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RESUMO
O presente trabalho problematiza os espaços livres públicos da cidade de Fortaleza a partir da
compreensão de seus elementos definidores, do seu processo de planejamento urbano, da gestão
destes espaços e da tensão entre a legislação ambiental e a urbana. Esse entendimento é pautado
em uma perspectiva integrada de seus componentes, com especial ênfase nos recursos hídricos ali
disponíveis e na sua potencialidade como elemento estruturador de um sistema de espaços livres,
referenciando-se em conceitos e experiências anteriores, em busca de alternativas viáveis e
fundamentadas nas configurações e interfaces sócio-urbanas locais.
INTRODUÇÃO
A vida urbana ocorre em duas instâncias: uma pública e social, extrovertida e inter-relacionada. É a
vida nas ruas e praças, parques e espaços cívicos e em áreas de compras. E outra privada,
introvertida, pessoal e individual, que procura reclusão e privacidade (Halprin, 1972). Essa vida
privada precisa de espaços abertos de diferentes formas, mas precisa também de um invólucro, de
distância das multidões, calma e relaxamento. Para ter um ambiente urbano adequado, a cidade
deve responder a essas duas necessidades e às atividades realizadas em cada situação. Os espaços
livres são diferentes entre si e exercem funções distintas. Podem ter a função de passagem, de
espaço para eventos e encontros ou simplesmente para o descanso e contato com a natureza. São
nos espaços públicos que encontramos estímulos para uma vida criativa. Para Halprin (op. cit), esses
espaços não são apenas integrantes da configuração espacial da cidade, mas uma necessidade
biológica essencial para a vida. Gomes, citado em Alex (2008, p. 21,22), define que o espaço público
é [...] qualquer tipo de espaço onde não haja obstáculos à possibilidade de acesso e participação de
qualquer tipo de pessoa, dentro de regras de convívio e debate. Assim, paradoxalmente, embora o espaço
público possa ser também o lugar das indiferenças, ele caracteriza-se, na verdade, pela submissão às
regras da civilidade. O que define um espaço como público, portanto, é exatamente a sua condição
de livre acesso a todos os grupos sociais de uma determinada comunidade. É essa a categoria de
espaços livres considerada nessa discussão.
Os espaços livres da cidade conformam um sistema. Entenda-se por esse sistema o conjunto de
todas as áreas não ocupadas por edificações, aos quais as pessoas têm acesso (Magnoli, 2006).
Quanto à sua morfologia, Macedo (2003, p. 53) afirma que os espaços livres urbanos, em sua maioria,
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não são configurados por vegetação e sim pela massa construída e pelo suporte físico em suas diversas
formas de modelagem, sempre condicionadas pelas formas de propriedade e os parcelamentos
decorrentes, que direcionam sua estruturação formal. Esses espaços, públicos ou privados, são
destinados à circulação, lazer, recreação, acesso, conservação, preservação e produção, assumindo
atributos funcionais, ambientais e estéticos (Macedo, 2003).
O sistema consubstanciado
pelos espaços livres é
resultado da ordenação do
espaço urbano através de
procedimentos de controle
urbanístico, que, introduzidos
no Brasil durante o século
XX, encontram no plano
diretor de desenvolvimento
urbano uma ferramenta para
disciplinar o crescimento da
cidade e a ocupação do solo
visando o bem-estar comum
dos seus habitantes e o
cumprimento da função social
da cidade1. Verifica-se,
contudo, uma discrepância
entre a lei e a prática.
Segundo Martins (2006), a Fig. 1 – A cidade informal que ocupa as dunas do litoral leste e a cidade
legislação, tanto urbanística formal que se verticaliza na orla e bairros adjacentes.
como ambiental, estabelece
como padrão um patamar inacessível à renda da maioria. Na prática, diante da ausência de
subsídios, a conseqüência é que a população se instala em loteamentos irregulares, ocupações
informais e favelas, justamente nos lugares ambientalmente mais frágeis, protegidos por lei,
portanto desconsiderados pelo mercado formal (Fig. I). Além disso, a vinculação da habitação ao
solo e à propriedade privada dificulta a sua produção em larga escala e encarece o seu custo,
obrigando os mais pobres a ocupar as periferias e áreas de proteção (Villaça, 1986).
