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MISSÃO SECRETA:
MOLUQUE
Autor
WILLIAM VOLTZ
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
O último representante de uma estranha raça
pretende transformar os astronautas terranos
em instrumentos...
***
A grande calva do homem era cercada por uma coroa rala de cor dourada. O homem
era pequeno e seu rosto parecia exprimir benevolência.
Foi descendo pelo corredor. Era uma figura cheia de vida, que parecia irradiar
otimismo por todos os poros. Parou diante de uma larga porta.
— Aqui fala Mercant — disse para dentro de um microfone embutido na parede. —
Posso entrar?
— Vá chegando! — disse uma voz convidativa.
Allan D. Mercant sabia que o homem com o qual se veria frente a frente estava
carregado de preocupações como nenhum outro. Abriu a porta e entrou.
— Olá — disse Perry Rhodan a título de cumprimento.
Embora fosse um quente dia de agosto, o administrador usava o uniforme em
conformidade com as normas do regulamento. Esse homem, que já durante a vida se
transformara numa legenda, nunca se prevaleceria de sua posição para usufruir qualquer
vantagem perante os subordinados. Rhodan estava sentado atrás da escrivaninha. Um
jovem cadete, que estava sentado atrás de outra escrivaninha, muito menor, saltara sobre
os pés à entrada de Mercant e fizera continência.
Mercant cumprimentou-o com um gesto, e o rapaz voltou a sentar-se. Havia em seu
rosto algo da perplexidade que costuma acometer o homem comum que se vê diante de
uma pessoa célebre. Apesar de todo embaraço, aquele jovem se daria por feliz por ter
estado na mesma sala em que se encontravam Rhodan e Mercant.
Mercant colocou uma pasta sobre a mesa.
— Faça o favor de sentar-se — disse o administrador.
Na presença de outras pessoas, costumava usar maneiras formais.
O chefe do Serviço de Defesa agradeceu.
— Trata-se de Epan — disse, apontando para a pasta. — O senhor deve estar
lembrado da missão realizada sob o comando do Coronel Everson. Naquela oportunidade
Goldstein, um jovem telepata, salvou os tripulantes da nave girino.
— O senhor se refere ao problema surgido com aquela criatura medonha que, graças
às suas faculdades parapsicológicas, conseguia afetar a estrutura molecular da matéria e
introduzir-lhe modificações?
— Perfeitamente, Sir — confirmou Mercant.
O cadete estava inclinado sobre a mesa. Esquecera-se dos seus trabalhos escritos.
— Estou trazendo certos dados devidamente processados, que provavelmente lhe
interessarão — prosseguiu o chefe do Serviço de Defesa Solar, em tom tranqüilo. —
Meus colaboradores descobriram certas coisas que, na minha opinião, se revestem de
muita importância.
O fato de sempre mencionar seus subordinados constituía uma das características de
Mercant. Ele nunca pensaria em apresentar os resultados favoráveis como decorrência de
sua capacidade.
Rhodan puxou a pasta para junto de si e abriu-a. Por algum tempo examinou seu
conteúdo, sem dizer uma palavra. Mercant não o perturbou. De repente, Rhodan soltou
um assobio.
— Vejo que seus colaboradores conseguiram calcular em que planeta deve ter
pousado a nave dos deformadores de moléculas. Pelo relato de Mataal, trata-se de uma
nave de emigrantes. Se já chegou ao destino, seus passageiros ainda devem encontrar-se
lá.
O rosto de Mercant exprimia satisfação.
— O respectivo sistema solar fica junto ao setor central da Galáxia — disse. —
Consta do catálogo estelar de Árcon como o sol verde MEG-1453-AS-34. Sua distância
da Terra é de vinte mil anos-luz. Aquele sol, que poderemos chamar de Greenol, tem seis
planetas. Todos eles são considerados como desabitados. O segundo poderia interessar-
nos. Um dos cibernéticos já o batizou: Moluque.
Inclinou o corpo para a frente e tirou uma folha verde da pasta, a fim de entregá-la a
Rhodan.
— Aqui está o relato do telepata Samy Goldstein sobre as espantosas faculdades
paranormais daquele deformador de moléculas, que viajou como clandestino a bordo do
girino de Everson. E procedeu assim, sem ninguém desconfiar, pois o coronel acreditava
que se tratava de um nativo de Epan.
Rhodan dobrou o papel e tamborilou sobre a escrivaninha.
— Já conheço suas idéias — disse, dirigindo-se a Mercant.
O rosto de seu interlocutor exprimiu uma surpresa mal fingida. Antes que Mercant
pudesse formular qualquer objeção, Rhodan prosseguiu.
— Para falar com franqueza, devo dizer que nossa situação é desesperadora. As
raças de astronautas conhecem a posição da Terra. Por enquanto o Império Solar é muito
fraco para resistir a um ataque mais sério. Atlan tem lá as suas preocupações e não nos
pode proporcionar o apoio que gostaria de dar-nos. Pelo contrário. Muitas vezes terá uma
necessidade premente do nosso auxílio. Uma frota medianamente poderosa poderia
arriscar a invasão sem receio de uma reação mais séria. E essa situação poderá tornar-se
fatal. Nem mesmo as naves que Atlan nos cedeu num gesto de generosidade, para
compensar as pesadas perdas que sofremos, bastam para conferir-nos uma segurança
total. É bem verdade que as linhas de montagem da Terra e da Lua estão funcionando dia
e noite. A fabricação em série das naves de todos os tipos está sendo realizada a toda
velocidade. Acontece que, no momento, ainda seríamos esmagados pela superioridade
potencial de qualquer inimigo.
Fez um gesto com a cabeça.
— Nestas condições estaria disposto a fazer um pacto com o demônio para salvar a
Humanidade. Devemos trilhar todo e qualquer caminho que possa levar-nos a um aliado
poderoso. Nosso objetivo há de consistir na busca de amigos poderosos, que possam
concorrer para o fortalecimento do Império.
— Sou da mesma opinião, Sir — confirmou Mercant. — A tentativa de entrar em
contato com os deformadores de moléculas poderá ter um efeito de bumerangue, mas
acho que devemos assumir o risco.
— Faça o favor de deixar estes dados comigo — disse Rhodan. — Farei um exame
meticuloso dos mesmos. Será preferível conversar com vários amigos a este respeito.
— Permite que faça mais uma sugestão Sir? — perguntou Mercant em tom cortês.
— Naturalmente — disse o administrador, sentado atrás da escrivaninha.
— Mande Everson — disse Mercant. — E Goldstein.
O sorriso daqueles dois homens exprimiam preocupação. Tinham receios a respeito
do desenvolvimento futuro e da própria existência da raça, cuja ascensão vertiginosa fora
detida de uma hora para outra: a Humanidade.
2
Bastava que Poul Weiss se inclinasse sobre a grade protetora da plataforma para
enxergar perfeitamente as outras áreas de decolagem. As nuvens já se haviam desfeito e o
sol era refletido pelas polidas superfícies metálicas das espaçonaves. Mais embaixo,
Weiss viu os mecânicos que examinavam as colunas hidráulicas de apoio da nave
esférica. Nos seus trajes brancos pareciam grandes besouros que se arrastavam de um
lugar para outro.
O elevador parou perto de Weiss. Werner Sternal também se dirigiu à plataforma
situada diante da grande comporta de ar. Como de costume, seu bolso estava recheado,
muito além do peso admissível.
— As eminências já estão reunidas? — perguntou.
— As eminências somos nós — disse Weiss, lançando um olhar de esguelha para a
bagagem de Sternal. — A não ser que queiramos conferir este título ao paisano
insuportável chamado Morton, que subiu a bordo há alguns minutos.
Sternal desapareceu na comporta de ar do novo cruzador da classe Estado. Tal qual
todos os veículos espaciais de sua classe, a superveloz México tinha cem metros de
diâmetro. Precisava-se de uma tripulação de cento e cinqüenta homens para dirigir a
maravilhosa espaçonave através do cosmos.
Weiss sabia qual era a missão especial que teriam de cumprir. Sob o comando do
Coronel Marcus Everson, materializariam-se no espaço, depois de três transições, a 20
mil anos-luz da Terra. Tentariam pousar no segundo planeta do sol Greenol, a fim de
procurar os deformadores de moléculas, que, segundo a interpretação dos dados,
realizada pelo computador positrônico, deviam viver por lá.
Weiss não gostava de pensar nas experiências pelas quais passara a bordo do girino,
juntamente com seus colegas. Não sabia como comunicar-se com uma criatura do tipo de
Mataal, sem levar desvantagem.
Viu Everson e Scoobey atravessarem o campo de pouso. Dez homens que
pertenciam à antiga tripulação do girino subiriam a bordo da México. Graças à sua
experiência, formariam a elite dos tripulantes.
O elevador desceu. Ao abandonar a plataforma, Weiss lançou mais um olhar pelos
arredores.
“O astronauta vive se despedindo”, pensou.
Apesar disso, nem poderia imaginar em jamais fazer outra coisa, senão penetrar na
comporta de ar, para logo depois deixar-se conduzir até o espaço infinito.
***
***
Depois de doze horas terranas, o Coronel Everson deu ordem para que a nave se
aproximasse de Moluque. O exame dos outros planetas não trouxera qualquer resultado
capaz de infundir maiores receios.
Moluque levava 38 horas e 18 minutos para girar em torno de seu eixo. Da lentidão
do movimento de rotação resultavam perturbações atmosféricas, já que a face noturna
esfriava por mais tempo e as massas de ar frio se precipitavam violentamente para as
áreas de ar aquecido.
Everson, cuja cautela quase chegara a tornar-se proverbial nos seus longos anos de
serviço, mandou que a México se aproximasse da face noturna do planeta. O primeiro
resultado com os telerrastreadores individuais deu resultado positivo:
Moluque era um planeta habitado.
O serviço de escuta não revelou o menor sinal que permitisse concluir a existência
de qualquer tipo de comunicações de rádio. É bem verdade que o operador de rádio de
uma nave esférica costuma ficar muito nervoso, quando as perturbações, causadas por
uma atmosfera agitada parecem enlouquecer o equipamento. Porém não se descobriu
qualquer indício de uma transmissão de mensagens realizadas por seres inteligentes.
— Se por aqui realmente existem seres tecnicamente evoluídos, deveria haver
algum sinal disso — observou Scoobey.
— Não nos restará outra alternativa, senão voltarmos a usar nossos aparelhos —
disse Everson aos tripulantes. — E faremos um teste meticuloso.
Os aparelhos de rastreamento e de medição estavam funcionando a plena potência.
Ao que tudo indicava, Moluque ofereceria um tempo quente aos astronautas, se é
que estes chegariam a pousar nesse planeta. Era um mundo pobre de água, coberto de
grandes desertos e entrecortado apenas por algumas faixas estreitas de vegetação. Pelo
que diziam os astrônomos, a temperatura média na face diurna ficava em torno de 42
graus centígrados.
— 42 à sombra! — disse Pentsteven, dirigindo-se a Weiss, que acabara de soltar um
gemido.
De qualquer maneira, o ar era respirável. Sua percentagem de oxigênio era inferior à
da atmosfera terrana. Segundo as medições e as análises, o teor de gases nobres era
bastante elevado.
As tempestades de areia, os furacões de poeira e as trovoadas secas seguiam-se em
rápida sucessão.
Goldstein, o mutante, captou vibrações mentais de seres primitivos. Não encontrou
o menor sinal da existência de seres paranormais.
Seguiram-se outras 48 horas, durante as quais se realizaram todas as observações
possíveis. Finalmente Everson deu ordem para que a México pousasse na face noturna do
planeta Moluque.
***
Realmente era uma cidade, embora para os padrões terranos a palavra aldeia fosse
mais adequada. Estava cercada de estranhas florestas e ficava no fundo do vale.
As casas pareciam cestos. Nenhuma delas tinha mais de quatro metros de altura.
Ficavam bem juntas e eram feitas de um material branco reluzente. Viam-se aberturas
altas e estreitas, que deviam ser portas, e janelas redondas. Num rápido olhar, acreditava-
se que o número das casas não era muito elevado. Mas, a um exame mais atento,
verificava-se que estavam tão estreitamente ligadas umas às outras, portanto, bem que
podiam ser mais de mil.
O Dr. Morton foi o primeiro a voltar a falar.
— O aspecto é bastante primitivo — disse. — Parecem colméias de abelhas. Se os
seres que as habitam forem tão produtivos como as abelhas terranas, mas menos
dispostos para a luta, poderemos dar-nos por satisfeitos.
— Goldstein — disse Weiss, dirigindo-se ao telepata. — Está percebendo alguma
coisa?
— Nada — respondeu Goldstein com a voz desanimada.
— Nada?
— Não consigo captar qualquer irradiação mental — explicou Goldstein, num tom
que quase chegava a ser de desespero. — Minha capacidade telepática extinguiu-se de
vez.
— Isso não é possível — interveio o médico. — Seu cérebro não pode tornar-se
normal de uma hora para outra.
— Acontece que se tornou. Weiss observava a cidade.
Será que por lá havia alguma coisa capaz de afetar as qualidades paranormais de
Goldstein? Será que já haviam descoberto um sinal da presença dos deformadores de
moléculas?
