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PIERRE BIRNBAUM

Supervisor de conferências na rniversidade de Paris


FRANÇorS CHAZEL
Mestre de conferências na uni\'crsidade de I30rdéus

Teoria Sociológica
Tradução de
GrsELA STOCK DE SOCZA e HÉLIO DE SOUZA

,
"-",'\ '

EDITORA DE HUMANISMO, CIÊNCIA E TECKOLOGIA "HUCITEC" LTDA,


EDITORA DA UNIVERSIDADE DE sÃo PACLQ

São Paulo, 1977


- !
Título do original francês: "Théorie Sociologique". Copyright, 1975, Presses
Universitaires de France. Obra publicada na çoleção Thémis dirigida por
Maurice Duverger. Direitos de publicação reservados para a língua portuguesa
pela Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia HUCITEC Ltda., Alameda
Jaú, 404. 01420 São Paulo, SP, Brasil. Telefone: (Oli) 287-1825. Capa de
Luís Díaz. Serviços gráficos da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais SUMARIO
S.A., Rua Conde de Sarzedas, 38, 01512 São Paulo, SP.

Introdução •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 0.0 1

I
~
,,~

Introdução
PRIMEIRA PARTE

DOS SISTEMAS DE INTERAÇÃO AOS TIPOS


DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL
9
,_o : f

Capítulo I - Os fundamentos da interação


Que é uma sociedade? (Gabriel Tarde) ......................... . 17
O problema da sociologia (Georg Simmel) ..................... . 18
A atividade social e as relações sociais (Max Weber) ........... . 21
O jogo livre (folguedo), o jogo regulamentado e .. o outro-gene-
ralizado" (George H. Mead) ............................... .. 26
Os três tipos de personalidade (William I. Thomas e Florian
Znaniccki) .................................................. . 32
A sociedade concebida como uma interação simbólica (Herbert
CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Blumer) .................................................... . 36
Câmara Brasileira do Livro, SP A apresentação de si mesmo na vida quotidiana (Erving Goffman) 40
Relações sociais, quase-equilíbrio e conformidade (George Homans) 48
A construção social da realidade e o controle social (Peter Berger
e Thomas Luckmann) ........................................ . 56
A etnometodologia (Aaron Cicourel) ........................... . 60
Teoria sociológica [por] Pierre Birnbaum [e] O indivíduo e a indústria cultural (Max Horkheimer e Theodor
T29 François Chazel; tradução de GiseIa Stock de Adorno) .................................................... . 62
Souza e Hélio de Souza. São Paulo, HUCITEC,
Ec1. da Universidade de São Paulo, 1977. Capítulo II - A cultw'a e o intercâmbio social
Cultura e personalidade (Edward Sapir) ........................ . 65
(Ciências sociais. Série estudos teó- Ensaio sobre o dom (Marcel Mauss) ........................... . 68
ricos) Os princípios do parentesco (Claude Lévi-Strauss) ............. . 73
A homenagem do vassalo (Marc Bloch) ......................... . 77
1. Sociologia 2. Sociologia - Teoria I. Birnbaum,
Pierre. lI. ChazeI, François. Capítulo lU - Controle social, desintegração social e mudança
Os costumes (William G. Sumner) ............................ .. 83
Os grupos primários (Charles H. Cooley) ...................... . 84
CDD-301 Mudança social e desorganização social (Robert Park) ........... . 87
-301.01 A sociedade tradicional e a civilização (Robert Redfield) ......... . 89
A gang (Frédéric Thrasher) ................................... . 90
77·0691
O suicídio anêmico (Emile Durkheim) ......................... . 91
A complicação da vida social e o suicídio (Maurice Halbwachs) 95
Mobilidade e ordem social (Pitirim Sorokin) ................... . 98
índices para catálogo sistemático: O controle social (Georges Gurvitch) ........................... . 99
1. Sociologia 301
2. Sociologia : Teorias 301.01 IX
,,..- -1
!
TERCEIRA PARTE
Capítulo IV - As tip%gias clássicas
Comunidade e sociedade (Ferdinand Tõnnies) ,." ... ,.......... 106 o SISTE~[A SOCIAL CONFRONTADO COM A HISTóRIA
Comunalização e sociação (lfax \-Veber) ..................... ,.. 114
Comunidade c liga (Herman Schmalenbach) ,..................... 117 Introdução ... ' ....... ..... .................. ...... . ....... ......... 329
Os dois tipos de solidariedade (Emite Durkheim) ............ ,... 119
Capítulo I - Classes sociais e desigualdades sociow1tl/raú
Classe e consciência de classe (Karl Marx) ................... . 337
SEG"CXOA PARTE Os tipos de interpretação da estrutura social. Ensaio de classificação
(Stanislaw Ossowski) ........................................ . 338
A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA SOCIAL COMO OBJETO O momento da cünsciência de classe (Alain Tourainc) .......... . 342
PRIVILEGIADO D.\ TEORIA SOCIOLÓGICA A autofiliaçfLO de classe (W. G. Runciman) ............... ", .. . 345

;
~i
Reprodução cultural c reprodução social (Pierre Bourdieu) 356
Introduçao 135 A crise universitária francesa: ensaio de diagnóstico sociológico
(Raymond Boudon) ............. ,.', .... " ....... , ........... . 361
l:', Título primeiro A dclinqü('ncia juvenil (Jean-Claudc Chamboredon) ........ , .... . 368
j Sist ema, esfrutura e fllnçtio Capítulo Ir - Ideolo!Jio c conflito
Simmel, Marx e o conflito social (Lc\vis Coser) ... , ....... , ... . 380
Capítulo I - Os P;,{'fUllc10nalisfas A técnica e a ciênci.a como" ideologia" (Jürgen Habermas) ",. 385
Que é uma sociedade? (Herh('.rt Spencer) ....................... 14i Ideologias mOI·tas, idéias vivas (Raymond Ara0) ................. . 390
Organismo e sociedade (René \\"or111s) ......................... 149 A despolitização e o engajamento político (Ulf Himmelstrand) 392
Causa e função (Emile Dnrkheim) ............................ 150 Os jovens, a contC'stação c a mudança social (Kenneth Kcniston) ., 396
A teoria funcional (Bronislaw 1vIalinowski) ..................... 154
A coerência funcional do sistema social (A. Radc1iffc~Drown) 157 Capítulo IH - A ,<Jf'ncs{' da 1/1udauça social
Forças produtivas e relações de produção (Kar! :'Jarx) , ..... , ... 404
Capítulo H - A claboraçi'io dr no"'.'oS' i)aradiil1l1a,~ O milenarismo da Gtlerra dos Camponeses e do anabatismo (Ernst
Um paradigma da análise funcional (Robert Merton) ........... 162 Bluch) ............................................. . 406
Um esboço do sistrrna social (Ta1cott Parsons) ................. 167 Contradição e suptrdeterminação (Louis Althus.'ier) ............. . 409
Uma mudança estrllhmd na economia americana: a separação da A hipótese da •. decalag:e111 cllltural" (\Villiam Ogburn) ......... . 413
propriedack relativamente à direção (Talcott Parsons e Neil A decalagem cl1ltttral (\Vright 1Hlls) ................. , ......... . 415
Snlelscr) .................................................... 195 Integraçã0 social e integração sistêmica (David Lockwood) ..... . 417
Reflexões sobre uma metáfora (Robert Nisbet) ................ . 422
Capítulo rrr - Posta ('111 (jllestão a ,'nlidad{' do estrut1/ro-funcionalismo
Clio e l1iner\'a (Charles Tilly) ................................ . 435
Algumas ohservaçucs a propósito de 1'11(' Social System (David
Lork\vood) .... ........ ...... ..... .... .... ... ..... .. .. 204
Uma formalização do funcionalismo (Ernest Nagel) ........... ,. 216
A lógica da análise funcional (Car! G. HempeI) ........... ,..... 232
O princípio de reciprocidade funcional (Alvio Gouldner) ......... 252

Título II
Sistema c comunicação

Capítulo I - .1 teoria .r;rrol dos sistemas


Teoria geral dos sistemas (Ludwig von Bertalanffy) ............ 275
O conceito de sistema (J ames Miller) .......................... 287
A segunda cihernética: um processo causal mútuo, amplificador de
desvio (1lagoroh Maruyama) ..................... , .... , .... ,. 294
Controle social e retroaçflO (Walter Buckley) ....... , ... ,., .. ,.. 303
Capítulo rr - O alcance dos modelos cibernéticos
O funcionalismo e a teoria geral dos sistemas (Paul Lazarsfeld) 309
Comunicação c controle nas organizações (Karl Deutsch) ........ 312
Os mecanismos do consenso (Amitai Etzioni) , ....... ,........... 315
Processo de violência política (Ted Gurr) ..... , ..... , .... "..... 321

x ~

"'......
INTRODUÇÃO

o próprio título TEORIA SOCIOLóGICA, escolhido para


este trabalho e que pode parecer ambicioso, reclama, de saída, algu-
mas explicações e esclarecimentos. Precisemos, imediatamente, que
a noção de teoria não é tomada, aqui, em sua mais rigorosa acepção,
que conduziria a privilegiar a dedução, a partir de um pequeno
número de proposições primárias, das assertivas postas à prova da
realidade. Esta limitação mostrou-se excessiva por duas razões com- : 'f
plementares: de uma parte, os sociólogos não tiveram bom êxito,
senão muito raramente, quanto a satisfazer a tão exigentes crité-
rios; e, de outra parte - o que constitui, sem dúvida, uma resposta
às dificuldades da elaboração propriamente teórica, nesta disciplina
- a noção de teoria, longe de receber uma significação unívoca, foi
interpretada de maneira muito lata para englobar as escalas de refe-
rência e a colocação no ponto dos conceitos fundamentais.
Uma vez que nosso primeiro objetivo consistia em dar um balan-
ço - atual - dos esforços específicos dos sociólogos, referimo-nos
aos usos em vigor no universo sociológico e não à significação mais
estrita que o termo teoria assume na pena de um filósofo das ciên-
cias. Assim, ficamos em condições de dissipar uma primeira ambi-
güidade: este livro não concede lugar central às considerações
propriamente epistemológicas, que traduzem, parece-nos, uma outra
maneira de circunscrever o assunto e que por isso mereceriam tra-
tamento à parte. Todavia, elas foram explicitamente introduzidas
toda vez que se tratou de discutir e de julgar a validade de tal
paradigma, ou, mais geralmente, de tal aproximação teórica.
Em compensação, à polissemia da noção de teoria em sociologia
correspondem, nos limites deste trabalho, a diversidade e, mesmo, às
vezes, a oposição das orientações e dos estilos. Se nos for permitido
recorrer a alguns exemplos salientes, destacaremos, aqui, o con~
traste entre a análise de Goffman, toda sutileza, que procede por
toques e retoques sucessivos, e o método interpretativo de Ossowski,
sóbrio e sem rodeios, visando a pôr em dia a lógica inerente a certos
modos de pesquisa. Mediremos a diferença entre autores que, como
Adorno e Horkheimer, enfatizam mais o alcance crítico de suas
intuições do que sua eventual sistematização e os que, a exemplo
de Miller, se propõem elaborar uma linguagem rigorosa, segnndo

1
o modelo das clencias da natureza. Notaremos, por fim, a extensão ou aos conceitos que estabelecem, ou ainda o preparam pela defini~
da divergência entre os respectivos projetos de um Parsons - con- ção de escalas de referência apropriadas ou pela formulação de
sagrando todos os seus esforços à construção de uma teoria geral, vias de pesquisa. A fim de enfeixar estas poucas observações numa
ou pretensamente geral - e de um Habermas, agarrando-se, sobre- fórmula, a maioria das passagens aqui reunidas comportam um con-
tudo, à interprétação sócio-histórica de um fenômeno particular, junto de proposições ligadas entre si e confrontadas, quer direta-
mente, quer indiretamente, quer, afinal, com a realidade empírica.
Julgamos mesmo indispensável alargar mais este quadro e, simul- Trata-se aí de uma forma atenuada ou, antes, ele uma aproximação
taneamente, esta diversidade, indo tomar emprestadas algumas pas- de teoria, no sentido integral da palavra, o que constitui, a nosso
sagens, para lá dos limites formais da disciplina, à obra de historia- ver, um elemento a um tempo benéfico e crucial para o desenvol-
dores e de filósofos. Sem dúvida, os presentes textos não foram vimento da disciplina.
ditados por preocupações especificamente sociológica-s. E, pelo que
nos toca, nem havíamos pensado em que o fossem. Mas podem eles, O segundo dos planos previamente discriminados é relativo à
pelo menos, servir de objeto de uma leitura propriamente sociológica, organização deste trabalho. Tínhamos de início procurado ir além
seja porque comportem, como o fragmento tirado de l\larc Bloch, de uma simples apresentação cronológica de alguns textos funda-
uma análise de elementos sociologicamente pertinentes, seja porque mentais em teoria sociológica, para pôr ênfase nas correntes maio-
res de pensamento e em suas expressões, ou, antes, em seus pro- . ~.

.'
possam, como algumas páginas de Althusser, e a despeito de suas
próprias reservas - esperadas, tratando-s·e de um filósofo - rela- longamentos até o período contemporâneo. Para passar de um para
tivamente ;tS ciências sociais, c()nstituir para o sociólogo. as base:; outro plano, tínhamos necessidade, entretanto, de um fio condutor:
eventuais de uma nm'a pj:oble11lútica, ou de novas pistas de pesquisa. acreditamos encontrá-lo na nDção de sistema. Sublinhemos, de saída,
a fim de dissipar qualquer ambigüidade, que nosso propósito está
Nem por isso gostaríamos que o leitor se apegasse a esta impres- nutÍto longe de ser apologético e que o exame a que vamos proceder
são ele diversidade, até mesmo de miscelânea. O quadro que mon- pretende ser crítico: nosso interesse vai essencialmente ao debate
tamos corresponde a uma ordenação, ou, antes, à tentativa de que se travou a respeito e, por conseguinte, tanto às aproximações
pôr em ordem os nossos conhecimentos sociológicos, incidindo. que partem da impugnação de uma tal base quanto às construções
essencialmente, sobre dois planos. O primeiro tange à idéia, que é teóricas fundadas sohrc o primado daquela noção. 'Precisemos, tam-
possível formular, da teoria em sociologia, ou, pelo menos, daquilo bém, como a escolha e o próprio ordenamento dos textos são sufi-
qi.le se alinha debaixo desse nome. Efetivamente, reagrupamos, aqui, cientes, parece-nos, para mostrú-Io, que a noção de sistema nã'J
teorias parciais, relativas a tal ou qual aspecto particular da vida eleve ser relacionaeb CDm uma só escola de pensamento, por mais
social, assim como paradigmas de diferentes tipos, notadamente de importante que seja, e que não se deve encerrá-la numa interpre-
carúier formal, ou, ao contrário, cle natureza conceptuai. :Mas acre- tação única, nem mUl1 tipo de utilização privilegiado: ao contrário,
ditamos dever igualmente levar em lin.ha de conta programas de insistimos no fato de que ela é suscetível de se aplicar em diferentes
pesquisa a que não correspondia uma verdadeira estrutura formal, níveis da realidade social, desdr.:: a anúlise da interação até ao estudo
escaias de referência não assentadas num aparelho conceptual bem propria.mcnte macrossüciológico de complexos conjuntos sociais.
desenvolvido, ou "sistemas" interpretativos que só um uso muito Acrescentemos, afinal, que. por não vir sempre formulada expli-
generoso desse termo nas ciências sociais permitiu qualificar de citamente, nem por isso a referência à idéia de sistema está menos
modelos. Parece-nos, não obstante, que, apesar de semelhante plu- presente em certas passagens aqui fixadas e que toda leitura que
ralidade de significações e de níveis de aplicação, os textos aqui não levasse em conta esta dimensão correria o risco de não ser
apresentados oferecem certos traços comuns. Na maioria deles, temos plenamente esclarecedora. Definitivamente, não apresentamos argu-
pela frente, primeiramente, um conjunto de proposições ligadas umas mentos em favor de uma sociologia sistêmica, mas reconhecemos,
às outras. Sem dúvida, esta ligação, nem sempre tem as mesmas simplesmente, o lugar ocupado, seja de modo negativo, ou, pelo
bases. Sem dúvida, o grau de coerência varia profundamente, con- menos, decididamente polêmico para numerosos autores, pela noção
forme nos aproximamos de um verdadeiro corpo de proposições, ou de sistema na formação do pensamento sociológico.
dele nos afastamos. Mas, pelo menos, essa -característica está geral-
A constatação de que os sociólogos só raramente escapam a
mente presente. Da mesma forma, tais proposições são confrontadas,
certas preocupações nem por isso deve conduzir o leitor a minimizar
por intermédio de algumas dentre elas, com a realidade empírica, ou
a importância das diferenças e, mesmo, freqüentemente, das diver-
permitem um semelhante confronto, graças às regras -que enunciam
3
2
gências entre as principais tendências. da teoria sociológica e os seus as desigualdades em face da escola, a contestação dos movimentos
mais autorizados representantes. Desse ponto de vista, esforçamo-nos estudantis ou . ainda, as representações 'e a ideologia da -classe operá-
por focalizar a originalidade de cada aproximação encarada como ria. Kão deixa de ser menos verdade que, nos limites deste livro,
ensaio de organização, senão de construção, da realidade social. Pro- nossa atenção se fixou, sobretudo, nas problemáticas; nas conceptua-
vindo referida originalidade, em grande parte, da determinação de lizações e nas proporções de pretensão teórica, formuladas soure tais
uma problemática e do modo de arranjo dos conceitos, procuramos bases. O principal objetivo nosso, a saber, ° exame da teoria socio-
fazer ressair a especificidade das opções efetuadas em cada uma lógica, ou, pelo menos, daquilo que se alinha, geralmente, sob essa
dessas duas dimensões. De maneir", a demarcar melhor o tipo de denominação, impunha-nos semelhante método interpretativo. Ao
problemática adotado, fomos assim levados a assinalar o contraste mesmo tempo, permanecíamos fiéis, assim, à nossa firme convicção
entre as orientações teóricas que conferem o primado à esfera dos de que os sociólogos devem ir além de uma simples delimitação de
valores e as que assentam sobre a preeminência do substrato. Entre seu campo, ainda marcado de espírito sociográfico, a fim de propor
as sociologias da integração e as sociologias do conflito. Entre as para si mesmos, como propriedade sua, certos tipos de problemas
lógicas de pesquisa definidas a partir das classes sociais e as que a que teriam a tarefa de responder. Mas, devido mesmo a essa insis-
são formuladas em termos de estratificação. Entre as análises que tência, que nos parecia indispensável, a respeito da elaboração das
privilegiam o poder e as que têm por objeto a comunicação. E lem- teorias sociológicas, foi-nos preciso- renunciar a examinar os campos ..-"
brando, de modo a prevenir qualquer interpretação simplista, que de aplicação por si mesmos.
o sociólogo da integração não poderia, só por isso, dispensar-se de
Semelhante lacuna, propomo-nos preenchê-la em próximo trabalho,
todo exame do conflito e que um especialista nos estudos de estra-
consagrado a uma análise das múltiplas formas da vida social; análise
tificação estaria errado se se privasse dos materiais reunidos por
a se.r conduzida a partir dos elementos teóricos e conceptuais aqui
aqueles que concedem privilégio ao papel das classes sociais: o esta-
agrupados. O presente livro- terá, portanto, um prolongamento, de
belecimento de prioridades consiste, com efeito, em propor um eixo caráter empírico mais acentuado, ainda que, em nosso entender,
de pesquisa e não em excluir, a priori, do campo de análise outros cc.nstitua, por si mesmo, um todo, que permite apreciar as virtudes
aspectos da realidade social suscetíveis de manter interessantes rela- heurísticas de escalas de referência, a fecundidade de diferentes
ções com o principal objeto de estudo. No mesmo espírito, subli- instrumentos conceptuais, assim como ° grau de coerência atingido,
nhamos que os modos de arranjo dos conceitos têm variado, consi- em sociologia, por certas teorias parciais.
deravelmente, com as épocas e as tradições de pensamento. Citemos,
simplesmente, aqui, a título de exemplo, as tipologias dicotômicas,
tão características da sociologia clássica, as categorias funcionais, que
estiveram em grande voga nos anos 50, as categorias 'estruturais,
enfim, que podem revestir formas muito diferentes, conforme este-
jam ligadas a uma perspectiva marxista, a certas modalidades de
funcionalismo ou a uma pesquisa das homologias de estrutura, que
pertence, como propriedade particular, à teoria geral dos sistemas.
Talvez nos objetem que a especificidade das diversas aproximações
se reconhece, igualmente, pelo seu domínio de aplicação, e que devía-
mos, em conseqüência, enfatizar mais esta terceira dimensão. A res-
peito, gostaríamos de apresentar, à guisa de defesa, duas observações.
Antes do mais, não desconhecemos, de maneira alguma, o liame
(estreito e essencial) que une a problemática ao campo de aplica-
ção: este último, com efeito, serve de substrato à trama teórica e
não pode, absolutamente, dela ser dissociado, nomeadamente nas
'especialidades em que, como na sociologia, as teorias são, quando
muito, parciais. Em seguida, tentamos, em nossa seleção, levar em
linha de conta centros de interesse mais recentes da disciplina, como

4 5

2 ~ T.S,
ai

., .
INTRODUÇÃO

Nesta Primeira Parte, gostaríamos de mostrar como é possível


ver- destacar-se, a pouco e pouco, na grande tradição sociológica, a
noção de sistema. É uma noção, essa, que permite, com efeito, levar
em consideração o modo de arranjo de todos os níveis da realidade
_social. Nesse estádio da análise, todavia, ela permanece, ainda,
impressionista e carece de rigor~ chegando certos autores a identi..
• 1"
ficar .o sistema com uina realidade histórica precisa e concreta,
tirando-lhe, assim, aquele seu caráter verdadeiramente teórico. Mas,
a despeito de tais limites, a. riqueza da citada noção nem por isso
Se manifesta menos através destes poucos textos de sociologia clás-
sica. E, como acabamos de o sugerir, encontramo-la, já, em estado
mais ou menos latente, no centro da teoria sociológica. Serve ela,
como se vai ver nesta Primeira Parte, para acentuar, assim em nível
internacional como no da própria sociedade global, de um lado 03
mecanismos de elaboração do todo, de outro lado as tensões e os
conflitos que nascem nesse todo e levam, às vezes, à sua completa
desintegração. '
Num primeiro capítulo, intitulado Os Fundamentos da Interação,
começa-se mostrando como a sociologia, para pôr termo ao indivi-
dualismo e analisar em profundidade o fato social, precisou recorrer
~ noção de 'sistema interacional. No seio desse sistema, pode o indi-
vídüo, uma vez adquirida a sua formação, apesar 'de tudo, recon-
quistar uma certa autonomia, aumentar sua latitude de ação" até
introduzir um forte potencial de desvio no sistema, que é então
obrigado a criar mecanismos de controle, a fim de limitar os desvios
e manter o todo. Os trabalhos de Gabriel Tarde ilustram com cla-
rezà os últimos momentos de uma visão exclusivamente individua-
lista, contra a qual autores tão diferentes, como Durkheim, Simmel
ou \\T eber não deixaram de se insurgir. Em Les tais de rimitation,
Tarde- sustenta, com efeito, que os indivíduos, tais quais "sonâm-
bulos", imitam-se uns aos outros, incessantemente, de modo "mecâ-
nico". Seus críticos evidenciaram, ao contrário, o caráter social da
imitação, que pressupõe, segundo eles, uma socialização anterior dos
atores, adquirida dentro do próprio sistema social. Mesmo quando
conservam uma perspectiva atomística, Simmel e Weber sublinham,
ambos, que os indivíduos são ligados uns aos outros ,por uma trama

9
de relações sociais e que a interação, subestendida pela orientaçã0 interacional, tomando "distância" em face do papel que lhe é atri-
do comportamento para COm outrem, toma lugar, por conseguinte, buído e mudando, por conseguinte, a percepção que os outros podem
dentro de um conjunto. Com George H. Mead, vê-se quanto o inter- ter déle· próprio. Sem dúvida, Blumer ou Goffman propendem a
câmbio que se realiza no curso da interação é indispensável à for- exagerar a autonomia do ator e não Se mostram suficientemente
mação da personalidade dos atores que participam dela: o self (*) conscientes do fato de que eSSa liberdade varia segundo os papéis
não pode desenvolver-se senão em relação aos outros. Assim, a e os estatutos sociais; de que, relativa quanto a certos papéis, é,
comunidade organiza, segundo Mead, seu controle, com a ajuda de quanto a outros, inexistente. Mas, adotando uma visão individualista
mecanismos de interiorização das nonnas a que o indivíduo adere do sistema social, têm eles, apesar de tudo, o mérito de contrapor-se,
plenamente. Os símbolos. a linguagem ou os gestos contribuem, assim, conscientemente, a teorias funcionalistas absolutas, ligando muito
para dar ao sistema interacional sua coerência e sua estabilidade, ao estreitamente o indivíduo à sua função.
mesmo tempo. Para evitar, entretanto, que essa autonomia do ator seja excessiva
e assim ponha de novo em causa a sua própria cO'erência, o sistema
O sistema interacional corre o risco, todavia, de se ver pertur-
faz surgir m'ecanismos de controle, que se revelam, quase sempre,
bado pela evolução da personalidade dos membros que o constituem.
muito eficazes. Examinando os comportamentos de um grupo de
Assim, a partir de seu célebre estudo comparativo e diacrônico dos 1

imigrantes poloneses (1918-1921), Thomase Znaiiiecki puderam operários em face do problema das cadências e das remunerações, I
Homan5 por seu turno consegue demonstrar a maneira por que a
distinguir três grandes tipos de personalidade que reagem diferen-
temente em face da evolução do sistema social a que pertencem. Se
conformidade com as normas é benéfica para todos e assegura um
d
I
como quase-equilíbrio do próprio sistema, isto é, da fábrica, na 1
o "filisteu" se revela incapaz de adaptar-se a um novo tipo de sis-
espécie. Berger e Luckmann também se negam a ver, exatamente
tema, o "boêmio" o faz com incoerência, ao passo que só o indivíduo
como o célebre autor de The Human GrlOup, numa lógica funcional
"criador" poderá agir de maneira estruturada e autônoma. Reações 1
de qualquer tipo, a causa da permanência do sistema: igualmente,
tão diferentes diante de uma mudahça de sistema expõem-se ao ris-
em sua perspectiva o controle social é exercido pelos próprios ato- li
co, simultaneamente, de introduzir naquele um certo número de
res, que de sua própria vontade impuguariam os desvios de com- .1
disfunções. Fixemos aqui, particularmente, que, segundo Thomas e
portamento. A socialização daria, assim, um caráter objetivo ao
Znaniecki, esses atores conseguem melhor que outros modificar,
"conhecimento" que os indivíduos podem ter do real. A linguagem
deliberadamente, os seus comportamentos. Concedendo, sem dúvida, ;11
a que este vai chegar constitui, por conseguinte, a seus olhos, o
uma muito extensa margem aos indivíduos, Blumer também chega
instrumento privilegiado da interação social. Aliás, quaisquer que
a focalizar a forte autonomia dos próprios atores. Ao· revés das
sejam as suas diferenças, esses autores parecem, assim, próximos
interpretações reifíantes do sistema social, sublinha ele, assim, a
da corrente que se desenvolve, atualmente, no mundo anglo-saxão,
importante margem de manobra que o ator social possui no seio do
a saber, a etnometodologia. Esta aproximação fenomenológica, que
sistema. Goffman descreve, do mesma. modo, as múltiplas maneiras
se inspira nos trabalhos de Alfred Schütz, tem tendência para acen-
pelas quais um ator H se apresenta" a outrem: para ele, toda pessoa
tuar o caráter social da linguagem, instrumento de compreensão entre
detém a possibilidade de modificar as relações internas no sistema
os atores. Distanciando-se do interacionismo simbólico (de Mead
a Goffman), Cicourel e Garfinkel não consideram mais como está-
(*) A partícula pronominal soi~ na forma sob que aparece no texto, é prati· vel o sistema de símbolos sobre O qual repousaria a linguagem. Esta
·camente intraduzÍvel. Optamos, assim, pelo emprego do inglês self3 entre outros agora se acha modelada pelas interpretações dos atores no âmbito
motivos porque se trata do termo empregado pelo próprio Mead e que, na defi· de uma situação social.
nição de Donald Pierson, significa o "processo desenvolvido pelo individuo
humano em interação com seus semelhap.tes e através do qual se torna capaz Para Horkheimer e Adorno, ao contrário, os mecanismos de
de tratar a si mesmo C011l0 objeto, isto é, de "afastar-se", por assim dizer, do controle destroem a personalidade e tornam vão todo esforço de
seu próprio comportamento, de considerá-lo do ponto de vista alheio, assumindo originalidade por parte dos atores sociais tomados como indivíduos.
os papéis e atitudes das outras pessoas e de julgá-lo deste ponto de vista; e, O desvio não se acha mais, por conseqüência, limitado pelo "conhe-
assim, de controlá·lo de acordo com as "expectativas de comportamento" dos cimento", que, para os fundadores da Escola de Francforte, não
membros dos grupos de que faz parte" (N. do T.).

10 11
pode ter senão caráter factício num sistema fundado sobre 'a alie- 'do fato cultural que a vassalagem constituía. Os próprios juramen-
naçào e a interiorização das normas da cultura. O "jogo" do ator, tos são, freqüentemente, quebrados: ,como se vê, os problemas eco-
a distância em relação ao papel aparecem, em conseqüência, -ao nômicos e sociais parece também determinarem, nesse nível do
mesmo tempo, como irrisórios e determinados por uma estrutura sistema social como no da simples interação, a natureza do inter-
social cristalizada, de que depende, verdadeiramente, o controle câmbio suscetível ao mesmo tempo de implantar um novo tipo socie-
social. A autonomia dos atores se vê, assim, atingida e quebrada tal, ou de levar, ao contrário, à desintegração do conjunto existente.
por um controle exercido; .não mais' unicamente em nome do sis-
tema no seu conjunto, mas, sim, em favor de, grupos sociais domi- Em nível interacional, já se constatou a existência de mecanismos
nantes. Segundo Horkheimer e Adorno, o sistema interacional deve, cle ,controle social. Em nível de todo o sistema, tais processos adqui-
por conseguinte, ser reposto no quadro da sociedade global: ele não rem i!mportância ainda maior, já que asseguram a coerência da
pode escapar aos conflitos que aí surgem. sociedade global. Como o havia notado Tocqueville, a exemplo de
Numa segunda subparte, gostaríamos de examinar o liame exis- outros sociólogos clássicos, os costumes permitem regular os modos
tente entre a cultura e o intercâmbio social, porque ele permite, já, d~. pensar e facilitam o bom funcionamento do sistema. No mesmo
estúqar a formação do sistema global a partir dos liames interacio- sentidv, os costumes, segundo Sumner, chegam a penetrar até i10
nsis. Para, a maioria dos_ etnólogos, o .intercâmbio social que dá nas- if).consciente e servem de justificativa para as estruturas sociais exis-
cimento ,ao _sistema funda-se,. efetivamente, numa cultura autêntica. tentes: são, pois, indispensáveis à estabilidade do sistema. Os grupos
Sem querer abordar, aqui, o problema (mais geral) das relações primários, também eles preenchem uma função de controle, uma vez
entre _cultura e natureza, afigllra-se-nos necessário sublinhar, desde que em seu seio é que se desenvolve a personalidade dos indivíduos.
°
já, o estreito liam_e que une intercâmbio social e a cultura, a partir Se nos reportarmos a um célebre texto de Cooley, veremos que eles
exerceriam, em toda sociedade, um papel ess'encial de auto-regulação.
de um processo interacional. Segundo Sapir, o lugar da cultura não
é a própria ~qciedade global, mas, antes, o das interações individuais. Estariam, contudo, como o próprio Cooley o havia pressentido, amea-
Cultura parcial e intercâmbio social específico se encontram, assim, çados, nas sociedades industriais, por um processo de atomizaçã0,
inevitavelmente ligados: os traços culturais asseguram, desta ma- que poria a sua coesão a perder: suas funções de controle social
n~ira, e graças à interação, a formação da personalidade. Impug- ficam ao mesmo tempo sob o risco de não poderem mais ser assegura-
nando uma. tal concepção atomística do corpo social, Marcel Mauss das. Esta desintegração dos liames sociais foi descrita igualmente
inostra como o intercâmbió relaciona sobretudo grupos sociais que, pOr Robert Park, ou, ainda, mais tarde, por Robert Redfield. Refe-
no quadro de um ilfenômeno social total", obedecem às diferentes rindo-se ambos, de maneira explícita, aoS trabalhos de Cooley e de
obrigações impostas pela cultura e aos liames materiais estabeleci- S~mn-er, mostram, um e outro, como o crescimento das grandeç.
dos entre ós grupos. A cultura e as normas parecem, assim, ine- cidades e a divisão do trabalho que o acompanha conduzem, no
rentes ao -intercâmbio estrutural, constitutivo do sistema social. mais da.s vezes, a uma desorganização social atentatória da função
Semelhante constatação é também encontrada no texto de Claude de' controle social exercida pelos grupos primários ou, mais geral-
LévÍ-Strauss: pará ele, as regras do casamento exprimem a forma- me'nte, pela sociedade tradicional. Segundo todos esses autores, a
'ção de uma cultura, repousam igualmente sobre o princípio de reci- passagem para a sociedade industrial põe em perigo a coerência do
procidade. O "sistema de intercâmbio" assegura, portanto, a sistema social. No mesmo sentido, Frederic Thrasher estuda as con-
permanênéia do grupo. Tódos os sistemas sociais parece, conseqüen- seqüências dessa desorganização sobre o equilíbrio da comunidade
temente, dependerelTI do intercâmbió mais ou menos estruturado que urbana. Mas, embora pertencendo, também, à Escola de Chicago, da
se instaura entre os homens e' os grupos: assim, para Marc qual Park foi um dos fundadores, sublinha ele, em seu livro, que
Bloch, na sociedade feudal, a homenagem do vassalo unia, de início, ficou clássico, The Gang, como o grupo primário consegue, apesar
dois homens que aceitavam, deliberadamente, esse liame e as obriga- de tudo, subsistir sob formas diversas e ainda preencher, em conse-
qüência, suas funções (1). O trabalho de Thrásher tenderia, por-
ções decorrentes. Um conjunto de ritos e de símbolos ilustrava o
aspecto contratual de semelhante intercâmbio. Com O tempo, essas
ligações de homem para homem vão ·perdendo, segundo Bloch, a sua (1) Na mesma perspectiva, ver William Foote Whyte, Street COrnef
força, e a posse das terras. diminui, a pouco e pouco, a importância SdCiety, Chicago, University of Chicago Press, 1943.

12 13

3 -T.S. -I
I
tanto\ a demonstrar que os receios manifestados por Cooley não eram numa aproximação marxista e conflitual. 'Publicada em 1887, isto
fundados, uma vez que a atomização não atinge as relações primá- é, anteriormente aos trabalhos dos autores que acabamos de evocar,
rias tidas como indispensáveis à sobrevivência do sistema. Em con- a obra de Tonnies confere, efetivamente, um lugar mais importante
dições particulares, observadas por Durkheim, a desintegração do aos fenômenos históricos de ordem conflitual. Se, por seu caráter
sistema pode, todavia, traduzir-se por um completo desregramento orgânico e natural, a "comunidade" parece comparável à sociedade
dos comportamentos individuais: desta ausência, ou desta deficiência tradicional de Park ou de Redfield, ou, ainda, em outro nível. ao
das normas é que precisamente resultaria o suicídio anômico. Numa grupo primário de Cooley, respousa, também, no que lhe toca, sobre
socie:dade que conhece uma forte divisão do trabalho, a anomia uma organização coletiva da produção. Esta organização, ao con-
trária, desaparece, numa "sociedade" que veio a ser totalmente anta-
atinge particnlarmente as profissões' industriais e comerciais 1 em que
gônica e onde se defrontam as classes sociais. Por detrás elo aspect')
reina exacerbada concorrência. Porque o poder moral da sociedade
atomístico da "sociedade", sobre o qual muito se debruçaram os
não conserva mais seu caráter "superior" é que o indivíduo, ahan-
sociólogos da sociedade de massa, Tônnies focaliza, assim, a exis-
donado a si mesm'O, Ise suicida. Maurice Halhvvachs observa, no
tência de fenômenos de ordem simultaneamente coletiva e conflitual.
mesm-o sentido, que quanto mais a sociedade se complica tanto mais
O sistema não está mais somente ameaçado pela desorganização:
os homens ficam inclinados a suicidar-se: posto diante de tensões
enfrenta o perigo de sucumbir aos conflitos internos.
acrescidas pela complexidade da vida social e muitas vezes entregue
Max Weber retoma igualmente essa oposição entre a comunida-
a si mesmo, Ó indivíduo corre o risco de suicidar-se, quando experi-
de e a sociedade, mas dá-lhe um caráter mais analítico, não consti-
menta "contrariedades". A ordem social pode, assim, ser abalada.
tuindo ainda, a seus olhos, tais relações sociais, determinadas pelos
Sorokin, por seu turno, frisa o caráter desmoralizador dos fenôme- tipos de ação expostos precedentemente, reais sistemas sociais. As
DOS de mobilidade, sem nem por isso negar-lhes os aspectos positi-
relações de comunalização e de sociação não estão mais ligadas, ago-
vo:,: distribuição mais funcional dos empregos, ascensão social de ra, à mudança social e à história: em graus diversos, parecem carac-
no 'lOS dirigentes etc. Segundo ele, com efeito, a mobilidade social terizar, doravante, todos os tipos de sociedade. No mesmo sentido, o
das sociedades modernas destrói os liames sociais e opõe os indivI- texto de Schmalenbach tem por objeto, sobretudo, distinguir da
duos uns aos outros, colocando em perigo, dessa forma, o próprio comunidade um tipo específico de relações sociais, que seria o único,
sistema social. Toda sociedade, por conseguinte, para limitar os segundo ele, e diferentemente de Tonnies ou de Weber, a ser fun-
efeitos desses diversos processos, que atingem a coerência do sis- dado sobre os sentimentos e a afetividade e que ele denomina a
tema, se acha na obrigação de criar mecanismos de controle social. liga. Esta distinção suplementar nem por iSS'O altera a natureza dos
cuja importância, em nível interacional, já foi vista. Georges Gur- conceitos que apresentam, corno em Weber, um caráter puramente
vitch propõe-se estudar, sem contar os a príorí tradicionais, oS dife- analítit.:o e não se referem, absolutamente, a um todo social estrutu-
rentes meios a que recorrem os sistemas sociais, em todos os níveis, rado. Com Durkheim, ao contrário, encontramos, de novo, esta visão
a fim de favorecer a interiorização das normas ou dos ideais pró- dos conjuntos e, através dela, a história. Sua oposição entre a soli-
prios do sistema e limitar, por contragolpe, a amplitude dos desre- dariedade mecânica e a solidariedade orgânica se constrói, parcial-
gramentos. A sociologia do controle social não é, segundo Gurvitch, mente, em relação à dicotomia elaborada por Tônnies. No âmbito da
de inspiração conservadora, porque diz respeito a todas as sociedades. solidariedade mecânica, como no da comunidade, os homens formam
Ainda será preciso confrontar estas últimas com a história e com a um todo (funcional e orgânico em Tõnnies) provocado pela seme-
mudança social. lhança e mantido pela coerção, segundo Durkheim. O modelo de
T6nnies, portanto, já se transformou consideravelmente, tomando
Certas tipologias clássicas dos sistemas sociais já lévavam em Durkheim, no que se lhe refere, como variável mais ou menos inde-
conta a história, mas freqüentemente refletiam concepções evolucio- pendente, o ~stado da divisão do trabalho e não a natureza coletiva
nistas e lineares, segundo as quais a mudança social procede, de da organização social. A comunidade repousa sobre a comunhão,
algum modo, da própria natureza das coisas. Se a célebre oposição num caso (Tõnnies), e, no outro caso (Durkheim), sobre a coerção.
entre comunidade e sociedade parece próxima, ela também, dos tipos Numa perspectiva relativamente evolucionista, a divisão do trabalho
sociais descritos por Cooley, Park ou Redfield, deles, todavia, se devia criar, segundo Durkheim, uma solidariedade orgânica fundada
distingue. porque se inspira, parcialmente, no que lhe diz respeito, na complementaridade, no intercâmbio recíproco e na coesão do gru-

14 15

.. !
po. Todavia, ele é o primeiro a mostrar como a divisão do trabalho
constrangida e a divisão do trabalho anâmica vão contrariar o nas-
cimento dessa solidariedade orgânica entre os homens. Com o pro-
blema da herança, que torna desiguais as oportunidades das classes
sociais e impede a adequação entre função e competência de Se esta- CAPÍTULO I
belecer, chega-se a uma divisão patológica do trabalho e a uma
sociedade conflitual, que não deixa de lembrar a "sociedade" de OS FUNDAMENTOS DA INTERAÇÃO
Tõnnies. Assim é que os modelos clássicos da mudança social e
da organização das sociedades encontram, novamen te, a história.

QUE É UMA SOCIEDADE?

GABRIEL TARDE

Estamos, repito-o, em relação de soci-edade bem mais estreita com


as IJessoas com que mais nos parecemos por identidade de ocupação
e de educação, sejam embora noSSas rivais, do que com aquelas de
quem muito precisamos. É isto patente entre advogados, entre jor·
nalistas, entre magistrados, em todas as profissões. Tem-se muita
razão, por isso, de chamar sociedade, na linguagem ordinária, a wn
grupo de pessoas semelhantemente educadas, de idéias 'e de senti-
mentos em desacordo, talvez, mas possuindo um mesmo fundo comum
e que se vêem e entreinfluenciam por prazer. Quanto aos emprega-
dos de uma mesma fábrica, de uma mesma loja, que se reúnem para
a~sistência mútua, ou colaboração, formam eles uma sociedade
comercial, industrial, não uma sociedade sem epíteto, não uma socie-
dade pura e simples.
Ach0-me em relação social COm os outros homens, na medida
em que eles têm o mesmo tipo físico, os mesmos órgãos e os mes-
mos sentidos que eu? Acho-me em relação social com um surdo-
mudo não instruído, que muito se parece comigo de corpo e de
rosto? Não. Ao contrário, os animais de La Fontaine - a raposa,
a cegonha, o gato, o cão apesar da distância específica que os sepa-
ra, vivem em sociedade, porque falam a mesma linguagem. Come-se,
bebe.-se, digere-se, anda-se, grita-se, sem que tudo isso tenha sido
aprendido. Por conseqüência, isso tudo é puramente vital. Mas, para
falar, é necessário ter ouvido falar. Prova-o ° exemplo dos surdos-
n1L1.clos, que são mudos por serem surdos. Portanto, começo a sen-
16 17
I
tir-me em relação social, muito fraca, é verdade, e insuficiente, com sociologia devesse, realmente, como se pretende, abarcar o conjunto i
todo homem que fala, mesmo em língua estrangeira, sob a condição de tudo quanto acontece na sociedade e executar a redução de todo
de que nossas duas línguas me pareçam ter uma fonte comum. O o jnd~ vi dual ao social. nada seria. então, senão um nome geral para
liame social vai-se estreitando, à medida que outros traços comuns a totalidade das modernas ciências do espírito. Do mesmo passo,
se juntam àqueles, todos de origem imitativa. abriria a porta às generalizações vazias e às abstrações, apanágio
Daí a seguinte definição de grupo social: uma coleção de seres, da filosofia. Como esta ela gostaria, reunindo as coisas mais dispa-
na medida em que estão a imitar-se entre si Ou em que, sem atual- ratadas numa unidade toda ideal ou toda formal, constituir um só
mente se imitarem, se parecem uns com os outros, sendo seus traços império do mundo científico, chamado a dividir-se, como o império
connlllS cópias antigas de um mesmo modelo (Excerto de GABRIEL
do mundo político, em governos particulares ...
TARDE, Les [ois de l'imitation, Paris, A1can, 1900, pág. 70, pág. 73). Há sociedade, no sentido lato da palavra, onde quer que haja
ação recíproca dos indivíduos. Desde a efêmera reunião de pessoas
que saem juntas a passear até à unidade íntima de uma família ou
de rima guilda da Idade Média, podem-se constatar oS graus e os
gêneros mais diferentes de associação. As causas particulares e os
o PROBLEMA DA SOCIOLOGIA fins, sem os quais não existe associação, naturalmente, são como o
I! : f

corpo, a matéria do processo social. O resultado de tais causas, a


procura de tais fins acarreta, necessariamente, uma ação recíproca,
GEORG SIMMEL
uma associação entre os indivíduos, e aí está a forma que revestem
os conteúdos. Separar essa forma destes conteúdos, por meio da
abstração científica, tal é a condição sobre que assenta toda a exis-
o mais importante e o mais fecundo dos progressos que a histó- tência de uma ciência especial da sociedade. Porque se torna claro,
ria e a ciência do homem em geral realizaram em nosso tempo con- imediatamente, que a mesma forma, a mesma espécie de associa-
siste, segundo a opinião mais generalizada, na derrota das concepções ção pode adaptar-se às matérias, aos mais diferentes fins. Não é
individualistas. Os destinos individuais ocupavam, outrora, na his- apenas a associação de um modo geral que se acha tanto numa comu-
tória, o primeiro plano do quadro. .olhamos agora como sendo a nidade religiosa como numa conjuração, numa aliança econômica
potência verdadeiramente ativa e decisiva as forças sociais, os movi- como numa escola de arte, numa assembléia do povo como numa
mentos coletivos, dos quais a parte que cabe ao indivíduo se deixa família, mas semelhanças formais estendem-se ainda até às confi-
raramente destacar com nitidez: a ciência do homem tornou-se a gurações e às evoluções especiais dessas sociedades. Nos grupos
ciência da sociedade humana. Nenhum objeto das ciências do espírito sociais, que seus objetivos e seus caracteres morais tornam tão dife-
pode subtrair-se a esta conversão. Mesmo onde a personalidade rentes quanto é possível imaginar, encontramos, por exemplo, as
parece estar em seu apogeu, como na atividade artística, procuramos mesmas formas da dominação e da subordinação, da concorrência,
na evolução da raça as causas que tiveram que conduzir à~ impres- da imitação, da oposição, da divisão do trabalho. Encontramos a
sões do belo, e, na situação particular da sociedade contemporânea, formação de uma hierarquia, a encarnação dos princípios diretivos
as ocasiões que deviam fazer nascer tal ou qual forma da produção dos grupos em símbolos, a divisão em partidos. Encontramos todos ./
artística. Na religião como na vida científica, na moral como na 05 estádios da liberdade ou da dependência do indivíduo em relação
cultura técnica, na política como no estudo, quer da saúde, quer das ao grupo, o entrecruzamento e a superposição dos próprios grupos
enfermidades da alma e do corpo, por toda parte se estende a ten· e certas formas determinadas de sua reação contra as influências
dênci&. para reduzir todo acontecimento individual ao estado histõ· exteriores. Esta semelhança das formas e das evoluções, que se pro-
rico, às necessidades e às atividades do conjunto. duz, com freqüência, no meio da maior heterogeneidade das deter-
Mas, se essa tendência do conhecimento é tão geral e penetra por minações materiais dos grupos, revela, aí, afora tais determinações,
toda parte, bem poderá servir de princípio regulador a todas as a existência de forças próprias, de um domínio cuja abstração é
ciências do espírito; não poderá fundar, no meio delas, conceden- 1egítima. É o da associação como tal e de suas formas. São formas
do-lhe um lugar particular, uma ciência especial independente. Se a que se desenvolvem ao contacto dos indivíduos, de maneira relativa-

18 19
I
mente independente das causas matenalS (atuais, singulares) de. tal dade" (2) (GEORG SIM MEL, "Le probleme de la sociologie", Revue
!
contacto, e sua soma constitui esse conjunto concreto chamado, por de MétaPhysique et 1f.2 Morale, 1894 (II), págs. 497-502).
abstração, sociedade.
Para falar com verdade, nos fenômenos históricos particulares, ,o
conteúdo e a forma social constituem, de fato, uma combinação
indissolúvel. Não há constituição ou evolução sochl que seja pura- A ATIVIDADE SOCIAL E
mente social e que não seja, ao mesmo tempo, constituição ou evo- AS RELAÇÕES SOCIAIS
lução de um conteúdo. Conteúdo que pode ser de espécie objetiva: a
produção de uma obra, o progresso da técnica, o reinado de uma MAX WEBER
idéia, a prosperidade ou a ruína de um grupo político, o desenvolvi-
mento da linguagem ou dos costumes. Ele também pode ser de
natureza subjetiva, isto é, dizer respeito às inumeráveis partes da I. Determinantes da atividade social
pessoa, as quais a socialização reforça, satisfaz, desenvolve na dire- I
I
ção da moralidade ou da imoralidade. Mas esta penetração absoluta I.i;
do conteúdo e da forma, tal como se apresenta na realidade histórica . Como qualquer outra atividade, a atividade social pode ser deter-'
não impede que a ciência, por abstração, os dissocie. Assim é que minada: a) de forma racional em finalidade (zweckrational) , por: I
~ geometria não considera senão a forma espacial do corpo, a qu'a1,
todavia, não existe por si só, mas sempre em e com uma matéria,
que é objeto de outras ciências. Mesmo o historiador, no sentido (2) Se, como eu o creio, o estudo das forças, formas e desenvolvimentos
da associação, justaposição, colaboração ou subordinação dos indivíduos só pode
estreito da palavra, não estuda senão uma abstração dos aconteci- ser objeto de uma sociologia como ciência particular, deve-se também fazer caber
mentos reais. Até ele destaca da infinidade das ações e das palavras aí, naturalmente, o estudo das determinações tomadas pela forma de associaçã~
reais, da soma de todas as particularidades interiores e exteriores, sob a influência da matéria particular em que ela se realiza. Estuda-se, por
os processos que cabem em determiI1:.ados conceitos. Nem tudo o que exemplo, a formação da aristocracia. Além da divisão das massas primiti'iamente
homogêneas, da solidariedade daqueles que adquiriram realce e Que formam
Luís XIV ou Maria Teresa fizeram da manhã à noite, nem todas, as uma unidade de classe, de sua repulsa regular em relação às personalidades que
palavras ocasionais de que revestiram suas resoluções políticas, nem lhes são superiores e, bem assim, em relação às massas que lhes são inferiores,'
todos os inumeráveis acontecimentos psíquicos que as precederam, a é ainda preciso, de um lado, pesquisar os interesses materiais que, de- modo
geral, provocaram esses processos e, de outro lado, determinar as modificações
ela anexados por uma necessária ligação de fato, mas não por Ulna que a diferença dos modos de produção, assim como a diferença das idéias
relação objetiva~ nem tudo isso entrará na "história"; mas o con- dominantes, lhes impõem. Mesmo certas determinações, que parecem de natu-
ceito da importância política será aplicado aos acontecimentos reais, reza individual e que têm o efeito, antes de rpais nada, de juntar-se aos processos
e não se procurará nem se relatará senão o que lhe pertence, o que, sociais, logo se reduzem a estes, desde que se faça das formas da sociedade
uma idéia suficientemente ampla. As sociedades secretas, por exemplo, levantam
em verdade, efetivamente não foi assim real, isto é, não aconteceu um problema sociológico particular: Como o sigilo age sobre a associação e
segundo essa pura coerência interior e em conformidade coni essa (jue forma~ particulares esta assume sob a condição daquele, de tal sorte que
abstração. Do mesmo modo, a história econômica isola de certa for~ reuniões que, a céu aberto, ofereceriam a maior diversidade adquirem certos
traços comuns só pelo fato do sigilo? Parece, de início, aqui, que a associação
ma tudo quanto concerne às necessidades corporais do homem e ,aos é especificada por um princípio todo exterior aos princípios sociais. Mas afigu-
meios de satisfazê-las da totalidade dos acontecimentos, ainda que, ra-se, olhando melhor aí, que o sigilo por si mesmo j á pertence às formas da
talvez, não haja um só acontecimento que não tenha, realmente, certa vida social. Ele não pode existir senão onde vivem indivíduos conjuntamente;
constitui uma forma determinad:3. de suas relações recíprocas, a qual, longe de
relação com aquelas necessidades. A sociologia, como ciência parti- ser de natureza puramente negativa, traz consigo hábitos sociais positivos, todos.
cular, não procederá diferentemente. Abstrai, para disso fazer objeto De um modo geral, importa fazer entrar na sociologia todas as formas de
de uma observação especial, os elementos, o lado puramente social relações dos homens entre si, não somente as associações e as uniõe::; no sen-
da totalidade da história humana, isto é, do que acontece na socie- tido limitado, isto é, no sentido de uma cooperação ou de uma unificação
harmoniosa em um único círculo: a luta e a concorrência também fundam
dade. Em outros termos, e para exprimi-lo COm uma concisão um relações ou, antes, são relações de ,reações recíprocas e mostram, apesar da
tanto paradoxal, estuda ela, na sociedade, o que não é senão fi socie- diferença dos casos, uma similitude de formas e de evoluções. Elas também

20 21
,~

expectações do comportamento dos objetos do mundo exterior ou peJa beleza, pelas diretrizes religiosas, pela piedade ou pela grandeza de uma
.. causa", seja de que natureza for. A atividade racional em valor consiste
ir
do de outros homens, explorando-se tais expectações como "condi~ sempre (no sentido de nossa terminologia) numa atividade acorde com .. imp.e-
ções " 011 corno "meios" para se chegar racionalmente aos fins pró- rativos" ou "exigências" e cujo agente acredita que eles lhe são impostos.
prios, maduramente refletidos, que se deseja. atingir; b) de forma Não é senão na medida em que a atividade humana se orienta segundo esse
racional em valor (wertrational) , pela crença no valor intrínseco gênero de exigências que falaremos de uma racionalidade em valor, o que
incondicional - de ordem ética, estética, religiosa ou outra qualquer nunca acontece senão numa proporção mais ou menos grande e quase sempre
assaz reduzida. Como se verá, ela tem, contudo, suficiente importância pw-a
- de um comportamento determinado que vale por si mesmo e inde- tjue a ponhamos em evidência como tipo especial, conquanto, de resto, não
pendentemente de seu resultado; c) de forma afetual (affektuel) procuremos, de forma alguma, elaborar uma classificação completa dos tipos
e, particularmente, emocional, por paixões e sentimentos atuais; d) de atividades.
de forma tradicional (traditional) , por costume inveterado. 4. Age de maneira racional em finalidade o que orienta sua atividade de
~cordo com os fins, os meios e as conseqüências subsidiárias (Nebenfolge) e
confronta, ao mesmo tempo, racionalmente, os meios e o fim, o fim e as
1. O comportamento estritamente tradicional - exatamente como a imita-
conseqüências subsidiárias e, pOr último, os diversos fins possíveis entre si.
ção por simples reação (ver parágrafo precedente) - situa-se absolutamente

I,
Em todo caso, esse não opera nem por expressão dos afetos (e, sobretudo,
nos limites, e muitas vezes além, do que se pode chamar, em gerd, uma
não emocionalmente), JU'm por tradição. A decisão entre fins e conseqüências
atividade orientada "significativamente". Com efeito, ele não é, quase sempre,
senão um modo morno de reagir a excitações habituais, o qual se obstina na
concorrentes ou antagônicas pode, de seu lado, ser orientada de maneira ..
.'
racional em valor .. neste caso, a atividade só é racional em finalidade no plano
direção de uma atitude adquirida em outros tempos. A massa de todas as
dos meios. Pode igualmente acontecer que o agente, sem orientar de maneira
atividades diárias familiares se aproxima desse tipo que entra na sistr:mática, racional em valor, segundo "imperativos" ou "exigências", os fins ('oncor-
não somente como caso limite, mas também porque (ver-se-á isso mais adiante) rentes e antagônicos, aceite-os simplesmente como estimulantes de certas neces-
(> apego aos costumes pode ser mantido conscientemente em proporções e num
sidades subjetivas, que ele dispõe em ordem hierárquica, conforme um critério
sentido variáveis: neste caso, o tipo em questão se aproxima, já, do tipo conscientemente refletido da urgência, e oriente, aí, em seguida, sua atividade,
discutido sob o número 2. de tal modo que venha a satisfazê-las na medida do possível, respeitando essa
2. O comportamento estritamente afetual se situa igualmente no limite e ordem (tal é o princípio do "marginalismo"). A orientação racional em
muitas vezes além daquilo que é orientado de maneira significatiz:amente valor pode, portanto, ter relações muito diversas com a orientação racional em
consciente; pode não ser senão uma reação sem f reios a uma excitação insó- finalidade. Do ponto de vista da racionalidade em finalidade, todavia, a racio-
lita. Temos pela frente uma sublitnação, quando a atividade condicionada pelos nalidade em valor fica sempre afetada por uma irracionalidade, tanto mais
afetos aparece como um esforço consciente para aliviar um sentimento; neste Quanto se dá uma significação mais absoluta ao valor segundo o qual a ativi-
caso, ela se aproxima. na maior parte do tempo (nã<>t porém, sempre), de dade é orientada. Isto procede de que a racionalidade em valor especula em
vma "racionalização em valor", ou de uma atividade em finalidade. ou de geral tanto menos sobre as conseqüências da atividade quanto leva mais incon-
ambas as coisas ao mesmo tempo. dicionalmente em consideração só o valor intrínseco do ato (a pura convicção,
3. A orientação afetual e a orientação racional em valor da atividade se a beleza, o bem absoluto ou o dever absoluto). A racionalidade absoluta em
diferenciam uma de outra pelo fato de que a segunda elabora, conscientemente, finalidade não é também, quanto ao essencial, senão um caso limite teórico.
0,<, pontos de direção últimos da atividade e se orienta segundo estes de maneira S. Acontece muito raramente que a atividade, particularmente a atividade
metodicamente conseqüente. Quanto ao mais, elas têm em comum o fato de social, se orienta, unicamente, segundo uma ou outra de tais espécies de ativi-
que para uma e outra o sentido da atividade não se situa no resultado, conce- dade. Do mesmo modo, essas diferentes espécies de orientações não consti- ,i
bido como se achando além dela mesma, mas na atividade que, como tal, tuem, evidentemente, de maneira alguma, uma classificação completa das pos-
possui uma natureza determinada. Age de maneira afetual o que procura satis- síveis orientações da atividade. Não são senão puros tipos, construídos para
fazer à necessidade de uma vingança atual, de um prazer atual, de um de~to­ servir aos fins da pesquisa SOCiológica, dos quais a atividade real mais ou
tamento atual, de uma felicidade contemplativa atual, ou ainda o que procura menos se aproxima. Mais freqüentemente ainda, ela os combina. É a sua
desembaraçar-se de uma excitação atual (pouco importando se ele o faz de fecundidade que, em nossa opinião, impõe a necessidade de construí-lo!;. z
nma forma indigna ou sublime).
Age de maneira puramente racional em valor o que age sem levar em conta
as previsíveis conseqüências de seus atos, ao serviço de sua convicção, inci- 2. As relações sociais
dente sobre o que se lhe afigura como ordenado pelo dever, pela dignidade,

Designamos pela expressão "relação" social o comportamento de


indicam, portanto, a existência de forças que, quando os homens entram em vários indivíduos na medida em que, por seu conteúdo significativo
contacto, neles se desenvolvem e cujas espécies e origens devem ser estudadas (Sinngehalt) , o de uns se regula pelo dos outros ( aufeinander
por elas mesmas, a fim de que se conheça como a enorme diversidade dos
motivos e dos conteúdos dos acontecimentos particulares leva, entretanto, a essa
gegenseitig eingestellt) e, em conseqüência, se orienta. A relação
semelhança entre as formas sociais. social consiste, portanto, essencialmente e exclusivamente, na proba-

22 23
dade, senão um caso limite. A ausência de reciprocidade não poderia, segundo
bilidade de que se agirá socialmente de maneira (significativamente) a nossa terminologia, excluir a existência de uma "relação social" senão quando
expressável, sem que seja necessário precisar, antes do mais, sopre ela acarreta, como conseqüência, o desaparecimento de uma relação recíproca
que se funda esta probabilidade. na atividade de uma e de outra parte. Aqui como alhures, a existência de
todas as espécies de transições é, na realidade, a regra.
1. Um mtnlmo de re1ação na ação recíproca de uns sobre os outros consti- 4. Uma relação social pode ter caráter efêmero ou então ser durável, o
tui. pois, a característica conceptual. O conteúdo pode ser extremamente diver- (,;ue significa que pode ser regulada de tal sorte que exista a probabilidade de
50: luta, hostilidade, amor sexual, amizade, piedade, intercâmbio comercial, repetição contímlíl de um comportamento significativamente correspomlente (a
" execução", .. esquivança" ou .. ruptura" de um acordo, l i concorrência" eco- saber, válido para isso e que se pode, pois, em conseqüência, aguardar). S6 o
nômica, erótica ou outra qualquer, comunidade feudal. nacional ou de classe fato de existir essa chança - por conseguinte, a maior ou menor probabili-
(No caso em que estas últimas engendrem uma "atividade social" que ultra- dade de que uma atividade significativamente correspondente se desenvolva,
passe o simples fato de viver em comum: Gemeinsamkeit. A respeito volta- se'm nada mais - constitui a indicação da persistência (Bestand) de uma
remos a falar mais adiante). O conceito não se pronuncia sobre a existência relação social, o que é preciso ter presente, sempre, ao espírito, se se quiser
de uma "solidariedade" entre os agentes ou sobre o contrário. eVi'tar falsas representações. O fato de que uma "amizade", ou um II Estado",
2. Trata-se, sempre, do "conteúdo significativo" empírico visado pelos' existe, ou existiu, significa, pois, exclusiva e unicamente, que n6s (os observa-
participantes, quer efetivamente, no caso partiCular, quer em média, quer 'em dores) julgamos que existe ou que existiu uma probabilidade segundo 3 qual,
um tipo "puro" construído e nunca num sentido normativamente "justo" ou
metafisicamente 11 verdadeiro". Mesmo quando se trata de pretensas "estru-
turas sociais ", como o "Estado ", a "Igreja ", a .. confraria ", o .. casamento'"
com base numa atitude de natureza determinada de certas pessoas determi-
nadas, age-se de certa maneira ainda definível num sentido visado em média,
e isso não quer dizer nada mais (cf. 2 in fine). A inelutável alternativa numa
I
etc., a relação social consiste, exclusiva, pura e simplesmente, na probabilidade pesquisa de ordem iurUica - uma proposição jurídica de sentido determinado
de que, segundo seu conteúdo significativo, existiu, existe ou existirá uma vale ou não vale (no sentido jurídico)? uma relação jurídica existe ou não
atividade recíproca de uns sobre outros de certa maneira expressável. É preciso e:x;iste? - é sem valor para a pesquisa sociológica.
apegar-se sempre a isso, a fim de evitar uma concepção "substanciali5ta" 'de S. O conteúdo significativo de uma relação social pode variar. Por exemplo,
3emelhantes conceitos. Do ponto de vista sociol(.gico, um "Estado" cessa; uma relação política fundada sobre a solidariedade pode transformar-se num
por exemplo, de "existir", desde que desapareça a /lrobabilidad(' de (Jt1<' aí, se conflito de interesses. É então uma questão de comodidade terminológica e de
desenrolem determinadas espécies de atividades sor::"ds, orientadas significati- grau de continuidade na mudança que permite dizer se uma "nova" relação
vamente. Esta probabilidade pode ser muito consider!LVel, como pode ser mínima, é instituída ou se a antiga persiste, tendo recebido um novo .. conteúdo signi-
quase desprezável. Não é senão no sentido e na 11lC'dt'da em que ela t"xistiu fiçativo". Por isso o conteúdo significativo pode ser em parte perdurável,
ou efetivamente existe (segundo a estimativa) que existiu ou existe, igual- em parte variável.
mente, a relação social em questão. Não é verdadeiramente possível dar outl'O , 6.' O conteúdo significativo que constitui perduravelmen.te (pcren.nicrend)
sentido preciso à seguinte proposição: tal "Estado" determinado, por exemplo~ urna relação social pode ser formulado em "máximas", que os participantes
existe ainda ou não existe mais. eJperam ver observadas em média, ou de maneira aproximadamente significa-
3. Isso não quer absolutamente dizer que os indivíduos participantes de tiva, pelo ou pelos parceiros e em função das quais eles próprios orientam (em
uma atividade em que uns se regulam pelos outros atribuam, no caso parti- média ou aproximadamente) a sua própria atividade. Isso se apresenta tanto
cular, um conteúdo significativo idênt-ico à relação social, nem que um dos mais freqüentemente quanto a atividade em questão é orientada, segundo seu
parceiros adote, interiormente, uma atitude que significativamente correspOllda caráter geral, de maneira. mais racional. em finalidade ou em valor. No caso
à do outro e que, por conseguinte, exista "uma reciprocidade" (Gegcns'ei- de uma relação erótica e, em geral, de uma relação afetual (por exemplo,
Ilgkeit) nesse sentido. A .. amizade ", o "amor", a "piedade ", o "respeito do ema relação de .. piedade"), a possibilidade de uma formulação racional do
contrato", o "sentido da comunidade nacional" que se experimenta, de um conteúdo significativo visado é evidentemente muito menor que no de uma
lado, podem chocar-se com atitudes absolutamente diferentes. de outlO lado. relação contratual de ordem comercial.
Neste caso, os participantes dão um outro sentido à sua atividade: a relaçãõ 7 . O conteúdo significativo d~ uma relação social pode repousar sobre um
social é, em tal medida, objetivamente .. unilateral" dos dois lados. A relação acordo (Vereitlbarung), por via de um compromisso mútuo (gegenseitige
de uns com os outros permanece, também, assim, na medida em que o agente Zusage). Equivale a. dizer que aqueles que participam dessa relação trocam
pressupõe (de maneira talvez total ou parcialmente errada) no seu parceiro (entre si ou de outra maneira) promessas (Versprechungen) válidas para o
uma atitude determinada a seu respeito e oriente, em decorrência, a sua própria seu futuro comportamento. Cada participante conta então, normalmente -
atividade, o que pode ter e, mesmo, tem, no mais das vezes, conseqüências na medida em que considera racionalmente as coisas - com o fato de que
quanto ao desenrolar da atividade e ao aspecto da relação. Ela não é objeti- (com uma. certeza variável), o outro orientará sua atividade no sentido que
I vamente "recíproca" senão na medida, evidentemente, em que os conteúdos ele mesmo (agente) dá ao acordo. Orienta ele sua ação, em parte, de maneira
racional em finalidade (conforme o caso, de maneira mais ou menos signifi-
I significativos ,< correspondem" um ao outro - segundo as expectações médias
de cada um dos participantes - isto é, se, por exemplo, a atitude dos filhos ('ativamente "leal"), segundo essa expectação, em parte de maneira racional
em valor, segundo o .. dever" de "respeitar" o acordo intervindo exatamente
em relação à do pai corresponde, pelo menos aproximadamente, àquilo que o
nos limites do sentido por ele próprio visado. Eis aí tudo o que era preciso
I

pai espera (num caso particular, em média ou tipicamente). Uma relação
social que repousasse integralmente e sem reservas sobre uma atitude signifi- dizer inicialmente (Excerto de MAX WEBER, Economie et société, Paris, PIou,
1971, t. I, págs. 22-26).
cativamente congruente de uma e de outra parte não seria, jamais, na reali-

24 25
o JOGO LIVRE (FOLGUEDO), O JOGO dida em que assume as atitudes do seu grupo social organizado para
REGULAMENTADO E "O OUTRO-GENERALIZADO" com a atividade social cooperativa, ou para com o conjunto de tais
atividades, de que o grupo se ocupa, é que ele desenvolve um self
completo ou possui o seIf que de fato realizou. Por seu turno, os
GEORGE H. MEAD complexos processos cooperativos, as atividades e funcionamentos
institucionais da sociedade humana organizada não são possíveis
Pode-se chamar à comunidade organizada ou ao grupo social que senão na medida em que qualquer indivíduo nisso incluído pode
dão ao indivíduo a unidade do self o outro-generalizado". A ati-
fi
tomar as atitudes gerais de todos os outros indivíduos relativamente
tude do outro-generalizado é a de toda a comunidade (3). Assim, no àquelas atividades, àqueles processos e àqueles funcionamentos insti-
caso de um grupo social tal como a equipe, a equipe é que é o tucionais e relativamente ao todo social organizado das relações e
outro-generalizado, na medida em que entra (como processo organi- interações de experiências assim constituídas; e na medida, também,
zado ou atividade social) na experiência de qualquer um de seus em que ele pode dirigir sua própria conduta, em conseqüência.
membros. É. sob a forma do outro-generalizado que o processo social afeta
o comportamento dos indivíduos nisso comprometidos ou que o rea-
Se o dado individuo humano deve adquirir um self no sentido mais
lizam, isto é, que a comunidade exerce um controle sobre a conduta • 1·
amplo, não lhe basta assumir simplesmente as atitudes dos outros
de seu~ membros. É dessa maneira, com efeito, que o processo social
para consigo e para com eles mesmos, ou introduzir esse processo
ou a comunidade se tornam um fator determinante do pensamento
social em sua experiência particular: é-lhe também preciso assumir.
do indivíduo. No pensamento abstrato, o indivíduo adota a atitude
da mesma maneira por que ele adota suas atitudes para consigo e
para com eles mesmos, suas atitudes respeitantes às diversas fases que tem para com ele o outro-generalizado (4), sem considerar essa
atitude como manifestada num indivíduo particular. No pensamentc
ou aspectos da atividade social comum ou aos conjuntos de empreen-
dimentos sociais, em que estão todos engajados como membros de concreto, ele adota semelhante atitude na medida em que é expressa
uma sociedade organizada. É-lhe então preciso agir relativamente aos nas atitudes que têm para Com o seu comportamento os outros indi-
diversos projetos sociais realizados em dado momento, ou relativa- víduos com quem ele está comprometido na situação ou no ato social
mente às várias fases maiores do processo social geral, que constitui dado. Mas não pode pensar senão tomando, de uma dessas duas ma-
a vida dessa sociedade e de que tais projetos são manifestações neiras' a atitude do outro-generalizado, porque o pensamento ou a
específicas. Em outros termos, semelhante importação das atividades conversação por gestos interiorizada, que a constitui, não podem
mais gerais de uma dada totalidade social (ou sociedade organizada produzir-se de outro modo. Um universo de discursos, sistema das
como tal) no campo de experiência de qualquer indivíduo engajado significações comuns ou sociais que o pensamento pressupõe como
ou compreendido nesse todo constitui a base essencial, a condição ;:ontexto, torna-se possível unicamente porque os indivíduos tornam
necessária do mais amplo desenvolvimento do seIf. Somente na nl:ê- a atitude ou as atitudes do outro-generalizado para com eles mesmos.
O homem consciente de si adota, pois, as atitudes sociais organi-
(3) É possível, para objetos inanimados, não menos do que para os orga- zadas, as do grupo social Ou da comunidade dados (ou de uma de
nismos humanos, constituir partes do outro-generalizado e organizarIo - o
Gutro completamente socializado - para qualquer indivíduo humano dado. na
medida em que ele reage a tais obj ctos de maneira social (por meio do meca- (4) Dissemos que a conversação interior do indivíduo consigo mesmo, por
nismo do pensamento, da conversação por gestos interiorizada). Uma coisa palavras ou por gestos significativos - a conversação que constitui o processo
Qualquer - um objeto, ou um conjunto de objetos, animado ou não, humano, ou a atividade do pensamento - é executada por ele do ponto de vista do
animal, ou simplesmente físico - à qual ele reage socialmente constitui um olttro-generali::ado. Quanto mais esta conversação é abstrata, tanto mais abstrato
<,lemento daquilo que é para ele o outro-generalizado. Tomando as atitudes se torna o pensamento: o outro-generalizado se afasta ainda mais dos indi-
desses objetos para consigo mesmo, torna-se ele consciente de si como objeto víduos particulares. Neste caso, a conversação é antes executada pelo indivíduo
ou indivíduo. ~ dessa maneira que ele desenvolve sua personalidade. Assim, por com o outro-generalizado do que com indivíduos particulares. Assim é, por
exemplo, o culto, na sua forma primitiva, é simplesmente a encarnação social exemplo, que os conceitos abstratos são formulados em termos de atitudes de
da relação entre o grupo social dado, ou comunidade, e seu ambiente físico. todo o grupo social. São formulados na base da consciência que tem o indi-
É um meio social organizado, que adotam os membros desse grupo, ou comu- víduo das atitudes do outro-generalizado para com eles: isso resulta do fato
nidade, para entrar em relação social com aquele ambiente, ou (num sentido) de que o indivíduo toma as atitudes do outro-generalizado e, em seguida, reage
para ter conversações com ele. O ambiente torna-$e, então, parte do outro- a isso. Da mesma maneira, as proposições abstratas são formuladas i'ob uma
generalizado de cada um dos membros do grupo social ou comunidade dados. forma aceitável por todos, por todo indivíd',o inteligente.