No caso de Fortaleza (CE), a sobreposição de leis, o caráter restritivo da legislação ambiental
baseado em critérios aleatórios e pouco realistas, e a ausência de interseção entre os espaços
constitucionais dos assentamentos urbanos e do meio ambiente2 agravam os conflitos entre
1
Segundo Saule (2007), apesar do Estatuto da Cidade ter definido instrumentos para garantir o cumprimento
do direito à cidade, as funções sociais da cidade como forma de assegurar o ambiente urbano sustentável, já
haviam sido introduzidas na Constituição Brasileira de 1888 pelo artigo 182, garantindo, no âmbito jurídico, o
bem-estar dos habitantes da cidade independente de sua origem social, condição econômica, raça, cor, sexo
ou idade. O desenvolvimento dessas funções, por afetar todos os habitantes da cidade, se enquadra na
categoria de interesses difusos. De acordo com Santos (2009), o direito difuso é um direito transindividual
(transcende o indivíduo, ultrapassa o limite de direito e dever individuais), tem um objeto indivisível (de
natureza indivisível, a todos pertence, mas ninguém em específico o possui) e pluralidade de titulares
indeterminados e interligados por circunstâncias de fato.
2
Para Martins (2007), os percursos, origens e protagonistas que levaram o assentamento urbano e o meio
ambiente à Constituição de 1988 foram bastante distintos, resultando em artigos autônomos e separados, até
o momento em que entram em conflito. Essa tensão surge justamente no momento em que se tenta
equacionar o assentamento da população mais pobre.
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políticas públicas e urbanização, materializados nas 102 áreas de risco3 consolidadas nas várzeas,
dunas e praias dessa cidade. Essas ocupações demandam um diálogo entre o direito urbanístico e o
direito ambiental no planejamento de um sistema de espaços livres públicos, cuja ordenação
deveria se dar, em razão de suas características geomorfológicas, a partir dos recursos naturais da
cidade, adotando a hidrografia urbana como referência para a sua estruturação. Busca-se aqui
estabelecer as premissas para possibilitar esse diálogo e essa ordenação, compreendendo a situação
atual de Fortaleza quanto às suas áreas livres.
3
De acordo com Pequeno & Moreira (2007), data de 1997, um primeiro levantamento de áreas de risco em
Fortaleza, realizado pelo Centro de Defesa e Proteção dos Direitos Humanos, quando foram contabilizadas
mais de 4.500 famílias em 54 áreas de risco. Em 2001, estudos realizados pela Comissão de Habitação da
Prefeitura de Fortaleza indicavam que mais de 9.300 famílias viviam em situação de risco, localizadas em 79
áreas. No início de 2007, dados da Defesa Civil apontam que mais de 22.000 famílias vivem em 102 áreas de
ocupação em situação de risco ambiental, as quais, com exceção daquelas situadas nas proximidades de lixões
e aterros sanitários, ou lindeiras ao sistema rodo-ferroviário principal, estariam sobrepostas ou adjacentes às
áreas de preservação urbana.
4
Para Santos & Elias (1997), conceitualmente, existem duas categorias de paisagem: a artificial e a natural. A
paisagem artificial é a transformada pelo homem, enquanto, grosseiramente, a paisagem natural é aquela
ainda não mudada pelo esforço humano. Se no passado havia a paisagem natural, hoje essa modalidade de
paisagem praticamente não existe mais. Por isso, torna-se difícil distinguir o que é natural do que é artificial.
Para ele, a percepção da diferença é cada vez mais árdua e temerária.
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paisagem natural para o ambiente urbano, tendo o objetivo de melhorar a qualidade de vida dos
habitantes londrinos5. Como caso prático pioneiro, está o Sistema de Parques de Boston, de
Frederick Law Olmsted (1822-1903), implementado gradualmente de 1876 a 1890. Dal Co (1975)
considera a proposta como uma expressão inovadora da exigência de formular um plano
urbanístico de conjunto e de uma cultura que já havia superado a fase de denúncia das mazelas da
cidade. Para ele, o plano se propõe a oferecer propostas realistas para a reestruturação urbana e
contém ainda a primeira identificação de uma nova escala de projeto urbanístico, ao prever o
controle global do desenvolvimento urbano e a relação entre cidade e território, cidade e região.
