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A HIPÓTESE INATISTA DE AQUISIÇÃO DA A

LINGUAGEM EM PERSPECTIVA: ASPECTOS R


T
REALÇADOS E ENCOBERTOS I
Paulina Lira Carneiro *
G
O
Resumo A hipótese inatista de aquisição da linguagem surgiu em
meados da década de 50, com os estudos sobre a
gramática gerativa, empreendidos por Noam Chomsky,
e constitui, ainda hoje, uma das principais teorias para
explicar como se dá o processo de aquisição da
linguagem pela criança. Nesse artigo tencionamos
abordar a hipótese inatista, discorrendo sobre os
aspectos postos em relevo no interior deste paradigma
teórico, mas também problematizando os fatores por ele
negligenciados, ou, por assim dizer, deixados na penum-
bra. Empreenderemos, assim, sob um viés
sociointeracionista, um breve reexame crítico de alguns
dos pressupostos inatistas, procurando evidenciar as la-
cunas mais significativas da explicação inatista para o
processo de aquisição de linguagem. Procuraremos
demonstrar que a abordagem inatista subestimou fatores * Doutoranda no
imprescindíveis que intervêm neste processo, como os Programa de Pós-
Graduação em
de ordem social, comunicativa, histórica e cultural, Linguística
avaliando o importante papel desempenhado por tais (PROLING) da
fatores no fenômeno da aquisição. UFPB, na linha de
pesquisa
Linguagem,
Palavras-chave: Aquisição de linguagem. Hipótese inatista. Sentido e
Cognição.
Interacionismo..

Introdução formulações que creditam um papel crucial à


interação social entre os sujeitos na
construção de sua competência linguística,

A
s especulações acerca de como a
criança adquire uma língua constitui como as de base sociointeracionista.
matéria instigante, que sempre Dentre as principais teorias sobre a
suscitou grande interesse e indagações entre aquisição de linguagem, destaca-se,
leigos e especialistas. A investigação sobre particularmente, a concepção inatista da
aquisição, oriunda dos estudos da gramática
como efetivamente esse processo ocorre
gerativa. De um modo geral, essa vertente
compreende o foco de inúmeras pesquisas na
sustenta que o ser humano possui uma
área da Aquisição de Linguagem, campo de “predisposição inata específica para a
estudos multidisciplinar, que congrega, além aquisição de um sistema lingüístico”
da Linguística, domínios como a Psicologia (LANGACKER, 1977, p. 247), bem como
Cognitiva e a Psicolinguística. postula um módulo cognitivo autônomo para
Ao longo dos séculos, diferentes a linguagem, independente de fatores
correntes teóricas lançaram hipóteses com o externos de ordem social, cultural, ou mesmo
intuito de explicar o processo de aquisição de histórica. Recorrendo a noções como a de
linguagem, atreladas cada qual a um conjunto gramática universal, tal perspectiva defende
de pressupostos teóricos e filosóficos. Assim, que os aspectos biológicos exercem papel
as teorias da aquisição abrangem desde determinante no processo de aquisição.
perspectivas que atribuem um papel passivo Nesse trabalho tencionamos abordar a
ao aprendiz, a exemplo do behaviorismo, até hipótese inatista da aquisição de linguagem,

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discorrendo sobre os aspectos postos em positivos, ao passo que os “erros” eram


relevo no interior deste paradigma teórico, mas negativamente reforçados, a fim de serem
também problematizando os fatores por ele eliminados. Tais hipóteses eram testadas em
negligenciados, ou, por assim dizer, deixados experimentos com ratos e cães, e a extensão
na penumbra. Para tanto, empreenderemos, desses resultados aos humanos foi alvo de
num primeiro momento, uma breve exposição severas críticas, posteriormente.
sobre o contexto de surgimento da postulação Nesse quadro teórico, a linguagem era
da tese inatista, seus principais fundamentos igualmente considerada um tipo de
teóricos e as evidências comumente comportamento a ser aprendido. O
apontadas para comprovar suas assunções comportamento verbal era, pois, definido
teóricas. A seguir, discutiremos algumas “como aquele comportamento reforçado pela
implicações subjacentes aos postulados do mediação de outras pessoas” (SKINNER,
inatismo, ensejando, assim, uma reflexão em 1978, p.16).
torno das principais críticas que lhe são Defendendo uma posição francamente
imputadas, sobretudo por abordagens teóricas mentalista, Chomsky demonstrará a
de cunho sociointeracionista, a exemplo das insuficiência explicativa do modelo
proposições filiadas à abordagem sociocultural behaviorista, aduzindo a evidência de que o
de L. Vygotsky, e do enfoque teórico de M. conhecimento linguístico da criança extrapola
Tomasello (2003). Com este reexame crítico, qualquer esquema de aprendizado do tipo
buscaremos, principalmente, evidenciar os estímulo-resposta, por tentativas e erros, ou
aspectos preteridos pela visão inatista, mesmo imitação. Isso porque, de fato, é
apreciando a importância de tais fatores no notório que uma criança de pouco mais de 2
processo aquisicional. anos é capaz de produzir e compreender
frases nunca antes proferidas ou ouvidas.
A HIPÓTESE INATISTA DE AQUISIÇÃO DA Desse modo, somente a suposição de uma
LINGUAGEM: BREVE INCURSÃO TEÓRICA estrutura subjacente inata poderia fornecer
uma explicação plausível para tal fato. A ideia
O surgimento da hipótese inatista: uma de um dispositivo linguístico inato constitui o
reação ao empirismo e à visão behaviorista próprio cerne da hipótese chomskyana sobre
da aquisição da linguagem a aquisição da linguagem, que abordaremos
A concepção inatista da aquisição da na próxima seção.
linguagem surgiu em meados da década de
50, com os estudos sobre a gramática A concepção inatista da aquisição da
gerativa, empreendidos por Noam Chomsky, linguagem: fundamentos teóricos e
e constitui, ainda hoje, uma das principais evidências
teorias para explicar como se dá o processo Chomsky postula que a faculdade da
de aquisição da linguagem pela criança. linguagem é exclusiva de nossa espécie e está
Chomsky se contrapôs à visão empirista inscrita na própria herança genética do ser
dominante à época, representada pela humano. Compreendida como dotação
Psicologia behaviorista de B. F. Skinner, que biológica, a linguagem seria equiparada a
se centrava numa análise restrita aos outros aspectos relativos ao desenvolvimento
comportamentos observáveis. Pautada nos da estrutura física do corpo; nascemos
ideais empiristas de cientif icidade e programados para falar, assim como para ter
objetividade, a concepção behaviorista braços e pernas, ou atingir a puberdade. A
divisava a aprendizagem como um processo influência do ambiente ou da experiência seria
caracterizado por esquemas de secundária, nesse caso, face à programação
condicionamento, segundo o círculo estímulo- prevista no mapa filogenético1 da espécie.
resposta-reforço, sendo terminantemente Com efeito, dentro dessa perspectiva
rechaçada qualquer explicação de ordem biologizante, a linguagem é concebida como
mentalista. Os comportamentos eram, pois, um “órgão mental”. Para Chomsky, por
adquiridos apenas mediante a produção de conseguinte, o cientista deveria “abordar o
respostas a estímulos do meio, e a imitação estudo das estruturas cognitivas, como é o
assumia papel determinante. Face a respostas caso da linguagem, de uma forma análoga
“corretas”, o aprendiz recebia reforços àquela como estudaria um órgão do corpo –

