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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


Escola de Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena

Fotografia como intermédio relacional: entre a presença e a ausência nos trabalhos de Sophie
Calle e Thiago Florêncio
Pedro Freitas

Artigo para a disciplina de Fotografia e Ficção, ministrada por Teresa Bastos e Luiza Leite.

Palavras-Chave: fotografia, deambulação, ficcionalização, presença, ausência

Resumo:

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Esse artigo procura investigar os projetos “Suite Venitienne”, de Sophie Calle e “De quem te
Protege a Muralha?”, de Thiago Florêncio, a luz do conceito de deambulação. Este conceito,
pretende analisar trabalhos que ocorrem em site-specific, um lugar determinado ao qual a partir
deste a obra se constrói. Pretendo analisar como a partir da interação entre os resquícios imagéticos
presentes nessas duas obras, podemos ter um indício de como a fotografia contemporânea se
confronta com seus referenciais modernos. Em ambos os trabalhos penso que a linguagem
fotográfica se estabelece como um objeto autônomo de interação entre o espaço urbano e o sujeito.

Nesse sentido pretendo partir de uma análise imagética nessas duas propostas. Em ambos os
trabalhos há uma discussão sobre o espaço, a cidade, e os próprios alcances verossímeis da
fotografia como elemento configurador de uma certa percepção relacionada a um regime de atenção
moderno. Penso que ambos os trabalhos partem de um estado de busca pelos artistas; esse estado de
busca combina elementos de uma poética da contemplação, assim como uma discussão sobre a
memória. Estabelece assim um gesto dos artistas em relação a seus objetos. Nessa agência, eles
retiram o caminhante que circula pela cidade de uma dimensão passiva. Ao invés de atento aos
sinais, o caminhante se deixa guiar pela cidade derivando a partir do traçado de um objeto. No caso
de Sophie Calle esse objeto é um homem - personagem, no limite da fabulação da própria autora.
No caso de Florêncio, os rastros de uma comunidade que foi apagada de um espaço valorizado. Se
instala assim no processo das obras uma dimensão de um real aberto ao devir.

O devir, tal como colocado por Deleuze (1997, p.15), se caracteriza por um estado de incompletude
radical e abertura ao desejo. Em uma análise das durações na percepção, o filósofo nos fala que esse
constitui por um regime temporal sem antes nem depois, responsável pela multiplicação de si no
acontecimento e no encontro.

Soma-se aí também uma dimensão performativa das obras que torna esse espaço real uma instância
relacional, na qual a presença do Outro é parte constitutiva das obras e onde o discurso
identificatório sofre interdições. Segundo Nicolas Bourriaud, uma estética relacional se propõe
como "uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das relações humanas e seu contexto
social mais do que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado". (BOURRIAUD,
2009, p.19)

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Ambos os artistas exploram as ruas das cidades por onde circulam - Veneza e Rio de Janeiro
respectivamente - seguem um caminho oblíquo, marcado por interrupções, mudanças bruscas de
percurso e reiterações. Eles constituem uma cartografia na medida que delimitam esses espaços
através de suas circulações, disparadas por uma motivação afetiva.

Pretendo analisar como enfim essas se sintetizam afim de colocar em questão as relação com o
Outro - no caso de Calle - e do gesto de resgate de identidades apagadas nos espaços urbanos em
que transita - no caso de Florêncio. Para tal ambos se valem da linguagem fotográfica a partir da
dimensão simbólica que a imagem toma. Ambos os trabalhos assim se inserem, a meu ver, em uma
dimensão da experiência, no sentido que nos fala Benjamin.

Suite Venitienne, realizada em 1980, foi um dos primeiros trabalhos de Sophie Calle. Nele, a artista
se desloca de Paris a Veneza seguindo um homem pelas ruas. A artista o identifica apenas como
Henry B. O trabalho é apresentado em um livro. As fotos do percurso de Calle são portanto
entremeados de textos com hora e local, documentando o processo. Ela se tranveste assim numa
espécie de detetive.

No caso do trabalho de Sophie Calle, penso que este atualiza a flanêrie que Benjamin identificava
no personagem de Baudelaire. O autor nos diz

At the end of January [980, 1m the streets if Paris, I jollowed a man whom I lost siqht of a few minutes later in
the crowd. That very) evening, quite by chance, he was introduced to me at an opening. During the course of
our conversation, he told me he was planning an imminent trip to Venice.

Ela seguirá então o personagem pelas ruas de Veneza. A artista diz logo no princípio de seu trabalho
que, ao seguir estranhos na rua, não o faz por conta de um interesse particular, mas como método,
sem o conhecimento daquele que é fotografado. Podemos pensar que ela realiza aqui também uma
inversão de um posicionamento dominante e masculino, aquele que historicamente se alinha como
quem olha.

Seu olhar em relação a esse personagem é sempre o de uma espiação, o de uma imagem misteriosa
e pouco reveladora das identidades. A artista parece se inspirar aqui na linguagem de um cinema
noir da década de 50, que narrava frequentemente histórias de crimes e detetives. Imageticamente
ela define essa estética a partir de um quadro rico em molduras e geometricamente construído. Os
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personagens retratados estão frequentemente de costas, caminhando. Na tentativa de camuflar seu
posicionamento em relação ao homem que persegue, Sophie Calle instala uma performatividade na
relação entre as imagens, visto que em nenhum momento de seu livro nos é possível reconhecer a
identidade do sujeito assim como a da própria fotógrafa - que frequentemente apresenta-se
travestida de outra pessoa e encoberta.

Ao mesmo tempo em que há choque entre uma dimensão da experiência e a exterioridade que a
foto apresenta, temos com o passar do livro a nítida sensação de aproximação entre esses dois
discursos. Tal aproximação se dá pela dramaturgia da busca que a autora estabelce nas notas diárias
e nas imagens. Calle segue a pista de Henry B., buscando registros e telefones de hotéis e
restaurantes por onde ele possa ter passado.

Tuesday. February 12, 1980.


3:00 P.M. I walk the streets randomly. In the course of our conversation about Venice, Henri B. had alluded to a
pensione: the San Bernardino. On the list of hotels that I obtained en route, I don't find a San Bernardino. That
doesn't surprise me. There is a San Giorgio, a San Stefano. I arrive at Piazza San Marco and sit against a
column. I watch. I see myself at the labyrinth's gate, ready to get lost in the city and in this story. Submissive.

Aos poucos também, Calle se sente seguida nas ruas, a partir da incerteza de que alguém possa ter
descoberto sua missão de encontrar aquele homem. A essa dramaticidade contudo, ela adiciona um
elemento dispositivo - um fator aleatório - a escolha por um homem qualquer. Essa aleatoriedade
aparece aqui como um elemento de função dupla no regime de identidades que o trabalho coloca: o
de dessubjetivação do personagem e subjetivação da própria autora. Ao colocar um personagem
frequentemente misturável com os outros, a autora opta por seguir um caminho da fotografia oposto
aquele que a relaciona com um papel identificador. A escolha do preto e branco nas imagens segue
esse mesmo sentido: ela remete a um pretérito, onde entram em choque o regime sensitivo da
imagem e a descrição do texto a partir de uma constituição da experiência a posteriori.

