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(P-094)

O SOL CHAMEJANTE

Autor
CLARK DARLTON

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Os antepassados foram postos a dormir há dez mil anos —
agora precisa-se deles para reconstruir o grande império.

Com o descobrimento na Lua de uma espaçonave arcônida


acidentada, foram lançados os alicerces para a unificação de toda a
Humanidade terrana e, desta unificação, surgiu o Império Solar.
Ninguém podia supor, nem mesmo Perry Rhodan, quantos esforços e
firmeza de ânimo seriam necessários, no correr dos anos, para manter
este Império frente aos ataques internos e externos.
A mais séria ameaça à Humanidade, que teve seu clímax na
invasão dos druufs e na batalha em defesa do Império Solar, pôde ser
debelada graças ao eficaz auxílio de Árcon. E a crise na política
interna, provocada pelo desertor e traidor Thomas Cardif, foi removida
por Gucky.
Porém, um desenvolvimento constante da Humanidade só será
possível quando houver uma paz definitiva na Galáxia — e até lá,
parece haver ainda um longo caminho...
O próprio Atlan, o imortal, que há pouco tempo substituiu a
gigantesca máquina eletrônica que costumava sufocar no nascedouro,
com suas frotas robotizadas, qualquer tentativa de revolução contra o
poder central de Árcon, é o primeiro a desejar a paz.
Atlan, agora com o nome de Imperador Gonozal VIII e Perry
Rhodan, o administrador do Império Solar, já por simples instinto de
conservação, se apóiam mutuamente em suas aspirações.
Não faz muito tempo, foi assinado um pacto de assistência mútua
entre Árcon e a Terra. Assim, as velozes espaçonaves do Império Solar
estão preparadas para entrarem em ação em qualquer lugar da
Galáxia, onde a paz e a ordem forem perturbadas.
Atlan sabe que mais dia, menos dia, Árcon poderá desaparecer, se
não conseguir agrupar um bom número de homens não degenerados...
Será que os “adormecidos”, descobertos por Gucky nos confins
da Via Láctea, poderão transformar-se em auxiliares de Atlan? Ou
serão esses possíveis auxiliares devorados pelo anão chamejante?

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Perry Rhodan — Administrador do Império Solar.
Bell e Gucky — Que passam as férias juntos, nas proximidades de Terrânia.
Wilmar Lund — Comandante da Arctic.
D-3, M-4, M-7, C-l e O-1 — Que fazem uma transição.
Ceshal, Ekral, Alos e Tunuter — Os antepassados que despertam.
1

A comunicação entre o universo einsteiniano e a dimensão temporal dos druufs


ainda existia. Porém, a cada dia, a zona de descarga tornava-se pior. Pelo que se sabia, a
“fenda” constituía a única passagem natural para o império da raça agressiva dos druufs,
mas não continuaria sendo por muito tempo. Era cada vez mais raro as espaçonaves
daquela raça estranha atravessarem o funil ou zona de descarga, nome que os cientistas
terranos davam à fenda. Ao chegarem lá, defrontavam-se com as forças do Império Solar,
que patrulhavam a área, e as unidades de Árcon, que ali desempenhavam sua missão de
vigilância.
Como já se disse, era cada vez mais raro que os druufs aparecessem. Entretanto,
quando o faziam, avançavam com um arrojo e uma obstinação sempre crescente. Sabiam
que, dentro em breve, se fecharia para eles a porta aos imensos tesouros do universo
normal dos homens, e que, depois disso, voltariam a ser prisioneiros de sua dimensão
temporal, até que o acaso fizesse surgir um funil de descarga em outro ponto.
Permaneceriam numa dimensão em que o tempo fluiria 72 mil vezes mais devagar que no
universo einsteiniano.
Nesses últimos dias e semanas aconteceram coisas estranhas.
De qualquer maneira, o relatório apresentado pelo Tenente Grenoble dava o que
pensar.
Grenoble era comandante de uma gazela que realizava vôos de patrulhamento na
periferia do funil de descarga. O veículo de reconhecimento de longa distância mantinha
contato permanente com a nave-mãe. Esta pertencia a uma poderosa esquadrilha de
guerra da Frota Espacial Solar.
O Tenente Grenoble estava sentado ao lado do piloto, na sala de comando do disco,
cujo diâmetro era pouco superior a trinta metros. Tinha à sua frente os controles e não
tirava os olhos da tela.
— O que acha, sargento Raft?
O sargento Raft era de estatura mediana e chamava a atenção pelo nariz adunco, que
lhe rendera o apelido de índio. Vez por outra chegava mesmo a afirmar que um dos seus
antepassados fora cacique dos apaches. Mas não era por isso que costumava ser
designado para missões nas quais o “faro” desempenhava um papel essencial.
— Com este silêncio fico meio desconfiado — respondeu e corrigiu a rota do
veículo espacial, fazendo-o chegar mais perto do funil de descarga. — Se nossos
instrumentos estiverem funcionando bem, posso afirmar que a fenda ainda tem dez
quilômetros de largura. Se quiser saber minha opinião, tenente, acho que a situação não
oferece esperanças para os druufs.
— Quanto mais desesperada a situação deles, mais arrojadas se tornam suas ações.
Gostaria de saber o que vêm fazer em nosso Universo, se não conseguirão sair daqui. Até
parece que procuram alguma coisa que receiam perder, quando a fenda se fechar
completamente.
Raft fez um gesto de assentimento.
— É exatamente o que penso. Mas o que estariam procurando?
O Tenente Grenoble não soube responder.
Os dois homens voltaram a ficar em silêncio e passaram a dedicar mais atenção às
telas. No lugar em que se encontravam, a mais de seis mil anos-luz da Terra e num ponto
mais próximo ao centro da Via Láctea, as estrelas eram mais numerosas e ficavam mais
próximas umas às outras. Estranhas constelações destacavam-se contra o fundo escuro do
nada e emitiam um brilho extraordinariamente forte. Em especial, uma estrela branco-
azulada, que ficava à direita da sua trajetória. Seu fogo ardia tranqüila e constantemente.
Apesar da frieza aparente, tinha-se a impressão de que aquele sol era quente e
chamejante.
Nem Grenoble nem Raft desconfiavam de que aquele sol azul ainda desempenharia
um papel muito importante, inclusive para os dois. E mais especialmente para os druufs.
Mas, antes disso, aconteceu uma coisa bem diferente.
Na verdade, era impossível que um corpo metálico se mantivesse oculto nas
proximidades de um instrumento de observação do tipo dos que se encontravam em
qualquer nave. Com o avanço da técnica, esses aparelhos foram aperfeiçoados, fosse qual
fosse a raça que os tinha criado. Por isso os dois homens, que se encontravam na sala de
comando da gazela, não compreenderam por que a frota dos druufs, que avançou
subitamente para seu Universo, não tomou conhecimento de sua presença.
Eram cerca de dez naves compridas e cilíndricas que atravessaram a fenda e,
deslocando-se à metade da velocidade da luz, seguiam diretamente em direção ao sol
azul.
Raft contemplou-as boquiaberto, incapaz de fazer qualquer coisa. Já o Tenente
Grenoble teria feito algo, se fosse necessário.
As dez naves começaram a aumentar a velocidade e acabaram desaparecendo em
meio à confusão de estrelas.
Grenoble esteve a ponto de dizer alguma coisa, quando mais cinco naves surgiram
na fenda. Nesse meio tempo, Raft também recuperara o autocontrole a ponto de
conseguir dominar seus atos. Colocou as mãos robustas sobre os controles, a fim de poder
atirar a gazela para o hiperespaço de um segundo para o outro. Ali estaria em segurança.
A pequena nave de reconhecimento não estaria em condições de enfrentar um cruzador
dos druufs.
Mas ainda não havia necessidade de saltar para o hiperespaço.
Uma coisa estranha aconteceu com as cinco naves.
Pararam abruptamente e mantiveram-se imóveis. A imagem das telas dava a
impressão de um filme que deixara de correr de repente, transformando-se numa simples
fotografia. Depois disso, seus contornos se desmancharam, transformando-se em sombras
apagadas, cujas silhuetas mal se destacavam contra as estrelas que ficavam atrás delas.
Depois de algum tempo, as estrelas brilharam através das naves.
Por fim, as cinco se tornaram invisíveis.
Grenoble respirava pesadamente e contemplava a tela frontal, na qual não se via
nada além do espaço vazio. As mãos de Raft soltaram os controles. Virou a cabeça e fitou
o comandante com uma expressão de perplexidade.
— O que... o que aconteceu? — perguntou muito confuso. — Será que descobriram
um meio de se tornarem invisíveis?
O tenente sacudiu lentamente a cabeça.
— Não acredito. Se não me engano muito, o desaparecimento não estava previsto e
foi completamente involuntário. Por que iriam parar? Tenho uma suspeita, mas é
fantástica demais para ser verdadeira.
— Fale, sir — disse Raft em tom insistente. — Será que pode haver alguma coisa
que seja mais fantástica que a realidade?
Grenoble acenou com a cabeça e voltou a fitar a tela, como se esperasse que as
cinco naves voltassem de um instante para outro.
— É o funil de descarga, Raft. A abertura fechou no momento exato em que as
cinco naves passavam pela mesma. As naves foram empurradas de volta para o universo
dos druufs, ou atiradas para um espaço que nos é totalmente desconhecido. Talvez nunca
mais consigam voltar e estejam perdidas. Olhe para o instrumento de observação, Raft.
Ele já não mostra o funil de descarga.
Raft examinou os instrumentos e fez um gesto de assentimento.
— Tenho a impressão de que sua suposição é correta, sir. Por aqui não existe mais
nenhuma fenda. Mas... — apontou para o sol azul — o que aconteceu com as dez naves
que conseguiram atravessar a área? Será que encontrarão o caminho de volta para sua
dimensão temporal? O que querem em nosso Universo? Por que não procuram destruir
nossa gazela? Ou será que aconteceu um milagre e não nos localizaram?
— Eles nos localizaram — disse Grenoble. — Acontece que não tiveram tempo
para se preocupar conosco. Ao que tudo indica, têm uma missão a cumprir. E, se não me
engano, esta missão deve ser executada nas proximidades da estrela azul.
Olhou para Raft.
— Tome a rota da unidade e salte dentro de trinta segundos. Tenho a impressão de
que Perry Rhodan estará muito interessado nas informações que temos para ele.
Neste ponto, o Tenente Grenoble não estava enganado e, talvez, nem mesmo no
resto.

***

A Drusus era uma gigantesca esfera de mil e quinhentos metros de diâmetro.


Pertencia à classe Império e era um couraçado espacial do Império Solar. Geralmente,
tinha por comandante o Coronel Baldur Sikermann, mas sempre que Perry Rhodan se
encontrava a bordo, o coronel passava a exercer automaticamente as funções de primeiro-
oficial.
Em comparação com a gazela, a sala de comando da Drusus era um gigantesco
compartimento semicircular, recheado com uma quantidade atordoante de painéis de
controle e instrumentos, entre os quais só as pessoas familiarizadas sabiam orientar-se.
Para compreender perfeitamente os segredos da Drusus, tornava-se necessário não só um
estudo minucioso, mas também um treinamento hipnótico especial.
David Stern, chefe da equipe de rádio, leu a mensagem do Tenente Grenoble em voz
alta e perguntou:
— O que devo responder, sir?
Perry Rhodan encontrava-se ao lado do Coronel Sikermann, à frente da tela oval de
visão global. Comparava a parte da Via Láctea avistada com um mapa estelar, aberto
sobre a estreita mesa encostada à parede.
Olhou para Stern.
— Quero que Grenoble traga a gazela para dentro do hangar da Drusus e se
apresente a mim.
Stern fez continência e dirigiu-se à sala de rádio, a fim de cumprir as ordens de
Rhodan. O Coronel Sikermann mostrava-se um tanto cético. Em comparação com sua
estatura baixa e musculosa, Rhodan quase chegava a parecer esguio.
— O senhor acha que as observações feitas por Grenoble têm alguma importância,
sir?
— Dificilmente existe alguma coisa que não tenha nenhuma importância —
respondeu Rhodan com um leve sorriso. — Nesta guerra contra os druufs, qualquer
observação, por mais insignificante que possa parecer, talvez assuma a maior
importância. A estrela azul parece ser uma espécie de agouro. O que será que os druufs
querem por lá?
— Quem nos garante que as dez naves realmente pretendam ir à estrela azul?
— Conhecemos os druufs e os métodos que costumam usar. Quando se dirigem a
algum objetivo nunca mudam de rota para enganar o inimigo. É o que nos diz a
experiência. Portanto, temos certeza de que vão à estrela azul.
Lançou um olhar para o mapa estelar.
— Trata-se de um sol muito quente, que fica a menos de três meses-luz daqui e
possui três planetas. São inabitados, mas habitáveis. Os druufs também respiram o
oxigênio. Bem...
— Os três planetas são habitáveis? — perguntou Sikermann em tom de
perplexidade.
Rhodan sorriu.
— É claro que não; apenas o terceiro planeta, o exterior. Tem o tamanho de nosso
Marte. Nele há muitas montanhas e desertos e pouca água. É muito quente. Acho que
vamos dar uma olhada por lá. É possível que o catálogo estelar, que nos foi legado pelos
arcônidas e pelos saltadores, não esteja atualizado. Providencie tudo que se torna
necessário, assim que Grenoble se encontrar a bordo. Avise as outras unidades.
Rhodan fez um sinal para Sikermann e afastou-se. Ao chegar à porta virou-se e
disse:
— Estarei no meu camarote. Assim que Grenoble se apresentar ao senhor, mande-o
procurar-me.
O Coronel Sikermann ficou na sala de comando. Tinha uma vaga sensação de não
ter compreendido perfeitamente o raciocínio de Rhodan.

***

A gazela pousou no interior do hangar da Drusus. O Tenente Grenoble e o sargento


Raft foram conduzidos à presença de Rhodan e apresentaram seu relatório. O que mais
despertou o interesse de Rhodan foram as cinco naves desaparecidas. Porém Perry
também não encontrou qualquer explicação cabal para o fenômeno. Depois de algum
tempo convocaram o Coronel Sikermann.
— O mais importante não é localizar e expulsar as dez naves dos druufs — disse
Rhodan. — Devemos raciocinar em termos táticos. De certa maneira os seres-toco
representam um meio para nós atingirmos certo fim. Queremos provar aos povos
auxiliares que não estamos dispostos a permitir que qualquer intruso escape sem ser
molestado. Atlan tem problemas de sobra no Império. Podemos ajudá-lo, desde que
provemos ser um aliado forte e decidido. Acho que o senhor compreende o que quero
dizer, Sikermann, não compreende?
— O senhor quer atacar os druufs apenas para dar uma prova de força aos nossos
aliados?
— É mais ou menos isso — confirmou Rhodan com um sorriso. — Uma lição desse
tipo não fará nenhum mal aos saltadores, isto sem falar nos aras. Iremos com a Drusus
aos três planetas do sol azul e os revistaremos. Se encontrarmos os druufs por lá, nós os
atacaremos e destruiremos.
— Vamos destruí-los, sir?
— Isso mesmo. Não se esqueça de que eles não fazem prisioneiros e pretendem
conquistar nosso Universo. Será um ato de legítima defesa. Além disso é possível que as
dez naves estejam tripuladas por robôs. O senhor sabe perfeitamente, Sikermann, que os
druufs gostam de usar robôs, em missões perigosas. Será que isto basta para aliviar sua
consciência?
— Sem dúvida — respondeu Sikermann em tom de alívio. Chegou mesmo a sorrir.
— Quer que avise a frota? Quem nos acompanhará?
— Iremos sós. No entanto, informe as outras unidades sobre nossas intenções. Pelo
que conheço dos saltadores, eles enviarão um observador secreto, e não devemos
decepcioná-lo. Partiremos dentro de trinta minutos.
Depois que Sikermann se tinha retirado, Rhodan prosseguiu:
— Tenente Grenoble, o senhor permanecerá a bordo da Drusus com sua gazela.
Nos trinta minutos que se seguiram, as mensagens de rádio se cruzavam. Sikermann
avisou os outros comandantes da frota sobre a missão que pretendiam levar a efeito e
recomendou-lhes que continuassem a manter sob observação o funil de descarga. Devia-
se contar com a possibilidade de que outras unidades dos druufs tentassem avançar. Se
isso acontecesse, deveriam ser rechaçadas com todos os meios ou, caso resistissem,
serem destruídas.
Tanto os comandantes terranos como os arcônidas confirmaram o recebimento da
ordem. Apesar de todas as divergências, havia um acordo perfeito em relação aos druufs.
Aqueles seres de três metros de altura, vindos de outra dimensão temporal, eram tão
estranhos que nunca poderiam ser bons aliados. Por sua própria natureza, eram inimigos
comuns que deviam ser combatidos. Assim que a fenda no espaço se fechasse e a barreira
intransponível do tempo separasse os dois universos, podia-se voltar a pensar em si
mesmo e nos problemas de cada um.
Mas, por enquanto, o tempo para isso ainda não havia chegado.
Pouco antes da Drusus, depois de acelerar, dirigir-se ao hiperespaço, as suposições
de Rhodan se confirmaram. Dois cruzadores esguios seguiram-na. Ao observar o fato, um
sorriso de satisfação surgiu no rosto de Rhodan. Sabia que, com seus instrumentos, os
saltadores não teriam a menor dificuldade em localizar e calcular o salto da Drusus.
Sairiam do hiperespaço e se materializariam perto da estrela azul, menos de dois minutos
depois da Drusus.
A transição e a desmaterialização.
A rematerialização.
A menos de dez minutos-luz da estrela azul, a Drusus surgiu do nada e,
desacelerando fortemente, deslocava-se a grande velocidade em direção ao sol
chamejante. Os cálculos eletrônicos começaram a ser realizados automaticamente,
abrangendo a estrela central e os três planetas. Os dados foram expelidos sob a forma de
estreitas faixas de plástico. Os oficiais do setor de navegação os examinaram. As
informações constantes do catálogo estelar foram confirmadas.
— É apenas o terceiro planeta, conforme se supunha, sir. Tem o tamanho de Marte e
as condições são semelhantes, apenas é mais quente. Não é habitado. A atmosfera só é
respirável em determinadas áreas. Não há vegetação, com exceção de musgos e
cogumelos primitivos. Pouca água. Bastante montanhoso.
Rhodan ouvira atentamente. Olhava ininterruptamente para a tela, na qual o sol azul
ia crescendo. O terceiro planeta foi penetrando no campo de visão. O círculo pálido de
sua atmosfera brilhava como uma auréola de santo.
A três minutos-luz atrás da Drusus, duas transições abalaram a estrutura espacial. Os
observadores secretos haviam chegado ao seu posto. Rhodan fez um gesto zangado.
— Vamos desacelerar mais e circular em torno do terceiro planeta, Sikermann.
Procure localizar os druufs.
— Tomara que sua teoria seja correta, sir...
— Acha que os seres da outra dimensão não estão aqui? — Rhodan sacudiu a
cabeça. — Isso me deixaria muito admirado. É possível que pretendam construir uma
base em nosso sistema, tal qual nós fizemos no sistema deles. Infelizmente perdemos
Hades.
O planeta foi crescendo. Já se distinguiam certos detalhes. Na tela de popa viam-se
dois minúsculos pontos luminosos: eram as duas naves dos saltadores ou dos aras. Só
faltavam os druufs.
O sol azul era muito quente. Seus raios provocavam estranhos efeitos luminosos na
superfície do pequeno planeta. Felizmente a atmosfera rarefeita absorvia a maior parte da
luz azul, deixando passar a branca.
A Drusus atravessou as camadas superiores da atmosfera, desenvolvendo apenas
alguns quilômetros por segundo. Os instrumentos de observação atingiram todos os
cantos da superfície. Nos grandes desertos, a busca era fácil, já que por lá não havia
nenhum esconderijo. Mas nas extensas cadeias de montanhas o trabalho era bem mais
difícil. Os vales e desfiladeiros profundos ofereciam esconderijos de cuja existência
ninguém desconfiaria. Neles poderiam ser escondidas frotas inteiras, de tal forma que não
seriam encontradas rapidamente. Os raios dos instrumentos de busca só avançavam em
linha reta. Recorreu-se aos refletores de metais, capazes de localizar quaisquer objetos
metálicos bem abaixo da superfície. Era bem verdade que os mesmos também acusariam
a presença de depósitos de minério de elevado teor metálico. No entanto, o formato
destes permitiria que se percebesse do que realmente se tratava.
O Tenente Grenoble encontrava-se nos fundos da sala de comando, ao lado do
sargento Raft. A consciência começava a acusá-lo.
— Talvez nossa suposição não seja correta — disse em voz tão baixa que só Raft
podia ouvi-lo. — É possível que os druufs tenham modificado a rota e nem venham para
cá.
— De qualquer maneira, éramos obrigados a transmitir nossa observação — disse
Raft a título de consolo. — Se o chefe acredita que a mesma assume tamanha
importância, isso é com ele. Quanto a mim...
Rhodan virou a cabeça e sorriu.
— Os senhores se preocupam em vão. Se tivessem sonegado uma informação tão
importante, eu os mandaria prender. Posso garantir-lhes que a esta hora já estou
completamente satisfeito. A certeza de que os saltadores se grudaram aos nossos
calcanhares basta para compensar nossa excursão...
— Naves dos druufs à frente! — interrompeu o Coronel Sikermann.
Rhodan virou-se para a tela; parecia alarmado.
A Drusus desenvolvia apenas dois quilômetros por segundo e havia descido mais.
Uma cadeia de montanha fortemente entrecortada passava por eles, baixando para uma
planície. E nessa planície, a menos de vinte quilômetros da cadeia de montanhas, as dez
naves procuradas estavam paradas uma ao lado da outra.
Rhodan sentiu-se constrangido em atacar os druufs sem aviso, embora fosse fácil
destruir ao menos a metade das naves na primeira investida.
Foi por isso que a Drusus passou a pequena altura sobre as dez unidades e voltou
numa curva ampla, depois de ter ativado os campos defensivos, uma medida que se
revelou muito necessária.
Três das naves dos druufs decolaram e subiram vertiginosamente ao céu azul-escuro
do planeta. As outras sete naves abriram um mortífero fogo energético contra o
couraçado terrano, mas não conseguiram romper os campos defensivos da mesma. Quase
ao mesmo tempo Rhodan foi atacado pelas três naves que haviam decolado, e que agora
investiram de cima. Um dos torpedos passou ao lado da Drusus e foi cair bem em meio às
sete naves estacionadas. A chama da explosão fez com que Rhodan fechasse os olhos.
Quando voltou a abri-los, só restavam quatro naves, mas seus canhões silenciaram. Dois
torpedos detonaram nos campos defensivos e suas explosões não produziram o menor
efeito.
— Atacar! — ordenou Rhodan.
Os dois pontos luminosos só apareciam vagamente na tela de popa.
Sob o impacto do fogo da Drusus, as quatro naves dos druufs que ainda restavam
transformaram-se em nuvens de gases incandescentes. Era de supor que só havia robôs a
bordo, pois do contrário teriam decolado juntamente com as outras três...
As outras três...
Estas se preparavam para novo ataque, e a maneira como o fizeram constituía prova
evidente de que os controles estavam sendo manipulados por seres pensantes. Mas
Rhodan não tinha a intenção de considerar esse fato por ocasião do contragolpe que
pretendia desfechar. Queria dar uma mostra de força, pois tanto os druufs como os
saltadores só se impressionavam com a violência.
— Atacar! — repetiu num espaço de poucos segundos.
Grenoble e Raft testemunharam um acontecimento que até então só poderiam
imaginar em sonho. Cheios de admiração viram o chefe Perry Rhodan manipular os
controles ao lado do Coronel Sikermann e dar suas ordens.
O olhar do administrador tinha algo de extraordinário, mas de resto seu rosto não
traía a menor comoção. No entanto, Rhodan acabara de pronunciar a sentença de morte
de algumas centenas de druufs. Não o faria sem motivo, porque costumava poupar o
inimigo sempre que isso se tornasse possível. Só os matava para salvar a vida de outros
seres.
A Drusus mudou de rota e subiu ao céu numa velocidade tresloucada. Seguiu na
direção dos druufs que se mantinham na expectativa e que ainda não se haviam
recuperado da surpresa. Não deixaram que se escoasse em vão o prazo muito curto de que
dispunham para a fuga. Pelo contrário. Atacaram a Drusus com desprezo pela própria
vida.
Duas das naves precipitaram-se exatamente para dentro do fogo destrutivo do
couraçado espacial e desceram à superfície do planeta, totalmente desgovernadas. Antes
que fosse tarde, a terceira nave mudou de rumo e acelerou. Rhodan ficou satisfeito ao
constatar que seguia na direção dos dois minúsculos pontos de luz que se destacavam em
meio às estrelas.
— Vamos persegui-la, mas não destruí-la — disse, dirigindo-se a Sikermann.
Os dois observadores — que eram saltadores ou aras — deviam ter percebido em
tempo o perigo que os ameaçava, pois de um instante para outro os pontinhos luminosos
desapareceram. Os rastreadores estruturais da Drusus registraram dois hiper-saltos de
pequena intensidade.
Um sorriso contrariado surgiu no rosto de Rhodan.
— Não temos motivo para destruir esses druufs — disse, dirigindo-se a Sikermann.
— Quero que eles voltem ao seu Universo e contem aos seres de sua raça que eliminamos
qualquer intruso que penetre em nosso Universo. É possível que com isso compreendam
que será inútil tentar construir uma base em nosso mundo.
— Os druufs estão mudando de rota — disse Sikermann sem a menor comoção.
Rhodan fez um gesto de assentimento.
— Estão seguindo na direção do funil de descarga. Muito bem, coronel. Prepare a
Drusus para o salto. Vamos voltar.
— Será que não deveríamos examinar as naves destruídas?
— Por quê?
— É possível que encontremos alguma indicação. Talvez não sejam as primeiras. É
possível que já tenham uma base.
— Isso é pouco provável, coronel. Mas se o senhor achar...
As buscas não deram o menor resultado. Sete naves haviam sido destruídas a ponto
de se tornarem irreconhecíveis e não permitiam qualquer conclusão sobre sua tripulação
ou a missão que deveriam desempenhar. Além disso, Rhodan não encontrou a menor
indicação de que, antes delas, outras naves dos invasores tivessem pousado no planeta.
De qualquer maneira sentia-se satisfeito por não ter negligenciado nada. Ordenou a
Sikermann que voltasse para junto do funil de descarga.
Sabia que os comandantes dos saltadores já estavam informados.

