado de natureza”. Exemplo sua construção mítica produz um efeito sus- lovaca, sob a regência de
disso é o diálogo entre Tamino e Papague- pensivo, “sobre-humano”, que possibilita Daniele Gatti), o Bezerro
de Ouro foi substituído
no (A Flauta Mágica, Ato I, Cena II) que aos espectadores manter um distanciamento por grandes letras douradas
mostra, com ironia, a ingenuidade do “ci- crítico da cena, por mais grotesca e chocante formando a palavra ICH
(“EU”), deixando patente
vilizado” frente ao “bom selvagem” e faz que seja. A esse respeito, é relevante o comen- a relação entre idolatria e
deste último um espelho para a autocrítica tário do próprio Schoenberg: “Meu Moisés espelhamento narcísico.
civilizatória13: se parece mais – é claro que só com respeito 13 Rousseau afirma: “Desde
ao aspecto exterior – com o de Michelan- que, de trezentos ou qua-
trocentos anos para cá,
“TAMINO: Diga, meu alegre amigo, quem gelo. Absolutamente não é humano” (apud os habitantes da Europa
é você? Steiner, 1988, p. 171). Portanto, ao contrário inundaram as outras partes
do mundo e não cessam
PAPAGUENO: Quem sou eu? (À parte.) Que de Mozart, que costura a teia dramática a de publicar novos relatos
pergunta idiota! (Em voz alta.) Eu sou partir das singularidades de tipos humanos e coletâneas de viagens,
estou convencido de que,
gente, que nem você. E se eu perguntasse ou semi-humanos, Schoenberg, com sua acerca dos homens, conhe-
quem você é? abordagem modernista barroquizante, vai cemos apenas os europeus;
TAMINO: Eu responderia que sou da linha- do todo à parte, da “visão instantânea” às preconceitos ridículos, que
não se extinguiram mesmo
gem real. particularidades: entre os homens de letras,
PAPAGUENO: Isso é elevado demais para levam cada um a fazer ape-
nas, sob o nome pomposo
mim”. “Naturalmente, o compositor, ao escrever de estudo do homem, o
uma peça, não junta pedacinhos uns aos dos homens de seu país.
Por mais que os indivíduos
Em um contexto de ignorância e et- outros, como uma criança que faz uma se desloquem, é como se a
nocentrismo, o papel da comunicação é construção com blocos de madeira, mas filosofia não viajasse e a de
cada povo não prestasse a
fundamental, e só pode manifestar-se em concebe a composição em sua totalidade um outro” (Rousseau, 2008,
seu sentido mais pleno a partir do binômio como uma visão espontânea; só então é que p. 140).

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inicia a elaboração, como Michelangelo no segundo ato, da “Dança em torno do
que talhou seu Moisés em mármore sem Bezerro de Ouro”, a música, fazendo uso
utilizar esboços, completo em cada detalhe, de materiais e formas mais tradicionais com
formando, assim, diretamente, seu material” ritmos de marcha e de dança, irá tingir-se
(Schoenberg, 1993, p. 28). de dourado e terá fortes apelos “sensuais”,
só retornando à cor original com a volta de
Os elementos particulares já não pos- Moisés do Monte Sinai.
suem sentido isoladamente: imbricados ou Esses dados nos mostram que o expres-
fundidos entre si, obscurecem os limites que sionismo de Schoenberg realiza uma série
distinguem as linguagens uma das outras das de inversões: o grotesco é colocado no lugar
outras. Essa “confusão” imagética seria para do sublime, a palavra e o canto mudam de
Rousseau e sua época um contrassenso: posições continuamente, o todo é valorizado
em detrimento das partes, a sinfonia (Ato
“Cada sentido tem seu campo que lhe é II) substitui a voz (Ato I), a bidimensiona-
próprio. O campo da música é o tempo, o lidade substitui a noção de profundidade e
da pintura é o espaço. Multiplicar os sons assim por diante.