“Não”, pensou Weiss. “Uma raça tecnicamente evoluída nunca viveria em
construções desse tipo. Deve haver outra explicação para a mudança mental de
Goldstein.”
— Parece que a cidade está habitada — disse o Dr. Morton. — Acontece que não se
vê nenhuma criatura viva.
— Vamos dar uma olhada — sugeriu Weiss.
— Espere aí! — disse uma voz nos seus alto-falantes de capacete.
Era Everson. Viraram a cabeça e olharam para a México, embora a essa distância,
nem os contornos da nave pudessem ser vistos.
— Não faça tolices, Poul — disse Everson. — O senhor não sabe o que o espera por
lá. Antes de mais nada, devemos observar atentamente esse núcleo populacional.
Um tanto contrariado, Weiss mexeu na sua sacola.
— Aquilo tem um aspecto totalmente inofensivo — observou. — Estamos armados
e permanecemos em contato com a nave.
Nesse momento, o Dr. Morton disse:
— Não há necessidade de procurarmos os nativos. Eles já vêm em nossa direção.
Apontou para o vale. Weiss tropeçou ao virar-se abruptamente. Seus olhos se
arregalaram. Sentiu seu coração bater com mais força. Ouviu que Goldstein respirava
pesadamente.
Um grupo de seres estranhos acabara de sair de sob as árvores, que cercavam a
aldeia, e aproximava-se lentamente dos três astronautas. Seu andar era ereto, o que
bastava para que se concluísse que tinham inteligência.
Antes que a Humanidade conquistasse o espaço já havia cientistas famosos que
estavam convencidos de que só as criaturas de andar ereto eram capazes de criar uma
civilização no sentido humano do termo. E essa teoria se confirmara em suas linhas
gerais.
Os nativos eram um pouco mais altos que os homens. Possuíam dois braços e duas
pernas. Weiss notou que tinham cabeças alongadas, em forma de abóbora. O tronco era
muito curto. Em compensação dispunham de um par de pernas longas e robustas.
Quando os nativos se aproximaram, os terranos perceberam que a pele desses seres
era de ura tom que quase chegava a ser verde-escuro e que suas bocas tinham o aspecto
de bicos de pato.
Weiss disse o que todos estavam pensando.
— Parecem aves pernaltas!
— Não consigo senti-los — disse Goldstein em voz baixa. — Devem estar
irradiando impulsos mentais.
— Estão carregando alguma coisa — constatou o Dr. Morton. — O senhor consegue
ver o que é, Poul?
— Parecem bastões — disse o biólogo. — Bastões de madeira com uma
extremidade mais grossa que a outra.
Morton segurou o braço de seu companheiro.
— Isso me faz lembrar alguma coisa — disse em tom tenso.
Os nativos — eram cerca de trinta — pararam a uma distância de cinqüenta metros.
Antes que o médico tivesse tempo de dizer que lembrança aquilo lhe evocava, os seres
iniciaram um trabalho incompreensível. Enfiavam as pontas dos bastões na areia, de
maneira tal que as extremidades mais grossas ficavam cerca de um metro acima da
superfície. Os homens fitaram-nos em silêncio.
— Estão pondo fogo naquilo! — exclamou Weiss em tom exaltado. — Veja, doutor.
Conhecem o fogo.
Trinta explosões sacudiram o ar.
— Deitar! — gritou o Dr. Morton. — Com o rosto para baixo.
— O que será isso? — perguntou Weiss, respirando com dificuldade e comprimindo
a cabeça contra a areia.
Alguma coisa caiu a seus pés. Levantou cautelosamente a cabeça. Os nativos vieram
correndo em sua direção, desenvolvendo uma velocidade inacreditável. O Dr.
Morton pegou o paralisador e abriu fogo. Goldstein e Weiss seguiram seu exemplo.
Os seres-pássaro tombaram. Seus fluxos nervosos deixaram de funcionar.
Goldstein arrancou do chão o objeto em forma de lança. Mostrou-o a Weiss.
— É um tipo de flecha — disse o biólogo em tom pensativo. — Parece que é de
metal. A ponta deve ser de bronze.
— Já sei o que me lembraram esses bastões — disse o Dr. Morton e voltou a
guardar a arma. — Foguetes.
— É verdade! — exclamou Weiss em tom de surpresa. — Trata-se de foguetes
primitivos. Na ponta encontra-se a carga, que, no caso, consiste numa flecha metálica.
Apenas precisam de uma substância explosiva e de pavio.
Em torno deles, estavam espalhados outros projéteis desse tipo. Um deles detonara
no local do disparo e, em conseqüência disso, o respectivo possuidor caíra ao chão,
ferido.
Os alto-falantes de capacete emitiram um estalido, e a voz de Everson se fez ouvir.
— Procure trazer para bordo dois desses seres, Poul. Retirem-se. Quando os outros
recuperarem os sentidos, não terão uma disposição muito amistosa. Não gostaria de
atacar esses seres primitivos com lança-raios.
Um sorriso triste surgiu no rosto de Weiss. Ao que tudo indicava, a esperança de
Rhodan, que desejava encontrar aliados fortes, era enganadora. De qualquer maneira, as
armas desses seres-pássaro não ajudariam em nada. Esse tipo de foguete já fora usado
pelos chineses no ano de 1.232, durante a defesa de Kaifung-Fu. E os mongóis, contra os
quais os mesmos foram disparados, eram um inimigo muito menos perigoso que uma
frota dos saltadores.
***
O nativo estava estendido na cama e sua respiração era forte e ligeira. Mantinha os
olhos fechados, mas não havia a menor dúvida de que recuperara os sentidos. As mãos de
quatro articulações estavam firmemente comprimidas contra o corpo.
A pequena expedição trouxera para bordo dois greens, nome que Morton dera a
esses nativos. A fim de dar uma demonstração de amizade, Morton libertara um dos dois
nativos.
O outro estava deitado na enfermaria do Dr. Lewellyn e se fingia de inconsciente.
Everson imaginava perfeitamente que medo devia ter essa criatura.
O Dr. Lewellyn inclinou-se sobre o green. O médico era uma pessoa de estatura
média com rosto de artista de cinema. Ao contrário do Dr. Morton, tinha muito cuidado
com sua aparência.
Bateu suavemente no braço do estranho. Weiss, que se mantinha num lugar mais
afastado, pigarreou para demonstrar sua impaciência. O Dr. Morton estava sentado ao pé
da cama e cocava a barba.
— Já lhe disse que seu método não presta — disse, dirigindo-se ao Dr. Lewellyn. —
O senhor nunca conseguirá incutir-lhe boa vontade.
Everson fez um sinal para que se calasse. O Dr. Lewellyn começou a falar ao green
com a voz tranqüilizadora. Vez por outra, tocava suavemente em seu corpo.
Depois de algum tempo, o green abriu os olhos. Eram olhos castanhos e sérios. As
pestanas sem cílios davam-lhe um aspecto reptílico. Não havia um único cabelo na
cabeça e no corpo do prisioneiro.
O green fitou o Dr. Lewellyn. Seus olhos exprimiam medo e incompreensão. Muito
devagar, a fim de não assustar aquele ser, o médico levou a mão fechada ao peito.
— Doutor — disse em voz baixa.
Morton resmungou. Não se poderia saber se essa manifestação de desagrado se
dirigia contra a pessoa do Dr. Lewellyn, ou contra a maneira pela qual seu colega
pretendia estabelecer contato com o estranho.
— Prossiga — ordenou Everson. — Precisamos encontrar um meio de comunicar-
nos com ele.
Com uma enorme paciência, o Dr. Lewellyn continuou a colocar a mão no peito,
repetindo a palavra “doutor”.
O corpo do green descontraiu-se um pouco. A mão de quatro articulações subiu
cautelosamente. A boca revestida de uma córnea moveu-se.
— Mrght — disse num grasnado.
Morton enfiou os dedos nos ouvidos.
— Não gosto das reuniões de consoantes — disse. — Elas me deixam doente.
— Está bem, Murgut—disse o Dr. Lewellyn. — Isso já é um bom começo.
— Dgtr — disse Murgut em tom esperançoso. — Drftgz hgbsg!
— Ele diz que quer beber alguma coisa — afirmou Weiss.
Começou a rir, mas sua risada cessou imediatamente, quando olhou para Goldstein.
O mutante comprimia ambas as mãos contra a cabeça.
— Não consigo alcançá-lo — disse o telepata com um gemido. — É inteligente,
mas é difícil penetrar em sua mente.
Antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa, Samy Goldstein saiu correndo do
recinto. A escotilha fechou-se ruidosamente atrás dele. Murgut sobressaltou-se.
— O que é isso? — perguntou Everson, esticando as palavras.
— Cuidarei dele — disse o Dr. Morton e levantou-se.
Everson sentiu-se deprimido ao lembrar-se das ocorrências que se verificaram a
bordo do girino.
Naquela oportunidade, Goldstein ficara maluco sob a influência de Mataal, um
deformador de moléculas. Será que aqui o caso era semelhante? Ainda era cedo para
dizer qualquer coisa. De qualquer maneira, as experiências teriam de ser realizadas com o
maior cuidado. Rhodan, que não podia dispensar nenhuma de suas naves, só os mandara
para Moluque porque esperava que eventualmente pudessem encontrar auxílio neste
planeta. O comandante devia ter sempre em mente a seguinte norma: aproveitar todas as
horas que passasse nesse mundo.
— Continue, doutor — disse, dirigindo-se a Lewellyn. — Faça o favor de me avisar
quando ele estiver em condições de ser levado à tradutora.
Os nativos eram civilizados, mas sua evolução não era muito avançada. Justamente
isso parecia representar um paradoxo, pois duas coisas haviam acontecido que não
poderiam ter sido causadas pelos greens. O campo antigravitacional deixara de funcionar
e, ao encontrar-se com os nativos, Goldstein perdera sua capacidade parapsicológica.
Everson era um homem experimentado. Não era qualquer suspeita que podia levá-lo
a agir. Ninguém melhor que ele sabia que, na história da navegação espacial humana,
muitas vezes coisas incríveis aconteciam.
Se houvesse alguma ligação entre os greens, o campo antigravitacional e o mutante,
deveria ser possível descobri-la. Ou existiria neste planeta algo que ainda não haviam
descoberto?
Lembrou-se que, quando a México ainda se encontrava no espaço, Goldstein captara
impulsos. Após a queda da nave, a faculdade do mutante começara a diminuir e, depois
do encontro com os greens, desapareceu de vez.
O comandante refletiu. Dali se concluía, simplesmente, que o dom de Goldstein se
tornara mais fraco na medida em que ele se aproximara dos nativos.
Seria apenas uma coincidência? Ou será que os greens tinham a capacidade de
impor um bloqueio parapsicológico a Goldstein? De qualquer maneira havia uma pista
que deveria ser seguida.
Everson estava pensativo ao sair da enfermaria. Ao que tudo indicava, a situação da
México e de seus tripulantes não era perigosa. Apenas havia algumas indagações ainda
não respondidas. E respostas poderiam, de repente, revelar um perigo de cuja existência
nem desconfiavam.
***
***
A tormenta trazia grossas nuvens de areia. Arbustos arrancados eram atirados pelo
ar. O céu assumira uma coloração cinza-escura. Quatro vultos fantasmagóricos
deslocavam-se em meio à tempestade.
Eram três homens, envergando trajes protetores e um green. Os homens
caminhavam com o corpo inclinado para a frente, forçavam o corpo para resistir à força
do vento, enquanto a tormenta turbilhonava.
Everson praguejou contra o azar que, logo agora, fez desabar a tempestade de areia
sobre eles. O coronel, o Dr. Morton e Murgut estavam a caminho da cidade dos greens. A
tormenta começara de repente. Everson não conseguiu livrar-se da suspeita de que o
nativo soubera disso. Murgut era apenas uma sombra escura caminhando, mas movia-se
sem a menor dificuldade, como se a tempestade de areia não fosse nenhum problema.
— Tenho a impressão de que estamos caminhando na direção errada — disse a voz
do biólogo reproduzida pelo alto-falante do capacete de Everson.
— Só podemos confiar na capacidade de orientação de Murgut — respondeu o
coronel.
Instintivamente, levantara a voz, a fim de superar o ruído do vento. Era uma reação
do subconsciente, pois o capacete lhes dava uma proteção quase total contra os ruídos da
natureza selvagem.
Weiss não se deu por satisfeito com tão pouca coisa.
— Prefiro confiar no meu sentimento — disse. — E meu sentimento me diz que
estamos perdidos.
“Everson sentiu-se contagiado pelo nervosismo do biólogo. Será que o green quer
levar-nos a uma armadilha e desaparecer?”, pensou.
Mas o coronel logo se lembrou de que mantinham contato com a México e, a
qualquer momento, poderiam transmitir um pedido de socorro. Apesar disso não poderia
fazer mal se interrogasse Murgut.
O green encontrava-se à sua frente. Suas pernas compridas pisavam com toda
segurança nas dunas. Everson teve de esforçar-se para acompanhar a marcha. O vento
soprava com toda força, ameaçando derrubá-lo. O vulto robusto de Morton surgiu a seu
lado.