***

No momento em que o Tenente Grenoble e o sargento Raft haviam saído com sua
gazela pela comporta da Drusus, a fim de voltar à sua nave-mãe, chegou a mensagem de
hiper-rádio vinda de Árcon.
As instalações de hiper-rádio ficavam ao lado da sala de rádio propriamente dita da
Drusus, e eram controladas pelo pessoal de plantão. O Tenente Stern acabara de ser
revezado. Foi por isso que o cadete Hans-Otto Fabian entrou correndo na sala de
comando, dando mostras de uma tremenda exaltação.
— Temos um contato com Árcon, sir.
Rhodan, que estava conversando com Sikermann, perguntou em tom de surpresa:
— Com Árcon?! É o imperador em pessoa?
— Sim senhor. Gonozal VIII deseja falar com o senhor.
Rhodan deixou Sikermann a sós e, passando por Fabian, atravessou a sala de rádio e
parou junto à hipertela oval, de onde o rosto marcante de Atlan o contemplava.
Atlan, o arcônida imortal, seguia a tradição e chamava-se de Gonozal VIII, depois
que assumira o governo do Império, em substituição ao grande computador de Árcon. Ao
ver Rhodan, um sorriso fugaz passou por seu rosto severo.
— Olá, bárbaro! Espero não estar incomodando.
Rhodan sorriu e sentou-se. Sabia que Atlan o via, a mais de trinta mil anos-luz de
distância. Aquilo que há cem anos ainda seria considerado como fantasia sem nexo de um
utopista, hoje era um acontecimento corriqueiro. As comunicações de rádio se
estabeleciam a dezenas de milhares de anos-luz, sem perda de um segundo.
— Você nunca é inoportuno, imperador — respondeu Rhodan com ligeira ironia na
voz. — De qualquer maneira, suponho que deve haver algum motivo, que o faça desejar
falar comigo. O carro pegou fogo?
— Não sei se já pegou fogo, Perry, mas ao menos está soltando fumaça.
— São os povos do Império Arcônida?
— Exatamente. Desde o momento em que tomei o lugar do grande computador, as
rebeliões começaram a surgir. Todos temiam o rigor implacável do robô e obedeciam.
Acontece que atualmente o governo é exercido por um arcônida dotado de sentimentos
humanos. E certas inteligências pretendem tirar proveito desta circunstância. Sem dúvida
tenho tanto poder quanto o computador, mas sinto certos escrúpulos... e todos sabem
disso.
— Em outras palavras, com você acontece a mesma coisa que comigo. Há pouco vi-
me obrigado a fazer uma demonstração impressionante de força contra os druufs, para
mostrar aos nossos amigos, os saltadores, que os terranos são muito fortes e decididos. O
que é que você pretende fazer? Quer que transforme um planeta numa fogueira
energética?
— Não faça drama, Perry — disse Atlan, abafando a irrupção de Perry. — Isso
poderá ser feito mais tarde, se não quiserem criar juízo. O que me falta são colaboradores
capazes, arcônidas competentes. Não preciso de covardes e idiotas degenerados, pois
destes tenho de sobra em Árcon. Concordo plenamente com você, bárbaro: minha raça
está degenerada. Bastariam uns dez mil arcônidas da velha estirpe para voltar a fazer do
Império aquilo que já foi. Poderia ajudar-me a conseguir isso?
— Não é o que estou fazendo? — perguntou Rhodan.
Atlan fez um gesto de assentimento e sorriu como quem pede desculpas.
— É claro que você já está ajudando, amigo. Acontece que pensei em outra
possibilidade. Acabo de aludir aos arcônidas da velha estirpe, que me faltam para dirigir
o Império. Preciso de oficiais para minhas naves, comandantes para minhas escolas
militares, diretores para as hipno-universidades, dirigentes para as fábricas e usinas
automáticas, instrutores para os exércitos de robôs e...
— Um momento — interrompeu Rhodan, levantando as mãos num gesto de defesa.
— Quem o ouve falar assim pode ter a impressão de que você pretende criar de uma hora
para outra toda uma geração de arcônidas ativos e competentes. Acontece que onde nada
existe, nada se pode buscar.
— Acontece que existe — respondeu Atlan em tom insistente. — Será que sua
memória está tão fraca?
Por um instante Rhodan sentiu-se perplexo. Não sabia a que Atlan estava aludindo.
Por isso a pergunta que fez foi sincera:
— O que quer dizer?
— Você realmente não sabe? Muito bem. Nesse caso lembrar-lhe-ei um pequeno
acontecimento que se verificou há oito ou nove meses terranos. Naquela época, você era
considerado morto, e eu ainda não havia assumido as funções de imperador de Árcon. Foi
em fins de 2.043. Um cruzador ligeiro comandado por Wilmar Lund voltou à Terra,
trazendo Gucky. E este nos forneceu certas informações estranhas. Já está lembrado?
— A nave dos antepassados! — exclamou Rhodan em tom de surpresa.
Lembrou-se. Então era a isso que Atlan estava aludindo.
— Perfeitamente.
— Estou ouvindo — disse Rhodan em tom tranqüilo.
— Vamos rememorar os fatos. Preciso de arcônidas da velha estirpe, para
reconstruir o império estelar. Se tiver sorte, talvez consiga encontrar algumas centenas
deles. Acontece que preciso de muito mais. Alguns milhares. Pois bem: a nave dos
antepassados. Durante um vôo de patrulhamento, Gucky descobriu uma nave da classe
Império que ia à deriva. Essa nave tinha uma tripulação de milhares de pessoas. Homens
e mulheres. Assim que estes atingiam certa idade, os robôs os colocavam à força num
estado de hibernação a frio e os empilhavam num compartimento especial da nave. O
número exato dos arcônidas conservados ao longo dos milênios não é conhecido. Pelas
indicações de Gucky, devem ser mais de cem mil. Perry Rhodan, preciso desses cem mil
arcônidas para a reconstrução do Império Arcônida.
Então era isso!
Rhodan refletiu prolongadamente, lançou um olhar atento para Atlan e disse:
— Então você quer que eu procure a nave e a leve para Árcon?
— Isso mesmo. Será que estou pedindo demais?
— Não, Atlan, claro que não. Acontece que, com isso, você está modificando um
plano dos seus antepassados. Será que você sabe qual é a finalidade daquela nave?
— Não sei qual era sua finalidade primitiva, mas sei perfeitamente qual é a
finalidade que ela pode e deve desempenhar hoje, Perry. A nave dos antepassados, com
sua preciosa carga é um presente dos deuses, como se costuma dizer. A descoberta de
Gucky representa uma indicação que não podemos deixar de seguir. Neste exato
momento estamos precisando dos arcônidas adormecidos, a fim de salvar o Império.
Talvez não tenha sido por simples acaso que Gucky descobriu essa nave.
— Acha que foi uma espécie de ato providencial? — perguntou Rhodan em tom
reticente. — Talvez você tenha razão. Os dados relativos à nave dos antepassados estão
armazenados no computador positrônico do cruzador ligeiro Arctic. O comandante Lund
encontra-se em Vênus, onde está fazendo um curso. Posso entrar em contato com ele.
Percebia-se o alívio que estas palavras produziram em Atlan.
— Obrigado, amigo. O perigo representado pelos druufs logo passará, mas novos
perigos surgirão. Por enquanto a presença dos druufs ainda mantém unidos os povos do
Império. Mas quando os seres-toco desaparecerem...
Rhodan sabia o que Atlan queria dizer. Talvez a nave dos antepassados fosse a
solução. O tempo diria.
— Cuide para que o funil de descarga seja vigiado constantemente — pediu,
dirigindo-se a Atlan. — Por enquanto não retire nenhuma unidade de lá. Talvez, dentro
de algumas semanas, possamos pensar nisso.
— Desejo-lhe muitas felicidades, no meu próprio interesse — respondeu Atlan. —
Há mais uma coisa que devo dizer-lhe. Tenho inimigos. Em toda parte surgem forças
misteriosas que me combatem. Não se consegue agarrar o inimigo; até parece que é
invisível ou possui forças mágicas. Não posso explicar em poucas palavras, mas o fato é
que eles recorrem a todos os meios para abalar o poderio de Árcon. É possível que isso já
tenha acontecido antes do meu tempo; não sei. Mas o inimigo deve ser de opinião que a
situação atual é muito favorável.
— O inimigo? Você não o conhece? Será que são os saltadores?
— Não posso garantir nada, Perry. Por enquanto não consegui pegar um único
desses misteriosos sabotadores. Trabalham no escuro e parecem ser a prudência em
pessoa. Mas deixemos disso por ora. Procure encontrar a nave dos antepassados e a traga
até aqui. Prepararei para você e seus homens uma recepção que nunca nenhum mortal
teve igual.
— Agora você está fazendo drama! — constatou Rhodan com um sorriso e estendeu
a mão em direção à tela. — Dou-lhe minha palavra de que procurarei a nave. Cuide dos
druufs. Acredito que não terá mais problemas com eles. Desejo-lhe muita sorte, Atlan.
Por alguns segundos fitaram-se mutuamente. Depois a tela apagou-se. Cada um
desses homens extraordinários sabia que poderia confiar no outro, acontecesse o que
acontecesse.
Quando Rhodan voltou à sala de comando e mandou que o radioperador Fabian
voltasse ao seu posto, seu rosto voltara a ficar sério. O Coronel Sikermann notou.
— Más notícias? — perguntou em tom cauteloso.
Rhodan levantou a cabeça e fitou-o.
— Não; não é bem isso. Ao menos as notícias não são más para nós.
Fez uma ligeira pausa e lançou um olhar ligeiro para as telas coloridas.
— Fixe as coordenadas do salto, coronel. Vamos voltar à Terra. Antes, quero dar
algumas instruções às unidades que permanecerão aqui. Quer fazer o favor de tomar as
providências necessárias?
O resto foi rotina.
Dali a duas horas, a Drusus iniciou a longa viagem à Terra.
Era uma viagem longa, mas não demorada.

***

Era de tarde. Domingo de tarde.


Até mesmo em Terrânia, capital do planeta Terra, costumava-se respeitar o
domingo. O complexo gigantesco daquela cidade, que em tão pouco tempo se erguera
para o céu, parecia morto. As ruas retilíneas jaziam tranqüilas sob o sol escaldante da
Ásia. O edifício da administração era o único lugar em que se trabalhava. E o
espaçoporto, que ficava próximo do edifício-sede também nunca ficava desguarnecido do
pessoal necessário.
Aquela área — antigamente tão árida — do deserto de Gobi fora transformada em
certos trechos em terras férteis. Especialmente nas proximidades do pequeno lago
salgado, onde ficavam os bangalôs dos habitantes da cidade, não havia mais nada que
lembrasse o deserto. Quase todos possuíam um pequeno terreno com uma residência
modesta, onde passavam os fins de semana, só ou com a família. Naquela idade em que a
civilização atingira o máximo de sofisticação, o retorno espontâneo à natureza primitiva
parecia representar o melhor descanso do cotidiano.
Mas mesmo ali não se podia dispensar a tecnologia.
O bangalô baixo ficava em lugar um tanto elevado, junto à superfície lisa do lago
salgado de Goshun. Uma antena alta provava que seu dono mantinha contato com
Terrânia pelo videofone e podia ser chamado a qualquer momento.
E nem era possível que Bell conseguisse descansar sem isso.
Reginald Bell, o melhor amigo de Rhodan e seu representante, já se encontrava há
três dias em sua casa de fim de semana. Não precisava de criado ou de empregada, pois
os robôs cumpriam todos os seus desejos.
O vizinho do lado direito de Bell era Mercant, que, no momento, não se encontrava
presente. Mas o vizinho da esquerda se achava em sua casa.
Os dois terrenos eram separados apenas por uma cerca viva, não muito espessa.
Enquanto Bell preferia um gramado pouco cuidado, o vizinho parecia ser amigo das
flores e verduras. O bangalô surpreendia por ser muito baixo e pequeno. Porém a varanda
estava cercada por uma faixa retangular de lindas tulipas, que brilhavam em cinco cores
diferentes e erguiam suas enormes corolas para o céu azul.
Abaixo da varanda os canteiros de legumes bem traçados estendiam-se até a praia.
Qualquer conhecedor logo constataria que ali haviam sido plantadas principalmente as
daucus carota vulgaris, também conhecidas como cenouras.
E com isso, qualquer pessoa que conhecesse Bell já não teria a menor dúvida de
quem era seu vizinho da direita.
Gucky, o rato-castor!
O sujeito pequenino, que tinha cerca de um metro de altura e pêlos cor de ferrugem,
estava deitado de costas em meio aos canteiros e piscava os olhos para o sol. O largo rabo
de castor servia para espantar as moscas, que nem mesmo naquele mundo de robôs
haviam sido exterminadas. Os braços estavam cruzados sobre o peito. Gucky era a
imagem perfeita do jardineiro amador, muito satisfeito, que desfruta de coração alegre as
delícias do domingo.
E as coisas poderiam ter continuado assim...
Entretanto, além de teleportador e telecineta, Gucky ainda era um dos telepatas mais
competentes do Exército de Mutantes. Mesmo sem querer, captava os pensamentos mais
intensos dos vizinhos próximos. Via de regra preferia ignorá-los e desligava o setor de
recepção de seu cérebro, mas outras vezes esses pensamentos o divertiam.
— Os depósitos de energia do robô jardineiro estão quase vazios — disse alguém
que se encontrava ao leste, dirigindo-se à esposa. — Ele fica se arrastando e leva quase
uma hora para regar as flores.
Gucky sacudiu a cabeça.
— Estes caras são uns preguiçosos — constatou em tom de desaprovação. — Eu
mesmo costumo regar minhas flores e cenouras.
Seus pensamentos continuaram a desfilar e chegaram a um homem robusto, que
estava deitado à beira do lago, deixando que o sol lhe esquentasse a barriga morena. Os
cabelos ruivos estavam molhados e grudavam-se à cabeça. Trazia os olhos fechados,
dando a impressão de que aquele homem em férias dormia.
Mas não era o que estava acontecendo. Bell não costumava dormir dentro da água.
Mesmo quando a salinidade desta fosse tão elevada que dificilmente poderia afundar.
“Até que não está mau”, pensou numa disposição alegre e indolente. “Tomara que
Rhodan não volte tão depressa. Freyt está cuidando dos assuntos de governo...”
Gucky ergueu-se ligeiramente e olhou por cima do jardim descuidado do vizinho da
direita. Viu a margem do lago. Realmente, Bell estava deitado na água. E, ao que parecia,
esta não era tão rasa como poderia dar a impressão.
— Hum! — fez o rato-castor.
Gucky passou a utilizar cautelosamente as suas forças. O mais suavemente que
pôde, foi empurrando Bell lenta e imperceptivelmente para longe da margem. O homem
não percebeu nada. Os fluxos de energia telecinética atingiram-no e foram-no levantando
tão devagar que a água nem chegou a movimentar-se.
Gucky pôs à mostra o dente roedor solitário, pois divertia-se a valer. Quando Bell
abrisse os olhos, teria uma surpresa. No lago de Goshun não havia qualquer correnteza, e
o vento não soprava. Por isso ninguém poderia dar uma boa explicação para o fato de
Bell ter-se afastado da margem.
Face ao elevado peso específico da água, a mesma tinha um poder incrível de
sustentação. Podia-se ler um jornal sem afundar. Bell já se encontrava a duzentos metros
da margem.
Gucky sorriu. Soltou Bell e viu que a pressão suave fazia-o descrever movimentos
circulares. Mas Bell continuava tranqüilo, mantendo os olhos fechados.
Gucky levantou-se e foi caminhando em direção à margem do lago. Pôs as mãos à
frente da boca em forma de funil e gritou com sua voz forte e estridente.
— Ei, Bell! Aonde vai?
Bell abriu os olhos, olhou em torno, perplexo e assustado. A seguir, soltou um grito
e estendeu os braços para cima, como se quisesse procurar um apoio. Num movimento
automático colocou-se de pé, como se quisesse atingir o fundo.
Não encontrou o fundo. Mergulhou como uma pedra, mas logo saltou para cima que
nem uma rolha e ficou de pé, com água até o peito.
— Você não perde por esperar! — gritou em direção à margem e pôs-se a nadar.
Não foi nada fácil, pois seu corpo saía constantemente da água e dava braçadas no ar.
Mas foi-se aproximando lentamente da margem, onde Gucky o aguardava com um
sorriso.
— Você acha que é um navio? — perguntou, quando Bell se encontrava a apenas
dez metros da margem. — Se você chegasse a um lugar de água doce, morreria afogado
que nem um rato.
Bell pôs os pés no fundo do lago e foi andando para a margem. Sacudiu o punho
num gesto ameaçador.
— Você não vai querer me contar que saí lago afora sem mais nem menos — gritou
em tom indignado, sem que possuísse qualquer prova para a afirmação que estava
fazendo. — Foi você, seu patife.
— Você vive me acusando — respondeu Gucky como quem se sente muito
ofendido e saltitou para perto de seus canteiros de legumes. — Se não o tivesse chamado,
o representante de Rhodan se teria afogado na salmoura. Como é que alguém pode tomar
banho num caldo como este?
— Antes isso que não tomar banho de jeito algum — disse Bell numa alusão
evidente e pôs-se a atravessar correndo seu terreno.
— Isto é comigo? — perguntou o rato-castor em tom de desconfiança.
— Se a carapuça lhe servir... — respondeu Bell, deixando abertas todas as
alternativas e deitou numa cadeira. Lançou um olhar desconfiado para Gucky, que num
gesto furioso arrancou uma cenoura do chão, limpou-a e se pôs a devorá-la. — Aliás,
estes dias formidáveis não demorarão a passar.
Gucky jogou fora o toco.
— Será que você voltou a sofrer de pressentimentos? — perguntou, atravessando a
cerca viva que separava os dois terrenos. — Ou será que ouviu falar alguma coisa?
— Ambas as coisas, meu filho. Freyt diz que Rhodan deverá voltar amanhã.
Segundo consta, o funil de descarga dos druufs está quase no fim.
— Nesse caso, esses hipopótamos logo nos deixarão em paz — comentou Gucky
em tom de satisfação. — Com Árcon as coisas também estão em ordem. Gostaria de
saber o que poderia acontecer-nos depois disso.
Bell levantou o dedo num gesto de ameaça.
— Quantas vezes ainda lhe terei de dizer que você deve bater três vezes num pedaço
de madeira antes de falar uma coisa dessas? Se dependesse de mim, ficaria mais alguns
dias neste bangalô e passaria o tempo deitado na água.
— Será que a sujeira que você traz no corpo leva todo esse tempo para amolecer? —
perguntou Gucky.
Bell esteve a ponto de enfurecer-se, mas quando viu a admiração sincera que se
desenhava nos olhos castanhos de Gucky, não conseguiu ficar zangado. Como um rato-
castor poderia saber que a água não serve apenas para lavar-se?
— Deixe-me em paz! — gritou. — Cuide de suas tulipas.
Gucky aproximou-se e plantou-se à frente de Bell.
— As tulipas! Você se admiraria se soubesse quantas mudas elas já produziram.
Acho que conseguimos salvar a raça dos sonolentos. Dentro em breve poderemos fundar
uma colônia com eles. Talvez em Marte.
Os sonolentos eram uma espécie de plantas inteligentes, as quais possuíam o dom da
telepatia. Há algum tempo Rhodan e Gucky as haviam salvo da extinção, trazendo-as à
Terra. E neste planeta cresciam em diversos lugares, sob a vigilância de jardineiros
experimentados. Levavam cinqüenta anos para reproduzir-se. Dividiam-se em cinco
sexos, possuíam verdadeiros olhos e sabiam tirar as raízes finas do solo, a fim de dirigir-
se a um lugar melhor.
As tulipas, que cercavam a varanda de Gucky, não eram verdadeiras tulipas, mas
seres inteligentes vindos de um planeta estranho.
Antes que Bell tivesse tempo para responder, uma campainha estridente soou no
bangalô.
Os dois estremeceram instintivamente.
— Com todas as trovoadas! — exclamou Bell em tom contrariado e empalideceu
ligeiramente.
Alguns fios de cabelo que já estavam secos arrepiaram-se em atitude de protesto.
— Devia mesmo ter batido na madeira! — disse Gucky e deu três piparotes na
cabeça de Bell. — Vá ver logo quem quer perturbar nossa doce vida. Quem dera que
fosse Mercant perguntando apenas pelo tempo.
Acontece que não era Mercant.
Era Freyt.
— Arrume a roupa de banho, Mr. Bell — disse Freyt, um homem magro e muito
parecido com Rhodan, de dentro da tela. — Daqui a uma hora Rhodan chegará com a
Drusus. Ao que parece, não pretende ficar muito tempo em Terrânia. Pretende colher
algumas informações e decolar imediatamente.
— E daí? — perguntou Bell laconicamente. Tinha um pressentimento de que sua
ingenuidade fingida não adiantaria muito. — O que é que nós temos com isso?
O sorriso de Freyt tornou-se mais intenso.
— Posso transmitir-lhe uma notícia bastante agradável. Uma das instruções de
Rhodan determina que o senhor e Gucky compareçam a bordo da Drusus assim que a
mesma pousar. Acho que é só o que tenho a lhe comunicar. Desejo-lhe um domingo
muito agradável. A tela apagou-se.
— Um domingo agradável — repetiu Bell em tom furioso e lançou um olhar
vingativo para o videofone. — Depois de três dias de licença já posso deixar tudo isto
para trás.
Olhou em torno.
— Vuzi! — gritou. — Vuzi, onde está você?
Gucky soltou um gemido e saiu saltitando, para liquidar tudo que tinha que ser
liquidado numa situação como esta. Precisaria programar tanto o robô jardineiro como o
mordomo automático. Além disso, queria evitar um encontro direto com Vuzi, o
porquinho-bassê de Vênus. Bell se apaixonara por esse animalzinho engraçado e o levava
para tudo quanto era lugar. Pelo menos em Terrânia.
Vuzi aproximou-se e saltou para cima de Bell. Realmente era parecido com um cão
bassê, mas tinha pernas mais compridas, um rabo encaracolado e focinho de porco. Os
“indivíduos” de sua espécie viviam nas florestas pantanosas de Vênus e logo
compreenderam que poderiam levar uma vida melhor, se assumissem atitudes amistosas
para com os seres da raça humana.
— Vamos dar o fora daqui, Vuzi. Nossas férias chegaram ao fim.
Vuzi compreendeu e esticou o rabo encaracolado de tão alegre que se sentiu. Logo
depois sua pequena cauda voltou abruptamente ao formato anterior. E tal movimento
repetiu-se por várias vezes.
Dali a uma hora Bell, Gucky e Vuzi estavam sentados no turbocarro, pacificamente
reunidos, e deslizaram a uma velocidade cada vez maior pela pista lisa da estrada que ia
para Terrânia.
Enquanto se aproximavam da cidade, ouviram acima de suas cabeças o tremendo
trovejar dos propulsores. Os lampejos ofuscantes empalideceram o sol. Finalmente a
gigantesca esfera Drusus destacou-se do azul do céu, foi crescendo rapidamente e acabou
pousando bem ao longe, no espaçoporto.
As férias realmente pareciam ter chegado ao fim.
Pelo menos por ora...
2