ouvidos ao mesmo tempo ou desdobrar as Mozart também realiza diversas inver-
cores uma após outra significa transformar sões: na Cena VIII do segundo ato, reserva,
sua economia, é colocar o olhar no lugar para a famosa Ária no 14 (“Arde em meu
do ouvido e o ouvido no lugar do olhar” peito a vingança infernal”) da grotesca e
(Rousseau, 2003, p. 162). vingativa Rainha da Noite, um “sublime”
bel canto. Se no sprechgesang havia um
O que o expressionismo faz é justamente predomínio da palavra sobre o canto, aqui
confundir os limites dos sentidos reunindo, ocorre o inverso: a música expressa tudo o
em um só corpo, o que resta da fragmenta- que não pode ser dito com palavras. Estas
ção das linguagens e da existência humana nos falam da ameaça da Rainha da Noite
dilacerada14. Contudo, o afastamento em de deserdar sua filha caso esta não mate
relação à ótica rousseauniana não é tão gran- Sarastro. Mas quem transmite toda a carga
de assim, pois se a língua foi no princípio explosiva, vingativa e “bruitista” dessa ave
poesia e música simultaneamente, agora, a canora agourenta do submundo é a música,
música expressionista funde novamente o que quebra as inflexões das palavras, altera
canto, o gesto, a fala e a cor: daí o bruitismo e amplia suas entonações e, inclusive, aban-
de Schoenberg ter como fortes aliados os dona a palavra a fim de intercalar extensos
14 O que, em termos de forma
e conteúdo, propiciou não apelos verbal do sprechgesang e “visual” vocalizes puramente melódicos. É como se
apenas a retomada dos da Klangfarbenmelodie15. as palavras implorassem para que a música
mitos ocidentais, como o
emprego de técnicas de Já A Flauta Mágica apresenta uma excedesse seus significados:
bricolagem associadas à “paisagem sonora” de cores variadas e
mitologia de povos não-
complementares interagindo seja por meio “A melodia, ao imitar as inflexões da voz,
ocidentais (Picasso é um
exemplo disso). dos contrastes timbrísticos das vozes so- exprime os lamentos, os gritos de dor ou
15 Klangfabernmelodie é o listas, seja através das texturas orquestrais de alegria, as ameaças, os gemidos; todos
emprego de várias colora- e harmônicas que acompanham o verde os sinais vocais das paixões são de sua al-
ções timbrísticas para uma
mesma nota, ou para uma Papagueno, o negro Monóstatos, o solar çada. Imita ela os acentos das línguas, e as
sequência delas, através da Sarastro, a noturnal Rainha, etc. Some-se a expressões ligadas em cada idioma, a certos
distribuição das notas entre
instrumentos de diferentes
isso a noção tridimensional propiciada pelo movimentos da alma: ela não somente imita,
timbres. uso do sistema tonal com sua rica resso- ela fala; e sua linguagem inarticulada mas
16 De fato, muitas montagens nância de harmônicos. Por sua vez, a “pai- viva, ardente, apaixonada, tem cem vezes
mostram os israelitas tra- sagem sonora” de Moisés e Arão, com sua mais energia do que a própria palavra. […]
jando roupas da época
da guerra com esses tons, textura dissonante e sua massa densamente Não importa o que se faça, o ruído, sozinho,
inclusive portando malas e polifônica, será em tons de marrom e cinza nada diz ao espírito; os objetos devem falar
pertences como se estives-
sem sendo mandados aos pintados em um plano mais bidimensional para se fazerem compreender; em qual-
campos de concentração. de menor ressonância harmônica16. Porém, quer imitação é preciso que uma espécie

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de discurso venha sempre suprir a voz da Ao que Tamino replicará:
natureza. O músico que deseja expressar o
ruído pelo ruído se engana; ele não conhece “TAMINO: Ó noite eterna! Irás clarear? A luz
nem a fraqueza nem a força de sua arte; seu tornarei a enxergar?
julgamento carece de gosto, de luzes. Ensi- ALGUMAS VOZES (Fora de cena): Logo, jo-
nai-lhe que deve expressar o ruído através vem, ou jamais!”
do canto; que, para fazer coaxar as rãs, seria
preciso fazê-las cantar: pois não lhe basta Esse é um dos momentos cruciais da
imitar, é preciso que ele emocione e que ópera. É o momento em que Tamino ainda
agrade; sem o que, sua enfadonha imitação não sabe que reino está com a verdade: o
não tem nenhum valor e, como não interessa da “noite eterna” da Rainha da Noite ou
a ninguém, não causa nenhuma impressão” o da “luz” de Sarastro. As inversões são
(Rousseau, 2003, pp. 154-6). paradoxais: de um lado, o bel canto agudo
e luminoso de soprano da Rainha da Noite
Mozart acompanha Rousseau de perto: e, de outro, o sóbrio, pausado, ritmado
tudo o que envolve paixão está do lado da e sombrio solo de baixo do Orador. É o
melodia. No sentido inverso, tudo o que diz “ponto de mutação” de Tamino, que terá
respeito à razão e à virtude é fundamental- de vencer desafios (“ritos de passagem”)
mente harmonia. Se a melodia prescinde para transcender o “negro véu” a fim de
da aparência das palavras a fim de expor alcançar o “amor fraterno”.
