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CECÍLIA PRADA
Considerado o maior choque civil ocorrido na história do Brasil contemporâneo, esse episódio
permanece envolto até hoje em brumas emocionais, intrigas políticas, ressentimentos e
disputas ideológicas que dificultam seu entendimento. É vasta a bibliografia sobre o tema, mas
em sua maior parte ela se ressente desses fatores – de um lado temos uma documentação
impregnada de romântica exaltação, vertida no estilo empolado e ingênuo da época, que
pretende fazer ver no Movimento Constitucionalista apenas um episódio heróico, com ampla
arregimentação popular; de outro, a niveladora, simplista e preconceituada crítica marxista,
que o define taxativamente como "reacionário", "contra-revolucionário" e "separatista", como
mera tentativa, frustrada, de se voltar à antiga política "do café-com-leite", que representava a
hegemonia da oligarquia cafeeira e a alternância de São Paulo e Minas Gerais no poder
central.
Somente nas duas últimas décadas é que vários historiadores, mais objetivos e distanciados –
como Boris Fausto, o brazilianist Stanley Hilton e Hernâni Donato, para citar somente três –,
puderam se situar de maneira imparcial diante do vasto material que se espalha por vários
arquivos, tanto em São Paulo como em outros estados, e do qual uma parte importante (como
a dos Arquivos do Exército) permaneceu durante muito tempo inacessível à pesquisa e
conservada sob a rubrica "confidencial".
Em seu livro A Revolução de 30 (Brasiliense, 1989, 12ª ed.), Boris Fausto faz uma análise
lúcida de Getúlio Vargas e uma avaliação do que realmente representaram tanto seu caráter
como sua política ambígua. Desfaz o mito do "esquerdismo" ou "modernidade" do ditador e diz:
"O Estado que emergiu da Revolução de 1930 manteve o papel fundamental de
desorganizador político da classe operária, reprimindo duramente a vanguarda e suas
organizações partidárias". Tanto que já em 1931 Vargas firma posição contra o comunismo e
caça subversivos; um pouco depois, faz restrições à entrada de operários estrangeiros no país
(declaradamente "passageiros da terceira classe dos navios"). Vai, enfim, moldando seu
pensamento político em um reconhecido fascismo nacionalista que resultaria no Estado Novo e
em 15 anos de ditadura.
A década de 1920 trouxera uma série de levantes militares e agitações populares em todo o
país. Um profundo descontentamento se espalhava por segmentos da classe média urbana e
pelos setores agrícolas não-cafeeiros e industriais, cuja presença no panorama econômico era
prejudicada pela política elitista dos "barões do café". Esse espírito de rebeldia encontrava
ecos até mesmo nos quartéis. Os governos sucessivos de Epitácio Pessoa, Artur Bernardes e
Washington Luís, formalmente legais, na realidade assumiam atitudes discricionárias e
ditatoriais, exerciam uma forte repressão sobre o povo e se mantinham no poder somente
graças a um sistema eleitoral corrompido, com resultados manipulados – dominava o cenário
político do país o arcaico Partido Republicano, com siglas pouco variáveis de estado para
estado (em São Paulo, Partido Republicano Paulista – PRP) –, que favoreciam os "coronéis",
por meio do voto de cabresto em eleições em que até os mortos votavam.
A problemática social era tida como "uma questão de pata de cavalo", pois as manifestações
populares eram dissolvidas pela cavalaria. A criação da Lei Celerada por Washington Luís, em
1927, restringiu inclusive a liberdade de imprensa e o direito de reunião, dando também
poderes maiores ao governo para reprimir as greves operárias, causadas pelo elevado nível de
desemprego da população.
