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Sobre a falácia naturalista, ou quem tem medo

do bicho-papão?
15/01/2011 por Camilo Gomes Jr.

Camilo Gomes Jr.

ATÉ O PONTO em que minha memória se perde nos primeiros anos de minha infância,
não encontro nenhum vestígio de lembrança de algum dia ter tido medo do bicho-papão.
Lembro-me de já ter visto o pavor estampado no semblante de alguns coleguinhas do
jardim de infância — eles, que tapavam o rosto com as mãos, enquanto ouviam histórias
sobre a tenebrosa criatura que surgia dos cantos escuros dos quartos e guarda-roupas
para aterrorizar criancinhas —, mas eu mesmo, curiosamente, só fazia rir dessas
narrativas. Apenas bem mais tarde, já na adolescência, uma outra criatura sinistra
conseguiu me trazer pesadelos, após anos e anos de educação religiosa pelo terror, à
moda cristã. Refiro-me ao diabo e ao pavor do inferno, é claro; mas esta já é outra
história. A questão é que o bicho-papão nunca me amedrontou, até onde me lembro.

Muitos têm medo da falácia naturalista, como se fosse o próprio bicho-papão.

No entanto, hoje em dia, nas muitas vezes em que estou tentando explicar a proposta de
integração dos saberes científicos que defendo, visando evitar a mútua
incompatibilidade entre os campos das ciências sociais e naturais — algo tão
corriqueiro na esfera do direito, minha área de estudos, em que o fenômeno jurídico é
explicado por teses que, não raro, não encontram amparo em quase nenhuma outra
ciência, sobretudo nas que estudam a mente e o comportamento humanos —, é curioso
deparar-me outra vez com aquele semblante assustado de criança que acabou de ouvir
mais uma história de bicho-papão. “Camilo, Camilo”, exclamam alguns, “cuidado com
a falácia naturalista, rapaz!” A bem da verdade, nesse tipo de alerta, costumam vir
imiscuídas ou confundidas tanto a chamada “guilhotina de Hume”[1] quanto a “falácia
naturalista” de Moore,[2] ao que — não sempre, mas em muitos casos —, são

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acrescentados a defesa da noção de “magistérios não interferentes”, de Gould, [3] e o
relativismo cultural, nosso velho conhecido, que nunca sai de moda.

Como eu disse, nunca tive medo do bicho-papão, mas já tive medo do diabo. Entendo o
receio dessa gente. E mais: hoje sei que, contrariando uma de nossas antigas ideias
sobre a razão humana — tantas vezes elevada, na filosofia, a alturas para além de
Asgard —, nossos cérebros são uma verdadeira máquina de crenças, em que fatos e
valores são processados de forma indistinguível ao nível cerebral. [4] O resultado disso,
meus amigos, é que o bicho-papão, para quem nele acredita, acaba sendo tão “real” e
produzindo efeitos tão “reais” sobre os que o temem quanto a experiência geral de uma
dor de dente. Dito de outra forma, o medo da falácia naturalista, para aqueles que
tremem só de pensar nessas palavras, é um medo real. E não os acusem de estar sendo
irracionais — ao menos no rigor da palavra —, pois o objeto de receio em suas mentes
lá entrou pelas mesmas vias computacionais e corticais tomadas por quaisquer
informações factuais, como a crença de que não devo colocar a mão num moedor de
canas, sob pena de perdê-la, numa experiência nada prazerosa, ou de que o hidrogênio é
o elemento químico de menor densidade e o mais abundante no universo.

Enfim, é por levar a sério essas crenças temerosas dos que me alertam acerca do perigo
de cair na falácia naturalista, nesta minha empreitada, que resolvi escrever este texto.
Tentarei exorcizar os demônios dessa gente, deixá-los mais tranquilos quanto ao que
venho tentando fazer, juntamente com alguns outros colegas. Farei isso, tentando não
me desesperar muito por lembrar que, enquanto tenho de acalmar essas crianças
assustadas, nos Estados Unidos e na Europa, outros estudiosos já estão anos-luz à nossa
frente, nesse movimento de integração vertical dos saberes científicos, ou, como o
chamaria E. O. Wilson, nesse esforço de “consiliência”.[5]

A esse respeito, aliás, para mostrar que há, atualmente, mesmo no Brasil, alguns
acadêmicos preocupados com a necessidade desse interacionismo teórico, inclusive na
seara das ciências jurídicas, começarei citando uma observação do Prof. Atahualpa
Fernandez quanto à questão:

É fato que as teorias construídas no âmbito do direito raramente são avaliadas a partir de
um enfoque ou diálogo interdisciplinar. Daí que, muitas vezes, em razão de a ciência e o
estudo do direito ainda viverem em grave e brutal isolamento, algumas explicações ou
construções jurídicas estão baseadas em uma realidade, psicologia ou natureza humana
impossíveis. E o que verdadeiramente surpreende é que ainda tenhamos de insistir nisso.

A defesa tradicional da separação entre o cultural e o natural — antes de chegar a


afirmar que tudo está socialmente construído e que, portanto, não existe nenhuma
realidade independente de causas sociais ou de necessidades cognitivas — tomou força
em decorrência da natureza distinta de ambas as realidades, a saber, em razão da
concepção de que o mundo das ideias, do simbólico, do cultural, do social e do jurídico
está governado por leis irredutivelmente distintas das leis próprias das ciências naturais.