Dada a sua inclusão no discurso do trabalho, Calle instala uma dimensão performática de sua
experiência. A criação de um programa performativo se relaciona aqui com uma imbricação entre
corpo e cidade, política e experimentação, tal como coloca Eleonora Fabião em seu programa
performativo.

O corpo de Sophie Calle na cidade constitui-se como um elemento desterritorializante, que parece
servir como força de atração oposta daquela que guia a fotógrafa em relação a seu personagem.

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Apresentada a partir de passagens, a cidade de Veneza ganha uma dimensão fantasmática e
incongruente; um labirinto espacial, por vielas e rios. Na constituição subjetiva de uma dramaturgia
é como se esse ambiente se transmutasse para a subjetividade de Calle. Em sua narração, a
percepção confunde-se com o próprio ambiente. Assim a artista constitui sua cartografia. O
personagem de Henry B. poderia constituir assim o que Deleuze chama de um Corpo sem Orgãos,
no sentido que percursa pela cidade derivando. O filósofo nos explica que o CsO sempre estabelece
um programa em duas partes: uma para sua criação e outra para fazer circular algo.

Ambos, corpo e cidade, aqui entremeados sem possibilidade de independência, constituem uma
qualidade constitutiva do trabalho, a de uma mediação, um acesso direto ao sensível que as
fotografias proporcionam. Em sua abertura como uma superfície sensível, a partir de onde é
possível conectar-se - deambular - de qualquer ponto a qualquer ponto, a cidade encontra uma linha
de resistência frente a uma lógica de um mecanicismo veloz na experiência da modernidade.

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Também no caso de Calle podemos pensar correlatamente que parte-se primeiro de uma construção
do espaço. Seu estado de busca inicia-se com a artista fotografando os espaços em que está, e
também os espaços onde não encontrou Henry B. Com isso instala um jogo de presença / ausência
na relação entre os personagens e seus deslocamentos no espaço. No lugar da figuração dos
passantes, a artista instaura uma falta como elemento constituinte de sua poética. Ao fazer isso é
como se inversamente se voltasse para os elementos materiais constitutivos da fotografia, aquilo
que Barthes chama de studium. Graças aos relatos, ao longo do livro, esse espaço vaziado se torna
um depositório da subjetividade da artista. Em seu texto, contudo, ela trata de esvaziar esse relato
de qualquer sentido mais pessoal: “I must not forget that I don 't have any amorous feelings toward
Henri B. The impatience with which I await his arrival, the fear of that encounter, these symptoms
aren't really a part of me.” (pg. 20/21).

A artista então envereda em narrar suas experiências pela cidade, passando pela observação de
crianças fantasiadas em uma praça a seu encontro com um barman. Dada a possibilidade ficcional
que se encarna no personagem de Henry B., a obra se constitui como um elemento que se fecha em
si mesma, visto que ao perscrutar entre as ruas, Calle volta a voz da narração para si mesma, sempre
que o homem se perde de vista. Mais adiante a pista de Henry B. é encontrada em um hotel. Ela
descobre então que aquele homem também está fotografando a cidade, para uma pesquisa. Se dá
aqui outro entrecruzamento das experiências, e se evidencia a dimensão rastreadora que a artista

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toma em relação a seu objeto. De uma elocubração imaginária, a imagem vai adensando-se,
tornando-se como que um testemunho ocular do nascimento da existência de Henry B.

Esse gesto também pode ser lido como um testemunho do desaparecimento do sujeito nesse meio
urbano. Ela então o localiza e passa a seguí-lo pelas ruas, descrevendo sua trajetória:

he crouches to snap a shot of thc canal, or perhaps of that passing boat? After scvcral seconds, I imitate
him, trying my best to take the same picture - Campiello dei Meloni - they seem interested by a postcr
advertising photocopiers - Calle de Mczzo, Campo San Aponal - she enters a bookstore and comcs out
again immediately, empty-handed-Calle de Ia Rughetta-he buys a paper, talking briefly with the vendor -
Ruga Veccia San Giovanni - they stop for a few seconds in front of the Banco di Roma and unfold a map
which they consult; it's crowded. (Id, pg. 36)

Penso que o caráter deambulatório da obra se relaciona diretamente ao gesto elaborado pela artista
de tecer uma missão aleatória, que se imbui de um caráter anti-produtivo. A obra constitui assim
como uma espécie de resto da experiência. Esta, auto-reflexiva, é trazida a primeiro plano. A busca
por esse homem se constitui então em uma espécie de livro de memórias.

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Neste livro as fotografias não conseguem responder a sua demanda por objetividade nem a seu
caráter identificatório. Estabelecem-se, ao contrário, como um intermédio relacional. Esse
intermédio se dá a partir de um eclipse das identidades daquele que fotografa e o fotografado. A
espectatorialidade da obra se dá assim a partir de uma restituição da Experiência de Calle pelo
espectador, como se esse compartilhasse o olhar da artista.

Nesse sentido Sophie Calle se coaduna em um papel de exploração do espaço em busca de sinais de
uma vivência. Nesse sentido encara, frente as imagens, um papel de detetive, muito caro ao
romance policial no sentido que Benjamin dá a esse gênero: o de uma figura que desaparece na
multidão da grande cidade. Em ambos os trabalhos aqui apresentados acredito haver diferentes
táticas para encenar esse desaparecimento. Nesse sentido há aqui um imbricamento entre artista e
obra. Enquanto as obras partem de uma estética que dessaruma o jogo identitário, são os próprios
artistas que performam sua retirada da obra. O que nos resta são as imagens que lhes deram o
traçado do caminho.

Para Sophie Calle se trata mesmo de um desaparecimento do elemento objetivo nas fotografias; as
imagens só fazem sentido se alocadas na série que as compõe. De uma fotografia a outra, pouco
importa os espaços por onde o homem que ela persegue transita. Sua poética se dá ao mesmo tempo
pela repetição de uma figura homogênea e dessubjetivada, assim como pela inacessibilidade que
temos a sua identidade. Frente às imagens de Suite Venitienne buscamos com o olhar a posição
dessa figura no quadro. Essa é a dinâmica mesmo da ideia de uma deambulação; um
entrecruzamento de uma dimensão do visual, fantasmática, que escapa, e uma dimensão dos
deslocamentos físicos no espaço urbano. Ela coloca uma dimensão do encontro fragmentário
possibilitada pela mediação da câmera. Instala-se um jogo entre aquele que olha e quem é olhado:
Hidden behind a column, I observe and photograph him in front of the general delivery counter.
(pg.44/45)

Calle, ao reproduzir imagens que o homem que encontrou fotografa, acaba por fazer um comentário
sobre a questão da autenticidade da fotografia, assim como sobre os limites da privacidade a partir
de sua exposição. Frente a sua obra, nos questionamos a respeito de qual a relação dela com aquele
homem e se a artista havia conseguido autorização expressa para o seguir. Em sua obra há um
imbricamento mesmo daquilo que é considerado objetivo pela fotografia - a fotografia em seu
aspecto realista - e sua diferença para uma experiência subjetiva narrada em primeira pessoa. As

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fotos da procura de Calle quase sempre enquadram as pessoas caminhando de costas no espaço
urbano. Henry B., é possível, seja apenas um personagem. Ele é um personagem falseado, que se
mistura com outros que caminham pela cidade. O que nos permitirá “enxergá-lo” serão as notas de
Calle sobre seu processo. A foto-da-foto estabelece-se assim como um artifício que questiona o
primeiro olhar. Calle Mais do que isso, ela transforma-o em um objeto estético no instante mesmo
em que o processo deambulatório transfigura-se em obra.