Sem dizer uma palavra, Everson apontou para o green. O médico fez sinal de que
tinha compreendido. Fagulhas azuis e amarelas saltavam constantemente em meio à
penumbra. Na opinião de Everson, deviam ser descargas elétricas. Cambaleou e teve de
apoiar-se nas duas mãos para levantar. O chão em que pisavam parecia mole e movediço,
como se fosse uma massa viva.
Everson colocou-se ao lado do ser-pássaro. Segurou o braço de Murgut. O green
parou. Disse alguma coisa, mas o comandante da México apenas conseguiu enxergar os
movimentos da boca em forma de bico. Everson ainda não conhecia a língua bastante
bem, para poder ler as palavras pelos movimentos da “boca” do nativo.
Teve de abrir o capacete.
Weiss e os médicos já os haviam alcançado. O biólogo manteve o corpo
ligeiramente inclinado para a frente. Parecia que a fúria dos elementos o comprimira.
Morton, que era mais baixo, parecia uma rocha plantada em meio à paisagem
fantasmagórica.
Everson abriu o visor do capacete. Felizmente se virará de costas para a tempestade,
de maneira que esta não podia atingir o interior do capacete. Mas o barulho bastou para
deixá-lo sem audição por alguns segundos.
Everson puxou Murgut para junto de si.
— Onde fica a aldeia? — berrou.
Sua voz foi arrastada pela tempestade e perdeu-se em meio ao fragor dos elementos.
O green encostou a cabeça de abóbora ao rosto de Everson. Por um instante, o
astronauta teve a impressão de que via o brilho dos olhos castanhos.
— Onde fica a aldeia? — repetiu Everson.
Desta vez, Murgut o compreendera. Sua mão articulada apontou na direção em que
vinham caminhando.
— Tem certeza? — gritou Everson, cujo rosto enrubescera com o esforço.
O green fez um gesto afirmativo. Everson soltou-o, e continuaram a caminhar
pesadamente.
— Sir — disse uma voz saída do alto-falante do capacete de Everson. — Aqui fala
Goldstein, a bordo da México.
— Tudo em ordem — disse o coronel. — Estamos a caminho da aldeia. Murgut
conhece o terreno.
— Tenho uma notícia para o senhor — disse o mutante. Falava com a voz tão baixa
que Everson mal conseguia entendê-lo. — O Dr. Lewellyn acha que devia informar...
— Fale logo — ordenou Everson.
— Depois que Murgut saiu da nave, tornei-me apto outra vez para captar impulsos
débeis — disse o telepata.
As botas de Everson levantavam nuvens de areia.
“Então é isso mesmo”, pensou.
— São os nativos, Samy — disse. — Ao que parece, emitem impulsos mentais que
têm um efeito colateral sobre as capacidades parapsicológicas. Mas, ao que tudo indica,
não têm conhecimento desse dom. Quanto maior é seu número, e quanto mais se
aproximam de você, maior é a redução de sua capacidade paranormal.
A resposta de Goldstein deixava entrever um forte nervosismo.
— O Dr. Lewellyn é da mesma opinião. Quer tentar, juntamente com os dois
psicotécnicos, a criação de um campo defensivo psíquico que me resguarde da pressão
mental.
— Está bem — concordou Everson. — Diga-lhes que se apressem.
Uma idéia passou pelo cérebro de Everson. Estacou instintivamente. A tempestade
aproveitou a oportunidade para realizar um ataque frontal. A rajada de vento quase
chegou a levantar Everson. O coronel cambaleou de encontro a Weiss. Ambos caíram. O
Dr. Morton aproximou-se e ajudou-os a se porem de pé. Murgut parou, em atitude de
expectativa.
Quando prosseguiram, a idéia que passara pela cabeça de Everson quase se
consolidara numa certeza.
Se a qualidade parapsicológica de Goldstein sofrerá a influência da pressão mental,
produzida pelas irradiações perturbadoras dos greens, a mesma coisa devia ter acontecido
com os deformadores de moléculas. Nesse caso, seria apenas natural que os deformadores
se retirassem para o deserto, a fim de conservar seus dons.
Se em Moluque havia deformadores, estes só poderiam ser encontrados nos areais
do planeta.
Acontece que os desertos eram o mal em sua própria essência!
A idéia provocou um calafrio em Everson.
“Não importa”, pensou. “Na Terra há um homem altivo e solitário, Perry Rhodan,
que não recua diante de qualquer luta que tenha de travar em benefício da Humanidade. E
Rhodan necessita desesperadamente de auxílio...”
— Se nas planícies calorentas de Moluque existirem seres que possam aliar-se à
Humanidade, eu os encontrarei — foi este o juramento que Everson balbuciou nesse
instante.
Alguém tocou nele. Era Murgut. O ser-pássaro apontou para a frente.
Lá estava a aldeia.
Embora reconhecesse apenas os contornos das casas, o comandante teve uma
sensação de alívio. Agora, que estavam descendo da colina, o furacão perdera um pouco
de sua violência. Com um ligeiro movimento da mão, Everson certificou-se de que o
paralisador continuava no mesmo lugar. Não queria, de uma hora para outra, ser
perfurado por uma flecha-foguete. Murgut lhe garantira que não havia o menor perigo,
mas o coronel não tinha tanta certeza. O objetivo do pequeno grupo consistia em
interrogar outros greens sobre o deserto e os fenômenos estranhos de que Murgut lhes
falara.
Atingiram as primeiras casas. Everson lamentou-se que a penumbra não lhe
permitisse ver os detalhes. As portas e janelas estavam vedadas com placas, a fim de
evitar a penetração da areia. Ruas estreitas, pelas quais o vento tangia arbustos e detritos,
corriam entre as casas. Toda vida parecia ter cessado. Certamente, os greens se haviam
retirado para suas casas, a fim de melhor resistir à tormenta. As construções esféricas
davam uma impressão de robustez, muito embora parecessem apenas cavernas, e não
alojamentos de seres evoluídos.
Murgut levou-os pela rua, até que parou diante de um dos “iglus”. Everson
perguntou a si mesmo como os greens poderiam distinguir as casas umas das outras. Para
ele, eram todas iguais. Uma luz trêmula passava pelas frestas das portas e janelas, mas
dali não se poderia concluir que os nativos conheciam a eletricidade.
Murgut pediu aos homens que esperassem e desapareceu rapidamente no interior da
casa. Everson arriscou-se a abrir o capacete, mas a única coisa que ouviu foi o vento que
cantava sua triste canção, em meio aos iglus. O ar estava quente e seco. Everson sentiu a
areia ranger entre seus dentes.
Depois que o coronel voltara a fechar o visor, Murgut retornou. Fez um sinal para
que os terranos o acompanhassem até o interior da casa.
— Poul — ordenou Everson. — Espere aqui fora até que eu venha buscá-lo. Se
dentro de três minutos não estiver de volta, haverá algo de errado.
Fez um sinal para Morton, e os dois acompanharam o ser-pássaro. Weiss
permaneceu do lado de fora. Em meio a um mundo estranho, que recebera os visitantes
com uma série de descortesias e segredos ameaçadores, parecia uma figura perdida.
Everson e o médico entraram num recinto bastante enfumaçado. Luminárias abertas,
cheias de uma substância inflamável, estavam penduradas nas paredes e atiravam reflexos
irreais sobre o solo. Everson percebeu que não teria outra alternativa, senão voltar a abrir
o capacete.
Sentiu-se atingido por um fedor penetrante. Tossiu e diminuiu o ritmo da respiração.
Só agora viu que o recinto estava repleto de greens. Agachados junto às paredes, fitavam
os dois homens com os rostos apáticos. O comandante teve a impressão de se encontrar
numa sessão espírita.
— Bem que gostaria de trocar de lugar com Lewellyn — disse o Dr. Morton em tom
azedo. A fonte deste mau cheiro provavelmente representaria um problema grave para
seu senso de limpeza.
— Meus amigos lhes dão as boas-vindas — disse Murgut. — Lamentam o ataque
com foguetes e estão dispostos a prestar uma reparação. Estes, que aqui se acham
reunidos, constituem o conselho de reprodução da cidade.
Everson achou preferível agradecer pela hospitalidade, antes de pensar seriamente
na expressão “conselho de reprodução”. De qualquer maneira, viam-se diante da classe
dominante dos greens.
— Chame Poul — disse, dirigindo-se ao médico.
Pela rapidez com que cumpriu a ordem concluía-se que o médico se sentia satisfeito
por ter escapado, durante um instante, dos odores que o cercavam. Ao retornar em
companhia de Weiss, seu rosto exibia um sorriso irônico, que se tornou ainda mais
marcante, quando o biólogo abriu seu capacete.
Weiss “farejou” cautelosamente. Enquanto o sorriso morria nos lábios de Morton,
seu rosto assumiu uma expressão de enlevo.
— Ah... — disse num arrebatamento. — Que perfume delicioso.
— O senhor acha? — perguntou o médico.
Weiss levantou ambas as mãos, num gesto de defesa, como se receasse que seu
olfato pudesse sofrer os efeitos da voz zangada do Dr. Morton. Estendeu a cabeça para a
frente e aspirou o ar como se fosse um elixir.
Everson pôs fim à demonstração de arte dramática de Weiss. Dirigiu-se aos greens
ali reunidos:
— Viemos das... — estacou, pois não conhecia a palavra com que os greens
designavam as estrelas, se é que tal vocábulo existia.
Murgut ajudou-o com uma explicação prolixa.
— Nosso mundo fica longe daqui, tão longe que vocês dificilmente poderiam
imaginar a distância. Viemos com um objetivo e gostaríamos de contar com o auxílio de
vocês. Queremos realizar uma expedição ao deserto.
Enquanto proferia as últimas palavras, um silêncio apavorante encheu o recinto. Os
greens mantiveram-se totalmente imóveis.
— O mal em sua própria essência — disse Murgut, depois de algum tempo. — Não
encontrarão ninguém que esteja disposto a acompanhá-los.
Outro green levantou-se e colocou-se à frente de Everson. Era mais velho que
Murgut. Pelo murmúrio respeitoso que acompanhou seus movimentos, o coronel concluiu
que devia tratar-se do chefe. O velho lançou um olhar prolongado para Everson.
— Já houve um tempo em que o senhor teria encontrado quem o ajudasse —
grasnou o originário de pássaros. — Mas esse tempo já passou há muito. As terras
arenosas encerram grandes perigos e trazem a morte. Coisas medonhas acontecem por lá.
Qualquer um que, durante a caçada, se afaste muito da aldeia acaba morrendo.
Bateu com o pé córneo, a fim de reforçar suas palavras.
— Nós temos armas poderosas — disse Everson. — Não existe nenhuma força que
não possamos vencer. Não tenham medo. Prometemos que os que nos acompanharem
voltarão à aldeia.
— O mal em sua própria essência não pode ser derrotado — disse o green em tom
enfático.
Ouviu-se um murmúrio de aprovação. Everson sentiu uma amargura cada vez mais
forte apoderar-se dele. Como não dispusesse das naves auxiliares, seria obrigado a
percorrer o deserto a pé. E para isso, não poderia dispensar o auxílio de um guia nativo.
Durante a tempestade de areia, notara que Murgut fora o único que conseguira orientar-
se. E era bastante duvidoso que, em meio à fúria dos elementos, os aparelhos de
localização continuassem a funcionar.
— Dar-lhes-emos presentes — disse numa nova tentativa. — Traremos a luz eterna,
o trovão mortífero e os raios para a caça.
— Um morto não pode caçar — dissera-lhe numa lógica contundente.
O velho retirou-se. Sua resposta fora definitiva.
— Não adianta — disse Weiss com um gesto de resignação. — Nunca
conseguiremos convencê-los, Sir. A não ser que empreguemos a violência.
— Nem penso em usar de violência por aqui — asseverou o coronel.
— Conheço um green que talvez os acompanharia — disse Murgut.
Hesitou e lançou um olhar inseguro para seus companheiros de espécimen.
— Se eu os levar para junto dele, poderei ganhar um desses presentes?
— Claro! — disse Everson. — Se nos ajudar, será recompensado.
— O mal em sua própria essência mata-lo-á por esse desafio — exclamou uma voz
de advertência em meio à fumaça.
— Acho que devemos apressar-nos — disse o Dr. Morton. — Senão esses tagarelas
ainda farão nosso amigo mudar de opinião.
Murgut levou-os para a rua. A tempestade amainara.
A perspectiva de ganhar um presente parecia servir de estímulo ao green. Suas
longas pernas caminhavam tão rapidamente que, só com muito esforço, os astronautas
conseguiram acompanhá-lo. O sol, que antes estivera encoberto pelas nuvens de pó,
dardejava seus raios com toda força. Everson lançou um olhar para o termômetro de
pulso e verificou que a temperatura já era bem superior a quarenta graus.
Na periferia da aldeia, isto é, bem distante da México, os homens viram pela
primeira vez construções alongadas que, ao contrário das residências, tinham um aspecto
moderno.
— São nossas fábricas e pavilhões de criação — disse Murgut prontamente,
respondendo a uma pergunta do comandante.
Ouviram um chiado retumbante e batidas. Uma fumaça azulada saía das aberturas
existentes nos telhados.
— Estamos fazendo experiências com ar aquecido — explicou Murgut em tom
orgulhoso. — Uma vez comprimido, pode ter várias utilizações.
