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O SOL CHAMEJANTE
Autor
CLARK DARLTON
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Os antepassados foram postos a dormir há dez mil anos —
agora precisa-se deles para reconstruir o grande império.
***
***
***
No momento em que o Tenente Grenoble e o sargento Raft haviam saído com sua
gazela pela comporta da Drusus, a fim de voltar à sua nave-mãe, chegou a mensagem de
hiper-rádio vinda de Árcon.
As instalações de hiper-rádio ficavam ao lado da sala de rádio propriamente dita da
Drusus, e eram controladas pelo pessoal de plantão. O Tenente Stern acabara de ser
revezado. Foi por isso que o cadete Hans-Otto Fabian entrou correndo na sala de
comando, dando mostras de uma tremenda exaltação.
— Temos um contato com Árcon, sir.
Rhodan, que estava conversando com Sikermann, perguntou em tom de surpresa:
— Com Árcon?! É o imperador em pessoa?
— Sim senhor. Gonozal VIII deseja falar com o senhor.
Rhodan deixou Sikermann a sós e, passando por Fabian, atravessou a sala de rádio e
parou junto à hipertela oval, de onde o rosto marcante de Atlan o contemplava.
Atlan, o arcônida imortal, seguia a tradição e chamava-se de Gonozal VIII, depois
que assumira o governo do Império, em substituição ao grande computador de Árcon. Ao
ver Rhodan, um sorriso fugaz passou por seu rosto severo.
— Olá, bárbaro! Espero não estar incomodando.
Rhodan sorriu e sentou-se. Sabia que Atlan o via, a mais de trinta mil anos-luz de
distância. Aquilo que há cem anos ainda seria considerado como fantasia sem nexo de um
utopista, hoje era um acontecimento corriqueiro. As comunicações de rádio se
estabeleciam a dezenas de milhares de anos-luz, sem perda de um segundo.
— Você nunca é inoportuno, imperador — respondeu Rhodan com ligeira ironia na
voz. — De qualquer maneira, suponho que deve haver algum motivo, que o faça desejar
falar comigo. O carro pegou fogo?
— Não sei se já pegou fogo, Perry, mas ao menos está soltando fumaça.
— São os povos do Império Arcônida?
— Exatamente. Desde o momento em que tomei o lugar do grande computador, as
rebeliões começaram a surgir. Todos temiam o rigor implacável do robô e obedeciam.
Acontece que atualmente o governo é exercido por um arcônida dotado de sentimentos
humanos. E certas inteligências pretendem tirar proveito desta circunstância. Sem dúvida
tenho tanto poder quanto o computador, mas sinto certos escrúpulos... e todos sabem
disso.
— Em outras palavras, com você acontece a mesma coisa que comigo. Há pouco vi-
me obrigado a fazer uma demonstração impressionante de força contra os druufs, para
mostrar aos nossos amigos, os saltadores, que os terranos são muito fortes e decididos. O
que é que você pretende fazer? Quer que transforme um planeta numa fogueira
energética?
— Não faça drama, Perry — disse Atlan, abafando a irrupção de Perry. — Isso
poderá ser feito mais tarde, se não quiserem criar juízo. O que me falta são colaboradores
capazes, arcônidas competentes. Não preciso de covardes e idiotas degenerados, pois
destes tenho de sobra em Árcon. Concordo plenamente com você, bárbaro: minha raça
está degenerada. Bastariam uns dez mil arcônidas da velha estirpe para voltar a fazer do
Império aquilo que já foi. Poderia ajudar-me a conseguir isso?
— Não é o que estou fazendo? — perguntou Rhodan.
Atlan fez um gesto de assentimento e sorriu como quem pede desculpas.
— É claro que você já está ajudando, amigo. Acontece que pensei em outra
possibilidade. Acabo de aludir aos arcônidas da velha estirpe, que me faltam para dirigir
o Império. Preciso de oficiais para minhas naves, comandantes para minhas escolas
militares, diretores para as hipno-universidades, dirigentes para as fábricas e usinas
automáticas, instrutores para os exércitos de robôs e...
— Um momento — interrompeu Rhodan, levantando as mãos num gesto de defesa.
— Quem o ouve falar assim pode ter a impressão de que você pretende criar de uma hora
para outra toda uma geração de arcônidas ativos e competentes. Acontece que onde nada
existe, nada se pode buscar.
— Acontece que existe — respondeu Atlan em tom insistente. — Será que sua
memória está tão fraca?
Por um instante Rhodan sentiu-se perplexo. Não sabia a que Atlan estava aludindo.
Por isso a pergunta que fez foi sincera:
— O que quer dizer?
— Você realmente não sabe? Muito bem. Nesse caso lembrar-lhe-ei um pequeno
acontecimento que se verificou há oito ou nove meses terranos. Naquela época, você era
considerado morto, e eu ainda não havia assumido as funções de imperador de Árcon. Foi
em fins de 2.043. Um cruzador ligeiro comandado por Wilmar Lund voltou à Terra,
trazendo Gucky. E este nos forneceu certas informações estranhas. Já está lembrado?
— A nave dos antepassados! — exclamou Rhodan em tom de surpresa.
Lembrou-se. Então era a isso que Atlan estava aludindo.
— Perfeitamente.
— Estou ouvindo — disse Rhodan em tom tranqüilo.
— Vamos rememorar os fatos. Preciso de arcônidas da velha estirpe, para
reconstruir o império estelar. Se tiver sorte, talvez consiga encontrar algumas centenas
deles. Acontece que preciso de muito mais. Alguns milhares. Pois bem: a nave dos
antepassados. Durante um vôo de patrulhamento, Gucky descobriu uma nave da classe
Império que ia à deriva. Essa nave tinha uma tripulação de milhares de pessoas. Homens
e mulheres. Assim que estes atingiam certa idade, os robôs os colocavam à força num
estado de hibernação a frio e os empilhavam num compartimento especial da nave. O
número exato dos arcônidas conservados ao longo dos milênios não é conhecido. Pelas
indicações de Gucky, devem ser mais de cem mil. Perry Rhodan, preciso desses cem mil
arcônidas para a reconstrução do Império Arcônida.
Então era isso!
Rhodan refletiu prolongadamente, lançou um olhar atento para Atlan e disse:
— Então você quer que eu procure a nave e a leve para Árcon?
— Isso mesmo. Será que estou pedindo demais?
— Não, Atlan, claro que não. Acontece que, com isso, você está modificando um
plano dos seus antepassados. Será que você sabe qual é a finalidade daquela nave?
— Não sei qual era sua finalidade primitiva, mas sei perfeitamente qual é a
finalidade que ela pode e deve desempenhar hoje, Perry. A nave dos antepassados, com
sua preciosa carga é um presente dos deuses, como se costuma dizer. A descoberta de
Gucky representa uma indicação que não podemos deixar de seguir. Neste exato
momento estamos precisando dos arcônidas adormecidos, a fim de salvar o Império.
Talvez não tenha sido por simples acaso que Gucky descobriu essa nave.
— Acha que foi uma espécie de ato providencial? — perguntou Rhodan em tom
reticente. — Talvez você tenha razão. Os dados relativos à nave dos antepassados estão
armazenados no computador positrônico do cruzador ligeiro Arctic. O comandante Lund
encontra-se em Vênus, onde está fazendo um curso. Posso entrar em contato com ele.
Percebia-se o alívio que estas palavras produziram em Atlan.