O trabalho imagético do artista se instala assim entre uma arqueologia das imagens e uma
cartografia. Ele parte de um processo de derivas e perambulações em busca de elementos que nos
remetam a história dessa muralha que cercava a cidade, ao mesmo tempo em que traça um novo
percurso que serve de testemunho histórico desse desaparecimento. A obra se encontra assim em um
entre. Os objetos que ele se apropria em sua caminhada serão a materialidade da obra. Penso que
esse caráter material da obra se dá a partir de um jogo de subtração da imagem. Se trata de uma
dimensão da experiência que não pode ser abarcada apenas por uma regime do visível em que os
elemntos estão claros e ordenados. Mas da constituição de uma visibilidade, no sentido que nos fala
Karl Eric Scholammer.

A partir de uma análise da percepção do sujeito na cidade moderna o autor nos faz um importante
adendo sobre o cinema moderno, que poderá aqui encontrar ecos na obra de Calle. Como mídia
privilegiada que encarna a experiência do sujeito moderno o cinema ultrapassou para ele o papel de
ser apenas um meio representativo da realidade. Local de discurso em em que se situou em seu
nascimento ao lado do teatro e da literatura do século XIX.

Segundo Schollamer, o cinema, em seu nascimento, dava seguimento a invenção da fotografia e


adicionar a ela o movimento como elemento constitutivo da experiência real. A partir de uma
dramaturgia do desaparecimento da figura humana, ele analisará que o cinema moderno iria fazer
da experiência ótica - as possibilidade de como ver - seu próprio discurso.

Mergulhamos então em uma experiência plural e multi-facetada (pg.28) da realidade. Segundo ele,
em um regime clássico o visível se contrapunha ao invisível como condição representativa de um
perspectivismo renascentista. Já no caso da experiência moderna possibilitada pelo cinema, havia
uma tendência entrópica da imagem. Uma dimensão que a considere em seu aspecto opaco e
indecifrável; segundo Deleuze, no cinema neo-realista havia uma irrupção no esquema causal

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estabelecido entre uma percepção e uma ação. Tal tendência pode ser lido, como nos diz Karl Eric,
como um tendência a dissociar a imagem enfim de qualquer elemento textual, afim de e
reestabelecer com sua pureza estética. Toda a arte de vanguarda moderna é englobada por essa
premissa que serviu de norteador para a constituição de um abstracionismo formal.

Na experiência da obra de Calle percebemos também uma espécie de esvaziamento de sua


constituição visual. Se coloca assim sua oposição a um regime escópico que tem na perspectiva seu
elemento fundante. Sua obra se instaura em uma dimensão dispersiva e elíptica, com
acontecimentos flutuantes.

A dimensão da experiência reencontra-se aqui com aquela da figura do flanêur em Benjamin, que se
propunha a sair pela cidade sem rumo certo, aberto aos direcionamentos do acaso. Tanto em Calle
como no personagem de Baudelaire consta ainda um outro elemento forte: uma forte sensualidade
na relação entre aquele que olha e o objeto visto. Se em Baudelaire no soneto A uma Passante

O flâneur mostrava-se assim como um ser observador que transitava aberto as possibilidades do
acaso. Essa dimensão se dava a partir de uma abertura temporal que o ócio proporcionava. O lugar
da massa de cidadãos se tornava uma espécie de camuflagem para o flaneur. O autor nos diz: “O
“observador” é um príncipe que em toda a parte faz uso pleno de seu estatuto de incógnito.” A
flanêrie pode certamente se colocar como uma das inspirações de Calle para a constituição de sua
obra.

É na ordenação de seus percursos atrás de Henry B. que Calle constituiria portanto uma visualidade.
Ela não se enquadra mais em um regime verossímil. Se seu texto segue uma linearidade na
ordenação dos fatos, as fotos de seu livro adicionam outra camada temporal. Ao fragmentar e
reordenar a experiência da realidade servem de fronteira para um estado de invenção da imagem,
pela autora, onde seus elementos formais criam uma espécie de universo particular - ou como disse
a autora, um labirinto.

O papel da linguagem fotográfica aqui é o de oposto a uma revelação; é uma percrustação, uma
espionagem. As identidades se revelam pelas frestas de uma imagem que tem um forte referencial
formal. Frequentemente em sua encenação ganham o primeiro plano as colunas e os muros da

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cidade - estrias e demarcações de um território - estabelecendo uma atmosfera de mistério e risco.
Estamos aqui no polo oposto de uma fotografia digital nítida, própria do tempo contemporâneo.

Também para a análise dessa encenação, a relaciona com o comentário que Scholammer realiza,
baseado em Deleuze, que na passagem do cinema clássico para o moderno - nas décadas de 60 e 70
principalmente - o cinema encarnou uma crise da imagem-ação, onde essa deixava de se configurar
como elemento organizador da narrativa moderna. Ela se dissociava assim de um tempo hegeliano
que seguia uma lógica historiográfica.

No lugar da ordenação dos fatos, encontraremos agora personagens perturbardos por elementos de
caráter subjetivo. Personagens que, dissociados de uma trama, tinham seu desenvolvimento
estabelecido a partir de reações a um acontecimento, que se dava em si, constituindo uma espécie
de tempo imemorial: “a narrativa é agora uma relação simultânea e cristalina entre os tempos
virtuais no Meio.”(SCHOLAMMER, 2015, pg. 26).

Passa-se agora a uma concepção de história de origem nietzschiana e pós-estruturalista; Essa


concepção encara a história justamente como um devir, uma concepção de tempo não-cronológica,
na qual os personagens saem de um regime representativo para um regime apresentativo. Eles se
opõem portanto e desconfiam de qualquer retrato objetivo dos acontecimentos.

Deleuze se referirá a esse regime temporal como uma imagem-cristal, na qual passado e presente se
imbricam. Ele analisará então uma série de personagens que se encontram tomados pela
contemplação, a falta de comunicação e uma não-ação. Se trata mesmo de uma dramaturgia a qual
Calle poderia fazer parte. Para Deleuze, a partir de uma indissociabilidade do meio e de uma
mergulho na duração dos fenômenos, a narrativa estaria agora aberta a vidência de um tempo
absoluto. A essa se dissociava uma verossimilhança que a narrativa poderia ofertar, agora submetida
as questões fabulatórias dos personagens; uma potência do falso que confunde na capacidade de
invenção dos sujeitos uma indiscernibilidade entre o real e o imaginário.

Visões fragmentárias, movimentos erráticos e nomádicos e um profundo caráter existencial marcam


esse cinema, caracterizado por nomes como Antonioni e Bergman. No primeiro a temática da
errância no espaço urbano também se faz presente em algumas de suas obras como O Eclipse
(1962), parte de sua trilogia da incomunicabilidade, Blow-up - Depois daquele beijo (1966) - no

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qual o cineasta tematiza o tema dos limites da assimilação objetiva da realidade pela fotografia e
Profissão: Repórter (1975), onde a ação encontra-se frequentemente submetida a contemplação -
dos personagens e da própria experiência do filme, dada a sua montagem em tempos longos.

