Vous êtes sur la page 1sur 11

Ensaio | Essay 87

Políticas sociais e modelos de bem-estar


social: fragilidades do caso brasileiro
Social policies and social welfare models: fragilities of the Brazilian
case

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato1

RESUMO O artigo analisa o modelo de bem-estar brasileiro a partir de elementos centrais à


emergência e ao desenvolvimento dos sistemas de proteção social. Pretende-se discutir em
que medida a ausência ou a incompletude desses elementos fragilizam o modelo construído
na Constituição de 1988. Apresentam-se os preceitos gerais da proteção social para poste-
riormente caracterizá-los e discuti-los no caso brasileiro. Argumenta-se que o padrão inau-
gurado na Constituição de 1988 alterou de forma tímida elementos estruturais da dinâmica
dos estados de bem-estar social, como a desmercantilização das relações sociais e os valores
relativos à proteção social, tornando esse padrão frágil frente a medidas de retração.

PALAVRAS-CHAVE Política social. Seguridade social. Brasil.

ABSTRACT The article analyzes the Brazilian welfare model according to elements central to
the emergence and to the development of social protection systems. It is intended to discuss to
what extent the absence or incompleteness of those elements weaken the model built in the 1988
Constitution. The general precepts of social protection are initially presented to characterize and
discuss those issues as for the Brazilian case. It is argued that the pattern inaugurated in the 1988
Constitution timidly altered structural elements of the dynamics of social welfare states, such as
de-commodification of social relations and values concerning social protection, making it fragile
in face of retrenchment measures.

KEYWORDS Public policy. Social welfare. Brazil.

1 Universidade Federal
Fluminense (UFF),
Programa de Estudos
Pós-Graduados em Política
Social - Niterói (RJ), Brasil.
lenauralobato@uol.com.br

DOI: 10.1590/0103-11042016S08 Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016
88 LOBATO, L. V. C.

Introdução o processo de alteração dos sistemas de


proteção é caracterizado como de redução
A análise da emergência e principalmente do (ou retrenchment) ou restruturação, já que
desenvolvimento dos regimes de bem-estar não teria havido alteração significativa nos
na América Latina (AL) trata em linhas gerais regimes de bem-estar social. Mais ou menos
de três períodos distintos. O primeiro, da radicais, as mudanças importaram em
emergência e constituição dos regimes, rela- redução do crescimento dos gastos públicos
ciona-os à especificidade do capitalismo na sociais, introdução de mecanismos de gestão
região e seu correlato modelo de industria- tomados da chamada new public managent
lização por substituição de importações, que (POLLITT; BOUCKAERT, 2002), mudança no padrão
resulta em um padrão centrado em modelos de benefícios, inclusão de mecanismos de
corporativos, tendo como característica copagamento e maior participação de ser-
mais comum a estratificação de clientelas e viços privados (COUSINS, 2005; ALSPATER, 2003). As
benefícios e amplas camadas da população mudanças introduzidas começam a mostrar
excluídas (FILGUEIRA, 2011). O segundo, período suas consequências em termos de desigual-
de reformas neoliberais, onde os sistemas dade e inequidade, mas ainda não se ca-
sofreram mudanças significativas em diver- racterizam por alterar a espinha dorsal das
sos países durante as décadas de 1980 e 1990, políticas sociais. Mas também não há sinais
tendendo ou à quebra dos regimes, mas com de retorno a períodos de expansão.
alternativas diversas como a ampliação da Como o modelo europeu é ainda a prin-
universalização, caso do Brasil, ou à mercan- cipal referência de construção de sis-
tilização mais radical, caso do Colômbia. temas amplos de políticas sociais, cabe
O terceiro período, mais recente, é iden- destacar a característica diferenciada do
tificado com a introdução de modelos eco- caso latino-americano, de inflexão na tra-
nômicos chamados neodesenvolvimentistas, jetória neoliberal – ou o terceiro período
com foco na intervenção estatal e ampliação apontado acima – em meio à prevalência do
de políticas sociais. A tendência comum à processo de redução das políticas sociais na
AL foi a introdução do tema da pobreza na maioria dos países, e mesmo da radicalida-
agenda pública dos governos, com a criação de dessa redução na própria América Latina
ou ampliação de programas de transferência em período imediatamente anterior. Dado o
de renda e ampliação da cobertura para siste- delineamento de um suposto quarto período
mas de educação, saúde e previdência social. na América Latina, com nova onda de retra-
O resultado comum foi a redução significati- ção, aparentemente tão ou mais radical que
va da desigualdade, se considerado o padrão a anterior, é razoável supor que o período de
histórico da região, além de um crescimento inflexão, ou expansão das políticas sociais na
econômico não registrado em outras regiões América Latina, possa explicar, ao menos em
(DRAIBE; RIESCO, 2011). parte, o processo presente.
Um quarto período pode estar se deline- Neste artigo discute-se especificamen-
ando, caracterizado por retração econômica, te o caso brasileiro. O objetivo é explorar
crise política e econômica e crescimento de alguns fatores de nosso estado de bem-estar,
governos conservadores, cuja pauta inclui em seu período mais recente, que indicam
mudanças importantes nas políticas sociais. uma instabilidade crônica e o fragilizam
Embora a análise desse momento seja frente a medidas de retração. Para tanto,
precoce, já é possível identificar que, nova- tomamos algumas características que expli-
mente, as políticas sociais têm papel central. cam a emergência e expansão dos regimes de
No caso europeu, que vem vivenciando bem-estar social, especificamente o grau de
políticas neoliberais desde a década de 1970, desmercantilização e os valores.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016