— Obrigado, amigo. O perigo representado pelos druufs logo passará, mas novos
perigos surgirão. Por enquanto a presença dos druufs ainda mantém unidos os povos do
Império. Mas quando os seres-toco desaparecerem...
Rhodan sabia o que Atlan queria dizer. Talvez a nave dos antepassados fosse a
solução. O tempo diria.
— Cuide para que o funil de descarga seja vigiado constantemente — pediu,
dirigindo-se a Atlan. — Por enquanto não retire nenhuma unidade de lá. Talvez, dentro
de algumas semanas, possamos pensar nisso.
— Desejo-lhe muitas felicidades, no meu próprio interesse — respondeu Atlan. —
Há mais uma coisa que devo dizer-lhe. Tenho inimigos. Em toda parte surgem forças
misteriosas que me combatem. Não se consegue agarrar o inimigo; até parece que é
invisível ou possui forças mágicas. Não posso explicar em poucas palavras, mas o fato é
que eles recorrem a todos os meios para abalar o poderio de Árcon. É possível que isso já
tenha acontecido antes do meu tempo; não sei. Mas o inimigo deve ser de opinião que a
situação atual é muito favorável.
— O inimigo? Você não o conhece? Será que são os saltadores?
— Não posso garantir nada, Perry. Por enquanto não consegui pegar um único
desses misteriosos sabotadores. Trabalham no escuro e parecem ser a prudência em
pessoa. Mas deixemos disso por ora. Procure encontrar a nave dos antepassados e a traga
até aqui. Prepararei para você e seus homens uma recepção que nunca nenhum mortal
teve igual.
— Agora você está fazendo drama! — constatou Rhodan com um sorriso e estendeu
a mão em direção à tela. — Dou-lhe minha palavra de que procurarei a nave. Cuide dos
druufs. Acredito que não terá mais problemas com eles. Desejo-lhe muita sorte, Atlan.
Por alguns segundos fitaram-se mutuamente. Depois a tela apagou-se. Cada um
desses homens extraordinários sabia que poderia confiar no outro, acontecesse o que
acontecesse.
Quando Rhodan voltou à sala de comando e mandou que o radioperador Fabian
voltasse ao seu posto, seu rosto voltara a ficar sério. O Coronel Sikermann notou.
— Más notícias? — perguntou em tom cauteloso.
Rhodan levantou a cabeça e fitou-o.
— Não; não é bem isso. Ao menos as notícias não são más para nós.
Fez uma ligeira pausa e lançou um olhar ligeiro para as telas coloridas.
— Fixe as coordenadas do salto, coronel. Vamos voltar à Terra. Antes, quero dar
algumas instruções às unidades que permanecerão aqui. Quer fazer o favor de tomar as
providências necessárias?
O resto foi rotina.
Dali a duas horas, a Drusus iniciou a longa viagem à Terra.
Era uma viagem longa, mas não demorada.
***
O comandante Wilmar Lund não tinha a menor idéia quanto aos motivos por que ele
e seus tripulantes tiveram de interromper subitamente o curso que estavam fazendo.
Consideravam esse curso uma espécie de licença a ser passada em Venus City, e por isso
não se esforçavam muito.
No mesmo dia em que chegou a ordem vinda de Terrânia, Lund e seus homens
subiram a bordo do cruzador Arctic e decolaram em direção à Terra. Chegaram ao
planeta natal sem quaisquer incidentes e pousaram no espaçoporto de Terrânia,
estacionando sua nave junto à gigantesca Drusus, que geralmente era considerada a nave
capitania de Rhodan.
Lund começou a desconfiar de que não era por acaso que sua chegada coincidia com
a presença da Drusus. Recapitulou os acontecimentos das últimas semanas e meses o
mais rápido que pôde, mas não encontrou uma explicação. Cometeu um erro ao não
recuar nove meses.
Na sala de comando recebeu ordens para colocar a Arctic no hangar da Drusus e
dirigir-se o mais rápido possível ao edifício da administração de Terrânia. Perry Rhodan
já o esperava.
Lund despertou de uma espécie de devaneio. Deu suas instruções e entrou no
turbocarro, que se encontrava estacionado junto à nave. O veículo, dirigido
automaticamente, levou-o à cidade numa velocidade tremenda. Atravessou as comportas
da abóbada energética sem ser submetido a qualquer controle e subiu os largos degraus
do edifício quadrado, que costumava ser considerado o centro nervoso do sistema solar.
Foi recebido pelo Marechal Freyt em pessoa, que o levou ao gabinete de Rhodan.
No corredor encontraram-se com alguns membros do Exército de Mutantes, que pareciam
estar preparados para a partida. Lund reconhecia essa disposição. Havia alguma coisa no
ar.
Assim que Lund entrou no gabinete, Rhodan levantou-se. Estendeu-lhe a mão como
se fossem velhos amigos. Sabia que, para Rhodan, todo colaborador era um amigo e que
o chefe sempre oferecia um tratamento afetuoso. Era este um dos motivos por que
qualquer um deles enfrentaria o pior dos perigos, desde que Rhodan o pedisse.
— Agradeço-lhe por ter vindo tão depressa, Lund. O senhor já conhece mister Bell,
e não tenho necessidade de apresentar Gucky. Ele esteve presente naquela oportunidade;
pertenceu ao grupo.
Alguma coisa remexeu na memória de Lund.
“Gucky estava com eles?”, indagou-se, tentando rememorar-se.
Depois de cumprimentar Bell e Gucky, acomodou-se na poltrona que lhe foi
oferecida. Aguardou em silêncio. Não teve de esperar muito tempo.
— Daquela vez em que o senhor foi buscar Gucky, que retornava de uma missão, e
o trouxe de volta à Terra, o senhor se encontrou com uma nave arcônida que ia à deriva
— principiou Rhodan com um sorriso de quem sabe de tudo. — Conforme constava do
diário de bordo, tal nave parecia ter sido abandonada pela tripulação e ia à deriva. Já se
lembra? Lund fez que sim.
— Muito bem. O senhor registrou a velocidade e a rota?
Lund voltou a fazer um gesto afirmativo. Não tinha a menor idéia do porquê da
pergunta.
“Será que me esqueci de alguma coisa?”, pensou apreensivo?
Mas Rhodan tranqüilizou-o ao prosseguir:
— Os dados estão armazenados no computador positrônico da Arctic?
— Estão, sim senhor. Era meu dever armazená-los e, além disso, Gucky o exigiu
expressamente. Seria possível que, mais tarde, se desejasse voltar a examinar aquela
velha nave. Sua posição pode ser determinada a qualquer momento, se é nisso que o
senhor está interessado.
Rhodan fez que sim.
— É exatamente isso, Lund. Ainda bem que o senhor se lembra. Acho que está na
hora de Gucky lhe contar a verdade. Há nove meses ele o enganou.
Gucky escorregou para fora da poltrona, que lhe era muito grande. Aproximou-se e
saltou para cima do colo de Lund.
— Você não está zangado comigo, não é, Lundizinho? — perguntou num pio e fez o
conhecido jogo de olhos, ao qual ninguém conseguia resistir. — Levei quatro horas
examinando aquela nave misteriosa, e você ficou muito admirado. Quatro horas para
examinar uma nave vazia! Bem, na verdade não estava vazia. Ela abriga dez mil
arcônidas vivos.
Lund respirava nervosamente.