O comandante Wilmar Lund não tinha a menor idéia quanto aos motivos por que ele
e seus tripulantes tiveram de interromper subitamente o curso que estavam fazendo.
Consideravam esse curso uma espécie de licença a ser passada em Venus City, e por isso
não se esforçavam muito.
No mesmo dia em que chegou a ordem vinda de Terrânia, Lund e seus homens
subiram a bordo do cruzador Arctic e decolaram em direção à Terra. Chegaram ao
planeta natal sem quaisquer incidentes e pousaram no espaçoporto de Terrânia,
estacionando sua nave junto à gigantesca Drusus, que geralmente era considerada a nave
capitania de Rhodan.
Lund começou a desconfiar de que não era por acaso que sua chegada coincidia com
a presença da Drusus. Recapitulou os acontecimentos das últimas semanas e meses o
mais rápido que pôde, mas não encontrou uma explicação. Cometeu um erro ao não
recuar nove meses.
Na sala de comando recebeu ordens para colocar a Arctic no hangar da Drusus e
dirigir-se o mais rápido possível ao edifício da administração de Terrânia. Perry Rhodan
já o esperava.
Lund despertou de uma espécie de devaneio. Deu suas instruções e entrou no
turbocarro, que se encontrava estacionado junto à nave. O veículo, dirigido
automaticamente, levou-o à cidade numa velocidade tremenda. Atravessou as comportas
da abóbada energética sem ser submetido a qualquer controle e subiu os largos degraus
do edifício quadrado, que costumava ser considerado o centro nervoso do sistema solar.
Foi recebido pelo Marechal Freyt em pessoa, que o levou ao gabinete de Rhodan.
No corredor encontraram-se com alguns membros do Exército de Mutantes, que pareciam
estar preparados para a partida. Lund reconhecia essa disposição. Havia alguma coisa no
ar.
Assim que Lund entrou no gabinete, Rhodan levantou-se. Estendeu-lhe a mão como
se fossem velhos amigos. Sabia que, para Rhodan, todo colaborador era um amigo e que
o chefe sempre oferecia um tratamento afetuoso. Era este um dos motivos por que
qualquer um deles enfrentaria o pior dos perigos, desde que Rhodan o pedisse.
— Agradeço-lhe por ter vindo tão depressa, Lund. O senhor já conhece mister Bell,
e não tenho necessidade de apresentar Gucky. Ele esteve presente naquela oportunidade;
pertenceu ao grupo.
Alguma coisa remexeu na memória de Lund.
“Gucky estava com eles?”, indagou-se, tentando rememorar-se.
Depois de cumprimentar Bell e Gucky, acomodou-se na poltrona que lhe foi
oferecida. Aguardou em silêncio. Não teve de esperar muito tempo.
— Daquela vez em que o senhor foi buscar Gucky, que retornava de uma missão, e
o trouxe de volta à Terra, o senhor se encontrou com uma nave arcônida que ia à deriva
— principiou Rhodan com um sorriso de quem sabe de tudo. — Conforme constava do
diário de bordo, tal nave parecia ter sido abandonada pela tripulação e ia à deriva. Já se
lembra? Lund fez que sim.
— Muito bem. O senhor registrou a velocidade e a rota?
Lund voltou a fazer um gesto afirmativo. Não tinha a menor idéia do porquê da
pergunta.
“Será que me esqueci de alguma coisa?”, pensou apreensivo?
Mas Rhodan tranqüilizou-o ao prosseguir:
— Os dados estão armazenados no computador positrônico da Arctic?
— Estão, sim senhor. Era meu dever armazená-los e, além disso, Gucky o exigiu
expressamente. Seria possível que, mais tarde, se desejasse voltar a examinar aquela
velha nave. Sua posição pode ser determinada a qualquer momento, se é nisso que o
senhor está interessado.
Rhodan fez que sim.
— É exatamente isso, Lund. Ainda bem que o senhor se lembra. Acho que está na
hora de Gucky lhe contar a verdade. Há nove meses ele o enganou.
Gucky escorregou para fora da poltrona, que lhe era muito grande. Aproximou-se e
saltou para cima do colo de Lund.
— Você não está zangado comigo, não é, Lundizinho? — perguntou num pio e fez o
conhecido jogo de olhos, ao qual ninguém conseguia resistir. — Levei quatro horas
examinando aquela nave misteriosa, e você ficou muito admirado. Quatro horas para
examinar uma nave vazia! Bem, na verdade não estava vazia. Ela abriga dez mil
arcônidas vivos.
Lund respirava nervosamente.
— Ah, é? E você não me disse nada? Por quê?
— Porque além desses dez mil havia mais cem mil arcônidas guardados num
frigorífico, esperando que alguém os acordasse. Como são tantos, isso só poderia ser feito
num planeta adequado, pois, do contrário, haveria uma catástrofe. É este um dos motivos
por que guardei o segredo para mim. Talvez o senhor insistisse em querer examinar a
nave...
Lund acenou lentamente com a cabeça. Estava compreendendo.
— Você tem razão, Gucky. Eu teria insistido num exame rigoroso; não poderia agir
de outra forma. E agora? O que vamos fazer?
Quem respondeu foi Rhodan.
— Árcon precisa de gente capaz, que fortaleça seu império. Quem melhor para isso
que os arcônidas adormecidos na nave dos antepassados? Trata-se de homens e mulheres
da velha estirpe. Uma vez que estão hibernando, conservaram sua capacidade física e
psicológica. Atlan pediu-me que levasse a nave para Árcon. Foi por isso que mandei
chamá-lo, comandante.
Lund levantou-se.
— Quer que lhe forneça imediatamente as coordenadas? Providenciarei para que...
— Iremos com o senhor, Lund — interrompeu-o Rhodan. — A Arctic já está
guardada no hangar da Drusus. Decolaremos e calcularemos as coordenadas, enquanto
estivermos saindo do sistema solar. Não temos um minuto a perder. Está preparado?
— Naturalmente, sir. Acontece que o senhor tinha pouco tempo.
— Tenho bastante tempo — tranqüilizou-o Rhodan. — Bell e Gucky estão ansiosos
para descobrir a nave. Andaram vadiando por bastante tempo junto ao lago de Goshun.
Bell esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas resolveu ficar calado e lançou um
olhar de súplica a Gucky.
O rato-castor falou, demonstrando alegria.
— Isso mesmo. Não existe nada mais enjoado que um período de férias junto ao
lago de Goshun. Estou satisfeito por estarmos novamente... ora, não adianta. Perry, você
pode ser um telepata muito bom, mas...
Era verdade, embora a capacidade telepática de Rhodan tivesse seus limites. O chefe
soltou uma risada bonachona.
— Não se preocupe com as tulipas e as cenouras. É possível que amanhã ou depois
já tenhamos rebocado a nave dos antepassados até Árcon, e você esteja de volta para sua
casa. Até lá suas plantas prediletas não deverão morrer de sede.
A última afirmativa era verdadeira. Mas as outras não.

***

O sistema solar foi desaparecendo atrás da Drusus à velocidade da luz. Todos


aguardavam a transição que estava iminente.
Lund, Rhodan, Bell e Gucky encontravam-se diante do computador de navegação,
no interior da pequena sala de comando da Arctic. O banco de dados forneceu as
informações desejadas. As faixas de plástico caíam por cima da mesa e Lund as
empurrava para dentro do dispositivo de processamento.
— A distância é de aproximadamente vinte mil anos-luz — constatou Bell. — É
uma bela distância para um salto preciso. O essencial é que os cálculos constantes dos
dados armazenados no computador sejam corretos. Se for assim, deveremos localizar
imediatamente a nave que segue à deriva.
— Por que não a encontraríamos? — perguntou Rhodan. — Os instrumentos
funcionam perfeitamente e não é de supor que Lund tenha cometido um erro.
— Posso garantir a exatidão das informações, sir — disse Lund um tanto surpreso.
Rhodan colocou a mão sobre seu ombro.
— Ninguém duvida disso.
Realmente, ninguém duvidava. Acontece que a alma humana se alimenta de
ceticismo. Sem este, sente-se vazia e abandonada. Além disso...
— É possível que a nave tenha modificado a velocidade ou a rota — conjeturou
Bell.
Gucky pisou fortemente nos seus pés.
— Você já está agourando de novo, gorducho? Encontraremos a nave exatamente
no lugar calculado, ou eu...
Calou-se de repente. Bell lançou-lhe um olhar de desafio.
— Ou o quê?
Não obteve resposta, pois nesse momento o setor de processamento de dados
começou a emitir seus estalidos. As informações interpretadas chegaram em forma de
uma finíssima folha perfurada. Rhodan pegou-a e leu:
— Setor BV-37-C-99,19-997,983 AL. Era só.
Lund sentiu-se aliviado.
— Quer dizer que até aí está tudo claro. Estamos preparados.
Rhodan enfiou o cartão perfurado no bolso. Dirigiu-se a Lund.
— Mantenha a Arctic pronta para decolar, Lund. É possível que mais tarde
venhamos precisar do cruzador como nave-reboque. Sua proa possui os raios de
rastreamento que nos permitirão abrir as escotilhas de carga da nave arcônida, se é que
esta as tem.
Rhodan e Bell atravessaram o corredor do cruzador e passaram pelo hangar. O
elevador levou-os em poucos minutos à sala de comando da Drusus, onde o Coronel
Sikermann já os esperava impaciente. O rato-castor, que se teleportara para esse lugar,
estava sentado sobre o sofá. Negara-se a prestar quaisquer informações, e foi por isso que
Sikermann quase chocou-se com os homens que entravam, quando perguntou:
— Então? Tem todos os dados, sir?
— Sim, temos os dados — respondeu Rhodan e entregou-lhe o cartão perfurado. —
O resto depende do senhor, que é o comandante.
O coronel pegou o cartão, examinou-o e sem dizer uma palavra passou-o ao
primeiro-oficial, que o colocou no computador. Os cálculos foram iniciados
automaticamente. Os dados já processados, transformados em faixas de plástico
coloridas, foram introduzidos no autômato que controlava o hipersalto.
Sikermann acomodou-se no assento do piloto.
O sol já se transformara numa estrela amarela. Rhodan e Lund conversavam
baixinho nos fundos da sala de comando. Provavelmente o administrador estava
respondendo a algumas perguntas do comandante do cruzador, a fim de satisfazer-lhe a
curiosidade. Bell estava sentado no sofá, ao lado de Gucky. Os dois amigos mostravam-
se extraordinariamente pacatos e silenciosos.
Quando viu algumas lâmpadas se acenderem, Sikermann olhou para os controles.
— A transição foi marcada — disse. — O salto será realizado dentro de dois
minutos.
Num gesto instintivo Rhodan passou a mão pela nuca. Lembrou-se da dor da
transição, que era o único aspecto desagradável do hipersalto, e da desmaterialização
ligada ao mesmo.
“Não demorará muito, e essa dor não mais acontecerá”, pensou. “Os planos do
sistema de hiperpropulsão linear, que Ernst Ellert roubou em Druufon, já se encontram
nas mãos dos cientistas terranos. Eles trabalham na construção do novo propulsor. Não
demorará muito, e a primeira nave capaz de desenvolver velocidade superior à da luz,
independentemente de qualquer transição, estará apta para realizar seu vôo
experimental em Terrânia.”
— Falta um minuto!
Para Perry Rhodan, o método do hipersalto fora, durante vários decênios, o único
meio de atingir sistemas estelares situados a vários anos-luz. Mas, subitamente, os druufs
apareceram com suas naves que não se desmaterializavam, mas ultrapassavam
simplesmente a velocidade da luz e prosseguiam no seu vôo. Não ficavam sujeitas a
qualquer dilatação temporal, o que contrariava todas as leis de Einstein.
Embora Rhodan considerasse o hipersalto como o melhor método, sempre sonhara
com a possibilidade de, durante o salto, continuar enxergando todo o espaço... Ansiava
pelo momento que pudesse ver as estrelas passarem pelas escotilhas, em vez de
mergulhar no nada invisível da desmaterialização.
— Dez segundos! Nove... oito... sete...
O salto foi realizado com a maior precisão e sem incidentes. Quando a Drusus
voltou a materializar-se com tudo que se encontrava em seu interior, a hipernave se
encontrava exatamente no local previsto. As estrelas eram mais numerosas que as vistas
da Terra e estavam mais próximas umas das outras. A ausência de qualquer matéria
reduzida a pó nesse setor do Universo fazia com que algumas das manchas luminosas das
galáxias afastadas se transformassem em brilhantes espirais perfeitamente visíveis, que
pareciam girar lentamente. Era uma visão que o homem preso à Terra nunca conseguia
imaginar perfeitamente, por mais fantasia que possuísse. Era uma visão que tornava
ridícula a idéia da presença exclusiva do homem no Universo e fazia com que sentisse a
presença de Deus. A Terra poderia ser um produto da natureza, resultante do acaso. Mas
o Universo, com todos os sóis chamejantes, era uma criação bem meditada.
Rhodan desprendeu-se da visão que sempre o fascinava. Sua voz estava um pouco
rouca, quando disse:
— Ligue os instrumentos de observação, coronel. Pelos cálculos a nave não pode
estar a mais de zero vírgula cinco anos-luz do ponto em que nos encontramos.
Os instrumentos começaram a funcionar. Num raio de meio ano-luz. Isso era fácil
de dizer, mas significava uma coisa tão imensa. Uma área de um ano-luz de diâmetro
tinha de ser revistada em busca de um ponto que media um quilômetro e meio. E a busca
tinha de ser realizada nas três dimensões.
Dali a cinco horas tiveram certeza. Num raio de meio ano-luz não havia qualquer
porção de matéria sólida que fosse maior que um grão de ervilha.
O Coronel Sikermann parecia um tanto perplexo.
— Não compreendo, sir. Os instrumentos estão funcionando perfeitamente. Quem
sabe se o computador positrônico da Arctic não cometeu algum erro?
— Impossível! — protestou Lund em tom enérgico. — As observações que
realizamos em dezembro de 2.043 foram exatas. Gucky poderá confirmar o fato a
qualquer momento.
— Sem dúvida posso confirmar! — disse o rato-castor, empertigando o corpo e
fitando Sikermann com um olhar de recriminação. — Será que o senhor quer dizer que eu
e Lund somos irresponsáveis?
— Ninguém nem ao menos pensou numa coisa dessas, Gucky! — disse o chefe, em
tom áspero. — Devemos continuar serenos e procurar resolver o enigma. Se nossos
cálculos forem todos corretos e a nave dos arcônidas não puder ser encontrada neste
setor, só pode haver uma explicação. E devemos encarar a mesma com o espírito realista.
Lund manteve-se em silêncio. Seu raciocínio recusava-se a aceitar a terrível
conclusão.
Um tanto apreensivo, Sikermann indagou:
— O senhor acredita que a nave dos antepassados modificou a velocidade ou a rota?
Isso seria...
Rhodan fez um gesto afirmativo.
— Sim, é isso mesmo. As coisas estão muito ruins. Como poderemos encontrá-la na
imensidão do espaço? Não há pistas, pois ninguém pode deixar uma pista no nada.
Um silêncio constrangedor espalhou-se entre os presentes. Cada um seguia seus
próprios pensamentos e suposições. Evidentemente seria inútil repetir as buscas no
mesmo setor, porque os instrumentos de observação eram praticamente infalíveis. Não
poderiam ter cometido qualquer engano. E os dados armazenados na Arctic também eram
corretos; não havia a menor dúvida.
Concluía-se que a nave dos antepassados se havia desviado da rota e aumentara
consideravelmente a sua velocidade.
Talvez possuísse um hiperpropulsor?
Rhodan dirigiu-se a Gucky.
— Gucky, você esteve naquela nave. Pôde constatar se seria possível ela possuir um
aparelho de hipersalto?
O rato-castor lamentou-se.
— Sinto muito, Perry. Não pude realizar um exame minucioso do interior da nave.
Tive muito o que fazer para libertar os passageiros do domínio dos robôs. Encontrei os
antepassados em estado de hibernação e esclareci os acontecimentos aos que estavam
acordados. Não posso afirmar com certeza se existe um hiperpropulsor. Sei que os
oficiais nunca pensaram em tal aparelho. Ao que suponho, eles também não sabiam.
— Nesse caso devemos concluir que só o descobriram depois de você ter deixado a
nave. Talvez quisessem dirigir-se ao sistema solar mais próximo, para poderem sair da
nave.
— Estavam voando à velocidade inferior à da luz — disse Gucky. — Se tivessem
mantido a rota, só alcançariam um sistema solar dali a duzentos anos. Talvez a demora
lhes parecesse excessiva. Afinal, já estavam voando há dez mil anos.
Lund levantou os olhos. Via-se que refletia intensamente. Parecia ter uma idéia.
— O senhor não acaba de dizer que ninguém pode deixar uma pista no nada? Tem
tanta certeza disso?
Rhodan retribuiu o olhar de Lund e um sorriso fugaz passou por seu rosto severo.
— Veja só! Quase que me esqueço! Os rastreadores estruturais registram todo e
qualquer hipersalto e introduzem os respectivos dados no arquivo positrônico central de
Terrânia. Se a nave dos antepassados executou um hipersalto no ano passado, este deve
constar desse arquivo. E não é só isso. Também poderemos saber a que distância saltou a
nave, talvez em que direção, e se o salto foi repetido. Obrigado, Lund. Como vê, também
sou apenas um homem.
— Ainda bem — piou Gucky, que se encontrava em ponto mais afastado, e enrolou-
se gostosamente. — Imagine se fosse um rato-castor...