Claro que, neste aspecto, as ciências sociais se encontram entorpecidas pelo resíduo de
forte precedente histórico. A intencional ignorância das ciências naturais foi uma
estratégia que modelaram os fundadores, em especial, Émile Durkeim, Karl Marx,
Franz Boas, Hans Kelsen e Sigmund Freud, e seus seguidores imediatos. Pretendiam,
frustrando o “sonho ilustrado”, isolar suas disciplinas nascentes das ciências

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fundacionais da biologia e da psicologia, que, na origem das ciências sociais, eram, em
qualquer caso, demasiado primitivas para serem de relevância evidente.[6]

O problema reside em que, ao longo do século XX e adentrando o novo milênio, houve


uma verdadeira revolução nas ciências que estudam a mente e o comportamento
humanos. Surgiram novos e profícuos campos de estudo (como as ciências cognitivas, a
neurociência, a psicologia evolucionista, a genética comportamental etc.), que
produziram novas teorias explicativas de antigas e novas questões, tudo edificado sobre
sólidos pilares evidenciais. Teorias, estas, que, em não poucos casos, acabaram
colidindo de frente com teses aventadas por figuras do quilate desses citados por
Fernandez, num momento em que seus nomes já se encontram eternizados no panteão
dos deuses idolatrados por intelectuais e acadêmicos de toda parte, como se comprova
pela sensível familiaridade que mesmo os que nadam em “outra praia” têm com
adjetivos como “marxista” ou “freudiano”, ou com termos como “o organicismo de
Durkheim”, “o culturalismo de Boas” ou “o purismo positivista de Kelsen”.

É então que se cria essa situação importuna, em que defender qualquer teoria que
contradiga um desses credos estabelecidos soa como heresia para os que nele creem. É o
momento em que divulgar novas descobertas científicas e promover os novos
paradigmas que estas ajudam a consolidar passa a ser o equivalente a entrar numa sala
fechada, abarrotada de ninhos de vespas pregados às paredes, tendo em mãos uma vara
e o dever moral de um camicase: cutucar cada um desses vespeiros, sabendo o que as
vespas farão em resposta.

Entre fatos e valores

Mas, enfim, aqui estou, segurando um bambu diante de alguns desses ninhos. E começo
a cutucá-los, quando vejo o engajamento de um cientista, como falecido Stephen J.
Gould, na defesa fervorosa de uma ideia “politicamente correta” mas factualmente
questionável como a dos “magistérios não interferentes” — tentando fixar limites para
além dos quais a ciência não pode avançar, devendo passar o bastão para a filosofia e a
teologia —, e não consigo deixar de me perguntar em que medida tal postura poderia
estar comprometida com sua particular visão moral de mundo. Quando, por sua vez,
testemunho a campanha liderada por nomes respeitados nas ciências, como Lewontin,
Rose e Kamin, visando condenar a sociobiologia e sua atual sucessora, a psicologia
evolucionista, rotulando como “reducionismo biológico” todo esforço de se estudar a
dicotomia mente e natureza humana,[7] — esforços que vêm destacando como essa
relação sepulta o antigo mito da mente como uma tábula rasa —, deveríamos nos
indagar por que é que o fazem, uma vez que são eles próprios, sabidamente, legítimos
reducionistas, no rigor da palavra.[8] Quando um filósofo da grandeza de Karl Popper [9]
faz coro com outros tantos que, com frequência, surgem aqui, ali e acolá, alertando
sobre o perigo de se cair na tão temida “falácia naturalista” (cunhada por George
Edward Moore), não posso deixar de submeter sua perspectiva a uma compenetrada
reflexão, procurando rastrear seus porquês, suas razões de assim proceder.

E por que o faço?

Bem, para começar, pelo fato de que qualquer divisão pretensamente “objetiva” entre o
ser e o dever ser, entre a dimensão dos fatos e a dos valores, pode parecer razoável e
inspiradora, mas é, ao menos ao nível do cérebro e da mente, uma divisão ilusória,

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como argumenta Sam Harris.[10] Isto porque, o funcionamento já monitorado e avaliado
de nossos cérebros, põe em questão a capacidade de racionalização puramente objetiva
e neutra. O fenômeno já foi estudado até mesmo no campo dos “imparciais”
julgamentos de terceira parte não interessada, como nos processos racionais de
condenação e determinação da sanção, constituintes das atribuições dos juízes.[11]

Portanto, a principal indagação que sempre devemos nos fazer, no que diz respeito a
esses casos, é a seguinte: poderia estar havendo, nesses esforços acusativos da
transposição de enunciados descritivos, fáticos, do tipo “ser”, para enunciados
prescritivos, morais, do tipo “dever ser” — a chamada “guilhotina de Hume” — uma
incidência de seus próprios delatores naquilo que eles mesmos denunciam? Quer dizer,
seria legítimo desconfiar de que os juízos morais e ideológicos desses críticos poderiam
estar se imiscuindo em sua visão “objetiva” do problema da guilhotina humiana, da
falácia naturalista de Moore ou da noção de “magistérios não interferentes” de Gould,
toda vez que se levantam para condenar qualquer estudo dos valores humanos por um
prisma evolucionário?

Se lembrarmos que a combinação das palavras “Darwin”, “evolução” e “moral”, na


cabeça de muitos desses cientistas e filósofos, remete a experiências nem um pouco
admiráveis, como um darwinismo social spenceriano [12] ou haeckeliano,[13] a coisa
começa a fazer sentido. Como bem lembrou Dan Dennett:

É importante reconhecer que o darwinismo sempre teve um infeliz poder de atração


sobre os mais indesejáveis entusiastas — demagogos, psicopatas, misantropos e outros
deturpadores das ideias de Darwin.[14]

Gould era um inimigo declarado do darwinismo social. Poderíamos suspeitar de que sua
justificada aversão a essas ideias teriam influenciado sua crítica “objetiva” sobre
cientistas que estariam avançando para dentro de searas que, julgava ele, pertenceriam à
filosofia ou à religião? Lewontin, Rose e Kamin, por sua vez, defendem abertamente o
que chamam de “biologia dialética”, um casamento da filosofia marxista com a
biologia.[15] O marxismo é o tipo de ideologia que depende da crença de que a mente
humana seja uma tábula rasa, sem qualquer “programação” inata ou, ao menos, passível
de “reprogramação”. Pergunto: poderia essa necessidade que se impõe a priori estar, em
algum grau, implicada na posição desses autores?