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A hipótese inatista de aquisição da linguagem em perspectiva ...

o olho ou o coração, por exemplo” a gramática universal encerraria não regras,


(CHOMSKY, 1983, p. 52). mas princípios comuns à organização de todas
A aquisição da linguagem, por sua vez, as línguas. Durante o processo de aquisição,
é concebida em termos de maturação ou o falante procederia à atribuição de valores a
crescimento, implicando na distinção de parâmetros associados a tais princípios,
diferentes estágios da faculdade mental da formatando assim o sistema particular de sua
linguagem. Chomsky alude a um estado inicial língua.
dessa faculdade, que sofreria um processo de Os parâmetros são, por definição,
maturação, passando por uma sequência de binários, assumindo valores positivos ou
estados a partir das experiências do indivíduo, negativos. Dado o princípio que prevê um
até atingir um estado estável. sujeito para a estrutura das frases de uma
O estágio inicial compreenderia língua, por exemplo, caberia à criança marcar
exatamente a chamada gramática universal um parâmetro relativo ao preenchimento
(GU), ou ainda dispositivo de aquisição da obrigatório ou não dessa posição. Caso fosse
linguagem (DAL), que consistiria num conjunto exposta ao inglês, em que o sujeito é
de princípios gerais e propriedades sintáticas, obrigatório, ela fixaria um valor positivo a tal
fonológicas e semânticas, uma matriz parâmetro, deixando de marcá-lo se estivesse
biológica que facultaria o desenvolvimento de adquirindo o português, uma vez que nessa
todas as línguas naturais possíveis. O estado língua o sujeito pode ser omitido.
estável corresponderia, por outro lado, à Outro aspecto defendido por Chomsky
gramática de uma língua particular, que se em sua teoria sobre a linguagem é a tese da
desenvolve na mente do falante, a partir da modularidade. O autor acredita que, assim
exposição deste aos dados de sua língua como as estruturas físicas são diferentes em
(input linguístico). Segundo a perspectiva sua organização e funções (ou seja, são
chomskyana, a experiência, ou seja, a modulares), também a mente humana é
exposição da criança à fala dos outros, composta por órgãos diferentes (sistemas ou
desempenharia o papel de mero gatilho que estruturas cognitivas) responsáveis por
acionaria a gramática universal. diferentes atividades, e organizados segundo
A postulação de uma gramática princípios diferentes. Ao lado da faculdade da
universal explicaria a facilidade e rapidez com linguagem, que constituiria um módulo
que as crianças aprendem sua língua, apesar autônomo, haveria, assim, outros órgãos
de sua alta complexidade. Uma vez que a mentais encarregados, por exemplo, da
estrutura necessária para desenvolver compreensão matemática ou da percepção de
qualquer sistema linguístico integra, desde formas artísticas, dentre outros. A faculdade
nascença, o sistema neural da criança, da linguagem teria, portanto, características
cumpriria a esta “aprender apenas os detalhes que lhe são específicas e que não podem ser
que diferenciam a língua falada em seu redor atribuídas aos demais sistemas cognitivos.
de outras línguas humanas possíveis.” Uma decorrência imediata dessa tese é
(LANGACKER, 1977, p. 246). a percepção do conhecimento linguístico como
Numa primeira descrição desse algo dissociado da cognição em geral, ou seja,
processo, Chomsky aventará a hipótese de a capacidade para a linguagem não manteria
que a criança seleciona, dentre o conjunto de relação direta com a inteligência ou a
regras constitutivas da gramática universal, habilidade geral para o aprendizado.
apenas aquelas que integram a gramática de Para Langacker (1977), isso pode ser
sua língua materna. constatado através do fato de que toda e
Posteriormente, com a Teoria dos qualquer criança normal, a despeito de possuir
Princípios e Parâmetros, esta explicação será um maior ou menor grau de inteligência, é
reelaborada. Segundo esse modelo gerativo, capaz de desenvolver completamente uma

1
A filogênese corresponde à história da evolução de uma espécie, e diz respeito, assim, às características geneticamente
herdadas pelos organismos pertencentes à mesma. Em contrapartida, a ontogênese concerne ao desenvolvimento de um
indivíduo em particular de uma dada espécie, abarcando suas fases desde o nascimento até a morte. Já os processos de
sociogênese, por sua vez, relacionam-se à história da cultura em que um dado ser está inserido. No caso específico dos
humanos, trata-se de processos em que há uma “inventividade colaborativa” (TOMASELLO, 2003), isto é, situações “nas quais
algo novo é criado através da interação social de dois ou mais indivíduos em interação cooperativa” (id., ibid., p.56).