Políticas sociais e modelos de bem-estar social: fragilidades do caso brasileiro 89

O caso brasileiro apresenta distinções políticos, deixando a um plano secundário a


e similaridades tanto com o caso europeu adoção de estratégias para a melhoria efetiva
como com o latinoamericano. Aqui, preten- das condições de vida e criação de padrões
deu-se construir um aparato de bem-estar mínimos de igualdade social. A cidadania
similar aos estados de bem-estar europeus, esteve pautada na necessidade de legitimar
tendo como marco legal a Constituição de diferentes regimes, o que fez com que os
1988. Essa construção, contudo, foi tardia direitos sociais tenham se desenvolvido de
em relação aos países centrais, e ocorre exa- forma fragmentada e desigual. Como sabido,
tamente no período de quebra do ‘consenso o padrão prevalecente foi o da cidadania re-
do welfare’ e prevalência do ‘consenso de gulada (SANTOS, 1987), onde o acesso a direitos
Washington’, quando as políticas sociais dependia da inserção no mercado formal
vinham sendo retraídas. Por outro lado, o de trabalho, com privilégio aos setores
Brasil apresentava contexto similar ao lati- urbanos e indispensáveis ao processo de
noamericano quanto à crise e à estagnação industrialização.
econômica aguda da década de 1980, com Em modelo similar ao de muitos outros
transição política e retomada da democra- países do continente sul americano, desen-
cia. Principalmente durante os anos de 1990, volveram-se potentes estruturas de proteção
foram apresentadas ao País várias das pro- social destinada aos trabalhadores urbanos
postas editadas pelas agências internacio- e baseadas na contribuição destes e seus
nais para o enfrentamento dessa crise. Mas empregadores. Os trabalhadores rurais, in-
o Brasil não acompanhou integralmente as formais e domésticos, que sempre foram
reformas levadas a cabo na América Latina parcela importante da força de trabalho no
durante os anos de 1990. As estruturas de po- País, estavam descobertos desses benefícios.
líticas sociais previstas na Constituição não A assistência social, por sua vez, sempre
foram quebradas; ao contrário, foram, em esteve fortemente associada a mecanismos
grande parte, implementadas. tradicionais de intermediação de interesses,
Nesse sentido, o Brasil acompanhou mais como o clientelismo, e foi também impor-
o processo de retrenchment das políticas tante elemento de legitimação de sucessivos
de welfare originário do que a radicalida- regimes. Como consequência, no campo das
de das reformas latino-americanas. Houve, ações estatais, foi tratada principalmente
contudo, uma corrosão dessas estruturas ao como elemento de troca e relacionada ao
longo das décadas que se seguiram, gerando favor e à benemerência (PEREIRA, 2001; SPOSATI et
uma complexa dinâmica de direitos segmen- al., 1992).
tados, políticas focalizadas de grande potên- Outro elemento importante do desenvol-
cia sem relação com as políticas universais, vimento das políticas sociais foi seu caráter
baixa relação com a política econômica, o que antidemocrático. É significativo que, de 1923
causou sérios constrangimentos ao financia- a 1985, as políticas sociais tenham se desen-
mento, e privatização ‘por dentro’ dos siste- volvido mais em períodos autoritários, dei-
mas, ou seja, por meio da preferência contínua xando um legado de alta centralização, baixa
à compra de serviços ao setor privado. interferência da população e pouca transpa-
rência, além de organizações burocratizadas.
Embora já exista um longo período demo-
A trajetória brasileira crático desde o fim do regime militar, essas
características ainda permeiam as estruturas
No Brasil, as políticas sociais estiveram for- setoriais da política social.
temente dependentes de projetos de desen- Apesar da potência da estrutura institu-
volvimento econômico de diferentes regimes cional de política social construída durante

