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O perspectivismo de Nietzsche
e a compreensão
Perspectivismo e relativismo
plo, uma natureza epistemológica, uma vez
que, em nosso tempo, a epistemologia só é Uma compreensão perspectivada do
aceita quando reconhece a importância das conhecimento, sob a chave do filóso-
ciências e das tecnologias, no sentido antes fo de Röcken, portanto, não se dobra ao
indicado. cientificismo e ao tecnicismo que vigoram
E, nesse contexto sociocultural, a socieda- desde o século XIX, no qual ele viveu. Por
isso, o perspectivismo de Nietzsche tem mui-
de de modo geral, em todos os seus espaços,
to a contribuir para a compreensão como
se torna cada vez mais carente de diálogo.
método dialógico. Ele gera uma abertura
Não são poucos, porém, os que conseguem
para a Comunicação enquanto área capaz de
sentir e perceber que, sem diálogo e bom
agregar e de exercitar o diálogo entre os mais
senso, em todos os campos do saber e da prá-
diversos conhecimentos e modos humanos
tica, nosso destino não pode ser outro que a de saber, como a própria ciência com suas
autodestruição. infindáveis distinções, a tecnologia, a filoso-
Essa condição deplorável é vista por mui- fia, as artes, as experiências do cotidiano etc.
tos como progresso ou avanço científico e Dentro das condições de tempo e espaço
tecnológico. Isso constitui um sinal evidente que se oferecem neste texto, o caminho per-
de que, a despeito de tentativas de diálogo, corrido é o do método de análise e síntese no
o cientificismo ainda tem força, como tem estudo de conceitos de Nietzsche. O esmiu-
uma imensa força o tecnicismo, seu “filho”, çamento desses conceitos e a síntese a que
em detrimento da formação humana e inte- se aspira devem reuni-los, no final, numa
gral do cidadão (Sousa, 2013, p. 67). abordagem da compreensão como método,
resultando daí uma epistemologia da com- tudo isso pede que se imagine um olho que
preensão perspectivada. O método de aná- não pode absolutamente ser imaginado,
lise e síntese, que nos auxilia no estudo de um olho voltado para nenhuma direção, no
qual as forças ativas e interpretativas, as que
algumas das propostas teóricas do filósofo
fazem com que ver seja ver-algo, devem es-
alemão, é eminentemente filosófico. tar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho,
Não raras vezes, o perspectivismo de portanto algo absurdo e sem sentido.
Nietzsche é confundido com puro relativis-
mo, do tipo de que nada serve, ou de que Nietzsche insiste que “existe apenas uma
nada vale, já que as perspectivas são variá- visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’
veis. O próprio filósofo alemão, porém, não perspectivo”, e conclui dizendo que :
vê as coisas desse modo. Ele esclarece, em sua
Genealogia da moral (2002a, p. 108-109),1 o quanto mais olhos, diferentes olhos, sou-
que entende por perspectivismo: bermos utilizar para essa coisa, tanto mais
completo será nosso “conceito” dela, nos-
Devemos afinal, como homens do conheci- sa “objetividade”. Mas eliminar a vontade
mento, ser gratos a tais resolutas inversões das inteiramente, suspender os afetos todos
perspectivas e valorações costumeiras, com sem exceção, supondo que o conseguísse-
que o espírito, de modo aparentemente sa- mos: como? – não seria castrar o intelecto?
crílego e inútil, enfureceu-se consigo mesmo (2002a, p. 108-109).
por tanto tempo: ver assim diferente, querer
ver assim diferente, é uma grande disciplina Como é possível notar, Nietzsche critica
e preparação do intelecto para a sua futura a razão metafísica e um sujeito desvincula-
“objetividade” – a qual não é entendida como
do de suas vísceras, dos afetos que o atraves-
“observação desinteressada” (um absurdo
sem sentido), mas como a faculdade de ter
sam. Não existe, para ele, nada “em si”, pois
seu pró e seu contra sob controle e deles poder em tudo que “conhecemos” colocamos os
dispor: de modo a saber utilizar em prol do interesses que residem em nós, nossos sen-
conhecimento a diversidade de perspectivas e timentos mais íntimos, nossos subterrâne-
interpretações afetivas. os, para fazer uma alusão a Dostoievsky em
Memórias do subsolo (2000).