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língua, embora possa falhar no aprendizado até pouco depois da puberdade, e é rara
de outras habilidades, como a matemática, por depois disso.” (PINKER, ibid., p. 374).
exemplo. Para Langacker, portanto, Os defensores da perspectiva inatista
atribuem, assim, a motivações de ordem
Se a linguagem refletisse a biológica a dificuldade para se adquirir uma
inteligência geral e não uma
segunda língua após a adolescência. Tal fato
capacidade lingüística especial,
seria de esperar que diferenças de é, particularmente, imputado ao cronograma
inteligência tivessem correlação maturacional do cérebro, que, após uma fase
direta com diferenças na aquisição de desenvolvimento acelerado durante a
da linguagem. (LANGACKER, infância, sofreria, por volta da adolescência,
ibid., p.249).
uma diminuição em seu metabolismo, bem
como um decréscimo no número de sinapses
Outro argumento aduzido em favor da neurais (PINKER, 2002). Além disso, tal
existência de um dispositivo inato para a dificuldade seria o reflexo da indisponibilidade
aquisição da linguagem é a denominada de acesso, na fase adulta, à gramática
“pobreza do estímulo”, ou ainda, “problema de
universal, matriz a partir da qual se podem
Platão”. Tal aspecto concerne à natureza do
desenvolver duas ou mais línguas.
input ou estímulo ao qual a criança é exposta,
Pesquisas, relatadas por Pinker (ibid.),
e a questão que se coloca aqui é: como é
com imigrantes chegados aos Estados Unidos,
possível para a criança dominar, em um
mostram uma correlação entre idade e nível
período tão breve de tempo, toda a
de desempenho linguístico na aquisição do
complexidade da gramática de sua língua se
inglês como segunda língua - grupos com
tem contato apenas com uma evidência
fragmentária desse sistema? Ou seja, é menor faixa etária (de 3 a 7 anos) exibiam
notório que a competência linguística excede desempenho similar ao dos nativos, ao passo
os sistemas de desempenho, não sendo que, com a progressão da idade, o
totalmente apreensível a partir das desempenho gradativamente tendia a piorar,
manifestações destes. Nesse sentido, acresce sendo os piores resultados obtidos entre
também o fato de que não se faz necessário aqueles que imigraram entre 17 e 39 anos.
qualquer esforço, instrução formal ou A existência de um substrato biológico
treinamento linguístico especial para a criança para a linguagem é igualmente atestada pelos
adquirir seu sistema linguístico. Logo, esse inatistas através do estudo de distúrbios de
processo não poderia ser explicado pela mera linguagem provocados por fatores de cunho
imitação da fala adulta, não se podendo falar biológico, a exemplo das afasias ou problemas
propriamente nesse caso de “aprendizado”, decorrentes de desordens cromossômicas.
mas antes de aquisição. Procura-se demonstrar, nesse caso, que, se
A sobredeterminação biológica é a linguagem constitui uma realidade biológica
enfatizada por Chomsky ao defender que o e uma faculdade cognitiva autônoma, ela
desenvolvimento de linguagem “é algo que sofrerá dano caso as supostas estruturas
acontece a uma criança, e não o que a criança físicas correspondentes (áreas específicas do
efetivamente faz.” (CHOMSKY, 2005, p.35, cérebro ou mesmo certos genes) forem
grifo nosso). Tal postura é radicalizada por afetadas.
Pinker (2002), para quem “a linguagem não é Pinker (2002) descreve, nesse sentido,
apenas uma invenção cultural qualquer mas distúrbios em que apenas o módulo da
o produto de um instinto humano específico” linguagem é afetado, sendo as demais
(PINKER, ibid., p.21, grifo nosso). habilidades cognitivas preservadas, bem
Uma das evidências arroladas, ainda, como a situação inversa, ou seja, casos em
em favor do caráter inato da faculdade da que a faculdade de linguagem mantém-se
linguagem consiste na questão do chamado intacta face a danos à cognição.
período crítico de aquisição. De acordo com Um exemplo da primeira situação
a tese inatista, há uma limitação temporal para descrita acima é a denominada afasia de
que o processo de aquisição de linguagem Broca. O médico francês Paul Broca, ao
ocorra, de modo que “a aquisição de uma estudar seus pacientes afásicos, concluiu que
linguagem normal é certa para crianças até 6 a faculdade da linguagem se situa no
anos, fica comprometida depois dessa idade hemisfério esquerdo do cérebro. Broca

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A hipótese inatista de aquisição da linguagem em perspectiva ...

