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MISTRAIS

Esta obra foi premiada na categoria poesia do Prêmio Literário Augusto do


Anjos 2013, promovido pela Funesc (Fundação Espaço Cultural da Paraíba)
e publicada pela União Editora, em novembro de 2014.
ANNA APOLINÁRIO

MISTRAIS
Sobre o livro Mistrais, de Anna Apolinário

Poesia cortante, laminosa, carregada de ode ao universo feminino, do qual


emergem referências a deusas de mitologias variadas. Paralelo a isso, percebem-se
alusões às deusas-pagãs da literatura: Sylvia Plath, Cecília Meireles, Emily Dickinson;
todas estão lá, embaladas pelo estilo próprio, de sonoridade gutural e melodiosa da
escritora. O corpo feminino é retratado em todo seu esplendor, dançando liricamente
junto com as palavras, se contorcendo num beco escuro / atirando paredes contra os
soluços. Visto desse modo, o corpo feminino transcende seu aspecto material, adquire
uma carga de misticismo, verdadeira “corpoesia”. É como se a dança das palavras —
 com asas ritmadas, flutuando como ninfas, expressasse o próprio desejo de libertação
do feminino, de valorização da expressão do seu corpo. É impossível não ser
contagiado pela ‘dança vocabular’ presente na sonoridade de “Selene”, para ficar
somente em um exemplo:

Sou lua cheia


Dançando entre ninfas
Um grito minguante
Excitando marés
Nua e nova
Rujo ao orbe
Fênix crescente
Relampejo lírios

Nesse poema, é bastante visível a busca frenética por uma plena liberdade
paguniana, por via da expressão corporal e sensorial femininas. É a arte poética a
serviço da libertação, não do servilismo. Libertação aqui entendida não só como do
corpo, mas, principalmente, da alma; corte profundo nas amarras ideológicas que
atravessam gerações. Lírica que almeja a expansão das sensações e diz não à
conformidade inodora. A autora brinca e, assim, subverte a representação tão
recorrente na tradição cristã ocidental de ver o corpo feminino como fonte de pecado.
A presença de forte cunho metapoético também caracteriza a obra da poetisa:
há constantes reflexões sobre a função da poesia e seu próprio fazer poético. A
construção artística e o desejo de se autoexpressar é material permanente na temática
da escritora. Ela é feita, quase sempre, através de imagens concretas, associando o
fazer poético a objetos do nosso cotidiano. Somos instados a realizar o fazer poético
não como algo inalcançável, num céu platônico, mas como produzido com a mesma
“argila” que compõe nosso dia a dia. Porém, mostrando novos ângulos e moldando
novas formas com esse material. O melhor exemplo dessa temática é o poema
“Selvática”, no qual o lirismo é definido como alvo metafísico a ser atingido no cerne,
com sabre ou punhal.

Morder a polpa da palavra


Violentar o verbo
Açoite
Até que o rubro escoe
Atingir o cerne
Com sabre, punhal
Lacerar o arco e a lira
Alvo metafísico
Colisão cáustica
Matilha sádica
Eu quero o aborto
Da aurora boreal

Imagens hiperbólicas também fazem parte do repertório da autora: sentimentos


são expandidos, o distante torna-se tangível, o inexplicável ganha palavras. Dentro
dessa gama de possibilidades imagéticas, sentimentos como o Amor e a Saudade não
poderiam ficar de fora. É o caso emblemático do poema “Signo”:

Coração: amuleto de constelar abismos


Miríade implodida no tambor de ilusões
Palidez sangrada no papel
Ruído oceânico da Saudade

Buscar o cerne das coisas, ir para além do senso comum das aparências,
mostrar o inaudito, deixar de lado o pragmatismo mecânico de nossa existência
cotidiana; desvelar a essência escondida sob o manto cinzento da reificação
dominante; eis uma tarefa sempre constante no fazer poético, fonte inesgotável de
temas para o talento lírico despontar. Anna Apolinário consegue isso do seu jeito
singular no livro, deixando claras suas influências, porém, sem abdicar de marcar
posição e mostrar nuances que só sua poesia consegue capturar.
Dona de uma verve artística iconoclasta e, até certo ponto, subversiva, sua
poesia não deixa de ser, ao mesmo tempo, madura, consolidada, fruto de um trabalho
meticuloso com a linguagem. As palavras e a sonoridade são lapidadas com afinco, até
ficar no ponto de precisão desejado. Há a consciência de que poesia é expressão
criadora mediada por uma linguagem trabalhada, não meramente um amontoado de
palavras desconexas. Sangue, suor e lágrimas são ingredientes presentes, de mãos
dadas com a criatividade e sensibilidade, na composição de Mistrais. A par de tudo
isso, só nos resta reconhecer que a poetisa é uma grata surpresa a surgir no cenário
literário paraibano. E, fazendo eco ao mantra implícito em toda a obra: viva a poesia,
viva a liberdade criadora!