Para Schollamer, o que se dá nessa passagem de um cinema historiográfico para uma dimensão
subjetiva da experiência relaciona-se com um outro posicionamento dos artistas de constituir
visualidades para suas obras. Ou seja, ao invés de apenas uma ordenação de um tempo passado se
trata aqui da criação de um regime ótico que são traduzidos em impulsos sensoriais.

A fotografia transmuta-se assim de um lugar da forma - que ainda guarda em si uma


indissociabilidade com um modelo de percepção dos sujeitos - para uma matéria a qual cada
personagem se apropriará para reconstituir suas memórias. Penso que aqui se instala uma dimensão
performativa dos sujeitos que se apresenta no trabalho de Calle. Neste, é na medida em que a
ordenação dos fatos ganha um caráter artificioso que nos dá indícios de uma criação ficcional.

A cidade de Veneza, esquadrinhada frequentemente pela personagem de Calle assume aqui o lugar
de um tabuleiro onde um jogo ocorre. Tabuleiro de linhas erráticas, por certo, mas que transforma o
espaço urbano em um campo onde seu dispositivo pode se instalar.

A indefinição da relação entre Calle o Henry B. durante sua narrativa coloca a questão da
ficcionalização em uma dimensão transitiva. Haveria, para além das datas marcadas em suas notas,
outros combinados entre fotógrafa e personagem? Eles se conheciam anteriormente? Não temos
respostas a essas perguntas, apenas o compartilhamento por Calle de um bloco de tempo, articulado
com as fotografias que registram seu processo.

Quando, na narrativa do livro, a fotógrafa encontra seu personagem, este se dá a partir de um jogo
de captura. A dimensão sensual da experiência estabelece-se a partir de uma dimensão relacional
entre os personagens a partir de suas fotografias: “I’m afraid he’ll him abruptly and see me
crouching in the garbage. I decide to pass silently behind him and wait a little farther along.
Quickly, with head lowered, I cross the bridge. Henri B., doesn’t move. I could touch him”.

Inevitavelmente ocorre um encontro, de forma fugaz e inesperada:

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His solitude made me audacious. I've diverted him from his course. He’s intrigued. I should
keep my distance, and yet I stay close. Perhaps I'm weary of playing this out alone. I open my eyes; he is
in front of me, quite close. We are alone. He doesn't say anything. He seems to be absorbed in thoughts -
a few seconds) - respite-is he trying to remember?
Then he speaks: "Your eyes, I recognize your eyes; that's what you should have hidden."
(pg. 50/51)

Nesse instante de reconhecimento é como se as identidades de ambos se eclipsassem,


impossibilitanto um retorno posterior a qualquer outra dimensão do convívio. Ao caráter superficial
dessas imagens opõe-se aqui outro, o de uma elocubração fantasiosa, desejosa, da artista pelo seu
personagem. O desejo surge aqui enfim como uma força que se estabelece justo no enublamento
das identidades. O olho ocupa o ponto nevrálgico de um reconhecimento que se desfaz.

Nos referimos aqui propriamente ao conceito de punctum que surge no livro A Câmara Clara, que
Roland Barthes escreve sobre a fotografia. Oposto a afetividade média do studium, o punctum se
caracteriza como uma implicação daquele que está frente às imagens. Neste, a partir de uma
perspectiva subjetiva, ele encara a fotografia como uma aventura. As imagens lhe advem, ele diz. A
fotografia só pode se constituir em uma dimensão não-objetiva na medida em que há um se-colocar
em imagem. (pg. 24)

Ele nos diz que nesse caso a fotografia se constitui como objeto e seus personagens se constituem
enquanto personagens apenas por uma questão de semelhança. Em uma série de fotos, porém, uma
delas surge a partir de um afetação daquele que olha. Barthes diz que ela anima aquele que vê,
constituindo-se enquanto aventura. Em Calle esse momento de reconhecimento com Henry B. se
torna uma espécie de ápice de sua aventura fotográfica, ao mesmo tempo em que estabelece um
limite para sua performatividade, no sentido que ameaça revelar sua identidade, a partir de um
reconhecimento.

Em determinado momento, Calle nos diz: “I try to photography him; he holds his hand up to hide
his face and cries, “No, that’s agains the rules”. We simply say goodbye. I believe he smiles ever so
slightly. He walks away under the arcades. I photography his back and let him go.” (pg. 52-53)

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A imagem da identificação encontra-se aqui interditada. Frente a impossibilidade de um
reconhecimento ecoa aqui o tom melancólico e lamentoso da figura do flanêur baudelairiano;

“Baudelaire não é nem um poeta kitsch romântico, que ficaria preso à nostalgia do passado, nem um

poeta triunfalista modernoso, que limitar-se-ia à apologia do existente. A sua verdadeira modernidade

consiste em ousar afirmar, ao mesmo tempo e com a mesma intensidade, a força e a fragilidade da

lembrança, o desejo de volta e a impossibilidade do retorno, o vigor do presente e a sua morte próxima.

Se essa tensão define, na leitura benjaminiana, a modernidade em Baudelaire, talvez possamos afirmar

que ela também descreve , na nossa interpretação, a modernidade de Benjamin”

(GAGNEBIN, 1997, p.154)

A visão aqui cria um sentimento de veracidade apenas por um instante, uma beleza que passa
fugazmente. A regra, enunciada pelo texto de Calle, é o que nos causa espanto, visto que até então
os personagens pareciam não se conhecer. No instante em que se dá o encontro revela-se também
uma opacidade, uma falta de acesso nosso ao processo ficcional da artista.

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Sem esperanças de reencontrar Henry B., Calle se perde na cidade. Ela então se dirige a um
cemitério, a qual comenta que Henry B. gostava. Estamos proxímos aqui da experiência de luto, a
extirpação de uma imagem a partir de seu desaparecimento. Ecoa muito aqui uma dimensão trágica
que a fotografia tem em sua relação com a Morte, como nos dirá o filósofo.

Podemos relacionar aqui o regime de uma potência do falso que Deleuze nos diz com o caráter
contingente que Barthes identifica como próprio de uma linguagem fotográfica subjetiva. Para o
autor, a fotografia encarna um papel participativo na medida em que ela captura também a intenção
do objeto. O punctum é propriamente um elemento que, na dimensão relacional do espectador com
a fotografia, vem atingí-lo. Um reconhecimento a partir de uma intencionalidade visível na foto.
Essa intencionalidade não é porém a do fotógrafo, ela ocorre a partir da experiência de leitura das
imagens, em caráter singular. São como elementos sensoriais que atravessam a aura da foto, um
acaso que me punge. (Barthes, p.31).

Se a obra de Calle pode ser entendida aqui como o conjunto de série de fotos e relatos, seu campo
de relação é propriamente a cidade. A cidade constitui-se assim como o studium que Barthes nos
fala, uma espécie de continuidade indiferente. No livro de apresentação do trabalho, a artista ordena
a cidade em uma determinada cartografia. O mapa, para Deleuze, é conectado em todos os pontos,
desmontável e reversível. (1997, p.21). Para o filósofo, a partir da ideia de cartografia não é mais
possível pensar o sujeito como elemento pelo qual o universo das coisas se organiza. Se trata de um
sujeito aqui atravessado por subjetivações (BADIOU, 1995); que não baseia-se mais na verdade
enquanto categoria epistemológica.