Os grifos são do próprio Nietzsche. No
mesmo trecho, ele convoca os “senhores fi-
Pequena e grande razão
lósofos”, daí em diante, a se guardarem bem
“contra a antiga, perigosa fábula conceitual Nietzsche questiona o dualismo que sem-
que estabelece um ‘puro sujeito do conheci- pre imperou na metafísica. Nela, corpo e
mento, isento de vontade, alheio à dor e ao vontade, com suas pulsões, foram, segundo
tempo’”. E prossegue: ele, relegados a um plano inferior em favor
de uma “razão pura”. Como se isso fosse pos-
Guademo-nos dos tentáculos de conceitos sível, argumenta Nietzsche. Como se a razão
contraditórios como “razão pura”, “espiri-
fosse desvinculada do corpo, sua grande ra-
tualidade absoluta”, “conhecimento em si” –
zão (Große Vernunft), ele escreve, em Assim
1
Na importante convenção Coli/Montinari para os estudos da falou Zaratustra (2003, p. 60).2
obra de Nietzsche, a Genealogia da moral: uma polêmica apa- Isso que denominamos razão não pas-
rece sob a sigla GM/GM, em que a primeira sigla indica a
origem do alemão e a segunda sigla indica a tradução para o
sa, para ele, de um instrumento, algo
português. No caso dessa obra, as siglas são as mesmas, o que,
na maioria dos casos (outras obras), não acontece. As referên-
cias finais trazem o que essa convenção determina para cada 2
Assim falou Zaratustra ou Assim falava Zaratustra? Em
uma das obras de Nietzsche citadas neste texto. Entretanto, termos da tradução do alemão para o português, Assim falou
aqui, por ser um trabalho destinado à área de Comunicação, (...) ou Assim falava (...), perfeito ou imperfeito, não implica
optamos por manter a forma tradicional de citação, ou seja, de mudança de sentido do alemão Also sprach Zaratustra. São
acordo com as normas da ABNT. encontradas as duas traduções.
Querer interpretar é querer se efetivar, fa- disso, estreitou a visão perspectivista no hu-
zer-se presente, marcar posição, aparecer no mano, reduzindo-o à condição de cego, ou
mundo. E o tipo humano precisa perceber quase cego, e, quem sabe?, tornando-o cego
que isso acontece com ele, dentro e fora dele, em relação a si e aos outros, em relação às
e que, quando está interpretando algo, como, coisas e, sobretudo, em relação ao que é vital,
por exemplo, um texto, está atuando como ao que fortalece a vida.
uma configuração ampla de forças. Portanto, O exemplo a seguir mostra o quanto
não é simplesmente “um sujeito” quem in- Nietzsche estava atento às questões que en-
terpreta, como se entende tradicionalmente volvem o trabalho humano e a como esse
o ato interpretativo. trabalho é aplicado e exercido, de modo per-
nicioso. Lendo sua época, ele trata do que
chama de “atividade maquinal”:
O perspectivismo leva o Está fora de dúvida que através dela [a ati-
humano a uma abertura vidade maquinal] uma existência sofredora
do seu leque de é aliviada num grau considerável: a este
interpretações sobre o fato chama-se atualmente, de modo algo
desonesto, “a benção do trabalho”. O alívio
seu viver e suas relações consiste em que o interesse do sofredor é
com os outros e com inteiramente desviado do sofrimento – em
o mundo que a consciência é permanentemente to-
mada por um afazer seguido do outro, e
em consequência resta pouco espaço para
o sofrimento [para se entender o sofrimen-
O corpo pensa to]: pois ela é pequena, esta câmara da
consciência humana! A atividade maquinal
O perspectivismo de Nietzsche oferece- e o que é próprio – a absoluta regularidade,
-nos, mais ainda nos tempos atuais, condições a obediência pontual e impensada, o modo
de refletirmos sobre como a sociedade se or- de vida fixado uma vez por todas, o preen-
ganiza. Estamos, de muitas formas, proibidos chimento do tempo, uma certa permissão,
de pensar e impedidos, assim, de alcançar mesmo educação para a “impessoalidade”,
uma visão mais ampliada e, por consequên- para o esquecimento de si, para a “incuria
cia, mais “objetiva” das coisas e das próprias sui” [...] (2002a, p. 123-124. Acréscimos e,
relações sociais. Isso repercute na universida- aqui, grifo meu).