Nesse projeto, que, segundo Olmstead, não é propriamente um parque, mas uma intervenção
urbana, o principal objetivo não é a ordenação interna dos parques, mas sim a busca de sua
continuidade urbanística e a transformação das intervenções isoladas em um sistema urbano
contínuo. Mesmo não obtendo êxito esperado em todas as suas propostas, a intervenção em
Boston definiu princípios revolucionários de planejamento e projeto de paisagismo que são
referenciais até a atualidade. Charles Eliot (1834–1926), formado arquiteto paisagista no ambiente
da Harvard, continua o trabalho de Olmsted em Boston. Eliot promove uma ampliação do sistema
de parques de Olmsted, ao passar da escala urbana para a territorial e propor parques em duas
escalas: urbana e metropolitana. Além disso, propõe instrumentos urbanísticos e legislativos
bastante avançados para consolidar o seu plano. Posteriormente, surgem novas discussões sobre a
ordenação sistemática dos espaços livres na estrutura urbana, como: a Cidade Linear de Arturo
Soria y Mota (1882), a Garden-City de Ebenezer Howard (1902), as Cidades e Sistema de Parques
de J. C. Forestier (1908), as Unidades de Vizinhaça de Clarence A. Perry (1929), o CIAM (1933), a
Carta de Atenas (1943) e o Desenho com a Natureza de Ian McHarg (1969).
Ao longo da história, o planejamento urbano tem procurado aprimorar suas técnicas para
reintroduzir o verde no espaço do homem. O movimento de implantação dos parques mudou de
forma substancial as perspectivas do reformismo urbano; o interesse romântico e literário pela
natureza transformou-se numa ideologia complexa e mais capaz de se expressar com propostas
baseadas cientificamente, dirigidas a planificar completamente o desenvolvimento urbano. O
projeto e as reformas urbanísticas passaram a ser confiadas a técnicos qualificados, e o
planejamento a ter instrumentos precisos de conhecimento e bases científicas de análise. Contudo,
embora a questão ambiental seja vista como uma das mais importantes dimensões de análise por
partes dos múltiploes segmentos, grupos e classes sociais que compõem a sociedade
contemporânea (Loureiro, 2003), a maioria das novas cidades e subúrbios incorpora simplesmente
os ornamentos da natureza, como árvores, gramados, jardins e lagos, e via de regra, são
construídos com muito pouco cuidado na observação dos processos da natureza, como foram as
velhas cidades. Persiste, contudo, o esforço do planejamento urbano, aliado à arquitetura da
paisagem, em diminuir os impactos negativos do homem sobre o seu ambiente.
No Brasil, a questão ambiental encontra um grande entrave na segregação espacial6. Apesar de
todo sujeito individual e coletivo reconhecer o meio ambiente como dimensão indissociável da vida
humana (Loureiro, 2003), a universalidade dos interesses à proteção ambiental, principalmente nas
grandes cidades brasileiras, inexiste devido à impossibilidade de acesso aos direitos sociais7 pela
5
Notas de aula da disciplina A Paisagem no Desenho do Cotidiano, ministrada pelo Prof. Vladmir Bartalini, pelo
curso de pós-graduação da FAUUSP, no primeiro semestre de 2009.
6
Para Lefebvre (2008), a segregação é um dos novos valores assumidos pelo espaço enquanto criação
humana e propriedade: torna-se excludente, distanciando os menos favorecidos dos centros urbanos. O
Direito à Cidade, surge, então, como ferramenta de combate à organização segregadora do espaço.
7
Segundo Santos (2009), os direitos sociais, além dos trabalhistas e previdenciários, incluem outros direitos
considerados instrumentais para o exercício da plena cidadania, como são os casos dos direitos à saúde, à
educação e à moradia.
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maioria da população. Numa realidade em que os aspectos das relações sócio-espaciais são
dominados pela estrutura econômica (Gottdiener, 1993), as desigualdades são reforçadas e a
tensão entre a reforma urbana e a ambiental torna-se mais evidente, exigindo um diálogo entre
suas agendas para que o Direito à Cidade possa ser cumprido.