Enfim, em que medida a aversão a teorias equivocadas do passado, como o darwinismo


social, o sensível horror aos experimentos históricos de conciliar ideias das ciências
biológicas com as ciências sociais e a política (como foi, de certa forma, realizado na
Alemanha de Hitler), bem como o comprometimento intelectual pessoal com alguma
corrente filosófica ou ideológica colocada em xeque por esse tipo de integração teórica
poderiam estar influenciando a postura desses cientistas e pensadores? Seria legítimo
considerar a possibilidade de que fatores um tanto subjetivos como esses estejam tendo
alguma influência em sua reação testemunhada toda vez que alguém defende que a
ciência pode ter alguma coisa a dizer sobre valores humanos? Será que isso subjaz, ao
menos em parte, ao ato de prontamente erguerem seus dedos em riste e gritarem
“Cuidado com a falácia naturalista”, ou “Esses assuntos pertencem a magistérios
distintos, que não devem se interferir mutuamente”, ou ainda “A mera descrição do ser
não permite a derivação prescritiva do dever ser”? Será?

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Bem, a verdade é que a teoria de Darwin apareceu num contexto histórico muito distinto
deste em que hoje nos inserimos num sem-número de sentidos cabíveis de se pensar.
Num mundo em que o racismo não apenas ainda estava em voga, como era praticado
em vários lugares; em que o imperialismo colonial europeu ainda avançava, com todo o
vigor, sobre outros continentes; em que ninguém ainda havia testemunhado o horror a
que o casamento entre racismo e política poderia levar a humanidade, como a
experiência nazista viria a mostrar ao ainda vindouro século XX, o receio de muitos
pensadores com relação às deturpações e aplicações de teorias cientificas naturalistas no
âmbito social, com todos os raciocínios non sequitur de que abusavam tais aplicações,
se não podia ser empiricamente fundamentado com solidez, em face da tecnologia e
ciência da época, era ao menos moralmente justificável dentro do quadro geral. O pé-
atrás quanto a se transpor o saber de uma ciência para um campo não científico, ou vice-
versa, era, sem sombra de dúvida, um receio legítimo nesse cenário — é sempre bom
lembrar que a “guilhotina de Hume” foi concebida como uma crítica ao argumento de
que os valores morais advinham da alegada existência de Deus; não foi uma crítica à
teoria de Darwin.

Enfim, o temor dos pensadores da segunda metade do século XIX e da primeira do


século XX teve os seus porquês. Mas o tempo passou, o conhecimento progrediu, a
história seguiu seu curso, e nós herdamos esse caduco receio de outrora por via da
tradição acadêmico-filosófica. Acontece, entretanto, que o mundo de hoje lida com
cenários e problemas um tanto diversos dos daqueles outros tempos. O que era real
então, hoje nos assombra apenas como fantasmas gerados por algumas funções de nossa
mente menos regidas pelo córtex pré-frontal do que deveriam ser. Hoje, no mais das
vezes, é só um peludo bicho-papão que divisamos nos cantos escuros de nossos
pensamentos e reflexões.

Na verdade, o medo de que possamos perder de vista esses lamentáveis equívocos e


deturpações da história recente, vindo a usar evidências encontradas pela neurociência,
a psicologia evolucionista, a genética comportamental, a primatologia etc., para
fundamentar novas teorias que justifiquem as manobras de Hugo Chávez para se segurar
por mais cinquenta anos no poder, na Venezuela, ou que deem razão à invasão de países
no Oriente Médio por tropas anglo-americanas, faz tanto sentido quanto o temor de que
os judeus ainda estejam correndo risco de passar por um novo holocausto neste século
XXI. O que não significa dizer que os humanos de hoje não seriam capazes dos atos
mais atrozes que se possam imaginar; apenas não há nenhum motivo real, no presente,
para tanto medo da aplicação do paradigma evolucionário às ciências sociais. Precaução
é sempre bem-vinda; paranoia, não!

A ciência pode falar de valores?

Na verdade, a única coisa certa a respeito de todos esses nossos receios é o fato (hoje
demonstrado) de que o cérebro humano é incapaz de filtrar juízos factuais, puramente
racionais, de juízos morais, de valor; sempre há algum nível de imisção. [16] A
“objetividade” pura, meus amigos, é uma ilusão! “Mas, se é assim, Camilo, por que
argumentos embasados no conhecimento científico teriam mais legitimidade do que o
senso comum dos homens iranianos, por exemplo, na hora de se pronunciar sobre se
apedrejar mulheres adúlteras seria uma coisa ruim?” Bem, digamos que por causa de
alguns detalhes, como: a) a ciência pode demonstrar, por exemplo, a existência do
sofrimento bem como da felicidade humanos, como eventos factuais ao nível do

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cérebro, coincidentes como tais em todos os humanos saudáveis, de quaisquer culturas
do planeta (apesar de todos os tolos aforismos pós-modernos do tipo “A realidade não
existe”, “Tudo é relativo e ilusório”, “Não existem o bem e o mal, a dor e o prazer, a
felicidade e a tristeza; tudo é ilusão criada por nossas mentes limitadas”), e b) as
proposições científicas, diferentemente do que ocorre com as crenças produzidas pelo
senso comum, são reavaliadas por pares e entregues à possibilidade de refutação, dentre
outros aspectos que lhe conferem maior credibilidade, por não se verificar o mesmo no
tocante ao senso comum.