É essa constituição que possibilita a cidade tornar-se espaço de descoberta e invenção do Outro.
Barthes nos diz “ao contrário do texto que, por uma ação repentina de uma única palavra, pode
fazer uma frase passar da descrição à reflexão -, ela fornece de imediato esses “detalhes” que
constituem o próprio material do saber etnológico”. (pg.32).

O teórico nos diz ainda que a fotografia permitiria assim o acesso a um infrassaber; visto que nos
oferece uma coleção de objetos parciais. Ele defende enfim que a fotografia tem com a História a
mesma relação que os fragmentos da vida de um personagem estabelecem com sua biografia. É pela
força do fragmento e de uma reinterpretação que se estabelece a relação do objeto fotografado com
aquele que fotografa.

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Ecoa-se aqui a proposta de Benjamin em oposição a um caráter historiográfico da experiência, em
seu texto Teses sobre o conceito de história. (1940). Para Benjamin, o materialista histórico deveria
partir da experiência afim de escovar a história a contrapelo. Trata-se principalmente de uma
desconfiança com as versões oficiais da história narradas e da forma de se apropriar dos fragmentos
para estabelecer uma voz narrativa - procedimento que Calle toma para si em sua obra: “A
verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que
relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.” O punctum de Barthes surge aqui
como um elemento constitutivo de uma nova ordenação temporal das imagens. Se trata da criação
de uma outra linearidade, a partir da qual o tempo é reconhecido como elemento artificial.

“... para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentra-se no que lhes é comum. A ideia de um
progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio
e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha.
(Benjamin, 1940, p.6)

A essa historiografia esvaziada, Benjamin opõe um um tempo saturado de “agoras”, propriamente a


historiografia nietzschiana que Scholammer reconhece na passagem de uma experiência moderna
para uma contemporânea no âmbito da arte moderna. Ao tornar seu regime ótico uma matéria e
elemento de seu discurso, Calle instala uma nova linearidade de sua experiência que, longe de a
constituir enquanto tempo real, deixa aberta a porta da indiscernibilidade entre obra e sujeito; a
ficção instala-se assim enquanto dimensão verossímil acordada entre a artista e seu público.

Nesse regime ambíguo da relação com a imagem, Calle transforma suas fotografias em uma espécie
de anverso de seu texto. Elas desmontam a linearidade e nos convidam a errar com o olhar por
entre os passantes da cidade. Não se trata porém de regime dissociativo com o texto.
Dialogicamente distinto do reverso ou do inverso, o anverso caracteriza-se por ser a parte frontal de
qualquer documento. Consideramos o documento aqui em sua dimensão de um registro oficial,
convencionado, do qual a artista embuí seu trabalho: o papel identificador que a fotografia
analógica tomou ao longo de sua história. (GUNNING, 2015); a nota de uma moeda estrangeira tem
seu valor ampliado no anverso. Também o lado onde se encontra a foto identificatória nos
documentos ocupa essa posição. Ele ocupa o papel de ter um caráter informativo na relação entre a
obra que a artista apresenta e sua fruição.

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No questionamento de um regime representativo, a artista aproxima-se da ideia de uma
dramaturgia, a partir de um tempo construído pela situação dos momentos, no qual o artista age
como um sismógrafo, registrando suas intensidades. Para analisar a relevância desse trabalho para
essa pesquisa podemos recorrer novamente a Barthes, na aproximação que este procura realizar
entre a Fotografia e o Teatro:

“Ora, Daguerre quando se apossou da invenção de Niepce, explorava, na praça do Château (na
République), um teatro de panoramas animados por movimentos e jogos de luz. A câmera obscura, em
suma, deu ao mesmo tempo o quadro perspectivo, a Fotografia e o Diorama, sendo todos três artes da
cena.” (Barthes, p.34)

Ele nos diz por fim que se enxerga no Teatro uma maior relação com a fotografia, essa se dá pelo
tema da Morte; segundo o autor os primeiros atores destacavam-se da comunidade ao
desempenharem papel de Mortos; o próprio ato de caracterizar-se designava ao mesmo tempo um
corpo vivo e morto. Ele conclui: “...a Foto é como um teatro primitivo, como um Quadro Vivo, a
figuração da face imóvel e pintada sob a qual vemos os mortos”. (pg.35).

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Logo em seguida Barthes passa a falar do Operator, aquele que registra. É possível fazermos uma
distinção aqui da figura deste com a do fotógrafo. O operator enquadra e compõe, mas ele é
conduzido por um certo automatismo. Calle, ao procurar fotografar Henry B. sem ser percebida,
assume um pouco esse papel. Se nos textos de Calle há um testemunho de seu tempo, reordenado
ficcionalmente, suas fotos tratam de um desaparecimento da própria artista por trás de sua obra;
Um desaparecimento que rapidamente se transmuta em uma reaparição performada. Na medida em
que se distancia de seu objeto, Calle esvazia seus textos de uma subjetividade interior, tornando-se
somente figura. Não à toa ela se traveste em uma passante qualquer afim de desaparecer, passar
desapercebida. Após seu encontro com Henry. B., haverá um longo afastamento entre os dois
personagens. No meio desse percurso Calle se despe de seu disfarce, como se sua identidade se
construísse a partir de uma distância desse outro que já não nos é mais apreensível pelo olhar.

Nesse sentido a fotografia ainda aparece aqui como resultado de um regime escópico moderno, de
hipervalorização da visão ótica. Calle se coloca assim enquanto elemento mediador entre a
fotografia e a espectatorialidade, entendo-as em sua materialidade analógica e nos seus potenciais
simbólicos.

Na estação, ela fotografa Henry B. uma última vez antes de seu desaparecimento; Calle o perde de
vista, colocando fim a sua busca. Se não lhe ficou nenhuma mensagem edificante a respeito de tal
processo, Calle abre sua obra a um devir cotidiano: I will not go farther. He moves away, I lose sight of rum.
After these last thirteen days ·with him, our story comes to a close.
10:10 A.M. I stop following Henri B.

Nesse último ato, ela volta a encontrá-lo na estação de trem em Paris. Aqui podemos nos valer do
papel simbólico que ocupa que o trem ocupa na cultura moderna, em especial em sua imbricação
com o nascimento do cinema. A Chegada do Trem na Estação, dos Irmãos Lumiére é reconhecido
como um dos primeiros filmes produzidos. Mais do que isso, Jacques Aumont (2015) nos remete a
própria constituição do trem enquanto elemento organizador da percepção moderna a partir de sua
organização espacial. O passageiro do trem é um espécie de proto-espectador cinematográfico, que
vê as paisagens correrem pela janela. Tais imagens, entre um regime contemplativo e um produtivo,
abrem clarões imersivos, no qual o sujeito moderno volta-se a uma experiência interior que já
entende esse sujeito como um elemento composto de fragmentos e rememorações.

