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27 a 29/06/2017 – Curitiba/Pr
1- O SUJEITO EM FORMAÇÃO
Antes de mais nada, a formação deve colocar no centro de sua ação o sujeito. Ele
é o primeiro responsável da sua própria formação, e então deve ser provocado nele um
total envolvimento de sua personalidade única-singular-irrepetível. Parece algo óbvio, mas
às vezes, tem-se a impressão de que o sujeito fica como que resguardado e protegido
atrás do conteúdo que é chamado a anunciar, atrás do dado objetivo da fé e da missão
que é única e, obviamente, igual para todos.
É como se a sua humanidade não fosse suficientemente provocada a se compro-
meter e realizar uma síntese, também esta única-singular-irrepetível. Um caminho forma-
tivo, por parte da instituição, que é marcadamente doutrinal, que não implica nem em
maiores esforços nem desce aos níveis mais profundos do futuro anunciador, não o colo-
cará em condições nem de chegar ao destinatário e nem à vida real. Provavelmente se
tornará um pastor muito preciso, mas, frio e distante, certamente “não com o cheiro das
ovelhas”, com a tendência a identificar-se com o seu papel e às vezes também como de-
fensor da doutrina. Colocar o sujeito no centro da atenção formativa quer dizer realizar
uma intervenção articulada.
Temos de ter uma atenção particular aos casos nos quais, uma determinada incon-
sistência cria uma singular atração para com o ideal da VC, fazendo enxergar nele um
modo de gratificá-la ou de defender-se dela.
1Francisco assim se expressou no dia 24 outubro passado encontrando os jesuitas reunidos na Congregação geral: "O discernimento,
a capacidade de discernir, é elemento chave. E estou percebendo mesmo a carência do discernimento na formação dos sacerdotes.
Arriscamos de fato a acostumar-nos ao ‘branco ou preto' e àquilo que é legal. Somos bastante fechados, em linha de máxima, ao
discernimento. Uma coisa é clara: hoje num certo número de seminários voltou a instaurar-se uma rgidez que não se aproxima do
discernimento das situações. E é algo perigoso, porque pode nos conduzir a uma concepção moral de cunho casuístico” ("La Civiltà
Cattolica", 10/XII/2016).
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que deve aprender a amar, privilegiando nesta tensão amante os pobres e os mais ne-
cessitados, os afastados.
Acredito que este seja um dado inquestionável: a formação mais antiga muitas ve-
zes ignorava ou menosprezava este elemento, ou o considerava “externo” ao próprio ca-
minho formativo e não tão central, como uma área de pesquisa e não como lugar de ver-
dadeira formação.
A consequência era e é esta: um personagem dotado de uma boa dose de autos-
suficiência, acostumado a buscar e encontrar a medida de seu progresso em si mesmo e
na sua experiência de fé, que ele faz coincidir (talvez inconscientemente) com a própria
experiência espiritual. E educado a considerar a realidade, em geral e em particular à qual
é enviado, como sendo secundária e menos importante. Sobretudo a realidade das pes-
soas.
Outra consequência, mas estreitamente ligada ao que acabamos de dizer, é que a
pregação deste personagem tenderá a ser sempre a mesma, uma vez que ele não leva
muito em consideração os outros.
Propor uma formação que coloque ao centro o tu, o destinatário do serviço e do
anúncio, quer dizer ter presente todos estes passos.
que o consagrado deveria ser capaz de sofrer, sentir a dor, de partilhar aquele sofrimento;
claro, pois ele não é somente o consolador, em nome de Deus ou de sua eventual compe-
tência, muito menos é o juiz de direito que avalia a situação do outro, tirando as conse-
quências no plano da imputabilidade moral, mas é aquele que é chamado a participar da-
quela dor, a acolhê-la em si, como o Filho que se encarnou na dor do homem ou o Sama-
ritano que se preocupou com as feridas do assaltado e delas cuidou. É um pequeno gran-
de milagre, e é como um olhar transfigurado e transfigurante, mas que deveria caracteri-
zar todo encontro do consagrado com a dor de seu povo; graças a ele, o outro, de algum
modo vai embora mais leve, porque uma parcela de sua dor a deixou no coração do con-
sagrado, coração que, a esta altura se assemelha àquele do Bom Pastor e do Bom Sama-
ritano. O jovem deve ser formado para esta específica liberdade do coração, e não sim-
plesmente a exercer algum tipo de apostolado, mais atento e preocupado com a sua per-
formance (isto é, com sua imagem), do que com a dor de quem está sofrendo, e que nem
permite entrar em seu coração. Muito interessante, neste sentido também, o fato que o
povo, povo simples, reconhecesse em Jesus alguém que tinha autoridade, diferentemente
dos Fariseus. E onde percebia esta diferença, ou onde estava a verdadeira autoridade de
Jesus para com o povo? Justamente no fato que Jesus tomava parte emotivamente do
sofrimento da viúva, do doente, do cego, do leproso...! Ele a revivia dentro de si. Eis a fon-
te sadia da autoridade não somente em Jesus, mas também no consagrado hoje. Quando
não tem liberdade e capacidade de com-paixão, a autoridade descamba para o poder.
te que ela seja abençoada e assim viver seu sentido verdadeiro, profundamente relacio-
nal.