Para falar mais sobre este assunto, passarei a palavra a Sam Harris:

Embora, hoje, psicólogos e neurocientistas estudem rotineiramente a felicidade humana,


as emoções positivas e a racionalização moral, eles quase nunca tiram conclusões acerca
de como os seres humanos deveriam pensar ou se comportar à luz de suas descobertas.
Na verdade, para um cientista, parece ser considerado, em geral, intelectualmente
vergonhoso, até mesmo vagamente autoritário, sugerir que seu trabalho ofereça alguma
orientação a respeito de como as pessoas deveriam viver.[...]

A despeito da reticência da maioria dos cientistas acerca da questão do bem e do mal, o


estudo científico da moralidade e da felicidade humana já está em andamento. Essas
pesquisas decerto colocarão a ciência em conflito com a ortodoxia religiosa e a opinião
popular — tal como o fez nosso crescente entendimento da evolução — porque a
divisão entre fatos e valores é ilusória em pelo menos três sentidos: (1) o que quer que
se possa saber sobre a maximização do bem-estar de criaturas conscientes [...] deve, em
algum momento, traduzir-se em fatos concernentes aos cérebros e sua interação com o
mundo como um todo; (2) a exata ideia de conhecimento “objetivo” (i.e., conhecimento
adquirido através de um honesto processo de observação e racionalização) traz em si
valores integrados, visto que cada esforço que fazemos para discutir algum fato depende
de princípios que, primeiramente, devemos valorizar (p. ex., a consistência lógica, a
confiança nas evidências, a parcimônia etc.); (3) crenças sobre fatos e crenças sobre
valores parecem emergir de processos semelhantes ao nível do cérebro: aparentemente,
temos um único sistema para julgar a verdade e a falsidade em ambos os domínios. [...]
Tanto no que diz respeito ao que há para saber sobre o mundo quanto no tocante aos
mecanismos cerebrais que nos permitem sabê-lo, [...] uma fronteira clara entre fatos e
valores simplesmente não existe.[17]

De qualquer forma, é bom deixar bem claro que o que se argumenta aqui não é que os
estudos científicos sobre a mente e a natureza humanas, de repente, poderiam ser
transformados em obras de autoajuda ou guias para a realização moral da humanidade.
O que, sem muito me aprofundar, estou colocando em discussão aqui é esse medo
descabido de que qualquer coisa que a ciência tenha a dizer sobre valores humanos não
pode ser aceito, não merece consideração e, pelo contrário, deve ser condenado.

E condenado por quê? Bem, eis a questão: simplesmente porque foi esse o legado do
pensamento científico-filosófico que os séculos XIX e XX deixaram para nós, como
dogmas de uma religião revelada, que surge como solução para algum momento
turbulento da experiência social humana (tal como, no relato bíblico, os Dez
Mandamentos aparecem para produzir um consenso, num contexto de explícita
instabilidade social). Devido às ideias e às políticas absurdas que surgiram de
equivocadas associações de teorias biológicas com algumas variedades do pensamento

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político-filosófico, a reação, isto é, as teorias concorrentes, sobretudo de base
culturalista, não apenas ganharam força, como firmaram verdadeiros credos dogmáticos
que, na história subsequente, poucos pensadores ousaram por em questão.

Eis o contexto em que surgiu o relativismo moral, trazendo consigo sua ideia responsiva
ao chauvinismo cultural dos países imperialistas do século XIX: a crença de que toda
cultura é tão boa quanto qualquer outra, de que todas as sociedades conseguiram,
igualmente, desenvolver-se de maneiras equivalentemente satisfatórias, encontrando
suas próprias respostas para os dilemas da socialização, criando códigos morais
igualmente válidos, e, por isso mesmo, suas práticas são tão respeitáveis quanto as de
quaisquer outros povos, de modo que brasileiros ocidentais, por exemplo, não têm o
direito de criticar a amputação de membros de tribos rivais praticadas em alguns países
africanos ou a opressão das mulheres sob regimes muçulmanos radicais. Curiosamente,
o credo é tão contraintuitivo que muitos relativistas culturais, que pregam que não
podemos condenar as práticas opressivas do Islam, não hesitam em condenar, por
exemplo, o instituto da pena de morte nos Estados Unidos ou a “mentalidade
imperialista” dos americanos.

Na verdade, se o relativismo moral estivesse correto, quaisquer valores hoje condenados


entre nós, como o racismo, o machismo, o nazismo, a discriminação social, a homofobia
etc., poderiam ter sido mantidos sob a defesa de que constituem um valor moral para
algumas pessoas (não raro, para muitas pessoas), sobre o qual ninguém teria
legitimidade para se pronunciar de forma condenatória. Vejam bem: que a moralidade é
socioculturalmente e historicamente construída não está em discussão aqui. Isso é
óbvio. A questão é que nossos valores morais, por mais traços complexos que tenham
acumulado no decurso do tempo, não deixam de estar arraigados em intuições
“protomorais” primitivas, que partilhamos com outras espécies, e na forma como nossas
mentes funcionam, de acordo com a arquitetura neural desenhada por nossos genes ao
longo do Pleistoceno, no ambiente ancestral em que a mente do Homo sapiens evoluiu.
[18]
Porém, embora isso nos pareça tão claro, quando nos voltamos para a questão com a
atenção e o pensamento crítico devidos, por outro lado, basta que qualquer um de nós
resolva promover o estudo da relação entre a mente e a natureza humana, buscando,
nesse campo, investigar a ontologia da moralidade e do fenômeno jurídico, por
exemplo, para que logo apareça alguém alertando: “Cuidado com a falácia naturalista!”
ou “Olhe a guilhotina de Hume, hein!” No entanto, como bem destacou Michael Ruse:

Todo mundo sabe (ou “sabe”) que [a ética evolucionista] serviu de desculpa para alguns
dos piores tipos de argumentos falaciosos nos livros de exercícios de Filosofia, e que,
além disso, foi usada para apoiar políticas socioeconômicas da mais grotesca e odiosa
natureza, desde o cruel capitalismo do século XIX aos campos de concentração do
século XX [...]. [Por causa disso] tem sido o bastante um estudante murmurar a frase
mágica “falácia naturalista”, e, então, pode passar para a questão seguinte, confiante de
ter tirado nota máxima até aquele ponto da prova. [...]

Eu sugiro [...] que, embora isso possa trazer alívio para um aluno de graduação no meio
de um exame escrito, simplesmente evocar um rótulo como “falácia naturalista” não é
nenhum substituto para um argumento filosófico detalhado.[19]

“Então, quer dizer que não existe ‘falácia naturalista’?”

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Claro que existe! Porém, parafraseando Steven Pinker, reconhecer a relevância dos fatos
referentes à natureza humana subjacentes ao funcionamento de nossa mente, aos nossos
processos de escolha, por exemplo, não implica falácia naturalista. Esta residiria na
dedução de que as descobertas sobre nossa natureza ditam nossas escolhas, sem que
haja qualquer combinação desses fatos naturais com algum conjunto de valores
assimilados ou construídos subjetivamente nem com algum método para a solução de
conflitos entre eles.[20]

“Tudo bem, Camilo! Mas e a questão da guilhotina humiana? Você diria então que é
possível deduzir algum enunciado prescritivo (do tipo deve ser) de algum enunciado
descritivo (do tipo é)?”

Deixarei um filósofo, velho conhecido nosso e membro emérito da LiHS (Liga


Humanista Secular do Brasil), responder a pergunta:

Um dos xiboletes da filosofia contemporânea é que não se pode deduzir “deve” de “é”.
[...] Se “deve” não pode ser deduzido de “é”, “deve” pode ser deduzido exatamente de
quê? Por acaso a ética é um campo de investigação inteiramente “autônomo”? Será que
nossas intuições morais flutuam, desatadas dos fatos provenientes de qualquer outra
disciplina ou tradição? [...]

Do que se pode deduzir “deve”? A resposta mais atrativa é esta: a ética deve estar de
alguma maneira fundamentada numa apreciação da natureza humana — num sentido do
que um ser humano é ou poderia ser, bem como no que um ser humano poderia querer
ter ou querer ser. Se isso for naturalismo, então o naturalismo não é nenhuma falácia.
Ninguém pode negar com seriedade que a ética responde a tais fatos concernentes à
natureza humana.[21]

E o bicho-papão continua assombrando

Quando defendo que a ciência pode nos ajudar a compreender melhor nossos valores
morais e nossos institutos jurídicos e políticos, partindo de uma apreciação da natureza
de nossa espécie, acho curioso que isso soe como absurdo para um sem-número de
pessoas inteligentes, cultas e de elevado nível educacional. É irônico, sobretudo quando
a maioria destes acha bastante razoáveis os postulados de filósofos e juristas tradicionais
de que o fundamento de um suposto direito natural, imutável, residiria em conceitos
discutíveis como a physis — a natureza própria das coisas —, ou a vontade divina, ou
ainda uma alegada razão humana abstrata e autônoma, conforme, respectivamente, as
teorias jusnaturalistas antiga, cristã-medieval e moderna,[22] ou, em contraposição a esta
perspectiva, que todo o ordenamento jurídico de uma sociedade esteja assentado numa
suposta normal fundamental, que, de tão abstrata, de tão intangível e fantasiosa, poderia
ter sido chamada de a “Norma-Deus”.[23]

Ou seja, não podemos deduzir dever ser de ser, quando o argumento vem numa crítica a
qualquer perspectiva naturalista sobre a moral e o direito, mas podemos deduzi-lo da
existência proposta de um ser divino ou da existência abstrata de uma razão autônoma
ou de uma norma fundamental hipotética, mas, ainda assim, proposta como ser
existente, nem que seja só num platônico “mundo das ideias”. Embora, para muitos de
nós, isso pareça intangível demais, fantasioso demais (e, por isso mesmo, ridículo
demais), para outros tantos, a maioria dos intelectuais e cientistas sociais e jurídicos, na

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verdade, soa como alternativas muito mais sensatas do que qualquer abordagem
naturalista da questão.