— Estão inventando a máquina a vapor — disse Weiss em tom de espanto. — Pelo
que se conclui dos ruídos, os primeiros modelos não ficam a dever nada ao engenho de
James Watt.
Uma explosão fez com que se calassem.
— É claro que às vezes há um contratempo — disse Murgut com a voz deprimida.
Everson imaginava que, a essa hora, um grupo de greens decepcionados devia estar
fitando o produto de um trabalho persistente, que acabara de ser destruído. Apesar disso,
voltariam a tentar, da mesma forma que a Humanidade sempre o fizera. O
desenvolvimento de um povo depende da obstinação com que este age. Isso se aplicava
tanto à invenção de uma máquina a vapor, como na criação de uma astronáutica
altamente desenvolvida.
Atrás das fábricas estendia-se uma espécie de plantação. Vários greens estavam
trabalhando no campo. Ao lado das instalações, ficava um iglu solitário, bastante
arruinado. Não exibia o branco reluzente das outras construções.
— Chegamos — disse Murgut. — Aqui mora Npln.
— Napoleão — disse o Dr. Morton, interpretando a palavra pronunciada por
Murgut. — Até mesmo na periferia do centro galáctico seu nome continua vivo!
Em alguma época passada, houvera um antepassado do Dr. Morton em cujas veias
corria o sangue real francês. E a tendência do médico, de ressaltar esse fato em qualquer
oportunidade, não recuava diante de nada. Contemplou a choupana em ruínas com
tamanho enlevo que até parecia ver diante de seus olhos o palácio de Luís XIV.
Passaram por uma trilha estreita que passava junto aos campos de cultura. Os greens
interromperam o trabalho e fitaram-nos. Murgut fez um gesto tranqüilizador.
Quando chegaram à residência de “Napoleão”, Murgut pediu que esperassem.
— Npln é um velho rabugento — disse a título de desculpa. — Quase sempre está
dormindo. Costuma ficar zangado quando é acordado. Quero prepará-lo para a visita.
— O senhor acredita que o velho que deve residir aqui poderá ajudar-nos, Sir? —
perguntou Weiss em tom de desconfiança. — Com todo respeito que tenho pelo seu
pomposo nome — lançou um olhar irônico para o Dr. Morton — sou de opinião que aqui
dificilmente encontraremos quem nos apóie.
Antes que o coronel tivesse tempo de responder, Murgut voltou.
— Está de mau humor — disse em tom desanimado. — Tive de prometer-lhe
muitos presentes para que concordasse em recebê-los.
Entraram por uma porta cujo batente começava a despedaçar-se. Tiveram de
acostumar-se à penumbra que reinava no interior da casa. Everson sentiu-se satisfeito ao
perceber que o mau cheiro não era tão intenso.
Npln estava sentado num dos cantos da sala.
Sempre era difícil avaliar corretamente a idade de um ser pertencente a uma raça
estranha. Mas não havia dúvida de que o green que estava sentado no chão era alto.
Sua pele verde estava cheia de rugas. Era tão fino que lembrava uma armação de
arame coberta de papel. Seu rosto era murcho e encovado, e os olhos inflamados, negros
como pedaços de carvão, brilhavam no interior das covas profundas.
Ao que parecia, não estava muito impressionado com a aparição de seres dos quais
nunca vira nem ouvira nada.
— São feios — resmungou, dirigindo-se a Murgut. — Gordos e feios.
Especialmente aquele ali.
Um braço magro apontou para o Dr. Morton, que naquele momento bem que
gostaria de trocar seu sangue real francês pelo de um guerrilheiro irlandês.
— Lamentamos profundamente que nosso aspecto lhe cause desagrado, Napoleão
— asseverou Everson. — Mas nossos ricos presentes o recompensarão por essa visão
lamentosa.
Napoleão soltou um arroto... de satisfação ou contrariedade, quem seria capaz de
dizer?
Everson recorreu ao truque psicológico mais antigo, e que, mesmo nesses dias,
ainda era o mais eficiente. Bajulou o velho, para satisfazer sua vaidade.
— Viemos à presença do homem mais valente desta aldeia, pois precisamos do seu
auxílio — disse. — Todos têm o maior apreço pela sua experiência.
— Todo mundo me odeia — grasnou Napoleão em tom contrariado. — Sou um
trambolho para todos. Um esquisitão velho que não serve para nada.
— Estamos à procura de um guia para uma expedição ao deserto — disse Everson,
indo diretamente ao assunto. — Ninguém tem coragem de acompanhar-nos. Que tal você,
amigo?
O velho soltou um assobio estridente. Fitou-os com uma expressão de sagacidade.
— O mal em sua própria essência — disse em tom matreiro. — Sou o único que se
arrisca a andar por aqueles lados. Conheço a terra. Coisas estranhas costumam acontecer
por lá. Lá existe uma torre habitada por demônios.
— Uma torre? — perguntou Weiss em tom nervoso. — Como é ela?
Com um gesto da mão Napoleão procurou indicar os contornos do edifício.
— É forte e enorme. Nem mesmo o furacão mais forte pode fazer-lhe qualquer
coisa.
— Você poderia levar-nos para lá? — perguntou Everson em tom insistente.
— Vocês terão de carregar-me — disse Napoleão. — Sou tão velho e fraco que não
posso andar por muito tempo. Dessa forma, eu os levarei a qualquer lugar situado nesse
inferno.
Everson sentiu alguém puxar a manga de seu traje protetor. Virou a cabeça e fitou o
rosto assustado de Murgut.
— Será que posso receber os presentes antes do início da expedição? — perguntou
em tom preocupado.
Essa pergunta não era difícil de compreender.
Murgut tinha certeza de que Napoleão levaria os homens para o deserto.
Mas não os traria de volta!
4
O Coronel Marcus Everson escolhera trinta homens, que partiram há três horas, sob
seu comando. Walt Scoobey foi investido no comando da México. O primeiro-oficial
devia apressar os reparos, guardando todas as cautelas, e concluí-los até o regresso de
Everson. A expedição levava aparelhos de radiofonia de grande alcance, a fim de manter
contato ininterrupto com a nave. Todos os astronautas estavam fortemente armados e
envergavam trajes protetores.
Dois robôs carregaram Napoleão numa maça especialmente feita para o transporte.
A estranha trinca abria o cortejo. O coronel fez questão de levar uma boa provisão de
alimentos concentrados, cápsulas de água e comprimidos de vitaminas. O Dr. Morton era
uma verdadeira enfermaria ambulante.
Para as condições locais, o tempo era bastante calmo. Ainda era cedo, e a
temperatura era perfeitamente suportável.
Segundo as indicações de Napoleão, levariam três dias e três noites de Moluque,
para avistarem a misteriosa torre. Várias opiniões foram manifestadas sobre o assunto.
Antes da partida, Scoobey opinara que essa construção só existia na fantasia do velho
green.
Everson ouvira todas as objeções, mas não se deixara demover do seu intento.
Caminhavam pela crista de uma duna alongada, igual a muitas outras. Everson
vinha logo atrás dos robôs e de Napoleão, ladeado por Weiss, Bellinger e Goldstein.
Sternal, Landis e o Dr. Morton iam na retaguarda.
— Sir! — disse Goldstein, colocando-se ao lado de Everson. — À medida que nos
afastamos da México, minha capacidade de captar impulsos mentais aumenta.
— Não se esqueça de que também nos estamos afastando da aldeia de nativos. A
pressão mental dos greens está diminuindo.
— É estranho! — disse o mutante em tom pensativo. — O senhor deve estar
lembrado de que Murgut me deu muito trabalho. Acontece que Napoleão não exerce a
menor interferência na minha faculdade.
— Hum — fez o coronel. — Talvez já seja muito velho e não disponha das mesmas
forças que os outros greens.
A palestra foi interrompida por um grito que ressoou nos alto-falantes dos capacetes.
Pararam. Pentsteven, o astrônomo, correu para a frente. Seus pés levantavam
nuvenzinhas de pó. O rosto do jovem estava pálido. Nem mesmo a lâmina do visor
conseguia ocultar essa palidez.
— É nosso novato! — exclamou Weiss em tom de desprezo. — Deve ter areia nos
sapatos e não sabe como tirá-la.
Pentsteven parou à frente de Everson. Sua respiração era ofegante, e a fala,
entrecortada.
— O receptor de raios goniométricos desapareceu — disse fungando.
O aparelho servia para captar o raio vetor irradiado pela México. Os impulsos, que
eram registrados, constituíam um bom meio de orientação. O transporte do aparelho fora
confiado ao astrônomo.
— O quê? — gritou Everson. — O que está dizendo?
— Desapareceu — repetiu Pentsteven em tom queixoso.
— O senhor quer dizer que o perdeu! — disse Everson em tom penetrante. — Faça
o favor de refletir um pouco, meu filho. Não estou gostando da sua negligência.
O astrônomo virou o rosto desolado para Weiss, mas o biólogo não lhe deu nenhum
apoio.
— Sir, tenho certeza absoluta de que há alguns minutos ainda o tinha comigo.
Controlava constantemente as correias que o prendiam ao cinto. De repente notei que o
peso do aparelho estava diminuindo. Quando olhei, ele havia desaparecido.
— Será que o senhor quer nos fazer acreditar em milagres? — perguntou o
comandante. — A negligência é um pecado grave. Mas se alguém tenta desculpar-se
mentindo, esse alguém torna-se indigno de ser um cidadão astronauta do Império Solar.
— O que aconteceu? — perguntou Napoleão. Haviam pendurado um microfone e
um alto-falante em seu pescoço, para que os astronautas não fossem obrigados a abrir o
capacete toda vez que queriam falar com ele.
Everson explicou o acontecimento por alto.
— Os demônios do deserto carregaram o aparelho — afirmou o velho. — Este
homem é inocente.
Everson não estava inclinado a acreditar na conversa de Napoleão.
— Volte ao seu lugar — disse, dirigindo-se a Pentsteven. — Tenho vontade de
mandá-lo de volta.
— Sim senhor — disse Pentsteven num cochicho quase inaudível.
— Vamos andando — ordenou o coronel.
Não acreditou nem em Pentsteven, nem no nativo... até que acontecesse uma coisa
com Edward Bellinger.
***
***
Everson foi o primeiro que venceu a rigidez causada pelo pavor. O acontecimento
inacreditável deixara-os estupefatos. O Tenente Bellinger encolhera diante das vistas de
todo mundo, até que desapareceu na terra, quando tinha apenas quinze centímetros de
altura.
— Vamos depressa! — ordenou o coronel. — Cavem a areia. Tenham cuidado para
não machucá-lo!
Caíram de joelhos e começaram a cavar a areia com as mãos enluvadas.
— Olhe, Sir! — gritou uma voz desfigurada pelo pavor.
Sternal tremia e apontava para o deserto.
A vinte metros do lugar em que cavavam, estava deitado um corpo imóvel. Era o
Tenente Bellinger! Em seu tamanho normal...
— É o mal em sua própria essência — disse Napoleão num grito estridente.
5
O aprendizado na Academia Espacial de Terrânia era muito duro. E era bom que
fosse. Ali os homens — e em casos mais raros também as mulheres — eram preparados
para a vida no espaço cósmico. Mostravam-lhes, com todo realismo, o que teriam de
esperar lá fora. Só os mais resistentes, corajosos e fortes passavam pelos exames. O
homem tinha de aprender a desprender-se das trilhas convencionais do pensamento, pois
as coisas que aconteciam entre as estrelas nem sempre correspondiam às concepções
tradicionais. Só mesmo um espírito ágil, capaz de assimilar todas as novidades — tanto
as positivas quanto as negativas — poderia satisfazer aos padrões exigidos.
Os homens que correram pelo deserto, em direção ao lugar onde Bellinger estava
deitado, só eram capazes de lúcidas decisões, em virtude desse aprendizado.
O tenente abrira os olhos e esforçou-se para sorrir.
— Hematomas e escoriações — constatou o Dr. Morton depois de um ligeiro
exame. — Um pequeno choque nervoso.
— Tolice! — respondeu Bellinger em tom indignado. — Estou bem.
— Muito bem — confirmou Weiss, depois de haverem cuidado do tenente. — E
agora?
Num gesto instintivo, Everson pôs a mão para cima a fim de passá-la pela testa.
Porém as pontas dos dedos tocaram no capacete. Por alguns segundos sentiu uma vontade
quase irresistível de dar um beliscão no braço, a fim de verificar se aquilo não era um
sonho. Estava com a boca ressequida e a dor de cabeça o martirizava.
— Ninguém há de dizer que sofremos uma alucinação coletiva — disse com a voz
abafada. — O estado de Edward fala uma linguagem eloqüente. Cada um de nós viu que,
numa questão de segundos, esse homem encolheu. A modificação foi proporcional, isto é,
cada parte do corpo foi afetada pelo processo em igual extensão. Até mesmo o
equipamento de Bellinger foi atingido. A estabilidade de uma estrutura molecular é
constante, mas só em sentido relativo. A disposição das moléculas pode ser condensada e
espalhada, sem que o sistema sofra qualquer alteração. Talvez seja mais fácil explicar o
fenômeno por meio de uma fotografia. Pode-se fazer um retrato muito pequeno e ampliá-
lo de tal maneira que suas dimensões atinjam proporções gigantescas. Apesar disso,
ambas as fotos mostrarão o mesmo corpo, a mesma substância material.