26 27
suas partes) a que pertence; atitudes que concernem aos diferentes lógico (ou sistema de símbolos universalmente significativos) deter-
problemas sociais que se apresentam a esse grupo ou a essa comu- minado pela participação e interação comunicativa dos indivíduos.
riidade num determinado momento. Tais problemas se apresentam Com efeito, de todas essas classes (ou subgrupos), a definida pelà
em relação aos projetos sociais respectivamente diferentes, ou em unidade de linguagem é também aquela que compreende o maior
.relação às empresas cooperativas organizadas, de que se ocupa o número de membros possível, que permite a uma ilimitada coleção
grupo, ou a comunidade. Como participante individual desses proje- de indivíduos entrar numa como relação social, tão indireta' ou
tos sociais ou empresas cooperativas, dirige ele sua própria conduta, abstrata quanto possa ser. Tal a relação que se produz, graças ao
em conseqüência. Em política, por exemplo, o indivíduo se identifica funcionamento universal dos gestos como símbolos significativos, no
com todo um partido e toma as atitudes organizadas desse partido interior do processo social humano geral de comunicação.
para com o resto da comunidade social dada e para com os proble- Ora, mostrei que existem duas fases gerais no pleflo desenvolvi-
mas que se oferecem ao partido, na situação social dada. Por con- mento do self: na primeira, o self constitui-se, simplesmente, pela
seguinte, reage ou responde por atitudes organizadas do partido for- organização das atitudes particulares que os outros tomam para com
mando um todo. Entra, assim, num conjunto especial de relações ele e para com eles mesmvs nos atos sociais específicos de que aquele
sociais com todos os outros indivíduos do mesmo partido político. participa com estes. Mas, na segunda fase do completo desenvolvi.,.
De igual maneira, entra ele nos diversos outros conjuntos especiais menta do self, este não se constitui somente por uma organização : f
de relações sociais com várias outras classes de indivíduos, que são de tais atitudes individuais particulares, mas também por aquela das
membros de um desses subgrupos particulares assim organizados e de atitudes sociais do outro-generali.zado, ou do grupo social como um
:que ele próprio é um membro na sociedade global dada, ou na comu- todo a que ele pertence. Estas atitudes sociais se introduzem no
nidade social. Esses subgrupos são determinados por sua função campo da experiência direta do indivíduo e estão compreendidas,
"Social. Nas sociedades globais mais fortemente organizadas, desenvol- como elementos, na estrutura ou constituição do self, da mesma for-
vidas e complicadas (as do homem civilizado), há duas espécies de ma que as simples atitudes de outrem. .o indivíduo as realiza, ou
dasses socialmente funcionais, duas espécies de subgrupos a que se c'onsegue adotá-las, organizando mais e generalizando essas atitudes
pode pertencer e cujos membros entram com o indivíduo num con- dos outros indivíduos particulares no quadro de suas relações sociais
j unto especial de relações sociais. São primeiramente as classes sociais e de suas implicações também sociais. Assim, o self chega ao seu
,ou subgrupos concretos, tais como os partidos políticos, os clubes, desenvolvimento completo, organizando as atitudes individuais de
as corporações (que são, todos, verdadeiras unidades socialmente outrem nas do grupo social organizado e tornando-se, então, uma
reflexão individual do modelo sistemático geral de comportamento
funcionais), pelos quais os membros individuais estão ligados dire-
súcial ou grupal em que está comprometido com outrem. É um mo-
tamente uns aos outros. Os outros são subgrupos abstratos, como delo que entra como um todo na experiência do indivíduo, por meio
as categorias de devedor ou de credor, cujos membros não estão dessas atitudes do grupo organizado que ele toma para consigo mes-
ligados uns aos outros senão mais ou menos indiretamente e: que mo (através do mecanismo de seu sistema nervoso central), da mesma
·não funcionam como unidades sociais senão mais ou menos indire- maneira que adota as atitudes individuais de outrem.
tamente, mas representam ilimitadas possibilidades de alargar, rami- O jogo regulamentado possui uma lógica que permite a orga-
ficar e enriquecer as relações sociais entre todos oS membros da" J
nização do self: há um alvo definido a atingir, e as ações dos dife-
sociedade dada, como todo organizado e unificado. A filiação de
um dado indivíduo a diversos desses subgrupos abstratos permite-lhe
entrar em relações sociais definidas (todavia, indiretas) com um
numero quase infinito de outros indivíduos, pertencentes, também,
rentes indivíduos estão ligadas umas às outras em relação a es:,e
fim, de sorte que não entram em conflito. Não se está em oposição
c'onsigo mesmo, tomando-se a atitude de um outro companheiro de
equipe: se alguém toma a atitude de lançar a bola, pode também
I
'a um dos citados subgrupos abstratos, que transpõem as linhas, de ter a reação de pegá-Ia. As duas atitudes estão ligadas de tal sorte
demarcação funcional separadoras das diferentes comunidades sociais que servem ao próprio objetivo do jogo. Estão ligadas umas às
humanas. Essas relações compreendem os membros de várias comu- outras de maneira unificadora e orgânica. Uma unidade definida é,
,nidades que tais e, em alguns casos, de todas. De todas as indica- pois, introduzida na organização de outros self, quando chegamos
,das classes sociais abstratas (ou subgrupos), a mais compreensiva,
a mais extensa é, naturalmente, a definida pelo universo do discurso
à fase do jogo regulamentado como distinto da situação do jogo
livre, em que não há senão uma simples sucessão de papéis. Esta
1
28 29

4 -T.S.
última situação, naturalmente, caracteriza a personalidade da criança, tos organizados de reações, devem existir em todos, de sorte que
que é um certo ser num momento, e um outro ser mais tarde. Sua um indivíduo, falando assim, provoca em si mesmo a reação de
atual identidade não determina o que será dentro de alguns instan- outrem. Provoca a reação daquilo que chamei o outro-generalizado .
.tes. É isto ao mesmo tempo o encanto e a insuficiência da criança ... O que torna possível a sociedade são tais reações comuns, tais ati-
O jogo regulamentado ilustra, portanto, a situação que dá nascimen- tudes organizadas em relação à propriedade, à religião, à educação
to a uma personalidade organizada. Na medida em que a criança da família. Naturalmente, quanto mais a sociedade é extensa, tanto
adota, efetivamente, a atitude de outrem, a qual lhe permite deter- mais universais devem ser esses objetos. Em todos os casos, deve
minar aquilo que vai fazer em relação a um fim comum, torna-se um haver um conjunto definido de reações que podemos considerar 'Como
membro orgânico da sociedade. Adota os costumes dessa sociedade, abstratas e que podem pertencer a um grupo muito extenso. A pro-
permitindo que a atitude de outrem controle sua própria expressão priedade é, em si mesma, um conceito grandemente abstrato: é
imediata. Isso implica um certo processo organizado ... aquilo que o indivíduo pode controlar, com exclusão do mais. Tra-
Tal é o processo a partir do qual nasce a personalidade. Esse ta-se de uma atitude diferente da do cão para com um osso. Um ;~
processo, eu o disse, é o em que a criança assume o papel de outrem, cão lutará contra qualquer outro cão que tente arrebatar-lhe o osso. li
e a linguagem desempenha, aí, uma função essencial. Funda-se a Ele não toma a atitude do outro cão, ao passo que o homem que "
!
linguagem, sobretudo, no gesto vocal, veículo das atividades coope- diz "Isto é meu" toma a atitude de outrem. Ele apela para os seus
rativas de uma comunidade. A linguagem, no seu sentido significa- direitos, porque pode assumir a atitude que têm todos os outros
tivo, é o gesto vocal tendente a provocar no indivíduo a atitude que membros do grupo para com a propriedade: assim, provoca em si
ele provoca em outrem. É este aperfeiçoamento do self pelo gesto mesmo a atitude deles.
que produz as atividades sociais conducentes, por seu turno, a
assumir o papel de outrem. "Assumir um papel" é locução um pouco O que constitui o self completo é a organização das atitudes co-
infeliz, porque evoca a atitude de um ator, atitude mais elaborada, muns ao grupo. Um homem possui uma personalidade pcrque per-
na realidade, que a que está implicada em nossa própria experiên- tence a uma comunidade, porque "assume" as instituições dessa
cia. Por essa razão, não corresponde exatamente àquilo que quero comunidade na sua própria conduta. Utiliza a linguagem como meio
dizer. Vemos COm o máximo de clareza esse processo, sob uma forma de receber sua personalidade. Depois, através do processo de adoção
elementar, nas situações em que a criança, jogando, assume diferen- dos diversos papéis que todos DS outros fornecem, chega a adotar a
tes papéis. Aqui, o fato de que ela está pronta a pagar, pcr exem- atitude dos membros da comunidade. Tal é, em certo sentido, a estru-
plo, provoca a atitude daquele que recebe o dinheiro. Esse mesmo tura da personalidade do homem. Existem certas reações idênticas~
processo desperta nela as atividades correspondentes daqueles que que cada indivíduo possui para com determinadas coisas comuns. E,
aí estão implicados. O indivíduo Se estimula com a reação que pro- na medida em que essas reações comuns são despertadas no indiví-
VOca em outrem. Ele age, numa certa medida, para reagir a essa duo, quando ele copia outro, realiza seu próprio self. A estrutura
situação. No jogo, a criança desempenha nitidamente o papel que sobre Que se constrói o seIf é essa reação comum a todos, porque
ela mesma provocou. É o que dá, disse-o eu, um caráter definido ao é preciso ser membro de uma comunidade para ser um self. Tais
indivíduo, caráter que corresponde ao estímulo que o afeta a ele reações são atitudes abstratas, mas constituem, exatamente, o que
próprio, como ele afeta os outros. Esse caráter do outro, que entra chamamos o caráter de um homem. Dão-lhe o que chamamos seus
numa personalidade, é, no indivíduo, a reação que o seu gesto pro- princípios, isto é, as atitudes admitidas por todos os membros da
voca nesse outro. comunidade em relação aos valores desse grupo. Ele se substitui ao
Podemos ilustrar nosso conceito-chave, referindo-nos à noção de outro-generalizado, que representa as reações organizadas de todos os
propriedade. Se dissermos: "É meu, o dono disso sou eu", seme- membros do grupo. É o que guia a conduta controlada por princí-
lhante afirmação provocará um certo conjunto de reações que deve pios. Aquele que possui um tal conjunto organizado de reações é
ser o mesmo em qualquer comunidade onde a propriedade existe. um homem que, dizemos, tem um caráter, na acepção moral do
Ela implica uma atitude organizada em relação à propriedade, ati- termo.
tude comum a todos os membros do grupo. Tem-se necessariamente Por conseguinte, a estrutura das atitudes é que constitui um self,
uma atitude possessiva definida em face dos próprios bens pessoais distinto de um conjunto de hábitos, tais como aS entonações parti-
e de respeito para com os de outrem. Essas atitudes, como conjun- culares de que nos servimos, ao falar: cada um possui, sem disso

.30 31
se dar conta, um conjunto de hábitos concernentes à expressão vocal. prescrIções legais, fórmulas econômicas, ritos religiosos, costumes
Tais hábitos nada significam para nós; não ouvimos as entonações sociais são outros tantos exemplos de estruturas.
de nossa e1ocl1ção como as ouvem os outros, a menos que lhes pres- A nitidez das atitudes que compõem 11111 caráter e a correspondente
temos I1ma atenção especial. Os hábitos de expressão emocional per- esquematização dos dados sociais no modo pejo qual um indivíduo
tencentes ao nosso falar são semelhantes. Podemos saber que nos organiza sua vida deixam lugar, entretanto, a um leque muito amplo
exprimimos de maneira jovial, mas o processo, com todos os por- no que concerne a uma questão fundamental: a extensão das pos-
menores, não torna à nossa consciência. Existe todo um feixe de sibilidades de evolução ulterior, que lhe restam, após sua estabili-
tais hábitos que não entram no self consciente, mas que ajudam a zação. Isto depende da natureza das atitudes que o caráter apresenta,
construir o que se chama o self inconsciente. das estruturas de organização e, também, da maneira como as duas
Em suma, entendemos por consciência de self o fenômeno que coisas são aproximadas e sistematizadas. Três casos típicos podem
consiste em despertar em nós próprios o conjunto de atitudes que aqui ser definidos.
provocamos em outrem, particularmente quando tais atitudes repre- O conjunto das atitudes que constituem o caráter pode ser tal
sentam aquelas importantes reações que caracterizam os membros que quase impeça a formação de uma nova atitude em dadas condi-
da comunidade (Excerto de GEORGE H. MEAD, L'esprit, le soi et la ções de vida, porque as atitudes refletidas do indivíduo atingiram
.5wiété, Paris, P.U.F., págs. 131-138). tal fixidez que ele já não é sensível senão a uma só categoria de
influências, as que formam a parte mais permanente de seu meio
social. As únicas possibilidades de evolução que, portanto, restam ao
in:divíduo são, ou as mudanças lentas que experimentará com a
OS TR~S TIPOS DE PERSONALIDADE idade e que o tempo trará ao seu meio social, ou um transtorno de
condições de tal forma radical que destruirá, ao mesmo tempo, os
valores a que ele se havia adaptado e, muito provavelmente, sua
WILLJAM L TROMAS própria personalidade. O "filisteu" é a encarnação literária desse
e tipo de persDnalidade. Opõe-se ao tipo "boêmio", cujas possibili-
FLORIAN ZN ANIECKI dades de evolução não estão fechadas pela simples razão de que seu
caráter permaneceu num estádio inacabado de formação. Certos
aspectos de seu caráter se acham, ainda, no estádio primário e, se
outros talvez se intelectualizaram, continuam sell1 nenhuma relação
A situação, tal como se apresenta ao indivíduo, não é nunca seme- entre si e não formam um conjunto estável e sistematizado. Isto não
lhante, exatamente, a uma situação passada. Deve ele redefinir, exclui, entretanto, a formação de novas atitudes, o que deixa o
conscientemente, cada situação e assimilá-la a certas situações ante- indivíduo aberto a todas as influências. Em oposição, a estes dois
riores, se quiser dar-lhe a mesma solução. É o que a sociedade espera tipos, encontra-se uma terceira categoria de indivíduos, cujo caráter
dele, quando exige que organize sua vida de maneira estável. Não se estabilizou e estruturou, mas que oferece a possibilidade e, mes-
lhe pede que reaja instintivamente, do mesmo modo, na presença das l110~ a necessidade de uma evolução, porque as próprias atitudes
mesmas condições materiais, mas que elabore, refletidamente, situa- refletidas que o compõem apresentam uma tendência para a mu-
ções sociais similares, mesmo que as condições materiais sejam dife- dança, regulad, por projetos de atividade produtiva: o indivíduo
rentes. A uniformidade do comportamento que ela tende a impor permanecerá aberto a todas as influências que estiverem de acordo
ao indivíduo não é um conjunto uniforme de hábitos inatos, mas com sua evolução preconcebida. Este tipo é o representante do indi-
um conjunto de regras conscientemente aplicadas. A fim de tornar víduo criativo.
a realidade social harmônica com as suas necessidades, deve o indi- Distinção análoga deve ser feita quanto às estruturas das situa-
víduo fornecer, não uma série uniforme de reações, mas, sim, estru- ções sociais que compõem o sistema segundo o qual o indivíduo
turas gerais de situações. A organização de sua vida é composta de organizou a sua vida. A aptidão para definir cada situação que se
um conjunto de regras, que se aplicam a determinadas situações e apresenta à sua experiência não é necessariamepte uma prova de
que podem ser traduzidas por fórmulas abstratas. Princípios morais, superioridade intelectual. Pode, simplesmente, traduzir um limite às

32 33
pretensões e aos interesses manifestados e refletir uma estabilidàde estéticas. Ou estes objetivos serão "práticos" em todos os sentidos
nas condições externas, que não permite perceber as situações radi- do termo - hedonistas, econômicos, políticos, morais, religiosos - e
calmente novas, de sorte que um pequeno número de estruturas o individuo então bucará novas situações, para aumentar a própria
estreitas é suficiente para guiar o indivíduo, pela simples razão de influência sobre o seu meio e adaptar a seus desígnios uma parte
que ele não vê os problemas que necessitariam de novas estruturas. constantemente crescente da realidade social. Tal é o homem criativo.
Tal tipo d~ estrutura forma o tronco comum das tradições sociais, O "filistell", o "boêmio" e o homem criativo são as três categorias
em que cada categoria de situação se acha definitivamente classifi- fundamentais da determinação pessoal para as quais propendem as
cada. Semelhantes estruturas se harmonizam, perfeitamente, com o personalidades sociais, no decurso de sua 'evolução. Nenhuma dessas
caráter do "filisteu", que é, por conseguinte, sempre, um conformista, três formas de pers{)nalidade se acha encarnada completa e inteira-
aceitando geralmente a tradição social no que ~la tem de mais per- mente;> num ser humano, em todos os aspectos de seu comportamento.
manente. Evidente que cada mudança imprevista e importante em Nenhum "filisteu" é literalmente desprovido de tendências boêmias,
suas condições de vida acarreta uma desorganização de sua atividade. do mesmo modo que todo "boêmio" é, também, "filisteu", sob certos
Ele continua, enquanto pode, pondo em prática as antigas estruturas, aspectos. De resto, um indivíduo nunca é total e exclusivamente cria-
e, numa certa medida, a sua definição caduca de novas situações tivo, se não recorrer a uma certa rotina própria do "filisteu", a fim
talvez baste para as suas necessidades, se modestas, embora ele não de tornar possível a criação em ()utros domínios e se não utilizar
possa. por conseqüência, rivalizar com aqueles que têm necessidades determinadas tendências boêmias para poder rejeitar, de vez em
mais exigentes e estruturas mais eficazes. Mas, assim que vê sua quando, as atitudes cristalizadas e as regras sociais que obstam à
atividade consumir-se por malogros, acha-se completamente perdido. sua evolução, mesmo quando incapaz de substituí-las por uma con-
A situação torna-se-Ihe totalmente vaga e incerta. Ele está pronto duta adequada. Mas enquanto o "filisteu", o "boêmio" e () homem
a aceitar não importa que definição que se lhe proponha e se mos· c:i.ativo em estado puro não são senã{) tipos extremos da evolução
tra incapaz de conservar uma linha permanente de atividade. É o da personalidade, o próprio processo dessa evolução vem a ser cada
caso de qualquer membro conservador e intelectualmente limitado de vez mais nítido, na medida de sua progressão. De sorte que, embora
uma comunidade estável, seja qual for a sua classe social, quando se não sendo a forma da personalidade humana determinada com ante-
vê transferido para uma outra comunidade, ou quando seu próprio cipação, nem pelo temperamento de um indivíduo . nem pel{) seu meio
meio sofre uma mudança rápida e inesperada. social, o futuro do imaginado indivíduo ficará cada vez mais sujeito
Em oposição a este tipo, encontra-se uma infinita variedade de à natureza mesma de sua própria evolução. Cada vez mais ele se
estruturas na vida das inúmeras categorias de "boêmios". A estru- aproxima do "filisteu", do "boêmio" ou do tipo criativo, reduzindo,
tura que o "boêmio" escolhe depende de sua posição no momento, com isso mesmo, suas possibilidades de se tornar outra pessoa.
a qual será o resultado, quer de uma atitude instável primária, quer Essas três categorias gerais, que exprimem os limites da evolução
de uma. atitude caracterial isolada, que lhe fará aceitar cegamente da personalidade, compreendem, indubitavelmente, um número infi-
não importa que influência. Nos dois casos, é a inconseqüência o nito de variantes, segundo a natureza das atitudes que constituem
traço dominante de sua conduta. Todavia, ele dá provas de uma o c.aráter e as estruturas que compõem o sistema pelo qual os indiví-
faculdade de adaptação às novas situações, faculdade que não existe duos organizaram sua vida na sociedade. Se quiséssemos, portanto,
no "filisteu", embora Sua facilidade de adaptação não seja senão c1as~i ficar as pers{)nalidades humanas pelas formas extremas para as
provisória e não ponha de novo em questão o sistema segundo o quais se inclinam, nossa tarefa seria muito difícil, senão impossível,
qual ele organiza sua vida. Mas a faculdade de adaptação a novas porque teríamos que levar em conta todas as variedades de caráter
situações e a diversidade dos interesses são, entretanto, compatíveis e todos os sistemas de organização de vida. Em cada um dos três
com uma conduta ainda mais uniforme do que a ditada pela tradi- tipos fundamentais, caracteres semelhantes podem corresponder a
ção, se o indivíduo organiza sua vida, não segundo a crença na um número infinito de organizações diferentes, e, inversamente, orga-
inalterabilidade de sua e'scala de valores sociais, mas procurando nizações semelhantes podem revestir caracteres muito diferentes.
modificar e alargar seu campo em função de objetivos bem defini- Mas, como vimos, importa estudar os caracteres e os sistemas de
dos. Podem estes ser puramente intelectuais {)u estéticos, e, neste caso, organização, não sob sua forma abstrata e estática, mas sob o ângu-
procurará o indivíduo definir novas situações, a fim de ampliar e lo de seu desenvolvimento dinâmico e concreto. Além disso, o cará-
de aperfeiçoar seus conhecimentos ou sua interpretação e apreciação ter e o sistema de organização - aspectos subjetivo e objetivo da

34 35
personalidade - evoluem conjuntamente. Porque uma atitude não Oll a ação coletiva é composta da soma das ações individuais reali-
se pode estabilizar como parte integrante do caráter refletido senão zadas pelos indivíduos que interpretam cada ação de outrem. A
sob a influência de uma estrutura de comportamento. E, inversamen- maioria das teorias sociológicas não aceita esses diferentes princípios.
te, a elaboração ou a aceitação de uma estrutura exige atitude esta- O pensamento sociológico, com efeito, trata raramente as sodeda"
bilizada. Cada processo da evolução da personalidade compõe-se, des humanas COmo sendo compostas de indivíduos que têm perso"
portanto, de um conjunto complexo e evolutivo, no qual as estrutu- nalidades próprias. Ao invés disso, as teorias sociológicas supõem que
ras sociais, agindo sobre as atitudes preexistentes, produzem, por os seres humanos são, pura e simplesmente, organismos possuidores
isso mesmo, novas a.titudes, de tal forma que estas últimas vêm a de uma certa organização e que respondem a forças sobre eles se
determinar as tendências do caráter em relação à sociedade, realiza- exercendo. Geralmente essas forças se encontram situadas na pró-
ção consciente das possibilidades do caráter que o indivíduo traz em pria sociedade, como se dá no caso do "sistema social", da U estrutura
si. E tais atitudes novas, na sua continuidade intelectual, agem sobre social", da "cultura", da "posição social", do "papel social", da
conjuntos preexistentes de valores sociais no domínio da experiêri- "instituição", da "representação coletiva", da "situação social", da
cia individual e produzem novoS valores, de sorte que cada criação Hnorma social", dos Hvalores". Nessa perspectiva, o comportamen-
.. , .
de um valor novo é, ao mesmo tempo, a definição de uma situação to dos indivíduos como membros de Utna sociedade não é senão a ~-

incerta, o que representa um passo para a elaboração de uma estru- resultante de todos aqueles fatores ou forças. Isto é seguramente
tura de comportamento coerente. Não é exato dizer, quando da con- a posição lógica, necessariamente adotada quando o pesquisador
tínua interação entre o indivíduo e as pessoas à sua volta, que ele explica o comportamento ou as fases do comportamento com ajuda
constitui o ,produto de seu meio, ou que o meio é dele o prod'll;to. de tal ou de qual daqueles fatores sociais. Os indivíduos componentes
Antes, os dois raciocínios são exatos. Com efeito, o indivíduo não de uma sociedade humana são considerados como o meio mercê do
pode somente evoluir senão sob a influência de seu meio-ambietlte. qual tais fatores operam, e a ação social dos mesmos indivíduos ê
Mas, em compensação, durante a evolução que realiza, ele modifica encarada como a expressão dos mencionados fatores. Esta aproxi-
o seu meio-ambiente, definindo novas situações e trazendo-lhes a mação nega, ou, pelo menos, ignora, que os seres humanos têm
solução que corresponde aos seus desejos e às suas tendências (Tra- personalidades e que agem depois de se haverem informado. Diga-se
duzido de WILLIAM L THoMAs e FLORIAN ZNANIECKI, The Polish de passagem, o "Eu" não é levado em conta, quando o agente se
Peasa,nt in Eu,y,ope and America) Nova York, Dover Publications, põe a examinar as conclutas orgânicas, os móveis, as atitudes, os
1958, t. 2, págs. 1850-1859, L' ed., 1918-1921). sentimentos, ou os comportamentos psicológicos. Tais fatores psico-
lógicos têm o mesmo papel que os fatores sociais atrás mencionados:
são considerados como fatores atuantes sobre o indivíduo, quando
ele age. Não se referem ao processo de decisão, a que o indivíduo
A SOCIEDADE CONCEBIDA COMO recorre. O processo indicado Se ergue contra aqueles fatores psico':'
UMA INTERAÇÃO SIMBÓLICA lógicos, como também se ergue contra os fatores sociais que exerceni
uma influência sobre o ser humano. :Praticamente, todas as concep,;,
ções sociológicas da sociedade humana S'e recusam, assim, a reconhe-
HERBERT BLUMER cer que os indivíduos que a compõem possuem o "Eu" desenvolvido:
Por conseguinte, tais concepções sociológicas não consideram as
ações sociais dos indivíduos na sociedade humana como sendo sua
Faço inicialmente questão de sublinhar que as teorias sodológÍcas própria construção, graças a um processo interpretativo. A ação ~
estão, geralmente, em desacordo com os seguintes princípios da inte~ assim encarada como o produto dos fatores que atuam sobre os e
ração simbólica: em nossa opinião, a sociedade humana acha-se através dos indivíduos. A conduta social dos indivíduos não é con-
composta de indivíduos que desenvoleram o seu "Eu"; a ação siderada como própria de sua construção, mercê da interpretaçã~
individual é uma construção e não uma ação espontânea, sendo cons- que eles dariam de objetivos, de situações, 011 das ações dos outros
truída pelo indivíduo mercê das características das situações que, ele indivíduos. Se se concede um lugar à "interpretação", esta não ~
interpreta e a partir das quais ele age. Além disso, a ação de grupos si~plesmente olhada senão como a expressão de outros fatores (por

36 37
exemplo, os motivos) que precedem o ato; ela desaparece, por con- todo estudo realista de semelhante sociedade precisa aceitar a consi-
seqüência, como elemento específico. Por causa disso, a ação social deração, observável empiricamente, segundo a qual uma sociedade
dos indivíduos é antes tratada como um resultado do meio-ambiente desse tipo é composta de atores. Devem-se também observar as con-
do que como o resultado dos atos construídos pelos indivíduos. em dições em que atuam tais atores. A primeira condição a preencher
virtude da interpretação das situações em que eles estão colocados. é que a ação se desdobre em função da situação. Qualquer que seja
Estas observações sugerem uma outra série de diferenças signifi- {) ator - um indivíduo, uma família, uma escola, uma igreja, uma
cativas entre as teorias sociológicas em geral e a teoria da integra- empresa, um sindicato, um parlamento etc. - toda ação particular
ção simbólica. Elas não situ~m a ação social no mesmo lugar. Do é formada em função da situação em qt!e se situa. Isto leva a tomar
ponto de vista da interação simbólica, a ação social reside nas atua- em consideração a segunda condição importante, a saber, que a ação
é concebida ou construída, interpretando a situação. O ator deve
ções dos indivíduos que ajustam suas linhas de ação umas relativa-
necessariamente identificar os elementos que precisa levar em conta:
mente às outras, por força do processo da interpretação. A ação
as obrigações, as boas ocasiões, os obstáculos, os meios, os pedidos,
do grupo é então a ação coletiva de tais indivíduos. Ao contrário, as
os inconvenientes, os perigos etc. Deve avaliá-los de uma certa ma-
concepções sociológicas colocam geralmente a ação social na ação
da sociedade Ou em alguma fração da sociedade. Os exemplos, com
efeito, são muito sumerosos. Podem-se citar alguns. Certas concep-
neira e tomar decisões a partir da avaliação. Uma tal conduta pre:
cisa ser respeitada, assim pelo indivíduo que dirige sua própria ação
como por uma coletividade de indivíduos que agem de concerto, ou
L
ções, que tratam as sociedades ou os grupos de indivíduos como
por delegados que atuam em nome de um grupo ou de uma organi-
41 sistemas sociais", consideram a ação do grupo como a expressão
zação. A vida do grupo é composta de arores que desenvolvem suas
de um sistema que se acha em estado de equilíbrio, ou que procura ações em função das situações em que se encontram. Habitualmente,
atingi-lo. Ou, então . a ação do grupo é considerada como a expres-
a maioria das situações diante das quais se vêem os indivíduos, numa
são das "funções" de uma sociedade ou de um grupo. Ou, então, sociedade dada, são definidas ou "estruturadas" de igual maneira.
ainda . é ela encarada como a expressão exterior de elementos conti-
Mercê de uma prévia interação, eles desenvolvem ou adquirem uma
dos na sociedade ou no grupo, tais como as exigências culturais, as compreensão semelhante da meSma situação. Essas compreensões
vontades da sociedade, os valores sociais, ou as coerções institucio- comuns permitem que os indivíduos aiam de forma idêntica. O
nais. Estas concepções ignoram ou maScaram a vida do grupo OU a comportamento comum dos indivíduos em tais situações nem por isso
ação do grupo como sendo composta de ações concertadas 'Ou cole~ deve fazer crer ao observador que nenhum processo de interpretação
tivas de indivíduos que procuram confrontar suas situações diárias ... está em jogo. Ao contrário, posto que fixadas, as ações dos partici-
Ao contrário, do ponto de vista da interação simbólica, a sociedade pantes são construídas por eles próprios, devido a um processo de
humana deve ser olhada como composta de atores, e a vida da socie- interpretação. A partir do instante em que as definições, todas
dade como o resultado de suas ações. Os atores podem sler distint'Os assentes e comumente admitidas, ficam à SUa disposição, devem os
do.s indivíduos, das coletividades, cujos membros agem conjunta- indivíduos empregar poucos esforços na conduta e na organização
meste com um mesmo objetivo, ou, ainda, das organizações que agem de seus atos. Todavia, muitas outras situações não podem ser defi-
em Íavür de uma clientela. Citemos os seguintes exemplos: compra- nidas de uma só maneira pelos participantes. Neste caso, as linhas
dore.s individuais num mercado, um conjunto musical, uma grande de conduta não se harmonizam facilmente umas com as outras, e a
empresa industrial, ou uma associação nacional profissional. Não ação coletiva se vê bloqueada. Interpretações devem-se desenvolver,
existe atividade na sociedade humana, empiricamente observável, que e é necessário que venham a ajustar-se. Em tais situações indeter-
não provenha de alguns atores. É preciso dar ênfase a essa afinna- minadas, importa estudar o processo de definição que se desenvolve
ção banal, levand'O em conta a prática comum dos sociólogos, que entre os atores.
reduzem a sociedade humana a unidades sociais não atuantes. Exem- Na medida em que os sociólogos se interessam pelo comportamento
pIos: na sociedade moderna, as classes sociais. Evidentemente, d'OS atores, a teoria da interação simbólica torna necessário o estudo
pode-se conceber a sociedade humana de outr'O modo que não em do processo de construção da ação. Esse processo não deve ser
termos de atores. Quero simplesmente acentuar que, considerada a apreendido como se referindo simplesmente às condições que lhe são
atividade concreta ou empírica, a socidade humana deve, necessaria~ anteriores. Estas ajudam a compreendê-lo, na medida em que exer-
inente, ser olhada em termos de atores. Eu gostaria de acrescentar que cem alguma influência. Mas, como foi indicado atrás, não constituem

38 39
,
.J
o processo. Do mesmo modo, não se pode simplesmente compreendê- sobretudo, próprios para aplicar ao indivíduo que se encontra diante~
lo, deduzindo-lhe a natureza da ação manifesta que daí resulta. Para deles estereótipos inteiramente constituídos. Podem postular, com
conceber o processo, aquele que estuda a sociedade deve desempe- base na sua experiência passada, que, num dado meio social, só são
nhar o papel do ator cujo comportamento está estudando. Desde o encontradas pessoas de uma certa espécie. Podem apoiar~se no que
momento em que a interpretação pelo ator se faz a partir de objetos o ator diz de si mesmo ou nos documentos escritos que atestam quem
designados e apreciados, de significações adquiridas e de decisões é ele e o que ele é. Se, ao contrário, conhecem, já, seu parceiro,
tomadas, o processo deve ser considerado do pontú de vista do ator. oli dele ouviram falar, no curso de uma experiência anterior à inte-
Tais conclusões põem ainda mais em evidência o fecundo caráter dos. 'ração, são capazes de predizer-lhe o comportamento presente e futu-
trabalhos notáveis de R. E. Park e W. L Thomas. Tentar conhecer o ro, aventando a hipótese de persistência e da generalidade dos traços
processo interpretativo, limitando-s·e ao exterior, como o faz o obser- psicológicos. .
vador dito "objetivo", e recusando-se a tomar sobre si mesmo. ,o Contudo, é possível acontecer que, durante todo o tempo em que
papel do ator, é arriscar-se à pior sorte de subjetivismo: assim. úma pessoa se acha na presença imediata de outras pessoas, não se
o observador "objetivo" está pronto para construir o processo de passe grande coisa suscetível de fornecer-lhe, de saída, as infurmaçõe~t
interpretação com suas próprias suposições, em lugar de apreender decisivas de que precisam para orientar corretamente a sua conduta~
esse processo como O faz o próprio ator (Traduzido de HERB:ç:RT situando-se numerosos fatos essenciais fora do momento e do lugar,
BLUMER, "Society as Symbolic Interaction", in A. ROSE (ed.), H'f- da ,interação, ou permanecendo escondidos na própria relação inte~ . I,

,x(ln Behav;.,r and Social Processes, Boston, Houghton Mifflin Co., racional. Não é possível apreender, com efeito, atitudes, crenças e
1962, págs. 184-188). emoções "verdadeiras" ou "reais" em alguém senão através de suas
confissões ou, de maneira indireta, daquilo que aparece como um
comportamento involuntariamente expressivo. Do mesmo modo, não
existe com freqüência ocasião alguma de pôr a prova, durante a inte-
ração, alguém que proponha um produto ou um serviço: é-se obri-
A APRESENTAÇÃO DE SI MESMO
gado a aceitar certos acontecimentos como os sinais convencionais
NA VIDA QUOTIDIANA
ou naturais de algo que não é diretamente oferecido aos sentidos.
Para reempregar os termos de Ichheiser (5), o ator deve agir de
ERVING GoFFMAN
maneira a dar, intencionalmente ou não, uma expressão de si mesmo,
e os outros, por seu turno, devem daí retirar uma certa impressão.
A capacidade de expressão de um ator (e, por conseguinte, sua
aptidão para dar impressões) manifesta-se sob duas formas radical-
QuandÇl um indivíduo é posto em presença de outras pessoas, esta, mente diferentes de atividade simbólica: a expressão -explícita e a
procuram obter informações a seu respeito, ou mobilizam as de que
expressão indireta. A primeira compreende os símbolos verbais ou
já dispõem. Preocupam-se com o seu status sócio-econômico, com ~i·
jdéia que ele próprio tem de si, com suas disposições relativame'nte
seus substitutos, que uma pessoa utiliza de acordo com ° uso da
língua e unicamente para transmitir a informação que ela meSma e
:;l. elas, com sua competência, com sua honestidade etc. Esta infor.-
seus interlocutores admitidamente ligam a tais símbclos. Trata-se da
mação não é som'ente procurada por aquilo que contém, mas também
comunicação, no sentido tradicional e estreito do termo. A segunda
por motivos muito práticos: contribui para definir a situação, permi-
compreende um amplo leque de ações, que os interlocutores podem
tindo aos outros prever o que seu parceiro deles espera e, correl~ti­
considerar como signos sintomáticos, quando é provável que o ator
vamente, o que podem os mesmos esperar deles. Assim informados".
tenha agido por motivos diferentes dos que explicitamente mencio-
~abem como agir, de maneira a obter resposta desejada.
nou. Como se vai ver, esta distinção não é válida senão em início
A informação pode provir de diferentes fontes e ser veiculada de análise. Com efeito, um ator pode sempre transmitir, intencional-
por diferentes suportes. Quando não possuem nenhum conhecimento
preliminar a respeito de seu parceiro, os observadores podem tirar-
lhe da conduta e da aparência os indícios próprios para reativar. a (5) Gustav Ichheiser, Misunderstandings in Human Relations~ suplemento
~periência prévia que tenham de indivíduos quase semelhantes ou, de The American Journal of Socíology, LV (setembro de 1949), págs. 6-7.

40 41
,
"

mente, falsas informações por meio desses dois tipos de comunica- com sua própria intenção. Assim, na presença de outras pessoas, 'I
ção, o primeiro implicando o embuste e o segundo, a simulação. Se têm-se em geral boas razões para se pôr em mobilização, obj'eti-
se tomar a palavra comunicação em seu sentido estrito e em seu vando suscitar entre elas a impressão que se tem interesse em sUs-
sentido lato ao mesmo tempo, constata-se que, quando alguém se citar. Sabendo-se, por exemplo, que a popularidade de uma estudante
acha na presença de outrem, sua ~tividade tem todas as caracterÍs- se mede pelo número de chamadas telefônicas que ela recebe, pode-
ticas de um compromisso a termo: os outros normalmente lhe dão se desconfiar que certas estudantes dão o seu jeito para receber
crédito e lhe oferecem, enquanto ele se acha na sua presença, a con- chamadas.

~
rapartida de uma coisa cujo verdadeiro valor não poderão estabelecer
enão depois que ele os tiver deixado. Sem dúvida, também os inter-
i ocutores vivem de conjeturas, nas suas relações com o mundo
Dessas duas formas de comunicação - expressões explícitas e
t
expressões indiretas - reter-se-á, sobretudo, aqui, a segunda, a mais
teatral e a mais ligada ao contexto, a forma não verbal, provavel-
físico. Mas é somente no mundo das interações sociais que o objeto mente não intencional, quer a comunicação seja arranjada de pro-
a que se aplica a conjetura pode agir voluntariamente sobre o pro- pósito ou não ...
cesso, para facilitá-lo ou atrapalhá-lo. A margem de segurança auto-
rizada pelas hipóteses concernentes ao parceiro varia, certamente,
Como as ações do ator influenciam a definição da situação que
em função de fatores como a massa das informações já colhidas. outros podem formular? Às vezes o ator age de maneira minuciosa-
mente calculada, empregando uma linguagem destinada unicamente
Mas as informações obtidas no passado, por mais numerosas que
sejam, não podem suprimir totalmente a necessidade de agir a par- a produzir o tipo de impressão que é de molde a provocar a res-
tir de conjeturas. Como diz William L Thomas: posta procurada. Às vezes ° ator age de maneira calculada, mas só
se dá conta disso pela metade. Às vezes opta por exprimir-se de
"É igualmente muito importante para nós tomar consclencia do fato de que maneira determinada, mas essencialmente porque a tradição de seu
não governamos nossa vida, não tomamos as nossas decisões, não atingimos grupo, ou porque seu status social reclama esse gênero de expressão
os nossos objetivos na vida quotidiana, nem por meio de cálculos estatísticos, e não para obter de seus interlocutores uma resposta particular (afora
rem por métodos cientificas. Vivemos de hiptÓteses. Eu sou, por exemplo, seu
uma vaga aprovação). Às vezes as tradições ligadas a um papel levam
convidado. Você não sabe, não pode estabelecer, de maneira científica, que
(,não tenho a intenção de roubar seu dinheiro ou suas colherinhas. Mas, por o ator a produzir uma impressão bem definida, de determinado tipo,
jhipótese, não tenho a intenção de fazê-lo e você me trata como convidado" (6). conquanto ele não esteja, nem conscientemente, nem inconsciente-
mente, disposto a criar tal impressão. ,Pode-se dar ° caso em que \:
Quanto ao indivíduo posto na presença de outrem, pode ele dese- os interlocutores, quanto a eles, fiquem favoravelmente impressiona- t
jar dar uma elevada idéia de si mesmo. Ou que se lhe dê uma alta dos com os esforços feitos pelo ator no sentido de comunicar alguma ~
idéia de seus interlocutores. Ou que estes percebam o que ele de fato coisa, ou que se equivoquem a respeito da situação e que se fixem ~
pensa sobre eles. Ou que não tenham nenhuma impressão bem pre- em cvnclusões não justificadas, nem pela intenção do ator, nem pelos
Cisa. Pode ele desejar instaurar um acordo suficiente para que a fatos. Em todo caso, na medida em que os outros agem como se
interação prossiga, ou então zombar de seus interlocutores, desem- o ator tivesse produzido determinada impressão, pode-se adotar Um
baraçar-se deles, desconcertá-los, induzi-los em erro, contrariá-los ou ponto de vista funcional ou pragmático e dizer que aquele projetou,
insultá-los. Independentemente do objetivo preciso em que ele pensa "efetivamente", uma dada definição da situação e "efetivamente"
e de suas razões para se fixar este objetivo, é de seu interesse con- contribuiu para conferir a um certo estado de coisas uma certa
trolar a conduta de seus interlocutores e, particularmente, -a maneira significação.
como, em -contrapartida, o tratam. Ele chega a isso amplamente, mo- Importa deter-se num aspecto da resposta dos interlocutores. Sa-
dificando a definição da situação a que seus parceiros chegam, e bendo que o ator se apresenta, verossimilmente, a uma luz favorá-
pode influenciar tal definição, expressando-se de modo a impor-lhes vel, seus parceiros podem dividir em duas porções aquilo que per-
o tipo de impressão que os leve a agir, de livre vontade, de acordo cebem a respeito dele: Uma composta essencialmente de asserções
verbais, que ao ator é possível facilmente manipular, a seu gosto, e
outra constituída, sobretudo, de expressões indiretas, que lhe é difí-
(6) Citado em E. H. Volkart (ed.), Social Behaviour anti Pe1'sonality,
Contributions of W. I. Thom.as to Theory anel Social ,Researeh, Nova York, cil controlar. Seus interlocutores são capazes, portanto, de utilizar
Social Science Research Council, 1951, pág. S. os aspectos de seu comportamento expressivo, tidos como incontro-

42 43
láveis, a fim de verificar o valor do que ele comunica pelos aspectos de adivinhar o esforço que faz o ator para chegar a uma esponta- -" j'

. controláveis. Daí uma dissimetria fundamental no processo de comu- neidade calculada parece mais desenvolvido entre Os indivíduos do
nicação, não tendo o ator, provavelmente, conhecimento senão de que a aptidão para manipular seu próprio comportamento, de modo
mn só fluxo de sua comunicação, ao passo que os espectadores conhe- que, tendo o espectador oportunidades de obter vantagem sobre o
cem mais de um. Por exemplo, na ilha de Shetland, a mulher de um ator, a inicial dissimetria do processo de comunicação tende a man-
fazendeiro, ao servir pratos locais a um visitante vindo da Inglaterra, ter-se, qualquer que seja o número dos períodos que o jogo da .,J
escutava-o, sorrindo polidamente enquanto cortesmente ele declara- informação comporta.
i
va gostar do que estava comendo. Notava ela a rapidez com que ele Por mais passivo que possa parecer o seu papel, os outros nem por
.levava à boca o garfo ou a colher e sua pressa de comer. Os sinais 1550 projetam menos uma definição da situação, na medida em que
do prazer que ele experimentava, ela os utilizava como meio de con- respondem ao ator e adotam, a seu respeito, uma determinada con-
trolar OS sentimentos ostentados pelo conviva. A mesma mulher, ten- duta. O acordo entre as definições da situação projetadas pelos dife-
do em vista descobrir o que uma pessoa sua conhecida (A) pensava rentes participantes é em geral suficientemente grande para evitar
{/realmente" de outra (B), esperava que B estivesse empenhado, em toda contradição patente. Não se trata, no caso, de um consenso do
presença de A, numa conversa com terceira pessoa (C). Então ela mesmo tipo que o que se estabelece quando cada uma das pessoas"
examinava, discretamente, a mímica de A, enquanto ele olhava B. presentes exprime, com toda a sinceridade, Seus sentimentos reais : ~.
em conversa com C. Não estando a conversar com B, por vezes A e se encontra de acordo, de inteira boa fé, com os sentimentos expres- \
se desembaraçava dos constrangimentos e das tapeações impostas pelos 50S pelos parceiros. Este gênero de harmonia é um ideal otimista e,
usos e pelo tacto e expressava livremente o que "realmente" pensava em torIo caso, não indispensável ao bom funcionamento da sociedade.
de B. Em suma, a mulher de Shetland observava o observador, que Antes se espera de cada um dos participantes que reprima seus pro-
não mais se observava. fundos sentimentos imediatos para manifestar da situação uma visão
Dado que os interlocutores têm possibilidade de testar os aspectos que julgue aceitável, ao menos provisoriamente, pelos seus interlo-
mais controláveis do comportamento, por intermédio dos aspectos cutores. A manutenção deste acordo de superfície, desta aparência
menos controláveis, pode-se esperar que o ator experimente, às vezes"1 de consenso, acha-se facilitada pelo fato de que cada um dos parti-
tirar partido dessa possibilidade, manipulando a impressão produzida'. cipantes esconde seus desejos pessoais atrás das declarações que
.pelos comportamentos menos controláveis, considerados, a este título, fazem referência a valores a que todas as pessoas presentes se sen-
como dando informações dignas de crédito. .. (7) tem obrigadas a render homenagem. Além disso, existe habitual-
Este tipo de controle usado pelo ator restabelece a simetria no mente uma como divisão do trabalho de definição: cada qual dos
processo de comunicação e abre caminho a uma sorte de jogo da 1 participantes tem autoridade para propor a versão oficial respeitante
informação, um ciclo virtualmente infinito de dissimulações, de des- , às questões que são vitais para si, sem ser para os outros de
cobertas, de falsas revelações e de redescobertas. E, o que é mais, • importância imediata. Por exemplo: as racionalizações e as justifica-
o ator pode ganhar muito, controlando os aspectos da conduta con- ções pelas quais ele relata sua atividade passada. Num gesto corres-
siderados como incontrolados, na medida em que os outros descon- ponde a essa polidez, cada um dos participantes guarda silêncio ou
fiem disso particularmente pouco. Seus interlocutores, evidentemente, se abstém de intervir em assuntos que são fundamentais para os
podem sentir que ele manipula os aspectos aparentemente espontâ- seus parceiros, mas que para ele não apresentam importância ime-

~
neos de seu comportamento e procurar, nesse próprio ato de manipu- diata. Tem-se então uma espécie de modus vivendi interacional.
lação, o reflexo da conduta que ele não conseguiu controlar. Aí eles Todos os participantes contribuem juntos para uma mesma definição
têm um novo meio de controlar seu comportamento, sendo este, global da situação. O estabelecimento dessa definição não implica
agora, verossimilmente, não calculado. E assim se restabelece a dis- tanto um acordo 'Sobre o real quanto sobre a questão de saber quem
simetria do processo de comunicação. Enfim, a aptidão no sentido tem o direito de falar sobre o quê (8).

(7) Os trabalhos amplamente conhecidos de Stephen Potter tratam em parte (8) Pode-se ver, voluntariamente, numa interação, o momento e ú lugar
dos sinais que podem ser arranjados de modo a dar a um observador sagaz os favoráveis à formulação de opiniões diferentes. Mas, neste caso, os partici-
indícios, aparentemente fortuitos, necessários para descobrir virtudes escondidas -pantes devem rigorosamente impedir de sua parte toda e qualquer divergência
que o trapaceiro não possui efetivamente. sobre o tom de voz, o vocabulário e o grau de seriedade que convêm à formu~

44 45

ti ~ T.S.
- !
Chamo "consenso temporário" a esse nível de acordo. Não é pre-
ciso dizer que cada tijlD determinado de situação de interação engen- certas hipóteses sobre que os partIcipantes haviam fundado Suas res~
dra um tipo determinado de consenso temporário. Por exemplo, entre postas, estes se vêem presos numa interação em que a situação, de
dois amigos que almoçam jüntos, assiste-se a uma demonstração início definida de modo incorreto, não será mais, doravante, definida,
recíproca de afeição, de respeito e de interesse. Em compensação, em absoluto. A pessoa cuja apresentação foi assim desacreditada
nas atividades de serviço, o especialista afeta quase sempre um ar pode ter disso vergonha, ao passo que os seus parceiros, no que lhes ..~1
de desinteresse em relação ao problema do cliente, enquanto este res- diz respeito, experimentam um sentimento de hostilidade. Finalme~lte~
ponde por uma demonstração de respeito à competência e à integri-
J
I todos os participantes podem sentir-se indispostos, descol1certados~
I I

dade do especialista. Todavia, independente dessas diferenças de perturbados, embaraçados e tendem a experimentar uma espécie de
conteúdo, a forma geral de tais disposições de trabalho permanece anomia, que se produz quando se desmorona esse sistema social em
a mesma. miniatura, constituído pela interação face a face ...
Dada a tendência dos participantes para aceitar as definições pro- Em resumo, pode-se, portanto, supor que toda pessoa, colocada na
postas pelos seus parceiros, compreende-se a importância decisiva presença de outras, tem múltiplas razões para tentar controlar a
da informação que o ator detém ou se fornece a si mesmo, inicial- impressão que estas outras recebem da situação. Interessamo-nos,
ntente~ a respeito de seus interlocutores: é a partir dessa informação aqui, por certas técnicas correntemente empregadas para produzir r .~. "
.'
injcial que ele toma a iniciativa de definir a situação e de bosquejar tais impressões e por algumas das circunstâncias mais freqüentemen-
uma resposta. A projeção inicial do ator liga-o àquilo que ele pre- te associadas ao emprego de ditas técnicas. Deixando de lado o con-
tende ser e obriga-o a rejeitar qualquer pretensão de ser outra
coisa. A medida que progride a j.nteração entre os participantes, inter-
\ teúdo específico desta ou daquela atividade apresentada pelo ator, ou
o papel que ele desempenha no conjunto das atividades de um sistema
vêm complementos e modificações desse estado inicial da informação. social em evolução, ocupar-nos-emos, unicamente, dos problemas '
Mas é essencial que semelhantes desenvolvimentos ulteriores se Hdramatúrgicos" que se oferecem aos participantes, quando da apre- ri
liguem, sem contradição, a posições iniciais tomadas pelos diferentes sentação, aos seus parceiros, de sua atividade. As questões ligadas à {.I
participantes e, até mesmo, se edifiquem sobre elas. Parece que é mais encenação e à prática teatral são, por vezes, banais, mas muito gerais;
fácil escolher, no começo do encontro, o tipo de tratamento que se parecem surgir em toda parte na vida social e fornecem um esquema
espera dos outros e aquele que se lhes reserva do que modificar o preciso para uma análise sociológica.
tipo de tratamento adotado no próprio curso da interação. Na vida
diária, com efeito, as primeiras impressões são fundamentais. Assim, Para encerrar, convém precisar algumas definições. Por interação
para. as pessoas que exercem atividades de serviço, o correto preenchi- (isto é, por interação face a face) entende-se, aproximadamente, a
mento de sua tarefa depende com freqüência de sua aptidão par-.> influência recíproca que os parceiros exercem sobre suas respectivas
tomar e conservar a iniciativa na relação de serviço; aptidão que ações, quando na presença física imediata uns dos outros. :Por uma .
exige uma sutil agressividade por parte do empregado, quando ele interação entende-se o conjunto da interação que se produz numa \
tem um status sócio-econômico inferior ao de seu cliente ... ocasião qualquer, quando os membros de dado conjunto se acham
na presença continua uns dos outros, podendo também convir a
Sabendo que o ator projeta uma definição da situação na presença
de seus interlocutores, pode-se aguardar que se produzam acnnteci- expressão "um encontro". Por uma "representação" entende-se a
mentos, no curso da interação, que venham a contradizer, a desacre- totalidade da atividade de uma pessoa daela, numa ocasião dada, para
influ~nciar, de certa forma, um dos outros participantes. Tomando-se
.~
ditar a projeção ou a lançar dúvida, de uma ou de outra forma, sobre
determinado ator e sua representação como referência fundamental, ~
ela. Quando se produzem, assim. rupturas. a própria interaç.ão pOdi~ !
findar-se na confusão e na embaraço. Tornando-se insustentáveis
t pode-se chamar de público, de observadores ou de parceiros os que
realizam as outras representações. É possível dar o nome de papel
(parte) ou "rotina" (9) ao modelo de ação preestabelecido, que se
Iação dos argumentos, assim como sobre o respeito mútuo que participantes
com opiniões diferentes devem cuidar de testemunhar, constantemente. Pode-se
rventualmente recorrer com proveito para essa definição acadêmica da situação, (9) Para comentários sobre a importância da distinção entre uma rotina
a fim de transformar um conflito grave num desacordo mínimo, facilmente de interação e um caso particular de utilização dessa rotina, ver John von
dominável num quadro aceitável por todos os participantes. Neumann e Oskar Morgenstern, The Theory of Games and Economic Beha-
a
viOUYJ 2. ed., Princeton, Princeton University Press, 1947, pág. 49.

46
47
• !
desenvolve durante uma representação e suscetível de ser apresen- alinhamento, será ela, precisamente, obj eto da mais fraca i:ntera«;ão.
tado ou utilizado em outras ocasiões. Facilmente podem estes termos, Ainda que as duas proposições pareçam opostas, podem harmonizar-
relativos a uma situação d!lda, ser relacionados com termos clássicos, se com a nossa proposição geral, a saber: os homens despendem
tangentes à estrutura. Quando um ator representa o mesmo papel muitos esforços para obter uma recompensa de grande valor. Ma"
para um mesmo público em diferentes ocasiões, uma relação social é não atingida a recompensa, a intensidade dos esforços diminui.
suscetível de instaurar-se. Definindo o social role (*) como a atua-
lização de direitos e de deveres ligados a um dado estatuto, pode-se
dizer que o social role cobre um ou mais papéis (partes) e que o Quase-equilíbrio
ator é capaz de apresentar cada papel, em toda uma série de ocasiões,
a públicos do mesmo tipo ou então a um só público constituído pelas Uma situação de quase-equilíbrio não é uma situação em que não
mesmas pessoas (ERVING GoFFMAN, La présentation de soi dans la se produza mudança alguma. de comportamento. Um sociólogo que
vie quotidienne, Paris, Ed. de Minuit, 1973, págs. 11-24). estude uma equipe de trabalho nUma fábrica acha freqüentemente
judicioso considerá-la como um quase-equilíbrio. Entretanto, produ-
zem-se mudanças o tempo todo: quando os trabalhadores terminam
sua ocupação para começarem outras, quando Saem para o almoço
ou quando voltam do almoço, ou ainda por ocasião da pausa para
RELAÇÕES SOCIAIS, QUASE-EQUILíBRIO o café. Mas essas mudanças são regulares e periódicas: nenhuma
E CONFORMIDADE nova espécie de mudança parece surgir. O comportamento do grupo
está em quase-equilíbrio, neste sentido em que todos os dias de tra-
balho se parecem consideravelmente.
GEORGE HOMANS
F alamos de quase-equilíbrio, em vez de equilíbrio real, a fim de
evitar as conotações quase metafísicas que se acham COm freqüência
ligadas, nas ciências sociais, a esta última palavra. Não aventamos,
No presente texto, desejamos estudar uma situação em que a aqui, a hipótese de que o comportamento de um homem, ou de um
influência parece ter produzido todos os seus efeit0s: realizou tudo grupo, pro penda para o equilíbrio. A maneira COmo um homem pro-
o que pode realizar e, por essa razão, o comportamento de uma pes- cura sua vantagem social, enquanto outros procuram a sua no mesmo
soa ou de vários membros de um mesmo grupo atingiu, pelo menos momento, pode, ao contrário, não conduzir à estabilidade, mas a
por certo tempo, um estado de relativa estabilidade. Chamaremos uma competição sem-fim, conquanto isso possa, também, significar
<sta situação de quase-equilíbrio e vamos estabelecer algumas propo- uma certa forma de estabilidade. Não afirmaremos mais que, se uma
sições que parece convirem a indivíduos ou grupos em quase- mudança se manifesta a partir do quase-equilíbrio, uma reação se
equilíbrio. produz, necessariamente, para reduzi-lo ou fazê-lo desaparecer. Não
Algumas dessas proposlçoes se afigurarão diferentes das que são há, aqui, homeostasia: não sustentamos que um grupo age como o
válidas para a influência. Por exemplo, quando os membros de um corpo de um animal ao rejeitar uma infecção. Certos grupos podem,
grupo tentam modificar o comportamento das outras pessoas, dirigi- em certas circunstâncias, agir desse modo, mas não é evidente que
rão sobretudo suas ações para o indivíduo que resistiu por mais tem- ajam sempre assim. Também não afirmaremos, simplesmente, como
po e cuja mudança de atitude é tanto mais necessária. De resto, numa o fazem os sociólogos funcionalistas, que o equilíbrio existe e explica
situação de quase-equilíbrio, quando a influência produziu todos os por si só por que as outras características de um grupo ou de uma
seus efeitos e aquela pessoa se mantém, apesar de tudo, fora do sociedade devam ser COmo elas são. Se um grupo está em equilíbrio,
dizem eles, então seu comportamento deve apresentar certas outras
características. Para nós, pelo contrário, efeitos específicos devem,
(*) Precisou-se renunciar a encontrar os equivalentes franceses de certos necessariamente, seguir-se a certas causas específicas: não há nenhl1-
conceitos, como social role ou social controI, pertencentes à reflexão goffma- ma outra obrigação. O quase-equilíbrio não é um estado para o qual
niana, 110 que ela tem de mais especí fico, por encerrarem todas as expressões
francesas disponíveis (por exemplo, "coerção social" ou "dominação" para se dirige toda criação: é, antes, um estado, temporário e precário,
social controI) opções teóricas estranhas ao pensamento do autor. sem dúvida alguma, que o comportamento às vezes atinge. Não é

48 49
uma hipótese que formulamos: é um fato que observamos dentro dos
limites de nossos métodos. Não é alguma coisa que utilizamos para remos Qutro, aqui. Em muitos grupos de trabalho nas fábricas, os
explicar as outras características do comportamento social: é, antes, indivíduos se nivelam do ponto de vista do número de peças que cada
um estado que, quando se produz, deve ser explicado por outras qual realiza durante um dado período de tempo; um dia, por exem-
características. Quais são essas outras características? São aquelas plo. Seu comportamento é com freqüência chamad" "redução de
que atualmente explicam, da melhor forma possível, o comporta- produção", não porque a quantidade real de produto pareça insatisfa-
mento em quase-equilíbrio. tória aos olhos da direção, mas simplesmente porque o fato de os
Por serem os grupos em quase-equilíbrio os em que o jogo da trabalhadores se nivelarem nas quantidades que produzem significa,
influência teve tempo de destruir sua própria manifestação, é veros- necessariamente, que alguns dentre eles produzem menos do que o
símil que sejam antes grupos da vida real que os construídos tempo- fariam de outro modo.
rariamente, para fins de experiência. Por esse motivo, nossa argu- Não vamos agora explicar a razão por que um trabalhador atribui
mentação, nas páginas seguintes, apoiar-se":á, sobretudo, em estudos valor enorme ao fato de ele e seus companheiros executarem a mes-
concretos e em certas categorias de estudos estatísticos. ma tarefa e realizarem o mesmo tipo de produção. Basta-nos cons-
tatar que o operário pensa que isso deve ser assim. C"nsiderarnos : f
seus valores como conseqüência de sua história passada e, muitas
Normas
vezes, de um passado muito longínquo, e procuramos somente expli-
car o que ele faz desse passado. Mas, se quiséssemos perguntar-lho,
É realmente intolerável não se poder afirmar senão uma só coisa
de cada vez. Isso é tanto mais chocante quanto o comportamento ele não teria nenhuma dificuldade para nos explicar por que a redu-
social apresenta, no mesmo momento, inumeráveis características e ção é uma boa coisa. Se ele e seus companheiros aumentassem muito
quanto ultrajamos, considerando-as uma a uma, sua unidade rica, o numero de peças que cada qual produz, a direção diminuiria o
tenebrosa e orgânica. Uma çaracterística de muitos grupos em qua- preço pago por peça, de tal modo que ele, operário, efetuaria mais
se-equilíbrio está em que certo número de seus membros adota um trabalho em troca da '!lesma remuneração. É possível que, afirmando
comportamento semelhante, de uma ou de várias maneiras e em gra11 isso, ele labore em erro: uma direção moderna, fiscalizada por um
mais ou menos elevado. Neste texto, negligenciando as outras carac- sindicato moderno, não poderia fazer semelhante coisa. Ist'Ü, entre-
terísticas, empregar-nos-emos a estudar uma tal similaridade, suas tanto, não é nosso propósito: no presente texto não nos preocupamos
causas e conseqüências. Vamos assim estudar o problema da con·· com saber se as convicções humanas são racionais ou não. O ope-
formidade. rário ainda poderia afirmar que, na ausência de redução, OS trabalha-
Pode-se de início frisar que, Se os me~bros de um grupo se pare- dores mais rápidos denunciariam os menos rápidos, tais como ele
cem em seus comportamentos, alguns dentre eles devem achar essa próprio, e atrairiam, ao meSmo tempo, sobre ele, a indisposição da
parecença de grande valo~ ou frutuosa. Entretanto, ela nem sempre direção. E, mais importante ainda, se a redução já tiver sido prati-
é frutuosa. ~m algumas circunstâncias, os membros de um grupo cada desde um certo tempo, uma visível mudança na produção pode-
podem achar maior vantagem em se comportarem diferentemente do ria chamar a atenção da direção sobre o que se passou e conduzir
que em se comportarem uniformemente. Dois homens disporão de a uma perturbação dramática. O trabalhador nunca terá embaraços
I mais água e de mais lenha, um cortando lenha e outro tirando água, para achar outras boas razões a fim de justificar a redução. Já que
I,
,
do que cada um deles fazendo ambas as operações. A divisão do é mais importante que haja uma cadência e, também, que esta cadên-
trr.balho implica diferenças no trabalho, e isso é freqüentemente fru- cia Esteja em nível particular, o número de peças a serem produzi-
tuoso. Mas vamos agora estudar sobretudo o caso em que as seme- das tende a tornar-se uma cifra arbitrária, muitas vezes qualquer
lhanças, mais do que as diferenças, são de grande valor. Pode-se
destacar uma categoria de grande valor: a da similaridade das opi- cifra redonda, próxima das diretivas previstas pela administração,
niões. Os pesquisadores não tiveram dificuldades em estabelecer o para um operário médio. Considerando isto como um exemplo de
fato, assim como não acharemos isto difícil de ser admitido, a saber: normas, diremos que uma norma é uma declaração feita por alguns
que numerosas pessoas são recompensadas pela aprovação das outras membros de um grupo, segundo a qual dado comportamento (defi-
a seu respeito. Efetivamente, este exemplo é tão evidente que utiliza- nido qualitativa e quantitativamente) considera-se particularmente
benéfico e serve, por conseguinte, de modelo ao comportamento atual
50
51

In "_'.'_' '""-- ~,
desses indivíduos como ao de outras pessoas que aceitam conformar-. ~gido com vistas à aprovação social. Dirá que acredita realmente
se com isso. O importante não é que o comportamento esteja rigoro- que a conformidade é de grande valor por si mesma. Com efeito,
samente conforme, mas, antes, que lhe seja atribuído grande valor. pode ela chegar a exprimir-se como a primeira pessoa, que, essa,
era sincera desde o princípio. Consideramos até aqui que os homens
traziam para os seus grupos oS valores provindos de sua passada
Os determinantes da conformidade experiência. Mas o que se produz neste mesmo momento pertencerá
à experiência passada daqui a poucos instantes. E, além dos antigos
valores que trazem a novos grupos, os homens adquirem, nestes,
A questão subseqüente relaciona-se com aquilo que determina a valores novos. O que uma vez fizeram por uma razão particular ~
conformidade como norma. Quando dizemos que pessoas se con- são levados a fazer agora por causa de sua integração no grupo.
formam 'com uma norma "por si mesma", queremos dizer que são
É preciso ainda atentar para o fato de que a segunda pessoa,
recompensadas pelo próprio resultado dessa norma, se seguida. Em
nosso exemplo, alguns trabalhadores se conformam com uma norma conformando-se com as normas, pode também não obter uma elevada
de produção, porque ela lhes traz uma espécie de proteção relativa-- aprovação por parte da primeira pessoa. Se numerosos membros do.
mente à direção. Durante o tempo em que a direção não intervém, grupo se conformam com a norma de tal modo que essa conformidade
sem indagarmos das razões por que ela age assim, o trabalho deles não fica sendo um bem raro ou difícil de adquirir, um pode não
se acha recompensado. Não estabelecemos como hipótese que todos dar ao outro senão uma aprovação desprezável: a aprovação mais,
os membros do grupo acham que a conformidade tem grande valor forte diz respeito unicamente às atividades que são simultaneamente
para si mesmos, mas somente que é assim para alguns dentre eles. apreciadas e raras. Mas um não experimentará com certeza senti-
Suponhamos que um atribua enorme valor a que seu comportamento monto algum de antipatia pelo outro e não o desdenhará.
esteja de acordo com a norma e que o meSmo se dê relativamente Somente se o outro atribuir importância a uma atividade incom-
ao outro. Se ambos compartilham os mesmDS valores, a conformidade patível com a conformidade, e isto de modo suficientemente forte
de cada um será preciosa para o outro e, por conseguinte, oS dois par2. renunciar à aprovação que um comportamento conformado lhe
se recompensam mutuamente. O intercâmbio entre os dois acha<::"se, traria, é que ele abandonará tal comportamento. O fato de que pos·
assim, equilibrado, e é possível sustentar que a justiça distributiva sui ou não valores que tais depende de sua história pregressa, da
se realizou. Além disso, cada qual pode exprimir, aquém e além' do maneira como se comportou e da pela qual o comportamento foi
próprio intercâmbio imediato, sentimentos de afeição e de aprovação' recompensado. No caso das normas de produção da indústria ameri-
por recompensar o outro. cana, assistem-nos razões para crer que as pessoas que tiveram um·
Conquanto a segunda pessoa não seja apegada exatamente aos certo passado histórico, origens rurais, as degolas brancas e protestan-
mesmos valores quanto o é a primeira, conquanto, voltando ao nosso tes - aquelas que escolheram os valores a que Max Weber chama
exemplo, ela não se preocupe muito com aquilo que a direção pode Hética protestante" - são provavelmente mais inclinadas a viver-
fazer, ainda assim é capaz de continuar conformando-se com a nor,:", na conformidade e a produzir mais do que a norma de produção do·
ma. Isto porque as pessoas recompensam freqüentemente a confor- que-as de origens urbanas, operárias e católicas (10).
midade por aprovação social, como recompensam outras atividades Se uma segunda pessoa não mais se conformar, então, como o-
que acham importante aceitar. Assim, a segunda pessoa, posto ela sugere a experiência de todos os dias, uma primeira lhe endereçará
mesma indiferente à norma, continuará de acordo com esta, por cau- numerosas comunicações, num esforço por obter alguma mudança em'
sa da aprovação que obtém da parte daqueles que não lhe são indi- seu comportamento. Quando a tentativa malogra e o comportamento
ferentes. Conduz-se de conformidade com a norma por causa da da primeira pessoa não é recompensado pela segunda, é provável
aprovação e não por causa da norma: quanto maior sua aptidão nascer uma forte antipatia. No caso em que numerosas pessoas tive-
para viver nessa conformidade, tanto mais calorosa a aprovação que ram comportamento conformado, de tal sorte que a conformidade
pode ter a esperança de obter.
Mas, ainda que a segunda pessoa haja conservado um comporta- (lO) Max Weber, L'étique protestante et l'esprit du capitalisme, Paris, Plon,.
mento compatível com a norma, é pouco verossímil que admita ter, 1964; W. F. White, Money and Motivation, Nova York, 1955.

S2 53

d
ção social que a conformidade lhes traz, e que a própria oposlçao
aparece como coisa a que cada uma pode satisfazer, sem que isto lhe seja dividida: seus membros renunciados a um comportamento em
custe muito, uma esperará ver a outra conformar-se com a norma, conformidade com a norma, mas de diferentes modos e por motivos
em seu comportamento. Sua omissão não vem a ser somente uma
diferentes.
recusa a recompensar a primeira pessoa: é também uma recusa
ativa de recompensa de sua parte, e a recusa de re~mpensa confun- Deve estar claro que em semelhante discussão o autor e os leitores
de-se com a hostilidade. Por fim, a primeira pessoa replicará ou do presente texto não são "homens da organização": não conferire-
tentará obter dos outros membros do grupo que rejeitem o outro, a mos grande valor moral à conformidade, ao homem que acompanha
fim de pô-lo de quarentena, de modo que ele não tenha mais nenhu- o 'seu grupo. Somente fazemos uma observação: a de que a não-
ma probabilidade de alcançar qualquer recompensa social. conformidade tem COm freqüência um preço elevado. E, se tomamos
Que o outro se conforme ou não é coisa que não depende unica- uma posição moral qualquer, fazemo-lo para dizer que o bom
mevte do fato de que ele ache suficientemente benéfica uma ativi- não-conformista paga o preço, sem com isso se entristecer. Pesado
dade (como uma tarefa dificil, enquanto valor moral) incompatível número de pessoas se lastima, quando não pode manifestar seu dese-
com seu comportamento ajustado a uma norma (como a de um nível
de produção). Isso depende também do fato de que ele pode encon-
jo de não-conformidade. Essas pessoas querem o melhor das duas
. perpectivas: se o obtivessem, estariam sendo injustas em relação às
outras pessoas.
I, : ~.

trar ou não companheiros, na não-conformidade. Renuncia à apro-


vação social de pelo menos alguns membros de seu grupo, e o custo A maioria dos estudos sobre os grupos em quase-equilíbrio não
disso lhe será tanto mais elevado quanto pouco numerosas são as utilizam os instrumentos necessários para testar tudo aquilo que dis-
fontes alternativas, que se lhe oferecem, daquela aprovação. Se, por semos a propósito das relações entre conformidade e aprovação social.
exemplo, não existe outro grupo na direção do qual ele possa escapar, Mas estão eles suficientemente aparelhados para testar, e o têm feito,
fica mais inclinado a ceder. Os membros dos aldeamentos primi- um corolário que parece proceder de nossa argumentação. Imagine-
tivos que podem raramente freqüentar uma outra tribo que não a mQS uma pesquisa de esboço grosseiro: ela somente nos ensinaria,
sua própria são grandes conformistas. Aquele indivíduo fica também por exemplo, que, em certo número de grupos, tantos membros de
mais inclinado a ceder, se nenhum membro compartilha os seus valo- cada um se conformam com uma norma, ou não o fazem; que tantos
res: a sorte de um isolado é muitas vezes difícil. Mas se outras membros de cada grupo exprimem simpatia pelos outros membros
pessoas existem - não somente desviadas, mas desviadas no mesmo do respectivo grupo, ou não o fazem. A pesquisa pode reagrupar
sentido que ele é-lhe então possível não ter que procurar comple- num mesmo conjunto (como conformistas) as pessoas que se con-
tamente a aprovação social. Até uma só pessoa assim parece ser de formam com as normas por diferentes razões, algumas em função
grande valia: tira do grupo a maior parte do seu poder. Graças a das próprias normas e outras em virtude da aprovação de outrem.
essa pessoa, o não-conformista possui uma fonte de apoio e de apro- Pode associar simpatias de diferentes graus, ou confundir um baixo
vação social alternativa para a aprovação oferecida pelo resto do grau de al'reva,ão com um grau elevado de desaprovação positiva.
grupo, à qual doravante ele renuncia. É o que oS pesquisadores qui- Mas, na medida em que nossas hipóteses sobre o liame entre a con-
seram mostrar, quando diziam que um membro de grupo seria pro- formidade e a aprovação social permanecem válidas, devemos aguar-
vavelmente menos compelido a se conformar com uma norma, se dar que semelhante estudo mostre que quanto mais o número de
acreditasse possível a formação de subgrupos. Se, com efeito, há pessoas conformadas com uma norma de grupo é importante 1 maior
membros bastantes que compartilham os mesmos valores opostos aos fi número dos que exprimem aprovação s'Ücial relativamente aos
dos outros membros, o grupo pode fragmentar-se em subgrupos hostis outros membros desse grupo. Não podemos dizer que nesse corolá-
uns aos outros. Longe estamos de saber quais são exatamente as con- rio uma variável é a causa e outra, o efeito 1 p'Ürque a simpatia pode
dições necessárias para que uma norma seja aceita como tal por um ter produzido a conformidade, do mesmo modo que a conformidade,
grupo inteiro, mesmo que seus membros não façam mais do que acei- a simpatia. Mas, grosseira e estatisticamente, podemos esperar que
tá-la, sem se conformarem com ela plenamente. Imaginamos ser essa relação permaneça válida (Traduzido de GEORGE HOMANS,
necessário que um certo número de membros atribua grande mérito S odal behavior: its elementary forms, Londres, Routledge & Kegan
à conformidade, à norma por si mesma; que, de resto, um certo Paul, 1966, págs. 112-119).
número de pessoas seja indiferente à norma, mas valorize a aprova-
55
54
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE
cessos ficarão necessariamente ligados funcionalmente, cada um
E O CONTROLE SOCIAL
1omado em separado e formando um sistema lógico e coerente. Tome-
mos para exemplo, não uma família e seus filhos, mas o triângulo
PETER BERGER e TRaMAS LUCKMANN mais "escabroso" de um homem A, de uma mulher bissexual B
e de uma lesbiana C. Escusado aprofundar, aqui, a idéia de que
SUas relações sexuais não coincidem. A relação A. B não é compar-
tilhada por C. Os hábitos engendrados em conseqüência da relação
o desenvolvimento dos mecanismos específicos de controle social A. B não necessitam da formação de uma relação com os hábitos
torna-se necessário à medida da historicização e da objetivação das
resultantes das relações B. C e C. A. Não há, afinal, razão alguma
instituições (*). O desvio em relação aos comportamentos institucio-
para que dois processos de hábitos eróticos, um heterossexual, outro
nalmente "programados" torna-se verossímil, uma vez que as insti-
tuições vieram a ser realidades separadas do contexto social que as leshiano, não se possam produzir juntamente, sem se integrar fun-
viú nascer. Falando mais simplesmente: uma pessoa terá provavel- cionalmente um no outro, ou ainda se ligar a um terceiro hábito.
mente mais tendência para afastar-se dos programas que outros est"a- baseado em interesse COmum por, digamos, o crescimento das flores
beleceram para ela do que o teria feito com programas de cujo (ou qualquer outra atividade que, ao mesmo tempo, possa interessar
estabelecimento houvesse participado. A geração nova levanta um a um homem heterossexual e a uma lesbiana). Em outros termos,
problema de "submissão", e sua socialização na ordem institucional três processos de hábito ou de institucionalização podem produzir-se,
necessita da criação de sanções. As instituições devem reivindicar .sem que estejam funcional OU logicamente integrados COmo fenôme-
Sua autoridade e de fato impô-la ao indivíduo, independentemente das nos sociais. O mesmo raciocínio é válido, se Se estabelece que A, B
significações subjetivas que este pode atribuir à sua própria situação. e C são antes coletividades que indivíduos, sem se levar em conta
É preciso, assim, manter, constantemente, o primado das definições é1. natureza do conteúdo que as suas relações podem ter. Deste modo,
institucionais de situações relativamente aos desejos individuais que a_ priori é impossível afirmar haver integração funcional e lógica,
visam a redefini-Ias. Deve-se ensinar às crianças o conduzirem-se bem, assim que os processos de hábito, ou de institucionalização, são apli-
como também se deve, uma vez isso feito mantê-las nessa linha; e cados aos mesmos indivíduos ou coletividades.
a mesma coisa, evidentemente, no tocante aos adultos. Não obstante, os fatos provam que as instituições tendem a per-
Quanto mais a conduta é institucionalizada, mais é possível pre- manecer ligadas umas às outras. Se não se deve considerar esse fenô-
vê-la, melhor é possível controlá-la. Se a socialização nas instituições meno como natural, convém explicá-lo. Em primeiro lugar, pode-se
foi efetiva, toma-se possível aplicar medidas coercitivas e brutais de dizer que alguns interesses serão comuns a todos os membros de
modo econômico e seletivo. Mas, na maior parte do tempo, as condu- uma coletividade. De um outro ponto de vista, certos comportamentos
tas sociais se manterão "espontaneamente" no interior dos canais não serão compartilhados senão por um limitado número de pessoas.
institucionalmente estabelecidos. Do ponto de vista da significação, Esta última observação implica um começo de diferenciação, que
quanto mais se considera a conduta como alguma coisa natural, pode ter por fundamento diferenças pré-sociais, como o sexo, ou, ao
tanto mais as possíveis alternativas para os "programas" institucio- contrário, diferenças sociais, criadas no curso da interação social,
pais diminuirão; e mais a conduta será previsível e controlada. tais como as engendradas pela divisão do trabalho. A magia da
Em princípio, pode haver institucionalização em todo domínio rela- fecundidade, por exemplo, não concerne senão às mulheres, e só os
cionado com o que é coletivo. Na realidade, em seu conjunto os pro- caçadores podem consagrar-se à pintura das cavernas. Ou, ainda, só
cessos de institucionalização se fazem concorrentemente, Além do os velhos são capazes de realizar as cerimônias da chuva, e só os
mais, não existe, a priori, razão alguma para afirmar que esses pro- que fabricam armas podem dormir com seus primos maternos. De
um ponto de vista funcional, esses diferentes domínios de conduta
(*) Para os autores, uma "instituição" se desenvolve a partir do instante- não devem necessariamente estar integrados num sistema coerente.
em que o comportamento dos atOres sociais adquire um caráter de "hábito" e Podem continuar existindo na base de realizações distintas. Todavia,
se encontra, assim, "objetivado". Para eles, "o mundo institucionalizado é a refletindo sobre os sucessivos momentos de sua experiência, o indiví-
atividade humana objetivada ". Por conseguinte, as instituições desempenham um duo tenta obter uma adequação entre sua significação e a integra-
papel essencial nos mecanismos de controle social (N. d. E. hancês).
ção deles em sua própria vida. É possível que essa tendência para
56
!evar em conta, igualmente, as teorias. Mas o conhecimento teórico
integrar as significações tenha por base uma necessidade psicológica, não constitui senão uma pequena parte e, de modo nenhum, a mais
suscetível, por sua vez, de ter uma origem fisiológica. Nosso argu- importante do que se considera o conhecimento na sociedade. Legi-
mento, sem embargo, não repousa sobre tais afirmações antropológi- timações de esquemas teóricos sofisticados aparecem em definidos
Cél,S, porém mais sobre a análise de uma relação de reciprocidade momentos da história institucional, mas o conhecimento básico que
muito significativa nos processos de institucionalização. Faz-se neces- se pode ter da ordem institucional é um conhecimento de nível pré-
sário, por conseqüência, tomar muitas precauções antes de afirmar o teórico. Representa a soma totalizada daquilo que todas as pessoas
qu~ quer ,que seja sobre a "lógica" das instituições, pois a lógica não conhecem do mundo social: um conjunto de máximas, de tipns de
reside nas instituições, nem nos seus caracteres funcionais. mas, moral, de provérbios de sabedoria, de valores e crenças, de mitos etc.,
antes, na maneira como estes são vividos. Em outros termos, a cons- cuja integração teórica demanda considerável coragem intelectual,
ciência impõe à ordem institucional a sua própria lógica. A lingua- como o testemunha a IQnga linhagem das pessoas heróicas que tomam
gem permite superimpor a lógica sobre o mundo social objetivado. sobre si essa função de integração, désde Homero aos que cons-
O edifício da legitimação repousa na linguagem e serve-se da lingua- troem, em nossos dias, sistemas sociológicos. Em nível pré-teórico, \
i •
gem como de seu principal veículo. A "lógica" assim atribuída à cada instituição dispõe, entretanto, de um corpo de conhecimentos '.1
ordem institucional faz parte de nosso estoque de conhecimentos como receitas, isto é, de utfl conhecimento que fornece as regras de
~~
• 1·
socialmente disponível. conduta institucionalmente apropriadas. I:
"

Ê porque o individuo bem socializado "sabe" que seu mundo social Tal conhecimento constitui a dinâmica que motiva toda conduta
'I
representa um todo lógico que ele será forçado a explicar, a um institucionalizada. Define os domínios de comportamentos institu- li
tempo, ° bom funcionamento e as disfunções do mesmo em vista desse
"conhecimento". Por conseguinte, é muito fácil para o observador
cionalizados e designa todas as situações englobadas por essa defi-
nição. Constrói, também, os papéis a serem representados no seio
iI
de qualquer sociedade afirmar que as suas instituições funcionam de ditas instituições. Por isso mesmo, controla todos esses compor-
"

realmente e se integram, como se supõe que o façam (11).


tamentos. Porque o referido conhecimento se tornou socialmente
De facto) as instituições são, pois, integradas. Mas sua integração objetivo, como conheci:nento do real, isto é, COmo um corpo de ver-
não é um imperativo funcional para os processos sociais que a pro- dades que se revelam exatas, é que todo radical desvio em relação
duzem. Ela é, antes, o produto de um meio derivado. Os indivíduos, à ordem institucional aparece como um afastamento da realidade.
no curso de suas vidas, praticam ações institucionais descontínuas. Acontece que tal desvio é qualificado de depravação moral, de mo-
Sua biografia é um todo pensado, onde as ações descontínuas são léstia mental ou, mais simplesmente, de ignorância. Embora essas
consideradas, não como acontecimentos isolados, mas como fatos distinções sutis tenham evidentes conseqüências no tratamento do
ligados entre si em um universo subjetivamente significativo. As desviado, trazem todas em comUm um estatuto cognitivo inferior
significações desse universo não são específicas do indivíduo, mas, dentro do universo social particular. Dessa maneira, o universo em
ao contrário, articuladas e compartilhadas socialmente. É somente questão torna-se, simplesmente, o universo. Na sociedade, o conheci-
pelo ângulo de tais conjuntos de significações socialmente comparti- mento considerado como natural chega a coincidir exatamente com
lhadas que chegamos a uma necessidade de integração institucional. a extensão possível do próprio conhecimento, ou, pelo menos, fornece
Isto acarreta importantes conseqüências na análise dos fenômenos a moldura dentro da qual tudo o que não é ainda conhecido chegará
sociais. Se não se pode compreender a integração de uma ordem ao ser, no futuro. Trata-se, aí, do conhecimento que se adquire no
institucional a não ser em termos de "conhecimento" que desta t~m curso da socialização e que mediatiza a interiorização na consciên-
os seus membros, segue-se que a análise de semelhante conhecimento cia individual das estruturas objetivadas do mundo social.
será essencial para o estudo da ordem institucional em questão. O conhecimento, nesse sentido, está no âmago da dialética funda-
Importante sublinhar que isto não exclui ou nem mesmo acarreta mental da sociedade. Objetiviza o mundo através da linguagem e do
essencialmente preocupações com os sistemas técnicos complexos que aparelho cognitivo baseado na linguagem (12); ordena o mundo, no
servem para legitimar a ordem institucional. Certamente é necessário

(12) O termo" objetivação" é aqui tomado no sentido do conceito hegelian@


(11) Para uma crítica dessa fraqueza fundamental de toda a sociologia de Vergegenstandlichung.
funcionalista, ver Claude Lévi-Strauss, Tristes Tropiques, Paris, Plon, 1954.
59
58
decurso da socialização, em objetos a serem apreendidos como reali- objetivo essencial do etnometodólogo. é o de estudar a obrigação "~m
dade objetivamente válida. O conhecimento da sociedade é, portanto, que se acham os membros de uma sociedade de utilizar o raciocíniD
uma realização no sentido duplo do termo: no da apreensão da rea- prático e "mundano" para comunicar com os outros, de levar em
lidade social objetivada e no da produção, de maneira continua, des- conta, também, que os citados membros se apóiam nessa tácita utili ..
sa realidade (Traauzido de PETER BERGER e THOMAS LUCKMANN, zação do raciocínio para entregar-se a atividades mais abstratas,
The Social Construction of Reality, Nova York, Anchor Books- como construir provas matemáticas ou elaborar a reforma das regras
Doubleday & Co., 1967, págs. 62-66). lingüísticas.
Etnometodólogos e lingüistas recorrem a concepções da significa-
ção um pouco diferentes, mas tanto uns como outros tomam como
ponto de partida a produção do discurso e da narrativa. Para o
A ETNOMETODOLOGIA lingüista, a significação do discurso tende passave1mente a restrin-
girese: está ligada ao estabelecimento de relações e de referências
no discurso devidas ao uso de tipos formais de raciocínio, que buscam
AARON CICOUREL produzir determinados resultados. Para o etnometodólogo, fala c
• 1·
ação se compreendem como manifestação reveladora do mundo quo-
tidiano (13). O lingüista utiliza largamente uma concepção da signi-
Harold Garfinkel forjou, em 1967, o termo etnometodologia, ten- fic.'ação fundada na sintaxe, ao passo que o etnometodólogo se inter-
do em vista apresentar o estudo do raciocínio prático de todos os roga a respeito das faculdades de interpretação pressuposta pela
dias como parte constituinte de qualquer atividade humana. Uma das necessária interação entre a competência e o comportamento real.
bases do estudo do raciocínio prático consiste na maneira como os As aproximações lingüística e etnometodológica do problema da sig-
membros de uma sociedade utilizam a palavra e a narrativa quoti- ni.ficação diferem. assim, sensivelmente, uma de outra. A primeira
dianas para determinar a posição de suas experiências e de suas acentua as propriedades formais da linguagem que serviriam para o
atividades. Essa definição preliminar não pretende explicar defini- dçsenvolvimento de relações lógicas e de regras capazes de permitir
tivamente o termo etnometodologia: não é senão um comentário pro- desclever a associação entre modelos sonoros e os objetos, aconteCi-
visório, que abre caminho para uma reflexão mais elaborada. mentos ou experiências a que eles Se referem. A segunda aproxima-
Limitar-me-ei, aqui, ao estudo de certo número de aspectos das ção relaciona-se com o processo por via do qual regras tidas como
Jingüísticas generativas transformacionais, a fim de poder abordar suscetíveis de explicar comportamentos interacionais se acham cons-
desenvolvimentos mais gerais relacionados com o problema da signi- truídas. O etnometodólogo sublinha que é preciso entregar-se a todo
ficação. O termo "lingüísticas" deve, entretanto, ser tomado em sua um trabalho de interpretação para chegar a reconhecer que uma regra
acepção mais lata, mesmo quando me refiro somente a alguns traços abstrata se adapta a uma situação particular, enquanto os lingüistas
característicos da gramática generativa transformacional. É supondo minimizam a influência das propriedades interacionais sensíveis ao
que o leitor já conheça os trabalhos mais correntes da lingüistica contexto, insistindo, ao contrário, na importância das regras sintáti-
generativa transformacional que irei tratar da etnometodologia e de ca~, na análise semântica. Recentes trabalhos de semântica genera-
Seus prolongamentos no nível da linguagem e da significação. tiva (14) orientam-se, todavia, para a inclusão das propriedades do
O etnometodólogo se interessa pela maneira como o lingüista mo- contexto e das pressuposições desenvolvidas nos estudos filosóficos
<leruo se serve da elocução ou da fala para construir uma gramática da linguagem ou nas lingüísticas antropológicas. O etnometodólogo
destinada a descrever a estrutura da linguagem. Mas o intereSSe que
.,le toma por estudar as atividades do lingüista pressupõe que toda (13) Y. Bar-Hillel, "Indexical expressions", Mina, vol. 63, 1954; H. Gar·
tentativa feita para descrever a estrutura da linguagem repouse sobre finkel, Studies in Ethnomethodology, Prentice-Hall, 1967.
() raciocínio prático considerado implicitamente e sem reservas como (14) G. Lakoff, Counterparts, or the Problem. of Reference in Tran.(forma-
o meio de descobrir na fala (mas uma fala previamente idealizada) tional Grammar, Linguistic Society of America, 1968; J. D. McCawley, "The
uma estrutura (uma competência) inovadora, porém obediente a Role of Semantics in a Grammar", in E. Bach and R. .Harms (eds.), Univer..
sais in Linguistic Theory, Nova York, Holt, Rinehart & Winston, 1968.
regras e que se supõe transcender as expressões concretas reais. O

