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CADERNOS

CONIB
Publicação da Confederação Israelita do Brasil Nº 3  •  Novembro de 2015

O debate sobre a qualidade da


educação no Brasil: artigos e
ensaios de especialistas que
apontam os desafios do setor
para o início do século 21
Gisela Wajskop, Sonia Kramer,
José Ernesto Beni Bologna, Roseli
Fischmann, Mônica Timm de Carvalho
e Lilian Starobinas

Judaísmo e educação:
diferentes visões sobre
os possíveis caminhos
comunitários
Alberto Milkewitz, Claudia Malbergier
Caon, Rabino Samy Pinto, Rabino
Ruben Sternschein, Silvio Hotimsky

Uma homenagem a ícones da


educação no Brasil: os perfis de
Anísio Teixeira e Paulo Freire
Renato Modernell e Jayme Brener
CADERNOS

CONIB
Nº 3  •  Novembro de 2015

Representante da Comunidade Judaica Brasileira


www.conib.org.br

Cadernos Conib   1
CONFEDERAÇÃO ISRAELITA DO BRASIL – CONIB – GESTÃO 2014-2017
Representante da Comunidade Judaica Brasileira
www.conib.org.br

Fernando Lottenberg Boris Ber


Presidente Diretor
Gilberto Meiches Daniel Matone
Vice-Presidente Diretor
Paulo Maltz Julio Serson
Vice-Presidente Diretor
Eduardo Wurzmann Milton Seligman
Secretário-Geral Diretor
Rony Vainzof Ruth Goldberg
Secretário Diretora
Paulo Gartner Sérgio Malbergier
Tesoureiro Diretor de Comunicação
Itche Vasserman
Tesoureiro Diretor de Relações Institucionais
Sérgio Napchan
Octavio Aronis
Diretor de Segurança Institucional Diretora-Executiva
Karen Didio Sasson
Mario Arthur Adler
Diretor Gerente de Comunicação
Ricardo Besen

Cadernos Conib
nº 3  •  Novembro de 2015

Edição Colaboraram neste número:


Jacques Schop Gisela Wajskop, Lúcia Mara
Íntegra Editorial & Soluções Mandel, Sônia Kramer, José
Ernesto Beni Bologna, Mônica
Editoração eletrônica Timm de Carvalho, Renato
Carlos A. Andreotti Modernell, Roseli Fischmann,
Osmar F. Santos Lilian Starobinas, Jayme Brener,
Hide Butkeraitis Alberto Milkewitz, Claudia
LCT Informática Editorial Malbergier Caon, Rabino Samy
Pinto, Rabino Ruben Sternschein,
Revisão de texto Sílvio Hotimsky
Ricardo Besen Imagens: DPhotoClub
Capa: Biblioteca George Peabody,
Baltmore - Maryland (EUA)

2  Cadernos Conib
Apresentação

Fernando Lottenberg e Eduardo Wurzmann

Fernando Lottenberg
advogado,
é presidente da Conib
Eduardo Wurzmann
economista,
é secretário-geral
da Conib

A
educação é a base do judaísmo, nosso pilar mais pro-
fundo e resistente. Os judeus continuam a existir atual-
mente, professando a mesma fé nos quatro cantos do
mundo e vivendo de forma independente e próspera em Israel,
principalmente em razão da educação judaica, transmitida de
geração em geração, ao longo de muitos séculos.
Por isso, somos considerados o Povo do Livro.
A Conib entende que a educação judaica é um tema fun-
damental – tanto para o fortalecimento de nossa comunida-
de como para a garantia de nosso futuro.
Não são poucos os desafios da vida judaica na diáspo-
ra. Sempre foi assim. Se no passado o antissemitismo era a
maior ameaça aos judeus ao redor do mundo, hoje, na diás-
pora, a assimilação aparece como outro grande desafio a ser
enfrentado.
E não há arma melhor do que a educação judaica para
transmitir nossa cultura e nossos valores.

Cadernos Conib   3
Foi com esse entendimento que a Os Cadernos Conib, dessa forma,
Conib realizou, em março deste ano, procuram mostrar não apenas a con-
o primeiro Encontro Nacional das tribuição dos judeus aos debates e aos
Escolas Judaicas, reunindo todos os temas centrais da sociedade brasilei-
gestores e líderes das escolas judaicas ra, como igualmente a diversidade de
brasileiras para debater o presente e opiniões e o espírito democrático da
o futuro da educação judaica. O im- comunidade judaica.
pacto da iniciativa – em nós da Conib Estão reunidos neste volume tex-
e nos participantes – foi muito forte, tos que falam da história da educa-
o que nos deu confiança de que este é ção judaica e de outros aspectos da
o caminho a ser seguido. educação em geral. Temas como: sus-
Foi criado um fórum permanente, tentabilidade, os principais desafios
unindo gestores e educadores, com o atuais, a gestão escolar eficiente e os
intuito de compartilhar melhores prá- novos paradigmas, formação e capa-
ticas e descobrir melhores soluções. citação de docentes, tecnologias digi-
Outro encontro já está sendo prepa- tais, educação pública, vínculo, diálo-
rado para 2016. go e presença, os temas transversais
E foi sob esse impacto que esco- na educação e o perfil de dois grandes
lhemos a educação como tema des- educadores brasileiros: Anísio Teixei-
te caderno. O primeiro número dos ra e Paulo Freire.
Cadernos CONIB teve como desta- Esperamos que gostem da leitura
que a questão ecológica, com depoi- e que o conhecimento aqui difundido
mentos relevantes no movimento sirva para fortalecer ainda mais a base
ambientalista e do desenvolvimen- mais firme de nossa comunidade, a
to da Amazônia; já o segundo núme- educação. Como diz o rabino Jonathan
ro destacou a contribuição judaica à Sacks, “Para defender um país, é pre-
construção da democracia no Brasil ciso um exército. Mas, para defender
nas últimas décadas. uma civilização, é preciso educação.”
Boa leitura!

4  Cadernos Conib
SUMÁRIO

7 Formação e Capacitação
Docente: o (sonhado) impacto 51 A educação num mundo
mediado pelas tecnologias
na melhoria da qualidade da digitais: potenciais e desafios
educação Lilian Starobinas
Gisela Wajskop

61 “Caminhante, não há
15 Novos desafios da educação
pública
caminho. O caminho se faz
ao caminhar”
Lúcia Mara Mandel Jayme Brener*

21 Vínculo, diálogo e presença:


Martin Buber e a formação 65 A sustentabilidade econômica
das escolas judaicas na lógica
de adultos e crianças em competitiva do mercado
creches, pré-escolas e Alberto Milkewitz
escolas
Sonia Kramer

73 Educação judaica como


dádiva
27 Gestão escolar eficiente:
possíveis paradigmas para
Claudia Malbergier Caon

este início de século


José Ernesto Bologna
79 Qual a importância da
educação judaica?
Rabino Samy Pinto

33 Pela relevância de nossas


escolas
Mônica Timm de Carvalho
83 Quem, a quem, o que, como,
onde, quando e por que se
educa
39 De Caetité ao Rio,
vocacionado para a
Rabino Ruben Sternschein

educação
Renato Modernell
89 Desafios atuais da educação
secular judaica
Sílvio Hotimsky

45 A importância dos temas


transversais e o debate sobre
a Base Comum Nacional
Roseli Fischmann
6  Cadernos Conib
Formação e Capacitação
Docente: o (sonhado)
impacto na melhoria da
qualidade da educação

Gisela Wajskop

Gisela Wajskop
Consultora em
educação, pesquisadora
associada do Núcleo
de Pesquisas e
Desenvolvimento
Profissional Docente
“Aprender a ensinar não é apenas praticar, sem mais. [...] a – Formep/PUC-
aprendizagem de qualquer habilidade começa como prática SP e pesquisadora
corporal da qual é possível obter conhecimento apenas quan- colaboradora do Now
do ela ocorre centrada na imaginação e não na mecânica da Play Project – OISE/
University of Toronto
ação. A compreensão sobre o fazer [...] se desenvolve por
meio da imaginação e atinge seu grau máximo quando a lin-
guagem exprime de modo criativo como fazer algo.”
Alliaud, 2010, p. 154

A
s duas últimas décadas vêm testemunhando enormes
investimentos em reformas educacionais no Brasil,
de maneira a fazer frente aos desafios das sociedades
atuais. Nestes últimos anos, a maioria das crianças, jovens e
adultos brasileiros foi gradativamente saindo da invisibilidade
e adquirindo direitos democráticos importantes, principalmente
quanto ao acesso e frequência escolar. Quase 100% das crianças
estão no ensino básico, e o número de egressos do ensino médio
aumentou enormemente.
Também houve um afluxo ao ensino superior nunca antes
visto no país, bastante estimulado por políticas afirmativas e
inclusivas. Entre 1996, ano da promulgação da Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996) e 2008,
houve crescimento na ordem de 185% do número de ma-
trículas neste nível de ensino, impulsionado pela ampliação
significativa do ensino superior privado.

Cadernos Conib   7
Apesar de várias tentativas do nais e pelos professores brasileiros em
governo brasileiro em valorizar os várias partes do país, tanto nas redes
professores nos últimos anos, espe- privadas quanto nas públicas. Como
cialmente por meio da lei do Piso Sa- resultado, a carreira é pouco atrativa
larial Nacional e da Política Nacional e os vestibulandos, candidatos à do-
de Formação de Professores do En- cência, são, em sua maioria, aqueles
sino Básico, a situação atual ainda é cujos resultados acadêmicos no en-
muito crítica (Gatti e Barreto, 2009). sino médio não estão entre os me-
Essa realidade é permeada por ten- lhores, demonstrando, também, bai-
sões e falta de consenso nacional xa autoestima para a aprendizagem
tanto no âmbito acadêmico como (Gatti e Barreto, 2009).
no político-institucional (Aguiar et Estudos internacionais apontam
al., 2006; Pisanechi, 2010). Há mui- que só programas de formação de
to debate ideológico (e por que não qualidade e organicamente associa-
dizer embates políticos?)1, mas pou- dos com as escolas básicas e seus de-
cos programas de qualidade que so- safios reais, advindos da territoriali-
brevivem às constantes mudanças dade e culturas locais, são capazes
governamentais. de impactar o desenvolvimento efi-
Neste período, diversas políticas caz dos seus professores (Darling-
foram elaboradas para a formação -Hammond, 2006).
de professores em IES2, destacando-
-se a diferenciação e diversificação da Pesquisas recentes mostram
educação superior pública e privada, que a maioria dos programas
a expansão do ensino semipresencial de formação docentes no
e à distância, novos programas desti- Brasil não desenvolvem as
nados à formação inicial e continua- habilidades profissionais
da, a criação de diretrizes curricula- necessárias para a
res nacionais mandatórias (Brasil, inclusão sistematizada das
2006), modificações nas políticas de novas gerações na cultura
financiamento, etc. Essas políticas e
programas muitas vezes, porém, não
se preocuparam em garantir a orga- No Brasil, porém, pesquisas recen-
nicidade intrínseca das IES, mate- tes mostram que a maioria dos pro-
rializando-se, em muitos casos, em gramas de formação docente, prin-
ações assinaladas por superposição cipalmente dos cursos de Pedagogia
e em políticas emergenciais que defi- e Licenciatura, não desenvolvem as
nem uma cultura precária, particular habilidades profissionais necessárias
da formação e profissionalização do- para a inclusão sistematizada das no-
cente em nosso país (Barreto, 2015). vas gerações na cultura. Mesmo bons
Apesar de algumas boas iniciati- programas de formação, enfrentam
vas, baixos salários, más condições dificuldades em transformar as dire-
de trabalho, desvalorização social e trizes oficiais em currículos interes-
formação inicial de baixa qualidade santes, criativos e articulados com
estão entre os vários desafios enfren- a escola básica. Com raríssimas ex-
tados, hoje, pelos sistemas educacio- ceções, a qualidade da formação da

8  Cadernos Conib
maioria dos programas depende da põem aprendizagens condicionadas a
militância e do trabalho individual avaliações, metas e resultados. Nessa
de professores universitários, não se direção, é interessante constatar um
constituindo, per si, como bons mo- novo discurso de atratividade da car-
delos de formação. reira que, sem propor melhorias reais
A esse círculo vicioso acrescenta- nas condições objetivas de trabalho –
-se a tendência centralista de nossas bons salários iniciais, por exemplo –
legislações e políticas de ensino, que visam atrair ‘melhores’ alunos para a
não respeitam sequer o princípio fe- profissão. Vale lembrar que o concei-
derativo nacional. Não há currículo to de melhores, aí, está também as-
nacional mandatório para o ensino sociado à origem social diferenciada!
básico (ainda que discussão sobre a
Base Comum Nacional esteja em cur- Entre uma escola básica
so) e, contraditoriamente, as faculda- disciplinadora e moralizante,
des de educação sofrem regulação ex- e uma universidade retórica e
cessiva, para não citar as exigências ilustrada, ficam os professores
altamente burocratizadas pouco en- isolados em suas questões
contradas em países nos quais a es- e desafios colocados pelo
colaridade e a qualidade educacional cotidiano escolar
da população é alta.
Entre uma escola básica disci-
plinadora e moralizante (com exce- Fato é que os aprendizes de docen-
ções, é claro!) e uma universidade te não construíram adequadamente
retórica e ilustrada (com exceções, as ferramentas associadas à lingua-
é claro!), ficam os professores, sozi- gem verbal e ao sistema da escrita,
nhos e isolados em suas questões e próprios da ciência e da cultura le-
desafios colocados pelo cotidiano es- trada, pois a eles não foram apresen-
colar. Nessa perspectiva, o país care- tados de maneira genuína e verda-
ce de um sistema educacional nacio- deira em sua escolaridade pregressa.
nal mais holístico, que induza e crie Sequer desenvolveram competências
condições mais autônomas e patro- expressivas para reivindicação de es-
cinadoras de redes de apoio para re- paços de participação coletiva, pró-
flexões, ajuda e ações recíprocas en- prios da construção de conhecimen-
tre as instituições responsáveis pela tos na sociedade atual. Mas eles estão
qualidade da educação de sua po- nos bancos escolares e os procuram
pulação, ou seja, entre as escolas, os não apenas porque foram atraídos
sistemas de ensino das secretarias de pelo mercado de trabalho, mas tam-
educação e as universidades. bém porque querem aprender um ofí-
A docência, associada aos contex- cio que, em suas experiências de vida,
tos dos cursos iniciais de formação pode representar melhoria não ape-
aligeirados, vem se transformando nas financeira, mas, principalmen-
em ocupação em nome da qual vem te, a constituição de uma identidade
ganhando força, no seio da sociedade mais fortalecida e capaz de protago-
civil e de seus governos, concepções nizar uma vida melhor para si e para
tecnicistas de ensino, que pressu- seus filhos. Vale ressaltar, ainda, que

Cadernos Conib   9
eles têm identidade individualizada pós-graduação e programas de edu-
e experiência social pouco conhecida cação continuada nos municípios, de
pela cultura letrada que, ao longo da maneira integrada, a partir de 2016.
história, restringiu-os à invisibilidade Se as condições legais parecem ter
do trabalho manual. lançado suas bases de maneira corre-
Para fazer frente ao panorama na- ta em relação às condições institucio-
cional, o Conselho Nacional da Edu- nais, muito há ainda por fazer!
cação propôs, em julho de 2015, a
Resolução nº 2, que define as Diretri- Um dos maiores desafios que
zes Curriculares Nacionais para a for- os estudantes de licenciatura
mação inicial em nível superior, nos e pedagogia colocam às
cursos de licenciatura (cursos de for- universidades do século 21
mação pedagógica para graduados parece-nos ser a construção
e cursos de segunda licenciatura) e de espaços de aprendizagem
para a formação continuada. que levem em consideração
De acordo com esse documen- seus saberes e experiências
to normativo, “a formação dos(das) como ponto de partida, e não
profissionais do magistério da educa- como falta
ção deve ser entendida na perspecti-
va social e alçada ao nível da política
pública, tratada como direito, supe- Para dar conta do recado, um dos
rando o estágio das iniciativas indivi- maiores desafios que os estudantes de
duais para aperfeiçoamento próprio, licenciatura e pedagogia colocam às
por meio da articulação entre forma- universidades no século 21 parece-
ção inicial e continuada, tendo por -nos ser a construção de espaços de
eixo estruturante uma base comum aprendizagem que levem em consi-
nacional e garantia de instituciona- deração seus saberes e experiências
lização de um projeto institucional como ponto de partida, e não como
de formação.” (p. 8) e visa contribuir falta. Além disso, uma Pedagogia de
para situar a reflexão sobre a profis- Formação que possa conceber a sala
são docente para além das clivagens de aula como comunidades de apren-
tradicionais (componente científica dizagem, associada à definição da
versus componente pedagógica, dis- docência como uma profissão, e não
ciplinas teóricas versus disciplinas como uma ocupação.
metodológicas, etc.), sugerindo no- De maneira a tornar o sonho da
vas maneiras de pensar a problemáti- formação de qualidade uma realida-
ca da formação de professores. de nacional, o discurso pedagógico e
Nessa perspectiva, com vistas a político terá de criar uma cultura da
interferir na desarticulação existen- aprendizagem de como ensinar que,
te entre a formação inicial, a educa- tal como aprender qualquer outra
ção continuada e as práticas das es- profissão, não é simples.
colas, e criar um Sistema Nacional Para a pesquisadora americana
de Formação, o recente documento Linda Darling-Hammond, em seu li-
revela clareza nas análises e sugere vro “Powerful Teacher Education”
mudanças nos cursos de graduação, (2006), aprender a ensinar envolve

10  Cadernos Conib


três desafios perenes e históricos para nem mais interessantes, investigati-
os novos professores: vos, significativos e autorais, transfor-
.. (1) aprender a ensinar requer a com- mando a experiência dos aprendizes
preensão da docência de forma diferen- de docente e, talvez, atraindo mais jo-
te de como ela foi vivida por eles pró- vens para a carreira.
prios na escola. Quando os professores
iniciam a docência, eles tendem a repro- Aprender a ser professor
duzir os comportamentos de seus pro- demanda uma reflexão e
fessores, observados ao longo de 15 ou consciência de que a sala
20 anos de suas vidas de estudantes, de aula é o resultado de uma
acreditando apenas no aspecto técnico, complexa dinâmica
comportamental e reprodutivo que ob- de negociação entre
servaram. Em sua vida pregressa de es- ensinar e aprender
tudantes, nem sempre foram visíveis as
expectativas de aprendizagens, os objeti-
vos de ensino e as questões sociais envol- Para isso, terão de estar associa-
vidas nas ações docentes, o que banaliza, dos a uma reflexão e um modelo de
de certa maneira, a profissão docente; formação baseado na ideia da do-
.. (2) aprender a ensinar é mais do que cência como prática social transfor-
‘pensar como professor’ mas também é madora, dinâmica e responsável pela
‘agir como professor’; o professor tem distribuição de conhecimentos siste-
de executar e decidir sobre várias coi- matizados no âmbito das sociedades
sas, em geral ao mesmo tempo, para midiáticas e do conhecimento, mais
dar conta das necessidades de apren- do que transformá-la em ocupação
dizagens dos alunos; eficaz condicionada a resultados.
.. (3) finalmente, aprender a ensinar Trata-se de organizar um siste-
requer dos novos professores que com- ma de formação “simultaneamente
preendam e respondam à densa e mul- crítico e reflexivo sobre a cultura e
tifacetada natureza da sala de aula, o funcionamento escolar no âmbito
administrando o malabarismo múl- da cultura universal humana” (Wa-
tiplo entre objetivos acadêmicos e so- jskop, 2006, p. 243). Em concor-
ciais resultantes dos compromissos es- dância com Perinat (2004, p.21), só
tabelecidos a cada momento e a cada dessa maneira, professores e alunos
dia. (p.35). podem tomar consciência de que
Eu acrescentaria que aprender a o conteúdo de suas aprendizagens
ser professor demanda uma reflexão está intrinsecamente mesclado com
e consciência de que a sala de aula, aqueles das práticas institucionais
como esse lócus sociocultural expli- nas quais estão imersos. Isto signifi-
citado acima, é o resultado de uma ca afirmar que, na medida em que os
complexa dinâmica de negociação sistemas de formação docente, tan-
entre ensinar e aprender. to iniciais como continuados, cons-
A consciência desses desafios, no tituírem-se de maneira harmônica
meu entender, mais do que declara- e holística em genuína articulação
ções de intenção, poderá inspirar os com as escolas e seus alunos reais,
cursos de formação para que se tor- os professores poderão se constituir

Cadernos Conib   11
profissionalmente nas negociações sor que queremos para nossos filhos.
associadas entre o que eles preci- Divulgar os resultados já analisados
sam e devem ensinar (com base em pelas pesquisas acadêmicas e cientí-
um currículo nacional acordado) e ficas, de maneira que as famílias e a
aquilo que os alunos podem e con- comunidade em geral possam com-
seguem aprender em cada sala de preendê-las e discuti-las é hoje, para
aula, em cada escola, em cada co- mim, passo essencial para que nossas
munidade e nas culturas locais es- escolas melhorem.
pecíficas (contextualizadas nas di- A criatividade, a autoria e a apren-
versidades locais). dizagem baseada na investigação é a
Parece-me, no momento atual, única saída para a formação de pro-
em que o país busca sua natureza fessores capazes de um compromis-
educadora, realizar o sonho de um so educativo e social com seu tem-
sistema de formação nacional de po e espaço histórico, para o qual as
qualidade, que de fato tenha impac- aprendizagens das crianças, dos jo-
to nas salas de aula de cada uma de vens e adolescentes sejam referências
nossas escolas, pressupõe uma va- do exercício profissional competente.
lorização da profissão docente, que Mas elas precisam, mais do que do
esteja ancorada em ampla discussão discurso político, do apoio da socieda-
sobre a escola, o ensino e o profes- de civil para que se tornem realidade!

Notas
1 O presente artigo, coincidentemente, apenas cinco anos. Com isso, a possibili-
estava sendo redigido na semana na qual dade de estabilização de políticas de qua-
houve substituição do Ministro da Edu- lidade cai, mais uma vez, por terra, com
cação, o Professor Universitário Renato graves consequências para a valorização
Janine Ribeiro, para acomodar interesses da educação e da docência no país.
de natureza explicitamente políticas, to-
talizando seis mudanças ministeriais em 2 Instituições de Ensino Superior

12  Cadernos Conib


Referências Bibliográficas (cursos de licenciatura, cursos de forma-
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para a formação inicial em nível superior 9 de fevereiro de 2007. Mimeo (2006, Oct.).

Cadernos Conib   13
14  Cadernos Conib
Novos desafios
da educação pública

Lúcia Mara Mandel

Lúcia Mara Mandel


doutora em Sociologia
da Educação
(Faculdade de Educação
USP) e técnica em
Gestão em Educação
Pública (Secretaria de
Educação do estado de
São Paulo)

V
irou senso comum considerar que a nossa educação pú-
blica vai mal, muito mal. E, assim como em relação à se-
leção brasileira de futebol, todo mundo tem sua opinião
sobre o que deveria ser feito para melhorá-la. As opiniões con-
vergem, contudo, para um tempo mítico que remonta à infância
de nossos pais, em que a escola pública tinha bons professores,
bem remunerados, bem formados e com autoridade para repro-
var os alunos que não aprendiam. Esta escola ensinava francês e
latim e punia exemplarmente o mau comportamento ou a falta
de aprendizagem. A fórmula para resgatar estas qualidades se-
ria, portanto, restaurar a autoridade do professor, ensinar bons
modos a nossos alunos e reprová-los quando não apresentam
desempenho satisfatório.
Mas alguns especialistas, notadamente aqueles que gos-
tam dos números, insistem em nos alertar que esta escola ex-
traordinária atendia, ainda na década de 60, apenas 33% da
população em idade escolar. O IBGE, em 1960, contou uma
população de 25.877.611 crianças e adolescentes de 5 a 19
anos, dos quais apenas 8.635.429 frequentavam a escola.
Quase 3/4 dos alunos estava fora da escola!