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016


90 LOBATO, L. V. C.

o século passado, ela não conseguiu alterar E daí resultaria o padrão incompleto e insu-
a situação de exclusão de amplos setores ficiente de nosso estado de bem-estar social.
sociais e nem tampouco a enorme concentra- Nos quase 30 anos de Constituição,
ção de renda que sempre caracterizou o País. pode-se afirmar que as políticas sociais avan-
O lento período de transição democrática, çaram em aspectos cruciais, como o aparato
que se inicia ainda em meados da década de político-organizacional e a concepção da
1970 e se acelera durante toda a década de questão social. Do ponto de vista do aparato
1980 em uma conjuntura de profunda crise e político-organizacional, destacam-se a cons-
estagnação econômica, trouxe de volta a voz trução de sistemas nacionais tais como os
da sociedade. A democratização teve como de saúde e assistência social, a expansão de
ápice institucional a Constituição de 1988. burocracias públicas descentralizadas e uni-
A noção de cidadania foi a base de constru- ficadas, a participação inédita dos três níveis
ção desse novo modelo expresso no texto de governo e a construção dos mecanismos
Constitucional. de participação e controle social. E do ponto
A Constituição de 1988 institui um capí- de vista da concepção da questão social,
tulo específico para a ordem social e reco- destacam-se os elementos de ‘constituciona-
nhece como direitos sociais o acesso à saúde, lização’ – incorporação da noção de direito
previdência, assistência, educação e moradia (COUTO, 2008; FLEURY, 2006), de ‘abrangência’ –,
– além de segurança, lazer, trabalho. A se- de publicização e incorporação, na agenda
guridade social institucionaliza um modelo pública, de novos temas sociais, e de ‘amplia-
ampliado de proteção social, nos moldes dos ção’ – reconhecimento da produção social
estados de bem-estar social, com universa- e da inter-relação dos problemas sociais
lização do acesso, responsabilidade estatal, (LOBATO, 2009).
orçamento próprio e exclusivo e dinâmica Esses avanços conviveram com restri-
política inovadora baseada na integração fe- ções significativas, fartamente analisadas
derativa e na participação da sociedade. pela literatura da área. Contudo, nenhum
A Constituição representou uma ruptura prognóstico previu a inflexão que atinge as
legal baseada em noções pouco sólidas políticas sociais na conjuntura atual. Essa
na estrutura social brasileira, como cida- inflexão tem representação na proposta
dania, democracia e solidariedade social. de Emenda Constitucional 55, em discus-
Constitucionaliza-se ali um novo pacto são no Congresso Nacional, embora seja
social, mas suas bases foram frágeis. A ordem mais ampla, já que se contrapõe ao pacto
social prevista impunha uma nova forma Constitucional de 1988 tanto no que toca aos
de Estado em uma sociedade com baixos direitos sociais como ao papel do Estado na
níveis de organização social, antidemocrá- sua garantia.
tica em suas instituições estatais e sociais e Até aqui as restrições aos direitos sociais
profundamente desigual. Do ponto de vista se deram, por um lado, por meio de cons-
organizacional, a política social apresentava trangimentos à expansão do investimen-
uma potente estrutura de oferta e garan- to nas áreas sociais, criados ou mantidos
tia de bens sociais, mas de baixa cobertura, pelos sucessivos governos, como é o caso
restrita às parcelas médias e ao mercado da reedição sistemática da Desvinculação
formal, burocratizada, permeada por par- dos Recursos da União ou o impedimen-
ticularismos e com alto grau de corrupção. to à exclusão das áreas sociais da Lei de
O modelo constitucional teria que conviver Responsabilidade Fiscal ou a disputa acir-
com o passado das políticas sociais, com os rada pela definição de mínimos de gastos
projetos governamentais que lhe sucederam para os entes federados. Por outro lado, por
e com os valores da sociedade que o adotou. disputas intergovernamentais, por meio