3.1- O tesouro
Para poder fazer uma escolha que impõe uma renúncia muito grande e igualmente
muito difícil, é preciso, nos sugere a psicologia, ter encontrado algo que vale mais do que
aquilo que renunciamos; um tesouro, como diz o Evangelho, pelo qual estamos dispostos
a vender tudo o que temos. Se, portanto, a renúncia do exercício da genitalidade é re-
núncia muito significativa, de um bem muito grande e muito bonito, tal renúncia só será
possível se Jesus se torna o tesouro da minha vida, aquEle que o meu coração ama sem
limites (o enamoramento ou a conversão religiosa de Lonergan), aquEle que preenche a
minha solidão, que responde à minha exigência de afeto. Não uma teoria ou uma teologia,
muito menos apenas um frágil e passageiro sentimento, mas uma pessoa viva (vivente)
com a qual posso estabelecer uma relação verdadeira e própria, que me abre para as re-
lações com os outros. Tudo de forma coerente e linear.
Nesta segunda parte do nosso trabalho nos deteremos sobre o sujeito da for-
mação, mas sempre tendo presentes os outros dois pontos da nossa reflexão e todos os
projetos formativos apresentados pela Igreja. É importante realçar a ligação entre a for-
mação (ou tipo de formação) e a Igreja (ou imagem de Igreja que se transmite através da
dinâmica educativa), para além do interesse que atenda apenas aos jovens em formação
e aos formadores; na verdade, o modo como uma Igreja compreende e atua a formação
influencia de modo significativo o seu modo de evangelizar; ao mesmo tempo que, por ou-
tro lado, o modo como a Igreja entende a si mesma e sua missão, influencia de modo
significativo a maior ou menor importância que ela dá à formação personalizada, à manei-
ra como a atua e os recursos a serem investidos. A importância dada à formação perso-
nalizada, afinal, depende também do tipo de eclesiologia, da ideia de Igreja que se vive. É
como uma premissa que, não comentaremos agora, mas nos diz da importância deste ti-
po de análise no hoje, neste momento tão particular e complexo na vida da Igreja.
atual e eu ideal), pelos seus aspectos positivos e negativos; mas particularmente aquele
que identificou o que em si lhe impede de ter os mesmos sentimentos do Bom Pas-
tor. Não se pode dar isso como um pressuposto óbvio, pois sentimentos quer dizer sensi-
bilidade, portanto algo que não consiste apenas nos comportamentos ou na conduta ex-
terna, ou que se possa perceber e interpretar logo, mas algo mais profundo, não perceptí-
vel de imediato, às vezes inconsciente, nem mesmo algo que é apenas e totalmente ne-
gativo e oculto dentro de nós, mas algo que pode até contaminar o ideal vocacional, es-
condido mas perceptível no modo de pensar o próprio futuro ministerial; escondido mas
também visível na própria maneira de se relacionar com os outros ou de viver a sexuali-
dade.
Alguém pode considerar-se em formação, a partir daquele bendito dia em que a
ação paciente de um educador o ajudou a dar um nome a esta realidade consciente ou
inconsciente, escondida e identificável, infantil-adolescente e, apesar disso, com influên-
cia na motivação vocacional do jovem e do adulto, como que, “de butuca” às portas do
coração, e ao mesmo tempo reconhecível nos sentimentos, mágoas, ideais irreais, disto-
rções perceptíveis, rigidez de conceitos (mesmo teológicos ou pastorais), narcisismos va-
riados, invejas e ciúmes, carreirismo e busca de promoção, saudades de uma Igreja que
não existe mais, liturgismos superados....
Não há formação enquanto o sujeito não der um nome preciso a es-
ta inconsistência central (central porque se estabelece às portas do coração, mas em se-
guida se estabelece no centro do coração, de onde comanda as operações). Alguém po-
deria passar anos e anos de formação sem jamais estar em formação. Dir-se-á então
que “mora” no seminário, talvez supere as avaliações acadêmicas, mostra habilidade e
competência pastoral; além do mais, deseja prosseguir. Mas não se poderá dizer que o
indivíduo está em formação, se não souber por quais forças motivadoras é levado a pros-
seguir, e, por conseguinte, não sabe qual força ou motivação nele esteja madura e adulta,
e qual seja, por outro lado, motivação de adolescente, por isso mesmo, menos madura.
Aqui, não necessariamente estamos falando de pecado. É simplesmente ignorância. Há
algo desconhecido que o impede e o torna menos livre, que limita a sua visão, ou leva
sua sensibilidade, mesmo a sensibilidade vocacional, para um rumo errado, predispondo-
o a viver a própria vocação a serviço do próprio eu e de suas necessidades não resolvi-
das. Mas sem saber – e este é o aspecto mais inquietante – onde trabalhar-se, apesar de
sua (teórica) boa vontade. Um indivíduo assim poderia ir avançando durante todo
o processo da formação inicial, chegando a ser admitido às ordens, mas sem modificar
muito o seu próprio mundo interior (e normalmente, sem grandes esperanças de mudar
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é outra atitude que, em primeiro lugar faz crescer a ele mesmo, o formador, tornando-o li-
vre para gerar pessoas livres, do mesmo modo que Deus age e ama. Pois Deus não quer,
como bem sabemos, soldadinhos obedientes. Ele quer filhos felizes!
2- O problema
Nesta segunda parte, e depois na terceira, procuraremos ver alguns aspectos mais
práticos, que de algum modo incluam certo questionamentos que todo formador se faz.
Mas partiremos de uma premissa: a aliança que deve haver entre o formador e o
formando, como que um tratado, ou um acordo, baseado na convicção de que ambos
têm um único objetivo, e, portanto, todo o interesse de trabalharem juntos. Acordo que ge-
ralmente é mais teórico, do que posto em prática na realidade da caminhada formativa.
a. Canteiro aberto.