— Ah, é? E você não me disse nada? Por quê?
— Porque além desses dez mil havia mais cem mil arcônidas guardados num
frigorífico, esperando que alguém os acordasse. Como são tantos, isso só poderia ser feito
num planeta adequado, pois, do contrário, haveria uma catástrofe. É este um dos motivos
por que guardei o segredo para mim. Talvez o senhor insistisse em querer examinar a
nave...
Lund acenou lentamente com a cabeça. Estava compreendendo.
— Você tem razão, Gucky. Eu teria insistido num exame rigoroso; não poderia agir
de outra forma. E agora? O que vamos fazer?
Quem respondeu foi Rhodan.
— Árcon precisa de gente capaz, que fortaleça seu império. Quem melhor para isso
que os arcônidas adormecidos na nave dos antepassados? Trata-se de homens e mulheres
da velha estirpe. Uma vez que estão hibernando, conservaram sua capacidade física e
psicológica. Atlan pediu-me que levasse a nave para Árcon. Foi por isso que mandei
chamá-lo, comandante.
Lund levantou-se.
— Quer que lhe forneça imediatamente as coordenadas? Providenciarei para que...
— Iremos com o senhor, Lund — interrompeu-o Rhodan. — A Arctic já está
guardada no hangar da Drusus. Decolaremos e calcularemos as coordenadas, enquanto
estivermos saindo do sistema solar. Não temos um minuto a perder. Está preparado?
— Naturalmente, sir. Acontece que o senhor tinha pouco tempo.
— Tenho bastante tempo — tranqüilizou-o Rhodan. — Bell e Gucky estão ansiosos
para descobrir a nave. Andaram vadiando por bastante tempo junto ao lago de Goshun.
Bell esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas resolveu ficar calado e lançou um
olhar de súplica a Gucky.
O rato-castor falou, demonstrando alegria.
— Isso mesmo. Não existe nada mais enjoado que um período de férias junto ao
lago de Goshun. Estou satisfeito por estarmos novamente... ora, não adianta. Perry, você
pode ser um telepata muito bom, mas...
Era verdade, embora a capacidade telepática de Rhodan tivesse seus limites. O chefe
soltou uma risada bonachona.
— Não se preocupe com as tulipas e as cenouras. É possível que amanhã ou depois
já tenhamos rebocado a nave dos antepassados até Árcon, e você esteja de volta para sua
casa. Até lá suas plantas prediletas não deverão morrer de sede.
A última afirmativa era verdadeira. Mas as outras não.
***
***
Fazia mais de dez mil anos que a gigantesca nave cruzava o espaço. Era uma
gigantesca esfera, de mil e quinhentos metros de diâmetro, do mesmo tipo da Drusus. Por
dez mil anos, esse veículo espacial da classe Império dera prova de seu valor.
De qualquer maneira, tratava-se de uma construção especial.
Em seu interior hibernavam os arcônidas conservados no gelo. Eram descendentes
das primeiras famílias governantes. Por ocasião da decolagem da nave só havia cinco mil,
antes que fossem levados pelo que se acreditava ser o comando da morte e atirados para
as câmaras frias — se é que realmente foi assim.
Foram os membros da última geração que assumiram o comando da nave e
dominaram os robôs, os quais até então exerciam o comando da nave dos antepassados.
Vários meses se haviam passado depois disso.
O comandante C-l controlava a situação, que era difícil e perigosa. No interior da
nave jaziam os antepassados, aguardando o momento de serem despertados, a fim de
colonizar um planeta. C-l não sabia o que teria acontecido há dez mil anos. Gucky não o
esclarecera a este respeito, para não aumentar o desassossego. O comandante nem sequer
sabia que era um arcônida. Mas as pessoas que hibernavam sabiam — ou ao menos
passariam a saber no momento em que fossem despertados. E mesmo entre estes apenas a
primeira geração possuía esse conhecimento.
— Daqui a dois séculos — dissera o estranho visitante — a nave será captada por
um sol que possui planetas habitáveis.
Depois disso o visitante — que não era outro senão Gucky — desaparecera tão
misteriosamente como havia surgido.
Depois, no interior da grande nave, várias mudanças ocorreram.
Nos primeiros meses, os dez mil arcônidas acordados iniciaram um novo estilo de
vida. Ninguém mais era levado pelos robôs, para ser posto a hibernar. Os que morreram
— e não foram muitos — foram expelidos pela comporta de lixo, a fim de vagarem pelo
espaço. A velocidade da nave fazia com que o cadáver não circulasse em torno de seu
bojo, como se fosse uma pequena lua, mas vagasse pelo infinito.
Os robôs deixaram de ser os senhores dos arcônidas, para transformarem-se em
servos. Sua reprogramação não trouxe qualquer dificuldade.
Eram duzentos anos (tempo terrano) até o sol mais próximo, segundo dissera o
misterioso visitante. Quer dizer que boa parte dos dez mil arcônidas acordados assistiria
ao pouso. No entanto, duzentos anos representavam um tempo muito longo.
No dia 8 de setembro de 2.044 (tempo terrano), o primeiro-oficial da nave exprimiu
claramente este pensamento, por ocasião de uma conferência realizada na sala de
comando:
— Não compreendo, C-l por que temos de permanecer inativos até que os duzentos
anos se tenham passado. Afinal, temos em nosso poder uma nave intacta, cujos
propulsores funcionam perfeitamente. Não sei quais eram as opiniões dos antepassados,
mas posso garantir que dez mil anos são um tempo muito longo. Muita coisa pode ter
mudado na Galáxia. Em outras palavras, não sei por que devemos entregar-nos
passivamente ao destino.
O médico D-3 fez um gesto de aprovação. E os dois maquinistas, M-4 e M-7,
também não pareciam discordar de O-l. O comandante reconheceu que, naquele
momento, não seria recomendável oferecer qualquer resistência. Mas também conhecia
seus deveres e responsabilidades.
— Nenhum de nós conhece o sistema de propulsão da nave. Pelo que conseguimos
apurar, estamos voando a uma velocidade muito inferior à da luz. Dei-me ao trabalho de
recorrer ao setor de memória do computador positrônico, a fim de estudar certos dados
científicos, O-l. Já há dez mil anos o salto pelo hiperespaço era considerado o melhor
meio de locomoção. Todas as naves foram dotadas de equipamentos que o possibilitam.
Provavelmente, esse equipamento exista nessa, onde nos encontramos. Os robôs nunca
acionaram esse dispositivo. Não sabemos se a causa disso foram as instruções
introduzidas nos robôs. E não sei se devemos assumir o risco.
— Por que não? — interrompeu-o O-l em tom áspero. — Não adquirimos nossa
independência? Não somos donos de nosso destino? Não podemos fazer aquilo que
acharmos acertado? Quem poderá impedir-nos?
C-l não viu qualquer saída.
— Se não houver nenhum dispositivo de hipersalto a bordo, não teremos nenhuma
decisão a tomar. Teremos de prosseguir em nosso vôo até alcançarmos o sistema
planetário inicialmente previsto.
Uma expressão de triunfo surgiu no rosto de O-l.
— C-l, permita que um perito tome a palavra. M-7 andou dando umas olhadas pela
nave e descobriu várias coisas.
O comandante concordou, embora sentisse uma inquietação cada vez maior.
O mecânico, que praticamente ascendera à condição de oficial, em virtude do papel
decisivo que desempenhara na revolta contra os robôs, adiantou-se.