seus conteúdos imanentes, a harmonia Vemos, assim, que A Flauta Mágica
respeitará tanto a forma quanto o conteúdo está repleta de ambiguidades que fazem
das palavras, articulando-as claramente em dela um drama essencialmente humano. Já
padrões regulares e parcimoniosos. É dessa o modernismo da era Schoenberg, com sua
forma, utilizando homofonias, que Mozart abordagem mítica, é inflexível e intemporal.
transmitirá a impressão de ascetismo e dis- Rígido como o cajado de Moisés, opera,
ciplina da confraria de Sarastro. Podemos desde o início, com situações irreversíveis:
constatá-lo na Cena XV do primeiro Ato17 Moisés sempre terá a língua travada; jamais
em que Tamino pergunta ao Orador se Sa- confiará em seu Povo; seu conflito com Arão
rastro teria sequestrado Pamina: será permanente; Arão traduzirá e continua-
mente trairá sua ideia, etc. O classicismo da
“ORADOR: Sim, é verdade o que declaras. era Mozart afirma o tempo e é flexível como
TAMINO: Para onde a levou, o bandido? a serpente de Arão, tal como a transição
Sacrificada terá sido? dramática que vai do mundo sensorial e
ORADOR: Contar-te, filho, o ocorrido, por passional do primeiro ato à ascese racional
ora, não me é permitido. e fraterna do segundo. Em tese, tudo é re-
TAMINO: Decifra-me, porém, o enigma. versível, pois só há verdadeiramente drama
ORADOR: Meus votos selam-me a língua. quando as personagens, comunicando-se,
TAMINO: E quando o negro véu cairá?”. alteram suas posições e experimentam a
mudança. Sendo essencialmente humanos,
A essa pergunta, o Orador responde com também há espaço para as figuras do herói
um solo melódico banal, acompanhado de (Tamino) e do anti-herói (Papagueno),
uma cadência harmônica o mais simples o que já não pode ocorrer em Moisés e
possível, mas completa e fechada sobre Arão. Nessa ópera, o primeiro e segundo 17 Além de ler, é importante
si mesma18, de modo a mostrar a retidão atos, embora tematicamente relacionados, ouvir esse trecho.
da confraria de Sarastro, a sobriedade da são como duas obras separadas, tanto nas 18 Sua harmonia é: i-VI-ii-V-i,
“iluminação racional” e, ao mesmo tempo, relações entre vozes e orquestra como no em um processo similar à
série dodecafônica autor-
incitar Tamino a desvendar este enigma: gênero musical empregado: o segundo ato referente de Moisés e Arão.
deixa de ser propriamente vocal e operístico Daniel Albright (2000, p. 44)
denominou esse trecho de
“ORADOR: Assim que te unir o amor fraterno (ou teatral) para se tornar um movimento “fonóglifo”, uma espécies de
ao templo, por um laço eterno”. sinfônico de “música de programa”, uma hieróglifo sonoro.

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espécie de sinfonia em cinco movimentos mundos tão distanciados potencializa o
em que o balé descreve todos os tipos de progresso de Tamino rumo à iluminação
orgias em torno do Bezerro de Ouro. racional e, ao mesmo tempo, mostra que os
Ambas as óperas empregam, pois, uma iniciados, com sua ética altruísta, têm con-
“mistura de gêneros”: Mozart contrasta o sé- dições de perdoar os pecados e os fracassos
rio e o bufo, enquanto Schoenberg contrasta do “bom selvagem” Papagueno:
o vocal e o sinfônico. Essa diferença fala
igualmente de suas atitudes divergentes em “A piedade […] permaneceria inativa sem
relação ao passado: enquanto a história de a imaginação que a põe em ação. Como nos
Schoenberg permanece no passado bíblico deixamos vencer pela piedade? Transpor-
para, com isso, comentar os tempos atuais, tando-nos para fora de nós mesmos, iden-
Mozart emprega o passado no presente a tificando-nos com o seu sofredor. Somente
fim de, pelo conflito entre ambos, realçar a sofremos na medida em que julgamos que
autocrítica iluminista de sua própria época. ele sofre; não é em nós, é nele que sofre-
Nesse contexto, o “selvagem” Papagueno, mos. […] Aquele que nunca refletiu não
tão bem descrito por Rousseau, tem um pode ser nem clemente, nem justo, nem
papel fundamental: compassivo; também não pode ser mau e
vingativo. Aquele que nada imagina sente
“O homem selvagem, privado de todos os apenas a si mesmo, está só em meio ao
tipos de luzes, experimenta as paixões […]. gênero humano. […] A reflexão nasce da
Seus desejos não excedem suas necessi- comparação das ideias e é a pluralidade
dades físicas. Os únicos bens que conhece das ideias que as leva a ser comparadas.