60
61

6 - T.S. I
considera a significação cama uma interação que se instala, auto-·
organiza e elabora entre a organização da memória, o raciocínio prá- produz em sene, como as fechaduras de segurança da marca Yale,
tico e a fala. As regras lingüísticas são consideradas como constru-. que diferem umas das outras por frações de milímetros. A particula-
ções normativas, separadas da reflexão cognitiva e das situações ridade do eu é um produto brevetado determinado pela sociedade
sociais etnográficas, em que a fala é produzida e compreendida ... e que se faz passar por natural. Reduz-se ao bigode, ao sotaque
francês, à voz grave da mulher fatal, à "pata" de Lubitsch: é como
Tal como é utilizado na conversação diária, o discurso fornece,
àquele que dele se serve como língua materna um instrumento de:
imIJressões digitais sobre carteiras de identidade, que, de resto, são
referência, em virtude de sua ritualização. Os exemplos mais mar- exatamente as mesmas e sobre as quais a vida e o rosto de cada
cantes dos aspectos normativos do discurso aparecem nas cerimô-
um - da estrela à incriminada - são transformados pelo poder da
generalidade. A pseudo-individualidade é requerida, quando se quer
nias e nos rituais relacionados com a religião ou com as etapas da
compreender o trágico e inativá-lo: é unicamente porque os indiví-
vida, como ritos de passagem, ou ainda com a lei, como o casamento
duos deixaram de ser eles mesmos e nãó são mais do que os pontos
ou os atos judiciários. Assim é que a linguagem diária contém, à" de encontro das tendências gerais que se tornou possível reintegrá-los
maneira de um glossário, sua própria explicação, cada vez que ~ inteiramente na generalidade. A cultura de massa desvenda, assim,
utilizada . .como meio de apreciação da atividade cognitiva, o discurso: o caráter fictício que o indivíduo sempre teve na época burguesa, e
fornece numerosos dados particulares, mas devemos sentir, perceber, seu único erro é vangloriar-se dessa morna harmonia do geral e do
restabelecer, inventar Ou imaginar muitas outras indicações particula-.' particular. O princípio da individualidade esteve cheio de contradi-
res; para consignar um sentido a um conjunto de circunstâncias. Uma! ções, desde o início. A individuação nunca foi verdadeiramente rea-
série de regras de estruturas de frases ou de regras transformacionais lizada. O caráter de classe da autoconservação manteve cada um no
não faz uma linguagem. Devemos procurar saber Como os dados par-" estádio em que cada um é somente um representante da espécie.
ticulares da produção da linguagem, numa situação social particular, Cada caráter burguês exprimia, a despeito de seus desvios e justa-
podem estar ligados de maneira reflexiva pelo locutor-auditor a mente por causa deles, a dureza da sociedade concorrencial. O indi-
algum sistema normativo de regras gramaticais, legais ou outras," víduo sobre o qual a sociedade se apoiava trazia-lhe a marca. Em
Examinamos nossas falas de modo a descobrir-lhes, entre outra$ sua aparente liberdadç, era ele o produto do seu aparelho econômico
coisas, o caráter normativo (AARON CICOUREL, Cognitive Sociology,; e social. O poder apelava para as relações de força dominantes,
Londres, Penguin Books, 1973, págs. 99-100 e pág. 112). quando solicitava a aprovação daqueles a quem submetia. Progre-
dindo, a sociedade burguesa desenvolveu, igualmente, o indivíduo.
Foi contra a vontade de seuS responsáveis que a tecnologia educou
os homens, transformando as crianças que eles eram em pessoas.
O INDIVíDUO E A INDúSTRIA CULTURAL Mas cada um dos progressos realizados pela individuação se fez em
detrimento da individualidade em nome da qual se efetuava, e tudo
o que disso restou foi a decisão de não se ligar senão a objetivos
MAX HORKHEIMER e THEODOR ADORNO
privados . .o burguês, cuja vida se cinde em vida de negócios e em
vida particular, a vida particular em representação e intimidade e a
intimidade em enfadonha comunidade conjugal e amargas consola-
ções, propiciadas pela solidão, o burguês desavindo consigo mesmo e
Na indústria cultural, o indivíduo não é uma ilusão unicamente-' com todos os outros já é virtualmente o nazista, ao mesmo tempo
em virtude da estandardização dos meios de produção. Só é tolerado· entusiasta e descontente, ou o habitante das grandes metrópoles,
na medida em que sua total identidade com o geral não padece dúvi- incapaz de conceber a amizade de outro modo senão como H con ~
da. Da improvisação estandardizada do jazz à vedete de cinema, que'
tacto social" com gente a quem não o liga nenhum contacto real. A
deve ter uma mecha na orelha para ser reconhecida COmo tal, vai
indústria cultural pode jogar COm a individualidade como o faz, uni-
o reinado da pseudo-individualidade. O individual se reduz à capaci-'
camente porque reproduz, sempre, a fragilidade da sociedade. Dos
dade que o geral possui de marcar o acidental tão fortemente com
rostos dos heróis de cinema ou das pessoas particulares, todos con-
um sinete que ele será aceito como tal. A reserva obstinada ou a
aparência elegante do indivíduo em exibição é que justamente se feccionados segundo o modelo das capas de revistas, uma aparência
na qual aliás ninguém mais acreditava desaparece, e a popularidade
62
63
usufruída por esses modelos alimenta-se da secreta satisfação expe-
rimentada à idéia de que se está, enfim, dispensado do esforço ~
realizar com vistas à individuação, porque já não se precisa mais
do que imitar, o que é muito menos fatigante. Vão é esperar que a CAPÍTULO II
"pessoa", cheia de contradições e em vias de desintegração, ainda
sobreviva durante gerações; que o sistema desabe por causa dessa
fratura psicológica; que a substituição ilusória de estereótipo a tudo A CULTURA E O
o que é individual se torne por si mesma intolerável à humanidade.
Desde Hamlet de Shakespeare se sabia que a unidade da personali-
INTERCÂMBIO SOCIAL
dade não passa de uma aparência. Hoje as fisionomias sintetica-
mente produzidas mostram bem que já esquecemos o que era a noção i:
de vida humana (Excerto de MAX HORKHEIMER e THEODOR ADORNO,
La dialectique de la raison. Paris, Gallimard, 1974, págs. 163-164).
CULTURA E PERSONALIDADE

EDWARD SAPIR

A cultura de um grupo, se se acreditar no antropólogo, não passa


do inventário de todos os modelos sociais do comportamento aberta-
mente manifestados' por todos os ou por parte de seus membros. O
lugar desses processos, cuja soma constitui a cultura, não é a comu-
nidade teórica chamada sociedade. A "sociedade" é, na verdade, um
vocá bulo cultural que indivíduos em posição de relações recíprocas
utilizam para explicar a si mesmos certas formas de seu próprio
comportamento. O verdadeiro lugar da cultura são as interações
individuais e, no plano subjetivo, é o mundo de significações que
cada um pode construir para si, por meio de suas relações com
outrem. Cada indivíduo, portanto, é, ao pé da letra, o representante
de, pelo menos, uma subcultura, vergôntea da cultura coletiva do
. grupo a que pertence. Representa, muitas vezes, senão regularmente,
várias subculturas. O grau de conformidade entre a conduta social
de um dado indivíduo e a cultura típica ou coletiva de um grupo
varia enormemente.
Não existe exemplo de modelo cultural ou de conjunto de modelos
que se refira, literalmente, à sociedade como tal. Não existe mani-
festação alguma de ordem política, familiar, religiosa, mágica, técnica
ou estética com ação direta sobre a sociedade ou sobre um segmento
mecânica ou sociologicamente isolado da sode'dade. O fato de estar 1
I

inscrito na Administração Municipal de uma grande cidade sob tal

64
65
domicílio, define muito pouco o cidadão Dupont em função dos mo-
tem est>erança alguma de resistir-lhes. Assim, os símbolos da afei-
"i
delos culturais comodamente classificados sob a denominação de
"municipalidade". Mas a verdade psicológica e propriamente cultural ção e do ódio, os harmônicos dos vocábulos carregados de afetividade,
da inscrição varia enormemente. Supondo-se que o cidadão Dupont as implicações essenciais e os detalhes de ordem econômica. .. mui-
pag'J.e impostos de uma casa situada no distrito, dando a entender tos destes modelos são coercitivos para a maioria dos homens, mas
que a ocupa pelo resto de seus dias; supondo-se, além disso, que ele a intensidade da coerção não é :estritamente proporcional à sua sig-
conheça pessoalmente ce<tos empregados da Administração Muni- nificação "oficial" (por oposição à significação interior, psicológica).
cipal, então sua domiciliação pode facilmente tornar-se símbolo de Por isso o emprego de um epíteto malsoante tem pouca importância
situação em seu mundo de significações. Esta situação é tão clara- aos olhos da lei. Mas pode o epíteto exercer sobre a psicologia uma
mente definida, senão tão importante, como a do cidadão Dupont pai fascinação, engendrar um defeito, que ultrapassem de muito o alcan-
de família ou grande jogador de belote. A domiciliação, no caso, pod~ ce de um modelo de comportamenfu tão grave como a subtração
I
fraudulenta de fundos ou determinado pensamento científico. Não se
manifestar-se sob a forma de comportamentos específicos e diversos. . I ~onhece perfeitamente uma cultura que seja estudada sob o ângulo
A divisão administrativa e suas funções reais ou supostas podem, aos
da personalidade, enquanto os graus de coerção ligados a cada um
olhos do cidadão Dupont, vir a ser uma realidade objetiva e impes- .,
soal ao mesmo título que a chuva e o bom tempo. de seus aspectos e de suas implicações não estejam claramente defi-
nidos. Sem dúvida, há modelos culturais cuja significação, tanto
Mas existe por certo um outro Dupont, que é talvez vizinho do quanto a forma, são universais, mas é facílimo O enganar-se nesse
primeiro. Esse não desconfia mesmo que a cidade é dividida em domínio e concluir por equivalências que não existem.
distritos, que ele faz parte, automaticamente, de um dos distritos
e que, a este título, lhe cabem direitos e deveres, que ele cuida ou Outros modelos não são reais."e coercitivos senão para certos indi-
não de observar. Em vão a administração não estabelece diferença víduos 011 agrupamentos, ao passo que permanecem letra morta para
alguma entre os dois cidadãos, e em vão se diz que o distrito e as o restante do grupo. Assim idéias, atitudes e modos de comporta-
funções que lhe são próprias representam uma realidade impessoal, mento próprios de certas profissões. Conhecemos todos a existência
a que devem dobrar-se todos os membros de uma sociedade; bem se desses micro-universos de significações. O leiteiro, a atriz de cinema,
vê tratar-se de uma cláusula de estilo sociológico. Nossos dois indiví- o físico, o chefe político construíram para si universos anônimos,
duos têm uma cultura fundamentalmente diferente. Guardadas as incomun,icáveis ou que, na melhor das hipóteses, se suportam reci-
devidas proporções, poderiam ser, respectivamente, italiano e turco. Plocamente. Nas sociedades tão complexas como a nossa, uma mito-
Essas diferenças culturais não são apreciadas em sua justa importân- logia tácita permite ignorar a significação pessoal das subculturas.
cia. Em primeiro lugar, na vida diária, elas não têm ocasião de se Num indivíduo, o fundo comum das significações e dos valores rece-
manifestar mais claramente. Em segundo lugar, a economia das rela- bidos se especializa altamente, se encontra acentuado ou contraditado
ções interpessoais e as ambigüidades cúmplices da fala conspiram por tipos de experiência e modos de significação que estão longe de
para remodelar toda conduta observada em função das signi ficações pertencer a todos os homens. Se compreendermos que as participa-
individuais pertinentes. O conceito de cultura, nas mãos do antro- ções culturais especiais resultam, por um lado, de um contacto com
pólogo, não passa de uma ficção estatística. De ver está que a psi- tradições limitadas e, por outro lado, de uma identificação com os
cologia social e a psiquiatria devem finalmente levá-lo a fazer de grupos impostos pela biologia ou pela sociedade (família, classe de
seus vocábulos um uso mais refletido. Não é o conceito de cultura
que induz sorrateiramente em erro, mas o setor metafísico que se lhe
designa, geralmente.
um liceu, clube), então veremos isto: o verdadeiro lugar (lo cus)
psicológico de uma cultura é o indivíduo ou uma lista nominal de
indivíduos, e não um grupo econômico, político ou social. "Indivíduo"
não designa simplesmente, aqui, um organismo biológico que se con-
1
É bem de ver que todos os traços culturais não têm a mesma
serva graças ao choque físico ou aos seus substitutos simbólicos.
importância para o desenvolvimento da personalidade, porque não
Trata-se deste universo de formas, de significações e de condutas sim.:.
estão uniformemente distribuídos nos sistemas de idéias dos diferen'-
tes indivíduos. Certos modos de comportamento e de atitudes são tão bólicas que um indivíduo, ora conhece e dirige, ora percebe intuiti-
penetrantes e tão coercitivos que o individuo mais bem isolado não vamente e deixa como está, ora ignora e suporta (Exerto de EDWARD
SAPIR, Anthropolagie, Paris, Ed. de Minuit, 1%7, t. 1, págs. 96-99).
66
67
ENSAIO SOBRE O DOM não são' exclusivamente bens e riquezas, móveis e imóveis, coisas
úteis -economicamente. São, antes de tudo, gestos de polidez, festins,
ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras~
MARCEL MAUSS dos quais o 'Comércio não é senão um dos momentos e onde a cir~
culação das riquezas representa um dos termos de um contrato mui-
Dom e potlatch to mais geral e muito mais permanente. Enfim, essas prestações e
contraprestações se obrigam sob uma forma antes voluntária, por
mimos, presentes, posto que no fundo sejam rigorosamente indescar-
táveis, sob pena de guerra (particular ou pública). Propusemos
Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, não' se
chamar a tudo isso sistema das prestações totais. O tipJ mais puro
constatam, por assim dizer, jamais, simples intercâmbios de bens, de
de semelhantes instituições nos parece ser representado pela aliança
riquezas e de produtos po curso de uma transação havida entre os
das duas fratrias nas tribos australianas ou norte-americanas em
indivíduos. Antes do mais, não são ind!víduos, mas, sim, coletivida-
geral, entre as quais os ritos, os casamentos, a sucessão nos bens,
des, que se obrigam mutuamente, fazem- trocas e contratos (15), As
os liames de direito e de interesse, categorias militares e sacerdotais,
pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famí-
tudo é complementar e supõe a colaboração das duas metades da tri-
lias, que se defrontam e se opõem, quer em grupos, enfrentando-se
bo. Por exemplo, os jogos são todos particularmente regidos por
no próprio terreno, quer por intermédio de seus chefes, quer dessas elas (17). Os tlinkits e os haídas, duas tribos do Noroeste americano,
duas maneiras, simultaneamente (16). Além disso, o que eles trocam exprimem fortement~ a natureza dessas práticas, dizendí que "as
duas fratrias mostram recíproco respeito" (18).
(15) Desde nossas últimas publicações, constatamos, na Austrália, um Mas, nestas duas últimas tribos do Noroeste americano e em toda
começo de prestação regulada entre tribos e não mais somente entre clãs e a citada região, aparece uma forma típica, certamente, mas evoluída
fratrias, particularmente por ocasião de morte. Entre os kakadus, do território e relativamente rara, de semelhantes prestações totais. Propusemos
norte, há uma terceira cerimônia funerária, após o segundo enterramento. chamá-la patlatch, comO o fazem, por sinal, os autores americanos,
Durante essa cerimônia, os homens procedem a uma espécie de inquérito judi-
ciário, a fim de determinar, pelo menos ficticiamente, quem foi o autor da servindo-se do nome chinook, que veio a ser parte da linguagem cor-
morte por feitiçaria. Mas, contrariamente ao que acontece na maioria das tribos rente dos brancos e dos índios, de Vancôver ao Alasca. "Potlatch"
australianas, nenhuma vingança é exercida. Os homens se contentam com reunir quer dizer, 'essencialmente, "alimentar", "consumir" (19). Essas
suas lanças e definir o que pedirão em troca. No dia seguinte, essas lanças são
levadas para uma outra tribo, a dos umorius, por exemplo, no acampamento
dos quais se compreende perfeitamente o alvo de semelhante envio. Aí a5 lanças (17) Ver em particular as notáveis regras do jogo de bola entre os omahas:
são dispostas por feixes, de acordo com os seus proprietários. E, segundo uma Alice Fletcher e La Flesche, "Omaha Tribe", Annual Report of the Burcau
tarifa conhecida por antecipação, os objetos desejados são postos em face of American Anthrapology. 1905-1906, XXVII, págs. 197 e 366.
desses feixes. Depois, todos são mandados de volta aos kakadus (Baldwin, (18) Krause, Tlinkit Indianer, págs. 234 e seguintes, viu bem esse caráter
Spencer, Tribes of the Northern Territory, 1914, pág. 247). Sir Baldwin men- das festas e l'itos e dos contrato~, o qual ele descreve· sem lhe dar o nome de
ciona que tais objetos podf!rão ser de novo trocados por lanças, fato que não potlatch. Bourvin, in Porter, "Report on the Population etc. of Alaska", in
compreendemos muito bem. Ao contrário, ele acha difícil compreender a conexão Eleventh Censu3 (1900), págs. 54-66, e Porter, ibidem, pág. 33, apreciar8.m bem
entre os citados funerais e essas trocas, e acrescenta que "os nativos não têm o caráter de glorificação recíproca do potlatch, desta vez citado. Mas foi M.
idéia disso", O uso, todavia, é perfeitamente compreensível: trata-se .de certo Swanton quem o assinalou melhor: "Social Conditions etc. of the Tlingit
modo de uma composição jurídica regular, que substitui a vingança e serve de Indians ", Ann. Rep. of the Burcau of Amer. Ethn., 1905, XXVI, pág. 345 etc.
origem a uma transação intertribal. Esta troca de coisas é, ao meSnl'J tempo, Cf. nossas observações, Ann. Soe., t. XI, pág. 207, e Davy, Foi y'urée, pág. 172.
uma troca de penhores de paz e de solidariedade no luto, como acontece, de (19) Sobre o sentido da palavra potlatch, ver Barbeau, Bulletin de l,a Société
ordinário, na Austrália, entre clãs de famílias associadas e aliadas pelo casa- de GéograPhie de Québec, 1911; Davy, pág. 162. Entretanto, não nos parece
mento. A única diferença é que desta vez o uso se tornou intertrihal. Que o sentido proposto seja originário. Com efeito, Boas indica para a palavra
(16) Até mesmo um poeta tão tardio como Píndaro diz: vto:v~o: "(O:!i~PO: potlatch, em kwakiutl, é verdade, e não em chinook, o sentido de Feeder. o que
7tp07ttVWV ovX.oesv O~%o:5E, Ol'j!tnpiquc, VIII, 4. Toda a passagem se ressente alimenta e, literalmente, Place of being satiated, lugar onde a gente se sacia.
ainda do estado de direito que vamos descrever. Os temas do presente, da Kwakiutl Texts, Second Sedes, Jesup Expedit., vo1. X, pág. 43, n. 2; cf.
riqueza, do casamento, da honra, do obséquio, da aliança, da refeição em ibidem, voI. III, pág. 255, pág. 517, s. v. PoI. Mas os dois sentidos de potlatch,
comum e da bebida dedicada, até mesmo o do ciúme que o casamento excita, dom e alimento, não são exclusivos: aqui, alimentar é a forma essencial da
todos são aí representados por palavras expressivas e dignas de comentários, prestação, pelo menos em teoria.

68 69
tribos, muito ricas, que vivem nas ilhas ou na costa, (lu' entre as A obrigação de dar
Rochosas e a costa, passam o inverno numa perpétua festa: banque- A obrigação de receber
tes, feiras e mercados, que, ao mesmo tempo, são a solene assembléia
da tribo. Esta aí é disposta segundo Suas confrarias hierárquicas, Falta, para compreender completamente a instituição da prestação
suas sociedades secretas, com freqüência confundidas com as primei- total e do potlatch, procurar a explicação dos dois outros momentos,
ras e com os clãs. E tudo, clãs, casamentos, iniciações, sessões de complementares daquele, Isto porque a prestação total não implica
xamanismo e do culto dos grandes deuses, dos tótens QU dos an'ces- somente a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe
trai~ coletivos ou individuais do clã, tudo se mistura num Íllextri- duas outras, igualmente importantes: a obrigação de dar presentes,
cável entrelaçamento de fitos, de prestações jurídicas e econômicas" de l1m lado, e a obrigação de recebê-los; de outro lado, A teoria
de fixações de categorias políticas na sociedade dos homens, na completa das três obrigações, dos três temas do mesmo complexo,
tribo e nas confederações de tribos e, mesmo, internacionalmente (20), daria a explicação fundamental satisfatória dessa forma do contrato
Mas o que é notável nessas tribos é o princípio da rivalidade e do entre clãs polinésios. Für ora, não podemos senão indicar a maneira
antagonismo, que domina todas as práticas. Chega-se aí até à batalha, de tratar o assunto.
até a matar chefes e nobres que assim se defrontam. Por outro lado, Um grande número de fatos concernentes à obrigação de receber
vai-se até à destruição puramente suntuária (21) das riquezas acumu- pode ser facilmente encontrado. Porque um clã, uma comunidade
ladas, para eclipsar o chefe rival, ao mesmo tempo que associado familiar, uma companhia, um hóspede não estão livres de não pedir
(ordinariamente avô, sogro ou genro). Há prestação total, no sen- hospitalidade (23), de não receber presentes, de não comerciar (24),
tido de que é todo o clã que contrata por todos, por tudo que ele de não contrair aliança pelas mulheres e pelo sangue. Os dayaks
poasui e por tudo o que faz, tendo seu chefe (22) por intermediário. desenvolveram, mesmo, todo um sistema de direito e de moral soore
Mas tal prestação reveste da parte do chefe um comportamento ago- o dever qúe se tem de não dexar de compartilhar a refeição a que se
nístico muito marcado. Ela é essencialmente usurária e suntuária, e viu preparar (25).
assiste-se, antes de mais nada, a uma luta dos nobres, com o fim
de estabelecer, entre eles, uma hierarquia, que, ulteriormente, apro-
veitará ao respectivo clã. (23) Aqui se colocaria o estudo do sistema de fatos que os maoris classi-
ficam, expressivamente, como "d~sprezo de Tahu". O principal documento
Propomos reservar o nome potlatch a esse gênero de instituição. encontra-se em Elsdon Best, "Maori Mythology", in J. PaI. Soe., t. IX, pág.
Püder-se-ia, com menor risco e maior precisão - mas, também, mais 113. Tahu é o nome" emblemático" do alimento em geral. É a sua pe-rsonifi-
extensamente - dar-lhe o nome de prestações totais de tiPo agonIs- cação. A expressão Kaua e tokahi ia Tahu (não despreze Tahu) emprega-se
tico . .. diante de uma pessoa que recusou o alimento que lhe foi apresentado. Mas o
estudo das crenças concernentes ao alimento em país maori nos levaria muito
longe. Basta-nos dizer que esse deus, essa hipótese do alimento é igual a Rong07
deus das plantas e da paz, e compreender-se-ão melhor as seguintes associa-
(20) O lado jurídico do potlatch é o estudado por M. Adam, em seus ções de idéias: hospitalidade, alimento, comunhão, paz, troca, direito.
artigos da Zeitschrift f. Rechtswissenchaft, 1911 e sego e da Festsehrift em
Seler, 1920, e por M. Davy, em seu trabalho Foi jurée. O lado religioso e o (24) V. EIsdon Best, Spir. Conc., J. PaI. Soe., t. IX, pág. 198.
econômico não são menos essenciais e não devem ser tratados menos a fundo. (25) V. Hardc1and, Dayak Worterbuch s.v. indjok, irek, pahuni, t. I, pág.
A natureza religiosa das pessoas implicadas e a das coisas trocadãs ou distri- 190, pág. 397a. O estudo comparativo dessas instituições pode ser estendido a
buídas não são, efetivamente, indiferentes à própria natureza dos contratos, toda a área da civilização malásia, indonésia e polinésia. A única diíiculdade
assim como os valores que se lhes atribuem. consiste em reconhecer a instituição. Um exemplo: é com o nome de "comércio
(21) Os haídas dizem "matar" a riqueza. forçado" que Spencer Saint-John descreve a maneira como, no Estado de Brunei
(Bornéu), os nobres arrecadavam tributo antecipado dos bisayas, começando
(22) Ver os documentos de Hunt em Boas, "Ethnology of the Kwakillt1 ,.,
XXXVth Annual Rep. of the Bureau of Americ01~ Ethn. t. lI, pág. 1.340, onde por presenteá-los com tecidos pagos em seguida por meio de uma taxa usurária
f! durante muitos anos (Life in the j()rests of the far East; t. lI, pág. 42). O
se encontrará uma descrição interessante da maneira como o clã traz suas contri-
buições ao chefe, para o l'otlatch, e, também, palavras de grande interesse. O ('(ro já provém dos próprios ma!ãsios civilizados, que exploravam um costume
chefe diz, particularmente: "Porque isto não será em meu nome. Será em de seus irmãos menos civilizados que eles, e não os. compreendiam mais. Não
nome de vocês, que se tornarão famosos entre as tribos, quando se dÜiser que vamos enumerar todos os fatos indonésios desse gênero (ver adiante C. R. do
dão sua propriedade para um potlatch" (pág. 1.342, 1. 31 e segs.). trabalho de M. Kruyt, Koopen in Middle Celebes).

70 71
Não menos importante é a obrigação de dar: seu estudo poderia ingerir nada diante deles, de medo que só a respiração dos mesmos
levar a compreender como os homens se tornaram intercambistas. envenene o que ele come (30). Vimos atrás direitos desse gênero,
Não podemos senão indicar alguns fatos. Recusar-se a dar (26), em favor do taonga, sobrinho uterino em Samoa, e que são inteira-
descuidar-se de convidar, assim como negar-se a aceitar (27), equi- mente comparáveis aos que tem o sobrinho uterino (vasu) em
vale a uma declaração de guerra: é o mesmo que recusar a aliança Fidji (31).
e a comunhão (28). Depois, dá-se, porque a isso se é forçado, POF- Há em tudo isso uma série de direitos e de deveres de consumir
que o donatário tem uma espécie de direito de propriedade sobre e de retribuir, correspondentes a direitos e deveres de dar e de rece-
tudo quanto pertence ao doad0r (29). Essa propriedade é expressa ber. Mas esta estreita mistura de direitos e de deveres simétn-
e concebida como um laço espiritual. Assim, na Austrália, o genro, cos e contrários deixa de parecer contmditória, Se se conceber que
que deve todos os produtos de sua caça ao sogro e à s-ogra, não pode existe, antes de tudo, um misto de laços espirituais entre as coisas
qUE. são em .certo grau da alma e os indivíduos e os grupos que se
(26) Descuidar-se de convidar para uma dança de guerra é um pecado, tratam em certo grau como coisas.
uma falta que, na ilha do Sul, tem o nome de puha. H. T. de Croisilles. "Short E todas essas instituições não exprimem unicamente senão um
Traditions of the South Island", J. P. S., t. X, pág. 76 (notar: tahua, gifl
of food). fato, Um regime social, uma mentalidade definida: é que tudo, ali- "f
O ritual de hospitalidade maori compreende um convite obrigatório, que a mento, mulheres, crianças, bens, talismãs, terra, trabalho, serviços,
pessoa que chega não deve recusar, mas que tampouco deve solicitar. Cabe-lhe ofícios sacerdotais e categorias, é matéria para transmissão e redição.
dirigir-se para a casa de recepção (diferente, segundo as castas). sem olhar à Tudo vai e vem, como se houvesse constante intercâmbio de matéria
sua volta. Ao hospedeiro incumbe mandar preparar-lhe uma refeição especial e espiritual, compreendendo coisas e homens, entre os clãs e os indiví-
aí estar presente, humildemente. A saída, o estranho recehe um viático de
presente (Tregear, Maori Race, pág. 29). Ver adiante Os ritos idênticos da dUos, distribuídos entre as categorias, os sexos e as gerações (Excerto
hospitalidade hindu. de MARcEL MAuss, Sociologie et anthropologie, Paris, P. U. F.,'
(27) Na realidade, as duas regras se mes.clam indissoluvelmente, como as 1%6, págs. 150-153, 161-164).
prestações antitéticas c simétricas que elas prescrevem. Um provérbio exprime
essa mescla. Taylor (Te ika maui, pág. 132, provérbio n. 60) o traduz de maneira
aproximada: "When raw it is seen, when cooked, it is taken" (É melhor
comer um alimento meio cozido que esperar que cheguem pessoas estranhas,
isto é, que ele fique cozido e se precise dividi-lo com elas).
(28) O chefe Hekemaru (na falta de Maru) , segundo a lenda, recusava-se
'OS PRINCípIOS DO PARENTESCO
a aceitar o "alimento", salvo quando ele tinha sido visto e recebido pela gente
da aldeia estranha. Se um cortejo houvesse passado despercebido e se lhe
enviassem mensagens, pedindo-lhe, a ele e à sua comitiva, voltarem atrás e CLAUDE LÉVI-STRAUSS
compartirem o alimento, a resposta seria que "o alimento não seguiria após
ele". Queria com isso dizer que o alimento oferecido ao "posterior sagrado
de sua cabeça" (isto é, quando ele já houvesse ultrapassado as cercanias da
aldeia) seria perigoso para aqueles que lho dessem. Daí o provérbio: "O ali- Assim, é sempre um sistema de permuta que encontramos na ori-
mento não irá atrás de Hekemaru" (Tregeard, Ma.ori Race, pág. 79).
gem das regras do casamento, mesmo daquelas cuja aparente singu-
(29) Na tribo de Turhoe, foram explicados a M. Eldson Best (" Maori
Mythology", J. P. S., t. VIII, pág. 113) tais princípios de mitologia e de laridade parece poder justificar somente uma interpretação a um
direito. "Quando um chefe de renome deve visitar um país, 'seu mana o
precede'. As pessoas do distrito põem-se a caçar c a pescar para terem bom
alimento. Não pegam nada; 'é porque nosso mana, que seguiu na frente', (30) Ex. Arunta, Unmatjera, Kaitish - Spencer e Gillen, Northern Tribes
tornou invisíveis todos os animais e todos os peixes; 'nosso mana os baniu... ' of Central Australia, pág. 610.
etc." (Segue-se uma explicação da geada e da neve, do Whai riri [pecado
contra as águas], que retém o alimento longe dos homens). Na realidade, este (31) A respeito do vasu, ver, sobretudo, o velho documento de Williams,
comentário um pouco obscuro descreve o estado em que estaria ° território Fiji and the Fijians, 1858, t. I, pág. 34, sp. Cf. Steinmetz, Ent1J.Jickclung der
Strafe, t lI, pág. 241 sq. Este direito do sobrinho uterino corresponde somente
de um haplt de caçadores, cujos membros não tivessem feito o necessá:·io para
receber um chefe de outro clã. Teriam cometido um "kaiPapa, um crime contra ao comunismo familia!". Mas permite se concebam óutros direitos, como, por
<.> alimento" e destruído, assim, suas colheita~. caças e pescas, seus próprios exemplo, os de parentes por afinidade e aquilo que geralmente se chama
alimentos. "roubo legal".

72 73
,I

tempo especial e arbitrária. No transcurso do presente trabalho. temos


visto a noção de permuta complicar-se e diversificar-se. Ela nos
negativo. A exogamia fornece o único meio de manter o grupo como
grupo, de evitar o fracionamento e a compartimentação indefinidos I
apareceu, constantemente, sob outras formas. Ora a permuta se, que tr::l.ria a prática dos casamentos consangüíneos: se a eles se recor-
apresentou como direta (é o caso do casamento com prima bilate- resse com persistência, ou apenas de maneira demasiado freqüente,
ral) , ora como indireta (e, aqui, pode responder a duas fórmulas, não tardariam a fazer "estilhaçar" o grupo social numa multidão
contínua e descontínua, correspondendo a duas regras diferentes de de famílias, que formariam outros tantos sistemas fechados, de mô-
casamento com prima unilateral); ora funciona no seio de um sis- nades sem porta nem janela ç cuja proliferação, cujos antagonismof
tema global (é o caráter teoricamente comum do casamento bilateral nenhuma harmonia preestabelecida poderia 'Prevenir. Este perigo
e do casamento matrilateral); ora provoca a formação de um ilimf.. mortal para o grupo, a regra de exogamia, aplicada sob suas formas
tado número de sistemas especiais e de ciclos estreitos, sem relação mais simples, não é inteiramente suficiente para arredar. Talo caso
entre si (e, sob esta forma, ameaça, como risco permanente, os da organização dualista. Com a organização dualista, o risco de ver
sistemas pela metade e ataca, como uma inevitável fraqueza, os uma família biológica erigir-se em sistema fechado é, sem dúvida,
sistemas patrilaterais); ora aparece como operação à vista ou a' eliminado definitivamente. O grupo biológico não pode mais ficar
curto prazo (com permuta das irmãs e das filhas e com o casamento
avuncular); ora COmo uma operação a termo mais recuado (assim
nos casos em que os graus proibidos englobam os primos em pri"
só. E o laço de aliança com uma família diferente assegura o ascen-
dente do social sobre o biológico, do cultural sobre o natural. Mas
logo aparece um outro risco: o de ver duas famílias, ou, antes, duas
L
meiro e, às vezes, em segundo grau) ; ora é explícita, ora implícita linhagens, se isolarem do continuum social sob a forma de um sis~
(como a vimos no exemplo do pretendido casamento por compra) '; tema bipolar, de um par intimamente unido por uma seqüência de
ora é fechada (quando o casamento deve satisfazer a uma regra intercasamentos e se bastando a si mesmo, indefinidamente. A regra
especial de aliança entre classes matrimoniais ou de observância de de· exogamia·, que determina as modalidades de formação de tàis
graus preferenciais); ora é aberta (quando a regra de exogamia pares, confere-lhes um caráter definitivamente social e cultural. Mas
se reduz a um conjunto de estipulações negativas, deixando a livre o sucial poderia não ser conferido senão para logo acabar fragmen-
escolha para lá dos graus proibidos) ; ora é garantida por uma espé- tado. Esse o perigo evltado pelas mais complexas formas de exoga-
cie de hipoteca sobre categorias reservadas (classes ou graus); ora mia. Tal o princípio da permuta generalizada. Tais são, também, as
(como no caso da proibição do incesto simples, tal como é encontrada subdivisões das metades em secções e em subsecções, onde grupos
em nossa sociedade) repousa sobre uma garantia mais ampla e de locais, cada vez mais numerosos, constituem sistemas indefinidamente
caráter fiduciário: a liberdade teórica de pretender qualquer mulher mais complexos. Há mulheres, portanto, que são como as moedas
do grupo mediante a renúncia a certas mulheres determinadas do divisionárias, de que trazem freqüentemente o nome e que, segundo o
círculo de família, liberdade assegurada pela extensão a todos os admirável ditado indígena, "representam o movimento de uma agu-
homens de uma proibição semelhante à que atinge cada um deles lha de costurar os tetos, a qual ora para fora, ora para dentro, leva
em particular. Mas, seja sob uma forma direta ou indireta, global ou e traz, sempre, o mesmo cipó fixador da palha" (32). Mesmo na
especial, imediata ou diferida, explícita ou implícita, fechada ou aber- ausência de tais procedimentos, a organização dualista, reduzida a
ta, concreta ou simbólica, é a permuta, sempre a permuta, que ressai si própria, não é impotente: temos visto como a intervenção dos graus
como base fundamental e comum de todas as modalidades da insti- preferidos de parentesco, no próprio seio da metade - por exem-
tuição matrimonial. Se tais modalidades podem ser subsumidas pelo
termo geral de exogamia (porque, COmo se viu na primeira parte
do presente trabalho, a endogamia não se opõe à exogamia, mas su-
põe-na), podem o ser com a condição de perceberem, por detrás da
plo, a predileção pela verdadeira prima cruzada e, mesmo, por um
certo tipo de verdadeira prima cruzada, como acontece entre os
karieras - fornece o meio de atenuar os riscos de um funcionamento
demasiado automático das classes. Diante da endogamia, tendência a
I
i
,

expressão superficialmente negativa da regra de exogamia, a finali.,. impor um limite ao grupo e a discriminar no seio do grupo, é a
dade que tende a assegurar, pela interdição do casamento nos graus exogamia um esforço permanente para uma coesão maior, para uma
proibidos, a circulação total e contínua dos bens por excelência do solidariedade mais eficaz e para uma articulação mais maleável.
grupo e que são suas mulheres e suas filhas.
O valor funcional da exogamia, definido no mais amplo sentido, (32) M. Leenhardt, lV.otes d'ethnologie néo-calédonienne, Paris, "Travaux
precisou-se, com efeito, e afirmou-se. Esse valor é, antes de tudo', et Mémoires de l'Institut d'Ethnologie", voI. 8, 1930, págs. 48 e 54.

74 75
I
I

É que, com efeito, a permuta não vale somente o que valem as coi-
Assim, a exogamia deve ser reconhecida, portanto, COmo elemento
sas trocadas: a permuta - e, por conseguinte, a regra de exogamia,
importante - sem dúvida como o elemento distanciadamente mais
que a exprime - tem, pDf si mesma, um valor social, pois fornece
importante - desse SQlene conjunto de manifestações que, contínua
o meio de ligar os homens entre si e de sobrepor, aos laços naturais' ou periodicamente, asseguram a integração das unidades parciais no
do parentesco, oS laços daí por diante artificiais - visto que subtraÍ- seio do grupo total e reclamam a colaboração dos grupos estranhos.
dos ac acaso dos encontros Ou à promiscuidade da existência f:lmilia:- Tais são os banquetes, as festás, as cerimônias de diversas ordens que
- da aliança regida pela regra. A este respeito, serve o casamentD formam a trama da existência social. Mas a exogamia não é somente
de modelo à Hconjugalidade" artificial e temporária que se estabelece, uma manifestação que toma lugar em meio a muitas outras: as fes-
em certos colégios, entre jovens do mesmo sexo. Balzac cbserva,. de tas ,e as cerimônias são periódicas, e a maioria corresponde a funções
modo profundo, que ela jamais se sobrepõe aos laços do sangue, mas limitadas. A lei de exogamia, ao 'contrário, é onipresente, age de
os substitui: l/Coisa esquisita! Jamais em meu tempo conheci irmãos maneira permanente e contínua. Mais ainda, incide sobre valores -
que fossem Faisants. Se o homem não vive senão pelos sentimentos, as mulheres - que são os valores por excelência, a um tempo do
talvez creia em1X'brecer Sua existência, confundindo uma afeição ponto de vista biológico e do ponto de vista social, e sem os quais
encontrada numa afeição natural" (33). a vida não é possível, ou, pelo menos, fica reduzida às piores formas
.! Certas teorias da exogamia encontram valor e significação nesse da abjeção. Não há exagero, portanto, em dizer que ela é o arquétipo
novo plano. Se a exogamia e a proibição do incesto possuem, c:-mo de todas as outras manifestações com base na reciprocidade. Que
o sugerimos, um valor funcional permanente e coextensivo a todos fornece a regra fundamental e imutável asseguradora da existência
os grupos sociais, como as interpretações que lhes deram os homens, do grupo como grupo (Excerto de CLAUDE LÉVI-STRAUSS, Les stTue-
por mais diferentes que possam ser, não haveriam de possuir, todas, tUTes élém'<ffotaires de la parenté, Paris, Mouton, 1967, p:igs.
uma sombra de verdade? Assim, as teorias de McLennan, de Spen- 548-551).
cer e de Lubbock têm, pelo menos, um sentido simbólico. Lembra-
mo-nos de que, para o primeiro, a exogamia teria achadi) sua origem
em tribos praticantes do infanticídio das filhas e, por conseguinte,
obrigadas a procurar, fora, esposas para os seus filhos. De modo A HOMENAGEM DO VASSALO
~nálogo, Spencer sugeriu que a exogamia teve que iniciar-se entre
tribos guerreiras, raptando mulheres das tribos vizinhas. E Lubbock MARC BLOCH
aventou a hipótese de uma oposição primitiva entre duas formas de
'I j casamento: um casamento endogâmico, em que as esposas são con-
sideradas como propriedade comum dos homens do grupo, e em 1. A homenagem na era feudal
'casamento exogâmico, que assimila as mulheres capturadas a uma
espécie de propriedade individual de seu vencedor, dando assim nas-
cimento ao moderno casamento individual. Pede-se discutir o detalhe
concreto, mas a idéia fundamental é certa, a saber: a exogamia tem .Aqui estão, frente a frente, dois homens: um, que quer servir;
um valor menos negativo do que positivo, afirma a existência social outro, que aceita ou deseja ser chefe. O primeiro junta as mãos e
de outrem e não interdiz o casamento endógarno senão para intro- as caloca, assim unidas, nas mãos do segundo: claro símbolo de sub-
duzir e prescrever o casamento com um outro grupo que não a missão, cujo sentido ainda era acentuado, às vezes, por um ajoelhar-
familia biológica: não certamente porque um perigo biológico esteja se. Ao mesmo tempo, a personagem de mãos postas pronuncia algu-
ligado ao casamento consangüíneo, mas porque de um casamento mas palavras, muito breves, com as quais se reconhece "o homem"
exógamo resulta um benefício social. de quem se acha diante dele. Depois, chefe e subordinado beijam-se
na boca: símbolo de concordância e de amizade. Tais eram - muito
simples e, por isso mesmo, eminentemente próprias para impressio-
(33) "A conjugalidade que nos ligava um a outro e que exprimíamos nar espíritos tão sensíveis às coisas vistas - os gestos que serviam
chamando-nos Faisants ... " (H. de Balzac, Louis Lambert, em OeU'vres com- para apertar um dos mais fortes liames sociais que a era feudal
pletes, Paris, Ed. de la Pléiade, 1937, t. X, págs. 366 e 382).
conheceu. Cem vezes descrita ou mencionada nos textos, reproduzida
76
77

1-T.S.
em sinetes, em miniaturas, em baixós-relevos. a cerimoma chama- a verdade, veremos que, na prática, a vassalagem evoluiu muito
va-se "homenagem" (~m alemão: Mannschaft). Para designar o su- depressa para uma condição geralmente hereditária. Mas esse estado
perior, por ela criado, nada de outros termos além do nome, muito de fato deixou, até ao fim, subsistir, intacta, a regra jurídica. Pouco
geral, de "senhor". Freqüentemente o subordinado é do mesmo modo importava que o filho do vassalo, falecido prestasse ordinariamente
chamado "o homem" desse senhor, sem mais palavras. Algumas vezes, sua homenagem ao senhor que havia acolhido a de seu pai; que o her-
mais precisamente, seu "homem de boca e de mãos". Mas empre- deiro do precedente senhor recebesse, quase sempre, as homenagens
gam-se, também, palavras melhor especializadas: "vassalo", ou, até dos vassalos paternos: o rito nem por isso deveria ser menos reite-
os primórdios do século XII, pelo menos, "protegido". rado, cada vez que a composição da dupla viesse a modificar-se. Do
Concebido assim, o rito era despido de qualquer sinal cristão. mesmo modo, a homenagem não podia ser ofertada nem aceita por
Explicável pelas distantes origens germânicas de seu simbolismo, procuração: os exemplos contrários datam todos de uma época muito
semelhante lacuna não poderia subsistir numa sociedade em que não tardia, quando o sentido dos velhos gestos se havia, já, quase, obli-
mais se admitia, de modo algum, que uma promessa fosse válida terado. Na França, em presença do rei, essa faculdade só se tornou
sem ter Deus por fiador. A própria homenagem, em sua forma, nunca legal com Carlos VII e, mesmo assim, não sem muitas hesitações.
foi modificada. Mas, verossimilmente, desde o período carolíngio, um Tanto era verdade, que o laço social parecia inseparável do contacto
segundo rito, propriamente religioso, tinha vindo sobrepor-se-Ihe: com quase físico que o ato formalista estabelecia entre os dois homens.
a mão estendida sobre os Evangelhos, ou sobre as relíquias, o novo O dever geral de ajuda e de obediência, que se impunha ao vassalo,
vassalo jurava ser fiel- a seu amo. Era o que se chamava a "fé" (em era comum com quem quer que se houvesse feito HO homem" de
alemão, Treue e, antigamente, Hulde). O cerimonial compreendia, outro homem. Mas aqui se nuançava de obrigações particulares, a
pois, dois tempos. Ambas as suas fases, todavia, estavam muito longe cujo d~talhe teremos que voltar. Sua natureza correspondia a condi-
de possuir valor igual. ções, assaz estreitamente determinadas, de categoria e de gênero de
Porque a "fé" não tinha nada de específico. Numa sociedade per- vida. Porque, apesar de grandes diversidades de riqueza e de pres-
turbada, em que a desconfiança era a regra, ao mesmo tempo que o tígio, os vassalos não eram de modo algum recrutados indiferente-
apelo às sanções divinas parecia um dos raros freios mais ou menos mente, em meio a todas as camadas da população. A vassalagem era
eficazes, havia mil razões para que o juramento de fidelidade fosse a forma de dependência peculiar às classes superiores, distinguida<,
antes de tudo, peja vocação guerreira e pela de liderança. Pelo menos.
exigido COm freqüência. Prestavam-no os oficiais reais ou senhoriais,
de qualquer categoria, à sua entrada em serviço. Os prelados o pe- assim se havia ela tornado. . . . .
diam de boa vontade a seus clérigos. Os senhores rurais também o
pediam, às vezes, a seus camponeses. Diferentemente da homenagem, 2. Os laços de direito e o conktcto hunwno
que, comprometendo, de um golpe, o homem todo, era tida, geral-
mente, como incapaz de renovar-se, a promessa, quase banal, podia Agrupando em torno do chefe, armados, os seus aios, a primeira
ser diversas vezes reiterada para com a mesma pessoa. Havia, pois, vassalagem tinha, em seu próprio vocabulário, um como cheiro de
muitos atos de "fé" sem homenagens. Não conhecemos homenagens pão de casa. O arrio era o "velho" (senior, herr) ou o doador de
sem fé. Além disso, quando os dois ritos estavam juntos, a preemi- michas (lord). Os homens, seus companheiros (gasindi); seus rapa-
nência da homenagem se traduzia pela própria ordem de colocação ze, (vassi, thegns, knights); seus comedores de pão (buccellarii,
da cerimônia: ela era sempre a primeira a realizar-se. Era a única, hlafoetan). A fidelidade, numa palavra, fundava-se então no con-
por sinal, que fazia intervir, em estreita união, os dois homens. A fé tacto pessoal, e a sujeição coloria-se de camaradagem.
do vassalo constituía um compromisso unilateral, a que só raramente Desse laço, primitivamente confinado ao meio familiar, aconteceu,
correspondia, por parte do senhor, um juramento paralelo. A home- entretanto, que o campo de ação se ampliou desmedidamente. Por-
nagem, numa palavra, era o verdadeiro criador da relação de vas- que se continuou a querer impor o seu respeito a homens que, depois
salagem, sob o seu duplo aspecto de dependência e de proteção. de um estágio na morada do amo, daí se tinham afastado para fazer
O nó assim formado durava, em princípio, tanto quanto as duas sua vida longe dele, muitas vezes nas mesmas ·terras que ele lhes
vidas por ele ligadas. Em compensação, desfazia-se por si mesmo, havia dado. Porque, sobretudo, em face da anarquia crescente, os·
assim que a morte pusesse fim, quer a uma, quer a outra. ,Para falar grandes e, ainda mais. os reis acreditaram encontrar, nessa ligação tão

78 79
forte ou em sua imitação, um remédio às fidelidades evanescentes. frágeis ba"rreiras. Salvo na Alema:nha~ mais ou menos preservada' (nós
E, inversamente, muitas pessoas ameaçadas acreditaram encontrar, aí, b veremos) desse abuso, devido a Um excepcionaI_ senso hierárquico,
o meio de se proverem de um' defensor. Quem quer que, em certa a entrada das relações feudais· no comércio teve,além di3so, O efeito
categoria social, quisesse ou devesse servir era assimilado a um aio absurdo de; freqüentemente; um podero~o ver-se levado a tornar-se
ó ·homem "de boca e de inãos!' de um muito mais 'fraco do que ele.
em armas.
Aáeditar-se-á que o grande .conde, que adquirira um feudo nos
Ora, pretendendo assim submeter a uma fidelidade quase domés- domínios de um pequenocastelã.o, tenha alguma vez levado bem a
tica personagens que não compartilhavam mais, nem a mesa do chefe, sério o rito da retratação, a "que um uso vão o condenava a dobrar-
nem o seu destino, cujos interesses se opunham, freqüentemente, aos se? Finalmente, apesar da tentativ'a de salvamento representada pela
seus, que, às vezes, mesmo longe de serem enriquecidos pelos seus ligesse, a pluralidade das homenagens; ela ,'mesma" conseqüência do
dons, tinham sido constrangidos a ceder-lhe, para retomá-lo de suas enfraquecimento do liame, acabou retirando-lhe até a possibilidade
mãos, gravado de novos encargos, o patrimônio deles mesmos, essa de agir. De u·m companheiro de armas, cuja dedicação era alimen-
fé tão buscada haveria de acabar por esvaziar-se de todo conteúdo tada por presentes constantes -e pelâ presença humana, o vassalo' se
vivo. A dependência do homem em relação ao homem logo não foi tornara uma espécie de" locatário;" mediocremente solícito quanto a
mais do que a resultante da dependência de uma terra em relação pagar seu aluguel de serviços e· de obediência. Todavia, persistia um
a outra terra. freio: o respeito ao juramento. Ele não era sem força. Mas, quando
A própria herança, em vez de selar a solidariedade de duas linha- as sugestões do interesse pessoal ou da paixão falavam muito altoi
gens, concorreu, pelo contrário, pâra o afrouxamento do laço, porque esse abstrato entrave resistia mal.
&e aplicou, antes de tudo, aos interesses ligados às terras: 'O herdeiro Ao menos era assim na medida precisamente em que a vassalageni
rião prestava homenagem senão com o fim de conservar o feudo. U se havia ·completamente afastado de seu caráter primitivo. Ora, tinha
problema surgira para os humildes feudos de artífices, assim como havido, nesse movimento, muitos graus. Seria grave erro adotar, para
para os honrados feudos de cavalaria. Havia sido resolvido, dos dois gabarito do . sentimento de vassalo,' as relações, tão freqüentes vezes
lados, em termos de aparência semelhante. O filho do pintor ou o perturbadas, dos grandes ou dos médios barões com os reis ou ·com
do carpinteiro somente sucediam ao pai nos bens se tivessem, também, os príncipes territoriais, seus senhores. Sem dúvida, crônicas e can-
herdado sua arte. Do mesmo modo, o filho do cavalheiro não recebia ções de gesta parecem convidar-nos a cometê-lo. É que, dramas de
a investidura se não se comprometesse a continuar os serviços pater- primeiro plano no cenário político, as retumbantes infidelídades des-
nos. Mas a habilidade de um operário qualificado era uma realidade ses magnatas atraíam, antes de tudo, tanto os olhares da história
de constatação muito mais segura que o devotamento de um guer- como os da ficção. Que" provam elas, entretanto, -senão que, acredi-
reiro, demasiado fácil de prometer e de não cumprir. Com uma pre- t2..Iiclo prender a si, eficazmente, seus principais 'oficiais por um laço
cisão bem significativa, um diploma legal de 1291, enumerando os tómado de empréstimo a uma esfera completamente diferente, os
motivos de recusa que poderiam ser invocados contra os juízes çla carolíngios e seus imitadores se haviam redoridadamente enganado?
cOTte real francesa, considera suspeito de parcialidade o vassalo de Mais embaixo, na escala social, deixam os textos entrever grupos
Um dos litigantes somente se seu feudo for vitalício; tanto o vínculo muito mais bem cerrados à volta de chefes conhecidos melhor e
que se herdava parecia, então, ter pouca força! melhor servidos. Eram, antes de tudo, esses cavalheiros não instala-
Perdeu-se o sentimento da livre escolha, a ponto de as pessoas dos, esses "donzéis" da "casa" - em outros termos, do ambiente
°
se acostumarem a ver vassalo alienar, com o feudo, os deveres da doméstico - cuja condição, durante compridos séculos e em todo o
Ocidente, continuou reproduzindo traço por traço, a vida dos pri-
vassalagem e o senhor dar ou vender, com seus campos, seus bos ...
ques e seus castelos, a lealdade de seus homens. Sem dúvida, o meiros vassalos. A epopéia francesa aí não se enganou. Seus gran-
feudo não podia, em princípio, mudar de mãos sem a autorização do des revoltados, um Ogier, um Girard, um Renaud, são poderosos
senhor. Sem dúvida, os vassalos, por seu lado, pediam espontanea- feudatários. Trata-se de retratar, ao contrário, um bom vassalo?
mente não fossem cedidos senão mediante seu próprio assentimento. Teremos o Bernier, de Raoul de Cambrai. Bemier, fiel, apesar da
De modo que o reconhecimento oficial desse direito foi, em 1037, injusta guerra movida contra os seus parentes pelo seu senhor, fiel
um dos favores concedidos pelo imperador Conrado aos vassa- ainda depois de ter visto a própria mãe perecer num incêndio ateado
los da Itália. A prática, todavia, não tardou a pôr abaixo tão por aquele "Judas" e que, uma vez mesmo que atroz afronta o deci-

80 "3"1
, I
diu, por fim, a abandonar o mais deplorável dos amos, não parece,
do mesmo modo que o poeta, saber jamais Se errou ou se acertou
ao romper, assim, a fé. Bernier... simples moço de armas, cujo
devotamento se fortifica na lembrança, não de uma terra que rece-
CAPÍTULO UI
beu, mas do cavalo e dos trajes liberalmente distribnídos. Esses leais
servidores eram também recrutados no bando, mais numeroso, dos
modestos "vassalos de vassalos"" cujos pequenos feudos se aglomera- CONTROLE SOCIAL, DESINTEGRAÇÃO'
vam, no mais das vezes, nas cercanias do castelo, onde, uns em segui-
da aos outros, como "estagiários", vinham montar guarda: ordina-
SOCIAL E MUDANÇA
riamente pobres demais para conservar as suas terras mediante mais
de uma homenagem, ou, pelo menos, mais de uma homenagem lige; I·
fracos demais para não atribuírem muito valor à proteção que somen-
te o exato cumprimento de seus deveres poderia assegurar-lhes; muito
pouco envolvidos nos grandes acontecimentos do tempo para que OS COSTUMES
seus interesses, como seus sentimentos, não tomassem voluntariamen-
te por centro o senhor que regularmente os convocava para sua corte
WILLIAM G. SUMNER
e que, por meio de oportunos presentes, suplementava os magros
rendimentos dos campos ou o montante das rendas anuais do feudo,
acolhia-lhes os filhos como "já criados", conduzia-os, enfim, à 1.. Uma definição mais precisa dos costumes
guerra (alegre e lucrativa).
Tais foram os ambientes onde, a despeito de inevitáveis acessos
É graças aos costumes que se dá satisfação aos desejos e às neces-
de paixão, por muito tempo se manteve, em seu frescor, a fé do vas- sidades humanas . encontrados na sociedade, com ajuda das crenças,
sala; onde, também, quando seus velhos ritos se desgastaram em
das noções, dos códigos e dos modos de vida que lhe são vinculados
definitivo, outras formas de dependência pessoal vieram, nós o vere- e" têm, por conseguinte, com eles, um laço genético. Por intermédio
mos, substituí-la. Ter-se originalmente fundada no amistoso compa- d'e tais crenças ou de tais códigos, vêm os costumes dar os seus
nheirismo do lar e da aventura; depois, uma vez saída desse círculo característicos próprios a uma sociedade ou a um período histórico.
doméstico, ter conservado um pouco de seu valor humano, lá onde Penetram eles nos modos de pensar e conseguem controlá-los, pas-
somente o afastamento era o que havia de menos importante ... com sando, assim, do mundo da abstração ao da ação, impondo-se con-
esse destino a vassalagem européia encontra sua marca própria, cretamente como guia. "Os costumes (Sitten) servem de meio regula-
assim como a explicação de seus aparentes paradoxos (Excerto de dor dos comportamentos políticos, sociais e religiosos do indivíduo,
MARC BLOCH, La société féJodale, Paris, Albin Michel, 1968, L" ed.,
que, dessa maneira, não se serve de sua razão. A reflexão consciente
1939, págs. 210-212 e 331-334). é, portanto, o pior inimigo dos costumes ... " (34).

2. O ritual dos costumes

Os costumes são rituais sociais de que todos participamos de for-


ma inconsciente. O horário de trabalho, o das refeições, a vida de
família, as relações sexuais, a propriedade, os lazeres, as viagens, as
férias, a educação, a utilização dos jornais e das bibliotecas apare-
cem, assim, como hábitos controlados por um ritual. Cada um age

(34) v. ,Hartman, Phanom des sittlichen Bewu.rseins, 73.

82 83
da mesma maneira que os outros... Os costumes (folkways) são C1aIS na formação da natureza social e ~dos ideais do indivíduo. 'O,
do mesmo modo instrumentos de disciplina, que nos fazem aceitar resultado da estreita associação, de um ponto de vista psicológico; ê·
a rotina e o hábito ... uma certa fusão das individualidades num todo ctlmum, de modo
que a verdadeira pessoa em si mesma ..:...- pelo menos no que conferne
a muitos projetos identifica-se com a vida comum e com o projetei
3. Os costumes têm a autoridade dos fatos do grupo. Talvez a maneira mais simples de descrever essa totali-
dade seja falar a respeito como de um "nós". Isso implica uma como
Os costumes chegam até nós, vindos do passado. Assim como a simpatia e identificação mútua que expressamos, naturalmente, por-
atmosfera, preexistem ao indivíduo. Assim como um bebê é incapaz "nós". Vive~se no sentimento desse todo e encontram~se os alvos,
de analisar a atmosfera em que começa a respirar, assim também principais de nossa vontade nesse sentimento.
Um indivíduo se revela inapto para analisar ou criticar OS costumes. Impossível supor que a unidade do grupo primário não seja senã6
Cada um dentre nós Se acha submetido à influência dos costumes, pura harmonia e amor. Trata-se, contudo, de uma unidade diferen~
é formado por eles antes meSmo que seja capaz de compreendê-los. dada e geralmente competitiva, admitindo caracteres egoístas ou;
Hoje, todavia, somos considerados como críticos de todas as tradi- outras paixões. Mas tais paixões são socializadas pela 'simpatia e:
ções, recusando submeter-nos a elas. Se, apesar de tudo, examinar- ., ~­

põem-se, ou tendem a pôr-se, sob o controle de um espírito comum: ,

mos elementos que fazem parte dos costumes, veremos que não é O .indivíduo será ambicioso, mas o principal objetivo de sua ambição
assim. Existe, por exemplo, entre nós, seitas praticantes do amor consistirá em melhorar a imagem que os outros têm dele. S'entir-se-á,
livre que recusam o casamento. Não são totalmente possuídas pelo portanto, ligado aos modelos correntes de serviço e de fair play_
demônio e convidam-nos para discutir racionalmente nossos costumes Assim, o rapazola disput"ará com seus camaradas um lugar na equi-
e nossas idéias sobre o matrimônio. Contudo, nunca chamaram a pe, mas acima das disputas colocará a glória comum: de sua classe.
atenç:ão~ E;xistem, do mesmo modo, pessoas que querem discutir a e de sua escola.
j1ropriedade; mas, a despeito de seus esforços, ainda não foi aberto
Os mais impórtantes grupos que constituem as associações e cOO-'
um grande debate sobre a herança e a propriedade. A propriedade
perações Íntimas - posto que, em caso algum, as únicas - são'. ai
e o casamento continuam, portanto, a fazer parte dos costumes ... família, o bando dos companheiros e, quanto aos mais velhos, a viii·'
Estes tornam impossível qualquer controvérsia. A democracia,. por nhança ou a comunidade. Eles são praticamente universais, perten-
exemplo, faz parte, também, dos costumes, americanos. É o -produto cem a todos os tempos e a todos os níveis de desenvolvimento. Por
das condições físicas e econômicas: não se poderia, por conseguinte, conseqüência, são a base de tudo o que é universal na natureza
pô-l" em questão. É ela, pelo contrário, objeto de uma retórica diti- humana e nos ideais humanos. Os melhores estudos comparativos
râmbica, que lhe reforça a glória e a popularidade. .. Aprendemos os sobre a família, COmo os de Westermark (35) ou de Howard (36),
costumes tão inconscientemente como aprendemos a andar, a comer. no-la mostram como uma instituição universal por toda a parte exis-.
~ a respirar. As massas nunca aprendem a andar, a comer e a res- tente. Ninguém mais pode duvidar da predominância geral do grupu
pirar: elas nunca sa'Pem por que razões os costumes são o que são ~ .. de jogo em meio às crianças, ou da realidade das reuniões informais.
Os costumes contêm noções, doutrinas e máximas, porém são, antes dos mais velhos qu~ elas. Tal associação é, evidentemente, o berçu
de tudo, fatos (Traduzido de WILLIAM G. SUMNER, Folkways, Ginn da natureza humana no mundo que nos rodeia, e não há nenhuma
e Cia., 1904, § 66, 68 e 80). razão aparente que permita supor que tenha sido de modo diferente
em outros tempos ou em outros lugares. I~

No que, concerne ao jogo, eu poderia, se isso não fosse matéria


OS GRUPOS PRIMÁRIOS de obôervação corrente, multiplicar as ílustrações para provar sua
universalidade, assim como a espontaneidade da cooperação e 'da
CHARLES H., COOLEY
discussão a que dão nascimento. É fato generalizado que as crian.
Por grupos primanos, refiro-me aos que são caracterizados' por
Uma associação e por uma cooperação íntimas e Hface a face". São (35) The Histol'Y of Human Marriage.
primários em varids ·sentidós," más' priricipalmente por serem essep.- (36) A History of Matrimonial:lnstit-utions.

84 85
ças e, sobretudo, os jovens de mais de doze anos vivem" fraternida- dades ou coisa equivalente, tendo como base uma.. comunidade de
des", nas quais sua simpatia, sua honra e sua. ambição se acham espírito que pode dar origem a uma real intimidade. Mas o fatQ de
freqüentemente mais empenhadas do que no seio da família. A maio- serem a família e a vizinhança ca<Ja vez mais importantes, durante
ria dentre nós pode lembrar exemplos de crianças que sofrem injus- o período livre e maleável da infância, torna-os, mesmo hoje, mais
tiça e, mesmo, crueldade da parte de outras, e não se queixam a importantes do que todo o resto.
seus paIS ou professores, nem acusam os seus camaradas. Os grupos primários são-no no sentido de dar ao indivíduo a pri-
Essa facilidade de associação própria dos jovens não é, como às meira e a mais completa experiência da unidade social e, também,
vezes se supôs, uma particularidade dos rapazes ingleses ou ameri- pelo fato de não se modificarem como as relações mais elaboradas.
canos. Entre os imigrantes dos Estados Unidos, parece que a des- São uma fonte praticamente permanente, da qual estas últimas sem-
cendência das civilizações mais restritivas do continente europeu pre se originaram. Seguramente não são independentes de uma
forma grupos de jogo que se autogovernam com a mesma facilidade. wciedade mais vasta e, até certo ponto, refletem-lhe o espírito:
Assim, Mlle Jane Adams, após haver frisado que o "bando" é pra- assim, a família e a escola alemãs trazem, em alguns pontos precisos,
ticamente, universal, descreve a interminável discussão que tem por a marca do militarismo alemão. Tudo isso, afinal, semelha as marés,.
objeto cada detalhe da atividade da gang, observando que, "nesses invadindo as angras: não vão, geralmente, muito longe. Entre os'
grupos sociais, por assim dizer, ° jovem cidadão aprende a agir alenlães e, mais ainda, entre os russos, a classe camponesa adquiriU'
segundo sua própria determinação" (37). hábifos-de cooperações e discussões livres, praticamente independentes
A propósito do grupo de vizinhança, pode-se dizer, de modo geral, da natureza do Estado.
que, desde o tempo em que os homens estabeleceram os primeiros Em nossas sociedades,' os apartamentos superlotados e a geral con4
-

acc..mpamentos sobre a terra até ao em que, finalmente, surgiram as fusão' econômica e social atingiram gravemente a família e o grupo
cidades industriais, representou ele papel primordial na vida "primá- de vizinhança, mas convém assinalar, vistas estas circunstâncias; a
ria", mais íntima, das pessoas. Entre nossos ancestrais teutôniros, a vitalidade que el.,,; hoje chegam a mostrar. Há um acordo geral para
comunidade aldeã era, manifestamente, a principal esfera de simpath fazer-lhes recobrar a saúde. Esses grupos, por conseguinte, são a's
e de ajuda niútua. O mesmo aconteceu através da "sombria" Idade fontes da vida p~ra as instituições não somente individuais como
Média, e em muitos domínios ainda hoje é assim, nas regiões rurais. também sociais. São - mas apenas em parte - modelados por traC
Em certos países, ela ainda é encontrada com toda sua antiga vitali- dições especiais e, em grau maior, exprimem a natureza universal.
dade, particularmente na Rússia, onde o mir, grupo aldeão que se A religião ou o governo de outras civilizações talvez nos pareçam
autogoV"erna, é o principal lugar da vida, assim como a família, e isso
estranhos, mas as crianças ou o grupo familiar permanecem idênti-
para cinqüenta milhões -,de camponeses.
cos. Graças a eles, podemos sempre sentir-nos em casa (Traduzido
, Em nossa época, a intimidade da vizinhança foi desfeita pelo cres- de CHARLES H. COOLEY, Social Organk,ation, Nova York, Schocken
cimento de uma complicada engrenagem de contactos mais amplos, Books Inc., 1963, [1.' ed., 1909]. págs. 23-28).
mas que nos deixa estranhos às pes-soas que vivem na mesma casa
que nós. E, mesmo no campo, igual princípio está em curso, embora
de: forma menos evidente, destruindo a comunidade econômica e'
espiritual que as pessoas formam com os seus vizinhos. Até que
ponto semelhante mudança é salutar? Até que ponto representa um MUDANÇA SOCIAL E
mal? A resposta é, ainda, pouco segura. DESORGANIZAÇÃO SOCIAL
Ào lado desses tipos de associações primárias, quase universais,
muitas outras há cuja forma depende do estádio particular de desen- ROBERT ,PARK
volvimento, sendo a única -cóisa essencial, eu o disse, uma certa inti-
midade e uma fusão dos indivíduos. Numa sociedade em que não
seé ligado pelo lugar, as pessoas formam facilmente clubes. irman- Na medida em que a família e o grupo de vizinhança permanecem
realidades vivas, sua organização depende do hábito e da tradição e
(37) Newer Ideais of Peac., pág. 177. " repousa sobre o ,que Sumner, denomina os costumes (FolkWf1lJs).

;86 87
Nesse momento de sua' história, a 'sociedade é uma produção pUra- A SOCIEDADE TRADICIONAL
mente natural. É o resultado esporitâneo e não refletido da ação dos E A CIVILIZAÇÁO
indivíduos. que entretêm ((face a" Jace" relações íntimas e pesSoais.
Em tais condições, toda: disciplina ou norma social imposta aos indi- ROBERT REDFIELD
víduos não pode depender senão da intuição ou do bom senso.
,
Em- umá coletividade social de dimens,ão mais importante, as "rela-
ções -sociais são mais formais e menos íntimas. É unicamente nesse : A ordem moral e a ordem técnica qualificam d'Üis aspectos de
! i todas as sociedades humanas. Determinam a maneira como as ativi-
gên"ro de coletividade que surgem organizações como a Igreja, a
dades sociais são coordenadas. Segundo C. H. Cooley (38) e R. E.
escola e a justiça; surgem 'e recebem funções específicas. Por inter- Park (39), "a ordem moral" permite uma organização assente sobre
médio dessas instituições é que a coletividade chega ~ exercer seu um. sentimento de justiça compartido por todos. Park opõe, assim,
,I controle sobre o indivíduo, perdendo a família e o grupo de vizinhan., as ,c"formas de associações" tradicionais determinadas pelo interesse
ça:, a pouco e pouco, essa função. Todavia, nem OS orfanatos. nem cmnum, como as relações de vizinhança ou de associação pessoal (40),
qualquer outra instituição chegou ainda a substituir, satisfatoria- aos novos liames criados pela divisão do trabalho e pelas diferentes
mente, o lar. Eles não conseguem criar .recordações e tradições que ." ,'
profissões resultantes. Essa divisão do trabalho modifica a ordem
gostamos, sempre, de respeitar. A delinqüência se desenvolve em tais moral tradicional, que caracteriza o que é especificamente humano.
coletividades e não fora delas. Aumenta quando as instituições Os sentimentos, a moral, a consciência reforçam a ordem que se
asseguram o controle social com ajuda de modelo racional e não tra- desenvolve particularmente nos grupos onde as pessoas estão inti-
dicional. Assim, a delinqüência aparece como consequência do mau mamente associadas umas às outras. A ordem moral pode estar presente
funcionamento das organizações que encontramos nas coletividades assim nas sociedades em que a regra e as normas se acham ligadas
sociais. a sanções sobrenaturais Cama nas em que a moral e as regras' são
independentes da religião ...
Historicamente, o modo de .vida ameJjcano foi moldado pela comU7
A "ordem técnica" opõe-se à ordem moral e caracteriza todas as
nidade aldeã. Até anos recentes, o _americano médio -era e, tatv~z,
outras normas de coordenação da atividade humana que emergem
ainda o seja, agora, o habitante de um vilarejo do Oeste, provavel- nas sociedades. Os liames que servem para coordenar as atividades
mente parecido com o descrito por Sinclair Lewis, em seu livro Main humanas não se alicerçam mais, agora, sobre convicções morais. Não
Streel. Ainda hoje, Um dos traços mais característicos de, sua perso- são determinados por sentimento humano e podem, mesmo, subsis-
nalidade parece ser eSse individualismo estranhado, que se desenvol- tir, se os indivíduos não tiverem consciência de estar ligados uns
veu mais sob a influência das condições de vida da fronteira. Mas o aos outros. A ordem técnica, portanto, é proveniente da utilidade
crescimento das grandes cidades, a divisão do trabalho das empresas recíproca ou da coerção deliberada. Na ordem técnica, os homens
industriais e os incessantes movimentos criados pelos novos meios de 'estão ligados pelas 'coisas, ou são~ eles próprios, coisas... A civili-
transporte e de c0I"?unicação não deixaram de ter grandes conse- zação pode assim ser concebida como a antítese da sociedade tradi-
qüências. Com eles, os meios tradicionais de controle social (a famí- cional (Folk Society) .•.
lia e o grupo de vizinhança) perderam quase toda a importância. ;Consiste a civilização em 'elementos que se acham anexados à socie-'
dade: as cidades, a escrita, o Estado, 0- 'comércio etc. Pode-se dizer,
Thomas descreveu bem esse processo; que conduz à destruição da de outra maneira, que a sociedade se torna civilizada na medida em
cultura tradicional e dos meios clássicos de controle social. Colocan- qu.e a comunidade não é mais restrita, isolada, homogênea e autônoma
do-se no ponto de vista do indivíduo, ele o qualificou de "individuali-
zação". Se nos colocarmos, agora, no ponto de vista da sociedade,
podemos também constatar que o processo conduz à desorganização (38) C. H. Cooley, Social Orgamzation~ Nova York, Scribners Sons, 1-909~'
pág. 54. Ver nesse volume o texto de Cooley (N.d.E.).
social (Traduzido:de R.' Park, "Community- Organization ànd' Juve- (39) Robert Park, Human Communities, Glencoe: Free Press, 1952, págs.·
nile ' Delil1quency", in' R. PARKe K: BURGESS, 'TI>e', City, Chicago, 22--:23. Ver nesse volume o texto de Park (N.d.E.).
Uriivefiity-<if ChicagoPress, 1967, págs. 105-107). - ' (40) Ibidem, pág. 24.

88 89
no tocante às suas próprias necessidades; na medida, também, em Os mecanismos de controle na gang
que a divisão do trabalho não é mais simples, em que as relaçõe::i
impessoais substituíram as relações pessoais, em que os liames fami- O indivíduo membro de uma gang é quase inteiramente controlado
1iares se vêem afastados, em proveito da filiação partidária ou do pela opinião do grupo. O rapaz, membro de uma gang, age ou pensa.
da mesma maneira que todos os outros. Os comportamentos deles
contrato; na medida, enfim, em que o modo de pensar veio a ser
lhe servem, assim, de justificação. Do mesmo modo, somente as opi-
sistemático e puramente reflexivo... Na sociedade tradicional, a
niões e atitudes deles podem assegurar-lhe o seu estatuto (41). Uma
ordem técnica é fraca, sendo importante, ao contrário, a. ordem mo-
tal sanção permite julgar boa ou má a conduta no seio do grupo.
rai. Nas sociedades primitivas, as regulações formais produzidas pelo
É com a ajuda de grande variedade de mecanismos que a opinião
Estado ou pela Igreja não se desenvolvem ainda; do mesmo modo, da gang exerce sua pressão e seu controle: aplausos, promoção, culto
os comportamentos contrários à moral específica das relações de do herói, de um lado, mas, também, utilização do ridículo, do menos-
comércio continuam desconhecidas. É a civilização que permite o prezo e do ostracismo, de outro lado. As punições físicas não são
desenvolvimento de tais regulações e de tais comportamentos (Tra- raras. O chefe tem um poder considerável sobre os seus subordina-
duzido de ROBERT REDFIELD, The Primitive W orld and its Trans- dos, enquanto dele não abusa. Imprevisível, todavia, o comportamento·
I formations, CorneU University Press, N. Y., 1953; Penguin Books, da gang, muitas vez'es: como numa multidão, é o resultado, então,
I 1968, págs. 32-35). da própria ação coletiva (Traduzido de FRÉDÉRIC THRAsHER, The
Gang, Chicago, University of Chicago Press, 1968 [1.' ed., 1927].
pags. 202-205). .

I A GANG
I
O SUICíDIO ANõMICO
FRÉDÉRIC THRASHER

EMILE DURKHEIM

A gang é um grupo primário. O código que lhe rege o funciona- Os homens não consentiriam em limitar seus desejos, se se acredi-
mento 'pode variar segundo as condições sociais exteriores ou as. tassem com base para ultrapassar o limite que lhes é designado.
experiências já vividas: ele é sempre, apesar de tudo, o reflexo das Unicamente, esta lei de justiça, eles não saberiam impô-Ia a si mes-
virtudes da gang como grupo primário. Por esse motivo, realça, não mos, pelas razões que apresentamos. Devem portanto recebê-la de
os desejos dos indivíduos, mas, antes, os do próprio grupo. A leal- uma autoridade que respeitem e diante da qual espontaneamente se
dade é essencial em todas as gangs e a denúncia constitui, por con- inclinem. Só a sociedade, seja diretamente e no seu conjunto, seja
seguinte, o pior atentado contra o código. Em certos grupos, se um. por intermédio de um de seus órgãos, está em boas condições para
dos membros for preso, os outros se deixam prender para ir à mesma
desempenhar tal papel moderador. ,Porque ela é o único poder moral
superior ao indivíduo e cuja superioridade ele aceita. Só ela tem a
prisão. Se indivíduos membros de uma mesma gang se baterem
necessária autoridade para proclamar o direito 'e indicar às paixões
entre si, deverão respeitar as regras estabelecidas pelo grupo. A
o ponto além do qual não devem ir. Só ela, também, pode julgar do
fraternidade constitui uma outra virtude da gang como grupo pri-
prêmio que deve ser oferecido em perspectiva a cada ordem de fun-
mário. Revela-se no espírito de sacrifício: se um membro da gang
cionários, o melhor possível para o interesse cQmum ...
estiver em perigo, os outros tudo farão para lhe salvar a vida.
Podem ser consideradas como funcionais as gangs que elaboram
estruturas e códigos para atingir um objetivo particular. (41) W. L Thomas, The U'UJdjusted Girl, pág. 32..