Um sorriso débil surgiu em seu rosto.
— Nem penso em oferecer uma explicação do incrível fenômeno a que acabamos de
assistir. Qualquer pessoa que tenha visto a demonstração das faculdades de Mataal, no
interior da nave girino, poderá confirmar que um deformador molecular é capaz de
superar a estabilidade de uma estrutura de moléculas. Esses seres podem modificar e
reformular qualquer disposição de moléculas. Esse dom representaria praticamente a
mais potente das armas, se não tivéssemos de admitir que até mesmo um deformador
molecular esbarra em certos limites...
— Quer dizer que, em sua opinião, neste planeta existem seres dessa espécie, Sir?
— perguntou Landis, o operador de rádio.
— Tudo indica que sim — respondeu Everson. — Suponho que os seres
pertencentes à raça de Mataal lançaram mão deste fenômeno para mostrar que estão
presentes. Talvez seja uma advertência. Quem sabe? Até agora ninguém de nós foi morto.
Este fato não constitui necessariamente um indício das intenções pacatas dessas criaturas,
mas faz supor uma certa disposição de aceitar nossa presença até determinado ponto. Só
podemos fazer votos de que não demoremos a travar um contato mais estreito com esse
seres.
Fez um sinal, e a coluna prosseguiu em sua marcha. Napoleão indicou a direção em
que teriam de caminhar. Goldstein disse que não conseguia captar nenhum pensamento
estranho.
Ao anoitecer, Everson mandou que o grupo parasse. Sternal sugeriu que tomassem
comprimidos de neovitina e prosseguissem na marcha. Everson não concordou. Deviam
guardar as forças, e qualquer estímulo artificial poderia produzir efeitos nocivos no
futuro.
Landis entrou em contato com a México. Scoobey comunicou que os trabalhos de
reparo estavam em pleno andamento e já mostravam os primeiros resultados positivos.
No decorrer da tarde, vários greens haviam aparecido e permaneceram nas proximidades
da nave. O Dr. Lewellyn chegou à conclusão de que temiam a cólera dos habitantes do
deserto e procuravam a proteção dos estranhos. Murgut, que recebera de presente um
holofote, chegara mesmo a permanecer no interior da nave.
Everson preferiu não informar Scoobey sobre o que acontecera com Bellinger. Não
queria deixar o primeiro-oficial nervoso, pois isso poderia prejudicar seu trabalho.
Depois do jantar, Everson mandou montar as barracas, que eram feitas de plástico
muito leve e praticamente indestrutível.
Napoleão recusou-se a dormir numa barraca. Cavou um buraco na areia, xingou os
dois robôs, cuja programação não incluía qualquer tipo de conversação com os greens, e
adormeceu momentos depois.
***
De início foi apenas um farfalhar como o do champanha borbulhante de um cálice
que acabava de ser cheio. Depois disso teve-se a impressão de que eram inúmeros pés
descalços de crianças que pisassem em ladrilhos. Finalmente, ouviu-se um crepitar, como
se alguém remexesse ao longe a lenha de um forno quase apagado.
Everson acordou sobressaltado do sono leve em que estava mergulhado. Pegou a
lâmpada e acendeu-a. Weiss e Goldstein, que compartilhavam a mesma barraca, dormiam
profundamente. O coronel olhou para o relógio e constatou que a noite só havia
começado há duas horas terranas. Haviam tirado os capacetes, já que, apesar do pequeno
teor de oxigênio, o ar noturno era refrescante, fazendo com que Everson se lembrasse das
excursões pelas montanhas, realizadas na juventude. Mas agora, que o sol se pusera há
muito tempo, o ar parecia quente e abafado.
Everson abriu o tampo da barraca e olhou para fora. Uma lufada de ar quente atingiu
seu rosto. Grãozinhos de areia fustigaram sua pele. Agora já conhecia a origem do ruído
crepitante. Era o vento que carregava a areia e a tangia contra a barraca.
O comandante sacudiu os companheiros de barraca.
— Parece que alguma coisa está para acontecer — disse. — Convém que nos
preparemos.
O coronel não poderia imaginar que, em meio à natureza enfurecida, todos os
preparativos seriam inúteis.
Acordaram os outros homens. Everson mandou que seus comandados firmassem
duplamente as barracas e voltassem a colocar os trajes protetores.
Napoleão foi o único a criar problemas. O nativo estava quase completamente
coberto de areia e Weiss, que iria informá-lo sobre a situação, por pouco não tropeça
nele. O green brindou o biólogo com alguns palavrões, sacudiu-se como um cão que
acaba de sair da água e acompanhou-o para as barracas, xingando sempre.
— Parece que vamos ter uma tempestade de areia — disse Everson para dentro do
microfone de capacete, quando viu Napoleão à sua frente.
— É claro que vamos ter uma tempestade de areia — respondeu Napoleão com a
voz irritada, levantando a cabeça de abóbora murcha contra o vento.
— O que devemos fazer? — perguntou o astronauta.
O nativo começou a falar, usando um tom de desprezo.
— Vamos esperar. Que mais poderíamos fazer?
Everson resignou-se com a resposta. O ancião mais rabugento do planeta Terra seria
um gentil cavalheiro em comparação com esse monstro. O fígado de Napoleão — se é
que possuía esse órgão — devia produzir uma quantidade excessiva de bílis, ou então o
velho estava afetado por uma arteriosclerose irreversível, fato que qualquer
cosmobiólogo contestaria de forma categórica. Entretanto o certo era que, naquele
momento, o green não passava de uma figura magra e bulhenta, do qual não se poderia
esperar qualquer conselho válido.
— Todos para as barracas — ordenou Everson. — Talvez tenhamos sorte e
escapemos sem maiores danos.
O vento já atingira uma velocidade considerável e sacudia ininterruptamente os
alojamentos. O plástico era inflado. As lanternas dos astronautas brilhavam em meio à
escuridão. Quando Everson voltou ao seu alojamento, Weiss e Goldstein já se
encontravam lá.
— Tomara que os pinos agüentem — disse o mutante. — Acabo de abrir meu
capacete.
O plástico das barracas chicoteava, produzindo estalos que nem os tiros de uma
pistola.
Everson cruzou os braços embaixo da cabeça e olhou para o teto. Uma lâmpada
espalhava uma luz irregular.
De repente, Everson viu que a barraca começava a girar. Parecia que duas mãos
gigantescas estavam torcendo uma peça de roupa molhada. O coronel colocou-se de pé
num salto.
— Segurem-se — gritou. À luz da lâmpada ainda chegou ver que os dois homens se
levantaram.
Depois o furacão começou a deformar a barraca de tal maneira que Everson pareceu
estar cercado por todos os lados. Sentiu a pressão do vento, que ameaçava derrubá-lo.
Embaralhou-se nas peças de plástico. Os três reviraram os corpos e conseguiram libertar-
se. A tormenta arrastava tudo que encontrasse pela frente. As mãos de Everson, que
pretendiam segurar vários objetos, apenas atingiam o vazio.
— Fiquem juntos — ordenou o experiente coronel.
O ar se movimentava com tamanha velocidade que, em todos os lugares onde o
corpo era atingido de frente, os trajes protetores comprimiam-se contra a pele. Everson
ligou sua lanterna.
A areia revolvida praticamente sufocou a luz, que não chegava a mais de dois ou
três metros. Duas rajadas, em rápida sucessão, derrubaram Everson. Não teve coragem de
pôr-se de pé. Preferiu rastejar. Teve a impressão de que o chão vibrava sob suas mãos.
Weiss rastejava a seu lado. O telepata estava fora do raio de visão. Provavelmente as
rajadas de vento o haviam arrastado. Uma barraca, que estava sendo carregada pela
tormenta, bateu ruidosamente no capacete de Everson e quase lhe arranca a cabeça.
Sentiu uma dor lancinante na nuca. Qualquer movimento seria inútil. Estendeu-se rente
ao chão e cravou as mãos na areia.
— Fiquem onde estão — gritou para dentro do microfone. Para muitos homens, não
seria fácil cumprir esta ordem, mas de qualquer maneira o cumprimento desta evitaria
que corressem ao acaso pela escuridão, à procura de abrigo.
As dores desciam pelas costas de Everson como um fluxo de lava incandescente.
Teve a impressão de estar deitado numa grande lâmina que executava um movimento de
rotação. Sem que o quisesse soltou um grito. Com um pavor crescente, constatou: o chão
realmente se movia.
A rotação cada vez mais rápida gerou a força centrífuga que, junto com a
tempestade, fez com que Everson escorregasse pela areia como se estivesse numa pista de
gelo. Fez um esforço desesperado para segurar-se em alguma coisa. Um trecho bem
definido do deserto girava que nem um pião, e trinta homens também escorregavam
como se fossem insetos.
O derradeiro momento se aproximava...
Everson teve a impressão de que se encontrava a meio caminho entre o eixo central
e a zona periférica do pião. Mais alguns instantes e os elementos enfurecidos o
empurrariam cada vez mais para fora. Dominado pelo pavor, o comandante da México,
pensou talvez se tratar de um redemoinho que formava um funil no solo e arrastava tudo
para seu interior. Nesse caso, não se encontrariam na superfície de um disco, mas nas
paredes internas de um funil. Everson sabia que esse fenômeno podia dar-se num mar
tangido pela tempestade. Porém ali não havia condições para tal ocorrência.
Não haveria mesmo? Será que aquilo não representava um jogo das forças terríveis,
aquelas mesmas forças que “brincaram” com Bellinger? Será que os invisíveis estavam
desferindo seu golpe final, que destruiria os audaciosos terranos?
Em meio ao caos, não encontraria resposta a estas perguntas. Se não fosse o traje
protetor, já teria morrido sufocado. Caso realmente se encontrasse na parede interna de
um funil, o movimento giratório o levaria, numa série de amplas espirais, ao núcleo
inferior e central do mesmo, de onde seria expelido.
Seu corpo estava quase coberto pela areia.
A dor na nuca transformara-se numa pressão surda. Embora não passasse de um
joguete dos elementos, não parou de lutar contra aquelas estranhas forças. Perdeu por
completo a noção do tempo. Em seus ouvidos havia um ruído igual ao de uma queda de
água. Cerrou os dentes. Um objeto duro bateu em seu ombro. Estendeu a mão e
conseguiu segurá-lo.
Provavelmente era uma peça de equipamento que também estava sendo tangida pelo
solo. Everson não era nenhum jovem, e o esforço continuo deixou-o cada vez mais
exausto. Agarrou-se a uma caixa quadrada, como se esta lhe pudesse dar novas forças. De
repente levou uma pancada no capacete. Raios coloridos começaram a dançar diante de
seus olhos. Ainda percebeu que estava sendo tangido cada vez mais depressa. Depois,
teve a impressão de sofrer uma queda no escuro.
***
Uma mulher gordinha estava dobrando peças de roupa branca. Fazia-o com o maior
cuidado, e suas mãos alisavam o tecido.
— Está recuperando os sentidos — disse uma voz.
Marcus Everson abriu os olhos. Sentiu-se ofuscado por uma forte luz. A mulher
transformou-se no Dr. Morton, que manipulava as ataduras e, vez por outra, sacudia
fortemente o coronel. Depois de algumas tentativas, Everson acostumou-se à luz do sol.
Conseguiu ficar com os olhos abertos.
Estava estendido na areia. Em torno dele, os outros membros da expedição estavam
sentados, deitados ou de pé na areia. Seus trajes pareciam bastante estragados. Everson
teve a impressão de que seu aspecto também não devia ser dos melhores.
Levantou a cabeça, mas logo interrompeu o movimento, pois uma dor penetrante
percorreu sua nuca. Aos poucos foi recuperando a memória.
Everson tentou erguer-se, com maior cuidado.
A expedição — ou melhor, aquilo que restava da expressão — estava numa
depressão, em meio ao deserto.
— Tudo O.K.? — conseguiu perguntar Everson com grande esforço.
— Com exceção dos ferimentos, tudo bem — respondeu o Dr. Morton. — As
barracas e grande parte do equipamento desapareceram.
Enrolou uma atadura. O visor do capacete estava tão sujo que mal se conseguia
distinguir o rosto barbado.
— Quase todos os medicamentos se foram — disse em tom queixoso.
Everson teve de pensar num homem que, em meio a uma explosão nuclear, se
queixasse da perda da obturação de um dente.
— Onde está Napoleão? — perguntou.
Morton fitou-o.
— Também desapareceu — disse em tom contrariado. — Sternal e Weiss já
cavaram a areia, mas não o encontraram.
O coronel quis olhar para o relógio, mas constatou que este também se transformara
numa vítima da tormenta. O Dr. Morton acompanhara a direção do olhar de Everson.
— Há uma hora começou a clarear... — falou reticencioso — ...e estávamos no
centro de um belo torvelinho. Até agora vemos os sinais da catástrofe.
O estado da pequena tropa era péssimo, mas poderia ser bem pior. Landis estava
limpando a poeira e a areia que penetraram no rádio, o que provava que ainda estariam
em condições de falar com a México. Era bem verdade que, face ao desaparecimento do
velho green, a procura da torre se transformara numa empresa arriscadíssima.