Cadernos Conib   15
Em contrapartida, de acordo também a pré-escola, compreen-
com o último censo populacional do dendo a população escolar de 4 a
IBGE, de 2010, esta população de 5 17 anos).
a 19 anos cresceu 121%, chegando Nossa educação, enquanto direi-
a 51.958.347 crianças e adolescen- to de todos e de cada um, é uma con-
tes, enquanto as matrículas 521%, quista recente, resultado do esforço
correspondendo a 51.549.889 alu- de estados e municípios em garan-
nos atendidos nas escolas, ou 99,2% tir as condições de acesso e também
desta população. Um avanço consi- de permanência de seus alunos nos
derável em termos de cobertura! bancos escolares. Os pais dos estu-
Este resultado é fruto quase que ex- dantes que agora têm acesso gratui-
clusivo da expansão da educação to à educação que o digam. Pesquisa
pública das redes municipais e es- recente do Ministério da Educação
taduais de ensino, com apoio (prin- detectou que 70% dos pais de alu-
cipalmente financeiro) do Governo nos do país inteiro estão satisfeitos
Federal. Isso porque, ao longo des- com a educação pública, especial-
tes 50 anos, a educação pública sem- mente por este direito estar garan-
pre respondeu pela maior parte das tido. Afinal, todo lugar agora tem a
matrículas – por volta de 84% – dos sua escola.
estudantes de 5 a 17 anos do país.
Para que isso fosse possível, foi Nossa educação, enquanto
preciso construir prédios escolares direito de todos e de cada
em todo território nacional, organi- um, é uma conquista recente,
zar os sistemas educacionais, provê- resultado do esforço de
-los de professores e especialistas, estados e municípios em
formar docentes nos diversos com- garantir as condições
ponentes curriculares, organizar as de acesso e também de
disciplinas, os sistemas de merenda permanência de seus alunos
e de transporte (lembrando que, se nos bancos escolares
em São Paulo o transporte escolar
é feito por vans e micro-ônibus, na
Amazônia é feito por barcos e ca- É importante ressaltar esta his-
noas), e garantir o pagamento de tória, pois ainda há quem ache que
todos os profissionais envolvidos. os governos pregressos, dos mais di-
Desta forma, o preceito estabele- versos matizes, apenas estragaram
cido em 1996 pela lei nacional que nossa educação. É lógico que uma
regulamenta a educação brasileira, expansão desta magnitude, num
a LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases país que permaneceu os outros 450
da Educação Nacional –, qual seja, anos atendendo apenas uma parce-
a escolaridade obrigatória de oito la ínfima da população, precisa ain-
anos do ensino fundamental, so- da dos ajustes que compõem os no-
mente foi alcançado em fins da dé- vos desafios para a educação pública
cada de 90. Isto é, há apenas pouco brasileira.
mais de vinte anos (a partir de 2013, O primeiro deles diz respeito à
a escolaridade obrigatória abrange distribuição de obrigações entre os

16  Cadernos Conib


entes da Federação. A constituição Por outro lado, a lei estabelece
de 1988 reconheceu, pela primeira também a autonomia pedagógica
vez, os municípios como entes fede- para as escolas e para os sistemas de
rativos, ao lado dos estados, Distrito ensino, o que impede, até o momen-
Federal e União. A LDBEN, por sua to, o estabelecimento de um currí-
vez, distribuiu as responsabilidades culo mínimo e obrigatório comum.
pela oferta de educação pública entre Portanto, um primeiro desafio que
eles, estruturando a educação brasi- se coloca, nesse sentido, é a garantia
leira conforme o quadro abaixo. da trajetória escolar contínua do alu-
A lei delegou aos municípios o no ao longo dos níveis de ensino, de
atendimento prioritário de educação modo que a aprendizagem seja um
infantil e, compartilhado com os es- processo acumulativo e progressiva-
tados, o de ensino fundamental. Res- mente ampliado. Isso implica estra-
ponsabilizou os estados pelo atendi- tégias integradoras entre as séries,
mento prioritário do ensino médio entre as escolas e entre os sistemas
e incumbiu o Governo Federal pela de ensino.
oferta de ensino superior. Um segundo desafio é estimular
Cada estado da federação se or- uma escola incorporada a seu meio,
ganizou de uma maneira própria na tratando de assuntos locais e da co-
oferta de educação pública: nos esta- munidade que atende, de acordo com
dos do Norte e Nordeste, por exem- as referências sociais e culturais de sua
plo, os municípios respondem majori- localidade e, ao mesmo tempo, possi-
tariamente pelo ensino fundamental bilitar aos alunos o contato com a cul-
e os estados pelo ensino médio. No tura e a civilização, incluindo as novi-
Sul, a oferta de ensino fundamen- dades tecnológicas e avanços na área
tal é repartida entre estado e muni- científica. Isso implica discutir profun-
cípios. Em São Paulo, os municípios da e abertamente a questão da defini-
assumiram a maior parte das matrí- ção do currículo nas escolas. Afinal, a
culas das primeiras séries do ensino escola que atendia em 1960 apenas
fundamental, compartilhando com o 33% da população escolar era uma es-
estado as das ultimas séries. Aqui, o cola que orientava seu ensino aos va-
ensino médio é basicamente ofereci- lores das camadas atendidas. Como
do pelo estado. sociedade sabidamente desigual e re-

Estrutura do sistema educacional após a lei nº 9.394

NÍVEIS E SUBDIVISÕES DURAÇÃO FAIXA ETÁRIA

Creche 4 anos De 0 a 3 anos


Educação infantil
Pré-escola 2 anos De 4 a 5 anos
EDUCAÇÃO BÁSICA
Ensino fundamental 9 anos De 6 a 14 anos

Ensino médio 3 anos De 15 a 17 anos

EDUCAÇÃO SUPERIOR Cursos por área Variável Acima de 17 anos

Cadernos Conib   17
gionalmente muito diferenciada que Em primeiro lugar, porque a for-
somos, faz-se necessário repensar o mação de nossos especialistas privi-
currículo e os valores sobre os quais se legia o conteúdo, mas negligencia a
apoia, agora que as redes públicas de prática. A experiência de outros sis-
ensino acolhem toda a população es- temas de ensino indica que o equilí-
colar em seus mais variados matizes. brio entre a teoria e a prática, com
Não apenas o currículo que defi- maior número de horas para efeti-
ne as disciplinas a serem ministradas vo treino em sala de aula, ou em ou-
deve ser pensado, como também aque- tras funções na escola, sob a tutoria
las atividades importantes para desen- do professor regente da classe ou dos
volvimento integral do indivíduo. Os especialistas, é um fator significativo
estudantes das camadas mais abasta- de sucesso da aprendizagem.
das da população participam de ati-
vidades fora da escola, custeadas por A formação dos profissionais
suas famílias, nas áreas de esportes, da educação: professores,
música, dança e línguas estrangeiras, coordenadores, orientadores
entre outros. Contam com profissio- educacionais, diretores,
nais para ajudá-los em suas dificulda- supervisores e gestores da
des psicológicas, motoras, orgânicas educação é o maior desafio
ou pedagógicas. Da mesma forma, é para a escola pública
preciso ampliar e garantir o acesso a
este tipo de atividade e suporte a to-
dos os estudantes, independente de Para que isso seja possível, é pre-
sua condição de origem. Esta não é ciso, em segundo lugar, integrar as
uma tarefa só da escola. Mas, por se ações dos dois níveis de ensino, o
tratar do único equipamento público superior e a educação básica, através
que efetivamente está disseminado da promoção do diálogo entre seus
por todos os lugares, a ela muitas ve- currículos e as atividades desenvol-
zes é atribuída esta responsabilidade. vidas. Uma vez que a formação em
O terceiro desafio que se colo- nível superior é competência do Go-
ca, nesse sentido, é a integração da verno Federal (embora não seja raro
escola com as demais áreas sociais, estados e municípios oferecerem, em
de modo a ampliar a garantia do de- pequena escala, suas próprias univer-
senvolvimento pleno e ampliado de sidades ou institutos de ensino supe-
nossas crianças e adolescentes. To- rior), este diálogo se estende para ins-
das estas possibilidades exigem gen- tâncias diferentes de governo.
te capacitada e preparada para de- A premissa aqui considerada é que
senvolvê-las. as escolas possam apresentar aos ins-
O quarto desafio, portanto, é a titutos superiores de sua região suas
formação dos profissionais da edu- demandas, articulando propostas de
cação: professores, coordenadores, formação inicial e mesmo formação
orientadores educacionais, direto- continuada que supram carências
res, supervisores e gestores da edu- curriculares locais.
cação. Este é o nosso maior desafio Nesse sentido, as instâncias diver-
para a escola pública. sas responsáveis pelos dois níveis de

18  Cadernos Conib


ensino devem trabalhar como articu- de ensino superior e, os que se formam
ladoras do processo, uma vez que a professores, voltam para atuar na esco-
maior parte dos professores e espe- la básica das redes privadas.
cialistas que atualmente atuam nas Este é um círculo vicioso bastante
escolas públicas da educação básica conhecido na educação pública, que
é formada em instituições privadas nos conduz ao desafio de construir
de ensino superior. estratégias e ações nas instituições
Nos últimos 50 anos, o volume de públicas de ensino superior para que
matrículas no ensino superior apre- contribuam de forma mais significati-
sentou um crescimento de mais de va para a educação básica, como for-
7.800%, passando de 95.691 estu- ma de retorno social ao investimento
dantes para 7.526.681, em 2010. Este público nelas efetuado.
crescimento se deveu, principalmen- Pois, assim como na educação bá-
te, à expansão das redes privadas, sica não basta colocar todos os alu-
que respondiam por 44% das matrí- nos na escola, na superior isso tam-
culas deste nível de ensino em 1960 bém não é suficiente. É preciso pensar
e, em 2013, ofereciam 74,2% das ma- com calma e profundidade o que fa-
trículas. O quadro abaixo apresenta zer com estes estudantes dentro das
a proporção das matrículas públicas escolas e faculdades. Como edu-
na educação básica e no ensino supe- car nossas crianças e jovens implica
rior, de acordo com os censos escola- o compromisso de prepará-los para
res de 2013. conduzir o futuro do país, inserindo-
Esta distribuição revela uma movi- -os no mercado produtivo, na vida
mentação cruzada dos estudantes. A política e na dinâmica social.
maioria dos que cursam a escola públi- Para isso, é preciso, antes de tudo
ca na educação básica se forma nas ins- e urgentemente, negociarmos e dese-
tituições superiores da rede privada. nharmos um projeto de país. Definir
Os professores originários destas ins- que país queremos é o primeiro gran-
tituições retornam para atuar na esco- de desafio para construção de toda a
la pública. Ao contrário, os estudantes educação que servirá a este projeto.
das escolas privadas na educação bási- Sem uma concepção negociada, de-
ca frequentam as instituições públicas mocraticamente discutida e ampla-

Distribuição das matrículas no ensino superior no Brasil


por nível e rede de ensino – 2013

REDE DE ENSINO
NÍVEL DE ENSINO
PÚBLICA % PRIVADA % TOTAL %

EDUCAÇÃO BÁSICA 24.694.440 85% 4.374.841 15% 29.069.281 100%

ENSINO SUPERIOR 2.105.042 28% 5.421.639 72% 7.526.681 100%

TOTAL 26.799.482 73% 9.796.480 27% 36.595.962 100%

FONTE: Censo Escolar e Censo da Educação Superior – INEP/2013

Cadernos Conib   19
mente aceita de país, que garanta o Arendt, “a educação é o ponto em que
acolhimento e o pertencimento de decidimos se amamos o mundo o bas-
todo e qualquer cidadão, a educação tante para assumirmos a responsabi-
pública se transforma em uma série lidade por ele e, com tal gesto, salvá-
acumulada de medidas desconexas, -lo da ruína que seria inevitável não
sem um sentido de futuro. Um proje- fosse a renovação e a vinda dos novos
to de país coloca a educação em um e dos jovens. A educação é também,
lugar de destaque, promovendo sua onde decidimos se amamos nossas
valorização, dos profissionais que crianças o bastante para não expulsá-
nela atuam, dos processos de ensino -las de nosso mundo e abandoná-las
e de aprendizagem, e das unidades a seus próprios recursos, e tampouco
onde se desenvolve. arrancar de suas mãos a oportunida-
Temos muito futuro a construir em de de empreender alguma coisa nova
relação a esta educação ainda muito e imprevista para nós, preparando-as
recente. Nossos desafios acolhem mui- em vez disso com antecedência para a
tas possibilidades. Como diria Hannah tarefa de renovar o mundo comum”.

20  Cadernos Conib


Vínculo, diálogo e presença:
Martin Buber e a formação
de adultos e crianças
em creches, pré-escolas
e escolas

Sonia Kramer

Sonia Kramer
Professora do
Departamento de

N
o Brasil, a educação infantil foi conquistada como di- Educação da PUC-Rio

reito pela Constituinte de 1988, assegurada por lei


em 1996; desde 2013, a escola é obrigatória dos 4
aos 17 anos. O ensino fundamental foi universalizado nos úl-
timos 20 anos. Ampliou-se a oferta, mas escolas públicas, pri-
vadas e comunitárias enfrentam o desafio de garantir a qua-
lidade das práticas e interações nas instituições da educação
infantil e ensino fundamental.
Este texto focaliza, com base em Buber, a formação de
adultos que atuam com crianças em creches, pré-escolas e
escolas e comenta sutilezas e urgências da prática, quando
concebemos adultos e crianças como pessoas, sujeitos que
têm direitos, produzem cultura e são nela produzidos. A edu-
cação é entendida como processo de transmissão e criação.
A criança aprende, brinca e, na brincadeira – experiência de
cultura – revela outra maneira de enxergar o real; refaz a his-
tória (Benjamin, 1987).
O primeiro item trata do conhecimento do outro e de
como esse processo implica construir vínculos. O segundo
discute o diálogo e ressalta a necessidade da presença, para
que seja superada a invisibilidade da criança, ainda frequen-
te. O terceiro item destaca a resposta responsável, papel que
deve ser assumido pelos adultos nos mais diversos contex-
tos institucionais e culturais. Ao final, a formação é colocada
no centro da cena ,com a defesa de que favoreça interações
com a produção cultural, em especial a língua, a literatura e
a música, para que seja, no dizer de Benjamin (1987), esta-
belecida uma relação crítica com a tradição.

Cadernos Conib   21
Conhecimento e vínculo distintiva não é a razão, mas nossa ca-
A pluralidade marca todas as ins- pacidade de relação.
tituições, também as que lidam com Devemos garantir que o reconhe-
conhecimentos culturais específicos, cimento de diferenças ocupe o lugar
como as escolas judaicas. Há conheci- da indiferença. O maior desafio é ob-
mentos comuns e diversos, uma tradi- ter o entendimento, com uma edu-
ção a ser preservada e compreendida cação fundada no conhecimento do
criticamente. Judaísmo como cultu- mundo e no reconhecimento do ou-
ra ou religião (ortodoxa, conservado- tro. Garantir educação de qualidade
ra ou reformista); posições políticas e nas interações, práticas e modos de
ideológicas diversas: os objetivos para gestão significa assegurar respeito,
a educação das gerações mais novas aceitação do outro e da pluralidade
são definidos de acordo com vínculos, racial, étnica, cultural, de língua, reli-
posições e intenções educativas dos giosa, política, de gênero, orientação
vários grupos. O respeito a esta plu- sexual, característica física, classe so-
ralidade que nos singulariza como se- cial, contra qualquer tipo de discrimi-
res humanos e como judeus é uma das nação, preconceito ou humilhação.
belezas da educação e pode ser con- Os textos sagrados, comentários
quistado. Nesse sentido, temos muito rabínicos, na vasta produção teoló-
a escutar de Martin Buber. gica, filosófica, histórica e sociológi-
Observar, contemplar, tomar co- ca, nos ajudam muito, como também
nhecimento íntimo: esses são, para práticas de educação que construam
Buber (2009), os modos de perce- comunidade (BUBER, 2012), com
ber. O observador tem intenção; o acesso à nossa rica produção cultural,
contemplador nada anota nem impõe expressa na música, na literatura e na
tarefas à memória, mas ambos têm língua – hebraico, ladino e iídiche –
o desejo de perceber. A terceira for- importantes aliados desse processo.
ma implica mais: algo é transmitido,
acolhido, aceito, recebido. Aqui não Diálogo e presença
se pode retratar ou descrever, mas de Para Buber (1974), o diálogo é
ter uma postura receptiva, ver o outro central na formação, por constituir o
não como objeto, mas a partir do co- ser humano, a relação Eu-Tu, a pre-
nhecimento profundo sobre mim ou sença. O diálogo transcende conteú-
sobre o outro. dos comunicáveis e se concretiza, de
Em processos de formação, adul- três formas: o diálogo autêntico, fala-
tos e crianças mostram receptividade do ou silencioso, expressa reciproci-
efetiva quando as palavras têm sig- dade entre os interlocutores; o diálo-
nificado entrando pela estreita ares- go técnico, o mais comum, deriva da
ta entre eu e o outro, entre nós e as necessidade de entendimento objeti-
crianças. Essa posição revela a fé no vo e informação; o monólogo disfar-
humano de Buber (1974), na huma- çado de diálogo. Reuniões ou aulas
nidade do homem e sua potência de de cursos de formação parecem ofe-
ligar, conectar, vincular-se e susten- recer espaço de diálogo, mas muitas
tar os vínculos, com alegria, expres- vezes encobrem o silêncio dos profes-
são máxima do ser humano. A marca sores e a imposição dos gestores. Diá-

22  Cadernos Conib


logos técnicos são comuns nas insti- tro “entre” o Eu e o Tu na reciproci-
tuições, em particular na escola, tão dade de uma ação vivida na sua intei-
voltada a dar informações ou comu- reza. Os sujeitos estabelecem laços,
nicar. Contudo, ainda que importan- elos, conexões, cada um se volta ao
tes (não seria possível que todos os outro, vivendo em um mesmo tempo
diálogos fossem autênticos) muitas – no presente – e em presença.
vezes os diálogos técnicos são o úni-
co tipo de diálogo existente na escola. Resposta responsável
E como ocorre o aprendizado da/ Em muitas creches, pré-escolas e
para a vida dialógica? A formação de escolas, sentimentos pouco nobres
professores exige mais do que a esfe- orientam as ações, com ameaças e
ra cognitiva; é preciso criar espaços gritos (KRAMER, 2012), o que evoca
que viabilizem a experiência dialógi- a questão do poder e da autoridade.
ca para as crianças, desde pequenas. As formas de ligação entre as pessoas
A vida dialógica é aprendizado vivi- nas instituições estão muitas vezes
do, onde importam a teoria e as práti- desumanizadas. Pesquisas sobre re-
cas. Espaços de formação contribuem lações entre adultos e entre adultos e
para a vida dialógica quando se con- crianças (Org, 2009; 2012) mostram
figuram como lugar de agir ético, de adultos com frequência ríspidos uns
conhecimento e arte. Diálogo supõe com os outros e com os pequenos;
reciprocidade e que um esteja volta- esquivam-se de dar limites, sanções,
do para o outro, com intenção de per- não assumem sua autoridade. A di-
ceber a presença do outro, vencendo ficuldade de colocar limites, agindo
a indiferença, o que constitui desafio de modo dúbio, torna as crianças e os
no mundo contemporâneo. jovens instáveis ou desconfiados. As
Estereótipos, discriminação e pre- ameaças deslocam as relações para
conceito instauram diálogos técnicos o aprendizado de desentendimento,
e monólogos disfarçados de diálogo. agressão e violência.
Desunem o que deveria ser aceito, fra- Conhecemos histórias difíceis de
gilizam relações, levam as pessoas a contar, em que algo grave foi feito,
se fechar. O diálogo se torna ilusão, mas sabemos que há possibilidade de
não contribui para o conhecimento uma relação se alterar. A formação
nem para que se formem vínculos. pode e deve constituir-se como espaço
Na relação dialógica, aquele homem de encontro, em que esteja presente
diante de mim nunca pode ser visto o diálogo, sobretudo a escuta. Diálo-
como meu objeto. Há, entre nós, re- go, vínculo, encontro e tomada de co-
ciprocidade viva. Esse movimento de nhecimento íntimo podem contribuir
perceber, aceitar e conhecer exige res- para a formação, com a valorização
ponder. Diálogo e presença implicam da necessidade de perceber o outro
responsabilidade que “só existe onde nas instituições, com responsabilida-
existe o responder verdadeiro (...) ao de. Pode, ainda, provocar um dobrar-
que nos acontece, que nos é dado ver, -se sobre si mesmo de modo que as
ouvir, sentir.” (BUBER, 2009, p. 49). práticas com crianças e jovens sejam
Buber resgata, para a esfera das repensadas. Muitas vezes, o vínculo
relações, a humanidade. Há encon- que deveria existir entre professores

Cadernos Conib   23
e crianças ou jovens está ausente. Não gência, deboche ou humilhações são
há o encontro; a relação Eu-Isso pre- essenciais. Não raro nos deparamos
domina sobre a relação Eu-Tu (BU- com modos de agir dos adultos que
BER, 1974), e aqui reside um dos mais revelam omissão a pedidos de ajuda
graves riscos da formação: a de conso- implícitos ou explícitos, atos de injus-
lidar práticas em que a dimensão hu- tiça que fazem sofrer crianças ou jo-
mana vai ou foi se perdendo. É preciso vens. (KRAMER, org, 2009). Há oca-
mudar. Processos de formação podem siões em que cabem denúncias, o que
gerar mudanças? exige cuidado para não expor crian-
ças e jovens a riscos e protegê-los em
Formação todas e sob quaisquer circunstâncias.
A formação humana em todos os
níveis, grupos ou idades precisa ser Os adultos devem mobilizar
plural, dialógica e autoral. Os adultos experiências, prática, saberes,
devem mobilizar experiências, práti- conhecimentos, afetos e
ca, saberes, conhecimentos, afetos e valores para transmitir, mudar,
valores para transmitir, mudar, pro- promover conhecimento do
mover conhecimento do mundo e re- mundo e reconhecimento do
conhecimento do outro, desafio mais outro, desafio mais delicado e
delicado e relevante do ato educativo. relevante do ato educativo
Garantir que professores, gestores,
funcionários, pais, crianças, jovens e
adultos, em creches, pré-escolas e es- Ora, no trabalho de educação es-
colas, tenham acesso à ciência e à cul- tamos sempre implicados: entender o
tura implica assumir que pessoas de di- outro como prioridade se une ao meu
ferentes tempos e lugares participaram dever em relação ao outro e ao dever
da produção de conhecimento. Nossa do outro com relação a todos. Se o ou-
responsabilidade é maior, porque os tro é prioridade, devo escutá-lo, olhá-
conhecimentos estão marcados por -lo no rosto. Os gestos e o modo de fa-
muitas vozes que produziram histori- lar são também uma resposta. Buber
camente os textos falados e escritos. distingue responsabilidade e respon-
A perspectiva autoral se coloca como sividade: não é apenas se sentir res-
diálogo com outras gerações. Com- ponsável, mas o que faço, a resposta
preender assim a formação é perceber que dou ao outro, meu ato ético, práti-
que um legado de histórias compõe o co. Abertura, aceitação do outro, pre-
acervo cultural e a produção científica sença e diálogo permitem que a cos-
de que dispomos. A dimensão humana movisão penetre pela estreita aresta
deve prevalecer sobre a dimensão utili- do “entre”, fundamentais para a for-
tária, pragmática, instrumental. mação de Menschen, (pessoas dignas,
Mudanças nas práticas podem su- em iídiche). Para tanto, é preciso ha-
perar a invisibilidade das crianças, se ver Kavaná (intenção sagrada), movi-
acolhermos suas diversas expressões mento, intenção de fazer, de agir.
e ações. Cuidado, atenção, autorida- A resposta responsável parte da es-
de e cumplicidade com crianças (e cuta do outro. Planejamento, espaço,
jovens) diante de maus tratos, negli- relações cotidianas, propostas e práti-

24  Cadernos Conib


cas pedagógicas contribuem para res- Tradição, formação, brinquedos,
postas que façam sentido para creches, livros. A formação dos adultos e das
pré-escolas e escolas, para as crianças e crianças deve favorecer experiências
os adultos que com elas atuam. Educa- com o conhecimento científico e a
ção é relação que acontece na dinâmi- arte, capazes de humanizar e fazer
ca de voltar-se para o outro. A amiza- compreender o sentido da vida para
de é uma atitude de inclusão, “relação além da dimensão didática, para
dialógica, fundada na experiência con- além do cotidiano, ou vendo o coti-
creta e recíproca daquele que inclui o diano como a história ao vivo.
outro.” (Buber, 2004, p. 29). Na inclu- No trabalho de formação e nas
são, participo do mesmo acontecimen- práticas nas escolas judaicas, isso pre-
to juntamente com o outro, eu com os cisa significar experiência com a lite-
meus sentimentos, e ele com os dele. ratura (em seus diversos gêneros), as
Sem a inclusão – ato de reciprocidade músicas (em seus diversos gêneros)
– a educação não é possível. e a língua hebraica, ladina e iídiche,
O exame de algumas facetas da nosso bem precioso, tesouro tão per-
criação, da imaginação e da arte contri- to, procurado tão longe. Canções,
bui para lidar e interagir com as crian- poemas, peças teatrais, provérbios,
ças. De um lado, a produção teórica falas de sabedoria, contos, romances,
favorece a construção de um olhar esté- anedotas, relatos de vida e de traba-
tico sobre as crianças e suas interações. lho, histórias de infância, fotografias.
A sensibilidade em ver e ouvir as crian- A riqueza da nossa história, da cultura
ças se beneficia da produção cultural hebraica, iídiche e ladina, ashquenazi
artística: a literatura, o cinema, o tea- e sefaradi, – que constituem as histó-
tro, a música, as artes plásticas ajudam rias e vidas de nossas famílias e suas
os adultos (profissionais, pais, pesqui- trajetórias – fornecem material pode-
sadores) a delinear uma visão de infân- roso para que a alegria e a simplicida-
cia que leva em conta o olhar infantil. de de viver contribuam para relações
O conhecimento teórico (científico) se humanas e vínculos de presença e en-
concilia assim com a arte. contro entre adultos e crianças.

Referências Bibliográficas
BENJAMIN, W. Rua de mão única. São Paulo, KRAMER, S. Eu não estudei tanto tempo para
Brasiliense, 1987. agora me acostumar a gritar: as crianças, as
BUBER, M. Eu e Tu. Tradução, introdução e notas professoras e o currículo. In: PARAÍSO, M.;
ZUBEN, N. 2ª ed. São Paulo: Moraes, 1974. VILELA, R.A.; SALES, S. (Orgs). Desafios
BUBER, M. El camino del ser humano y otros es- contemporâneos sobre currículo e escola
critos. Salamanca: Kadmos, 2004. básica. Curitiba, CRV, 2012, p.39-51.
BUBER, M. Do diálogo e do dialógico. São Pau- KRAMER, S. Formação e Responsabilidade: Es-
lo: Perspectiva, 2009. cutando Mikhail Bakhtin e Martin Buber. In:
BUBER, M. Sobre comunidade. Campinas: Pers- KRAMER, S. NUNES, M. F.; CARVALHO, M.
pectiva, 2012. C.  (Orgs). Educação Infantil: formação e
KRAMER, S. (Org.). Retratos de um desafio: responsabilidade. Campinas, Papirus, 2013,
crianças e adultos na Educação Infantil. São p. 309-329.
Paulo: Ática, 2009.

Cadernos Conib   25
26  Cadernos Conib
Gestão escolar eficiente:
possíveis paradigmas para
este início de século

José Ernesto Beni Bologna

José Ernesto
Beni Bologna
Fundador e Diretor da
Ethos Sharewoods
Desenvolvimento
Humano e Institucional

A
busca de leis na História representa um desafio perma-
nente tanto na filosofia da Ciência quanto na filosofia
da História.
Se “a História é a ciência do fato único”, como observou
Arnold Toynbee (1889-1975), referindo-se às singularidades
de cada contexto jamais se repetirem, a primeira dificuldade
que se apresenta ao pesquisador – quando convidado a opinar
sobre as melhores práticas para uma certa época –, é defrontar-
-se com as diferenças e as semelhanças essenciais entre essa
época e aquelas que a antecederam. Só assim, o “fato único”
pode permitir a inferência de “leis gerais” e previsões confiá-
veis. Há regras para essas leis.
Tais leis, se pretendem fundamentar opiniões e previ-
sões, não devem se mostrar tão gerais que sua aplicação ao
particular se torne impossível, nem tão específicas que sua
abrangência não alcance os casos que pretende beneficiar.
Assim, comecemos contratando que aqui, agora, o nosso
interesse é a gestão escolar para a primeira metade do sé-
culo 21, herdeira da gestão escolar da segunda metade do
século 20, sujeita a todas as características de época e de
mentalidade que descrevem o ambiente contemporâneo.
Encerrando a circunscrição da escolha, ainda que algumas
afirmações sirvam globalmente, estamos falando do Brasil.