— No interior da nave existem as instalações destinadas à hibernação a frio —
principiou. — Mas não existem só estas. Além disso, o mecanismo propulsor fica lá. E
trata-se de um excelente conjunto propulsor, que nos permite levar a nave por toda a
Galáxia, isto é, ao menos na extensão e na configuração da mesma, revelada pelos mapas.
Levei algumas semanas para estudar as instalações. Acho que já as conheço e posso
manejá-las. Em poucas palavras, se quisermos levar a nave através de toda a Galáxia,
poderei calcular e executar o salto.
— Não sei se os antepassados aprovarão uma iniciativa desse tipo — principiou o
comandante.
Porém foi interrompido imediatamente pelo primeiro-oficial.
— Os homens que estão hibernando não serão consultados, C-l. Somos nós que
temos o controle da nave. E somos nós que determinamos sua rota. Por muito tempo as
maquinações dos antepassados nos deixaram presos numa rede de medo e mentira. Está
na hora de tomarmos uma iniciativa. Levaremos a nave ao sistema solar mais próximo e
pousaremos num planeta habitável. Depois poderemos despertar as pessoas que estão
hibernando. Seremos um número suficiente de homens e mulheres para fundar uma nova
raça.
— Será que a finalidade desta nave é esta? — perguntou o comandante.
Não obteve resposta. D-3 ergueu ambas as mãos, num gesto tranqüilizador:
— Como poderíamos conhecer o destino, o objetivo ou a finalidade da nossa
viagem, se fomos enganados há milênios? Acho que temos o direito de controlar nosso
destino. Já que M-7 conseguiu descobrir o hiperpropulsor, deveríamos utilizar tal
mecanismo para chegarmos o quanto antes a um destino. E nosso destino só poderá ser
um planeta habitável.
— Concordo plenamente — disse O-l.
Os dois técnicos fizeram gestos de assentimento.
C-l viu que fora derrotado pelo número.
— Submeto-me à decisão da maioria — disse. — Mas quero ponderar que por
vários motivos só concordo porque sou obrigado a isso. O motivo principal é este: nossos
conhecimentos a respeito do chamado hiperpropulsor são muito limitados. Não temos a
menor experiência com seu manejo. Se alguma coisa não der certo, estaremos perdidos.
Ou será que M-7 poderá reparar o propulsor se este falhar durante a viagem? Além disso,
cabe ressaltar que não temos a menor idéia da finalidade que esta nave das gerações deve
preencher. Talvez devamos alcançar nosso destino com a velocidade que atualmente
estamos desenvolvendo.
— Se fosse assim, para que serviriam as instalações de hipersalto? — perguntou o
médico com um olhar de esguelha para O-l. — Afinal, o aparelho não entrou na nave por
acaso.
— Acontece que o hiperpropulsor se encontra em posição fácil de ser localizado,
mesmo estando no interior da nave — disse O-l em tom frio.
O comandante resignou-se.
— Todos os argumentos que acabam de ser alinhados parecem lógicos e
convincentes, pouco importando de que lado tenham vindo. Não tenho outra alternativa
senão submeter-me à vontade da maioria.
— Quer dizer que temos permissão para calcular e executar um hipersalto? —
perguntou O-l por uma questão de cautela.
O comandante fez um gesto de assentimento.
— A decisão pode ser interpretada dessa forma, O-l. Se D-3 também estiver de
acordo...
— Sou a favor da experiência — disse o médico apressadamente, como se receasse
que o comandante pudesse mudar de idéia. — Quanto mais cedo pousarmos num planeta,
tanto melhor.
Subitamente sacudiu a cabeça.
— Será que alguém aqui presente sabe o que vem a ser um planeta e como é ele?
Todos haviam nascido na nave e nunca conheceram outro mundo senão o
representado pelo veículo espacial. A bordo existiam livros falando de gigantescas
esferas que gravitavam em torno de sóis chamejantes. Eram corpos naturais, não
artificiais, e seus habitantes viviam na face das esferas, não no interior delas. O sol
possibilitava esse modo de vida, fornecendo calor e energia.
— A vida num mundo como este sempre deve ser mais bela que no interior de uma
nave — disse O-l em tom convicto. — Cheguei a ler que as naves iguais a esta só são
utilizadas no transporte, por mais absurdo que isso possa parecer. Pelo que dizem, a vida
natural e digna de ser vivida é a que se desenvolve na face dos planetas. Conclui-se que,
se ligarmos o hiperpropulsor, estaremos cumprindo as leis da natureza e buscando de
modo mais rápido um mundo que nos abrigue.
— Um mundo onde não existe geração de ar — disse C-l em tom pensativo. — Isso
é inimaginável e deprimente. Quem sabe que decepções nos esperam?! Está bem, O-l.
Providencie para que tudo seja preparado. Não podemos assumir qualquer risco. O
primeiro salto deverá ser bem sucedido. Nunca permitirei um segundo salto.
Isso aconteceu no dia 8 de setembro de 2.044.
Dali a dois dias, o primeiro-oficial anunciou que o departamento técnico acabara de
examinar detidamente e analisar o hiperpropulsor e que os respectivos computadores
positrônicos haviam sido ativados. Mas o comandante continuou no seu ceticismo.
— Já sei! O senhor quer os mapas estelares para calcular o salto? — perguntou.
— Sem esses mapas não há possibilidade de executarmos um salto bem orientado.
Neles estão registrados os dados necessários. Nossa posição também pode ser apurada
com base em tais dados.
— Podemos dar-nos por felizes por termos os mapas a bordo — disse o
comandante. — Encontrei-os nesse armário. Aliás, a existência desses mapas pode ser
interpretada como uma prova de que a nave tem permissão para executar manobras
independentes.
— O propulsor também constitui uma prova disso — observou O-l em tom de
triunfo.
Colocou-se ao lado do comandante e inclinou-se sobre os mapas.
— Escolheremos a estrela mais próxima, a fim de que o risco seja o menor possível.
Iremos em linha reta. Só haverá necessidade de uma insignificante correção de rota.
Desde que os dados sejam corretos...
— Por que não seriam corretos? — disse o comandante, que, de repente, parecia
mais confiante que o primeiro-oficial. — Estudei os manuais e aprendi a teoria do salto.
É claro que não sei como as coisas funcionarão na prática.
— Não demoraremos a descobrir — comentou O-l em tom obstinado. — Desde o
momento em que soube que, no interior desta nave, muitas gerações de nosso povo estão
hibernando, sou perseguido dia e noite por um terrível pesadelo: quem sabe se eles não
poderão acordar de repente?
O comandante levantou a cabeça. Seu rosto estava pálido.
— Por que iria acontecer uma coisa dessas, O-l? Só depois de pousarmos num
planeta, nós os acordaremos. Os antepassados, que estavam presentes por ocasião da
decolagem desta nave, já conhecem as condições de vida num planeta. Eles nos ajudarão.
Ao que parecia, o primeiro-oficial estava interessado em encerrar este assunto
desagradável.
— Entregue-me os mapas, C-l, a fim de que eu possa mandar calcular os dados. Um
dos robôs vai nos auxiliar. Pelo que diz, já foi robô de navegação. Os técnicos mais
competentes passaram os últimos dias estudando minuciosamente os detalhes do
mecanismo de propulsão, e outros robôs reprogramados estão à nossa disposição com sua
experiência. Não pode nem deve haver qualquer falha, comandante.