***

Quando a Drusus pousou em Terrânia, a atividade febril do dia-a-dia já voltara a


reinar na grande metrópole. Os veículos e pedestres percorriam apressadamente as ruas.
Os táxis planadores passavam a pequena altura acima dos telhados, conduzindo
passageiros aos subúrbios ou às fábricas.
O arquivo positrônico ficava embaixo da abóbada energética.
Rhodan entrou no edifício ao lado de Lund e Bell. Pegou o elevador e subiu ao
respectivo pavimento. Um homem de capa branca comprida recebeu-os.
— Já preparamos tudo, sir — disse o arquivista em tom solícito. — Queiram
acompanhar-me.
— Vá à frente, Dirscherl. O senhor conhece isto aqui melhor que eu. Afinal, seu
trabalho consiste em neutralizar os erros dos outros por meio da manipulação de cifras.
— Não apenas os erros sir.
O técnico em cibernética ganhou um corredor. À esquerda e à direita, os armários
achavam-se abarrotados de folhas plásticas de informações.
Dirscherl parou. Apontou para um dos armários.
— Aqui se encontram os registros relativos à distância de 19-997 a 19-998 anos-luz.
Acho que a direção BV-37-C é a que o senhor está procurando.
— Pode dar uma olhada — animou-o Bell, em tom sarcástico.
Rhodan aguardou tranqüilo, mas Lund parecia bastante nervoso. Esperava
ansiosamente que o fichário confirmasse a hipótese da mudança de rota da nave dos
antepassados.
Dirscherl abriu a gaveta e folheou os cartões, até encontrar o que desejava. Fez um
gesto de satisfação e entregou-o a Rhodan.
Demorou apenas alguns segundos.
— Pelo que vejo, até agora só houve uma única transição no setor, e isso em 10 de
setembro de 2.044, ou seja, há dezoito dias. O local do salto e do reingresso no espaço
normal foram registrados. A distância do salto é de exatamente 20,3 anos-luz. Hum!
— Tem certeza de que se trata da nave dos antepassados?
Rhodan fez um gesto afirmativo para Lund.
— Qualquer outra hipótese seria pura coincidência, e esta é pouco provável.
Olhou para o cartão.
— Infelizmente a direção não pôde ser registrada. Quer dizer que teremos de
continuar a procurar. Mas ao menos temos algum ponto de referência.
Rhodan anotou os dados e agradeceu ao técnico em cibernética. Voltaram à Drusus
e se dirigiram a Vênus, onde se certificaram das informações conseguidas através do
arquivo positrônico de Terrânia.
Enquanto regressavam à Terra, Rhodan fez um resumo:
— O grande cérebro positrônico de Vênus armazenou todas as informações de que
uma raça de astronautas precisa para orientar-se no interior da Via Láctea. Já sabemos
que, à frente da nave dos antepassados, num semicírculo de 20,3 anos-luz, só existem
cinco sóis. Um deles deve ser o destino dos arcônidas. Não sabemos qual das cinco
estrelas pretendem atingir, porque não podemos partir do pressuposto de que devesse ser
alguma das que têm planetas habitáveis, pois os arcônidas não possuíam essa informação.
Portanto, não nos resta outra alternativa senão examinar os cinco sóis. Para ganhar tempo,
esperaremos em Terrânia, enquanto cinco cruzadores se dirigem aos cinco sóis, à procura
de alguma pista da nave dos antepassados. Assim que tivermos informações concretas,
decolaremos. Alguma pergunta?
Gucky teve uma pergunta.
— Quanto tempo poderá demorar isso, Perry?
A pergunta foi proferida em tom astucioso e ligeiramente tenso. Bell aguçou os
ouvidos.
— Isso depende do tempo que os cruzadores levarão para localizar a nave dos
antepassados. Assim que conhecermos sua posição, decolaremos.
— Pretende esperar na Drusus, e não em Terrânia, na sua residência?
— É claro que pretendo esperar na minha residência. Tenho muita coisa para fazer.
Mas qual é a finalidade dessa pergunta?
As perguntas de Gucky ainda não haviam chegado ao fim.
— Quanto tempo levaremos para decolar depois que conhecermos a posição da nave
dos antepassados?
— Meia hora, no máximo.
O rato-castor soltou um suspiro de alívio, escorregou do sofá e saltitou em direção a
Bell.
— Conseguimos, gorducho. Podemos continuar nossas férias. Do lago até aqui não
levaremos mais de dez minutos de planador. Basta chamar, Perry.
Rhodan viu-se tomado de surpresa.
— Está bem, Gucky e Bell. Concordo, mas sob uma condição. Um de vocês terá de
permanecer constantemente ao alcance do videofone, no bangalô. Quando chegar a
ordem de partida, vocês terão de estar a bordo da Drusus dentro de vinte minutos.
Entendido?
— Perfeitamente! — piou Gucky em tom alegre e, arrastando Bell, retirou-se da sala
de comando.
Rhodan acompanhou os dois com os olhos. Tinha um sorriso nos lábios.
— Lund, acredito que realmente existam perspectivas para alguns dias de descanso
— disse depois de algum tempo. — Para os cruzadores não será nada fácil descobrir a
nave dos antepassados. Não sabemos o que aconteceu. Até é possível que cheguemos
tarde.
— Como? — o comandante parecia assustado.
— É possível que os arcônidas tenham saltado de novo. E desta vez não sabemos de
onde. Isso não será como procurar uma agulha num palheiro, mas um micróbio no
Atlântico. Basta calcular as chances...
Lund agradeceu e dispensou os cálculos.
3

Fazia mais de dez mil anos que a gigantesca nave cruzava o espaço. Era uma
gigantesca esfera, de mil e quinhentos metros de diâmetro, do mesmo tipo da Drusus. Por
dez mil anos, esse veículo espacial da classe Império dera prova de seu valor.
De qualquer maneira, tratava-se de uma construção especial.
Em seu interior hibernavam os arcônidas conservados no gelo. Eram descendentes
das primeiras famílias governantes. Por ocasião da decolagem da nave só havia cinco mil,
antes que fossem levados pelo que se acreditava ser o comando da morte e atirados para
as câmaras frias — se é que realmente foi assim.
Foram os membros da última geração que assumiram o comando da nave e
dominaram os robôs, os quais até então exerciam o comando da nave dos antepassados.
Vários meses se haviam passado depois disso.
O comandante C-l controlava a situação, que era difícil e perigosa. No interior da
nave jaziam os antepassados, aguardando o momento de serem despertados, a fim de
colonizar um planeta. C-l não sabia o que teria acontecido há dez mil anos. Gucky não o
esclarecera a este respeito, para não aumentar o desassossego. O comandante nem sequer
sabia que era um arcônida. Mas as pessoas que hibernavam sabiam — ou ao menos
passariam a saber no momento em que fossem despertados. E mesmo entre estes apenas a
primeira geração possuía esse conhecimento.
— Daqui a dois séculos — dissera o estranho visitante — a nave será captada por
um sol que possui planetas habitáveis.
Depois disso o visitante — que não era outro senão Gucky — desaparecera tão
misteriosamente como havia surgido.
Depois, no interior da grande nave, várias mudanças ocorreram.
Nos primeiros meses, os dez mil arcônidas acordados iniciaram um novo estilo de
vida. Ninguém mais era levado pelos robôs, para ser posto a hibernar. Os que morreram
— e não foram muitos — foram expelidos pela comporta de lixo, a fim de vagarem pelo
espaço. A velocidade da nave fazia com que o cadáver não circulasse em torno de seu
bojo, como se fosse uma pequena lua, mas vagasse pelo infinito.
Os robôs deixaram de ser os senhores dos arcônidas, para transformarem-se em
servos. Sua reprogramação não trouxe qualquer dificuldade.
Eram duzentos anos (tempo terrano) até o sol mais próximo, segundo dissera o
misterioso visitante. Quer dizer que boa parte dos dez mil arcônidas acordados assistiria
ao pouso. No entanto, duzentos anos representavam um tempo muito longo.
No dia 8 de setembro de 2.044 (tempo terrano), o primeiro-oficial da nave exprimiu
claramente este pensamento, por ocasião de uma conferência realizada na sala de
comando:
— Não compreendo, C-l por que temos de permanecer inativos até que os duzentos
anos se tenham passado. Afinal, temos em nosso poder uma nave intacta, cujos
propulsores funcionam perfeitamente. Não sei quais eram as opiniões dos antepassados,
mas posso garantir que dez mil anos são um tempo muito longo. Muita coisa pode ter
mudado na Galáxia. Em outras palavras, não sei por que devemos entregar-nos
passivamente ao destino.
O médico D-3 fez um gesto de aprovação. E os dois maquinistas, M-4 e M-7,
também não pareciam discordar de O-l. O comandante reconheceu que, naquele
momento, não seria recomendável oferecer qualquer resistência. Mas também conhecia
seus deveres e responsabilidades.
— Nenhum de nós conhece o sistema de propulsão da nave. Pelo que conseguimos
apurar, estamos voando a uma velocidade muito inferior à da luz. Dei-me ao trabalho de
recorrer ao setor de memória do computador positrônico, a fim de estudar certos dados
científicos, O-l. Já há dez mil anos o salto pelo hiperespaço era considerado o melhor
meio de locomoção. Todas as naves foram dotadas de equipamentos que o possibilitam.
Provavelmente, esse equipamento exista nessa, onde nos encontramos. Os robôs nunca
acionaram esse dispositivo. Não sabemos se a causa disso foram as instruções
introduzidas nos robôs. E não sei se devemos assumir o risco.
— Por que não? — interrompeu-o O-l em tom áspero. — Não adquirimos nossa
independência? Não somos donos de nosso destino? Não podemos fazer aquilo que
acharmos acertado? Quem poderá impedir-nos?
C-l não viu qualquer saída.
— Se não houver nenhum dispositivo de hipersalto a bordo, não teremos nenhuma
decisão a tomar. Teremos de prosseguir em nosso vôo até alcançarmos o sistema
planetário inicialmente previsto.
Uma expressão de triunfo surgiu no rosto de O-l.
— C-l, permita que um perito tome a palavra. M-7 andou dando umas olhadas pela
nave e descobriu várias coisas.
O comandante concordou, embora sentisse uma inquietação cada vez maior.
O mecânico, que praticamente ascendera à condição de oficial, em virtude do papel
decisivo que desempenhara na revolta contra os robôs, adiantou-se.
— No interior da nave existem as instalações destinadas à hibernação a frio —
principiou. — Mas não existem só estas. Além disso, o mecanismo propulsor fica lá. E
trata-se de um excelente conjunto propulsor, que nos permite levar a nave por toda a
Galáxia, isto é, ao menos na extensão e na configuração da mesma, revelada pelos mapas.
Levei algumas semanas para estudar as instalações. Acho que já as conheço e posso
manejá-las. Em poucas palavras, se quisermos levar a nave através de toda a Galáxia,
poderei calcular e executar o salto.
— Não sei se os antepassados aprovarão uma iniciativa desse tipo — principiou o
comandante.
Porém foi interrompido imediatamente pelo primeiro-oficial.
— Os homens que estão hibernando não serão consultados, C-l. Somos nós que
temos o controle da nave. E somos nós que determinamos sua rota. Por muito tempo as
maquinações dos antepassados nos deixaram presos numa rede de medo e mentira. Está
na hora de tomarmos uma iniciativa. Levaremos a nave ao sistema solar mais próximo e
pousaremos num planeta habitável. Depois poderemos despertar as pessoas que estão
hibernando. Seremos um número suficiente de homens e mulheres para fundar uma nova
raça.
— Será que a finalidade desta nave é esta? — perguntou o comandante.
Não obteve resposta. D-3 ergueu ambas as mãos, num gesto tranqüilizador:
— Como poderíamos conhecer o destino, o objetivo ou a finalidade da nossa
viagem, se fomos enganados há milênios? Acho que temos o direito de controlar nosso
destino. Já que M-7 conseguiu descobrir o hiperpropulsor, deveríamos utilizar tal
mecanismo para chegarmos o quanto antes a um destino. E nosso destino só poderá ser
um planeta habitável.
— Concordo plenamente — disse O-l.
Os dois técnicos fizeram gestos de assentimento.
C-l viu que fora derrotado pelo número.
— Submeto-me à decisão da maioria — disse. — Mas quero ponderar que por
vários motivos só concordo porque sou obrigado a isso. O motivo principal é este: nossos
conhecimentos a respeito do chamado hiperpropulsor são muito limitados. Não temos a
menor experiência com seu manejo. Se alguma coisa não der certo, estaremos perdidos.
Ou será que M-7 poderá reparar o propulsor se este falhar durante a viagem? Além disso,
cabe ressaltar que não temos a menor idéia da finalidade que esta nave das gerações deve
preencher. Talvez devamos alcançar nosso destino com a velocidade que atualmente
estamos desenvolvendo.
— Se fosse assim, para que serviriam as instalações de hipersalto? — perguntou o
médico com um olhar de esguelha para O-l. — Afinal, o aparelho não entrou na nave por
acaso.
— Acontece que o hiperpropulsor se encontra em posição fácil de ser localizado,
mesmo estando no interior da nave — disse O-l em tom frio.
O comandante resignou-se.
— Todos os argumentos que acabam de ser alinhados parecem lógicos e
convincentes, pouco importando de que lado tenham vindo. Não tenho outra alternativa
senão submeter-me à vontade da maioria.
— Quer dizer que temos permissão para calcular e executar um hipersalto? —
perguntou O-l por uma questão de cautela.
O comandante fez um gesto de assentimento.
— A decisão pode ser interpretada dessa forma, O-l. Se D-3 também estiver de
acordo...
— Sou a favor da experiência — disse o médico apressadamente, como se receasse
que o comandante pudesse mudar de idéia. — Quanto mais cedo pousarmos num planeta,
tanto melhor.
Subitamente sacudiu a cabeça.
— Será que alguém aqui presente sabe o que vem a ser um planeta e como é ele?
Todos haviam nascido na nave e nunca conheceram outro mundo senão o
representado pelo veículo espacial. A bordo existiam livros falando de gigantescas
esferas que gravitavam em torno de sóis chamejantes. Eram corpos naturais, não
artificiais, e seus habitantes viviam na face das esferas, não no interior delas. O sol
possibilitava esse modo de vida, fornecendo calor e energia.
— A vida num mundo como este sempre deve ser mais bela que no interior de uma
nave — disse O-l em tom convicto. — Cheguei a ler que as naves iguais a esta só são
utilizadas no transporte, por mais absurdo que isso possa parecer. Pelo que dizem, a vida
natural e digna de ser vivida é a que se desenvolve na face dos planetas. Conclui-se que,
se ligarmos o hiperpropulsor, estaremos cumprindo as leis da natureza e buscando de
modo mais rápido um mundo que nos abrigue.
— Um mundo onde não existe geração de ar — disse C-l em tom pensativo. — Isso
é inimaginável e deprimente. Quem sabe que decepções nos esperam?! Está bem, O-l.
Providencie para que tudo seja preparado. Não podemos assumir qualquer risco. O
primeiro salto deverá ser bem sucedido. Nunca permitirei um segundo salto.
Isso aconteceu no dia 8 de setembro de 2.044.
Dali a dois dias, o primeiro-oficial anunciou que o departamento técnico acabara de
examinar detidamente e analisar o hiperpropulsor e que os respectivos computadores
positrônicos haviam sido ativados. Mas o comandante continuou no seu ceticismo.
— Já sei! O senhor quer os mapas estelares para calcular o salto? — perguntou.
— Sem esses mapas não há possibilidade de executarmos um salto bem orientado.
Neles estão registrados os dados necessários. Nossa posição também pode ser apurada
com base em tais dados.
— Podemos dar-nos por felizes por termos os mapas a bordo — disse o
comandante. — Encontrei-os nesse armário. Aliás, a existência desses mapas pode ser
interpretada como uma prova de que a nave tem permissão para executar manobras
independentes.
— O propulsor também constitui uma prova disso — observou O-l em tom de
triunfo.
Colocou-se ao lado do comandante e inclinou-se sobre os mapas.
— Escolheremos a estrela mais próxima, a fim de que o risco seja o menor possível.
Iremos em linha reta. Só haverá necessidade de uma insignificante correção de rota.
Desde que os dados sejam corretos...
— Por que não seriam corretos? — disse o comandante, que, de repente, parecia
mais confiante que o primeiro-oficial. — Estudei os manuais e aprendi a teoria do salto.
É claro que não sei como as coisas funcionarão na prática.
— Não demoraremos a descobrir — comentou O-l em tom obstinado. — Desde o
momento em que soube que, no interior desta nave, muitas gerações de nosso povo estão
hibernando, sou perseguido dia e noite por um terrível pesadelo: quem sabe se eles não
poderão acordar de repente?
O comandante levantou a cabeça. Seu rosto estava pálido.
— Por que iria acontecer uma coisa dessas, O-l? Só depois de pousarmos num
planeta, nós os acordaremos. Os antepassados, que estavam presentes por ocasião da
decolagem desta nave, já conhecem as condições de vida num planeta. Eles nos ajudarão.
Ao que parecia, o primeiro-oficial estava interessado em encerrar este assunto
desagradável.
— Entregue-me os mapas, C-l, a fim de que eu possa mandar calcular os dados. Um
dos robôs vai nos auxiliar. Pelo que diz, já foi robô de navegação. Os técnicos mais
competentes passaram os últimos dias estudando minuciosamente os detalhes do
mecanismo de propulsão, e outros robôs reprogramados estão à nossa disposição com sua
experiência. Não pode nem deve haver qualquer falha, comandante.
— Naturalmente, O-l. O que devo fazer?
— Permanecerei em contato com o senhor. Quando tudo tiver acertado, bastará
puxar aquela chave embutida. O resto será providenciado pelos dispositivos automáticos.
Oportunamente eu o avisarei.
O comandante seguiu-o com um olhar pensativo.
Parecia que a longa viagem estava chegando ao fim.
Ninguém sabia de onde vinha a nave. O diário de bordo positrônico não dizia nada a
este respeito, e não existia outra fonte de informações. Se tal fonte existira, havia sido
destruída, no momento em que os robôs assumiram o comando. Também o destino e a
finalidade do vôo estavam ocultos nas brumas do tempo.
O comandante lembrou-se das pessoas que hibernavam. Elas estavam empilhadas no
interior de uma imensa esfera oca, situada no centro da nave. Os robôs de vigilância
colocaram-nas lá, uma vez concluído o tratamento nas câmaras frigoríficas. Estas agora
permaneciam vazias, porque ninguém mais dava ordens para alguém ser mergulhado num
estado de hibernação, pois os robôs passaram a ser dominados pelos homens.
O veículo espacial oferecia lugar de sobra para dez mil pessoas, mas aquelas que
dormiam, e que representavam o décuplo dessa cifra, só poderiam ser despertadas após o
pouso num planeta habitável. Caso fossem acordadas antes da descida, a nave não
poderia abrigá-las.
O comandante olhou para as telas.
Lá fora o espaço cósmico se estendia repleto de estrelas. Há um ano nem sabia o que
vinham a ser estrelas. Sem dúvida, para ele, todas eram sóis. Mesmo agora, ainda
ignorava que a maior parte delas possuía planetas nos quais se podia viver e respirar.
Um zumbido arrancou-o das reflexões.
— Aqui fala O-l, comandante. Encontro-me no centro hiperpropulsor. Os robôs de
navegação processaram os dados e me entregaram o resultado, contendo as respectivas
coordenadas. Está tudo devidamente regulado. Já podemos saltar.
O comandante levantou-se e foi até a parede. Colocou a mão sobre a chave
vermelha.
— Tomara que não tenhamos cometido nenhum engano, O-l...
— Fizemos tudo que estava ao nosso alcance para evitar um possível erro,
comandante.
— Está bem — o comandante inspirou e expirou fortemente. — E a tripulação?
— Estão todos nos seus lugares.
— Muito bem! — C-l puxou a chave. Foi fácil movê-la.
Nada dava a impressão de ter mudado. Apenas as estrelas, que a tela mostrava,
pareciam ter sido apagadas por uma mão invisível. Por uma fração de segundo o espaço
sumiu. E logo depois outras estrelas se aglomeravam em estranhas constelações e...
permaneceram na tela.
O comandante sentiu a dor da rematerialização, à qual não estava acostumado. Por
alguns segundos essa dor foi acompanhada de um terrível pavor, mas à medida que ia
passando, o temor de que alguma coisa poderia ter saído errada também perdia a
intensidade.
Com um salto C-l colocou-se junto ao intercomunicador.
— Alô, O-l. O senhor me ouve?
O dispositivo de imagem foi ativado. O rosto do primeiro-oficial parecia perturbado,
mas logo nele começou a desenhar-se um sorriso de triunfo.
— Acho que conseguimos. Com as máquinas está tudo normal. O que está
aparecendo na tela da sala de comando?
— Novas estrelas. O deslocamento de certas constelações faz supor que
percorremos uma distância na qual normalmente teríamos gasto vários decênios. Há um
sol branco bem perto de nós. Estamos voando diretamente em sua direção.
— É a estrela que representa nosso destino.
O primeiro-oficial passou a mão pela testa.
— O senhor está com a razão, C-l. Conseguimos! Dentro em breve pousaremos num
planeta.
— Acha que conseguiremos controlar a nave?
— Os robôs cuidarão disso para nós. Estão obedecendo às nossas ordens.
— Pois mande calcular a nova rota. Não sei quanto tempo levaremos para chegar à
estrela.
— Se mantivermos a mesma velocidade deveremos levar perto de três semanas.
— Quer dizer que teremos tempo de sobra — disse C-l com um suspiro de alívio.
Nem desconfiavam do perigo que corriam...

***

O técnico M-7, acompanhado de M-4, realizou sua inspeção diária no centro da


esfera.
Há um ano essa parte da nave era considerada um tabu para os homens. Só os robôs
tinham acesso à mesma. A violação dessa regra era punida com a morte, que na verdade
não era nenhuma morte, mas a vida eterna. As pessoas condenadas eram levadas às
câmaras frigoríficas, e ali preparadas para a hibernação sem que o soubessem. Quando
isso acontecia, os delinqüentes já estavam inconscientes.
Os dois homens entraram na sala.
As longas fileiras de recipientes, nos quais antigamente costumavam ficar deitadas
as pessoas adormecidas, estavam vazias. Há muito os homens e as mulheres congelados
haviam sido levados à esfera, onde permaneceriam até o momento em que a nave
chegasse ao destino.
M-7 ouviu passos e parou.
“Ninguém tem nada a fazer aqui embaixo”, pensou. “Os antigos robôs de vigilância
foram retirados dali do centro da esfera, porque tiveram de executar trabalhos em outros
lugares...”
Soltou um suspiro de alívio ao reconhecer o médico.
— Olá, D-3! Também está realizando uma inspeção?
O médico aproximou-se dos dois homens e parou à frente deles.
— Estou na ronda diária, M-7. E vocês?
— Também estamos fazendo nossa ronda diária. Esta parte da nave pertence ao meu
setor. Mas não demorará muito e logo poderemos abandonar a nave. É uma idéia
magnífica: abandonar a nave!
O médico fez um gesto de assentimento e olhou para trás, como se tivesse ouvido
alguma coisa. Depois de algum tempo sacudiu a cabeça e disse:
— Estou ouvindo fantasmas. Desde que realizamos o hipersalto, há três dias, as
coisas andam muito esquisitas aqui embaixo.
Passou os olhos pelas longas fileiras de “aquários”.
— Tive a impressão de ter visto uma sombra junto à parede que nos separa da esfera
de gelo. Pedi a um robô que fosse dar uma olhada e... ele não voltou.
M-7 ficou pálido como cera.
— Não voltou?
— É o que acabo de dizer. O robô passou pela comporta de frio, entrou no recinto
em que se encontram as pessoas adormecidas, e não voltou. A comporta voltou a ser
fechada automaticamente.
— Quer dizer que o robô ficou no interior da esfera?
O médico fez um gesto afirmativo. Continuava a aguçar os ouvidos, mas atrás dos
esquifes de vidro tudo continuava em silêncio. O líquido turvo e espesso, em que
costumavam ser guardadas as pessoas aparentemente mortas, permanecia imóvel.
— Por que o comandante não foi avisado? — perguntou M-4 em tom assustado. —
Talvez...
Estacou, como se receasse pronunciar sua suspeita.
O médico não olhou para ele.
— Talvez o quê?
M-4 não teve necessidade de responder.
Atrás da longa fileira de recipientes de vidro, ouviu-se um ruído. Uma sombra saiu
da penumbra e aproximou-se.
Só a identificaram, quando se encontrava à sua frente.
Era um homem e estava nu.

***

A volta do primeiro sopro de vida fê-lo sentir frio, um frio inconcebível.