Poderiam marchar em qualquer direção, pois não havia a menor indicação do rumo
que deveriam tomar para chegar ao legendário edifício. Poderiam sair em grupos
separados, espalhando-se para todos os lados, mas à medida que se afastassem do centro,
a distância entre os grupos aumentaria e, com isso, correriam o risco de não verem a
torre.
A depressão era oval. No lugar mais largo chegava a medir 120 metros, e no mais
estreito, 70. Suas paredes laterais descreviam um ângulo de cerca de 30 graus e subiam
numa altura de menos de três metros, até atingirem a superfície do deserto.
Evidentemente essas paredes eram irregulares. Porém em nenhum lugar, eram tão baixas
que alguém pudesse deixar de notá-las.
Finalmente, Everson ergueu-se de vez. Ainda estava um pouco entrevado, mas
conseguiu andar. Sentia a cabeça dolorida. Passou mancando por Landis e esboçou um
sorriso animador. A cada passo que dava, uma agulha incandescente vinda de baixo
parecia perfurar sua nuca. Depois de ter percorrido vinte metros, pareciam ser dez
agulhas.
Everson ficou refletindo sobre como poderia percorrer vários quilômetros no estado
em que se encontrava. Esperava que o Dr. Morton tivesse algum analgésico. O suor
começou a porejar por todo o corpo. Não desistiu. Acabou atingindo um lugar onde a
parede da depressão parecia ser mais baixa e menos íngreme. Dobrou os joelhos e ouviu
as juntas estalarem. Deixou-se cair lentamente para a frente e aparou a queda com as
mãos.
— Eu o apoiarei — disse uma voz saída de seu receptor de capacete.
Everson virou a cabeça e viu que Poul Weiss se encontrava atrás dele. Com uma
agilidade de esportista, o biólogo colocou-se a seu lado.
— Faça de conta que sou uma escada — disse Weiss.
Enlaçou as mãos, para que Everson pudesse apoiar o pé nas mesmas. Everson era
um homem grande e pesava mais de noventa quilos. Weiss dobrou ligeiramente os
joelhos quando teve de sustentar todo o peso de Weiss. Apesar disso, a altura não foi
suficiente para que Everson pudesse olhar para longe.
— Suba no meu ombro — sugeriu Weiss.
Everson esforçou-se para não decepcionar aquele homem tão disposto a prestar-lhe
ajuda. Conseguiu subir. Uma vez sobre os ombros de Weiss, sentiu-se tão esgotado pelas
dores e pelo esforço físico que teve de fechar os olhos por um instante.
— Está vendo alguma coisa, Sir, — perguntou a escada viva.
Everson fez um grande esforço. De início só viu a areia e o ar tremeluzente. Mas
quando virou a cabeça um pouco para o lado, viu outra coisa.
Piscou os olhos e voltou a fitar o interior da depressão para, num segundo golpe de
vista, excluir a possibilidade da ocorrência de uma miragem.
Weiss balançou um pouco, e Everson teve de segurar-se.
— Está vendo alguma coisa? — repetiu Weiss em tom impaciente.
— Estou — disse Everson muito devagar.
Depois de uma pausa destinada a ressaltar a extensão do milagre, acrescentou em
tom seco:
— Estou vendo a torre!
Weiss soltou uma exclamação de surpresa e quase deixou cair a carga que pesava
sobre seus ombros.
— Cuidado! — disse Everson.
A torre que, segundo as informações de Napoleão, só iriam atingir dentro de mais
dois dias, estava bem à sua frente. Só havia duas possibilidades. A informação do green
era falsa, ou então o furacão que soprara, durante a noite, os tangera misteriosamente para
perto da torre. Everson achou que a última alternativa era menos plausível.
O edifício que se estendia em direção ao céu de Moluque era imponente. À primeira
vista, parecia estranho e apavorante. Em hipótese alguma poderia ter sido construído
pelos greens. Erguia-se uns cento e cinqüenta metros acima do solo. Pelo que Everson
pôde constatar, seu formato era oitavado. O impacto contínuo das tempestades e dos
furacões causara-lhe uma ligeira inclinação. Por certo, os sólidos e profundos alicerces
evitaram seu desmoronamento.
Há algum tempo, cuja extensão não poderia ser calculada, o vento, a areia, o frio e o
calor haviam corroído a torre. Estava coberta por uma camada verde-cinzenta. Em alguns
lugares apareciam fendas de mais de dez centímetros de largura, que pareciam filigranas
de vários metros de comprimento a enfeitarem a superfície da construção. Aquele edifício
parecia exalar um sopro de infinito abandono. Everson teve a impressão de que era o
monumento de um gigante há muito esquecido, que quisesse deixar gravada sua presença
na memória dos seres nativos. Fosse quem fosse o idealizador de tal construção, uma
coisa era certa: o arquiteto não era natural de Moluque.
6
Everson desceu, ainda um tanto perplexo com a estranha visão. Se é que já vira um
rosto curioso, este rosto era o de Weiss naquele momento. Absteve-se de qualquer
observação apressada.
— Acompanhe-me para junto dos outros — disse, dirigindo-se ao biólogo. — Não
quero contar duas vezes a mesma coisa.
Weiss demonstrou seu desapontamento por meio de um pontapé na areia e
acompanhou o comandante. Os astronautas haviam acompanhado tudo e sentiam-se
muito curiosos.
— Encontramos a torre — principiou Everson laconicamente e relatou em palavras
ligeiras o que acabara de descobrir.
— O que vamos fazer, Sir? — perguntou Bellinger, cujo corpo era o que mais devia
ter sofrido na noite anterior.
— Iremos até lá e a examinaremos. Mas, antes disso, vamos verificar se Landis já
está em condições de entrar em contato com a México. Não sabemos o que nos espera, e
não podemos dispensar a cobertura de retaguarda.
— O senhor pode falar com a México quando quiser — anunciou Landis.
Num gesto quase carinhoso passou a mão pelo aparelho. Algumas peças eram
mantidas presas pelo material retirado das caixas de ataduras do Dr. Morton. Everson fez
questão de não ver esse tipo de improvisação.
— Está bem — disse o coronel com um olhar desconfiado para a obra de Landis. —
Não custa tentar.
Contrariando sua previsão, o operador de rádio levou apenas dois minutos para
estabelecer a ligação com a México. Scoobey informou que a espaçonave também fora
atingida pela tormenta, mas não havia sofrido nenhum dano. O trabalho dos técnicos
progredia bem. O primeiro-oficial acreditava que os reparos só consumiriam alguns dias.
Neste ponto, o pessimismo inicial se revelara falso.
Scoobey obteve minuciosas informações sobre a situação da expedição. O rádio
fazia com que, se necessário, os homens da nave pudessem encontrar a expedição,
independentemente de um aparelho emissor de raios vetores ou da indicação de sua
posição.
O coronel concluiu com as seguintes palavras:
— Não há a menor dúvida de que por aqui existem forças que se mostrarão
infinitamente superiores a nós, caso resolverem agir seriamente. Reunirei alguns homens
e procurarei entrar na torre. É possível que lá encontremos outros elementos.
Nos minutos que se seguiram, Everson submeteu-se ao tratamento do Dr. Morton. O
médico conseguiu reduzir as dores o suficiente para que o comandante pudesse andar
normalmente.
— Iremos para junto da torre — disse Everson, explicando a ação que pretendia
desenvolver. — Bellinger, Goldstein, Weiss, Sternal e eu faremos o possível para
penetrar no interior da construção. Combinaremos com os outros um tempo limite para
estarmos de volta.
Constatou-se que os astronautas haviam superado relativamente bem os terríveis
acontecimentos da noite anterior. Ajudaram-se mutuamente para sair da depressão.
Quando o imenso edifício surgiu à sua frente, Everson teve de esforçar-se para
interromper a discussão que iria ter início.
A trinta metros do destino, Bellinger parou de repente. Apontou para o chão.
— São rastros, Sir — disse.
Everson colocou-se a seu lado. O tenente não se enganara. Meio encobertas pela
areia tangida pelo vento, as impressões de pés largos, de quatro dedos, desenhavam-se à
sua frente. Só havia uma pessoa que poderia ter produzido essas impressões.
Era Napoleão!
Acontece que o green desaparecera. Não havia a menor dúvida sobre a direção da
pista. Os rastros iam até a misteriosa construção.
Será que Napoleão fora raptado, ou teria ido voluntariamente? Onde estaria naquele
momento?
Everson não soube responder a essas perguntas. E sua perplexidade deveria
aumentar ainda mais, instantes depois.
— Olhe a torre, Sir! — exclamou Landis.
— O que aconteceu com ela? — perguntou o coronel.
A resposta do operador de rádio esclareceu um mistério, mas trouxe muitos outros.
A afirmação de Landis foi tão patente, e de tamanha simplicidade, que todos espantaram-
se por não terem dado com a mesma.
— É uma espaçonave — disse Landis.
***
***
***
No exato momento em que o Coronel Marcus Everson olhou para o relógio, Landis
disse, em voz alta, cinqüenta metros abaixo, em meio às areias do deserto:
— O prazo terminou.
Vinte e quatro pares de olhos fitaram com uma expressão de ameaça a nave que
acolhera cinco astronautas e ainda não os libertara. Muito embora as ordens do
comandante fossem muito precisas, qualquer um desses homens estava disposto a correr
para a desgraça. Poucos comandantes da frota solar eram tão estimados como Everson.
Seus homens o veneravam. Sabia dar o máximo de liberdade e exigir apenas um mínimo
de disciplina, sem que isso afetasse sua autoridade.
Por isso, não seria de admirar que, naquele instante, alguns dos homens pusessem as
mãos nas armas térmicas e...
— Tenham calma, minha gente — gritou Landis, embora ele mesmo também teria o
maior prazer em precipitar-se sobre o colosso oitavado que se erguia diante de seu
grupamento, em direção ao céu verde-pálido. — Antes de mais nada, precisamos entrar
em contato com Mr. Scoobey.
Passou a lidar com aquele amontoado que, dificilmente, poderia merecer a
designação de aparelho de rádio. Os dedos ásperos do radiotelefonista correram leve e
despreocupadamente sobre as teclas, como se o aparelho que tinha à sua frente fosse a
coisa mais estável do Universo. Quando a voz do oficial da México saiu do alto-falante,
todos seriam capazes de jurar que Landis era um verdadeiro gênio.
— Já passou seis minutos da hora indicada, Sir — disse Landis. — O comandante e
os homens que o acompanharam ainda não voltaram. Por aqui está tudo em paz. O que
devemos fazer?
Landis, que já teve o desejo de ser oficial ou mesmo comandante, agradeceu ao
destino por tê-lo obrigado a seguir outra carreira. Sabia perfeitamente que, se estivesse no
lugar do oficial, estaria indeciso quanto às providências a serem tomadas. Não se
lembrava de qualquer tipo de ação que pudesse ser ao menos medianamente razoável.
Ao que parecia, Walt Scoobey defrontava-se com o mesmo problema, pois demorou
bastante tempo para responder.
— Mande os dois robôs para a nave, a fim de que procurem os homens — ordenou.
Era uma boa idéia, mas havia um detalhe. Os robôs não existiam mais. Haviam
desaparecido juntamente com muitos outros objetos na tormenta noturna, uma coisa que
não deveria ter acontecido com os robôs de guerra. Landis informou o interlocutor
invisível sobre essa circunstância.
— Bolas! — disse Scoobey em tom de decepção. — Mande mais quatro homens
para dentro da nave, Toni. Talvez isso baste para manter o inimigo invisível ocupado por
mais algum tempo. Os outros devem retirar-se com o aparelho de rádio, a uma distância
em que ainda possam avistar a espaçonave. Observe tudo que se passar. E mantenha o
rádio sempre em funcionamento. Usaremos o goniômetro e, dessa forma, não teremos a
menor dificuldade em encontrá-lo. Formarei um pequeno grupo de combatentes e irei até
aí pelo caminho mais rápido. Estaremos aptos a enfrentar os acontecimentos. Talvez
consigamos sair com uma das naves auxiliares.
Landis confirmou o recebimento da mensagem. Ligou o rádio de tal forma que, a
cada dez segundos, emitia um ligeiro sinal de chamada, que poderia ser captado por
qualquer goniômetro num raio de quinhentos quilômetros.
— Quero quatro voluntários — disse. — Já apareceu um — apontou para si mesmo.
— Se me permite que, como paisano, faça uma sugestão — disse o Dr. Morton —
direi que o senhor deve ficar junto ao aparelho “doente”, a fim de salvá-lo novamente,
caso volte a entrar em pane. Por outro lado, o estado de saúde do grupo pode ser
considerado bom. Portanto, não vejo por que eu mesmo não poderia ir à nave.
Sem dúvida, esta foi a fala mais longa, gentil e racional que o Dr. Morton proferiu
em sua vida.
— De acordo — disse o operador de rádio, prontamente. — Delaney, Pentsteven e
Okeda irão com o senhor. Desejo-lhe boa sorte, doutor.