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016


Políticas sociais e modelos de bem-estar social: fragilidades do caso brasileiro 91

de projetos políticos distintos em relação à Independentemente do enfoque teórico, há


abrangência dos direitos sociais e à amplitu- elementos comuns que operam em maior
de da intervenção estatal, como as diferen- ou menor grau na configuração de políticas
ças entre o governo do presidente Fernando sociais e, nesse sentido, servem como cate-
Henrique Cardoso e o governo do presidente gorias para a análise dos casos particula-
Lula da Silva na condução da política de as- res. Dentre esses elementos, destacam-se o
sistência ou entre esses mesmos governos e grau de desmercantilização, o compromisso
as políticas de igualdade racial, por exemplo. entre capital e trabalho, as relações entre o
Ainda, por disputas entre atores nas arenas mercado e o setor público, o papel da buro-
setoriais específicas, por recursos ou direção cracia e da autoridade central e o papel das
na formulação e implementação de políticas, classes médias. Esses elementos são bem co-
como a configuração do Sistema Único de nhecidos da literatura brasileira de welfare
Assistência Social (Suas), ou por disputas na state, mas, à exceção do papel da burocracia
descentralização de responsabilidades no e da autoridade central, não são muito apli-
Sistema Único de Saúde (SUS). cados em pesquisas empíricas para conhecer
A não ser em manifestações específicas, a intervenção da ou na política social.
por meio de discursos de autoridades ou por A desmercantilização, categoria desen-
meio de tentativas ou sucessos na aprova- volvida por Esping-Andersen (1990), diz res-
ção de legislações restritivas e setoriais, não peito à autonomia dos indivíduos em relação
houve, desde a Constituição, projeto político à dependência do mercado de trabalho. As
explícito para reconfiguração ampliada dos políticas sociais, ao fornecerem bens e servi-
direitos sociais previstos na Constituição e ços independentemente da inserção do indi-
materializados no amplo arcabouço de polí- víduo no mercado, garantem essa autonomia
ticas públicas que lhes dá sustentação. Esse e, nesse sentido, os estados de bem-estar
projeto hoje existe e está sendo levado a cabo seriam reguladores por excelência do
em meio a uma crise política grave, sem base mercado de trabalho. Por outro lado, quanto
em um programa eleito e que jamais foi apre- mais as relações sociais são desmercantili-
sentado como tal à sociedade. E, mais espan- zadas, mais fortalecidos ficam os trabalha-
toso, com razoável apoio social das camadas dores para reivindicar direitos (ZIMMERMANN;
médias. É de fato um projeto de ruptura com SILVA, 2009). Assim, a desmercantilização
a trajetória que vinha sendo delineada e com envolve o aspecto econômico e também po-
o modelo de estado de bem-estar social dese- lítico. No caso brasileiro, as políticas sociais
nhado na Constituição. Nesse sentido, cabe pós Constituição não teriam criado relações
discutir alguns elementos dessa trajetória. sociais inteiramente desmercantilizadas.
Mais impactantes na desmercantilização
foram medidas tais como a aposentadoria
Contradições e rural e o estabelecimento do mínimo de
permanências do estado de um salário mínimo para todos os benefícios
previdenciários.
bem-estar no Brasil O Benefício de Prestação Continuada
(BPC), importante benefício para idosos e
A literatura de estados de bem-estar sele- pessoas com deficiência, com alto impacto
ciona elementos de sua emergência e desen- positivo na vida desses segmentos, sofreu
volvimento que, de explicações históricas, constrangimentos tanto pela baixíssima
se transformaram em teorias com enfoques faixa de renda de elegibilidade (renda per
mais econômicos (WILENSKY, 1975) ou institucio- capita familiar de até 1/4 do salário mínimo)
nais (CASTLES, 1989) (AMENTA, 2003; ARRETCHE, 1995). como pelas normatizações excludentes de