O crash da Bolsa de Nova York em 1929, com a conseqüente desvalorização do café – nosso
principal produto de exportação –, precipitou uma grande crise político-econômica. O clima
violento em que se processavam os preparativos da eleição de 1930 causaria assassinatos
políticos, ódios e rancores, e acentuaria o "propósito de mudança a todo custo". E assim,
quando a eleição de 1º de março de 1930 deu a vitória a Júlio Prestes, os aliancistas
reclamaram de fraude eleitoral e decidiram-se pelas armas. O movimento deflagrado por
Vargas no Rio Grande do Sul em 3 de outubro daquele ano visava diretamente à eliminação
dos políticos perrepistas, à debilitação dos exércitos estaduais (a Força Pública de São Paulo
era a segunda maior corporação militar da América do Sul, dispondo de cavalaria, artilharia e
aviação), e atingiu seu ápice com a ocupação da capital paulista. Aclamado pelos partidários
da Aliança Liberal em São Paulo, acompanhado ao Palácio dos Campos Elísios por uma
multidão delirante, Getúlio Vargas, ali chegado, fez questão de tirar um retrato vestido a caráter
– bombachas, esporas, lenço no pescoço –, estirado em um canapé Luís XV. Contrariando a
fúria dos tenentes que o acompanhavam e que insistiam em partir imediatamente para a
conquista do Rio de Janeiro, Vargas preferiu limitar-se a esperar tranqüilamente que o poder
federal lhe fosse entregue pela Junta Pacificadora, formada pelos generais Tasso Fragoso e
Mena Barreto e pelo almirante Isaías de Noronha, a qual no dia 24 de outubro depusera o
presidente Washington Luís, obrigando-o ao exílio.
Nos dois anos seguintes – dizem os historiadores –, o país se viu mais agitado do que nunca,
de norte a sul, pela incerteza política e pelas circunstâncias econômicas. Entregue por Vargas
a um interventor militar, o coronel João Alberto, o estado de São Paulo fermentou um amargo
ressentimento e sofreu com a instabilidade decorrente das disputas de poder entre os próprios
"tenentes" (então já coronéis e generais), principalmente entre João Alberto e Miguel Costa.
Durante a "ocupação", São Paulo vivia sob um rígido controle policial – censura à imprensa,
proibição de manifestações populares, vigilância sobre clubes e sociedades. Edgar Baptista
Pereira descreve o "martírio de São Paulo", em seu livro Diário da Capela, como "um
espezinhamento sistemático, tratamento bárbaro e desumano" que agitaria todo o território
paulista e que seria a fagulha capaz de atear fogo em todos os lares: "Forma-se uma
atmosfera eletrizada, cruzada de relâmpagos, pronta a deflagrar em temporal e ciclone, ao
primeiro abalo que lhe rompa o equilíbrio. E veio a revolução como um fenômeno sísmico".
O Partido Democrático, que colaborara com João Alberto, rompe com ele, denuncia o governo
provisório de Vargas e renuncia a todos os cargos que preenchera. Durante o ano de 1931 o
descontentamento aumentava no país todo, pois Getúlio já mostrava intenção de prorrogar ao
máximo sua provisoriedade. Aos que lhe reclamavam as promessas feitas, de eleições e
retorno ao estado constitucional, respondia que "antes da constitucionalização, a capina do
terreno, das ervas daninhas que o esterilizam". E referia-se a seus opositores como
"carpideiras, saudosistas das delícias fáceis do poder ou incorrigíveis doutrinários alheios às
realidades nacionais".
Contudo, entre os próprios "tenentes" havia dissidência, e assim Miguel Costa se opôs à
intervenção armada. Além disso, firmou posição contrária à candidatura do civil Plínio Barreto
ao cargo de governador de São Paulo. Diz Hernâni Donato, na obra citada: "Miguel Costa não
só desaprovou [a candidatura de Barreto] como tumultuou a vida paulistana, mostrando
ostensivamente ser o senhor de São Paulo e o único capaz de indicar o novo interventor que,
necessariamente, deveria ser obediente a seus quereres. Correrias, espancamentos, tumultos,
ameaça de dinamitação da Faculdade de Direito, reduto do barretismo". Desistindo da
investidura, Plínio Barreto escreve no dia 23 de julho de 1931 a Osvaldo Aranha, explicando
seu gesto – reconhecia que o apoio do governo federal à sua candidatura representaria a
deflagração da guerra civil em São Paulo, e dizia: "Se ela for inevitável, outros que lhe
assumam a responsabilidade".