O jovem Pentsteven provou mais uma vez que era um novato, pois, num gesto
emocionado, apertou a mão de Landis. Antes que o astrônomo pudesse dramatizar ainda
mais a situação, o médico empurrou-o em direção à nave.
— Vamos andando! — exclamou. — O que está esperando, meu filho?
Quatro homens caminharam com dificuldade pela areia, em direção à “porta” que os
separava do desconhecido. Foram desaparecendo um após outro. Pentsteven, que
caminhava no fim da fila, virou-se e cumprimentou os outros com um aceno da mão.
“Pode ser uma despedida por algum tempo ou para sempre”, refletia Landis muito
preocupado. “E é provável que a última hipótese seja a correta.”
***
***
***
***
— Todos vimos a mesma coisa; logo, aconteceu realmente — disse Marcus Everson
e fitou os companheiros com uma expressão séria. — Devemos conformar-nos com o
fato de que Poul atravessou esta parede como se ela não existisse.
Ninguém respondeu. Cada um seguia a trilha das próprias reflexões.
“Já que não poderia conquistar nenhum aliado para Rhodan, ao menos vou levar-
lhe de volta o precioso cruzador”, decidiu Everson.
Isso parecia ser fácil, mas, na realidade, era dificílimo de ser feito. Os obstáculos
pareciam invencíveis. Não havia a menor dúvida de que Napoleão pretendia apoderar-se
da México. Nem mesmo um deformador de moléculas seria capaz de pilotar a nave
sozinho. Precisaria de alguém que o ajudasse.
Everson imaginava mais ou menos quais eram as intenções do falso nativo.
Tentaria colocar fora de ação os membros da expedição e voltaria à México,
dizendo que era o único sobrevivente. Uma vez no espaço, controlaria a tripulação e a
faria trabalhar de acordo com seus desejos. De qualquer maneira, parecia ter a intenção
de deixar em Moluque os elementos mais importantes. Dali se concluía que via um certo
perigo ao menos no mutante.
Mas não adiantava pensar sobre isso. Precisavam descobrir um meio de livrar-se da
situação em que se encontravam. Poul Weiss não dispunha de dotes sobrenaturais. Devia
haver uma explicação racional para aquilo.
No momento em que Everson começou a refletir intensamente sobre isso, o biólogo
voltou. Ele o fez da mesma forma pela qual saíra.
— Então; vamos andando, Sir — disse em tom animado. — O corredor está
completamente vazio. Não se vê o menor sinal de Napoleão.
Não acontece todos os dias um terrano normal atravessar as paredes de espaçonaves
estranhas como se estas não existissem. Até que o coronel resolvesse formular uma
pergunta, passaram-se alguns segundos.
— Como foi que o senhor conseguiu, Poul? Como fez para sair desta sala?
No rosto de Weiss, o sentimento de culpa e um sorriso incontrolado misturaram-se
numa careta.
— Desculpe, Sir — disse. — Pensei que o senhor soubesse.
— O senhor não perde por esperar — disse o Tenente Bellinger em tom sarcástico.
— No lugar em que entramos não existe nenhuma parede — explicou Weiss. — Ela
só existe em nosso pobres cérebros iludidos. O deformador de moléculas recorreu a um
truque psicológico para sugestionar-nos. Ficamos tão convencidos que até chegamos a
sentir o material, ou melhor, acreditávamos que o sentíamos.
Sorriu, recuou alguns passos e estendeu o braço através da matéria aparentemente
firme.
— Olhe — disse. — Aqui está a prova. Basta acreditar que aqui existe a abertura
pela qual viemos.
— Não custa experimentar — disse Bellinger.
Num gesto que demonstrava desconfiança, estendeu as mãos para a frente, correu
em direção ao obstáculo e... desapareceu. Depois sua cabeça voltou a surgir. Parecia um
crânio de Buda sorridente que, contrário a todas as tradições, achava-se envolto por
cabelos louros ondulados. Fez um gesto animador.
Agora, todos já estavam no corredor.
— Foi dali que viemos — disse Weiss. — Parece que há uma barreira... — apontou
para uma mancha escura, cujo centro quase chegara a ser negro, enquanto as bordas eram
franzidas como uma flor. — O radiador térmico não servirá de nada.
Everson apontou para a tal mancha.
— Parece que o senhor já tentou.
Weiss confirmou com um gesto. Ao que parecia, não temia as conseqüências dos
seus disparos. Movia-se com a despreocupação de quem passeia pela Rua Goshun, em
Terrânia. O biólogo era um homem de boa estatura, rosto liso e bem cuidado. Seu aspecto
era simpático. Os astronautas jovens e inexperientes costumavam recorrer a ele para pedir
conselhos. O biólogo fazia parte de um grupo esotérico. Pertencia a um círculo de estudos
astrológicos, que, antes de qualquer viagem espacial, lhe fornecia um horóscopo. Tal fato
deixaria muitos de seus amigos espantados, caso o soubessem.
Mas, naquele momento, Weiss pensava menos no seu horóscopo que nas
possibilidades de levar avante a fuga.
— Daqui não vemos a outra extremidade do corredor; está muito escuro — disse. —
Mas podemos andar até lá e dar uma olhada.
— Está certo — concordou Everson. Colocou-se na ponta do pequeno grupo e
foram caminhando em direção ao destino. Numa atitude instintiva, evitaram qualquer
ruído. O corredor foi-se estreitando, mas um homem podia passar confortavelmente.
— Gostaria de saber uma coisa — disse Sternal. — Será que nos deslocamos na
vertical ou na horizontal em relação à superfície do deserto?
— Procure encontrar uma janela — sugeriu Bellinger com um sorriso.
Goldstein foi o único que se manteve em silêncio. Até parecia que não dava maior
importância à fuga. Seu olhar mostrava-o introvertido. O mutante nunca fora muito
loquaz, mas até então jamais pareceu desinteressar-se pelos acontecimentos.
— Podemos prosseguir — disse Everson. — Do lado de cá, a abertura não foi
fechada.
— Mas parece que teremos de andar no escuro — disse Sternal, que parecia bastante
preocupado. — Depois desta parede não há mais nenhuma luz.
— Liguem as lanternas — ordenou Everson. Constatou-se que, com exceção do
coronel, todos haviam deixado suas lanternas nos trajes protetores.
— Ninguém vai voltar — decidiu o comandante da México. — Temos de arranjar-
nos com apenas uma lanterna.
Ligou-a. O feixe de luz tremeu no chão, tateou as paredes e passou ligeiramente
embaixo do teto. O lugar não sofrerá qualquer modificação. Avançaram devagar. Everson
segurava a arma de choque. A ação era um tanto confusa, mas sempre seria preferível a
uma atitude de resignação.
De repente, o coronel despencou. Deu um passo no vazio, embora sua lanterna
tivesse iluminado chão firme, pouco antes. Agora, a luz passou a tatear por todos os
lados, descrevendo trajetórias de fogo e rodopiando no nada pelo qual caía. Alguém
soltou um grito.
Dali a pouco, ouviu-se o ruído produzido pelo impacto do corpo de Everson.
Um rosto demoníaco surgiu nitidamente diante dos olhos da mente de Everson.
Procurou recuar, mas o rosto continuava a aproximar-se. Em desespero, teve a idéia de
que talvez nem estivesse caindo, mas flutuando sem peso. Os lábios duros, em formato de
bico abriram-se. Everson esforçou-se para respirar. Quis lutar, mas não encontrou
nenhum ponto de referência contra o qual pudesse investir. Rolou, cambaleou, deu uma
cambalhota. O corpo era incapaz de adaptar-se ao estado em que se encontrava.
Depois de algum tempo, uma voz falou em meio à infinita escuridão. Era uma voz
que perdera totalmente a tonalidade juvenil:
— Isso não passa de um truque, Sir! Procure resistir; conseguiremos.
“Goldstein!”, pensou Everson, mas de sua boca só saiu um gemido martirizado.
Sentiu que em torno iria ter início uma coisa que se revestiria de importância
decisiva.
Não poderia saber que aquilo era o começo de uma luta que seria travada com armas
invisíveis. E tal embate poderia estender-se por várias horas, pois, durante seu
prolongado silêncio, Samy Goldstein concebera um plano.
E acabara de passar à execução do seu intento.
7
***
Samy Goldstein estava de costas para a parede. À sua frente, Everson, Bellinger,
Weiss e Sternal cambaleavam como se estivessem bêbedos. O mutante sentiu a energia
mental do deformador de moléculas. Era uma série ininterrupta de investidas no terreno
mental. Napoleão fez de tudo para subjugá-lo. Acontece que Goldstein estava preparado
para esse tipo de confronto, até onde fosse possível. Suas medidas de segurança se
baseavam em duvidosas teoria. Até então resistira continuadamente ao campo de
irradiação dos greens; lutara e o afastara de suas capacidades extra-sensoriais.
Mas, no momento em que descobriu a verdadeira identidade do velho green,
Goldstein passou a absorver sistematicamente os fluxos paranormais irradiados pelos
cérebros dos nativos. Napoleão confessara que também era atingido por tais fluxos. O
telepata concentrou-se ao máximo para sugar os modelos mentais. Seu cérebro
martirizado ameaçou estourar, quando a descontrolada força paranormal penetrou-lhe
livremente.
De início, Goldstein receara que, em virtude da distância que o separava da aldeia,
não pudesse alcançar mentalmente os nativos. Mas seus sentidos paranormais saíram à
procura e encontraram entre a nave e a aldeia um tipo de estação retransmissora, por meio
da qual conseguiu estabelecer contato.
Goldstein não poderia imaginar que apenas estava utilizando Murgut na execução de
seus planos!
Quando o deformador de moléculas lançou o primeiro ataque contra o mutante,
Goldstein deixou-o penetrar imediatamente, sem oferecer a menor resistência. Sabia que,
se suas suposições fossem incorretas, estaria perdido. Ficou desmaiado por alguns
segundos, em virtude da interferência mental de Napoleão. Depois de voltar a si, sentiu
apenas a pressão vinda da aldeia. Preferiu não entreter qualquer sensação de triunfo, pois
não sabia se o falso green aceitaria a derrota. Animado pelo êxito, perseguiu-o, mas
Napoleão bloqueara seu espírito. Dali se concluía que não estava em condições de vencer
Goldstein no estado em que o mutante se encontrava. Porém o telepata não se entregou a
ilusões. Logo Napoleão iria procurar surpreendê-lo numa segunda tentativa. A única
proteção era representada pelas irradiações dos greens.
Quando Napoleão voltou a avançar, o fez de tal maneira que Goldstein só o
percebeu quase tarde demais. Edward Bellinger voltara a colocar-se firmemente sobre os
pés. Antes que Goldstein pudesse admirar-se com isso, o tenente tirou a arma térmica e
fez pontaria para o mutante.
— Edward! — gritou Goldstein. — Não faça isso!
Bellinger riu como se se sentisse desamparado. Ergueu ligeiramente a arma.
Goldstein viu o dedo do oficial curvar-se vagarosamente sobre o gatilho. Atirou-se para a
frente. Um raio quente passou pelas suas costas. Virou-se em desespero. Foi então que
Napoleão investiu contra ele usando a violência paranormal.
Raios começaram a surgir diante de seus olhos. Em seu subconsciente, ouviu
Bellinger soltar um grito de pavor. Seguiu-se o ruído de uma arma. Goldstein teve a
impressão de que sua cabeça se dilatava como uma bolha de sabão. Devia fazer alguma
coisa. Reunindo as últimas forças, voltou a entrar em contato com a paraonda dos greens.
Alguém soluçava. Era ele mesmo. Teria de sair dali antes que Napoleão fizesse com que
todos disparassem contra ele. Levantou-se de um salto e quis correr. Um abalo terrível
atirou-o ao chão. A nave balançava. Goldstein não lamentou o fato, pois agora os homens
dificilmente conseguiriam atingi-lo caso o último sobrevivente de uma raça estranha os
obrigasse a atirar.
Uma ligeira sensação de mal-estar apossou-se dele. Tentou tossir, mas os pulmões,
que queriam aspirar o ar comprimiram-se. Pequenos círculos dançavam diante de
Goldstein. Sentiu dores atrozes no peito.
“Falta de oxigênio”, pensou no subconsciente. “Ele está retirando o ar do
corredor.”
Voltou a lutar contra os abalos. Só conseguia aspirar o ar em pequenas golfadas.
O que teria acontecido com os outros? Devia haver uma saída. Alguém caiu a seu
lado. Goldstein fungou e conseguiu desvencilhar-se. Sentia um cansaço infinito.
Ansiava pela paz e pelo sono. As pálpebras fecharam-se.
Foi então que Napoleão se dispôs a desferir o golpe decisivo.
***
***
Quando o Dr. Morton obrigou o corpo estropiado a levantar-se, pensou que não teria
tempo para cuidar de doenças. Os solavancos haviam diminuído bastante. Já se podia
andar, sem correr o perigo de ser atirado ao chão.
— Estou com o corpo cheio de hematomas — disse o sargento Delaney. — Um bife
batido está menos amassado que eu.
Dr. Morton certificou-se de que Okeda e Pentsteven também haviam resistido à
tortura. Depois dirigiu o feixe de luz da lanterna para a frente. Ouviu Pentsteven soltar
um gemido.