Novembro, 2015
Ildefonso Alves de Carvalho Filho
(Graduado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba)
Ao Vento, que me sagrou Poesia.
Eu raptei o pássaro amarelo
que vive no sexo do Diabo.
Ele ensinar-me-á a seduzir
os homens, os veados, os anjos de asas duplas
e rasgará a minha sede, as minhas roupas, as minhas ilusões
e adormecerá.
Mas o meu sono continuará a correr pelos telhados
murmurante, gesticulando, fazendo violentamente amor
com os gatos.

Joyce Mansour
Rito

Mordo a maçã
pura da Musa

Flerto com o olhar


fatal da Medusa

Depois me deito
no leito mais lírico

E me embriago
de Infinito
Rugidos

Minha boca é um coágulo lírico


Sutura que sangra poesia
Minha pele se emaranha em flamas
E o meu olhar se enlua

Um obus de beijos trucida minha nuca


Línguas faíscam em meu pescoço
Esfrego gritos entre os seios
Nas têmporas martelo o prego do segredo
Travessia

Minha verve se contorce num beco escuro


Atiro paredes contra meus soluços
Vandalizo caminhos com os meus pés mudos
Brinco insana sob labaredas
Apolínea

Sou feita de incêndios


Minha sede inflama
Teus pianos
Cartesianos

Filha de Rudá
Baudelairiano patuá
Içando peitos
Com numinosos pássaros

Urro marítimo
Embriagado istmo
Templo em que
Vibra a Beleza
Deidade e devir
Sou eterna
Enquanto vivo Poesia
Febre das Musas

Devoro os delírios de Sylvia


40 graus de verve gritando em mim
Estrelas furiosas
Sangram as sombras de Sexton
Orgias de ópio
Frissons de Anais Nin
Clarice felina caçando a solidão

Ruge o piano de Amos


Virginia afunda em flamas
Florbela ascende entre mágoas
Minha boca cintila
Sonhos de Cecília

Emily dança à luz do inaudito


E Safo decifra
O mito escarlate em meu ventre
Eu sou o pássaro amarelo raptado
Que canta no sexo de Joyce Mansour

Desabotoa minha gola, Pagú!


Selvática

Morder a polpa da palavra


Violentar o verbo

Açoite
Até que o rubro escoe

Atingir o cerne
Com sabre, punhal

Lacerar o arco e a lira


Alvo metafísico

Colisão cáustica
Matilha sádica

Eu quero o aborto
Da aurora boreal
Corpoesia

Escrevo
Para derrubar paredes
Cegar tua íris
Apunhalar as veias

Atear delírios
Traduzir-me em sílabas
Queimando dentro de ti
Selene

Sou lua cheia


Dançando entre ninfas

Um grito minguante
Excitando marés

Nua e nova
Rujo ao orbe

Fênix crescente
Relampejo lírios
Caça

Minha palavra é rapina


Que mutila
Tuas liturgias

Autópsia de anjos ápteros


Vingados
Caligrafia de intempéries
Surto de miocárdios

Escuto meu sangue correndo


Espingarda canção
Entre leões
Saphira

Sou toda pétalas


Papoula em riste
Ardente libélula
Me polinizou

Sou toda pétrea


Rara safira
Que a mão do amor
Enfim lapidou
Epifania

Grafito em tua alma


Um verso vermelho
Serpe sibilina
Pedaço de espelho

Tatuo em tua boca


Que mordo com rimas
A flauta de fogo
Da minha poesia
Sortilégio

Minha saudade de comas e cegueiras


Redemoinho tatuado nas pupilas
Lâminas azuis
Conjuradas pela Lua
Memória insepulta
Brisa convulsiva
Afogo com maestria os dons do amor
Castigado Casmurro

Queime meu nome


Numa pira lisérgica
Enquanto cortejamos
A trombose elétrica das noites
E a medicina maléfica dos dias

A indecência de minhas cinzas


Opiáceo subterfúgio
Alcateia faminta
Rasgará tua face
Primitiva
Pacífica

Chacal piromaníaco
Sobre o tablado horrífico
Tu dançarás
Musa Esquizóide

Caçando
Leopardos lírios
Em olhos de monja

Masturbando mitos
No clitóris gótico
De Justine

Derramando sal, elixir de Shiva


Entre seus seios leucêmicos
Sou Pantagruel

Orbes aladas, revirem-se


Lâmina-língua, demonize

Hidra histérica
Clepsidra esquiza
Vandalize-me, pequena sodomita
Ofídica

Silvos
Da Santa possuída
Golpes
Da sinistra Homicida

Náusea, epilepsia
Feto impuro
Hecatombe em meu peito
Pedra estéril nestas mãos

Agulhas psíquicas
Escoriando
Órbitas dadaístas
Górgone do amor
Nos porões de Nix

Febre egípcia
Putrefata
Orquídea
Datura maldita
Veneno invertido
Vomitando

Um mar de você.
Desabotoando Pagú

Olhos agudos de mãe


Militante, martírio
Mulher
Loba ígnea
Batizada em lua sanguínea
Sua poesia iça as saias das santas em procissão
Rebela-se contra os homens do Capital
Ela é o escândalo contínuo de sílabas
Justaposição de vogais atrevidas
Signo antropofágico de uma luta
Sibila lançando uivos de libertação