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016


92 LOBATO, L. V. C.

avaliação médica para as pessoas com de- onde há exigência de qualificação (MONTALI;
ficiência. Esse rigor foi amainado recente- LESSA, 2016).
mente com a inclusão da avaliação social, A dinâmica em si do trabalho permanece
que considera impedimentos sociais e não insegura, haja vista o crescimento expressi-
só biomédicos para a concessão do benefício vo do benefício do auxílio doença previden-
(LOBATO; BURLANDY; PEREIRA, 2016). O impacto dessa ciário, que, de cerca de 30% das concessões
medida ainda não é totalmente conhecido. do Regime Geral em 2000, passou a 55,6%
Entretanto, quando combinada com a renda em 2006 (estabilizando-se em torno de
e com as regras para a análise da composição 45% nos anos seguintes) (FREITAS, 2013). Vários
familiar, não parece que o acesso das pessoas fatores contribuíram para esse aumento, que
com deficiência ao benefício poderá ser es- recentemente gerou medidas de controle
tendido de forma significativa. por parte da Previdência Social, e dentre eles
O BPC atinge cobertura significativa estão as restrições para o reconhecimento
para os idosos em extrema pobreza, mas dos acidentes de trabalho que geram o auxí-
não parece que vá ampliar sua cobertura ao lio-doença acidentário.
amplo contingente de pessoas com defici- Analisando a mobilidade de renda em
ência, muitas das quais crianças e pessoas regiões brasileiras, Montali e Lessa (2016)
com transtornos mentais, cujas deficiências confirmam que o aumento da renda registra-
tornam pouco provável a inserção de muitas do entre 2001 e 2012 ‘não foi acompanhado
delas no mercado de trabalho. A insuficiência por melhorias substanciais em outros indi-
de serviços correlatos de saúde, de assistên- cadores, tais como qualidade do emprego
cia e de educação para inclusão nas escolas e educação’, apesar das diversas políticas
de crianças e jovens com deficiência, com- e ações nesse sentido. Acrescentam que,
promete a inclusão social e o futuro destes, apesar do progresso registrado no acesso aos
assim como aumenta o comprometimento serviços públicos urbanos entre 2001 e 2012,
familiar com o cuidado domiciliar, restrin- ainda há distância significativa entre setores
gindo o acesso ao trabalho de membros da de renda.
família, principalmente das mulheres, que Precariedade do emprego, baixo nível edu-
permanecem dependentes de atividades cacional, insegurança em relação ao acesso a
pouco qualificadas e irregulares. benefícios quando em situação de risco e in-
O crescimento do emprego nos anos do suficiência dos serviços universais mostram
governo do presidente Lula da Silva foi a fragilidade do processo de desmercantiliza-
expressivo, com a criação de 22 milhões ção do nosso estado de bem-estar. Também,
de novos empregos, 90% deles empregos precisam ser considerados os efeitos da
formais. Mas foram empregos de baixa qua- globalização sobre os estados de bem-estar,
lificação, principalmente no setor de ser- ainda são pouco conhecidos no Brasil, prin-
viços, onde 95% dos empregados percebia cipalmente a abertura do mercado nacional
até dois salários mínimos (POCHMANN, 2014). O sobre os setores relacionados aos serviços
crescimento do emprego no setor de servi- sociais (CORTEZ, 2008). Essa nova configura-
ços está relacionado ao intenso processo de ção influencia também a conformação e os
desindustrialização registrado a partir da interesses dos atores. Exemplos na área de
década de 1990 e, embora a formalização saúde seriam novos atores e principalmente
reduza a precariedade do trabalho, já que arranjos de interesses advindos das mudan-
permite o acesso a diretos tais como o seguro ças no mercado hospitalar privado no Brasil,
desemprego, envolve funções de baixa quali- nas empresas de planos de saúde ou o cres-
ficação não ocupadas pelas camadas médias, cimento das empresas de serviços médicos,
permanecendo, portanto, ‘gargalos’ em áreas como as Organizações Sociais.

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016


Políticas sociais e modelos de bem-estar social: fragilidades do caso brasileiro 93