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Nesse último ato, as imagens de Calle aparecem já de uma forma serial, a partir de folhas de
contato. Olhando-as é quase impossível não nos remetermos a uma dimensão da vigilância, de uma
captura dos instantes afim de compor uma espécie de totalização da visão no espaço urbano como
parte de um projeto moderno. A série fotografica serve assim como mais um elemento constitutivo e
verossímil de uma temporalidade real na captura daqueles ambientes. Ela o faz porém, revelando
todo seu aparato constitutivo; os negativos como rastros da experiência, deixados no caminho:

A imagem aqui se opaciza, como que nso falando de seus limites identificatórios. No lugar da busca
por corpos, por uma identidade, ela se volta a texturas e geometrias. Ela comenta ainda, sobre sua
busca: I could have discovered something significant about Henri B., something secret, during my
shadowing of him or at Luigi’s. I cannot stop contemplating this. How can I not imagine such a
possibility even though today I am content that nothing has happened.

Na posição de sombra do Outro, Calle, ao contrário do que poderíamos supor em uma dimensão
objetiva, se surpreende com um valor de um certo desapego que a experiência lhe proporcionou.
Após o desaparecimento da figura de Henry. B., ela se vê aliviada por se dissociar de sua presença.
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Há aí um certo elogio a gratuidade dessa presença, no sentido da personalização de um objeto que
rapidamente se esvai.

Finalmente o reencontro dos dois na estação de trem funciona para a narrativa como uma espécie de
deja-vú, um último traçado que a artista realiza junto com seu personagem. Ao utilizar a palavra
close para descrever o fim de sua experiência, ela nos indica que terminou de constituir também seu
universo formal. A fotografia em Suite Viennette pode ser encarada assim como um circuito
fechado , estabelecido a partir de uma espreitação dos espaços e de uma falsificação das percepções.
Dessa vez sem ser vista, Calle fotografa a figura de Henry B. de costas, quando esse deixa a
estação. O personagem então perde-se de vista e a fotógrafa dá fim a sua busca.

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____________________________________________________________________________

Enquanto o trabalho de Sophie Calle se estabelece a partir de viagens entre-cidades, o de Thiago


Florêncio ocorre apenas no Rio de Janeiro, mais especificamente na zona do Porto carioca,
recentemente revitalizada pelo poder público. Nesse sentido ambos colocam o problema da
identidade em posições distintas.

“De quem te protege a muralha?” é um projeto realizado por Thiago Florêncio a partir de uma
proposta de derivas pelo centro da cidade do Rio de Janeiro. O artista acompanhou o trajeto de uma
muralha que seria construída na região da Zona Portuária. A construção deveria atravessar a cidade
desde o pé do Morro do Castelo - local de fundição da cidade - margeando a Rua Uruguaiana e
passar por cima do Morro da Conceição até ser concluída nos arredores da praça Mauá.

O resultado de tal percurso foi registrado em um livro editado pela Editora Temporária e lançado
durante o ano de 2017. Parte de um projeto que procura refletir sobre os descaminhos do
urbanismo, o trabalho de Florêncio se situa lado de outros dois projetos que procuram refletir sobre
o mesmo tema: Zonzo: Investigadores Urbanos, de Julia Sant’Anna e Carolina Movilla e Por uma
Mobilidade Performativa, do artista Elilson.

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O projeto de Florêncio parte da premissa assim de refletir sobre as recentes transformações urbanas
que passou o Rio de Janeiro por conta dos eventos da Copa do Mundo e Olimpíadas, recentemente
sediados na cidade. Ao se referenciar a uma história passada da cidade, Florêncio utiliza a metáfora
da Muralha para refletir sobre processos de gentrificação e remoções existentes no presente da
cidade contemporânea. O faz a partir de uma proposta de visibilização de sinais de uma cultura
negra e pobre que desaparece desses espaços frente as demandas de um desenvolvimentismo
urbano.

A escolha pelo local vale-se portanto da forte dimensão simbólica que a região do Porto ganhou nos
últimos anos, a partir da promoção de uma modernização do Centro da Cidade promovida pelos
poderes majoritários. Ela remonta ainda a uma espécie de tradição de reformas voltadas a uma
modernização do Centro da cidade, que nunca chegam a se concluir.

No começo do século XX, o Rio de Janeiro, então capital do país, passou por transformações
semelhantes. Promovidas pelo prefeito Pereira Passos, essas reformas pretendiam dar uma nova
imagem para a cidade. Pretendia assim deixar para trás a impressão de uma cidade atrasada, com
resquícios da escravidão.

As reformas realizadas no Rio de Janeiro foram inspiradas sobretudo nas obras feitas em Paris no
final do século XIX. A haussmanização considerava a abertura de largas avenidas e demolição dos
cortiços no centro da cidade, com a expulsão de seus moradores. Abriram-se boulevards para
passeios e zonas então residências passaram a dividir espaço com lojas comerciais. Boa parte de
uma simbologia da cidade de Paris como capital cultural de um mundo ocidental nesta época parte
do ambiente que a partir daí se formou, tornando a cidade um símbolo da experiência cultural.

A Paris do fim do século é também o cenário do personagem da figura do flanêur, que Benjamin
identifica em Baudelaire. O autor nos diz que seu ar é de um decadentismo indolente, ele é lido
pelo filósofo, como um símbolo da resistência frente aos avanços da modernização. Está vinculado
a uma dimensão sensorial da experiência e de uma persistência no presente. Já estamos no centro de
um entendimento da história em seu aspecto pós-estruturalista e nietzschiano . É a esse tempo
composto de agoras que Benjamin irá tecer seu elogio ao materialismo histórico.

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No caso da obra de Florêncio já não se trata de compor uma experiência que volta-se para o agora,
mas de usar um fato histórico, em toda sua indefinição, como recurso retórico que justifica a
composição da obra. É na incongruência dos tempos - o da cidade então capital do Império e o Rio
de Janeiro atual, que Florêncio instala sua simbologia poética.

Se traça de um olhar que, ao transitar da cidade se desvia das pessoas para investigar os rastros
materiais que compõe uma história que foi apagada - a das remoções e a de uma história da
escravidão - supondo-as em sua continuidade. Sua obra porém não se determina a partir de apenas
uma estrutura simbólica. O que resta de seu contato com esses espaços são os objetos que o artista
recolhe no percurso.

Diferentemente do projeto de Calle, a montagem de sua obra constituída em livro se dá assim a


partir de uma dimensão objectual que descoloca-se da figura humana para o espaço urbano. A
aleatoriedade dos trânsitos - elemento já analisado aqui - ganha uma dimensão material a partir do
contato com imagens e objetos - agora transmutados, que nos dizem sobre uma existência
minoritárias que existem nesses lugares.

Desfaz-se portanto toda ideia de representação baseada em uma semelhança. O reconhecimento


com os objetos se dá aqui a partir de um elemento cultural: uma identificação com determinado
ornamento. Nesse sentido ele procura tecer uma historiografia desses espaços não-teleológica, que
se afasta de uma pretensão universal.

Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento

pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual

essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto

histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma

imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade

revolucionária de lutar por um passado oprimido. (BENJAMIN, 1987, p.232)

Seus objetos recolhidos são alimentos para a obra, permitem que ela se conserve, como um fruto
nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes
preciosas, mas insípidas. (Id.)

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Se trata propriamente de uma postura construtiva frente a história. Tal dimensão porém se dá a
partir dos restos, da reutilização; que se volta para o passado em busca de seus materiais,
distanciando-se de um referencial de produção industrial.