— Deixe a arrumação do corpo para mais tarde — disse, dirigindo-se ao astrônomo.
— Vamos andando.
Era esta a única idéia que o Dr. Morton tinha sobre a maneira de prosseguir em sua
ação. Não podia deixar de confessar que era simplória e pouco imaginosa. Mas teve suas
dúvidas de que seria capaz de conceber outra melhor, por mais que refletisse.
Caminharam pelo corredor. Eram quatro vultos que se contorciam de dor, segurando
as lanternas com uma das mãos, enquanto a outra apalpava cuidadosamente o corpo.
Enquanto o Dr. Morton refletia sobre se convinha chamar o Coronel Everson pelo
rádio de capacete, um homem cambaleava em meio ao feixe de luz, a alguns metros de
distância. O homem não usava traje protetor.
Era Bellinger. Tinha os cabelos desgrenhados e a camisa do uniforme estava
rasgada. Cambaleou na direção em que se encontravam, apoiando-se ora numa, ora
noutra parede do corredor.
Quando Bellinger pretendia passar por ele, o médico segurou-o. Ao que parecia, o
tenente não o via, pois seus olhos pareciam ver para além do Dr. Morton. Fez um
movimento débil, a fim de afastar o médico. Delaney aproximou-se de um salto e ajudou
o médico a apoiar aquele homem, que não era nada leve.
— Você me compreende, Ed? — perguntou o Dr. Morton em tom insistente. —
Queremos ajudá-lo. O senhor tem de levar-nos ao lugar em que estão os outros.
Num movimento infinitamente lento, o Tenente Bellinger levantou o braço direito.
Fechou um dos olhos, como se estivesse fazendo pontaria para um alvo, e curvou o dedo
indicador. Estava disparando uma arma imaginária. Num relance de olhos, o Dr. Morton
viu que o astronauta estava sem a arma térmica.
— Deve ter havido uma luta, Ed — disse em tom insistente. — Conte o que
aconteceu.
Pela primeira vez, Bellinger fitou-o. Seus olhos abriram-se um pouco. Tremia
fortemente.
— Matei o rapaz! — exclamou.
Seu corpo amoleceu, e os dois homens tiveram de fazer um esforço tremendo para
mantê-lo de pé. O Dr. Morton não era um homem muito corajoso, mas também não era
nenhum covarde. Apesar disso, as palavras do tenente lhe provocaram um calafrio.
— Está se referindo a Goldstein? — perguntou.
O choque sofrido por Bellinger fora tão violento, que o tenente não era capaz de
dizer qualquer coisa sensata.
Numa atitude inconsciente, o Dr. Morton entesou o corpo.
— Tente levá-lo para fora — ordenou, dirigindo-se a Pentsteven. — Não preste
atenção a qualquer tipo de conversa.
O astrônomo, que estava com o rosto pálido, fez um gesto afirmativo. Devia sentir-
se satisfeito por poder sair dali.
“Esta retirada não deve ser nada agradável para o coitado do Bellinger”, pensou o
médico.
— Continuaremos a procurar — disse. — Everson não pode estar muito longe.
Vamos ficar com as armas preparadas. Se houver uma luta, deveremos estar atentos para
agirmos rapidamente.
Tirou a pistola de choque. Por um instante, o cano da arma foi atingido pelo feixe de
luz da lanterna de Okeda e cintilou.
“Se por aqui houver um único deformador de moléculas”, pensou o homem
barbudo, “esta arma não será mais eficiente que uma bombinha de São João.”
***
Nenhum homem, nem mesmo um mutante, é capaz de, ao mesmo tempo, lutar para
respirar, manter o equilíbrio sob uma série ininterrupta de abalos e defender-se contra
uma supercriatura, cujas energias paranormais são quase inesgotáveis. A paraonda dos
nativos já não era suficiente para deter Napoleão. Agachado no chão, Goldstein percebeu
que o controle de suas faculdades mentais lhe escapava.
O rosto de Napoleão surgiu em sua mente. O green sorriu. Sua cabeça balouçava
ligeiramente. Parecia um velho que balança tranqüilamente a cabeça, para exprimir sua
contrariedade com as artes de uma criança travessa.
— Não tive a intenção de agir com tamanha violência contra vocês — comunicou o
deformador de moléculas. — Mas seu comportamento obrigou-me a isso. Seu raciocínio
lhes poderia ter dito que qualquer resistência seria inútil.
As antenas telepáticas de Goldstein não conseguiram captar as emissões mentais dos
greens. Estava inteiramente nas mãos do inimigo. Com um pavor crescente, o mutante
percebeu que, dentro em breve, seria um instrumento passivo, que executaria quaisquer
ordens e faria exatamente aquilo que Napoleão desejasse.
E assim jazia no chão, vencido pelo cansaço e pelo desespero. Levantou a cabeça.
Everson, Weiss e Sternal estavam inconscientes. Bastaria estender o braço para tocar o
comandante.
— É preferível que saiamos juntos da nave — voltou a falar Napoleão, que, neste
momento, materializara-se. — Seu estado não é bom. Tive de ativar alguns aparelhos que
podem causar uma catástrofe. A obstinação demonstrada por vocês obrigou-me a isso.
Precisei de algum tempo, para adaptar-me à pressão mental que se concentrava em seu
cérebro e fluía para mim. A idéia não foi nada má, mas você não poderia resistir por
muito tempo. Como não conseguisse atingi-lo no plano mental, comecei por derrotá-lo no
plano físico. Quando sairmos, lá fora rugirá uma tormenta que evitará que seus amigos se
deixem levar a um ato irrefletido. Vai ser-lhes difícil até manterem-se de pé. Assim que
os tenha colocado, um por um, sob o meu controle, o vento amainará, e poderemos
regressar à sua nave. Durante os reparos que ainda faltam, terei tempo para escolher os
homens mais submissos entre a tripulação. Os outros ficarão em Moluque. Poderão
cuidar destes nativos primitivos e de seu progresso.
Goldstein preferiu não perguntar a que grupo pertenceria. A possibilidade de passar
o resto da vida entre os greens não era nada agradável. Mas achou-a ainda melhor do que
ficar escravizado mentalmente a bordo da México.
Nem se atrevia a pensar no que o deformador de moléculas faria com o cruzador
terrano. Pelas leis do Império Solar, o procedimento de Napoleão era um ato de pirataria.
Mas não havia ninguém que pudesse puni-lo por isso.
Mais uma vez, o telepata procurou concentrar-se na paraonda dos greens. Mas assim
que pensava nos fluxos mentais dos nativos, seu cérebro começava a doer tanto que se
sentia incapaz de lançar mão de suas forças paranormais. Napoleão paralisara o
respectivo setor de seu cérebro por meio de um bloqueio psicológico. A força de vontade
do jovem mutante não bastava para poder fazer algo contra isso. Seus sentidos
paranormais estavam transformados em dons mentais mutilados, que se recusavam a
desempenhar qualquer função.
— Espero que isto o tenha convencido da inutilidade das suas tentativas — disse
Napoleão em voz alta. — Nesse caso, evitará medidas rigorosas de minha parte. Não
tenho o menor interesse em deixar uma ruína espiritual em Moluque.
Everson recuperou os sentidos, evitando que Goldstein fizesse uma observação
irônica. O coronel ergueu-se lentamente. Ainda estava um tanto inseguro sobre as pernas.
Goldstein levantou os olhos para ele e sorriu.
— As coisas não estão nada boas, não é mesmo? — perguntou Everson.
— Não senhor — disse Goldstein, olhando para Napoleão. — Ele nos levará para
fora. Só nos fez andar por aqui para submeter-me a seu controle. E agora conseguiu.
Num movimento ligeiro, o coronel tirou a arma térmica e atirou.
No entanto, o raio fulgurante, que o mutante esperava ver, não saiu.
— Deixe de ser idiota — advertiu Napoleão. — A hora para isso já passou.
Everson desistiu. Guardou a arma e olhou para Goldstein.
— De qualquer maneira, resolvi tentar — disse.
Tocou Weiss e Sternal com a bota. O biólogo resmungou alguma coisa. Dali a dez
minutos, todos estavam de pé. Bellinger desaparecera. Goldstein preferiu não mencionar
os tiros infelizes disparados pelo tenente. Sem dúvida o mesmo estivera sob a influência
de Napoleão.
— Podem vestir os trajes protetores — disse Napoleão em tom amável. — Eu os
acompanharei. Não adianta usarem as armas. Estão inutilizadas.
Naquele instante, um homem baixo apareceu na outra extremidade do corredor.
Envergava um traje espacial. Um rosto barbudo aparecia sob o capacete aberto. Segurava
uma pistola.
— Olá, doutor — disse Everson.
O Dr. Morton esticou o corpo para ver Napoleão, atrás do comandante. Guardou a
lanterna no respectivo estojo, pois o lugar estava bem iluminado. Delaney e Eiji Okeda
apareceram logo depois. Quando viram Everson e os outros homens do grupo, uma
expressão de alívio surgiu em seu rosto.
O médico passou por Everson e apontou a arma térmica para Napoleão. Suas faces
estavam afogueadas de cólera.
— Doutor, acho que preciso explicar-lhe alguma coisa, antes que nos cause maiores
dificuldades — disse Everson.
***
Antônio Landis nunca acreditaria que pudesse levar mais que alguns minutos para
vencer a distância de cem metros. Quando haviam percorrido a terça parte do caminho, a
nave já havia desaparecido em meio às nuvens de pó e areia. Tiveram de marchar contra
o vento. O operador de rádio teve a impressão de que, para cada passo que avançavam,
eram tangidos para trás três passos. Sabia que os outros homens se esforçavam com a
mesma estúpida obstinação, mas não conseguiam melhor resultado que ele. Landis
transformara-se num autômato que movia as pernas numa resignação muda, embora
soubesse que não saía do lugar. O pó e a areia batiam ruidosamente contra seu corpo,
banhavam seu traje. Resistiu ao vento, tal qual uma sólida muralha. Empurrava-se para a
frente com toda a força, os pés impeliam-no e o braço livre balançava
descontroladamente.
De repente, alguma coisa se aproximou, saída da semi-escuridão. Estreitou os olhos
para enxergar melhor.
Era um jovem, envergando traje protetor. Landis fez um sinal. Depois de algum
tempo, conseguiram imobilizar seus corpos. Um terceiro homem surgiu à sua frente.
Aproximou-se rastejando.
— Tudo bem? — perguntou o homem que se encontrava ao lado de Landis.
A voz grave fez com que Landis reconhecesse imediatamente o homem que via
diante de si.
— Sir — balbuciou. — Como veio parar aqui?
— De certa forma foi o vento — disse o coronel. — Os outros logo vêm atrás de
mim.
Como que para confirmar estas palavras, alguns vultos confusos desenharam-se em
meio ao véus de areia. Landis teve vontade de gritar de tão aliviado que se sentia.
— O que houve? — perguntou. — Deu tudo certo, Sir?
Teve de esperar algum tempo, até que o comandante respondesse.
— Napoleão é um deformador de moléculas. Estamos nas mãos dele. Seu objetivo é
a México.
Landis, que também se encontrara a bordo da nave girino cuja tripulação ficou
sujeita à influência de Mataal, percebeu que sua alegria transformou-se de repente em
preocupação.
— O que vamos fazer? — perguntou em voz baixa.
Antes que o coronel a pronunciasse, ficou conhecendo a resposta. Não tinham a
menor chance face àquela criatura. Quando da luta contra Mataal, a sorte e o acaso
vieram em seu auxílio. A sorte é muito rara e dificilmente se repete. O operador de rádio
bem que gostaria de acreditar que conseguiriam vencer todos os perigos. Mas a realidade
mostrava-lhe outra coisa: haviam chegado ao fim.
Em meio à fúria dos elementos, o astronauta deu-se conta de que qualquer esperança
era mera quimera.
8
Os sinais de chamada cessaram. Há três horas ainda haviam soado ligeiramente por
algumas vezes, mas acabaram silenciando de vez. Walt Scoobey gostaria de saber se as
nuvens que apareciam no horizonte tinham alguma coisa a ver com o incidente. Sem
dúvida, tratava-se de véus de pó tangidos para o alto por uma tempestade. Ao que parecia
a tormenta se descarregava no lugar em que ficava o destino do seu grupo. O primeiro-
oficial tentou em vão convencer-se de que nada acontecera com a expedição.
Esperava que, dentro de duas horas, conseguissem chegar ao lugar onde estava
Landis. Restava saber se ainda conseguiriam encontrar os homens. Walt Scoobey não se
atreveria a responder a esta pergunta.
Avançavam rapidamente. O estranho ataque sofrido por Murgut havia cessado. O
nativo acreditou que isso tivesse acontecido por causa de uma injeção aplicada pelo Dr.
Lewellyn. A essa hora estava totalmente convencido de que as armas de seus amigos
eram mais poderosas que todos os espíritos do deserto. Vivia a lançar olhares de
veneração para o canhão de radiações, que estava sendo transportado pelos robôs.
Nenhum envoltório de nave espacial que não fosse protegido por campos
energéticos seria capaz de resistir a esse canhão. Scoobey perguntou a si mesmo se nos
espíritos e nos demônios seus efeitos seriam tão fulminantes como costumavam ser na
matéria sólida.
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