investigou, particularmente, uma patologia Na seção a seguir, empreenderemos um


específica da linguagem, desencadeada por breve reexame crítico, sob um viés
lesões numa região específica do lobo frontal sociointeracionista, de alguns dos
(área de Broca). Os afásicos de Broca pressupostos inatistas, procurando rastrear as
apresentam dificuldades na fala, produzindo lacunas mais significativas da explicação de
frases agramaticais. Vale notar que a base inatista para o processo de aquisição de
deficiência em causa não decorre de linguagem, a fim de ressaltar a importância
de uma série de fatores negligenciados por
problemas relativos à musculatura implicada
tal abordagem.
na articulação de sons, mas afeta a própria
capacidade abstrata da linguagem, o sistema Um olhar crítico sobre a visão inatista da
gramatical da língua. Por outro lado, pacientes aquisição: aspectos silenciados e suas
com tal afasia, a despeito de sua deficiência implicações
linguística, exibem um desempenho normal de A despeito de exibir uma coerência
outras faculdades intelectuais, o que descritiva e de ainda constituir um importante
constituiria indício da dissociação entre a paradigma no campo da aquisição, o modelo
linguagem e outros módulos cognitivos, inatista opera algumas reduções que serão
defendida pelos inatistas. alvo de críticas significativas, oriundas,
A segunda situação aludida pode ser sobretudo, de abordagens teóricas de cunho
exemplificada através da “síndrome de sociointeracionista. Com efeito, ao enfatizar
tagarelice” referida por Pinker (ibid.). Nesse eminentemente os aspectos cognitivos,
caso, constatamos agora a presença de uma envolvidos no processo da aquisição da
fluência e gramaticalidade linguística em linguagem, e creditar um papel decisivo a
contraste com formas graves de retardo nossa herança biológica, a perspectiva inatista
mental, ou seja, um quadro de linguagem subestimou (ou mesmo silenciou) fatores
imprescindíveis que intervêm neste processo,
preservada ante uma cognição afetada. Tal
como os de ordem social, comunicativa,
situação é freqüente, segundo Pinker, em
histórica e cultural.
pacientes esquizofrênicos ou com mal de Nessa seção tencionamos reexaminar
Alzheimer. O autor cita, ainda, os pacientes alguns postulados inatistas sob o prisma
afetados pela denominada “síndrome de dessa exclusão, refletindo, à luz de uma
Williams”, em que esta condição parece ser perspectiva sociointeracionista, sobre as
resultante de um gene defeituoso no implicações das referidas teses para a
cromossomo 11. concepção do processo de aquisição da
Essas evidências inspiram, contudo, linguagem. Discutiremos, em princípio,
algumas reservas mesmo entre os partidários questões concernentes, prioritariamente, aos
do inatismo. O próprio Pinker adverte que “até aspectos sociais e comunicativos, avaliando
hoje ninguém localizou um órgão da o papel efetivo desempenhado por estes no
linguagem ou um gene da gramática” 2 fenômeno da aquisição, e, em tópico
(PINKER, 2002, p. 47). Representante mais subsequente, enfocaremos aspectos
atinentes, sobretudo, à exclusão das
expressivo dos estudos de Biolinguística,
dimensões histórica e (sócio) cultural,
Jenkins (2000), analogamente, critica a
evidenciando o caráter inalienável e a
obsessiva postura “localizacionista”,
importância destes últimos fatores no
ponderando que não se deve perseguir uma processo de aquisição3.
“neurologia da gramática universal”, por assim
dizer, isto é, “não podemos esperar que cada A interação social como base
traço identificável; por exemplo, cada sociocognitiva para a aquisição da
construto linguístico teórico, corresponda de linguagem
uma maneira óbvia a uma localização Como vimos acima, a perspectiva
particular do córtex ou a um gene” (JENKINS, inatista subestimou o papel da aprendizagem
2000, p. 65, tradução nossa). no processo de aquisição e, por conseguinte,

2
Em Martelotta (2008), faz-se referência a uma recente descoberta do geneticista inglês Anthony Monaco de um gene
(FOXP2) possivelmente associado a distúrbios de linguagem observados em integrantes de uma família.

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da interação empreendida entre a criança e para o desenvolvimento linguístico da criança,


seus interlocutores, concebendo a exposição uma base sobre a qual esse processo irá
à fala (input linguístico) como mero elemento deslanchar, ideia desenvolvida em Tomasello
desencadeador (gatilho) de um programa (2003).
maturacional de aquisição já previamente O caráter social da cognição humana é,
determinado no esquematismo de uma para Tomasello (2003), o traço fundamemtal
gramática universal, geneticamente herdada. que distingue a espécie humana face aos
A explicação inatista omite, portanto, o demais primatas. Assim, para o autor, somos
papel decisivo dos fatores sociais e dotados de uma aptidão sociocognitiva
comunicativos, desconsiderando o fato de que exclusivamente humana que corresponde à
o componente social da aquisição não é um “capacidade de cada organismo compreender
traço periférico ou meramente acrescentado, os co-específicos como seres iguais a ele, com
mas, antes, inerente (e inextricável) a sua vidas mentais e intencionais iguais às dele”
própria natureza. Bakhtin (1988) considera (TOMASELLO, ibid., p.7, grifo do autor). É
nesse sentido que precisamente esta habilidade que nos
facultará o acesso, através de formas de
a verdadeira substância da língua aprendizagem social, aos bens culturais da
não é constituída por um sistema humanidade como os artefatos materiais e
abstrato de formas linguísticas
nem pela enunciação monológica simbólicos, dentre estes a linguagem. E é nos
isolada, nem pelo ato primórdios do processo de aquisição da
psicofisiológico de sua produção, linguagem que essa característica irá emergir
mas pelo fenômeno social da na ontogênese humana.
interação verbal [...]. A interação
Segundo Tomasello (2003), o caráter
verbal constitui assim, a realidade
fundamental da língua. (BAKHTIN, social da interação criança-adulto evidencia-
ibid., p.123, grifos nossos). se desde muito cedo, já nas primeiras
semanas de vida, através de gestos do bebê
A ênfase sobre a interação social entre que revelam tentativas de identificação ou
os sujeitos implicados no processo da sintonização com o comportamento adulto,
aquisição é a tônica central de um conjunto designadas como “protoconversas”, ou ainda,
heterogêneo de estudos reunidos sob a mímica neonatal. Tais comportamentos se
rubrica de interacionismo4, vindos a lume a caracterizam, geralmente, pelo contato face
partir de meados da década de 70 do último a face, em que a atenção entre criança e
século. Assim, segundo Lemos (1986): adulto é mútua, pontuada por vocalizações ou
tentativas de imitar os movimentos corporais
É justamente essa vertente do do adulto (a exemplo das protrusões de
interacionismo em psicologia que língua). O autor enfatiza ainda que essas
privilegia a interação social – e protoconversas exibem um cunho fortemente
mais, particularmente, a interação
da criança com o adulto, ou emocional e uma estrutura alternada,
membro mais experiente da indiciando, assim, seu caráter interativo.
espécie – que está representada Mas é, sobretudo, por volta dos nove
nos estudos sobre aquisição da meses (ainda em idade pré-linguística,
linguagem sob o nome de
portanto), com as denominadas cenas de
interacionismo ou sócio-
interacionismo. (LEMOS, 1986, atenção conjunta (ou compartilhada) que a
p.2). interação assume um caráter efetivamente
intersubjetivo, e a criança passa a participar
De fato, sob o viés (sócio) interacionista, da dimensão social da aquisição.
as trocas comunicativas com os parceiros de As cenas de atenção conjunta
interação constituem mesmo um pré-requisito (TOMASELLO, ibid.) consistem em um