Uma Guerreira
Coberta de cicatrizes
Intoxicada de vida
Desabotoem o mito
Devorem os sentidos
Ela precisa respirar
Poesia
Arte
Genocídio
Universal
Palavra perfumada
Entre os peitos de uma pátria
De porcos e pulhas
A Pianista

A tua voz de incendiar pássaros


Traça surtos escarlates
Na minha sanidade

Ruflam solos ensolarados


O céu erupciona
Um pecado ruivo
O mar sangra seus diamantes

Felina ametista

Um rugido índigo retine


Nas esporas da angústia
Papisa

Pequeno uivo numa campânula


Catártica
Archote gravado em camafeu
Cadência de cascavéis
Cadafalso cardíaco

Baba de gárgula
Draga olhinegros
Peregrinos

Tigre da lascívia
Lancina o Eremita
Piromancia

Atada ao amuleto marítimo, órfã


Escura esquizofrênica escafandrista
Asfixiada em placenta alquímica
Trompas tectônicas trovejam
Um pranto de quimeras híbridas
Degredo

Mãos movediças atiçam cadelas em meus olhos


Trepidam cordas de harpa nos poros
O rancor arrasta-se
Mergulho de harpia

Nau que ondula ao meu tormento


Interlúdio

Matrioshka
Amputa as línguas dos bebês
Esfrega sal
Nas escaras da ausência

Estrela mãe estrangula-me


Tentáculo de mercúrio
Âmnio que sufoca

Céu de amoníaco
Em que descansa o incenso
De nossa última respiração
Mantra

Serei sempre faca


Que a poesia afia
Beijo de Inanna

Descendo aos infernos do Verso


Sete vezes despi-me
Do Crepúsculo à Aurora
Com dores e pecados
Entre címbalos dancei

Nos estilhaços de seus lábios


Vi o espelho pelo avesso
E do ventre sacrificado
Brígida renascer
Docilidades

Beatrice me trouxe sonetos colhidos num sonho de Godard


Os olhos de Nina destilam uma sonata de Bach
Minha boca entornou palavras de Beauvoir
Sinto o ballet da manhã Moz-arte-ar
Fractais

Esta é a noite dos caçadores


Ela é a mulher poema que corre com lobos
E tece
Urdiduras de uivos
Lótus e ágape
Faísca cega
Aos pés da Lua

Estou obscena de eternidades


Valha-me essa gana de escrever
A mulher selvagem pousou um beijo violento
Em minha psiquê
Teias de pólvora
O segredo do Cosmos
Incensado
Sândalo e patchouli
Assim

Brasa em meus olhos


Que ofusca tua noite
Sou toda rosa
Orvalho de fogo

Carrego em meu vestido


Uivos bordados
A sangue e ouro
Cor de mágoa e afeto
Um pouco de ti

Meu peito trançado pelo laço da febre


Amor sem nome nem tempo
Feixe
De poesia que me transpassa
Até o infinito
Assim
Dissonante

Sinfonias de soluços regem meu corpo


Os olhos destoam lágrimas torpes
Os dedos rangem versos rotos
E o coração estilhaça
Um grito de açoite
Açoites

Angústias castigam estrelas


Ruínas laceram papoulas
Lembranças torturam meus sonhos
Poemas mastigam meus dedos

O amor
Dói-me nas veias
Signo

Coração: amuleto de constelar abismos


Miríade implodida no tambor de ilusões
Palidez sangrada no papel
Ruído oceânico da Saudade
Erotomaníaca

Tentando minar ausências


Caminho inquieta
O berro do tempo
Não deixo que me dome
Meus pés a me empurrar
Areia movediça: esquecimento
Melusina ao espelho

Criança entregue à Moloch


Uma mulher a carregar livros
Que se encaixam em suas espáduas
Como asas
De anjos mutilados

Desenha sua boca


Com a deformidade do batom
Sangrando atinge a lividez
Azul Nirvânico
De órfãos abortados
Bastardos e puros

O mar adormecido
Reflete janelas
E círculos
Feitos do pó da palavra
Amor
Peiote

Nas linhas sagradas dos teus lábios


Eu lambo
Poemas traficados por Rimbaud

Empesteados
Com o peiote do versos
Tingimos furacões

Flores nos olhos, nos sapatos


Voluptuosos violoncelos
Na vulva dos afetos
Sagração do Vento

Casa de areia, oceano-útero


Vastidão e partícula
Coração corsário negro
Vento luzidio, violento
Alma a inquietar-se entre páginas

Permanência: pequena pétala efêmera


Anna Apolinário, nascida em 28 de julho de 1986 em João Pessoa,
Paraíba. Poeta, licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal da
Paraíba, especialista em Língua, Literatura e Linguagem. Autora dos livros
Solfejo de Eros (CBJE, 2010), Mistrais (Prêmio Literário Augusto dos Anjos
- Edições Funesc, 2014), e Zarabatana (Editora Patuá, 2016), participou
da Antologia de contos Ventre Urbano (Editora Penalux, 2016). É co-
organizadora do Sarau Selváticas de autoria feminina.
João Pessoa, Paraíba, fevereiro de 2018.

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