Estava emergindo à superfície, vindo de uma noite que não conhecera nenhuma luz,
uma noite que devia ter durado uma eternidade, uma noite que não conhecia nenhum
amanhecer.
Mas a manhã acabara de chegar...
Procurou mover os membros, mas não conseguiu. Pareciam estar envoltos numa
blindagem invisível, que irradiava um frio imenso. Mas as pernas pareciam livres.
Começou a tatear com os pés e constatou não ter encontrado qualquer resistência.
A memória começou a funcionar.
A nave dos emigrantes decolara para o grande vôo. Porém os tripulantes foram
dominados pelos robôs, que deram continuidade à missão originariamente programada.
Era a Missão Regeneração, conforme se dissera por ocasião da decolagem. As
testemunhas vivas do presente voltariam a viver num futuro distante. Os conselheiros
sabiam que um belo dia o Império precisaria do sangue jovem, ainda não corrompido.
Os robôs...?
O homem que despertava assustou-se. Tudo dera errado. Despertara cedo demais.
Ou seria tarde demais?
Subitamente lembrou-se de seu nome. Era Alos, o técnico de cibernética,
responsável pelo funcionamento dos robôs que se encontravam a bordo. Fora dominado
pelos robôs, tal qual os outros passageiros.
Por que estava sendo despertado?
Subitamente sentiu a umidade. Em certo lugar o gelo derreteu, transformando-se em
água. Naquele momento percebeu que estava nu.
Conseguiu mover-se com grande esforço, numa só direção. Saiu do pequeno
recipiente de gelo, com os pés à frente e, por alguns segundos, ficou suspenso sobre um
abismo, cuja profundidade não conseguia avaliar. Os dedos endurecidos não conseguiram
mais agüentar o peso do corpo. Soltou-se e caiu.
Percorreu menos de um metro na queda e foi parar no chão.
No mesmo instante, as luzes acenderam-se no teto.
Alos fechou os olhos ofuscados, que por muitos séculos não haviam visto nenhuma
luz. Aos poucos, a retina começou a funcionar e transmitiu as impressões ao cérebro.
Alos começou a enxergar.
Milhares e milhares de homens e mulheres achavam-se empilhados no recinto.
Sobrepunham-se em enormes fileiras, separadas apenas pelas paredes de gelo dos
recipientes nos quais estavam guardados. Conservados dessa forma, poderiam durar por
milênios, desde que a temperatura fosse mantida constante.
Estiver a deitado na terceira fileira, contada de baixo, junto ao corredor central.
Abaixo do seu lugar havia mais dois blocos de gelo, nos quais dois homens se
encontravam imóveis, como se estivessem mortos.
De repente, o de baixo começou a mover-se. Estendeu os pés e a placa de gelo
semiderretida começou a desprender-se. Caiu ao chão e esfacelou-se.
Por um instante Alos desligou-se do que observava. Uma dor lancinante atravessou
seu corpo, ao qual a vida retornava lentamente. O sangue formigava nas veias. Sabia que
o processo de revitalização tivera início há algumas horas. As dores não eram muito
fortes, e por isso não causavam maiores preocupações.
O outro arcônida também começou a sair do lugar. Empurrou a placa de gelo com
os pés e retirou-se pela parte de baixo, onde foi recebido por Alos.
— É o senhor, comodoro Ceshal?
O homem que acabara de despertar lançou um olhar atento para Alos, como se o
visse pela primeira vez. Balançou a cabeça.
— Os robôs devem ter reconhecido seu erro. Resolveram despertar-nos.
Provavelmente não conseguem arranjar-se sem nós.
Alos percebeu que o comandante ainda não havia compreendido toda a verdade. E
esta representaria um choque para ele.
— Quanto tempo dormimos, comodoro Ceshal? O que lhe diz o sentimento?
— Se me orientasse pelo sentimento, diria que dormimos uma hora. Acontece que
os robôs levaram algum tempo para transportar-nos até as instalações e empilhar-nos.
Além disso...
Estacou de repente. Enquanto falava, olhara em torno. A luz forte iluminava as
longas fileiras de pessoas congeladas, que estavam empilhadas até o teto. Não havia
necessidade de contá-las. Ao primeiro relance de olhos, Ceshal percebeu que por ali
descansavam dez ou vinte vezes mais pessoas do que aquelas que se encontravam a bordo
no início da viagem.
— Foi uma hora muito longa, Ceshal — disse Alos em tom amargurado.
— Pelo Império! — exclamou o comandante. — O que aconteceu?
Neste meio tempo mais um homem conseguira libertar-se do bloco de gelo. Era
Ekral, o cientista, que se ergueu e fitou o estranho quadro com os olhos arregalados. Seu
raciocínio cristalino logo começou a funcionar perfeitamente. Mas sua voz parecia muito
rouca, quando constatou:
— Vários milênios devem ter-se passado. Os robôs fizeram exatamente aquilo que
planejamos. Apenas eles o fizeram de uma maneira que corresponde à sua mentalidade.
Lembro-me de que me empurraram para dentro do conversor. Depois morri. E agora
muitas gerações descansam neste túmulo de gelo. Para quê? Por quê?
— Ainda saberemos — disse Ceshal em tom tranqüilizador. — De qualquer
maneira, ligaram o dispositivo que nos desperta. Devemos ter chegado a algum planeta.
Talvez tenham conseguido reparar o hiperpropulsor defeituoso. O rádio não entrou em
pane também após a explosão?
Alos acenou lentamente com a cabeça.
— Minha memória não está nada boa; não me lembro mais com exatidão do que
aconteceu.
Afastou-se para o lado, quando mais dois arcônidas se puseram de pé e ajudaram um
terceiro a sair do esquife de gelo.
— Esta instalação deve funcionar de forma sincronizada — disse Ceshal por entre
os dentes. — Devemos dirigir-nos à saída. O abandono da nave deve ser realizado de
forma ordenada, pois do contrário haverá uma catástrofe.
Passando pelas pessoas que despertavam, os três homens atravessaram
apressadamente o corredor. No fim deste, viram-se diante de uma parede coberta de
cristais de gelo. Apenas uma roda de comando de ferro fazia imaginar o local de saída.
Mas não foi possível movê-la.
— É o fecho — constatou Ceshal. — Só deve ser isso. A câmara frigorífica só pode
ser aberta do lado de fora. Teremos de esperar até que alguém nos solte.
— Quem será esse alguém, comodoro? — perguntou Alos em tom desconfiado. —
Os robôs?
— Não poderemos esperar por muito tempo — observou Ekral e apontou para as
pessoas que despertavam em todos os lados. — Se todos despertarem...
A idéia era apavorante.
Louco de desespero, Ceshal usou toda sua força, mas a roda não se moveu por um
milímetro que fosse. Enquanto isso, a água proveniente do gelo derretido formava
pequenos regatos que iam unir-se no centro da nave. Mas o nível da mesma não subiu.
Fora sugada por algum mecanismo desconhecido.
Pelo menos não morreriam afogados.
Trinta ou quarenta homens espremeram-se pelo corredor e cercaram o comodoro
Ceshal, Ekral e Alos. Outros seguiram-nos. O ar já começava a ficar viciado. A luz forte
aquecia o recinto. Em algum lugar ouviu-se um grito de mulher.
— Temos de sair daqui! — berrou alguém, erguendo os punhos. — Se todos
acordarem...
As palavras restantes não foram pronunciadas, mas a simples idéia bastava para
infundir pavor. Cem mil pessoas encontravam-se no pequeno recinto. Deitados e
empilhados, com o corpo cercado por finas camadas de gelo, houvera lugar para todos.
Mas as camadas de gelo derretiam e as pessoas despertavam. Precisariam de ar para
respirar, de lugar para ficar de pé...
Ceshal continuou a balançar a roda.
— Eles nos acordaram, minha gente — disse, procurando dar um tom autoritário à
voz. — Eles também nos libertarão em tempo. Talvez as manobras de pouso ainda não
tenham sido concluídas.
Nos fundos do depósito, a mulher continuava a gritar. Procuraram tranqüilizá-la,
dizendo que seu marido não estava morto e também não demoraria a despertar. Quanto
ao filho...
Bem, o filho já seria um homem, talvez até mais velho que ela.
Subitamente o comodoro Ceshal estacou. A roda, contra a qual usava a sua força,
tremera ligeiramente e girara alguns centímetros.
Levantou os braços e exigiu silêncio.
A roda continuava a girar. Uma pequena fresta abriu-se na parede. Do lado de fora
estava tudo escuro. Um vulto penetrou no depósito e ficou parado.
Ceshal agiu de forma instintiva.
Levantou a mão e girou a roda em sentido contrário. A porta voltou a fechar-se. O
intruso voltou-se abruptamente, mas já era tarde.
Ceshal fitou o rosto inexpressivo de um robô.
— O que aconteceu lá fora, na nave? — perguntou. — Responda!
Na verdade, não esperava nenhuma resposta, pois quando pela última vez vira um
robô, este comandava a nave. Mas, para seu espanto, a máquina que tinha à sua frente
mostrou-se obediente.
— O hipersalto deve ter ativado o equipamento que desperta os adormecidos,
senhor. Isso não estava previsto.
O robô o chamara de senhor. Ceshal registrou o fato com uma forte sensação de
alívio. Será que os amotinados haviam refletido sobre seus atos — agora, que sem dúvida
já era tarde?
— O hipersalto? O mecanismo voltou a funcionar?
— O mesmo nunca apresentou qualquer defeito, senhor.
Admirando-se, Ceshal fitou o robô.
— O quê?
— Só sei que o mecanismo nunca apresentou qualquer defeito, senhor. Minha
memória foi parcialmente apagada, e por isso não posso dar outras informações. Recebi
ordens para entrar neste recinto e apurar a origem de um ruído que foi ouvido do lado de
fora. Permita que eu volte, a fim de relatar o que aconteceu.
— Relatar a quem?
E o robô começou a contar...

***

Num gesto destemido, o comodoro Ceshal abriu a comporta de frio e dirigiu-se aos
três homens, que se espantaram ao vê-lo.
— Então? — disse em meio ao silêncio de morte. — Vocês nos despertaram;
providenciem roupas para nós. Depois que o sangue voltou a circular em nossas veias,
passamos â sentir frio. Vocês puseram fim ao domínio dos robôs. Portanto, resolvam este
problema.
A-3 foi o primeiro a recuperar-se do susto.
— Quem despertou? Quantos?
— Espero que sejam todos. Não sabemos se a instalação funciona perfeitamente.
Ekral e Tunuter ajudaram a construí-la e, portanto, também são responsáveis por ela.
O médico empalideceu.
— Todos? Só deveremos chegar ao planeta daqui a três semanas. Onde vamos
arranjar roupas para todos? Volte à câmara de hibernação e tranqüilize o pessoal. Na nave
não há lugar para todos...
— O senhor está louco! — disse Ceshal com a voz fria. — Somos mais de cem mil
arcônidas, entre homens e mulheres, comprimidos num espaço extremamente reduzido.
Precisamos de roupas e de alimentos. Ainda acontece que, de direito, eu sou o
comandante da nave.
Com uma terrível nitidez, D-3 pressentiu as complicações que se aproximavam.
Quem dera que pudesse avisar C-l do perigo, sem provocar as suspeitas do homem que
acabara de ser despertado.
— Naturalmente seu posto será respeitado — disse em tom cauteloso. — Acontece
que não tenho poderes para tomar qualquer decisão. Sou apenas um dos médicos de
bordo. Desde o momento em que reprogramamos os robôs, assumi certas
responsabilidades. Antes disso, bem, é uma história muito longa. Acho que adquirirá um
sentido mais claro, se interpretada com os dados que o senhor poderá acrescentar. Venha
conosco. Vamos apresentá-lo a C-l. Ele encontra-se na sua sala de comando.
Ceshal fitou-o atentamente.
— Não adianta mentir para mim, doutor. Nasci milhares de anos antes do senhor e
pertenço à família reinante do Império...
— De que império? — perguntou D-3.
Ceshal começou a imaginar o grau de esquecimento que se espalhara entre os
descendentes. Os robôs haviam cuidado disso. Deveriam ter tido seus próprios planos
com os humanos. Que planos seriam estes?
— Somos arcônidas e donos de um império estelar de dimensões inimagináveis.
Fomos incumbidos de realizar uma experiência, mas a mesma foi mal sucedida. Talvez
não. Minha memória está falhando. Na sala de comando deve haver indicações a este
respeito, se é que não foram destruídas pelos robôs. Muito bem, doutor. Leve-me ao
comandante.
A mudança de disposição foi tão rápida que D-3 se sentiu surpreso. Foi a um
armário e revirou-o até encontrar uma coberta. Entregou-a a Ceshal.
— Vamos. Acho que não podemos perder um minuto, se quisermos evitar uma
catástrofe. M- 4 e M-7, fiquem aqui. Cuidem para que ninguém mais saia da câmara fria.
Depois de ligeira hesitação pôs a mão no bolso e tirou uma pequena arma de
radiações.
— Usem, se preciso, esta pistola. Ceshal esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas
preferiu ficar calado e envolveu-se no cobertor. Não fazia uma figura muito imponente e
começou a desconfiar dos efeitos psicológicos de um uniforme bem talhado. O médico
fez-lhe um sinal e foi andando à sua frente. Seguiu-o, sem dizer uma palavra. Antes de
abaixar-se para passar pela porta, olhou para trás.
Os dois técnicos se haviam postado junto à comporta de frio. Seus rostos exprimiam
uma resolução implacável.
Ceshal desconfiou de que as dificuldades apenas estavam começando...

***

O comandante soube dominar-se muito bem.


No momento em que D-3 entrou na sala de comando ao lado do arcônida
despertado, C-l acabara de receber de O-l a notícia pouco tranqüilizadora de que os
técnicos haviam constatado falhas graves na sala de máquinas. O hipersalto devia ter
causado alguns curto-circuitos. Os bancos de energia se haviam descarregado. Ninguém
sabia de que forma a energia fora consumida. Não havia a menor dúvida de que o
mecanismo de transição não estava mais em condições de funcionar.
O salto a uma distância de vinte anos-luz fora bem sucedido, mas tiveram de pagar
muito caro pelo mesmo. Só no momento em que D-3 entrou com o visitante involuntário,
C-l deu-se conta de como o preço era elevado.
— Quem é este? — perguntou com a voz tranqüila.
O primeiro-oficial empalideceu, mas não disse nada.
— As pessoas adormecidas despertaram, C-l — respondeu o médico em tom
nervoso.
— Onde foi que vocês o encontraram?
— Saiu da câmara fria. Conseguiram dominar um robô que mandei lá para dentro.
Foi ele que lhes abriu a comporta... Deixei M-4 e M-7 para vigiar o local. Devemos
providenciar reforços imediatamente, se quisermos evitar uma catástrofe.
O-l controlou-se. Fez um sinal para
C-l e saiu apressadamente da sala de comando.
Ceshal viu-se tomado de surpresa.
— O que é que o senhor está pensando? — perguntou em tom indignado, apontando
para a porta. — Não me venha dizer que vai utilizar soldados contra gente desarmada.
Sabe com quem está falando? Sou o comodoro Ceshal, chefe desta expedição. Os
senhores são meus subordinados. Providenciarei para que...
— Receio que o senhor não esteja avaliando corretamente a situação —
interrompeu-o D-3. — O senhor já foi comandante desta nave, há dez mil anos. Mas
permitiu que os robôs assumissem o poder. Os robôs passaram a ser os senhores; os
homens, os servos. Nós nos rebelamos contra o domínio das máquinas e saímos
vitoriosos. E agora o senhor sai do túmulo e vem nos dizer que é o comandante...
C-l fez um sinal para o médico. Sentia-se grato pelo apoio que o doutor lhe estava
proporcionando.
— Como vê, meu caro, suas reivindicações morais não têm uma base muito firme.
Se é que o senhor já foi comandante desta nave, isso faz muito tempo. Acontece que, no
momento, eu sou o comandante. E fui eu quem dirigiu a revolta contra os robôs.
— Sou o comodoro Ceshal...
— Muito bem — respondeu C-l. — Use o nome que quiser. Mas providencie para
que seu pessoal fique no interior da cúpula de gelo. Dentro de três semanas, no máximo,
chegaremos a um planeta e pousaremos. Quando isso acontecer, tudo se resolverá por si.
— Três semanas! Ficaremos congelados! — gritou Ceshal, perdendo
completamente o autocontrole. — O senhor só pode estar louco! Dentro de três semanas
todos nós já estaremos mortos, ou de fome ou por asfixia. Foram vocês que nos
despertaram antes da hora. Providenciem para que não morramos.
C-l não pôde mostrar-se indiferente a esses argumentos. Naturalmente era
responsável pelo fato de as gerações adormecidas terem despertado. Mas não via nenhum
meio de ajudá-las, sem colocar em risco sua vida e a dos tripulantes.
— Ceshal, a bordo da nave não existem mantimentos nem roupas para tanta gente.
Naturalmente faremos o possível para satisfazer as necessidades mais prementes.
Distribuiremos cobertores e forneceremos rações de emergência. No entanto, exijo a
disciplina mais rigorosa. Nenhuma das pessoas adormecidas poderá deixar o convés
central. Mandarei postar sentinelas. Acredito que assim será possível...
— Vai dar ordens para que os seus atirem contra os velhos arcônidas? — perguntou
Ceshal em tom indignado. — O senhor se esquece de que são descendentes puros das
castas governantes e parentes de sangue da estirpe do imperador.
— Do imperador? — perguntou O-l, que acabara de voltar à sala de comando e
ouvira as últimas palavras. — O que é que nós temos com seu imperador? Vivemos de
acordo com as leis desta nave, como todos que vieram antes de nós. Quem foi que nos
colocou nesta situação?
Ceshal reconheceu que não conseguiria nada com seus argumentos.
— Não devemos falar em culpa, mas pensar no futuro. No nosso futuro. Quando foi
que o senhor manteve o último contato pelo rádio com as naves do Império?
C-l fitou Ceshal como quem não compreende nada.
— Contato com outras naves? Será que existem outras naves além da nossa?
Ceshal começou a desconfiar de que não seria tão simples chegar a um acordo. O
“grande esquecimento” interpunha-se entre ele e os descendentes. Esteve a ponto de
iniciar uma explicação, quando se ouviu o som estridente de uma campainha.
Vinha de um dos cantos da sala de comando. O primeiro-oficial correu para junto da
tela e girou alguns botões. Quando a tela pálida se iluminou, surgiu um rosto que parecia
conhecido até mesmo a Ceshal.
— O que aconteceu, M-7? De onde está falando? Acho que o senhor...
— Foi no convés central. Não conseguimos deter os antepassados, O-l. Passaram
por cima de M-4, quando ele quis detê-los de arma na mão. Consegui colocar-me em
segurança a tempo e fechei a escotilha da comporta que dá para o convés central. Agora
lhes será mais dificultoso ultrapassar...
— Mande guarnecer todas as comportas, M-7. Devemos impedir os antepassados
pela força das armas, de inundarem toda a nave. Isso seria o fim.
— Com a colaboração dos robôs, conseguiremos — garantiu o técnico.
A tela apagou-se.
O comodoro Ceshal ouvira tudo, mudo de pavor. Sabia perfeitamente que os
arcônidas despertos não podiam ser mantidos presos num espaço extremamente exíguo,
pois isso acarretaria uma catástrofe. Pelo menos alguns já haviam conseguido fugir das
câmaras geladas. O convés central era amplo. Compreendia os doze pavilhões redondos,
com as salas de preparativos, os recipientes de vidro e algumas salas de máquinas.
Fazendo uma divisão adequada e mantendo uma ordem rígida deveria ser possível
agrupar as pessoas de forma tal...
— E agora? — indagou C-l em tom furioso. — O que me diz, arcônida? Lá embaixo
o inferno está às soltas, exclusivamente por sua culpa.
— Por minha culpa?! — perguntou Ceshal, em tom amargurado. — Deixe-me
voltar para junto de minha gente, para que possa acalmá-la. Talvez consigamos arranjar-
nos no convés central.
— Terão de arranjar-se — disse C-l em tom ríspido. — Reprimirei qualquer
tentativa de fuga, usando de todos os meios que estão ao nosso alcance. As rações de
mantimentos lhes serão fornecidas através das comportas, mas isso somente se
obedecerem à nossas instruções. Ainda providenciarei a distribuição de roupas. Não serão
suficientes, mas quero que ao menos as mulheres não andem nuas. Conduzirei uma
quantidade suficiente de ar morno para o convés central. Espero que, com isso, tenha
feito tudo para tornar-lhes a vida o mais suportável possível.
— Obrigado — respondeu Ceshal.
Não lhe foi nada fácil pronunciar esta palavra. Em sua opinião, C-l era um bárbaro
ignorante, que se tornara comandante em virtude de um acaso. O imperador de Árcon e
seu conselheiro científico haviam formulado uma previsão correta ao afirmarem que, no
futuro, a raça atravessaria um processo de degenerescência. Quem dera que houvesse
uma possibilidade de verificar quanto tempo se passara desde então...
— O senhor pode voltar para junto de sua gente, comodoro Ceshal.
C-l fez um gesto condescendente para o homem envolto apenas num cobertor e
voltou a manipular os botões da tela. D-3 segurou Ceshal pelo braço.
— Venha comigo. Estão precisando muito do senhor.
Pelos corredores encontraram-se com vários homens armados, que se dirigiam a
seus postos. Robôs com mantimentos, cobertores e peças de roupa entravam nos
elevadores antigravitacionais e deixavam-se cair para o convés central.
— Como vê, não temos a intenção de deixá-los perecer — observou o médico,
enquanto esperavam uma vaga para usarem o elevador. — É necessário que o senhor
compreenda que a anarquia seria a morte de todos.
No seu íntimo, Ceshal não pôde deixar de dar-lhe razão. Mas o orgulho impediu-o
de reconhecê-lo. A contragosto fez um gesto de assentimento.
— Um dia vocês ficarão satisfeitos, se nós os ajudarmos. Conhecemos a vida
melhor que vocês, que nasceram na nave e nunca viram um planeta. Quando quiserem
construir uma civilização e entrar em contato com o Império, precisarão de nós.
— Com o Império? Será que ele ainda existe? Se existisse, já se teria interessado
por nós.
Ceshal não respondeu. Era este um ponto que o havia preocupado demais. Devia ter
ocorrido algo no Império, pois do contrário não se poderia compreender a interrupção dos
contatos. Isso acontecera, talvez, na época que os robôs assumiram o governo da nave. E
o Império aceitara o fato.
O elevador ficou livre, e eles desceram em direção ao centro da nave. As fileiras de
guardas fortemente armados deixaram-nos passar. Diante da comporta fora montada uma
peça de artilharia ligeira. O cano apontava para a escotilha fechada. D-3 parou.
— Vamos abrir a escotilha, Ceshal. O senhor ordenará aos seus homens que recuem
e o deixem entrar. Qualquer um que se oponha às nossas ordens, será morto
imediatamente. Somos obrigados a tomar essa atitude, Ceshal, pois do contrário
morreremos todos. Está preparado? Ceshal fitou os olhos do médico. — O senhor pensa
que somos tão primitivos quanto os senhores. Realmente acredita que, se voltássemos a
assumir o governo da nave, aconteceria uma catástrofe?
D-3 viu os olhos do comodoro dirigidos para si. Sua resposta não correspondeu
inteiramente à sua convicção:
— O senhor só causaria um desastre, Ceshal. A geração de hoje pode ser menos
capaz do que a sua, mas não há dúvida de que saberemos agir com maior ponderação.
Além do mais, o senhor sabe que não temos outra alternativa. Vá andando.
Fez um sinal para a sentinela que estava postada junto à porta.
A escotilha só podia ser aberta manualmente. Só em caso de emergência entrava em
ação o comando central, que era automático.
Viu-se uma fresta.
Mas a fresta permaneceu apenas por um segundo. Logo transformou-se numa
grande abertura, criada pela força de duas ou três dezenas de pessoas nuas que se
comprimiam contra o obstáculo que cedia de repente.
— Parem! — gritou Ceshal em tom assustado e levantou os braços. — Fiquem onde
estão!
Suas palavras perderam-se em meio ao grito dos homens desesperados. D-3 viu que
os homens mal conseguiam manter os pés sobre o chão. Não dominavam os próprios
movimentos. Aqueles que vinham na frente transformaram-se no alvo da guarnição do
canhão.
Nem mesmo D-3 conseguiu impedir a luta.
Através do fogo energético e das nuvens de fumaça, saltavam os vultos nus,
precipitando-se com uma coragem a toda prova sobre os guardas armados. Os arcônidas
despertos, por serem numerosos, tentavam dominar seus opositores.
Ceshal percebeu a chance única que se lhe oferecia. Virou-se e acompanhou a
torrente humana, que investia contra os tripulantes da nave. Estes fugiram, dominados
pelo pânico. Ele mesmo abateu D-3 com o punho e viu-o desaparecer sob os pés dos
homens nus. Seu cobertor já havia caído no chão. Nu como os outros, foi abrindo o
caminho para a liberdade.
O alarma ressoara por toda a nave.
A escotilha seguinte fechou-se automaticamente.
De qualquer maneira, a primeira geração conseguira ampliar consideravelmente sua
área de influência. Mais uma parte da esfera encontrava-se em seu poder.
O comodoro Ceshal soltou um suspiro de alívio, quando viu Alos.
— Alos, venha cá!
Esperou que o outro se encontrasse a seu lado.
— O senhor conhece esta área? Podemos atingir algum setor vital da nave, sem
passar por outras escotilhas?
O cibernético baixou a mão que segurava a barra de ferro.
— Podemos atingir as instalações de renovação de ar, comodoro. Será que são
importantes para as finalidades que tem em vista?
Ceshal respirou profundamente.
— São — disse, sem reprimir o brilho de triunfo de seus olhos. — As instalações de
renovação de ar são muito importantes. Com isto, a primeira geração volta a assumir o
poder no interior da nave.
Depois desenvolveu seu plano de batalha.
4

A estrela branca crescera na tela de imagem.