no universo são o alimento, uma fêmea e Quem vê apenas um único objeto não
o repouso; os únicos males que teme são possui ponto de comparação”(Rousseau,
a dor e a fome. Sua imaginação nada lhe 2003, pp. 125-6).
sugere, seu coração nada lhe pede. […]
Sua alma, que nada agita, entrega-se ape- Por seu turno, o Povo, em Moisés e
nas ao sentimento atual da existência, sem Arão, é uma massa indistinta, escravizada e
nenhuma ideia de futuro, por próximo que “bestializada” que não tem como escapar da
seja, e seus projetos, limitados como sua sentença do oráculo que, logo no início da
visão, mal se estendem até o fim do dia” ópera, proclama pela Voz da Sarça Ardente
(Rousseau, 2008, pp. 57-8)19. (Moisés e Arão, Ato I, Cena 1):

Papagueno não vive exatamente neste “VOZ DA SARÇA ARDENTE: Este povo foi
tempo atual e, carecendo da ideia de futuro, eleito dentre todos os povos para ser o povo
sequer vive no tempo. Sua função é similar do D’us único, para conhecê-lo e só a ele
à de um Dom Quixote cuja visão de mundo consagrar-se inteiramente; para submeter-
idealista anacrônica torna-o comicamente se a todas as provações concebíveis pelo
ingênuo. Em meio a um drama de amor, pensamento através de milênios”.
sedução, vingança e iluminação, cujo herói
Tamino tenta salvar a adorada Pamina do As palavras do oráculo são enigmáti-
aparentemente maléfico Sarastro, é a figura cas: não seria o próprio Bezerro de Ouro
de Papagueno que permite que se opere esse um deus único ao qual o povo se consagra
mesmo deslocamento: vindo de um tempo inteiramente? E Moisés, destruindo-o, não
mítico, Papagueno “vive fora do tempo” e estaria restaurando a verdade de seu D’us e
“cai de maduro” em um tempo histórico. A assim confirmando o oráculo? Não estaria
19 Lembremo-nos das palavras ingenuidade de Papagueno não lhe permite ao mesmo tempo destronando Arão de seu
de Papagueno no Ato II,
Cena III:“Eu sou homem da “evoluir” como Tamino, mas seu “estado de papel de líder e solapando a força de suas
natureza; contento-me em natureza” serve de lição ao mundo civilizado palavras e atos? Não estaria arrancando o
comer, beber, dormir. E se
um dia calhar de encontrar
que ainda convive com o mal e apresenta povo dessa nova escravidão à imagem?
uma bela mulherzinha…”. valores duvidosos. Esse convívio de dois Ao mesmo tempo, o oráculo não estará

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confirmando a “servidão” humana a um Em Moisés e Arão não há permeabi-
único D’us ao qual deverá “consagrar-se lidade, comunicação e trânsito possíveis
inteiramente”? De acordo com Rousseau, entre a retidão vertical intemporal do sa-
os primeiros movimentos do “estado de na- grado e a sinuosidade temporal da marcha
tureza” são bons e retos, mas os obstáculos histórica do profano. A Flauta Mágica, ao
nos afastam desse eixo vertical: invés, não apresenta tamanha cisão entre
História e Ética: o universo de Sarastro é
“Todos os primeiros movimentos da na- alcançável, desde que se vençam os desa-
tureza são bons e retos. Tendem, o mais fios à frente. Pode-se ascender do mundo
diretamente possível, à nossa conservação profano dos instintos e das paixões ao
e nossa felicidade: mas logo faltando força mundo sagrado das Luzes ou do Logos.