Cadernos Conib   27
Das premissas velozmente seus valores e costumes, o
Ainda que pouco praticada hoje, emprego fixo se torna empregabilida-
uma “revisão das premissas” é sempre de variável, as tecnologias se infiltram
aconselhável. Caso contrário, nesse universalmente, os líderes em geral não
emaranhado no qual as ideias, as pa- oferecem exemplos – bem ao contrário;
lavras e os atos parecem dissociar-se a .. para tentar integrar tantas variá-
serviço dos interesses das mais diver- veis, equacionando-as de forma apli-
sas e patéticas origens, nos arriscamos cável, são necessárias duas figuras
à desorientação. Para enfrentá-la, re- centrais: o Líder Educacional e o Ges-
visitemos os óbvios, em mais um ro- tor Escolar. Eu poderia, aqui, utilizar
driguiano esforço para que ululem: a expressão “Gestor Educacional”, di-
..os adultos e os velhos, ao menos al- ferenciando-a do “Gestor Escolar”, mas
guns – infelizmente não creio que a prefiro, sem confundir os papéis, fun-
maioria – continuarão convictos de que dir os conceitos ... Um Líder Empreen-
educar as crianças e os jovens é muito dedor consegue estimular as virtudes
vantajoso para o futuro dos coletivos de uma equipe, gerando um posiciona-
sociais e das existências individuais; mento claro e integrador sobre tantos
..as crianças e os jovens, ao menos al- e tão complexos assuntos, e um Gestor
guns – felizmente creio que a maioria Escolar aplica tais decisões. Ou seja:
– continuarão capazes de compreen- uma equipe integrada, com filosofia
der muito cedo que poder ser educado, própria, gerando identidade e cora-
mesmo que ocasionalmente contra os gem nas escolhas, e práticas próprias
próprios desejos, parece bem melhor aplicando tais filosofias.
do que não ser;
..a tarefa de educar é complexa, Do porque
envolvendo desde dramáticas esco- A razão para uma clara definição
lhas de natureza existencial e ética das características e valores desse
(educar envolve interferir em desti- Novo Gestor, na medida em que a de-
nos humanos sem conhecer as conse- finição matricula a intenção, é tentar
quências com precisão) até escolhas preservar o melhor do humanismo
cotidianas de natureza curricular, clássico e, ao mesmo tempo, tentar
disciplinar e prática, passando por se apropriar das melhores possibili-
atendimento a leis (sempre anacrô- dades contemporâneas, mesmo al-
nicas, na medida em que a cultura se gumas aparentemente antagônicas à
move mais rapidamente que as lentas tradição moral.
autoridades em serviço); Os novos valores, entre outros, ao
..para desempenhar tais tarefas, são redor de uma ética emergente, são:
necessários profissionais muito dife- individualidade, liberdade, erotismo,
renciados. Formar e remunerar coe- localidade e globalidade.
rentemente tais profissionais apresen- .. Individualidade, limitada pela cons-
ta-se, na prática, muito difícil a curto ciência coletiva, como escolha propos-
e médio prazos; ta e não imposta, educacionalmente
..enquanto isso, as famílias mudam oferecida, portanto;
sua arquitetura, os pais e os alunos es- .. Liberdade, limitada pelo valor da
peram mais da escola, a cultura muda delicadeza socioemocional, cons-

28  Cadernos Conib


truindo vínculos capazes de susten- de dar sustentabilidade (esse con-
tar coletivos de identidade, buscando ceito-chave) aos novos desenhos
significação capaz de justificar esfor- de família, escola, empresa e Esta-
ços e sacrifícios; do, prescindindo ou não das Igrejas
.. Erotismo, em seu sentido clássico como mediadoras. A tarefa do Gestor
geral, e não apenas sexual, limita- é situar a sua Escola nesse comple-
do pela consciência da frugalidade xo contexto, idealmente dando a ela
como saúde e preservação, seja nos identidade e voz.
hábitos de consumo, nos prazeres do A discussão, em suma, é se a Esco-
corpo e no entretenimento da men- la – e seu gestor – deseja ou não ocu-
te, seja no prazer do trabalho como par um papel histórico mais central,
construção da autonomia; e portanto mais proativo, nessa cons-
.. Localidade, como a singularidade trução, ou se pretende seguir a rebo-
percebida biograficamente com gran- que das outras macroinstituições so-
de valor, instruindo a “vantagem de ser ciais e políticas, a exemplo do que foi,
e de pertencer”, e condenando toda in- com raras exceções, o espaço e o po-
tolerância contra “aquilo que se é por der da educação até aqui: o de sim-
selo de origem”, ontologicamente ine- plesmente submeter-se, muitas vezes
gociável portanto, e não por escolha acriticamente, às demandas das ou-
própria; tras instâncias de poder, em especial
.. Globalidade, como a discussão da- a família, pelos valores (frequente-
quilo que pode, e deve, ser cultural- mente anacrônicos), e o Estado, pelas
mente universalizado, e aquilo que leis (sempre atrasadas). Incentivan-
deve ser particularizado; porque loca- do os gestores à escolha de um papel
lizado (dado o compreensível pavor dos proativo central, vejamos a importân-
violentos universais tirânicos herdados cia da consciência e do inconsciente,
do século 20); das razões e dos desejos, dos anjos e
.. Otimismo, não limitado pelo sen- dos bichos que habitam os humanos,
so de realidade (também importan- nesta brava incursão.
te) mas, ao contrário, como elemento
de esperança na construção da res- Razão e desejo
ponsabilidade individual para com a Alguns pensadores contemporâ-
qualidade dos coletivos futuros (em es- neos se referem ao que chamam “o
pecial, o novo desenho da família, da fim do Iluminismo”, defendendo o
empresa e do Estado). fato, também a meu ver precioso, de
Assim, e em síntese, utilizando a que o século 20 desconstruiu muitos
precisão possível às palavras: indivi- valores antecedentes (por excessi-
dualidade sem individualismo, liber- vamente opressivos e prepotentes,
dade sem libertinagem, erotismo sem sob o falso pretexto de fraternos
pornografia, consumo sem consumis- e universais), nos dando desde o
mo, localidade sem arrogância e glo- nosso próprio “corpo” (antes per-
balidade sem prepotência, reinventan- tencente ao Estado, para a guerra;
do uma filosofia moral, aqui tomada à família, para as moralidades; e à
como a discussão sobre as melhores Igreja, para a Salvação), até novís-
formas de administrar a vida, capaz simas, e potentes, possibilidades de

Cadernos Conib   29
interação sociocultural por meio na sua radicalidade ou timidez. Erra-
das tecnologias da comunicação. A rá o demolidor que não souber ino-
meu ver, o problema mais dramáti- var a tempo, jogando a Escola num
co que o gestor escolar atual enfren- péssimo clima para as relações, tan-
ta é que “os valores mudaram, mas to quanto errará o gradualista que se
as estruturas não mudaram”. intimidar, e mesmo se acovardar, ten-
Muitos daqueles valores não mais tando agasalhar-se na pior decisão:
existem,mas as estruturas ainda exis- de adiar as decisões.
tem, insistem, persistem e resistem. A meu ver, esse “equilíbrio essen-
Com isso, a primeira tarefa, exaus- cial”, planejado e resolvido “para
tiva, do Líder Educacional e do Gestor cada frente crítica”, é a principal ca-
Escolar integrados é, uma vez diag- racterística do Gestor Escolar que
nosticadas as necessidades de reposi- será capaz de criar o novo século. As-
cionamento da Escola no seu contex- sim sendo, vejamos as “frentes criti-
to de inserção, em seguida detectar, cas” e como ordená-las. A sequência
nas estruturas que persistem e resis- a seguir pretende-se auto-explicati-
tem, quais aquelas vigas e pilares que va em cada enunciação, daí eu dis-
mais impedem a – necessaríssima e pensar os comentários. Imaginemos
já inegociável – atualização das suas um plano, sob a gestão desse atual
práticas institucionais. gestor, integrador de um Empreen-
dimento Educacional oferecido por
Errará o gestor que não souber meio de uma Gestão Escolar, por sua
inovar a tempo, jogando a vez apoiada, e inspirada, pelo em-
Escola num péssimo clima preendimento a que serve. Os pas-
para as relações, assim como sos são:
o gestor gradualista que se ..Leitura do contexto de inserção da
intimidar ou tomar a pior Escola (toda a comunidade envolvida);
decisão: adiar decisões ..Consciência da profundidade e da
extensão das mudanças de valores cul-
turais em curso na sociedade em geral
Detectando tais estruturas resis- (grande mundo ao redor);
tentes com precisão, a tarefa é des- ..Reflexão e avaliação crítica do quan-
montá-las, optando, cada um segun- to a Escola, no seu dado contexto de in-
do sua própria condição, por uma das serção, solicita, exige, e tolera, as mu-
duas maneiras clássicas: danças necessárias e possíveis;
..Demoli-las com atos enérgicos, reno- ..Planejamento em curto e médio pra-
vando os modelos com rapidez, recrian- zo das implementações das mudanças;
do organogramas e matrizes celulares, ..Planejamento da comunicação (in-
despedindo resistências velhas e contra- terna e externa) relativa ao empreen-
tando novos aderentes convictos, ou dimento;
..Buscar uma desmontagem gradual, ..Detecção das resistências (internas
à medida em que as substituições se e externas) e planejamentos especiais
fazem apoios. de como lidar com elas. Inicialmente,
O cuidado necessário, para am- da maneira mais diplomática possível,
bos os estilos, reside, como sempre, sem que tal diplomacia impeça a ino-

30  Cadernos Conib


vação (caso a opção não tenha sido a Mas como nem tudo é luz no mun-
radicalidade inovadora, a meu ver de- do humano, equipemos o gestor com
saconselhável em principio); mais uma consciência e habilidade,
.. Avanço das inovações nos crono- essa também imprescindível.
gramas propostos, com responsáveis
nominados, apoiados pela gestão, e Do Mundo Oculto sob a Razão
apoiando-a por sua vez; Embora eu seja, e me declare, um
.. Atenção, mensuração (quantitativa entusiasta do idealismo racionalista,
e qualitativa) e comunicação (inter- no qual as ideias inspiram os discur-
na e externa) dos avanços e sucessos, e sos que inspirarão os atos, assim ali-
concomitante revisão das frustrações e nhados em pensamentos, palavras e
resistências esperáveis. obras, a serviço de propósitos que se-
Quanto às “áreas”, aqui compreen- jam éticos e amorosos; ainda que eu
didas como os ambientes, os espaços, me emocione romanticamente (tal-
as maneiras, as relações, os dilemas en- vez me iludindo infantilmente), tam-
volvidos, as coragens necessárias, cada bém sei que os humanos trazem em si
Escola, no seu autodiagnóstico e seu animais bem perigosos.
planejamento, deverá tomar suas de- Primeiro, aprendi com os psi-
cisões, e o gestor, além de organizá- canalistas, e agora reaprendo com
-las e estimulá-las, deverá também os neurocientistas, que os huma-
implementá-las. É nesse “cotidiano nos raramente sabem a relação en-
com ritmo” que o melhor gestor se re- tre o que pensam, o que dizem, o
vela um parceiro reflexivo, criativo e que fazem e o que são. Tentar ge-
crítico no planejamento agora um ati- rir humanos a serviço da educação
vo implantador do planejado. é ajudá-los a alinhar-se ao redor de
Quanto aos temas, a maioria está propósitos complexos, avançando
claríssima: a) nova sala de aula, b) gradualmente, passo a passo. Insis-
professor mediador de pesquisas e to: os humanos trazem em si ani-
não mais palestrante de conteúdos, mais sabotadores.
c) tecnologias como mediadoras, d) Parece óbvio, mas nem todos os
mais imagens apoiando textos, e) humanos sabem disso. Os que não sa-
adoção de sistemas com maior quali- bem disso são mais perigosos que os
dade visual e interativa que os mate- que sabem, porque aqueles que não
riais atuais, f) treinamento e desen- sabem constituem os violentos in-
volvimento de novos profissionais da conscientes, piores que os conscien-
educação aptos a agir transversal e tes das suas próprias violências. Des-
transdisciplinarmente, g) identida- ses, ao menos é possível, defender-se.
de clara frente aos pais, orientando- Em síntese, o humano inconsciente-
-os, mais que se submetendo às suas mente violento, seja por ardil, por
demandas, quando infantis e ama- falta de autocrítica, por comodida-
dorísticas, h) percepção da veloci- de, por cinismo, ou por falta de “ges-
dade com que o futuro se avizinha tão com feedback”, é o mais perigo-
quanto aos temas da empregabilida- so socialmente. Dizendo-se cordial,
de e das sócio-relações, entre outros coletivo e aderente à construção do
temas já evidentes. futuro, na verdade ele o sabota em

Cadernos Conib   31
causa própria. Outros vêm, ele não. perder o vínculo primário de mútua
Outros veem, ele não. confiança, e apontar quando as ações
Assim, e por isso, em tempos de não refletem as palavras, ainda que
mudanças críticas a ponto de se tor- estas se alinhem às ideias. Aprender
narem estruturais, o novo Gestor Es- a arte de orientar, buscando não opri-
colar deve, além das outras compe- mir. Mostrar à sua equipe que a prova
tências, desenvolver uma especial mais cabal de uma opinião não é dada
habilidade em lidar com a destruição com palavras, mas com atos. Mostrar
gerada pelos sofismas defensivos, que, se quisermos saber a verdadeira
com suas retóricas aparentemente opinião de alguém, não devemos ou-
incontornáveis. Felizmente, elas são vir o que diz, mas observar o que faz,
contornáveis, mas essa rara habilida- e só então relacionar com o que diz,
de é hoje imperativa como desenvol- pesando as diferenças evidentes.
vimento do gestor. O Gestor Escolar atual deve sa-
Conscientizar os humanos ao re- ber que, num contexto de perigosís-
dor quando os seus atos não se ali- sima contaminação coletiva entre as
nham às suas falas, nem se alinham falas e os atos, ele escolhe a coragem
às ideias e valores em proposição de se posicionar como guardião do
e inovação, é mais uma das tarefas alinhamento, até porque, na mais
do Gestor Escolar contemporâneo. essencial das suas essências, isso é
Aprender a dizer, sem ofender e sem a própria educação.

32  Cadernos Conib


Pela relevância
de nossas escolas

Mônica Timm de Carvalho

Mônica Timm de
Carvalho
Mestra em Gestão
Educacional
(UNISINOS),
especialista em Gestão
Empresarial (UFRGS),
graduada em Letras

N
(UFRGS), é Diretora
um contexto de significativas transformações econô- Geral do Colégio
micas, políticas, sociais e culturais, perpassadas sobre- Israelita Brasileiro, de
tudo por avanços tecnológicos, é cada vez mais com- Porto Alegre.

plexo pensar os contornos e o sentido da escola contemporânea.


Não bastasse a velocidade das mudanças, que desafia educado-
res a superarem o gap existente entre sua formação acadêmica
e as novas demandas que se lhes apresentam, é comum identi-
ficar nos ambientes educacionais um preocupante conjunto de
características (Bowman, 1990, p.9):
..falta de conscientização da equipe de gestão sobre a real si-
tuação da escola;
.. modelos mentais muito enraizados na liderança, que com-
partilha uma visão fechada e estereotipada, reinterpretando ou
ignorando informações desagradáveis que não se enquadram
em sua maneira de ver o mundo;
.. status quo, que desencoraja o pessoal a fazer perguntas desa-
fiadoras e a mudar a estratégia da instituição;
.. instituições que se posicionam com respostas reativas e incre-
mentais, em vez de apresentarem-se com um enfoque estratégico;
.. excessivo foco dos gestores nas questões do dia-a-dia, sobran-
do-lhes pouco tempo para considerar questões de maior prazo;
.. apego às glórias do passado e o decorrente receio de investir
em mudança de rota.

Cadernos Conib   33
Realidades como essas têm con- mudança, preferindo trilhar cami-
tribuído decisivamente para a per- nhos já bastante conhecidos, mes-
da de relevância da instituição esco- mo que estes levem a resultados in-
la, preocupação que foi circunscrita suficientes. As escolas muitas vezes
pela OCDE (2001), ao pesquisar e contentam-se em apenas estabelecer
identificar seis cenários possíveis definições sobre currículo, metodo-
para o futuro da educação no mun- logias, estratégias de avaliação dis-
do. Esses estudos apontaram desde a cente e logística de organização das
tendência da submissão da escola ao práticas pedagógicas, atendo-se basi-
modelo de mercado (Extrapolação) camente às suas crenças fundadoras,
até a possibilidade de sua substitui- aos procedimentos legais que norma-
ção por outros agentes sociais (De- tizam o segmento e aos fundamentos
sescolarização), em vista do êxodo epistemológicos que orientam e res-
docente. A perspectiva mais estimu- paldam o fazer institucional.
lante identificada na pesquisa foi a A essa prática de planejamento
da Reescolarização, que projeta as – sem dúvida essencial para o fun-
escolas se transformando em cen- cionamento da escola – costumam
tros sociais básicos ou em organi- somar-se tão somente definições or-
zações centradas na aprendizagem, çamentárias, sem que essas, contu-
sem lhes exigir, contudo, o transbor- do, dialoguem efetivamente com as
damento de suas funções. definições da atividade-fim e, menos
A escola contemporânea infeliz- ainda, se constituam como elementos
mente não está alinhada à realidade para o desenvolvimento de uma es-
e às demandas do século 21, como tratégia organizacional. Ficam ainda
apontou Christensen (2012): “[...] de fora do escopo do planejamento a
ainda nossas escolas se debatem e lu- análise de tendências, os estudos de
tam para melhorar. A questão é que benchmarking e a prospecção e geren-
a maioria das salas de aula é estrutu- ciamento da inovação, por exemplo.
rada para uma educação monolítica Após o surgimento de abordagens
em lotes. Portanto, os alunos, em sua mais sistêmicas de planejamento ins-
maioria, não estão aprendendo ou es- titucional, desenvolvidas prioritaria-
tão aprendendo de forma ineficiente.” mente na área da Administração, as
Notadamente, as instituições de instituições de ensino se viram impe-
ensino em geral são pouco afeitas à lidas a extrapolar suas tradicionais

Quadro 1 – Tendências para a escola do futuro

Extrapolação Reescolarização Desescolarização

Cenário 1 Cenário 3 Cenário 5


Sistemas escolares altamente Escolas com centros sociais Redes de aprendizagem e
burocratizados básicos aprendizagem em rede

Cenário 2 Cenário 4 Cenário 6


Extensão do modelo de Escolas como organizações Êxodo docente (cenário
mercado centradas na aprendizagem “Meltdown”)
Fonte: OCDE (2001)

34  Cadernos Conib


formas de planejamento e incorpo- que não apenas acompanhem o ace-
rar às suas práticas de gestão ferra- lerado ritmo da realidade, mas que
mentas mais elaboradas, tais como o também se coloquem como proposi-
Planejamento Estratégico e a gestão toras de novos significados. Cresce a
por indicadores de desempenho. Tra- demanda por levarem à frente sua
ta-se de procedimentos que se conec- identidade e sua missão por meio de
tam ao Projeto Político-Pedagógico uma sólida e diferenciada estratégia
da instituição e ao contexto socioe- e por boas práticas de gestão.
conômico e cultural em que a orga- A formação de estratégia é um desíg-
nização está inserida. nio arbitrário, uma visão intuitiva e
O fato é que a escola do século um aprendizado intuitivo; ela envolve
21 já não pode mais olhar apenas transformação e também perpetua-
para si própria ou apartar em dois ção; deve envolver cognição individual
mundos a administração e a pedago- e interação social, cooperação e con-
gia. A relevância da instituição esco- flito; ela tem que incluir análise antes
lar só é constituída hoje em dia por e programação depois, bem como ne-
meio do emprego de uma gestão in- gociação durante; e tudo isso precisa
tegrada, estratégica, em que a admi- ser em resposta àquele que pode ser
nistração de recursos financeiros e um ambiente exigente (MINTZBERG;
materiais está primeiramente a ser- AHLSTRAND; LAMPEL, 2000, p. 274).
viço da aprendizagem. Assim, para que não perca rele-
vância, é importante a escola:
O fato é que a escola do .. entender-se como um complexo sis-
século 21 já não pode mais tema, no qual convergem processos em
olhar apenas para si própria interdependência com o ambiente in-
ou apartar em dois mundos a terno e externo (LIBÂNEO; OLIVEIRA;
administração e a pedagogia TOSCHI, 2012);
.. assumir a ideia de que as pessoas,
estejam elas nos níveis estratégico,
A superação das práticas intuiti- tático ou operacional, mobilizam ou
vas de gestão é hoje um dos maiores não seus próprios interesses na conse-
desafios para as escolas. Se continua- cução de objetivos comuns (MINTZ-
rem a não perceber as interdepen- BERG, 2000);
dências de seus processos internos, .. conceber-se como uma comunidade
e destes para com o ambiente exter- de aprendizagem, onde não apenas os
no, muitas possivelmente se torna- alunos aprendem, mas toda a organi-
rão insustentáveis em pouco tempo. zação (SENGE, 2004);
Por medo de perder sua identidade .. identificar as principais chaves de
e suas práticas fundadoras, exitosas leitura da realidade em que está inse-
no passado, mas insuficientes no pre- rida a escola, visando estabelecer prá-
sente, escolas deixaram de ressigni- ticas de acompanhamento e avaliação
ficar a si próprias, tornando-se ob- que instrumentalizem e qualifiquem a
soletas e incapazes de responder às tomada de decisão (OLIVEIRA, 2007)
demandas do seu tempo. Além dis- e a implementação da estratégia.
so, a contemporaneidade exige-lhes Ainda que o conceito de estratégia

Cadernos Conib   35
não esteja tão internalizado na dinâ- mas quando as avaliações de de-
mica das escolas de educação básica, sempenho docente ou institucional
o fato é que essas organizações, a seu começam a se integrar ao universo
modo, estabelecem os meios pelos da escola, a resistência logo se apre-
quais deve se concretizar o bom fun- senta. Parece até um contrassenso
cionamento da instituição escolar. Es- que o tema avaliação, típico de am-
ses meios referem-se “ao conjunto de bientes educacionais, seja demoni-
normas, diretrizes, estrutura organi- zado por tantos educadores. Argu-
zacional, ações e procedimentos que mentos de toda a ordem – muitas
asseguram a racionalização do uso vezes não sem razão – são trazi-
dos recursos humanos, materiais, fi- dos para anular, por exemplo, prá-
nanceiros e intelectuais, assim como ticas de avaliação de performance.
a coordenação e o acompanhamen- Alguns grupos aludem ao reducio-
to do trabalho das pessoas.” (LIBÂ- nismo dos modelos; outros, à com-
NEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. petição e ao medo que avaliações
411). É por isso que a gestão assume provocam no ambiente corporativo.
caráter diferenciador para a realiza-
ção da atividade-fim: uma escola pre- Não aferir o valor e
cisa funcionar bem, para que os alu- as repercussões do
nos aprendam. trabalho escolar impede
Impacta decisivamente a qualida- o desenvolvimento da
de da educação o ato de congregar aprendizagem organizacional
pessoas na consecução de objetivos e minimiza as possibilidades
coletivos, seja através da criação con- de qualificação permanente
junta de condições propícias para o das práticas administrativo-
ensino e a aprendizagem, da promo- pedagógicas
ção de cultura organizacional apren-
dente ou da constituição de momen-
tos para reflexão e formação dos A superação dessas resistências
profissionais. Professores precisam passa pela sabedoria para lidar com
estar preparados para o exercício da indícios, para buscar o fundamen-
docência, tendo clareza de seus ob- tal no particular, para distinguir a
jetivos e dos conteúdos a serem de- sutileza decisiva do pormenor irre-
senvolvidos. Precisam de espaços de levante e pela valorização da ava-
autoria para evidenciar a capacida- liação como uma forma de acompa-
de de estruturar planos de aula e ma- nhar a implementação da estratégia
teriais didáticos de apoio, liderança de uma instituição de ensino. Mui-
para envolver os alunos no processo tos dos insucessos da educação têm
de construção do conhecimento e ri- como fator associado a falta de cons-
gor científico para acompanhar e ava- ciência sobre a qualidade do projeto
liar permanentemente as condições realizado pelas escolas. Não aferir o
de aprendizagem dos alunos. valor e as repercussões do trabalho
O tema da avaliação – importan- escolar impede o desenvolvimento
te que se diga – não pode ficar cir- da aprendizagem organizacional e
cunscrito ao universo dos alunos, minimiza as possibilidades de quali-

36  Cadernos Conib


ficação permanente das práticas ad- tégia da escola. Práticas dessa na-
ministrativo-pedagógicas. tureza geram foco, atenuando do
A competência com a qual a escola é campo de visão a “poeira de infor-
organizada e mantida (isto é, a admi- mações” que assola diariamente a
nistração e o gerenciamento da esco- organização.
la) afeta vitalmente as vidas de todos Educação é meio, não fim. Sua
que lá trabalham e aprendem. A orga- finalidade é a aprendizagem, a for-
nização e o gerenciamento deficien- mação integral dos sujeitos, sua
tes são debilitantes, constantemen- participação produtiva para o exer-
te drenando energia e motivação. Em cício pleno da cidadania. Em se tra-
contraste, uma escola que realmen- tando de escolas judaicas, a finali-
te pensou detalhadamente na sua or- dade da educação ainda envolve em
ganização, provendo e mantendo as- especial o desenvolvimento da iden-
pectos do gerenciamento, estabeleceu tidade judaica, do pertencimento
as bases para o sucesso (BRIGHOUSE; comunitário, da vida pautada por
WOODS, 2010, p. 56). valores e tradições dessa identida-
Assim, definir formas de detec- de cultural.
tar evidências sobre os atos de ges- Relevantes são as escolas que
tão é uma necessidade, posto que identificam e se comprometem com
não se gerencia aquilo que não se uma estratégia que é só sua e com
mede. Por consequência, quanto práticas de gestão que sustentem
mais bem articulados estiverem os seu posicionamento. Escolas assim
indicadores de desempenho de na- tornam-se referência, inspiração,
tureza administrativa ou pedagó- impactando decisivamente a vida
gica, melhor poderá ser descrita e dos que que têm o privilégio de de-
acompanhada a realidade e a estra- las partilhar e nelas se desenvolver.

Bibliografia
BOWMAN, C. The essence of strategic mana- LAMPEL, Joseph. Safári de estratégia: um
gement. Nova Iorque e Londres: Prentice roteiro pela selva do planejamento estraté-
Hall, 1990. gico. Porto Alegre: Bookman, 2000.
BRIGHOUSE, Tim; WOODS, David. Como fazer OLIVEIRA, Djalma de Pinho Rebouças de. Ad-
uma boa escola? Porto Alegre: ArtMed, 2010. ministração estratégica na prática: a compe-
CHRISTENSEN, Clayton M. Inovação na sala titividade para administrar o futuro das em-
de aula: como a inovação disruptiva muda presas. São Paulo: Atlas, 2007.
a forma de aprender. Porto Alegre: Book- SENGE, Peter. A quinta disciplina: caderno de
man, 2012. campo. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1995.
LIBÂNEO, J.C.; OLIVEIRA, J.F; TOSCHI, M.S. ______. Escolas que aprendem: um guia da
Educação escolar: políticas, estrutura eorga- quinta disciplina para educadores, pais e to-
nização. São Paulo: Cortez, 2012. dos que se interessam por educação. Porto
MINTZBERG, Henry; AHLSTRAND, Bruce; Alegre: Artmed, 2004.