Eles o são porque toda a população jovem, hoje, está exposta a importantes mu-
danças culturais que dizem respeito a experiências fundamentais como a comunicação, a
relação interpessoal, a paternidade, a educação e a formação, a corporeidade,
a sexualidade, o gênero e a orientação sexual, a ética. Tais mudanças são problemáticas
e com frequência, não estão em sintonia com uma antropologia cristã. As atuais antropo-
logias estão sempre mais inclinadas a impor-se não por uma reflexão sistemática, mas
porque parecem representar a orientação da maioria da população.
Mas qual é o verdadeiro problema? É que ao mesmo tempo não podemos não
considerar que algumas características da formação seminarística, como frequentemente
ela é feita, ou alguns dos aspectos da escolha do sacerdócio ou do modo clássico de en-
tendê-lo, apesar do seu valor, podem agir em cumplicidade com algumas questões evolu-
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tivas ainda abertas, não resolvidas de modo maduro, portanto, com algumas dessas
questões favorecendo-lhes o seu fechamento e não o que se esperaria, a sua abertura,
isto é, o positivo desenvolvimento dos formandos.
b. Círculo vicioso
Assim, corre-se o risco de criar um círculo vicioso, bastante perigoso, de cumplici-
dade entre formação sacerdotal e falha no completo desenvolvimento dos indivíduos. Ou
entre o ideal sacerdotal (como entendido pelo indivíduo) e sua própria imaturidade. Com
consequências que podem permanecer invisíveis ao longo da formação seminarística,
mas que podem aparecer nos anos seguintes, e mais provavelmente, nos anos de exer-
cício do ministério.
Poder-se-ia, portanto, dizer o seguinte: o seminário não pode formar para o sacer-
dócio. Isto é, não pode dar a formação espiritual, não pode formar naquela singularíssima
experiência espiritual cristã que é a vocação, o contato com o Senhor que chama para o
Seu seguimento, sem nos convencermos de que aqueles jovens, destinatários da propos-
ta formativa são, do ponto de vista da construção de sua humanidade, canteiros ainda
abertos; e eles agirão depois segundo esta sua condição.
Um canteiro aberto não é um ambiente “patológico”... É um canteiro de obras, isto
é uma casa “não acabada”. O que significa que nessa casa não se vai habitar, mas não
por ser “errada”, ou “malfeita”, mas porque “não está terminada”. Uma casa não termina-
da, ou incompleta! Se a formação espiritual não assume este estado de coisas e não
aprende a ver as consequências que daí decorrem, corre o risco de assemelhar-se ao
vendedor de casas que sugere a quem a compra, que faça a mudança, que coloque os
móveis e que pendure os quadros nas paredes, sendo que ainda não foram instalados o
sistema hidráulico, o sistema elétrico, as janelas ou o piso... O perigo é que a intervenção
espiritual, - neste caso seria melhor dizer espiritualista - pareça uma intervenção de fa-
chada, “cosmética”, no exterior, mas não em condições de interagir com os processos
profundos do sujeito e de favorecer o seu completamento.
decidir sobre sua abolição). Estão em causa aspectos não secundários, teológicos, ecle-
siológicos, antropológicos... portanto, de identidade para a Igreja e para o indivíduo.
plexidade. Por um lado, percebe, pelo menos em nível inconsciente, certa atração (mes-
mo se teme considerá-la genital-sexual), por outro, percebe-se como desadaptado, confu-
so, inferior, incapaz de sustentar uma relação com ela.
se sente não só em paz com seu próprio celibato, mas também atraído por ele, que dá um
valor sagrado à renúncia de um relacionamento privilegiado com a figura feminina.
O que deve ser salientado, porém, não é tanto o aspecto moral (o uso impróprio do
computador), mas o fato de que deste modo a opção celibatária torna-se atraente para
este tipo de personalidade, porque, de um lado permite não viver um relacionamento dire-
to com a figura feminina (sem renunciar a uma certa satisfação do instinto sexual), e de
outro não o leva a uma tomada de consciência da própria ambiguidade, nem a buscar al-
gum tipo de conversão. Como uma cumplicidade com o celibato (que neste caso, certa-
mente não seria “pelo Reino) que na realidade é relevante e tentadora: o status do sacer-
dote celibatário pode atrair porque “fecha” rapidamente o problema da pessoa ainda pa-
rada no estágio adolescente, ou de algum modo incapaz de entrar num relacionamento
com a realidade da mulher, com medo diante da complexidade dessa realidade e do que
ela evoca, oferecendo ao seu sentido de inferioridade a possibilidade de escapar de ma-
neira rápida, por meio da ilusão gratificante de um certo poder sobre as imagens virtuais.