3
Cumpre salientar que julgamos que esses fatores são indissociavelmente intrincados e tal divisão em subtópicos atende a fins
meramente didáticos de exposição do assunto.
4
Morato (2004) chama a atenção para a excessiva amplitude (e o consequente esvaziamento semântico) do termo
“interacionismo” no quadro da Linguística, refletindo que tal rubrica, na verdade, pode abarcar não só estudos aquisicionais,
mas ainda abordagens conversacionais, sociolinguísticas, discursivas e textuais. Para a autora, nesse sentido, seria mais
adequado se falar em interacionismos (no plural), dada essa heterogeneidade de estudos.

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A hipótese inatista de aquisição da linguagem em perspectiva ...

conjunto de comportamentos em que a criança etária) não é gratuita ou ocasional. Nesse


acompanha ou dirige a atenção do adulto para sentido, o autor relata estudos que
uma entidade externa, exibindo, deste modo, demonstram a correlação entre maior tempo
uma estrutura triádica, uma vez que envolvem de participação de crianças em cenas de
um triângulo referencial (criança – adulto – atenção conjunta com suas mães e uma maior
entidade externa). São exemplos típicos de produção de linguagem.
atenção compartilhada atividades em que a Somos autorizados a concluir, pois, que
criança acompanha o olhar do adulto para um as capacidades sociointerativas mobilizadas
objeto ou evento, bem como situações nas na atenção conjunta concorrem decisivamente
quais a criança tenta chamar a atenção do para o desenvolvimento linguístico da criança,
adulto para uma entidade exterior, através de consistindo, segundo o autor, numa espécie
um gesto dêitico como apontar. de “andaime” para os aprendizes da
O que está em jogo nesse cenário, para linguagem.
Tomasello, é a emergência da capacidade da Expoente, senão um dos precursores,
criança de compreender a intencionalidade do pensamento sociointeracionista, L.
das outras pessoas com as quais interage, Vygotsky irá postular que as funções
concebendo-as, a partir de então, como psicológicas superiores humanas – dentre
agentes, identificando seus objetivos, e os estas, a linguagem – têm origens sociais. Para
meios empregados para atingi-los. Ao Vygotsky, “a função primordial da fala, tanto
identificar-se com o comportamento adulto nas nas crianças quanto nos adultos, é a
cenas de atenção compartilhada, a criança comunicação, o contato social.” (VYGOTSKY,
passa, pois, a perceber-se igualmente como 1987, p. 17). Segundo o autor, as estruturas
um “ser intencional”, a compreender os papéis linguísticas são adquiridas socialmente,
desempenhados por ela e pelo adulto na através da interação com o outro, sofrendo,
interação e a ser capaz de aprender por posteriormente, um processo de
imitação o comportamento adulto, ao realizar internalização. Isto implica dizer que o
a inversão destes papéis. percurso de desenvolvimento da linguagem se
Outro aspecto sociocomunicativo dá na direção do social para o individual; a
importante discutido por Tomasello é o fato de linguagem existe primeiro enquanto função
que as cenas de atenção conjunta emolduram interpsíquica, antes de assumir a dimensão
o contexto em a aquisição ocorre. O intrapsíquica de organizadora do pensamento.
aprendizado de símbolos e estruturas Ao discorrer sobre as diferentes funções
linguísticas desconhecidas pelo infante não se da fala, e criticar a explicação proposta por
dá, desse modo, no vácuo (como se poderia Piaget para a fala egocêntrica infantil,
supor a partir das teses inatistas), mas de Vygotsky (1987) reitera a anterioridade do
forma situada, em rotinas interacionais caráter social da fala.
familiares ao universo da criança – comer, Piaget traçou a distinção entre fala
tomar banho, trocar fraldas etc. Portanto, egocêntrica e fala socializada, constatando,
em suas pesquisas, a predominância daquela
a criança adquire o uso nas conversas de infantes em idade pré-
convencional de um símbolo escolar. A fala egocêntrica consistiria em
lingüístico aprendendo a participar
de um formato interativo (forma de eventos de fala similares a monólogos
vida, cena de atenção conjunta) (equivalendo ao pensar em voz alta), em que
que ela primeiro entende de forma a criança fala para si mesma, sem propósito
não-lingüística, de modo que a comunicativo e sem interesse pelo interlocutor,
linguagem do adulto se inscreva
ao passo que a fala dita socializada se
em experiências compartilhadas
cujo significado social ela j á caracterizaria pelo objetivo de estabelecer
consegue avaliar. (TOMASELLO, uma comunicação interpessoal efetiva. Piaget
2003, p.151). acreditava que a fala egocêntrica não exercia
nenhuma f unção, exceto a de
Tomasello corrobora a hipótese de que acompanhamento da atividade da criança, e
a simultaneidade de ocorrência no surgimento tendia a desaparecer após a fase pré-escolar,
das capacidades de atenção conjunta e da sendo, assim, apenas um índice da
linguagem (ambas emergem na mesma faixa socialização insuficiente da fala, processo que