Sam Harris, em The moral landscape [A paisagem moral] (2010), faz uma persuasiva
defesa de que a ciência pode não ter o direito de reivindicar exclusividade no estudo da
moralidade, mas que isso não significa que ela não a possa estudar, por um viés
naturalista, nem tampouco que não possa se pronunciar sobre o assunto. Quanto à
questão específica da guilhotina humiana, ele destaca:

[Embora] seja possível dizer que não se pode passar de “é” para “deve”, devemos ser
honestos a respeito de como chegamos a “é”, em primeiro lugar. Os enunciados
científicos de “é” sustentam-se em implícitos “deve”, desde o início. Ao dizer “A água é
composta de duas partes de hidrogênio e uma parte de oxigênio”, eu proferi um
enunciado quintessencial sobre um fato científico. Mas e se alguém duvidar desse
enunciado? Posso apelar para os dados provenientes da química, descrevendo o
resultado de simples experimentos. Porém, ao assim proceder, eu implicitamente apelo
para valores do empirismo e da lógica. E se meu interlocutor não partilhar desses
valores? O que, então, poderei dizer? Como acaba ficando claro, essa é a pergunta
errada. A pergunta correta é: por que deveríamos nos importar com o que tal pessoa
pensa a respeito da química?[24]

A colocação de Harris insere-se num dado contexto. O fato é que todos estamos
familiarizados com as noções de leigo e especialista. Há um motivo pelo qual mesmo
um índio que não faça uso de nossa medicina, ao ficar doente, não procura a ajuda de
qualquer outro membro de sua tribo — eles têm um “especialista” dentre eles: o pajé.
Em qualquer área do conhecimento científico, a opinião de um leigo, o senso comum
dos que não se dedicam ao estudo de dado objeto, pouco importa. Se eu (que não sou
nenhum prodígio em física) acho que a equação de Einstein (E=m.c2) não faz sentido,
que, aliás, deve ser uma lorota das boas, os físicos estão se lixando para o que eu penso
ou deixo de pensar. E a física segue adiante, muito bem, apesar de minha importuna
observação crítica.

Porém, tal atitude, vista na ciência como a coisa mais sensata do mundo, no estudo da
moralidade, de repente, não é aceita como válida. Pode a neurociência demonstrar que,
em qualquer cultura do planeta, pessoas saudáveis sabem muito bem distinguir — como
o atestam fatos observáveis em seus cérebros — a diferença entre causar dor e causar
euforia, entre fazer rir e fazer chorar, entre contar uma mentirinha para não magoar
alguém (“Nossa, seu pudim de coco, com alho e manjericão, está ótimo!”) e uma fofoca
para prejudicar alguém (“Você sabia que a mulher de fulano já foi prostituta e viciada
em drogas?”); ainda assim, basta um infeliz qualquer aparecer dizendo que não vê
nenhuma diferença entre essas coisas, e todos esses dados são varridos para debaixo do
tapete do desprezo, em nome do relativismo moral.

De repente, a ciência não pode mais dizer que há diferenças universalmente percebidas
entre certos valores. E não o pode tão somente porque alguém — que pode estar
mentindo, cujo cérebro pode apresentar alguma anomalia no funcionamento, que pode
estar procurando analisar os conceitos numa profundidade detalhista muito maior do
que a avaliação mais superficial que as pessoas normalmente fazem — alega que não vê
diferença alguma entre coisas que parecem tão óbvias para a maioria das pessoas, nas
mais distintas culturas do mundo.

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Se uma pessoa diz que não vê diferença alguma entre uma cultura em que vigora a regra
“Primogênitos têm de ser sacrificados” e outra guiada pelo princípio “Primogênitos não
têm de ser sacrificados; devem ser nutridos, cuidados e amados”, por que devemos levar
tão a sério a opinião dessa pessoa, ao ponto de colocar em questão qualquer proposta de
investigação científica dos valores humanos? Ora, meus amigos, há uma diferença
lógica, uma diferença intuitiva e uma diferença na percepção consciente das noções de
vida e morte, felicidade e sofrimento, que é demonstrável e mensurável, enquanto
eventos observáveis no cérebro. Se alguém é incapaz de realizar qualquer uma dessas
operações cognitivas, desculpem-me, mas a opinião dessa pessoa sobre o que a ciência
pode ou não pode estudar não me parece merecedora de séria consideração.

Enfim, o tema é polêmico, de qualquer forma — mais pela força da tradição culturalista
e relativista do que pela solidez de seus contra-argumentos —, e é claro que não
pretendo exauri-lo aqui. Quis apenas trazê-lo para a apreciação e para o debate públicos,
depois de receber, mais de uma vez, o sempre bem-intecionado (mas nem por isso
procedente) alerta de um leitor sobre o risco de estar, talvez, cometendo a famosa
“falácia naturalista”. Como procurei argumentar aqui, precisamos nos libertar de alguns
dogmas acadêmico-filosóficos. Houve um contexto histórico-social que justificou o
radicalismo dos postulados culturalistas e relativistas, mas as circunstâncias agora são
outras; os dilemas enfrentados, também. E, embora haja sim exemplos identificáveis de
argumentos naturalistas falaciosos, os estudo da moralidade e do fenômeno jurídico com
base numa apreciação da natureza humana não constitui um deles, só em virtude do
paradigma adotado.

Além disso, ainda que os conceitos de valores morais o mais diversos variem em
coloração e ingredientes de pessoa para pessoa, bem como de cultura para cultura, há
pontos de convergência mais genéricos, menos passíveis de discussão, que conseguimos
distinguir porque, independentemente de sermos humanistas seculares brasileiros,
radicais afegãos do Talibã ou aborígines australianos, partilhamos de uma mesma
natureza e de uma arquitetura cerebral semelhante que tornam menos turvas e
indiscerníveis certas distinções. Isso quem demonstrou foi a ciência. E podemos partir
desses dados para mais firmemente elaborarmos novas filosofias morais e, até mesmo
— por que não? —, uma “ciência da moralidade”, como Harris propõe.