Poder ilusório, naturalmente, porque não lhe pede para melhorar o conhecimento da
complexidade, nem para aprender a interagir com ela, mas, ao contrário, pretenden-
do simplificar-lha. Como? Excluindo de várias maneiras a figura feminina: substituindo-a,
por exemplo, por uma imagem virtual da qual pode dispor como quiser; ou estabelecendo
com ela um relacionamento muito superficial, que esconde a sensação de superioridade,
ou então de não valorização da sua dignidade (quanto esteve presente na Igreja este pro-
ceder!); ou vendo a mulher de maneira parcial-redutiva (pela beleza física ou como figura
sedutora-tentadora); ou procurando – embora pareça ser o contrário – uma espécie de
consentimento e admiração sua, como pode acontecer ao celibatário de meia idade que
ao seu redor espalha o fascínio discreto de quem não pertence a mulher alguma, mas go-
za, sem admitir, é claro, do fato de ser atraente e interessante para ela (talvez com-
prazendo-se em suscitar ciúme no... devoto femineo sexu, que às vezes rodeia e envolve
o sacerdote); ou procurando nela como puer aeternus, normalmente sem se dar conta, a
figura materna, a consolação e a ternura, em uma regressão que se estende perigosa-
mente também a outras áreas da personalidade; ou chegando a abusar dela, dos seus
sentimentos, do seu afeto, do seu corpo, de sua feminilidade. Não podemos excluir, por
fim, que tal ambiguidade (anti)relacional poderia ser uma das causas ou “co-causas”, tal-
vez remotas e indiretas dos escândalos e abusos sexuais (em sentido étero e homosse-
xual) que houve na Igreja, claramente através de um processo que levou lentamente a
pessoa a perder sempre mais o controle sobre si mesma, e sobre o próprio problema não
resolvido. Estas e outras são todas expressões desta substancial não acolhida da mulher
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c. Consequências
Os êxitos, obviamente, podem ser múltiplos. O que considero mais temível para o
sacerdócio, é justamente a separação do celibato de uma condição afetiva-relacional, ou
a tendência a interpretar o celibatário com um status de solteiro, e por isso com a psicolo-
gia do não-casado, de quem não é responsável por ninguém, com tudo o que isto significa
para a formação da sensibilidade espiritual (= relação de amor com Deus) e relacional
(=relação com os outros). Com isso reduz-se o papel presbiteral a uma forma ou estilo de
vida diretivo, de controle, superficial, que a este ponto, pode recuperar o afetivo (se o re-
cupera) segundo modalidades que não pertencem ao ministério, e que podem, até mes-
mo ser contra o ministério. Deste ponto de vista, portanto, considero que o relacionamen-
to com a mulher, com sua identidade na Igreja, e, portanto, também com o seu carisma
específico, seja um espaço formativo também para o seminarista, para o sacerdote, enfim
para a formação inicial e para a formação permanente, que investe nisso, tanto o indiví-
duo, como a instituição eclesial. E, portanto, deve tornar-se objeto explícito da atenção
formativa, sem esperar que o jovem traga o problema (mesmo porque se ele não está
consciente não o trará nunca). E por certo, como diremos mais adiante, a problemática
deve ser enfrentada nas formações em grupo, fazendo ver os lados escondidos do pro-
blema, e as consequências negativas em quem o ignora.
Outra consequência negativa desta desatenção: poder, imagem não real e não rea-
lista de si e dos outros, fechamento do espaço afetivo-relacional (mas não necessaria-
mente do sexual-genital, considerando a grande quantidade de ofertas compensativas à
disposição no mundo virtual), conduzem a uma possível difusão de distúrbios narcisistas
de personalidade na nossa jovem população seminarística (portanto nos padres jovens e
nos futuros padres). O narcisismo, como outros estilos de personalidade, firma-se em as-
pectos fortes da pessoa que, neste ponto, compensam os mais fracos ou problemáticos.
Estilos de personalidade potencialmente problemáticos como o narcisista, ou o paranoide,
em razão de suas características intrínsecas, com frequência firmam-se sobre uma boa, e
talvez até ótima capacidade intelectual. Por isso, alguns distúrbios de personalidade con-
tinuam “encobertos” e, contrariamente ao que são, podem mostrar personalidades que no
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a. “Poder sagrado?”
A expressão “poder sagrado” pertence a uma certa espiritualidade presbiteral tradi-
cional, e em si mesma é correta: “sagrado poder é exatamente o poder certo que está li-
gado ao ministério sacerdotal como tal, poder ou melhor, potestade sacramental de per-
doar os pecados, de celebrar o memorial do Senhor, de invocar a Benção, de anunciar a
Palavra, de administrar os sacramentos4.
Não é um poder ligado à pessoa e às suas capacidades de liderança, mas à figura
do sacerdote, um poder que vem do alto, como uma participação do poder do único Sa-
cerdote que é Jesus, o Salvador, e sem nunca esquecer, lembra João Paulo II, que quan-
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grado) nas fantasias deles, talvez não doentias, mas sem dúvida perturbadas, não é nada
inócuo e pacífico, mas pode dar lugar, a seu tempo, a uma espécie de transformação da
personalidade, da maneira de sentir-se e relacionar-se, de afirmar-se e de dominar, de
exercer e ser o sacerdote ou o evangelizador, a ponto de neles poder desencadear-se al-
go incontrolável.