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se completaria somente após o período pré- do outro (da interação, portanto) para o
operacional5 (por volta dos oito anos). A fala desenvolvimento cognitivo da criança.
seguiria, portanto, um movimento do individual Vygotsky destaca, nesse sentido, o fato de que
para o social (ou de dentro para fora). o aprendizado “desperta vários processos
Ao contrário de Piaget, Vigotsky atribui internos de desenvolvimento, que são capazes
um papel crucial à fala egocêntrica e a de operar somente quando a criança interage
interpreta como uma forma de transição da com pessoas em seu ambiente e quando em
fala socializada para a fala interior. Segundo cooperação com seus companheiros.”
a hipótese de Vygotsky, o percurso da fala se (VYGOTSKY, ibid., p.101, grifo nosso).
dá no sentido inverso ao da formulação Retomando sumariamente as reflexões
piagetiana, ou seja, o social precede o empreendidas nessa seção, podemos
individual (movimento de fora para dentro). A concluir, pois, que a cognição humana e, por
fala egocêntrica, agora sob tal perspectiva, conseguinte, o processo de aquisição de
não desapareceria simplesmente, mas antes linguagem, exibe uma faceta social inalienável.
se transformaria em fala interior (VYGOTSKY, Nesse sentido, estudos empreendidos na área
ibid.). denominada de cognição situada irão mesmo
A importância do componente social no colocar em xeque a visão segundo a qual os
desenvolvimento infantil também é divisada processos sociais e cognitivos podem ser
por Vygotsky (1989), ao postular a noção de estudados independentemente, argumen-
zona de desenvolvimento proximal. Para o tando antes que “o contexto social em que a
autor, o desenvolvimento infantil só pode ser atividade cognitiva ocorre é parte integrante
devidamente mensurado se considerarmos dessa atividade e não apenas o contexto
que este compreende dois níveis distintos. O circundante para ela” (RESNICK et al., 1991,
nível real de desenvolvimento corresponderia p.4, tradução nossa).
às f unções mentais da criança já
amadurecidas, e determinaria as tarefas que A aquisição de linguagem: um processo
ela pode desempenhar sozinha. Em histórica e culturalmente situado
contrapartida, ao lado deste primeiro nível, Como salientamos acima (vide 2.2), a
haveria o nível de desenvolvimento potencial, hipótese inatista surgiu no seio do modelo
que abarcaria as capacidades infantis ainda gerativo-transformacional e, como tal, carrega
em processo de maturação (ou estado consigo um conjunto de pressupostos teóricos
embrionário), representando aquilo que a e filosóficos esposados pelo gerativismo.
criança pode realizar apenas quando auxiliada Destaquemos, particularmente, a tese da
por outros. A zona de desenvolvimento modularidade, a fim de examinar algumas
proximal compreenderia, então, assunções subjacentes nela inscritas e as
consequentes repercussões destas para a
a distância entre o nível de concepção do processo de aquisição de
desenvolvimento real, que se linguagem.
costuma determinar através da
solução independente de O modelo gerativo propugnava a
problemas, e o nível de existência de um módulo autônomo para a
desenvolvimento potencial, linguagem, dissociando, portanto, o
determinado através da solução conhecimento linguístico das demais
de problemas sob a orientação de
um adulto ou em colaboração com
capacidades cognitivas humanas, como
companheiros mais capazes. também do nosso conhecimento de mundo,
(VYGOSTY, 1989, p.97). descartando, assim, a interferência de
qualquer fator externo sobre o sistema
O conceito de zona de desenvolvimento linguístico. Tal concepção decorre da filiação
proximal enfatiza a importância do processo do enfoque gerativo ao cognitivismo clássico
de aprendizado e o papel da mediação ativa (ou primeira geração das ciências cognitivas)

5
Piaget estipulou quatro estágios progressivos para o desenvolvimento cognitivo humano, a saber, sensório-motor, pré-
operacional, operações concretas e operações formais. Um dos traços característicos do período pré-operacional, segundo
Piaget, é justamente o egocentrismo que perpassa o pensamento e a fala infantis. Piaget (1989) conclui que mais da metade da
fala espontânea da criança é de natureza egocêntrica e não visa a uma troca efetiva de idéias, chegando mesmo a afirmar que
“não há propriamente vida social entre as crianças antes dos 7 ou 8 anos” (PIAGET, ibid., p.30).

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A hipótese inatista de aquisição da linguagem em perspectiva ...