para seguir sua primeira direção através de Nesse caso, a linguagem ainda se encontra
tanta resistência, deixam-se afastar por mil a serviço da comunhão e da não-violên-
obstáculos que os desviam do verdadeiro cia, ela dá condições de frear e superar as
fim, fazem-nos tomar caminhos oblíquos forças do mal:
em que o homem esquece sua primeira
destinação” (Rousseau, 2003, p. 43). “Ali onde começa a linguagem, ali também
acaba a violência. Na linguagem, por obra
Mas, dentro de uma ótica mítica, essa da linguagem, o adversário do discurso,
“geometria” de Rousseau irá se transformar o homem da violência é, por assim dizer,
em um “eterno retorno”, já que a destruição desarmado e conquistado, transportado,
do Bezerro e a quebra da Tábua podem ser contra a vontade, para o universo do ‘razoá-
vistos como a restituição da retidão original. vel’. Quer dizer que jamais se interrompe a
Dessa feita, Moisés falou e agiu, fazendo comunicação entre o logos e seu contrário,
com que o Bezerro se evaporasse: “Desa- que o logos ainda ‘é um grande senhor’”
pareça, ó imagem da impossibilidade de (Prado Jr., 2008, p. 85).
confinar o infinito em uma imagem!” (Moi-
sés e Arão, Ato I, Cena 4). Assim, a quebra Mas em tempos da força bruta, quer de
da Tábua, que aparentaria ser a derrota e a um faraó ou de um Führer, já não há mais
frustração de Moisés, pode ser encarada linguagem possível, quem dirá eloquência:
como o restabelecimento do paradigma reina a “política moderna” da separação, o
ético e o consequente fracasso da media- renascimento da barbárie:
ção de Arão. Esse eixo paradigmático é a
própria “ideia”, o D’us de Moisés, que não “Aplicai tais ideias aos primeiros homens,
pode ser olhado de frente nem nominado, verei a razão de sua barbárie, tendo sempre
mas apenas olhado de esguelha e contor- visto apenas o que os rodeava, nem mes-
nado. Ele é o cajado nas mãos de Moisés: mo isso conheciam; não se conheciam a si
incomunicável, é o silêncio da retidão, da mesmos. Possuíam a ideia de um pai, de um
verticalidade onde não há nem tempo nem filho, de um irmão, e não a de um homem.
espaço, mas em torno do qual “serpenteia […] Esses tempos de barbárie eram o século
obliquamente” o espaço-tempo da história de ouro, não por estarem os homens unidos,
humana. É o eixo mítico que subjaz aos mas por estarem separados” (Rousseau,
movimentos cíclicos de um povo que, uma 2003, pp. 126-7).
vez arrancado da escravidão, escraviza-se
novamente a uma imagem. Evaporada a Se em A Flauta Mágica predomina a
imagem, o povo retomará seus ciclos his- força da linguagem, em Moisés e Arão
tóricos “através de milênios”, como afirma impera a linguagem da força. Os signos
o oráculo, e nada mais pertinente que a humanos foram suprimidos, a energia da voz
imagem do vagar como nômade pelo espaço já não pode entoar os “hinos à liberdade”
do deserto, logicamente, sem Moisés, que iluministas. No lugar dos discursos, resta-
já cumpriu sua árdua missão. ram apenas sermões:

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“As línguas formam-se naturalmente se- objetos do que o teriam feito com longos
gundo as necessidades dos homens; elas discursos” (Rousseau, 2003, pp. 99-100
transformam-se e se alteram segundo as – grifos nossos).
transformações dessas mesmas necessida-
des. Nos tempos antigos, em que a persua- Assim, em Moisés e Arão, o povo ne-
são servia de força pública, a eloquência era cessita ser convencido por meio de sinais e
necessária. De que serviria ela hoje, quando imagens: cajado transformado em serpente,
a força pública substituiu a persuasão? Não mão curada da lepra e águas do Nilo trans-
se precisa nem de artifício nem de figuras formadas em sangue. Esse “império dos
de estilo para dizer: esta é minha vontade. sentidos” visuais, gestuais e táteis atinge
Que discursos restam a fazer, portanto, ao o ápice com as orgias de sexo, sacrifício e
povo reunido? Sermões. E que importa aos morte diante do Bezerro de Ouro. De fato,
que os fazem se estão persuadindo o povo, após ter descido a montanha e evaporado o
visto que não é ele que distribui os bene- Bezerro, Moisés pergunta a Arão o que ele
fícios? As línguas populares tornaram-se fez, ao que este responde: “Nada de novo!