As mudanças na organização produtiva do nosso estado de bem-estar social demo-


impactam a organização coletiva e as de- crático, previsto na Constituição de 1988, não
mandas por direitos coletivos. A desmer- contou com um pacto de classes. Mesmo os
cantilização não depende somente da oferta setores de ponta da classe trabalhadora, que
segura de benefícios e serviços; ela precisa de deram suporte ao SUS, mantiveram apoio,
reconhecimento por parte dos sujeitos cole- mas demandam planos privados de saúde em
tivos. Pochmann chama à atenção para o fato seus acordos coletivos e não incorporaram
que a recente ascensão de amplas camadas os benefícios não contributivos como parte
ao emprego não foi acompanhada de maior da previdência social. Por outro lado, empre-
participação em sindicatos ou associações sários resistiram à predominância do setor
(POCHMANN, 2014). Os estudos de política social público e à ampliação do papel do Estado no
precisam se voltar mais para a compreensão processo Constituinte.
da dinâmica coletiva, resultado da expansão O fenômeno da quebra de consenso do
do nosso estado de bem-estar, para identifi- welfare é comum aos países que construíram
car estratégias futuras. estados de bem-estar, e os teóricos reforçam
A fragilidade do processo de desmer- a dificuldade de se manter a solidariedade
cantilização se associa a outro elemento social em tempos de globalização e mudança
importante à sustentação dos estados de do perfil do trabalho (CORTEZ, 2008). Para esses
bem-estar, que são os valores (ROSANVALLON, países, a questão seria como manter sistemas
2000; ESPING-ANDERSEN, 1999). A noção de cidada- de proteção sem a base valorativa que lhes
nia, base política da construção do modelo deu sustentação. Segundo Cortez, ‘parece
constitucional, parece não ter alcançado o haver crescente deslocamento entre a provi-
fundamento da solidariedade social que lhe são dos serviços sociais e a manutenção dos
é inerente. A noção prevalente é a do direito; pilares que garantiriam uma ‘coesão’ social
direito à educação, à saúde etc., e da res- (CORTEZ, 2008, p. 164). No caso brasileiro, talvez
ponsabilidade do Estado. Mas esse direito isso se aplique, e poderia ser identificado
não está necessariamente acompanhado da pela exigência de serviços sem a correspon-
noção de igualdade, expressa na prestação dente associação com a solidariedade social.
pública e coletiva, mas, antes, no direito Isso explicaria a ausência de associação
individual. Embora os sistemas públicos entre as condições de garantia dos princípios
sejam sabidamente usados por todos, não há do SUS, como integralidade e equidade e a
encontro entre os diferentes segmentos, já oferta prioritária e fragmentada de serviços
que se mantém, nos sistemas de proteção, a pelo setor privado.
estratificação social presente na sociedade. Para a assistência social, essa falta de
É o caso da diferenciação no acesso à escola consenso é ainda mais problemática. A cons-
púbica e superior, do acesso a procedimentos trução do Suas tem caminhado pari passu à
de maior complexidade e do uso regular dos preferência pelos benefícios de transferência
serviços no SUS ou da assistência dirigida de renda, que, em 2011, representaram 86%
preferencialmente à população vulnerável da despesa federal na assistência social, res-
quando um conjunto de violações de direitos tando pouco para a manutenção do sistema e
são riscos coletivos e podem atingir a todos. sua rede sócio assistencial (SPOSATI, 2015). Isso
O fato de parcela significativa da popula- não só compromete o sistema como reforça a
ção ter acesso a seguros privados de saúde noção da assistência como forma de política
não é trivial do ponto de vista da constru- para pobres e, mais, para pobres de renda.
ção coletiva do direito à saúde e dificulta a Apesar do avanço normativo da assistên-
difusão de uma cultura favorável à proteção cia social por meio de medidas tais como a
social ampliada e igualitária. A construção tipificação dos serviços assistenciais, o que

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016


94 LOBATO, L. V. C.

muda a lógica de relacionamento com enti- marginais aos projetos econômicos, os siste-
dades voluntárias de prestação de serviços, mas de proteção públicos cumpriram papel
e da Lei nº 1.2435/2011, que regulamenta o político para os distintos governos, fosse
Suas e cria a estrutura de proteção básica e como parte do projeto de ‘modernização’ do
especial, rompendo com a lógica de atenção Estado – como no caso do governo do presi-
por segmentos, o sistema é ainda marginal na dente Fernando Henrique Cardoso – ou como
configuração da proteção social. parte de um projeto ‘neodesenvolvimentista’
Dois mecanismos presentes no Bolsa – como nos governos do presidente Lula da
Família, que é a vitrine da proteção aos Silva e parte do governo da presidente Dilma
pobres, comprometem a desmercantiliza- Roussef. A capacidade reformadora da po-
ção; são eles a contrapartida exigida para o lítica pública, contudo, mostrou seu limite
benefício e a ideia de porta de saída. Noções frente às fragilidades estruturais de baixa
comuns na concepção contemporânea do inserção na política econômica, baixo grau
workfare, esses mecanismos tratam o recurso de desmercantilização, ausência de valores
à assistência como risco eventual. A con- igualitários e baixo apoio político-partidário.
trapartida, mesmo que seja do tipo soft, ou A prioridade à institucionalização por
seja, evite penalizar o beneficiário que não meio de políticas públicas foi extremamente
cumpre as exigências de vacinação e frequ- positiva do ponto de vista legal e da constru-
ência escolar – ao menos era assim até agora ção dos sistemas nacionais, mas não atingiu,
–, reforça a noção clássica liberal de contro- da mesma forma, as esferas subnacionais.
le sobre os pobres. Já a porta de saída, ou a Um dos preceitos mais inovadores das polí-
criação de oportunidades para reinserção ticas sociais pós 1988 foi a descentralização
dos beneficiários no mercado de trabalho, é como mecanismo de fortalecimento da de-
mais perversa, já que trata processos de am- mocracia contra a tradição centralizadora,
plitude diversas – a situação de pobreza ou embora pareça ter sido um dos problemas da
pobreza extrema – no mesmo nível da recep- expansão dos sistemas nacionais. As instân-
ção de uma dada qualificação e consequente cias de pactuação como mecanismos inova-
entrada no mercado de trabalho. Se essa con- dores de negociação nas políticas sociais não
cepção de porta de saída não tem mostrado têm sido capazes de enfrentar os conflitos
efeitos significativos em países com maior federativos e o modelo de competição parti-
escolaridade e melhores condições de traba- dária nos estados e municípios.
lho, quiçá aqui.
O modelo constitucional também careceu
de uma coalizão político-partidária de apoio. Conclusão
Estados de bem-estar podem ser menos de-
pendentes dos partidos, sindicatos e movi- A ordem social instituída na Constituição
mentos sociais quando estão consolidados, de 1988 inaugurou um modelo avançado de
passando a contar com o apoio de usuários e estado de bem-estar, exercendo importante
profissionais dos serviços. No caso brasileiro, impacto nas condições de vida da popula-
as coalizões foram setoriais, como na saúde e ção até aqui. Mas elementos estruturais à
na assistência, formadas principalmente de sustentação de tal modelo não puderam
profissionais e servidores, e, pouco, de par- ser alterados ou o fizeram de forma tímida.
tidos. Essas coalizões centraram esforços na Dados os sucessivos contextos desfavorá-
construção dos sistemas por meio da forma- veis à consolidação do modelo, seu desen-
ção de políticas públicas. volvimento priorizou a dinâmica estatal,
Tal estratégia foi bem sucedida, porque, principalmente em nível federal, por meio
mesmo sem apoio partidário forte e sendo de políticas setoriais, serviços e benefícios,