Por isso, faz sentido que o Papa Francisco indique entre as motivações vocacio-
nais mais duvidosas e perigosas justamente “a busca de formas de poder” 6. “O poder sa-
cralizado que acompanha o sacerdócio pode conduzir a terríveis desvios” 7 diz Ringlet,
pensando exatamente sobre os abusos sexuais. Já, segundo dom Quellec, monge prior
do mosteiro de Clelland, “homens frágeis a quem é proposto um ideal de santidade perfei-
ta e de plenitude, conseguem superar esta lacuna (a sua fragilidade) às vezes em modo
anárquico, violento, e não raro, até criminoso”8. Creem compensar o seu fraco equilíbrio
interior ou a sua identidade negativa com o poder de que se sentem repentinamente in-
vestidos com a ordenação sacerdotal, ou são assim “invadidos por este ‘falso sagrado’ e,
malmente embebidos do poder que buscam, se impõem aos mais fracos, abusando deles
e fechando-os – circunstância agravante – na teia de sua autoridade, assim chamada es-
piritual”9. Foi o que aconteceu em muitos casos de abuso sexual, abusos de alguma for-
ma subjetivamente legitimados em tais pessoas, por um sentimento do sagrado que per-
mite tudo. É uma catástrofe, comenta Ringlet, ou é uma “patologia de função”, confor-
me Bastenier10.
b. Consequências
De fato, isto aconteceu a um sacerdote que conheci há um bom tempo. Como jo-
vem seminarista a sua vocação mostrava sinais de inconsistência de natureza relacional
(era talvez briguento, mas como reação à sensação subjetiva de ser excluído e não valo-
rizado) ao que se juntavam notáveis problemas intelectuais, a ponto de por causa destes,
ao menos oficialmente, ter sido demitido do seminário. Mas o rapaz não conseguia aceitar
o fato de não poder se tornar sacerdote, até mesmo pela pressão que os familiares exer-
ciam sobre ele. E assim, finalmente encontra a costumeira diocese em crise por falta de
vocações disposta a acolhê-lo e ordená-lo sacerdote. Apenas ordenado que faz, a que se
dedica preferencialmente? Nada menos que atirar-se de ponta cabeça na prática de exor-
cismos e ritos de libertação, isto é, tudo o que tem a ver com o sagrado poder presbiteral
oposto ao poder do mal.
O bispo está satisfeito, mesmo se o padre exerce de modo pessoal demais este
serviço (ou poder?) que ele se autopropôs envolvendo-se nele com grande dedicação e
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tapando assim um buraco de fato existente na diocese. Em pouco tempo alcança até uma
certa fama, acorrem a ele de diversos lugares. De outro lado, exerce um ministério que,
além de sua complexidade, responde a uma expectativa e a uma necessidade que con-
segue atrair muito público, com êxitos verdadeiramente gratificantes para ele. O semina-
rista relegado sempre ao último lugar, incapaz e perdedor, já é uma lembrança distante no
tempo, encoberta definitivamente pelo sacerdote do sucesso (ou do poder) surpreenden-
te, que pode derrotar o inimigo por excelência, satanás! De modo discreto, ele faz saber
aos velhos superiores de seu primeiro seminário, aqueles que o tinham demitido, a sua
transformação e o seu sucesso: pequena, mas gratificante revanche...
Pena que a um certo ponto torne-se pública uma triste história de abusos pedófilos
a ele atribuída, que o nosso exorcista procura logo tirar de suas costas (“todas calúnias e
invenções do espírito do mal, e de quem se serve de seu jogo...”); e depois, ao ver-se
sem saída, tenta penosamente justificar tudo com argumentos muito espirituais, que na
realidade escondem em sua raiz, aquela espécie de invasão do poder sagrado de que fa-
lamos, que aos poucos se tinha tornado incontrolável nele, como um demônio até então
ignorado e perigosíssimo, e que o estava justamente dominando, apesar de todos os seus
exorcismos.
Pessoalmente estou convencido, de verdade, que deva mudar alguma coisa no
modo de propor o ideal sacerdotal, particularmente em relação a esta questão do poder.
Pois, com frequência, estranhamente fica algo de não dito. Se há algum tempo o tabu es-
tava no âmbito sexual, disse alguém, hoje parece ser proibido falar de poder, que, a bem
da verdade está ligado ao ministério presbiteral, não podemos negá-lo. Dizer “poder liga-
do ao ministério”, de outro lado, pode parecer uma contradição de palavras, uma vez que
ministério quer dizer serviço. Mas justamente por isso é indispensável dedicar atenção a
este aspecto, esclarecê-lo vigorosamente, fazer entender que a verdadeira autoridade do
sacerdote vem de sua capacidade de compaixão, não da dominação. É indispensá-
vel, acima de tudo, alertar a respeito dos possíveis abusos de poder, apontá-los
com coragem e precisão, fazer ver o seu lado profundamente antievangelico, a contra-
dição em nível psicológico e pastoral. O Sacerdote deve ser “pastor, não clérigo por sta-
tus”, advertiu o Papa Francisco em sua viagem à Coréia11.
Se isto se diz para todos, de modo muito especial deve ser esclarecido a quem é
particularmente frágil no plano da própria identidade. É principalmente aquele que é frágil
o mais tentado pelo poder; e como este poder é sagrado, a tentação é ainda mais sutil, ou
então menos reconhecível como tentação; torna-se uma armadilha para quem se dá ares
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de superioridade; é uma alternativa boa de compensação para quem tem uma motivação
fraca.
Outra vez me sirvo da precisa análise de dom Ringlet, segundo o qual, por parado-
xal que possa parecer, “para ser sacerdote, sacerdote de verdade... é preciso ter uma
quantidade suficiente de profano em si, de laicidade, para fugir das ambiguidades do po-
der do sagrado. O Sacerdócio é um serviço e para exercer este ministério de for-
ma serena e com seriedade é preciso ter a capacidade de “ficar fora do clan”
(R. Lallemand)”12. Isto é, ficar distante de toda lógica do poder, de todo corporativismo, de
todo lobby, de toda confusão e entrevero. Isso tudo já é ruim em si, mas tanto pior se
“abençoado” com algumas gotas de água benta, pelas formas de abuso da vocação, da
Igreja, e da pertença a ela.
