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Tempo histórico,
tempo mítico:
som e silêncio em
Mozart
e Schoenberg
“A coruja de Minerva alça seu
EDUARDO
voo somente com o início do crepúsculo”
SEINCMAN
é professor do
(Hegel).
Departamento de
Comunicações e
Artes da ECA-USP
e autor de Do
Tempo Musical
(Via Lettera).
este ensaio, estabelece-se um paralelo en-
tre duas óperas que, além de distantes no
tempo, seriam aparentemente díspares: A
Flauta Mágica (1791), de Mozart, e Moisés
e Arão (1930-32), de Arnold Schoenberg.
Esse paralelo irá se esclarecer à medida que o
Rainha da Noite afirmando que, se Tamino boca de Papagueno, que promete não
libertar sua filha, ele a terá para sempre: mentir mais.
“RAINHA DA NOITE: […] não tenho minha “TODOS (PAPAGUENO, TRÊS DAMAS): Se todo
filha ao meu lado; Vi minha alegria esvae- mentiroso tivesse um cadeado assim como
cer, raptada por um celerado. Ainda vejo o esse, sobre o ódio, calúnia e maldade, rei-
seu tremor, os calafrios de pavor, o pânico nariam o amor e a amizade”.
convulso, o trêmulo pulso. Vi quando a le-
varam de mim: ‘Socorro!’ Foi o que disse Em seguida, Tamino e Papagueno re-
então. Nada adiantou gritar assim, Pois cebem das Três Damas respectivamente a
meu esforço foi em vão”. flauta mágica de ouro e os sininhos mágicos
de prata.
4. GAGUEIRA E PERDA DA
ELOQUÊNCIA 5. ESPANTO, CORES
Ato I, Cena VII (no 5: Quinteto) Ato I, Cena XII
Papagueno vê, por uma janela, Pamina,
“PAPAGUENO (Aponta, triste, para o cadeado que foi acorrentada por Monóstatos.
que tem na boca): Hm, Hm, Hm, Hm… Hm,
Hm, Hm, Hm… “PAPAGUENO: Que moça linda encontrei! É
TAMINO: Bem fala o pobre em penitência: mais branca que o giz!
Perdeu de vez toda a eloquência”. MONÓSTATOS E PAPAGUENO [ao se defrontarem
– um verde, o outro negro – um se assusta com
Ato I, Cena VIII o outro]: Hu! É o di-a-bo em pessoa! Tem dó
As Três Damas tiram o cadeado da de mim... me perdoa! Hu! Hu! Hu!”
“TRÊS MENINOS (Descem voando): Deixe 21. CANTO DAS LUZES: FULGOR
soarem seus sininhos, sua amada virá di- DO DIA
reitinho”. Ato II, Cena Final (cont.)
Papagueno não vive exatamente neste “VOZ DA SARÇA ARDENTE: Este povo foi
tempo atual e, carecendo da ideia de futuro, eleito dentre todos os povos para ser o povo
sequer vive no tempo. Sua função é similar do D’us único, para conhecê-lo e só a ele
à de um Dom Quixote cuja visão de mundo consagrar-se inteiramente; para submeter-
idealista anacrônica torna-o comicamente se a todas as provações concebíveis pelo
ingênuo. Em meio a um drama de amor, pensamento através de milênios”.
sedução, vingança e iluminação, cujo herói
Tamino tenta salvar a adorada Pamina do As palavras do oráculo são enigmáti-
aparentemente maléfico Sarastro, é a figura cas: não seria o próprio Bezerro de Ouro
de Papagueno que permite que se opere esse um deus único ao qual o povo se consagra
mesmo deslocamento: vindo de um tempo inteiramente? E Moisés, destruindo-o, não
mítico, Papagueno “vive fora do tempo” e estaria restaurando a verdade de seu D’us e
“cai de maduro” em um tempo histórico. A assim confirmando o oráculo? Não estaria
19 Lembremo-nos das palavras ingenuidade de Papagueno não lhe permite ao mesmo tempo destronando Arão de seu
de Papagueno no Ato II,
Cena III:“Eu sou homem da “evoluir” como Tamino, mas seu “estado de papel de líder e solapando a força de suas
natureza; contento-me em natureza” serve de lição ao mundo civilizado palavras e atos? Não estaria arrancando o
comer, beber, dormir. E se
um dia calhar de encontrar
que ainda convive com o mal e apresenta povo dessa nova escravidão à imagem?
uma bela mulherzinha…”. valores duvidosos. Esse convívio de dois Ao mesmo tempo, o oráculo não estará
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