— Naturalmente, O-l. O que devo fazer?
— Permanecerei em contato com o senhor. Quando tudo tiver acertado, bastará
puxar aquela chave embutida. O resto será providenciado pelos dispositivos automáticos.
Oportunamente eu o avisarei.
O comandante seguiu-o com um olhar pensativo.
Parecia que a longa viagem estava chegando ao fim.
Ninguém sabia de onde vinha a nave. O diário de bordo positrônico não dizia nada a
este respeito, e não existia outra fonte de informações. Se tal fonte existira, havia sido
destruída, no momento em que os robôs assumiram o comando. Também o destino e a
finalidade do vôo estavam ocultos nas brumas do tempo.
O comandante lembrou-se das pessoas que hibernavam. Elas estavam empilhadas no
interior de uma imensa esfera oca, situada no centro da nave. Os robôs de vigilância
colocaram-nas lá, uma vez concluído o tratamento nas câmaras frigoríficas. Estas agora
permaneciam vazias, porque ninguém mais dava ordens para alguém ser mergulhado num
estado de hibernação, pois os robôs passaram a ser dominados pelos homens.
O veículo espacial oferecia lugar de sobra para dez mil pessoas, mas aquelas que
dormiam, e que representavam o décuplo dessa cifra, só poderiam ser despertadas após o
pouso num planeta habitável. Caso fossem acordadas antes da descida, a nave não
poderia abrigá-las.
O comandante olhou para as telas.
Lá fora o espaço cósmico se estendia repleto de estrelas. Há um ano nem sabia o que
vinham a ser estrelas. Sem dúvida, para ele, todas eram sóis. Mesmo agora, ainda
ignorava que a maior parte delas possuía planetas nos quais se podia viver e respirar.
Um zumbido arrancou-o das reflexões.
— Aqui fala O-l, comandante. Encontro-me no centro hiperpropulsor. Os robôs de
navegação processaram os dados e me entregaram o resultado, contendo as respectivas
coordenadas. Está tudo devidamente regulado. Já podemos saltar.
O comandante levantou-se e foi até a parede. Colocou a mão sobre a chave
vermelha.
— Tomara que não tenhamos cometido nenhum engano, O-l...
— Fizemos tudo que estava ao nosso alcance para evitar um possível erro,
comandante.
— Está bem — o comandante inspirou e expirou fortemente. — E a tripulação?
— Estão todos nos seus lugares.
— Muito bem! — C-l puxou a chave. Foi fácil movê-la.
Nada dava a impressão de ter mudado. Apenas as estrelas, que a tela mostrava,
pareciam ter sido apagadas por uma mão invisível. Por uma fração de segundo o espaço
sumiu. E logo depois outras estrelas se aglomeravam em estranhas constelações e...
permaneceram na tela.
O comandante sentiu a dor da rematerialização, à qual não estava acostumado. Por
alguns segundos essa dor foi acompanhada de um terrível pavor, mas à medida que ia
passando, o temor de que alguma coisa poderia ter saído errada também perdia a
intensidade.
Com um salto C-l colocou-se junto ao intercomunicador.
— Alô, O-l. O senhor me ouve?
O dispositivo de imagem foi ativado. O rosto do primeiro-oficial parecia perturbado,
mas logo nele começou a desenhar-se um sorriso de triunfo.
— Acho que conseguimos. Com as máquinas está tudo normal. O que está
aparecendo na tela da sala de comando?
— Novas estrelas. O deslocamento de certas constelações faz supor que
percorremos uma distância na qual normalmente teríamos gasto vários decênios. Há um
sol branco bem perto de nós. Estamos voando diretamente em sua direção.
— É a estrela que representa nosso destino.
O primeiro-oficial passou a mão pela testa.
— O senhor está com a razão, C-l. Conseguimos! Dentro em breve pousaremos num
planeta.
— Acha que conseguiremos controlar a nave?
— Os robôs cuidarão disso para nós. Estão obedecendo às nossas ordens.
— Pois mande calcular a nova rota. Não sei quanto tempo levaremos para chegar à
estrela.
— Se mantivermos a mesma velocidade deveremos levar perto de três semanas.
— Quer dizer que teremos tempo de sobra — disse C-l com um suspiro de alívio.
Nem desconfiavam do perigo que corriam...
***
***
***
Num gesto destemido, o comodoro Ceshal abriu a comporta de frio e dirigiu-se aos
três homens, que se espantaram ao vê-lo.
— Então? — disse em meio ao silêncio de morte. — Vocês nos despertaram;
providenciem roupas para nós. Depois que o sangue voltou a circular em nossas veias,
passamos â sentir frio. Vocês puseram fim ao domínio dos robôs. Portanto, resolvam este
problema.
A-3 foi o primeiro a recuperar-se do susto.
— Quem despertou? Quantos?
— Espero que sejam todos. Não sabemos se a instalação funciona perfeitamente.
Ekral e Tunuter ajudaram a construí-la e, portanto, também são responsáveis por ela.
O médico empalideceu.
— Todos? Só deveremos chegar ao planeta daqui a três semanas. Onde vamos
arranjar roupas para todos? Volte à câmara de hibernação e tranqüilize o pessoal. Na nave
não há lugar para todos...
— O senhor está louco! — disse Ceshal com a voz fria. — Somos mais de cem mil
arcônidas, entre homens e mulheres, comprimidos num espaço extremamente reduzido.
Precisamos de roupas e de alimentos. Ainda acontece que, de direito, eu sou o
comandante da nave.
Com uma terrível nitidez, D-3 pressentiu as complicações que se aproximavam.
Quem dera que pudesse avisar C-l do perigo, sem provocar as suspeitas do homem que
acabara de ser despertado.
— Naturalmente seu posto será respeitado — disse em tom cauteloso. — Acontece
que não tenho poderes para tomar qualquer decisão. Sou apenas um dos médicos de
bordo. Desde o momento em que reprogramamos os robôs, assumi certas
responsabilidades. Antes disso, bem, é uma história muito longa. Acho que adquirirá um
sentido mais claro, se interpretada com os dados que o senhor poderá acrescentar. Venha
conosco. Vamos apresentá-lo a C-l. Ele encontra-se na sua sala de comando.
Ceshal fitou-o atentamente.
— Não adianta mentir para mim, doutor. Nasci milhares de anos antes do senhor e
pertenço à família reinante do Império...
— De que império? — perguntou D-3.
Ceshal começou a imaginar o grau de esquecimento que se espalhara entre os
descendentes. Os robôs haviam cuidado disso. Deveriam ter tido seus próprios planos
com os humanos. Que planos seriam estes?
— Somos arcônidas e donos de um império estelar de dimensões inimagináveis.
Fomos incumbidos de realizar uma experiência, mas a mesma foi mal sucedida. Talvez
não. Minha memória está falhando. Na sala de comando deve haver indicações a este
respeito, se é que não foram destruídas pelos robôs. Muito bem, doutor. Leve-me ao
comandante.
A mudança de disposição foi tão rápida que D-3 se sentiu surpreso. Foi a um
armário e revirou-o até encontrar uma coberta. Entregou-a a Ceshal.
— Vamos. Acho que não podemos perder um minuto, se quisermos evitar uma
catástrofe. M- 4 e M-7, fiquem aqui. Cuidem para que ninguém mais saia da câmara fria.