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016


Políticas sociais e modelos de bem-estar social: fragilidades do caso brasileiro 95

o que não lhe dá solidez para enfrentar con- história brasileira é um bom exemplo. Mas
junturas de retração. o esforço empreendido nos últimos 30 anos
A prioridade à dinâmica estatal foi de relacioná-las autorizava a suposição de
também um tipo de ‘estratégia de barricada’ que algumas etapas haviam sido vencidas
de defesa das políticas sociais frente à sua e não seriam alteradas, apesar dos embates
dissociação dos modelos econômicos suces- constantes nas áreas de financiamento e
sivamente adotados, em especial na saúde. gestão das políticas e nas dificuldades de
Mesmo o chamado neodesenvolvimentismo superar as formas tradicionais de interme-
não encontrou lugar para a expansão da uni- diação de interesses, muito presentes na
versalização na área social, sendo mais ativo dinâmica real das políticas sociais, que é
no incentivo ao consumo e aos mercados e aquela vivida pela população. Como recriar
na prioridade aos programas de transferên- o sentido democrático dos direitos sociais
cia de renda. Nem nesse momento propício, e da cidadania social? Qual democracia é
a saúde, apesar de sua importância como capaz de dar o sentido pleno às políticas
setor industrial, recebeu lugar de destaque, sociais? Que políticas sociais adensam efe-
ao contrário, aprofundou sua dependência tivamente a democracia? O Brasil e os casos
do mercado externo. Esse também foi o caso latino-americanos desafiam a literatura
em outros países latino-americanos, onde o sobre estado de bem estar social a respon-
modelo progressista não conseguiu romper a der a essas perguntas.
herança das políticas econômicas do período O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
liberal que o precedeu. Apesar dos avanços (Cebes) tem indicado a necessidade de apro-
desse modelo, há que se debitar também fundamento da democracia deliberativa; de
à antinomia entre expansão ampliada do inserção do bem-estar como mecanismo de
bem-estar e políticas macroeconômicas os desenvolvimento econômico; de valoriza-
entraves vividos hoje. ção das manifestações sociais ainda pouco
A relação positiva e bem sucedida entre visíveis, como os movimentos de moradia
expansão de políticas sociais e democracia e terra, de cultura, de favelas, mulheres,
no Brasil, expressa na transição democrá- negros, homossexuais, onde a política social
tica, na Constituição de 1988 e posterior- é menos institucional e mais identitária,
mente no desenho das políticas sociais, se onde o acesso a serviços é resultado de di-
tomada frente ao retrocesso que se avizinha, reitos substantivos e não o contrário. As res-
parece ter se esgotado e há que ser recriada. postas estão por vir, mas, nos seus 40 anos,
Sabe-se que democracia e políticas sociais o Cebes mostra juventude para começar de
não andam necessariamente juntas, e a novo, se preciso for. s

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016


96 LOBATO, L. V. C.

Referências

ALSPATER, C. Welfare capitalism around the world. Caribe: investigación y políticas. Bogotá: Pontificia
Taiwan: Casa Verde Publishing, 2003. Universidad Javeriana, 2011.