3- Proposta pedagógica
Vamos tentar ver, nesta terceira e última parte, de que forma responder a este
desafio. Sem a pretensão de encontrar fórmulas mágicas, mas buscando achar o modo
mais eficaz e pedagógico de viver esta situação crítica, para que dela se tire algo
bom, para quem se prepara ao sacerdócio e para a igreja.
A minha proposta refere-se ao modelo (ou método) psicopedagógico da inte-
gração, ou no plano mais propriamente espiritual – da recapitulação em Cristo. Trata-se
de fato, de trazer em causa um conceito da formação que consiga fazer interagir
várias abordagens reflexivas, diferentes modalidades de intervenção, diversos níveis ope-
rativos, em momentos distintos, mas fundamentalmente girando em torno do mistério da
Páscoa de Jesus, centro do universo e de toda existência humana.
a- Diálogo psicologia-teologia
Temos de nos convencer que a formação não é uma operação puramente pedagó-
gica e prática, e tampouco apenas espiritual; mas que ela nasce de uma visão de homem
que deve ser constantemente esclarecida e enriquecida, bem enraizada e purificada, e,
no nosso caso sobretudo, através de um diálogo mais próximo e constante com a teolo-
gia. Mas não só isso! Deve ser favorecida uma reflexão teológica, pois falamos de bem da
pessoa na perspectiva de uma visão de homem e de mulher que assumimos da Reve-
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a. Integração psico-espiritual
Uma ulterior integração deve acontecer no relacionamento entre a psicologia e a
espiritualidade. Não podemos mais continuar pensando a espiritualidade co-
mo uma ciência transcendente e mística, ou que se ocupa do divino, e que olha
com desconfiança as invasões das ciências humanas; e, por outro lado, deixemos
de considerar a psicologia como uma disciplina que se ocupa do humano e exclui a obra
da Graça; que reduz tudo à sexualidade e, quando muito, pode ajudar a trazer um pouco
de luz para algum caso desesperado. Quem está preso a estas posturas rígi-
das contrapostas e a reducionismos interpretativos, está ainda na era pré-diluviana das
ciências humanas e das relações entre psicologia e espiritualidade (ou entre graça e natu-
reza).
Não podemos esquecer o que nos diz a história, também a história recente: toda e
qualquer separação entre o psicológico e o espiritual (que depois, na prática torna-
se uma confusão geral), nasce de uma visão que não consegue integrar o “terreno” com a
“semente”, o sentir com o crer, o afeto com a vontade. Antes, trata-se de for-
mar, especialmente nos formadores, uma antropologia prática que sintetiza as duas abor-
dagens (visto que o homem é espírito e matéria), isto é, um modo de pensar ou uma “for-
ma mentis” que se torna em nós como que um “olho clínico” sobre a realidade. Que nos
permite entrever na dinâmica profundamente humana das pessoas e no concreto de suas
vivências, o apelo também pessoal do chamado do Senhor, na liberdade e na verdade. O
humano no divino e o divino no humano.
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cação não conseguem colocar-se em sintonia, por isso, a “carta” que o sujeito envia para
Deus é diferente da “carta” que Deus envia ao homem. E então pode surgir uma situação
desagradável, uma sensação de solidão ou incomunicabilidade com Deus, de luta com
Ele....
Este pensar conjunto, portanto, recusa-se a entregar à psicologia a reflexão sobre
a prática, e a relegar a teologia à esfera da teoria, ou, olhando positivamente, mantem
juntas revelação e história. Formar significa treinar as pessoas para sustentar esta dialéti-
ca, esta luta que nunca se acalma e que, pelo contrário, na vida assume e assumi-
rá formas sempre novas e diversas. E que, acima de tudo, faz crescer o crente. Princi-
palmente o crente que entende esta batalha, aquele que se entrega mediante a ação de
Deus.
a. No grupo
São as clássicas formações em grupo (instruções ou aulas extracurriculares), muito
importantes do ponto de vista do conteúdo e da metodologia formativa, porque visam,
principalmente em alguns âmbitos, oferecer ao jovem em formação a certeza de que exis-
te uma objetividade, uma regra, um caminho já identificável porque testado pela sabedoria
da Igreja e da tradição, ou pela reflexão e experiência humana. Numa cultura como a
atual, onde tudo parece informe e indefinido, ou entregue a um pensamento frágil, é fun-
damental repetir que há uma verdade, uma gramática, e não só porque existe uma Reve-
lação, mas porque existe a... verdade e a possibilidade de descobri-la. Também aqui, con-
trapor a objetividade à subjetividade é algo estúpido e sem fundamento: a objetividade, ao
contrário, protege a subjetividade, garante-a, lhe dá a possibilidade de expressar-se de
modo inteligente e fecundo, e de não se perder em becos sem saída.