Depois de ligeira hesitação pôs a mão no bolso e tirou uma pequena arma de
radiações.
— Usem, se preciso, esta pistola. Ceshal esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas
preferiu ficar calado e envolveu-se no cobertor. Não fazia uma figura muito imponente e
começou a desconfiar dos efeitos psicológicos de um uniforme bem talhado. O médico
fez-lhe um sinal e foi andando à sua frente. Seguiu-o, sem dizer uma palavra. Antes de
abaixar-se para passar pela porta, olhou para trás.
Os dois técnicos se haviam postado junto à comporta de frio. Seus rostos exprimiam
uma resolução implacável.
Ceshal desconfiou de que as dificuldades apenas estavam começando...
***
***
A primeira coisa avistada por Gucky foi um grupo de seis ou sete mulheres,
precariamente vestidas, que batiam num homem uniformizado. Quando o judas não mais
resistiu, precipitaram-se sobre ele e arrancaram-lhe as roupas, com exceção da cueca.
Não se preocuparam mais com sua vítima: dividiram, entre si, as roupas do pobre
coitado.
— O que será que elas estão fazendo? — cochichou Ras muito abalado. — Você
compreende o que está acontecendo?
— Ainda não compreendi muito bem. Mas ao que tudo indica só estavam
interessadas pelas roupas, não pelo homem. Não é de admirar, pois de cueca ele pode ser
tudo, menos bonito.
Gucky soltou um som borbulhante, como se acabasse de contar uma boa piada. Nem
desconfiava de que, dali a pouco, não teria mais vontade de rir.
Antes que Ras tivesse tempo de dizer mais alguma coisa, foi descoberto por uma das
mulheres.
— Ali está mais um! — gritou uma delas, em tom de espanto. — É todo preto! Que
animal é este que se encontra perto dele?
— Isso dará um bom assado! — exclamou uma outra e precipitou-se com uma barra
de ferro levantada sobre o rato-castor. — Fui eu quem o viu o primeiro...
Gucky não estava com muita vontade de ser comido.
Recorreu à sua capacidade telecinética e usou-a sobre a mulher apaixonada pela
caça. A arcônida foi parar um pouco abaixo do teto, passando a gritar terrivelmente.
Depois flutuou até a primeira curva do corredor e desapareceu. Quando Gucky a soltou,
ouviu-se um baque surdo.
Enquanto isso, Ras tirava as barras de ferro das outras atacantes.
— Que espetáculo estranho é este? — gritou Ras em tom furioso para as mulheres
perplexas. — Vocês poderiam dizer o nome desse jogo?
Acontece que, nesse meio tempo, Gucky andara investigando os pensamentos das
mulheres indecisas e descobrira certas coisas que quase o deixaram sem fôlego. Girou em
torno do próprio eixo e segurou o braço do africano.
— Os antepassados acordaram, Ras, e, na nave mal e mal há lugar para eles. Não
existem roupas para todos. Nem mantimentos. Já houve casos de canibalismo. Alguns
deles se entrincheiraram no setor de produção de alimentos e o defendem
encarniçadamente. Outros andam pela nave, roubando e saqueando. Em que inferno
fomos nos meter?
— E a nave cairá no sol, se não mudar logo seu curso. Como pôde ocorrer isso?
— Ao que tudo indica, a transição ativou os impulsos automáticos, que despertaram
as pessoas em estado de hibernação. Vamos saltar para a sala de comando. Sei onde fica.
A nave era do mesmo tipo da Drusus. Gucky não teve a menor dificuldade em
orientar-se. O primeiro salto levou-o ao setor de comando da esfera espacial. Ras
materializou-se a seu lado.
O oficial, apavorado — era um tenente — teve uma reação muito lenta. Antes que
pudesse atirar, Ras lhe tirara a arma. Só havia mais um homem no corredor que levava à
sala de comando. Também estava armado, mas parecia indeciso sobre o que devia pensar
a respeito dos dois fantasmas surgidos do nada.
— Queremos falar com o comandante
— disse Ras, brincando com a pistola energética de que se apoderara, sem apontá-la
diretamente para o homem. — Leve-nos a ele.
O tenente já recuperara o autocontrole.
— Quem são vocês? De onde vêm?
— Deixemos isso para depois, baixinho
— desconversou Gucky, dirigindo-se ao tenente, que tinha quase o dobro do seu
tamanho. — Vai levar-nos ao comandante ou não?
— Temos ordens para não deixar...
— Deixa pra lá — disse Gucky em tom indignado. — Conheço o caminho.
Pediu a Ras que lhe desse cobertura e dirigiu-se com seu andar balouçante ao longo
do corredor, em direção à porta da sala de comando. Enquanto isso, sondava os impulsos
mentais dos arcônidas que se encontravam do outro lado da parede.
O comandante não estava só. Alguns dos antepassados achavam-se com ele. Dali se
concluía que nem sempre as pessoas despertadas e os homens do presente se defrontavam
como inimigos.
Gucky abriu a porta, soltando o fecho positrônico.
Entrou na sala de comando, acompanhado por Ras. De repente viu-se frente a frente
com grande número de arcônidas que, quando o notaram, interromperam sua palestra e o
fitaram como se fosse um fantasma.
Gucky já estava acostumado a isso. Afinal, não é todos os dias que a gente se
encontra com um rato-castor. Usava o uniforme especialmente feito para ele, com o cinto
estreito onde guardava as armas. Mas ao primeiro relance de olhos, percebia-se que não
era um ser humano. Era muito pequeno para isso. A larga cauda de castor que geralmente
lhe servia de apoio, arrastava-se pelo chão.
— Olá, amigos — disse Gucky, fazendo uma mesura em direção ao único homem a
quem conhecia. — Cá estamos. C-l, não lhe prometemos que oportunamente
voltaríamos? Naturalmente não poderia imaginar que neste meio tempo você iria
experimentar os hiperpropulsores...
C-l logo se recuperou da surpresa. Adiantou-se e inclinou-se sobre o rato-castor.
— Você cumpriu sua promessa! Naquela época, você nos livrou dos robôs, mas
receio que desta vez nem você poderá ajudar-nos. Os antepassados...
— Os antepassados acordaram; já sei. Andam por todos os cantos da nave e tiram os
uniformes dos tripulantes. Que situação! Mas o pior é que a nave está caindo em direção
a um sol, C-l. Se não fizerem nada, daqui a três dias estarão todos mortos. O que houve
com os propulsores?
— Nossos técnicos estão trabalhando ininterruptamente nos mesmos, mas por
enquanto não conseguiram nada. Além disso, nosso trabalho vem sendo perturbado. O
inferno está às soltas na nave. Bandos de ladrões assaltam nossos homens e os saqueiam.
Não existe mais nenhuma ordem. A única coisa que prevalece é a lei do mais forte.
Gucky deixou de olhar para C-l. Dedicou sua atenção a outro homem que se
adiantara e estava acompanhando a palestra com um interesse visível.
— Quem é você?
O comodoro Ceshal recuou como se tivesse sido picado por uma cobra.
— Sou o comodoro Ceshal e pertenço à primeira geração. Assumi o comando da
nave dos antepassados, que me cabe de direito. Quem é você? De onde veio? Onde se
escondeu até agora? Como aprendeu a falar a minha língua?
Gucky fitou Ceshal, como se quisesse embalsamá-lo vivo.