AMENTA, E. What we know about the development FLEURY, S. Saúde e democracia no Brasil: valor
of social policies. In: MAHONEY, J.; RUESCHEMEYR, público e capital institucional no Sistema Único de
D. (Ed.). Comparative historical analysis in the social Saúde. XI CONGRESO INTERNACIONAL DEL
sciences. New York: Cambridge University, 2003. CLAD SOBRE LA REFORMA DEL ESTADO Y DE LA
ADMINISTRACIÓN PÚBLICA, 7-10 nov. 2016, Ciudad
ARRETCHE, M. Emergência e desenvolvimento de Guatemala. Anais... Ciudad de Guatemala, 2006.
do Welfare State: teorias explicativas. BIB - Revista
Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências FREITAS, F. A evolução recente do auxílio-doença
Sociais, Rio de Janeiro, n. 39, p. 3-40,1995. previdenciário e o papel da reabilitação profissional.
2013. 101 f. Dissertação (Mestrado em Política Social) –
CASTLES, F. G. The comparative history of public Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.
policy. Oxford: Oxford University, 1989.
LOBATO, L. V. C. Dilemas da institucionalização de
CORTEZ, R. P. S. Globalização e Proteção Social nos políticas sociais em vinte anos da Constituição de 1988.
países desenvolvidos: uma análise da literatura. Rev. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 721-
Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 31, p. 161-176, nov. 2008. 730, 2009.

COUSINS, M. European Welfare States. London: Sage, LOBATO, L. V. C.; BURLANDY, L. A.; FERREIRA,
2005. D. M. Assistência Social e o benefício de prestação
continuada no Rio de Janeiro. In: SENNA, M. C. M.
COUTO, B. R. O direito social e a assistência social na (Org.). Sistema Único de Assistência Social no estado
sociedade brasileira: uma equação possível? São Paulo: do Rio de Janeiro: experiências locais. Rio de Janeiro:
Cortez, 2008. Gramma, 2016.

DRAIBE, S.; RIESCO, M. Estados de bem-estar social e MONTALI, L.; LESSA, L. H. Pobreza e mobilidade
estratégias de desenvolvimento na América Latina. Um de renda nas regiões metropolitanas brasileiras. Cad.
novo desenvolvimentismo em gestação? Sociologias, Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, p. 503-533, jul. 2016.
Porto Alegre, v. 13, n. 27, maio/ago., p. 220-254, 2011.
PEREIRA, P. A. Sobre a política de assistência social
ESPING-ANDERSEN, G. Social Foundations of no Brasil. In: BRAVO, M. I. S.; PEREIRA, P. A. (Org.).
Postindustrial Economies. Oxford: Oxford University, Política Social e Democracia. Rio de Janeiro: Cortez;
1999. UERJ, 2001.

______. The three worlds of welfare capitalism. POCHMANN, M. O balanço de Marcio Pochmann
Cambridge: Polity, 1990. sobre os 12 anos de governo do PT. Portal GGN, 15 de
maio de 2014. Disponível em: <http://jornalggn.com.
FILGUEIRA, F. Pasado, presente y futuro del Estado br/noticia/o-balanco-de-marcio-pochmann-sobre-os-
social latinoamericano: coyunturas críticas, decisiones 12-anos-de-governo-do-pt>. Acesso em: 30 nov. 2016.
críticas. In: BELLO, A. H.; SOTELO, C. R. (Ed.).
Protección social em salud em America Latina y el POLLITT, C.; BOUCKAERT, G. Avaliando reformas na

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016


Políticas sociais e modelos de bem-estar social: fragilidades do caso brasileiro 97

gestão pública: uma perspectiva internacional. Revista SPOSATI, A. et al. Assistência na trajetória das políticas
do Serviço Público, Brasília, DF, v. 53, n. 3, p. 5-29, jul./ sociais brasileiras: uma questão em análise. 5 ed. São
set., 2002. Paulo: Cortez, 1992.

ROSANVALLON, P. The new social question rethinking WILENSKY, H. The Welfare State and Equality:
the Welfare State. Princeton: Princeton University, structural and ideological roots of public expenditures.
2000. Berkeley: University of California, 1975.

SANTOS, W. G. Cidadania e Justiça: a política social na ZIMMERMANN, C. R.; SILVA, M. C. O princípio da


ordem brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1987. desmercantilização nas políticas sociais. Cad. CRH,
Salvador, v. 22, n. 56, p. 345-358, ago. 2009.
SPOSATI, A. Sistema único: modo federativo
ou subordinativo na gestão do SUAS. R. Katál.,
Recebido para publicação em dezembro de 2016
Florianópolis, v. 18, n. 1, p. 50-61, jan./jun. 2015. Versão final em dezembro de 2016
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Processo nº 308079/2011-6

Saúde Debate | rio de Janeiro, v. 40, n. especial, p. 87-97, DEZ 2016

Vous aimerez peut-être aussi