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naturais (Fig. 4).Alia-se a isso a precariedade do estado de conservação que contribui para os baixos
índices de usufruto dessas áreas pela população, obrigada a utilizar lugares privados e de consumo
para as suas atividades coletivas e de lazer8. Mesmo as praias, espaços públicos por excelência,
encontram-se ocupadas por barracas, que induzem a privatização do uso recreativo da orla
fortalezense. Essas características são conseqüências de um quadro histórico de crescimento
populacional rápido e expansão desordenada, resultante da falta de planejamento urbano, do
descumprimento das legislações estabelecidas pelos planos diretores propostos e da valorização
dos interesses privados e do mercado imobiliário em detrimento da coletividade.
8
Santos (1987, p. 36) afirma que o lazer na cidade se tornou igual ao lazer pago, inserindo a população no
mundo do consumo. Quem não pode pagar pelo estádio, pela piscina, pela montanha e o ar puro, pela água, fica
excluído do gozo desses bens, que deveriam ser públicos, porque essenciais .
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parque urbano. Em Fortaleza, merecem destaque os seguintes parques e pólos de lazer que foram
implantados nesse período:
Parque Adahil Barreto,
Primeira etapa do calçadão da Avenida Beira-Mar (Fig. 5)
Parque da Lagoa do Opaia,
Parque da Lagoa da Parangaba
Zoológico Sargento Prata
Pólo de Lazer da Barra do Ceará
Parque Alagadiço e Parque Pajeú
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A situação presente
Hoje, indiscutivelmente, Fortaleza é uma cidade carente de áreas livres públicas em quantidade e
qualidade. São muitos os bairros que não dispõem de um espaço de convivência com dimensões,
equipamentos e desenho adequados aos seus usuários. Na atualidade, segundo dados da Síntese
Diagnóstica da Revisão Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Fortaleza de 2003
(Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2003), o patrimônio municipal de espaços livres é de 786
hectares, o que representa, somente, 2,35% da área total da cidade. A maioria desses espaços é
oriundo de 15% da área total das glebas objeto de parcelamento do solo 9. Apesar dessa exigência,
um levantamento realizado em 1981 comprovou o seu não cumprimento. Dos 11.267,37 hectares
de área loteada, correspondentes a 647 loteamentos cadastrados no município, apenas 576,88
hectares, ou seja, 5,12% constituíam-se em praças e áreas livres.
Como agravante, ao longo do tempo, o patrimônio municipal de espaços livres públicos está sob
um processo de dilapidação e degradação, que se traduz no uso inadequado quanto à sua finalidade
de uso e ocupação como área verde e bem de uso comum do povo. Através da figura de
desafetação, esta finalidade é alterada e inúmeras áreas foram doadas a terceiros para implantação
9
O Plano Diretor Físico do Município de Fortaleza, aprovado pela Lei 4486 de 12 de março de 1975,
determinou que os projetos de parcelamento do solo deveriam destinar pelo menos 15% da gleba original a
áreas verdes de domínio público reconhecido e a Lei Municipal de Parcelamento do Solo de número 5.122 A
de 1979, regulamenta os percentuais de 15% de áreas verdes, 5% de área institucional, 5% de fundo de
terra e 20% de sistema viário, totalizando 45% de áreas públicas. Poucos anos depois, em 1977, é aprovada
a Lei federal 6766, que, dentre outras providências, também legisla sobre o parcelamento do solo urbano.
Essa lei define que uma porcentagem mínima de 35% dos loteamentos propostos devem ser de domínio
público, servindo a implementação da circulação, equipamentos institucionais e áreas verdes.
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0,71% da área total da cidade10. Além disso, boa parte dos espaços públicos considerados
urbanizados encontra-se em péssimo estado de conservação (Fig. 7).
