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Kiyoshi Harada*
1 Introdução
Dispõe, também, a Lei Complementar nº 87/96, lei de regência nacional do ICMS, que
o ICMS incide sobre a entrada de energia elétrica no Estado destinatário por meio de
operações interestaduais sempre que não for destinada à comercialização ou à
industrialização (art. 2º, § 1º, III). Quando destinada à comercialização ou à
industrialização, a operação interestadual é imune (art. 155, § 2º, X, b da CF).
Dentre os inúmeros aspectos que o tema suscita examinaremos, neste artigo, dois
deles: o da seletividade e o do sujeito ativo na ação de repetição.
2 Da seletividade do imposto
Dispõe o art. 155, § 2º, III da CF que o ICMS "poderá ser seletivo, em função da
essencialidade das mercadorias e dos serviços".
Não se trata de imposto seletivo, mas de imposto cujas alíquotas poderão ser seletivas
em função da essencialidade dos bens objetos de circulação mercantil.
Em que pese o esforço e a erudição demonstrados por defensores dessa corrente não se
pode inverter o significado etimológico da palavra "poderá", que não deve ser
confundida com a palavra "será", que consta em relação ao IPI (art. 153, § 3º, I da CF).
O ICMS poderá ser seletivo, ao passo que, o IPI deverá ser seletivo. É o que determina
a Carta Magna. Não vejo como possa sustentar que a seletividade do ICMS integra o
processo legislativo, com fundamento no conceito de norma de estrutura que não tem
pertinência ao caso sob exame.
Mais grave, ainda, a confusão feita entre o verbo "poder" com o substantivo "poder"
para sustentar que quando o Texto Magno confere um poder está a conferir ipso fato
um dever. É certo que existe o poder-dever dos entes políticos como bem salienta o
festejado jurista Celso Antonio Bandeira de Mello. Só que aí se trata de poder
enquanto força imanente do Governo para atingir a finalidade do Estado. Nada tem a
ver com a disposição constitucional sob comento que emprega a palavra "poderá"
como futuro do verbo poder.
No que se refere à venda de energia elétrica a legislação do Estado de São Paulo prevê
seguintes alíquotas: a) 12% em relação ao consumo residencial de até 200 kwh por
mês; b) 25% em relação ao consumo residencial acima de 200 kwh por mês; c) 12%
em relação à energia utilizada no transporte público; e d) 12% em relação à energia
utilizada em propriedade rural onde haja exploração agrícola ou pastoril e esteja
inscrita no cadastro de contribuintes do ICMS.
Salta aos olhos que a alíquota de 25%, prevista na letra b retro, desatende à faculdade
prevista no preceito constitucional sob análise, porque a presumível capacidade
contributiva do consumidor de energia elétrica domiciliar é irrelevante para
implementação da alíquota seletiva. O que importa é apenas a sua seletividade em
função da essencialidade da mercadoria e do serviço. Como é possível sustentar que a
energia elétrica é essencial para quem apresenta baixo consumo e não o é para quem
apresenta um elevado consumo?
Por isso, não comporta gravame maior em relação a outros bens tributados pelo ICMS.
Digo bens para abranger mercadorias e serviços como prescreve a Constituição, e não,
mercadorias ou serviços. Impõe-se o confronto conjunto de mercadorias e serviços
para eleger o critério de seletividade em função da essencialidade dos bens. Nesse
sentido também é a lição de José Eduardo Soares de Melo: "Note-se que a
essencialidade consiste na distinção entre cargas tributárias, em razão de diferentes
produtos, mercadorias e serviços, traduzidos basicamente em alíquotas
descoincidentes" (ICMS –Teoria e prática, 7ª ed. São Paulo: Dialética, 2004, p. 266).
Sem dúvida, essa alíquota de 25% incidente sobre o consumo de energia domiciliar
que, na prática, corresponde a uma alíquota real de 33,35%, porque o ICMS incide
sobre si próprio, é inconstitucional. Não é razoável supor que essa energia elétrica seja
menos necessária ou menos importante do que a generalidade das mercadorias
gravadas com a alíquota de 18%, ou que essa mesma energia só é essencial até o limite
de 200kwh por mês. Cabe ao Judiciário, se provocado, pronunciar-se quanto à quebra
do princípio da seletividade que não está inserido dentro da margem de discrição do
legislador ordinário, que não pode inverter o significado da expressão "seletivo, em
função da essencialidade das mercadorias e dos serviços", atentando contra o princípio
da razoabilidade que, por si só, já é um limite ao exercício da atividade legislativa.
Se esse ICMS de 25% é inconstitucional ele pode ser objeto de ação de repetição.
Quem pode requerer essa ação?
A Jurisprudência, coerente com a tese de que a relação processual deve ser instaurada
entre as mesmas partes da relação material, tem considerado o consumidor de energia
elétrica como parte ilegítima para pleitear a restituição do imposto (Resp 983.814/MG,
Rel. Min. Castro Meira, J. em 4/12/2007; RMS 23.571/RJ, Rel. Min. Castro Meira, J.
em 6-11-2007; RMS nº 19.121/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJU de 12-9-2005; RMS
7.004/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 3-6-2002; Resp 279.491/SP, Rel. Min.
Peçanha Martins, DJ de 10-2-2003).
Se for parte ilegítima para pleitear a restituição do indébito estará igualmente impedido
de propor qualquer outra ação contra a Fazenda visando a não incidência dessa
alíquota escorchante, visto que, o contribuinte do imposto é a empresa fornecedora
(vendedora) de energia e não o consumidor, impropriamente batizado pela doutrina
como "contribuinte de fato" numa clara confusão entre o jurídico e o econômico.
Falar-se em "contribuinte de direito" e em "contribuinte de fato" seria o mesmo que
referir-se a "juiz de direito de direito" e a "juiz de direito de fato". A primeira
expressão configura um pleonasmo, a segunda, uma figura estranha no mundo do
Direito, portanto, sem qualquer relevância jurídica.
Então, pergunta-se, qual o remédio jurídico para o consumidor que arca com o ônus de
um imposto inconstitucional?
Vale a pena debruçar-se sobre o sentido da norma disposta no art. 166 do CTN que
assim dispõe:
Se o consumidor tem o direito material, há de haver uma ação que o assegure. Essa
ação é a de repetição. O CTN, pois, permite, excepcionalmente, que o consumidor, que
não foi parte na relação material entre o fisco e contribuinte, pleiteie a restituição
diretamente contra o fisco. Esse fato em nada prejudica o contribuinte, que já recebeu
por antecipação o valor do crédito tributário objeto de restituição.
É perfeitamente razoável e justa, sob todos os aspectos, a exceção aberta pelo art. 166
do CTN, que permite ao consumidor substituir o contribuinte no pólo ativo para
pleitear diretamente da Fazenda o tributo inconstitucional economicamente suportado.
A alegação de que o acolhimento dessa tese ensejaria efeito multiplicador da lide, com
milhares de consumidores batendo às portas do judiciário, além de não configurar um
argumento jurídico, não tem respaldo na realidade atual em que há possibilidade de
uma ação de natureza coletiva e também a edição de Súmula com efeito vinculante.
4 Conclusão
a) a energia elétrica não pode ser considerada, à luz da realidade social vigente, um
bem supérfluo ou menos importante em confronto com a generalidade das mercadorias
gravadas pela alíquota de 18%;
b) A energia elétrica consumida além de 200 hwh por mês não pode ser considerada
supérflua ou menos importante do que aquela consumida até o limite de 200kwh por
mês. Não há critério razoável para essa distinção que é arbitrária.