Seguem-se, nos Campos Elísios, dois interventores de curtíssima duração: primeiro, o civil
Laudo de Camargo, ministro do Tribunal de Justiça (de 25 de julho a 13 de novembro de 1931),
que se demite por julgar-se desmoralizado por Vargas. Em seguida, os "tenentes", vitoriosos,
nomeiam um dos seus para interventor, o coronel Manuel Rabelo, comandante interino da
Região Militar. O descontentamento crescente dos paulistas clama ao menos por um
interventor "paulista e civil". Apesar da violência cada vez mais patente da ocupação militar,
São Paulo não se dá por vencido, e os grandes partidos rivais, o PRP e o PD, aliam-se para
lutar pelas eleições e pela Constituição. E assim inicia-se o ano de 1932.
Armando Brussolo era repórter de "A Gazeta" em 1932, e em seu livro Tudo pelo Brasil nos dá
o acompanhamento passo a passo da revolução, na capital paulista e nas próprias trincheiras,
a partir do dia oficial do levante, 9 de julho de 1932 – "o dia em que a revolução estourou" –,
até o armistício, em 2 de outubro de 1932 ("o dia em que São Paulo foi traído").
O período de ação militar, curtíssimo, revela uma intensidade nenhuma outra vez igualada na
história pátria. Somente explicável pelo estado de guerra civil que vinha sendo mantido desde
fins de 1930 em todo o estado. A "Guerra de São Paulo" compreende, portanto, um período de
dois anos. Ou até mais: o rescaldo do Movimento Constitucionalista de 32 permaneceria na
memória do povo paulista.
É exigido do novo "governador" que a posse de seu secretariado – o primeiro aceito por
unanimidade pelos paulistas – seja marcada para uma data já histórica na crônica da cidade –
9 de julho, e em local também histórico, isto é, no Pátio do Colégio, onde em 9 de julho de
1562 um núcleo de moradores, liderados pelos jesuítas, rechaçara o maior ataque de índios
hostis à recente povoação. Vê-se, portanto, que havia por trás da agitação revolucionária um
esquema consciente de fazer coincidir as duas datas e com isso reforçar o sentido da epopéia
paulista. A história, porém, corria mais depressa do que os planos e precipitava a ação rebelde
– os dias 22, 23 e 24 de maio de 1932 são realmente os mais importantes do movimento.
Marcam, com o primeiro sangue derramado, a ouverture da revolução – reconhecido como tal,
o dia 23 teria sido, no dizer de Hernâni Donato, "o dia da cólera dos justos".
MMDC
Na euforia, a multidão decide atacar a sede do Partido Popular Paulista – entidade governista
– e encontra uma reação armada, fuzis, revólveres, submetralhadoras. O tiroteio se prolonga
até a madrugada do dia 24 de maio. No chão, na esquina da Praça da República com a Rua
Barão de Itapetininga, estão os cadáveres de quatro jovens: Miragaia, Martins, Dráusio (de
apenas 14 anos) e Camargo.
Horas depois, as iniciais desses primeiros mortos formariam a sigla MMDC com que se tornou
conhecida uma organização secreta, uma das maiores forças da revolução. Seus ativistas
conseguiram criar em toda a cidade pelotões de guerrilha que, ativados por senhas altamente
sigilosas, no momento decisivo estariam prontos para ação fulminante, ocupando pontos
estratégicos. Iniciada a luta em 9 de julho, o MMDC foi oficializado, ligado ao gabinete do
secretário da Justiça, e espalhou-se por todo o estado, com a missão de manter a segurança
nas cidades.
A traição
O próprio general Góis Monteiro – comandante das tropas governistas – afirmou mais tarde
que se as tropas paulistas, em vez de manterem suas posições, tivessem aproveitado o
impulso inicial para desembarcar no Rio de Janeiro, o governo de Getúlio teria caído. O
marechal Cordeiro de Farias também diria, em suas memórias: "Até hoje estou convencido de
que o Rio não caiu porque os paulistas foram tímidos, pouco agressivos em termos de
concepção militar. Não tiveram espírito revolucionário".
E São Paulo, sozinho, descobriu que de nada valeriam seus 25 mil voluntários animados e
idealistas, sem armas e munição. Os dois meses de luta que se seguiram foram pródigos em
criatividade e heroísmo. A eloqüência dos tribunos, as histórias guardadas nas sagas familiares
paulistas – em cujas casas as sucessivas gerações preservaram as relíquias
constitucionalistas, capacetes, granadas e cartuchos, e esconderam a "bandeira das 13 listas"
cantada pelo poeta Guilherme de Almeida e queimada e proibida por Getúlio – formariam
acervo precioso de que hoje ainda bebem historiadores.