90 91
Unicamente quando a sociedade se vê perturbada, seja por uma ficam' os limites diante dos quais devem estacar. Aliás, nesse mesmo
crise dolorosa, ou por afortunadas, mas demasiado súbitas, transfor- momento, eles se acham nUm estado de eretismo natural. somente
mações, é que ela fica provisoriamente incapaz de exercer seme- porque a vitalidade geral é mais intensa.· Por isso que a prosperi-
lhante ação. E aí está donde vêm as bruscas ascensões da curva dos dade ôe expandiu, os desejos ficam exaltados. Amais rica presa que
suicídios ... lhes é oferecida estimula-os, torpa-os mais exigentes, mais impaci~
,
Com efeito, nos casos de desastres econômicos, produz-se uma entes Com -toda e qualquer regra, quando justamente as regras tra-
como desclassificação, que lança bruscamente certos im:livíduos- em dicionais perderam algo de sua autoridade. O estado de desregra-
situação inferior à que até então ocupavam. É necessário, portanto~ mento Ou de anomia ·é, pois, reforçado, ainda, p(}r este fato de que
<Iue eles diminuam suas exigências, que restrin jaro suas necessida- a~ ,paixões são menos disciplinadas no exato 'momento em que
des, ql1e aprendam a conter-se mais. No que lhes diz respeito, todos teriam necessidade de mais forte disciplina.
os frutos da ação social estão perdidos; sua educação moral deve Mas então suas próprias exigências tornam impossível o satis-
ser refeita. Ora, não é num instante que a sociedade consegue sub- fazê-Ias. As ambições superexcitadas vão sempre além dos resultados
metê-los a essa nova vida e ensiná-los a exercer sobre si mesmos obtidos, quaisquer que eles sejam; porque elas não são advertidas de
aquele acréscimo de contenção a que não se acham acostumados. qúênão devem ir mais longe. Nada, pois, as contenta, e toda esta : f
Resulta daí que não estão ajustados à condição que lhes coube e que agitação 'é alimentada perpetuamente por si própria, sem rematar
a própria perspectiva dessa condição lhes é intolerável. Daí, sofri- em nenhum apaziguamento. Sobretudo, com esta corrida para um
mentos que os subtraem a uma existência diminuída, antes mesmo proveito fácil de apanhar não- pode proporcionar outro prazer além
que a tenham experimentado. do da própria corrida, se se trata, todavia, de um, acontecendo que
Mas não acontece de outro modo quando a crise tem por ori- ela- venha a ser entràvada, fica-se com as mãos inteiramente vazias.
gem um brusco acréscimo de pt>derio e de fortuna. Então, efetiva- Or~ dá-se o caso em que ao mesmo tempo a luta se torna mais
mente, como as condições da vida ficam mudadas, a escala segundo violenta e mais dolorósa: ao mesmo tempo, porque é menos regulada
a qual Se regulavam as necessidades não pode mais permanecer a e as competições são mais ardentes. Todas as classes lutam, porque
mesma, porque varia com os recursos sociais, já que determina, em já não há mais classificação estabelecida. O esforço é, portanto, mais
grosso, a parte que deve caber a cada categoria de produtores. Sua çqnsiderável, no momento em que se torna mais improdutivo. Como,
graduação fica transtornada, mas, por outro lado, uma nova gra- em tais condições, a wntade de viver, não, haveria de ver-se.
duação não poderia ser improvisada. É preciso tempo para que enfraquecida?
homens e coisas sejam novamente classificados pela consciência .Essa explicação é confirmada pela singular imunidade de que
pública. Enquanto as forças sociais, postas assim em liberdade, não gozam os países pobres. Se a pobreza protege contra O suicídio, é
reencontram o equilíbrio, seu respectivo valor continua indetermi- porque constitui', por si mesma, um' freio. Faça-se o que se fizer a
nado, e, em conseqüência, toda regulamentação fica, por um tempo, r.espeito, os desej'Os, em certa medida, são obrigados a contar com
faltando. Não se sabe mais o que é possível e o que não O é, O que os· meios; O que se tem serve em parte de ponto de referência para
~ justo e o que é injusto, quais são as reivindicações e as esperan- determinar. o que se gostaria de ter. Por conseguinte, quanto menos
ças legítimas, quais as que vão além da medida. Por conseguinte, se possui tanto menos se é levado a estender sem limites o círculo das
nada há que não se pretenda. Por pouco profundo que seja este próprias necessidades. A falta de poder, atendo-nos à moderação.
abalo, atinge até mesmo os princípios que presidem à distribuição habitua-nos a ela, além do que, onde a mediocridade é geral, nada
dos cidadãos entre os diferentes empregos. Porque, como as rela- acirra inveja. A riqueza, ao contrário, pelos poderes que confere,
ções entre as diversas partes da sociedade são necessariamente dátnos a ilusão de que não dependemos senão de nós mesmos. Dimi-·
modificadas, as idéias que as exprimem não podem mais continuar nuindo·a resistência que as coisas nos opõem, induz-nos a crer que
sendo as mesmas. Determinada classe, que a crise mais especialmente elas podem ser vencidas indefinidamente. Ora, quanto menos a gente
favoreceu, já não está disposta à mesma resignação, e, por conse~ se :sente limitada, tanto mais qualquer limitação parece insuportável..~
qüência, o espetáculo de Sua fortuna maior desperta, em torno e Se, 'como nos casos precedentes, a anomia nunca se produzisse
abaixo dela, toda espécie de cobiças. Assim, os apetites, não sendo senão por acessos intermitentes e sob a forma de crises agudas,
mais contidos por uma opinião desorientada, já não sabem onde poderia. fazer que, de tempos em tempos, variasse a taxa social de

92 93

8 -T.S.
I,,

1
'f.-,.
suicídios; ela não representaria um fator regular e constante deIes~ do· outro. Podemos trazer para a sociedade tudo o que há de social
Mas existe uma esfera da vida social em que, atualmente, se apre- em nós e não saber limitar os nossos desejos; sem sermos egoístas,
senta em estado crônico: é o mundo do com6rcio e da indústria ... podemos viver em estado de anomia, e inversamente. Por isso, não
As pro~issões industriais e comerciais estão, com efeito, entr~ é nos mesmos meios sociais que as duas espécies de suicídios recru-
as profissões que mais contribuem para o suicídio. Estão quase no tam sua principal clientela; uma tem preferência pelas carreiras
nível das carreiras liberais; às vezes, mesmo, o superam. São, sobre- intelectuais, pelo mundo onde se pensa; a outra, pelo mundo indus-
tudo, sensivelmente mais atingidas do que as profissões agrícolas. trial ou comercial (Excerto de EMILE DURKHEIM, Le suicUJ.e, Paris,
Isto porque a indústria agrícola é a em que os antigos poderes regu-
ladores ainda melhor fazem sentir a sua influência e a em que a
P. U. F., 1960 [1.a ed., 1897] págs. 275, 280-283, 287-288).
i
febre dos negócios menos penetrou. É ela que lembra melhor o que
era antigamente a constituição geral da ordem econômica. A distân-
cia seria ainda mais marcante, se, entre os suicidas da indústria, A COMPLICAÇÃO DA VIDA I
cOnsiderássemos os chefes dos operários, porque são estes, prova-
velmente, os primeiros mais atingidos pelo estado de anomia. A enor-
me taxa da população que vive de rendimentos (720 por
SOCIAL E O SUICíDIO

MAURICE HALBWACHS
L
milhão) mostra bem que são os mais afortunados os que mais
sofrem. É que tudo o que obriga à subordinação atenua os efeitos
desse estado. As classes inferiores têm no mínimo seu horizonte limi-
Cada tipo de civilização, cada gênero de vida não compreende
tado pelas que 'lhes são superpostas, e, por isso mesmo, os seus
somente maneiras habituais de agir, regras e como uma disciplina
desejos são mais definidos. 'Mas aqueles que não têm mais do que
social. Comporta 'ambém acidentes, irregularidades e todas aquelas
o vàzio acima de si mesmos são quase forçados a aí se perderem,
circunstâncias particulares imprevisíveis em que Durkheim não via
se não houver f orça que os retenha para trás.
senão motivos ou pretextos de suicídio e que, por essa razão, negli·
A anomia é, portanto, em nossas sociedades modernas, um fator géncÍava.· Todavia, embora tais acidentes se manifestem sob a forma
regular e específico de suicídios. É uma das fontes alimentadoras de 'situações ou circunstâncias individuais, nem por isso resultam
do contingente anual. Estamos, por conseguinte, em presença de um menos da estrutura do corpo social. O indivíduo depende da socie-
novo tipo, que deve ser distinguido dos outros. Difere deles naquilo· dade tanto quando obedece ou não obedece a determinadas regras
em que depende, não da maneira como os indivíduos estão presos religiosas e familiares como quando fica mais ou menos exposto à
à sociedade, mas da forma como ela os disciplina. O suicídio egoísta ruína, à desclassificação e às dores e contrariedades que resultam
vem de que os homens não acham na vida mais razão de ser; o de seus con.tactos com os homens; contactos que não são, sem dúvida,
suicídio altruísta, de que essa razão lhes parece estar fora da própria tão numerosos, nos diversos ambientes de vida coletiva. Por con-
vida; e a terceira espécie de suicídio, cuja, existência acabamos de seguinte, cabe considerar como causas de suicídio, ao mesmo tempo
constatar, vem de que a sua atividade está transtornada e eles sofrem e ao mesmo título que o estiolamento dos costumes tradicionais, toda..,
COm isso. Em razão de sua origem, daremos a esta última espécie essas ocasiões de choques, de conflitos e de decepções que se multi~
o nome de suicídio anômico. plicam, sem dúvida, à medida que a complexidade da vida social
Seguramente, não deixa de haver relações de parentesco entre
o suicídio anômico e o egoísta. Um e outro vêm de que a sociedade
aumenta de ponto. Tomados à parte, cada um dos acidentes pode
parecer individual e mesmo único no seu gênero. Mas todos, mesmo 1
não se acha suficientemente presente para oS indivíduos. Mas a esfe- os chamados Íntimos pesares, mesmo as perturbações mórbidas da
ra donde ela se acha ausente não é a mesma nos dois casos. No s.ensibilidade e ·as crises de depressão dos psicastênicos não aparecem
suicídio egoísta, é à atividade propriamente coletiva que ela falta, com tal grau de freqüência senão em razão da natureza ou da cons-
deixando-a, assim, desprovida de objetivo e de significação. No tituição do grupo no interior do qual são observados. Tomados em.
suicídio anômico, é às paixões propriamente individuais que ela falta, conjunto, são, pois, fatos sociais.
deixando-as; assim, sem freio que·, as governe. Daí resulta que, ape- Ota, consignamos todos esses acidentes e seu grau de freqüên 4
'

~~r de suas relações, estes d9is tipos permanecem independentes um cia; estão incluídos nos gêneros de vida que distinguimos, fazem

94 95
I,
parte deles. Um tipo de civilização é um arranjo determinado da atender às suas necessidades. Cada qual se preocupa mais consigo
1:11 "
vida social que compreende, de um lado, gr;tndes funções gerais rela- mesmo. Sim, mas, ao mesmo tempo, esta soma de atividade posta
tivamente simples, leis e costumes, e, de outro lado, todo um con- em disponibilidade bruscamente emprega-se de outra maneira, num I'
junto de reações e acidentes locais em conexão com essas funções domínio que não o da produção ou o do consumo das riquezas. Na ";i11'l
e COm a estrutura geral do organismo coletivo. Quando a gente não esfera econômica, é a acalmia, a lentidão, a estagnação. Mas os indi-
dá atenção senão à família ou à religião, atém-se às funçõe~ víduos, arrastados até esse momento pela corrente da vida econô:..
gerais, que explicam" sem dúvida, parcialmente, a freqüência dos mica, encontram-se, de novo, agora, um em face de outro. E todas
suicídios, mas só parcialmente. É preciso também levar em conta as espécies de relações novas nascem entre eles, as quais não tinham
essas reações e acidentes particulares, que manifestam, de outra tempo de formar e nas quais não pensavam, quando estavam intei-
maneira, mas pão menos enérgica, nem menos eficaz, as tendências e ramente ocupados em produzir e em gastar. Assim se multiplicam
o estado do meio. Isso não é possível. e não se consegue eliminar as ocasiões de aborrecimento, de humilhação, de decepção e de so-
nenhum desses aspectos da realidade coletiva, a não ser apegando-se, frime1i.to por causa dos outros. É portanto muito natural que, neS5e:i
ao invés de isolar um fator, a uma forma de vida, que é abarcada períodos, um maior número de pessoas procure a morte.
em sua complexidade. Nada prova melhor, aliás, que o social não se confunde com
Que a freqüência dos suicídios esteja em relação com a com- uma soma de relações de indivíduos a indivíduos, ou, como dizia
plicação mais ou menos grande da vida social, que multiplica ou torna Tarde, áe relações interindividuais, uma vez que a diminuição da
menos numerosas as razões particulares que podemos ter para ma· atividade coletiva tem por contrapartida um aumento das relações
tar-nos, é coisa que ajudaria a compreender por que acontecimentos ou contactos entre indivíduos, e inversamente. Tudo se passa como
COmo as guerras e as revoluções políticas, de um lado, e as crises numa multidão em marcha para um lugar de reunião. Ela trans-
de depressão econômica, de outro lado, se refletem tão exatamente borda de força e de exuberância. Todos os seus membros não pen-
na curva das mortes voluntárias. Certamente, se em período de II
sam senão na distração que os aguarda, na atividade que vão des-
guerra ou de revolução os suicídios diminuem, pode-se explicá-lo por pender. Que um obstáculo lhes barre o caminho, que um contra-
uma exaltação cbletiva. Os homens pensam menos em si mesmos e tempo os obrigue a voltar atrás, e o sentimento comum que os
se deixam arrebatar por interesses que os transcendem. Mas, conce- animava se desvanece. Cada indivíduo percebe somente indivíduos
dendo margem,· ampla margem a este genero de influência, é preciso
diferentes de si, que ° pressionam e incomodam, e é sobretudo sen-
também observar que em tais circunstâncias a vida se simplifica.
sível ao que o separa e afasta deles. Do mesmo modo, no momento
Grande parte do esforço nacional se consumindo sob formas que por
si mesmas não determinam muitos entrechoques individuais, dele em que não mais se acham presos a uma corrente de pensamento
sobra menos para o exercício desse gênero de atividade diária, que Ou de ação coletiva, os homens se vêem defronte de outros homens
entretém a vida econômica, ou que é para os homens ocasião de pôr como ot!tros tantos egoísmos defronte de outros egoísmos. É então
em confronto seus méritos e suas categorias. Uma parte dos mem- que eles têm mais ocasiões de entrar em choque e que os mais
bros do grupo está separada da outra, quer materialmente, quer mo- fracos ou os menos afortunados sucumbem.
ralmente. O pensamento de cada homem se desvia não somente de A sociedade, à medida que evolve e se complica, congrega e apro-

~
si mesmo, mas dos outros' indivíduos com quem ele está ordinaria- xima no espaço um maior número de homens e multiplica entre
mente em relilções de ínteresse ou de sentimento. Que há de sur- eles os contatos. Aí está então uma espécie de matéria, a que se
preendente no fato de diminuírem os suicídios, achando-se reduzi- junta uma forma, o que vale dizer que entre esses homens costumes
das as ocasiões de contrariedade individual? e crenças tendem a estabelecer uma comunidade de vida coletiva. ,
Mas observa-Se um fenômeno inverso, quando se passa de um Suponhamos agora que a sociedade se retire temporariamente de uma
tempo de prosperidade econômica para um período de depressão. parte desse edifício. Que um certo número de tais homens não mais
Certamente, pode-se dizer que uma crise econômica determina na obedeça à ação das forças sociais. Eles têm também menos vigor
sociedade um estado de desorganização e de desequilíbrio. A baixa para resistir ao impulso que os impele ao suicídio. Contudo, perma-
dos preços é sinal de que os consumidores se esquivam dos produto- necem aproximados e em contacto. É por isso qtte ficam muito mais
res e dos comerciantes. O desemprego deixa desocupados e na ne- expostos a riscos, a conflitos e a choques do que se tivessem vivido
cessidade muitos trabalhadore.s. Os homens são menos capazes de sempre dispersos. A sociedade, que os priva do seu apoio, mantém-

$16 97
nos, contudo, numa situação em que as probabilidades de danos e ção. No caso de que se trata, o indivíduo não deseja trocar a"
de tormentos de toda sorte se multiplicam. Eles portanto terão mais Hcaixa" que ocupa no sistema social. Não busca progredir e não se'
ocasiões de pensar no suicídio (Excerto de MAURICE HALBWACHS, arreceia de ficar atrás na corrida para o bom êxito. A situação é
Les causes du suicide, Paris, F. Alcan, 1930, págs. 493-497). muito diferente numa sociedade móvel, porque seus membros nã:)
têm, absolutamente, nem de um ponto de vista social, nem de um
ponto de vista psicológico, aquele sentimento de "predestinação"~ Não
estão satisfeitos com as funções que desempenham e esforçam-se no
MOBILIDADE E ORDEM· SOCIAL. sentida de rivalizar, vitoriosamente, uns com outros. Cada qual quer"
subir 05 degraus mais depressa que o outro, sem levar em conta a
desordem social que disso pode decorrer. Assim se instala, nesta so-
PITIRIM SOROKIN ciedade móvel, uma luta permanente entre os indivíduos, os grupos e
as facçõ~s, lu ta que se torna particularmente perigosa em período
de recessão econômica ou de crise social (Traduzido de PITIRIM"
SoROKIN, Social .and Cultural Mobility, Glencoe, Free Press, 1959
A mobilidade influencia, de maneira muito complexa, a ordem [1 a ed., 1927] págs. 533-535).
social e a estabilidade. De um lado, seus efeitos sobre a estabilidade
social são bastante positivos. Assim, uma boa distribuição social dos
indivíduos favorece a estabilidade. Estando satisfeitos com as fun-
ções que preenchem, os indivíduos não pensam em revoltar-se contra
a ordem existente. Além do mais, uma boa distribuição das com- O CONTROLE SOCIAL
petências eleva a pràdução, permite satisfazer às necessidades e di-
minui, assim, os riscos de desordens sociais. Pode-se também obser-
var que uma' forte mobilidade torna possível a ascensão dos líderes GEORGES GURVITCH
e das pessoa ambiCiosas: aO invés de virem a ser chefes de revolu-
ção, transformam-se em protetores da ordem social. Como ficam
a dever o bom êxito que alcançaram à sua própria capacidade, o estudo do "controle social", concebido como ramo particular'
estão seguros de seus direitos. Sem nenhuma placabilidade, estão da sociologia, é bem característico da orientação dessa ciência no
prontos a se defender e a sustentar a ordem vigente. Se necessário, século XX. Contudo, os postulados tradicionais da sociologia do
não hesitariam, por exemplo, em utilizar a força. Além disso, a século precedente influenciara~ em demasia, ,desdito;amente, a'- maio-'
ausência de privilégios hereditários faz desaparecer um certo número ria das definições e das análises relacionadas com o controle social
de móveis de descontentamentos: as pessoas que não triunfam não que tentamos resumir na primeira seção do presente trabalho. Em
podem queixar-se senão de si mesmas. A mobilidade, de certo modo, todo.o caso, esta influência ainda se faz sentir além da medida. Aí"
é capaz de fazer diminuir o ciúme e o ódio entre os grupos sociais. reside, assim o acreditamos, a principal causa das dificuldades e das
Pode-se enfim acrescentar que um homem que foi ao mesmo tempo confusões. A sociologia do século XIX tinba tendência para identifi-
operário e milionário não se sentirá estranho a cada um desses gru- car essa ciência com uma filosofia da história ou com uma teoria
pos sociais. A mobilidade social parece, assim, favorecer a ordem da evolução; para opor ou conciliar a "ordem" e () "progresso";
social. para acentuar os conflitos entre "sociedade" e "indivíduo", a fim
É possível, sem embargo, encontrar outros argumentos que C011- de defender um ou outro; para ignorar a estrutura pluralista fun-
duzam a uma conclusão muito diferente. A mobilidade aumenta a damental de toda sociedade global e para falar da "Sociedade" com
desmoralização e põe em perigo hábitos ordinariamente necessários. S maiúsculo, como se fosse possível caracterizar um tipo de socie-
É também suscetível de romper o caráter íntimo dos liames sociais. dade global sem levar em consideração as variações na hierarquia
Possível" ainda notar que a rigidez de uma sociedade imóvel consti- de seus grupos particulares; finalmente, para ver nos valores, nas
tui fator de estabilidade social: sendo a posição dos indivíduos de- idéias, nos ideais coletivos e em suas expressões simbólicas, quer
terminada desde antes do nascimento, aceitam eles essa ptedestina- simples produtos da. realidade social, quer, pelo contrário, produtore,

98 99
independentes e, às vezes, transcendentes dessa realidade. Todas as compreendidas as classes sociaiS; concorrência entre os símbolos, os'
oposições de que falamos demasiado, simples e factícias, que foram valores e as idéias; competição entre os seus diferentes graus de
ultrapassadas uma após outra e abandonadas durante o desenvolv;- efervescência e de cristalização etc.), assim como é cheia de equi-·
mento da sociologia do século XX, reaparecem, explícita ou dissi- líbrio.s variáveis e instáveis de vária espécie. Podemos observar exa-
muladamente, nas discussões alusivas ao "contrato social" e até nas tamente a mesma situação nessa zona da realidade social que de-
mais fecundas e aprofundadas análi~es, tais como' as de Cooley e nominamos 'lcontrole social".
de Durkheim, de Park, de Burgess e de Ellwood, de Dowd e de ,A terceira' condição de uma análise científica dó controle social
Landis. Não tentaremos dar aqui uma análise' crítica de cada de- é de se dar conta de que este não se acha especialmente vinculado
finição, interpretação e teoria particulares. Limitar-nos-emos a um aos 'pretensos conflitos entre "a sociedade" e "os indivíduos".
resumo sucinto das principais dificuldades que oferecem. O controle social não se reduz nem às medidas para impor' de'
O desenvolvimento das pesquisas e das análises relativas ao con- fora "a ordem social" a "indivíduos isolados", nem a um mecanis-
trole social torna manifesta a consciência crescente do imenso papel mo parÕ. integrar esses indivíduos, unindo-os numa sociedade; nem,.
que desempenham na estrutura da realidade social os modelos cul- finalmente, a uma regulamentação e a uma criação da sociedade
turais, as regras, os símbolos, os valores, as idéias e os ideais' co- exclusivamente por si mesma. É mister confrontar a sociedade e os
letivos. Este papel deve ser descrito muito imparcial e muito obje- indivíduos segundo as mesmas capas ou camadas de profundidade.
tivamente; e o lugar que o controle social ocupa entre as diferentes porque a vida coletiva, assim como a vida individual, afirmam-se
capas de profundidade da realidade social, definido sem equívocos. sobre diversos níveis. É mister comparar, por exemplo, manifesta-
A primeira condição da objetividade do presente estudo é o aban- ções individuais no munda exterior com manifestações coletivas do
dono do postulado gratuito segundo o qual o "controle social" re- mesmo gênero, hábitos individuais com costumes coletivos, pressões
sultaria do "progresso" ou da "evolução" da sociedade, como se que se uesenrolam no interior dos indivíduos com pressões que se
ele não existisse ou estivesse "desprovido de elementos morais" nas desenrolam no seio dos grupos e das sociedades; aspirações pes-
sociedades arcaicas. Com efeito, é impossível encontrar ou imagi- soais com aspirações coletivas etc. Oposições e conflitos, pressões
nar uma sociedade huntana em que não tivesse existido controle e revoltas se produzem entre as diferentes capas de profundidade
social. A moral "mágica" e a moral "religiosa" não representam da reaiidade social, assim como entre as diferentes camadas "nÜ'
menos do que a moral "racional" e laica de hoje importantes co- interior" dos indivíduos. Tomamos com muita freqüência antino-
lunas do controle social pouco evoluído. Evidentemente, a hierar- mias que se afirmam entre diferentes graus de profundidade, que
quia das espécies e a intensidade do controle 'Social mudam com são, em realidade, paralelos, inteiramente, no indivíduo e na socie-
cada tipo de sociedade global, com cada conjuntura social concreta dade, por conflitos entre estes dois últimos... Por outro lado, o
e com cada forma particular de agrupamentos. "eu", o H outro" e o "nós" não representam senão três pólos na'
A segunda condição do caráter científico deste estudo é desem· unidade indissolúvel da vida mental consciente. Designa·se a dire-
baraçar o problema do controle social de qualquer ligação com a ção para o "eu" como a consciência individual, a direção para a
antinomia entre a "ordem" e o "progresso", estando um conceito"e comunicação entre o "eu" e os "outros", por intermédio dos signo'5.
outro fundados numa confusão de julgamentos de valor e de julga- e dos símbolos como" processo intermentaI", e a direção para o "nós" .
mentos de realidade. O controle social não é nem um "sustentáculo __ fundamento desses signos 'e símbolos - como a "mentalidade so-
H

da ordem", nem um instrumento do "progresso", porque "ordem" f cial" ou a "consciência coletiva". Entretanto, entre o "nós", o "eu '

"progresso" não são senão miragens, ídolos ou ideologias prove- . e H o outro" afirmam-se constantemente reciprocidades e tensões, que'
nientes das ilusões coletivas, ao passo que o controle social é uma constituem a vida psíquicae a consciência propriamente ditas. (42) O
realidade indiscutível e verificável. O que parece ser "o'rdem" de controle social está seguramente ligado a situações de tensão, de con-
um ponto de vista aparece, de outro ponto de vista, como "desor-
dem", e modificações dos pontos de vista se produzem sem cessar' (42) Cf. Georges Gurvitch, Essais de Sociologie (Paris, 1938), págs. 1-169;
na mesma sociedade e nos mesmos grupos integrados nela. A rea-' Mass, Community, Communion, Journal of Philosophy, 38, 485-495, 1941: .. I s.,
lidade social é cheia de tensões de diferentes espécies (superstrutu· the Antithesis of Moral Man and Immoral Society True?", op. cit.) assim como:
ras organi~adas infra-estruturas inorganizadas; lutas entre grupos, a bibliografia citada nesse estudo.

100 101
flitos e de revoltas que caracterizam a vida social, assim como a controle está ligada à diferenciação de diversos gêneros de modelos
vida irrdividuaI. Dada a '-'reciprocidade de perspectivas" entre uma culturais, de símbolos, de idéias e de valores, ao passo que a classi-
e Dutra, essas situações se caracterizam por uma luta permanente ficação dos centros ou agências de controle se liga à variedade das
entre diferentes capas de profundidade, grupos. (inclusive classes), formas de sociabilidade, dos grupos e das sociedades globais. Todo
modelos, regras, valores, idéias e ideais e de forma alguma por· centro ou agência pode em princípio servir de centro ativo para
antinomias efetivas entre a sociedade e os indivíduos. realizar as mais diferentes espécies de controles sociais. Sua com-
binação particular num sistema ou num todo de controle, corres-
I A quarta condição para .uma pesquisa científica relativamente ao pondente a uma unidade social específica e aPlicada por ela, é que
I, controle social é de se dar conta do fato de que cada tipo de so- constitui o principal inf.eresse sociológico do problema do controle
I ciedade· global é um microcosmo de grupos e cada grupo particular,
social.
um microcosmo de forma~ de sociabilidade. Semelhantes microcosmos
scciais estão dispostos de diferentes maneiras, segundo os tipos de A quinta condição para uma análise científica do referido controle
sociedades e de grupos e segundo as conjunturas históricas e so-
ciais concretas. O "controle social" é um problema que se esta-O
consiste em precisar a situação e o papel dos valores, das, idéias e dos
ideais e de suas expressões simbólicas, na realidade social, e, bem'
I
belece não somente em relação aoS diferentes tipos de sociedades
globais, mas também em relação a cada grupo particular e, mesmo,"
em muitos casos, em relação às "formas de sociabilidade", cujas va-
assim, seu emprego, como critérios de diferenciação das espécies de
controle. Deve-se eliminar tanto o ponto de vista idealista (a que
Max \~Teber, de maneira racionalista, e C. H. Cooley, de maneira
L
riadas combinações constituem os agrupamentos. Há portanto um plu. vitalista, permaneceram, em suma, fiéis) como o ponto de vista po-
ralismo inextricável de centros (de agências, de órgãos), na medida sitivista (a que se inclina ainda grande número de autores que estu-
em que se compreendem por Ucentro" ou "agência" formas de so- daram os problemas ora enfocados). Os valores culturais, as idéias
ciabilidade, grupos e sociedades globais. Cada uma dessas manifes· e' os ideais não são nem simples produtos da realidade social, nem
tações da realidade social necessita e aplica um conjunto hierárquico essências transcendentes capazes de produzir essa realidade, ou, pelo
variado das espécies de controle e constitui um centro ativo de sua menos, de nela manifestar-se. Eles sustentam oom a vida social 'Um
realização. Não somente, por exemplo, as sociedades arcaicas, patriar·· relncionamento funcional, recíproco e bilateral, porque são particula-
cais, feudais, burguesas, capitalistas, socialistas etc. possuem dife- rizados e singularizados em relação a épocas históricas, a tipos sociais
rentes si!)temas de controle social, mas também grupos como a famí- e a estruturas sociais concretas, somente os quais permitem apreen-
lia, a Igreja, o Estado, os sindicatos, as escolas, os clubes etc. dis- dê-los, experimentá-los e pô-los à prova. E, na proporção ,em que
põem de sistemas distintos de controle. Igualmente, formas de socia- isso se faz, modificam eles, ao mesmo tempo, a realidade social,
bilidade, como a massa, a comunidade, a congregação, necessitam dos sendo pelo menos parcialmente criados por ela. A riqueza inesgotá~
diferentes sistemas. Importa a isso acrescentar que o caráter dos vel, móvel e variada do infinito conjunto dos valores, das idéias e
grupos se modifica, não somente segundo seus tipos, mas também dos ideais nunca é e nunca pode ser simultaneamente acessível. A
segundo sua integração em conjunturas sociais particulares, o que vida social, com seus diferentes tipos de liames, de grupos e de
acresce consideravelmente as variações dos correspondentes sistemas sociedades, graças a suas variações e .glultiplicidade, torna acessÍ-
de controle (por exemplo, a família, o Estado, a Igrej a, os grupos veis setores limitados e diferenciados desse conj unto infinito, e a li-
econômicos etc. e seus sistemas correspondentes variam considera- . mitação sociológica de seu campo de visão e de ação dá-lhes pre-
velmente, de acordo com os tipos de sQciedades globais em que se cisamente a possibilidade de se afirmar. Ultrapassando, assim, a errô-
acham integrados). É preciso, portanto, extrema prudência, no que nea oposição entre relativismo e absolutismo (esta posição pode ser
COncerne às generalizações relacionadas com o controle social e com designada como Hrelacionismo funcional"), é-nos possível fundar o
as tendências- de seu desenvolvimento. Diferentes sistemas ,ordena- controle social e a diferenciação de suas espécies sobre critérios
dos a esse fim subsistem sempre na mesma sociedade e podem ten- c1aros sem separar as espécies da realidade social de que fazem par-
J
der a evoluir em direções diversas, senão opostas. te e sem dissolvê-las, simplesmente, nas técnicas e nos meios de con-
Nada criaria, ao mesmo tempo, mais confusão do que a ausência trole. Assim, é-se conduzido, aqui, a evitar 'essa errônea identificação
de uma distinção nítida entre as esPécies de controle e os centros das espécies de controle e de seus meios de realização. Com efeito,
de controle (órgãos ou agências). A classificação em espécies de tais meios podem ser os mesmos para a realização de diferentes

1()2 1'03

L
espécIes de controle (por. 'exemplo, a propaganda) e diferentes para Q que completa o resultado que já havíamos atingido precedente-
a realização de uma única e mesma espécie. ' mente, insistindo na necessidade de diferenciar centros de controle,.
Enfim, somente esta concepção permite descrever exatamente o espécies de controle e meios de controle. Toda espécie de controle pode
papel desempenhado pelos "modelos" e pelos "estereótipos" no 'con- assumir três formas principais: a) modelos simbólico-culturais (inclu-
trole social e nas suas diferentes espécies. A) Os modelos não re- sive regras) j b) valores, idéias e ideais coletivos; c) experiências,
presentam todos um papel direto no controle social (isto é, não são aspirações, criações dos v~lores, das idéias e dos ideais novos.
todos expressões de. uma de suas espécies). Os "modelos técniCos'" Semelhantes formas de controle representam, por assim dizer, três
não desempenham este papel e não podem servir senão como meios capas de profundidade em cada espécie de controle, variando a inten-
ou instrumentos para realizar o controle. Compreendemos por mode- sidade dessas capas segundo as conjunturas sociais, os tipos de so-
los técnicos imagens estereotipadas de comportamento coletivo, cuja ciedades e os difere"tes grupos. Essa distinção afigura-se-nos mais
validade só é baseada na repetição e na rotina. Os principais exem- útil, não somente do que os contrastes entre as formas "premedita-
plos são os modelos e as práticas que regem a existência quotidiana das" e unão premeditadas" do controle social. mas também do que
e a atividade econômica. Por exemplo, a maneira de preparar certos os entre as formas "conscientes" e "inconscientes", "formais" e "não
pratos, de modelar certos instrumentos e de utilizá-los etc. O maior formais", "explícitas" e H implícitas ", "institucionalizadas", "repres- • 1·
número dos "meios de controle social" enumerados por F. E. Lum- sivas" e "socializantes". Tais oposições estabelecem separações rígi-
ley e L. L. Bernard pertence a esta categoria. Não existe nenhuma das e artificiais onde na realidade não existem senão graus dife-
passagem necessária e contínua dos modelos técnicos para os mo- rentes de intensidade e transições contínuas. A única distinção a
delos culturais simbólicos, que são ligados a valores culturais, a idéias fixar, al~m das três formas por nós descritas, é a das formas orga-
Ie a ideais coletivos que eles simbolizam, por intermédio_ das exprçs- nizadas e espontâneas do controle social, assim como a das fonuas
sões sensíveis. Este último gênero de modelos pressupõe a ação, na autoritárias e democráticas; distinção decorrente, quando bem com-
vida coletiva, de significações, de valores, de idéias e de ideais a preendida, da primeira (Excerto de GEORGES GURVITCH, "Le con-
que os símbolos sociais servem de intermediários adaptados a situac, trôle social" em G. Gurvitch e W. Moore, La sociologie ou XX,
ções sociais concretas. (43) Representam importante papel na religiãQ,. si'cle, Paris, P. U. F., 1947, t. 1, págs. 290-296).
na moral} no dire.ito na arte} no conhecimento, na educação, que :çon-
J

sideramús como as principais espécies de controle social e aos quais.,


pedem os modelos culturais servir de expressões diretas. B) Os ya,
lares culturais, as idéias e os ideais coletivos e, mesmo, os símbolos
sociais não devem ser, necessariamente, estandardizados, estereoti-
pados, cristalizados em modelos, a fim de preencherem sua função de
controles sociais. Sua ação imediata, particularizada, individualizada
e espontânea pode ser incomparavelmente mais eficaz, e a validade
dos modelos simbólico-culturais, como formas de controle social, de-
pende da intensidade da sua conexão COm os valores, as idéias 'e os
ideais. C) Os atos coletivos pelos quais são experimentados, apreen-
didos, ambicionados ou criados novos valores e novas idéias vão além',
em eficácia, de todas as outras formas de controle social e não devem,
portanto) ser negligenciados.
Assim, nossa análise crítica nos conduz à conclusão de que é ne-
cessário distinguir entre formas de controle e espécies de contYC!le,

(43) Para a distinção entre estas duas espécies de modelos, ver minhas defi-
nições em H: P. Fairchild, ed., Dictionary of Sociology (Nova York, Philoso-
phical Library, 1944), pág. 216, e meu livro Sociology of Law (Nova 'York,
Philosophical Library, 1942), págs. 21-50.

104 105

'ti
gua alemã, inas, até aqui, a terminologia erudita os utiliza i:ndife-
rentemente, confundindo-os à vontade. Importa, portanto, que algtt·
mas observações preliminares estabeleçam a oposição como um dado.
Tudo que é confiante, íntimo, vivendo 'exclusivamente junto, é
CAPÍTULO IV
compreendido como a vida em comunidade (assim o acreditamos).
A sociadade é o que é público; é o mundo. Encontramo-nos. ao
AS TIPOLOGIAS CLÁSSICAS contrário, em comunidade com os nossos desde o nascimento, a
eles ligados no bem como no mal. Entra-se na sociedade como em
terra estranha.
O adolescente é posto em guarda contra a má sociedade, mas a
expressão "má comunidade" soa como uma contradição. Os juris-
tas falam, é verdade, de sociedade doméstica, mas é que 'eles, no
COMUNIDADE E SOCIEDADE
caso, não guardam senão o conceito social da relação. Ao contrário,
a comunidade doméstica, com suas infinitas ações sobre a alma hu- .- l'

FERDINAND TÕNNIES mana, e sentida por todos que dela fazem parte. É assim que os
noivos sabem que entram nO casamento como numa plena comuni-
dade de vida (communio·totius vitae). Sociedade de vida é uma ex-
pressão contraditória nos termos. Faz-se companhia. Ninguém pode
Tema fazer comunidade a um outro.
É-se admitido na comunidade religiosa; as sockdades religiosas
Relações entre as vontades humanas existem unicamente, como as outras associações, tendo em vista um
Comunidade e Sociedade na linguagem fim qualquer para o Estado, e este fim, em teoria, acha-se fora
delas. Existe uma comunidade de lingua, de costumes, de fé, mas
uma sociedade do trabalho, da viagem, das ciências. As sociedades
comerciais' são, sob este ponto de vista, particularmente significativas.
As vontades humanas se acham em múltiplas relações entre si. Cad,
Mesmo que devessem existir confiança e comunidade entre os mem,,:,
relação representa uma ação recíproca, que, enquanto ~xercida de um bnis. não se poderia, contudo, falar de uma comunidade de comer- .
lado, é suportada ou recebida de outro. As ações apresentam-se ue cio. Associar as palavras comunidade de ação seria intolerável. Entre-,
tal modo que tendem, ou à conservação, ou à destruição da von- tanto, existe a comunidade de propriedade: campos, matas, pasta:"
tade ou do ser opostos: são positivas ou negativas. gens. A comunidade de bens entre os esposos não se chamará so- I

Essa teoria e os objetivos de sua pesquisa não dirão respeito se- ciedade de bens. É assim que se estabelece grande número de dis-
não às rdações reciprocamente positivas. Cada relação positiva re- tinções.
presenta uma unidade na pluralidade e uma pluralidade na unidade.

j
Em sentido geral, poder-se-á falar de uma comunidade que englo·
Compõe-se de exigências, de desafogos, de ações que passam e re- be toda. a humanidade, assim como o quer ser a Igreja. Mas, "
passam e que são consideradas como expressões das vontades e de sociedade humana é compreendida como uma pura justaposição de
suas forças. O grupo formado pela relação positiva como ser ou indivíduos independentes unS dos outros. Por outro lado, quando se
objeto, agindo de maneira homogênea, por dentro ou por fora, cha- trata, em sentido científico, da sociedade de um país, pÔr oposição
ma-se uma associação. ao Estado, pode-se aceitar esse termo, que, no caso, só encontrará
A própria relação e, por conseguinte, a associação pode ser com· sua significação relativamente à comunidade do povo.
preendida, quer como uma vida real e orgânica, e é, então, a essên- Comunidade é termo velho, sociedade é termQ novo, corno coisa e
cia da comunidade, quer como uma representação virtual e mecâ- como substantivo. Um autor que estudou, de todos os pontos de
nica, e é, então, o conceito da sociedade. O emprego dos termos esco- vista, as· disciplinas políticas reconheceu isso sem penetrar além. "A·
lhidos demonstrará que eles são fundados num uso análogo da lín- idéia completa de sociedade, em seu sentido social e político" - diz

106 107

L
Bluntschli (StaalS'Worterbuch, IV) - "encontra wn fundamento na- II. - Comunidade de sangue, de lugar, de espírita
tural nos costumes e nas considerações do Terceiro Estado. Na rea- Parentesco, vizinhança, dmizade
lidade, não é um conceito popular, mas, sempre, um conceito do·
Terceiro Estado. A sociedade tornou-se ao mesmo tempo a fonte A comunidade do sangue como unidade da existência tende e se
e a expressão de tendências e de juízos gerais: onde a cultura desenvolve no sentido da comunidade de lugar, que tem a sua ex-
urbana sempre produz flores e frutos, aí também aparece a socie- pressão direta na habitação comum. Esta, por seu turno, se apro-
dade, como órgão indispensável. A região oS conhece muito pouco·". xima da comunidade de espírito pela atividade e pelo governo co-
Em compensação, o que em todos os tempos deu valor à vida no muns numa única direção, no mesmo espírito. A comunidade de
campo é que a comunidade entre os homens é aí mais forte e mais lugar pode ser considerada como o conjunto coerente da vida ani-
viva: a \:omunidacle é a vida comum, verdadeira e duradoura; a mal; a comunidade de espírito, como o conjunto coerente da vida
sociedade é somente passageira e aparente. Pode-se, em certa me-- mental. Esta última é, portanto, em suas relações com as primeiras,
dida, compreender a comunidade como um organismo vivo e a so- a espécie de comunidade mais especificamente humana e mais ele-
ciedade como um agregado mecânico e artificiaL .. vada. De resto, assim como à comunidade do sangue se acham re-
gularmente ligadas uma relação e uma participação comuns, isto é,
posse da própria existência humana, assim também se ligam à comu-
Teoria da Comunidade nidade de lugar, uma relação de solo e de terra e à comunidade
de espírito relações comuns Com lugares consagrados ou divindades
I. - Formas embrionárias reverenciadas. As três espécies de comunidade estão estreitamente
ligadas assim no espaço como no tempo e, por conseguinte, em seu
A teoria da comunidade se deduz, segundo as determinações da desenvolvimento e em cada um de seus fenômenos particulares, como
completa unidade das vontades humanas, de um estado primitivo e em geral na cultura humana e em sua história.
natural, que, apesar de uma separação empírica e conservando-se atra" Em toda parte onde pessoas dependem umas das outras por sua,
vés dela, se caracteriza, diversamente, de acordo com a natureza das vontades orgânicas e se aprovam reciprocamente, há comunidade de
relações necessárias e mantidas entre os diferentes indivíduos de- uma ou de outra espécie, a da primeira maneira implicando a últi-
pendentes uns dos outros. A fonte comum de tais relações é a vim ma, ou esta se havendo formado por via de uma independência
vegetativa, que começa no nascimento. É um fato isto de que as relativa diante da primeira. Podem-se considerar, sucessivamente, estes
vontades humanas estão e pennanecem ligadas, ou o tornam a ser, diversos generos de comunidades através dos seus nomes primitivos e
necessariamente, na medida em que cada qual responde a uma dis- compreensíveis: 1) o parentesco; 2) a vizinhança; 3) a amizade. O
posição corporal resultante de sua origem ou do sexo. Essa asso- parentesco tem a casa COrno lugar e como corpo. Aqui, é a vida
ciação, considerada como uma afirmação imediata e recíproca, apre- comum sob um mesmo teto. A posse e o usufruto comuns dos bens,
senta-se da maneira mais enérgica nas três seguintes espécies de re- especialmente dos alimentos tirados das mesmas provisões e que se
lações: partilham em torno da mesma mesa ...
1) a relação entre mãe e filho; A vizinhança é o caráter geral da vida comum na aldeia, onde a
aproximação das habitações, a linha divisória do campo, até mesmo
2) a relação entre homem e mulher, como esposos, relação que o simples limite das terras determinam os numerosos contactos dos
é preciso compreender num sentido natural ou, comumente, homens; onde, o hábito de conviver e o conhecimento confiante e
animal; mútuo necessitam do trabalho, da ordem e da administração comum,
3) a relação entre irmãos e irmãs, isto é, entre filhos que se dão lugar à imp1oração de favores e de graças junto aos deuses e
reconhecem como descendentes de uma mesma mãe. aos espíritos tutelares da terra e da água, que dispensam bênçãos e
Quando, em cada relação de descendentes de uma mesma origem, conjuram o mal. Condicionada, essencialmente, pelo habitat comum,
o germe, ou a tendência, e a força fundados na vontade podem ,ser pode essa comunidade manter-se, também, afastada, posto que mais
representados por uma comunidade, então aqueles três casos são os dificilmente do que a primeira. Deve ela, então, -procurar mais seu
mais fortes e os mais significativos quanto às possibilidades de de- apoio em hábitos determinados da reunião futura e nos usos sa-
• envolvimento do germe ... grados .

108 109

< :9 - T.S.
A amizade se distingue do parentesco e da vizinhança pela iden- exclusivo relativamente a todos os o1,1tros: não existe, realmente, aqui,
tidade das condições de trabalho e dás maneiras de pensar, como bem comum. Um bem assim pode existir por uma ficção dos indi-
efeito daquelas. Nasce, portanto, de preferência, da similitude das víduos. Esta não é, entretanto, possível, s~não pela construção de um
profissões ou da arte, mas um tal liame deve ser estreitado e ali- indivíduo comum, possuindo uma vontade imaginada, à qual este
mentado por aproximações passageiras e freqüentes, que são as mais valor comum deve referir-se ...
verossímeis, no interior de uma cidade ...

lI. - A sociedade civil. - O homem como comerciante. -


Teoria da Sociedade Concorrência geral. - A sociedade em seu sentido moral

1. - Fundamento negativo. - Igualdade de valor A sociedade, pois, pela convenção e pelo direito natural de um
agregado, é compreendida como uma soma de indivíduos naturais e
De acordo com a teoria da sociedade, esta é um grupo de pessoas artificiais, cujas vontades e domínios se acham em numerosas ass.j"
que, vivendo e morando, como acontece na comunidade, de maneira ciações, e que ,permanecem, sem embargo, independentes uns dos
pacífica, umas ao lado de outras, não se acham organicamente liga· outros e sem ação interior reciproca. Aqui se situa, portanto, a des-
das, mas organicamente separadas. Ao passo que, na comunidade, per· crição geral da "sociedade civil" ou "sociedade de troca", cuja eco-
manecem ligadas, apesar de toda a separação, na sociedade vivem nomia política é aplicada em çonhecer a natureza e as ações, estado
separadas, apesar de toda a ligação. Em conseqüência, não existem, no qual, segundo a expressão de Adam Smith, "cada qual é um
aqui, atividades que pudessem ser derivadas de uma unidade a priori comerciante". Por conseguinte, onde indivíduos propriamente comer-
e de um modo necessário; que, portanto, na medida em que --são ciantes, negócios ou sociedades e companhias se opõem uns aos
produzidas pelo indivíduo, exprimem nele a vontade e o espírito dessa outros no tráfico comercial e finan.ceiro, internacional ou nacional,
unidade; portanto, se realizam pelos que lhe são associados, como a natureza da sociedade se apresenta como num extrato, se reflete
por ele rn'esmo. Aqui, cada um é para si e Se acha em estado de como num espelho côncavo. Porque a generalidade desse estado não
tensão diante de todos os mais. Os domínios da atividade e do poder é, de maneira alguma, como o havia imaginado o célebre Schotte, a
são nitidamente limitados, uns relativamente aos outros, e de" tal seqüência direta e verossímil do fato novo de que o trabalho é divi-
modo que cada qual veda a outrem o contacto e a entrada, entrada e dido e os produtos são trocados. É, antes, de um alvo distante, em
contacto que são considerados ação inimiga. Tal conduta negativa é relação ao qual o desenvolvimento da sociedade deve ser compreendi-
normal. É o fundamento da posição desses "indivíduos-forças", uns do. E, 'em nosso entender, a existência de uma sociedade, num deter~
diante dos outros, e caracteriza a sociedade em estado de paz. Pes- minado momento, torna-se real na medida em que esse alvo é atin-
Soa alguma fará qualqU'er coisa por outra, ninguém quererá con- gido. Portanto, essa existência é, sempre, alguma coisa que evolui,
ceder ou dar alguma coisa a outrem, a não ser em troca de um ser- que deve ser considerada, aqui, como a causa da vontade ou da
viço ou de uma dádiva estimada pelo menos como equivalente à razão geral; e, ao mesmo tempo (assim como o sabemos), como a
sua. É mesmo necessário que dádiva ou serviço lhe sejam mais úteis causa fictícia e nominal, flutuando no ar tal como saiu das cabeças
do que aquilo que ele dá, porque só o recebimento de algo que lhe de seus suportes conscientes, que se dão as mãos por cima de todas
pareça melhor o decidirá a fazer o bem. Mas, se cada um quiser as distâncias, fronteiras e idéias, desejosos de troca e considerando
agir assim, evidente que a coisa A, para o indivíduo B, poderá ser esta perfeição especulativa como o único país, a única cidade onde
melhor do que a coisa b j e, do mesmo modo, a coisa b, para o indi- todos os cavaleiros da indústria e os aventureiros (merchant adventu-
víduo A, poderá ser melhor do que a coisa a; mas, segundo essas rers) têm um real interesse comum. A generalidade social é assim
relações, a não poderá ser, ao mesmo tempo, melhor do que b e b representada, como a ficção do dinheiro o é pelo metal ou pelo papel,
melhor do que a. Surge, assim, a pergunta: Em que sentido, em pela terra toda ou por um território delimitado de qualquer maneira;
geral, se poderá falar de bens ou de valor de coisas dependentes de porque, dentro desta compreensão, é preciso abstrair de rodas as
tais relações? Resposta: Na representação dada aqui, todos oS bens relações primitivas e naturais dos homens uns com os outros. A pos-
são supostamente separados, como os indivíduos a que pertencem; o sibilidade de uma relação social não supõe nada mais que uma plu-
que alguém possui e desfruta, possui-o e desfruta-o de um modo ralidade de pessoas puras, capazes de produzir e, por conseqüência,

110 111
<ie prometer. A sociedade como coletividade, sobre que deve esten- cada qual pensa em si mesmo e se ocupa, ao contrário, em fazer
der-se um sistema convencional de regras, é, por isso, segundo a idéia, triunfar sobre os outros o seu ponto de vista e as suas vantagens.
que dá, ilimitada. Ela derriba continuamente suas fronteiras (reais De modo que de tudo o que um mostra de agradável ao outro ele
ou fortuitas). E como cada pessoa nela procura sua própria vanta·· espera e, mesmo, exige, pelo menos, um equivalente e, por conseguin-
gem e não aprova as outras pessoas senão na medida e pelo tempo te, pesa exatamente os seus serviços, as suas lisonjas, os seus presen-
em que estas desejam a mesma vantagem que ela própria, a relação) tes etc., como se fossem determinar QS efeitos desejados. Contratos
de todos para com todos, antes e fora da convenção e, também, antes não formais desse gênero são constanteme,nte concluídos e muitos
e fora de cada contrato particular, pode ser compreendida como uma impugnados sem cessar, nesta corrida, pelo pequeno número dos
hostilidade em potencial ou como uma guerra latente, abstração feita felizes 'e dos poderosos. Como em geral todas as coudições sociais têm
dos acordos das vontades como outros tantos pactos e tratados de base na comparação de serviços possíveis ou propostos, aparece cla-
paz. E nisso reside a única concepção adequada de todas as realida- ramente, aqui, por que as relações concernentes a objetos visíveis e
des do tráfico e do comércio, em que quaisquer direitos e obrigações materiais e por que puras atividades e palavras não podem consti-
podem reduzir-se a puras determinações de bens e de valores e sobre tuir, senão impropriamente, o fundamento de semelhante comparação.
a qual, por conseguinte, deve repousar toda teoria do puro direito Por oposição, a comunidade, como laço de H sangue", é, antes de mais
privado ou (compreendido no sentido social) do direito natural, mes- nada, a relação dos corpos exprimindo-se em ações e 'em palavras,
mo que ela o ignore. Compradores e vendedores, nos seus diversos e as relações comuns em face dos objetos são de natureza secundária,
aspectos, situam-se, sempre, uns em relação aos outros, de tal manei- não sendo estes objetos tão trocados quão possuidos e utilizados em
ra que cada qual deseja e tenta dar o menos possível daquilo que comum. A sociedade é, po sentido que podemos denominar moral,
tem e obrer o máximo possível daquilo que o outro tem. E os ver- comp.letamente condicionada por suas relações com o Estado, que,
dadeiros comerciantes e negociantes fazem, por numerosos caminhos, até aqui, não existe para esre estudo, já que a sociedade econômica
corridas durante as quais cada um procura passar na frente do outro deve ser considerada como o precedendo ...
,e, se possível, atingir a meta em primeiro lugar; obter a colocação
de sua mercadoria e em maior quantidade possível. Por conseguinte,
procuram eles, reciprocamente, empurrar-se e derrubar-se, e a perda
de um é, ao mesmo tempo, o ganho do outro, como em cada troca In. - As classes
particular, na medida em que os proprietários não trocam valores O estado de dependêncw de toda a construção
realmente iguais. Isto é a concorrência geral, que acontece em muitos
Qutros domínios, mas em parte alguma tão claramente e tão c()flscien- Na medida em que o comerclO varejista não é considerado senão
temente como no do comércio, a que, por conseguinte, se limita o como uma conseqüência necessária implicada pelo comércio de mer-
emprego ua palavra e que numerosos choramingas já descreveram cadorias, a estrutura 'essencial da sociedade se caracteriza por três
como a ilustração da guerra de todos contra todos, guerra que um atos, que têm por autor a classe capitalista, a qual, como tal, é con-
grande pensador considerou como sendo o estado natural e geral da siderada provida da posse dos meios de trabalho (que não estão,
natureza humana. Mas a concorrência traz em si, como todas as portanto, de início, no mercado, mas se acham em seu lugar). Estes
formas dessa guerra, a possibilidade de seu fim. Por isso, aqueles três atos são: I) a aquisição de forças de trabalho; 2) o emprego
inimigos, mesmo que isto aconteça mais dificilmente, decidem, em de tais forças; 3) a venda de forças de trabalho (sob a forma de
certas situações, como sendo de sua vantagem entender-se,' deixar-se partes de valor dos produtos). A classe operária também participa.
em paz, até mesmo associar-se, com vistas a um objetivo comum (em de maneira substancial, do primeiro ato, embora não o faça senão
primeiro lugar e, no mais das vezes, contra um rival comum). Assim, na medida em que se desembaraça do supérfluo para adquirir o
a concorrência é limitada e transformada em coalizão. E, por analo- necessário. No segundo ato, não participa aparentemente, a não ser
gia com essas relações, que repousam sobre a troca de valores mate- , como objeto (participação empregada) ; na realidade, é nela que se
riais, pode-se compreender toda sociabilidade convencional, cuja regra encontra toda a causalidade material, e na classe capitalista, toda a
suprema é a polidez: uma troca de palavras e de serviços, em que causalidade formal desse segundo ato. No terceiro, a classe capitalista
caaa um parece estar uo lugar de todos e em que todos parecem age realmente sozinha e a classe operária não existe mais do que sob
estimar cada um como seu semelhante, mas em que, na realidade, a forma de seu valor, por assim dizer, extraído. Enquanto age, a

112 113
I

1
classe operária é livre e seu trabalho representa, então, a realização dar sobre um compromisso (Ausgleich) de interesses motivado
de seu contrato, portanto de Sua troca, o qual ela cumpre por uma racionalmente (em valor ou em finalidade), ou sobre uma coordena-
reconhecida necessidade .. Mas qualquer troca (e venda) é a própria ção (V erbindung) de interesses motivada da mesma maneira. Em
forma do ato da livre vontade, enquanto o comércio é a sua expres- particular, a sociação pode (não, porém, unicamente) fundar-se,
são material perfeita. Pode-se deduzir que a classe operária é livre tipicamente, sobre uma aliança (Vereinbarung) racional por enga-
pela metade - até à metade dos três atos - e de uma liberdade jamento mútuo (gegenseitige Zusage). É então que a atividade
de vontade formal, distinguindo-se, com isso, de uma suposta classe sodetizada se orienta, no caso racional, a) de modo racional em
de escravos, que só apareceriam formalmente no processo como valor, segundo a crença em seu próprio caráter obrigatório (Ver-
utensílios e substância. Opostamente, a classe capitalista é cem por
bindlichkeit) , b) de modo racional em finalidade, por antecipação
cento livre, de uma liberdade de vontade real. Por conseqüência, os da lealdade do parceiro.
que a ela pertencem podem ser considerados como de vontade intei-
ramente, livre, como constituintes resolutos e reais da sociedade; a
1. Nossa. terminologia recorda a distinção que F. Tõnnies estabeleceu em
massa que lhes é oposta pode ser considerada como só possuindo seu trabalho iundamental intitulado Gemeinschaft und Gessellschaft. Todavia,
meia-vontade, como integrada por indivíduos unicamente formais. Tõnnie~ logo lhe deu, para fins que lhe são próprios, um conteúdo muito mais
Porque o interesse e a participação nesses três atos, sua plena coesão, : 'f
específico do que útil para nossos próprios fins. Os tipos de sociação mais
isto equivale a assentar a sociedade, a consentir em entrar em sua puros são: a) a troca (Tausch) , rigorosamente racional em finalidade, na
existência e na convenção que a fundamenta. Que semelhante cons- base de um livre acordo sobre a transação, compromisso atual entre interes-
sados ao mesma tempo opostos e complementares; b) a pura associação de
trução dualista de sua concepção seja a única possível é uma questão fim determinado (Zweckverein), estabelecida por livre acordo, por uma aliança
desnecessária, no momento. Ela é a construção decorrente do dado concernente a urna atividade contínua, que, assim por sua intenção como por
do comércio, quando este fica limitado a semelhante objetivo, que seus meios, é instituída puramente com vistas a perseguir interesses materiais
somente - afora o seu caráter de atividade de serviço e, em seguida, (econômicos ou outros) dos membros; c) a associação na base de convicções
também, em relação a esta - destaca seu fim e seu princípio vital, o (Gesinnungsverein) , motivada de modo racional em valor, tal como a seita
racional, na medida em que ela se desvia do cuidado de interesses afetivos
lucro, de todas as condições contingentes e que, por sua própria ôu emocionais e não procura senão servir à .. causa" (o que, em verdade,
essência, garante, como resultado necessário e regular, precisamente não se encontra sob a forma de um tipo inteiramente puro, salvo em casos
a mercadoria não natural, puramf!nte fictícia, determinada pela von- muito particulares).
tade humana: a força do trabalho. Assim, todos esses conceitos 2. Urna comunalização pode basear-se em qualquer espécie de fundamento
acham sua solução e sua distinção na teoria da vontade individual afetivo, emocional ou, ainda, tradicional. Por exemplo: uma comunidade espi-
humana, para a qual nos arrasta essa discussão toda (Excerto de ritual de irmãos, uma relação erótica, uma' relação fundada na piedade, uma
FERDINAND TÕNNIES, Communauté et Société, Paris, P. U. F.,
comunidade .. nacional", ou então um grupo unido pela camaradagem. A comu-
nidade iamiliar constitui o seu tipo mais ajeitado. Entretanto, a grande maioria
1944, págs. 3-5, 13-16, 39-40, 50-53, 78-79). das relações sociais têm, em parte, o caráter de uma comunalização, em parte
o de uma sociação. Qualquer relação social, por mais racional em finalidade
que sej a e por mais friamente que tenha sido instituída e determinada quanto
ao seu objetivo (uma clientela, por exemplo), pode fazer nascer valores senti-
COMUNALIZAÇAO E SOCIAÇAO rr.cntais que ultrapassem o fim estabelecido por livre vontade. Toda sociação
que transcenda o quadro da associacão de objetivo determinado, q'J.e surja,
por conseguinte, para uma longa duração, que instaure relações sociais entre
MAX WEBER as mesmas pessoas ~ que não fique limitada, logo de saída, a serviços mate-
riais particulares, tende para isso, igualmente, de uma ou de outra forma, na
verdade· em graus extremamente variáveis. Por exemplo: a sociação numa
Chamamos Hcomunalização" (Verg-emeinschaftung) a uma relação mesma unidalie militar, numa mesma sala de aula, numa mesma loja ou numa
social quando e enquanto a disposição da atividade também social se mesma oficina. Inversamente, uma relação social de sentido normal, consis-
fundar - no caso particular, em média {lU no tipo puro - sobre tente numa comunalização, pode ser orientada, nO todo ou em parte, no sentido
o sentimento subjetivo (tradicional ou afetivo) dos participantes de de uma racionalidade em finalidade, por força da vontade de todos os membros
pertencerem a uma mesma comunidade (ZusammengehOrigkeit). ou de alguns dentre eles. Até que- ponto um agrupamento familiar é notado
como· uma .. comunidade" e, por outro lado, explorado por seus membros
Chamamos "sociação" (Vergesellschaftung) a uma relação social como uma "sociação"? Aí está um fenômeno extremamente variável. Foi
quando e enquanto a disposição da atividade também social se fun- intencionalmente que definimos a .. comunalização" de um modo inteiramente

114 115
geral e, por conseguinte, como englobando realidades extremamente hetero- parceiros isolados uma sociação e uma relação social (antes de tudo, uma
gêneas. I<concorrência") entre aqueles que buscam fazer uma troca, pois que são
3. A comunalização é, normalmente, segundo o sentido visado, a mais eles obrigados a orientar mutuamente o seu comportamento. Afora isso, não
radical antítese da luta. Mas isso não nos deve iludir a respeito do fato de se produzem sociações a não ser na medida em que um certo número de
que é absolutamente normal encontrar, efetivamente. mesmo no interior das participantes se entende para lutar com mais eficiência no terreno dos preços,
comunalizações mais íntimas, violências de vária espécie, exercidas contra os ou em que todos se entendem para fins de regulamentarem e de protegerem
que moralmente se dobram, de que aí se opera a 11 seleção» dos tipos, como, o tráfico (o mercado e a economia do tráfico que dele procede constituem, em
aliás, por toda parte, e de que ela conduz a uma diversidade nas probabili- suma, o tipo mais importante da influência recíproca na atividade pelo puro
dades de vida e de sobrevivência que suscita. Por outro lado, as sociações jogo dos interesses, fenômeno característico da economia moderna) (Excerto,
são, com muita freqüência, puros e simples compromissos entre interesses contra- de Max Weber, Economie et Société, Paris, Plon, 1971, t. 1, págs. 41-43).
ditórios, que só excluem (ou, pelo menos, tentam fazê-lo) uma parte do
objeto ou dos meios de luta e deixam, em suma, subsistir O antagonismo entre
os interesses, assim como a concorrência, no caso das oportunidades. II Luta ..
e <I comunidade" são conceitos relativos. A luta se desenvolve, com efeito,
sob as mais diversas formas, segundo a natureza dos meios (violentos ou COMUNIDADE E LIGA
I, pacíficos") e a maneira mais ou menos brutal de empregá-los. Toda regu-

lamentação da atividade social, seja qual for a sua fórmula, deixa, como ficou
dito, subsistir; de uma ou de outra maneira, uma verdadeira seleção pura na HERMAN SCHMALENBACH
competição dos diferentes tipos de pessoas, tendo em vista melhores probabi-
lidades de vida. .
4. O fato de ter em comum (Gemeinsamkeit) certas qualidades, uma mesma Na época contemporânea, é possível ver-se manifestar, cada vez
situação ou um mesmo comportamento não constitui, necessariamente, uma mais, um vivo desejo, assaz romântico, em prol do retorno a uma.
comunalização. Por exemplo, o fato de terem em comum as qualidades bioló-
gicas hereditárias consideradas como as características de uma 11 raca" não comunidade real. Esta atitude aparece até mesmo na obra de
constitui, naturalmente, uma comunalização dos diversos membros que com Tonnies, jXlrque ele tanto insistiu na noção de comunidade que car-
isso se distinguem. Por uma limitação do commercium et connubium ~ face rega em parte a responsabilidade pela confusão que pôde nascer
do mundo circunjacente, pode-se cair numa situação análoga, também cem entre as noções de comunidade e de liga (Bund). Como outros
por cento isolada em relação ao mesmo mundo. Posto que se reagisse de
maneira análoga a essa situação, isso ainda não constituiria uma .-::ümunali- autores. ele deveria, entretanto, saber que, no meio rural, campone-
zação, do mesmo modo que o simples li sentimento" para situação comum e ses vizinhos podem tornar-se inimigos mortais por motivos de deli-
suas conseqüências não a suscita. Com efeito, somente no momento em que, mitação de terras, do mesmo modo que, na cidade, irmãos podem
em razão desse sentimento comum, os indivíduos orientam mutuamente, de uma odiar-se uns aos outros por motivos de herança. Apesar de tudo,
ou de outra maneira, o seu comportamento é que nasce entre eles uma relação
social, e não apenas uma relação individual de cada um deles diante do mundo tanto os vizinhos como os irmãos continuam sendo vizinhos e
circunjacente. É unicamente na medida em que esta inspira o sentimento de irmãos, porque a vizinhança e os laços familiares persistem, de um
uma dependência comum que nasce urna "comunidade". Entre os judeus, por ponto de vista psicanalítico. Tais exemplos demonstram o fraco
exemplo - cem exceção dos círculos de tendência sionista e de algumas outras
formações sociais a serviço de interesses judaicos - não se encontra esse papel desempenhado pelos sentimentos de comunhão como funda-
sentimento senão numa medida relativamente fraca; e ele é, com freqüência, mento da comunidade. Mesmo que esta não deva sua existência aos
repudiado. A comunidade de língua, produto de uma mesma tradição transmi- sentimentos capazes de animar os seus membros, tais sentimento:;.
tida pela família e pelo meio imediatamente circun;acente, facilita no mais podem desenvolver-se em seu seio: ternura pelos outros membro')
alto ponto a compreensão recíproca, por conseguinte o estabelecimento de
todas as relações sociais. Contudo, em si mesma ela ainda não constitui uma da comunidade ou pela comunidade como tal, orgulho etc. Uma pro·
comunalização, mas apenas facilita a comunicação no interior dos grupos E'm funâa associação situada no inconsciente constitui a própria essên-
foco. Portanto, torna mais fácil o nascim.ento de comunalizações. Em primeiro cia da comunidade. Esta existe na qualidade de conjunto orgânico p
lugar entre os indivíduos isolados, não em sua qualidade particular de indiví- natural, antes que seus membros experimentem profundos sentimen-
c.uos que falam a mesma língua, mas por outras espécies de interesses. A
orientação segundo as regras de uma língua comum só é, pois, de forma
tos a seu respeito. Esses sentimentos são posteriores ao vivido cons-
primária, um meio de as pessoas se entenderem e não um conteúdo signifi- ciente, são produzidos pela comunidade. Para constatá"-lo, basta pro-
cativo de relações sociais. É somente com o aparecimento de oposições cons- ceder de um ponto de vista fenomenológico. A gratidão supõe, por
cientes a terceiros que se produz, por entre os que falam uma língua comum. exemplo, relações sociais preexistentes. Desenvolve-se a partir de
uma situação análoga, um sentimento de comunidade e sociações cujo funda-
:nento consciente de existência reside então na comunidade de língua. De seu concessões mútuas, assim como a ternura Ou o orgulho dependem,
lado, a participação num "negócio" assume forma diferente. Cria entre os também, de semelhantes relações sociais anteriores. Todos esses sen-

116 117

~
timentos positivos ou negativos são, por conseguinte, a consequencia !evam à sua ~riação. Desse ponto de vista, a liga e a sociedade pare-
,de alguma coisa que já existe. .. Acontece diferentemente quando se cem assemelhar-se, na medida em que as relações interpes~oais no
considera o grupo humano formado por uma liga. Neste caso, as seio da primeira permanecem assaz limitadas.
'emoções experimentadas formam a substância mesma das relações: Um amigo é um outro nós-mesmos: fazemos nossos o seu prazer
servem-lhes de base. Indivíduos que seguem alegremente um líder e as suas penas. Uma tal fusão pode assumir múltiplas formas, mas
e se comprimem à sua volta, num transporte de arrebatamento, não acentua, sempre, o princípio de separação anterior. Desse ponto de
'procuram ligar-se-Ihe, nem aos outros, em função de características vista, a comunidade e a sociedade estão situadas nas duas extremi-
'comuns. Acham-se, ao contrário, ligados uns aos outros pelos sen- dades de uma linha reta, tomando a liga lugar entre elas. Sem
timentos que experimentam. Na-realidade, estão em relação uns com embargo, de um outro ponto de vista a comunidade e a sociedade
os outros. É evidente que os sentimentos são sempre determinados se parecem, diferenciando-se da liga. Pode-se, assim, imaginar um
por nOSSo caráter e por nOSSas tendências, provindos, antes de mais conjunto de fenômenos sociais, que principiaria, quer pela sociedade,
nada, de nosso inconsciente. Mas, se o inconsciente é a fonte de levando à comunidade e, em seguida, à liga, quer pela comunidade,
todas as emoções, não leva, COmo tal, à comunhão humana. Contém prosseguindo pela sociedade para, enfim, terminar pela liga (Excerto
somente potenciais de emoções, ajudando o indivíduo a entrar numa
de HERMAN SCHMALENBACH, "Die Soziologische Kategorie des
seita, o que, para além do inconsciente, depende, verdadeiramente,
dos sentimentos assumidos. Blindes", Die Dioskuren, vaI. 1, Munique, 1922).
A idéia segundo a qual os sentimentos formam a base da Iig:>
poderia ser criticada. Para certas pessoas, os membros de uma Igreja
são mais voltados para o Deus em honra do qual oram do que para
os outros membros. Os indivíduos oram, efetivamente, em atenção OS DOIS TIPOS
ao objeto numenal de sua religião e não para deificar a estrutura DE SOLIDARIEDADE
social de sua Igreja. Não é menos verdade que o fato social religioso
não chega a manifestar-se senão na medida em que o numenal se EMILE DURKHEIM
torna sentimento.· Ele deve ao menos ser objeto de um sentimento
religioso; então a organização religiosa chega a ser uma liga, cuja
coerência e existência se fundam sobre os sentimentos ... I. - A solidariedade mecânica Ou por similitudes

Comunidade, liga e soci-edade Tínhamos começado por estabelecer, indutivamente, que o crime
consistia, essencialmente, em um ato contrário aos estados fortes e
Ao contrário da C(Jmunidade, a sociedade realça essencialmente o definidos da consciência comum. Acabamos de ver que todos os carac-
indivíduo. Nasce ela de relações entre indivíduos que antes não se teres da pena derivam, com efeito, dessa natureza do crime. As
achavam ligados uns aos outros. No caso da comunidade, as partes regras, pois, que ela sanciona é que exprimem as similitudes sociais
estão ligadas desde o início, como o estão as partes de um todo orgâ- mais essenciais.
nico. A oposição entre a comunidade e a sociedade permite encon~ Ve-se, assim, que espécie de solidariedade o direito penal simboliza.
trar novamente a tradicional antítese da prioridade do todo oobre as Todo o mundo s~be, com efeito, que há uma coesão social, cuja
partes ou a das partes sobre o todo por elas constituído ... causa reside numa certa conformidade de todas as consciências par-
Os membros da comunidade são, assim, desde a origem, interde- ticulares com um tipo comum, que outro não é senão o tipo psíquico
pendentes, ao passo que as partes da sociedade não estão ligadas da sociedade. Nestas condições, efetivamente, não só todos os mem~
entre si. Na liga pode parecer que os indivíduos não tenham inte~ bros do grupo são individualmente atraídos uns para os outros, por-
resses recíprocos. Ela não existe senão na medida em que seus mem· que se parecem, como também estão ligados àquilo que é a condição
bros se encontram. Pode também desenvolver·se quando uma comu~ de existência desse tipo coletivo, a saber, à sociedade que formam
nidade já se acha constituída. São experiências individuais que por sua reunião... Daí resulta uma solidariedade sui generis, que,

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l
nascida das semelhanças, prende diretamente o indivíduo à socie- servidão ou o do usufruto seja organizado de outro modo, que as
dade ... obrigações do vendedor e do comprador se determinem diferente-
É essa solidariedade que o direito repressivo exprime, pelo menos
mente, que as funções administrativas se distribuam de acordo com
no que ela tem de vital. Com efeito, os atos que o direito repressivo outros princípios. Como tais prescrições não correspondem em nós
proíbe e qualifica de crimes são de duas espécies: ou manifestam a nenhum sentimento, e como, geralmente, não lhes conhecemos,
diretamente uma dissemelhança demasiado violenta entre o agerite cientificamente, as razões de ser, pois que esta ciência não está for-
que os perpetra e o tipo coletivo, ou então ofendem o órgão da mada, ditas prescrições não têm raízes na maioria de nós outros ...
consciência comum. Tanto num caso como no outro, a força chocada Prova isto que as regras de sanção restitutiva, ou não fazem parte,
pelo crime, e que o repele, é, pois, a mesma; é um produto das simi- de forma alguma, da consciência coletiva, ou não são senão fracos
litudes sociais mais essenciais e tem por efeito manter a coesão social estados dessa consciência. O direito repressivo corresponde àquilo
resultante dessas similitudes. Tal força é que o direito penal protege que é o coração, o centro da consciência comum; as regras puramen-
contra todo e qualquer enfraquecimento, exigindo, a um tempo, de te morais constituem-lhe uma parte, já menos central. Enfim, o
cada um de nós, um mínimo de semelhanças, sem as quais o indi- direito restitutivo nasce em regiões bem excêntricas, para estender-
víduo representaria ameaça para a unidade do corpo social, e impon- se muito além. Quanto mais ele se torna verdadeiramente ele mesmo,
do-nos o respeito do símbolo que exprime e resume tais semelhanças. tanto mais daí se afasta ...
ao mesmo tempo que as garante ... :Mas, ainda que as referidas regras estejam mais ou menos fora da
consciência coletiva, não interessam 'Somente aos particulares. Se
assim fosse, o direito restitutivo não teria nada de comum com a
Ir. - A solidariedade devida à divisão do trabalho ou solidariedade social, porque as relações por ele reguladas ligariam
orgânica os indivíduos uns aos outros, sem os anexar à sociedade. Seriam sim-
ples acontecimentos da vida particular, como as relações de amizade,
A própria natureza da sanção restitutiva basta para mostrar que por exemplo, o são. Mas falta muito para a sociedade estar ausente
a solidariedade social, a que corresponde este direito, é de uma dessa esfera da vida jurídica. É verdade que, geralmente, ela de si
espécie completamente diferente. mesma não intervém, nem de seu próprio movimento, a menos que
seja solicitada pelos interessados. Mas, por ser provocada, nem por
O que distingue semelhante sanção é que ela não é expiatória, mas isso sua intervenção representa menos a mola essencial do mecanis-
se reduz a uma simples reposição nas devidas condições. Um sofri- mo, pois somente ela é que o faz funcionar. É ela que enuncia ')
mento proporcional à falta perpetrada não é infligido àquele que direito pelo órgão de seus representantes.
violou O direito, ou que o desconhece; este é simplesmente condenado
Sustentou-se, contudo, que esse papel nada tinha de propriamente
a submeter-se-Ihe. Se existem, já, fatos consumados, restabelece-o.;
social, reduzindo-se ao de conciliador dos interesses privados. Que,
o juiz tais como deveriam ter sido. Ele, juiz, enuncia o direito, não
por conseguinte, qualquer particular poderia desempenhá-lo. Que, se
enuncia penalidades. As perdas e danos não têm caráter penal: são á sociedade disso se encarregava, o fazia unicamente por motivos de
apenas um meio de retorno ao passado para o restituir, tanto quanto
comodidade. Mas nada mais inexato do que fazer da sociedade um
possível, sob sua forma normal. .. como terceiro árbitro entre as partes. Quando ela é impelida a inter-
A inobservância das regras atrás indicadas nem meSmo é punida vir, não o faz senão para harmonizar interesses individuais. Não
com uma pena difusa. O litigante que perdeu em juízo não fica procura que solução possa ser mais vantajosa para os adversários,
infamado, a honra não se lhe mancha. Podemos mesmo imaginar nem lhe,; popõe compromissos. Mas aplica ao caso particular que lhe
que essas regras sejam diferentes do que são, sem que isso nos revol- é submetido as regras gerais e tradicionais do direito. o.ra, o direito
te. A idéia de que o assassínio possa ser tolerado causa-nas indigna- é coisa social antes de mais nada e que tem outro objeto que não o
ção, mas aceitamos muito bem o ver modificado o direito suces- interesse dos litigantes. O juiz que examina uma ação de divórcio
sório, e muitos concebem, mesmo, o fato de que ele possa ser hão se preocupa em saber se a separação é verdadeiramente desejá-
suprimido. Pelo menos, aí está uma questão que não recusamos dis- vel para os esposos, mas se as causas invocadas entram numa das
cutir. Do mesmo modo, admitimos sem dificuldade que o direito de categorias previstas pela lei.

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Mas, para bem apreciar a importância da ação social, importa UI. - As duas espécies de solidariedade
observá-la não somente no· momento em que se aplica a sanção, em
que a relação perturbada é restabelecida, mas também quando so Já que a solidariedade negativa não produz por si mesma nenhum..
institui. integração e que, por sinal, nada tem de específica, reconheceremos
Ela é, com efeito, necessária, quer para alicerçar, quer para modi- somente duas espécies de solidariedade positiva, que os seguintes
ficar numerosas relações jurídicas regidas por 'esSe direito. e' que o caracteres distinguem:
consentimento dos interessados não é suficiente nem para criar, nem 1.0. A primeira liga diretamente o indivíduo à sociedade, sem
para mudar. Tais são nomeadamente as que concernem ao estado nenhum intermediário. Na segunda, ele depende da sociedade, por-
das pessoas. ,Posto que o casamento seja um contrato, não podem que depende das partes que a compõem.
os esposos nem instituí-lo, nem rescindi-lo a seu bel-prazer. O, mes-
mo se dá com todas as outras relações domésticas e, com mais forte 2. 0 • A sociedade não é vista sob o mesmo aspecto, nos dois casos.
razão, com todas as que o direito administrativo regulamenta. É No primeiro, o que chamamos de solidariedade é um conjunto mais
verdade qne as obrigações propriamente contratuais podem fazer-se ou menos organizado de crenças 'e de sentimentos comuns a todos
e desfazer-se por exclusivo acordo das vontades. Mas não se deve os membros do grupo: é o tipo coletivo. Ao contrário, a sociedade,
: f
esquecer que, se o contrato tem o poder de ligar, é a sociedade que com que somos solidários no segundo caso, é um sistema de funções
lho transmite. Suponha o leitor que ela não sancione as obrigações diferentes e especiais, que relações definidas unem. Essas duas
contraídas. Estas tornam-se simples promessas, que não têm mai., sociedades são, aliás, uma só. São duas faces de uma única e mesma
do que uma autoridade moral (44). Todo, contrato supõe, portanto, realidade, mas nem por o serem precisam menos de seT distintas.
que, por detrás das partes que se comprometem, haja a sociedade, 3.°. Dessa segunda diferença decorre uma outra, que vai servir-
toda pronta a intervir, a fim de fazer respeitados os compromissos nos para caracterizar e denominar as duas espécies de solidariedade.
assumidos. Por isso ela não comunica essa força obrigatória senão A primeira só pode ser forte, na medida em que as idéias e as
aos contratos que têm por si mesmos um valor social, isto é, que se tendências comuns a todos os membros da sociedade ultrapassem em
acham acordes com as regras do direito. Veremos, mesmo, que, por númer.o e intensidade as pertencentes pessoalmente a cada um deles.
vezes, sua intervenção é ainda mais positiva. Ela está presente, por-
Ela é tanto mais enérgica quanto mais considerável for esse exce-
tanto, em todas as relações determinadas pelo direito restitutivo, até
dente. Ora, o que faz nossa personalidade é aquilo que cada um de
mesmo naquelas que parecem mais completamente particulares, e sua
presença, por não ser sentida, pelo menos no 'estado normal, nem nós tem de próprio e de característico, o que nos distingue dos outros.
por isso é menos essencial. Semelhante solidariedade não pode, portanto, aumentar, senão na
razão inversa da personalidade. Há na consciência de cada um, dis-
Já que as regras de sanção restitutiva são estranhas à consclencia
semo-lo, duas consciências: uma que nos é comum, a nós e a todo o
comum, as relações por elas determinadas não são das que atingem,
nosso grupo, e que, por conseguinte, não nos representa a nós mes-
indistintamente, todo o mundo. Equivale a dizer que elas se estabe-
lecem imediatamente, não entre o indivíduo e a sociedade, mas entre mos, mas a sociedade vivendo e agindo em nós; outra, que, pelo
partes restritas e especiais da sociedade, que elas ligam entre si. Mas, contrário, não representa senão nós mesmos naquilo que temos de
por outro lado, uma vez que a sociedade daí não se acha ausente~ é pessoa! e de distinto, naquilo que faz de nós um indivíduo (45).
preciso que esteja mais ou menos diretamente interessada nessas rela- A solidariedade que deriva das semelhanças está no seu maximum
ções, que lhes sinta as repercussões. Então, segundo a vivacidade quando a consciência coletiva encobre exatamente a nossa· consciência
com a qual ela as sente, intervém de -mais ou menos perto e mais total e coincide, em todos os pontos, com ela: mas, nesse momento,
ou menos ativamente, por intermédio de órgãos especiais encarrega- nossa individualidade é nula. É-lhe impossível nascer senão quando
dos de representá-la. Tais relações são, portanto, bem diferentes das a comunidade ocupa menos lugar em nós. Há, aí, duas forças con-
regulamentadas pelo direito repressivo, porque ligam diretamente e trárias, uma centrípeta, outra centrífuga, incapazes de crescer ao
sem intermediário a consciência particular à consciência coletiva,
isto é, o indivíduo à sociedade ...
(45) Todavia, essas duas consciências não são reglOes geograficamente
(44) E ainda essa autoridade moral vem dos costumes, isto é, da sociedade. distintas de nós mesmos, mas se penetram de todos os lados.

