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8/20/2017 Publicidade criou falsa ideia de que a velhice é a pior parte da vida - 18/08/2017 - Ilustríssima - Folha de S.

Paulo

Publicidade criou falsa ideia de que a
velhice é a pior parte da vida
Ricardo Borges/Folhapress

Ney Matogrosso canta no 28º Prêmio da Música Brasileira, onde foi homenageado

GIULIANO CEDRONI

18/08/2017 06h00

"Eu não sei."

Depois de meses pesquisando a extensa e impressionante obra da fotógrafa anglo­
brasileira Maureen Bisilliat, de mais de sete horas de conversas, de passar alguns dias com
a lente da Alexa colada nessa senhora de 86 anos, essa foi sua frase mais corajosa.

"Eu não sei", repetia ela para a câmera de tempo em tempo, não sem antes refletir
ponderada e delicadamente a cada pergunta. Maureen, que se embrenhou nos fundões do
Brasil ainda nos anos 1960 para revelar o Xingu aos brasileiros em fotografias clássicas,
referia­se não às questões de enquadramento, luz e ótica, mas às grandes questões da
vida, como amor, família, arrependimentos.

O envelhecimento da população é um dos maiores triunfos da humanidade e também um
de seus grandes desafios. A proporção de pessoas com 60 anos ou mais está crescendo
mais rapidamente que a de qualquer outra faixa etária.

Até 2025, espera­se um crescimento de mais de 200% (algo em torno de 600 milhões) no
número de pessoas consideradas velhas no mundo. Por mais que o mercado e a
propaganda tentem esticar a juventude à base de slogans como "a melhor idade", a velhice
é um fato ­e, pasmem, não é uma palavra pejorativa.

"De época remota", "que tem idade avançada", "que tem muito tempo de existência". Eis
algumas definições oferecidas pelo dicionário quando buscamos a palavra "velho", que vem
do latim vetulus. Em nenhuma existe a sugestão de que a velhice esteja inexoravelmente
ligada a algo negativo.
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8/20/2017 Publicidade criou falsa ideia de que a velhice é a pior parte da vida - 18/08/2017 - Ilustríssima - Folha de S.Paulo

Ainda assim, a publicidade conseguiu convencer bilhões de pessoas de que ser
considerado velho é das piores coisas que podem acontecer a um ser humano.

Por princípio ninguém quer contratar um velho, namorar um velho, abrir um negócio com
alguém considerado velho. No entanto, quando nos deparamos com situações­limite na
vida, é na velhice que, ironicamente, encontramos confiança. Basta precisar escolher um
piloto para um voo ousado ou um cirurgião para uma operação de risco.

IMAGEM TABU

Foi por causa de dados e incongruências como esses que iniciamos uma análise midiática
sobre o tema antes de rodar a série "Outros Tempos_VELHOS", em cartaz no canal MAX
(terças, às 23h).

A velhice é constantemente mencionada na imprensa, em novelas e em palestras, mas
poucas vezes mostrada. É mais palatável levar um gerontólogo a um programa matutino
para falar sobre Alzheimer do que ir à casa de alguém que está perdendo os sentidos para
registrar o processo.

Também ficou claro na pesquisa que a imensa maioria dos programas e reportagens sobre
a velhice no Brasil prefere olhar o tema sob uma perspectiva positiva. Senhores atletas,
senhoras tatuadas e outros idosos animadíssimos inundam telas e páginas da mídia como
se fossem um retrato fiel dessa classe.

Basta olhar ao redor para encontrar exemplos nada glamorosos da velhice: septuagenários
deprimidos, senhorinhas sem recursos para arcar com os cuidados necessários, filhos que
não sabem como lidar com essa etapa da vida dos pais...

Logo no início do processo de criação da série documental, impunha­se o desafio: mostrar
a velhice de forma crua, mas digna, sem recorrer a especialistas ou estudiosos. Só
ligaríamos as câmeras diante dos velhos e velhas acima dos 60 anos.

A SOLIDÃO DE NEY

Ney Matogrosso foi das figuras mais impressionantes a despontar no processo de definição
dos 16 protagonistas. Aos 76 anos, alcançou equilíbrio raro entre ética, estética e postura.
Postura em relação à arte, ao sexo, à política, ao dinheiro, à mídia, postura de corpo.

Foi no conceito do "ser independente" que o jovem filho de militar se encontrou, deixando
para trás uma vida castradora para se transformar em grande artista. Pode­se não gostar
da música de Ney, mas só o mais preconceituoso não respeitará a trajetória do intérprete
que é, segundo ele próprio, "homem, mulher, ave, bicho... estrela". Sobretudo,
independente.