Cadernos Conib   37
38  Cadernos Conib
De Caetité
ao Rio, vocacionado
para a educação

Renato Modernell

Renato Modernell
é jornalista
e professor
em São Paulo

D
aqui a seis anos saberemos como esta história termi-
na. Mas já sabemos como ela começa. O garoto que ti-
nha medo do escuro nasceu em 12 de julho de 1900,
em Caetité, município baiano hoje conhecido por suas minas de
urânio, ainda inexploradas no alvorecer do século 20. O sertão
profundo foi o berço de Anísio Spínola Teixeira. Se dependesse
dele, o Brasil teria sido, de fato, uma pátria educadora.
A família de Anísio, com engenheiros e políticos, tinha
prestígio na região. Todos conheciam o imponente solar do
médico e fazendeiro Deocleciano Teixeira. O “sobradão” do-
minava a paisagem de uma próspera cidade sertaneja que já
tinha ruas calçadas e água encanada desde o fim do século
19. O menino tinha medo do escuro, já sabemos, mas era in-
teligente, de olhar vivaz e uma memória sempre pronta para
trazer algum poema à ponta da língua. Teria feito carreira
política, se prevalecesse a vontade do pai.
Mas o influente doutor Deocleciano não fez uma esco-
lha acertada ao mandar o filho de 14 anos estudar em colé-
gios jesuítas de Salvador. Na capital, para desgosto do pai,
Anísio botou na cabeça a ideia de entrar para a Companhia
de Jesus. Um certo padre Cabral o encorajou a se manter
firme no propósito de seguir a carreira religiosa. Os dois
chegaram a viajar juntos os 645 quilômetros até Caetité na
esperança de dobrar a resistência do agnóstico doutor Deo-
cleciano. Quem sabe, até mesmo convencê-lo a receber a
comunhão. Foi inútil.

Cadernos Conib   39
Pouco depois, Anísio foi enviado rante a temporada das chuvas, como
na companhia de Jaime, um de seus num passe de mágica, emocionou-se:
sete irmãos, para o Rio de Janeiro, “Tinha-se a impressão de uma terra
onde formou-se em Direito em 1922. em festa”. Em contrapartida, a popu-
Esse foi um ano turbulento na então lação entrou em pânico quando um
capital federal. Iniciava-se o ciclo das mascate anunciou que a Coluna Pres-
revoltas tenentistas. Com apoio de se- tes, de volta ao Brasil após internar-
tores da classe média, um grupo de -se na Bolívia, aproximava-se da cida-
jovens oficiais insurgia-se contra o de. O governo havia espalhado a ideia
governo e as oligarquias em favor da de que os revolucionários eram piores
moralização da política, do voto se- que os cangaceiros. Durante uma úni-
creto, das liberdades públicas e do ca- ca noite, 4 mil pessoas debandaram
pital nacional. da cidade, que ficou desabastecida,
Avesso à política, o jovem Aní- paralisada. Ao evocar o fato, Anísio
sio não se deixou envolver pela at- o compararia a um episódio medie-
mosfera de tensão que dominava o val em que as guerras entre senhores
Rio. Com seu diploma de bacharel, feudais deixavam as populações apa-
voltou à Bahia no começo de 1924. voradas. No fim das contas, a Coluna
Procurou o governador Góes Cal- Prestes apenas contornou a cidade. O
mon com a ideia de candidatar-se a imaginário popular havia projetado
uma vaga de promotor público. Po- uma carnificina.
deria ter sido uma volta ao sertão.
Mas não foi. O governador pressen- No período em que ocupou a
tiu nele um bom nome para diretor direção da Instrução Pública na
da Instrução Pública. Acertou na Bahia, entre 1924 e 1929, Anísio
mosca. No período em que ocupou Teixeira triplicou o número de
esse cargo, entre 1924 e 1929, Aní- vagas nas escolas e reformou o
sio Teixeira triplicou o número de sistema educacional do Estado
vagas nas escolas e reformou o sis-
tema educacional baiano.
Mais inclinado aos estudos do que Outra prova da imaginação cria-
a festas, Anísio levou vida recatada na dora do povo de Caetité foi o boato
Pensão Tanner, no Corredor da Vitó- que ali circulou em relação ao pró-
ria, onde convivia com ruidosos ra- prio Anísio, quando chegou de Sal-
pazes franceses que trabalhavam nas vador a notícia de que ele faria uma
docas ou no setor ferroviário. Mes- viagem à Europa, em junho de 1925,
mo os amigos mais chegados pouco na companhia de um prelado baiano
sabiam de sua vida amorosa. Enquan- que visitaria Roma para a comemo-
to os outros caíam na farra, Anísio va- ração do Ano Santo. Espalharam na
rava a noite enfronhado em leituras cidade que ele afinal ia entrar para a
sobre assuntos da educação. Companhia de Jesus. O doutor Deo-
Em maio de 1925, Anísio esteve cleciano precisou ser tranquilizado
em Caetité e testemunhou fatos pe- por um telegrama de Góes Calmon.
culiares. Após ver sua região tão árida O próprio governador, que aconse-
recortada por ribeirões surgidos du- lhara ao rapaz essa viagem “de pas-

40  Cadernos Conib


seio e estudos” à Europa, garantiu para aproximá-lo do pensamento de
que ele estaria de volta em três me- prestigiosos educadores americanos
ses, sem risco de sofrer uma recaída como John Dewey e William Heard
vocacional e aderir à vida religiosa, Kilpatrick. Sua devoção ao primeiro
como o pai temia. o levaria a escrever o seguinte: “Jef-
Há que se observar, entretanto, ferson [terceiro presidente dos Esta-
que o doutor Deocleciano tinha seus dos Unidos] foi, em outros tempos, o
motivos para ficar com a pulga atrás fundador da fé democrática. John De-
da orelha. O roteiro seguido pelo fi- wey é o seu consolidador nos difíceis
lho teve, de fato, uma inspiração re- tempos de hoje”. O pensamento libe-
ligiosa. Após desembarcar do navio ral ficou bem marcado no livro Educa-
em Bilbao, no norte da Espanha, Aní- ção Progressiva, que Anísio escreveu
sio visitou o santuário de Lourdes, em em 1933: “A terceira grande tendên-
Portugal, hospedou-se em um con- cia do mundo contemporâneo é a ten-
vento parisiense e ainda teve a hon- dência democrática. Democracia é es-
ra de ser levado à presença do papa sencialmente o modo de vida social
Pio XI. Voltou ao Brasil entusiasma- em que ‘cada indivíduo conta como
do com o papel civilizatório da Igreja, uma pessoa’. O respeito pela persona-
“a mais benéfica das forças sociais”, lidade humana é a ideia dessa grande
conforme declarou no fim de 1925 corrente moderna”.
em uma entrevista ao jornal baiano
A Tarde. E também manifestou sua A viagem que fez aos EUA, em
simpatia pela ideologia fascista que 1927, serviu para aproximar
na época começava a ganhar espaço Anísio do pensamento de
na Itália, embora Pio XI, pessoalmen- prestigiosos educadores
te, se opusesse a Mussolini. americanos, como John Dewey
Em todo caso, os temores de Cae- e William Heard Kilpatrick
tité não se confirmaram. Assim como
os guerrilheiros da Coluna Prestes
não haviam arrasado a cidade, tam- O período em Nova York tornou
pouco os padres da Companhia de Je- Anísio um aficionado da vida cos-
sus conseguiram se apossar de seu fi- mopolita americana, paixão que iria
lho ilustre. O qual, aliás, logo depois compartilhar com um de seus gran-
voltaria os olhos em outra direção, des amigos, o escritor Monteiro Loba-
deixando-se seduzir pelo brilho libe- to. Sua adesão à doutrina republicana
ral da América do Norte. e liberal vigente nos Estados Unidos
Em 1927, Anísio fez sua primeira suplantou o anterior apreço pela filo-
viagem aos Estados Unidos. Na vol- sofia escolástica, a verdade revelada,
ta, publicou suas observações sobre o recato jesuítico, erradicando de vez
o sistema, escolar americano. No ano o antigo sonho de entrar para a Com-
seguinte estudou durante dez meses panhia de Jesus. Pode-se dizer que,
na Universidade de Columbia, em ao chegar ao centro do mundo, Anísio
Nova York, obtendo o título de Mas- perdeu a fé. Daí em diante, sua atua-
ter of Arts com especialização em ção no mundo se cumpriria sob a ban-
educação. Essas viagens serviriam deira do ensino laico.

Cadernos Conib   41
Em 1931, na Bahia, pouco antes tatizante e ateu. Na iminência de ser
de se transferir para o Rio de Janei- preso, demitiu-se de seu cargo e acei-
ro como funcionário do Ministério tou o conselho de amigos para aban-
da Educação e Saúde, criado no ano donar o Rio. Refugiou-se no sertão
anterior, Anísio ficou noivo de Emí- baiano, onde se sentia seguro. Pas-
lia Telles Ferreira. Casou com ela no sou dois anos na Fazenda Gurutuba,
ano seguinte. Quando ela engravidou residência de sua irmã Evangelina,
pela primeira vez, ele logo deu a no- próxima a Caetité. Em todo o perío-
tícia a Lobato: “Um filho, nada me- do do Estado Novo, de 1937 a 1945,
nos que isso. E eu que sonhava sem- manteve-se mais ou menos recluso.
pre uma liberdade meio aventureira, O rapaz que se encantara com as ruas
meio romântica... As duas possíveis de Nova York voltava às raízes para
mãozinhas que vêm aí me enraízam... caçar perdizes e comer carne-de-sol
Sou árvore, Lobato, sou árvore... cou- com farofa. Traduzia livros, escre-
sas passarão por mim, mas já não po- via a Lobato e outros amigos intelec-
derei ir ao encontro delas... A vida tuais. E também dedicou-se a ativi-
nos domestica.” O casal teria quatro dades improváveis, que iam desde o
filhos – Marta Maria, Anna Christina, comércio de automóveis até a explo-
Carlos Antônio e José Maurício, sen- ração de manganês.
do que este último morreria aos 19
anos em acidente de automóvel. Durante os quatro anos em
No Rio, no começo da década que esteve na direção do
de 1930, Anísio fez parte de uma Departamento de Educação e
comissão encarregada de estudar Cultura do Distrito Federal, deu
uma reforma no ensino secundá- início a uma reforma do ensino
rio no Brasil. Em seguida, a convite desde o nível primário até o
do prefeito carioca, assumiu a di- superior. Com isso, seu nome
retoria do Departamento de Educa- ganhou projeção nacional.
ção e Cultura do Distrito Federal.
Em 1932, foi um dos signatários do
Manifesto dos Pioneiros da Escola A redemocratização do país re-
Nova, que defendia um sistema edu- colocou Anísio em cena. Após a Se-
cacional público, laico, obrigatório e gunda Guerra, ele iniciou uma sé-
gratuito. Durante os quatro anos no rie de viagens ao exterior a convite
novo cargo, deu início a uma refor- da Unesco e de universidades ame-
ma do ensino desde o nível primário ricanas. No Brasil, ele voltou a ocu-
até o superior. Com isso, seu nome par cargos importantes na área edu-
ganhou projeção nacional. cacional, tanto na Bahia como na
O malogrado levante comunista esfera federal. Sob sua direção, o
de 1935 contra Vargas gerou violenta Instituto Nacional de Estudos Peda-
reação do governo não apenas contra gógicos (INEP) inaugurou a pesqui-
seus mentores, mas também contra sa sociológica educacional no Brasil,
liberais e oposicionistas em geral. O sob a premissa de que o ensino deve
movimento fascista estava em alta. se adequar às necessidades reais do
Anísio foi tachado de populista, es- mercado de trabalho.

42  Cadernos Conib


No começo da década de 1960, te, informava que ele estivera “deti-
Anísio foi um dos mentores da Uni- do para averiguações” (sinistras as-
versidade de Brasília, juntamen- pas na época) nas dependências da
te com Darcy Ribeiro. Porém, o gol- Aeronáutica. Outra informação vi-
pe de 1964 o destituiu do cargo de nha da polícia: Anísio fora encontra-
reitor e lhe impôs uma aposentado- do morto após uma queda no fosso
ria compulsória. “Sou um homem a do elevador do edifício onde Aurélio
quem a vida dá e tira com a mesma Buarque de Hollanda morava.
grosseria e sinto que me vou desabi-
tuando à delicadeza”, lamentou em Ao retornar ao Brasil, em
uma carta ao escritor mineiro Abgar 1966, Anísio permaneceu na
Renault. Anísio precisou da autori- mira da ditadura. Incansável
zação do presidente Castello Branco como pensador da educação,
para deixar o país. Passou dois anos já demonstrava um tédio
como professor visitante em universi- sexagenário em relação ao
dades americanas. mundo trepidante que via
Ao retornar ao Brasil, em 1966, descortinar-se a seu redor
Anísio permaneceu na mira da di-
tadura. Incansável como pensador
da educação, já demonstrava um té- Um dos genros de Anísio, acom-
dio sexagenário em relação ao mun- panhado por um detetive policial,
do trepidante que via descortinar- constatou que as travas da portas do
-se a seu redor. “Se tivesse de viver elevador, revisado vinte dias antes,
de novo, viveria como vivi...”, dis- estavam em perfeita ordem. Concluí-
se. “Apenas pediria que a vida fosse ram também que o corpo, em caso de
mais curta”. queda, não poderia ter passado no es-
Alguém pode ter-se encarregado treito vão entre duas vigas e chegar
de tornar a vida de Anísio mais curta. ao lugar em que foi encontrado, em
Talvez a fatalidade, isso é o que não meio à escuridão, em uma platafor-
sabemos. Por volta das 11h30 da ma- ma mais baixa. Estava em posição
nhã do dia 11 de março de 1971, no estranha, de cócoras, sem sapatos,
Rio, o ilustre intelectual baiano, pres- sem paletó, mas com os óculos intac-
tes a entrar na Academia Brasileira de tos – naquela época, não havia lentes
Letras, deixou seu local de trabalho inquebráveis. Além disso, a perícia
na Fundação Getúlio Vargas e dirigiu- encontrou respingos de sangue em
-se, a pé, ao apartamento do acadê- lugares incompatíveis com a versão
mico Aurélio Buarque de Hollanda, oficial. Havia, portanto, fortes indí-
no bairro de Botafogo. Nunca chega- cios de que Anísio já devia estar mor-
ria a rever esse amigo. to ao ser colocado ali, com a intenção
Onde estava Anísio? As pessoas de simular um acidente.
entraram em polvorosa. Dois dias Outro membro da ABL, Afrânio
depois, os jornais noticiaram seu de- Coutinho, testemunhou a autópsia do
saparecimento. A família recebeu cadáver ao lado de três médicos que
notícias lacônicas. A primeira delas, eram professores da UFRJ. Eles consta-
atribuída a um militar de alta paten- taram a existência de lesões no crânio

Cadernos Conib   43
e acima da clavícula, as quais seriam só poderia ser revelado após cinquenta
incompatíveis com a hipótese da que- anos desde a ocorrência desse episódio
da no fosso do elevador. Dezoito anos em Botafogo. O texto permanece tran-
mais tarde, em 1989, o escritor opinou cado no cofre da ABL. Em 2021, sabe-
que Anísio fora morto sob tortura. Dis- remos como termina a história do ga-
se ter redigido um informe secreto que roto que tinha medo do escuro.

44  Cadernos Conib


A importância dos
temas transversais
e o debate sobre a
Base Comum Nacional

Roseli Fischmann

Roseli Fischmann
Professora Sênior da
USP, coordenadora
do Programa de

A
Pós-Graduação
compreensão dos desafios que a educação brasileira
em Educação da
enfrenta exige uma abordagem historicamente com- Universidade Metodista
prometida. Do contrário, é impossível apreender as de São Paulo,
dimensões ali envolvidas. Como parte da iniciativa comuni- pesquisadora 1
tária de elaborar os Cadernos Conib nº3, procuro tratar bre- do CNPq.
vemente de uma das facetas desses desafios, qual seja, o im-
pacto da introdução da proposta de temas transversais, por
intermédio dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs1,
do Ministério da Educação, em aplicação em todo território
nacional desde janeiro de 1997, e elaborados e debatidos en-
tre 1995 e 1996.
A análise encaminha-se para refletir sobre a proposta que
o MEC traz atualmente à discussão pública, da Base Comum
Nacional curricular, em estilo e proposta distinta do que foi
a elaboração e a concepção dos PCNs.
Registre-se, preliminarmente, que o Brasil demorou de-
mais a ter uma política de Estado de educação que garantisse
um sentido nacional para o que se espera da escola e da for-
mação dos cidadãos e cidadãs brasileiros. No período colo-
nial, tivemos a presença jesuítica na escola pública (naquela
época as escolas eram mantidas com verbas recolhidas da po-
pulação e repassadas aos jesuítas pelo Direito do Padroado),
por 210 anos, como parte da colonização portuguesa que se
fazia com a marca da Contrarreforma. Com a expulsão dos
jesuítas, pelo Marquês de Pombal, a educação pública conti-
nuou nas mãos da Igreja Católica, que era, então, a religião
oficial do Brasil Monárquico.

Cadernos Conib   45
Com a proclamação da Repúbli- primeiro referia-se a que todas as
ca, em 1889, e como resultado da crianças e jovens dos países mais po-
proposta republicana, iniciou-se a pulosos do mundo tivessem acesso à
escola pública laica, democrática, escola de qualidade, e que a confe-
aberta a todos e todas. Contudo, rência mundial Jomtien + 10, rea-
nem mesmo a defesa da laicidade da lizada em Dakar, veio estabelecer o
escola pública encontrou sequência ano de 2015 como prazo. O segun-
ao longo das décadas posteriores, no do, que essa educação de qualidade
século 20 e adentrando o século 21. se fizesse a partir de conteúdos volta-
Sobretudo, a inconstância no desen- dos para a melhor qualidade de vida,
volvimento das políticas públicas de ministrados por professores e profes-
educação foi a marca principal, tra- soras bem formados. O terceiro, que
zendo à escola brasileira um inces- esses professores e professoras rece-
sante recomeçar, que dificulta cons- bessem salário digno.
truir a escola pública com solidez,
em contínuos recomeços, ignoran- Foi apenas a partir de 1990 que
do-se o que antes se fez. o Brasil começou a praticar a
Foi apenas a partir de 1990, com a efetiva estruturação de uma
participação do Brasil na Conferência política de Estado de educação.
Mundial de Educação para Todos, em Espantoso, porém verdadeiro,
Jomtien (Tailândia), promovida por que seja tão jovem o esforço
diversas agências da ONU, incluindo de continuidade de políticas
UNICEF e UNESCO, que o Brasil co- públicas de educação no Brasil
meçou a praticar a efetiva estrutura-
ção de uma política de Estado de edu-
cação. Espantoso, porém verdadeiro, Se a criação (de grande importân-
que seja tão jovem o esforço de conti- cia) do então FUNDEF, atual FUN-
nuidade de políticas públicas de edu- DEB, foi crucial na determinação de
cação no Brasil. piso salarial que procurava promo-
Vale notar que, iniciando-se no ver a mudança requerida no quadro
marco da Conferência Mundial de de miséria do professorado brasileiro
Jomtien, na gestão de Fernando das escolas públicas, em especial nas
Collor de Mello, já à beira do pro- regiões mais necessitadas de melho-
cesso de impeachment, teve segui- ria da educação, a questão da forma-
mento na gestão de Itamar Franco, ção de docentes exigia posicionamen-
época em que, após amplo debate to em relação aos conteúdos com que
nacional realizado estado a esta- a escola deveria trabalhar.
do, consolidou-se o Compromisso No Brasil, a proposta de conteú-
Nacional de Educação para Todos, dos voltados para a melhor qualidade
exigência feita ao Brasil como sig- de vida pelo acesso à ciência, com o
natário da Declaração de Jomtien Estado oferecendo melhor qualidade
de Educação para Todos. escolar, ganhou planejamento já no
Havia três aspectos-metas prin- Governo Itamar Franco, que deixou
cipais da Declaração e do Compro- prevista para a gestão seguinte (FHC)
misso de Educação para Todos. O a elaboração de Parâmetros Curricu-

46  Cadernos Conib


lares Nacionais (PCNs) no orçamen- uma relação de revezamento entre di-
to da esfera administrativa da União. ferentes tipos de ação. Revezamento
A proposta que então existia era em que sentido? Afirma Foucault que
a de que fossem criados referenciais a ação teórica avança até encontrar
para todo o Brasil, sem, contudo, in- um muro, e para atravessar este muro
vadir de modo impróprio a possibili- precisa da ação prática; a ação práti-
dade de efetiva prática da autonomia ca, por sua vez, igualmente caminha
escolar, que envolve a gestão demo- e avança, até encontrar um muro,
crática da escola, como foi consoli- e para atravessá-lo, precisa da ação
dado na Lei de Diretrizes e Bases da teórica. Teoria e prática complemen-
Educação Nacional n. 9394/96. tam-se, necessitam-se mutuamente.
Um componente dos PCNs que A proposta de temas transver-
teve papel efetivamente revolucio- sais, assim, propõe um desenvolvi-
nário foram os temas transversais. mento dos conteúdos que se pos-
Em vez de se pensar conteúdos que sa fazer de forma que a vida esteja
deveriam integrar áreas isoladas, a sempre presente.
proposta dos temas transversais trou-
xe algumas novidades destacadas: o As câmaras de gás, as
modo de tratar teoria e prática; a es- experiências terríveis com
colha de temas relevantes para a ci- seres humanos, a estruturação
dadania; o caráter de vanguarda des- sistemática do genocídio –
ses temas, comparativamente ao que tudo foi feito por profissionais
tradicionalmente se fazia na escola. educados por professores
Quanto à relação teoria-prática, em afamadas universidades
um importante e belo diálogo entre e, no entanto, não nos livraram
os filósofos Michel Foucault e Gilles da barbárie
Deleuze, denominado “Os intelec-
tuais e o poder”, no livro “Microfí-
sica do Poder”, reflete que existe um Não há conhecimento que valha
equívoco que supõe que a ação seja mais do que a vida, um dos gran-
apenas a prática, enquanto a teoria des ensinamentos, pela inominá-
não seria ação. vel perda e pela indizível dor, que o
Foucault afirma que essa visão é Holocausto proporcionou à huma-
um equívoco, porque teoria é ação, nidade. As câmaras de gás, as expe-
pois teoria é poder – e sobre isso riências terríveis com seres huma-
não há dúvida. Saber é poder, teo- nos, a estruturação sistemática do
ria é poder, e a escola precisa pro- genocídio – tudo foi feito por pro-
porcioná-la. Isto é importantíssimo fissionais educados por professores
porque crianças e jovens, sendo for- em afamadas universidades e, no
mados para a cidadania, têm o di- entanto, não nos livraram da barbá-
reito de partilhar essa maravilhosa rie. Foram escolas que não deram a
experiência humana que é a constru- essas pessoas a noção ética de que
ção do conhecimento. não é permitido a nenhum ser hu-
Assim, dizia Foucault, a relação mano planejar a morte do Outro,
que se dá entre teoria e prática, é que é vedado a todo e qualquer ser

Cadernos Conib   47
humano desenvolver aquela máqui- cidadão, uma boa cidadã, boas pes-
na de assassinatos sistematicamen- soas, capazes de construir sua felici-
te organizados em larga escala. dade e ser solidárias.
Outro aspecto dos temas trans- O mundo do estudo da plurali-
versais é a construção de uma “costu- dade cultural é o mundo dos saberes
ra” que perpassa diferentes áreas de que se devem pronunciar também no
conteúdos e se manifesta como um plural. Trata-se de um mundo que re-
modo próprio de entender melhor conhece saberes de naturezas distin-
o conhecimento e, com ele, a vida tas, como os que são propriamente
e a participação cidadã. Porque, da culturais e o que se produz de manei-
mesma maneira que fragmentamos a ra sistemática e ordenada, buscando
busca do conhecimento nas ciências universalizações, com base na ciên-
em diferentes disciplinas e, dentro cia. Um não elimina o outro, são sa-
das disciplinas, em diferentes espe- beres que se completam porque estão
cializações, assim a vida está frag- na vida das pessoas de forma conco-
mentada. Nós temos flashes, a nossa mitante – e pedem respeito.
vida é feita de flashes, tudo correndo,
tudo rápido. Quando falamos de
As mais recentes tecnologias de discriminação e de
informação, tão relevantes, muitas preconceito, não estamos
vezes operam como algo desumani- falando de conceitos
zador. Os aplicativos e redes sociais abstratos, mas sim de atitudes,
nos tiram a capacidade reflexiva – sentimentos que, habitando os
que exige tempo e concentração-, seres humanos, têm reflexos
porque tudo deve ser instantâneo, sobre a vida das pessoas e da
imediato, resposta não na ponta da sociedade como um todo
língua, mas na ponta dos dedos, te-
clados que se impõem ao diálogo
olho no olho, ao tempo da espera, Quando falamos de discriminação
da conversa, que se constrói entre si- e de preconceito, não estamos falan-
lêncios e surpresas, mas pede aten- do de conceitos abstratos, mas sim de
ção e dedicação mútua. atitudes, sentimentos que, habitando
Os temas transversais, do pon- os seres humanos, têm reflexos sobre
to de vista da construção científica, a vida das pessoas e da sociedade
desenvolvem-se com base na inter- como um todo. De uns, porque discri-
disciplinaridade que é indissociável minam e, ao discriminar, são menos
do fazer científico. Por isso, ao esco- dignos. De outros, que estão sendo
lher os temas transversais que inte- discriminados e, por serem discrimi-
grariam os PCNs – ética, saúde, meio nados, são excluídos de seus direi-
ambiente, educação sexual (ali cha- tos, relegados à condição de subhu-
mada “orientação sexual”, que atual- manos, descartáveis, como ensinou
mente tem outro sentido), plurali- a filósofa Hannah Arendt.
dade cultural – o que se pensou foi O tema transversal pluralidade
eleger temas que estavam no topo das cultural, procurando refletir sobre
prioridades para se formar um bom tal complexidade, acabou por abrir

48  Cadernos Conib


portas e janelas para outros debates e ainda, seja feita uma proposta de
possibilidades, como a avaliação dos uma Base Comum Nacional curricu-
livros didáticos, que tem desde então lar, deixando a uma suposta “parte
como critério a proibição de todo tipo diversificada” o papel de respeitar as
de discriminação. Observe-se que diversidades.
após duas gestões de Fernando Hen- Em especial, espanta e cau-
rique Cardoso e PSDB, em se inicia- sa enorme estranheza quando já a
ram os PCNs, a gestão do PT, opositor ementa da área de ciências sociais
ferrenho do PSDB, não impediu que o e humanas traz a indicação de pro-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por ensino religioso, o que acaba por
sua equipe reconhecessem o valor da torná-lo, na prática, obrigatório, ao
política de Estado, dando seguimento arrepio da Constituição Federal e
ao trabalho que se fazia, aperfeiçoan- do respeito à diversidade religiosa.
do-o e tomando-o como oportunida- Mais ainda, ela deixa ao largo o de-
de de novos avanços na qualidade e bate no Supremo Tribunal Federal,
na inclusão de toda a cidadania. do qual a Conib participa convida-
Nem tudo se faz apenas de avan- da pelo Ministro Luís Roberto Bar-
ços, contudo. São quase vinte anos roso, relator da ADI 4439, sobre a
de aplicação dos PCNs e seus temas inconstitucionalidade do ensino re-
transversais, e uma avaliação desse ligioso em escolas públicas – e das
tempo teria sido importante, antes especificidades e direitos das escolas
de chegar uma nova proposta, que religiosas comunitárias, ou confes-
será construída, por fim, sobre o que sionais, como as denomina a LDB. É
se construiu até aqui. Causa temor pouco auspicioso, e esperamos que
que, após duas décadas, não apenas o Governo Federal tenha a grande-
se ignore o trabalho desenvolvido, za de recuar na proposta imprópria,
inclusive com base no compromisso que a sociedade e a cidadania não
internacional do Brasil, como, mais podem aceitar.