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mesmo tempo. Não podemos desenvolver-nos simultaneamente em sociedade inteira pesa sobre nós, e ele deixa bem mais lugar ao livre .
dois sentidos tão opostos. Se temos viva tendência para pensar e exercício de nossa iniciativa. Aqui, portanto, a individualidade do
para agir por nós mesmos, não podemos ser fortemente inclinados a todo aumenta ao mesmo tempo que a das partes; a sociedade torna-se
pensar e a agir como os outros. Se o ideal é ter-se uma fisionomia mais capaz de mover-se conjuntamente, ao mesmo tempo que cada
própria e pessoal, não poderia ser o de a gente parecer-se com todo um de seus elementos tem mais movimentos próprios. Tal solidarie-
'" mundo. Além disso, 110 momento em que aquela solidariedade exer- dade é parecida com a que se observa nos animais superiores. Cada
ce sua ação, nossa personalidade, pode-se dizer, por definição Se órgão, com efeito, tem, aí, sua fisionomia especial, sua autonomia,
desvanece; porque não somos mais nós mesmos, mas o ser coletivo. e, contudo, a unidade do organismo é tanto maior quanto mais mar-
As moléculas sociais que não estivessem coerentes, a não ser dessa cada for essa individuação das partes. Em razão de semelhante ana-
única maneira, não poderiam, portanto, mover-se com o conjunto, logia, propomos chamar orgânica à solidariedade devida à divisão
salvo na medida em que não tivessem mais movimentos próprios, do trabalho ...
como o fazem as moléculas dos corpos inorgânicos. Por isso propo-
mos chamar esta espécie de solidariedade de mecânica. A palavra
não significa que ela seja produzida por meios mecânicos e artifi-
cialmente. Só a denominamos assim por analogia com a coesão que
une entre si os elementos dos corpos brutos, em oposição à que faz
IV. - As formas anornwis

A divisão do trabalho anômica


L
a unidade dos corpos vivos. O que acaba justificando essa denomina-
ção é que o liame que une assim o indivíduo à sociedade é totalmente Até aqui, limitamo-nos a 'estudar a divisão do trabalho como um
análogo ao que liga à pessoa a coisa. A consciência individual, con- fenômeno normal. Mas, como todos os fatos sociais e, mais geral-
siderada sob este aspecto, é Uma simples dependência do tipo coletivo mente, como todos os fatos biológicos, ela apresenta formas patoló-
e segue-lhe todos os movimentos, como o objeto possnído segue os gicas, que importa analisar. Se, normalmente, a divisão do trabalho
que lhe comunica o seu proprietário. Nas sociedades onde esta soli- produz a solidariedade social, acontece, entretanto, que ela exibe
dariedade é muito desenvolvida, o indivíduo não se pertence; resultados bem diferentes, ou mesmo opostos ...
vê-Io-emos mais adiante. Ele é literalmente uma coisa de que a socie- Embora· A. Comte tenha reconhecido que a divisão do trabalho
dade dispõe. Por isso, nos mesmos tipos sociais, os direitos pessoais é uma fonte de solidariedade, ele parece não haver percebido que
não são ainda distintos dos direitos reais. essa solidariedade é sui generis e se substitui, pouco a pouco, à
Acontece diferentemente com a solidariedade produzida pela divi- engendrada pelas similitudes sociais. Por isso, observando que as
são do trabalho. Ao passo que a precedente implica a semelhança semelhanças são muito diminuídas onde as funções se encontram
dos indivíduos, esta supõe que difiram uns dos outros. A primeira muito especializadas, ele viu nessa diminuição um fenômeno mórbido,
só é possível na medida em que a personalidade iudividual é absor- uma ameaça à coesão social, devido ao excesso da especialização, ~
vida na personalidade coletiva. A segunda só o é se cada um tiver explicou assim os fatos de incoordenação, que, por vezes, acompa-
uma esfera de ação que lhe for própria; por conseguinte, uma per- nham o desenvolvimento da divisão do trabalho. Mas, já que temos
sonalidade. É preciso, portanto, que a consciência coletiva deixe des- estabelecido que o enfraquecimento da consciência coletiva constitui
coberta uma parte da consciência individual, para que aí se estabe- um fenômeno normal, não poderíamos fazer dele a causa dos fenô-
leçam as funções especiais que ela não pode regulamentar. E, quanto menos anormais que estamos estudando. Se, em certos casos, a soli-
mais extensa for essa região, tanto mais forte a coesão resultante dariedade orgânica não é tudo o que deve ser, isto certam~nte não
da solidariedade. Com efeito, por um lado, cada qual depende tanto acontece porque a solidariedade mecânica tenha perdido terreno, mas
mais estreitamente da sociedade quanto mais divido for o trabalho; porque todas as condições de existência da primeira não se acham
e, por outro lado, a atividade de cada qual é tanto mais pessoal realizadas. .
quanto mais especializada. Sem dúvida, por mais circunscrita que Sabemos, com efeito, que, por toda a parte onde é observada,
ela se mostre, nunca é completamente original. Mesmo no exercício encontra-se ao mesmo tempo uma regulamentação suficientemente
de nossa profissão, conformamo-nos com usos e práticas que temos desenvolvida que determina as mútuas relações das funções. Para que
em comum com toda a nOSSa corporação. Mas, ainda neste caso, o exista a solidariedade orgânica, não basta haver um sistema de órgãos
jugo que sofremos é de outro modo menos pesado do que quando a necessários uns aos outros e que sintam, de um modo geral, a sua

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10 -T.S.
solidariedade: é ainda preciso que a maneira pela qual devam eles resulta dessa evolução (46). Os filetes nervosos não são, verossimil-
concorrer, senão em toda espécie de encontros, pelo menos nas cir- mente, senão linhas de passagem que as ondas de movimentos e de
cunstâncias mais ocorrentes, seja predeterminada. De outro modo, ucitações seguiram; ondas permutadas entre os diversos órgãos.
seriam necessárias, a todo instante, novas lutas, para qUe eles pudes- São canais que a vida cavou por si ,mesma, correndo, sempre, no
sem equilibrar-se, porque as condições de equilíbrio, no caso, não mesmo sentido. E os gânglios não seriam senão o lugar de inter-
podem ser encontradas senão por via de tentativas, no curso das secção de várias dessas linhas (47). Por haverem desconhecido esse
quais cada parte trata a outra como adversária, pelo menos tanto aspecto do fenômeno é que certos moralistas acusaram a divisão
quanto como auxiliar. Conflitos desses se renovariárn, pois, sem ces- do trabalho de não produzir verdadeira solidariedade. Só viram, aí,
sar, e a solidariedade, por conseguinte, não seria senão virtual, deven- trocas particulares, combinações efêmeras, sem passado e sem futuro
do ser as obrigações mútuas, por inteiro, debatidas de novo, em cada e em que o indivíduo é abandonado a si mesmo. Não notaram esse
caso particular. Dir-se-á que existem os contratos. Mas, antes de lento trabalho de consolidação, essa rede dos laços que se tece, por
mais nada, todas as relações sociais não são suscetíveis de revestir si mesma, pouco a pouco, e que faz da solidariedade orgânica algu-
essa forma jurídica. Sabemos, por sinal, que o contrato não basta ma coisa de permanente.
por si mesmo, mas supõe uma regulamentação que se estende e Ora, em todos os casos por nós descritos atrás, a regulamentação,
complica como a própria vida contratual. Além disso, os liames que ou não existe, ou não está em relação com o grau de desenvolvi-
têm essa origem são sempre de curta duração. O contrato não é mento da divisão do trabalho. Não há mais, hoje, regras que fixem
senão uma trégua, assaz precária: só suspende as hostilidades por o número das empresas econômicas. ~, em cada ramo industrial, a
Um tempo. Sem dúvida, por mais precisa que seja uma regulamenta. produção não é regulamentada de maneira a ficar exatamente na
ção, sempre deixará campo" livre para muitos conflitos. Mas não é nível do consumo. Não queremos, aliás, tirar do fato nenhuma con-
necessário nem possível que a vida social transcorra sem lutas. O clusão prática. Não sustentamos que uma legislação restritiva seja
papel da solidariedade não é o de suprimir a concorrência, mas o necessária, nem precisamos pesar-lhe, aqui, as vantagens e os incon-
de moderá-Ia. venientes. O que é certo é que essa falha de regulamentação não
Aliás, em estado normal, essas regras se deduzem por si mesmas permite a harmonia regular das f unções. Os economistas demonstram,
da divisão do trabalho: são como o seu prolongamento. Seguramen- é verdade, que a referida harmonia se restabelece por si mesma,
te, se a divi~ão do trabalho não aproximasse senão indivíduos unidos quando é necessário que se restabeleça, por obra da elevação ou do
por alguns instantes com vistas a permutar serviços pessoais, não aviltamento dos preços, que, conforme as necessidades, estimula ou
poderia dar origem a nenhuma ação reguladora. Mas o que ela torna retarda a produção. Mas, em todo o caso, ela não se restabelece,
presentes são funções, isto é, maneiras de agir definidas, que se assim, salvo depois de rupturas de equilíbrio e de perturbações mais
repetem, idênticas a si mesmas, em dadas circunstâncias, uma vez
Ou menos prolongadas. Por outro lado, tais perturbações são natu-
ralmente tanto mais freqüentes quanto mais especializadas as fun-
que são provenientes das condições gerais e constantes da vida social.
ções. Porque, quanto mais complexa é uma organização, a necessidade
As relações que se estabelecem entre essas funções não podem, pois,
de uma extensa regulamentação mais se faz sentir.
deixar de chegar ao mesmo grau de fixidez e de regularidade. Há As relações entre o capital e o trabalho permaneceram, até o mo-
certas maneiras de reagir umas sobre as outras que, achando-se mais mento, no mesmo estado de índeterminação juridica. O contrato de
acordes com a natureza das coisas, se repetem com mais freqüência locação de serviços ocupa em nossos códigos um reduzidíssimo lugar,
e se tornam hábitos. Posteriormente, os hábitos, à medida que ganham sobretudo quando se pensa na diversidade e na complexidade das
força, se transformam em regras de conduta. O passado predeter- relações que ele é chamado a regular. De resto, não é necessário
mina o futuro. Por outras palavras, há uma certa partida dos direi- insistir na lacuna que todos os povos sentem atualmente e se esfor-
tos e dos deveres, que o uso estabelece e que acaba por tornar-se çam por preencher (48).
obrigatória. A regra não cria, portanto, o estado de mútua depen-
dência, em que os órgãos são solidários: o que faz é tão-somente (46) V. Perrier, Colonies antmales~ pág. 746.
exprimi-lo, de maneira sensível e definida, em função de uma situa- (47) V. Spencer, Principes de biologie, lI, 438 e segs.
ção dada. Do mesmo modo, o sistema nervoso, muito longe de (48) Era isto escrito em 1893. A partir daí, a legislação industrial ocupou
dominar a evolução do organismo, como antigamente se acreditava em nosso direito um lugar mais relevante. O que prova o quanto era grave a
lacuna. E falta muito para que ela seja sanada.
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As regras do método são para a clencia o que as do direito e pende, ou, antes, não corresponde mais, à distribuição dos talentos
dos costumes são para a conduta. Dirigem o pensamento do sábio, naturais. ,Porque, seja o que for que a respeito se tenha dito (49),
como as do direito e dos costumes governam as ações das pessoas. não é unicamente por espírito de imitação que as classes inferiores
Ora, se cada ciência tem o seu método, a" ordem que ele realiza i acabam ambicionando a vida das classes mais altas. Mesmo, para
toda interna. Coordena ele as interpretações dos cientistas que culti- dizer a verdade, a imitação por si só nada pode explicar, porque
°
vam uma mesma ciência, não suas relações com exterior. Não há supõe algo que não ela mesma. Só é possível entre seres que já se
assemelham e na medida em que isto acontece; não se produz entre
disciplinas que concertem os esforços de ciências diferentes, objeti-
vando um alvo comum. É isto sobretudo certo com respeito às ciên- esPécies ou variedades diferentes. Há contágio moral, como há con-
cias morais e sociais, porque as ciências matemáticas, físico-químicas tz.gio físico: ele só se manifesta bem em terrenos predispostos. Para
e, mesmo, biológicas não parecem nesse ponto ser estranhas umas que as necessidades se propaguem de uma para outra classe, impor-
°
às outras. Mas o jurista, o psicólogo, O antropologista, economista, ta que as diferenças, que, primitivamente, as separavam, tenham desa-
° estatístico, o lingüista, o historiador procedem a suas investigações parecido, ou diminuído. É necessário que, devido ao efeito das
mudanças que se produziram na sociedade, uns se hajam tornado
como se as diversas ordens de fatos que estudam formassem outros
tantos mundos independentes. Na realidade, porém, eles se pene- aptos ao exercício de funções que, à primeira vista, excediam a sua
tram de todas as partes. O mesmo deveria dar-se, por conseqüência, capacidade, ao passo que outros perdiam algo da própria superiori-
com as ciências correspondentes. Eis aí donde procede a anarquia dade original. Quando os plebeus se puseram a disputar aos patrícios
que foi assinalada, aliás sem exagero, na ciência em geral, mas que a honra das funções religiosas e administrativas, não o fizeram
é principalmente verdadeira no tocante àquelas ciências determina·. somente para imitá-los, mas porque se haviam tornado mais inteli-
das. Oferecem elas, com efeito, o espetáculo de um agregado de gentes, mais ricos, mais numerosos, e porque seus gostos e suas
partes disjuntas, que não concorrem entre si. Portanto, se formam ambições se tinham modificado, conseqüentemente. Em decorrência
um conjunto sem unidade, fazem-no, não porque não tenham um de tais transformações, o acordo entre as aptidões dos indivíduos e
sentimento suficiente de suas semelhanças, mas porque não são orga- o gênero de atividade que lhes é destinado se encontra rompido em
nizadas. toda uma região da sociedade; somente a coerção, mais ou menos
Esses diversos exemplos constituem, pois, variedades de uma mes- violenta e mais ou menos direta, os liga às suas funções, e, por con-
ma espécie. Em todos os casos vistos, se a divisão do trabalho não seguinte, somente uma solidariedade imperfeita e perturbada é pos-
produz a solidariedade, isto se deve a que as relações dos órgãos não sível.
são regulamentadas, a que se encontram num estado de anomia. Semelhante resultado não representa, portanto, uma conseqüência
necessária da divisão do trabalho. Não se produz senão em cir-
cunstâncias bem particulares, a saber, quando é o efeito de uma
A divisão constrangida do trabalho coerção, ou constrangimento, exterior. Acontece de modo totalmente
diferente quando a coerção se estabelece em virtude de espontanei-
Entretanto, não basta que haja regras. Porque, às vezes, essas dades puramente internas, sem que nada venha atrapalhar as inicia-
próprias regras é que são a causa do mal. É o que acontece nas tivas dos indivíduos. Com essa condição, efetivamente, a harmonia
lutas de classes. A instituição das classes, ou das castas, constitui entre as naturezas individuais e as funções sociais não pode deixar
uma organização da divisão do trabalho, e uma organização estrei- de produzir-se, pelo menos na média dos casos. Porque, se nada
t,amente regulamentada. Muitas vezes, entretanto, representa uma entrava ou favorece indevidamente os concorrentes que disputam
fonte de dissenções. Não estando as classes inferiores satisfeitas, ou entre si as tarefas, é inevitável que só os mais aptos para cada
não estando mais satisfeitas, com o papel que lhes é reservado pelo gênero de atividade chegnem a alcançá-las. A única causa que,então,
costume, ou pela lei, aspiram às funções que lhe são interditas ~ determina a maneira pela qual o trabalho se divide é a diversidade
procuram tirá-las daqueles que as exercem. Daí, guerras intestinas, das capacidades. Pela força das coisas, a partilha se faz, pois, no
devidas à maneira pela qual o trabalho é distribuído ... sentido das aptidões, porquanto não há razão para que se faça de
Se a instituição das classes, ou das castas, dá, às vezes, nasci~
mento a conflitos dolorosos, em lugar de produzir a solidariedade, é
que a distribuição das funções sociais em que se baseia não corres- (49) Tarde, Lois de l'imitation.

128 129
outro modo. Assim se realiza por si mesma a harmonia entre a cons- que perm1tisse aos homens satisfazerem livremente todas as suas
tituição de cada indivíduo e sua condição. :Qir-se-á que isso nem tendências, boas ou m~s, mas numa organização esclarecida, em
sempre basta para contentar as pessoas e que existem aquelas cujos que cada valor social, não sendo exagerado, nem num sentido, nem
desejos ultrapassam, sempre, as faculdades. Isto é verdade, mas casos em outro, por nada que se lhe mostrasse estranho, fosse considerado
assim são excepcionais e, pode-se dizer, mórbidos. Normalmente, o pelo seu justo preço. Objetar-se-á que, mesmo nessas condições,
homem encontra a felicidade atendendo aos imperativos de sua ainda há luta e, em conseqüência, vencedores e vencidos, 'e que estes
natureza; suas necessidades estão em relação com os seus meios. últimos não aceitarão, jamais, a não ser constrangidos, a sua der-
Assim é que, no organismo, cada órgão só reclama uma quantidade rota. Mas este constrangimento não se parece com o outro e só tem
de alimentos proporcionada à sua importância. de comum com ele o nome: o que constitui o constrangimento pro-
A divisão constrangida do trabalho é, portanto, o segundo tipo priamente dito é que mesmo a luta é impossível, é que nem sequer
mórbido que reconhecemos. Mas não nOs devemos enganar quanto se é admitido a combater (Excerto de EMILE DURKHEIM, De la
ao sentido da palavra. O que causa o constrangimento não é qual- division du travail social, Paris, P. U. F., 7."00., 1960 [L" 00.,
quer espécie de regulamentação, uma vez que, pelo contrário, a 1893] págs. 73-75, 79-83, 98-101, 356-360, 368-371).
divisão do trabalho - acabamos de vê-lo - não a dispensa. Mesmo
: 'f
quando funciona numa sociedade de modo regular e sem resistência,
a distribuição não é, necessariamente, o efeito de um constrangimen-
to. É o que acontece até mesmo sob o regime das castas, enquanto
ele estiver fundado na natureza da sociedade. Semelhante institui-
ção, com efeito, não é sempre e em t-oda a parte arbitrária. Mas,
quando funciona numa sociedade de modo regular e sem resistência,
é que exprime, pelo menos em grosso, a maneira imutável pela qual
se distribuem as aptidões profissionais. Daí resulta que, embora as
tarefas sejam, em certa medida, distribuídas por lei, cada órgão
desempenha espontaneamente a sua. O constrangimento só começa
quando a regulamentação, não mais corresponde à verdadeira natu-
reza das coisas, e, JXlr conseguinte, não tendo mais base nos costu-
mes, só se sustenta pela força.
Inversamente, pode-se portanto dizer que a divisão do trabalho
não produz a solidariedade, salvo quando é espontânea e na medida
em que o é. Mas por espontaneidade importa entender a ausência,
não simplesmente de qualquer violência expressa e formal, mas de
tudo o que pode entravar, mesmo indiretamente, o livre desdobra-
mento da força social que cada um traz em si. Ela supõe não somente
que os indivíduos não sejam relegados pela força a determinadas
funções, mas, ainda, que nenhum obstáculo, seja de que natureza for J
os impeça de ocupar, nos quadros sociais, o lugar correspondente às
suas faculdades. Em uma palavra, O trabalho não se divide esponta-
neamente senão quando a sociedade é constituída de molde a que as
desigualdades sociais exprimam exatamente as desigualdades natu-
rais. Ora, para tanto, é preciso e suficiente que estas últimas não
sejam nem realçadas nem depreciadas por qualquer causa exterior.
A espontaneidade perfeita, portanto, não é senão uma conseqüência
e uma outra forma deste outro fato: a absoluta igualdade nas con-
dições exteriores da luta. Ela cpnsiste, não num estado de anarquia,

130 131
SEGUNDA PARTE

A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA SOCIAL


.: : 'f
COMO OBJETO PRIVILEGIADO DA
TEORIA SOCIOLóGICA
INTRODUÇÃO

Esta segunda parte é consagrada à progressiva emergência de


modelos teóricos explicitamente forjados a partir do conceito de
sis~ema, que constitui, de certo modo, o seu elemento essencial.
O estudo do sistema, ou, antes, dos sistemas sociais tem .tido, com
• <10-
efeito, crescentemente, tendência para tomar-se objetivo prioritário .'
...:.... e, às vezes, mesmo, o que é mais lamentável, exclusivo - da pes-
quisa sociológica, sob a influência das perspectivas teóricas que nos
esforçaremos, ao longo de toda esta parte, por enfocar. O estrutu-
r()-funcionalismo veio assim ocupar a frente do palco nos anos 1950,
mesmo quando, no bojo dessa corrente, se travavam polêmicas quan-
to à fecundidade de uma teoria geral edificada sobre tais bases e
ainda que tivesse sido preciso evitar, como o veremos, que entrassem
na estrita escala de referência do estruturo-funcionalismo todos os
paradigmas fundados sobre o primado e sobre a elaboração do con-
ceito de sistema. A importância do estruturo-funcionalismo foi, entre-
tanto - e o continua sendo, em grande parte - tão considerável, que
nos pareceu imprescindível fazer do problema de sua validade -
assim como, em certos casos, de sua validação - o tema principal do
primeiro título da segunda parte, na qual, ao lado das mais conside-
ráveis interrogações teóricas, será concedido lugar às considerações
mais especificamente epistemológicas.
, Começaremos por remontar no tempo às origens do funcionalismo,
aqui encarado como modo de pensar propriamente sociológico, de
maneira a circunscrever, com suficiente precisão, de um lado os seus
precursores, de outro lado os seus fundadores. É num clima inte-
lectual marcado pelas teses organicistas que o funcionalismo irá,. a
pouco e pouco, ganhar forma. Por isso esta seção se abre com uma
passagem tomada de empréstimo aos Principies of Soci!>logy, de
Herbert Spencer, que é, sem a mínima dúvida, o mais autorizado
representante do organicismo (I). N otar-se-á que Spencer não pos-

(1) Sobre esse tema, ver Judith Schlanger, Les Métaphores de rorganisme,
p:aris, Vrin, 1971, págs. 166-171. O leitor poderá reportar-se, também, ao .artigo
de. Pierre Birnbaum na Encyclopedia Universalis.

135
tula aqui uma identidade de natureza entre organismo sociológico c chama os isolats funcionais. Contudo, não soube, nesse legíttmo
corpo social, mas funda toda sua argumentação sobre uma analogia emprendimento, precaver-se contra certos escolhos, que são, com fre~
relativa aos princípios de organização no todo. De fato, semelhante qüência, excessos. Assim, para melhor assinalar a oposição entre um
analogia se degrada muito depressa, na apresentação de Spencer, em simples "complexo de traços" e um verdadeiro isolat, afinnou, de
simples metáfora do crescimento. Mas nem por isso o sociólogo maneira a um tempo dogmática e inaceitável, que, neste último caso,
inglês enfatiza menos uma propriedade central do ponto de vista os elementos estavam unidos por via de relações de necessidade.
sistêmico, a saber, a Hmútua dependência das partes". E sublinha. Tampouco ele levou suficientemente em conta as advertências de
ao terminar, uma diferença capital entre o organismo, que forma um Durkheim dirigidas contra o finalismo. Postula uma ligação por de-
todo concreto, e a sociedade, que responde a um todo Hdiscreto", isto
mais estreita entre a função de uma instituição e as necessidades
é, descontínuo. René Worms esforçou-se no sentido de desenvolver
biológica, (ou primárias) do ser humano, mesmo quando concede
mais a fundo essa analogia, excluindo toda idéia de identidade de
natureza: sem utilizar essa linguagem, mostra ele, translucidamente,
um lugar às necessidades culturais (ou derivadas). E sua definição
que as sociedades, como os seres vivos, são sistemas abertos, entre- da função, como "satisfação de uma necessidade", é inadmissível,
tendo, com o seu meio-ambiente, relações seguidas, que permitem. por motivos concomitantemente epistemológicos e teóricos, a que vol-
elas somente, dar satisfação às funções de nutrição e de reprodução. taremos. Mas nem por isso ele demonstrou menos, e patentemente, Q
Insistindo no indispensável papel de mediação desempenhado, no interesse do conceito de função como "processo heurístico", para
interior de tais relações, pelo intercâmbio entre Os atores sociais, citar a expressão final do texto aqui apresentado.
Worms recorre, mesmo, à noção - bem durkheimiana - de "meio O trecho de Radcliffe-Brown, que é tirado, notemo-lo de passagem,
interior", mas não se aproveita disso para destacar, por detrás da de uma obra póstuma, testemunha um funcionalismo mais sutil: por
analogia, certas características originais do social. coerência funcional, o etnólogo britânico designa a interdependência
O método interpretativo de Durkheim o leva a privilegiar, sem das partes e as ligações recíprocas - oferecidas à observação do
dificuldade, uma perspectiva especificamente sociológica, que tem pesquisador - que elas entretêm. Tomando para exemplo o potlatch
por objeto os fatos sociais e sua análise própria. O f~agmento aqui dos tlingits, Radcliffe-Brown mostra que, se ele constitui, antes de
apresentado constitui, antes de tudo, uma crítica magistral do fina- mais nada, um mecanismo econômico, mantém relações de mútua
lismo e, através dele, de toda e qualquer interpretação do social dependência com a estrutura familiar, com a estratificação social e_
baseada em elementos constantes, concebidos como os atributos de com a mitologia própria daqueles índios. Fica-se com o direito, por-
uma natureza humana imutável. Mas Durkheim se revela, também, tanto, segundo Radcliffe-Brown, de falar de sistema na medida em
aí, como o pai da análise funcional, mesmo quando afirma que a que toda sociedade repousa sobre um funcionamento concertado de
pesquisa da função deve ser subordinada à da causa. Partindo, com suas diversas partes. Contudo, ficar-se-á admirado da radical incom-
efeito, do sentido genérico, segundo o qual a utilidade reconhecida patibilidade mantida por Radcliffe-Brown entre a existência de con-
do fenômeno constituiria a sua função, ele o apura progressivamen- flitos e a sua concepção da coerência, verossimilmente devida à
te, para destacar a "correspondência" entre o objeto estudado e "as integração relativamente forte das sociedades que constituíram seu
necessidades gerais do organismo social". E, indo além desta pri- principal objeto de estudo, quando comparadas às nossas sociedades
meira definição, acaba por ver, aí, ao termo da passagem citada, a industrializadas, cujos conflitos endêmicos não implicam) necessaria~
"parte" que toca ao fato analisado "no estabelecimento de (da) mente, a abolição de toda ordem, nem acarretam para o sociólogo
harmonia geral". Sem dúvida, pode-se notar, aqui, o reaparecimento um inelutável abandono de qualquer perspectiva sistêmica.
das metáforas derivadas do organicismo. Mas essas expressões não As vivas resenras de Merton em relação à idéia de coerêtlcia fun-
devem fazer perder de vista o esforço de Durkheim para aprofun, cional conduziram-no, verossimilmente, a uma excessiva severidade
dar a significação do conceito de função e fazer disso um instru- para com a perspectiva teórica defendida por Radcliffe-Brown, a
mento conceptual apropriado à pesquisa sociológica. qual, sem dúvida, é mais elabcrada do que ele pretendeu que o
No domínio dos inquéritos antropológicos é que " funcionalismo, fosse. Elas, porém, o compeliram, também, a propor, com o seu céle-
primeiramente, foi posto à prova. Malinowski, contra as teses difu- bre paradigma, uma nova modalidade de análise funcional. É, com
sionistas, que desconheciam a interdependência dos fenômenos cultu . . efeito, o método interpretativo a seguir, o método a observar qu~
rais, foi assim levado a defender a unidade interna daquilo que ele Merton acentua, muito mais do que orientações propriamente teóri..

136 137
cas (2). Está-se, aqui, na presença de um paradigma formal, isto pretendida hierarquia de controle não serve senão para mascarar
é, de um contexto vazio, que deve ser essencialmente apreciado em o primado absoluto - e, por isso mesmo, indevido - dado aos
função de seu poder heurístico, de sua aptidão para fazer descobrir valores. Finalmente, o papel atribuído à diferenciação pode parecer
fatos significativos em relação a determinadas questões, do tipo das excessivo.
que Merton propõe ao fim de cada parágrafo do paradigma. EI~ A análise dos processos de diferenciação representa, em todo o
tem o duplo mérito de frisar que a sociedade global não é a única caso, uma peça mestra do sistema parsoniano. Mostra-o a passagem
escala de referência possível para uma aproximação funcional e que de Eeonomy and Society consagrada à separação da propriedade e
convém determinar, com precisão, "a unidade servida pela função". da direção. Esse texto apresenta uma dupla vantagem: por um lado,
Em contrapartida, sua caracterização da noção de função carece de permite constatar, contrariamente a uma crítica superficial, que o
rigor : ele não especifica, suficientemente, as condições a que devem funcionalismo de Parsons não o impede de abordar o problema da
satisfazer "conseqüências objetivas" para merecerem o nome de fun~ mudança estrutural. IPor outro lado, representa um ensaio audacioso,
ção. E, reintroduzindo as questões de intenção, que Durkheim, entre- senão convincente, de aplicação a determinado fenômeno de um
tanto, propusera banir, chega a uma distinção entre funções mani- esquema cuja abstração foi freqüentemente tachada de esterilidade,
festas e funções latentes, cujo fundamento pode ser contestado. para não dizer de prestidigitação escolástica. Certamente, tem-se 0
direito de censurar Parsons quanto aos limites de um modelo que
Passando de Merton a Parsons, muda-se de estilo, de tom e de
deixa de lado as mutações do sistema de valores dominante e que,
ambição. Ao partidário das teorias de alcance médio sucede, com
em sua insistência a respeito dos mecanismos de evolução, negli-
efeito, um obstinado defensor da teoria geral. O paradigma formal, gencia, como o notou Gouldner, os fatores de revolução. (4) E taJ.·
de sóbria concisão, é substituído por um complexo conjunto de cate- vez conviesse recolocar a separação da propriedade e da direção
gorias, cujo ordenamento Talcott Parsons apresenta em nosso pri- em seu contexto sócio-histórico, de maneira a apreciar-lhe o alcance
meiro texto e que pode ser considerado, em relação aos últimos quin- exato, que é, sem dúvida, sobrevalorizado por Parsons e Smelser,
ze anos, como seu breviário teórico. O paradigma proposto é, com conquanto não se deva cair no excesso contrário e ver, aí, um acon-
toda a evidência, conceptual (3), e se está construído em torno da tecimento de somenos importância. Mas, pelo menos, essa passagem
idéia de sistema social e dos quatro máximos imperativos funcionais focaliza um original esforço da parte de nossos dois autores na ten·
_ ft:nções de manutenção dos modelos, de integração, de realização tativa de explicarem certos aspectos da mudança estrutural, mesmo
dos fins e de adaptação - cede importante lugar, igualmente, aos que não se deva procurar neSSe domínio O ponto forte da obra
conceitos estruturais de valor, de norma, de coletividade e de papel parsoniana.
e introduz noções essenciais na perspectiva parsoniana, como as de Posto que as passagens de Parsons, colhidas e apresentadas aqui,
segmentação, de especificação e, sobretudo, de diferenciação. Em estejam ligadas, uma e outra, à sua segunda construção teórica cen~
contrapartida, as variáveis, os principais instrumentos conceptuais tralizada em torno das quatro funções, acreditamos iniciar nosso ter-
postos em ação em The S oeial System não figuram aqui, o que basta ceiro capítulo, de orientação mais crítica, com o artigo esclarecedor
para mostrar as distâncias tomadas em relação a um período ante- consagrado por David Lockwood a Ti>e Social System e, portanto,
rior. Encontra-se, igualmente, nessa exposição sistemática, um certo ao primeiro paradigma parsoniano, fundado sobre as variáveis. (5)
número de dificuldades inerentes à concepção parsoniana: o estatuto Lockwood acentua, sem dificuldade, os aspectos que Parsons teve
reservado aos subsistemas econômico e político no contexto da aná~ tendência para negligenciar ou, mesmo, ignorar, a saber, os elemen-
lise propriamente sociológica não está isento de ambigüidade. A uti- tos não normativos que constituem, segundo sua própria expressão, Q
lização do conceito de equilibrio em sociologia é, pelo menos, dis- substrato da ação social. Ele contesta, assim, a generalidade do qua-
cutível, e sua fecundidade continua ainda por ser demonstrada. A dro conceptual enunciado por Parsons, que, privilegiandô excessiva-

(4) Alvin G'ouldner, The Coming Crisis of Western Sociology, Londres,


(2) ~ o que acentua, igualmente, M. J. Mulkay, Functionalism, ~xchange
Heinemann, 1971, pág. 361.
anel Tlteoretical Strategy, Londres, RoutIedge & Kegan Paul. 1971, notada-
(5) Sobre as diferenças e os parentescos entre esses dois paradigmas parse>-
mente na pág. 119. nianos, permitir-nos-emos indicar ao leitor o trabalho de François ChazeI, La
(3) A distinção entre paradigma formal e paradigma conceptual é proposta
por Raymond Boudon, em seu artigo .. Théories, théorie e Théorie", La crise thiorie analytique de la société dans l'oeuvre de Talcott Par.rons, Paris, MoutoDt
de la sociologie, Genebra, Droz, 1971, págs. 166-169.
1974.

139
138
mente as bases normativas da ordem' social, não levou suficiente- mente não formularam COm suficiente rigor, na ausência de uma
mente em conta a ligação recíproca entre norma e substrato. Convém, clara especificação do campo de análise ou de definições operatórias.
portanto, ao mesmo tempo, segundo o sociólogo britânico, alargar e Em compensação, Hempel reconhece, ao terminar, o interesse pro-
retificar a perspectiva, buscando sua inspiração nas fontes marxis- priamente heurístico do funcionalismo, que convida a compreender
tas e devolvendo, ao estudo aprofundado do conflito e do poder, o como um programa de pesquisa chamado a determinar a existênCIa
lugar que lhes cabe no contexto da análise sociológica. Definitiva- e a importância do fenômeno de auto-regulação, e não mais como
mente, Lockwood se esforça por focalizar o caráter não equitativo um corpo teórico.
e não abrangente da perspectiva teórica adotada por Parsons e, com É ainda nas exigências próprias desse modo de análise que insiste
isso, marcar fortemente os limites de seu campo de aplicação. Alvill W. Gouldner, no início da passagem aqui apresentada, subli-
nhando que, para ser completa, a explicação não consiste somente em
Com o artigo de Ernest N agel, passamos a um exame minucioso
do paradigma mertoniano, e aí está exposto sobretudo o ponto de le;var em conta as conseqüências de A para B, mas igualmente em
vista de um filósofo das ciências. Nagel propõe-nos de início uma considerar as de B para A. Ele é fundada, pois, segundo a expres-
nova leitura do paradigma, que lhe revele o caráter formal e precise são de Gouldner, no Hprincípio de reciprocidade funcional". Nem
nitidamente suas condições de aplicação. Ao mesmo tempo o rigor por isso tem o pesquisador o direito de estabelecer incondicional-
de sua interpretação lhe permite fazer ressaltar as deficiências da mente semelhante princípio. Deve ele, para cada fenômeno estudado,
apresentação mertoniana. Assim, Nagel quer saber se é necessário demostrar-lhe empiricamente a existência e, quando não for o caso,
tratar à parte, num paradigma de análise funcional que aspire à ge- proCurar os mecanismos suscetíveis de desempenharem o papel de
neralidade, a categoria das disposições subjetivas que, quando muito, substitutos funcionais. Não há, com efeito, um só tipo de sistema
não constitua senão uma Hcoordenada de estado" entre outras, isto empírico caracterizado por uma forte interdependência de suas partes:
é, uma variável independente suscetível de influenciar tal ou qual o ,grau de interdependência varia, ao contrário, em função do siste-
propriedade específica do sistema considerado. Nota ele, igualmente, ma considerado, do mesmo modo que a autonomia funcional das
que o termo função pode designar, quer a estrita preservação da pro- partes, para a qual Gouldner chama nossa atenção, opondo-se, assim,
à· ,maioria dos estruturo-funcionalistas e, nomeadamente, a Parsons,
priedade G no sistema S, quer o conjunto dos efeitos compatíveis
.com a manutenção dessa propriedade. Ele ainda censura Merton de que tinham tendência para privilegiar o todo. Esta aproximação o
haver estabelecido uma distinção fundamental entre fUl1ções mani- leva a pôr em relevo as tensões entre as pressões centrípetas e as for-
festas e funções latentes, quando ela não é pertinente senão em ças- 'centrífugas, a devolver assim o seu lugar ao conflito e a revelar
-casos particulares, cuja natureza o sociólogo americano deixou de tipos de mudança que os funcionalistas propenderam a desconhe-
especificar. Por fim, ele lamenta que Merton não leve explicita- cer, ,como a não-diferenciação estrutural, de que teremos ocasião de
mente em conta o meio-ambiente próprio do fenômeno que cons- falar de novo. Por isso Gouldner não nos propõe simplesmente um
titui objeto de uma análise funcional. Nem por isso N agel perma- funcionalismo melhorado, em que não transparece mais a rigidez
nece menos, no conjunto, a despeito de tão importantes correções, da' formulação clássica, mas reúne, concomitantemente, alguns dos
inst.rumentos que permitirão superá-lo.
muito favoravelmente disposto em relação ao empreendimento mer-
toniano e, mais geralmente, à análise funcional. Enquanto, na interpretação estruturo-funcional, a interrogação diz
É ainda a estrutura lógica desse modo de análise que retém a aten-
respeito, essencialmente, às funções assumidas pelo sistema ou ainda
<;ão de um outro filósofo das ciências, CarI Rempel. Mas aqui o àS'.:exercidas por algumas de suas partes específicas, a teoria geral
deis. sistemas se interessa sobretudo pelo próprio sistema, pelos seus
julgamento se faz mais reservado e, mesmo, mais severo. Antes de
tudo, a análise funcional, quer proceda por indução, quer por de- modos de adaptação e pelas transformações que daí podem decorrer.
Para fazer isso ela recorre cada vez mais freqüentemente aos modelos
dução, não fornece senão uma explicação modesta: a satisfação da
condição n no ~istema s implica, não a presença de um traço espe- cibernéticos, que permitem, COm efeito, compreender a maneira por
que os sistemas reagem às informações que recebem.
cífico i, mas unicamente a de um elemento qualquer do conjunto I
(do qual i, por definição, faz parte). Da mesma forma, as predi- Mas o primeiro objetivo da teoria geral dos sistemas foi o de
ções fundadas sobre esse tipo de raciocínio não podem ser senão precisar o seu próprio campo de aplicação. Para lá das analogias
condicionais. Ainda somente são possíveis no quadro de hipóteses organicistas, Bertalanffy foi o primeiro a mostrar que essa teoria
apropriadas de auto-regulação, que os autores funcionalistas geral- pod.eria permitir ligar as ciências sociais às ciências exatas, graças :i

140 141

l1-T.S .
...I-
descoberta de uhomologias de funcionamento", que, assim, aproxi- conhece o interesse das teorias sistemáticas (Maruyama, Buckley
mariam os diferentes sistemas. Inspirando-se nas leis quími::as ou etc.), as quais ele analisou previamente, mas estima, em definitivo,
biológicas, sublinha ele, efetivamente, que elas podem, do mesmo que realmente elas não se distinguem de um modelo funcionalista.
modo, aplicar-se aos sistemas sociais abertos e em contacto com o seu Deutsch, por sua parte, aplica à organização o modelo cibernético,
meio-ambiente. Para que eSSa pesquisa dos "isomorfismos" fosse efi·· que mais tarde deveria expor num trabalho que ficou clássico, The
caz, seria ainda preciso distinguir, de maneira precisa, os diferentes N erves of Govern'11Wnt. Nessa perspectiva, o funcionamento da orga-
tipos de sistemas sobre os quais fora conveniente fazê-la il1cidir. nização repousa numa boa transmissão da informação por meio de
James Miller apresenta, com este objetivo e com grande rigor, as eficientes circuitos internos. Mas, se tal modelo permite que o autor
características que opõem os sistemas entre si: sistemas abertos ou proponha interessantes questões, conduz também a passar em silêncio
fechados, vivos ou não vivos, abstratos ou concretos... Tais distin· um grande número de problemas a que devem fazer face todas as
çóes lembram ao teoricista que ele deve, em cada ocasião, especifi- organizações, se quiserem persistir e adaptar-se, a despeito dos con-
car o sentido dado ao conceito de sistema e lhe permitem, assim, flitos que não deixarão de desenvolver-se em seu seio. Como o pro-
evitar confusões tanto mais graves quanto os sistemas sociais não.) punha Maruyama, seria igualmente desejável aplicar às organizações
sãe comparáveis a qualquer tipo de sistema. O texto de Maruyama a segunda cibernética e a retroação positiva. É no quadro de uma
assinala um importante momento da história da teoria dos sistemas, análise das diversas modalidades de fonnação do consenso nas so-
porque pela primeira vez enfoca a existência de um processo de ciedades que Etzioni utiliza, por sua parte, a cibernética. Começa
retroação positiva, que, bem longe de facilitar unicamente a adap- por precisar que, para apreciar o grau de eficiência ou de ineficiên-
tação do sistema pelo retorno ao estado de equilíbrio, amplifica' as cia da direção de uma sociedade global por si mesma, é preciso to- .
tensões. Ao passo que os modelos sistêmicos mais correntes u~i1i­ mar em consideração, concomitantemente, o controle social e a ela-
zam sobretudo a retroação negativa, Maruyama indica a maneir3 boração do consenso. O controle social é aqui encarado e não é um
pela qual a morfogênese, diferentemente da homeostasia, tende ,a dos menores méritos de Etzioni - sob seu duplo aspecto: um aspec-
acelerar a mudança do sistema. Simultaneamente Maruyama põe. de to de regulação, que dá todo seu sentido à analogia com o modelo
novo em causa as leis da causalidade, as quais, segundo Bertalanffy, cibernético, e um aspecto de poder no sentido clássico do termo, isto
prevaleceriam em todos os sistemas. O autor ilustra sua concepção é, como capacidade de vencer a resistência de outrem. Quanto ao
teórica com exemplos precisos, descrevendo, antes de mais nada,,' '.) consenso, ele não aparece como cristalizado, buscando Etzioni apreen-
funcionamento de um sistema urbano, depois o de um outro sistema, dê-lo em sua própria elaboração. Esse texto continua sendo, todavia)
tendo por objeto uma grande indústria. Como se pode notar, a· re- de uma generalidade !Xlr demais abstrata, e não leva em linha de
troação positiva transforma, consideravelmente, a teoria dos siste- conta a natureza intrínseca do consenso, nem tampouco a sua for-
mas, porque leva em consideração fenômenos de mudança. Se se con- mação concreta: não permite a focalização do papel dos conflitos e
siderar, ao contrário, simplesmente, a retroação negativa, pode-se, das c1ivagens reais num tipo de sociedade dada. 'Pode-se, parece, di-
no extremo oposto, encontrar o problema do controle social evocado, rigir a mesma censura ao exame dos processos revolucionários em-
já, em outros níveis do sistema social. Buckley insiste nesse sentido a preendidos por Ted Gurr. Sua análise marca excelentemente o inte-
respeito dos processos de controle exercidos por correção e adap- resse e os limites de uma aproximação cibernética da vida social.
tação. Mas nem por isso sublinha menos as diversas dificuldades Com efeito, se Gurr mostra como os governos podem responder a
contra que se chocam, apesar de tudo, os governantes, na sua direção um forte descontentamento para evitar a explosão, se ele estuda
do sistema. Segundo ele, com efeito, são tais os fatores de compli- bem as diversas estratégias possíveis e suas conseqüências, reduz a
cação, que ameaçam dificultar o empreendimento, até na simples violência a um simples H jogo" entre os oponentes e o regime, aban-
aplicação da retroação negativa. Inspirando-se, em certa medida, no donando, do mesmo passo, por sua vez, a dimensão histó~ica dos
modelo de Karl Deutsch, Buckley consegue evidenciar suas dificul-
fatos sociais.
dades de aplicação empírica.
Finalmente, se a teoria dos sistemas se revelou fecunda, quandü
Equivale a dizer que os modelos cibernéticos continuam esbar-
rando em certos limites, mesmo se se recorreu cada vez mais fre- de aplicações concretas (sistema urbano, política da ciência, racio-
qüentemente à sua utilização, para melhor compreender numerosos nalização das opções orçamentárias etc.), ainda hoje conserva um
processos sociais. Num texto de apresentação geral, Lazarsfeld re-. caráter demasiado mecanista, quando se vê utilizada no estudo dos

142 143

~
sistemas SOClalS ou políticos (Easton, Deutsch etc.). Ela não foi
CápáZ, com efeito, de explicar as tensões e os conflitos que interditam
com freqüência a simples adaptação e, mais geralmente, os dados da
história. Só o modelo de Maruyama poderia, talvez, contribuir pam
a compreensão dos 'processos inerentes à transformação dos sistemas
sociais.

TiTULO PRIMEIRO

SISTEMA, ESTRUTURA E FUNÇXO


~ 'i"

144

"~o <:
CAPÍTULO I

OS PREFUNCIONALISTAS

QUE É UMA SOCIEDADE?

HERBERT SPENCER

1:. Que é uma sociedade? Eis aí uma pergunta que é preciso lor-
mular e a que é preciso responder desde o início. A idéia que
formamos de uma sociedade permanece vaga, enquanto não decidi-
mos se se deve ou não ver aí uma entidade, e enquanto não re-
solvemos a questão de saber se uma sociedade, desde que se veja
nela urna entidade, deva ser classificada como absolutamente ·dife-
rente de todas as outras ou como semelhante a algumas' outras.
Pode-se dizer que uma sociedade não é mais do que um nome
coletivo empregado para designar certo número de indivíduos. Um
nominalista, transportando para outro terreno a controvérsia do no-
minéJ,lismo e do realismo, poderia afirmar que, assim como a única
coisa existente na espécie são os membros que a compõem, não tendo
a espécie, independentemente de seus membros, nenhuma existência,
assim também as unidades de uma sociedade existem sós, permaJ;le-
cendo a existência da sociedade puramente nominal. Poderia ele to-
mar para exemplo o auditório de um prof~ssor, em que não é
visto senão um agregado que desaparece ao fim da aula e que, por
conseguinte, não é uma coisa, mas, unicamente, um arranjó de pes-
soas, e poderia afirmar que acontece o mesmo com os cidadãos que
compõem uma nação.
Sem contestar OS primeiros termos desse raciocínio, podemos ne-
gar-lhe o último. No primeiro exemplo, o arrapjo é temporário; no
segundo, permanente. E é a permanência das relações existentes entre
as partes constitutivas que faz a individualidade de um todo e que
a distingue da individualidade das partes. Uma sólida massa que-
brada em pedaços deixa de ser uma coisa;, e, por oposição, as pe-
dras, os tijolos, a madeira, inicialme'nte separados, tornam-se a coiSa

147
que chamamos uma casal desde que arranjados segundo um método c;ões não são somente diferentes: suas diferenças são unidas por
fixo. via de relações que as tornam possíveis umas pelas outras. A ,assis-
Por isso temos razão de considerar a sociedade como uma enti- tência que mutuamente se prestam acarreta uma mútua dependênci!l
dade, porque, embora seja ela formada de unidades discretas, a con- das partes. Finalmente, as partes unidas por esse liame de depen-
servação, ao longo das gerações e dos séculos, de um arran jü que dência mútua, vivendo uma pela outra e uma' para a outra, compõem
de modo geral guarda a mesma fisionomia em toda região ocupada .um agregado constituído segundo o mesmo princípio geral de um
pela sociedade implica que a agregação de ditas unidades tem qual- organismo individual. A analogia de uma sociedade com um orga-
quer coisa de concreto. É mesmo esta qualquer coisa que nos for~ nismo torna-se ainda mais surpreendente quando se vê que todo
nece a noção de sociedade. Com efeito, recusamos o nome de socie- organismo de apreciável volume é uma sociedade, e quando se apren-
dade aos grupos sempre mutáveis formados pelos homens primitivos de, em seguida, que, tanto em um como 'em outro, a vida das uni-
e o reservamos para os gru}Xls em que se revela uma certa con3~ dades continua durante algum tempo, ao parar subitamente a vida do
tância na distribuição das partes, em conseqüência de uma existência agregado, ao passo que, se este não for destruído por violência,
regulada. sua vida ultrapassará de muito, em duração, a de suas unidades.
2. Visto que olhamos uma sociedade como coisa, em que gênero
de coi~a a classificaremos? Parece que ela não semelha nenhum dos
Ainda que o organismo e a sociedade difiram em que o primeiro
existe no estado concreto e o segundo no estado discreto, e ainda ...
~.

.que haja uma diferença nos fins servidos pela organização, isso não
objetos que os nossos sentidos nos dão a conhecer. Qualquer se-
determina uma diferença em suas leis: as influências necessárias
melhança que ela possa ter com outros objetos, não é pelos sen-
que as partes exercem umas sobre as outras não podem transmi-
tidos que O percebemos, mas unicamente pela razão. Se a relação
tir-se diretamente, mas se transmitem indiretamente (Excerto de
constante que une suas partes faz destas uma entidade, levantei-se
HERBE"T SPENCER, Principes de Sociologioe, Paris, Germer-Bailliere
outra questão: a de saber se as relações constantes que lhe unem' as
& Cia., 1879, t. 2, págs. 1-3 e 21-22).
partes são parecidas COm as relações constantes que unem as partes
de outras entidades. A única relação que se pode conceber entre uma
sociedade e outra coisa, deve ser uma relação devida à analogia
dos princípios que regulam a arranja das partes componentes.
Há duas grandes classes de agregados com os quais se pode com- ORGANISMO E SOCIEDADE
parar o agregado social: os inorgânicos e os orgânicos. Será que
os atributos de uma sociedade, considerados independentemente de RENÉ WORMS
suas unidades vivas, se parecem em alguma coisa com os de um
corpo não vivo? Ou Se parecem em alguma coisa com os de um
corpo vivo? Ou ainda diferem totalmente dos atributos de um e O organismo é um todo vivo composto de partes também vivas.
de outro? Seguramente, esta fórmula convém, do mesmo modo, à sociêdade.
Basta propor a primeira das interrogações pàra responder-lhe ne- Porque esta se compõe de partes vivas, os indivíduos, e ela mes-
gativamente. Um todo cujas partes são vivas não poderia ter carac~ ma é um todo que tem sua vida própria ...
teres gerais semelhantes aos dos todos privados de vida. À segunda O ser vivo distingue-se duplamente do ser inanimado, do ponto
pergunta, que não comporta uma resposta tão pronta, pode-se re- de vista dos caracteres morfológicos exteriores: seu contorno externo
dargüir afirmativamente. Vamos examinar- as razões existentes para não é, de forma alguma, geometricamente definido e varia a cada
.se afirmar que as permanentes relações que há entre as partes de instante. Dá-se o mesmo COm as sociedades. A forma exterior de
uma sociedade são análogas às relações permanentes que há entre as uma sociedade é determinada pelo território que ela ocupa. Mas as
partes de um corpo vivo ... fronteiras desse território seguem as linhas mais caprichosas. E são,
3. Uma sociedade é um organismo. - A sociedade apresenta um incessantemente, modificadas pela guerra ou pela colonização. Ausên-
.crescimento contínuo. À medida que ela cresce, suas partes tornam- . da de regularidade no espaço, ausência de estabilidade no tempo ...
.se dissemelhantes, sua estrutura fica mais complicada e as partes aí estão, pois, dois traços comuns à forma exterior da sociedade e à
dessemelhantes assumem funções também dessemelhantes. Estas fun- do organismo.

148 149

,
Em segundo lugar, o duplo movimento de entrada e de saída, de tais ou quais. Por conseguinte, não é esta uecessidade que pode tirá-
assimilação e de desassimilação, tão admirável no ser vivo, encon- las do nada e conferir-lhes o 'existir. É de causas de outro gênero
tra-se, também, no ser social. A cada instante, a sociedade, agindo que elas tiram a sua existência. O sentimento que temos da' utili-
sobre o meio exterior, faz que novas forças a penetrem, transfor- dade que apresentam bem pode compelir-nos a pôr essas causas em
mando tudo que a rodeia em riquezas 'Sociais. O desenvolvimento ação e daí tirar os efeitos que implicam, não a suscitar tais efeitos
das riquezas permite aos membros da sociedade aumentar a própria do nada. Semelhante proposição é evidente, enquanto não se tratar
vitalidade e favorece a Sua reprodução. Assim, novos indivíduos são senão dos fenômenos materiais ou, mesmo, psicológicos. Ela nª,o
procriados e vêm tomar lugar aos que desaparecem. O movimento de seria mais contestada em sociologia, se os fatos sociais, por causa
entrada 'e de saída desdobra-se, desta forma, na sociedade: há entrada de sua imaterialidade extrema, não nos parecessem, sem razão, des-
e saída de bens, entrada e saída de indivíduos. Mas uma e outra tituídos de toda realidade intrínseca. Como aí não se vêem senão
corrente contribuem, do mesmo modo, para a vida social. Também combinações puramente mentais, parece que eles devam produzir-
aqui a nutrição, constituída pela criação e pela absorção dos bens, se por si mesmos, desde que disso se tenha idéia e se, pelo menos,
traz a formação de novos elementos vivos e, com isso, assegura a forem considerados úteis. Mas, já que cada um deles é uma força
manutenção da vida social. ;E a nutrição tem, ainda aqui, como re- que domina a nossa, já que cada Um deles tem uma natureza que .. ,
~ .

·sultado. o armazenamento de certas forças no seio dos elementos lhe é própria, não poderia s'er suficiente, para dar-lhe a existência,
vivos da sociedade e a troca dessas forças entre os mesmos ele- ter desejo ou vontade de fazê-lo. Necessário ainda que forças ca-
mentos. Isto faz que exista para a sociedade, como para O orga- pazes de produzir essa força determinada, que naturezas capazes de
nismo~ um verdadeiro "meio interior", não sendo os alimentos dire- produzir 'essa natureza especial, sejam dadas. É com essa condição
·tamente tomados de empréstimo, pela maior parte dos indivíduos, sOmente que tal será possível. Para reanimar o espírito de família
ao meio externo, mas obtidos de seus semelhantes pelo mecanismo onde o mesmo se encontra enfraquecido, não basta que todo o mun-
de trocas. Este próprio meio interior presta à sociedade o mesmo do lhe compreenda as vantagens: importa acionar diretamente as
serviço que ao organismo. Ele a constitui, em certa medida, inde- causas suscetíveis, elas só, de engendrá-lo. IPara conferir a um go-
pendente do meio exterior, permitindo-lhe viver algum tempo de suas verno a autoridade que lhe é necessária, insuficiente sentir a neces-
reservas; e faz (como para o organismo) que cada uma das partes sidade de fazê-lo: impõe-se o endereçar-se às únicas fontes de que
do corpo social não fique somente submetida à ação das forças ex- toda e qualquer autoridade deriva, isto é, constituir tradições, um
ternas, mas, antes e principalmente, à ação de forças contidas na espírito comum etc. Para tanto, cumpre ainda remontar-se mais alto
própria sociedade: o que explica por que o caráter e a atividade de
à cadeia das causas e dos efeitos, até encontrar um ponto onde a
cada um de nós são muito mais determinados pela natureza dos
ação do húmem possa inserir-se eficazmente.
seres humanos que nos rodeiam do que pelos caracteres físicos do
meio cósmico ambiente (Excerto de RENÉ WORMS.. Organisme et O que mostra bem a dualidade dessas duas ordens de pesquisas é
société, Paris, Giard & Briere, 1896, págs. 38-39). que um fato pode existir sem servir para nada, seja por que ele
não tenha jamais sido ajustado a algum fim vital, seja porque, após
haver sido útil, tenha perdido toda utilidade, continuando a existir
unicamente pela força do hábito. Há, com efeito, ainda, mais so-
brevivências na sociedade do que no organismo. Há mesmo casos
CAUSA E FUNÇÃO em que uma prática ou uma instituição social mudam de funções,
sem, por isso, mudarem de natureza. A regra is pater est quem
EMILE DURKHEIM justae nuptiae declarant permaneceu materialmente em nosso código
o que era no velho direito romano. Mas, ao passo que, então, tinha
ela por objetivo salvaguardar os direitos de propriedade do pai sobre
Fazer 'Ver para que um fato é útil não é explicar como ele naSceu os filhos nascidos de mulher legítima, hoje é antes o direito dos filhos
nem como ele é o que é. Porque os empregos a que serve supõem que ela protege. O juramento com'eçou sendo uma espécie de prova
·as propriedades espetíficas,que o caracterizam, mas não o criam. A judiciária para vir a ser, simplesmente, uma forma solene e impo-
necessidade que temos das coisas não pode fazer que elas sejam nente do testemunho. Os dogmas religiosos do cristianismo não têm

150 151

,
L
mudado desde séculos. Mas o papel que desempenham em noss,as se as ofensas que sofrem não fossem castigadas. (7) Do mesmo modo,
sociedades modernas não é mais o meSmo que' tinham na Idade à medida que o meio social se torna mais complexo 'e mais móvel,
Média. É assim ainda que as palavras servem para expressar idéias as tradições, as crenças feitas se abalam, aSSumem qualquer coisa
novas, sem que mude a_ sua contextura. De resto, é uma propo. . de mais indeterminado e de mais elástico, e as faculdades de re-
sição v'erdadeira em sociologia, como em biologia, a de que o órg:âQ flexão se desenvolvem. Mas essas mesmas faculdades são indispen-
independe, da função. Equivale a dizer que, permanecendo o meSmo. sáveis às sociedades e aos indivíduos, para se adaptarem a um meio
ele pode servir a fins diferentes. Por conseguinte. é que as causas mais móvel e mais complexo. (8) A medida que os homens são obri-
que o fazem existir são independentes dos fins a que serve ... gados a fornecer um trabalho mais intenso, os produtos do mesmõ
Quando, pois, se empreende a explicação de um fenômeno social, se tor;nam mais numerosos e de melhor qualidade. }vIas tais pro-
preciso é pesquisar, separadamente, a causa eficiente que o produz dutos, mais abundantes e melhores, são necessários para reparar os
e a função que ele preenche. Servimo-nos da palavra função de pre- gastos que o trabalho, mais considerável, acarreta. (9) Assim, muito
ferência às palavras fim ou alvo, precisamente porque os fenôme- longe de a causa dos fenômenos sociais consistir numa antecipação
nos sociais geralmente não existem tendo em vista os resultados mental da função que eles são chamados a preencher, essa função
úteis que produzem. O que importa determinar é se há correspon- consiste, ao contrário, pelo menos em numerosos casos, em manter a:
dência entre o fato considerado e as necessidades gerais do .orga- causa preexistente de que derivam. Encontrar-se-á, pois, mais fa ..
nismo social e em que consiste essa correspondência, sem preocupa- cilmente, a primeira, se a segunda já for conhecida.
ção com saber se ela foi intencional ou não. Todas essas questões ,Mas se não se deve proc'eder, senão em segundo lugar, à determi-
de intenção se apresentam, por sinal, demasiado subjetivas para po- nação da função, ela não deixa de ser necessária, a fim de que a
derem ser tratadas cientificamente. . explicação do fenômeno se complete. Com ef'eito, se a utilidade do
Não somente ambas as ordens de problemas devem ser separadas, fato não é o que o faz existir, necessário, geralmente, é que ele
como ainda convém, em geral, discutir a primeira antes da segunda; seja útil, para poder manter-se. Porque basta que ele não sirva a
Essa ordem corresponde, efetivamente, à dos fatos. É natural pes- roisa alguma para ser por isso mesmo prejudicial, porquanto, no
quisar a causa de um f'enômeno antes de experimentar determinar- caso, torna-se custoso, sem nada produzir. Se, portanto, a generali-.
lhe oS efeitos. Tal método é tanto mais lógico quanto a primeira da:de dos fenômenos sociais tivesse um caráter assim parasitário, o
questão, uma vez resolvida, ajudará com freqüência a resolver' a orçamento do organismo estaria em déficit, a vida social s'eria impos-
segunda. Realmente, o laço de solidariedade que une a causa ao sível. Por conseguinte, para dar uma compreensão satisfatória da
'efeito apresenta um caráter de reciprocidade que não tem sido assaz ",ida social, é necessário mostrar como os fenômenos que lhe cons.
reconhecido. Sem dúvida, o efeito não pode existir sem sua causa, tituem a matéria concorrem entre si de forma a pôr a sociedade em
mas esta, por sua vez, tem necessidade de seu efeito. Dela é que harmonia consigo mesma e com o exterior. Sem dúvida, a fórmula
ele tira sua enE:rgia, mas também lha restitui . oportunamente e, por corrente, que define a vida Como uma correspondência entre o meio
conseguinte, não pode desaparecer, sem que disso a causa se res- interno e o meio externo, não é senão aproximada. Todavia, em ge-
sinta. (6) ,Por exemplo, a reação social que constitui a pena é devida ral é verdadeira e, em conseqüência, para explicar um fato de ordem
vital, não basta mostrar a causa de que ele depende: é preciso, ainda;
à intensidade dos sentimentos coletivos que o crime ofende. Mas, por
pelo menos na maioria dos casos, encontrar a parte que lhe cabe
outro lado, tem ela a útil função de entreter tais sentimentos em
110 estabelecimento dessa harmonia geral (Excerto de EMILE DUR-
grau igual de intensidade, porque eles não demorariam a debilitar-se"
KHEIM, Lesregles de la méthode sociologique, Paris, P. U.F., 15.'
ed., 1%3 [La ed., 1895] págs. 90-91, 95-97).
(6) Não gostaríamos de levantar aqui questões de filosofia geral, que não
estariam em seu lugar_ Observemos, todavia, que, melhor estudada, essa reci- (7) Division du travail social l, fI, capo fI e, notadamente, págs. 105
i
procidade da causa e do efeito poderia fornecer um meio de reconciliar O e ·s-eguintes.
mecanismo científico com o finalismo que a existência e, sobretudo, a persis- '(8) Division du travail social, 52, 53_
tência da vida implicam. (9) Ibidem, 301 e segs.

152 153
A TEORIA FUNCIONAL à atividade total, de que faz parte", sem ser' capaz de referir-se, de
maneira completa e precisa, ao que realmente se passa 'e ao que se
BRONISLAW MALINOWSKI
pode observar. Como o veremos, chegar-se-á a essa definição, mos-
trando-se que as instituiçõ'es humanas, do mesmo modo que as ati-
vidades parciais que aí se desdobram, estão ligadas às necessidades
1. Esboço de uma definição do funcionalismo primárias, isto é, biológicas e às necessidades derivadas, isto é, cul-
turais. A partir de então, a função significa, sempre, satisfação de
uma necessidade, desde a simples ação de comer até à execução sa-
A teoria comparativa e a experiência quotidiana das pesquisas de cramental, em que o fato de rec'eber a comunhão se inscreve em
campo têm, como devem, provado ao antropólogo que os fenômenos todo um sistema de crenças, determinadas pela necessidade cultural
culturais são solidários. Os laços entre o objeto e os utilizadores, entre de não se fazer senão um com O Deus vivo ...
a técnica, individual e social, e a propriedade de direito ou a econo-
mia de produção, as relações entre a morada e o ambiente domés-
tico são todos tão evidentes que nunca foram totalmente ignorados, 2. O conceito de função
mas nu.nca tão pouco claramente percebidos. Porque, como diz o : l'

provérbio, nada é tão difícil de ver como a evidência. Se o funcio- Declaro que eSSe conceito pode e deve achar lugar na análise das
nalismo consistisse simplesmente em dizer que "a magia e a econo- instituições. A função da família é a de alimentar a comunidade de
mia se entrecruzam", que Se inscrevem numa estrutura social e que cidadãos. Em virtude do contrato de casamento, a família engendra.
devemos incessantemente explorar as correlações, poder-se-ia, dest.1. uma descendência legítima, que deve ser alimentada, à qual se de-
feita, acusar a teoria de cair naquele totalitarismo científico que se vem dar rudimentos de educação e fornecer, mais tarde, bens ma-
gosta de emprestar-lhe. Não há nenhuma dúvida de que a ciência teriais e um estatuto tribal apropriado. A coabitação, reputada mo-
isola tanto quanto aproxima. O funcionalismo iria atolar-se noS char- ral (não somente no domínio da vida sexual como também no da
cos das relações e das contra-relações, se não pudesse assinalar cer- companhia e no do parentesco), junta à lei genealógica, ou, em outro$
tos isolats ou certas unidades significativas, que possuem limites na- termos, a carta da instituição, COm todas as suas conseqüências sociai.5
turais de coordenação e de correlação. Sou de opinião que esses iso- e culturais, eis o que nos dá a definição integral de semelhante instic
lats naturais existem e que se deve fazer deles a pedra angular de tuição.
toda análise cultural de qualidade. Qual a função da família ampliada? É, creio, a exploração mais
O isolat funcional, que denominei Instituição, distingue-se do com- eficiente dos recursos comuns, o reforço da autoridade jurídica no:
plexo cultural ou do complexo de traços definidos como "conjunto seio de uma célula da comunidade estreita e disciplinada e, muito
de elementos que não entretêm nenhuma relação necessária" no qu"?
freqüentemente, o aumento da influência política, isto é, da sega'..
precisamente ele estabelece, em princípio, uma relação de necessidade.
rança e do rendimento de células locais disciplinadas. A função do
De fato, o isolat funcional é concreto, isto ~" pode apresentar-se ao
observador sob os traços de um agrupamento social preciso. Tem clã: uma rede de relações suptemenliares que se sobrepõe aos grupos
uma estrutura que vale para todos os tipos de isolats. É real na me- de vizinhança e fonte de um novo princípio de proteção jurídica, de
dida em que podemos, não somente enumerar-lhe os fatores abs- reciprocidade econômica, de atividades mágicas e religiosas. O sis-
tratos, mas traçar em torno dele uma linha de demarcação concreta. tema dos clãs multiplica, portanto, os laços pessoais que se cruzam
O funcionalismo cometeria um abuso, s'e estudasse os aspectos funda·· de parte a parte de uma tribo-nação e dá largas a mais trocas de
mentais da cultura, da educação, do direito, da economia, do saber serviços, de idéias e de mercadorias do que poderia fazê-lo uma cul_
(primitivo ou não) e da religião, sem ser capaz de analisar e, por- tura organizada unicamente segundo o princípio das famílias amplia":':
tanto, de definir cada um dentre eles e de os relacionar com as das e dos grupos de vizinhança. Quanto à função da municipalidade;
n~essidades biológicas do organismo humano. consiste a mesma em organizar os serviços públicos e a exploração
O funcionalismo não teria mais nada de funcional, se não pudes'se coletiva dos recursos de um território, na medida em que tais ati':'
definir o conceito de função a não ser com a ajuda de fórmulas vidades são o fruto de uma cooperação, mas nos limites da acessi...
'especiosas, corno é a contribuição que traz uma atividade parcial
Cf bilidade de cada dia.

154 155
e, -antes de tudo, como processo heurístico (Excerto de BRONISLAW
" :As divisões organizadas de caráter sexual favorecem, assim como MALINOWSKI, Une théorie scientifique de la culture, ,Paris, F. M,as-
as classes etárias, os interess'es específicos dos grupos humanos de
4

pero, 1968 [L" ed., 1944] págs. 128-129, 137-139).


finidos segundo caracteres físicos. Se tentarmos compreender o que
se passa nas sociedades primitivas, refletindo sobre a sorte do homem
é da mulher em nossas sociedades, veremos que urna e outra con 4

dição têm suas vantagens e seus inconvenientes, e que uma comu-


nidade em que os sexos se embaralham explora talvez melhor as A COER~NCIA FUNCIONAL
vantagens e equilibra melhor as insuficiências. Acontece o mesmo DO SISTEMA SOCIAL
com a idade. As classes etárias determinam o papel, as virtualidades
~ ós serviços que convêm melhor a cada uma e distribuem o status R. RADCLIFFE-BROWN
e o poder, à guisa de recompensa. Que dizer dos grupos profissio-
nais, a não ser que sua função se define pelo serviço específico e
pela recompensa apropriada? Ainda aqui o antropólogo, para quem A noção de coerência funcional reveste uma vital importância nas
o estudo dos primitivos passa pela selvageria contemporânea, vê atua- ciências sociais. Suponhamos que se empreenda o estudo de uma
rem as mesmas forças integrais na associação das pessoas, que pres 4
sociedade e escolhamos, por exemplo, o grupo dos Ílldios tlingits.
tam os mesmOs serviços, compartem os mesmos interesses e buscam Esta sociedade aparece como uma entidade perfeitamente homogê-
a costumeira recompensa, ora com a mentalidade conservadora dos nea e distinta. É possível, por conseguinte, distinguir os indivíduos
primitivos, ora com o espírito de rivalidade que reina em nossa S04 que são autênticos tlingits dos que o não são. Sabemos, também,
ciedade revolucionária de hoje. que os tlingits se encontram disseminados em certo território deli 4

Esta análise funcional expõe o flanco a duas críticas. Poder-se-á mitado. Descrevemos, portanto, essa sociedade, mas que descreve-
censurá-Ia, antes de mais nada, de falta de vigor e de tautologia. mbs nós?
Em seguida, poder-se-á descobrir, aí, um argumento circular, por- Para analisar a sociedade dos tlingits, torna-se necessário, antes
qu'e, se definirmos a função como a satisfação de uma necessidade, de mais nada, observar que eles são organizados em diferentes gru-
ficaremos sujeitos a que nos suspeitem de haver introduzido, sub- pos, a saber; famílias reunidas em aldeias. Necessário também é
repticiamente, a necessidade a satisfazer para satisfazer à neces.;i- notar que eles formam grupos aparentados, que têm uma organiza-
dade de satisfazer a uma função. Assim, haveria clãs que - dir- ção fundada no princípio de complementaridade recíproca, clãs etc.
se-à - constituem uma diferenciação interna suplementar, até mes- e, além disso, que existem entre eles certas relações diádicas, regu-
mo além da obrigação. Pode-se dizer que se precisa legitimamente ladas e estandardizadas. Estes diversos elementos nos fornecerão as
dessa diferenciação, enquanto a necessidade não se faz sempre sen- grandes linhas de sua estrutura social.
tir? Há comunidades em que o clã não existe e que nem por isso Podemos descrever completamente "essa estrutura, mas somente se
se sentem pior. descrevermos um conjunto de usanças sociais, sem omitir (se quiser-
Longe de mim, antes de mais nada, todo e qualquer dogmatismo a mos que nossa descrição seja completa) as características do com-
respeito da matéria. Antes direi que o conceito de função proposto, portamento individual (na medida em que podemos determiná-Ias),
que permite estreitar a trama social, ampliar e aprofundar a distri~ as crenças, as idéias prevalecentes no seio da sociedade, o que co-
buição dos serviços e dos bens, das idéias e das crenças, bem po- mumente se chama a psicologia dessa sociedade.
deria dar provas de si lançando as bases de uma nova pesquisa, Sustento que existe um sistema subjacente a tais usanças. É de
fundada na vitalidade e na utilidade cultural de certos fenômenos toda a evidência que a descrição das mesmas não explica o sistema.
sociais. Poderíamos também incluir na evolução cultural o conceito Sustento que se produz entre os traços da sociedade em questão
de perpetuação, não dos organismos, nem mesmo dos grupos, mas das uma série de ações recíprocas que os ligam. Qual a natureza dessas
formas culturais. Princípio útil para avaliar as probabilidades da relações recíprocas? Cada uma das partes possui urna unidade- e,
difusão. Assim, pois, formulo o conceito de função pensando em se tal for o caso, em que termos será descrita essa unidade? Minha
grupos institucionais muito afastados, independentes uns dos outros
157
156

12-T.S.
concepção pessoal é conhecida:: pede-se descrever a: unidade, enfa, tegorias são acompanhadas: penteados, penachos, direito de ·dar ..um
tizando-lhe a coerência. Para discerpir o gênero de coerência de que certo, nome à sua casa etc. Não é difícil mostrar que graças ~w
se trata, para distingui-la da coerência lógica) que não é senão. sistema do potlatch é que se mantém a existência de toda a estru-
nunca, um gênero de coerência entre outros, proponho a seguinte tura familiar e de todo o sistema hierárquico sobre que repousa a
explicação: estrutura social. Tudo se realiza e funciona por efeito do potlatch_
É a própria estrutura social que subtende o potlatch, ao passo que
A mais baixa ordem de coerência só o é negativamente. Com
ele a' anima. Há entre ambos relação de reciprocidade. O funcio-
efeito, uma das primeiras e essenCIaIS condições da persistência dos
namento do potlatch em intervalos dados condiciona a manutenção
sistemas é que não 'exista nenhum defeito marcado de coerência.
entre as diversas características do sistema, defeito que engendraria
perpétuos conflitos entre elas, Esse aspecto unicamente negativo de \\1/ ,11/
coerência em matéria de sociedade significa que nenhum elemento O O
no conjunto da organização entra particularmente em conflito com 0=6.
outro. elemento. Ou, mais precisamente airida:. qüe nenhum apatec~ O O
como uma fonte de conflito aos olhos dos indivíduos que compõem O 01 Ii t,· :_'r
a sociedade, Aqui é preciso examinar a. reação da sociedade, não· a
O O
do antropólogo,
:- Uma segunda ordem de coerência se manifesta, quando uma p~rt~ O O
do sistema ínteiro implica uma ou várias outras partes. Produz-se
entre elas -uma ação recíproca, uma reI'orçando a outta. Conside'r'e-
mos uma instituição particular: o potlatch dos tlingits, Temos ,,:qüi da est.rutura. Pod-e-se ligar o intercâmbio- de !Qercadorias ao sistema
dois grupos, o das águias e o dos corvos, ligados por meio de de clã, às relações de parentesco, à classe. Pode-se dem')n~trar--a
tifos de complementáridade recíproca, Se os membros de uma ü- realiçlade dessa ação recíproca, considerando ..se unicamente as rela-
mHia pertencente a este lado quiserem construir uma 'casa, não: pO- çõe~ familiares que, na conjuntura, são ° r:esultado de casamentos
derão fazê-lo eles mesmos: ser-Ihes-á preciso recorrer aos que' hà-:- entr~ primos cruzados, isto é, entre pessoas pertencentes ao lado
bitam do outro lado, Em contrapartida, os membros da priméii'à de cá ou ao lado de lá, Uma: criança provinda da família de um
família terão que cumprir suas obrigações para com os da segunda, chefe ,deve casar com seu homólogo do lado que lhe fica defronte.
oferecendo-lhes uma grande festa, com ampla distribuição de p"- As crianças nascidas deste casamento verão sua classe ser designada
sentes. Se, por sua vez, os residentes do outro lado quiserem cons- !úercê de um potlatch de uma e da outra família. Os membros de
truir uma casa, ser-Ihes-á necessário observar o mesmo procédimeti., uma família darão um terreno à outra, e vice-versa. Quando as duas
to. Na verdade, vocês não _podem enterrar os. seus próprios mortos, unidade:::; entram em competição, para dar seus bens, cada qual con":'
nem erigir um totem: ser-Ihes-á preciso confiar o cuidado disso' aos tribui, assim, para afirmar a classe da outra no sistema. global dá
do "outro lado", Ao outro lado é que cabe validar a categoria hierarquia familiar.
dos filhos do lado de cá, Está claro que o potlatch equivale, aqui;
. ·Se examinarmos agora o sistema de crenças, de sentimentos, .de
idé.ias, notaremos que o potlatch implica, entre outras coisas, todo uni
a- uma usança econômica, a um mecanismo destinado, sob a forma de
conjimto de miNs. Alguns nada significam, enquanto não ligados ao
vasta distribuição de presentes, a promover a circulação das mer- patlatch, do mesmo modo que certos traços do potlatch não querem
~adorias. Se, todavia, vocês se limitarem a estudar somente as fases dizer nada, enquanto não estiverem ligados à mitologia.
econômicas da instituição, farão uma abstração artificial: arrancá-.la- Tomamcs aqui exemplo típico de um fato característico da so-
ão ao seu contexto e a despojarão de sua significação real. li ciedade em geral. O sistema considerado em primeiro lugar é o da
possível demonstrar que o potlatch contém muito mais. troca das mercadorias. Se, entretanto, conduzirmos a análise a fundo,
Ele implica, antes de tudo, a existência de usos de reciprocidade, constataremos que, antes de havê-la terminado, analisamos toda a
de clãs, de categorias e de rodas as particularidades de que as ca:- estruturé:!- social e fizemos um estudo exaustivo das crenças e das

158 159

L
idéias dos referidos indivíduos. Por certos caminhos obscuros, o mero de características abstratas. Se aplicarmos a palavra Usistema"
potlatch se insinua até mesmo no processo judiciário. Ele tem seu a esse gênero de sociedade, seu sentido mais importante não é o que
papel a desempenhar em casos de agressões vindas de um grupo de se refere à totalidade de tais características: é, ao contrário, o que
pessoas; estas podem redimir-se, seja tornando-se objeto de represá- tem relação com a coerência funcional, que permite descrever a to~
lias, seja por intermediação de um potlatch. talidade dos traços da sociedade enfocada (Traduzido de A. RAD-
CLIFFE-BROWN, A Natural Science Df .9ociety, Glencoe, Free Press,
A ação recíproca dos traços de uma sociedade poderia ser ilus-
trada de cem maneiras. Quando se procede a uma análise de con- 1957, págs. 124-128).
junto de uma sociedade sob o ângulo de um de seus aspectos, pen-
sa-se que tudo se liga a esse aspecto particular. A melhor ilustração
do fato nos é fornecida por Malinowski. Diz-nos ele: "Tomemos para
exemplo esta sociedade e sigamos os efeitos que sobre ela tem o
sexo"; ou, por outras palavras, examinemos a coabitação sexual. Ele
chega à conclusão de que, para estudar semelhante domínio, em
todos os detalhes, é preciso analisar a sociedade trobriandesa em : f
seu conjunto. Uma das discípulas de Malinowski declara, por sua
vez: "Apliquemo-nos a seguir o encaminhamento dos gêneros ali~
mentícios na sociedade para ver até onde ela nos conduz". Ainda aí
o alimento nos faz examinar todos os aspectos da sociedade, porque
é também por ele que todas as coisas se acham ligadas.
O que busco demonstrar é que uma sociedade representa um sis-
tema, no sentido de que, em roda descrição que dela (ou de sua
cultura) se poderia fazer, as diversas características funcionam de
concerto umas com as outras, de modo mais ou menos coerente. O
grau de coerência varia de uma para outra sociedade. A ordem mais
elementar é marcada, contudo, pela ausência de qualquer conflito e
encontrada nas sociedades mais simples. De resto, 'encontra-se tam·
bém uma ordem em que aS partes da estrutura, inclusive a cosmo-
logia característica dessa sociedade, concorrem estreitamente para se
reforçar entre si e para manter, por aí, a estrutura. É neste último
sentido que considero que os tlingits têm um !istema,
Mas o sistema tlingit semelha o de seus vizinhos do Sul, OS haídas.
Nossa análise será mais completa, se lhes analisarmos, também, o
caso. A certos respeitos, as usanças sociais dos haídas diferem das
dos tlingits. Se, por conseguinte, estudarmos os haídas, se comparar-
mos os dois sistemas e eliminarmos o que os deferencia, poderemos
então definir um sistema de que tlingits e haídas constituem dois
exemplos.
Seguramente, construímos um modelo abstrato. Sendo· os sistemas
tlingit e haída muito complexos, foi-nos preciso, devido à necessi-
dade da comparação, fazer ,fragmentar cada qual em um grande nú-

160 161
§-:2. - Motivação individual (motivos, alvos)

. Em' certo grau, a análise funcional supõe invariavelmente, ou utiliza expli-


citamente, uma concepção das motivações individuais que interessam a um
.!'istema social. Como a discussão precedente o mostrou, esses conceitos de
CAPiTULO Il disposição subjetiva são freqüentemente misturados (erradamente) a(lS con-
ceitos vizinhos, mas diferentes: conseqüências objetivas de uma atitude, dê uma
crença ou de ,um ,coIlJ.portamento.
A ELABORAÇÃO DE Questão-chave: Em que tipos de análise podem ser consideradas as moti-
vãções observadas como dados, e em que outros devem elas ser consideradas
NOVOS PARADIGMAS C~ttlO problemas, resultantes de outros dados?

§,3. - Conseqüência objetiva (j1mção, disfunção)

Por entre as diversas concepções da "função", temos encontrado duas con-


fusões principais:
a) a tendênci<;1' para limitar as observações sociológicas: às- contribuições ~ 'f
UM PARADIGMA DA ANÁLISE FUNCIONAL positivas de um elemento para o sistema social ou cultural em que ele -se
cP.Gontra;
ROBERT MERTON . '~ , b) a' tendência para confundir a categoria subjetiva de motivo COnl a
catégoria objetiva 'de função .
. 'Distinções' conceptuais são necessárias para eliminar essas éonfusões.
Um primeiro passo, evidentemente prOVlsono, para uma codifi- .0 primeiro' problema' está _ligado ao conceito de cons.eqü~ncias múltiplas e
cação da análise fncional em sociologia será propor um paradigma
ao' de saldo líqüid(J .de um feixe de const;qüências. "
As funções são; por entre as conseqüências observadas, as que contrib1;len1
para os conceitos e os problemas. O paradigma faz uma síntese que para' a adaptação oU para o ajustamento de úm' dado sistemà; e ,as diSfunç&es,
permite se adquira uma vista de conjunto das exigências capitais da as 'que atrapalham essa adaptação ou esse ajustamento., A experiência podê
análise funcional e facilite o porem-se no ponto interpretações pro- também revelar a existência de conseqüetÍcias não funcionais, mas estaS nadá
t~m . que ver com o sistema estudado.
visórias, resultado di Heil de alcançar por meio de conceitos espars03
e afogados na moxinifada de uma exposição discursiva. O paradigma .Em', qualquer caso, pode um elemento ter conconiitaritemente conseqüências
forma ° núcleo central dos conceitos e dos procedimentos da aná-
funcionais e disfuncionais, o que dá nascimento ao problema crucial c dificil
de estabelecer o saldo líqüido do feixe das conseqüências (isto, sem contestação,
lise funcional. é particularmente importante, quando se utiliza a análise funcional com vistas
a elaborar e a foruular uma política). '
E, sobretudo, importa precisar que o paradigma não representa um
O segundo problema (confusão entre motivos e funções) obriga-nos a recor..
conjunto de novas categorias, mas, antes, uma codificação dos con- rer a, conceitos diferentes, conforme a intenção subjetiva coincida ou não com
ceitos e dos problemas que se impuseram à nossa' atenção no curso ~. ·cÇl.tlseqüência objetiva.
de um estudo crítico das pesquisas e das teorias atuais sobre a aná- ·As' funç'ões manifestas representam as consequencias objetivas que, contri-
lise funcional. buindo para o ajustamento oü para a adaptação do sistema, são compreen-
didas e desejadas pelos participantes do "sistema.
§ 1. _ O(s) elcmento(s) a que se atribuem funções
As funções latentes representam, correlativamente, as não compreendidas
n"", desejadas (lO).
Todos os fatos sociológicos, sem exceção, podem ser submetidos à análise
fundonal, e a maioria deles já o foi. Aqui a condição essencial é que a análise (10) As relações entre as .. conseqüências inesperadas" de uma ação e
recaia sobre um elemento estandardizado (isto é, modelado segundo um tipo "as funções latentes" podem-se definir claramente. Estão implícitas na seção
c sujeito a se repetir), como os papéis sociais, os moldes institucionais, os precedente do paradigma. As conseqüências inesperadas de uma ação apre-
processos sociais, os patterns culturais, as ,representações e emoções coletivas, sentam três tipos:
as normas sociais, a organização dos grupos, a estrutura social, os meios de as que, sendo funcionais para um sistema dado, _englobam as funções
controle social etc. latentes;
Questão-chave: Que se deverá fazer entrar na direção da pesquisa, se o as que, sendo disfuncionais para um sistema dado, englobam as disfun-
elemento dado for suscetível de uma análise funcional sistemática? ções latentes;

162 163
Questão-chave: Quais os efeitos de urna tentativa de transformação em § 7. - Equivalentes funcionais (ou substitutos funcionais)
função manifesta de urna função precedentemente latente (levando-se em conta
o papel da tomada de consciência no comportamento humano e os problemas Como o vimos, desde que abandonamos a hipótese gratuita da necessidad~
de 44 manipulação" das condutas humanas)? funcional de uma estrutura social qualquer, um conceito de sobressalentes,
de equivalentes ou de substitutos funcionais torna-se necessário. Nossa atenção
ê, por esse motivo, atraída para a gama dos elementos capazes, numa situação
§ 4. - Unidade serz.'ida pela função dada, de satisfazer a urna exigência funcional. Isso nos liberta da identidade
do existente e do inevitável.
Estudamos as dificuldades que a limitação da análise às funções prf"enchidas Questão-chave: Dado que uma prova científica da equivalência de um
peta 44 sociedade" comportava, porque elementos podem ser funcionais para suposto substituto funcional exige, em princípio, rigorosa experimentação, que
certos indivíduos ou para certos agrupamentos e disfuncionais para outros. raramente é possh'el para situações sociológicas em grande escala, quais os
Portanto, é necessário examinar urna gama de unidades afetadas por um processos de investigação utllizáveis que melhor se coadunam com a lógica
elemento dado: indivíduos Que ocupam diversos status, grupos, sociedades experimental?
globais, sistemas culturais. (Os termos empregados para designar cada um
desses quatro elementos subentendem conceitos de função, ou psicológica, ou § 8. - Contexto estrutural (Ou. servidão estrutural)
de grupo, ou de sociedade, ou cultural etc.).
Como já o notamos em vanas oportunidades, há limites para a gama dos
§ 5. - Exigência fundomzl (necessidades, condições prévias) ctémentos capazes de preencher dadas funções numa determinada situação. À : 1"
intendependência dos elementos de uma estrutura social limita as reais possi-
Toda análise funcional acarreta uma certa concepção, tácita ou expressa, das bilidades de mudança ou de substituição funcional. O conceito de servidão
exigências funcionais do sistema observado. Corno eu disse em outra parte (11), estrutural corresponde, no domínio da estrutura social, ao princípio da limi:-
j<

aí é que está um dos conceitos mais nebulosos e mais ernpiricamente discutíveis tação das possibilidades", de Goldenweiser, num domínio mais amplo. Negar
da análise funcional. No sentido em que os sociólogos o empregam, esse con- do interdependência e seu corolário, as restrições estruturais, conduz à utopia

ceito tende a ser urna tautologia ou e.'r post facto. Tende a ficar limitado às de admitir tacitamente que certos elementos de um sistema social possam ser
condições de sobrevida" de um sistema dado. Em Malinowski, por exemplo,
j<
eliminados sem afetar o restante do sistema. Esta é urna observação feita ao
tende a incluir '4 necessidades" biológicas tanto quanto sociais. mesmo tempo por marxistas (por exemplo, KarI Marx) e por não-marxistas
(por exemplo, Malinowski) (12).
1l: então colocado o difícil problema de estabelecer tipos universais (e não
mais exclusivamente específicos) de exigências funcionais e procedimentos
para verificar a hipótese dessas exigências, etc. (12) Marx sublinha a importância do contexto estrutural. Em 1859, ele
escreveu o seguinte: "Uma sociedade jamais desaparece, antes de se terem
Questão-chave: De que modo verificar a validade- de urna variáYel, tal desenvolvido todas as forças produtivas que ela tem capacidade bastante para
como '4 a exigência funcional to, quando a experimentação rigorosa é impos- conter; e jamais novas e superiores relações de produção se lhe substituem.
sivel? antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido
incubadas no próprio bojo da sociedade velha. Por isso a humanidade nunca
§ 6. - Mecanismos pelos quais aJ' funções são preenchidas levanta para si senão os problemas que ela pode resolver, porque, reparan~
do-se melhor, ver-se-á que o problema mesmo não se apresenta senão quando
A análise funcional em sociologia, tanto quanto em fisi010gia ou em psico- as condições materiais para resolvê-lo existem, ou, pelo menos, estão em vias
logia, exige um relato '4 pormenorizado e concreto" dos mecanismos que de acontecer" (Karl Marx, prefácio da Contribution à la critique de l'écono'-..
permitem realizar uma função dada. Trata-se aqui de mecanismos sociais e mie politique, trad. de L. Lafargue, Paris, Giard, 1928, pág. 6 sq.). Sem
não psicológicos (por exemplo: c1ivagem dos papéis, isolamento das exigên- dúvida, sua referência mais célebre à influência limitativa de uma estrutura
cias institucionais, hierarquização dos valores, divisão do trabalho, prescrições social dada se encontra no segundo parágrafo do Dix-huit Brumaire de Loui:t-
rituais e cerimoniais etc.). Eonaparte: Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem arbi-
U

trariamente, em condições escolhidas por eles, mas em condições diretamente


Questão-chave: Será que dispomos, atualmente, de um inventário dos meca- dadas pelo c herdadas do passado" (Paris, 44 Editions Sociales Intcrnatio~
nismos sociais comparável ao amplo inventário dos mecanismos psicológicos? nales", 1928, pág. 23). Ao que sei, A. D. Lindsay é o mais penetrante com'ett~
Quais os problemas metodológicos colocados pelo estudo do funcionamento tarista dentre os que observaram as repercussões teóricas de passagens como
desses mecanismos sociais? esta. Cf. seu pequeno trabalho Karl Marx's Capital: An Introductory Essay
(Oxford University Press, 1931), págs. 27-52).
Numa outra linguagem e com tendências ideológicas muito diferentes, mas
- as que não têm relação com O sistema, o qual elas não afetam nem repercussões teóricas análogas, cf. B. Malinowski, '4 Culture". in Encyclopaedia
funcionalmente, nem disfuncionalmente; por outras palavras, a classe de of the Socia! ScieJues, op. cit., pág. 626: 4' Given a definite cultural need,
conseqüências não funcionais, sem importância prática. the 'means of its satisfaction are small in number, and therefore the cultural
(11) R. K. Mertan, 44 Discussion of Par sons' Position of Sociological arrangement which comes into being in response to the need is determined
Theory", American Sociological Review, XIII, 1949, págs. 164-168. within narrow limits".