A representação desses objetos se distancia aqui da dimensão ambígua e intermitente que


encontrava no trabalho de Calle. Ela afirma seu caráter de registro que guia um continuum entre a
percepção do artista e daquele que observa. Diferentemente do trabalho de Calle, porém, o objeto
aqui não dá acesso a um apagamento de identidades. Ele articula-se aqui numa dupla dimensão: ao
mesmo tempo rememoração de um processo artístico e presentificação, por representação, de uma
parcialidade histórica invisibilizada.

Os resquícios dessa vivência encontram uma forma semelhante com o trabalho de Calle a partir do
texto de Florêncio sobre sua experiência. Nestes, porém, são constantemente destacadas as
contingências na qual se enquadra a experiência. Seu percurso é constantemente atravessado por
interrupções e restrições que a cidade impõe aqueles que se deslocam caminhando.

Na edição de seu livro-objeto, os limites do acesso a cidade se traduzem pela nossa própria não-
acessibilidade a algumas imagens de seu percurso, através de sua alocação no interior das páginas.
A superfície da página assim, além de lugar depositório da narração ganha um alcance outro a partir
da falta de acesso que nos dão a resquícios dessa experiência. A rememoração que se dá de tal
percurso é portanto intervalada e carente de uma significação plena.

O mesmo se dá em seu trabalho com as imagens. No lugar de um olhar para as ruas que se
encontrava em Calle, aqui há um retorno ao objeto em sua dimensão simbólica. Sua
contrahegemonia em relação a uma história oficial se dá assim a partir do fragmento. Se tratam
mesmo de dois movimentos do olhar dessemelhantes: em Calle havia a busca por um elemento
identificatório, repetitivo, a partir de um olhar em grande angular, aberto para o mundo. Em
Florêncio, é a partir do isolamento do objeto e se sua constituição que poderemos supor uma
narração que fora apagada.

Esteticamente Florêncio se vincula ainda a uma série de experimentações de uma geração da arte de
vanguarda brasileira nos anos 60 e 70. Nessa época, nomes como Helio Oiticica, Lygia Pape e
Lygia Clark realizaram uma série de trabalhos em que se utilizaram do espaço urbano afim de

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propor ações artísticas, não-funcionais e propositas de uma vivência por parte do público. Essas
vivências se estabeleciam a partir de uma reflexão sobre o espaço público e urbano. Como exemplo
desse tipo de proposta, podemos nos remeter aqui ao trabalho de Oiticica, Manhatan Brutaliza
(1978). Esse trabalho foi criado a partir da ideia do recolhimento do que o artista chamava de
fragmentos-tokens. Neste especialmente ele descobriu um pedaço de asfalto da Avenida Presidente
Vargas que tinha o formato do mapa de Mannhatan. Realizava então uma espécie de interconexão
entre dois espaços, entre uma dimensão mísitca da representação e uma dimensão concreta do
espaço.

No caso da experiência imagética de Florêncio, esse choque se dá propriamente entre dois tempos.
A memória passada se constitui exatamente no momento em que o artista traça seu percurso.
Retornamos aqui a ideia de cartografia como um método de discurso sobre a realidade para as
Artes. A impossibilidade de uma imagem identificatória, ele interpõe um gesto de ação, tático na
medida em que se utiliza do território da cidade para propor um choque entre dois momentos
históricos, revelando determinado teor político dos processos que ocorrem no presente.

Nesse gesto configura-se propriamente a dimensão performativa de sua obra. Ela não se dá aqui por
um elemento exterior as imagens. Não se trata mais de uma organização formal, como aquela que
marcava a obra de Calle. Nem de uma identificação de um texto de registro que acompanhe seu
processo. Já não se trata de falar de si. Ela se dá pela costura que torna as imagens partes de um
mesmo projeto conceitual. Nesse sentido, como em Calle, o artista consuma uma performatividade
camuflada.

Aqui porém, mais do que a miragem de um encontro que a fotografia nos forneceria, no caso de
Florêncio a imagem toma o lugar de um testemunho de uma presença outra. O Outro enquanto
presença revitalizada artificialmente pela imagem .

Os objetos recolhidos em seus percursos servem como elementos condutivos de um sentido então
perdido. Eles constituem uma materialidade aleatória, os resquícios das populações que dalí foram
expulsas por conta do caráter expansionista da cidade moderna. Testemunho de um
desaparecimento, aqui a imagem já não encontra outra forma de encarar o problema entre uma
dimensão privada e pública, uma vez que se trata de um trabalho com objetos. Podemos associá-lo
sua obra a frase de Man Ray, que nos diz da necessidade de, ao trabalhar com a imagem, identificar

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“o que tragicamente sobreviveu a uma experiência” (DIDI-HUBERMAN, pg. 214) .Os No lugar de
uma dessubjetivação do olhar humano, como colocado em Calle - lançado como matéria
fotográfica - há uma ressubjetivação dos objetos como testemunhos de uma presença que
desaparecera. A fotografia desses objetos assume mais um papel de registro da situação do que um
aspecto de constituição formal. Não significa, contudo, que a obra se dê a partir de um aspecto
funcional - dela escapa na medida justamente que se inventa enquanto se performa.

A fotografia digital, em sua onipresença e eficiência, ganha o papel de suporte para um discurso
sobre a cidade que se dê a partir de uma presença em um tempo mais aceletado. Por outro lado, ela
perde seu caráter específico. Ferramenta de um discurso que passa por outras instâncias temporais,
como a Antropologia e a editoração, ela encontra-se imersa em um regime do gráfico, que coaduna
as imagens com uma realidade textual. No livro, as imagens escondidas de nós no interior de
algumas páginas dão conta também de um estado perceptivo do sujeito na cidade moderna: dado a
partir de um regime de saturação de imagens. Dada essa virtualização total da experiência urbana -
que tem seus primórdios na cidade moderna informatizada do flaneur benjaminiano, o trabalho de
Florêncio parte de uma busca por uma presença que se apagou. Nesse sentido ele reencontra sua
materialidade na medida em que se torna resquício de uma História. Nesse regime virtual, a
presença já não pode se dar em sua concretude apenas, mas a partir de uma divisão em níveis. A
imagem se estabelece assim enquanto intermédio relacional. A partir de uma significação concreta,
ela alinha uma ideia de presença com a sensorialidade que toma os objetos. A imagem se torna
assim um elemento que causa um sintoma - uma interrupção na ordem do pensamento - e um
conhecimento; A concepção de estabelecer outra linearidade para a história o complemento aqui do
pensamento de Benjamin para a Arte. Didi-Huberman nos diz ser surpreendente que é
surpreendente que o teórico tenha exigido aos artistas o mesmo papel que havia reservado aos
historiadores: escovar a realidade a contrapelo”. (pg. 214) E segue: “o artista e o historiador
teriam, portanto, uma responsabilidade comum, tornar visível a tragédia na cultura (para não
apartá-la de sua história), mas também a cultura na tragédia (para não apartá-la de sua
memória).”

O livro enquanto aspecto formal se dobra sobre o discurso em ambas as obras. Encontra porém duas
definições bem distintas. Em Calle ele assemelha-se a um diário, remontado a partir das imagens -
um panorama desmembrável a partir da experiência. Na de Florêncio ele constituí-se de seus
fragmentos. A imaginação do espectador, mais do que se confrontar com um universo estruturado,

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deverá preencher as elipses e bloqueios que compõem o percurso. Tais elipses são também as
matérias com que o artista deverá lidar para reaver sua versão de uma história esquecida.