Nota
1 Redigi o documento Pluralidade Cul- ma de estigmatização que impede a se-
tural, integrante dos temas transversais, res humanos que seja plenamente reco-
sendo convidada pelo MEC para a tarefa nhecida sua humanidade, dignidade e
por desenvolver o que era, naquele mo- cidadania – e por essa vertente, o tema
mento, pesquisa pioneira, no Brasil, so- da educação em direitos humanos. Nas
bre a temática. Mais do que o tema em parcerias com os grupos, movimentos,
si, minha pesquisa tem procurado arti- instituições, por exemplo, a Fisesp parti-
cular, desde o final dos anos 1970, teoria cipou como instituição parecerista, con-
e prática, primeiramente no campo das vidada pelo MEC a avaliar o documen-
políticas públicas e, a partir do final dos to Pluralidade Cultural. Lembro, ainda,
anos 1980 tem se voltado para o tema que fui responsável por um tema trans-
da discriminação religiosa, étnica e ra- versal, como parte da equipe dos PCNs,
cial, ligando-se a grupos e instituições cujo trabalho foi desenvolvido em diálo-
que se inserem na sociedade brasileira go entre os responsáveis por cada área
e internacional. O foco é a luta contra ou tema, promovendo a integração e di-
o racismo, a discriminação e toda for- álogo entre os próprios documentos.

Cadernos Conib   49
50  Cadernos Conib
A educação num mundo
mediado pelas
tecnologias digitais:
potenciais e desafios

Lilian Starobinas

Lilian Starobinas
é mestre em História
e doutora em
Educação. especialista

C
em Educação
ompletam-se em 2015 as duas primeiras décadas de
Judaica pelo Seniors
vida da internet comercial no Brasil. Vinte anos nos Educators Program,
quais a internet deixou de estar restrita às redes univer- da Universidade
sitárias e a poucos órgãos de governo, passando a permear cada Hebraica de Jerusalém.
vez mais intensamente a vida social, seja por uso consciente e Professora de Ensino
explícito de computadores, programas e conexão, seja pela teia Médio na Escola
Vera Cruz. Coordena
menos óbvia de redes digitais que se entretecem em nosso dia
programas de formação
a dia, nas câmeras que estão nos ambientes, no GPS do celular, de educadores
no chip do cartão de transporte. Nesse período, cultura digital envolvendo a utilização
deixou de ser conversa de nerd e passou a ser uma prática so- de tecnologias digitais
cial cada vez mais naturalizada. Mescla-se com as mais diferen- na educação. Produz
tes áreas das artes, da comunicação, da economia, da ciência, o blog discursocitado.
blogspot.com. É diretora
da gestão da vida pessoal e da administração pública, para citar
da Casa do Povo
apenas alguns exemplos.
Grandes expectativas foram geradas sobre as contribui-
ções que transformações sociotécnicas podem aportar para
a educação. Outros momentos da História marcados pelo de-
senvolvimento de novos suportes materiais para registro, ex-
pressão e divulgação do conhecimento trouxeram também
temores e promessas, como no caso da difusão da escrita, da
imprensa, do rádio, do cinema e da televisão. Cada um à sua
maneira encontrou formas de absorção nos processos edu-
cacionais, sejam eles em ambientes formais ou em vivências
culturais do cotidiano. Passados vinte anos, ficou claro que
o mesmo ocorrerá com as tecnologias digitais: não é sua pre-
sença pura e simples, e sim a forma de sua utilização, que de-
finirá os ganhos de aprendizagem por elas proporcionados.

Cadernos Conib   51
No Brasil, a pesquisa do Cen- Mudanças inerentes à
tro Regional de Estudos para o De- cultura digital
senvolvimento da Sociedade da In- O diagrama abaixo nos auxilia a
formação (CETIC) aponta que em observar quatro características que
2013, 95% dos jovens entre 10 e 17 estão no cerne das transformações
anos já fizeram uso da internet, e presentes no fazer da cultura digital.
40% deles utilizaram a internet na O desenvolvimento de aparatos como
escola. É preciso reconhecer que te- chips de memória, códigos de progra-
mos um quadro bastante desigual mação e redes de conexão capazes de
no país, dadas as limitações da in- promover a troca de pacotes de dados
fra-estrutura tecnológica, a lenta bastante amplos, de forma otimizada,
implementação do acesso à banda constituem a base sobre a qual esses
larga e as idas e vindas das políti- pilares puderam ser construídos.
cas públicas relativas à formação de
professores e aos projetos de garan- CULTURA DIGITAL
tia de acesso à internet nas escolas.
Se podemos, assim, reconhecer uma .Digitalização
.Imagens .Produção
.Simples
sociedade em que o acesso à Rede já ..Sons ..Replicável
se popularizou entre os jovens, pre- ..Textos ..Multimidia
cisamos também compreender que ..Dados ..Remix
há desafios variados no que diz res- Memória Rede
peito à compreensão da natureza ..Vasta ..Multipolar
destes recursos, das aprendizagens ..Acessível ..Distribuída
que eles demandam para tornar efe- ..Perene ..Sem hierarquia
tivo seu potencial, dos parâmetros ..Indexada ..Síncrona
éticos que precisam ser delineados
e do sentido social que essas tecno- Digitalização
logias podem exercer. A perspectiva de digitalização de
As reflexões que se seguem se pro- produtos culturais previamente exis-
põem, dessa forma, a promover um tentes em outros suportes (o papel, o
olhar mais pausado para essas di- vinil, os negativos de todo tipo), faci-
mensões, por considerá-las fundan- litando a produção de vastos bancos
tes de qualquer projeto consisten- de dados passíveis de serem indexa-
te do uso de tecnologias digitais na dos e colocados à disposição de pes-
educação. Trata-se de poder ir além quisadores e estudantes, representa
dos interesses de mercado e da mi- uma ampliação sem precedentes do
metização dos recursos já conheci- acesso à informação. Seja por meio
dos – o livro didático, o caderno digi- de projetos institucionais (bibliote-
tal – para vislumbrar oportunidades cas digitais, arquivos nacionais, ór-
de uso genuíno do potencial des- gãos da administração pública, mu-
sas ferramentas para oportunidades seus) ou por iniciativa individual
de protagonismo, criação de redes, (reprodução e circulação de acervos
aprofundamento e pensamento críti- familiares), essa ampla oferta de da-
co nas práticas educacionais que pro- dos tem um enorme potencial de uso
movemos em nossas escolas. em projetos educacionais.

52  Cadernos Conib


Nesse contexto de grande dispo- superando a necessidade de dispositi-
nibilidade, torna-se necessária uma vos – para quem não teme o desapa-
ação de curadoria de fontes, para a recimento de seus dados – em plata-
qual é preciso um exercício continuo formas de depósito, como Dropbox,
de desenvolvimento de critérios de Google Drive e afins.
seleção e descarte, que não constitui A facilidade de acesso aos mate-
ação trivial, e que deve ser trabalhado riais digitais é outra característica
ao longo da formação escolar. A cura- definidora desses recursos. Trata-se
doria da informação é uma ação que não só da facilidade de armazena-
une o uso de mecanismos de busca, gem, mas da capacidade de pesquisa
filtros pessoais, agenciamento da in- e acesso a esses arquivos de maneira
formação e uso das plataformas para simplificada. Isso diz respeito igual-
a divulgação desses links. Constitui, mente ao acervo reunido na produ-
portanto, uma atividade que agrega ção pessoal, facilitando a criação de
o olhar humano à seleção promovida portfólios autorais que permitem um
pela mediação automatizada, e en- olhar para a produção de cada aluno
riquece essa seleção com referendos ao longo de sua evolução escolar.
dos demais usuários das plataformas.
No espaço escolar, cabe aos profes- Em meio à grande
sores agregar a crítica de fontes da in- disponibilidade de informações,
ternet às habilidades a serem desen- é preciso uma ação de
volvidas pelos alunos. As inúmeras curadoria de fontes, para a
situações em que a atividade de pes- qual é preciso um exercício
quisa integra-se aos projetos de traba- contínuo de desenvolvimento
lho em sala de aula são também opor- de critérios de seleção e
tunidades para o trabalho de avaliação descarte, que precisam
das fontes utilizadas, pelo próprio pro- ser trabalhado ao longo da
fessor ou pelos colegas. O uso de fon- formação escolar
tes variadas, num processo de crítica
que possa auxiliar na validação desses
materiais, também oferece boas opor- Ser “pesquisável” é outro dos
tunidades para esse debate em sala. atributos interessantes do texto di-
gital. Encontrar rapidamente um
Memória texto próprio dando busca entre os
O armazenamento e a circulação arquivos por termos definidos, ou
de acervo digitalizado estão associa- mesmo um trecho específico de um
dos a um referencial técnico que ma- texto mais longo, utilizando apenas
terializa um acesso à memória em comandos simples, otimiza a possibi-
uma condição nova. A memória digi- lidade de revisitar a própria produ-
tal – entendida em sua natureza de ção ou checar o que ainda é preciso
suporte tecnológico – é cada vez mais ser confirmado.
vasta, multiplicando sua capacidade A memória digital caracteriza-se
de armazenagem de bytes em dispo- também por sua perenidade. Estamos
sitivos cada vez menores. A própria nos referindo aqui ao fato de que o di-
concepção de “nuvens de dados” vem gital deixa rastros. São as mensagens

Cadernos Conib   53
que enviamos por escrito – seja por deixam registros que, na maior parte
email, SMS, WhatsApp, as fotos que das situações, não se apagam. Isso nos
compartilhamos, os logs que geramos, permite olhar materialmente para al-
quando entramos em algum ambien- gumas interações, o que pode nos aju-
te virtual que nos pede login e senha. dar a entender alguns processos de
A perenidade dos registros nos evolução dos projetos, de maturação
traz um acesso a um espaço de me- do pensamento e até mesmo de nego-
mória extremamente rico sobre os di- ciação de grupos e comunidades.
ferentes momentos da vida. Por outro Mas também pode trazer situa-
lado, registros publicados por má-fé ções delicadas. Uma delas está rela-
ou mesmo inocentemente podem cionada às diferenças entre a comu-
trazer situações delicadas, revelan- nicação oral e a comunicação escrita.
do momentos ou facetas da vida que O diálogo por escrito demanda uma
podem gerar ruídos. O diálogo sobre apropriação cuidadosa desse formato
o sentido do publicar, a escolha de de comunicação. Elementos da fala,
textos, fotos e vídeos, deve procurar como entonação, usos de expressões
desnaturalizar o impulso automático faciais, gesticulação, não estão pre-
de publicação, para consolidar pro- sentes na comunicação escrita. Por
cessos reflexivos que deem conta dos isso, a possibilidade de alguém pare-
propósitos, da adequação e da res- cer mais agressivo do que supunha,
ponsabilidade dessas decisões. ou a possibilidade de uma ironia não
ser compreendida, é muito maior.
Rede
A cultura digital é marcada por Aprender a participar da
sua permanente conexão, e essa ocor- comunicação assíncrona – em
re em rede, ligando por caminhos va- que as pessoas se colocam
riados as pessoas, por meio de seus em tempos diferentes, e da
equipamentos, servidores e uma in- comunicação síncrona – que
fraestrutura de transmissão de dados cria expectativa de respostas
cada vez mais ampla e potente. imediatas – é fundamental
As trocas na rede trazem modelos
de comunicação diferentes em rela-
ção às mídias tradicionais e inaugu- O tempo envolvido no ritmo des-
ram novas práticas. A hierarquia na sas conversas também tem outro fun-
comunicação – um fala, os demais es- cionamento, a ser apropriado. Fóruns
peram sua vez – não está dada a priori, de discussão, blogs, as redes sociais
e muitas vezes não é possível obtê-la. em geral, geram conversas com um
Há uma relação multipolar. Ou seja: fluxo de emissão de mensagens que
são muitas as combinações possíveis nem sempre todos leem, e que temos
dos coletivos de comunicação – de um menos capacidade de prever quando
para um, de um para muitos, de mui- surgirão novas respostas. Assim, há
tos para muitos e de muitos para um. uma aprendizagem relacionada a esse
Diferentemente das conversas ao vivo tipo de interação, um exercício de es-
e de nossa circulação no espaço físi- cuta e de espera para poder se posicio-
co, as relações mediadas pelo digital nar com clareza, uma observação que

54  Cadernos Conib


nos ajuda a pensar de que forma que- taformas voltadas à criação simplifi-
remos fazer parte daquele diálogo, cada de comunidades, blogs e mes-
uma vez que esses registros perenes mo aplicativos para smartphones, o
constroem nossa presença nas rela- que se vê é uma produção cultural
ções mediadas pelo digital. Aprender que toma por pressuposto o desejo
a participar dessa comunicação assín- dos usuários de se tornarem também
crona – em que as pessoas se colocam autores. Essa é uma peça-chave para
em tempos diferentes, e na comunica- a conexão com projetos educacionais,
ção síncrona – que cria expectativa de já que se torna um potencial espaço
respostas imediatas – é fundamental. de desenvolvimento e até de divulga-
ção do conhecimento produzido em
Produção projetos escolares.
Um dos grandes ganhos da Cul-
tura Digital é relacionado à popula- Educação e as aprendizagens
rização dos equipamentos que bara- mediadas pelo digital
teiam e simplificam tremendamente A presença de celulares e tablets
a de produção. O acesso a computa- nas mãos de crianças e pré-ado-
dores e programas que permitem que lescentes não constitui em si, uma
as pessoas escrevam, apaguem, alte- mostra de domínio eficiente desses
rem os formatos, trabalhem imagens, equipamentos, nem tampouco do
editem filmes, preparem áudios, re- preparo para o uso em situações for-
presentou uma das mais poderosas mais de produção de conhecimento.
alterações nas estruturas de produ- A utilização desses recursos em situa-
ção e circulação de conteúdos. ção escolar demanda um processo de
Outra característica essencial é a reflexão e de planejamento por par-
simplicidade de reprodução do ma- te dos professores, para que as fer-
terial digital, o que traz facilidades ramentas e conteúdos se coloquem
do ponto de vista logístico e econo- a serviço dos objetivos educacionais
mia de recursos investidos em có- pretendidos, e não o inverso.
pias e impressão. Se os adultos usam, com natura-
A incorporação de câmeras foto- lidade, o acesso à internet no celular
gráficas de alta qualidade, capazes para tirar dúvidas sobre temas espe-
também de produzir vídeos, e gra- cíficos, a perspectiva de que alunos
vadores em smartphones e tablets possam fazer o mesmo na sala de
tornou extremamente simples a pro- aula tem sido pequena, demandan-
dução multimídia. A veiculação tam- do negociação prévia e o estabeleci-
bém já está popularizada, se levar- mento de relações de confiança que
mos em conta que uma plataforma estejam na base dessa liberdade. En-
de compartilhamento como o YouTu- tretanto, a conversa sobre a presen-
be abriu espaço para isso em 2005. ça e uso de celulares em sala de aula
A produção digital também per- pode se tornar um caminho mais
mite que o usuário se torne um cria- construtivo para lidar com essa ten-
dor, inclusive de aplicativos. Seja pelo dência do que a simples proibição.
estímulo à aprendizagem de código, A concentração e o foco no tra-
seja pela oferta de programas e pla- balho são desafios enfrentados hoje

Cadernos Conib   55
em nossa sociedade, já que a varie- construção de modelos ou dos apara-
dade de estímulos é uma das caracte- tos técnicos necessários à aferição das
rísticas de nossa época, e o chamado hipóteses e validação das conclusões.
“multitask”, a ocupação simultânea, Nesses processos, o domínio de lin-
tornou-se uma prática constante. guagem de programação e o uso de
Esse é, talvez, um dos maiores desa- hardware abertos, como o arduíno,
fios do modelo escolar: o de pensar têm se mostrado eficientes.
os caminhos para atingir seus obje-
tivos e estruturar suas práticas, reor- Nessa era de grande acesso
ganizando os tradicionais espaços e à informação, o tema principal
tempos escolares. O desejo de enga- da escola é o processo de
jamento dos alunos de forma menos construção de conhecimento
passiva nos processos de aprendiza-
gem demanda essa revisitação do
formato escolar. Conclusões de relatórios como o
Nessa era de grande acesso à in- Panorama Tecnológico para o Ensi-
formação, o tema principal da escola no Fundamental e Médio Brasileiro –
é o processo de construção de conhe- Horizon Report, publicado em 2012,
cimento. Nesse sentido, a mediação mostram a mobilidade do acesso
da proposta pedagógica e da atuação como um dos aspectos que ganharão
dos professores passa por auxiliar importância nas dinâmicas de traba-
os alunos a aprender a perguntar e, lho. A adoção de ambientes virtuais
tendo formulado bem suas questões, de aprendizagem (AVA), espaços de
buscar elementos para construir res- interação entre professores e aluno,
postas possíveis para essas indaga- com uma série de funcionalidades
ções. É preciso dar espaço no debate (espaço para fóruns, disponibiliza-
escolar para a incerteza e para a con- ção de arquivos, exercícios de múl-
tradição, para um repertório mais tipla escolha, ferramentas wiki para
amplo de tentativas, olhares e ca- produção colaborativa), já vem se
minhos, em um exercício constante, consolidando nos últimos dez anos.
que criará condições para que os jo- Os usos do AVA, entretanto, preci-
vens desenvolvam a autonomia nes- sam acrescentar estratégias de abor-
ses processos. dagem que contribuam para o dife-
O desenvolvimento de programas rencial do trabalho. Há experiências,
e aplicativos dos mais diversos, com que proporcionam a preparação dos
fins educacionais ou não, vem per- alunos para um trabalho de debate
mitindo novas abordagens e olhares em sala, levantamento dos conheci-
mais concretos para temas que pode- mentos prévios sobre temas de estu-
riam parecer bastante distantes do do e compartilhamento de experiên-
universo dos alunos. Essa tendência cias diferenciadas nos espaços de
aponta para a ampliação das situa- colaboração.
ções de aprendizagem que dão vazão Há muitas questões que se colo-
a uma experiência mais concreta, de cam quando o tema é a avaliação das
definição dos temas de investigação, aprendizagens mediadas pelo uso
levantamento de hipóteses, pesquisa, de recursos digitais. Há quem de-

56  Cadernos Conib


fenda que o uso de plataformas digi- nos a interagir nas redes sociais. Isso
tais para avaliação pode auxiliar no inclui a sociabilidade básica entre os
chamado “Ensino Adaptativo”: na jovens e a consciência que as dimen-
compreensão das fragilidades apre- sões do assédio abusivo (bullying)
sentadas por cada estudante e na for- assumem proporções gigantescas,
mulação de desafios específicos para quando os educadores e as famílias
eles. Esta abordagem, entretanto, não tomam para si acompanhar o que
precisa ser construída cuidadosa- se passa entre as crianças e jovens.
mente pelas equipes docentes, para É preciso que a mediação dos adul-
que exista coerência entre as práti- tos ajude a trazer entendimento das
cas pedagógicas vivenciadas pelos situações criadas, para que elas pos-
alunos e as expectativas de avaliação sam ser cuidadas e contidas.
que eles irão enfrentar. A intenção é
que as tecnologias digitais possam É necessário que o processo
ser de ajuda no suporte a diagnósti- de reflexão que critique as
cos e identificação de potenciais que práticas fraudulentas esteja
devem ser trabalhados de forma mais inserido nas conversas na
intensiva. Ela deve, portanto, estar a escola desde muito cedo
serviço do estímulo à aprendizagem,
e nunca server para reforçar situa-
ções de exclusão e criação de estereó- Outro aspecto que merece consi-
tipos nas instituições educacionais. deração é o exercício do debate pú-
blico em redes sociais, uma vez que
Parâmetros éticos: que pessoas a vivência contemporânea tem con-
estamos formando? solidado esses espaços como territó-
A mediação tecnológica traz em rios pouco civilizados de diálogo. Os
si questões relevantes a serem cuida- aspectos éticos têm a ver com o com-
das do ponto de vista ético. Cada vez promisso com a argumentação qua-
mais torna-se perceptível que as rela- lificada, com o respeito ao posicio-
ções que envolvem alunos, professo- namento do outro, com a checagem
res, a instituição escolar e as famílias das informações antes de difundi-las,
não podem ser compreendidas como com a administração dos tempos de
apartadas entre si. A construção dos fala e as estratégias de identificação
laços de confiança entre estes agen- da natureza do debate.
tes constitui um caminho importan- A situação de fraude escolar é
te para a estruturação de espaços de com muita frequência apontada
diálogo apropriados, que garantam como um problema recorrente, seja
privacidade, zelo e respeito para to- na elaboração de trabalhos extras-
dos. Esse grau de maturidade não é sala, seja nas tentativas de comuni-
simples de se obter, por motivos varia- cação ou consulta durante exames.
dos. O investimento nessa consciên- É necessário que o processo de refle-
cia é parte do trabalho educacional, e xão que critique essas práticas esteja
deve contemplar todos os envolvidos. inserido nas conversas na escola des-
A ética está presente também na de muito cedo. Os formatos dos pro-
forma como ensinamos nossos alu- jetos de trabalho também precisam

Cadernos Conib   57
ser pensados de forma a não dar es- infraestrutura de acesso à internet,
paço ao plágio ou ao mosaico de tre- quantidade e perfil dos equipamentos
chos sem qualquer reflexão. disponíveis, o desenho de um projeto
A questão da privacidade igual- coletivo que vislumbre todos os sujei-
mente perpassa o ambiente escolar, tos da comunidade escolar, formação
em diferentes dimensões. O debate de professores, funcionários e alunos,
sobre a presença ou não de câmeras diálogo com as famílias, suporte pe-
de vigilância nas salas de aula e ou- dagógico para a concepção, execução
tros espaços das escolas é acirrado, e finalização de propostas de incor-
e a possibilidade de manter espaços poração das tecnologias digitais, seja
sem câmeras é uma conquista coti- em rotinas de trabalho diário ou em
diana na manutenção de ambientes projetos temáticos circunscritos.
de confiança e intimidade.
A publicação compulsiva de fotos A publicação compulsiva
e vídeos é um tema obrigatório para de fotos e vídeos é um tema
reflexão na escola, dada a dificulda- obrigatório para reflexão na
de de reversão dessas publicações e escola, dada a dificuldade de
os danos que elas podem gerar, qual- reversão dessas publicações e
quer que seja o afetado. As próprias os danos que elas podem gerar,
fotos do trabalho desenvolvido na es- qualquer que seja o afetado
cola devem ser objeto de uma polí-
tica editorial cuidadosa dos profes-
sores e das instituições, uma vez que A política de renovação do par-
demandariam autorização dos res- que de equipamentos precisa ter
ponsáveis para publicação. como horizonte um trabalho que in-
clua a preocupação com o lixo eletrô-
A apropriação das tecnologias nico que é fruto desse processo. Olhar
digitais pela educação como forma para esse tema com os próprios alu-
de empoderamento social nos e transformar a questão dos usos
Levar às escolas do Brasil acesso possíveis e a reflexão sobre os limites
de qualidade à banda larga, garan- do descarte é o caminho mais educa-
tindo aos jovens infraestrutura para tivo que podemos pensar.
pesquisa, estudo e desenvolvimento Tradicionalmente, as empresas
de projetos, é um desafio de grande produtoras de hardware e software
porte, que demanda vontade políti- têm sido muito presentes nas ações
ca e compromisso de continuidade voltadas à disseminação de tecnolo-
com políticas públicas de formação gias digitais na educação. Essa apro-
de professores e suporte técnico e ximação, natural, ocorre de formas
pedagógico às escolas. variadas, em processos que oscilam
Os custos de investimento são im- entre a apresentação de soluções
portantes, seja nas instituições pú- fechadas e propostas que apontam
blicas ou nas privadas. As perspec- para um desejo de compreender o
tivas de avanço dependem de uma ethos escolar e respeitar a autonomia
somatória de fatores, que envolvem da instituição em suas opções peda-
capacidade e permanente zelo da gógicas e educacionais.

58  Cadernos Conib


As editoras e grupos de mídia tante no que diz respeito à adequação
também vêm desenvolvendo proje- dos conteúdos aos temas regionais, à
tos que buscam garantir a oferta de ampliação do repertório de ativida-
conteúdos relacionados aos currícu- des disponíveis, à criação de uma cul-
los escolares, atendendo inclusive a tura de publicação qualificada pelos
diretrizes inseridas no PNLD (Progra- sujeitos da produção escolar.
ma Nacional do Livro Didático), que Talvez esteja nessa perspectiva, a
há duas edições incluiu os produtos do reforço da autoria de alunos e pro-
digitais como parte dos itens a cons- fessores, um dos potenciais mais sin-
tar nas coleções. gulares de inovação do trabalho edu-
O processo de adoção desses ma- cacional. Pensar a escola como um
teriais, entretanto, ainda é tímido, espaço gerador de olhares e trocas
dada as hesitação das propostas pe- com os demais espaços da sociedade,
dagógicas em experimentar essa mo- e colocar a capacidade de observação,
dalidade de recurso, seja pelo pouco análise, compreensão, proposição e
trato dos professores com esses mate- criação dos jovens e dos profissionais
riais, seja pela proporção reduzida de da educação a serviço do coletivo.
estudantes que já possuem seu pró- As tecnologias digitais, nesse con-
prio equipamento. texto, podem otimizar e enriquecer
Nesse cenário, avança também a a prática educacional, colocando-se
discussão que enxerga na produção e como ferramentas de suporte a um
uso de Recursos Educacionais Aber- projeto que vai além delas mesmas.
tos uma alternativa rica, uma vez que A apropriação das tecnologias digi-
inclui professores e alunos na condi- tais nos espaços educacionais estaria,
ção de sujeitos da criação de conhe- assim, contribuindo igualmente para
cimento. A perspectiva de produzir e a formação das crianças e jovens di-
trocar conteúdos, adotando licenças gitalmente incluídos, como também
de direitos autorais menos restritivas, para o aperfeiçoamento das práticas
pode representar um ganho impor- sociais em âmbito extraescolar.