A ditadura reinstala-se na capital paulista. Vargas ameniza seu poderio, em 1933 entrega o
governo do estado de São Paulo a um civil paulista, Armando de Sales Oliveira, e em 1934
simula se render ao espírito constitucionalista. Mas a Constituição que promulga dura, na
expressão de João Camilo de Oliveira Torres, "o tempo de uma rósea manhã " – logo mais, a
excepcionalidade prevaleceria e o Estado Novo se instalaria, sem disfarces.
Mas essa já é outra história.
Quem circula pela movimentadíssima Avenida 23 de Maio, na capital paulista, não pode deixar
de ver, fincado nos jardins do Parque Ibirapuera, um grande obelisco, um dos símbolos mais
marcantes da cidade. É o Monumento Mausoléu ao Soldado Constitucionalista, concebido por
Galileo Emendabile e erguido ali em homenagem aos mortos no movimento de 1932 – os mais
conhecidos, lembrados pelas iniciais MMDC, perderam a vida na noite de 23 de maio.
De acordo com Hernâni Donato, o número oficial é ligeiramente diferente: 601 mortos,
lembrados no monumento, onde além do obelisco uma cripta-igreja de 1,4 mil metros
quadrados, sem bancos, convida os visitantes a reverenciarem, de pé, os mártires da
revolução. As inscrições no local têm a assinatura do poeta Guilherme de Almeida.
Testemunha ocular
Rareiam hoje os sobreviventes da "Guerra de São Paulo" de 1932. Mas é na sua memória, na
expressividade das coisas por eles contadas, que os historiadores ainda vão buscar vestígios
daquele emocionalismo que empolgou o Movimento Constitucionalista. Um deles é Rui
Coutinho, um escrivão de polícia aposentado que, prestes a completar 90 anos (no próximo
dia 4 de julho), divide hoje seu tempo entre leituras, conversas com amigos e passeios diários
pelo Parque da Aclimação.
Rui Coutinho é paulista de Taquaritinga. Chegou à cidade de São Paulo aos 12 anos, vindo de
mudança com o resto da família, e desembarcou na Estação da Luz por coincidência em uma
data que passaria à história: 5 de julho de 1924, dia em que irrompeu a revolução chefiada
pelo general Isidoro Dias Lopes contra o governo Artur Bernardes. Ele recorda o caos absoluto
da capital naquele dia, a população seguindo a pé, sob bombardeio, a confusão, a completa
falta de transportes públicos, a escassez de víveres – no menino obrigado a caminhar da
Estação da Luz ao Brás, o primeiro impacto da confusão urbana, do desespero de uma
população colhida no meio de acontecimentos políticos que não entendia e dos quais não
participava.
Mas suas recordações de 1932 são bem diferentes. O jovem de 20 anos trabalhava então no
gabinete do secretário da Justiça, Tirso Martins – seu padrinho, para ser exato. Alistou-se no
Batalhão José Bonifácio de Andrada e Silva, subordinado à própria Secretaria da Justiça e
encarregado de dar apoio logístico às operações do front. Colocado diretamente dentro do
cenário político, o jovem Rui conheceu assim, bem de perto, as principais figuras históricas da
revolução. Acompanhou todos os lances, ouviu intrigas de bastidores, deixou-se empolgar –
como a maioria da população paulistana – pela oratória vibrante do grande tribuno Ibrahim
Nobre, gritou slogans nos comícios, abalou-se com o morticínio de maio de 1932, viveu
intensamente aqueles dias históricos. E, naturalmente, desiludiu-se com o fim abrupto,
incompreensível, da revolução.
Mas hoje, 70 anos mais tarde, faz questão de dizer, quando interrogado sobre o possível
caráter "separatista" do movimento: "Absolutamente. Isso foi uma calúnia, uma distorção. Não
se pensava em separar São Paulo do resto do Brasil. Basta lembrar uma frase de Tirso
Martins, ao partir para o exílio: ‘Aqui, como alhures, com o Brasil no coração e São Paulo no
pensamento’ ".