Didi-Huberman, ao refletir sobre as imagens, nos diz que elas encontram-se em um lugar de uma
“encruzilhada dos caminhos”. Ele remonta a História da Biblioteca de Warburg, na qual todos os
livros sobre imagens, em diversas áreas, como a da ilustração científica ou do imaginário político,
não poderiam se dar sem o uso cruzado de outras duas seções intituladas Falar e Atuar (pg. 210).
Ele defende que a imagem napenas como um traço visual do tempo, e não como apenas um corte
praticado no mundo dos aspectos visíveis. Temos esses fatalmente anacrônicos.

Essa anacronia pode ser localizada na obra de Calle a partir de uma regime temporal simultâneo na
dramaturgia de si e do personagem que busca - Henry B. Na tentativa de evitar não um encontro
presencial, instala-se uma dimensão trágica; uma incompartibilidade de tempos, na medida em que
a fotógrafa encontra-se em uma espécie de circuito urbano, no qual a localização desse Outro não é
possível. No caso da proposta de Florêncio, a anacronia transporta-se para o plano do Discurso:
perdido o objeto, é a partir das conjunções e disjunções da experiência do artista em relação a
experiência de um outro tempo que a retórica de sua obra se constitui. É também esse gesto que
retira a obra de uma esfera individual e a coloca em perspectiva com uma crítica política que o
artista tece.

Esse passado com que lida é ao mesmo tempo concreto e imaginativo nos fala também um pouco
sobre o papel que a imagem poética ocupa aqui: “Desde Goethe e Baudelaire, entendemos o sentido
constitutivo da imaginação, sua capacidade de realização, sua intrínseca potência de realismo que a
distingue, por exemplo, da fantasia ou da frivolidade.” (DIDI-HUBERMAN, p.208)

A obra de Florêncio constitui-se assim aqui enquanto uma arqueologia, na qual o trabalho do artista
é o de uma ordenação de determinada experiência, a criação de uma espécie de outra linearidade,
agora no nível do discurso. A arqueologia relaciona-se aqui também a um regime contemporâneo da
fotografia muito distante daquele que Calle encarava na década de 80. Já não se trata da crise de
uma imagem-ação representada mas de um apagamento da figura humana e sua tentativa
recuperação a partir dos resquícios de presenças.

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Didi-Huberman nos diz como a imagem nunca se impôs com tanta força em nosso universo
estético, técnico e cotidiano, e para tal passa a pensá-la como um agenciamento capaz de conectar
diferentes linguagens. Ele nos fala dessa imagem como resultado de um convívio entre uma
natureza de documento e objeto de sonho, assim como objeto da ciência e não-saber. Ele se
pergunta então qual a capacidade de colaboração das imagens para o conhecimento histórico; se
trata mesmo de constituir uma arqueologia.

Arqueologia do saber das imagens, e, se fosse possível; dever-se-ia seguir-lhe uma síntese que poder-se-ia
intitular As imagens, as palavras e as coisas. Em resumo, retornar e reorganizar uma enorme quantidade
de material histórico e teórico. Talvez baste, para dar uma idéia do caráter crucial de tal conhecimento —
quer dizer, de seu caráter não específico e não fechado, devido à sua natureza mesma de cruz, de
“encruzilhada dos caminhos” (DIDI-HUBERMAN, p.209)

E segue adiante: Não se pode falar do contato entre a imagem e o real sem falar de uma espécie de
incêndio. Portanto, não se pode falar de imagens sem falar de cinzas. A obra de Florêncio aqui
analisada parte justamente de uma tentativa de articulação de um discurso histórico a partir dos
restos de uma rememoração da experiência - que se constitui em palavras e imagens.

...sabemos que cada memória está sempre ameaçada pelo esquecimento, cada tesouro ameaçado pela
pilhagem, cada tumba ameaçada pela profanação. Assim, cada vez que abrimos um livro (...)—, talvez
devêssemos nos reservar uns minutos para pensar nas condições que tenham tornado possível o simples
milagre de que esse texto esteja aqui, diante de nós, que tenha chegado até nós. Há tantos obstáculos.
Queimaram-se tantos livros e tantas bibliotecas. E mesmo assim, cada vez que depomos nosso olhar sobre
uma imagem, deveríamos pensar nas condições que impediram sua destruição, sua desaparição. Destruir
imagens é tão fácil, têm sido sempre tão habitual.

A partir das imagens, o artista pode constituir aqui um trabalho de montagem no sentido que nos
fala Benjamin. Tal montagem se dá na obra de Florêncio principalmente a partir de uma articulação
das ausências como elemento discursivo. Há um esvaziamento do papel imagético em detrimento
de outras experiências.

Nesse sentido, a imagem em Florêncio é aquela que arde a partir de um resplendor (DIDI-
HUBERMAN, p. 216), constituindo-se a partir de sua própria consumação. Também o objeto-livro
no qual o artista rememora sua obra encontra essa natureza de instituir-se enquanto um depositório
do real e um risco de desaparição.

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Didi-Huberman nos fala aqui que seria necessário portanto identificar a arte a partir de sua função
vital, e ver nas imagens o lugar onde se expressam os sintomas, e não os sintomas de uma
culpabilidade, papel esse que se dá a partir de um referencial identificatório e policialesco. A
imagem torna-se assim indício de uma época na medida que anuncia incêndios por vir”. (pg. 215)

Nesse sentido a experiência da obra de Florêncio se dá justamente como uma imagem bifurcada -
entre uma rememoração da experiência - que a imagem nos dá acesso - e uma dimensão háptica da
experiência perceptiva do sujeito a partir do livro. Essa hapticidade parte de um estado de
incompletude na relação entre o sujeito e aquilo que este retém oticamente. Ela se abre para outros
sentidos que não aquele determinado pela visão. Esteticamente, em sua proposta de editoração, sua
linguagem háptica nos alcança na medida em que experimentamos o livro; ou seja, em que nos
perdemos de um objeto que, todo feito suporte, é destrinchado a partir da interatividade do
espectador com seus desdobramentos e texturas.

Apesar da materialidade dos objetos, Florêncio parte de um percurso imaginário, é como se o artista
se valesse da figura da Muralha para chamar atenção para uma outra segregação que foi imposta aos
moradores dessas regiões: o de uma invisibilização de suas vivências; o potencial material que
ganha a memória aqui em suas múltiplas recombinações encontra também o sintoma de uma
ardência das imagens, sua capacidade de, mesma tornada cinzas, sobreviver (pg. 216).

Para tal sobrevivência, porém. é necessária uma retorno interativo com essaa imagem enquanto um
objeto inanimado; só assim ela poderá abrir um campo e estabelecer-se como disparadora de
imaginários: “para sabê-lo, para senti-lo, é preciso atrever-se, é preciso acercar o rosto à cinza. E
soprar suavemente para que a brasa, sob as cinzas, volte a emitir seu calor, seu resplendor, seu
perigo. Como se, da imagem cinza, elevara-se uma voz: “Não vês que ardo?”. (pg. 216).

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