O que não tem mais cabimento é que, por conta de um temor irrefletido que nos foi
incutido por uma tradição de pensamento elevada à categoria de inquestionável,
tenhamos de viver receosos de falar em valores e ciência num mesmo contexto, sempre
com medo do bicho-papão da filosofia da ciência contemporânea: a falácia naturalista.
Temos instrumentos teóricos e epistemológicos para filtrar bem as coisas, nesse sentido.
Não precisamos começar agora, paranoicos, a pôr em dúvida a validade desses mesmos
instrumentos, só porque nos fizeram acreditar que confiar no pensamento científico é
colocar-se sob a ameaça constante de um papão à espreita, nos sombrios recônditos de
nossa mente.

NOTAS

10
[1] Trata-se da ideia de que não se pode deduzir “deve” (regra moral) de “é” (fato
observado ou proposto). É curioso e um tanto irônico notar que o problema do ser e do
dever ser foi aventado por Hume como uma crítica aos defensores da religião que
tentavam extrair valores morais a partir da proposição da existência de Deus (HUME,
David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método
experimental de raciocínio nos assuntos morais. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p.
509); todavia, hoje é um dos argumentos mais utilizados, inclusive por apologistas da
religião, para criticarem qualquer esforço de se estabelecer vínculos entre o
desenvolvimento da moralidade humana e a história evolutiva da espécie.

[2] A “falácia naturalista” de George E. Moore fundamenta-se numa alusão ao


pensamento humiano de que os valores morais, como o vício e a virtude, o bem e o mal,
por exemplo, “podem ser comparados a sons, cores, calor e frio, os quais, [...] não são
qualidades nos objetos, mas percepções na mente” (HUME, op. cit., p. 508). Nesse
sentido, Moore também argumenta que um valor como o conceito de bom é tão só um
“objeto do pensamento” (MOORE, George E. Principia ethica. Nova York: Barnes &
Noble, 2005, p. 05), um simples objeto intuitivo, que, enquanto tal, é indivisível,
irredutível e impossível de se definir apropriadamente, de modo que qualquer definição
proposta do que seja bom — ou do que seja justo, mau etc. —, qualquer tentativa de se
apontar verdades morais no mundo natural, não passa de uma “falácia naturalista”. Em
suma: conceitos como bom ou qualquer outro de idêntica essência não podem ser
definidos por meio de nenhuma propriedade natural, sem que se caia nessa falácia, é o
que afirma o autor.

[3] Gould criou o termo “magistérios não interferentes” ou, simplesmente, “MNI” (em
inglês: “non-overlapping magisteria” ou “NOMA”) como forma de “solucionar” o
conflito entre ciência e religião. Assim, propôs que o magistério da ciência é a
construção do conhecimento objetivo, factual, do mundo natural, enquanto o magistério
da religião seria a legítima busca por entender os desígnios humanos, bem como sua
moralidade e ética. Em sua opinião, um magistério não deve se intrometer naquilo que
seria da alçada de outro magistério (GOULD, Stephen Jay. Pilares do tempo: ciência e
religião na plenitude da vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.)

[4] HARRIS, Sam; SHETH, Sameer A.; COHEN, Mark S. Functional neuroimaging of
belief, disbelief and uncertainty. Annals of Neurology. Hoboken, NJ: Wiley, v. 63, n. 2,
p. 141-147, 2008; HARRIS, Sam. The moral landscape: how science can determine
human values. Nova York: Free Press, 2010.

[5] WILSON, Edward O. A unidade do conhecimento: consiliência. Rio de Janeiro:


Campus, 1999.

[6] FERNANDEZ, Atahualpa. Direito & natureza humana: as bases ontológicas do


fenômeno jurídico. Curitiba: Juruá, 2008, p. 30-33.

[7] LEWONTIN, Richard; ROSE, Steven; KAMIN, Leon J. Not in our genes: biology,
ideology and human nature. Nova York: Pantheon, 1984.

11
[8] “Com efeito, a acusação de reducionismo está às avessas, pois Lewontin e Rose, em
seus próprios estudos, são biólogos reducionistas rematados que explicam fenômenos
no nível dos genes e moléculas” (PINKER, Steven. Tábula rasa: a negação
contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 164).

[9] POPPER, Karl. The open society and its enemies. Londres; Nova York: Routledge,
2002, p. 60-62.

[10] HARRIS, op. cit., 2010.

[11] BUCKHOLTZ, Joshua W.; ASPLUND, Christopher L.; DUX, Paul E.; ZALD,
David H.; GORE, John C.; JONES, Owen D.; MAROI, René. The neural correlates of
thiry-party punishment. Neuron. Cambridge, MA: Cell Press, v. 60, n. 5, p. 930-940,
dez. 2008.

[12] O nome de Herbet Spencer está registrado na história como o do filósofo que
aplicou a teoria de Darwin à análise dos fenômenos sociológicos. Já de cara, há dois
equívocos nessa colocação: 1) ele só leu a Origem das espécies depois de já ter
concebido sua teoria e escrito sobre ela — embora tenha ficado impressionado pela obra
de Darwin —, e 2) a visão evolucionista que Spencer aplicou à sociedade, na verdade,
era lamarckiana: ele acreditava que as pessoas transmitiam a seus descendentes traços
adquiridos por esforço voluntário ou pela própria experiência de vida. Devo salientar,
porém, que, mesmo não tendo cunhado a infeliz expressão “darwinismo social” para se
referir à teoria de Spencer, a popularização do termo pode ser creditada ao historiador
americano, Richard Hofstadter; o que é lamentável, visto tratar-se de um estudioso
normalmente brilhante (vide HOFSTADTER, Richard. Social Darwinism in American
Thought, 1860-1915. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1944).