Os oficiais navegadores haviam realizado seus cálculos, ao lado de O-l e O-2, e
chegaram à conclusão de que, dentro de alguns dias, a nave seria captada pelo gigantesco
campo de gravitação do sol.
Acontece que os propulsores apresentavam avarias. Não reagiam mais. Face a isso,
a nave se precipitaria para o sol e se incendiaria.
Os técnicos trabalhavam ininterruptamente nas salas de máquinas, para conseguir ao
menos uma modificação de rota. Seus esforços não deram o menor resultado. A nave
prosseguia em sua trajetória, aproximando-se implacavelmente da destruição. A longa
viagem poderia ter um fim abrupto e terrível.
Em meio a este clima de desespero, irrompeu outra notícia calamitosa. O ar no
interior da nave tornava-se cada vez mais viciado e não havia como renová-lo.
C-l convocou os técnicos para uma conferência na sala de comando e teve o
desgosto de descobrir que as instalações de renovação de ar ficavam na parte da nave
controlada pelos homens despertados. Com isso, as frentes de combate se delimitavam. O
comandante entrou em contato com os “rebeldes”. O intercomunicador continuava a
funcionar perfeitamente.
Quando a tela se iluminou, viu Ceshal e os outros homens, que vestiam cobertores
ou macacões. Todos estavam armados.
— Ah, é o comandante! Ao que parece, nossa tática não ficou em segredo por muito
tempo. Tem alguma sugestão?
C-l fez como se não tivesse percebido a ironia. Respondeu em tom sério:
— Receio que tenhamos apenas mais dez dias para a nossa guerra. Estamo-nos
precipitando para o sol branco. Os propulsores falharam. Devem ter sido danificados
durante a transição, a mesma transição que despertou vocês. Sugiro que façamos as
pazes.
Um sorriso frio surgiu no rosto de Ceshal.
— O senhor fala em paz, comandante, e nos tranca bem no centro da nave. Mal e
mal conseguimos lugar para todos, e só metade das pessoas despertou. Quando o restante
sair da câmara fria, haverá uma catástrofe. Abram todas as comportas que dão para as
áreas exteriores, ou faremos com que morram asfixiados.
C-l sacudiu a cabeça. Levantou um pedaço de papel no qual estavam escritos alguns
números.
— O senhor deve ter aí algum matemático que poderá conferir meus cálculos,
Ceshal. Se eu liberar a nave e se todas as pessoas adormecidas despertarem, estaremos
perdidos. Mesmo bem racionados, os mantimentos só darão para uma semana. Acontece
que dificilmente atingiremos o planeta mais próximo em menos de três semanas, e isso se
conseguirmos reparar os propulsores. Portanto, faço-lhe a seguinte proposta: mande
fechar a câmara fria! Não deixe sair mais ninguém. Temos de sacrificar as pessoas que
ainda estão dormindo. Só assim conseguiremos sobreviver.
Ceshal lançou um olhar apavorado para C-l e sacudiu a cabeça.
— Rejeitamos sua proposta, comandante. Preferimos deixar que vocês morram
asfixiados a sacrificar cinqüenta mil arcônidas. Reconheço que ficaremos bastante
apertados. Porém, nos pavilhões, depósitos, hangares e corredores há lugar para todos. Os
mantimentos serão suficientes para alimentar-nos até o momento do pouso, desde que
sejam distribuídos adequadamente e todas as energias disponíveis sejam conduzidas para
os centros de produção de alimentos sintéticos. Se cooperarmos, a salvação ainda é
possível, comandante. Mas apresento uma condição. O senhor me reintegrará
pessoalmente no posto que já ocupei e que me cabe de direito. Sou o comodoro desta
nave.
C-l quis respirar profundamente, mas quase ficou sufocado com a tentativa. De
repente percebeu que o ar já estava muito viciado.
— Forneceremos mantimentos em troca de ar...
Ceshal sacudiu a cabeça. Um sorriso frio surgiu em seu rosto.
— Não estabeleça condições, comandante. Se alguém pode estabelecê-las, somos
nós. O ar é mais importante que a comida. Agüentaremos por mais tempo que os
senhores. Quando tiverem morrido asfixiados, arrombaremos as passagens. Além disso,
dispomos do pessoal e dos conhecimentos necessários para reparar os propulsores.
Então?
C-l olhou em torno. Só viu rostos perplexos. Até mesmo O-l, geralmente tão
inteligente e confiante, não parecia ter uma boa saída para o caso.
O comandante voltou a dirigir-se à tela.
— Muito bem, Ceshal. Mandarei abrir as comportas. Venha à sala de comando,
acompanhado por alguns técnicos. Poderemos conversar calmamente. Tome suas
providências para que seus homens se comportem e não saqueiem os depósitos de
mantimentos. Se isso acontecer, mandarei atirar contra eles.
— Não se esqueça de que também possuímos armas, comandante.
C-l se admirava de que Ceshal ainda o tratava por comandante, mas como não
conhecia outro nome, naturalmente não poderia ser diferente.
— Porém não se preocupe — anunciou o comodoro. — Disponho de oficiais
competentes da primeira geração. Eles tomarão todas as providências para que haja
ordem. E também para que haja um vigoroso contra-ataque, caso isso se torne necessário.
— Que o destino siga seu curso — declarou C-l, em tom de lamento, e fez um sinal
para o primeiro-oficial. — Mandarei abrir a comporta principal. Providencie para que o
equipamento de renovação de ar seja ativado imediatamente. E apresse-se para chegar à
sala de comando. Não dispomos de muito tempo.
As câmaras instaladas a bordo, as telas e os avisos transmitidos pelo
intercomunicador mantiveram C-l informado sobre o que estava acontecendo no interior
da nave. Os dez mil tripulantes ficaram perplexos ao assistirem à pacífica invasão das
pessoas nuas. Mas quando notaram que a torrente não terminava, sentiram-se tomados de
desespero. Os “intrusos” iam tomando assustadoramente os corredores infindáveis da
nave!
Os oficiais de ambos os lados mantinham a ordem. Alguns deles podiam ser
reconhecidos pelos macacões, outros pelos cobertores que os envolviam.
O comodoro Ceshal, o cientista Ekral, o técnico Tunuter e o cibernético Alos foram
levados à sala de comando por um oficial. No caminho encontraram-se com grupos
armados, encarregados do policiamento, cujos rostos zangados não prenunciavam nada
de bom.
De repente voltou a soar o ruído de batalha.
— Já está começando de novo — disse o oficial em tom preocupado. — Tomara
que ainda consigamos chegar à sala de comando. Não posso fazer...
Não ficaram sabendo o que ele não poderia fazer.
Mais um grupo da milícia formada às pressas surgiu à frente deles. Quando viu os
quatro homens envoltos em cobertores, o chefe apontou sua arma. Talvez pensasse que o
oficial, que se encontrava no centro do grupo, fosse prisioneiro dos antepassados.
— Pare!
O comodoro Ceshal estendeu a mão em sua direção.
Os soldados, que eram cinco, ficaram tão surpresos com o gesto, que só um deles
chegou a disparar. A pontaria não foi boa, e o tiro atingiu o oficial que levaria Ceshal e
seus homens à sala de comando.
Os guardas ficaram apavorados, e tornaram-se um alvo fácil: foram mortos pelo
grupo de Ceshal.
Ligeiros, os quatro despertos correram em direção ao elevador mais próximo. Não
seria conveniente alguém os encontrar por ali. Ninguém acreditaria que haviam agido em
legítima defesa. Seriam acusados até mesmo da morte do oficial.
Conheciam muito bem a nave, e por isso tinham a impressão de que poucos dias se
haviam passado desde o momento em que foram substituídos pelos robôs e colocados em
estado de hibernação. Na verdade, alguns milênios se haviam passado e, durante estes,
outras gerações surgiram.
Quando já se encontravam próximos à sala de comando, ouviram o ruído dos
ventiladores, que aspiravam o ar viciado. Estava mesmo na hora de começarem a
funcionar, pois mal se conseguia respirar. Os dutos traziam ar puro e fresco. O mesmo
infundia vida e confiança.
Antes de chegarem à entrada da sala de comando, Ceshal e seus três companheiros
foram recebidos por dois oficiais. Pediram ao grupo do comodoro que entregasse as
armas.
O rosto de Ekral assumiu uma expressão sombria. A mão que segurava a pistola
energética pendia molemente junto ao corpo. Ninguém poderia imaginar com que rapidez
Ekral seria capaz de usar a pistola. Ceshal balançou a cabeça.
— Não somos seus prisioneiros, tenente. Seu comandante nos garantiu ampla
liberdade. Além disso, dentro em breve, toda e qualquer resistência às ordens do
comandante será punida severamente, como nos velhos tempos. Saia do caminho,
tenente.
A voz de Ceshal voltara a ter o costumeiro tom de comando dos velhos arcônidas:
era autoritária e arrogante. O tenente recuou instintivamente um ou dois passos e baixou
sua arma.
Alos aproveitou a oportunidade. Aproximou-se rapidamente e colocou-se entre os
dois tenentes. Ceshal passou por eles, seguido por Tunuter. Ekral apontou a pistola para
os dois homens surpresos.
— Cavalheiros! — disse em tom severo.
— Os senhores serão acusados de resistência contra os superiores, se tentarem deter-
nos. Façam o favor de se acostumarem à nova situação. E lembrem-se de que, sem nossa
ajuda, a nave se precipitará para dentro do sol.
Enquanto isso, Ceshal já havia chegado à sala de comando. Abriu a porta e entrou.
C-l estava de pé junto aos controles e fitou-o.
— Viemos para assumir o comando da nave — disse Ceshal, em tom compenetrado.
— Espero que a tripulação tenha sido informada sobre a mudança, comandante.
C-l conseguiu dominar-se. Os três auxiliares do comodoro também entraram.
— Ceshal, receio que uma mudança de comando já não conseguirá modificar a
situação. Por mim pode voltar a considerar-se o comodoro. Não tenho a menor objeção.
Ceshal olhou em torno sem compreender nada. Só viu rostos indiferentes. A tela
vazia do intercomunicador parecia uma nuvem de neblina.
Sentiu um calafrio.
— O que aconteceu? — perguntou. — Por que de repente você desistiu de
comandar a nave? Não me diga que pretende...
— Perdemos o controle sobre a tripulação, Ceshal. Os oficiais estão amotinados. As
comunicações pelo intercomunicador foram interrompidas. Alguns dos meus
mensageiros foram assassinados. A guerra irrompeu entre as pessoas despertadas e a
tripulação atual. Ninguém cumpre minhas ordens.
Um sorriso amargo surgiu no rosto de C-l, que esboçou um gesto de resignação.
— Comodoro Ceshal, o senhor não acha que, nestas condições, qualquer um que
comande a nave nada conseguirá?
Ceshal sacudiu lentamente a cabeça.
— Não; não acho. Pelo contrário! Parece-me que é muito importante eu assumir o
comando. Poremos fim à guerra que se trava no interior da nave. E isso o mais rápido
possível. Ekral, o senhor é um cientista. Procure encontrar uma possibilidade de submeter
a tripulação, sem incapacitá-los para o trabalho. Ou então recorra aos robôs. Isso talvez
caberia a Alos. Antes de mais nada, temos de examinar o mecanismo propulsor.
C-l afastou-se, quando Ceshal iniciou suas atividades sem maiores intróitos. A
diferença dos milênios tornou-se evidente. Ceshal era um homem jovem e enérgico da
primeira geração da família governante da velha Árcon. A degenerescência não o
atingira. E essa circunstância começou a produzir seus efeitos no interior da nave.
Os cinco mil homens e mulheres, que ainda chegaram a ver o sol de Árcon brilhar
no céu, conseguiram impor-se. Em todos os lugares assumiam as posições mais
importantes e as guarneciam com oficiais de confiança. Os depósitos de roupa foram
esvaziados e seu conteúdo distribuído. As provisões de mantimentos tornaram-se
suficientes para a primeira refeição quente. Enquanto esta era distribuída, a produção foi
reiniciada. Os robôs passaram a obedecer aos novos senhores.
Em outras partes da nave, os membros da primeira e da última geração se
encontravam e travavam batalhas encarniçadas. Ninguém estava disposto a ouvir sequer
os argumentos da outra parte. Mas enquanto os homens de C-l se transformavam em
anarquistas, os súditos de Ceshal continuavam a agir dentro da disciplina, conforme
mandava a tradição.
Mas muitas vezes a fome falava mais alto que o sentimento de tradição.
As mulheres haviam ficado no convés central. Recebiam roupas e mantimentos
através da comporta. Entretanto os víveres logo eram consumidos, pois os arcônidas, à
medida que iam acordando e saíam da esfera de gelo, investiam contra os distribuidores.
Não era possível esclarecer um por um, a respeito do que estava acontecendo. E assim
surgiram divergências e atritos.
Dias depois, Alos conseguiu formar um grupo de sete robôs fortemente armados e
programados de acordo com seus objetivos.
Teve de “capturá-los” e “iludi-los”, um por um, pois não lhe obedeciam. Mas agora,
com os comandos eletrônicos e os reflexos programados, formavam um grupo de aliados
de valor inestimável.
Protegidos por esta força de combate, Ekral, Tunuter e Alos avançaram até a sala
dos propulsores, onde deveriam localizar o defeito mecânico. Se conseguissem descobri-
lo em tempo, ainda poderia haver uma salvação.
Do contrário...
Por mais de uma vez tiveram de recorrer às armas.
Saído não se sabe de onde, um grupo de trabalhadores, soltando gritos histéricos,
precipitou-se contra os robôs. Estavam armados com facas, machadinhas e raspadores
metálicos. Ekral procurou preveni-los, mas seus esforços não deram o menor resultado. E
os robôs reagiam automaticamente...
O segundo ataque foi desfechado por um grupo de homens nus. Nos olhos de todos
eles chamejava um princípio de loucura. Não davam ouvido a qualquer advertência e nem
se deixaram intimidar pelas armas ameaçadoras dos robôs. E outra vez, os robôs agiram...
Alos amaldiçoou a nave e sua missão e só teve um desejo: morrer o quanto antes,
para não continuar a matar.
Mas se falhasse agora, muito mais gente morreria... Todos aqueles que se
encontravam na nave.
Quando dobrou uma curva do corredor, ainda viu seis ou sete vultos envoltos em
trapos que fugiam.
Deixaram alguma coisa para trás.
Alos viu que Ekral e Tunuter fitavam a “tal coisa”, com os olhos arregalados.
Era o corpo nu de um ser humano.
Ou melhor: aquilo que sobrara do mesmo.
5

O calendário de bordo indicava o dia 29-09-2.044 e 16 horas e 57 minutos, tempo de


Terrânia.
O comandante Kyser cerrou os olhos quando o instrumento automático de escrita
começou a tiquetaquear. O gravímetro iluminou-se, indicando a existência de uma
alteração do campo gravitacional. As telas cintilavam nervosamente.
Na tela frontal não houve nenhuma modificação. O sol anão branco mantinha-se
num esplendor frio no centro da lâmina e parecia totalmente imóvel. Seu campo
gravitacional era muito potente e sacudia fortemente os campos de estabilização do
cruzador ligeiro.
— Matéria sólida em quantidade reduzida, à frente e à direita — disse o Tenente
Lunddorf, do setor de navegação. — É uma pequena lua, ou a nave.
— Tomara que seja a nave — disse Kyser.
Se justamente ele encontrasse a nave arcônida dos antepassados, seria um acaso
incrível. Mas, em parte, o êxito poderia ser atribuído a ele e seus tripulantes.
— Fazer a localização goniométrica. Dali a dez minutos não restava mais a menor
dúvida.
Haviam encontrado o gigantesco barco espacial arcônida.
A nave ia, em queda livre e em velocidade crescente, direto ao sol branco, já se
encontrando sob a influência de seu campo gravitacional. Alguns cálculos rápidos
revelaram que, dentro de exatamente três dias e quatorze horas, se evaporaria sob a
incandescência do anão escaldante.
Kyser mandou armazenar os dados relativos à sua posição no computador
positrônico do setor de navegação e dirigiu-se à sala de rádio.
Dali a meia hora, Terrânia respondeu. O Marechal Freyt encontrava-se do outro lado
da linha.
— Acabamos de localizar a nave que está sendo procurada, sir. Quais são suas
ordens?
— Forneça os dados exatos e aguarde.
Enquanto Kyser transmitia a posição, Freyt entrou em contato com Rhodan. Tudo
corria conforme fora previsto. Não se perdeu nem um segundo. Enquanto as últimas
instruções eram transmitidas, a Drusus foi preparada para a decolagem. Rhodan foi no
turbocarro até o espaçoporto.
Bell e Gucky puseram fim às suas mini-férias. Não tiveram tempo para uma viagem
de automóvel. O rato-castor, conduzindo Bell, teleportou-se para o interior da sala de
comando da Drusus, onde o Coronel Baldur Sikermann já estava sentado diante dos
dispositivos de controle de vôo e aguardava resultado dos cálculos positrônicos.
Rhodan só chegou dali a cinco minutos. Ignorou o sorriso de triunfo de Gucky e
dirigiu-se a Sikermann:
— Todos os mutantes que deverão acompanhar-nos já estão a bordo?
— Sim senhor. Estamos prontos para a decolagem.
— Muito bem. Decole. Outros dados ainda lhe serão fornecidos.
Foi só.
Os propulsores rugiram e arrastaram a gigantesca nave para o alto. A Terra
mergulhou nas profundezas do espaço e logo se transformou numa bola verde-azulada.
Depois da primeira transição, Rhodan ofereceu num relato.
— Pelo que conseguimos apurar, a nave dos antepassados está desgovernada.
Suponho que o hipersalto não tenha sido suportado muito bem pelos propulsores. Está
caindo em direção de um sol anão que possui forte campo gravitacional. Devemos tentar
captar a nave com os raios de tração e desviá-la. Resta saber se conseguiremos fazê-lo.
Só dispomos de algumas horas.
Os relês do computador positrônico começaram a tiquetaquear.
— Será que devo tentar estabelecer contato por meio de meu cruzador? —
perguntou o comandante Lund em tom entusiasmado. — Dizem que posso conseguir,
porque o formato de minha nave...
— Não podemos perder tempo com experiências — disse Rhodan em tom mais
áspero do que pretendera. — Temos de lançar mão imediatamente dos teleportadores.
Não podemos desperdiçar um segundo que seja.
Nem desconfiava de como estava com a razão.
O segundo salto foi bastante exato.
Quando o espaço voltou a ficar ao alcance de suas vistas, à sua direita havia uma
pequena esfera luminosa; era o cruzador ligeiro de Kyser. Exatamente na direção em que
voavam, brilhava o sol branco, que estava registrado nos catálogos estelares dos
arcônidas com um número, já que não possuía nome. À direita deste havia uma sombra
gigantesca e redonda...
— Tentei estabelecer contato pelo rádio — anunciou o comandante Kyser. — Não
obtive resposta. Ou não querem nada, ou então seus aparelhos de rádio estão em pane.
— A última hipótese é a mais provável — respondeu Rhodan. — Se os propulsores
falharam, as instalações de rádio também devem ter sido danificadas. Mantenha sua
posição atual, Kyser. Mandaremos Gucky e Ras Tschubai para junto dos arcônidas. Mais
tarde poderá apoiar-nos com seu campo antigravitacional. Bem que precisaremos.
Ras Tschubai entrou na sala de comando. O teleportador africano era um dos
membros mais antigos do Exército de Mutantes. Já vivera muitas aventuras perigosas em
companhia do rato-castor. Já conhecia também a nave das gerações, através dos relatos
de Gucky, e estava ansioso para conhecer o interior do engenho arcônida.
Se desconfiasse das surpresas que o aguardavam teria ficado menos entusiasmado
com a missão que devia cumprir.
— Saltem daqui — ordenou Rhodan. — Procurem descobrir se a falha dos
propulsores é total, ou se algumas das unidades propulsoras da protuberância equatorial
podem ser ativadas. Receio que no lugar, onde se encontra a nave, o campo gravitacional
do sol seja muito forte. Precisaremos de apoio, pois do contrário não conseguiremos
arrastá-la. Se houver complicações, voltem imediatamente e apresentem seu relatório.
Entendido?
Os dois mutantes fizeram um gesto afirmativo. Seguraram-se pela mão, a fim de não
se afastarem depois do salto.
Desapareceram num forte torvelinho. O lugar, em que há pouco se encontravam,
estava vazio.
Rhodan voltou a fitar as telas e manteve-se à espera.