Essa independência, entretanto, deixou­lhe uma herança palpável na terceira idade, a
solidão. Depois de ter vivido três grandes amores ­um deles com Cazuza­, ele hoje vive só.
Entre os treinos de academia, ensaios com músicos ou momentos dedicados a desenhar
retratos de estranhos, atravessa a velhice sem companhia afetiva. "Agora vou ter que
encarar mais essa", diz, resiliente.

Em tempos de discussão febril sobre a reforma da Previdência, vale olharmos com mais
afinco para essa fase da vida. Entre 1980 e 2000, a população brasileira com 60 anos ou
mais cresceu 7,3 milhões, totalizando ao fim do século mais de 14,5 milhões de indivíduos.
O aumento da expectativa média de vida também foi sensível, oscilando de 45,5 anos em
1940 para 75,5 anos em 2015.

Estudos contemporâneos já dão conta do nascimento de uma "quarta idade", que
começaria após os 80 anos. De fato, o octogenário é ser humano bem distinto de seu par
com "apenas" 60 primaveras...
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MAGNATA DO ADUBO

É o caso de seu Fernando Cardoso, com seus impressionantes 102 anos e aparência de
70. Ainda na juventude, nos anos 1940, ele atentou para o imperativo de produzir alimentos
em escala. Fundou então a empresa de adubos Manah, aquela do slogan "Com Manah,
adubando dá".

Karime Xavier/Folhapress

Fernando Penteado Cardoso, engenheiro agrônomo, que tem 102 anos

Logo aquilo viraria um pequeno império. No ínterim, seu Fernando formou uma família
enorme. No ano 2000, descansou satisfeito quando a empresa foi vendida por uma soma
vultosa. Missão cumprida, faz crer o modelo capitalista ocidental. Mas a velhice é mais
complexa do que imaginamos...

Depois de perder a mulher, seu Fernando dispunha de algumas opções de moradia. Os
filhos disputavam­no, alegando que a casa dele era grande demais para um homem só.
Sem alarde, o industrial escolheu viver num lar de idosos.

Decidiu passar a fase final da vida ao lado de seus pares. Algo o deixa mais tranquilo ali,
no casarão adaptado para cadeiras de roda e banhos assistidos, do que solitário em seu
palacete.

Na conversa que tivemos para a série, a visão de seu Fernando sobre o ambiente ilustra a
forma como o tempo brinca com anciãos. Diante da constatação de que o manejo dos
recursos naturais pelo homem era visto com muito menos rigor na juventude dele do que
hoje, palpita: "Esses ambientalistas fizeram uma confusão danada".

HERMETO, O REBELDE

Hermeto Pascoal, 81, tem uma visão mais moderna da natureza. Na infância, passada no
sertão de Alagoas, conheceu os deleites da mata de forma lúdica e nada monetizada.
Caótico no pensamento, na maneira de viver e na sua expressão artística ­a música­,
Hermeto está mais conectado com o pensamento verde contemporâneo que seu Fernando,
com quem divide um episódio do programa.

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Enquanto o industrial não esconde o cansaço diante de tantas transformações, Hermeto é
revolucionário ­e isso até na forma como administra seus bens, as milhares de
composições que criou ao longo da vida. Em determinado momento, ele abriu mão dos
direitos autorais de sua obra, aplicando um magnífico golpe "copyleft" (livre direito de cópia)
no coração do capitalismo.

O gesto de rebeldia, descobrimos ao nos aproximar de seu círculo íntimo, não levou em
conta justamente a família, beneficiária da eventual herança.
 
Dos 16 personagens retratados nos oito documentários (um famoso e um anônimo por
episódio), nenhum causou tanto assombro na equipe quanto José Virgulino, o Zezinho, 76,
que passou a vida na ilha do Araújo, em Paraty (RJ).

Católico fervoroso, pescou no mar o seu sustento e casou­se com Dorvalina. Logo veio a
primeira gravidez, interrompida por complicações. Na segunda, novamente a criança não
"vingou". Ao longo da vida, dona Dorvalina engravidou dez vezes; em todas as ocasiões, a
criança ou nascia sem vida, ou falecia dias depois do parto.