[13] O alemão Ernst Haeckel defendia a tese de que as raças primitivas constituíam uma
etapa infantil na evolução da humanidade. Em virtude disso, afirmava, essas raças
deviam ser supervisionadas e protegidas por aquelas sociedades tidas por mais
amadurecidas — como as nações europeias, por exemplo (HAECKEL, Ernst. História
da criação natural ou doutrina científica da evolução. Porto: Lelo & Irmão Editores,
1961). Sua ideia foi denominada “teoria da recapitulação”, e propunha um elo entre a
ontogenia (isto é, a história do desenvolvimento individual, da concepção até a morte de
um organismo) e a filogenia (a história evolutiva da espécie), sustentando que aquela
recapitulava esta. Na visão de Haeckel, nesse processo, o homem caucasiano emergia
como o ápice da evolução, o sublime produto evolutivo. Conclusão que redundou numa
nova filosofia (alguns diriam, numa nova “religião”) denominada monismo, segundo o
qual — muito mais que a proposta de se adotar o paradigma evolucionário como
ferramenta teórica auxiliar em diferentes áreas —, toda a economia, a política e a ética
deveriam ser reduzidas unicamente à biologia aplicada, de modo a justificar a
hegemonia dessa raça superior. A ideias de Haeckel, bem como as de Spencer (o
darwinismo social), inspiraram em parte a política genocida de Adolf Hitler.

[14] DENNETT, Daniel C. Darwin’s dangerous Idea: evolution and the meanings of
life. London: Penguin, 1996, p. 264, tradução minha.

[15] Num trecho de Not in our genes, eles justificam sua oposição ao “reducionismo
biológico” que os psicólogos evolucionistas e outros estariam promovendo, nos

12
seguintes termos: “Contra esta redução econômica como sendo o princípio explicativo
subjacente a todo o comportamento humano, nós poderíamos contrapor os [...] práticos
e teóricos revolucionários como Mao Tsé-Tung a respeito do poder da consciência
humana tanto para interpretar quanto para mudar o mundo, um poder baseado numa
compreensão da unidade dialética essencial do biológico e do social, não como duas
esferas distintas, ou como separáveis componentes da ação, mas como ontologicamente
contíguos” (LEWONTIN; ROSE; KAMIN, op. cit., p. 76, tradução minha). Mao, aqui,
como sabemos, é aquele mesmo que, a fim de justificar seu sinistro plano de engenharia
social, durante a Revolução Cultural chinesa, declamou seu macabro verso de louvor à
tábula rasa: “É numa página em branco que os mais belos poemas são escritos”
(COURTOIS, Stephane; WERTH, Nicolas; PANNE, Jean-Louis; PACZKOWSKI,
Andrzej; BARTOSEK, Karel; MARGOLIN, Jean-Louis. The black book of
communism: crimes, terror, repression. Cambridge, MA: Harvard University Press,
1999, p. 620, tradução minha). O mito da tábula rasa, de que a mente é uma “página em
branco” em que se pode escrever o que se quiser, é um dogma imprescindível para o
sonho comunista ou anarquista; afinal, só se nossas mentes forem moldáveis e não
houver nelas nada de natural, de inato, de modo que possamos ser programados ou
reprogramados segundo a vontade dos revolucionários, pode-se admitir, em princípio, a
viabilidade de uma sociedade de iguais, sem nenhuma forma de poder regulador central,
nenhum tipo de Estado.

[16] A questão é que até mesmo uma tarefa aparentemente “objetiva”, como constatar
que a escada móvel, ali, encostada na parede, é amarela, traz sua carga de valoração
moral, visto que, por exemplo, não gosto da cor, e isso acaba não passando
despercebido toda vez que vejo qualquer coisa amarela — Moore não estava errado em
dar ênfase ao caráter subjetivo da percepção. O equívoco está em alguém concluir que a
subjetividade, por si só, implica a invalidade de qualquer percepção ou conclusão.
Então, nossos cérebros não são perfeitos? Tudo bem! Nem se esperaria que fossem, uma
vez que são produtos de um processo não inteligentemente guiado como a evolução.
Agora, o que não se deve é, daí, inferir que, na contramão do processo evolutivo para
cada outro órgão do corpo humano, as características operacionais do cérebro, o mais
importante de todos eles, houvessem sido selecionadas para nos dar uma falsa
percepção do mundo ao nosso redor. Seria ridículo concluir que a seleção natural
favoreceu a evolução de um cérebro que trabalha contra nossos interesses, iludindo-nos
quanto ao que realmente está no ambiente físico, fora de nós. Por mais que nossa
percepção do mundo natural não seja perfeita, tem de ao menos traduzir esse mundo da
melhor maneira possível; ela não pode nos fazer ver uma ponte onde há um abismo,
nem ver um lindo coelhinho no lugar de onde nos encara um enorme leão faminto.

[17] HARRIS, op. cit., 2010, p. 10-11, tradução minha.

[18] HAUSER, Marc D. La mente moral: como la naturaleza ha desarrollado neustro


sentido del bien y del mal. Barcelona: Paidós, 2008.

[19] RUSE, Michael. Evolution and ethics: the sociobiological approach. In:
____________. Evolutionary naturalism: selected essays. Nova York: Routledge, p.
223-256, 1995, p. 223; 230, tradução minha.

[20] PINKER, op. cit., p 230.

13
[21] DENNETT, op. cit., p. 467-468, tradução minha.

[22] WELZEL, Hans. Introducción a la filosofia del derecho: derecho natural y


justicia material. Madri: Aguilar, 1974.

[23] A “norma fundamental” (Grundnorm), como todo estudante de direito está


literalmente farto de saber, é a menina dos olhos na teoria positivista kelseniana:
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

[24] HARRIS, op. cit., p. 203, n. 21, tradução minha.

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