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Questão-chave: Em que medida um quadro estrutural dado limita o número social do sociólogo funcionalista (em face, por exemplo, de um "cliente",
dos elementos capazes de satisfazer realmente às exigências funcionais? E,xis- Que encomendou uma dada pesquisa) reclama uma formulação de problema
tirá, em certas condições a determinar, uma zona de indiferença, onde ,a função de preferência a uma outra, afeta suas hipóteses e limita a gama e Q alcance
-possa ser preenchida por qualquer equivalente escolhido numa gama extensa.? das deduções que ele tira de seus dados?
Questão"chave: Como é possível reconhecer a tendência ideológica de uma
.§ 9. - Dinâmica social dada análise funcional e em que medida uma ideologia particular é enxertada
nas hipóteses de base adotadas pelo sociólogo? A conseqüência dessas hipó-
, Notamos que os funcionalistas tendem a dirigir toda a sua atenção à está- teses estará ligada ao estatuto e ao papel da pesquisa (Excerto de ROBERT
tica da estrutura social e a negligenciar o estudo das mudanças estruturais. O MERTON, Elément de théorie et de méthode sociologique, Paris, Plon, 1965,
.Ó?nceito de disfunção, que está ligado ao de tensão, de esforço e de coerção págs. 100-105).
em nível estrutural, fornece um ponto de vista analítico ao estudo da dinâmica
social. Como é possível que disfunções, observadas numa dada estrutura, não
sejam geradoras de instabilidade? A acumulação de esforços e de coerções
compelirá para uma mudança suscetível de neutralizá-las?
Questão-chave: Os funcionalistas imbuídos do conceito de equilíbrio so-cial
Qão neglige:nciarão o estudo do desequilíbrio social! De que processos dispõe UM ESBOÇO DO SISTEMA SOCIAL
'Q' sociólogo para avaliar com exatidão a soma de esforços e. de coerções ,num
4~.do sistema social? Em que medida o quadro estrutural permite ao sociÓlogo
p,rever as direções mais prováveis da mudança social? T ALCQTT P ARSQNS

§, 10. - Problema da validação da análise funcional


I - O conceito de sistema social
,_;Estudando o paradigma, chamamos a atenção para os Casos em que :::IS hipó-
,t5:.ses, as imputações e as observações devem ser verificadas (13). É necessário,
M1~es de tudo, formular, rigorosamente, os processos de análise mais próximos
da lógica e, também, passar em revista, metodicamente:, as po.ssibilidades e os
limites da análise comparafiva (entre culturas e entre grupos). Partamos do problema colocado pela delimitação do lugar dos sis-
Questão-chave: Em que medida a análise funcional é limitada pela dificuldade temas sociais dentro da escala de' referência da ação. Um aspecto da-
'de determinar amostras adequadas de sistemas sociais que possam ser subme- questão, o da distinção entre o "indivíduo" (15) analiticamente defi-
'tidas a Um estudo comparativo. (quase experimental)? (14) nido e os sistemas criados pelo processo da interação social, pod.e
s~r·tido CQmo alcançado. Mas isso não basta a nosso propósito, por-,
:~ -11. - Problema das implicações ideológicas da análise funcional
ciu~ importa acrescentar uma outra distinção analiticamente cruciai
r •. Sublinhou-se, ,numa seção precedente, que a análise funcional não supõe ideo-
entre sistemas sociais e sistemas culturais. No caSo da distinção indi,~
)pgia particular. Isso não impede análises ou hipóteses particulares, avançadas víduo-sociedade, à própria distinção é raramente posta em questão.
P.9f funcionalistas, de terem um papel ideológico certo. Surge então um pro- As dificuldades se acumulam em torno de seu caráter analítico e das
'~lema particular para a sociologia do conhecimento: Em que medida a posição m.aneiras de traçar a linha de divisão analítica. No caso da distinção
sistema social-sistema cultural, sua necessidade não se fez sentir se-
(13) Com isso é evidente que consideramos a análise funcional como sendo
um método' para a intérpretação dos dados sociológicos. Isso não contradiz
nã.o pouco a pouco. Em sociologia e em antropologia. (16) .
o' ,importante p@el do funcionalismo para orientar o sociólogo na dire ção da
.pesquisa de certos dados que de outro modo seriam negligenciados. Talvez
J.lão seja necessário repetir o axioma de que nossos conceitos têm uma influência (15) A pertinência do termo U analítico" é vital a este propósito. Todo
sobre Q gênero de dados que aceitamos ou que rej eitamos, E que, apesar de comportamento éoncréto é o comportamento de indivíduos e nenhuma teoria
.sua etimologia, os dados não .~ão .. dados", mas .. suscitados" com a inevitável da -interação pode evitar o estudo dos componentes do comportamento dós:
~juda dos conceitos. No curso da elaboração de uma interpretação funcional, indivíduos. Mas essa acepção do termo indivíduo é muito diferente da imp1i~
o sociólogo se vê na obrigação de obter outros dados que não os de que cada em nossa expressão de indivíduo 11 analiticamente isolado". Certas versões
.inicialmente dispunha. A pesquisa e a interprétação dos dados estão assim de metodologia empirista em psicologia tenderam a apagar aquela distinção
:dI1extricavelmente ligadas ao jogo dos conceitos e das proposições conectadas vital, dando como objeto da psicologia não o indivíduo analiticamente definido,
,cem- tais conceitos. ou um subsistema dele, mas o comportamento de que ela seria a .. ciência" .
;, (14) Os processos do gênero dos empregados na cross-cultftral survey são Tal concepção faz claramente da sociologia um tipo de "psicologia aplicada".
i.ricos de promessas para certos problemas metodológicos da análise funcional. (16) Cf. A. L. Kroeber e Talcott Parsons, "The Concepts of Culture
Cf. George P. Murdock, Social Structure (Nova York, Macmillan, 1949). and: of Social System", American Sociological Review, outubro de 1958.

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Sistemas cultural e social temas sodal e cultural não estavam claramente diferenciados, o com-
portamento do "organismo" tendeu, de modo ainda mais manifesto,
Para os países de língua inglesa, na mais importante tradição de a ser tratado pelos psicólogos como um objeto unitário da análise
pensamento que deriva do utilitarismo e da biologia darwiniana, uma cier.tífica. A mesmo tempo, o problema do papel da aprendizagem
posição independente para as ciências sociais achava-se na depen- esteve no centro das preocupações dos psicólogos. Em razão disso,
dência da delimitação de um campo de interesse, que não pudesse apareceu recentemente uma distinção analítica, paralela à do sistema I

ser simplesmente classificado sob a rubrica de biologia geral. Era, social e à do sistema cultural, e que estabelece uma diferença entre
antes de tudo, a rubrica da Hhereditariedade social", no sentido de o· :"organismo", considerado como categoria analítica, privilegiando
sua constituição genética na medida em que esta é pertinente em rela-
In
Spencer, a de "cultura", no sentido de Tylor, que se tornou o centro
principal dessa delimitação. Considerado a partir das categorias da ção à análise do comportamento, e a "personalidade", o sistema
biologia geral, esse campo recai, claramente, antes no reino da constituído pelos conhecidos componentes da organização do seu com-
influência do Hmeio-ambiente" do que no da hereditariedade. A ca- portamento. (17)
tegoria da interação social desempenhava um papel secundário pesse . Alguns atribuem à sociologia um sentido reIativamente enciclopé-
estádio, embora estivesse nitidamente implícita na insistência de Spen- dico e fazem entrar no seu campo todas as fases da estrutura e do
cer sobre a diferenciação social. funcionamento dos sistemas sociais. Segundo esta definição, a econo-
O passado comum da sociologia e da antropologia modernas pôs rnia e as ciências políticas seriam ramos da sociologia. Tal não é,
em relevo uma esfera sociocultural. Essa esfera possuia a~ proprie- e~tretanto, a nossa concepção. Em termos muito gerais, o problema
dades de criar e de manter uma tradição de modelos culturais, com- dos limites, que aparece entre o sistema social e os outros tipos de
partilhados de diferentes maneiras entre os membros das sociedade> sistemas de ação, reaparece no interior daquele sistema, tornando-se
vivas e transmitidos de uma geração a outra através dos processos mais saliente à medida que tais sistemas se tornam cada vez mais
de aprendizagem e não através da herança biológica. Ao mesmo altamente diferenciados. Nosso ponto de vista é o de que a economia
tempo, implicava sistemas organizados de interação estruturada 'Ou a
e política deveriam ser tratadas como subsistemas funcionais, no
"institucionalizada" entre um grande número de indivíduos. interior de uma sociedade. O principal objeto da sociologia não é o
Nos Estados Unidos, os antropólogos tiveram tendência para pôr funcionamento desses subsistemas, mas os dois outros subsistemas
em destaque o aspecto cultural desse complexo; os sociólogos, o pdmários funcionais, que dizem respeito às fu~<s.-ões de integração
aspecto de interação. Parece-nos importante que os dois aspectos, e de "manutenção dos modelos". Entre estes últimos, de um lado,
embora empiricamente interdependentes, sejam concebidos como ana- e" "a"" economia e o sistema político, de outro lado, existe a mesma
liticamente distintos. O sistema social tem por objeto aS condiç"5e3 ordem de interdependência e de interpenetração que existe entre o sis-
compreendidas na interação de pessoas humanas reais, que consti· tema social encarado como um todo e os sistemas cultural e psicolá--
tuem coletividades concretas determinantes da qualidade de membros. gico (em particular a personalidade).
O sistema cultural, por outro lado, tem como centro os "modelos"
de significações, isto é, de valores, de normas, de conhecimentos e
de crenças organizadas, de uformas" expressivas. O conceito essen- Um paradigma para análise dos sistemas sociais
cial para a integração e para a interpenetração dos dois é a institu-
cionalização. VOLtemo-nos agora para uma análise mais pormenorizada de nossa
Assim, um aspecto essencial de nossa perspectiva é distinguir 05 concepção de um sistema social. Primeiramente, o conceito de inter-
sistemas sociais dos sistemas culturais e tratar o primeiro como cen-
tro principal das preocupações analíticas da teoria sociológica. (17) Esta distinção entre o organismo (analiticamente definido) e a perso-
nalidade não estava incluída na análise geral dos sistemas de ação, proposta
por Parsons e Shils em T01vard a General Theory of Action (1951). Sua
Os sistemas sociais e {f o indivíduo" importância foi reconhecida ulteriormente. Ela foi mais completamente formu-
lada em Parsons. "An Approach to Psychological Theory in Terms of the
Outro conjunto de problemas surgiu paralelamente à distinção fun- Theory of Action". em Sigmund Koch Ced.) , Psychology: a Study of a
damental entre os domínios sociocultural e individual. Como os· sis- Science, voI. lU (Noya York, McGraw-Hill, 1959).

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l
penetração implica que, seja qual for a importância da idéia de um campo de variação no comportamento de outros elementos significá-
sistema logicamente fechado cama ideal teórico, os sistemas sociais tivos do problema teórico.
empiricos são concebidos como sistemas abertos, engajados em com~
plicados processos de permutas COm sistemas circundantes. Estes 'Dessa forma, num sentido amplo, a Constituição americana ficoü
sendo um ponto de referência estável, por um período de mais de um
incluem, no caso, os sistemas cultural 'e de personalidade, o compor~ séculu e meio. Durante eSSe tempo, evidentemente, a estrutura da
tamento e outros subsistemas do organismo; e, através do organismo, socieda'de americana mudou enormemente, a certos respeitos. Houve
o.meio-ambiente físico. A mesma lógica é aplicada, de maneira inter- mudanças no plano legal, através da legislação, através das interpre'
na, aos sistemas sociais concebidos como diferenciados e segmentadO') tações das leis e através dos processos mais informais. Mas o Estado
em uma pluralidade de subsistemas, cada um dos quais devendo ser federal, a divisão entre os ramos do governo, do Legislativo e do
tratado analiticamente como um sistema aberto, entretendo permutas Executivo, a independência do Judiciário, a separação da Igreja
com os subsistemas circundantes do mais amplo sistema. relativamente ao Estado, oS direitos essenciais de liberdade individual,
.o conceito de um sistema aberto, entretendo permutas com os sis- de ,reunião e de propriedade e uma variedade de outros traços per-
temas circundantes, implica também limites e sua manutenção. Quan- maneceram, na maioria dos casos, constantes.
do um conjunto de fenômenos interdependentes entra num motd~ A referência funcional, de outro lado, diverge da referência estru'
suficientemente definido e testemunha uma estabilidade no tempo', tural na direção "dinâmica". Sua principal significação teórica' é
então podemos dizer que ele tem uqla "estrutura" e que é produtivo integrativa. As considerações funcionais incidem' sobre o problema
tratá-lo COmo um "sistema". Um limite quer dizer, simplesment~. da mediação entre dois conjuntos fundamentais de exigências: aS
que existe uma diferença significativa dos pontos de vista teórico ,'e impostas pela relativa constância ou pelo "caráter dado" de umá
empírico entre as estruturas e os processos internos do sistema e OS estrutura, e as que são imp.ostas pelo caráter dado da situação cir-
que lhe sã6 exteriores; que existe e tende a manter-se. N a medi~fa étinjacente, exteriàr ao sistema. Visto que é somente nUm caso limi-
~I11 que limites desse tipo não existem, é impossível identificar corrt6 te teoricamente concebido que esses dois conjuntos podem ser con~
sistema um conjunto de fenômenos interdependentes; acha-se ::~re siderados como estando, um relativamente ao outro, numa relaç~q
incluída num outro sistema, mais amplo. Assim, é importante dis.-:- cOl1stante, existirá necessariamente um sistema de processos e d~
tinguir um conjunto de fenômenos não constitutivos de um sistema, mecanismos dinâmicos. .
no sentido teoricamente pertinente do termo - por exemplo, um Conceitos como "estrutura" ou "função" podem ser considerados~
certo tipo' de amostra estatística de uma população - de um verda:- quer COmo concretos, quer como analíticos. Nosso presente cuidadQ
deiro sistema. ' é 'sua significação analítica. Desejamos estabelecer, de maneira pre-:-
1.iminar, uma proposição fundamental sobre as estruturas dos siste ..
Modos estruturais e funcionais de análise. - Além da identificá' ~as sociais, que, ulteriormente, será ampliada, a saber, que sua
ção de um sistema quanto a seus modelos e a seus limites, pode~se estrutura, tal como é considerada dentro da escala de referências da
e deve-se analisar um sistema social relativamente a três eixos de ação, consiste em modelos institucionalizados, de cultura normativa',.
variação logicamente independentes, mas, também, interdependentes, É ela constituída por componentes dos organismos ou das personali-
e que poderiam ser chamados bases de abstração seletiva. dades dos indivíduos participantes SOmente na medida em que estas
. A primeira das bases é melhor definida em relação com a distin- ~'se entremeiam" com os sistemas sociais e culturais, isto é, em que
s~o "interiorizadas" na personalidade e no organismo dos indivíduos,.
ção entre as referências "estrutural" e "funcional" da análise. Por
mais relativos que possam ser estes dois conceitos, a distinção entre Vou agora discutir o problema da classificação dos elementos da
.cultura normativa que 'entram na estrutura dos sistemas sociais.
eles é muito, importante. O conceito de estrutura centraliza-se nos
.elementos da configuração do sistema, que podem ser tidos como As categorias funcionais dos sistemas sociais concernem, por sua
,independentes das flutuações de pequena amplitude e de curta dura- vez, aos traços em virtude dos quais modos de ajustamento sistemati-
·~~iii.ente ordenados oper~m nas relações mutáveis entre Um conjunto
-ção na relação do sistema COm sua situação externa. Designa ele:,
dado de modelos de estrutura institucionalmente estabelecida no sis"
:assim,. os traços do sistema que podem, sob determinados pontos de tema e um conjunto dado de propriedades dos sistemas circundantes,
'vista estratégicos, ser tratados como constantes dentro de um certo pertinentes. Historicamente, o modelo mais comum em que essa rela-
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171
ção se baseou é o organismo de comportamento, tal como se utiliza gências e experimenta outros processos, como a mudança estrutural.
no pensamento psicológico. Desse ponto de vista, o problema funcio- mantendo a dissolução, enquanto sistema, seus limites (análoga à
nal é o da análise dos mecanismos que tornam possível uma resposta morte biológica para os organismos), ou a consolidação de alguma
ordenada às condições do meio-ambiente. Quando utilizamos esse alteração conducente ao estabelecimento de estruturas secundárias de
modelo na análise dos sistemas sociais, não tratamos, entretanto, caráter. patológico. Teoricamente, o conceito de equilíbrio tem uma
somente, do meio-ambiente, mas, também, da estrutura do sistema, referência normativa somente num sentido. Visto que a estrutura
ambos como problemáticos e sujeitos à mudança, num sentido que dos sistemas sociais consiste numa cultura normativa institucionali-
yai mais longe do que os psicólogos tradicionais do comportamento
,têm o hábito de ir (18). zada, a "manutenção" desses modelos nonnativos é um ponto de
referência fundamental para a análise do equilíbrio do sistema. Toda-
Interpretando essa posição, é necessário lembrar que os sistemas via, que essa manutenção se produza realmente ou não, e em que
imediatamente circundantes de um sistema social não são os do meio- m'edida, é questão inteiramente empírica. Além dísso, o "desequílí-
ambiente físico. São, antes, os outros subsistemas primários do sis- brio~' JX>de conduzir a uma mudança estrutural desejável, de um
tema geral da ação, isto é, as personalidades de seus membros indivi- ponto de vista normativo de ordem mais elevada.
duais, os aspectos de comportamentos organizados dos organismos
que sustentam tais personalidades e os sistemas culturais pertinentes, O segundo conjunto de problemas dinâmicos diz respeito aos pro-
: f
na medida em que não estão totalmente institucionalizados no siste- cessos que implicam uma mudança na estrutura do próprio sistema.
ma social, mas que implicam comp:mentes outros que não os "mo- Isto _traz consigo, antes de tudo, problemas de troca com o sistema
delos normativos de cultura" institucionalizados (19). cultural, por mais dependentes que eles possam ser, por sua vez, do
estado interno do sistema social e de suas relações com outros siste-
Modos U dinâmicos" de análise. - A importância do segundo eixo mas circunjacentes. Deixando de lado, por enquanto, as distinções
de variação empírica e, portanto, de formulação dos problemas teó- denÜIJ da categoria dos processos de ajustamento interno, pode-se
ricos segue-se diretamente. Deve ser feita uma distinção fundamental dizer que, no que respeita às trocas externas, os problemas de equi-
entre duas ordens de problemas "dinâmicos" relativos a um sÍstema líbrio para o sistema social implicam, primeiramente, suas relações
dado. O primeiro deles diz respeito aos processos que se baseiam com seus membros individuais como personalidades e como organis-
na hipótese de que os modelos estruturais da cultura institucionali- mos c, através destes, com o meio-ambiente físico. Os problemas de
zada são dados, o que vale dizer que, supostamente, permanecem mudança estrutural, em compensação, implicam, primeiramente, suas
'constantes. É o domínio dos problemas de equilíbrio, no sentido dado relações com o sistema cultural, afetando seus modelos de cultura
a esse conceito por Pareto, Henderson e outros e de homeostasia, normativa institucionalizada.
tal como foi analisada por Cannon. A significação de tais problemas Por mais fundamental que seja a distinção entre oS problemas
está em ligação direta, ao mesmo tempo, com o conceito de sistema dinâmicos que implicam mudança estrutural e os que não o implicam,
e com os modos de relação entre estrutura e função, que temos a grande importância de um caso intermediário ou misto deve ser
definido. posta em relevo. Trata-se do problema da mudança que implica a
O conceito de equilíbrio é um ponto de referência fundamental estrutura de subsistemas do sistema social, não, porém, do modelo
para a análise dos processos pelos quais um sistema satisfaz às eXi- est.rutural global. O caso mais importante nesta categoria é o dos
gências impostas por um meio-ambiente mutável, sem mudança essen- processos de diferenciação estrutural. Esta diferenciação implica uma
cial em sua própria estrutura, ou não chega a satisfazer a tais exi- verdadeira reorganização do sistema e, também, uma mudança estru-
turai fundamental de diferentes subsistemas e de suas relações um
(18) Além disso, nossa análise, sem dúvida, é explicitamente formulada para COm outro. Sua análise apresenta, por conseguinte, problemas
no quadro da ação e não no do tipo de fisiologia que tanto preocupou nume- de mudança estrutural para os subsistemas pertinentes, mas não ver-
rosos psicólogos do comportamento. dadeiramente para o sistema como um todo. Os problemas implicado3
, (19) ~ uma questão demasiado técnica para ser discutida aqui, mas toma- concernem à organização dos constituintes estruturais dos sistemas
'remos a posição de que um sistema social analiticamente considerado não' tem
trocas imediatas e diretas de input-output com o meio-ambiente físico. Tais sociais, particularmente à or-clem hierárquica em que são colocados.
trocas, de crucial importância empírica, são realizadas através da mediação- dó Uma discussão mais extensa precisará aguardar uma classificação
." organismo em comportamento". desses problemas.

172 173

Dl-T.S.
~
A hierarquia das relações de controle. - O terceiro dos três eixos porque o individualismo e a criatividade representam, amplamente.
essenciais da análise teórica pode ser definido como relativo a uma fenômenos dependentes da institucionalização das expectações. O
hierarquia de relações de controle. O desenvolvimento da teoria pela sistema social que controla a personalidade é, aqui concebido como
1

geração precedente, ao mesmo tempo nas ciências biológicas e nas analítico e não como concreto.
do comportamento, revelou a primeira fonte das dificuldades que
subtendem o reducionismo pronunciado de tantas correntes de pen- Relações de controle no int.grior do sistema social. - O mesmo
samento anteriores. Era a tendência reducionista a ignorar a impor- princípio fundamental da hierarquia cibernética aplicável às relaçõe3
tância dos modos em virtude dos quais a organização dos sistemas entre os subsistemas gerais da ação aplica-se, também, ao interior de
vivos implicava estruturas e mecanismos operantes como agentes de cada um deles, notadamente aos sistemas sociais, que CQnstituem, aqui.
controle - no sentido cibernético de controle - de seus processos nosso cuidado essencial. O principio da ordem da prioridade ciber-
metabólicos e de comportamento. O conceito de "organismo de COm- nética, combinado com a primazia de adequação às diferentes exigên.
portamento", atrás enfocado, é o de um sistema cibernético localizado cias do sistema, no plano dos limites e das trocas, será utilizad{) como
principalmente no sistema nervoso central, que opera através de diver- a base fundamental que permite classificar os componentes dos siste-
sos mecanismos intermediários, a fim de controlar os processos me- llla5 sociais. A pertinência dessa hierarquia aplica-se, evidentemente,
tabólicos do organismo e o uso no comportamento de suas faculdades a todos os componentes distintos, em virtude do primeiro de llQSSQ5
físicas, cama o movimento dos membros. três eixos de variação, às estruturas, às funções, aos mecanismos e
Os subsistemas fundamentais do sistema geral de ação constituem às categorias de inP"t e de output.
uma série hierárquica de tais agentes de controle do comportamento O ponto de partida estratégico para explicação desse conjunto
dos indivíduos ou dos organismos. O organismo de comportamento fundamental de classificações é a categoria de funções, o liame entre
é o ponto de articulação do sistema de ação com os traços anatômicos os aspectos estrutural e dinâmico do sistema. Sugeri que é possível
e fisiológicos do organismo físico e seu ponto de contacto com 0 reduzir a quatro os imperativos funcionais de qualquer sistema de
meio-ambiente físico. O sistema da personalidade, por sua vez, é ação e, portanto, de qualquer sistema social, a saber: a função de
um sistema de controle sobre o organismo. O sistema social repre· manutenção dos modelos, a integração, a realização dos fins e a
senta este papel em presença das personalidades de seus membro3 adaptação. São eles apresentados por ordem de significação, do pon-
participantes,· e o cultural constitui um sistema de controle relativo aos to de vista do controle cibernético dos processos da ação, no tipo de
sistemas sociais. sistema considerado.
Pode ser útil ilustrar a natureza desse tipo de relações hierárqui-
cas, discutindo-se a maneira por que o sistema social controla a per- A função de manutenção dos modelos. - Esta função se refere
sonalidade. Existem dois planos empíricos principais sobre que agr. ao imperativo da manutenção da estabilidade dos modelos de cultura
o controle, embora os princípios implicados sejam os mesmos, nos institucionalizada definidores da estrutura do sistema. Existem dois
dois casos. Primeiramente, a situação em que um dado indivíduo aspectos distintos desse imperativo funcional. O primeiro tange ao
age é composta, mais que de qualquer outro conjunto de fatores, de caráter do próprio modelo normativo; ° segundo, ao seu estado de
outros indivíduos, que não estão isolados, mas que constituem um "institucionalização". Do ponto de vista do indivíduo participante
conjunto ordenado de relações com o indivíduo em causa. Por esse de um sistema social, o de que se trata, aqui, pode ser chamado seu
motivo, como fonte de suas principais faculdades de ação e de suas engajamento motivacional, para agir de acordo com certos model03
recompensas e privações capitais, o sistema social concreto exerce normativos, o que, como o veremos, implica-lhes a "interiorização"
um poderoso controle sobre as ações de qualquer indivíduo adulto, na estrutura da personalidade.
concreto. Todavia, a modelagem do sistema de motivações em fun- Em conseqüência, o centro da manutenção dos modelos situa-se
ção do qual ele faz face a essa situação depende também do sistema na categoria estrutural dos valores, assunto sobre que voltaremo3
social, porque sua própria .estrutura de personalidade foi modelada ulteriormente. A propósito, a função essencial é a manutenção, em
através da interiorização de sistemas de objetos sociais e dos mode- nível cultural, da estabilidade dos valores institucionalizados por melO
los de cultura institucionalizada. Deve ficar claro que este ponto é. do processo que articula os valores com o sistema de crenças, isto
independente do grau em que os indivíduos são concretamente autô- é, das crenças religiosas, da ideologia etc. Os valores, certamente,
nomos ou criativos antes de serem "passivos" ou "conformistas", estão sujeitos a mudança, mas, quer a tendência empírica seja para

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a estabilidade, quer não, as potencialidades de ruptura provenientes do caráter variável da relação de um sistema com a sua situação.
dessa fonte são muito grandes, e é essencial procurar mecanismos As funções de realização dos fins e de adaptação tangem lis estru-
tendentes a proteger uma tal ordem, mesmo que o processo de mu- turas, aos mecanismos e aos processos implicados naquela relação.
dança se produza ordenadamente. Comparamos a manutenção dos modelos à inércia, tal como é ela
O segundo aspecto da referida função de controle diz respeito ao utilizada na teoria mecânica. A realização dos fins torna-se, portan-
engajamento motivacional do indivíduo, o que em outro lugar deno- to, um "problema", na medida em que sobrevém alguma contradi-
minamos redução das tensões. Um problema central é o dos mecanis- ção entre a tendência à inércia do sistema e suas "necessidades",
mos de socialização do indivíduo, isto é, dos processos pelos quais os resultantes da troca com a situação. Tais necessidades aparecem
valores da sociedade são interiorizados na sua personalidade. Mas, forçosamente, porque não se pode esperar que o sistema interno e os
mesmo que os valores tenham sido interiorizados, os engajamento3 sistemas circundantes sigam imediatamente os modelos mutáveis do
que daí decorrem ficam sujeitos a diferentes tipos de tensões. Muito processo (20). Um alvo, portanto, é definido, em termos de equilí-
se aprendeu, recentemente, sobre o papel a propósito desempenhado brio. É uma mudança direcional, que tende a reduzir a contradição
por mecanismos como o ritual, diferentes tipos de simbolismo expres- entre as necessidades do sistema, do ponto de vista das trocas de
sivo, as artes e, mesmo, as diversões. A análise de Durkheim sobre inpttt-output, e as condições no sistema circundante incidentes sobre : .,:"
as funções do ritual religioso pode ser considerada como constituindo. o "preenchimento" de tais necessidades. A realização dos fins ou a
aqui, o principal ponto de partida. orientação para os fins está, assim, por contraste com a manutenção
A manutenção dos modelos compreendidos neste sentido desem- dos modelos, essencialmente ligada a uma situação específica.
penha, na teoria dos sistemas sociais e dos outros sistemas da ação, Um sistema social com um fim único, definido em relação com
um papel comparável ao do conceito de inércia, em mecânica. Serve um problema situacional genericamente crucial, é concebível. Mas fre-
como ponto de referência fundamental, a que a análise de outros qüentemente a situação é complexa, com uma pluralidade de fins c
fatores mais variáveis pode ser ligada. Convenientemente concebido de problemas. Em tal caso, duas considerações devem ser levadas em
e utilizado, não implica predominância empírica da estabilidade sobre conta. Primeiramente, a fim de proteger a integridade do sistema,
a mudança. Entretanto, quando dizemos que, por causa desse con- os múltiplos alvos devem ser alinhados em alguma escala de urgên-
junto de exigências funcionais, os sistemas sociais testemunham uma cia relativa, uma escala suficientemente flexível para considerar a5
tendência para manter seus modelos estruturais, dizemos essencial- variações na situação. Assim, para qualquer sistema complexo, ~
mente duas coisas. Em primeiro lugar, fornecemos um ponto de necessário antes falar de um sistema de fins do que de um simples
referência para a análise metódica de todo um domínio de problemas alvo unitádo; de um sistema, todavia, que deve possuir certo grau
de variações, que podem ser tratados como provenientes de fontes de equilíbrio entre sua integração como sistema e um ajustamento
outras que não os processos de mudança estrutural no sistema, inclu- flexível às pressões mutáveis.
sive, mesmo, a sua dissolução. Em segundo lugar, sublinhamos que, Para o sistema social como tal, o centro de sua orientação para
quando analisamos a mudança estrutural, temos em mira um tipo os fins situa-se em sua relação como sistema com as personalidade:;
de problema teórico distinto do que se acha implicado no equilíbrio. dos indivíduos participantes. Ele diz respeito, assim, não a um enga~
Daí haver uma relação direta entre a função de manutenção dos jamento relativamente aos valores da sociedade, mas à motivação
modelos - distinta dos três outros imperativos funcionais - e cl para fornecer o necessário ao funcionamento do sistema. São H con-
discriminação entre a análise do equilíbrio, de um lado, e a análise tribuições" que variam em função das exigências particulares. Por
da mudança estrutural, de outro lado. A discriminação entre estes dois exemplo, considerando-se a sociedade americana, pode-se sugerir que,
tipos de problemas adquire toda a SUa importância, nesse ponto do
paradigma. (20) Quando dizemps que o modelo do sistema tende a permanecer cons·
tante, damos a semelhante afirmação um sentido analítico. Os outputs para
A função de realização dos fins. - Para fins de expoSIção, parece com os sistemas circundantes não precisam permanecer constantes no mesmo
preferível abandonar a ordem de controle estabelecida precedente- grau. Suas variações podem perturbar a relação com o sistema circundante.
mente e concentrar-se. agora, sobre a função de realização dos fins Assim, a investigação científica não só é suscetível de instituc~ona1i?;ar·se de
maneira estável num sentido estrutural, mas também de acarretar um output
e sobre suas relações com a adaptação. Em contraste com a constância contínuo de novos conhecimentos, que representam um fator dinâmico na troca
dos modelos culturais institucionalizados, temos insistido a respeito do sistema com a sua situação.

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dado o sistema dominante de valores, houve, durante o período de Os mais importantes gêneros de recursos implicam o controle de
guerra fria, um problema considerável, consistente em manter a mo- objetos físicos, o acesso aos serviços de agentes humanos e certos
tivação de largos setores da população em nível de esforço nacional elementos culturais. Para que seus mecanismos de controle sejam
requerido para defesa de uma posição de supremacia mundial, nlUna altamente generalizados, unidades particulares desses recursos devem
situação muito instável e rapidamente modificável. Eu interpretaria, ser "alienáveis", isto é, não vinculadas a usos específicos pela des-
em grande parte, o sentimento de frustração expresso no isolacionis- tinação. O sistema de mercado é, assim, um centro primordial da
mo e o MacCarthysmo como manifestação das tensões resultantes organização da sociedade para a adaptação. Características compará-
desse problema (21). veis operam em sociedade menos diferenciadas e em subsistema5
mais diferenciados - como a família (2.3) - onde os mercados não
A função de adaptação. - A segunda consequencia de uma plura- penetram.
lidade de alvos, entretanto, refere-se à diferença entre a função de No interior de um sistema dado, a realização dos fins é um con-
realização dos fins e a de adaptação. Quando há somente um alvo, trole mais importante do que a adaptação. Os recursos favorecem a
o problema de avaliação relativo à utilidade dos recursos é reduzid,') realização dos fins, e não o contrário, ainda que, certamente. a con~
à pertinência deles para se atingir esse alvo particular. Com uma plu- tribnição ou a "produção" de recursos possa constituir, ela mesma,
ralidade de fins, entretanto, aparece o problema dos "custos". Equi- um alvo, com lugar no interior do sistema, mais geral, dos fins. : 1"
vale a dizer que os mesmos raros recursos terão usos altcrtwtivos no Todavia, há dificuldades quanto às implicações dessa afirmativa.
interior do sistema dos fins. Daí o fato de que o uso deles com deter-
minado propósito significa o sacrifício dos ganhos que teriam sido A funçiio de integração. - O último dos quatro imperativos fun-
derivados de seu uso com outro propósito. Sobre esta base é que cionais de um sistema de ação - em nosso caso, um sistema social
deve ser feita uma distribuição analítica entre a função de realiza- - é o da integração. Na hierarquia de controle, esta se situa entre as
ção efetiva dos fins e a que consiste em fornecer os recursos dispo- funções de manutenção dos modelos e as de realização dos fins.
níveis, independentemente de sua pertinência em relação a tal ou qual :Nosso reconhecimento da importância da integração implica que todos
alvo particular. A função adaptativa é definida como a contribuição os sistemas, afora um caso limite, são diferenciados e segmentados
desses recursos. :em unidades relativamente independentes, isto é, devem ser tratados
Exatamente corno existe uma pluralidade de alvos de ordem infe- como sistemas que mantêm seus limites no interior de um meio-
rior, mais concretos, existe também uma pluralidade de recursos ambiente de outros sistemas, sendo estes, no caso, outros subsistemas
relativamente concretos. ,Por esse motivo, há um problema paralelo do mesmo sistema abrangente. O problema funcional da integração
da organização' de tais recursos num sistema. O primeiro critério é. é respeitante aos ajustamentos mútuos de tais "unidades" ou sub-
o de prover à flexibilidade, na medida em que é ela compatível com sistemas, do ponto de vista de suas "contribuições" para o efetivo
a eficiência. Isto para o sistema significa um máximo de disponibi-
lidades generalizadas nos processos de distribuição entre usos alter- dominação das condições. A incorporação de uma dominação ativa no conceito
nativos. No interior de um tipo complexo de sistema social, a dispo- de adaptação é uma das mais relevantes tendências dos recentes desenvolvi-
nibilidade dos recursos se cristaliza em derredor da institucionalização mentos na teoria biológica. Uma relação importante entre as duas categorias
do dinheiro e dos mercados. De maneira mais geral, e ao nível ma- funcionais de realização dos fins e de adaptação e as antigas categorias de
croscópico do sistema social, a função de realização dos fins é (l fins e de meios deve ser notada. A discriminação fundamental dos fins e dos
meios pode-se considerar como o caso especial, quanto ao sistema da perso-
centro da organização política das sociedades, ao passo que a da nalidade, da diferenciação mais geral das funções de realização dos fins e de
adaptação o é da organização econômica (22). adaptação. Tentando fazer entrar a análise do comportamento social no inte-
rior desse quadro, a teoria utilitarista era culpada, concomitantemente, de
(21) Cf. o artigç de Parsons, "McCarthyism and American Social reduzi-la ao caso da personalidade (antes de' tudo, negando a significação
Tension", Yale Review, inverno de 1955. Reimpresso como capítulo 7 de analiticamente independente dos sistemas sociais) e de olvidar a significação
Structure and Process in J.,fodern Societies. autônoma das funções de manutenção dos modelos e de integração dos próprios
(22) Convém notar que a formulação acima apresentada, da função de sistemas sociais.
adaptação, evita cuidadosamente toda e qualquer implicação de que um ajusta- (23) A importância da flexibilidade adaptativa para o funcionamento das
mento "passivo" é a idéia dominante da adaptação. Esta é relativa aos valores famílias consideradas como sistemas é bem ilustrada 110 estudo de Robert
C aos alvos do sistema. Uma .c boa adaptação" pode consistir, quer numa AngeIl, The Family Encounters the Depression (Nova York, Chas. Scribner's
aceitação passiva das condições, com minimização dos riscos, quer numa ativa Sons, 1936).

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funcionamento do sistema como um todo, e, por conseguinte, às suas categorias estruturais, cujos outros termos, em ordem ascendente, são
relações com o problema da manutenção dos modelos, assim como a coletividade, a norma e o valor. (É interessante e, na minha opi-
com a situação externa, através dos processos de realização dos fins nião, significativo que a introdução sistemática do conceito de l?apel
e de adaptação. tenha talvez constituído a principal contribuição americana aos aspec-
Numa sociedade altamente diferenciada, o centro principal da fun- tos estruturais da teoria sociológica).
ção integrativa se encontra em seu sistema de normas legais e nos
O ponto de partida essencial é a concepção de dois (ou vários)
organismos associados à sua aplicação, nomeadamente os tribunais e
as profissões jurídicas. As normas legais nesse nível, mais do que indivíduos interagindo de maneira a constituir um sistema interdepen":'
no de uma contituição suprema, regem o abono dos direitos e das dente. Como as personalidades, cada indivíduo pode ser considerado
obrigações, dos recursos e das recompensas entre as diferentes uni- um sistema, com seus próprios valores, alvos etc., fazendo face aos
dades do sistema complexo. Tais normas facilitam os ajustamentos outros como partes de um "meio-ambiente", que fornece certas
internos compatíveis com a estabilidade do sistema de valores ou com oportunidades para a realização dos fins, assim como certas limita-
sua mudança ordenada, do mesmo modo que a adaptação às cam- ções e fontes de frustração. Embora a interdependência possa ser
biantes exigências da situação externa. A institucionalização do di- tomada em consideração nesse nível, não discutimos ainda, em seme-
nheiro e a do poder são, em primeiro lugar, fenômenos integrativos~ lhante perspectiva, o processo de interação como um sistema. Sem : 'f
como outros mecanismos de controle social, no sentido mais restrito dúvida, a ação do outro é uma parte essencial das condições inci-
da expressão. dentes sobre a realização dos fins que o Ego fixou para si, mas a
Para qualquer tipo de sistema - aqui, o social - a função inte- qu~stão sociológica vital concerne à natureza e ao grau de integração
grativa é O centro de suas propriedades e de seus processos mais do sistema de interação como sistema social. Aqui se coloca a ques-
característicos. Afirmamos, pois, que os problemas relativos às fun- tão uas condições a que deve satisfazer o processo de interação para
ções integrativas dos sistemas sociais constituem o núcleo central das ser tratado como estável, isto é, no mínimo para não conduzir a
preocupações próprias da teoria sociológica. frustrações mútuas tais, que a dissolução do sistema (traduzindo-se
para o indivíduo por "abandono do terreno") seja mais provável
que sua continuação.
lI. - Categorias relativas à estrutura social O problema da estabilidade introduz considerações de continuidade
temporal que nos levam imediatamente ao que há de importante nes-
Historicamente, as preocupações teóricas da teoria sociológica se contexto da orientação normativa. Pode-se mostrar que, no interior
tomaram corpo a partir de dois pontos essenciais de referência. U 111 da escala de referência da ação, uma interação estável implica que
conceme à relação entre sistemas sociais e cultura e incide sobre o os atos adquirem I< significações", que são interpretadas por via de
problema dos valores e das normas no sistema social. O segundo
concerne ao indivíduo como organismo e como personalidade e recai referência a um conjunto comum de concepções normativas. A par-
sobre a participação dele na interação social. De maneira geral, a. ticularidade dos atos específicos é transcendida no sentido da genera-
nenhum desses pontos de referência pode ser concedida prioridade. lização da cultura normativa comum, assim como no componente
Todavia, visto como a discussão anterior dos imperativos funcio·· normativo das expectações que são incorporadas aos mecanismos
nais foi aberta sobre a manutenção dos modelos, o que diz respeito, guiadores do processo. Isto significa que a resposta do Alter a um
principalmente, à institucionalização da cultura normativa, começa·· ato do Ego pode ser interpretada como uma sanção expressiva de
remos nossa discussão pormenorizada da estrutura pela outra ],X>nta. uma avaliação do ato passado e servindo de guia para o comporta-
com o problema da interação dos indivíduos, de maneira a equili- mento futuro, desejável.
brar o quadro. O essencial da situação de interação pode ser ilustrado por um jogo
qualquer, de que participem dois jogadores, como no caso do xadrez.
Presume-se que cada jogador tenha alguma motivação para tomar
A interação social e os pa.péis parte no jogo, incluindo nisso o "desejo de ganhar". Em decorrência,
ele tem um alvo e, relativamente à sua pessoa, uma certa concepção
Para a sociologia, o conceito essencial é aqui o de papel. Eu gos- das "estratégias" eficazes. Pode decidir começar por um gambito,
taria de tratar desse conceito como do último termo de uma série de mas não pode fazer excessivos planos por antecipação, porque a

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situação não é estável, antes depende dos movimentos feitos ao mes~ Uma condição suplementar, que não está presente em nosso exem-
mo tempo por si mesmo e pelo seu oponente, à medida que o jogo p10 do jogo de xadrez, é necessária para completar a lista dos com-
se desdobra. Os recursos essenciais de que ele dispõe consistem em p<mentes estruturais, isto é, a diferenciação entre os papéis dos par-
seu conhecimento das possibilidades implícitas na situação mutável. ticipantes. Isto equivale a dizer que, na maioria dos sistemas sociais,
O domínio, que possui, de tais possibilidades significa a execução os p:trticipantes não fazem as mesmas coisas. Suas realizações podem
da função adaptativa. Daí, ao nível da realização dos fins e da ser concebidas como contribuições complementares do "funciona-
adaptação, os alvos são definidos e os recursos, fornecidos, mas os mento" do sistema de interação. Quando há duas ou mais unidades
atos específicos não são prescritos. Os recursos são generalizados, estruturais distintas, que preenchem essencialmente a mesma função
e sua distribuição entre os jogadores depende da capacidade de cad,l num sistema (por exemplo, famílias nucleares numa comunidade),
um de tirar vantagem das possibilidades proporcionadas pela situação. falaremos de segmentação, por oposição a diferenciação. Quando
De seu lado, a significação dos alvos e a estabilidade do modelo existe uma diferenciação dos !'àpéis, torna-se necessário distingUir
generalizado de recursos dependem da existência de um conjunto bem entre dois componentes da cultura normativa do sistema: o dos valo-
definido de regras, que forma o centro da integração do sistema. Os res, que são partilhados pelos membros, quaisquer que sejam seus
papéis, nesse caso, não são diferenciados sobre uma base permanen- papéis particulares, e o das expectações de papéis, que são diferen-
te; antes, as regras definem as conseqüências de todo movimento ciados por papel. E, assim, definem direitos e obrigações aplicávei~
efetuado por um jogador para a situação em que o parceiro deve a um papel, mas não a outro. Proponho usar o termo valores para o
fazer sua próxima opção. Sem tais regras, o processo de interação componente normativo partilhado, e o termo n.orma (diferenciado)
não poderia ser estável, e o sistema de recursos adaptativos se des- para o componente específico de um dado papel, ou, em sistemas mais
moronaria. Nenhum jogador saberia o que dele é aguardado e quais complexos, de outras unidades empiricas do sistema, isto é, de diver-
seriam as conseqüências de um dado conjunto de movimentos. Final- sas coletividades, tais como as famílias, as Igrejas, as empresas
mente, as regras diferenciadas e contingentes devem fundar-se num comerciais, as administrações governamentais, as universidades.
conjunto de valores, que definam a natureza de um "jogo equitável" Onde os papéis são diferenciados, a adesão a valores comuns tor-
desse tipo, incluindo o valor da igualdade das "probabilidades" para na-se uma condição essencial da integração do sistema. É somente
os dois parceiros e a significação do objetivo de aganhar~'. nesta hipótese que as reações do Alter aos atos do Ego podem ter
Um sistema estável de interação, por conseguinte, orienta seus o caráter de sanções reguladoras da ação do Ego, no interesse do
participantes em termos de expectações mútuas, que têm a dupla sistema. Todavia, é preciso compreender bem que, para que o Alter
significação de exprimir avaliações normativas e de estabelecer pre esteja em condições de avaliar os atos do Ego, esses atos não devem
dições contingentes de comportamento manifesto. Es~a reciprocidade necessariamente fazer parte das obrigações que supostamente o Alter
de expedações implica que as significações avaliativas dos atos são precise, do mesmo modo, assumir, em virtude de seu papel. Assim,
partilhadas pelas unidades em interação, de duas maneiras: os atos no casamento, uma das mais importantes relações diádicas em todas
de um membro podem ser descritos em termos significativos para as sociedades, os papéis dos parceiros são diferenciados pelo sexo.
os dois. Do mesmo modo, ambos compartilham os critérios relativos A mútua avaliação das realizações é um mecanismo regulador essen-
às condutas, de tal maneira que haja critérios comuns de avaliação cial, mas estar em posição de avaliar a realização do parceiro não e
para os atos particulares. assumir-lhe o papel.
Podemos dizer que esse tão elementar sistema de dois membros
possui, já, a maioria dos traços estruturais essenciais de um sistema
sccial. A propriedade essencial é a reciprocidade de orientações, defi- Os conceitos de papel e de coletividade
nida em relação a modelos compartilhados de cultura normativa. TaIS
modelos normativos são os valores: o complexo de condutas, regulado Um papel pode agora ser definido como a participação estrutura-
de maneira normativa, de um dos participantes é um papel; e o da, vale dizer, normativamente regulada, de uma pessoa num pro-
sistema formado pela interação dos dois participantes, na medida em cesso concreto de interação social, com parceiros de papel especifica-
que ele compartilha uma cultura normativa comum e se distingue dos e concretos. Tal sistema de interação, de uma pluralidade de
de outros sistemas pela participação específica de ambos os atores, executantes de papéis, é, na medida em que Se regula 110rmativamen~
é uma c,oletividade. te, em termos de valores comuns e de normas sancionadas por esses

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valores, uma coletividade. O fato de representar um papel dentro tempo, problemas de função e da relação do sistema com a sua
de uma coletividade define a categoria de 1twmbro} isto é, o encar- situação.
regar-se de obrigações de execuções no sistema concreto de interação. Por via dessa análise, nosso principal cuidado será aplicar, cla-
Tais obrigações implicam direitos, correlativamente. ramente, o paradigma funcional central, que temos apresentado, àR
Visto que o indivíduo normal participa de várias coletividades, é relações sutis implicadas numa sociedade complexa, segmentada e
lugar comum, mas também um ponto crucial, dizer que somente num diferenciada em subsistemas. Estaremos, assim, diante da seguinte
caso limite é que um único papel representa o comportamento intera~ questão, de importância capital: Em que medida é possível a inte-
tivo completo de um indivíduo concreto. O papel é, antes, um setDr gT'dção de um sistema caracterizado por uma população numerosa
de seu sistema de comportamento e, portanto, de sua personalidade. e por uma forte diferenciação? Ou, de maneira mais teórica, que
Na !l1aioria dos casos, não é, pois, o indivíduo, ou a pessoa ~o 110 gêneros de proposiçÕ'es é preciso avançar, que conceitos devem ser
tal, que constitui uma unidade dos sistemas sociais, mas, antes, 'Sua formulados e que distinções praticadas, a fim de se fazer justiça a
participação nos papéis, ao final afetando, diretamente, sua persona- essas complexidades empíricas?
lidade. É essencialmente quando interpretado como este conceito limi-
Os conceitos de universalismo e de particularismo serão úteis nesse
te que O conceito de papel tem uma significação teórica importante
plano. Em qualquer sistema dado, os conceitos de papel e de coleti- : f
para a sociologia. vidade são particularistas. Embora, certamente, tenhamos que falar
Durante o tempo em que restringirmos nossas ilustrações ao de classes e de tipos de papéis, um papel é sempre o papel de um
sistema de interação de dois atores, poderá parecer que a distinção indivíduo concreto, particular. De maneira semelhante, uma coleti-
analítica de quatro componentes estruturais - papel, coletividade, vidade tem sempre concretamente por membros ocupantes de papéis
norma e valor - seja muito elaborada. Nesse nível, há, ainda, a específicos. Uma norma, entretanto, é sempre definida de maneira
possibilidade de identificar os valores com a coletividade; as normas, tmiversalista, no interior do universo de sua pertinência, quer se
com o papel. Nos sistemas sociais mais complexos, entretanto, há
trate de um universo de atos, de papéis ou de coletividade. É certo
numerosas coletividades e não só uma; e uma norma diferenciada
qu~ a definição de um universo pertinente implica uma referêncid.
não define expectações para um só papel, mas para uma classe de
particularista, de ordem mais elevada. Assim, pode-se aplicar uma
papéis (e, também, para as classes de coletividades). Os sistemas
norma somente aos cidadãos dos Estados Unidos ou aos residentes
sociais com que o sociólogo tem normalmente que tratar são rede.,
nesse país, mas a ela é possível sobrepor-se a todas as diferenças
complexas de uma pluralidade de tipos (ou categorias) de papéis e
concretas entre as diversas coletividades e seus membros no interior
de coletividade situadas em diferentes níveis da organização. Assim,
desse universo. Os valores são também definidos de maneira univer-
vem a ser essencial conceptualizar os valores e as normas, indept!n-
salista, em termos de pertinência. Quando um tiPo particular de
dentemente de uma coletividade ou de um papel particular.
sociedade é avaliado como bom, o julgamento por si mesmo se aplica
a mais de uma sociedade específica.
Valores e Nornws O aspecto universalista. dos valores implica que não sejam especí-
ficos, 'em nível pertinente de referência, nem de uma situação, nem
Voltamo-nos agora da análise da interação para a do conteúdo mai3 de uma função. A propósito, deve ser lembrado que os aspectos mais
explicitamente normativo da estrutura dos sistemas sociais, dentro cruciais da situação de um sistema social são formados pelas perso_
dos quais os valores e as normas foram discriminados. Já sugerimos nalidades e pelos modelos de cultura com os quais o sistema está
que tais valores e tais normas acham-se necessariamente implicados em contacto. Quando se diz que os valores não são específicos de
em todo processo estável de interação, por mais simples que seja. u'ma situação, está implícito na afirmativa que a validade normativa
Todavia, quando se tenta analisar a estrutura de sociedades com- dos mesmos não é função das categorias particulares de personali-
plexas, a significação analiticamente distinta desses componentes dade disponíveis como membros, nem, por exemplo, dos níveis par-
tonla-se muito mais saliente. As seções seguintes serão consagradas ticulares de conhecimentos tecnológicos, também disponíveis, para
a uma análise mais explícita dos componentes e de suas relações com o acionamento desses valores. Quando a especificidade da situação
a segmentação da estrutura social, assim como aos diferentes níveis é introduzida, passamos a falar, analiticamente, não de valores, ma6
dos valores e das normas, levando-se sempre em conta, ao mesmo de objetivos.

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"---
De maneira similar, os valores se mostram independentes da dife- no interior das quais eles operam, se se quiser definir a própri:1
renciação interna do sistema em que são institucionalizados. São per- coletividade como um sistema. Por isso, na medida em que um sis.
tinentes em um nível de generalidade que Htranscende" a diferencia- tema social mais abrangente comprende muitas coletividades como
ção funcional. Todavia, funcional é o traço dominante da diferenciação. subsistemas, o comportamento das meSmas é controlado pelas nor-
Por essa razão, as normas que, em virtude de definição nossa, são mas institucionalizadas que especificam como cada tipo de coletivi-
diferenciadas sob o ângulo da função, devem ser específicas de uma dade pode e deve comportar·se, de acordo COm o seu lugar no interior
função. Elas são "legitimadas" pelos valores, mas operam em um do sistema. Finalmente, as próprias normas são legitimadas e, assim,
nível de generalidade inferior, relativo às realizações concretas espe- num sentido normativo, controladas pelos valores instituciol1alizados
radas no nível das coletividades e dos papéis. Entretanto, em rela- na sociedade. Sujeitos às exigências da situação e da função, OS valo-
ção aos papéis concretos em coletividades concretas, a maior parte res definem o rumo da orientação desejável para o sistema COllii)
das normas não são específicas de uma situação, especialmente t1m todo.
porque não especificam os papéis particulares: são geralmente for-
muladas em classes ou tipos de papéis e, por conseguinte, de pessoas A estrutura das sociedades complexas
e de coletividades.
: f
A relatividade da distinção universalista-particularista deve de Depois de haver mostrado quais são os componentes estruturais
novo ser sublinhada. Em geral, o princípio é que o universo perti- essenciais de um sistema social e que lugar ocupam na hierarquia
nente aos elementos universalistas de cultura normativa se define pela geral de controle, podemos agora expor, em pinceladas largas, seu
estrutura de papel e de coletividade, no nível imediatamente supe- principal modelo de organização, que faz deles um sistema relati-
rior da organização do sistema. Refere-se ele, portanto, a uma hie- vamente complexo. O que aqui vai apresentado é necessariamente
rarquia de organização em sistema 'e subsistema. O ponto mais alto um "tipo ideal" esquemático, que pretende, simplesmente, definir c
dessa hierarquia é o conceito de sociedade, que é o sistema concreto distinguir categorias estruturais suficientemente extensas. Não pode-
de interação de ordem mais elevada, encarado como teoricamente mos tomar em consideração a imensa riqueza das diferentes estru-
pertinente em relação aos assuntos analíticos da sociologia (inclusive turas sociais concretas.
a possibilidade do aparecimento de t1ma "sociedade mundial"). A linha diretiva da análise é a concepção de que um sistema social
De acordo com a concepção que faz da cultura normativa institu- complexo consiste numa rede de sistemas interdependentes e que se
cionalizada no sistema a estrutura dos sistemas sociais, temos até recortam, cada um dos quais, visto em nível de referência apro-
aqui apresentado uma classificação de seus componentes, estabelecida priado, constitui por si mesmo um sistema social, sujeito a todas as
em função da ordem hierárquica da organização do sistema. Falando exigências funcionais de qualquer sistema do gênero relativamente
estrutura1mente, o componente próprio do papel é o componente à sua. cultura institucionalizada e à SUa situação, sobre possuir todos
normativo, que governa a participação da pessoa individual em dadas os componentes estruturais essenciais, organizados nos níveis apro-
coletividades. O componente inerente à coletividade é a cultura nor- priados de diferenciação e de especificação.
mativa, que define os valores, as normas, as orientações no sentido
de objeth'os e o arranjo dos papéis para um sistema concreto de
interação de pessoas específicas. O componente das normas é o o conceito de sociedade
conjunto das regras ou normas universalistas que definem as expec-
tações em matéria de realizações para classes de unidades diferen-
o ponto de partida deve ser o conceito de sociedade, definido como
coletividade, isto é, como um sistema de seres humanos concretos em
ciadas na interior do sistema, coletividades ou papéis, conforme 0$ interação, o qual constitui o suporte essencial de uma cultura insti-
casos. E os valores são oS modelos normativos que definem, em tucionalizada específica e que não pode ser encarada como um sub-
termos 'úniversalistas, o modelo de orientação desejável para o sistema sistema diferenciado de uma coletividade de ordem superior; coleti-
como um todo, independentemente da especificação da situação ou vidade orientada para a maior parte das exigências funcionais de um
da diferenciação das funções no interior do sistema. sistema social. N otar-se-á que eSsa concepção é formulada em ter-
Deve-se precisar bem que os papéis são governados ou controla- mos que deixam ao estudo empírico o cuidado de resolver a questão
dos pelas exigências normativas do funcionamento das coletividades da "abertura" de uma sociedade em diferentes direções. Ao ,nível

186 1'87
do sistema social, todavia, de preferência ao cultural (24), o princi- A segmentação das unidades socia-ü
pal critério é a auto-suficiência relativa.
Para abordar a análise estrutural da organização em subsistemas MasJ se, diante do conjunto de razões que acaba de ser indicado~
de uma sociedade, devemos referir-nos às exigências funcionais Uma sociedade deve constituir uma só coletividade, outras razões
simultaneamente apropriadas ao sistema social mesmo e aos seus impedem que ela se reduza a esse único aspecto. Estas razões podelO-
diferentes subsistemas. O princípio primário e fundamental é o da se resumir nos princípios generalizados a que os economistas se
diferenciação, em virtude de uma exigência funcional específica; é referem como determinantes das "economias de escala". Para lá de
o conceito central para a análise da estrutura social. IPor si só, toda~ certos pontos, os "custos" são acrescidos com o vulto da unidade
via, ele não é adequado. Deve-se completá-lo pelos dois princípios da organização, embora a determinação desses pontos varie larga-
de especificação e de segmentação. O primeiro se refere, essencial·· mente em função dos fatores específicos implicados. Assim, em con-
mente, aos componentes de cultura institucionalizada da estrutura; o dições industriais modernas, a fabricação de bens, tais como auto-
segundo, às exigências com que são confrontadas, em seu compor- máveis, faz-se em três grandes unidades, quando parece existirem
tamento, as unidades concretas, isto é, as coletividades e os papéis. importantes razões que interdizem confiar a primeira socialização
Parece preferível tratar, antes de mais nada, deste segundo aspecto. das crianças a unidades que comportam muito mais membros do
Temos notado que, em um (mas somente em um) de seus aspec- que a família nuclear.
"
tos, uma sociedade é uma só coletividade, com um número de mem- Pode ser que o determinante mais fundamental que subtende a
bros individuais especificável, conquanto mutável. O fato está em seg~entação dos sistemas sociais seja o caráter indispensável do
relação com três imperativos fundamentais. Em primeiro lugar, deve indivíduo humano COmo agente de execução. Mas há limites eS5en-
haver, num certo grau e num certo nível, um sistema unitário de dais, não somente ao que Um dado indivíduo pode fazer, mas tanl-
valores institucionalizados, isto é, sob este ângulo, uma cultura
bém à eficiência COm que os indivíduos são capazes de cooperar. Os
comum. Na medida em que a manutenção de um sistema de valores
comuns requer os tipos de funções que às coletividades cabe preen- problemas de comunicação e outros aspectos da integração podem.
cher, a sociedade deverá constituir uma só coletividade, o que assim, multiplicar-se, sob o efeito de uma escala, acrescida, de orgaw
Durkheim denominava uma "comunidade moral". Em segundo lugar, nização. A certos respeitos, PJr conseguinte, as subcoletividades
todavia, uma vez que o sistema é diferenciado, o acionamento desses' podem alcançar uma organização própria, incluindo uma integração
valores para diferentes unidades requer um sistema relativamente ou uma solidariedade especial relativamente ao sistema mais amplo
coerente de normas, que recebem uma formulação e uma interpreta- de que fazem parte.
ção unitárias. Nas sociedades altamente diferenciadas, esse sistema No tocante ao conceito de segmentação, refiro-me, na análise da
de normas toma a forma de um sistema legal integrado e adminis- formação das coletividades, ao desenvolvimento de subcoletividades,
trado por tribunais. A necessidade de relações coordenadas com a no interior de um sistema mais vasto de coletividade, das quais cer-
situação externa é também significativa, como ulteriormente sera
tos membros do sistema mais vasto participam mais intimamente
demonstrado.
do que outros. Nesse sentido, a segmentação é um fator indepen--
dente da diferenciação das funções entre as subcoletividades. Assim,
(24) De acordo com esse critério, um sistema como a Igreja Católica não uma sociedade de grandes proporções pode compreender milhões de
é uma sociedade. Ela transçende um grande número de diferentes sociedades,
J nas quais seus valores são mais ou menos plenamente institucionalizados e suas famílias nucleares, cada uma preenchendo funções essencialmente
i similares, na socialização das crianças. Aqui, a estrutura é forte-
subunidades, coletividades constituídas, entrecruzando-se ela com tais socieda-
des. Mas a Igreja, na medida em que representa, antes de mais nada, um mente segmentada, mas não se acha diferenciada no meSmo grau.
sistema social culturalmente orientado, não é por si mesma capaz de atender
à maioria das exigências funcionais de uma sociedade, especialmente às necessi- A necessidade de segmentação deriva, em grande parte, dos pro-
dades políticas e econômicas. De maneira similar, até mesmo um "governo blemas de integração resultantes das outras exigências, a que as uni-
mundial", se uma instituição mais ou menos próxima desta viesse a existir, dades do sistema estão sujeitas. Ao mesmo tempo, todavia, ela dá
não determinaria, necessariamente, ,a constituição de urna "sociedade mundial",
embora sua eficiência implicasse um 'nível de integração normativa que tor- lugar a novos problemas de integração: quanto mais unidades hou-
nasse problemática a independência natural por nós tradicionalmente atribuída ver, tanto menos estarão elas em condiçÕ'es de coordenar "natural-
às "sociedades nacionais". mente" sua atividade, em caminhos compatíveis com o funriona-

188 189

14 -T.S.
mento, sem choques. do sistema como um todo. Isto tende,· nos diferenciação por efeito da repetição dos mesmos pelos subsistemas~
sistemas mais complexos, a dar lugar a mecanismos especiais de em cada nível de segmentação.
integração, que deverão ser estudados oportunamente. Uma vez que nossa aproximação geral nos conduziu a observar a
hierarquia de controle em ordem descendente, uma breve exposição
deve agora ser feita sobre o "ancoradouro" dos sistemas sociais, na
A i'.l}rrificação da clIl1urLl !lormaÚ,:a base. Este "ancoradouro" reside nas personalidades e nos organi . . -
mos dos membros individuais e, através deles, nos subsistemas do
Como já o notamos, h[L uma importante relação entre a hierar- organismo que ocupam uma categoria menos elevada, do ponto de
quia de controle e os níveis de generalidade dos componentes da vista da hierarquia de controle, e no meio-ambiente físico. Concre':'
cultura normativa. Assim, os valores foram definidos como se man- tamente, toda interação social está ligada ao cumprimento físico das
tendo no nível de generalidade mais elevado das "concepções dQ tarefas, por parte dos indivíduos, num meio-ambiente físico. Ela está
desejável'~, isto é, sem especificação de função ou de situação. Com- ligada à localização espacial, no sentído físico da expressão. Seguín-
paratlas aos valores, são as normas, em contrapartida, diferenciadas do o uso das teorias de inspiração ecológica, referi-me, em out-:-c.
na base da especificação da função das unidades ou das subunidades lugar, a essa localização espacial como ao aspecto "comunic12.ue ll da
a que se aplicam. As subcoletividades, por sua vez, implicam uma estrutura social (25). Pode ela ser subdividída, muito simplesmente,
noya especificação, na base da situação. Equivale a diz'er que, daia em quatro complexos: 1) a localização residencial e a cristalizaGão
sua função (ou dadas suas funções), uma coletividade é identifica~a das estruturas sociais, em derredor desse centro; 2) o cumprimento
a partir dos indivíduos concretos que agem em situações con~reta.s, funcional das tarefas, por via da ocupação profissional, e os proble-
que dela fazem ,parte, especificamente. Quando a coletividade é tra- mas de localização, que o acompanham; 3) a aplicação jurisdIcional
tada como um sistema diferenciado, deve haver especificações suple- da ordem normativa, por via da especificação das categorias dç
mentJ.res aplicáveis aos papéis dos membros participantes. Há, por pessoas, e a importância desse fenômeno para as localizações espa-
conseguinte, sob o ângulo da generalidade, uma hierarquia dos ;:no- ciais de seus interesses e de suas atividades; 4) as exigências de
delas: de cultura normativa institucionalizados em um sistema sochil, comunicação e de movimentos das pessoas e dos bens. Mais geral-
que l:orresponde às relações hierárquicas gerais de seus componente.:3 mente, a categoria da tecnologia - não somente o que de ordinário
estruturais. Cada subunidade da sociedade terá, como coletividade. se chama "produção física", mas toda e qualquer execução de tarefa
seus próprios valores institucionalizados, que devem ser compreendi- que, implique o organismo físico em relação corri ri seu meio-ambiente
dos como especificações, em nível apropriado, dos valores mais
físico --;- pertence a esse domínio de 'problemas limítrofes. A tecno-
gerais da sociedade. Para fazer face à sua própria diferenciação logia está em relação com as exigências físicas, mas também está
interna de funções, cada subunidade terá, igualmente, um conjun~o fundada nos recursos culturais, em sua significação como instru-
de normas diferenciadas, que devem 'Ser olhadas como especificações, mentos para a ação social. O conhecimento empírico do mundo físico
ao mesmo tempo dos valores da suhco1ctiviclade e das normas mais é um exemplo de semelhante recurso cultural.
gerais aplicáveis, simultaneamente, a ela e a outros tipos de subco-
letividade. O princípio de especificação restringe a generalidade do
modelo cultural, introduzindo precisões devidas à especialização de A integração das sociedades como coletividades
função, de um lado, e à especificidade da situação, de outro lado.
O último dos três princípios de organização dos sistemas comple- Abordemos agora o problema consistente em esboçar a estrutura
xos, a diferenciação funcional, foi já discutido em termos gerais. De de uma sociedade complexa como sistema social. Três exigências
acordo com esse princípio, as unidades estruturadas adquirem uma diferentes, já o dissemos, subtendem o fato de que uma sociedade
signiticação especializada no funcionamento do sistema. O escruema pode ser sempre olhada como uma só coletividade, isto é, a manu·
geral das categorias funcionais, que apresentamos, é muito simples, tcnção de seus modelos de cultura institucionalizada ao nível dos
uma vez que limitado a quatro categorias. Todavia, utilizando-o,
deve-se fazer justiça à complexidade empírica da situação levando-se (25) Cio Parsons, "The Principal Structures of Community", in C. ].
em conta os numerosos degraus inerentes à segmentação e à especi- Friedrich (ed.), Community, Nomos, vol. lI, Liberal Arts P'ress, 1950, e em
ficação e, em conseqüência mesmo, a combinação dos modelos de Parsons, Structurc and Process in Afoder» S ocieties, Free Press, 1959, capo 8.

190 191
valores, a integração de seu sistema rle normas diferenciadas e o
sou tIa organização religiosa como tal ao domínio de interpenetração
tratamento coordenado das situações externas.
entre o religioso e o secular. A coletividade societal dominante tor-
A predominância dos modelos fundamentais de valor e o eng3- nou-se o "Estado", administrado por leigos; ou, quando de fato era
jamento geral das unidades relativamente aos valores comuns são t&.o administrado por padres, não o era em nome de sua capacidade
cruciais que o problema da relação da coletividade global com as
especifica de clérigos. Tal diferenciação nunca se operou plenamente
valores tem caráter universal. No outro pólo, contudo, os problemas
na Europa medieval - impossível, por exemplo, privar os bispos
de jurisdição e de obediência à lei, com referência à ordem norma-
de funções seculares que fossem além da administração dos negócios
tiva, são igualmente decisivos. A estrutura da coletividade global
não pode ser separada da organização política, orientada para a eclesiásticos mas constituía o modelo principal.
manutenção dos engajamentos a respeito dessa ordem e das funções Depois da Feforma, o processo foi levado mais longe, principal-
jurisdicionais que lhe são associadas, relativamente à sua própria mente onde prevaleceu o princípio da separação e não de uma sim-
população e às outras sociedades. Isto significa que as fronteiras de ples diferenciação entre a Igreja e o Estado. Como hoje nos Esta-
uma sociedade tendem a coincidir com a jurisdição territorial das dos Unidos, os valores estão ainda claramente ancorados na reli-
unidades mais elevadas da organização política. gi~o teÍsta (Em Deus temos confiança), mas, no nível da organiza-
O domínio essencial em que se exprimem os problemas de engaja- ção da coletividade, a "comunidade moral" é claramente a Hcomuni-
mento em relação aos valores é o da religião. Para a maior parte dade politicamente organizada". O que se produziu, essencialmente,
das sociedades, a coletividade global foi, simultaneamente, uma cole- é que qualquer instituição de orientação antes cultural do que social
tividade religiosa e uma coletividade política, uma "Igreja" e um foi privada da autoridade legítima de prescrever valores e de impor
"Estado", ao mesmo tempo. O direito propendeu de certa forma a normas à sociedade. Nesse sentido, a sociedade "laicizou-se". O
ocupar uma posição intermediária, a ser legitimado pela religião e ancoradouro religioso dos valores se manteve, mas a religião está ,
imposto pela autoridade política. Com freqüência a função relativa organizada de maneira pluralista e "privada". De modo formal, os <I
à sua interpretação erigiu-se em um sério motivo de desacordo. valores acham-se incorporados na Constituição e nas interpretações
Todavia, a fórmula da unidade religiosa-político-Iegal não é por oficiais, dadas a respeito, pelos poderes judiciário e legislativo.
si só adequada, como generalização universal. Em primeiro lugar, A associação universal da estrutura da coletividade global com a
no interior da coletividade global, tais funções propenderam a ser organização política está fundada em outro conjunto de imperativos,
diferenciadas, no tocante ao pessoal e às subcoletividades. Mas, num implicando a significação particular da força física como sanção. O
sentido mais radical, no mundo do Ocidente e a partir da era cristã, ponto central, aqui, é que, embora haja numerosas limitações à efi-
houve um processo de diferenciação fundamental entre a Igreja e ciência desse tipo de sanção, o controle de uma força socialmente
o Estado. Interpretando as implicações sociológicas do fenômeno, organizada e suficientemente superior é quase sempre uma dissuasão
deve-se considerar esse processo sob o ângulo da relação entre sis- perfeitamente eficaz contra qualquer ação indesejável. Portanto, sem
tema social e sistema cultural. Antes mesmo de sua fase protestante, o controle que inclua a fi neutralização" de uma força organizada, de
o cristianismo ocidental era caracterizado por um tipo especial de base essencialmente territorial, a garantia do poder coercitivo de uma
"individualismo" religioso. No atual contexto, isto significa que, sal- ordem normativa não é possível.
vo ao nível mais geral da filiação à sociedade global, a religião do
indivíduo e seu status social não coincidiam, necessariamente. A Concebo a organização política como funcionalmente organizada
Igreja era uma organização dos interesses e das orientações religio- em torno da realização de fins coletivos~ isto é, Q ati.ngir ou o man-
sas da população concebida como independente (o que não quer dizer ter estados de interação entre o sistema e o seu meio-ambiente relati-
sem relação) de suas orientações seculares ou temporais, espf'cial- vamente desejáveis, do ponto de vista do sistema. A manutenção da
mente ao nível do engajamento em relação aos valores da sociedade segurança contra o uso da força pelos adversários é um objetivo co-
global. Tratava-se de uma "sociedade cristã", mas, ao mesmo tempo, letivo crucial para toda sociedade. Considerações desse tipo subten-
de uma sociedade em que a função da religião era mais especializada dem a tendência geral da coletividade global para desenvolver um
do que em outros tipos pré-cristãos, ou acristãos. monopólio ef.etivo da organização interna da força por intermédio
dos organismos policiais e militares. Tais afirmações nem por ISSO
Interpreto o fato como significado que, do ponto de vista $Ocietal
implicam que o controle da força seja a função dominante da orga-
e não simplesmente cultural, o aspecto de "comunidade moral" pas-
nização política. A força não é a única função essencialmente nega·

192 193
tiva, ou seja, de alcance "protetor", e, em geral, o governo é um -O problema do tipo e do grau de diferenciação suscetíveis de se
organismo central de realização positiva dos fins coletivos. Mas a produzirem nesse nível superior da organização coletiva d9- socie~
força é tão estrategicamente significativa que seu controle repre- dade pode ser analisado em função de quatro conjuntos primários
senta uma função indispensável, uma condição necessária, ainda que de fatores, que têm uma considerável margem de variação. Trata-se:
não suficiente, da ordem social. Em conseqüência, numa sociedade 1) do ripo de valores societais mais ou menos plenamente institucio-
hem integrada, a maioria das subcoletividades, além das que especifi- nalizados na sociedade (determinado em virtude dos modos de ca-
camente dizem respeito à força, acham-se dela quase que totalmente racterização da sociedade considerada, no mais alto nível de gene-
destituídas. ralidade, como objeto de avaliação; as categorias apropriadas pare-
Por causa dos problemas que o uso e o controle da força implicam, cem Ser as variáveis configuracionais: pattern-variables) ; 2) do gra'ú
deve a organização política estar sempre entrosada com o sistema e· do modo de Ínstitucionalização desses valores, incluindo a '/segu-
jurídico, que diz respeito à administração da ordem mais elevada rança" ela institucionalização relativamente aos fundamentos religio-
de normas reguladoras do comportamento das unidades, no interior ;.;os e culturais dos engajamentos quanto aos valores na sociednde
da sociedade. ~.,. enhuma sociedade pode permitir que o primeiro lugar (a- institucionalização a longo prazo de novos valores implica um nível
seja ocupado por uma outra ordem normativa qualquer, em detri-
mento da sancionada pela "sociedade politicamente organizada". Com
efeito, a promulgação de uma tal ordem alternativa é um ato re-
relativamente fraco de semelhante segurança); 3) do gênero e do
nível de diferenciação estrutural da sociedade, com uma referência
f'special à severidade e aos tipos de problemas integrativos que eles
L . f

volucionário, e os agentes por ele responsáveis devem assumir a impõem à sociedade; e 4) dos tipos de exigências situacionais a que
responsabilidade da organização política. o sistema está exposto (Excerto de "An Outline of the Social Sys-
Nesse contexto, é muito expressivo que em algumas sociedades, tem", in TALCOTT PARSONS~ EDWARD SHILS, RASPAR D. NAEGELE,
notadamente no Ocidente moderno, a organização do sistema j urídicQ ]ESSE R. PITTS (eds.), Theories of Society, págs. 33-34, 36-47).
tenha atingido um grau significativo de independência nos setores ju-
diciário e, em certa medida, legislativo. Semelhante independênCia
assume duas formas principais em nível estrutural: existem, no ju-
diciário, certos tipos de proteção contra as pressões da "política"; UMA MUDANÇA ESTRUTURAL NA ECONOMIA
em segundo lugar, desenvolveu-se, de maneira notabilíssima, um1 AMERICANA: A SEPARAÇÃO DA PROPRIEDADE
profissão jurídica, cujos membros ocupam um status intersticial, par- RELATIV AMENTE A DIREÇÃO
ticipando, de um lado, da advocacia, de algum modo como "funcio-
nários dos tribunais", e mantendo, por outro lado, relações particula-
res com seus clientes, verdadeiramente protegidos contra interven- TALCOTT PARSONS E NEIL ShIELSER
ções, inclusive as do governo, por disposições como a comunicação
privilegiada.
Resumindo, podemos dizer que a coletividade global mais elevada, I:ara mostrar C01110 uma análise da mudança institucional pode
mesmo em uma sociedade moderna, é, em larga escala, necessaria- preencher certas lacunas dos modelos econômicos técnicos, esboça-
mente multi funcional", ou funcionalmente "difusa". Ao meSmo tem-
fi
rémos um modelo sociológico explicativo de um tipo específico de
po, sob o efeito de certas circunstâncias, a difusão característica de
estruturas religioso-políticas mais monolíticas - mesmo as de um
tl1cionaJizados implica para ela um certo risco. A institucionalização re1ativa~
alto desenvolvimento, cama a China clássica, ou a Roma do fim da mente completa de um princípio, tal como o da separação entre a Igreja e o
República - tendeu a conhecer processos de diferenciação. As mais Estado, é proyavelmente, por conseqüência, um índice do remate da institu~
notáveis dessas diferenciações foram a "laicização" da organização cionalização dos valores. Podem~se compreender, em parte, os modernos regimes
política, que passou por numerosos estádios e modos, e a institucio- tütaIitários, a partir da insegurança dessa institucionalização. Por isso cs par-
tidos totalitários são funcionalmente equivalentes às "Igrejas", conquanto
naJização de uma função jurídica relativamente independente. (26) possam colocar seu centro de valores em um nível não transcendental, isto é,
pretendidamente "econômico", que tenta estabelecer um tipo de relação COm
(26) Pode-se notar Que o fato de deixar que organismos não totalmente u governo correspondente a um estado menos diferenciado da colr::tividade
controlados pela coletividade política dominante determinem os valores insti- ciominantc que o que existiu no moderno Ocidente.

194 195
mudança institucional. Consideramo-Io como um modelo geral, po- podia variar de um grupo de membros do cOllselho a diretores ab,o,
dendo ser aplicado, em suas grandes linhas, às mudanças institucio- lutamente alheios a ele (27),
nais de todo sistema social. Mas, para noSso propósito, o sistema de Esta mudança estrutural na organização econômica foi acompa-
referência será de ordem econômica. nhada de mudanças na estratificação sociaL Por volta de 1890, o
Aplicaremos igualmente tal modelo a uma mudança particular da grupo social que se mantinha com mais firmeza e se achava hierar-
maior importância - na estrutura econômica americana. Antes de quicamente mais elevado era o dos grandes magnatas industriais t
apresentar o próprio modelo, descrevamos, sumariamente, em termos de suas famílias, geralmente fundadores e, ainda nesta época, diri-
gentes de enormíssimas empresas: os Va:nderbilt, os Harriman, os
não técnicos, o principal exemplo empírico de referência.
Morgan, os Camegie, os Rockefeller etc. A Quinta Avenida e
Foi em 1932 que apareceu um dos mais importantes estudos da Newport eram os símbolos mais manifestos de seu estilo de vida.
literatura referente às instituições econômicas americanas, The M 0- Mas essas famílias, que controlavam pela propriedade a maior parte
dern Corporation and Private Property, de Berle e Means, Era uma das grandes empresas do momento, não conseguiram, afinal, conso-
análise aprofundada do modo de "administração" em vigor na5 lidar sua posição, constituindo-se classe dominante da sociedade (28),
grandes sociedades anônimas, que, já nessa época, ocupavam a.; A subseqüente mudança na estratificação não se fez por uma revo··
posições estratégicas essenciais no mundo americano dos negócios c lução. É verdade que ela foi provavelmente influenciada, e de ma-
cuja importância relativa se viu acrescida no conjunto, desde então. neira sensível, pela hostilidade contra os grandes magnatas da idade
A tese principal de Berle e Means se resumia na expressão a U "heróica" do capitalismo, tal como se manifestou na literatura dos
separação da propriedade relativamente à direção". No momento da muckrakers, no trust-busting etc, Um pesado imposto progressivo
introdução, em grande escala, da organização do tipo "grande socie-· também contribuiu para isso, mas uma política tão nociva aos inte-
dade anônima" - pouco depois da metade do século XIX - e, até resses de pretensa "classe dirigente" não teria podido ser instituída,
mesmo, antes daquela época, a direção de uma empresa achava-se se outras forças poderosas não houvessem entrado em ação. As prin-
cipais fases no revés sofrido pelos clássicos capitães de indústria, na
essencialmente nas mãos daqueles e, notadamente, nas das unidade3
tentativa de consolidar sua posição dominante, não parecem ter tido
familiares que possuíam a totalidade ou a maior parte do capitaL
o aspecto dramático da coerção, sob o efeito de uma reação pública
Mas foi pouco a pouco que uma minoria dos proprietários veio a
indignada, A explicação reside, sugerimo-lo, nos processos de inte-
exercer o poder, por vias como a ampla dispersão da propriedade ração entre a economia e os outros setores da sociedade, através de
das ações, a aquisição - em grande quantidade - dos capitais peI. suas relações ":nas fronteiras".
emissão de obrigações e, afinal, pela "piramidagem", mediante o
processo da companhia de tipo "holding",
Mas a mais significativa evolução, segundo Berle e Nleans, foi Um modelo da mudança ,nstitucional
o aparecimento de uma situação na qual todo estatuto de proprie-
dade tendia a tornar-se mais ou menos formal quanto à determinação o tipo de mudança institucional que analisaremos é a diferencia-
da política da empresa. Na maioria dos casos, sem que se tivesse ção estrutural. Embora semelhante mudança não seja senão um caso
produzido nenhuma mudança de estatuto jurídico, muitas grandes pos.sível entre uma variedade de tipos muito grande, consideramo-la
sociedades haviam passado para a direção efetiva de diretores pro-
fissionais, cuja propriedade pessoal de ações não tinha senão uma (27) Em pelo menos uma das grandes sociedades americanas, a Standard
significação nominal, como instrumento de controle. Uma das condi- Oil of New Jersey, houve formalmente uma fusão completa entre o conselho
administrativo e os diretores assalariados. Todas os membros do conselho são
ções para que se produzisse essa evolução era a larga dispersão da empregados que trabalham na companhia em regime de tempo integral. A
propriedade das ações, propriedade agora considerada, em primeiro participação em lucros "exteriores", bancários ou outros, foi totalmente elimi-
lugar, como um investimento (não como um instrumento de contro- nada.
le), em razão da existência de um mercado pronto a absorver tai':) (28) Foi este grupo, e não o dos diretores dos anos 40 e 50, que serviu
de alvo da violenta sátira de Veblen em The Theory of the Leisure Class. Para
valores. O principal processo que permitia à minoria ou aos diretores uma análise geral dessa mudança na estratificação, ver "Parsons, a Revised
o exercício do poder era o mecanismo do voto por procuração nas Analytical Approach to the T.heory of Social Stratification". em Essays in
eleições do conselho administrativo. O centro real do poder certamente Sociological Theory, edição revista, 1954.