que emergiu, a partir da década de 1950, como herança cultural, apropriando-se do


um projeto epistemológico que visava, grosso conhecimento incorporado nos artefatos
modo, estudar o funcionamento dos processos materiais (que inclui desde instrumentos como
mentais. um martelo, até objetos de alta tecnologia
Lastreados em um racionalismo de como computadores) e simbólicos – a exemplo
inspiração cartesiana, os cognitivistas das formas artísticas, instituições sociais e
clássicos defendiam uma separação estanque religiosas, e também a linguagem –
entre mente e corpo. Em conseqüência desse produzidos historicamente ao longo dos anos.
dualismo radical, tal abordagem instituiu uma Os seres humanos nascem, pois,
fronteira nítida entre aspectos internos imersos em um meio cultural que formatará,
(mentais, individuais, inatos, universais) e de maneira decisiva, o contexto particular em
externos (sociais, culturais e históricos), que a criança vivenciará seu desenvolvimento
preocupando-se, essencialmente, com os cognitivo. A inserção em um dado grupo social
primeiros (KOCH; CUNHA-LIMA, 2004). irá, pois, delimitar as experiências e práticas
Essa visão objetivista sobre a linguagem em que a criança se engajará.
acarretará ainda a idéia de que a razão Mais especificamente, no que concerne
consiste meramente em um processo abstrato à linguagem, o autor atenta para o fato de que,
de manipulação de símbolos, ao modo de um por esta se tratar de um artefato cultural
sistema lógico-formal, tendo, portanto, um simbólico, ao adquirir uma língua, a criança
caráter transcendental, ou seja, independente apreende, impressas nos símbolos
de qualquer estrutura particular dos seres. Sob linguísticos, as formas de representação
tal enf oque, o pensamento é, pois, consideradas relevantes para uma dada
descorporificado, e nós seríamos, por assim cultura.
dizer, “mentes puras”, realizando operações Julgamos particularmente oportuno,
algorítmicas, passíveis de serem igualmente nesse ponto, remeter às características dos
efetuadas por uma máquina, a exemplo do símbolos linguísticos apontadas por Tomasello
computador. (2003). Os símbolos linguísticos se
Poderíamos, nesse momento, indagar caracterizam, conforme o autor, por seu
que implicações advêm da adoção de um caráter intersubjetivo (dado que são
conjunto de pressupostos teóricos, como o partilhados socialmente) e perspectivo. Este
supraexaminado, para uma concepção de último traço é, sobremodo, indicativo do
aquisição de linguagem. Tal postura teórica caráter inerentemente cultural da linguagem,
implica, antes de mais nada, em agrilhoar o como veremos.
processo da aquisição a um formalismo Noção oriunda da Linguística Cognitiva,
redutor que aliena este processo de tudo o a natureza perspectiva dos símbolos
que representa a exterioridade da língua (e linguísticos consiste, grosso modo, na
que lhe é constitutiva, como veremos). Assim, propriedade destes de permitir diferentes
a visão compartimentalizada, inscrita no maneiras simultâneas de representar uma
modularismo gerativo, ratifica a separação mesma situação perceptual ou conceitual,
daquilo que é, por natureza, indissociável, formas estas selecionadas pelo falante
ignorando o fato inescapável de que a conforme seus propósitos comunicativos.
aquisição é um processo necessariamente Assim, tomando de empréstimo um exemplo
situado, sócio, cultural e historicamente. É de Tomasello, um mesmo objeto no mundo
essa ideia que pretendemos desenvolver, sob pode ser categorizado como a árvore, o
um viés (sócio) interacionista, ao longo dessa enfeite, o estorvo, aquele carvalho centenário,
seção. aquele negócio no jardim da frente, ou mesmo,
Segundo Tomasello (2003), com a referindo-se a uma página de nossa história
capacidade de identificação com seus co- política (a instauração da ditadura militar em
específicos e de compreensão de sua 1964), o mesmo evento pode ser
intencionalidade, característica exclusiva da linguisticamente evocado por golpe ou
cognição humana, que emerge por volta dos revolução. Essa noção acarreta, portanto, a
nove meses (vide 3.1), a criança está apta a ideia de que a linguagem não fornece uma
se tornar um membro da sua cultura. A criança representação direta do real (visão subjacente
irá partilhar, a partir de então, de toda uma ao modelo chomskyano) e, por consequência,

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o próprio ato de referência é um ato mediado pelo denominado processo de evolução


socioculturalmente. Tomasello corrobora tal cultural cumulativa, dado que “as tradições e
conclusão ao afirmar que artefatos culturais dos seres humanos
acumulam modificações ao longo do tempo
quando a criança internaliza um
símbolo linguístico – quando
de uma maneira que não ocorre nas outras
aprende as perspectivas humanas espécies animais” (TOMASELLO, 2003, p.5).
incorporadas num símbolo Por essa razão, não estamos sempre partindo
linguístico – ela representa
do zero absoluto, mas antes nos apoiando
cognitivamente não apenas os
aspectos perceptuais ou motores sobre o background cultural e as conquistas
de uma situação mas também erigidas pelos nossos predecessores no
uma das maneiras, entre as outras tempo histórico, caracterizando o que o autor
que conhece, de ‘nós’ os usuários
daquele símbolo, interpretarmos a denomina como “efeito catraca”. Assim,
situação presente com nossa objetos sofisticados de nosso tempo presente
atenção. (TOMASELLO, 2003, foram tornados possíveis graças a algum
p.176).
correlato primitivo desenvolvido outrora.
Analogamente, no que concerne à
A internalização das práticas culturais é
linguagem, segundo Tomasello (2003),
também uma das idéias norteadoras do
pensamento de Vygotsky. Para o autor, as os artefatos simbólicos
funções psicológicas superiores humanas constituídos pelo inglês, turco ou
(incluindo aqui a linguagem) têm uma origem qualquer outra língua acumulam
modificações à medida que novas
sociocultural e passam por um processo de formas linguísticas são criadas [...]
internalização (a que fizemos uma breve de forma que a criança de hoje
alusão em 3.1), mediado pelos signos e pelo está aprendendo todo um
conglomerado histórico.” (id., ibid.,
outro. Segundo Vygotsky (1989), o processo
p.175).
de internalização efetua a transformação de
ações realizadas, primeiramente, no plano Na esteira de Vygotsky, Tomasello
social (interpsíquico) em ações internalizadas acredita ainda que somente através de formas
(em nível individual ou intrapsíquico). O particulares de aprendizagem cultural (ou
desenvolvimento cognitivo da criança emerge, processos de sociogênese), como a imitação,
portanto, a partir das relações que esta pudemos desenvolver habilidades cognitivas
entretém com seu meio sociocultural, num e produtos culturais exclusivos de nossa
movimento de fora para dentro. espécie, tais como artefatos materiais e formas
Mas se a linguagem exibe uma natureza complexas de representação simbólicas, tais
intrinsecamente cultural, não é menos verdade como a arte, a matemática e a linguagem.
que ela se constitui no tempo histórico, Logo, relativamente ao processo de
acumulando sucessivas transformações, aquisição de linguagem, advogando uma
motivadas pelas interações sociais, ao longo posição diametralmente oposta à perspectiva
de inúmeras gerações. Como nos adverte inatista, Tomasello, assim como Vygotsky,
Tomasello (2003), a linguagem não surgiu, atribuem uma importância secundária aos
simplesmente, do nada, como poderia sugerir aspectos biológicos ou maturacionais
a perspectiva inatista, que caracteriza a (atinentes à filogênese) e conferem papel
aquisição como um “desabrochar” de um destacado aos fatores socioculturais e
produto já pronto. Aliás, vale a pena reiterar históricos (deflagrados a partir da ontogênese
que a visão inatista está atrelada ao modelo e constitutivos da sociogênese), envolvidos no
gerativo, que postula um falante-ouvinte ideal. processo aquisicional. Sob tal prisma,
Por conseguinte, sob tal perspectiva, a portanto, tais fatores são inalienáveis e
atividade de aquisição assumiria um imprescindíveis, de modo que o processo de
insustentável caráter atemporal e a-histórico. aquisição de linguagem, conforme a ótica
Cumpre notar que, para Tomasello, a sociointeracionista, somente é passível de se
espécie humana se distingue face às demais efetivar em um meio cultural, via mecanismos