Isto torna-se particularmente importante em alguns aspectos formativos, se-
ja aqueles clássicos (como por ex. a castidade, a vida comum, a amizade e o estilo rela-
cional típico daquele que é virgem, as leis do crescimento espiritual...), seja os mais mo-
dernos e atuais (como por ex. uso da internet, relação com as tecnologias de um modo
geral, celibato e sexualidade, formas problemáticas de viver a sexualida-
de como a homossexualidade {pensemos p. ex., na importância de apresentar a diferença
entre homossexualidade estrutural e não estrutural}, pornografia, efebofilia, pedofilia,
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etc...). Falar destas coisas de um jeito relativamente informal permite aos formandos ver-
balizar alguns comportamentos que, de outro modo, poderiam permanecer no subso-
lo intrapsíquico, e, por isso, possivelmente vir a tornar-se uma patologia, enquanto que o
fato de fazê-los aparecer poderia ser pelo menos um primeiro passo para favore-
cer uma sua mais correta interpretação... E interpretar corretamente um comportamento
pode ajudar o jovem a chegar à pergunta certa, à parte sadia que está por trás desse
comportamento, levando-o a escolhê-la, alargando portanto os espaços de sua responsa-
bilidade e liberdade de decidir, e percebendo em tempo os possíveis desvios, quando
se escolhe mal, ou não se escolhe nada.
b. No indivíduo
A formação se faz também em grupo, mas permanece, acima de tudo, a necessi-
dade de um trabalho sobre a pessoa em particular, o que exige, portan-
to, uma abordagem individual. Porque apenas este tipo de abordagem respeita aquelas
condições de privacidade e confidência, que garantem por sua vez, a plena abertura da
pessoa. Sem a relação interpessoal não há, normalmente, a possibilidade de pleno con-
hecimento de si e dos próprios problemas, nem de um caminho de crescimento à luz do
Evangelho: é abrindo-se e entregando-se a um outro, normalmente alguém que seja con-
hecido, que o sujeito vai se conhecendo a si mesmo. A atuação no grupo, por outro lado,
não está em oposição à atuação sobre o indivíduo em particular, muito pelo contrário
o mostra como fundamental e instiga a isso, fazendo ao mesmo tempo entender que uma
certa resistência em se abrir, se por um lado é compreensível, por outro não ajuda a pes-
soa. E deixando claro que, em hipótese alguma, existe auto formação: ninguém pode
pensar em auto gerir-se no percurso formativo e auto promover-se às ordens.
Este colóquio pessoal deve ser sistemático e regular, não segundo os gostos de
cada um (“venha quando quiser, quando precisar…”). Ele deve aparecer como o lugar por
excelência do crescimento psicológico e espiritual. Mas é ainda tarefa do formador mos-
trar a lógica e a conveniência disto: a formação é relação, porque formação é ter em si os
sentimentos e a sensibilidade do Filho. Se de fato consiste em uma relação (com o Sen-
hor) e para ela tende, não pode senão acontecer através de uma relação com uma pes-
soa concreta, a quem de algum modo entregar-se, como mediação daque-
la relação que, por sua vez abrirá para outras relações.
não pode pretender, pela manhã acordar com o desejo de ouvir a palavra do Senhor, ou
ver a Sua face! Ou seja, se os sentidos externos, para além do aspecto moral, são satis-
feitos desse modo, os sentidos internos não terão outro alimento além deste. De conse-
quência, surgirão sensações, gostos e desejos a isto correspondentes. E o indivíduo, por
certo, não poderá dizer que ele não tem nenhuma responsabilidade. Mesmo se ele ten-
der a menosprezar estes fatos e a justificá-los (“o que há de errado? Não fiz mal a nin-
guém.... Há coisas piores que ofendem o Senhor...!”).
A consciência moral (outro tipo de sensibilidade), onde cremos que se forma? Nos
textos de teologia moral? Teoricamente sim, mas apenas em parte. Na realidade, aquela
sensibilidade moral que nos faz “sentir” uma coisa, um gesto, uma atitude como certa ou
errada, se forma e é formada através as escolhas, pequenas ou grandes, que fizemos. Os
escândalos sexuais em geral começaram com estas... desatenções veniais dos senti-
dos14. E um dos aspectos mais tristes e inquietantes, diante destes fatos horríveis, é jus-
tamente constatar a sensibilidade moral e penitencial do Sacerdote, não mais em con-
dições de alertar para a gravidade destes gestos (pelos quais, de fato não pedirá perdão a
ninguém)15.
c- Sensibilidade celibatário-virginal
Esta formação que presta atenção à sensibilidade não é, como se poderia pensar,
desequilibrada no sentido de só olhar para os mecanismos psicológicos da pessoa, mas
atenta, atentíssima também aos aspectos mais espirituais, como são os valores, que, evi-
dentemente, ainda devem ser propostos, em sua objetividade e origem transcenden-
te. Mas hoje é necessário motivá-los e remotivá-los, de acordo com a sensibilidade ho-
dierna (mais uma vez). Quero dizer, voltando ao que afirmei acima, não sei em quantos
seminários haja uma formação explícita para a escolha celibatária, para as motivações
autênticas subjacentes a tal escolha, motivações espirituais e também antropológicas (se
quisermos atuar um modelo de integração), ou então, quanto ainda a escolha celibatária
seja uma prática dada por pressuposta, uma vez que na pessoa se verificou a autentici-
dade do chamado ao sacerdócio. Antes, não deveria nascer uma certa sensibilidade celi-
batário-virginal para dar sentido a tal escolha?