para nós tão perfeitamente inúteis quanto Somente aquilo que foi sempre minha mis-
a eloquência. As sociedades adquiriram são: quando tua ideia não produz nenhuma
sua última forma: nelas só se transforma palavra, e minha palavra nenhuma imagem,
algo com artilharia ou escudos; e como realizo um milagre para seus olhos e ouvi-
nada mais se tem a dizer ao povo, a não dos” (Moisés e Arão, Ato II, Cena 5).
ser dai dinheiro, dizemo-lo com cartazes Se em Moisés e Arão o espetáculo
nas esquinas ou com soldados dentro das imagético do milagre é pura presentidade,
casas. Não se deve reunir ninguém para é efeito instantâneo e épico, em Mozart os
isso; pelo contrário, é preciso manter as fatos apresentam-se sob o efeito temporal
pessoas separadas; é a primeira máxima da música:
da política moderna” (Rousseau, 2003a,
p. 175). “Quando se trata de emocionar o coração e
de inflamar as paixões, a coisa é totalmente
Onde os discursos falharam e os pró- diferente. A impressão sucessiva do discur-
prios sermões fracassaram, será preciso so, que age através de golpes redobrados,
“argumentar para os olhos”: oferece-vos uma emoção bem melhor do
que a presença do próprio objeto, diante
“Embora a linguagem do gesto e da voz do qual, com um olhar, tereis visto tudo.
sejam igualmente naturais, a primeira, […] A conclusão é que os sinais visíveis
contudo, é mais fácil e depende menos das tornam a imitação mais exata, mas que o
convenções […]. O que os antigos diziam interesse é bem mais excitado pelos sons”
com maior intensidade não era expresso (Rousseau, 2003, pp. 100-1).
por palavras mas por sinais; não o diziam,
mostravam-no. Não é casual, portanto, a relevância
Abri a história antiga; encontrá-la-eis re- que Mozart confere à magia dos sons e da
pleta destas maneiras de argumentar para música: à música cabe a responsabilidade
os olhos, e elas nunca deixam de produzir de estabelecer a comunicação e o vínculo
um efeito mais seguro do que todos os entre diversos reinos, desde o mais animal
discursos que se poderiam colocar em seu e bárbaro ao mais humano ou transcenden-
lugar. O objeto oferecido, antes de falar, faz tal. A música, como sucessão temporal de
vibrar a imaginação, excita a curiosidade, situações conflitantes, cria expectativas, une
mantém o espírito suspenso e na expecta- aquisições passadas a interesses futuros e,
tiva do que se vai dizer. […] Os profetas portanto, humaniza o homem. Linguagem e
dos judeus, os legisladores dos gregos, ao silêncio, de mãos dadas, são proximidade e
oferecer frequentemente ao povo objetos afastamento, unem o sensível ao inteligível.
sensíveis, falavam-lhe melhor com tais Em Moisés e Arão, o silêncio é um absolu-

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to: o afastamento total ou a perda total da do-se ao solo: “Oh palavra, oh tu palavra
capacidade de comunicar o que não pode que me faltas!”.
ser expresso de outro modo. Não há como A esse respeito, George Steiner (1988,
não pensar, aqui, na frase de Sêneca: “Curae p. 176) comentou:
leves loquuntur, ingentes stupent”20.
Com Moisés e Arão, Schoenberg aborda “Esse é um dos momentos mais emocionan-
aquela que foi uma das grandes questões tes e dramáticos na história da ópera e do
do século XX: o questionamento da lin- teatro modernos. Com sua alusão implícita
guagem e do silêncio. Silêncio esse que ao Logos, à Palavra que ainda está por vir,
o O Grito de Edvard Munch, em 1893, já mas que se situa além da fala, reúne em
denunciara: o pasmo e o impasse de uma uma única ação tanto a pretensão da música
época diante dos acontecimentos, da morte em ser o idioma mais completo, o veículo
de Deus, da derrocada dos idealismos de de energias transcendentais, como tudo
um mundo destituído de valores. Tudo isso aquilo que se percebe na arte e na filosofia 20 “As pequenas preocu-
pações se manifestam, as
magistralmente sintetizado nas últimas e do século vinte, no abismo entre o sentido grandes se calam” (Sêneca,
comoventes palavras de Moisés prostran- e a comunicação”. Hippolytus, 607).

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