***
A primeira coisa avistada por Gucky foi um grupo de seis ou sete mulheres,
precariamente vestidas, que batiam num homem uniformizado. Quando o judas não mais
resistiu, precipitaram-se sobre ele e arrancaram-lhe as roupas, com exceção da cueca.
Não se preocuparam mais com sua vítima: dividiram, entre si, as roupas do pobre
coitado.
— O que será que elas estão fazendo? — cochichou Ras muito abalado. — Você
compreende o que está acontecendo?
— Ainda não compreendi muito bem. Mas ao que tudo indica só estavam
interessadas pelas roupas, não pelo homem. Não é de admirar, pois de cueca ele pode ser
tudo, menos bonito.
Gucky soltou um som borbulhante, como se acabasse de contar uma boa piada. Nem
desconfiava de que, dali a pouco, não teria mais vontade de rir.
Antes que Ras tivesse tempo de dizer mais alguma coisa, foi descoberto por uma das
mulheres.
— Ali está mais um! — gritou uma delas, em tom de espanto. — É todo preto! Que
animal é este que se encontra perto dele?
— Isso dará um bom assado! — exclamou uma outra e precipitou-se com uma barra
de ferro levantada sobre o rato-castor. — Fui eu quem o viu o primeiro...
Gucky não estava com muita vontade de ser comido.
Recorreu à sua capacidade telecinética e usou-a sobre a mulher apaixonada pela
caça. A arcônida foi parar um pouco abaixo do teto, passando a gritar terrivelmente.
Depois flutuou até a primeira curva do corredor e desapareceu. Quando Gucky a soltou,
ouviu-se um baque surdo.
Enquanto isso, Ras tirava as barras de ferro das outras atacantes.
— Que espetáculo estranho é este? — gritou Ras em tom furioso para as mulheres
perplexas. — Vocês poderiam dizer o nome desse jogo?
Acontece que, nesse meio tempo, Gucky andara investigando os pensamentos das
mulheres indecisas e descobrira certas coisas que quase o deixaram sem fôlego. Girou em
torno do próprio eixo e segurou o braço do africano.
— Os antepassados acordaram, Ras, e, na nave mal e mal há lugar para eles. Não
existem roupas para todos. Nem mantimentos. Já houve casos de canibalismo. Alguns
deles se entrincheiraram no setor de produção de alimentos e o defendem
encarniçadamente. Outros andam pela nave, roubando e saqueando. Em que inferno
fomos nos meter?
— E a nave cairá no sol, se não mudar logo seu curso. Como pôde ocorrer isso?
— Ao que tudo indica, a transição ativou os impulsos automáticos, que despertaram
as pessoas em estado de hibernação. Vamos saltar para a sala de comando. Sei onde fica.
A nave era do mesmo tipo da Drusus. Gucky não teve a menor dificuldade em
orientar-se. O primeiro salto levou-o ao setor de comando da esfera espacial. Ras
materializou-se a seu lado.
O oficial, apavorado — era um tenente — teve uma reação muito lenta. Antes que
pudesse atirar, Ras lhe tirara a arma. Só havia mais um homem no corredor que levava à
sala de comando. Também estava armado, mas parecia indeciso sobre o que devia pensar
a respeito dos dois fantasmas surgidos do nada.
— Queremos falar com o comandante
— disse Ras, brincando com a pistola energética de que se apoderara, sem apontá-la
diretamente para o homem. — Leve-nos a ele.
O tenente já recuperara o autocontrole.
— Quem são vocês? De onde vêm?
— Deixemos isso para depois, baixinho
— desconversou Gucky, dirigindo-se ao tenente, que tinha quase o dobro do seu
tamanho. — Vai levar-nos ao comandante ou não?
— Temos ordens para não deixar...
— Deixa pra lá — disse Gucky em tom indignado. — Conheço o caminho.
Pediu a Ras que lhe desse cobertura e dirigiu-se com seu andar balouçante ao longo
do corredor, em direção à porta da sala de comando. Enquanto isso, sondava os impulsos
mentais dos arcônidas que se encontravam do outro lado da parede.
O comandante não estava só. Alguns dos antepassados achavam-se com ele. Dali se
concluía que nem sempre as pessoas despertadas e os homens do presente se defrontavam
como inimigos.
Gucky abriu a porta, soltando o fecho positrônico.
Entrou na sala de comando, acompanhado por Ras. De repente viu-se frente a frente
com grande número de arcônidas que, quando o notaram, interromperam sua palestra e o
fitaram como se fosse um fantasma.
Gucky já estava acostumado a isso. Afinal, não é todos os dias que a gente se
encontra com um rato-castor. Usava o uniforme especialmente feito para ele, com o cinto
estreito onde guardava as armas. Mas ao primeiro relance de olhos, percebia-se que não
era um ser humano. Era muito pequeno para isso. A larga cauda de castor que geralmente
lhe servia de apoio, arrastava-se pelo chão.
— Olá, amigos — disse Gucky, fazendo uma mesura em direção ao único homem a
quem conhecia. — Cá estamos. C-l, não lhe prometemos que oportunamente
voltaríamos? Naturalmente não poderia imaginar que neste meio tempo você iria
experimentar os hiperpropulsores...
C-l logo se recuperou da surpresa. Adiantou-se e inclinou-se sobre o rato-castor.
— Você cumpriu sua promessa! Naquela época, você nos livrou dos robôs, mas
receio que desta vez nem você poderá ajudar-nos. Os antepassados...
— Os antepassados acordaram; já sei. Andam por todos os cantos da nave e tiram os
uniformes dos tripulantes. Que situação! Mas o pior é que a nave está caindo em direção
a um sol, C-l. Se não fizerem nada, daqui a três dias estarão todos mortos. O que houve
com os propulsores?
— Nossos técnicos estão trabalhando ininterruptamente nos mesmos, mas por
enquanto não conseguiram nada. Além disso, nosso trabalho vem sendo perturbado. O
inferno está às soltas na nave. Bandos de ladrões assaltam nossos homens e os saqueiam.
Não existe mais nenhuma ordem. A única coisa que prevalece é a lei do mais forte.
Gucky deixou de olhar para C-l. Dedicou sua atenção a outro homem que se
adiantara e estava acompanhando a palestra com um interesse visível.
— Quem é você?
O comodoro Ceshal recuou como se tivesse sido picado por uma cobra.
— Sou o comodoro Ceshal e pertenço à primeira geração. Assumi o comando da
nave dos antepassados, que me cabe de direito. Quem é você? De onde veio? Onde se
escondeu até agora? Como aprendeu a falar a minha língua?
Gucky fitou Ceshal, como se quisesse embalsamá-lo vivo.
— Será que entrei num jogo de charadas? Nesse caso caberia a mim fazer as
perguntas. Quer dizer que você pertence à primeira geração? É uma das pessoas que
levantaram antes da hora?
Ceshal respirava com dificuldade. Gucky não o deixou falar.
— Já sei o que quer dizer. Até parece que está escrito na ponta do seu nariz. Não se
preocupe. Não contestarei seu direito ao cargo e me desmancharei de tanta veneração
assim que tiver tempo para isso. Acontece que no momento não tenho tempo.
Rebocaremos sua nave e a levaremos para fora do campo gravitacional deste sol. Meu
senhor manda dizer que devem acionar os propulsores em sentido contrário ao do
deslocamento da nave. Será que me fiz entendido?
— Os propulsores ainda não estão em condições de funcionar — ponderou C-l.
Ceshal não parecia disposto a permitir sem mais nem menos que alguém o ajudasse.
— Você vem de algum planeta do Império Arcônida? — perguntou em tom
orgulhoso. — Vocês não sabem guardar a necessária discrição. Ou será que, enquanto
dormíamos, as condições muito se modificaram?
— Se mudaram! — confirmou Gucky em tom irônico. — Você se espantará. Mas
posso tranqüilizá-lo, Ceshal. Somos da Terra, o planeta central de outro reino estelar, que
no seu tempo ainda não existia. Árcon e a Terra são amigos.
— A Terra?
— Você ainda se acostumará a isso — profetizou Gucky. — E também se
acostumará ao fato de que Ras e eu somos teleportadores. Então, como é? Estão dispostos
a deixar que os ajudemos ou não?
Ceshal parecia ter tomado uma decisão.
— Como podemos deixar? Meus melhores técnicos estão trancados na sala dos
propulsores. Têm alguns robôs em sua companhia, mas estão sendo atacados
constantemente e mal podem dedicar-se ao seu trabalho. Têm uma provisão de
mantimentos, e por isso sofrem os ataques. Nesta nave reina a fome.
— Já sei, mas acontece que no momento não podemos fazer nada para modificar
isso. Se não houver nenhum imprevisto e tudo der certo, esta nave poderá pousar dentro
de pouco tempo num planeta. Talvez possa mesmo pousar num planeta pertencente a
Árcon. Mas preciso de apoio. Ao menos parte dos propulsores tem de funcionar, pois do
contrário não conseguiremos arrastá-los para fora do campo gravitacional deste sol.
C-l lançou um olhar para Ceshal.
— Por que está hesitando, Ceshal? É verdade que o senhor é o comandante desta
nave, mas acontece que a pequena criatura, que o senhor vê à sua frente, ajudou-nos a
vencer os robôs. É nosso amigo. Sua hesitação poderá ofendê-lo.
— Não é isso — respondeu Ceshal, esticando as palavras. — Acontece que o senhor
sabe tão bem quanto eu quem manda nesta nave. Não é o senhor nem eu, mas a anarquia,
a fome, a guerra e a violência. Nem mesmo dispomos de uma intercomunicação regular
com Ekral, Alos e Tunuter. Vez por outra, uma pessoa consegue abrir caminho para lá, e
é só.
— Isso basta — disse Gucky. — Sou um teleportador e saltarei para lá, desde que
alguém me descreva a sala em que se encontram os técnicos. Enquanto isso, Ras
continuará aqui.
— Não seria preferível informar Rhodan sobre o que aconteceu aqui? — Ras
Tschubai parecia preocupado. — Ele devia saber.
Gucky refletiu um instante.
— Está bem, Ras. Salte para a Drusus e informe Rhodan. Enquanto isso cuidarei dos
técnicos. Voltaremos a encontrar-nos aqui, na sala de comando. Nossos elementos de
ligação serão C-l e Ceshal. Mande lembranças minhas a Bell, caso resolva contar-lhe a
história das mulheres.
— Ele ficará admirado — disse Ras com um sorriso e desmaterializou-se, depois de
concentrar-se por alguns segundos.
Gucky ficou só.
— Vejamos a sala dos propulsores, Ceshal. Mostre-me sua posição na planta da
nave. Além disso, será conveniente alguém me acompanhar, para que possamos dispensar
as explicações demoradas. Não temos um minuto a perder.
Nem desconfiava de que na realidade tudo seria uma questão de segundos.
6

Ninguém tinha uma visão de conjunto, ninguém sabia exatamente o que estava
acontecendo na nave. Cada um lutava contra os demais. Era uma guerra de todos contra
todos. E uma guerra por tudo.
De início haviam lutado por peças de roupa e cobertores. Depois surgiu a fome. Por
fim passaram a lutar pelos lugares em que pudessem deitar e descansar.
Na sala de máquinas da gigantesca nave esférica, a resistência fora organizada por
Alos, que providenciara para que todas as entradas fossem fechadas hermeticamente. A
sala de propulsores propriamente dita era um recinto redondo, com inúmeros aparelhos e
quadros de controle. Os pesados conversores formavam corredores e compartimentos
distintos — além de uma imensidão de excelentes esconderijos.
Duas ou três dezenas de pessoas despertadas e alguns membros da tripulação
primitiva conseguiram refugiar-se na sala de máquinas. Entrincheiraram-se em três ou
quatro lugares com os mantimentos e as armas de que se haviam apoderado e não
permitiam que ninguém ultrapassasse uma linha de segurança, arbitrariamente traçada.
Enquanto não o perturbavam no trabalho, Alos não se incomodou. Sentia-se
responsável pela segurança dos cientistas Ekral e Tunuter, e tinha de fazer tudo para que
estes reparassem os propulsores, a fim de evitar que a nave se precipitasse para dentro do
sol.
Os sete robôs formaram um semicírculo em torno do pequeno grupo de técnicos-
assistentes escolhidos por Ekral. Todos os robôs estavam armados e obedeciam
exclusivamente às ordens de Alos.
— Só posso garantir que pelo menos três dos propulsores da protuberância
equatorial voltarão a funcionar — dizia Ekral, dirigindo-se ao seu colega Tunuter. —
Infelizmente isso não deverá ser suficiente para modificar a rota o bastante, a fim de
evitar-se o desastre. Devemos pôr a funcionar pelo menos mais três propulsores. Com
isso, talvez conseguiríamos passar rente ao sol e precipitar-nos para o espaço. Quando
voltarmos a cair, já teremos consertado os outros propulsores.
— Não sei se nossos esforços valerão a pena — disse Tunuter, em tom de desânimo.
— No interior desta nave, uma civilização se esfacela. Uma cultura milenar está
literalmente sendo atropelada pelo primitivismo. O que estaremos salvando se
conseguirmos evitar a destruição da nave?
— Antes de mais nada, estaremos salvando a nós mesmos — constatou Ekral em
tom frio. Estava retirando o revestimento de um conversor. — Só depois saberemos o que
irá acontecer. De qualquer maneira não seria capaz de permanecer inativo, à espera do
fim.
Tunuter esteve a ponto de responder, mas viu-se interrompido por uma tremenda
explosão. Os fragmentos atravessavam o recinto com um zumbido e ricochetearam
perigosamente. Por milagre ninguém saiu ferido.
No primeiro instante, Alos supôs que um dos aparelhos tivesse explodido, mas o
uivo triunfante de um bando de arcônidas semi-selvagens fez com que visse a realidade.
Os atacantes atravessaram a abertura que se formara e brandiram suas armas, consistentes
principalmente em pedaços de móveis quebrados e barras de ferro.
Com um salto, Alos colocou-se ao lado dos robôs e deu-lhes ordem para que
defendessem o recinto. Ekral e sua equipe procuraram abrigar-se atrás de alguns
conjuntos de máquinas. Não estavam armados, motivo por que tinham de confiar
exclusivamente em Alos.
Os arcônidas, que já se encontravam no interior da sala, tomaram automaticamente
o partido dos cientistas e começaram a atirar contra os invasores de todas as direções.
Face à insegurança reinante, cada homem trazia sempre seus próprios mantimentos,
desde que os possuísse. Quando alguém era morto, os sobreviventes precipitavam-se
sobre este alguém e começavam a lutar pelos pertences do defunto. Nessa oportunidade,
até mesmo os aliados se transformavam em inimigos ferozes.
Só os robôs não conheciam a preocupação com os alimentos e seguiam estritamente
as ordens recebidas. Atiravam contra os intrusos e não poupavam os saqueadores.
Gucky irrompeu em meio à luta.
Materializou-se subitamente com O-l, atrás dos robôs. Reconheceu Alos pelos
impulsos mentais. Antes que o cibernético pudesse apontar a arma para o estranho ser,
que surgira tão misteriosamente do nada, Gucky disse:
— Você é Alos. Foi Ceshal, quem me mandou. Não atire.
Alos ficou tão perplexo ao ouvir o animal falar, que baixou a pistola. Só depois deu-
se conta do que Gucky lhe dissera.
— Foi Ceshal, o comodoro?
— Perfeitamente. Ele quer que eu os ajude.
Alos viu que os invasores que ainda estavam vivos tinham fugido e os robôs
suspenderam o fogo. Mandou que dois deles se dirigissem à parede danificada e ordenou-
lhes que não deixassem entrar ninguém. Só depois teve tempo para voltar a dedicar sua
atenção ao rato-castor.
— Quem é você? Não me lembro de o ter visto.
— Venho de outra nave, enviada por Árcon. Vamos arrastá-los para fora do campo
gravitacional do sol, mas nossos aparelhos não conseguirão fazê-lo sem apoio. Quantos
dos propulsores desta nave estão funcionando?
Ekral acabara de entrar. Seu espírito vivo e penetrante logo percebeu a chance de
salvação. Não perguntou sobre o onde e o porquê, mas foi logo explicando.
— São três propulsores. Será que isso bastará? Em sentido contrário.
Gucky fez um gesto afirmativo.
— Isso basta. Quando é que você pode ligá-los?
— Quando você quiser.
Alos interveio na conversa. Sua curiosidade era maior que o medo.
— Como foi que você veio parar aqui? Existe alguma comunicação com a outra
nave? Lá fora, no corredor, você será detido e talvez o matarão. Não sei...
— Sou um teleportador — disse Gucky, em tom lacônico. — Será que os
propulsores poderiam ser ligados daqui a cinco minutos?
— Naturalmente — respondeu Ekral. — Infelizmente seremos obrigados a trabalhar
às cegas, pois não temos qualquer ligação direta com a sala de comando. O
intercomunicador foi interrompido. Ceshal já está informado?
Gucky gostou das falas lacônicas do cientista. Tratava-se de um homem que não
fazia muitas perguntas, pois preferia agir.
— Tudo entendido. Então será daqui a cinco minutos. Mais tarde voltaremos a
encontrar-nos.
Antes que alguém pudesse responder, Gucky desapareceu. O-l permaneceu na sala
de máquinas.
Alos ainda fitava o lugar vazio, enquanto Ekral já se dirigia aos quadros de controle.
Examinou-os e preparou os três propulsores que funcionariam em sentido contrário ao do
deslocamento da nave. Olhou para o relógio.
— Faltam três minutos, Alos. Se a outra nave tiver bastante potência,
conseguiremos. Mas pelos dados que leio nos instrumentos, o campo magnético deste
pequeno sol é enorme. Se a distância ainda se tornar menor, estaremos perdidos.
Esperaram em silêncio.
Em algum lugar, entre os blocos de metal, um ferido gemia. No momento, ninguém
tinha tempo para cuidar dele.

***

O Capitão Unista e um grupo de homens e mulheres foram empurrados, pela classe


dominante, que cercava Ceshal, para um local recôndito da nave. Também pertencia à
primeira geração e estava firmemente decidido a provar isso assim que se oferecesse uma
oportunidade. Antes de mais nada providenciou uma pistola. Depois assumiu a chefia do
pequeno grupo, assaltou um depósito de mantimentos e retirou-se para a sala de armas da
nave.
Dali poderiam controlar a artilharia de bordo.
O Capitão Talasi, que estava em sua companhia, pouco entendia de técnica de rádio.
Não conseguiu reparar o intercomunicador para estabelecer contato com a sala de
comando. Porém pôs a funcionar algumas das telas externas.
Assustaram-se ao verem nelas a gigantesca nave esférica, que se aproximava
lentamente. Era do mesmo tipo da nave em que se encontravam, embora fosse de
construção mais recente. E o letreiro não era arcônida.
O Capitão Unista quase chegou a morder a ponta da língua. Seria esta a
oportunidade de demonstrar seu arrojo e visão?
— Querem abordar-nos — disse em voz tão baixa que só o Capitão Talasi, que se
encontrava a seu lado, podia ouvi-lo. — Estamos indefesos, e por isso querem apresar
nossa nave.
— Temos meios de impedir isso — disse Talasi. — Temos as armas.
Estas palavras foram proferidas em voz tão alta que todos o ouviram. Ouviram-se
gritos de aplauso. As últimas dúvidas de Unista desfizeram-se em meio ao entusiasmo
geral. Não era nenhum especialista em armamento, mas o currículo de qualquer oficial
arcônida incluía o estudo de armamentos.
Outra tela mostrou um grande sol branco. Já devia encontrar-se bem próximo e, ao
que parecia, o curso atual da nave dirigia-se exatamente para este sol. A nave
desconhecida aproximara-se mais. Parecia uma parede abaulada, ameaçadora.
Subitamente, o chão metálico da sala de armas sofreu um abalo.
Algumas mulheres caíram. Os homens cambalearam e apoiaram-se uns nos outros.
O solavanco não se repetiu, mas a força da gravidade sofreu um deslocamento. Parecia
que a nave estava descrevendo uma curva para estibordo, sem ter ligado o compensador
gravitacional.
O Capitão Unista procurou controlar-se.
— Um raio de tração! Os desconhecidos nos capturaram. Está na hora de lhes
mostrarmos nossas armas. Guarneçam os canhões, minha gente! Abriremos fogo, todos
ao mesmo tempo, pois assim a surpresa será maior.
Demorou dois ou três minutos até que todos ocupassem seus postos.
Depois disso, o Capitão Unista ordenou:
— Fogo! Dentro de dez segundos.

***

E o ataque pegou Rhodan de surpresa!