196 197
como particularmente importante no quadro da teoria geral da ação. t~ma em estado de equilíbrio tende a permanecer no mesmo estado.
Admitiremos as proposições seguintes, que não podem ser plenamen~ enquanto não for "perturbado" por causa externa ...
te debatidas aqui. I) Cada fase de um processo de diferenciação A fim de bem distinguir entre os elementos do modelo geral e os
estrutural pode ser reconduzida a certo número de etapas, no curso
que são próprios de um caso particular, exporemos os principais
das quais uma unidade ou organização se diferencia em duas unida-
desenvolvimentos no caso da separação entre a propriedade e a dire-
des, cada uma das quais diferindo da outra por sua estrutura e por çãc. e, depois, apresentaremos as partes correspondentes do modelo
sua função no sistema, mas que, juntas, são de algum modo "fun- geral.
clonalmente equivalentes" à unidade anterior menos diferenciada. Em
nosso exemplo, a partir da "revolução diretorial", as funções d!~ Aventamos a hipótese de que, nas maiores empresas, H controladas
propriedade e de direção se diferenciaram no seio das colossais socie- pelos proprietários", haviam aparecido - em quantidade, intensidade
dades americanas, neste sentido de que são unidades distintas de e distribuição sensíveis - certos tipos de insatisfação com respeito
organização que preenchem, geralmente, tais funções. Mas, tO'lnadas à conduta empresarial sob esse regime de organização. Um foco pro-
em conjunto, as referidas unidades executam funções econômica'S vavelmente importante de insatisfação nasceu do fato de que as pro-
equivalentes às precedentemente exercidas pela unidade de organi- porções da empresa haviam criado uma camada de "empregados" de
zação única, "controlada pelos proprietários". 2) No decurso de eminente categoria. investidos de altas responsabilidades, mas des-
semelhante etapa de diferenciação, admite-se que os valores essen- providos dos direitos explícitos de controle, que os proprietários
cia.is (m.ain value system) permaneçam estáveis. Em outras palav"ras, conservavam. Parece tratar-se de um caso da bem con.hecida instabi-
a mudança não está no conteúdo de valor da célula de manutenção lidade que geralmente se desenvolve quando a responsabilidade não
dos modelos do sistema em foco, mas no número de subsistemas c tem a contrapartida de uma autoridade adequada. Imaginamos tam-
em suas relações estruturais e funcionais recíprocas (29). 3) A bém a existência de um suporte importante e difuso para esse descon-
diferenciação é distinta da segmentação. Os dois processos originam tentamento no seio da "colTIunidade dos homens de negócio" e dos
um acréscimo do número de unidades distintas ou de subsistemas. setores vizinhos da sociedade; por exemplo, entre os engenheiros, os
Mas, no da segmentação, a unidade divide-se em duas unidades ·m~­ construtores etc. 1\0 mínimo, houve um suporte suficiente para
nores, estrutural e funcionalmente equivalentes. Pode-se dar como impedir que os elementos "dissidentes" fossem simplesmente "repos-
exemplo a divisão da Standard Oi! Company original em diversa, tos em seus lugares".
Standard Oil regionais, cada uma semelhante às outras e todas seme- Em tais circunstâncias, que se poderia fazer de positivo? O proble-
lhantes à companhia-mãe. No processo de diferenciação, pelo con- ma essencial era experimentar novos caminhos, nos quais as respon-
trário, as novas unidades não são equivalentes, nem pelas estruturas, sahilidades dos diretores se exerceriam, efetivamente, à margem de
nem pelas funções, mas cada uma fornece elementos de especializaçãl) todo e qualquer controle direto por parte .do grupo dos proprietários.
c1ifereute para uma função mais geral. A diferenciação do comércio
Para que uma tal experiência fosse possível, faziam-se necessárias
varejista, relativamente às agências de transporte, cada qual com
três condições, paralelamente à motivação propriamente dita: 1) que
funções distintas, mas que contribuem, todos, para a "distribuição", é
no contexto imediato da organização de produção a ação não pudes-
um exemplo. 4) Postulamos um "princípio de inércia" (30): um sis-
se ser bloqueada. por exemplo, pelo poder e pela autoridade inex-
pugnáveis do grupo dos proprietários-diretores; 2) que as novas
(29) Empiricamente, uma mudança institucional dada pode acarretar ao atividades de produção não esgotassem o fluxo dos investimentos;
mesmo tempo uma diferenciação estrutural e mudanças no tipo de modelo de os capitais deveriam ficar disponíveis, fora do controle direto dos
,·alores ('value-pattern type) , mas na teoria é essencial distinguir entre eles.
Que não funcionam necessariamente juntos, no sentido estrito do tenno, é proprietários, pela intermediação, por exemplo, do mercado de valo-
evidenciado por numerosos fatos: assim, os valores americanos, que Tocque- res e de emissões de títulos; 3) que os inovadores pudessem esperar
ville descreveu com referência aos anos de 1830, parecem-se muitíssimo com recompensas apropriadas, principalmente sob a forma dift;sa e simbó-
os atuais. Todavia, é certo que gigantescas mudanças estruturais se verifi- Eca do sucesso.
caram, neste entrementes, na sociedade. Para a distinção teórica, ver Family,
Socialization, and lnteraction Process~ capítulo VII. Se essas condições fossem preenchidas, poderíamos aguardar uma
(30) Sobre o conceito de inércia aplicado aos sistemas de ação, cf. The diferenciação entre, de um lado, a estrutura de organização relacio-
Social S)!stem~ capo VI, e Working Papers in the Theory of Action, capo nada com a entrada (input) de capital na economia e, de outro lado,
m, V. a relacionada com a entrada do fator trabalho, particularmente ao

198 199

~
nível dos diretores. ,poderíamos esperar que o papel de diretor se uproveito do empresário" - no sentido técnico - é um fenômeno
organizasse cada vez mais em torno do componente profissio:nal e temporário.
cada vez menos em torno do papel de proprietário. Os complexos Em outros termos, a inovação deve ser aceita COmo parte inte-
,
institucionais do contrato de emprego e do de investimento consti- grante do sistema normal das expectações. Os que a engendraram
tuem, assim os pontos de referência desse processo de diferenciação. deixam de ser recompensados por um tipo particular de lucro pela sua
Mas, para que o aludido processo não remate numa desorganização, audácia e pela sua originalidade. Sê-Io-ão, doravante - segundo a
cumpre que a função residual - da qual a nova se diferenciou seja forma geral pelas funções de rotina que asseguram. A nova "orga-
preenchida. Além disso, as duas novas devem integrar-se numa estnt- nização" implicada na sua produção toma-se uma parte institucio-
tura de nível superior, que as coordene de maneira satisfatória. No nalizada da estrutura econômica: é o caso, por exemplo, da expecta-
caso de nosso exemplo, a instituição da propriedade deveria ser ção desejosa de que os diretores possam tomar iniciativas e assumir
reestruturada. Não poderia conservar o pleno direito à direção da responsabilidades de outro modo que como agentes dos proprie-
política e ao "engajamento" dos diretores, então contratados como tários (32).
funcionários; contudo, seria preciso que se desenvolvessem uma certa A transição final advém quando uma "bateria" de sanções sólida
cooperação e co-responsabilidade. O conselho administrativo de uma e coerente começa a ser aplicada à nova combinação de produção.
grande sociedade anônima dá quase a imagem da reestruturação aca- Se este estádio for efetivamente atingido, a motivação para a pou-
bada: os dois grupos de interesse estão aí representados, sem que pança, quê havia crescido no solo da tensão originária devida à
nenhum domine categoricamente. inSatisfação, será desativada e o será a partir do momento em que
Paralelamente, observa-se uma tendência no sentido de que orga- se alcançou o acréscimo de produtividade. Certamente, o sistema de
nizações especializadas, como os bancos e as companhias de seguro. valores pode ainda conter potencialidades dinâmicas, que, em tempo
que têm relações fiduciárias com os derradeiros proprietários dos oportuno, engendrarão, talvez, um novo ciclo de mudança.
capitais, encarreguem-se dos investimentos. Mesmo a grande socie-
dade se desenvolve numa unidade mais complexa, no seio de uma
rede articulada de organizações, tais como as sociedades de investi- Um resumo do modelo e de sua aPlicação
mento' as associações comerciais, as demais unidades da ucomuni-
dade dos negócios" e o sindicato operário (31). A grande sociedade Resumamos o modelo da mudança institucional como uma sequen-
anônima de hoje é a organização econômica estabelecida no centro de cia de etapas lógicas num ciclo de mudança. 1) O ponto de partida
uma rede de organizações, que agem intennediariamente entre a dita dQ processo é a combinação de uma insatisfação relativamente ao
organização econômica e os subsistemas não econômicos da sociedade. nível de produção da economia, encarada globalmente num ou noutro
Uma última etapa é necessária, antes que a economia engajada de seus setores, e ao sentimento de que existem reais possibilidades,
num tal processo de mudança institucional retome o equilíbrio. A com a maSsa disponível de recursos. adequados, de atingir um nível
relação entre um novo modelo de organização e sua recompensa por superior de produtividade. 2) Sintomas de perturbação aparecem, sob
via do "lucro do empresário" é essencialmente instável. Somente pela a forma de reações emocionais negativas "injustificadas" e de aspi-
institucionalização dessa inovação, isto é, por sua integração nas con- rações "irrealistas", por parte de elementos diversos da população.
dições normais de um funcionamento econômico estável, é que a 3) Cria-se um movimento latente, que canaliza tais tensões e mobiliza
instabilidade poderá ser superada. A "rotinização" implica que se as motivações disponíveis para novas tentativas no sentido de inscre-
enfatize, prioritariamente, do lado dos produtos, a "produção de bens ver nos fatos as implicações do sistema de valores em vigor. 4) Uma
e de serviços" e não mais as Unovas combinações de produtos"; ~
que, em matéria de recursos, a prioridade passe dos "serviços do (32) Exemplo interessante é a clarificação jurídica que se operou no refe-
empresário" para os "serviços de trabalho". Ao mesmo tempo, 03 rente ao regulamento das doações feitas pelas grandes sociedades para fins
{_ducativos e filantrópicos. Durante muito tempo, admitiu-se que cada doação
"lucros" devem tornar-se "salários". A respeito, estamos fundamen- particular necessitava da permissão explícita dos acionistas, porquanto era "a
talmente de acordo COm a posição de Schumpeter, segundo a qual o sua. propriedade" que se doava. 1Ias uma recente decisão de Nova Jersey
tornou válido o direito das "sociedades" - isto é, na verdade o de seus
(31) R. A. Gordon. Business Leadership in the Large Corporatiol1, 1945, diretores - de fazerem semelhantes doações, sempre que as julgassem "úteis
à companhia".
Parte 11.

200 201
!

l
benévola tolerância se manifesta, em alta esfera, para com a proli- a dos organizadores das grandes sociedades - por exemplo, a U. S.
feração, decorrente, de novas idéias, sem impor uma responsabili- Steel, depois da Carnegie-Morgan, a General 1-1otors, depois d:l
dade específica pelo acionamento das mesmas e pelo fato de daí Durant ou, ainda, a Standard Oil, depois da RockefeIler - atingiu
"serem tiradas as conseqüências". 5) Ações positivas de especifica- uma relativa posição de força. 5) Novas práticas financeiras apare-
ção das novas idéias são empreendidas e se concretizarão em el1ga- cem e tendem a desenredar-se do controle exercido pelo antigo
jam'entos por parte dos empresários. 6) O acionamento "responsável" capitdlismo familiar, comO a livre venda de valores ao grande públi-
das inovações é levado a bDm termo por pessoas ou coletividades que co, diferentes maneiras de controle exercidas por uma minoria, a
assumem papel empresarial; ele é, quer recompensado pelo "lucro companhia em fonna-de holding etc. No mesmo momento, produz-se
do empresário", quer sancionado pela falência financeira, conforme um rápido desenvolvimento técnico e organizacional da empresa,
!
as inuvações sejam aceitas ou rejeitadas pelos consumidores. 7) As rematando na constituição de um verdadeiro império. 6) Segue-se
vantagens resultantes da inovação vêm a ser consolidadas por sua Uma nova onda de lucros, mostrando que o sistema pode funcionar
~ aceitação como elemento do nível de vida e por sua inserção entre nas novas condições. Por exemplo, Os grupos da Standard Oil, após
as-habituais funções da produção. Nesta fase final, a nova "maneira o período de Rockefel1er, ultrapassaram de muito a fortuna deste
I
I
de agir" se institucionaliza no interior da estrutura da economia. (33) último. 7) A nova situação é consolidada por sua institucionalização
Propomos a transposição seguinte, po caso da separação entre a (rotinização) , em particular pela produção em grande escala de
propriedade e a direção; separação que se operou na estrutura da') novos artigos destinados a um público de consumidores de salários
sociedades anônimas da economia americana. 1) Havia uma insa- elevados; a nOva economia libertou-se, concomitantemente, da anti-
tisfação difusa entre altos responsáveis do mundo dos negócios em ga Hexploração do trabalho" e do antigo "poder do capital".
relaçao à maneira como funcionava o sistema organizacional, "con- Há, pois, em ampla medida, uma correspondência muito satisfa-
trolado pelos proprietários", no tocante à maximação da produtivi- tória entre as grandes linhas de nosso modelo teórico e as caracte-
dade, e o sentimento implícito de que o aprovisionamento em matéria rísticas empíricas de uma recente mudança na estrutura da economia
de capital não era totalmente incompatível com uma mudança do americana (Traduzido de Economy and Society, Londres, Routledge
statu quo. 2) Emergiram sintomas de perturbação; por exemplo, o & Kegan Paul, 1956, págs. 252-256, 267-272).
ponto de vista "técnico" segundo o qual as combinações negocistas
entravavam, de maneira decisiva, a eficiência (é a "dominação dos
proprietários", de Veblen) e os utópicos exageros dos resultados que
se deviam obter com o completo abandono da estrutura do sistema
de negócios existente, para só se levarem em conta os imperativo3
técnicos. 3) Surgiram atitudes benevolentes (permissive-supportive)
para com as objeções feitas ao regime do IIcapitão de indústria" e
para com as utopias que se lhe opunham (34). 4) A "nova empresa",

(33) O número e a ordem das etapas desse processo correspondem aos


que Par sons e Bales adiantaram, em seu paradigma do ciclo de interÍorização
de um modelo de valores, durante o processo de socialização (Family, Sociali-
zaNo» and Interaction Process, capo VII). Temos o sentimento de que essa
correspondência não é fortuita, mas decorre de certas condições e caracte-
rísticas gerais do processo de mudança estrutural nos sistemas de ação. Toda-
via, a qualidade do paradigma, nas presentes condições, não reside nesse para-
lelismo, mas no fato de que ele explica ou não os processos de mudança estru-
tural na economia entendida como sistema.
(34) Anna Lee Hopson, num estudo sobre os romances de sucesso do
começo do século XX, observou que o herói recusa "submeter-se" aos ,. inte-
resses", que ele é mais ou menos recompensado, sempre, pelo amor desin-
teressado da heroína, que esta é regularmente filha de um desses homens .. per-
versos". Cf. Anna Lee Hopson, Best Sellers, P,,[edia of Mass Expression.,
unpublished Ph. D. dissertation, Radcliffe CoHege. 1952.

202 203
maneira mais precisa, o problema suscitado. Particularmente, acen-
tuaremos os elementos não normativos da ação social que parece
constituírem um conjunto de variáveis que Parsons ignorou, concen-
CAPÍTULO III trando-se unicamente nos elementos normativos da estrutura e dos
processos sociais. Podemos interpretar essa omissão como uma opção,
porquanto permite dar 11m ordenamento mais definitivo à sociologia
POSTA EM QUESTÃO A VALIDADE como ciência social esped21. :Permitir-nos-emos, porém, duvidar qu~
DO ESTRUTURO-FUNCIONALISMO essa posição, na prática, possa ser mantida, sem contradição: tal é,
pelo menos, a opinião do autor. Aí está o que podemos, de saída,
avançar, quanto à orientação da crítica.

I
ALGUMAS OBSERVAÇÕES A PROPóSITO DE
"THE SOCIAL SYSTEM" N est:l seção, consideraremos todas as propüSlçoes enunciadas em
Le systeme social e em outros trabalhos (37) que ilustram a análise
parsoniana da dinâmica social. Não é possível, em alguns parágra-
DAVID LOCKWOOD fos, fazer justiça ao desenvolvimento elaborado e à aplicação do
esquema conceptual; e o esboço a seguir não representa senão um
simples esqueleto. Assim, a maioria de nossas afirmações não visam,
Na exposlçao de teoria sociológica geral, que é The Social de maneira crítica, o que foi realizado, de maneira substancial, no
System (35), o prof. Parsons esforçou-se por inferir e resumir, sob interior de um quadro dado, mas, antes, colocam em questão a perti-
uma forma sistemática, as principais lições do pensamento clássico nência do quadro proposto. Deste modo, a menos que tenhamos
em matéria de sociologia e por estabelecer um programa para o futu- cometido um erro de interpretação, não se trata de criticar o que
ro. A referida obra é o fruto de um desenvolvimento paciente e COD- foi feito, mas, antes, o que não foi feito.
tínuo, a partir de seu estudo inicial, a saber, The Structure of Social O sistema social, para Parsons, é um sistema de ação. Compõe-se
Action, vinte anos antes de alguns eminentes teoricistas da sociolo~ de interações individuais. O fato central para a sociologia é que tais
gia. Não está, entretanto, nos propósitos do presente estudo expor interações não são devidas ao acaso, mas subtendidas por modelos
inteiramente o sistema sociológico de Par sons (36), mas, sim, desen- comuns de avaliação. Os mais importantes dentre eles são os mode-
volver no detalhe algumas críticas específicas que é possível levantar los morais, que podem ser chamados normas (38). Estas "estrutu-
contra a sua conceptualização da dinâmica dos sistemas sociais e, ram" a ação. Porque indivíduos compartem a mesma "definição da
mais particularmente, das sociedades. Num sentido, querer examinar situação", conforme as referidas normas, é que suas condutas podem
um assunto de tal amplitude em espaço tão restrito representa, cer- entre1açar-se e porduzir uma "estrutura social". É a existência de
tamente, um risco, mas, ao mesmo tempo, isso obriga a cercar, de normas regentes da conduta dos atores que torna possível a regula-
ridade, ou o molde, da interação. Na verdade, um sistema social
estabilizado é o em que a conduta é regulada dessa maneira e, como
(35) Talcott Parsons, The Social System, Londres, Tavistock Publications;
tal, constitui um relevante ponto de referência para a análise socio-
Glencoe, The Free Press, 1951.
(36) Excelente apresentação do sistema é feita por Ralf Dahrendorf,
•. Struktur und Funktion: Ta1cott Parsons und die Entwicklung der Soziolo- (37) TO'wards a General Thcory of Action, publicado sob a direção de
gischen Theorie", Kõlner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie, Talcott ParSOl1S e Edward Shils, 1951; Talcott Parsons, ES.ru)1S in Sociolo-
1955, págs. 491-518. Tenho uma dívida para com o Dr. Dahrendori, prove- ghal Theory, 1949, 2.' ed., 1954.
niente de nossas inumeráveis discussões a respeito de outros aspectos da (38) A expressão de Parsons é a seguinte: "critérios de orientação para
sociologia. os valores ,.. Reportar-se a Kingsley Davis. Human Socict)" 1949, 52-82.

204 205

15-T.S.
lógica da dinâmica dos sistemas SOCiaiS (39). Necessário distinguir 1 sariamente verdadeiro com respeito a um esquema conceptual parti-
assim em sociologia como em biologia, os pontos de referência rela- cular do tipo do que foi atrás esboçado, e não o poderia ser enquanto
tivamente estáveis ou os aspectos "estruturais" do sistema ,em
1 não se tivessem desenvolvido conceitos gerais que nos permitam
questão e, depois, estudar os processos pelos quais semelhantes estru- considerar qualquer sistema social concreto e aprender o equilíbrio
turas são mantidas. É o significado da aproximação "estrutural- das forças que agem no seu interior. Podemos então levantar-nos a
funcional" da análise do sistema social. Uma vez que o sistema de seguinte questão: Existirá uma insuficiência no quadro conceptual qu~
que se trata é um sistema de ação e que as interações relativamente acaba de ser descrito e que nos permita pensar que uma certa cate-
estáveis de indivíduos em torno de normas comuns constituem o:; goria de variáveis, indispensável à compreensão do problema geral
seus aspectos estruturais, os processos dinâmicos que preocupam o - por ,que se mantêm e por que mudam as estruturas sociais? -
sociólogo são os que contribuem para manter as estruturas sociais, não foi, de feito, fixada?
ou, em outros termos, os que motivam os indivíduos nO sentido de Estou persuadido de que existe, A primeira observação a fazer
se comportarem em conformidade com os modelos normativos. nesSe sentido é a de que o aparelho conceptual de Parsons ficou
"O equilíbrio dos sistemas sociais é conservado por um leque consideravelmente pesado, em conseqüência dos postulados e das
de processos e de mecanismos, e seu malogro acelera o desequilíbrio categorias que se referem ao papel dos elementos normativos na
(ou a desintegração), em graus diversos. As duas principais catego- ação social e, particularmente, aos processos pelos quais os motivos • 1"
rias de mecanismos mantenedores da motivação em nível e em cami- são estruturados de uma forma normativa, a fim de assegurarem
nho necessários para que o funcionamento do sistema social pros- a estabilidade sociaL Em compensação, o que podemos chamar do
siga sãu os mecanismos de socialização e de regulação social" (40). subst,'ato (41) da ação social, sobretudo tal como ele condiciono 05
Em compensação, as pressões conducentes à emergência do des- interesses que engendram o conflito e a instabilidade sociais, tende
vio podem ser consideradas como devendo constituir objeto de uma a ser ignorado como determinante geral da dinâmica dos sistemas
investigação particular a cada situação empírica que se apresente sociais. Por enquanto podemos definir o substrato da ação social
Regra geral, não existem processos sociais correspondentes aos me- como a disposição efetiva de meios na situação da ação que estrutura
canismos estabilizadores descritos anteriormente e que favoreçam, diferentes Lebenschancen e engendra interesses de um gênero não
sistematicamente, o desvio e a mudança social. normâtivo, isto é, interesses o11tros que não os que têm os atores em
se conformar com a definição normativa da situação (42), Embora,
segundo Par sons, tais interesses devam estar integrados nas estrutu-
II ras normativas que regem as condutas no interior de um sistema
social estabilizado, é inerente à concopção do desvio e da instabilidade
Seria tentador começar a crítica de um tal esquema conceptual
colocando em questão a validade deste ou daquele ponto particular, (41) A distinção entre "norma" e '''substrato'' foi feita por Karl Renner,
como a existência de um sistema de valores comuns, ou a significa- em seu l.-iensch UM Gesellschaft: Grundriss einey Soziologie, 1952, págs.
ção adjudicada ao conceito de estrutura social, mas satisfaz muito 230-233, e empregada em The Institutions of Private Law and their Social
mais iniciar propondo-nos uma questão mais geral. É justo afirmar Functions, 1949, Estas palavras são utilizadas num sentido um pouco diferente,
110 presente artigo.
que, em princípio, os conceitos que servem para analisarmos a
dinâmica. dos sistemas sociais deveriam igualmente aplicar-se aos (42) "No interior de uma relação social estabelecida e em que a socia-
lização se revelou bem sucedida, o indivíduo ganha uma parada na resposta
problemas da estabilidade e da instabilidade, da manutenção e da de atitude favorável dos outros e age igualmente de modo a satisfazer-lhes as
mudança e da mudança das estruturas sociais. Mas isto não é neces- expectativas morais interiorizadas e relativas à sua própria conduta. E tais
sanções morais externas e internas determinam um interesse generalizado pela
conformidade com os' modelos normativos que regem essas relações. Assim,
(39) "Esta integração de um conjunto de modelos de valores c()muns à quando se diz "que um indivíduo procura o seu próprio interesse", segue-se
estrutura de disposições interiorizadas <las personalidades constituintes é o que ele não o pode fazer senão se conformando, mais ou menos, com a defi-
fenômeno-chave da dinâmica dos sistemas sociais. Que a estabilidade de todo nição institucionalizada da situação" (Essays in Sociological Theory, 1949,
sistema social, com exceção do processo de interação mais fraco, depende pág. 170). Em geral, "a estrutura dos interesses num grupo é uma função
de um certo grau de integração dessa ordem constitui, provavelmente, 'o tanto da estrutura das situações' reais dentro das quais as pessoas agem quanto
teorema dinâmico fundamental da sociologia" (The Social System, pág. 42). das 'definições' dessas situações, que são institucionalizadas na sociedade"
(40) Towards a General Theory of Action, pág. 227. (ibidem, pág. 313) ..

206 207

,
social que os interesses não normativos devam ser considerados como
pertencendo a uma categoria separada e independente da análise resolvido de uma ou de 0utra maneira. Pelo contrário, a própria
sociológica (43). Qual então o estatuto desses elementos não norm.· existência de uma ordem normativa reflete a permanente potenciali-
tivos na análise da ação social? Será útil distinguir entre a norma dade do conflito. Certamente, o grau de conflito no sistema social
é sempre um objeto de investigação empírica, mas o mesmo se dá
e o substrato como pontos globais de referência na análise dinâ-
com a existência de um sistema de valores comuns (46). Os diferen-
mica? Em caso de resposta afirmativa, por que terá Par sons dado
tes graus de aceitação ou de recusa dos valores dominantes da socie-
prioridade conceptual à estruturação normativa da ação?
dade podem, sem dúvida alguma, em grande parte, ser considerados
Examinemos a gênese do interesse de Parsons no que se refere â. como refletindo as divisões de interesse que resultam do acesso
regulação normativa da conduta. Trata-se do famoso problema da diferencial aos recursos raros. Por isso - e aí está o aspecto essencial
ordem, levantado por Hobbes (44). "Se dois homens quaisquer dese- - parece decorrer naturalmente dessa situação que, cada vel:
jarem o mesmo objeto e, apesar de tudo, não puderem usufruí-lo ao que eV0camos a estabilidade ou a instabilidade do sistema social,
mesmo tempo, tornar-se-ão inimigos; e, para atingirem o seu fim, compreendemos, antes de tudo, o bom ou o mau êxito da ordem
que é essencialmente a sua própria conservação e só acessoriamente normativa em regular os conflitos de interesse. Assim, para ter um::t
a sua satisfação, farão esforços por destruir-se ou subjugar-se, visão adequada da dinâmica social, é necessário não somente con-
reciprocamente" (45). As relações de poder e de conflito social são ..
.'
'

ceptualizar a estruturação normativa das motivações, mas, igualmen-


interentes à raridade dos meios de que as pessoas dispõem em toda te, a estruturação dos interesses no substrato. Em outros termos, é
socieJade. As noções de poder e de conflito implicam-se rnutl1amente. necessário conhecer as forças engendradas pela norma e pelo subs-
o poder aparece assim que os homens buscam seus interesses, a des- trato, se desejamos compreender as razões da manutenção ou da
peito da oposição de outrem, e uma divisão dos interesses está implí- mudança dos modelos de conduta (47).
cita nas relações de poder existentes. Se o conflito é assim latente
Nesse plano, a passagem de Hobbes a Marx é fácil. A introdução
no estado de raridade dos meios e na de luta por adquiri-los, no
da divisão do trabalho transforma a guerra de todos contra todos
Cc.1.S0 em que os meios de que dispõe um homem lhe derem o poder
em guerra de uma classe contra outra. Marx está de acordo com
sobre outro, a quem tais meios são igualmente necessários, comO a
Hobbes quanto a dizer que o conflito se acha em estado endêmico na
ordem social, nessas condições, será possível? A resposta encontrada
interação social (salvo na sociedade comunista), mas vai mais longe
em La structure de l'action sociale, a proposição que está na base de
e afirma que os interesses de tipo não normativo não são distri-
toda a sociologia subseqüente de Parsons é que a ordem se tornou
possível pela existência de normas comuns reguladoras da "guerra buídos ao acaso no sistema social, porém engendrados, sistematica-
mente, pelas relações sociais do processo de produção. Isto, como o
de todos contra todos". Em conseqüência, a existência da ordem nor-
mativa está, num sentido muito importante, inextricavelmente ligada próprio Par sons o reconheceu, conMitui a intuição fundamental de
aos conflitos de interesse potenciais a respeito de recursos raros.
Essa dependência funcional da norma, em relação ao conflito, não (46) Qualificar-se-á de "conflito" uma relação social, na medida em que
corresponde, entretanto, a uma passagem real do estado natural ao a atividade, aí, é orientada segundo a intenção de fazer triunfar a própria
vontade contra a resistência do ou dos parceiros ... ". "A comunalização é ...
estado de sociedade civil: a relação é analítica e não histórica. No a mais radical antítese do conflito... 'Conflito' e 'comunidade' são con·
presente contexto, é fundamental, para a seqüência da argumentação, ceitos relativos" (Max Weber, Economie et société, t. I, Paris, Plon, 1971,
que a presença de uma ordem normativa, ou de um sistema de valo- págs. 38, 42).
res comuns, não signifique que o conflito tenha desaparecido ou sido (47) "Isto parece ser, também, a posição subjacente à teoria 'volunta-
rista' da ação, que trata as condutas sociais do homem como uma função a
um tempo de fatores 'normativos' e de 'fatores condicionais', em contra-
(43) 11 Sua estabilidade depende da integração dos interesses dos atores na posição às teorias 'positivista" e 'idealista', que realçam uma série de
estruturação do processo integrativo. Se interesses por objetos. outros que não fatores, com exclusão da outra" (The Structure of Social Action, págs. 77-82).
as atitudes dos atores não puderem ser integrados nesse sistema de atitudes Mais uma vez:, a posição de Parsons é, em seu princípio, exata. O verdadeiro
mútuas, constituirão ameaças para a estabilidade do sistema social" (The problema gira em torno de sua aptidão para conceptualizar as duas séries de
Social System, pág. 416). fatores e ligá-las à dinâmica da sociedade. A crítica pouco perspicaz do estru-
(44) The Structure Df Social Action, 1937, págs. 89 e segs. turo-funcionalismo, que afirma ser sua posição necessariamente "estáticl:l.", não
(45) Thomas Hobbes, Leviathan, ed. precedida de uma introdução de M. é, no caso, de forma alguma, pertinente. Conviria antes dizer que há um lado
Oakeshott, pág. 81. a favor da conceptualização de uma série de fatores na dinâmica dos sistemas
sociais.

208 209
Marx relativamente à dinâmica dos sistemas sociais (48). Numa dade, ambas afirmando o seu interesse pela dinâmica social. Com
sociedade dada, este o sentido da recomendação que nos é feita: se afirmações desse gênero não é possível conciliar uma tal divergência
desejarmos compreender o equilíbrio das forças que operam, quer conceptual, salvo se for reconhecido que uma teoria geral dos siste- I •
I.
no sentido da estabilidade, quer no da mudança, devemos não somen- mas sociais, que conceptualiza um aspecto da estrutura e dos pro-
te tomar em consideração a ordem normativa, mas, igualmente, e cessos sociais, é, por necessidade, uma teoria particular. A afirmação
sobretudo, a efetiva organização da produção e oS poderes, os inte- de Parsons de que estudar as forças que contribuem para a estabi-
resses, os conflitos e os agrupamentos que disso dependem. Aqui lidade é ao mesmo tempo conceber as que contribuem para a insta-
estão duas noções da "estrutura social", ambas caracterizadas pela bilidade e para a mudança não está verificada em sua própria análise,
"exterioridade" e pela "coerção", uma de ju:re, outra de facto. A por causa de sua insistência seletiva a respeito dos elementos norma-
análise específica de Marx tendia a privilegiar a segunda significa- tivos da ação social. A única explicação diferente é a de que se
ção. E o que se destaca de seu pensamento constitui uma visão do pode prescindir intelectualmente do outro grande sistema de concei-
sistema social e de seu funcionamento, visão que difere, surpreen- tos gerais. Não se trata, aqui, de indagar se Marx estava errado ou
dentemente, do quadro proposto pela teoria de Par sons. Para mais certo em suas predições empíricas específicas (parece que, na maio-
desenvolver este tema, acaso não será se, por exemplo, o processo ria dos casos, ele estava errado), mas se as categorias com ajuda "f
de exploração na teoria de Marx representar uma radical antítese das quais ele estudou a realidade social como sociólogo são geral4
conceptual do processo social, que, na análise de Parsons, ocupa um mente pertinentes para nossa compreensão dos processos sociais (52).
lugar central, a saber, a socialização. Não é tampouco por acidente Será possível compreender a natureza da sociedade americana do
que a tipologia das sociedades está fundada sobre as formas da pro· século XX, a partir do modelo de valores "realização-universalismo",
priedade e do controle dos meios de produção no primeiro caso e sem mencionar as mudanças sofridas por suas instituições capitalis-
sobre os modelos de valores dominantes da sociedade, no segun- tas? (53) E, se as necessidades de dependência frustradas do homem
do (49). Para Marx, a estratificação social é a diferenciação de gru- de classe média encerrado num mundo competitivo engendrarem "um
pos sociais de interesses econômicos divergentes, na base das relações dos pontos cardeais de tensão da sociedade americana" (54), será que
de produção. Para Parsons, é a diferenciação dos indivíduos em as relações entre os sindicatos e as empresas, relações que o prof.
termos de Superioridade e de inferioridade sociais, na base do sistem3. Lindblom recentemente analisou (55), não são de nenhuma impor-
de valores dominante da sociedade (50). Não é necessário multiplicar tância para a dinâmica desse sistema social intimado a desaparecer?
os exemplos, porque, na oposição quase extrema entre os dois sis- Não é possível que nos proponhamos essas questões senão em vir-
temas sociológicos, observamos o resultado lógico de abstrações fun- tude da bifurcação da análise sociqlógica simbolizada pelos esquemas
damentalmente diferentes sobre a natureza da ação social. Uma tem conceptuais que acabamos de discutir. De uma parte, sugere-se que
por objeto o fenômeno do conflito social e a coerção da ordem social não é possível conceber a sociedade sem um certo grau de integra-
material; o da solidariedade social e a coerção da ordem social ção por meio de normas comuns; e, portanto, que a teoria sociológica
normativa (51). E, o que é mais, as duas teorias aspiram à generali- deve preocupar-se com os processos que contribuem para a manu-
(48) .. Social Classes and Class Conflict in the Light of Recent Sociolo-
gical Theory", Essays in Sociological Theory, 1954, capo XV. divisões e dos conflitos de interesse no sistema. "Wer Klasse sagt, sagt
(49) The Sacial System, págs. 180-200. "Os modelos de valores" e "os Scheidung. Wer von Sozialer Solidaritãt redet, bejaht die Voraussetzung
modelos de propri~dade" têm, portanto, precisamente, o mesmo estatuto analí~ sozialer Antagonismen. Dass dabei die Begri f fe Scheidung und Antag'Jonismus
genetisch die primãren, die Begriffe Klasse und Solidaritãt die Sekundãren,
tico nas duas teorias, naquilo que elas constituem o liame entre os conceitos
gerais "de ordem" e "de conflito" e a diferenciação dos tipos de estrutura
social. Os tipos qu~ daí resultam ilustram com clareza as orientações bem
abgeleiteten, sind, ist nach logischen und empirischen Gesetzen gleich sonnen-
klar" (Robert Michels, Um.schichtungen in den Herrschenden Kla.S'sen nach
1
óiferentes de ambas as teorias. dem Kriege, 1934, pág. 1).
(50) "An Analytical Approach to the Theory of Social Stratification", (52) Reportar-se, por exemplo, à recente apreciação crítica de Theodore
Essays in Sociological Theory, 1949, capo VII; "A Revised Approach to the Geiger, Dt·e Klassengesellschaft im Schmelztiegel, 1949.
Theory of Social Stratification ", Class, Status and Power, ed. por R. Bendix (53) Reportar-se, por exemplo, a Adolf A. Bede Jr., The Twentieth Cen-
e S. M. Lipset, 1953, págs. 92-118. tury Capifalist Revolution, 1955.
(51) É interessante salientar que no tipo ideal da sociedade de classes a
solidariedade se manifesta sob a forma de solidariedade classista e representa (54) The Social System, pág. 269.
uma conseqüência, não do sistema de valores comuns da sociedade, mas das (55) Charles E. Lindblom, Unions and CaPilalism, 1949.

210 211

,
tenção dessa ordem. De outra parte, estima-se que não se pode con- Evidente, então, que não é necessário manter a distinção entre
ceber (56) a sociedade sem um certo grau de conflito proveniente da ordem e conflito senão na medida em que ela pode ilustrar as dimen-
distribuição de recursos raros na divisão do trabalho, e a análise sões de nosso problema. A ordem e o conflito são estados do sistem'l
sociológica vê cometer-se-lhe a tarefa de estudar os processos que social, índices de seu funcionamento e, assim, evocar os determinantes
estruturam e exprimem as divergências de interesse. Esta segunda da ordem deveria provocar uma evocação dos determinantes do con-
concepção, que parece representar a contribuição geral da sociologi:i flito. É somente porque o problema da ordem se encontra ligado ao
marxista, não implica, obrigatoriamente, que os recurSOS se refiram funcionamento do sistema normativo, na obra de Parsons, que se faz
unicamente aos meios de produção ou que o conflito seja neces- necessário pôr em relevo a análise do conflito como tarefa separada
sário e não contingente. Poder-se-ia ainda mostrar, no desenvolvi- e, mais particularmente, a tomada em consideração dos aspectos do
mento desses pontos, que realmente não existe rivalidade entre 03 conflito não normativos. Assim como o problema da ordem não é
dois sistemas sociológicos, mas, ao contrário, que eles são comple- apenas uma função da existência de uma ordem normativa e dos me-
mentares, nos aspectos que privilegiam. Deveria ser tido por evi- canismos sociais que incitam à conformação com isso, mas igual-
dente, após a discussão anterior da nOrma e do substrato como mente uma função da existência do substrato social que estrutura,
variáveis essenciais da situação da ação, que, assim como a ordem, diferencialmente, os interesses no sistema social, assim também o
o conflito não é inevitável. Toda situação social se compõe de uma problema do conflito não pode ser reduzido à análise da divisão d,)
ordem normativa, a que preocupa particularmente Parsons, e tam- trabalho e dos agrupamentos de interesses que daí decorrem. Na
bém de uma ordem material, ou substrato. Ambas são "dadas" aos realidade, tanto o conflito como a ordem são antes uma função da
individuos; ambas fazem parte do mundo social exterior e coercitivo. interação da norma e do substrato. Certos tipos de ordem normativil
A teoria sociológica deve ou deveria preocupar-se com os processos são mais suscetíveis que outros de favorecer o desenvolvimento dos
sociais e psicológicos por intermédio dos quais a estrutura social, conflitos. Por exemplo, o conflito trabalho-capital, em sua manifes-
entendida nesses dois sentidos, condiciona as motivações e as ações tação clássica, é proveniente da situação concreta das classes sob a
humanas. A existência de uma ordem normativa não implica, em produção capitalista, mas a existência de 11n1 sistema de valores
absoluto, que os indivíduos ajam de acordo com essa ordem. Do dominantes, cujos temas máximos de "liberdade" e de lIigualdade
ntesmo modo, a existência de uma ordem material dada não signi- das oportunidades" contrastavam, de forma radical, com a ordem
fica, tampouco, que daí resulte um comportamento particular. A dis- concreta, intensificou-o e aguçou-o fortemente. A emergência de um .
tância entre os elementos "dados", na situação e na ação dos indiví- conflito, que pode ser considerada como índice de instabilidade
duos ou dos grupos, não pode ser preenchida senão pela apreciação social (58), não se reduz, jamais, á um simples conflito de interesses
sociológica da maneira como as motivações são estruturadas nos pla- materiais, mas implica, igualmente, à definição normativa da si-
nos normativo e material (57). 1
tuação ...
Há uma explicação da prioridade analítica atribuída por Parsons
(56) Inconcebível na medida em que "a sociedade" implica a noção de à estruturação normativa da ação social e que não pode ser ignorada:
•. recursos raros" e, pois, o problema da ordem. Mas também como genera-
lização relativa à história social: .. Muito poucos, entre os que con~ideram, é o argumento em virtude do qual a sociologia não se deve preocupar
sem paixão, os fatos da história social, estarão dispostos a negar que a explo-
ração do fraco pelo forte, organizada para fins de vantagens econômicas, (58) Isto pode parecer falso nas situações em que o conflito é institucio-
escorada em sistemas de leis imponentes e mascaradas pelos decentes véus dos nalizado, como nos regimes políticos democraticamente organizados ou como
sentimentos virtuosos e da retórica estridente, foi um traço constante na vida nas negociações coletivas. Há aqui acordo quanto ao modo pelo qual o que
da maioria das comunidades que existiram no mundo até o presente" (R. H. deve ser feito será feito, mas não necessariamente sobre o que será realmente
Tawney, Religion and the Rise of Capitalisrn, 1944, pág. 286). feito. É difícil, portanto, conservar a distinção entre um conflito dentro do
(57) Existem numerosos exemplos, mas o notável livrinho de \Verner sistema e um conflito a respeito do sistema. É por exemplo possível chegar-se
Sombart, Warwm gibt es in den Vereinigten Staaten Keil1en So::iaii.nnus?, a um acordo quanto às instituições democráticas no domínio político, mas haver
continua sendo muito instrutivo nesse ponto. Pode ser comparado com a exce- c!esacordo relativamente às instituições capitalistas, no domínio econômico. Uma
lente discussão de S. :M. Lipset e R. Bendix, "Ideological Equalitari,:;m and mudança social radical verdadeiramente e que implique conflitos de interesse
Social Mobility in the United States", Transactiol1s of the Second "YVorld nesse último plano pode efetuar-se progressivamente, no interior do mesmo
Congress of Sociology, 1954, págs. 34-35. quadro político.

212 213
com a dinâmica do sistema social em seu conjunto, mas somente com e de regulação social, mas também o desdobramento das oportunida-
alguns de seus aspectos. Útil é passar agora para o exame desse des diferenciais criadas pela divisão do trabalho que forma o
ponto de vista. meio-ambiente social efetivo da ação. Assim, se se devem explicar
sociologicamente as Hmudanças nos modelos", como se poderá fazê-
lU 10 sem integrar na explicação a análise do poder e dos meios?
Citando um exemplo evidente, mas grosseiro: Como se poderá 'expli ~
A sociologia deve preocupar-se com uma categoria particular de car o crescimento dos valores coletivistas no interior do etos indi-
problemas no interior da teoria dos sistemas sociais. Esta a posição vidualista dominante do capitalismo britânico, tal como vem descrito
de Parsons, em sua discussão sobre a divisão do trabalho entre as na grande obra de Dicey, sem levar em conta a operação sistemática
ciências sociais. A sociologia, aqui, é definida como relacionada com desse conjunto de fatores? Ou, ainda, na interior dessa mudança
a institucionalização de modelos normativos. "Este aspecto da teoria mais global de valores, o movimento sindicalista aparece, em seus
dos sistemas sociais é que se interessa pelos fenômenos de institu- inícios, como um "grupo de indivíduos motivados para o desvio")
cionalização dos modelos de orientação para os valores no sistema para empregar a terminologia de The Social System. Todavia, um
social e de mudanças em tais modelos, pelas condições de conformi- sistema de explicação sociológica tão limitado como o contido no cita- .-
dade com os mesmos e de desvio em relação a eles, pelos processos de .'
do livro (61), poderá abarcar, convenientemente, a estruturação dessa
motivação, na medida em que estão implicados em todos os fenô- motivação desviadora? Na análise dos processos reais de mudança
menos em questão" (59). A esfera do "poder" econômico e político, social (62), todas as dificuldades que encontra uma sociologia cujo
a saber, precisamente a ordem social de facto, está confiada aos núcleo teórico foi elaborado a partir de um interesse pela base nor-
cuidados do economista e do politólogo (60). mativa da estabilidade social tornam-se manifestas (63). Qualquer
À primeira vista, a definição da sociologia adiantada por Parsons estudo da mudança social, mesmo definido em termos de mudança
está de acordo com o seu cuidado quanto ao papel dos fatores nor- dos modelos de valores institucionalizados, deve fundar-se sobre
mativos na ação social. Fornece ela uma base raciocinada para a conceitos que possam ligar a estrutura real e normativa da situação
seletividade real do seu sistema teórico. Mas haverá aqui uma real às ações resultantes dos indivíduos 'e dos grupos. Em qualquer socie-
coerência? Sua própria caracterização do campo da sociologia não dade dada, as possibilidades de mudança não são devidas ao acaso,
conduzirá ao reconhecimento das limitações essenciais dessa preo- mas estão sistematicamente ligadas ao equilíbrio das recompensas
cupação e dessa seletividade? Já demos realce ao fato de que o pro-
blema da conformidade e da não conformidade dos atores com um (61) A. V. Dicey, Lectures on the .Relation between Law and Public
modelo de valores comuns se reduz a urna consideração da coerção Opinion in England During the Nineteenth Century, 1952.
exercida sobre eles pelas ordens normativa e material e pelos pro~ (62) Comparar, por exemplo, a maneira pela qual ess~ tipo de problema
cessas que lhes são associados. Não é somente a pressão contínua é abordado na obra de Robert Michels, "Psychologie der Antikapitalistischen
das expectações normativas exercida pelos processos de socialização Massenbewegungen ", Grundriss der SozialOkonomik, voI. IX, 1926, págs. 242-
-359, ou em G. A. Briefs, The Proletariat, 1936.
(63) Está claro na rápida discussão consagrada por Parsons à maneira
(59) The Social Syslem, pág. 552. pela qual se poderia analisar a ascensão do nacional-socialismo a partir de seu
(60) Ibidem, págs. 548-551, 121~127. São entretanto os economistas que ponto de vista teórico (The Social System, págs. 520~525). Quando se exa~
menos se interrogaram sobre o fenômeno do .. poder econômico". além do minam as condições que precederam a emergência desse movimento, se se for
sentido limitado de "poder de compra". no mercado. Reportar-se para uma 2lém de proposições gerais, tais como a indispensável presença, "na popu-
firme crítica de sua negligência, a Walter Eucken, The Fou,ndation9 of Eco~ lação, de motivações para a alienação, suficientemente intensas, largamente
nomics, 1950, págs. 263 e segs. Não está daro, tampouco, mesmo no caso, da: espalhadas e convenientemente distribuídas", os fatores que impressionarão viva-
ciência política, que o campo apropriado de estudo é o poder compreendido no mente, pela sua importância, são os interesses dos grupos econômicos, políticos
sentido lato, societal e não o campo mais limitado das instituições governa~ e militares. É difícil ver como se pode, para além de um certo ponto, recorrer
mentais formais. São os sociólogos, ou, pelo menos, economistas ( politi~ utilmente a essas variáveis no quadro dos conceitos gerais que foram apresen-
cólogos de orientação sociológica que mais contribuíram para o estudo do poder tados acima, na discussão teórica consagrada à dinâmica social. Em contra-
econômico e político como substrato da ação social. Na medida em que isto partida, Franz N eumann as interpreta de modo penetrante em sua análise,
é certo, a dissociação da sociologia relativamente a tais problemas significa sem embargo quase tão breve, de Behemoth: The Structure and Function of
também que eles são ignorados, pelo menos se nos ativermos à divisão formal National Socialism, 1942, págs. 17 e segs., que evidentemente deve muito à
do trabalho nas ciências sociais. outra perspectiva geral sobre a dinâmica social discutida nesse artigo.

214 215

':<
e das privações nos diferentes grupos SOCiaIS, tal como ele é deter- De um modo geral, considera-se possível raClOcmar em termos
minado pelos tipos de modelos normativos definidores das condutas funcionais, quando se trata de sistemas possuidores de mecanismos
esperadas e pelos tipos de divisão do trabalho, que distribuem as de auto conservação, ao passo que raciocínios que tais são sem objeto
chanças efetivas de chegarem a seus fins. Se semelhantes proposi· e, mesmo, incorretos, desde que aplicados a sistemas carecentes des-
.;ões são elementares e facilmente aceitáveis, servem apenas para ses dispositivos de auto-regulação .
demonstrar que a análise sociológica, mesmo quando definida for- Lancemo-nos agora a uma análise mais cerrada do caráter geral
malmente como preocupada com um aspecto particular, na aparência, desses sistemas "diretivamente organizados" (igualmente denomina-
da teoria dos sistemas sociais, não pode, de feito, evitar possuir J dos "orientados para fins"). Chamaremos S a um determinado sis-
papel de uma disciplina sintética. Particularmente, à sociologia é tema, e E ao seu meio {(externo". Não nos é necessário conhecer
impossível 'evitar a análise sistemática do fenômeno de poder" com')
lO aqui a maneira exata pela qual deve ser traçada a linha de demar-
parte completa de seu esquema conceptual ... cação entre E e S. Aí está um problema que precisa levar em conta
Não tenho a intenção de negar que o modo de inquérito sociológico as características específicas de cada caso particular, conquanto se
possa ser explicitado pela formulação de teorias sociológicas parti- lXlssa conceber que, em certos casos, ela é traçada de maneira total-O
culares. Na verdade, o desenvolvimento teórico em sociologIa mente arbitrária. Supomos, portanto, que _o sistema S seja "fun- .-
consiste em identificar e em avaliar os diferentes fatores e suas cional" (ou, ainda: dotado de "autoconservação", "diretivamente .'
inter-relações. Temos todos uma dívida para com o prof. Parsons, organizado" ou "orientado para fins"), no que diz respeito a uma
proveniente de sua contribuição passada e presente para esse desen- determinada característica G (quer se' trate de uma propriedade, de
volvimento, notadamente por haver ele insistido na necessária inte- um t"stac1o ou de um processo). Isso significa, seja que S possui
gração do pensamento psicológico e sociológico para se resolverem o traço G em uma data, ou durante um dado período, seja que S
os problemas da dinâmica social. Em compensação, sua afirmação está passando por uma série de alterações cujo termo é a aquisição
segundo a qual ele teria proposto uma H exposição de teoria socio- do traço G, de tal sorte que S COnserva o estado G ou sua tendên-
lógica geral" é menos aceitável, porquanto, procurando definir o cia para adquiri-lo, a despeito de um conjunto assaz considerável de
'estatuto da sociologia, ele a encerrou parece - num molde concep- mudanças que se operam, quer em E, quer em certas partes do pró-
tual nimiamente mesquinho (Excerto de British Journal of Sociology, prio S. Supomos, por conseguinte, que, se S não possuísse algum
VII, junho de 1956, págs. 134-146). mecanismo, cujos efeitos permitissem compensar tais mudanças,
cessaria de apresentar a característica G, ou a tendência para adqui-
ri-la. Nossa primeira tarefa será, portanto, a de melhor explicitar
esta hipótese.
UMA FORMALIZAÇÃO DO FUNCIONALISMO É da maior importância especificar bem, para cada caso concreto,
o sistema S e o traço G. Em primeiro lugar, porque um sistema
(Com uma referência particular a suas aplicações em pode ser dotado de autoconservação no que diz respeito a um deter-
ciências sociais) minado traço e não a outro. Assim, o organismo humano apresenta
um caráter homeostático quanto à sua temperatura interna, mas,
ERNEsT NAGEL aparentemente, não quanto ao diâmetro da íris do olho. Em seguida,
porque S pode não ser senão parte de um sistema S1, mais amplo, e
estar diretivamente organizado em relação a G, sem que assim acon-
Propomo-nos examinar, aqui, o paradigma de Merton à luz de um teça em relação a S,. Finalmente, porque S pode ser um sistema
conjunto de distinções tiradas de uma análise das explicações fun- funcional, relativamente a vários G. Não obstante, como isso apare.
cionais utilizadas em biologia. Através deste exame, buscaremos cerá mais claramente com o tempo, as condições em que S é dotado
essencialmente fazer aparecer os diversos elementos da codificação de antoconservação relativamente a certos G podem não ser as mes-
mertoniana, como traços intimamente ligados no interior de um mo- mas no que tange aos outros G. Aliás, alguns desses G são capazes
delo de análise coerente; e sublinhar - mais ainda do que o fez o
próprio Merton - os preliminares indispensáveis que, em sociologia. de constituir uma como "hierarquia" - suscetível de fundar-se
uma verdadeira aproximação funcional deve procurar preencher .. , sobre relações de dependência causal, de sucessão temporal, de inclu-

216 217

l
são ou de especificidade, de imponàucia numa escala de valores Com a ajuda da formulação esquemática das características dis.
etc. - e as condições em que S é dotado de autoconservação relativa- tintas dos sistemas funcionais que acabamos de estabelecer, iremos
mente a um membro da hierarquia podem ser ou não compatíveis poder examinar a codificação mertoniana dos "conceitos e proble-
com a autoconservação de S em relação a outro membro. Ver-se~â mas que 'Se impuseram à nOssa atenção no decorrer de Um estudo
que cada uma dessas possibilidades é de capital importância para ~ crítico das pesquisas e das teorias atuais em análise funcional".
seqüência da discussão. Aproximaremos, em toda a medida do possível, as distinções pró-
A fim de dar prosseguimento à presente análise, ser-nos-á pre- prias do paradigma mertoniano dos elementos que isolamos na aná-
ciso apelar para as noções de "coordenada (ou variável) de estado" lise formal. Depois, sublinharemos, sempre que for necessário, as
e de "sinalética de estado", cujo papel é tão importante em física possíveis ambigüidades das proposições enunciadas por Merton.
teórica. Deter-nas-emas alguns instantes em sua explicação. Mostraremos, finalmente, quais são os elementos desse paradigma que,
Imaginemos um sistema físico ~, que esteja perfeitamente isolado para o sociólogo, constituem problema e necessitam, de Sua parte,
das influências exteriores e que, no momento to, apresente formas distinções de que não se encontra equivalente em nossa formalização
específicas da série de propriedades r (que pode ser ou não exaus· generalizada dos sistemas funcionais.
tiva do conjunto das propriedades de ~) e que chamaremos 'To'.
Se não conhecer alterações até o momento t lt o sistema irá apresentar :'f
formas específicas dessas propriedades r, idênticas ou diferentes. 1) O (s) elemento (s) a que .se atribuem funções
Designá-Ias-ernos por "r1 ". Suponhamos agora que ~ ache de novo
seu primeiro estado r o e que, após um período (tl - to, ainda apre- A) Parece que se pode atribuir aos "dados" e "elementos" aqui
sente, novamente, a forma r 1. Se ~ se comportar dessa maneira, mencionados um regulamento heurístico semelhante ao das partes e
sejam quais forem o estado tomado como referência e a duração d0 ao dos processos dos organismos cuja função a biologia analisa. Na
período, será qualificado de "sistema determinado em relação a r" formulação das conclusões de uma pesquisa coroada de bom êxito~
(ou, mais brevemente, se não houver perigo de confusão, de "sis- poder-se-iam seguramente representar alguns desses elementos pelas
tema determinado"). É possível que a série de propriedades r seja coordenadas de estado pertinentes para este ou para aquele traço do
sistema.
muito importante e, talvez, demasiado numerosa para facilidade da
observação. Admitamos, entretanto, que r comporte um número II B) A atenção de Merton, entretanto, parece inicialmente dirigida
(finito e relativamente pequepo) dessas propriedades, cujas forma, antes para o estádio preliminar da análise funcional do que para o
específicas possam ser atribuídas aos valores das variáveb resultado finalizado r de tal pesquisa, isto é, para o momento em que
"Xl, X2, ..• x n ", de tal sorte que as formas específicas do conjunta se exploram distinções hipotéticas e se estabelecem grosseiramente
das propriedades r, a qualquer momento que seja, depen<lam relações de dependência entre os elementos distintos. Uma distância
unicamente dessas n propriedades nesse momento, e que n seja o real separa ordinariamente essa etapa exploradora da formulação
menOr número de propriedades para o qual isso se veri fique. de uma lista satisfatória das coordenadas de estado relativas a um
Assim, se, num primeiro momento to, essas variáveis tiver.em traço do sistema. Com efeito, um dado catálogo de coordenadas não
por valores %:0 , ... , z t~ (achando·se }l então no estado r o), ao se torna definitivo senão quando uma teoria conveniente (ou um
passo que, no . momento seguinte t1 , as mesmas variáveis toma:rem sistema de leis gerais) tiver sido estabelecida para explicar deter-
minado conjunto de características do objeto estudado. É sabido, e
i
os valores .x t , . . . , X ~ (achando-se l, então, no estado r 1) poder- muito, que, no desenvolvimento de uma ciência, importa quase sem-
se-á dizer que, visto que ~ é Um sistema determinado, a segunda pre acrescentar ou subtrair a um primeiro catálogo de coordenadas.
série de valores dessas variáveis (e, pois, o segundo estado de -~:, Porque, idealmente, as coordenadas devem descrever, de maneira
é, unicamente determinada pela primeira série. Daremos a variávei:-; completa, o estado de um sistema que é causalmente significativo ,da
desse tipo o nome de "coordenadas de estado", e a essa série de presença de uma propriedade dada. Não existem regras para des~
variáveis o de "sinalético de estado". Postula-se explicitamente cobrir a série de coordenadas adequada; e não se está de modo
que os valores das coordenadas num momento dado são indepen· algum seguro de poder encontrá·las num repertório do conjunto dos
dentes uns dos outros, ainda que os valores que elas adquirem em componentes elementares de um dado obj eto, por mais exaustivo que
tal momento dependam dos que adquiram em outro momento ... esse repertório pOssa parecer e por mais cuidadosamente que se

218 219
tenham podido recolher e observar tais elementos. De fato, não é 2) Disposi{ões subjetivas (motwos, fins)
certo, de forma alguma, que as partes ou características mais evi-
dentes ou mais imediatamente observáveis de um sistema represen· A) Pode-se pensar que aqui se faz referência aos motivos e aos
tem os traços correspondentes a uma conveniente lista de coordena- fins, na medida em que permitem explicar a presença de um fenô-
das de estado. E a história das ciências mostra, COm suficiente evi- meno. Assim, cuida-se de uma coordenada muito especial} relativa-
dência, que as coordenadas pertinentes de um sistema não estão em mente a um estado do sistema. Entretanto, como coordenada, uma
geral ligadas, senão de maneira indireta, a fatos diretamente udisposição subjetiva" funciona em pé de igualdade com outras co ..
observados. ordenadas (tais como as que foram mencionadas no primeiro ponto
C) Demonstramos, já - e é preciso insistir nisso - que as coor- do paradigma); e não se vê por que devesse ela ser incluída numa
denadas de estado relativas a um traço dado de um sistema devem categoria especial daquilo que aspira a ser um paradigma geral da
ser variáveis mutuamente independentes, no sentido em que seus res- análise funcional, '
pectivos valores, num momento dado, não são deriváveis um do Na verdade, saber se uma "disposição subjetiva" constitui uma
outro. O enunciado de Merton não precisa, com suficiente clareza, coordenada útil ao estudo dos sistemas socia.is não é, evidentemente,
se Os elementos de que ele fala são concebidos como constituindo uma questão formal, e não se pode decidir a respeito senão na base
uma possível lista das coordenadas relativas a um só estado do sis- dos fatos peculiares às ciências sociais e às suas leis estabelecidas.
tema, ou se são uma justaposição de várias listas parciais para dife- B) Aliás, impossível responder à questão-chave em termos gerais
rentes estados. No primeiro caso, a questão de saber se os citados ou formais. É preciso também despojá-la de suas ambigüidades para
elementos satisfazem à exigência de independência que acabamos d~ torná-la mais clara.
consignar, quanto às relações entre as coordenadas, constitui um i) Se uma "disposição subjetiva" for uma coordenada, entre
problema de fato, a cujo respeito o presente estudo nada tem que outras, num sistema, e dado que os valores das coordenadas, num
dizer. De saída, é contudo permitido duvidar que "estrutura social" determinado momento, são (por definição) independentes uns dos
e "modelos institucionais", por exemplo se tomados como coordena- outros, o valor específico de dita coordenada, nesse momento, não
das relativas a um estado particular - satisfazem bem a esta exi- será "derivável" dos valores correspondentes das outras coordenadas,
gência. no meSmo momento. Se assim se interpretar a questão-chave, será
D) Se se estimar que ela está relacionada com as condições que então p~eciso considerar as motivações observadas como "dados".
os métodos de observação quanto aos valores das coordenadas de- ii) Em compensação, sempre na hipótese de que uma "disposi-
vem preencher, poder-se-á em parte resp::mder, conquanto de ma- ção subjetiva" seja uma coordenada, o caráter específico das dispo-
neira formal, à questão-chave de Merton. A noção de coordenada não sições subjetivas, num determinado momento, deve ser derivável dos
teria aplicação legítima na pesquisa empírica senão quando, pelo me- vaIores das coordenadas num momento precedente, com a condição,
nos, as seguintes condições estivessem preenchidas. i) Deve-se poder certamente, de que as leis pertinentes do sistema tenham sido previa-
definir para cada coordenada (ou para certas combinações de coor- mente estabelecidas. Nesta acepção da questão-chave, as motivações
denadas) uma regra que a (ou que as) ligue a observações brutas, observadas podem sempre Ser "verdadeiramente consideradas como
por mais complexa e indireta que possa ser essa relação. ii) Importa problemas ".
que a observação permita distinguir - em todos os casos e com iii) .Possível, não obstante, acontecer que uma "disposição sub-
um bom grau de aproximação - diferentes valores hipotéticos de jeti,..a" não seja uma variável interessante para figurar como coorde-
uma coordenada determinada (ou de uma combinação de coordena- nada relativamente a determinado sistema, talvez porque ela não entre
das). Por exemplo, se essa coordenada for uma distância, deve-se ser como tal entre as leis e as teorias conhecidas. Devem-se então dis-
capaz de distinguir entre uma distância de dois e de duzentos metros, tinguir dois casos: (IZ) Posto que a "disposição subjetiva" não sej"
senão talvez entre um décimo e um undécimo de milímetro. iii) De- uma coordenada, pode ser posta em relação por leis conhecidas com
ve-se poder distinguir entre as características representadas pelas di- variáveis que são coordenadas. Neste caso, as motivações observadas
ferentes coordenadas (ou combinações de coordenadas), graças à ob- serão deriváveis de outros dados". (~) Pode ela não estar ligada
H

servação; deve-se poder distinguir, por exemplo, entre o que se cha- por nenhuma lei conhecida a outras variáveis. Então, motivações e
ma "posição" e o que se chama "momento". fins deverão ser considerados como dados".
I(

220 221

Ih -T.S.
iv) Enfim; há também a possibilidade de que duas análises (ou nadas relativas a G, as variações verificadas nao d<ipendamda Ca·
teorias) alternativas, mas équivalentes, sejam válidas para um sis- tegoria KAG de mudan.ças, qu-e conservam G, e, pórtanto; arrebá.,..
tema, d~o, a "disposição subj~tiva" sendo uma variável de estado\em tam a S o seu estado G.
uma, mas não na outra. Por isso se as considerarmos no quadro do Vi) Se A variar de tal sorte que permaneça na categoria K AG
primeiro modo 'de análise, as "disposições subjetivas serão ,"dados'':'9u de ,variações conservadoras. de G, mas se, por uma' l'3:zãp .qualquer.
"deriváveis", conforme nos coloquemos na questão (i) ou ,na quest~') outra coordenada B mudar ao ponto de que seu novo .valor não entre
.(Vi.). Mas no quadro do segundo modo de análise sempre poderíamos na categoria K AG, (e arrebate, assim, a S o ~eu estado G).
«;:onsider"á-Ias como deriváveis de' Qutros dados, ou seja, ,valores, :d~s, . Ui) Se, como há pouco, S possuir dois G (G, e G2 l.: cujas dua~
coordenadas q.a., segunda, teoriar respectivas coordenadas forem A, e B,. e A 2 e B" e, se a variação
de AI achar uma variação compensatória em B lJ que conserva
GI, mas acarreta uma variação em A2' a qual. não ,é compensada
J) ConS'3qiiência objetiva (função, disfunção) por uma variação de B. suscetível de preservar Gi (de sorte que
S abandone o seu estado G2 ). Neste terceiro caso, talvez seja possí-
A) Apesar da clareza das observações de Merton .relativas' ao vel considerar a mudança em AI como parcialmente disfuncional.
pri~eirb problema, parece possível distinguir diversos elementos nes"se
plano. C) As mudanças não funcionais podem ser descritas como em
seguida se verá. Um sistema possuirá geralmente um número inde-:-
i) Por" função" de um elemento (ou de uma série de elementos) finido de propriedades, de que não dá conta de maneira exaustiva
de S, pode-se entender- simplesmente uma característica G, que, esse a série das coordenadas relativas a um G .(ou a uma plnralidade de
elemento permite a S conservar. O elemento pode, então, ser cOl;lCe- G) dado. Suponhamos que S possua a série de G: G" G2 , ••• Gn
bido como uma coordenada de G e sua função é manter G em' S. e que X seja uma propriedade de S não pertencente a nenhuma
Nesta aceRção, a função de um elemento mantém--se no papel qu~ série de coordenadas relativas a esses G, nem seja 'parte 'c{)nstítu ...
desempenha em S. tiva de qualquer G. Se uma mudança de X não induiir nenhuma
ii) Sem embargo, poder-se,ia dar ao vocábulo uma significação ,variação funcional ou disfuncional, de uma ou de outra dessas co-
mais global, referente a um - ouà totalidade - dos efeitos (i~~, ordenadas, poder-se-á qualificar a mudança de não fuucional relati·
diatos tanto quanto indiretos) produzidos por mudança em umàva- vámente a esses G. É preciso observar bem que, da mesma, ma..
riável de estadá, com a única condição de que a mudança _entr~se neira como a afirmação de que uma mudança dada é funcional ou
em .uma categoria KG de variações que conservam S em um estàdp disfuncional deve ser relativizada em função de um G (ou de. série,s
G, para um G dado. Assim, suponhamos que S possua dois G (G, de G) especificado, a afirmação de que uma mudança é não fun-
eG2 ), cujas coordenadas respectivas são A, e B, e Ao e B 2 • 1Jm~ cional o deve ser igualmente em função de um G dado .. Uma mu-
mudailça em 'A I pode produzir mudanças compensatórias em Bt, pe~­ dança não funcional relativamente a G, pode ser funcional, disfun-,
mitindo preservar GI . Mas isto é também -capaz de levar a .uma cional ou pão funcional relativamente a G2 .
var~ação .de A2' seguida, por sua vez, de uma variação de B.2.. e
D) É preciso igualmente utilizar o meSmo tipo de, formulaçãO'
pOssibilitando preservar G". O conjunto dessas mudanças nas di- relativizada para explicar o sentido' em que Hum elemento pode ter
versas çOordenadas, e não somente a manuten,ção de GI e -de G2, vão ao mesmo tempo conseqüências funcionais e disfuncionais". Assim,
cÓnstituir, então, as Hconseqüências objetivas" da mudança inici~l como acabamos de notar, a variação de uma cQordenada pode ser fun'·
em AlI "que contr~buem' para a adaptação ou para o ajustamento
cional em relação a G" mas disfuncional em relação a G2• Além
de um sistema dado", e é o que pode significar a expressão "ftm- disso, um sistema S pode evoluir no tempo, ao se desenvolver duran-
ção.de AI". te um período dado (seja isto a conseqüência de um crescimento'
B), Retomando oS termos das distinções estabelecidas em nQssa "natural" ou a de uma mudança do meio-ambiente). E é totalmente
exposição geral dos sistemas funcionais, pode-se definir uma dis.-, possível que a variação de um elemento, num momento dado, seja
função por um dos tipos de mudança seguintes: funcional relativamente a GIl mas que, em outro momento, a mes-
. i) Se A for uma coordenada relativa a G em S e variar de ma variação do mesmo elemento seja disfuncional relativamente ao
tal maneira que, a despeito de outras mudanças nas demais coorde- mesmo GI . No caso, poder-se-ia levantar a questão de' saber se se

222 223
trata exatamente. do mesmo sistema em momentos diferentes, ou de mento to tivermos An =F X n, ao passo que, no momento' seguinte, tI,
dois sistemas diferentes S1 e S2, entre os quais está havendo uma tivermos A B = X B , quais serão, para o sistema S ou para alguma
relação de continuidade causal. de suas p~rtes, as conseqüências da mudança dos dois valores de Ax ?
Convém, do mesmo modo, mencionar, sob este ângulo, a possibi~
lidade de uma hierarquia ter sido estabelecida entre os diversos G
que um sistema pode apresentar. Suponhamos, por exemplo, que 4) Unidade servida pela função
uma série de quatro G seja definida na seguinte ordem: G" G2
A) Esta parte do paradigma parece tratar de dois pontos im-
(G", G.), tendo o primeiro precedência sobre o segundo, o segundo portantes, que se podem, na linguagem abstrata dos sistemas fun-
sobre os dois outros, mas G3 e G. tendo a mesma categoria. Se cionais, precisar da seguinte maneira: em uma análise funcional é
uma mudança de S respeitar G" mas não G2 , poder-se-á considerá- essencial especificar i) o sistema estudado, tanto como ii) o G par-
la, H em suma", antes como funcional do que como disfuncional. Se ticular de S, que tais elementos de S concorrem para manter.
essa mudança for disfunciopal relativamente aGI, poder-se-á, u etn B) Já falamos bastante a respeito do segundo ponto. Mas o pri-
suma", considerá-la como disfuncional, mesmo se, relativamente a meiro, a despeito de seu caráter evidente, talvez mereça uma rápida
G2 , for funcional. Todavia, se a mudança não for funcional relati- . f
discussão.
vamente a G, e G", mas funcional relativamente a G3 e disfun-
i) Geralmente um elemento dado pertence, muitas vezes, a vários
danaI relativamente a G 4 , será necessário considerar, sem dúvida,
sistemas. Suponhamos que haja um pertencente aos três sistemas S"
como inteiramente arbitrário deduzir daí que a característica de tal S2, S3 - estando o primeiro incluído no segundo e o segundo no
mudança seja, Hem suma", antes deste tipo do que daquele. terceiro - e que seus G respectivos sejam Gl , ~ e Gs . Formulamos
E) O segundo problema estabelecido por Merton concerne a uma a hipótese de que este elemento explique Gl e G2 , não, porém, Gs,
confusão tangente a temas específicos das ciências sociais e não entra e que seja representado pela coordenada A. Neste caso, uma mu-
no quadro das distinções inerentes à nossa apresentação geral dos sis- dança de A será não funcional relativamente a G3 . Entretanto, pode
temas funcionais. Assim, já notamos que a "intenção subjetiva" (ou, ser funcional, ao mesmo tempo, em relação a G1 e G2 , ou então
mais geralmente, a "disposição subjetiva") é, quando muito, uma disfuncional em relação a ambos, ou, ainda, funcional relativamente
coordenada particular que, na análise formal dos sistemas funcio- a um e disfuncional relativamente a outro.
nais, não vale mais do que uma simples coordenada, entre outras. ji) Um elemento dado pode pertencer a um sistema S" que é,
Por isso, nos casos em que não se introduz explicitamente a Uintenção ele mesmo, uma parte do meio externo de um outro sistema Sol.
subjetiva" como coordenada particular, a distinção mertoniana entre Se este elemento explicar causalmente Gl e SI, e se S2 manifestar
funções manifestas e latentes fica supérflua, e todas as funções de- G2 , uma variação do mesmo elemento poderá ser, ou funcional, ou
disfuncional ou relativamente a G1 e, ao mesmo tempo, funcional,
vem ser colocadas sob a rubrica "funções latentes".
disfuncional ou não funcional relativamente a G2 .
Todavia, se a "intenção subjetiva" for colocada como variável iii) Um sistema S, que apresenta G, pode incluir dois siste-
específica, tornar-se-á então possível formular a interrogação con- mas subordinados S2 e 5:3 , que manifestam, respectivamente, G2 e
tida na questão-chave, no interior do quadro de jlOssa análise for- G". Se um elemento de S2 (e, portanto, de S,), mas que não per-
mal, sob a condição de ampliá-la um pouco. Suponhamos que seja tença a S8, explicar simultaneamente G, e G2 , sua variação poderá
Ax essa coordenada e B uma outra coordenada relativa a um G ser funcional em relação aos três G, ou disfundonal em relação a
de S dado; notemos ainda por A B as conseqüências compreendidas eles, ou, então, ainda, não funcional quanto a Gs , funcional quanto
e desejadas de uma certa variação de B, e designemos, enfim, por a um dos outros, mas disfuncional quanto ao terceiro.
X n as conseqüências reais dessa mudança de B. Assimilar as conse-
qüências compreendidas e requeridas de uma mudança particular de
5) Exigências funcioruUs (necessidades, condições prévias)
'B às conseqüências reais da mudança é estabelecer A B = X B ; dife-
renciá-las é estabelecer A B -:/= X B • Isto nos permite formular a inter- A) Parece que o problema capital aqui suscitado diz respeito ao
rogação, contida na questão-chave, da seguinte maneira: se, no mo- fato de que um sistema dado S pode apresentar toda uma variedade

224 225

'-'j ...I...-.
de G. Co,nvém" portanto, pa~a' efetuar uma rigorosa análise funcio- (i' = 1, 2, .. :,n) num" momento dado implique a ·pre;eriça em· S
nal, ,especificar qual desses G é levado em consideração. n~ mesmo momento. de G., a recíproca não .. sendo" verdadeira., Ein
Evidéntemente, não ê coisa fácil estabelecer a série completa das t~~s condições, podemos dizer que G. "-constitui' uma exigência "fun:-
coordenadas de estado relativas a um G dado. Mas importa igualmente ci~,nal "universal" para S nu~ período determinado, enquanto- todos
sublinhar que se terá freqüentemente tendência, como O nota Mer- os outros Gf constituem exigências funcionais ".ma~s específicas ""~
ton, para utilizar uma' tal 'lista de maneira tautológica, quando o G C) O problema suscitado pela questão-chave não parece próprio
em· questão não for ainda cuidadosamente especificado. Porque a da análise funcional exclusivamente e pode ser levantado, de maneira
variação de todo '" qualquer elemento de S terá. automaticamente, pertine1?-te, em toda e ql;lalquer pesquisa de "causalidader em que uma
éonseqüências sobre S;. e qualquer elemento poderia facilmente repre- "experimentação rigorosa" se revele impossív.el. Porque interrogar-
sentar o papel de uma coordenada, se o único critério de tal quali- se'80bre O· fato de saber se tal elemento A contribui para rnan-
dade fosse' b de que _suas variações devessem produzir mudança~ t,~r:'"tal G em S," ou ainda "se G é indispensável a, -5, é o múmo
de S. fEtO: quer procurar saber se a presença de G depende de A" e de
B) Entretanto, a noçã,O de "exigências funcionais" sugere alguma suas inter-relações com os demais elementos, quer se outros traços
cóisa a mais: uma classificação dos diversos G de um sistema em (f~ndamentais) de S dependem da preservação de G. E sãoques: • '!-"
função de algum princípio partic'l:llar e, talvez, o estabelecimento,de tí)es, essas, que, a despeito da dificuldade que se possa experimentar
uma. ordem hierárquica entré eles. ~nl",respon~er-Ihes, "se colocam ~m tod9s os' tipos de pesquisa e não
. i) Pode-se supor que, para um dado sistema S, existam deter, so~,ente _no. estudo dos sistemas diretivamente organizados. .
minados G 'fl1aiqres "correspondentes às H funções vitais" dos orga;rtis- ':.';
±nos biológicos (a r~spiração, a reprodução etc.) "indispensáveis'" à
'.':'sobrevida" de S. Uma ,lista desses G constitui, de fato, uma défi- 6) Mecanismos pelos quais as funções são preenchidas
nição (ou urrtaparte da definição) daquilo que é esse S, de sorte
que, se G1 ',figura_ nessa lista, dizer que G 1 é essencial à sobrevida ... A)" Este ponto do paradigma constitui; de saída, um. simples ape-
âe S· equivaleria a cometer uma tautologia. Agora, posto que, em lo"" para a constituição de um' repertório explícito das cciorden~4as
prirtcípió, seja muito' fácil constituir semelhante lista desses G e 4~" estado relativas aos diversos G dos sisten13s sociais e parece, por-
que, em certos domínios (em biologia, por exemplo), haja geral- ~to, em parte, não ser 'senão uma nova- formulação de um pro~
mente' um' acordó 'quanto à composição de dita lista, em outros do- VkI1,a colocado no parágrafo precedente.
mínios ,- assim coinO o observou Merton - isso é mais difícil e o :B) Impõe-se acrescentar, não obstante, que uma pesquisa sobre
debate sobre' a :especificação das "funções vitais" pode continuar q~:"sistemas funcionais, não se restringiria, sem dúvida, à exclusiva
aberto por um tempo indeterminado. '. deS1:oberta de uma série completa das coordenadas relativas a um
ii) Seja como for, a construção de uma tipologia dos diversos G G, .dado, mas buscaria por igual 'estabelecer os modos detalhados de
de um sistema, ou a definição de sua ordem hierárquica, requer hipó- dependência que existem entre os estados do sistema em momentos
teses particulares, conforme o S considerado. Não se deve esperar ôifer~l1tes~ assim como as condições específicas em que G se produz.
de uma exposição geral sobre a análise funcional a resolução dos Se" 'Se utilizarem as notações matemáticas atrás aplicadas aos sistemas
problemas" enfocados. Entretanto, no quadro de nossa exposição, é :tIitetivamente organizados, poder-se-á, então, reformular esse ponto
possívelexplidtar da maneira seguinte o modelo de relações que a do' paradigma em função da seguinte exigência tríplice da análise
distin'ção entre exigências funcionais "universais", de um lado; "e funCional: especificação das coordenadas de' estado xi' ... , X n rel~ti­
H de alta 'especificidade", de outro lado, acarreta: vas ,a um G dado; formulação das relações de dependência f;, : .. , f n
Suponhamos que G .. G 2 ••• , G n ccnstituam uma série de 1i G que existem entre as coordenadas de diversas datas, e descoberta das
mutuamente exaustivos e exclusivos para um S dado, de sorte que, cóndições g., ... , g , em que este G se produz. .
.J ' n ,
em certo tn?mento, ou durante um dado período, um dentre eles :seja ":_:L) A visível insistência de Merton sobre os mecanismos sociais,
realizado em S, mas que a presença de um dentre eles em S, na- de: ,preferência aos mecanismos psicológicos, repousa manifestamente
quele momento, ,exclua a presença de todos os outros, no mesmo ria; -hipótese de que é possível traçar entre eles uma fronteira que,
momento. ,Suponhamos. além do mais, que a presença em S de G parilo objetivo da pesquisa, seja sufiCientemente nítida. Além disso,

:226 ·227

J
o que, porém, é menos certo, ele parece adotar a hipótese de fundo, S; e a suposlçao inversa para X, pode ser utilizada para figurar
segundo a qual em sociologia uma lista conveniente das coordenada:; a senescência ou outras modalidades de deperecimento 'de S. Mas,
relativas a um G dado conterá somente coordenadas sem relação seja como for, a possibilidade de que, em momentos ou em dife-
senão com elementos especificamente sociais. Mas tais hipóteses, se- rentes circunstâncias, diferentes elementos de S sejam causalmente
jam elas realmente de Merton, ou não, arrastam-nos para proble .. operantes para conservar um G dado em S toma mais evidente
mas fatuais, que estão fora de nosso propósito. que um G dado possa ser conservado, graças à ação de variados
meios.
ii) Uma possibilidade diversa, embora análoga, reside na supo-
7) Equivalentes funcionais (ou substitutos funcionais) sição de que um certo G. de S seja "universal" ~no sentido expli-
cado atrás) relativamente a traços "mais específicos" G1 ••• , G",
A) O problema aqui colocado é visivelmente central na análise Já que neste caso a presença de G. depende da realização de um
dos sistemas diretivamente organizados e exprime a idéia fundamen-
dos Gi (mas não de um G, particular), o problema posto no pre-
tal sobre que repousa o relato geral da seção precedente. Em nossa
linguagem, o problema é que, se o conjunto KG dos possíveis estados sente ponto do paradigma disso decorre imediatamente.
G de um G determinado de um sistema contém mais de um só B) Desde o começo, reconhecemos explicitamente que um siste- : f
membro (e é possível supor que esta condição esteja contida na afir- ma S possui um meio E. Uma vez que em geral E é o lugar de
mação de que o sistema é diretivamente organizado em relação a certos elementos representados peIas coordenadas relativas a um G
G), G pode aparecer como uma conseqüência de diferentes confi- dado e, portanto, contribui, em parte, para a gama das variações
gurações dos elementos de S (ou de seu meio) e em relativa inde- nos elementos causalmente significativos em relação a G e que têm
pendência em face das variações próprias de cada um dos elementos precisamente por efeito conservar G, o fato de se levar em conta
..::ausalmente significantes. E parece ser de considerável importância para o problema tratado
Entretanto, ainda que este ponto nos seja agora cem por cento neste ponto do paradigma.
familiar, poderá ser útil fazer, a respeito, alguns comentários mais Entretanto, por motivos que não são claros, Merton não faz men-
aprofundados. ção explícita do meio em que se situa um objeto de análise funcio-
i) Um sistema pode "crescer" ou "se desenvolver" com o tem- nal em sociologia, ainda que todo objeto dessa ordem possua real-
po, de tal sorte que, ainda que um G dado venha a conservar-se do mente um meio. O recordar semelhante falta vale não somente para
princípio ao fim do desenvolvimento, as coordenadas de estado rela- este ponto preciso como também para o conjunto dos pontos do pa-
tivas a G e o modo de mútua dependência de seus valores, em radigma.
diferentes momentos, pode mudar. Esta eventualidade e suas -evi-
dentes conseqüências podem ser explicitadas, de maneira formal, 8) Contexto estrutural (ou dependência estrutural)
assim: Suponhamos que Xl, ... , Xn' seja uma lista hipotética exaU3~
tiva das coordenadas de estado em S relativas a um G dado. Possível A) Nosso estudo distinguiu dois tipos de coerções que pesam so-
acontecer que, durante um período T 1, ou sob certas condições c; G
I bre as coordenadas dos sistemas funcionais. Um só parece aqui exp1i~
seja conservado em S, embora o elemento X n se revele inoperante citam ente levado em conta.
i) A estrutura de um sistema dado S impõe certas "condições
(quer porque não se apresente em S durante o período, quer porque
limites" ou coerções gerais aos elementos representados por uma sé..
outras circunstâncias o levem a ser simplesmente "posto em vigia").
rie de coordenadas, em virtude das quais os valores das coordena-
Mas pode acontecer que, no período seguinte T 2, ou sob outras con- das A, B, 'C etc. devem todos referir-se, respectivamente, a certas
'dições C2, quando G é ainda conservado em S, X,. não seja mais ino~ gamas de valores KA, KB , Kç etc. Em contrapartida, os possíveis
peránte, conquanto Xl se torne agora inativo (seja por causa de seu estados de S devem ser compreendidos numa classe determinada K •.
desaparecimento de S, seja por causa de um repouso provocado). A Este tipo de coerção não é mencionado no presente ponto do para-
inatividade de Xn em S durante T, e sua atividade durante T 2 po.. digma.
clem ser, no presente contexto, tomadas como uma formal repre- ii) Visto como existem condições a que os valores das coorde-
sentação do crescimento ou de outros modos de desenvolvimento de nadas A, B etc. devem satisfazer, se forem mesmo valores que de-

228 229
I!