A paisagem contemporânea de Fortaleza, assim como das grandes cidades brasileiras, continua
como sempre expressando os grandes contrastes sociais. Ao lado dos subúrbios e dos bairros
elegantes, dotados de infra-estrutura e bem cuidados, tem-se uma malha urbana extensa, composta
por habitações bem mais modestas, térreas ou assobradadas, situadas em lotes pequenos, com
pouco ou nenhum recuo, que aproveitam ao máximo o terreno disponível. Favelas, subhabitações,
cortiços, autoconstruções são formas de moradia comuns no contexto da cidade brasileira e, para
seus moradores, o acesso aos espaços livres adequados a uma vida urbana saudável fica restrito a
espaços públicos como praias, parques e praças, muitas vezes distantes, ou ainda campos de
várzea. Por sinal, esses campos de futebol espontâneos, muito comuns em Fortaleza,
principalmente nos bairros periféricos, constituem um indicador confiável da carência de espaços
livres públicos.
10
Dados da Comissão de Atualização de Bens Imóveis da Prefeitura Municipal de Fortaleza (Prefeitura
Municipal de Fortaleza, 2003)
11
O Plano Diretor de Drenagem da Região Metropolitana de Fortaleza de 1992 considerava a existência de
apenas 03 (três) macrobacias hidrográficas no município fortalezense. A revisão e retificação do plano em
2003 passou a considerar a distribuição dos recursos hídricos da cidade em 04 macrobacias, identificando um
pequeno trecho da bacia do Rio Pacoti no interior dos limites municipais. Cada macrobacia, por sua vez, está
subdividida em microbacias ou sub-bacias, que correspondem aos afluentes, reservatórios de água (lagoas e
lagos), sangradouros, galerias e canais que funcionam como elementos drenantes e têm como destino final o
leito principal dos rios ou o mar.
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menor escala tanto no tocante a fauna como na flora, com exceção do ambiente de manguezal que,
por força de Lei, ainda pode ser considerado preservado em um grau médio de conservação. Os
recursos hídricos do município apresentaram, em geral, uma baixa qualidade em relação aos
parâmetros analisados - qualidade da água, mapeamento e inventário florestal, levantamento e
zoneamento da fauna, diagnóstico das ocupações, levantamento batimétrico. Como conclusão do
inventário, diagnosticou-se que o processo de degradação do meio ambiente natural no município
de Fortaleza encontra-se em um estágio bastante avançado, não só dos sistemas hídricos (avaliando
no contexto das bacias hidrográficas), como de todo o meio ambiente no qual estão inseridos.
A oficina realizada em Fortaleza pelo QUAPÁ-SEL12 em abril deste ano, confirmou esse quadro de
degradação dos espaços livres públicos e dos recursos naturais da cidade, através de visitas e
sobrevôo realizados pelos pesquisadores, apresentações de técnicos de diferentes órgãos públicos
estaduais e municipais e profissionais diversos, e da produção de mapas síntese pelos participantes
da oficina. Segundo o relatório produzido na oficina, verifica-se ainda a total ausência de atuação do
poder público municipal no que se refere ao projeto, implantação e gestão de suas áreas livres
públicas, que se encontram, em sua grande maioria, degradadas, sem equipamentos e mobiliário
urbano, arborização adequada e ambientação propícia às práticas recreativas, esportivas e de lazer.
Nesse sentido, as ações do poder público, tanto no âmbito municipal como estadual, caracterizam-
se por iniciativas pontuais, desvinculadas de qualquer idéia de planejamento setorial e, muito
menos, intersecretarial, sendo dependentes, invariavelmente, de vontade política normalmente
motivada por interesses eleitoreiros. Como ocorre em diversas cidades brasileiras, a desarticulação
entre as diferentes secretarias, a sobreposição de funções, a limitação de recursos e a pouca
capacitação dos quadros técnicos municipais são problemas persistentes na gestão da cidade e
contribuem para agravar a situação de Fortaleza.
Por outro lado, as inúmeras lagoas que existem na cidade, embora vinculadas a um programa de
recuperação e conservação onde o enfoque conservacionista sobrepõe-se ao funcional distribuídas
pelo tecido urbano, configuram-se espaços livres com grandes possibilidades de aproveitamento
para uso da população. Ainda como fator positivo, o município apresenta grande potencial de
aproveitamento das faixas destinadas à preservação permanente (APPs), o que permitiria a criação
de um sistema de espaços livres, constituído por tipologias variadas, ao longo dos córregos e rios
que cortam a cidade e que possuem forte conexão entre si. Soma-se à hidrografia, a orla marítima e
as áreas de dunas, que devem ser incorporadas a esse sistema. Para que esse circuito possa ser
concretizado, é urgente que a cidade se planeje em tempo, norteando-se por seus valores
ambientais13.