Cadernos Conib   59
60  Cadernos Conib
“Caminhante,
não há caminho.
O caminho se faz
ao caminhar”

Jayme Brener

Jayme Brener
é jornalista.

H
ouve um tempo em que “ser de esquerda”, fosse qual
fosse a matiz, significava a adesão a determinados prin-
cípios: a luta contra as injustiças sociais, contra o racis-
mo, por um Estado laico... E, também, o compromisso de com-
bate ao analfabetismo, pela democratização do conhecimento e
da cultura como ferramentas dos pobres por sua emancipação.
Nesse contexto, para inúmeras gerações “de esquerda”, o nome
de Paulo Freire (1921-1997) sempre foi a maior referência.
Uma referência mundial, aliás. A experiência de Paulo
Freire e de outros educadores do Serviço Social da Indús-
tria, o SESI pernambucano, alfabetizando 300 cortadores
de cana adultos em apenas 45 dias, perto de Mossoró (RN),
em 1963, seria o exemplo de grandes ações educacionais
de governos “de esquerda”. A mobilização de legiões de
educadores voluntários para alfabetizar operários e cam-
poneses era um dos cartões de visita de qualquer governo
que se intitulasse “socialista” ou “progressista” na América
Latina e na África dos anos 60/80. Foi assim em Cuba, na
Nicarágua e nas ex-colônias portuguesas, como Moçambi-
que e Guiné-Bissau. E entre as imagens de heróis revolucio-
nários barbudos, tão comuns nessas mobilizações entusias-
madas, não podia faltar o rosto pernambucano de profeta
barbado de Paulo Reglus Neves Freire.

Cadernos Conib   61
O “método Paulo Freire”, que as- “Acho que a maior qualidade de
sociava a alfabetização ao ato políti- paizinho era saber dialogar”, sinteti-
co de tomada de consciência do edu- za a filha Fátima, também educadora,
cando sobre sua realidade, encantou que decidiu seguir seus próprios cami-
multidões de educadores e jovens nhos, combinando o trabalho pedagó-
idealistas do Terceiro Mundo. É cu- gico com a formação em psicanálise.
rioso que, da mesma forma que ou-
tro barbudo, Karl Marx, não aceita- O início
va o rótulo “marxismo”, Paulo Freire Intelectual brasileiro mais reco-
também não gostava das referências nhecido no exterior, Paulo Freire rece-
ao “método Paulo Freire”. Pelo sim- beu 41 títulos de doutor honoris cau-
ples motivo de rejeitar a alfabetização sa, incluindo os das universidades de
como um pacote pronto, embrulha- Harvard, Cambridge e Oxford, além
do no papel da famosa cartilha – os de inúmeros prêmios, como o Prê-
mais velhos lembrarão a vetusta “Ca- mio Rei Balduíno para o Desenvolvi-
minhos suaves”, com seu “vovô viu a mento, na Bélgica, em 1980, o Prêmio
uva” e “z de zabumba”, sem que nin- Educador dos Continentes, outorgado
guém jamais conseguisse explicar o pela Organização dos Estados Ameri-
que era uma zabumba... canos (OEA), e o Prêmio Unesco para
a Educação e a Paz (1986).
Paulo Freire era contra Nascido em Recife, filho do capitão
cartilhas de prateleiras, Joaquim, da Polícia Militar, e de dona
prontinhas, porque partia do Tudinha, graduou-se em Direito pela
princípio de que a ação política Universidade Federal de Pernambuco
do aprendizado tinha de partir (UFPE). Mas desde a década de 1940
da realidade do educando optou por trabalhar como professor de
Língua Portuguesa. Em 1946, foi no-
meado diretor do Departamento de
Paulo Freire era contra cartilhas Educação e Cultura do SESI pernam-
de prateleiras, prontinhas, porque bucano, dedicando-se à alfabetização
partia do princípio de que a ação po- de adultos pobres, o que fundamentou
lítica do aprendizado tinha de partir sua tese de concurso para a docência
da realidade do educando. universitária na UFPE. Lá, comporia
Daí o título deste texto: “Cami- a equipe do Serviço de Extensão Uni-
nhante, não há caminho. O caminho versitária, vetor das experiências que
se faz ao caminhar”, do poeta mo- conduziram à formação do “método
dernista espanhol Antonio Machado Paulo Freire”, que não é método...
(1875-1939). Não por acaso, tam- “Na verdade... ...ali não se expe-
bém “de esquerda”. Paulo opunha- rimentava só um novo método, mas,
-se inclusive à tradicional concepção através dele, um novo sentimento de
vanguardista de educação e cultura, mundo, uma nova esperança no ho-
compartilhada por certos segmentos mem”, diz o professor Carlos Rodri-
“de esquerda”, segundo a qual o co- gues Brandão1, um dos colaborado-
nhecimento é “levado ao povo” por res mais próximos de Freire. “Uma
uma elite intelectual iluminada. nova crença, também, no valor e no

62  Cadernos Conib


poder da Educação. Sinais do amor Com o golpe de 1964, Paulo Freire
que o homem planta e que brotavam foi preso como “traidor” por 70 dias.
ali, no chão seco do sertão, há vinte Mas isso não seria suficiente para
anos”, conclui. apagar sua marca na história da edu-
As décadas de 1950/70 seriam cação brasileira. Foi preciso que o re-
tempos de descolonização e de afirma- gime criasse o Movimento Brasileiro
ção do terceiro-mundismo na África, pela Alfabetização (Mobral), um con-
Ásia e também na América Latina. O traponto paternalista à visão libertá-
trabalho de Paulo Freire e de seus co- ria do educador pernambucano.
legas foi então apropriado nacional e Com a família – dona Elza, três
internacionalmente como ferramenta filhas e dois filhos –, Paulo partiria
de absorção do conhecimento sobre a para o exílio, primeiro na Bolívia e
realidade, para combater culturas im- então no Chile, onde participou de
postas. “Muitas vezes houve quem rei- um premiado movimento de alfabe-
vindicasse as ideias de Paulo Freire e tização popular organizado pelo Ins-
que, na verdade, buscava um ‘método’, tituto Chileno de Reforma Agrária. E
uma cartilha de doutrinação política do Chile para os EUA, onde lecionou
que não tinha nada a ver com o que em Harvard. E, então, para Genebra,
ele pensava”, comenta Fátima Freire. na Suíça, trabalhando como consul-
O sucesso das experiências no Nor- tor do Conselho Mundial de Igrejas e
deste levou o presidente João Goulart de diversos governos “progressistas”.
(1961-64) a convidá-lo para coorde-
nar o Plano Nacional de Alfabetização. O presidente João Goulart
O projeto era ousado: alfabetizar dois (1961-64) o convidou para
milhões de adultos em todo o país, por coordenar o Plano Nacional
meio de 20 mil círculos de cultura. O de Alfabetização. O projeto era
esforço tinha o apoio do Movimento ousado: alfabetizar
Popular de Cultura (do qual fariam dois milhões de adultos em
parte os famosos Centros Populares todo o país, por meio de 20 mil
de Cultura, vinculados à União Nacio- círculos de cultura
nal dos Estudantes/UNE), assim como
do Movimento de Educação de Base.
Este, ligado aos setores progressistas Dessa experiência nasceu, em
da Igreja Católica, seguidores da Teo- 1969, “Pedagogia do Oprimido”, seu
logia da Libertação. livro mais conhecido, que ganhou tra-
Povo organizado causa medo em duções em diversas línguas (inclusi-
qualquer governo autoritário, não ve o hebraico, em 1981). Mas que só
importa a coloração. E não deu outra: seria publicado no Brasil em 1974,
em 1964, o Governo da Guanabara, à quando o fim do “milagre econômi-
frente Carlos Lacerda, veterano gol- co” constrangia o regime militar a en-
pista contra a democracia, apreendeu saiar uma tímida abertura política.
centenas de milhares de exemplares Paulo Freire voltaria ao Brasil em
da cartilha “Viver é Lutar”, documen- 1980 e seria um dos poucos repre-
to-chave do que seria a Campanha sentantes da “esquerda pré-1964” a
Nacional de Alfabetização. desempenhar um papel importante

Cadernos Conib   63
na recomposição das forças progres- rante a ditadura militar. E, três anos
sistas após a anistia de 1979. Filiado depois, a presidente Dilma Rousseff
ao Partido dos Trabalhadores (PT), sancionava a Lei 12.612, que atribuía
coordenou o programa de alfabeti- a Paulo Freire o título de Patrono da
zação popular da agremiação entre Educação Brasileira.
1980 e 1986. Com a vitória de Lui- Além da presença de institutos e
za Erundina (paraibana formada na de legiões de seguidores em todo o
“escola” freireana), na eleição para a mundo, Paulo Freire segue influen-
Prefeitura de São Paulo, em 1988, ele ciando várias correntes educacio-
foi nomeado secretário de Educação, nais. Mas qual foi seu grande lega-
à frente de uma equipe que incluía do? Fátima Freire não tem dúvidas:
nomes de destaque, como Mário Sér- “a marca do humanismo e da rela-
gio Cortella e Moacir Gadotti. ção dialógica na educação. É verda-
Freire deixaria como marca a de que ele não criou o conceito de
criação do Movimento de Alfabetiza- conscientização, associado ao ato
ção de Adultos (MOVA), por meio do de educar quando se desvela a rea-
qual a Secretaria Municipal de Edu- lidade. Mas este conceito permane-
cação apoiava as salas de Educação ce intimamente ligado ao seu nome
de Jovens e Adultos (EJAs). e a toda a sua obra.
Lecionando na Universidade Es- E se este texto sobre um dos mais
tadual de Campinas (Unicamp) e na originais pensadores brasileiros co-
PUC de São Paulo, Paulo Freire parti- meçou com uma frase do poeta An-
cipou da criação do instituto que leva tonio Machado, vai terminar com
seu nome, em 1991, encarregado de uma estrofe de outro brasileiro ori-
preservar e divulgar sua obra. Há Ins- ginalíssimo, o músico Sidney Miller
titutos Paulo Freire em diversos paí- (1945-1980), da música A estrada e
ses, como a Argentina e os Estados o violeiro, de 1967.
Unidos. “A obra de paizinho hoje é “ Guarde sempre na lembrança que
mais conhecida no exterior do que no esta estrada não é sua
próprio Brasil”, lamenta Fátima Freire. Sua vista pouco alcança, mas a terra
Em 1986, Paulo perdeu dona Elza, continua
companheira de 42 anos. Passou por Segue em frente, violeiro, que eu lhe
um longo período de luto, mas supe- dou a garantia
rou a crise e casou-se outra vez em De que alguém passou primeiro na
1988, agora com Ana Maria Araújo, procura da alegria
a Nita, sua amiga de adolescência no Pois quem anda noite e dia sempre
Recife, e aluna na PUC. encontra um companheiro”.
Paulo Freire não chegaria a ver a Seria uma boa trilha sonora para
eleição a presidente do amigo Luiz quem sempre apostou na “Pátria
Inácio Lula da Silva, em 2002. Mor- Educadora”, não?
reu em 1997, pouco antes de comple-
tar 76 anos, após sofrer um infarto.
Nota
Em 2009, o Governo brasileiro pediu
1 BRANDÃO, Carlos Rodrigues – O que é
perdão post mortem a Freire e à fa- o método Paulo Freire – 3ª ed./S. Paulo/
mília, pelo exílio e a perseguição du- Brasiliense/1982

64  Cadernos Conib


A sustentabilidade
econômica das escolas
judaicas na lógica
competitiva do mercado

Alberto Milkewitz

Alberto Milkewitz,
psicólogo, é diretor-
institucional da
Federação Israelita do
Estado de S. Paulo;
diretor do Vaad
HaChinuch São Paulo

F
ui convidado a refletir sobre a sustentabilidade econô-
mica das escolas judaicas em longo prazo, tendo como
ponto de partida a experiência de colaborar na gestão1
do Vaad HaChinuch de São Paulo2 por mais de uma década. Se-
gundo um levantamento de 2015, as escolas judaicas e ieshivot
da capital paulista atendem diariamente 4.850 alunos3. De acor-
do com o estudo da Confederação Israelita do Brasil (Conib) fei-
to com escolas e centros de educação complementar do Brasil
todo, incluindo São Paulo, por ocasião do primeiro Encontro
Nacional de Escolas Judaicas, no mesmo ano, o número de jo-
vens que recebe semanalmente algum tipo de educação judaica
(formal ou complementar4) chega aos 8.260.
A oferta de educação judaica no país vai do básico ao en-
sino médio e existem programas de algumas horas semanais
de educação complementar. Estima-se que perto da metade
dos jovens da comunidade não recebe educação judaica for-
mal. Não se pretende aqui dar formulas para garantir a sus-
tentabilidade, senão colocar algumas questões necessárias
para pensar nestes temas e tirar algumas conclusões.
O Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes, tem
judeus em várias cidades. A megalópole de São Paulo, por

Cadernos Conib   65
exemplo, com 17,4 milhões de habi- Este conceito foca a continuidade
tantes é o lar da maior comunidade, do planeta e tem muito a ver com a vi-
com cerca de 60 mil judeus5, seguida são judaica de mundo, do ledor vador,
por outras capitais como Rio de Ja- de geração em geração. Isso significa
neiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, responsabilidade com as futuras ge-
Curitiba, Belém, Manaus, Salvador e rações, aquelas que não veremos com
Brasília. Há também centros comu- nossos próprios olhos, e as que vão se
nitários espalhados nos Estados do gestando na nossa própria geração.
Paraná, Rio Grande do Sul, Minas Outro princípio judaico implícito na
Gerais, Ceará, Amapá e, em menor sustentabilidade é o da corresponsa-
escala, há judeus em outras cidades bilidade. Somos responsáveis uns pe-
também. O Censo de 2010 do IBGE los outros. Devemos ter atitudes que
estimou a população judaica brasilei- permitam a vida dos outros, e não
ra em 107 mil pessoas6. apenas a nossa. As escolas são tam-
Sustentabilidade, Educação e Ju- bém propriedade das próximas gera-
daísmo. É preciso abordar estes con- ções, são um legado, uma herança.
ceitos de forma plural. Assim, quan-
do se fala de sustentabilidade não se A sustentabilidade tem muito
trata apenas da ambiental. São vá- a ver com a visão judaica de
rias “sustentabilidades“ a considerar mundo, do ledor va dor. Isso
e harmonizar. E esta articulação, por significa responsabilidade com
exemplo, entre a sustentabilidade, as futuras gerações
ambiental e a econômica, gera desa-
fios. No Judaísmo, as várias sustenta-
bilidades se conectam, já que afinal Quando se fala de educação, de-
tudo tem origem no mesmo Criador. ve-se entender que, sob o rótulo de
A sustentabilidade estimula condu- educação judaica, há, no Brasil, pro-
tas que garantem a “continuidade da postas bem diferentes que a susten-
vida” de maneira perene. tabilidade econômica deve consi-
Com o aquecimento global, os derar. Exemplificando: há ieshivot
gases do efeito estufa, os tsunamis, (seminários rabínicos) de correntes
inundações, secas e outros cataclis- religiosas diferentes (Haredim, Beit
mos, o ser humano se dá conta que Chabad7, Bnei Akiva e outras).
os recursos do planeta são finitos. A Há também escolas em que, diari-
questão ambiental ganhou grande re- amente, os alunos fazem todos os ser-
levância. Em 2002, a ONU lançou a viços religiosos que são mandatários
Carta da Terra e declarou o período para os judeus e dedicam várias horas
entre 2005-2014 como a “Década da do dia ao estudo do Tanach (Torá, Ne-
educação para o desenvolvimento sus- viim e Ketuvim) e do Talmud.
tentável”, definindo 15 perspectivas A comunidade judaica no Brasil
estratégicas de uma educação para dispõe também de outras escolas,
sustentabilidade. E, assim, foram in- que ainda são maioria, que se auto-
cluídas na noção de sustentabilidade denominam “pluralistas”, “culturais”
perspectivas socioculturais, ambien- e “seculares”. Especialmente nos cen-
tais e econômicas. tros com comunidades menores, é co-

66  Cadernos Conib


mum encontrar apenas a educação fio da sustentabilidade econômica
judaica complementar, inspirada no por serem as que mais têm crescido
modelo das Sunday Schools, em que na última década e por atender uma
há aulas sobre temas específicos com parcela em particular da comunida-
uma frequência semanal menor. de judaica, que conta com altos ín-
Por este, e por outros motivos, dices de natalidade.
devemos falar de “educações ju- Ainda é preciso levar em conside-
daicas”, no plural. E lembrar que a ração um elemento central na plura-
sustentabilidade econômica deve lidade do Judaísmo: ele varia ao lon-
atender tanto os centros com maior go da vida de cada indivíduo. Assim,
concentração comunitária, como pessoas que não receberam na infân-
São Paulo e Rio, como as pequenas cia e na adolescência uma formação
e microcomunidades pelo Brasil afo- com base nas fontes judaicas, quando
ra. É ingênuo pretender soluções descobrem e se identificam sua for-
idênticas para situações tão diver- ça e atualidade, iniciam o processo
sas num país com dimensões conti- de teshuvá, ou o retorno aos funda-
nentais como o Brasil. mentos do Judaísmo, que as leva ao
Isto leva ao terceiro termo que estudo, a cumprir mais mitzvot (bons
também precisa ser tratado no plu- mandamentos), e a serem percebidas
ral: o Judaísmo. É mais preciso falar como mais religiosas.
de “Judaísmos”, uma vez que há uma
enorme variedade de cosmovisões, Escola judaica:
interpretações e tradições. Em uma uma ou várias sedes?
boa parte, mas não em todas, há o A procura pela sustentabilidade é
componente religioso, do Tanach, do fundamental em todo momento, mas
Talmud, das fontes judaicas tradicio- ainda mais quando Brasil atravessa
nais. Mas não é o objeto deste artigo uma forte crise econômica e ética,
analisar as diferenças. que toca todos os cidadãos. Ter es-
O fato é que os judeus brasileiros colas viáveis, que permitam oferecer
entendem de formas bem variadas educação da melhor qualidade de
o que é seu próprio Judaísmo. Em acordo com os padrões nacionais e
muitos sentidos, as escolas são re- internacionais, está entre as deman-
flexo da diversidade das comunida- das que os pais fazem aos responsá-
des. Qualquer proposta sustentável veis pelas instituições de ensino. Isso
economicamente precisa contem- se traduz habitualmente na exigên-
plar esta diversidade de “Judaís- cia por excelência, na colocação no
mos” e “educações”. Enem, nos rankings de escolas tais
Do ponto de vista do índice de como o RUF8, onde as lideranças es-
natalidade, estas escolas atraem colares e as famílias dos alunos bus-
uma parcela da comunidade que se cam avidamente sua colocação.
mimetiza com os decrescentes índi- Numa megalópole como São Pau-
ces de natalidade brasileiros. Já as lo, vários grupos de judeus criaram,
escolas mais observantes, chamadas ao longo dos anos, escolas que par-
de religiosas, ortodoxas, haredim – tilham vários aspectos e conteúdos
incluindo as ieshivot – têm o desa- judaicos, mas que estão geografica-

Cadernos Conib   67
mente distantes umas das outras. mente em lugares diversos, deveria
Hoje, muitos não sabem explicar ser trilhada. Com esse modelo, po-
qual é a especificidade judaica ou até deriam ter uma administração cen-
educativa da escola dos seus filhos, tral e compras em comum. É racio-
se comparada com alguma das ou- nal, mas não é fácil.
tras. Não a escolheram por ideologia Psicologicamente, é bom lembrar
ou por qualidade educativa, mas por que fusão ou associação de escolas
questões de distância dos seus lares. em modelos concentrados ou a con-
Nos grandes centros do Brasil, a esco- centração numa única grande esco-
la precisa estar perto do lar. la significa que acabarão fontes de
Nesse contexto, a busca da sus- prestígio e cargos para presidentes
tentabilidade econômica é um desa- de mantenedoras e seus voluntários,
fio. Há propostas, como a defendida além de ocupação remunerada para
por alguns dirigentes, que aspiram diretores, coordenadores, professores
ter uma única grande escola, de ex- e outros profissionais da educação.
celência máxima (ou seja, estar colo-
cada entre as melhores da cidade ou Bolsas, filantropia e
do país), e com algum conteúdo ju- sustentabilidade econômica
daico, mas isso não atende a questão Esforços vêm sendo realizados por
da cercania. Outros propõem um es- anos para racionalizar e administrar
tilo de rede escolar como o da Cidade da melhor forma o conjunto das es-
de México, com um sistema de trans- colas judaicas. Por décadas, antes da
portes próprio (ônibus ou vans), que chegada ao mercado das fundações
leva e traz as crianças às suas casas, e instituições patrocinadoras, mui-
atravessando longas distâncias, e fa- tas escolas preenchiam seus proble-
zendo com que os jovens permane- mas orçamentários, às vezes graves,
çam horas nos veículos. com doações feitas por beneméritos.
Atualmente, esta prática está desa-
As políticas governamentais parecendo, e já assistimos a início de
têm apontado na direção de alianças de algumas fundações para
controlar e diminuir ao máximo, atender a necessidade de bolsas de
se não anular, os incentivos à ensino de forma mais racional e com
filantropia nas escolas privadas um maior grau de accountability.
A comunidade de São Paulo está
passando por um desenvolvimento
Nas maiores comunidades brasi- nesse sentido, que tem, de um lado,
leiras, uma das formas mais frequen- as escolas sob o guarda-chuvas do
tes de transporte dos alunos são os Vaad HaChinuch e, de outro, um con-
veículos da família. Sendo a questão junto de fundações que garantem que
geográfica um fator determinante, quem precise de bolsas as tenha, com
a manutenção de várias sedes pa- todas as garantias do ponto de vista
rece necessária. O que não signifi- social, educativo e econômico.
ca que se trate de várias escolas. A As políticas governamentais na-
fusão/unificação das escolas “plura- cionais têm apontado na direção de
listas”, ainda que distribuídas fisica- controlar e diminuir ao máximo, se

68  Cadernos Conib


não anular, os incentivos à filantro- conhecidas universidades, no Brasil
pia nas escolas privadas. Isso afeta ou no exterior.
diretamente as instituições judaicas As escolas judaicas não deixam
de ensino. Todas praticamente são fi- crianças judias fora, mesmo com o
lantrópicas. Por isso, é bom ficar aten- custo das mensalidades, que nas úl-
to. No Judaísmo, a educação é uma timas décadas as tem colocado entre
obrigação central e responsabilida- as mais caras. Mas isso sobrecarrega
de coletiva. Faz quase 2000 anos que o sistema, que tem de arcar com mui-
Iehoshua ben Gamla decretou que tos bolsistas e descontistas, parciais
todo pai judeu dever enviar seu filho ou totais, em número crescente.
de 6 ou 7 anos à escola primária.9 10
A filantropia exige que cerca de Sustentabilidade econômica:
20% do orçamento seja dedicado a concorrência dentro da
bolsistas, e os candidatos precisam comunidade?
se enquadrar na legislação que es- Nas últimas décadas, um fator
tabelece o que é pobreza no Brasil, que tem se acirrado é o da compe-
sendo que o que a lei considera como tição entre as escolas e entre seus
tal é, na prática, a pobreza extrema. profissionais e voluntários. No Bra-
As comunidades judaicas costumam sil, esta concorrência, que tanto di-
ter uma rede de proteção social, que ficulta a busca da sustentabilidade
garante que os seus membros não econômica, existe, é dura, mas tem
caiam nessa pobreza extrema. É ur- se mantido dentro de patamares ci-
gente pensar o tema da sustentabili- vilizados. Porém, só será superada se
dade frente a uma política sistemáti- predominar a racionalidade sobre os
ca dos governos de ajustar a outorga interesses pessoais.
da filantropia às escolas, e acabar Ainda que quase metade das
com o que interpretam como benefí- crianças judias não estejam matri-
cio. Assim, preparar-se é obrigatório. culadas em uma escola judaica, há
Deve-se buscar uma sustentabilidade uma concorrência pela conquista
econômica que não dependa da filan- de matrículas de alunos que já es-
tropia. Os que assumem responsabi- tão em outra escola judaica. Esta
lidade pela condução de escolas de- concorrência mais próxima pode
vem considerar em seus orçamentos ser prejudicial, porque a viabilida-
que as isenções atuais irão desapare- de econômica de uma boa escola
cer. E esta tendência não obedece a fica comprometida, quando seu nu-
este ou àquele partido. mero de alunos é pequeno. Grupos
As escolas funcionam dentro de pequenos de alunos têm o mesmo
um mercado aberto, altamente com- custo que classes completas. A arti-
petitivo, em que a concorrência não culação de várias sedes sob o mesmo
se limita exclusivamente às outras es- nome pode ser uma resposta a este
colas judaicas, senão também às es- tipo de situação.
colas privadas que oferecem o que os Como já disse um experiente diri-
pais almejam: bons resultados no ves- gente comunitário, ao fazer referên-
tibular, com especial ênfase no Enem, cia às escolas seculares e à necessi-
e a “garantia” de ingresso nas mais re- dade de terem uma massa critica de

Cadernos Conib   69
alunos: “Estas instituições não vão do Estado de Israel, tem feito com que
resistir, caso persista o modelo atual, as escolas se preocupem muito mais
em que o número de alunos pagantes com a excelência nas matérias gerais
não atinge o seu break even”. e laicas, do que com o lado judaico, e
Racionalização das mensalida- acabem competindo para se colocar
des, eventos periódicos de captação, no nicho das escolas não comunitá-
grandes eventos anuais, patrocínio rias reconhecidas pelo sua alta quali-
de projetos por parte de fundações dade nos rankings de avaliação.
são os caminhos habituais para a Com esses parâmetros, o “sucesso”
busca perene de recursos. Os di- das escolas judaicas nas últimas déca-
rigentes de escolas comunitárias 9 das tem sido baixo e restrito a poucas
precisam se perguntar como garan- instituições. Isso gera falta de credi-
tir sua sustentabilidade, diante da bilidade e afeta diretamente sua sus-
atuação do terceiro setor que exi- tentabilidade econômica, porque as
ge cada vez mais profissionalização escolas comunitárias competem com
por parte de quem deseja e necessita outras que têm a vantagem de con-
captar recursos. centrar seus orçamentos apenas no
desempenho. Só que as escolas judai-
Um fator que tem se acirrado cas têm de contar com docentes de
é o da competição entre Hebraico, Tanach, Torá, Talmud, His-
as escolas e entre seus toria judaica, Sionismo e outras maté-
profissionais e voluntários. rias, que não fazem parte do currículo
Esta concorrência dificulta de suas concorrentes externas.
a busca da sustentabilidade Em outras palavras: as escolas ju-
econômica e só será daicas têm que se esforçar em con-
superada se predominar correr com as melhores escolas do
a racionalidade sobre os país, porque isso é o que os pais exi-
interesses pessoais gem e, ao mesmo tempo, ter excelên-
cia judaica e hebraica, o que não é
demanda unânime. Muitas famílias
Há algumas tentativas de criação anseiam apenas por uma “escola de
de endowment funds, fundos à perpe- judeus”, para que seus filhos convi-
tuidade, que criam um valor-base im- vam e tenham amigos na comunida-
portante e fixo, que é aplicado, e ape- de, muito mais que uma “escola ju-
nas os rendimentos são utilizados. daica”. Neste último ponto, as escolas
Para este tipo de fundo ser viável, mais observantes têm a vantagem de
uma escola precisa demonstrar su- focar o Judaísmo, eixo pelo qual as
cesso, na forma que o seu público as- famílias as escolhem.
sim o interpreta: o sucesso nos diver-
sos rankings de avaliação existentes. Assim, aonde colocar a ênfase?
Tal característica, aliada ao predo- Na busca por excelência nas ma-
mínio entre os judeus brasileiros de térias laicas, que permita aos jovens
pobreza de conhecimentos judaicos competir no vestibular? Ou frisar o
básicos, tanto religiosos, da tradição, lado judaico da escola como seu di-
bem como da história do povo judeu e ferencial? Como reunir judaísmos di-

70  Cadernos Conib


versos na mesma escola? Como arti- das comunidades judaicas espalha-
cular excelência nas matérias gerais e das pelo país. Discutir coletivamen-
na área judaica? te sustentabilidade econômica? Criar
São questões para a reflexão indi- um grupo de trabalho supraescolas
vidual, no âmbito da própria escola, ou supraconselhos escolares (Vaadei
mas também, e muito, em cada uma Chinuch) sobre sustentabilidade?