— Será que entrei num jogo de charadas? Nesse caso caberia a mim fazer as
perguntas. Quer dizer que você pertence à primeira geração? É uma das pessoas que
levantaram antes da hora?
Ceshal respirava com dificuldade. Gucky não o deixou falar.
— Já sei o que quer dizer. Até parece que está escrito na ponta do seu nariz. Não se
preocupe. Não contestarei seu direito ao cargo e me desmancharei de tanta veneração
assim que tiver tempo para isso. Acontece que no momento não tenho tempo.
Rebocaremos sua nave e a levaremos para fora do campo gravitacional deste sol. Meu
senhor manda dizer que devem acionar os propulsores em sentido contrário ao do
deslocamento da nave. Será que me fiz entendido?
— Os propulsores ainda não estão em condições de funcionar — ponderou C-l.
Ceshal não parecia disposto a permitir sem mais nem menos que alguém o ajudasse.
— Você vem de algum planeta do Império Arcônida? — perguntou em tom
orgulhoso. — Vocês não sabem guardar a necessária discrição. Ou será que, enquanto
dormíamos, as condições muito se modificaram?
— Se mudaram! — confirmou Gucky em tom irônico. — Você se espantará. Mas
posso tranqüilizá-lo, Ceshal. Somos da Terra, o planeta central de outro reino estelar, que
no seu tempo ainda não existia. Árcon e a Terra são amigos.
— A Terra?
— Você ainda se acostumará a isso — profetizou Gucky. — E também se
acostumará ao fato de que Ras e eu somos teleportadores. Então, como é? Estão dispostos
a deixar que os ajudemos ou não?
Ceshal parecia ter tomado uma decisão.
— Como podemos deixar? Meus melhores técnicos estão trancados na sala dos
propulsores. Têm alguns robôs em sua companhia, mas estão sendo atacados
constantemente e mal podem dedicar-se ao seu trabalho. Têm uma provisão de
mantimentos, e por isso sofrem os ataques. Nesta nave reina a fome.
— Já sei, mas acontece que no momento não podemos fazer nada para modificar
isso. Se não houver nenhum imprevisto e tudo der certo, esta nave poderá pousar dentro
de pouco tempo num planeta. Talvez possa mesmo pousar num planeta pertencente a
Árcon. Mas preciso de apoio. Ao menos parte dos propulsores tem de funcionar, pois do
contrário não conseguiremos arrastá-los para fora do campo gravitacional deste sol.
C-l lançou um olhar para Ceshal.
— Por que está hesitando, Ceshal? É verdade que o senhor é o comandante desta
nave, mas acontece que a pequena criatura, que o senhor vê à sua frente, ajudou-nos a
vencer os robôs. É nosso amigo. Sua hesitação poderá ofendê-lo.
— Não é isso — respondeu Ceshal, esticando as palavras. — Acontece que o senhor
sabe tão bem quanto eu quem manda nesta nave. Não é o senhor nem eu, mas a anarquia,
a fome, a guerra e a violência. Nem mesmo dispomos de uma intercomunicação regular
com Ekral, Alos e Tunuter. Vez por outra, uma pessoa consegue abrir caminho para lá, e
é só.
— Isso basta — disse Gucky. — Sou um teleportador e saltarei para lá, desde que
alguém me descreva a sala em que se encontram os técnicos. Enquanto isso, Ras
continuará aqui.
— Não seria preferível informar Rhodan sobre o que aconteceu aqui? — Ras
Tschubai parecia preocupado. — Ele devia saber.
Gucky refletiu um instante.
— Está bem, Ras. Salte para a Drusus e informe Rhodan. Enquanto isso cuidarei dos
técnicos. Voltaremos a encontrar-nos aqui, na sala de comando. Nossos elementos de
ligação serão C-l e Ceshal. Mande lembranças minhas a Bell, caso resolva contar-lhe a
história das mulheres.
— Ele ficará admirado — disse Ras com um sorriso e desmaterializou-se, depois de
concentrar-se por alguns segundos.
Gucky ficou só.
— Vejamos a sala dos propulsores, Ceshal. Mostre-me sua posição na planta da
nave. Além disso, será conveniente alguém me acompanhar, para que possamos dispensar
as explicações demoradas. Não temos um minuto a perder.
Nem desconfiava de que na realidade tudo seria uma questão de segundos.
6
Ninguém tinha uma visão de conjunto, ninguém sabia exatamente o que estava
acontecendo na nave. Cada um lutava contra os demais. Era uma guerra de todos contra
todos. E uma guerra por tudo.
De início haviam lutado por peças de roupa e cobertores. Depois surgiu a fome. Por
fim passaram a lutar pelos lugares em que pudessem deitar e descansar.
Na sala de máquinas da gigantesca nave esférica, a resistência fora organizada por
Alos, que providenciara para que todas as entradas fossem fechadas hermeticamente. A
sala de propulsores propriamente dita era um recinto redondo, com inúmeros aparelhos e
quadros de controle. Os pesados conversores formavam corredores e compartimentos
distintos — além de uma imensidão de excelentes esconderijos.
Duas ou três dezenas de pessoas despertadas e alguns membros da tripulação
primitiva conseguiram refugiar-se na sala de máquinas. Entrincheiraram-se em três ou
quatro lugares com os mantimentos e as armas de que se haviam apoderado e não
permitiam que ninguém ultrapassasse uma linha de segurança, arbitrariamente traçada.
Enquanto não o perturbavam no trabalho, Alos não se incomodou. Sentia-se
responsável pela segurança dos cientistas Ekral e Tunuter, e tinha de fazer tudo para que
estes reparassem os propulsores, a fim de evitar que a nave se precipitasse para dentro do
sol.
Os sete robôs formaram um semicírculo em torno do pequeno grupo de técnicos-
assistentes escolhidos por Ekral. Todos os robôs estavam armados e obedeciam
exclusivamente às ordens de Alos.
— Só posso garantir que pelo menos três dos propulsores da protuberância
equatorial voltarão a funcionar — dizia Ekral, dirigindo-se ao seu colega Tunuter. —
Infelizmente isso não deverá ser suficiente para modificar a rota o bastante, a fim de
evitar-se o desastre. Devemos pôr a funcionar pelo menos mais três propulsores. Com
isso, talvez conseguiríamos passar rente ao sol e precipitar-nos para o espaço. Quando
voltarmos a cair, já teremos consertado os outros propulsores.
— Não sei se nossos esforços valerão a pena — disse Tunuter, em tom de desânimo.
— No interior desta nave, uma civilização se esfacela. Uma cultura milenar está
literalmente sendo atropelada pelo primitivismo. O que estaremos salvando se
conseguirmos evitar a destruição da nave?
— Antes de mais nada, estaremos salvando a nós mesmos — constatou Ekral em
tom frio. Estava retirando o revestimento de um conversor. — Só depois saberemos o que
irá acontecer. De qualquer maneira não seria capaz de permanecer inativo, à espera do
fim.
Tunuter esteve a ponto de responder, mas viu-se interrompido por uma tremenda
explosão. Os fragmentos atravessavam o recinto com um zumbido e ricochetearam
perigosamente. Por milagre ninguém saiu ferido.
No primeiro instante, Alos supôs que um dos aparelhos tivesse explodido, mas o
uivo triunfante de um bando de arcônidas semi-selvagens fez com que visse a realidade.
Os atacantes atravessaram a abertura que se formara e brandiram suas armas, consistentes
principalmente em pedaços de móveis quebrados e barras de ferro.