12
Esta oficina fez parte do projeto temático de pesquisa desenvolvido pelo Laboratório da Paisagem da
FAUUSP, que se debruça sobre o estudo dos “Sistemas de espaços livres e a constituição da esfera pública
contemporânea no Brasil”. A equipe responsável por sua realização contou com os pesquisadores de São
Paulo: Prof. Dr. Jonathas Magalhães (PUC Campinas), Arq. Fany Galender (FAUUSP), Arq. Denis Cossia
(FAUUSP) e Arq. Daniela Valente (FAUUSP) e com a coordenação local em Fortaleza da Profa. Arq.
Fernanda Rocha (UNIFOR). Em Fortaleza a experiência integrou a programação mensal desenvolvida pelo
Grupo de Pesquisa Laboratório da Paisagem, denominada Colóquios sobre a Paisagem, no ano de 2009.
13
Segundo Macedo (1999), entende-se por valor ambiental o potencial que tem qualquer ecossistema como
estrutura ecológica, permitindo a existência e a manutenção de uma série de seres vivos e de seu inter-
relacionamento. Esse valor é sempre considerado dentro de um referencial humano, isto é, quando traz
benefícios e insumos para a sociedade humana.
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A realidade fortalezense
Segundo a Síntese Diagnóstica do PDDU-FOR de 1992 (Prefeitura Municipal de Fortaleza, 2003, p.
74,75), Fortaleza não possui, a rigor, um Sistema Público de Áreas Verdes, estruturado e hierarquizado.
As praças, parques e pólos de lazer, implantados por sucessivas administrações, não chegam a compor
uma estrutura organizada que abranja desde a menor unidade (praça de bairro ou unidade de
vizinhança) até o equipamento de grande porte (parque urbano ou metropolitano). Passada mais de
uma década, na Síntese Diagnóstica da revisão do Plano Diretor municipal de 2003, o mesmo texto
se repete com as mesmas palavras. A reprodução dessa frase comprova, portanto, que, no
intervalo de mais de dez anos entre a divulgação desses dois textos idênticos, a situação da cidade,
quanto aos seus espaços livres, à sua estruturação e organização, permanece inalterada. Repetir
essas mesmas palavras denuncia o descaso da municipalidade com as suas áreas livres e a
inexistência de uma política urbana que estabeleça diretrizes para mudar essa situação. Ao longo
dos anos, suas ações nesse sentido, limitaram-se a intervenções pontuais, superficiais e
oportunistas, especialmente em períodos eleitorais.
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Paisagem (EP)14, os rios, riachos, lagos e lagoas, várzeas, áreas verdes, dunas e faixas de praia,
podem ser percebidos como um sistema natural de corredores e fragmentos de espaços livres, que
permeia a matriz do ambiente urbano (Fig. 13).
14
A Ecologia da Paisagem (EP), enquanto metodologia de análise, tem, segundo Pellegrino (1996), o papel de
mediadora entre as ciências ambientais e os interventores na paisagem, criando uma ferramenta para
interpretação da paisagem através de um modelo estrutural analítico similar que identifica morfologias,
funções e transformações espaciais em qualquer ecossistema, independente de sua condição antrópica. Para
a EP, todas as paisagens, das matas às áreas centrais das cidades, compartilham de um modelo estrutural
similar, dividida em estrutura, função e mudança. A estrutura corresponde à configuração espacial ou ao
arranjo de elementos da paisagem e a forma como esses elementos estão distribuídos. Sua estrutura é
composta por três tipos de elementos universais, que variam basicamente quanto à forma e a freqüência com
que ocorrem. São os fragmentos, os corredores e as matrizes.
15
Segundo Cormier et al. (2008), alguns dos serviços ecológicos providos pelas IEVs são abastecimento de
água, manejo e tratamento de águas pluviais, melhoria do microclima e seqüestro de carbono.