Quando o convidamos a participar da série, Zezinho tinha perdido a companheira havia
apenas três meses. Sua visão de mundo, a maneira de lidar com a dor e a generosidade
com a vila de pescadores são mais valiosos no estudo da velhice que volumes inteiros da
sociologia moderna. Naturalmente e sem estudos formais, Zezinho foi virando o líder
espiritual de sua comunidade, onde ganhou o apelido carinhoso de Pai Zezinho. )Seu par
no episódio é a mais pop das líderes espirituais no país, Monja Coen, 70, que alcançou
status similar ao de Zezinho por caminhos distintos.

Alberto Rocha/Folhapress

Monja Coen Roshi no templo de sua casa

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Depois de uma incursão pelo jornalismo, a jovem foi parar na Europa, onde acabou presa
por tráfico de drogas.

Na solidão da cela, a meditação foi sua grande companheira, e daí para a vida monástica
foi um caminho natural, afirma ela. Mas a sobreposição das duas trajetórias, minuto a
minuto, cria uma terceira narrativa, a de que não controlamos a vida como desejamos.

Coen e Zezinho não poderiam ser mais diferentes, mas algo em suas vidas os aproximou.
Não na forma, não no discurso, mas na necessidade de acreditar que é preciso haver algo
mais nessa jornada que apenas peixe e jornal.

BRASIL IDOSO

Até 2025, segundo a OMS, o Brasil será o sexto país em número de idosos. Ainda há muita
desinformação sobre a saúde do idoso e as particularidades e desafios do envelhecimento
populacional para a saúde pública. Mas é fato que os brasileiros vão viver mais e que a
população vai envelhecer.

Um caso de envelhecimento excêntrico é o da editora de moda Regina Guerreiro, 77.
Aquela que foi por décadas a mulher mais temida e respeitada da indústria da moda no
Brasil dedicou sua vida ao trabalho. Casou­se várias vezes, mas não teve filhos, e nunca
escondeu que sua grande paixão estava na vida profissional. Passa os fins de semana
sozinha, lembrando seu passado glamoroso enquanto dirige a criação de uma versão
fantasiosa de seu próprio funeral.

Paulo Troya + Renan Teles ­ 20.ago.2014/Folhapress

A jornalista de moda Regina Guerreiro

Vilma Nishi, 67, é a personagem mais nova. Depois de uma temporada trabalhando como
enfermeira em hospitais, começou a estudar os benefícios do parto normal e transformou­
se numa das parteiras mais procuradas do Brasil.

Divorciada e com duas filhas, hoje toma conta de sua mãe, uma senhora acamada que
mais parece personagem do cineasta japonês Akira Kurosawa. Essa casa, com quatro
mulheres de diferentes idades, é dos lugares mais simples e intrigantes de toda a série. Ali
não há grandes obras de arte nas paredes (como na casa de Emanoel Araujo), ou uma
biblioteca singular (como no escritório de Hélio Bicudo). Mas algo insiste em chamar a
atenção. Logo se percebe que é o amor, matéria­prima de que Vilma se serve fartamente
na construção de sua velhice.

É respectivamente com Regina e Vilma, com a imagem de uma morte encenada e a de um
parto bem real, que o retrato da velhice no Brasil se abre e se fecha.

Muitos me perguntam o principal aprendizado que a longa pesquisa sobre a terceira idade
legou. Minha resposta é a de que a velhice é a soma de todas as nossas decisões ­

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certamente a das grandes, como a relação com família e amigos, a escolha da carreira, o
fato de ter ou não filhos, a posição política.

Ao mesmo tempo, muito tem a ver com as decisões médias, como o abandono de uma
faculdade, a troca repentina de emprego, o investimento numa grande viagem.

Mas a velhice também é, curiosamente, a soma das pequenas decisões do cotidiano, como
o "sim" para o almoço repentino com um amigo distante e o "não" para um trabalho
desrespeitoso, porém lucrativo. Ou o simples ato de baixar o celular numa praça para
observar as pessoas à volta.

Como me ensinou um velho cearense, tudo o que pensamos e falamos não chega perto,
em importância, da maneira como agimos. Contudo, basta uma reflexão mais calma sobre
o que aprendi com a pesquisa acerca da velhice para me confrontar mais uma vez com a
frase de Maureen: "Eu não sei".

*GIULIANO CEDRONI,* 44, fotojornalista, repórter e roteirista, escreveu e codirigiu, ao lado
de Eduardo Rajabally e Susanna Lira, a série "Outros Tempos_VELHOS" (Prodigo Films),
em exibição no canal MAX.

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pior­parte­da­vida.shtml

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