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A hipótese inatista de aquisição da linguagem em perspectiva ...

de interação social e ao longo do tempo Um outro aspecto praticamente


histórico. obliterado pela explicação inatista é o papel
Nesse sentido, Tomasello (2003) conclui do outro no processo aquisicional. Conforme
que observamos, por outro lado, em nossa breve
revisão crítica, a interação social é antes
A cognição adulta moderna do condição sine qua non para que esse processo
gênero humano é o produto não ocorra, sendo indissociável do mesmo.
só de eventos genéticos que
ocorreram ao longo de muitos Como pudemos constatar em nossa
milhões de anos no tempo exposição teórica, as abordagens de base
evolucionário, mas também de sociointeracionista irão resgatar e
eventos culturais que ocorreram redimensionar o papel e a importância de
ao longo de dezenas de milhares
muitos dos fatores excluídos pelos inatistas.
de anos no tempo histórico, e
eventos pessoais que ocorreram Tomasello, assim como Vigotsky, enfatizarão
ao longo de muitas dezenas de o papel decisivo do componente social da
milhares de horas no tempo linguagem e a ideia de que os processos da
ontogenético. (p. 302). cognição humana são inerentemente situados
cultural e historicamente. Tais autores
Considerações finais defenderão, também, por extensão, a
Ao final desse breve percurso reflexivo, superação de dicotomias estanques tais como
cumpre-nos reiterar algumas considerações biológico/social, natureza/ambiente, inato/
em torno da hipótese inatista de aquisição da adquirido. A perspectiva inatista, como vimos,
linguagem. em sua postura biologizante, centrava-se
A despeito de representar uma apenas sobre um dos polos (o primeiro)
abordagem que combateu veementemente, dessas díades.
em seu surgimento, a visão behaviorista, ao Por último, é oportuno destacar, nesse
reivindicar, sobretudo, um papel criativo para sentido, a posição de Tomasello (2003), para
o falante, o enfoque inatista se sustenta, como quem, mais do que sua herança filogenética,
assinalamos, sobre uma série de é antes seu percurso ontogenético que define
silenciamentos. a especificidade do homem face às demais
A primeira exclusão é a do próprio sujeito espécies. O autor lembra-nos, ainda, que os
da linguagem, uma vez que, sob a perspectiva produtos materiais e simbólicos (a linguagem
inatista, a língua é reduzida tão somente a um inclusa) do homem são o resultado de um
sistema abstrato de regras, manipulado por um processo inescapável de sociogênese, ou
ser amorfo (ou, mais propriamente, seja, são fruto da interação do homem com
descorporificado), sem cultura ou história. Isto seus co-específicos. Logo, os signos
implica dizer, por conseguinte, que a lingüísticos são sócio, cultural e historicamente
exterioridade da língua - que lhe é constitutiva situados, e uma visão sobre a aquisição da
- é simplesmente apagada (segunda exclusão). linguagem não pode ignorar esse fato.

THE INNATIST HYPOTHESIS OF LANGUAGE


ACQUISITION IN PERSPECTIVE: HIGHLIGHTED
AND HIDDEN ASPECTS
ABSTRACT
The innatist hypothesis of language acquisition arose in the middle 1950s, with the development
of Generative Grammar studies by Noam Chomsky, being it one of the main theories to explain
the process of language acquisition by children so far. The objective of this article is to approach
the innatist hypothesis, discussing highlighted aspects in this theoretical paradigm, also
problematizing factors either neglected by the theory, or left aside. A socio-interactionist view
will be applied to briefly re-exam some of the innatist presuppositions critically, aiming at
highlighting the most significant gaps of the innatist explanation for the process of language
acquisition. It will be demonstrated that the innatist approach has underestimated necessary

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factors intervening in the process, such as factors of social order, communicative, historical
and cultural factors, evaluating the important role performed by such factors in the acquisition
phenomenon.

Keywords: Language acquisition. Innatist Hypothesis. Interactionism.

Artigo submetido para publicação em: 31/05/2010


Aceito em: 23/08/2010

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