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projeto a serem mostradas para melhorar a drenagem das águas pluviais e a qualidade da água (Fig.
14).
Fig. 14 – Esquema teórico para estruturação de um Sistema de Espaços Livres Públicos em Fortaleza.
Mota (2000) reforça a importância da água como base estrutural e gestora para uma rede urbana
de áreas livres. Para ele, os modelos de gestão dos recursos hídricos mais adequados adotam a bacia
hidrográfica como unidade territorial a ser gerida, abordando todos os recursos nela contidos (Mota,
2000, p. 93). McHarg (1969, p. 62), reitera essa importância ao afirmar que os processos naturais
terrestres são indissociáveis dos processos naturais da água e vice-versa. Existe, portanto, um
consenso, que a bacia hidrográfica ou sub-bacia pode ser considerada como a unidade ideal de
planejamento e gestão ambiental, pois ao se gerenciar a água, se está gerenciando também, direta ou
indiretamente, toda uma cadeia de recursos ambientais e atividades humanas (Mota, 2000, p. 93).
Seguindo princípio acima, as microbacias hidrográficas, definidas pelo plano de drenagem
metropolitano, podem ser identificadas como unidades de planejamento territorial para traçar esse
sistema. Contudo, cada unidade deve ser estruturada levando-se em consideração sua relação com
as demais sub-bacias, sejam elas da mesma macrobacia ou de macrobacias distintas.
Apesar das ocupações indevidas (temporárias ou duradouras) e da degradação ambiental sofridas
pelos recursos hídricos no município, os mananciais, suas margens, várzeas e vegetação ciliar
permanecerão, de qualquer forma, como áreas livres públicas, mesmo com o adensamento
máximo da cidade. Essa impossibilidade de apropriação deve-se tanto a fatores naturais como a
restrições determinadas por leis no âmbito federal, estadual e municipal que visam à preservação
dos mesmos (Fig. 15).
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ENTRAVES E DESAFIOS
Até o início do século passado, diante de um crescimento urbano lento e uma população não muito
numerosa, as praças, concentradas principalmente na zona central de Fortaleza, eram abundantes e
sempre freqüentadas. O riachos e lagoas mesmo em áreas mais densas, como o Pajeú, ainda faziam
parte da paisagem urbana. A partir de meados do mesmo século, verifica-se um aumento
populacional e uma conseqüente expansão urbana acelerada em Fortaleza. A cada década, a
população da cidade praticamente dobrava. Nesse período de crescimento urbano, apesar da
existência de leis reguladoras, verifica-se uma expansão desordenada da cidade, seguindo interesses
particulares que geralmente prejudicavam a coletividade e desrespeitavam a legislação vigente.
Dessa forma, a cidade cresceu rapidamente com loteamentos que destinavam menos do que o
mínimo exigido por lei para as áreas livres públicas e ainda ocupavam várzeas de riachos e lagoas.
Diante desse quadro, a cidade vê seus espaços livres ficarem relegados às piores localizações, que
correspondem geralmente às porções da gleba não loteáveis, de formato irregular, cercadas por
vias movimentadas. Ou ainda assiste os seus recursos hídricos serem reduzidos a espaços
ecologicamente insuficientes, quando não excluídos totalmente da paisagem urbana em
canalizações subterrâneas. Face à possibilidade de crescer harmoniosamente com a natureza e
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como parte de seu ecossistema, Fortaleza seguiu um caminho oposto, muitas vezes sem volta, de
priorizar os empreendimentos imobiliários e os interesses particulares sem questionar as
conseqüências para o meio-ambiente urbano. Infelizmente, essa decisão, mesmo interferindo
pontualmente na cidade, compromete o bem-estar e a qualidade de vida de toda população. Além
de por em xeque os ecossistemas, a paisagem e a drenagem urbana, o crescimento da cidade em
desacordo com a natureza ameaça a possibilidade de uso recreativo dos seus recursos naturais ou
subutiliza esse potencial, além de poder acarretar sérios desastres de natureza ambiental,
principalmente as enchentes causadas pela crescente e incontrolável impermeabilização do solo.