Não podemos nos delongar aqui, mas direi simplesmente que, se queremos que
nasça esta sensibilidade, é necessário – creio eu – mostrar a verdade, o sentido profundo
desta escolha, que não pode ser vivida apenas como uma imposição da igreja ocidental,
ou, pior ainda, suportado como algo opressivo e negativo para a natureza humana, qua-
se que uma maldição. O celibatário anuncia ao mundo, com a sua escolha que, no co-
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ração humano Deus colocou uma sede infinita de afeto, que pode ser satisfeita somente
pelo próprio Deus. E o anuncia fazendo uma escolha extrema, por assim dizer, renun-
ciando a uma das coisas mais bonitas da vida humana: o amor do homem por
uma mulher que seja sua para sempre. Ora bem, o celibatário diz que há algo ainda mais
belo, e por isso faz esta escolha, para contar a todos (casados, namorados, amigos...) es-
ta “bela verdade” (teológica e antropológica), este evangelho do amor humano, esta ver-
dade universal de todo coração, que certamente também é dita pelo esposo, a seu modo,
mas não da maneira como o pode dizer quem faz este tipo de escolha radical
e singular. Por isso o jovem que se propõe a tomar esta decisão sente a responsabilida-
de de uma vida coerente, que em tudo deixe transparecer a beleza de amar a Deus
com um coração plenamente humano, e junto, a paixão no amar o homem com um co-
ração que aprende sempre mais a querer bem com a liberdade de Deus.
Não estou querendo dizer que este modo de apresentar o valor do celibato resol-
va, como que num passe de mágica, todos os problemas e conceda a liberdade de um
coração enamorado de Deus e apaixonado pelo homem, mas com certeza trará melhores
condições para apelar à sensibilidade da pessoa, e suscitar nela atração, desejo, sen-
sação de algo belo e grandioso, prazer de desfrutar da liberdade amante de Deus, vi-
gilância sobre os próprios afetos....
Para além disto, como dissemos, há a escolha (malmente) suportada e o celibato,
na melhor das hipóteses, apenas observado, mas medíocre, sem entusiasmo nem sensi-
bilidade alguma celibatário-virginal, ou até mesmo, com um mundo interior de gostos e
atrações que vão em outra direção, em busca de compensações, às vezes esquálidas e
perigosas. E é inevitável, neste sentido, se me permitem, voltar mais uma vez aos fatos
atuais: os escândalos sexuais de poucos, não seriam talvez a consequência da mediocri-
dade de muitos? Ou a mediocridade não é já por si só um escândalo?
- Docilitas
Pessoa dócil é aquela que, pelo menos aparentemente, está livre para aderir a uma
vontade diferente da sua, e de entrar no projeto de outrem; tal-
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vez seja também o indivíduo que se deixa facilmente convencer, ou que, de qualquer ma-
neira nunca se mostra obstinado e teimoso nas suas posições, pessoa que colabora com
os companheiros e é obediente em relação à autoridade; às vezes, talvez, um pouco pas-
sivo ou levado mais a esperar que alguém lhe diga o que fazer do que a tomar a iniciativa,
ou então submisso e que facilmente abre mão de defender os próprios pontos de vista. O
dócil não suporta momentos de confusão e muito menos de anarquia (ou pelo menos o
que ele percebe como tal), nem gosta que lhe deixem a responsabilidade de sozinho re-
solver e inventar algo, pede confirmações, e tende a ter um ponto seguro de referência na
autoridade. Normalmente a docilidade é considerada uma virtude, que dispõe para
a obediência, mas será uma virtude colocada em ação tendencialmente apenas diante de
ordens precisas, dadas por quem tem autoridade; uma espécie de “obediência oficial” ou
canônica17. Inclusive, para muitos, a docilidade é considerada como o ponto de chegada
de um certo caminho formativo; e quiçá, quantos bispos e superiores gostariam de ter um
presbitério ou uma comunidade de padres e consagrados dóceis às suas orientações! De
qualquer maneira, melhor dóceis e obedientes do que cabeças duras, pa-
ra quem nada, nunca está bom, e sempre estão contestando. Mas, ao contrário, hoje não
basta ser dóceis. Ou é apenas o primeiro degrau a ser superado.
Docibilitas
A docibilitas, no fundo, seria o pleno cumprimento e superação da sim-
ples docilidade. O sujeito docibilis, é aquele que aprendeu outra liberdade: a de deixar-se
tocar e provocar pela vida e pelos outros, por qualquer situação existencial, bonita ou feia.
Não descuida e não rejeita nada da vida. Pelo contrário, é livre para aprender
ou para deixar-se educar e formar por ela e pela experiência de cada dia, pela re-
lação com os outros, pelas suas próprias falhas e pecados...
Docibilidade é a total atuação do Espírito, ou uma forma alta de inteligência, talvez
a mais alta, típica de quem não fica esperando ordens que caiam do alto, mas toma ele
mesmo a iniciativa de perscrutar na realidade aquele valor e oportunidade formativas das
quais a própria realidade está sempre cheia, e de que ele necessita para seu crescimento.
Inteligente o quanto basta portanto, para dar-se conta de quanta graça há ao seu redor, e
livre na mesma medida, a ponto de deixar-se formar por ela. É pessoa humilde, sem pre-
tensão alguma de já estar formado e de ter somente o que ensinar, e sábia, que as-
sim adquire sempre mais o dom e a virtude bíblica da sabedoria. Por isso é crente adulto,
que corre o risco do discernimento, e busca discernir em cada momento e frente a cada
situação.
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dom? Talvez a pergunta poderia ser outra, um pouquinho mais acessível: “esta pessoa
é docibilis, aprendeu a aprender, é humilde e inteligente o suficiente para dispor-se
a ainda aprender?
Se sim, então é prudente impor as mãos sobre esta pessoa. Mas se não aprendeu
a docibilitas e não é (talvez nunca tenha sido) aquele canteiro aberto do qual falamos
acima, então o sacerdócio poderia ser inclusive um risco e um perigo, e não só para ele,
mas para as almas que lhe serão confiadas e para a Igreja.