Notas
1 Este artigo é de responsabilidade do Este texto aborda apenas a educação for-
autor. Seu conteúdo não representa um mal e não inclui apreciações e reflexões
posicionamento oficial do Vaad HaChinu- sobre movimentos juvenis sionistas nem
ch São Paulo. centros de educação complementar.
2 Conselho de Educação das Escolas Ju- 5 Recadastramento Comunitário 2000-
daicas de São Paulo. 2001; Federação Israelita do Estado de
São Paulo; 2001.
3 Colégio Yavne, Colégio IL Peretz, Es-
cola Antonietta e Leon Feffer – ALEF, Es- 6 http://censo2010.ibge.gov.br/
cola Beit Yaacov, Sociedade Beneficente
7 Milkewitz, Alberto; A Yeshivá como
Israelita Brasileira Talmud Thora, Socie-
proposta de educação judaica no Brasil;
dade Hebraico Brasileiro Renascença,
Ed. Yeshivá Tomchei Tmimim Lubavi-
Instituto Educacional Beneficente Israe-
tch Ohel Menachem Mendel; São Paulo,
lita Brasileiro Ortodoxo Beit Yakov, Esco-
2001.
la Maternal da Hebraica, Escola Maguen
Avraham, Escola Beit Esther, Colégio Or 8 Ranking Universitário Folha; Jornal
Menachem, Escola Talmud Tora Hama- Folha de S.Paulo.
or; Yeshiva Tomchei Tmimim Lubavitch;
Yeshivá de Cotiá; Yeshiva Gevohá. 9 Botticini, Maristella and Zvi Eckstein;
The chosen few – How education shaped
4 A educação formal é a oferecida por Jewish History 70-1492; Princeton Uni-
instituições submetidas a todas as forma- versity Press; 2012.
lidades da lei brasileira de educação, es-
pecialmente escolas em tempo integral, 10 Milkewitz, Alberto; tese de doutorado
com educadores especializados na docên- “Indagação filosofica e educação judaica:
cia. A educação não formal (tnuot e gru- as Leis do Estudo de Torá do Código de
pos de terceira idade) é aquela limitada Maimônides como um guia”; Faculdade
aos finais de semana e feriados, oferecidas de Educação da USP; São Paulo; 2008.
por jovens com uma formação não uni- 11 As escolas judaicas são todas comuni-
versitária para a docência e caracterizada tárias, existindo algum caso isolado em
pelo uso de técnicas lúdicas, teatrais, es- que se trata de propriedade particular,
portivas, de escotismo e recreativas, sem sem por isso deixar de ter uma aborda-
ter necessariamente uma programação gem eminentemente comunitária. Isso
anual detalhadamente pré-estabelecida e significa que o dono nas escolas são os
submetida a órgãos superiores de educa- pais dos alunos que as frequentam. Há
ção. A educação complementar combina grande dificuldade em atrair pais para
uma estruturação formal, dentro de tem- assumir a condução voluntária das esco-
pos limitados e menores aos dedicados à las, o que tem feito que se relaxe a exi-
educação formal, sem se submeter a Se- gência de ter filhos ainda na escola para
cretarias e Ministérios de Educação. Co- poder ocupar cargos eletivos nas direto-
nhecida também como Sunday Schools. rias das mantenedoras.

Cadernos Conib   71
72  Cadernos Conib
Educação judaica
como dádiva

Claudia Malbergier Caon

Claudia Malbergier Caon


Doutora em Educação,
economista e tradutora

U
ma das características que mais se destaca no ju-
daísmo é o valor atribuído à educação. O Talmud
(Baba Batra 21a) relata que, já no século 1 antes da
Era Comum, o sumo sacerdote Iehoshua ben Gamla estabe-
leceu o primeiro sistema nacional público e compulsório de
educação de que se tem notícia. Maimônides, eminente mé-
dico, filósofo, rabino e codificador da lei judaica, determina
que em toda cidade deve haver um professor de crianças, ao
qual confere a mesma importância de um médico, sinagoga
ou tribunal. Esse grande sábio medieval chega a afirmar que
a população de uma cidade na qual as crianças não estudem
deve ser posta no ostracismo, até que venha a contratar pro-
fessores (Mishnê Torá, Hilchot Talmud Torá, 2:2). Há até um
preceito bíblico que nos obriga a transmitir o judaísmo: “E as
ensinarás a teus filhos” (Deuteronômio 6:7). Essas são ape-
nas algumas evidências de que a educação sempre foi vista
como o elemento que assegura a existência do povo judeu.
Um dos grandes desafios que se apresentam ao mundo ju-
daico contemporâneo é o declínio do número de judeus for-
temente identificados como tais e que tenham participação
ativa na vida judaica. Um recente estudo da população ju-
daica norte-americana realizado pelo Pew Research Center,
A Portrait of Jewish Americans, aponta uma acentuada ten-
dência à concentração nas duas pontas de uma ampla escala
identitária, que vai da identificação apenas nominal com o
judaísmo à ortodoxia.

Cadernos Conib   73
A diversidade e vitalidade da po- vezes, a sua profundidade, o aspecto
pulação judaica parecem depender, dialético e qualitativo. Exemplo dis-
então, de medidas que favoreçam o so são as célebres duplas de sábios
movimento de indivíduos localizados que caracterizavam a época talmú-
na extremidade inferior da escala, ca- dica. Era comum que cada um deles
racterizada por fraca identificação sobressaísse em um desses aspectos,
com o judaísmo e pouca ou nenhu- como no caso de Shamai e Hilel. O
ma atuação na vida judaica, em dire- primeiro era notável pela profundi-
ção ao seu centro, tornando-o mais dade de seus conhecimentos, acom-
populoso e dinâmico. panhada de maior severidade e rigor,
Embora se refiram à realidade enquanto o segundo possuía conheci-
norte-americana e não devam ser mento extremamente vasto e atitude
transferidos de maneira imediata e mais generosa e tolerante.
impensada à de outros países, esses
dados nos chamam à reflexão e à bus- O conhecimento da própria
ca de recursos que possam contribuir cultura é fundamental para a
para o desejado efeito. formação e intensificação
Evidentemente, a educação ju- dos laços que ligam
daica tem um papel crucial a de- o indivíduo a ela
sempenhar nesse processo. Gosta-
ríamos de analisá-la aqui sob dois
aspectos, às vezes vistos como con- A ênfase em um ou outro método
traditórios: fortalecimento da iden- de estudo será guiada pelas caracte-
tidade e desenvolvimento do respei- rísticas e aptidões individuais e rele-
to ao diferente. vância do assunto em determinado
O conhecimento da própria cul- local e momento histórico. Porém, é
tura é fundamental para a formação importante que ambos sejam empre-
e intensificação dos laços que ligam gados. Diante de um patrimônio cul-
o indivíduo a ela. A identificação ati- tural tão amplo e diversificado, não
va com a vida judaica baseia-se, em podemos contentar-nos com pouco.
grande medida, no estudo e no co- A análise em profundidade, por sua
nhecimento profundo de seu vastís- vez, desenvolve habilidades cogniti-
simo repertório, construído ao lon- vas importantíssimas, como o racio-
go de milênios. Não é tarefa fácil cínio lógico e a capacidade de identi-
selecionar aí conteúdos e vivências, ficar contradições e buscar soluções,
e é fundamental explorá-los de ma- entre outras. Também assegura que
neira significativa, relevante para o judeus adultos não apresentem co-
aluno no momento atual. A imensi- nhecimentos judaicos superficiais e
dão de conhecimentos, porém, não simplórios, em descompasso com os
deve intimidar-nos. saberes que possuem em outras áreas
Na tradição judaica, o conheci- e precários perante as questões e di-
mento é visto por dois prismas distin- lemas complexos apresentados pelo
tos: bekiut e iun. Por vezes, destaca- ambiente em que vivemos, como o
-se sua vastidão, a erudição, o amplo crescimento ameaçador do antisse-
saber quantitativo (bekiut); outras mitismo e do antissionismo.

74  Cadernos Conib


A educação judaica, além de qua- que esta continue a preservá-las e a
lidade, requer tempo: carga horária transmiti-las.
expressiva e longa duração, não se Deixamos assim de ser indivíduos
limitando à primeira e segunda dé- isolados, afastados da corrente das
cadas da vida do aluno. Para isso, a gerações, desprovidos de referenciais
transmissão e o recebimento de co- externos e tradições morais, e nos in-
nhecimentos e tradições judaicas serimos em uma comunidade com a
não podem ser considerados como qual partilhamos sentidos, experiên-
um fardo inconveniente, que rouba cias, anseios. Reatamos a cadeia tem-
tempo de estudo de outras matérias poral, afastando-nos do mercado li-
tão necessárias no mundo profissio- vre, em que se troca tudo por tudo, e
nal extremamente exigente e compe- nos religamos à tradição, à transcen-
titivo de nossa época. Nem como um dência e à coletividade. Vinculamo-
sinal distintivo que deixaria as novas -nos ao passado e ao futuro.
gerações mais expostas aos perigos Contudo, o dom não é coerciti-
reais do antissemitismo renascido e vo. Nele estão sempre presentes a in-
do antissionismo feroz. certeza da retribuição e a liberdade
É mais da perspectiva da dádiva de quem recebe. Os estudos judaicos
que a transmissão e o recebimento são particularmente propícios à con-
desses ensinamentos deveriam ser jugação dessas duas facetas da dádi-
vistos: o presente que uma geração va, que poderia ser definida como “es-
oferta a seus descendentes por meio pontaneidade obrigatória”. Pois eles
das atividades educacionais familia- se abrem ao questionamento e à acei-
res, comunitárias e sociais. tação, à crítica e à reverência.
Dom é algo que se oferta a alguém,
sem esperar retribuição. Ou melhor, A educação judaica, além de
sem esperar pagamento ou submis- qualidade, requer tempo: carga
são daquele que recebe. Porém, o dom horária expressiva e longa
não é inteiramente gratuito. Apesar duração, não se limitando à
de não se inscrever na lógica mercan- primeira e segunda décadas de
til da busca de satisfação de interesses vida do aluno
materiais ou de poder, ele não é um
fim em si mesmo, mas um meio para
estabelecer relações.1 O estudo do Talmud pode ser to-
A prática do dom inclui três mo- mado como modelo desse processo.
mentos distintos: dar – receber – re- O ensino dos livros sagrados repre-
tribuir. Eis uma dinâmica circular, senta um ato de transmissão, e visa,
na qual a retribuição volta para o acima de tudo, a inserção do aluno
doador inicial. Todavia, há um caso na corrente da tradição. As próprias
particular dessa dinâmica, no qual a características do texto talmúdico, to-
circularidade se converte em verti- davia, imprimem uma dinâmica pe-
calidade. Ela se instala quando acei- culiar nessa prática, estabelecendo a
tamos as dádivas que recebemos de possibilidade de recriação.
nossos antepassados e as transmiti- A estrutura das seções legalistas
mos à próxima geração, esperando do Talmud é inteiramente dialogada.

Cadernos Conib   75
Para a compreensão de uma passa- Levaram-no para fora, envolveram-no
gem da Bíblia ou da Mishná, são suge- no rolo da Torá, colocaram feixes de
ridas diversas possibilidades interpre- brotos de videira a sua volta e atea-
tativas, que podem ser concordantes, ram-lhes fogo. Em seguida, trouxe-
complementares ou contraditórias ram tufos de lã, embeberam-nos em
entre si. Os alunos, trabalhando em água e colocaram-nos sobre seu cora-
duplas, devem investigar o texto com ção, para que ele não morresse rapida-
atitude indagadora e até mesmo crí- mente. [...] O carrasco então lhe disse:
tica, buscando soluções para even- “Mestre, se eu aumentar a chama e ti-
tuais incongruências no próprio li- rar os tufos de lã de cima de seu cora-
vro ou em outras obras explicativas, ção, você me levará à vida do mundo
e também no diálogo com o colega. vindouro?” “Sim.” “Jure.” O Rabi Cha-
Refaz-se assim a situação de recepção nania jurou. Ao ouvir isso, o carrasco
ativa e recriação conjunta de conhe- aumentou a chama e tirou os tufos de
cimento. Se atentarmos para as ca- lã de cima de seu coração, e a alma
pacidades cognitivas desenvolvidas do Rabi Chanania partiu rapidamen-
nesse tipo de trabalho, concluiremos te. O carrasco então saltou e se lançou
que o trajeto seguido pelos alunos ja- ao fogo. Uma voz divina exclamou: “O
mais poderá ser inteiramente previs- Rabi Chanania ben Teradion e seu car-
to e circunscrito. Oferece-se, necessa- rasco foram indicados para a vida no
riamente, a possibilidade de rebelião mundo vindouro.”
e a capacidade para promovê-la, em- Quando ouviu isso, o Rabi (Judá I, o
bora se tente, seja por persuasão inte- Patriarca) chorou e disse: “Uma pes-
lectual, no melhor dos casos, seja por soa pode ganhar a vida eterna em
pressão emocional ou social, no pior, uma hora, e outra só depois de tan-
impedir que ela ocorra. tos anos!”
Surge agora uma questão im-
portante: esse mergulho nos estu- Há uma questão importante: o
dos judaicos, apesar de contribuir mergulho nos estudos judaicos
para a criação de uma forte iden- não implicaria um fechamento
tidade judaica e participação ativa dentro da comunidade e até um
nos meios comunitários, não impli- sentimento de apartamento e
caria um fechamento dentro da co- superioridade em relação aos
munidade e, possivelmente, até um que não pertencem a ela?
sentimento de apartamento e supe-
rioridade em relação aos que não
pertencem a ela? O episódio se passa no período
Mais uma vez, busquemos no re- imediatamente posterior à derrota
pertório judaico recursos para evi- dos judeus rebelados contra o im-
tar esse efeito indesejado. Comece- perador romano Adriano, em 135
mos com a narrativa talmúdica do da Era Comum. Um dos atos vinga-
suplício do Rabi Chanania ben Tera- tivos dos vencedores foi a tortura
dion,2 a qual, em função de seu des- de dez sábios judeus eminentes até
fecho, constitui uma história moral- a morte, entre os quais se incluía o
mente exemplar. Rabi Chanania.

76  Cadernos Conib


Diante de tamanha crueldade, é cimento do sentimento de pertenci-
curioso notar que o relato talmúdi- mento ao grupo. Ao mesmo tempo,
co retrata um romano – membro do porém, promove o respeito à diver-
povo que oprimiu os judeus, sitiou e sidade, mostrando que o judaísmo
destruiu Jerusalém e o Templo, lan- não se impõe como condição de sal-
çou o povo à diáspora e infligiu ta- vação para outros povos.
manho tormento a seus sábios mais Esse princípio é reiterado na cé-
respeitados – praticando um ato hu- lebre sentença encontrada em Taná
manitário de enorme valor. Rompe- devei Eliahu Rabá (capítulo 9, itáli-
-se, assim, qualquer tendência ao co nosso):
maniqueísmo e à estereotipagem do [O profeta] Elias disse: Convoco o céu
outro, até mesmo no caso em que o e a terra para testemunhar que, seja
outro é um inimigo. judeu seja gentio, homem ou mulher,
É justamente a coexistência, em servo ou serva, o espírito santo se in-
um brevíssimo relato, de uma atroci- fundirá em cada um proporcionalmen-
dade acintosa e de uma demonstra- te aos atos que ele ou ela executar.
ção de piedade, ainda que interessa- Seria possível enumerar muitas
da, que tem o poder de promover o outras histórias exemplares e princí-
pensamento matizado e sentimentos pios morais integrantes do repositó-
diversificados em relação a um gru- rio judaico que estimulam a elabora-
po social ou nacional diferente e até ção de uma imagem positiva do outro.
mesmo agressor. Além disso, o solda- Para concluir, e como convite à
do alcançou a salvação perfeita, que busca de narrativas e máximas con-
não estaria, portanto, reservada uni- ducentes ao respeito ao diferente nos
camente aos judeus. acervos de diversas culturas e tradi-
A narrativa, por um lado, apre- ções, citamos um preceito bíblico ba-
senta fatos dramáticos e assim con- silar do judaísmo:
tribui para a formação de um amplo “Amareis o estrangeiro, porque
corpo de conhecimentos por parte fostes estrangeiros na terra do Egito”
do estudante, suscitando o fortale- (Deuteronômio 10:19).

Notas
1 Godbout, J. T. O Espírito da Dádiva.
Lisboa: Instituto Piaget, 1992.
2 Bialik, C. N. and Ravnitzky, Y. H.
(orgs.) The Book of Legends (Sêfer Ha-
agadá): Legends from the Talmud and
Midrash. New York: Schocken Books,
1992, p. 240.

Cadernos Conib   77
78  Cadernos Conib
Qual a importância da
educação judaica?

Rabino Samy Pinto

Rabino Samy Pinto


Prof. Dr. Samy Pinto
é Rabino graduado
pelo Rabinato Chefe de
Israel, PHD em Letras
Orientais pela USP,
bacharel em Ciências
Econômicas pela
Faculdade de Ciências
Econômicas do Rio de
Janeiro e especialista
em Educação pela
Universidade Bar-
Ilan, Israel.

Atualmente é Rabino da
Sinagoga Ohel Yaakov

S
ou fruto e produto da família e da escola judaica. e Diretor do Colégio
Iavne, em São Paulo.
Aliás, até o momento em que escrevo este texto, não
saí delas. Nelas passei como filho, neto, aluno, profes-
sor, coordenador e, atualmente, marido, pai de filhos na rede
judaica de ensino e também diretor de um colégio judaico em
São Paulo. São cinquenta anos de experiência maravilhosa
que poderão ajudar numa resposta inicial ao título que me foi
proposto pelos organizadores dessa respeitosa publicação.
Segundo a Bíblia, a educação dos filhos é responsabi-
lidade dos pais. Número expressivo de versículos na Torá
conferem o ensino do Judaísmo, especificamente, à relação
entre pais e filhos.
Cabe aqui distinguir dois conceitos, de acordo com nossas
fontes literárias. O primeiro é “Ensino Judaico”(Limud), que
diz respeito à transmissão de conhecimentos e informações
sobre tradição, cultura e história.

Cadernos Conib   79
Já o outro conceito, de caráter Foi assim que nasceram a Escola Ju-
formativo, ”Educação Judaica” (Chi- daica e suas Ieshivot (seminários ra-
nuch), é a transmissão da conduta e bínicos). Foi assim que surgiu a figura
da prática à criança, de acordo com do professor, Melamed, e do rabino. A
os mandamentos, moral,ética e costu- identidade judaica deixou de ser uma
mes judaicos. Teoria e prática devem meta exclusiva da família, passando a
sempre andar juntas na relação entre incluir a comunidade.
pais e filhos. O nome herdado pela
criança em hebraico, as primeiras Educar na esfera dos
preces , a “Mezuzá” de seu quarto, as valores morais é levar
primeiras idas à sinagoga, os relatos em consideração que o
bíblicos, rabínicos e as histórias dos Homem não é apenas razão.
avós devem acontecer em ambiente Uma formação puramente
familiar muito antes de a criança pisar intelectual, visando o
em uma escola. Essa é a origem do ter- acúmulo de conhecimentos,
mo Casa de Jacob ou Filhos de Israel; não abrange a totalidade da
o pressuposto é que o povo judeu ne- essência humana
cessita de uma casa judaica para que
cada filho possa iniciar o desenvolvi-
mento de sua identidade por meio dos O Talmud apresenta o grande ra-
valores milenares do Judaísmo. bino Ben Gamla como o idealizador
Educar na esfera dos valores mo- da Escola Judaica, instituição, que
rais é levar em consideração que o garantiria a continuidade plantada
Homem não é apenas razão. Portan- inicialmente pela família. A demo-
to, uma formação puramente inte- cratização do conhecimento, a orga-
lectual, visando o acúmulo de conhe- nização curricular, a prática dos va-
cimentos, não abrange a totalidade lores e a vivência das tradições, tudo
do mesmo. Aliás, a história do povo isso proporcionado agora para uma
judeu testemunhou, em diferentes coletividade. A escola não substitui a
períodos históricos, que crimes de- família, mas age diretamente seu fu-
sumanos foram cometidos por impé- turo, ora fortalecendo-a ora enfraque-
rios e governos que representavam o cendo-a. Depende das parcerias.
berço da civilização e das “humani- Tentarei ilustrar com dados as
dades”. Assim, a identidade de um parcerias acima citadas.
povo muito dependerá do domínio Nos EUA, 12% das crianças em
dos conhecimentos e práticas de va- fase escolar estão na rede judaica de
lores específicos de sua cultura. E ensino. Na comunidade liberal ame-
isso tudo se inicia com uma família ricana, apenas 4% de seus filhos es-
sólida, sabendo harmonizar a teo- tão em escolas judaicas. Já no Mé-
ria com a prática. Esse é um desafio xico, 90% dessas crianças estão em
constante para cada judeu. colégios da comunidade israelita.
Ao longo da história e de suas com- Pesquisas apontam que as famílias
plexidades, a família viu-se na neces- que enviam seus filhos ao colégio ju-
sidade de construir parcerias para dar daico possuem um aprofundamento
conta dos atos de ensinar e de educar. no conhecimento do judaísmo e uma

80  Cadernos Conib


intensidade elevada da prática reli- so. Na analogia rabínica, isso se asse-
giosa. Ex-alunos da rede judaica irão melha a um grande empreendimento
construir e prosseguir com a família de que você é convidado a participar.
a prática judaica em seus lares. Fazendo uma analogia simples: de-
As sinagogas serão fortalecidas. A pois de uma primeira entrevista pro-
identidade judaica fica retroalimen- fissional em uma empresa de ponta,
tada. Famílias sólidas ajudarão na você é comunicado que possui habi-
construção de escolas fortes e deixa- lidades para ser um diretor profis-
rão os valores judaicos eternizados. sional do negócio ou ainda para ser
Quero refletir sobre a função da sócio da mesma. É dada a você a pos-
escola em sua essência. sibilidade de escolha sobre o papel
Transformar uma realidade ou que gostaria de ocupar.
ser produto da acomodação do seu
entorno? O grande sábio rabino
Como devem agir as escolas fren- Moshe Chaim Luzatto
te à assimilação? Conheci profissio- explicou o que é ser judeu
nais de uma escola judaica do Equa- e não estava interessado em
dor que se define como “Sociedade definir quem é judeu.
Israelita sem religião”. O primeiro caso fortalece
Julgo ser importante a definição e o segundo
do judaico que adjetiva a escola e o determina a identidade
conceito de educação e identidade.
Sobre que valores estamos educando
nossas crianças e jovens? Você certamente escolheria a so-
Uma parcela significativa de nos- ciedade do empreendimento. Ser ju-
sos jovens estudar em escolas laicas. deu como sócio da criação é uma ex-
Seus pais justificam que os instru- celente reflexão para fortalecimento
mentos acadêmicos lá fornecidos ra- da nossa identidade.
tificam essa migração. Procure parcerias que alimentem
O grande sábio rabino Moshe a identidade judaica!
Chaim Luzatto explicou o que é ser ju- Se a tradição milenar judaica
deu e não estava interessado em definir apresenta um Criador, é porque exis-
quem é judeu. O primeiro caso fortale- te um propósito no mundo e um sig-
ce e o segundo determina a identidade. nificado em nossas vidas.
Sua opção foi baseada em dar orgulho a Que nossos filhos e alunos sejam só-
cada jovem aluno de uma escola judai- cios e não apenas técnicos do mundo.
ca para o fortalecimento de sua própria Um sócio com conhecimento téc-
identidade. nico é o ideal de valor a ser construí-
Luzatto explicou que o judeu é do em nosso empreendimento. Essa
sócio de D”us na criação do Univer- é a importância da educação judaica.