Com um salto, Alos colocou-se ao lado dos robôs e deu-lhes ordem para que
defendessem o recinto. Ekral e sua equipe procuraram abrigar-se atrás de alguns
conjuntos de máquinas. Não estavam armados, motivo por que tinham de confiar
exclusivamente em Alos.
Os arcônidas, que já se encontravam no interior da sala, tomaram automaticamente
o partido dos cientistas e começaram a atirar contra os invasores de todas as direções.
Face à insegurança reinante, cada homem trazia sempre seus próprios mantimentos,
desde que os possuísse. Quando alguém era morto, os sobreviventes precipitavam-se
sobre este alguém e começavam a lutar pelos pertences do defunto. Nessa oportunidade,
até mesmo os aliados se transformavam em inimigos ferozes.
Só os robôs não conheciam a preocupação com os alimentos e seguiam estritamente
as ordens recebidas. Atiravam contra os intrusos e não poupavam os saqueadores.
Gucky irrompeu em meio à luta.
Materializou-se subitamente com O-l, atrás dos robôs. Reconheceu Alos pelos
impulsos mentais. Antes que o cibernético pudesse apontar a arma para o estranho ser,
que surgira tão misteriosamente do nada, Gucky disse:
— Você é Alos. Foi Ceshal, quem me mandou. Não atire.
Alos ficou tão perplexo ao ouvir o animal falar, que baixou a pistola. Só depois deu-
se conta do que Gucky lhe dissera.
— Foi Ceshal, o comodoro?
— Perfeitamente. Ele quer que eu os ajude.
Alos viu que os invasores que ainda estavam vivos tinham fugido e os robôs
suspenderam o fogo. Mandou que dois deles se dirigissem à parede danificada e ordenou-
lhes que não deixassem entrar ninguém. Só depois teve tempo para voltar a dedicar sua
atenção ao rato-castor.
— Quem é você? Não me lembro de o ter visto.
— Venho de outra nave, enviada por Árcon. Vamos arrastá-los para fora do campo
gravitacional do sol, mas nossos aparelhos não conseguirão fazê-lo sem apoio. Quantos
dos propulsores desta nave estão funcionando?
Ekral acabara de entrar. Seu espírito vivo e penetrante logo percebeu a chance de
salvação. Não perguntou sobre o onde e o porquê, mas foi logo explicando.
— São três propulsores. Será que isso bastará? Em sentido contrário.
Gucky fez um gesto afirmativo.
— Isso basta. Quando é que você pode ligá-los?
— Quando você quiser.
Alos interveio na conversa. Sua curiosidade era maior que o medo.
— Como foi que você veio parar aqui? Existe alguma comunicação com a outra
nave? Lá fora, no corredor, você será detido e talvez o matarão. Não sei...
— Sou um teleportador — disse Gucky, em tom lacônico. — Será que os
propulsores poderiam ser ligados daqui a cinco minutos?
— Naturalmente — respondeu Ekral. — Infelizmente seremos obrigados a trabalhar
às cegas, pois não temos qualquer ligação direta com a sala de comando. O
intercomunicador foi interrompido. Ceshal já está informado?
Gucky gostou das falas lacônicas do cientista. Tratava-se de um homem que não
fazia muitas perguntas, pois preferia agir.
— Tudo entendido. Então será daqui a cinco minutos. Mais tarde voltaremos a
encontrar-nos.
Antes que alguém pudesse responder, Gucky desapareceu. O-l permaneceu na sala
de máquinas.
Alos ainda fitava o lugar vazio, enquanto Ekral já se dirigia aos quadros de controle.
Examinou-os e preparou os três propulsores que funcionariam em sentido contrário ao do
deslocamento da nave. Olhou para o relógio.
— Faltam três minutos, Alos. Se a outra nave tiver bastante potência,
conseguiremos. Mas pelos dados que leio nos instrumentos, o campo magnético deste
pequeno sol é enorme. Se a distância ainda se tornar menor, estaremos perdidos.
Esperaram em silêncio.
Em algum lugar, entre os blocos de metal, um ferido gemia. No momento, ninguém
tinha tempo para cuidar dele.
***
***
***
O telecomunicador de Rhodan deu sinal.
— O contato foi estabelecido, sir — anunciou Sikermann. — Pode abrir a comporta.
Os técnicos dos arcônidas puseram-se a trabalhar. Normalmente a comporta era
aberta mecanicamente a partir da sala de comando, mas em caso de emergência devia-se
recorrer aos controles manuais.
Os arcônidas entraram na Drusus, nave capitania de Rhodan.
Com um único passo superaram uma evolução de dez mil anos.
Mais tarde, quando se viu acompanhado por Bell, Gucky e alguns amigos em seu
camarote, enquanto a Drusus se preparava para a primeira transição em direção a Árcon,
Rhodan exprimiu isso da seguinte forma:
— Esse Ceshal deve ter uns cinqüenta anos de idade. Logo, é relativamente jovem.
Enquanto seu Império passava pelo apogeu e pela decadência, ele dormia. E agora chega
na hora exata da reconstrução. Logo, não perdeu nada. E as gerações nascidas depois dele
e colocadas em estado de hibernação não degeneraram. Mantiveram-se vigorosas e
ativas. Podemos confiar em Atlan; é nosso amigo. Aliás, acho que teremos de confiar
nele. Entregando-lhe os antepassados, colocamos em suas mãos um poder que nunca
deverá ser subestimado. Árcon voltará a ser aquilo que já foi.
— E tudo isso aconteceu — disse Gucky em tom pensativo — porque naquela
oportunidade captei o pedido de socorro de T-39. O que teria acontecido se naquele
momento eu estivesse dormindo?
Rhodan sorriu e acariciou o pêlo de Gucky.
— Ora, meu baixotinho, o que poderia ter acontecido? É fácil calcular. Existiam
duas possibilidades... aliás, estas sempre existem. Naquele tempo, a revolta já estava
latente. Talvez tivesse sido bem sucedida, talvez não. A estrela Magnus sempre existiu. E
ficava na trajetória da nave. No mínimo, a nave seria captada por seu campo
gravitacional, dentro de trinta ou quarenta anos. Acontece que Magnus não tem planetas.
As pessoas adormecidas despertariam e...
Mantiveram-se calados. Não havia mais nada a dizer.
Gucky suspirou.
— Digam o que quiserem — constatou. — Se às vezes andamos espionando um
pouco, isso tem seu lado bom. Se daquela vez, na nave de Lund, aquele cadete esquisito,
o Bruggs, não me tivesse dado as cenouras murchas...
Rhodan continuava a acariciar o pêlo de Gucky.
— Acho — disse — que falar em duas possibilidades representa uma forte
subestimação do jogo de probabilidades. Qualquer situação representa o ponto de partida
de milhões de possibilidades. Mas só uma delas se transforma em realidade. Se
raciocinarmos bem sobre isso, o acaso adquirirá um novo significado, se é que o mesmo
significa alguma coisa.
— Se! — piou Gucky e enrolou-se sobre o colo de Rhodan. — Proponho que a
palavra “se” seja eliminada do vocabulário de todas as raças inteligentes, pois ela dá
margem para muitos “abusos”! Se considerarmos por exemplo...
— Ora veja! — exclamou Bell em tom de triunfo. — Se...!
Mas Gucky já estava dormindo. Ou ao menos fazia de conta que estava.
***
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*