O Coronel Sikermann teve de vencer grandes dificuldades para capturar a nave dos
antepassados com o raio de tração. Quase no mesmo instante, Gucky materializou-se no
interior da Drusus e comunicou que três propulsores da nave dos arcônidas entrariam em
funcionamento dali a um minuto.
Apoiariam a ação da Drusus e contribuiriam para o êxito da mesma.
Lentamente, muito lentamente, a rota desastrosa da nave dos antepassados e da
Drusus foi mudando. As duas naves já não cairiam exatamente em direção ao sol branco
chamejante. Passariam velozmente a pequena distância deste. Para isso, a velocidade da
queda, provocada pela gravitação, se revelaria muito útil.
Todas as reservas energéticas da Drusus foram conduzidas para o raio de tração. O
que sobrava foi distribuído para os propulsores que funcionavam a ré.
Rhodan observou a grande tela de visão frontal. Viu as paredes da nave dos
antepassados bem à sua frente e reconhecia todos os detalhes. Algumas “cicatrizes”
revelavam que por muito tempo a nave se deslocara pelo espaço a uma velocidade
inferior à da luz. Só assim poderia ter sido atingida pelos meteoros.
Reconheceu as linhas finas das escotilhas.
As escotilhas...
Quando Rhodan percebeu, já era quase tarde.
Subitamente pequenas aberturas redondas surgiram acima da protuberância
equatorial da nave. Pareciam as bocas de canhões.
Canhões!
— O campo defensivo! — gritou Rhodan para Sikermann, que ficou perplexo.
Porém, depois de um momento de susto, espantosamente pequeno, Sikermann
manipulou os controles. A mão direita voou para o painel e moveu uma alavanca. Quase
no mesmo instante, os propulsores pararam de uivar. Mas o raio de tração foi mantido.
Instintivamente Sikermann fizera o que estava certo, desligando os propulsores.
O campo defensivo foi ativado, e nem um segundo antes da hora.
Os primeiros impactos energéticos atingiram a extremidade exterior do campo e
foram escorrendo para o lado. As bolhas energéticas rolavam que nem lágrimas coloridas
e foram atiradas ao espaço em virtude da força da inércia da massa. Depois disso só se
notava a ação dos três propulsores da nave dos antepassados, que imprimiam uma
aceleração negativa a ambas as naves.
Os tiros disparados pelos arcônidas atingiram o campo em cheio, concentraram-se
num ponto e procuraram rompê-lo.
Mas já era tarde.
— Malditos! — disse Sikermann em tom furioso e passou a mão pela testa úmida.
— Por pouco não nos pegam. Por que esses patifes estão fazendo uma coisa dessas? Será
que fazem questão de ser assados no sol?
Rhodan não respondeu. Em seus olhos havia uma indagação. De repente virou-se
para Gucky.
— Então, o que acha? Qual dos seus “amigos” poderia ter feito isso?
— Não demorarei em saber — retrucou o rato-castor. — Vou estragar a sopa deles!
Acho que, nessa nave, ninguém sabe o que faz!
— Ponha ordem nisso — respondeu Rhodan, laconicamente.
Gucky fez um gesto afirmativo, concentrou-se e saltou.
Alos e os cientistas, que estavam muito satisfeitos com o resultado dos seus
esforços, quase morreram de susto quando Gucky os informou sobre o ataque de
artilharia. Enquanto os campos defensivos da Drusus tivessem de permanecer ativos, os
propulsores não poderiam ser ligados. Nem se poderia cogitar de um hipersalto em dupla.
— Devem ser alguns loucos que conseguiram apoderar-se da sala de armas — disse
Ekral, em tom seco. — Aí está uma tarefa para o senhor e seus robôs.
— Onde fica a sala de armas? — perguntou Gucky, ao lembrar-se de outra
possibilidade. — Preste atenção, Ekral. Tenho uma idéia. Por que iríamos arriscar a vida
apenas para obrigar alguns loucos a agirem com bom senso? Deixemos que fiquem na
sala de armas e comprimam calmamente os botões das peças de artilharia. Seria possível
cortarmos o suprimento de energia a partir daqui? Ou será que daqui não se controla os
geradores e conversores?
— Isso mesmo! — Ekral compreendeu imediatamente o que Gucky queria dizer. —
Cortaremos o suprimento de munições deles.
— Perfeitamente — disse Gucky, em tom de satisfação, e fez um sinal para Alos. —
Você ficará com Ekral e cuidará para que ele possa trabalhar tranqüilamente. Assim que
o bombardeio for suspenso, os propulsores da Drusus voltarão a funcionar. Enquanto
isso, vocês poderão tentar reparar os outros propulsores de sua nave. Até logo mais.
Saltou de volta para a Drusus. Rhodan ficou espantado ao rever o rato-castor.
— O que houve? Continuam a atirar contra nós e...
— Não continuarão por muito tempo, Perry. Ekral cortará a energia deles.
Rhodan olhou para a tela. A energia mortífera continuava a bater no campo
defensivo, fazendo com que os propulsores da Drusus permanecessem paralisados. A rota
das duas naves voltou a aproximar-se perigosamente do sol branco.
— Eu o batizei com o nome de Magnus — disse Rhodan de repente, apontando para
a estrela. — Magnus, o grande. Veremos se não somos mais fortes que ele.
O Coronel Sikermann anunciou com a voz nervosa:
— Suspenderam o fogo, sir!
— Foi o que eu disse — observou Gucky. — Podemos confiar em Ekral. Pode ligar
os propulsores, Baldur.
Baldur Sikermann lançou um olhar indagador para Rhodan. Estremecera com o
tratamento que Gucky acabara de dispensar-lhe. Rhodan fez um gesto de assentimento.
Depois disso desativou o campo defensivo e conduziu a energia liberada para os
propulsores. A Drusus uivou e voltou a oferecer resistência à força da gravidade de
Magnus.
Com uma lentidão infinita, o sol branco começou a caminhar em direção à
extremidade esquerda da tela.
— Deveríamos impor a ordem nessa nave — disse Rhodan, em meio ao silêncio
tenso. — Ras já me contou o que está acontecendo. Se esperarmos demais, todos se
matarão uns aos outros. Mesmo que realizemos algumas transições ligeiras em direção a
Árcon, a demora poderá ser de vários dias.
Sikermann falou sem virar a cabeça:
— O transmissor fictício!
Rhodan fez um gesto de assentimento.
— Já pensei nisso. Quem devemos mandar, Gucky?
O transmissor fictício permitia a teleportação da matéria através do espaço de cinco
dimensões, em direção a qualquer lugar... Inclusive de um ser humano.
— Quem está dormindo não faz mal a ninguém — piou Gucky com a voz
sonhadora.
Rhodan fez um gesto afirmativo.
— Acho que já nos entendemos. Suponho que o equipamento de renovação de
oxigênio da nave dos antepassados seja idêntico ao da Drusus, pois vamos usar o
transmissor para levar um gás anestésico ao sistema de distribuição de ar da nave dos
antepassados — levantou-se e colocou a mão sobre o ombro de Sikermann. — Mantenha
a rota, coronel. Vamos afastar-nos de Magnus, haja o que houver. Vamos andando,
Gucky, para o arsenal.
— Vamos pôr as criancinhas para dormir — disse Gucky com a voz fanhosa e
ingênua, arrastando-se atrás de Rhodan, que já se encontrava na porta. — Mas será
conveniente levar uma máscara contra gases para Ekral. Sentir-me-ei melhor, se souber
que não dormirá durante o espetáculo.
Dali a cinco minutos, Ras Tschubai apareceu na sala de comando da nave dos
antepassados e Gucky, na sala onde se encontravam Ekral e seus auxiliares. Traziam um
bom suprimento de máscaras contra gases e contaram aos homens o que estava para
acontecer.
— Os antepassados acordaram antes da hora; logo, devem ser postos para dormir de
novo — disse Gucky em tom categórico. — Quem dorme não come. E não pode fazer
tolices. Coloquem as máscaras e não se deixem perturbar no seu trabalho. Exatamente
daqui a dez minutos, o gás anestésico passará pelos dutos de ventilação e penetrará em
todos os recintos da nave. Dentro de vinte e quatro horas, segundo espera meu chefe,
deveremos pousar no mundo principal de Árcon. Teremos de realizar cerca de dez
transições. Procurem reparar os outros propulsores. Talvez ainda venhamos a precisar
deles para dar-nos apoio.
Não aguardou resposta: desmaterializou-se.
Enquanto isso, Rhodan já se encontrava no pavilhão em que estava instalado o
transmissor fictício da Drusus. Os recipientes de gás foram trazidos e preparados de tal
forma que começariam a espalhar seu conteúdo cinco segundos após a rematerialização.
Depois disso, as coordenadas foram reguladas.
Assim que Rhodan moveu a alavanca, os recipientes desapareceram.
No mesmo instante, apareceriam na nave dos antepassados.
Com uma máscara contra gases no rosto, Gucky foi andando pelas salas, pavilhões e
corredores superlotados da nave esférica e certificou-se de que a operação fora bem
sucedida. Em toda parte, os arcônidas estavam empilhados no chão, por vezes
empilhados uns por cima dos outros, e dormiam. Já não sentiam frio nem fome.
Dormiriam durante dois dias. Mas quando despertassem...
Seria preferível nem pensar nisso. Dois dias eram um tempo bem longo e deviam ser
suficientes para fazer com que o despertar representasse uma surpresa agradável para os
arcônidas.
Rhodan deixou que Gucky lhe relatasse o que vira e esteve a ponto de soltar um
suspiro de alívio, quando o som estridente do intercomunicador se fez ouvir.
— Aqui fala Bell! Rhodan deve comparecer á sala de comando! Aqui fala Bell.
Atenção! Rhodan deve comparecer à sala de comando...
— Leve-me para lá — disse Rhodan.
Gucky segurou-o pelo braço e saltou.
Bell continuava junto ao microfone do intercomunicador, transmitindo seu
chamado. Sikermann olhava para os controles. Seu rosto parecia muito sério.
— Está bem, Bell. Já cheguei.
Bell virou-se abruptamente e fitou Rhodan como se fosse um fantasma.
Quando viu Gucky, seu espírito iluminou-se. Desligou o intercomunicador.
Sikermann disse:
— O cérebro positrônico acaba de concluir seus cálculos, sir. Sinto muito, mas não
poderemos arriscar um hipersalto. A massa total das duas naves é muito elevada.
Ficaríamos presos no espaço de cinco dimensões. Não preciso explicar o que significaria
isso.
Realmente, Sikermann não precisaria explicar.
O espaço de cinco dimensões era chamado hiperespaço. Não haveria nenhum
caminho de volta para quem ficasse preso nele. Talvez a pessoa perdesse o sentido da
própria existência, já que naquele espaço não haveria a consciência do ser. Simplesmente
se permanecia por lá.
— Muito bem; nesse caso tente com os meios de deslocamento comuns, coronel.
Dentro em breve os técnicos da nave dos antepassados colocarão em funcionamento
outros propulsores para ajudar-nos. E Kyser também nos ajudará com seu cruzador.
Dessa forma conseguiremos escapar ao campo de gravitação de Magnus. Quanto ao
mais...
Ficou calado. Gucky fez um gesto.
— Acho que é o melhor que podemos fazer, Perry.
Mais uma vez lera os pensamentos de Rhodan, o que deixou Bell bastante
contrariado.
— O que será melhor? — indagou o gorducho.
— Avisar Atlan — disse Rhodan. — Cuidarei disso.
Dirigiu-se à sala de rádio e mandou estabelecer uma comunicação de hiper-rádio
com Árcon. A ligação demorou quase uma hora.
Nesse meio tempo, Magnus tinha saído do campo de visão abrangido pela tela. Três
propulsores de popa da nave dos antepassados haviam entrado em funcionamento para
apoiar a Drusus. Os propulsores frontais, que realizavam a frenagem, estavam desligados.
A essa hora só representariam um empecilho ao vôo.
No momento em que Gucky retornava de um salto de inspeção e informava que, na
grande nave dos emigrantes tudo corria segundo era programado, o Tenente Stern
anunciou que a ligação com Árcon acabara de ser estabelecida.
Atlan fitou Rhodan de dentro da tela.
— Espero que você apenas tenha que relatar coisas boas, Perry. Quase chego a ter
medo da primeira palavra que você irá proferir.
— Encontramos a nave, Atlan — disse Rhodan para tranqüilizá-lo. — Acontece que
as pessoas adormecidas acordaram.
Conseguimos restabelecer a calma por melo de gás deletério. Estão dormindo de
novo. Alguns técnicos receberam máscaras, para que seu trabalho não fosse interrompido.
Infelizmente o hiperpropulsor da nave está com defeito. Alguns propulsores estão
funcionando. Conseguimos arrastar a nave para fora do campo gravitacional de um
pequeno sol. A situação atual é esta.
Notava-se a sensação de alívio que se apossou de Atlan.
— A nave está salva. Fico-lhe muito grato por isso. Será que pode trazê-la para
Árcon?
— Isso é impossível.
— O que posso fazer? Não poderia levar as pessoas adormecidas para bordo da
Drusus?
— São mais de cem mil arcônidas. Também é impossível, Atlan. Você terá de
enviar algumas naves transportadoras. Fornecerei a posição do anão branco. Logo que
suas naves chegarem, faremos o transbordo. Quando os antepassados acordarem, já
poderão estar em Árcon.
Atlan refletiu por um instante. Depois fez um gesto de assentimento.
— Está bem. Enviarei cinco naves. Acho que isso basta.
— A equipe dirigente dos antepassados está equipada com máscaras. Recolherei o
comodoro Ceshal e seus oficiais a bordo da Drusus.
Estas palavras pareciam deixar Atlan bastante pensativo.
— Ceshal? Gostaria de saber onde já ouvi esse nome. Deve ter sido na oportunidade
em que defendíamos a Atlântida contra os invasores. Ou foi durante uma expedição? Não
me lembro...
— Você terá uma palestra muito interessante com Ceshal — profetizou Rhodan com
um sorriso. — Ele deve ser, aproximadamente, da sua idade. Quer dizer que os velhos
senhores de Árcon recuperarão o poder. Será que tudo isso realmente é uma simples
coincidência?
— Provavelmente. Se a situação tivesse sido planejada, o autor do plano seria um
verdadeiro gênio. Seu nome já deve ter caído no esquecimento.
— Uma máquina nunca se esquece de nada, Atlan. Talvez o grande computador lhe
possa dar algumas informações. Seja como for, você disporá de dezenas de milhares de
arcônidas cheios de vida e ávidos de entrar em ação. É o velho sangue, Atlan, como o
seu.
Rhodan transmitiu a posição de Magnus.
Depois de algum tempo Rhodan, Bell, Ras Tschubai e Gucky dirigiram-se à nave
dos antepassados. O gás já desaparecera; não precisaram mais de máscaras. Em toda
parte as pessoas adormecidas estavam espalhadas tal qual o súbito cansaço as
surpreendera. Era inacreditável ver quanto espaço passou a sobrar de repente.
Quando a porta da sala de comando se abriu e o comodoro Ceshal se viu diante de
Rhodan, o espanto espalhou-se pelo rosto do “velho” novo arcônida. Ceshal reprimiu a
curiosidade e estendeu a mão para o terrano, que a apertou fortemente.
A semelhança com as atitudes de Atlan era inconfundível. Na verdade, os arcônidas
daquele tempo deviam ter sido um povo formidável — cheios de nobreza e bravura, mas
também um pouco arrogantes.
— Acho que devemos a vida aos senhores — disse Ceshal, depois de cumprimentar
Bell. — Se não fosse o auxílio de vocês, estaríamos perdidos.
— Fizemos isso por nosso amigo Gonozal VIII, imperador de Árcon — respondeu
Rhodan. — Ele já enviou algumas naves de transporte para recolhê-los. Sua nave precisa
de uma reforma geral. Não está em condições de voar para Árcon. Posso pedir-lhes que
venham comigo? O imperador deseja que voem em minha nave. Também levaremos
Ekral e seus companheiros.
Ceshal fez uma ligeira mesura em direção a Rhodan.
— Para mim, seus desejos são ordens — disse em tom cortês. — Especialmente
quando correspondem aos desejos do imperador — subitamente uma ruga vertical surgiu
em sua testa. — Como é mesmo o nome dele?
— Gonozal VIII.
O comodoro Ceshal lançou um olhar para seus oficiais e disse:
— Os Gonozals são uma das famílias mais célebres de Árcon. Vejo que não se
extinguiram no curso dos milênios, mas se conservaram. Isto é espantoso, face ao que
fiquei sabendo neste meio tempo. Estivemos em viagem durante dez mil anos...
Rhodan preferiu não falar mais em Atlan e seus ascendentes. O futuro esclareceria
tudo, se é que havia algo a esclarecer. Era perfeitamente possível que, por ocasião da
partida de Ceshal, há dez mil anos, tivesse havido a participação decisiva de um Gonozal.
Talvez fosse um dos numerosos parentes de Atlan.
Foram buscar Ekral, Tunuter e Alos.
— Acho que, se tivéssemos tempo, conseguiríamos reparar a nave — afirmou o
cientista com certo orgulho. — Poderíamos reparar inclusive o hiperpropulsor, mas
receio que para isso nos faltem certas peças essenciais.
— O futuro lhe reserva tarefas grandiosas — disse Rhodan com um sorriso, para
consolá-lo. — Árcon precisa de cientistas e técnicos como o senhor. Precisa de líderes
ativos e arrojados. Árcon está atravessando uma crise perigosa, mas voltou a ter uma
cabeça pensante. Gonozal VIII aguarda a chegada de arcônidas que possam ajudá-lo a
defender o Império contra seus inimigos.
Ekral fez um mesura para Rhodan, que não pôde evitar uma sensação esquisita. Os
orgulhosos arcônidas, que já se encontravam no auge do poder quando o homem ainda
vivia em cavernas, demonstravam sua reverência a ele, que era um terrano. Esta
demonstração de humildade revelava a grandeza de sua alma.
No pulso de Rhodan ouviu-se um zumbido estridente.
Era Sikermann!
Rhodan ligou o rádio de pulso.
— O que houve, coronel?
— Conseguimos sair, sir. Estamos rebocando a nave dos antepassados a meia
potência. Será que deveríamos estabelecer a comunicação direta entre as comportas
principais?
— Ficar-lhe-ei muito grato se fizer isso. Quando tudo estiver pronto, avise.
Os arcônidas não haviam entendido uma única palavra, já que Rhodan e Sikermann
se comunicaram em inglês. Ceshal disse com um ligeiro embaraço:
— Daquela vez os robôs nos tiraram os intercomunicadores de pulso. Isso foi a hora
da humilhação máxima. Felizmente não modificaram nosso plano primitivo, apenas lhe
imprimiram uma finalidade diferente.
— Sim; já conhecemos essa finalidade. Pretendiam levar a nave a um planeta
habitado e criar uma civilização de robôs. Para isso, precisariam de cientistas e
trabalhadores. Acho que teriam conseguido. Os homens se teriam transformado em
escravos de robôs e, passadas algumas gerações, não conheceriam outro estado. Ainda
bem que seu plano fracassou.
Atravessaram vários corredores e, depois de algum tempo, atingiram a entrada da
comporta. Enquanto aguardavam, reunidos em grupos, Gucky revistou os
compartimentos contíguos. Teve a impressão de que captara um impulso mental
conhecido. Era verdade que estava um tanto “apagado”. Provavelmente provinha de uma
pessoa adormecida que despertaria dentro em breve. Mas de certa forma...
“Parece-me”, pensou Gucky, “que já vi este sujeito.”
Voltou a estabelecer a localização e saltou. Materializou-se a uma distância de trinta
ou quarenta metros, no interior de uma câmara pressurizada. Não sabia qual era a
finalidade da mesma, mas logo imaginou por que motivo a pessoa que se encontrava no
seu interior não dormia tão profundamente como as outras.
O arcônida estava nu. O cobertor com que envolvera o corpo escorregara para o
chão. No recinto havia vários recipientes pressurizados, cheios de ar. Gucky olhou para
cima. Evidentemente este recinto também tinha um poço de ventilação, mas o arcônida
deveria ter desconfiado antes que fosse tarde. Ainda tivera força e presença de espírito
para abrir um dos recipientes de ar. Com isso, o gás deletério foi diluído.
O homem adormecido virou-se nervosamente para o outro lado.
Gucky viu um rosto estranho. Não; nunca vira este homem. Mas seus impulsos
mentais lhe eram familiares. Só mesmo um telepata muito bem treinado conseguiria
catalogar os impulsos mentais. Os pensamentos de qualquer homem seguiam um modelo
bem definido, que poderia ser reconhecido. Gucky comparou o modelo de vibrações
psíquicas com as impressões digitais, muito embora a comparação fosse um tanto
ingênua.
O arcônida acordou e seus pensamentos começaram a tornar-se mais claros.
No mesmo instante, o espírito de Gucky iluminou-se.
Já sabia de onde conhecia aquele modelo de pensamentos. Ele o tateara uma vez em
sua vida, num momento em que a vida do arcônida parecia estar em perigo. Foi na
oportunidade em que T-39 acreditava que os robôs o estavam atirando para dentro do
conversor atômico.
O técnico T-39 ergueu-se e viu Gucky. A primeira idéia que lhe veio à mente foi a
de defender-se, mas logo percebeu que aquela criatura não pretendia atacá-lo. Mas o
estranho ser continuava a seu lado; não se tratava de uma alucinação.
— Quem é você? — perguntou com um gemido.
Estava com dor de cabeça.
Gucky inclinou-se e ajudou T-39 a levantar-se.
— Explicarei tudo, T-39. Venha comigo. Seu comandante está ansioso por conhecê-
lo. Afinal, todos os membros da expedição devem agradecer a você por ainda estarem
vivos. Se não tivesse captado seu pedido de socorro, nunca teria descoberto a nave dos
antepassados. E se não a tivesse descoberto... bem, isto é uma história longa e
complicada. De qualquer maneira, tudo começou a partir de você.
— Não compreendo uma palavra do que está dizendo — falou T-39 e saiu
cambaleando.
Ficou perplexo ao ver as pessoas adormecidas estendidas nos corredores. Começou
a desconfiar de que mais uma vez tivera sorte. A morte passara perto dele.
— Que expedição?
— Tenha mais um pouco de paciência — pediu Gucky. — Logo saberá de tudo.
T-39 foi informado, mas o que soube foi mais do que um homem normal pode
digerir. O técnico acenava constantemente e fazia de conta que compreendia, mas Gucky
percebeu que na cabeça do coitado zumbia um verdadeiro enxame de abelhas...

***
O telecomunicador de Rhodan deu sinal.
— O contato foi estabelecido, sir — anunciou Sikermann. — Pode abrir a comporta.
Os técnicos dos arcônidas puseram-se a trabalhar. Normalmente a comporta era
aberta mecanicamente a partir da sala de comando, mas em caso de emergência devia-se
recorrer aos controles manuais.
Os arcônidas entraram na Drusus, nave capitania de Rhodan.
Com um único passo superaram uma evolução de dez mil anos.
Mais tarde, quando se viu acompanhado por Bell, Gucky e alguns amigos em seu
camarote, enquanto a Drusus se preparava para a primeira transição em direção a Árcon,
Rhodan exprimiu isso da seguinte forma:
— Esse Ceshal deve ter uns cinqüenta anos de idade. Logo, é relativamente jovem.
Enquanto seu Império passava pelo apogeu e pela decadência, ele dormia. E agora chega
na hora exata da reconstrução. Logo, não perdeu nada. E as gerações nascidas depois dele
e colocadas em estado de hibernação não degeneraram. Mantiveram-se vigorosas e
ativas. Podemos confiar em Atlan; é nosso amigo. Aliás, acho que teremos de confiar
nele. Entregando-lhe os antepassados, colocamos em suas mãos um poder que nunca
deverá ser subestimado. Árcon voltará a ser aquilo que já foi.
— E tudo isso aconteceu — disse Gucky em tom pensativo — porque naquela
oportunidade captei o pedido de socorro de T-39. O que teria acontecido se naquele
momento eu estivesse dormindo?
Rhodan sorriu e acariciou o pêlo de Gucky.
— Ora, meu baixotinho, o que poderia ter acontecido? É fácil calcular. Existiam
duas possibilidades... aliás, estas sempre existem. Naquele tempo, a revolta já estava
latente. Talvez tivesse sido bem sucedida, talvez não. A estrela Magnus sempre existiu. E
ficava na trajetória da nave. No mínimo, a nave seria captada por seu campo
gravitacional, dentro de trinta ou quarenta anos. Acontece que Magnus não tem planetas.
As pessoas adormecidas despertariam e...
Mantiveram-se calados. Não havia mais nada a dizer.
Gucky suspirou.
— Digam o que quiserem — constatou. — Se às vezes andamos espionando um
pouco, isso tem seu lado bom. Se daquela vez, na nave de Lund, aquele cadete esquisito,
o Bruggs, não me tivesse dado as cenouras murchas...
Rhodan continuava a acariciar o pêlo de Gucky.
— Acho — disse — que falar em duas possibilidades representa uma forte
subestimação do jogo de probabilidades. Qualquer situação representa o ponto de partida
de milhões de possibilidades. Mas só uma delas se transforma em realidade. Se
raciocinarmos bem sobre isso, o acaso adquirirá um novo significado, se é que o mesmo
significa alguma coisa.
— Se! — piou Gucky e enrolou-se sobre o colo de Rhodan. — Proponho que a
palavra “se” seja eliminada do vocabulário de todas as raças inteligentes, pois ela dá
margem para muitos “abusos”! Se considerarmos por exemplo...
— Ora veja! — exclamou Bell em tom de triunfo. — Se...!
Mas Gucky já estava dormindo. Ou ao menos fazia de conta que estava.
***
**
*

Os “adormecidos” foram conduzidos em segurança a


Árcon e serão recebidos festivamente por Atlan. Mas Perry já
tem outro problema para resolver, quando recebe uma ordem
telepática...
Em Céu sem Estrelas, próximo livro da série, novos
lances de emoção...

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