Cadernos Conib   81
82  Cadernos Conib
Quem, a quem, o que,
como, onde, quando
e por que se educa

Rabino Ruben Sternschein

Ruben Sternschein
é rabino da
Congregação Israelita
Paulista (CIP)

E
mbora o termo educação seja associado geralmente a
escolas, crianças e professores, bem como a conteú-
dos como geografia, matemática e gramática, a edu-
cação é bem mais abrangente, pretensiosa e complexa. Uma
de suas múltiplas definições seria a arte de influenciar deli-
beradamente a fim de obter uma transformação.
Nesse sentido, a educação não remete a uma idade de-
terminada, não se limita a um espaço e conteúdo, nem é
exercida apenas por determinados profissionais. Pais edu-
cam os filhos, mas também os filhos educam os pais quan-
do se propõem uma estratégia para conseguir uma trans-
formação nas atitudes, nos valores, nos conceitos de seus
pais. Assim, também alunos educam professores, cônjuges
se educam mutuamente, sociedades educam políticos, mi-
nistérios e escolas educam ministros. Workshops e retiros
de reflexão, capacitação, meditação são formas de educa-
ção. Conversas, relacionamentos, terapias, vídeos, peças
são propostas educativas.

Cadernos Conib   83
Morton Mandel saiu das listas dos conteúdo e contexto. Ou, formulado
mais ricos dos EUA dos anos 1960 e em forma de perguntas: quem educa,
1970, quando decidiu dedicar gran- a quem educa, o que ensina, e onde-
des somas à filantropia educacional. -quando-como.
Quando questionado pelos seus in- A resposta a essas quatro per-
vestimentos milionários em projetos guntas é a base para qualquer análi-
educativos de alto nível, destinados se educativa. Eu acrescentaria uma
a políticos, empresários, e universi- quinta, que poderia ser desdobrada
dades inteiras, explicou: da seguinte maneira: por que, para
“Quando era criança e queria que, com que propósito. O que se pre-
mudar o mundo, pensava que para tende com tal ou qual educação?
isso devia ser político. Quando che-
guei a um certo nível financeiro, en- I
tendi que os políticos dependiam dos
ricos e determinavam suas políticas Em hebraico, a palavra educação
em função do dinheiro que nós lhes (chinuch) vem da mesma raiz do
daríamos ou não. Ou seja, eram os que as palavras inauguração e re-
donos das grandes fortunas os que novação. Como se o pensamento ju-
podiam mudar tanto ou mais do que daico, por meio da linguagem, indi-
os políticos. Finalmente, concluí que casse que a educação é sempre uma
as decisões que tomam ambos, po- renovação, que inaugura uma e ou-
líticos e empresários, dependem da tra vez o educando e talvez o educa-
educação que recebem. E não me dor, o meio e também o conteúdo.
refiro às aulas de matemática, geo- De fato, os estudos judaicos tradicio-
grafia ou economia na escola ou na nais consistiram sempre numa rein-
universidade. Refiro-me, especial e terpretação das sagradas escrituras
principalmente, à educação perma- com o intuito de revelar novas men-
nente que recebem na experiência sagens lá escondidas.
de trabalho. Invisto na educação, Uma famosa passagem do Tal-
nessa educação, por que ainda que- mud de Jerusalém estabeleceu que
ro mudar o mundo”. “tudo que, no futuro, um aluno sá-
bio vier a decretar diante de seu mes-
Em hebraico, a palavra tre, já foi dito a Moisés no Monte Si-
educação (chinuch) vem da nai”. Ou seja: as Sagradas Escrituras
mesma raiz que as palavras entregues no Monte Sinai incluem
inauguração e renovação mensagens ocultas que precisam da
revelação renovadora que os alunos
providenciam aos mestres.
O renomado teórico da educação A educação é uma troca de re-
da Universidade Chicago, Joseph Sch- velações e renovações. Ao mesmo
wab, estabeleceu que existem quatro tempo, mestre, aluno e conteúdo
“commonplaces” ou fundamentos são revelados e renovados no ato
sempre presentes e determinantes de da educação. É por essa razão que a
toda educação e pensamento educati- educação no judaísmo não se limi-
vo. Eles são: educadores, educandos, ta a uma idade determinada, nem a

84  Cadernos Conib


um momento ou contexto determi- pares de estudantes, que leem juntos
nado. Todos devem estudar a vida os textos, e os discutem. Uma vez um
toda. O mandamento denominado ensina e na outra, é a hora do parcei-
Talmud Torá (estudo) prescreve que ro de estudos orientar o companhei-
todos estudem sempre, diariamen- ro. O tratado de sabedoria do século
te. O estudo é uma forma de viver 3 Pirkei Avot sugere: “Constitua para
e mantém a vitalidade da alma. É si um mestre e ganhe um amigo”. Os
uma forma de continuar vivo, de es- colegas de estudo se tornavam ami-
colher viver. gos de vida. Duplas existenciais para
enxergar o mundo.
A educação no judaísmo O fato de que todos deviam estu-
não se limita a uma idade dar e todos podiam ensinar e apren-
determinada, nem a um der implicava uma verdadeira demo-
momento ou contexto cratização da educação e do saber.
determinado. Todos devem Todos podem estudar, todos têm o
estudar a vida toda que ensinar, de todos podemos e de-
vemos aprender. Tudo é transmissí-
vel a todos. O poder implícito no sa-
O preceito de estudo constante é ber e em discutir o saber é outorgado
reconhecido no Talmud como aque- a todos. A responsabilidade também.
le que inclui quase todos os outros Assim, o mesmo tratado de sabedo-
preceitos, porque consegue con- ria estabeleceu que sábio não é aque-
duzir a eles. O estudo é reconheci- le que leu mais, decorou mais ou re-
do também como uma forma de se petiu mais, e sim “aquele que sabe
perpetuar na vida após a morte, pois aprender de todos”.
o impacto de termos estudado algo A educação é tão importante que
com alguém, seja como alunos ou o próprio Deus é reconhecido princi-
como mestres, ou em ambas situa- palmente como um mestre, tais como
ções simultaneamente, deixa uma os profetas e patriarcas. Segundo a
marca eterna. Bíblia, Deus é um “mestre que ensi-
Diferentemente da cultura grega, na a contribuir para o bem e nos guia
em que havia sábios, na tradição ju- assim pelos caminhos que surgirem”.
daica mais antiga este tipo de figura Essa contribuição do bem é ne-
não existia. Os mestres chamavam- cessária, pois o mundo e os homens
-se a si próprios de aprendizes de sá- são definidos no pensamento judai-
bios talmidei chachamim, inclusive co como imperfeitos, que esperam
aos setenta anos. Sempre aprendi- “ser aperfeiçoados”. O objetivo da
zes, no caminho do aprimoramento criação, o sentido da existência, es-
e da transformação providenciados pecialmente a humana, é justamen-
pela educação. te esse caminho de aperfeiçoamento
Tanto o mestre, como o aluno constante, chamado tikun – quando
se renovam constantemente no ato se refere ao mundo ou a alguma si-
educativo. Isso pode ser comprovado tuação ou contexto, e denominado
pelo método mais antigo e tradicional teshuvá – quando se aplica ao traba-
dos estudos judaicos: a chavrutá, ou lho introspectivo do indivíduo.

Cadernos Conib   85
II A educação como individuação
tem como objetivo o desenvolvimento
Tzvi Lamm, um dos professores do indivíduo. Não existem aqui con-
de filosofia da Educação mais reno- teúdos específicos obrigatórios ou ne-
mados da Universidade Hebraica de cessários. Eles sãos apenas recursos e
Jerusalém, estabeleceu três correntes ferramentas para o desenvolvimento
principais nas ideologias educacio- de habilidades intelectuais, emocio-
nais básicas. A educação como socia- nais, espirituais, artísticas ou técni-
lização, aculturação ou individuação. cas. O educador aqui não representa
A primeira é uma educação que ninguém, nem precisa ser um especia-
busca formar bons cidadãos, que lista em nenhum conteúdo. É apenas
se apeguem às regras da sociedade um facilitador, que pode abrir portas
mantendo seus costumes. Busca in- através de conteúdos ou dinâmicas
tegrá-los desse modo e se perpetuar. diversas. Esta educação pode aconte-
O professor é o representante dessa cer em inúmeros contextos. A exceção
sociedade e de suas regras. É quem são aquelas escolas estruturadas e rí-
as conhece e as passará aos jovens gidas demais, que inibem o desenvol-
desprovidos desse conhecimento, vimento da unicidade do indivíduo.
a fim de que as mantenham, assim
como foi feito pelos membros da ge- III
ração anterior. Este tipo de educa-
ção acontece principalmente na es- De volta para a educação como
cola mais tradicional. ferramenta para mudar ou consertar
A educação como aculturação o mundo, poderíamos ver esse obje-
busca transmitir valores, ideias e não tivo nas três ideologias, só que com
apenas conteúdos formais e regras, três premissas diferenciadas. A edu-
e acredita que desse modo os jovens cação como socialização acredita que
se tornarão membros de uma cultura a manutenção das regras sociais atra-
que transcende sociedades e geogra- vés das gerações de cidadãos é a for-
fias. Também compartilha crenças, ma de consertar o mundo. Os proble-
costumes e valores. Os jovens podem mas do mundo estariam na falta de
debater esses conteúdos e acrescen- aplicação dessas regras e nos limites
tar interpretações e modos de aplica- dessa sociedade.
ção, pois desse modo fortalecerão seu A educação como aculturação
vínculo e pertencimento à cultura. acredita que a preservação dos valo-
O professor também aqui seria res da cultura específica, incorporados
um conhecedor do conteúdo a ser na psique e nas discussões existenciais
transmitido e um promotor dos va- dos seus membros, será o caminho de
lores, assim como um gerador de mudar e aprimorar o mundo. Pois são
identificação e discussão com rela- estes valores, crenças e sistema de
ção à sua atualização e perpetuação. apropriação e atualização que apura-
Esta educação acontece não apenas rão o mundo e o homem.
dentro das escolas, mas também nas A educação como individuação
celebrações, na prática de costumes, também se vê como meio para apri-
em casa e no cotidiano. morar o mundo, mas não pela perpe-

86  Cadernos Conib


tuação de um poder, de um sistema, só existe onde é possível descortinar
de um conteúdo ou de uma cultu- a própria essência individual e única
ra. Tampouco por meio de uma de- do educando.
terminada sociedade ou civilização. De volta aos commonplaces de
Isso aconteceria por meio da demo- Schwab, na tradição judaica se edu-
cratização do direito de cada um a ser ca e se ensina todo mundo. O con-
único, desenvolvendo a sua maior e teúdo é apenas uma ferramenta e
melhor versão possível. um argumento de transformação
do mundo e dos relacionamentos. O
A educação é tão importante contexto é a vida toda. Ou seja: todo
que o próprio Deus é lugar e todo momento podem ser ap-
reconhecido principalmente tos para que a educação aconteça. É
como um mestre, tal como os preciso observar a vida através dos
profetas e patriarcas textos e conteúdos, se espelhar ne-
les para se revisitar e se aperfeiçoar
constantemente, ao mesmo tempo
No livro de Provérbios, a Bíblia es- em que os próprios conteúdos, os ou-
tabelece o ditado: “Educa o jovem se- tros indivíduos e o tecido de relacio-
gundo seu próprio caminho”. Em ou- namentos entre eles se aprimoram
tras palavras: educação verdadeira constantemente, graças à educação.

Cadernos Conib   87
88  Cadernos Conib
Desafios atuais
da educação
secular judaica

Sílvio Hotimsky

Sílvio Hotimsky
é educador e
psicanalista. É
orientador do
Colégio Santa Cruz,
professor do Colégio
Equipe e membro do
Departamento de
Sobre Educação: Psicanálise do Instituto
“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mun- Sapientiae
do o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele, e,
com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse
a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é,
também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bas-
tante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las
a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos
a oportunidade de empreender alguma coisa nova e impre-
vista para nós.”
Hannah Arendt

P
ensar e formular um conceito de educação é um desafio
necessário, especialmente se levarmos em conta os papéis
da escola nas sociedades modernas e contemporâneas.
Trata-se, antes de tudo, de uma questão de assegurar o
direito das crianças à educação. Cabe à escola partilhar com
as novas gerações as narrativas e os conhecimentos siste-
matizados que foram alcançados pela humanidade. Indiví-
duos, grupos e comunidades precisam adquirir formações
sólidas para poder tomar decisões que fortaleçam ou trans-
formem heranças culturais e simbólicas recebidas das gera-
ções que os antecederam.

Cadernos Conib   89
Para Arendt, caberia aos jovens o a “exigência que Auschwitz não se re-
desafio de renovar um mundo comum pita é a primeira de todas para a edu-
e, para que isso fosse possível, a esco- cação”. O objetivo primordial dela é
la deveria empenhar-se na direção de a luta contra a barbárie. Esta fantás-
ensinar as crianças como o mundo é, tica articulação entre educação e éti-
evitando a tentação de instruí-las na ca nos conduz ao permanente deba-
arte de viver. A própria ideia da ins- te de como favorecer a compreensão
trução, quando pensada como objeti- de que o verdadeiro trabalho educa-
vo central de um trabalho, revela uma cional é aquele que possui um senti-
visão educacional predominantemen- do emancipatório. Este só pode se dar
te vertical, verdadeiro caldo de cultu- se são elaboradas condições de inter-
ra da crueldade e das dominações. venção frente às determinantes so-
Os educadores são aqueles que ciais e culturais do nosso tempo.
assumem para si a responsabilidade
de trabalhar conceitos, conteúdos, Judaísmo como civilização
visões de mundo e valores em um
universo em permanente transfor- “ O judeu herege, que superou o judaís-
mação. Ao invés de se abrigarem de- mo, pertence a uma tradição judaica”
baixo das certezas, educadores par- Isaac Deutscher
tilham suas dúvidas, seus estudos e
reflexões com os educandos. Ensi- O advento da modernidade pro-
nam e aprendem, acima de tudo, na piciou a vários grupos, incluindo aos
relação. Encontros, diálogos e trocas judeus, a possibilidade de se inven-
são seus maiores recursos. Entendem tarem e se reinventarem em suas es-
que cada época produz novas formas colhas de vida. Até o início do sécu-
de viver, novas subjetividades. lo 19, nas regiões da Europa onde se
Esta condição do educador é sem- concentrava a maior parte da popu-
pre dramática, mas encantadora ao lação judaica, os judeus viviam em-
mesmo tempo. Ao se deparar com balados em uma infinidade de ele-
as respostas prontas e os modismos, mentos: língua, costumes, religião,
cabe a ele questionar. Assim, afirma educação, vestimenta, alimentação,
o peso da reflexão, sempre marca- enfim, todas as dimensões da exis-
do pela delícia e pela dor do próprio tência que definem um agrupamen-
pensar, em um movimento que oscila to humano. Como dizia Tevye, o lei-
entre a angústia da solidão e a reali- teiro de Scholem Aleichem, cada um
zação das boas parcerias com educa- sabia quem era e conhecia a exigên-
dores-educandos e educandos-edu- cia divina perante este saber. As tra-
cadores, como dizia Paulo Freire. dições acompanhavam as pessoas do
O pensamento e a dúvida são nascimento até a morte.
as características mais humanas A Revolução Francesa e o Ilumi-
da nossa condição. Por meio delas nismo conferiram novo valor à cons-
nos definimos e nos redefinimos em tituição do indivíduo. O destino que
nossa humanidade. a religião e a comunidade reserva-
Adorno, em uma palestra na rá- vam a ele foi gradualmente substi-
dio de Essen, em 1965, defendia que tuído por um novo desafio, fundado

90  Cadernos Conib


a partir da crítica às tradições que deus se realizassem em dimensões
impunham sérios obstáculos ao li- que eram impensáveis pouco tempo
vre pensar e ao desenvolvimento das antes. Por outro lado, a forma como
pessoas como sujeitos. se desenvolveram também gerou no-
Neste momento, emergiu a ques- vos problemas.
tão moderna da identidade. O que A religião, principalmente em sua
definiria um judeu? A pergunta era vertente ortodoxa, defendeu a visão
algo impensável no shtetl, a pequena exclusiva da condição judaica a par-
aldeia que reunia a maior parcela de tir da Halachá e do Shulchan Aruch.
população judaica. Lá, tudo definia Conferiu-se sabedoria e autoridade
a identidade. Esta forma de vida foi à ortodoxia, somadas à ideia de que
rompida, e os judeus passaram a se os religiosos eram e são os verdadei-
dirigir para as grandes cidades, sain- ros guardiões do judaísmo. A crítica
do da condição periférica nas socie- a todas as formas de fundamentalis-
dades europeias. As rupturas e per- mo demorou a chegar de forma dis-
manências com o passado e com as seminada ao universo judaico. A fal-
tradições inauguravam novas formas ta de um questionamento rigoroso foi
de vivenciar o judaísmo. O debate en- evidentemente sentida como um ele-
tre o particular e o universal se im- mento de regressão.
pôs, trazendo novas possibilidades ao
lado da angústia de abandonar for- Se é verdade que os
mas estabelecidas de sociabilidade. importantes campos religiosos
O movimento sionista, contem- e sionistas devem procurar se
porâneo de outros movimentos na- renovar à luz da autorreflexão
cionais, despontou como uma nova, crítica, também merece
poderosa e criativa categoria nas pos- destaque a necessidade de
sibilidades do ser judeu. O que até en- seguirmos abertos a novas
tão era, prioritariamente, definido possibilidades do ser judeu
pela condição religiosa passou a ter
uma vertente nacional vigorosa e re-
novadora. O que era definido exclu- A vertente nacional reivindicou o
sivamente pelo universo do sagrado, apoio incondicional ao Estado de Is-
ganhou outros contornos. rael, confundindo a figura do Esta-
As possibilidades de seculariza- do com a do governo. Criticar Israel,
ção transformaram efetivamente as algo que se faz e deve ser feito em re-
relações dos judeus dentro dos seus lação a qualquer país do mundo, tor-
grupos de origem e alteraram as nou-se algo a ser evitado pelas comu-
formas de relação com a sociedade nidades estabelecidas e organizadas.
não-judaica. Entender a identidade Se é verdade que os importantes
de forma não exclusivamente reli- campos religiosos e sionistas devem
giosa implicou uma verdadeira re- procurar se renovar à luz da autor-
volução, por conta da possibilidade ref lexão crítica, também merece
de ampliação das condições identi- destaque a necessidade de seguir-
tárias. Novas formas de organização mos abertos a novas possibilidades
emergiram e permitiram que os ju- do ser judeu.

Cadernos Conib   91
Para tal, é importante retomar e criativas formas de pensar e viver o
o enorme esforço, coragem e cria- judaísmo. Acreditavam na possibili-
tividade de judeus seculares que, dade de as tradições dialogarem com
como Isaac Deutscher, defendiam a modernidade.
que o judeu herege pertence a uma A comunidade deve se basear em
tradição judaica. Dizer que eles su- preceitos de igualdade entre homens
peraram o judaísmo é dizer que e mulheres e ter a democracia como
transcenderam a condição religio- valor. A soma criativa de todos os ele-
sa judaica. Para Deutscher, Spino- mentos que compõem a experiência
za, excomungado pelos rabinos de judaica nos remete a novos desafios,
Amsterdã, Heine, Marx, Rosa Lu- novos e interessantes problemas a
xemburgo, Trostky, Freud e tantos serem trabalhados na condição con-
outros precisavam ser considerados temporânea, em que a liberdade do
dentro da tradição judaica. Transpu- indivíduo deve dialogar com as ne-
seram as fronteiras do judaísmo re- cessidades de construções sociais.
ligioso por achá-lo estreito à época,
mas isso foi realizado também a par- Educação e judaísmo: civilização e
tir de uma condição judaica. secularidade
Chagall desafiou os religiosos
que, a seu ver, limitavam o desenvol- “De Ruth surgiu a casa do Rei David,
vimento das artes visuais. Benjamin de quem somos descendentes. Ruth,
e Kafka mantiveram longas reflexões a moabita, é a que veio de fora. Boaz,
com Guershom Scholem e Max Brod, com quem ela se casou, nunca havia
lapidando a condição judaica secular. saído do judaísmo. Naomi, sua sogra,
O que há em comum entre todos que promove o encontro entre ela e
estes pensadores é que eles denuncia- Boaz, foi a que saiu para ir a Moab e
vam uma mentalidade de gueto, uma depois voltou. A conclusão é que nos-
filosofia de gueto e queriam destruir sa força e continuidade dependem
os vestígios das atitudes de gueto que deste tripé: pessoas que nunca saí-
viam em suas épocas. ram, pessoas que saíram e voltaram
Mordechai Kaplan, excomungado e pessoas que vieram de fora.”
pelo Agudat HaRabbanim, em junho Rabina Luciana Pajecki Lederman – li-
de1945, deu um grande passo na for- vre comentário de trecho da obra da
mulação da questão; para ele, o ju- Professora Tikva Kensky sobre Ruth,
daísmo é uma civilização. É composto a moabita.
por uma vasta cultura que se sustenta
em elementos da Literatura, Língua, Vivemos em pleno tempo da ló-
Artes, Dança, Música, Teatro, Histó- gica do capital e da mercadoria. O
ria, organização social, comunitária mercado dá as cartas em todas as di-
e territorial. Isso o aproximava de ou- mensões da vida, incluindo aquelas
tros pensadores como Ahad Haam, que são essenciais, como educação,
Buber e Gershom Scholem, que en- saúde e cultura. As fronteiras entre
tenderam que a valorização da reli- a política e os negócios evaporaram.
gião e da centralidade de Israel eram Escolas, sinagogas, hospitais e insti-
elementos impulsionadores de novas tuições de assistência social correm

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o risco de serem pensadas a partir cumentos da época são reiteradas
da primazia do mercado, da lógica as intenções de fomentar o encon-
da empresa. Aquele que deveria ser tro entre as culturas judaica e brasi-
um dos elementos da equação torna- leira. A integração se dava também
-se o centro dela. pelo acolhimento de alunos de di-
A comunidade judaica brasileira versas origens culturais e religiosas,
conta com verdadeiros marcos que ampliando o espectro universalista
a destacam como um universo rico e que, vindo do judaísmo, se coloca-
plural. Sua riqueza depende da capa- va aberto para os encontros e trocas
cidade de responder ao conceito de com o mundo a sua volta.
kehilá, isto é, a responsabilidade do Ainda existe uma significativa di-
grupo perante seus membros, respei- versidade entre as escolas judaicas.
tando a diversidade destes. Porém, é Ela mostra a pluralidade como um va-
preciso saber se, com o tempo, esta lor positivo, no que concerne à visão
marca se expande ou se contrai. Ins- do que é ser judeu e se educar judai-
tituições importantes, que contribuí- camente. Ultraortodoxos, ortodoxos,
ram com a visão do que é a kehilá, conservadores, liberais e seculares
como a Cooperativa de Crédito e a cultivam visões distintas. Pessoas
Escola Scholem Aleichem, deixaram convivem em círculos distintos que,
de existir. O Lar dos Velhos, atual Lar muitas vezes, parecem pouco con-
Golda Meir, está claramente amea- ciliáveis. Cada um tem, certamente,
çado em relação a sua missão inicial. sua importância no universo judaico.
Bernardo Sorj desenvolve a refle-
A comunidade deve se basear xão sobre esses fenômenos, desta-
em preceitos de igualdade cando que há uma individuação do
entre homens e mulheres e ter judaísmo, as escolhas de como ser
a democracia como valor judeu são cada vez mais marcadas
pela decisão do indivíduo. Ser judeu,
ele destaca, passa cada vez mais a ser
O Scholem foi uma referência uma opção cultural e não uma deter-
importante para a educação judai- minante biológica. Esta condição,
ca e brasileira. Uma verdadeira van- mais inclusiva, claramente convive
guarda pedagógica que desenvolvia com formas de proselitismo.
um projeto educativo com muitos
ingredientes que só foram acolhi- Quais seriam os desafios para as
dos na educação brasileira tempos escolas?
depois. Projetos, estudos do meio, No campo das escolas religiosas,
interdisciplinaridade eram elemen- podemos nos perguntar como evitar
tos do trabalho cotidiano dessa es- que elas flertem com as formas extre-
cola. Educação, Cultura, Política se mas de fundamentalismo.
mesclavam no currículo. Além da Para as não-religiosas, a questão é
escola, havia um teatro aberto a to- como ampliar e aprofundar a vivência
das as manifestações artísticas e que dos aspectos seculares da condição ju-
ajudava no diálogo da escola com o daica. Como pensar numa escola ju-
bairro e com a cidade. Em vários do- daica e não em uma escola de judeus?

Cadernos Conib   93
Como superar a mentalidade segrega- formas de vida judaica e ser o mar-
cionista na constituição dessas insti- co principal da invenção de uma nova
tuições, verdadeiro resquício da men- comunidade, onde judeus seculares
talidade de gueto? E como se deparar possam ter voz e respeitabilidade.
com as questões contemporâneas dos O professor, cantor e compositor
encontros amorosos entre pessoas de Paulo Vanzolini, ao ser perguntado
diferentes origens étnicas? Como va- sobre a preservação da Amazônia,
lorizar as questões da igualdade entre respondeu secamente que a solução
os gêneros? Como transpor a barreira para tão importante território era
da intolerância em relação às pessoas “trancar e perder a chave”.
com orientações sexuais diversas da- Com sua inspiração, queremos su-
quelas impostas pela heteronormati- gerir que precisamos abrir a porta do
vidade? Como discutir o longo confli- gueto e perder a chave. Assumirmos
to entre Israel e os palestinos, que nos que vivemos em sociedades multiét-
remete a dilemas éticos morais e que nicas e que a sobrevivência do judaís-
colocam em risco conceitos vitais do mo está em se abrir e enfrentar com
judaísmo e do sionismo? sensibilidade e inteligência os desa-
A imensa maioria dos judeus vive fios dos nossos tempos. O medo, as
integrada aos marcos que definem a ameaças, as chantagens não cons-
modernidade e a contemporaneida- troem nada de sólido. De fato, pou-
de. Interessam-se por isso, querem ter co se pode construir sobre a recusa, a
a maior liberdade possível para esco- negação e o esquecimento.
lher seus caminhos. E simplesmente A marca do judaísmo deve ser a
se interessam pouco ou não se inte- do estudo e da pesquisa social e cul-
ressam pelos aspectos ritualísticos da tural. Estudo como partilha e gene-
religião. Ao mesmo tempo, querem rosidade.
se sentir pertencentes, vinculados a A escola, e somente a escola, ao
uma cultura que tem elementos en- promover o encontro cotidiano e li-
cantadores e estruturantes no sentido vre entre gerações pode inventar um
da reflexão sobre o sentido da vida e judaísmo que se renova sempre. Um
das coisas. Ser inclusivo é reconhecer judaísmo marcado pelas novas inter-
as diferenças com curiosidade. pretações e práticas comunitárias.
Somente o trabalho educacional Judaísmo criador de laços sociais que
e, acima de tudo, o realizado na es- valorizem novas coletividades de me-
cola, pode acolher as mais diversas mória e pertencimento.

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Este livro foi impresso
em novembro de 2015 para a
Confederação Israelita do Brasil
Representante da Comunidade Judaica Brasileira
www.conib.org.br

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