de, lá onde uma visão míope de ciência domi-
na os territórios do conhecimento. Aliás, co- Como podemos tratar de teoria do co-
nhecimentos tão fragmentados e incapazes de nhecimento nos moldes de uma epistemolo-
dialogar e de se comunicar entre si, que aca- gia da compreensão perspectivada sob con-
bam consolidando o cientificismo dominante dições que permitem uma “educação para a
em amplos espaços acadêmicos. impessoalidade”, uma falta de cuidado de si,
Nesse sentido, e ao contrário do que ou em que faltará ao tipo humano o cultivo
muitos pensam a respeito de Nietzsche, ele do próprio caráter, sua autenticidade vital,
estava muito atento ao que acontecia na so- chegando este a cair no abismo do esqueci-
ciedade. Esta, segundo ele, criou um valor mento de si?
para o trabalho e, inclusive, uma justificativa Que tipo de educação é essa que faz defi-
“religiosa” para arrancar do tipo humano a nhar as forças humanas, alterando as relações
ele submetido, sob o jugo da indústria e do das forças que, segundo a teoria das forças de
mercado e em nome do trabalho, toda a sua Nietzsche, configuram o tipo humano, já que
energia, seu pensar e o cuidado de si. Além o mundo não é outra coisa do que vontade de
forma de vontade de potência, tem existên- nietzschiano aponta para uma ampliação da
cia como um afeto (mas não como um ‘ser’, visão de mundo. Propõe uma aprendizagem
e sim como um processo, um devir)” (2002b, sobre como enxergar esse mundo a partir
p. 159-160). de diversas perspectivas, alcançando desse
Novamente, estamos às voltas com a ques- modo uma compreensão melhor da própria
tão do devir, marca de uma filosofia de tipo compreensão em cada perspectiva.
dionisíaco, o que quer dizer: do devir, do eter- O perspectivismo, portanto, leva o hu-
no devir a que se está sujeito. E se a filosofia de mano a uma abertura do seu leque de inter-
Nietzsche é uma filosofia do devir, ela não age, pretações sobre o seu viver e sobre as suas
como acontece na maior parte da tradição fi- relações com os outros e com o mundo. O
losófica, como uma filosofia do ser. perspectivismo não encarcera a visão, o
Interpretar, portanto, é também movimen- sentir. Ele torna crítica uma pessoa, não per-
to, devir, transformação, mudança de sentido. mitindo que ela permaneça fechada em sua
Isso deve ser incluído na concepção de uma própria perspectiva.
Daí podermos afirmar e confirmar o en-
teoria do conhecimento com base na ideia da
lace entre compreensão e perspectivismo.
compreensão enquanto método de diálogo.
Mais ainda, podemos considerar, inclusive
para futuras e novas discussões acadêmicas,
Considerações finais a pertinência do perspectivismo de Nietzsche
para uma reflexão sobre a própria teoria do
Voltemos, para finalizar, ao tema da conhecimento.
compreensão como método de diálogo e, Sem contar que outras discussões, por
particularmente no mundo acadêmico, do exemplo sobre a relação entre sujeito e obje-
discurso dialogal entre as áreas do conheci- to, na pesquisa filosófica e científica, podem
mento e das diversas ciências e disciplinas ser reconsideradas sob a ótica do conheci-
entre si. Parece oportuno considerar o pers- mento enquanto afeto. Isso tudo deixa este
pectivismo de Nietzsche como efetivação texto inconcluso, porém prospectivo.
desse diálogo. Com efeito, o perspectivismo (artigo recebido jun.2016/aprovado set.2016)
Referências
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JGB/BM.
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NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad.: Andrés Sánchez Pascual. 9. ed. Madrid: Alianza Editorial,
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