Apesar do estágio avançado da degradação do
ambiente natural de Fortaleza, o quadro atual
ainda se mostra reversível. O aproveitamento
dos grandes rios que cortam a cidade gerou
alguns projetos de grande significação e
relevância se implantados efetivamente (Fig. 16).
O projeto do Rio Maranguapinho, que prevê,
além da requalificação das áreas lindeiras, o
reassentamento de expressiva parcela da
população de baixa renda do entorno, está em
processo de implantação. Se realmente
concluída a obra, proporcionará um precedente
de grande impacto nas práticas projetuais
voltadas para os espaços livres e sua organização Fig. 16 - Áreas verdes de mangue ao longo do Rio Cocó.
como sistema a partir da hidrografia. A área do
Rio Maranguapinho caracteriza-se pela alta densidade demográfica, sendo a região mais pobre da
cidade, com o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Urbano). Possui uma grande faixa de
alagamento, onde está consolidada a maioria das áreas de risco de Fortaleza. Diante das
dificuldades encontradas, o projeto trata a recuperação do rio juntamente com a melhoria das
condições de habitabilidade das famílias que ocupam as suas margens, visando o remanejamento
dessa população com o reassentamento de mais de 9.000 famílias em áreas próximas. Esse número
poderia ser ainda maior caso o projeto não houvesse se utilizado de um Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC)16, que propõe um lago entre as cidades de Maranguape e Maracanaú para controle
de cheias, de modo a não remover tantas famílias que ocupam a várzea original do rio. Além desse
artifício legal, os projetos e as obras do parque, da urbanização e das habitações foram assumidos
pelo Estado, já que o rio atravessa três municípios da RMF. Como tudo que se refere à água se
comporta segundo limites geográficos e não segundo limites político-administrativos, delegar as
responsabilidades de projeto e de sua execução para a administração estadual permite uma maior
abrangência do plano sobre o território da bacia e elimina obstáculos que certamente existiriam no
diálogo entre os municípios cortados pelo rio. O projeto prevê a urbanização dos conjuntos
habitacionais, uma via paisagística com passeios, ciclovias e pista de rolamento, calçadão, a
manutenção da vegetação abundante remanescentes dos quintais, a instalação de equipamentos,
como quadras, campos e praças, provendo de espaços de lazer a população que reside na zona
oeste do município. Após a sua conclusão, será o maior parque urbano de Fortaleza, tendo
aproximadamente 7 vezes a extensão do calçadão da Av. Beira-mar.
16
Segundo Martins (2006), o TAC vem se apresentando como uma alternativa de diálogo entre a
recuperação ambiental e a regularização fundiária, compatibilizando os conflitos entre o Direito Urbanístico e
o Direito Ambiental ao buscar na Filosofia do Direito os fundamentos do dever de adotar a melhor solução.
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O exemplo do Rio Maranguapinho evidencia os desafios e entraves das grandes cidades brasileiras,
e por que não, dos países em desenvolvimento, na recuperação dos seus mananciais e na
estruturação de um sistema de espaços livres públicos a partir da hidrografia. Considerando que as
bacias não coincidem com os limites municipais, a compartimentação geográfica e a
compartimentação político-administrativa não se sobrepõem, criando alguns impasses de
competência e dificultando a ação regulatória e de fiscalização. Nessas condições, se a articulação
de políticas públicas nos três níveis de governo é normalmente complexa devido a competências
concorrentes, a gestão de bacias hidrográficas se torna ainda mais complexa, já que os limites de
bacias não coincidem com os limites municipais ou, em alguns casos, estaduais. Nesse caso, exige-
se um diálogo ainda mais difícil para que os diferentes níveis de governo exerçam suas atribuições
de forma eficiente e harmônica (cf. Martins, 2006).
Quanto às ocupações irregulares, numa metrópole como Fortaleza, em que suas áreas de proteção
de mananciais, faixa de praia e complexos dunares coincidem com a concentração dos piores
indicadores sócio-espaciais, fica claro que a questão ambiental é também um problema de carência
de uma política consistente de acesso à habitação de interesse social (cf. Martins, op. cit.) (Fig. 17).
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