I termiriar um estado' G de S, os mesmos deverão referir-se a certás


classes 'restritas K AG , K BG etc: Em compensação, os possíveis estados
mente a um . G dado. Num e noutro caso, poderão nascer, facilmen-
te,.. -idéias falsas em relação aos limites das possíveis mudanças que
G de S precisam todos pertencer à classe restrita K". É aparente- conservar G, são disfuncionais. O problema, -por conseguinte, é pro-
mente Q único tipo de coerção para o qual Merton chama atenção ; sos que os limites reais em certos casos, mais estreitos em outros
ea analogia sugerida por ele com o princípio de Goldenweiser,re1a" casos.
tivo às possibilidades limitadas, representa disso um corolário ime-
diato.
'iii) Se G. for universal em S relativamente aos Hmais especí- . 9) Dinâmica social
i ficos" GI , . . . , G n , estes últimos constituirão uma série de -substi~
tutos ti indiferentes", cada um dos quais acarretará a realização'. de
Este parágrafo do paradigma parece conter vários pontos que con~
G.. Em conseqüência, embora os dois tipos de coerções devam ser vém distinguir, ainda que estejam ligados.
reconhecidos para as coorde ~das relativas a cada um dos G , a. exis· A) As mudanças nas coordenadas relativas a um G dado de S,
tência desses substitutos poderá, num sentido, temperar a força .das e que saem dos limites da classe KG das mudanças que permitem
cp~rções, permitindo uma escolha entre eles e salvaguardandoG •. ronser/ar G, são disfuncionais. O problema, por conseguinte, é pro-
B) Entretanto, é possível conceber que Mertonimagine formas curar as circunstâncias que produzem tais mudanças, quer se refiram
de ,coerções mais complexas, suscetíveis de serem analisadas como a S, quer a E.
~.ompostas de coerções do segundo tipo. Mencionaremos, entre, ,nu~ B) As mudanças que são disfuncionais relativamente a um G
merosas outras, duas dessas formas mais complexas. dado podem, sem embargo, ser os instrumentos da manutenção ou
"i) Suponha-se que S seja capaz de .conservar dois G distintos do aparecimento de um outro G (possível conseqüência, prevista ou
(digamos G, e G.), tendo ambos uma mesma coordenada A. :Su~ não, dessas mudanças l. Um exame atento de S, para descobrir esses
ponha-se, além disso, que, embora uma variação de A seja funcio- G suspeitados, é então sugerido pela presença de variações disfun-
nai relativamente a G" pelo tempo em que a mudança permanecer cionais relativamente a um G dado.
~ classe KAG1",seja disfuncional com relação a G2 , se a mudan.ça <:C) O modo de dependência de uma série de coordenadas, umas
não se referir a uma classe vizinha KAGIG2. Em conseqüência, :para erü" ," relação -às outras (isto ~ os f na formulação' matemática dos
á manutenção dos dois G, existem restrições mais severas quanto à siStemas funcionais), é capa_ de mudar no tempo, quer em seguida
possível variação de um elemento do que para a manutenção de ':'um a alterações dos outros elementos de S, quer dos de E. Semelhante
só dentre eles. - niudançapossibilita alterações das condições em que um G dado
Além do mais, e isto pode ser uma conseqüência da ignorância da p<xle 'aparecer (a saber: nos g i da formulação matemática). Em con-
composição da série completa das' coordenadas de GI , unia varia- se'tjüência, a classe KG das variações que conservam G por um'" G
ção de coordenada conhecida é capaz de produzir variações com- dado pode não permanecer constante. Se KG se reduzir a nada, o
pensatórias ~m uma coórdenada desconhecida, de molde a conser- G -dado não será mais realizável em S; se se ampliar, O mesi110
var, GI • ainda que engendre, no mesmo momento, certos "efeitos pÓd~r-á ser conservado em uma série de circunstâncias mais extensa
secundários" disfuncionais relativamente a G2 . Aqui também impor- do: que antes. Esta discussão convida, pois, a estudar as possíveis
ta, supor que intervêm limites mais restritivos para a variação da variações das condições em que um G dado tem meios de se pro-
primeira variável, se os dois G precisarem ser conservados. duzir.
. ,ii) Por outro lado, ainda que uma lista proposta de coordena- ,D) Se G, e G2 estão ligados a G. como funções mais espe-
das relativas a um G dado possa ser completa, é possível que' ela cíficas de uma função universal, a mudança de uma coordenada dis-
<:ontenha elementos pleonásticos (no sentido de que seus valores, em funcional relativamente a GI pode, contudo acarretar a presença de
l

<Im momento dado, não são mutuamente independentes, de tal sorte G2 . ,:Decor:rentemente, S permacerá estável quanto a G., apesar
que, efetivamente, as coordenadas propostas não cheguem a satisfa- de tima mudança inicial disfuncional com relação a G,. O problema,
zer a uma condição requerida das coordenadas). Ou, ainda, embora portanto, é de saber se mudanças à primeira vista disfuncionais 'nUm
1lina lista dada de coordenadas seja completa sem repetição, poderá ~~stema podem, sem embargo, não ser inteiramente compatíveis com
conter elementos que, não são causalmente significativos, reIativa'- a conservação de uma pretendida" função vital" do sistema.

;230 231
E) Um sistema S é capaz de apresentar, em momentos dife- bom estado de funcionamento e, pois, na sua manutenção como sis-
rentes, uma série GI , G2 , . . . de G mutuamente incompattveis, que tema dinâmico.
Se sucedem uns aos outros, por causa de certos traços "estruturais" A guisa de ilustração simples e esquematizada, consideremos, de
de S, ou de determinadas mudanças progressivas em E, ou de saída, a proposição:
ambas as coisas. O problema, então, seria duplo: i) estabelecer a
ordem de sucessão dos G i' de modo a reformular suas leis de desen- (L 1) As pulsações cardíacas dos vertebrados têm por função fazer
volvimento e ii) descobrir as coordenadas de estado que controlem circular o sangue através do organismo.
o desenvolvimento (Excerto de Logic without M etaPhysics, Glencoe, Antes de investigar em que medida e como essa proposição pode-
111., The Free Press, 1956, págs. 247-248, 251-252, 253-255, ria ser utilizada, para fins de explicação, devemos responder a uma
262-281). pergunta preliminar: Que é que isto significa! Que é que se afir-
ma através da atribuição dessa função? Seria sustentável que a to-
talidade da informação veiculada por uma frase como a (1.1) pu-
desse ser bem expressa, substituindo-se a palavra" função" pela pa-
A LóGICA DA ANALISE FUNCIONAL lavra "efeito". Mas tal interpretação nos obrigaria a aprovar, igual- : 'f
mente, a proposição:
CARL G. HEMPEL
(1.2) As pulsações cardíacas têm por função produzir o pulso;
porque as pulsações cardíacas têm este efeito.
1) O modelo inerente à análise funcional Todavia, o autor de uma análise funcional recusaria estabelecer
(l. 2), por ser o pulso um efeito da atividade cardíaca sem nenhuma
importância para o funcionamento do organismo. Mas a circulação
Do ponto de vista histórico, é a análise funcional uma modifica- do sangue, essa, efetuando o transporte de elementos nutritivos,
ção da explicação teleológica, isto é, da explicação que se refere, assim como de detritos metabólicos através das diversas partes do
não às causas que "produzem" o acontecimento estudado, mas aos organismo, é um processo indispensável a que o mesmo se mante-
fins que lhe definem o desenrolar. nha em bom estado de funcionamento e, muito evidentemente, em
O gênero de fenômeno que uma análise funcional (64) é chamada vida. Assim entendido, o alcance da proposição funcional (1.1) po_
a explicar constitui, de maneira típica, uma atividade recorrente ou deria ser resumido da seguinte forma:
um modelo de conduta num indivíduo ou num grupo. Pode ser, por
exemplo, um mecanismo fisiológico, Um traço neurótico, um mo- (1. 3) As pulsações cardíacas têm por efeito a circulação sangumea,
delo cultural ou, ainda, uma instituição social. E o principal objetivo e isso permite o preenchimento de certas condições (forneci-
da análise é destacar a contribuição fornecida por este modelo de mento nutritivo e eliminação dos detritos) necessárias ao bom
funcionamento do organismo.
conduta para a preservação ou para o desenvolvimento do indivíduo
Ou do grupo em que ele se manifesta. Assim, a análise funcional Poderíamos em seguida precisar que o coração realizará a tarefa
tenta atingir a compreensão de um modelo de conduta sob o ângulo que aqui lhe é atribuída, se certas condições forem satisfeitas pelo
do papel que ele representa na conservação de um sistema dado em organismo e pelo seu meio-ambiente. Por exemplo, a circulação ces-
sará, se houver uma ruptura da aorta. O sangue não pode transpor-
(64) Para desenvolver aqui esta caracterização da análise funcional, muito
tar oxigênio senão quando o meio exterior fornecer uma suficiente
me aproveitei do luminoso ensaio, ricamente documentado, .. Manifest and contribuição de oxigênio disfX'nível e os pulmões estiverem em bom
Latent Fonctions", inserido no trabalho de R. K. Merton, Social Theory and estado. Ele só eliminará certos tipos de detritos, se os rins se mos-
Social Struct1{re (Glencoe, Ill., Free Press; edição revista e aumentada, 1957), trarem relativamente sãos. E assim por diante. Geralmente não se
págs. 19-84. Todas as passagens daquele trabalho às quais é feita, aqlli, l".efe- menciona a maioria das condições que teriam que ser especificadas
rência, figuram também na primeira edição (1949). Nos dois casos, a nume-
ração das páginas é mais ou menos a mesma.. no caso, em parte, sem dúvida, porque se presume que elas sejam

232 233
preenchidas de maneira toda, natural, nas situações 'em que o orgai. 2) O alcance. explicativo' da análise funcional
nismo, normalmente, se 'encontra. Mas, também em parte, ésta ortllS'-
são reflete uma ausência dos conhecimentos apropriados, porque ú,ma Devemos interrogar-nos sobre a validade explicativa que é pose
especificação explícita de ditas condições necessitaria de uma teo.r:~a sivel atribuir, razoavelmente, à análise funcional. Suponha-se, pois;
em que a) as possíveis características dos organismos e' de seu meio- que .nos pr0ponhamos explicar·a presença de um traço i num siste~
~mbiente pudessem ser medidas pelos valores de "variáveis de e~ta­ /na e (num dado momento t) e que se adiante. a análise funcional
do" fisi6químicos, até biológicos, em que b) os princípios teóricos seguinte:
fundamentais permitissem detenninar o campo das condições inter:nas
e 'externas no interior do qual as pulsações cardíacas preenchesSem {2 .. n (a) No momentot, s funciona convenientemente em u,"
li função atrás descrita. (65) Por enquanto, uma teoria geral deste contexto de tipo c (caracterizado, por condições especÍ7
tipo, ou podendo simplesmente fazer-lhe as vezes ao nível de um: tipo ficas internas e externas).
particular de organismo, não está, com toda a evidência, dispo~ível (b) s funciona convenientemente em um contexto de tipo
Por isso, uma total reformulação de (1.1), à maneira de (L'3') , c, somente quando uma certa condição n é satísfeitá.~
convida a definir os critérios do que constitui o "bom andame~i6", (c) 'Se o traço i" estivesse presente em s, tal fato teria
o "funcionamento normal" etc. do organismo estudado, porque' a : 'r
então por efeito satisfazer à condição n.
função de um dado traço é interpretada, aqui, sob o ângulo da
importância causal do mesmO traço, para a satisfação de certas COI1.- (d) (Donde decorre que) no momento t o traço i está
dições necessárias ao bom funcionamento ou à sobrevida do orga- presente em s.
nismo. Ainda aqui os critérios essenciais permanecem, freqüentemen-
te, não especificados, e este é um aspecto da análise funcional cujas . Por enquanto, deixaremos de lado a questão de saber precisa-
graves implicações fixarão, adiante, nossa atenção. mente o que é declarado por meio das proposições (a) e (b) e,
sobretudo, pela frase H S funciona convenientemente". Ocupar-nos;-
As considerações precedentes sugerem a caracterização esquemá-
emos, agora, só da lógica da argumentação. Isto significa que inves,..,
tica da seguinte análise funcional: tigaremos em que medida (d) decorre formalmente de (a), (b) e
(c), exatamente como, numa explicação nomológica dedutiva, o
(1.4) Modelo inerente à análise funcional exp/anandum decorre do explanans. Manifestamente, a resposta é ne,.
gátiva, porque, para falar de maneira rebuscada, a argumentaçã.~
O objeto da análise é um "elemento" i, que constitui uma dis,;. (2.1) comporta o erro de inferir a conseqüência da premissa (c),
posição ou um traço suficientemente persistente (as pulsações cat- Má.is claramente, a proposição (d) poderia ser legitimamente dedu-
díacas) de um sistema s (o corpo de um vertebrado vivo), e a zida, se (c) afirmasse que só a presença do traço i poderiasatisfa-
análise tende a 'mostrar que s apresenta a característica, ou cond'ição zer à condição n. Atendo-nos ao enunciido inicial, podemos sim-:
interna, c i e está colocado num contexto que oferece certas condi- plesmente deduzir que a condição n deve ser preenchida de uma ou
c;ões externas c ' de tal natureza que, quando as condições ci e
e
de,outra maneira no momento t~· do contrário, segundo (b), o sis...
c (as quais, reunidas, constituem o conjunto c) são preenchidas, tema s pão poderia funcionar normalmente no seu contexto, e isso
e contradiria (a). Mas bem poderia acontecer que a intervenção de
o traço i tem efeitos que satisfazem a uma "necessidade" ou a ümfl
"exigência funcional" de s, isto é, a uma condição n, que deve set qualquer elemento de uma série de elementos substituíveis bastasse,.
obrigatoriamente preenchida, a fim de que o sistema conserve a s'ua do mesmo modo que a de i, para satisfazer à condição n. Neste
integridade, a sua eficiência ou, ainda, a sua boa ordem de marcha: caso, as considerações contidas nas premissas .de (2.1) não che-
gariam simplesmente a explicar por que o traço i, ao invés de um
de seus substitutos, está presente em s~ no momento t.
(65) Para mais precisão e desenvolvimento a respeito, ver a primeira parte Assim como acabamos de notá-lo,· essa objeção careceria de va-
do ensaio" A Formalization of Fonctionalism ", em E. Nage1, LO'gic Without lor, se a premissa Cc) pudesse ser substituída por uma proposição
Metaphysics (Glencoe, 111., Free Press, 1957), págs. 247-83. É uma anál.i~e
detalhada do ensaio de ~erton, mencionado acima, possuindo, pois, uma signi- segundo a qual a condição n fosse capaz de ser preenchida somente
ficação tooa especial para a metodologia das ciências sociais. pela presença do traço i. De fato, existem casos de análise funcio"':

234 235

L
nal que parecem estabelecer de direito que o elemento específico funcionais". (69) A idéia encontra incidentemente um interessante
analisado é, como tal, funcionalmente indispensável à satisfação de n. paralelo no "princípio das soluções múltiplas", aplicado aos problemas
Malinowski, por exemplo, o afirma, no caso da magia, quando esta- de adaptação, próprios da evolução. Esse princípio, que foi posto em
belece que "a magia preenche uma função indispepsável no seio da relevo pelos biologistas de orientação funcionalista, estabelece que
cultura. Satisfaz a uma necessidade definida, que não pode ser sa- existe geralmente, para um problema funcional dado (tal como o da
tisfeita por nenhum outro fator da civilização primitiva". (66) E percepção da luz), uma variedade de soluções possíveis, e que muitas
igualmente ele o afirma, quando diz, a propósito da magia, que, "sem dentre elas são efetivamente utilizadas por grupos de organismos
o seu poder e a sua autoridade, o primeiro homem não teria podido diferentes e, muitas vezes, estreitamente ligados. (70)
vencer suas dificuldades imediatas, como o fez, nem podido chegar Dever-se-ia notar, aqui, que, em todos os casos de análise funcio-
aos mais elevados níveis da cultura. Donde a presença universal d"l
nal, a questão de saber se existem substitutos funcionais para um
magia nas sociedades primitivas e sua imensa preponderância. Donde
elemento i dado não tem sentido preciso senão quando as condi-
a obrigação de ver na magia um atributo invariável de todas a, ções internas e externas c de (2.1) são claramente especificadas. De
atividades importantes". (67) outro modo, poder-se-ia recusar a qualquer substituto proposto para
Entretanto, a hipótese do caráter funcionalmente indispensável de i, seja i', o estatuto de equivalente funcional, argumentando-se com
Um elemento dado é fortemente contestável no plano empírico: em o fato de que, sendo o elemento i diferente de i, teria sobre o estado
todos os casos concretos de aplicação, bem parece existirem substitu- interno e o meio-ambiente de s certos efeitos que não teriam sido
tos. A sublimação da ansiedade num indivíduo dado, por exemplo, produzidos por i, e de que, em conseqüência, se i' interviesse em
poderia manifestar-se por um sintoma de outra natureza. A expe- lu.gar de i, s não funcionaria na mesma situação interna e externa.
riência psiquiátrica parece confirmá-lo. De maneira semelhante, a
função da dança da chuva poderia ser assumida por outras cerimô- Suponhamos, por exemplo, que o sistema de magia de um grupo
nias de grupo que não as a que se entregam os hopis. E, de forma primitivo dado seja substituído pelo desenvolvimento de sua tecno-
interessante, o próprio Malinowski invoca, em um outro contexto, logia racional e por uma modificação de sua religião, e que este
1/.0 princípio das possibilidades limitadas, estabelecido anteriormente grupo tenha ficado vivo. Estabeleceria isso a existência de um eqUI-
por Goldenweiser. Uma vez verificada qualquer necessidade cultural valente funcional do original sistema de magia? Uma resposta ne-
particular, os meios de satisfazê-la são em pequeno número; por isso gativa poderia ser defendida, com base 'no fato de que, pela adoção
a disfunção cultural que aparece como resposta à necessidade está do novo modelo, este grupo havia mudado tão radicalmente, no to-
compreendida em estreitos limites". (68) O princípio acima implica, cante a algumas de suas características essenciais (seu estado inter-
evidentemente, pelo menos um relativo abrandamento da concepção no, tal como é medido pela variável c j' teria sido tão profunda-
que pretende que todo e qualquer elemento cultural seja funcional- mente modificado), que já não correspondia mais, daí por diante,
mente indispensável. Mas, mesmo assim, ele continua sendo por de- ao . tipo de grupo primitivo originalmente examinado; e que, sim- I
mais restritivo. Sociólogos como Parsons e Merton afirmaram a plesmente, já não existia mais equivalente funcional que deixasse
existência de Hsubstitutos funcionais" em certos elementos culturais. intacto o conjunto dos traços "essenciais" do grupo. Uma conse-
E Merton, em sua análise geral do funcionalismo, sublinhou que a quente utilização de semelhante tipo de argumentação permitiria, co-
teoria do caráter funcionalmente indispensável dos elementos cultu- metendo uma tautologia disfarçada, salvaguardar o postulado do ca-
rais deveria ser substituída, inteira e explicitamente, pela hipótese das
Iralternativas funcionais, ou substitutos funcionais, ou equivalentes
(69) Merton, op. cit., pág. 34. Cf. igualmente T. Parsons, Essays in Socio-
logical Theory, Pure and Applied (Glencoe, 111., Free Press, 1949), pág. 58.
(66) Malinowski, 4' Anthropology ", Encyclopaedia Britannica, primeiro Quanto a uma recente e interessante tentativa de estabelecer a existência de
volume suplementar (Londres e Nova York, "The Encyclopaedia Britannica ", substitutos funcionais num caso específico, ver R D. Schwartz, "Fonctional
1926), pág. 136. alternatives to inequality", American Sociological Review, 20 (1955). págs.
(67) Malinowski. Magic, Science and Rrligion, anil Others Essays (Garden 424-30.
City, N. Y., Doubleday Anchor Eooks, 1954). pág. 90 (note-se a pretensão (70) Ver G. G. Simpson, The Meaning of Evolution (New Haven, Vale
explicativa implícita no emprego da expressão .. donde"). University Press, 1949), págs. 164 e segs., 190, 342-343; e G. G. Simpson,
(68) B. Malinowski, "Culture", Encyclopedia of the Social Sciences, C. S. Pittendrigh, L. H. Tiffany, Life (Nova York, Harcourt, Brace &
IV (Nova York, The Macmillan Company, 1931), pág. 626. Company, Inc., 1957), pág. 437.

236 237

17 - T.S.
ráter funcionalmente indispensável de qualquer elemento cultural, de (2.1), isto é, fazer com que exprimam ligações, muito prová-
diante de alguma invalidação empírica que fosse. veis, mas que não valem universalmente; porque as premissas assim:
Consideremos o conjunto I dos elementos i, i', i" .. " qualquer 'um obtidas permitiriam ainda o aparecimento de substitutos funcionai,
dos quais, pela sua presença em $, nas condições c, permitindo sa- de i (cada um dos quais daria para a satisfação de n um alto grau
tisfazer a condição n. Podemos, pois, qualificar esses elementos de' de probabilidade). Assim, a dificuldade essencial permaneceria, a
equivalentes funcionais no sentido de Merton, e, nesse caso, as pre- saber: que o conjunto das premissas não bastaria ainda para tornar
missas (2.1) somente podem permitir que escrevamos que: a presença de i - e somente de i - altamente provável.
Digamos, então, em resumo, que o tipo de informação dado por
(2.2) Um dos elementos do conjunto I está presente em s, no mo- uma análise funcional de um elemento i não oferece, seja por indu-
mento t. Mas as premissas não nos dão base para afirmar ção, seja por dedução, razões válidas para optar por i, ao invés de
que antes se trate do elemento i do que de qualquer um optar por um de seus substitutos. A impressão de que uma tal
de seus substitutos funcionais. análise proporciona muitas razões assim e, portanto, explica a pre-
sença de i é sem dúvida devida, pelo menos em parte, a uma forma
Até aqui não vimos na análise funcional senão uma possível expli- de extrapolação: quando se procura explicar um elemento i geral-
.. '
J
cação dedutiva. Não poderia ela, pelo contrário, ser interpretada mente já se sabe que i interveio bem. .

como uma argumentação indutiva, mostrando que a presença de i


possui, nas circunstâncias descritas pelas premissas, um alto grau Mas, COmo o havíamos notado, sumariamente, atrás, uma análise
de probabilidade? Não haveria a possibilidade, por exemplo, de funcional proporciona, em princípio, a base de uma explicação com
acrescentar às premissas de (2.1) uma proposição suplementar, em um explanandum menos preciso. Porque as premissas (a) e (b) de
virtude da qual a exigência funcional n não pudesse ser preenchida (2. 1) têm por conseqüência que a condição necessária n deve ser
senão por i e por alguns de seus substitutos funcionais especificá- preenchida de uma ou de outra maneira. Um tal tipo de explicação
veis? E essas premissas não poderiam dar à presença de i um alto é muito mais modesto e pode ser esquematizado da forma seguinte:
grau de probabilidade? Esta esperança não é absolutamente funda-
da, porque, na maioria dos casos concretos, senão em todos, seria (a) No momento t~ o sistema s funciona convenientemente
impossível especificar, com alguma precisão, o leque dós modelo~ num contexto de tipo c..
de conduta, de instituições, de costumes e de outros traços que bas- (b) S funciona convenientemente num contexto de tipo c
tasse para preencher uma exigência ou uma necessidade funcional (2.3) somente se a condição n for satisfeita.
dada. E, mesmo que tal leque pudesse ser definido, não conhecemos
método satisfatório que permita determinar o número de seus ele- (el Um dos elementos do conjunto I está presente em s
mentos de maneira exaustiva e dar à intervenção de cada um dei~s no momento t.
uma probabilidade. .. Este tipo de inferência, apesar de sua validade, permanece, entre-
Imaginemos, por exemplo, que a concepção geral de ivIalinowski 1 tanto, antes trivial, salvo nos casos em que se possua um dado suple-
referente à função da magia, seja correta. Como devemos determi- mentar quanto aos elementos contidos no conjunto I. Suponha-se, por
nar, quando tentamos explicar o sistema formado pela magia, n:4~n exemplo, que, no momento t um determinado cão (um sistema s)
J

grupo dado, o conjunto dos diferentes sistemas e modelos culturais esteja com boa saúde num tipo "normal" de contexto c) que exclui
possíveis, cada um dos quais preenchendo, no seio do grupo, as mes- a utilização de próteses, tais como corações, pulmões ou rins arti-
mas exigência's funcionais que o atual sistema de magia preencHe} ficiais. Suponha-se, além disso, que, num contexto de tipo C ditoJ

E como podemos fixar, para cada um desses equivalentes funcio, cão não possa estar com boa saúde senão quando seu sangue cir-
nais em potencial, o grau de probabilidade de sua intervenção?É cular convenientemente (condição n). O esquema (2.3) não nos
de toda evidência que não existe maneira satisfatória de respon~er' permite, então, senão tirar uma única conclusão: de uma ou de
a tais questões, e OS que praticam a análise funcional não têm a outra maneira, é preciso que um dispositivo permita ao sangue cir...
pretensão de coroar suas demonstrações de modo tão problemático. cular no cão no momento t o que é uma descoberta bem mesquinha.
J

Difícil ignalmente é antes dar uma forma estatística do que estri- Se, todavia, possuímos dados suplementares quanto à maneira como
tamente universal às leis gerais implícitas nas proposições (b) e (c) se pode manter a circulação do sangue nessas circunstâncias, e se

238 239

J-
soubermos, por exemplo, que o único órgão capaz de assegurar essa no conjunto I grosseiramente caracterizado intervirá verdadeiramente?
boa circulação (o único elemento que, no caso, o "conjunto" I Não, por certo, porque ignoramos se a pessoa vai continuar, de fato,
comporta) é um coração em bom estado de funcionamento, podere- funcionando convenientemente, ou se vai ser atingida por alguma
mos, então, tirar a seguinte conclusão, muito mais específica, a saber: depressão mais ou menos grave, que poderá, por último, levá-la ã
que, no momento t~ o cão possui um coração em bom estado de autodestruição.
funcionamento. Mas, se explicitarmos esse dado suplementar, expri~ Cumpre notar, aqui, que uma limitação quase semelhante é impos-
mindo-o sob a forma de uma terceira premissa, então nossa. argu- ta à utilização preditiva das explicações nomológicas, mesmo nos
mentação revestirá uma forma conhecida, a de uma análise funcional ramos mais adiantados da ciência. Assim: se nos propusermos pre-
do tipo (2.1), se a premissa (c) não tiver sido substituída pela dizer, por meio das leis da mecânica clássica, o estado em que se
proposição de que i é o único traço que pode satisfazer à condição achará, numa determinada data futura t~ tal sistema mecânico, não
n no contexto c. E, como atrás o sublinhamos, a conclnsão (d) de bastará conhecer o estado do sistema em uma data precedente to,
(2.1) é conveniente, no caso. Em nosso caso, (d) é uma proposição atualmente ocorrendo: temos igualmente necessidade de ser informa-
que estabelece que o cão possui no momento t um coração em bom dos sobre as condições contextuais durante o intervalo de tempo
estado de funcionamento. t - to, isto é, sobre as influências externas que podem afetar o
Em geral, entretanto, um dado suplementar desse tipo não se sistema, durante esse período. O que nos mostra que mesmo as leis
acha disponível, e a validade explicativa da análise funcional perma- e as teorias das ciências físicas não nos permitem, verdadeiramente,
nece, então, limitada ao precário papel esquematizado em (2.3). predizer certos aspectos do futuro na base exclusiva de certos aspec-
tos do presente: a predição requer, igualmente, certas hipóteses sobre
o futuro. Mas, em numerosos casos de predição nomológica, existem,
3) O alcance preditivo da análise funcionol no momento to, boas bases para um raciocínio por indução que per-
mita aventar a hipótese de que, durante o intervalo de tempo con-
Vamos agora interrogar-nos sobre a possibilidade de utilizar a siderado, o sistema será praticamente flfechado" - vale dizer, não
análise funcional para fins de predição. submetido a interferências de fora (é o caso, por exemplo, da pre-
Antes do mais, a discussão precedente mostra que o tipo de infor- dição dos eclipses) - ou, ainda, a de que as condições contextuais
mação essencialmente fornecido por uma análise funcional produz, serão de um tipo bem especificado: é ó caso da predição de aconte-
no melhor dos casos, premissas de forma (a), (b) e (c), tais como cimentos que se produzem em condições experimentalmente con-
as encontramos em (2.1). E aquelas premissas não oferecem bases troladas.
adequadas, que possibilitem predizer, quer por indução, quer por
Aqui, a utilização de (2.3) para fins de predição requer, igual-
dedução, uma proposição da forma (d) em (2.1). De modo que mente, uma premissa concernente ao futuro, a saber, (a). Mas, mui-
a análise funcional, assim como não nos permite explicá-la, assim
tas vezes, existe uma incerteza considerável quanto a saber se, efeti-
também não nos permite predizer a presença de tal elemento parti- vamente, (a) permanecerá verdadeiro no tempo futuro t. Aliás, se
cular entre os que podem preencher uma exigência funcional dada. em tal caso particular devem existir boas razões indutivas para con~
Em segundo lugar, até mesmo o esquema explicativo menos ambi- siderar (a) como verdadeiro, a previsão fornecida por (2.3) fica
cioso, a saber, (2.3), !1ão pode ser imediatamente utilizado para ainda mais modesta; porque a argumentação, partindo da hipótese,
efeitos de predição. Porque a modesta conclusão (e) conta com a justificada de modo indutivo, de que o sistema funcionará conve-
premissa (a). E, se se desejar inferir (e) relativamente a um tem- nientemente no momento t, conduz, então, à "predição" de que uma
po futuro t, esta premissa não nos terá utilidade alguma, porque certa condição n~ necessária ao seu bom funcionamento, será satis~
não sabemos em que medida s estará ou não num estado de funcio- feita no momento t~ de uma ou de outra maneira.
namento conveniente, naquele momento. Como exemplo, considere~
mos uma pessoa que desenvolve ansiedades cada vez mais graves. E A necessidade de incluir entre as premissas raciocínios preditivos
suponhamos que a cristalização da ansiedade da pessoa figurada, em das hipóteses sobre o futuro pode ser evitada, nas predições nomo-
sintomas neuróticos, ou a sua sublimação por qualquer outro meio, lógicas, como nas fundadas na análise funcional, se nos satisfizermos
constitua uma condição necessária ao seu bom funcionamento. Pode- com conclusões preditivas não categóricas, mas somente de caráter
remos predizer que um dos modos de "ajustamento" que figuram condicional, ou hipotético. Por exemplo, (2.3) pode ser substituído

240 241

~
pela .argumentação seguinte, em que, relativizando a conclusão, se conclui ele que "estas necessidades" dos negoclOs, tais como existem
pode evitar escrever a premissa (a): atualmente, não são adequadamente satisfeitas pelas estruturas' sociais
convencionais e culturalmente admitidas; em conseqüência} a orga-
(b) o sistema s funciona convenientemente em um contexto nização extralegal, mas mais Ou menos eficiente, da máquina política
de tipo c, somente quando a condição n é preenchida. vem prestar esses serviços (73). Cada uma destas argumentações,
(3.1)
., tJpicas bastante da aproximação funcionalista,. apresenta um modo
de· inferir da existência de uma condição funcional dada a afirmação
(f) Se s funciona convenientemente em um contexto de categórica de que semelhante condição será satisfeita de qualquer
tipo c, no momento t, então um dos elementos do con- maneira. Qual a base de tais inferências, marcadas pelas conjunções
junto I está presente em s, nesse momento. "já que" e "em conseqüência" nas passagens que acabamos de
Semelhante possibilidade merece menção. Parece, com efeito, que citar? Quando dizemos que, já que o cubo de gelo foi atirado à água
pelo menos se pode resumir uma das pretensões formuladas pelos quente e derreteu-se, ou que se fechou um circuito elétrico e, em
partidários da análise funcional, afirmando-se simplesmente que a conseqüênci<1, o amperômetro colocado no circuito reagi·tl, tais infe-
referida análise permite predições condicionais do tipo esquematica- rências podem ser explicadas e justificadas por via de referência a
mente representado por (3. I), o que poderia ser o sentido, por certas leis gerais, de 'que estes casos precisos são simplesmente exem-
exemplo, da seguinte asserção de Malinowski: "Se uma tal análise plos particulares. De maneira semelhante, cada uma das argumenta-
(funcional) nos revela que, considerando-se uma cultura particular ções funcionalistas consideradas bem parece pressupor uma lei geral
como um conjunto coerente, podemos estabelecer algumas determi- em virtude da qual, dentro de certos limites de tolerância ou de
nantes gerais com que ela se deve conformar, estaremos em condi- adaptabilidade, um sistema do tipo analisado satisfaria - quer auto-
ções de apresentar certo número de proposições preditivas de molde maticamente, quer com um alto grau de probabilidade - às diversas
a nos orientar em nossas pesquisas de campo, a constituir padrões exigências funcionais (necessárias ao seu bom funcionamento) que
de tratamento comparativo e a oferecer medidas COmuns do proces- podem decorrer de mudanças em seu estado interno ou em seu meio-
so de evolução e de adaptação culturais" (71). As proposições que ambiente. Toda e qualquer afirmação desse tipo, quer tenha uma for-
especificam as determinantes em questão tomariam, sem dúvida, a ma estritamente universal, quer a tenha simplesmente estatística, será
forma de premissas do tipo (b), e as "proposições preditivas" seriam, chamada hipótese (geral) de aulo-regulação.
então, de caráter hipotético. Enquanto as análises funciona.is do tipo considerado não estive-
Muitas predições e generalizações feitas no contexto da análise rem fundadas num recurso implícito ou explícito a hipãteses apro-
funcional descuram, todavia, de revestir a forma condicional pru- priadas de auto-regulação, não se verão precisamente as ligações que
dente, que acabamos de ver. Procedem elas da asserção de uma exi- as expressões "já que", "em conseqüência" ou outras do mesmo peso
gência ou de uma necessidade funcional para a afirmação categórica querem indicar. Nem tampouco se verá como a existência dessas
da presença de um traço, de uma instituição ou de outro elemento ligações, num caso dado, pode bem ser objetivamente estabelecida.
próprio para preencher a condição em foco. Consideremos, por exem- Inversamente, se se puder aventar, de maneira precisa, uma hipó-
plo, a explicação funcional, dada por Sait, do aparecimento do líder tese de auto-regulação própria de um tipo dado de sistema, tornar-
político: "O kadership é necessário; e, fá que ele não se desenvolve se-á então possível explicar e predizer, de maneira categórica, que
naturalmente dentro do quadro constitucional, o boss vai buscá-lo certas exigências funcionais serão satisfeitas na base das informa-
fora, sob uma forma grosseira e irresponsável" (72). Ou então exa- ções relativas às necessidades anteriores (do sistema interessado).
minemos a maneira coma Merton caracteriza uma das funções da E a hipótese poderá então ser verificada objetivamente, no plano
máquina política. Referindo-se aos diferentes modos específicos pelos empirico, quanto à validade de seus prognósticos. Tomemos, por
quais a máquina pode servir aos interesses do mundo dos negócios, exemplo, a seguinte proposição: se se dissecar uma hidra do mar em
vários pedaços, a maioria dos membros amputados irão reconstituir-
(71) Malinowski, A Scientific Theory of Culture, and Others Essay~~ se até ao ponto de refazer a primitiva integridade da hidra. Pode-se
op. cit., pág. 38. ver, aí, a afirmação de uma hipótese relativa a um tipo bem preciso
(72) E. M. Sait, 11 Machine, Political", Encyclopedia of fite Social de auto-regulação, num tipo bem particular de sistema biológico.
Sciences, IX (Nova York, The Macmillan Company, 1933), pág. 659. O
grifo é nosso. (73) Merton, op. cit., pág. 76. O grifo é nosso.

242 243

L
Evidente que uma tal proposição é suscetível de ser utilizada para mesma maneira, Murray e Kluckhohn fazem questão de declarar,
fins de explicação e de predição, e de fato o bom êxito de suas tanto a propósito do objetivo fundamental de sua teoria de orientação
capacidades preditivas confirma-lhe altamente a pertinência. funcionalista quanto no que tange a toda e qualquer "formulação"
É bem de ver, portanto, que, cada vez que a análise funcional científica da personalidade, que "o alvo geral da formulação é tri-
deve servir de base para predizer com segurança ou para autorizar pIo: 1) exPlicar os acontecimentos passados e presentes; 2) predizer
generalizações do tipo ilustrado pelas passagens de Sait e de Merton, os acontecimentos futuros (suas condições estando especificadas) ; 3)
é de crucial importância estabelecer, sob uma forma que permita a servir de base, se necessário, à definição de medidas efetivas de
sua verificação empírica, hipóteses apropriadas de auto-regulação. controle" (77).
Ora, encontram-se na literatura funcionalista algumas generaliza- Infelizmente, todavia, as formulações apresentadas nos exemplos
ções desse tipo, explicitamente formuladas. Assim, vejamos como concretos de análise funcional ignoram, quase sempre, essas regras
Merton comenta, depois de havê-la citado, a seguinte fórmula de gerais. As condições são traídas de mil modos, mas -particularmente
Sait, há pouco por nós mencionada: "Para exprimi-lo em termos em duas circunstâncias que merecem que aí nos detenhamos, tama-
mais gerais, as deficiências funcionais da estrutura oficial engendram nha a sua difusão e tamanha a sua importância em análise funcional.,
uma estrutura Cnão oficial) de substituição, a fim de satisfazerem Podemos defini-las como, de um lado, i) uma especificação má do
: f
com tnais eficiências às necessidades existentes H(74). Este comen- campo de análise e, de outro lado, ii) um uso não emPírico da termi-
tário parece, até à evidência, destinado a explicitar uma hipótese de nologia funcionalista (em particular de expressões como "necessida-
auto-regulação suscetível de ser adivinhada sob a sua forma implícita de", "exigência funcional", "adaptação" etc.). Consideraremos essas
na análise particular a que Sait se consagra, e a justificar, assim, duas falhas, uma após outra: a primeira, na conclusão do presente
o seu "já que". Uma hipótese do mesmo tipo é sugerida por capítulo; a segunda, no capítulo seguinte.
Radcliffe-Brown, ao escrever: "Talvez disséssemos que... uma Uma especificação má do campo de análise traduz-se por uma
sociedade mergulhada em condições de desunião ou de contradição incapacidade para definir, de maneira precisa, o tipo de sistemas a
funcionais. .. não vai morrer, exceto em casos relativamente raros que a hipótese se refere, ou o leque das situações (limites de tole-
(pensamos em determinada tribo australiana, aniquilada pela fúria rância) no interior das quais se atribui a tais sistemas a capacidade
destruidora do homem branco), mas continuará, antes, lutando por de desenvolver traços que permitam satisfazer às suas exigências
tentar atingir um gênero particular de saúde social. .. " (75). funcionais. A formulação de M;erton, por exemplo, não especifica
Mas, como atrás o notamos rapidamente, uma proposição que for- o gênero de sistemas sociais e de situações a que a generalização que
mule uma hipótese de auto-regulação não pode constituir base válida ele propõe é supostamente aplicável. Por conseguinte, tal como se
de explicação ou de predição, salvo na medida em que é estabelecida apresenta, ela não pode dar lugar à verificação empírica ou a qual-
com precisão suficientemente rigorosa para permitir, no plano empí- quer predição.
rico, uma verificação obj etiva. De fato, inumeráveis represe,ntantes O mesmo se dá com a generalização proposta, a título de hipótese,
eminentes da análise funcional exprimiram, com meridiana clareza, por Radcliffe-Brown. Na aparência, ela é válida para qualquer so-
sua vontade de desenvolver hipóteses e teorias que preencham tais ciedade, mas as condições em que ele pretende que a sobrevivência
condições. Malinowski, por exemplo, em seu ensaio rotulado com social se produza são acompanhadas de uma cláusula restritiva bem
um título revelador, Une théorie scientifique de la culture, frisa bem vaga: "à exceção de", isto é, de utttL forma que torna impos-
que "toda teoria científica deve partir da observação e aí rematar. sível toda verificação precisa. Seria mesmo de dizer que uma tal
Deve ser indutiva e verificável pela experiência. Em outros termos, correção pode ser utilizada para pôr a referida generalização ao
deve fundar-se em experiências humapas bem definíveis, manifestas, abrigo de algum possível enfraquecimento: se esse grupo social
isto é, acessíveis a qualquer observador, e recorrentes, portanto ricas devesse "morrer", o próprio fato de sua morte bem que poderia
em generalizações indutivas, isto é, tendo valor preditivo" (76). Da ser utilizado para demonstrar que as forças de desintegração eram
(74) Merton, op. cit., pág. 73. O grifo é do autor.
(77) Henry A. Murray e Clyde Kluckhohn, "Outline of a Conception of
(75) Radcliffe-Brown, op. cit., pág. 183. Personality", em Clyde Kluckhohn e Henry A. Murray, ed. Personality in
(76) Malinowski, A Scienrific Theory of Culture, and Others Essays, op. Nature, Society and Culture (Nova York, Knopf, 1950), págs. 3-32. A citação
cit., pág. 67. mencionada está na pág. 7. O grifo é dos autores.

244 245
~
I,"
:1\,
,ão destruidoras no caso em apreço quanto no da tribo australiana
rnencionada por Radcliffe-Brown. A utilização sistemática desse
a:rtifício metodológico transformaria a hipótese, com certeza, em uma
tautologia velada. Isso lhe preservaria a veracidade, mas despojan-
do-a de todo conteúdo empírico: assim concebida, não pode ela for-
t.al, terminologia pode, por conseguinte, tirar a esses diversos tipos de
proposições a condição de hipóteses científicas. Vejamos disso algun'i
exemplos.
Consideremos de início as expressões "exigência funcional" e
'·'necessidade", utilizadas mais ou menos como sinônimas na litera-
~ecer, absolutamente, nenhuma explicação ou predição. tura funcionalista e que se empregam para definir o próprio termo
"função". "No coração de toda análise funcional, há uma concepção
tácita ou expressa das exigências funcionais do sistema observa-
4) o alcance emPírico da terminologia do" (SO). E, de fato, "estabeleceu-se a definição (da função), mos-
e das hipóteses funcionalistas trando-se que as instituições humanas, do meSmo modo que as ativi-
dades parciais que aí se manifestam, estão ligadas às necessidade.;;
No capítulo precedente, foi mencionado um segundo VICIO, capaz primárias, isto é, biológicas, e às necessidades derivadas, isto é,
de comprometer o alcance científico de uma hipótese de auto-regula- cuiturais. Assim, a função significa, sempre, a satisfação de uma
ção dada. É ele devido à utilização da terminologia fUllcionalista necessidade ... " (81).
(Unecessidade", "funcionamento conveniente ou bom funcionamen- Como é definido este conceito de necessidade? Malinowski res-
to" (78) etc.) de maneira não empírica, isto é, sem dar a tais ponde muito explicitamente: "Por necessidade, pois, entendo o sis-
expressões uma "definição operatória" precisa, ou, de maneira mais tema das condições próprias do organismo humano, do contexto
geral, sem especificar os critérios objetivos de sua aplicação (79). Se cultural e de suas respectivas relações com o meio-ambiente natural,
utilizadas dessa forma, as proposições em que figuram não têm então condições que são necessárias e suficientes para a sobrevivência do
significação empírica própria. Não permitem nenhum prognóstico grupo e do organismo" (82). Uma tal definição parece clara e isenta
específico e, pois, não podem prestar-se a uma verificação objetiva. de- ambigüidade. Entretanto, não corresponde, apesar disso, plena-
Igualmente, não podem, com toda a certeza, ser utilizadas para fins mente, à maneira pela qual o próprio Malinawski utiliza o conceito
de explicação. de necessidade. Distingue ele, com efeito, o que é muito plausível,
Devemos aqui examinar esse importante problema, tanto mais um número considerável de necessidade diferentes, que podem ser
quanto a terminologia funcionalista não aparece somente em nível classificadas em dois grupos principais: as necessidades biológicas
de hipóteses de auto-regulação, mas igualmente em fórmulas de elementares e as necessidades culturais secundárias, sendo estas últi-
orientação funcionalista de tipo bem diferente, tais como as de for- mas de ordem 11 tecnológica, conômica, jurídica, até mesmo mágica,
ma (a), (b) e (f) em nosSOs esquemas de explicação e de predição religiosa ou ética" (83). Mas, se cada uma dessas necessidades par-
funcionalistas (2.1), (2.3) e (3.1). A utilização não empírica de ticulares constitui não somente uma condição necessária, como ainda
suficiente, da sobrevivência, tornar-se então evidente que a satisfa-
ção de uma só dentre elas bastaria para assegurar a sobrevivência
(78) Segundo o uso correntemente admitido na lógica contemporânea,
entenderemos por termos certos tipos de palavras ou de outras expressões e que as outras não poderiam, em absoluto, constituir as condições
lingüísticas e diremos que um termO exprime um conceito ou a ele se refere. necessárias. Pode-se razoavelmente pensar, todavia, que o intento
Por exemplo: diremos que o termO "necessidade" se refere ao conceito de de Malinowski era o de analisar as necessidades de um grupo como
necessidade. Como o caso o mostra, mencionamos uma expressão lingüística uma bateria de condições, cada uma das quais é necessária e o con-
_ ou a ela nos referimos - utilizando, para designá-la, um nome formado junto suficiente à sobrevivência (84).
pela simples colocação da expressão entre aspas.
(79) Uma discussão geral sobre a natureza e a significação de critérios de
aplicação "operatórios" dos termos usados em ciência empírica e referências (80) Merton, op. cit., pág. 52.
suplementares sobre o assunto são apresentadas em C. G. Hempel, FundamentaIs (81) Malinowski, A Scientilic Treory 01 Cu/ture, and Others Essays, op.
of Concept Formation in Empirical Sciencc (University of Chicago Press. cit., pág. 159.
1952), seções 5 a 8 e nas atas do simpósio sobre o atual estado da operacio- (82) Malinowski, ibid~m, pág. 90.
na1ização por G. Bergmann, P. W. Bridgman, A. Grunbaum, C. G. H~mpe1.
R. B. Lindsay, H. Margenau e R. J. Seeger, as quais constituem o capítulo (83) Malinowski, ibidem, pág. 172. Ver igualmente ibidem, págs. 91 e segs.
·II de Philippe G. Frank, ed., The Validation of Scientific Theories (Boston, (84) Em muitas de suas proposições, Malinowski descarta, por impli-
The Beacon Pre,s, 1956). cação, a própria noção de função, como meio de satisfazer a uma condição

246 247
i

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~
· Não obstante, essa correção de uma imperfeição lógica benigna ( ... ) Para que a análise funcional adquira estatuto de método
não remedeia uma falha mais grave da definição de Malinowski, a científico, faz-se, pois, essencial que se lhe precise explicitamente a
qual reside na enganadora aparência de clareza das palavras "sobre- terminologia, em função das normas da sobrevivência e do ajusta-
vivência do grupo e do organismo". Se nos referirmos a um orga- mento. Tais normas devem ser especificadas para cada caso de análise
nismo biológico, a noção de "sobrevivência" tem uma significação e, segundo os casos, diferirão geralmente. No estudo funcionalista de
relativamente clara. Entretanto, mesmo neste caso, convém especifi- um sistema s dado, estabelecer-se-iam tais normas definindo-se uma
cá-Ia mais. Porque quando falamos de exigências ou de necessidades classe ou um campo E dos estados possíveis de s e especificando-se
biológicas - sejam as necessidades diárias do homem adulto de que s não deveria ser considerado COmo ":sobrevivendo em bom
uma quantidade mínima de vitaminas e minerais diversos - inter- estado de funcionamento", ou Hajustando-se convenientemente sob
pretamo-las, não como condições da simples sobrevivência, mas como condições que mudam", senão nos caSOs precisos em que permapeceu
condições que permitam salvaguardar ou recuperar a "boa saúde" num estado da classe E, ou o reencontrou, após ter sido ele afastado
Ou um estado em que o sistema constitui "um todo funcionando con- por qualquer perturbação. Então, uma necessidade ou uma exigên-
venientemente". A possibilidade de uma verificação objetiva das hi- cia funcional de um sistema s em relação a E é condição necessária
póteses funcionalistas requer, pois, de maneira essencial, que as à manutenção ou ao retorno do sistema a um estado E; e a funçãD,
definições das necessidades ou das exigências funcionais sejam com- quanto a E, de um elemento i em s consiste em que ele satisfaça a
essa exigência funcional.
pletadas por critérios razoavelmente precisos e objetivamente apli-
cáveis, relativos à definição daquilo que constitui a salubridade ou No domínio da biologia, a análise da adaptação, da adequação e de
a ordem de funcionamento normal dos sistemas considerados. Ela outros conceitos conexos, feita por Sommerhoff, constitui uma exce-
requer, igualmente, que, neste caso, a imprecisa e ampla noção de lente ilustração de estudo formal, em que a relativização dos eon··
sobrevivência seja entendida na acepção relativizada de sobrevivên- ceitos funcionalistas centrais aparece totalmente explícita (85). A
cia em bom estado de saúde, tal como acaba de ser especificado. De necessidade de tal relativização é ignalmente realçada por N agel, que
outro modo, existe um real perigo de que os diferentes pesquisado- assinala que Ha afirmação de que uma mudança dada é funcional ou
res utilizem o conceito de exigência funcional e, portanto, o de fun- disfuncional não deve ser apreciada senão quanto a um G (ou a
ção - cada qual à sua maneira e com conotações de avaliação cor- uma série de G) especificado" (86), em que os G são traços cuja
respondendo às suas diversas concepções do que constitui as carac- preservação serve de critérios de ajustamento ou de sobrevivência
terísticas Hessenciais" da "verdadeira" sobrevivência para tal tipo do sistema estudado. Em sociologia, devemos a Lévy uma análise da
dado de sistema. estrutura da sociedade (87) e que relativiza os conceitos fundamen-
tais do funcionalismo, da maneira aqui indicada.
A definição desses critérios empíricos objetivos é ainda mais
urgente para a utilização da análise funcional em psicologia, em socio- É somente quando assim acontece que as hipóteses utilizadoras
logia e em antropologia; porque definir necessidades como condições dessa termiuologia têm a qualidade de suposições ou de afirmações
necessárias da sobrevivência psíquica ou emocional de um indivíduo precisas e objetivamentt verificáveis. Unicamente neste caso tais hipó-
ou de um grupo é demasiado vago para não permitir e, portanto, teses podem figurar com significações em argumentações semelhan-
não provocar interpretações subjetivas absolutamente diferentes. te às esquematizadas em (2.1), (2.3) e (3.1).

pelo menos necessária à sobrevivência do grupo ou do organismo. Por exemplo: (85) Ver G. Sommerhoff, Analytical Biology (Nova York, Oxford Uni-
no ensaio de que são extraídas as duas passagens que acabamos de citar em ·vcrsity Press, 1950).
nosso texto, Malinowski comenta assim a função dos sucessos culturai<; com- (86) Nagel, " A Formalization of Functionalism", op. cit., pág. 269. Ver,
lllexos: "Tomemos o aeroplano, o submarino ou a máquina a vapor. Eviden~ igualmente, o parágrafo de conclusão do mesmo ensaio (págs. 282-28..,)/.
temente, o homem não tem necessidade de voar, nem tampouco de fazer (87) Lévy fala de "eufunção" e de .. disfunção" de uma unidade (por
companhia aos peixes e nem, enfim, de se deslocar em aparelhos aos quais exemplo, um sistema) e caracteriza esses conceitos como relativos à U unidade,
não está nem anatomicamente adaptado e para os quais nem se acha fisiolo- tal como é definida". Ele sublinha que essa relativização é necessária, .. porque
gicamente preparado. Definindo, portanto, a função de tais invenções, não
podemos predizer a verdadeira razão de seu aparecimento, em termos que para a definição da unidade é que nos devemos voltar, a fim de determinar
invoquem, seja de que modo for, a necessidade metafísica" (ibidem, págs. st: a OI adaptação ou o ajustamento", que explica a persistência ou a não-
118-119). persistência da unidade, intervém ou não intervém" (Lévy, ibidem, págs. 77-78).

248 249
I
i
Mas, embora relativizando assim esses conceitos, se possa dar um contribuições trazidas pelos diversos traços de um sistema a seu
conteúdo empírico preciso às hipóteses funcionalistas, que, em tais modo particular de auto-regulação (Poder-se-ia interpretar igual-
argumentações, desempenham o papel de premissas ou de conclusões, mente como máximas heurísticas para a investigação empírica o,;
estas nem por isso são menos limitadas quanto ao seu alcance expli- "axiomas gerais do funcionalismo" avançados por Malinowski, que
cativo ou preditivo, como constatamos nas seções 2 e 3; porque d os considerava COmo demonstrados por todos Os dados empíricos
julgamento que fizemos da força lógica de tais argumentações depen- pertinentes (88).
dia unicamente de sua estrutura formal e não das significações de Em biologia, por exemplo, a contribuição da aproximação funcio-
suas premissas e de suas conclusões, nalista não consiste em afirmar radicalmente que os traços de um:
Continua sendo verdade que, mesmo no caso de uma análise fun- organismo satisfazem a alguma necessidade e servem, assim, a uma
cional convenientemente relativizada, seu poder explicativo perma- função. Afirmação assim tão geral é destinada a ficar sendo, quer
nece relativamente limitado. Ela não propõe, em particular, explica- sem significação real, quer uma tautologia velada, quer empirica-
ção para a presença no sistema s de tal elemento i de preferência a mente falsa (conforme o conceito de necessidade é apresentado seni
um de seus equivalentes funcionais. E o alcance preditivo da análise nenhuma interpretação empírica, de uma forma tautológica, ou cbni.'
funcional é quase nulo nos casos em que não possam ser estabeleci- uma só e definitiva interpretação empírica), Ao contrário, os estudos'
funcionalistas em biologia propenderam a mostrar como, por exem-' : f
das hipóteses apropriadas de auto-regulação. Tais hipóteses assenta-
riam que, num contexto dado C, o sistema s (ou qualquer sistema pIo, entre diferentes espécies, processos homeostáticos e regenerativos;-
de um tipo S, de que s constitui um caso) efetua sua própria regula- específicos contribuem para a manutenção e para o desenvolvimento:
ção relativamente a um conjunto E de estados. Isso significa que, do organismo vivo; e eles vieram pouco a pouco i) a examinar, de,
após haver sofrido uma perturbação que o levou para um estado máneira cada vez mais precisa, a natureza e os limites desses pro-:
estranho a E, mas que não fez variar, fora do conjunto definido C, cesso!) (o que se reduz essencialmente a estabelecer diversas leis o~
suas condições internas e externas, o sistema s encontrará de novo hipóteses empíricas específicas de auto-regulação) e ii) a explorá r.
um estado previsto em E. Um sistema que satisfaça a uma hipóte:,c os mecanismos fisiológicos e físico-químicos subjacentes, assim conto.
desse tipo poderia ser denominado sistema que efetua sua própria as leis que os governam, num esforço por chegar-se a uma com-
regulação em r..lação a E. - preensão teórica mais completa do fenômeno estudado (89). Tendên-
Uma das tarefas mais importantes da análise funcional em psico- cias semelhantes existem no estudo dos aspectos funcionais dos
logia e em ciências sociais consistirá, seguramente, em precisar até processos psíquicos e, em particular, da formação dos sintomas na
que ponto é possível encontrar em tais domínios semelhantes fenô:- neurose (90).
menos de auto-regulação e em apresentar-lhes, com clareza, as leis. Em psicologia e em clencias sociais, do mesmo modo que em bio-
logia, pode a análise funcional ser concebida (pelo menos idealmen-
te) como um programa de pesquisa chamado a determinar em que
5) O papel heurístico da análise funcional
medida e em que graus diversos sistemas apresentam, no sentido em
que o temos definido, fenômenos de auto-regulação. Esta concepçã?
Tudo quanto precede sugere que a melhor maneira de circunscre- subtende, visivelmente, por exemplo, o ensaio de Nagel, Une formai
ve.r o que freqüentemente se chama "funcionalismo" não é consi-
derá-lo como um corpo doutrinaI ou teórico, que avança princípios
desmedidamente gerais, tal como o do funcionalismo universal, ma:s, (88) Malinowski, A Scientific Theory oi Culture, and Others Essays, op.
cit., pág, ISO.
antes, como um programa de pesquisa guiado por certas máximas
~eurísticas ou "hipóteses de trabalho", A idéia de funcionali~m0 (89) Uma apaixonante apresentação geral desse tipo de aproximação dos
universal, por exemplo, que se torna insustentável, se formulada como processos homeostáticos próprios do corpo humano pode ser encontrada na
obra de Walter B. Cannon, The Wisdom of the Bod:; (Nova York, W. \Y,.
lei empírica ou princípio teórico absoluto, poderia, com mais ptO- Norton & Company, Inc., edição [revista] de 1939).
veito, ser concebida como constituindo uma orientação de pesq ~~sa, (90) Ver, por exemplo, ]. Dolbrd e ·N. E. Miller, Personality and PsichO-
incidente, mais precisamente, sobre os aspectos auto-reguladQr~s therapy (Nova York, McGraw-Hill Book Company, Inc., 1950), capo XI, Il How
específicos dos sistemas sociais (ou outros) e sobre o exame -das symptoms are Iearned" e, particularmente, as págs. 165-166.

250 251

l
f lisation du fonctionnalisme (91), que propõe um esquema analítico objetivo lógico que, afinal de contas, todo funcionalista deve visar
,I
i inspirado pela e semelhante à análise formal da auto-regulação em não é demonstrar a função de um modelo social relativamente aos
biologia, análise formal a que Sommerhoff (92) procede e que utiliza outros, mas, antes, analisar a reciprocidade funcional desses modelos
para apresentar e explicitar a estrutura da análise funcional, parti- quanto ao modelo encarado. Em resumo, a análise funcional estabe-
cularmente em sociologia e em antropologia. lece cOmo premissa o caráter operatório de um "princípio de reci-
O modo de aproximação funcionalista se mostrou, em numerosos procidade funcional", princípio diversamente aplicado por Marx (93),
contextos, extremamente esclarecedor, sugestivo e frutuoso. Como Mauss (94), Malinowski (95), Lévy-Strauss (96) e Homans (97)
meio de colher todos os frutos e todas as vantagens que ele pode ofe- em diferentes contextos empíricos. Por isso podemos explicitar bem
recer, parece desejável e, de fato, necessário prosseguir na pesquisa essa hipótese funcionalista subjacente, conforme a seguinte formulação
das relações funcionais específicas, até que se possa exprimi-las sob
a forma de hipóteses suficientemente precisas e objetivamente verifi- (93) O princípio de reciprocidade penetra no coração da análise teórica de
Marx. Encontra-se-Ihe a melhor aplicação nos conceitos de exploração e de
cáveis. Essas hipóteses serão, provavelmente, pelo menos no começo, mais-valia. Se se negligenciar a condenação moral que Marx faz da expIo-.
de alcance limitado. Mas uma tal evolução não faria senão seguir a ração e se a gente se ativer, unicamente, à natureza sociológica desse conceito,
da biologia atual, em que os tipos de auto-regulação e as uniformi- ver-se-á que se trata de uma ruptura da função de reciprocidade. Uma da.s
dades que apresentam variam segundo as espécies. As "generalizações conclusões fundamentais da análise de Marx está em que a exploração é
"''
.
geradora de instabilidade social. Mas Marx se interessa, sobretudo, pelas fonte's
empíricas" de alcance médio poderiam servir progressivamente de de instabilidade e de mudança. Centraliza suas pesquisas, por conseguinte, no
base a uma teoria mais geral dos sistemas auto-reguladores. Não aspecto mais distanciado da função de reciprocidade. Do mesmo modo, empre-
se pode decidir a prio.ri - nem por especulação lógica, nem por via ga-se a analisar os mecanismos compen.:ôadores que, o~rando na sociedade
de reflexão filosófica - até que ponto é possível atingir tais obje- moderna, mascaram a ruptura da função de reciprocidade. Desse ponto de
tivos: a resposta é encontrada numa pesquisa científica intensiva P. vista, sua concepção acerca do .. fetichismo" é cem por cento significativa. Ver
K. Marx, Lc Capital, Paris, Ed. Sociales, 1969, voI. I, págs. 85-86.
rigorosa (Excerto de U-EWELLYN GROSS (ed.), Symposium on So-
(94) Ver M. Mauss, .. Essais sur le don", in Sociolog~'e ct Anthropologic,
ciological Theory, Evanston, Ill., Row, Peterson & Co., 1959, págs. Paris, P.U.F., 1960. Mauss frisa que existe uma obrigação universalmente
277, 278-280, 283-294, 296-297, 301-302). reconhecida de responder a um dom aceito como um dom recíproco. Em seu
último capítulo, Mauss parece igualmente aproximar-se do conceito de "explo-
ração", quando explica que as pessoas experimentam um forte desejo de seguir
o objeto produzido, uma vez conscientes de haverem fornecido seu trabalho
sem lhe participarem do lucro.
o PRINCíPIO DE RECIPROCIDADE FUNCIONAL (95) É o que ressai claramente do estudo de Malinowski sobre a sociedade
trombriandesa, quando ele observa que toda a sua estrutura se articula segundo
uma .. cadeia bem equilibrada de serviços recíprocos". Comentando a troca
ALVIN GoULDNER peixes-legumes entre os pescadores da costa e os hortelões do campo, nota ele
que semelhante reciprocidade constitui um mecanismo acorde com as obriga4
ções estabelecidas: é o seu suporte e o seu estimulante. B. Malinowski. Crime
anã Custom (Londres, Paul, Trench, Trubener, 1926), págs. 46, 23 e segs.
Parece que uma explicação funcional da persistência de um mode- Não é de duvidar que Radcliffe-Brown postulasse, de seu lado, um princípio
lo social, para ser formalmente satisfatória, exige, da parte do teo- de reciprocidade, que ele denominava "princípio de equivalência de serviço ".
rizador, que ele não se satisfaça COm demonstrar as incidências de Segundo ele, este princípio se exprimia na lex talionis, no princípio do direito
à indenização por prejuízo sofrido e no segundo o qual quem quer que propor-
A sobre B, mas que demonstre igualmente as de B sobre A. O único cione uma vantagem ao seu semelhante deve beneficiar-se, por sua vez, de
uma vantagem equivalente. Ver conferências do autor na Universidade de
(91) Nagel, " A Formalization of Functionalism ", op. cito Ver igualmente Chicago: .. The Natttre of a Theoretical Natural Science of Society", 1937.
a discussão mais geral da análise funcional inclusa no artigo de N age1, (96) Lévi-Strauss, Les structltres élémentaires de la parenté (Paris)
.. Concept and Theory Formation in the Social Sciences", em Scien!:e, [.an- P.U.F., 1949). Neste trabalho, que tanto deve a Mauss e a Durkheim, Lévi-
guage, and Human Rights, American Philosophical Association, Eastern Dlvi- -Strauss apresenta sua teoria, hoje quase clássica, da "permuta" das mulheres.
sion, voI. I (Filadélfia, ,University of Pennsylvania Press, 1952), pág~. 43-64. (97) G.. C. Homans e D. M. Schneider, Marriagc, Authority and FinaJ
Reeditado em J. L. Jarrett e S. M. McMurrin, ed., Contemporary Philosophy Causes (Glencoe, IH., Free Press, 1955). Esta publicação apresenta uma crí-
(Nova York, Henry Holt & Company, Inc., 1954). tica de c(':rtos pontos da teoria de Lévi-Strauss. O princípio de reciprocidade
(92) Sommerhoff, op. cito constitui, igualmente, a matéria fundamental de alguns- estudos de_ Homans.

252 253

18 -T.S.
geral:· 1) toda estrutura particular terá mais oportunidades de per- igualmente existir certos interditos culturais, que proscrevem sejam
sistir, se se fundar em um sistema de trocas funcionais e recíprocas determinadas trocas encaradas sob o ângulo da reciprocidade, Um
·com Qutras; 1.1) quanto menos seguidas forem as trocas funcionais exemplo disso na seguinte chapa: "Não é o presente que conta, mas
e recíprocas entre as estruturas, tanto menos cada uma das ditás a intenção com que é dado", Ainda uma vez, estruturas coercitivas
estruturas, ou o modelo das relações que as ligam, terá probabilida:· podem pennitir assegurar a continuação de serviços, mesmo quando
des de manter-se; 1.2) salvo se intervierem mecanismos compen,- acompanhados de fraca reciprocidade funcional. Posto se possa pre-
sadores. sumir que tais serviços, do ponto de vista que nos interessa, oferecem
O princípio de reciprocidade implica, essencialmente, um sisterlla menos estabilidade que aqueles cuja reciprocidade funciopaI motiva
de partes independentes engajadas num processo de trocas mútúa's. uma ação contínua, nem por isso constituem Um fato sociológico
É nesse sentido que a noção de sistema está necessariamente incluída que se deva negligenciar. Outra disposição que pode contribuir para
na análise de Merton, incidindo sobre a máquina política, como deve prevenir ou controlar as falhas de reciprocidade funcional é a par-
.~ncidir, a nosso ver, em toda análise funcional. tilha mútua de alguma terceira estrutura C, entre as estruturas A e
Cabe sublinhar, todavia, que a "troca mútua" não acarreta, neceS- B. Para retomar a terminologia (98) de Lévi-Strauss, num sentido
sariamente, que as relações entre as partes de um sistema soci~l mais amplo, poder-se-ia dizer que uma situação de "permutas gene-
,sejam sempre de uma reciprocidade funcional simétrica. Ela inclui, ralizadas", na qual A provesse as necessidades de B, B as de C e C . l'

entretanto, a existência de tal reciprocidade funcional ou o desenvo.l· as de A, pode revelar-se mais estável do que uma Hpermuta restriti·
vimento de um mecanismo compensador que supra a sua falta 'Ou va", feita só entre A e B. Achamo-nos aqui, novamente, no quadro
preencha o vazio de sua ruptura. Estamos inclinados a acreditar que do estudo de Parsons, respeitante ao modelo de equilíbrio funda-
é precisamente porque Merton havia notado que as relações entre mental do sistema social. Parsons coloca como postulado que O
as partes não apresentavam, sempre, os caracteres da reciprocidade sistema social mínimo, compreendendo dois personagep.s, Eu e o
funcional simétrica que ele se absteve de generalizar o princípio· de Próximo, atinge seu ponto de equilíbrio quando cada um dos prota-
reciprocidade, princípio que nem por isso aparece menOs implicita- gonistas corresponde às esperanças do outro e dele recebe a recom-
mente em sua análise. Não é senão tentando formulá-lo explicita.- pensa que lhe vale uma tal atitude de complacência. É manifesto,
desde o início, que este modelo põe implicitamente em jogo o prin-
mente e submetendo-o a um exame crítico que se pode, ou corrigi~19
cipio de reciprocidade de que pode ser tido como um caso particular.
e apurá-lo, ou, ainda, invalidá-lo e rejeitá-lo.
Notemos, para sermos mais precisos, que de fato "Eu" pode con-
Está-se, assim, em face de um dilema. De um lado, parece evi- tinuar a corresponder às esperanças do próximo, não porque este
dente que abandonar a análise, antes de tentar estabelecer entpirl'ca- lhe pague na mesma moeda ou o recompense pelo seu favor, mas
mente a reciprocidade funcional de B para A e explicar a persist~Íl­ porque os favores de "Eu" são descontados e recompensados por
.cia de A, demonstrando sua função para B, equivale a substituir ~ uma terceira personagem. Em suma, pode-se manter esse sistema e
.pesquisa pelo postulado. De outro lado, podem-se avançar sólidas preservá-lo das falhas de reciprocidade funcional, graças à inter-
razões empíricas para a rejeição de um princípio de reciprocid.ad~ venção de uma "terceira" estrutura, que poderia ser qualificada -de
,'absoluto, porque isso conduziria à duvidosa hipótese de que as est~u­ "reguladora". Impossível tratar aqui da questão de saber se isso.
turas que tiram proveito das outras são invariavelmente Hreconheci- implica que o modelo mínimo de um sistema social deva antes com-
'das" e de que os serviços obtidos pelo poder de coerção e providos preender três do que duas personagens. Todavia, para formular uma
de uma fraca ou nula reciprocidade são, não somente instáveis, flui,:; conclusão prudente, pareceria que um dos objetivos importantes da
:também totalmente impossíveis. ~nálise funcional, expressa em termos de papéis, devesse ter por
Um princípio de reciprocidade demasiado absoluto é de molde " objeto a ação estabilizadora de semelhantes "terceiras partes", como,
,desviar a atenção dos mecanismos específicos, assim sociais como por exemplo, a testemunha) o amicus curiae, a polícia; o amigo da
'culturais, que pudessem compensar a falha de reciprocidade funcio- família, os árbitros, os juízes rituais e como os "velhos da terra" (99) ~
nal. Entre os mecanismos compensadores, podem-se incluir certas
prescrições de ordem cultural de "generosidade sem reserva", com-a (98) Lévi-Strauss, ibidem, pág. 548.
:noção cristã de "estender a outra face", ou o con!;cito feudal de (99) Ver o estudo de Max Gluckman, Custom and Con/lic~ in A/rica
"noblesse oblige", ou, ainda, a idéia romana de "clemência". Podem (Glencoe, Free Press, 1955).

254 255
I
I Pode-se esperar que, nos sÍstemas SOCiaIS complexos, os papeIS
desempenhados por uma terceira parte sejam estruturalmente espe- para o conceito de sistema, deve ser encarada antes como problemá-
cializados e diferenciados dos outros; nos sistemas sociais mais sim- tica do que como coisa simples, quando se quer desenvolver um
ples é possível que semelhantes funções reguladoras se confundam modelo de sistema que se preste à análise do comportamento social.
com outras. Uma das razões por que isto não foi feito sistematicamente na aná-
Resulta de tudo isso, pois, claramente, que, ao explicar qualquer lise de ,Parsons está ligada à distinção que o referido autor estabelece
modelo social, a gente não se possa contentar em afirmar que a entre sistema Uteórico" e sistema Hempírico". O primeiro se refere
reciprocidade funcional opera em seja qual for o caso dado. É neces- a um esquema conceptual fundado em relações lógicas, ou a um
sário estabelecer empiricamente aqueles em que ela intervém. Quando conjunto de proposições. Em contrapartida, um sistema 'empírico
ela não existe; importa determinar os arranjos compensadores, que "depende de critérios de coerência e de harmonia, aplicáveis a un1
lhe fornecem um substituto funcional. objeto empírico, específico" (100).
Existem laços importantes entre o princípio de reciprocidade fun· Pareceria existirem duas interpretações do emprego que Parsons.
donal e o conceito antropológico, mais antigo, de "sobrevivência"', faz da expressão Usistema empírico". Uma conserva inconsciente~
Era corrente considerar um modelo social como "sobrevivência", na mente o uso do século XVIII, referindo-se a um sistema Hnatural"~
impossibilidade de estabelecer que ele contribuía, de maneira qual- que existe de alguma fonna Hem si mesmo", num sentido realista, ~ i".

quer, para a adaptação de um sistema atual, em que estivesse isto é, fora de qualquer conceptualização particular. A despeito do
implicitamente presente. A oposição dos antigos funcionalistas a esse fato de que essa acepção seria radicalmente incompatível com a posi-
conceito fundava-se, logicamente, na admissão tácita de um princípio ção metodológica de Parsons, predominantemente construcionista, ü
absoluto de reciprocidade. Em outros termos, estabeleciam eles. como leitor poderá ficar embaraçado, se tiver consciência de que tal infe-
premissa, que uma estrutura persistente tinha suas necessidades sa- rência não é, apesar de tudo, totalmente incongruente. Todavia, na
tisfeitas pela ação das outras e que, Se essas necessidades eram medida em que um H~;istema empírico" é encarado como um conjun-
satisfeitas, isto não poderia acontecer senão pelo fato de que a estru- to de "critérios" a serem aplicados a um objeto de estudo, claro
tura contribuía, em certa medida e de maneira recíproca, para a está que o sistema empírico não pode servir de referência à teoria~
adaptação das outras. Ao antropólogo funcionalista não restava, por- mas deve constituir, pelo contrário, um jogo de proposições hipoté-
:i tanto, senão esforçar-se no· sentido de assinalar o que eram, de fato, ticas, segundo as quais caberá estudar as referências.
tais reciprocidades escondidas. Por esse motivo. a segunda interpretação (de longe a mais acei-
A oposição dos primeiros funcionalistas à noção de sobrevivência, tável) consiste em dizer que o que Parsons entende por "sistema
entretanto, tendia a obscurecer a significação dos graus variáveis de empírico" é, de maneira assaz desconcertante, o que os filósofos das
reciprocidade funcional e a negligenciar os mecanismos que serviriam ciências chamam, comumente, um "sistema formal". Os sistemas pu-
para controlar a instabilidade resultante de uma ruptura dessa reci- ramente formais, como em matemática e em lógica, são os que se
procidade. Esses primeiros funcionalistas descuidaram-se do fato mostram vazios de qualquer conteúdo empírico, e é bem a maneira,
de que a "sobrevivência" era só um caso extremo de uma classe mais essa, pela qual Parsons utiliza a noção de sistema empírico. Quando
extensa de fenômenos, que mereceriam alentadas pesquisas e que se aplica um sistema formal a um assunto de estudo, diz-se que ele
comportam, notadamente, as relações entre as estruturas apresenta- é "interpretado". Existem sistemas formais que se prestam a nume-
doras de fraca reciprocidade funcional. Quanto ao essencial, a opo- rosas interpretações e outros que não admitem nenhuma. O nó do
sição dos primeiros funcionalistas ao conceito de "sobrevivência" problema reside, aqui, na natureza da interpretação a dar à noção
persiste de modo injustificável em nossos dias, na negligência com formal e vazia de um "sistema", quando aplicada às relações huma-
que é tratado o problema dos modelos assimétricos da reciprocidade nas. Se se quisesse que um sistema formal fosse aplicado com bom
funcional. êxito, pareceria necessário que se examinasse, explicitamente, a inter-
pretação de que ele constitui objeto.
A interdependência como noção problemática O ponto importante, entretanto, é que a noção de sistema teórico
remete ao que Parsons considera como analiticamente problemático,
Uma das maiores conseqüências decorrentes de nossa análise é que
a noção de interdependência, revestindo uma importância tão capital (100) T. Parsons e E. A. Shils, eds., T01.Uard a General Theory oI AcHon
(Cambridge, Harvarn University Pre-ss, 1951), pág. 49.
256
257

...
quando o conceito formal de um Hsistema empírico" permanece, ou continuum que liga seus elementos constitutivos e no que· centraliza
largamente inexplorado, ou considerado, pura e simplesmente, como a atenção nos valores específicos das dimensões e, notadamente, nos
o enunciado dos termos no interior dos quais o sistema teórico se mals extremos. Falar dos sistemas como sendo caracterizados por
deve desenvolver. Resulta daí que a noção de Hsistema empírico" uma interdependência das partes e por um equilíbrio interno tende a
não se torna sistematicamente problemática para Parsons, e que ele dissimular o fato de que essas variáveis podem conhecer amplas
deixa de analisar as diferentes interpretações que permanecem pos- variações. Isso leva, além do mais, a fazer presumir que elas variam
síveis no contexto de tal projeto. sempre, conjuntamente, na mesma direção.
No que nos diz respeito, gostaríamos de sublinhar, ao contrário, IPode-se encontrar, todavia, ligação entre uma interdependência
que, mesmo no nível formal da análise de um sistema, existem dife- fraca e um equilíbrio elevado, exatamente onde uma fraca interde-
rentes elementos, que entram na concepção de um tI sistema empírico" pendência permite uma absorção local de um trauma de origem exter-
e que, combinados ou interpretados de modo diferente, podem cons- na,.· .protegendo, assim, o sistema contra mais graves danos. Estê
tituir diferentes tipos de sistemas empíricos (101). Importa, portanto, gênero de conjunção é que pareceria implicar a noção de Hisola-
escolher entre modelos formais concorrenciais e identificar aqueles me!1to", que Parsons, de concerto com outros funciona1istas, consi-
que IIse adaptam" melhor aos dados conhecidos e significativos. dera como um "mecanismo de defesa" dos sistemas sociais. Em
Como se mencionou atrás, os dois elementos-chave, que intervêm poucas palavras, a baixa do grau de interdependência pode contri-
no conceito de sistema, são, inicialmente, a "interdependência" e, buir para um acréscimo do grau de equilíbrio ou para substituí-lo
em seguida, a "perpetuação" (self maintenancofl) ou equilíbrio. A nuIU. nível superior.
análise será profundamente diferente, conforme a interdependência Em compensação, é possível encontrar na noção de "círculo vicio-
e o equilíbrio forem tratados como atributos não diferenciados ou 50" o exemplo de uma conjunção entre uma alta interdependência

encarados, ao contrário, como dimensões suscetíveis de importantes e ")TI fraco equilíbrio. Aqui, a própria interdependência dos elemen-
variações de grau. tos. permite o desenvolvimento de ciclos de feedback negativos e
A menos que Se adote essa última perspectiva e, levando as coisas acarreta uma deterioração do equilíbrio do sistema. De tais conside-
mais adiante, se perceba, claramente, que interdependência e equi- rações parece resultar, translucidamente, que equilíbrio e interdepen-
líbrio não são termos sinônimos, mas variáveis independentes, há dência podem variar de maneira independente que, por conseguinte,
uma tendência muito nítida para negligenciar a eventualidade segun- torl1am-se previsíveis conjunções de diferentes valores de tais variá-
do a qual existem diferentes tipos de sistemas empíricos, mesmo ao vei.s no que diz respeito ao caráter dos sistemas sociais.
nível mais formal da análise. A só utilização do conceito de sistema
e~pírico evoca, muito de perto, a imagem de um físico-matemático
Autonomia funcional e
que se limitasse, unicamente, ao emprego da Hgeometria" geral, sem graus de interdependência
precisar o sistema específico de geometria que se propõe aplicar
para resolver seus problemas particulares. ·Encontramos-nos aqui em face da hipótese fundamental de que
Segundo a óptica de Parsons (102), o conceito de sistema empíri- existem diferentes graus de interdependência entre as partes de um
co é essencialmente um Htipo ideal", sujeito aos perigos inerentes a sistema. Numa extremidade, cada qual dos elementos pode estar
todos os conceitos do mesmo gênero, no que ele atenua muito o implicado numa rede de trocas mútuas com todos os mais. Em outra
extremidade, cada elemento pode achar-se implicado numa rede de
(101) Nesse sentido, ver J. Feibleman e ]. W. Friend, "The Structure trócas mútuas com um só dentre os mais (103). Pode-se considerar
and Function of Organization", Philosophical Review, 54 (janeiro de 1945), que o primeiro define a interdependência e a globalidade (system"
págs. 19-44, e A. Angya!, .. The Structure of Wholes", Philosophy oi Science, lleSs) máximas, enquanto o segundo define, ao contrário, a inter-
6 (janeiro de 1939), págs. 25-37.
(102) Cf. Parsons e Shils, ibidem, pág. 107: II A propriedade mais geral
e mais fundamental de um sistema é a interdependência das partes ou variá- (103) Para um excelente estudo sociológico a respeito, ver G. Shapíro,
veis. .. Essa ordem deve ter uma tendência para a 'perpetuação', que se Th~ formulation and Verification oi a Theory oi Primary Social Integration,
exprime, de· maneira muito geral, no conceito de 'equilíbrio· ...... tese de doutoramento não publicada, CorneU University, 1954, capo 2.

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L
dependência e a globalidade mlmmas. Existe, contudo, uma outra Autonomia funcional e tensão
maneira de considerar a interdependência: pode-se situá-Ia do ponto no interior de um sistema
de vista da dependência das partes em relação ao sistema. As partes
podem ver suas necessidades mais ou menos satisfeitas pelos outros Na medida em que as partes possuem um certo grau de autono-
elementos do sistema e, portanto, ter, em relação aos mesmos, graus mia funcional, pode-se pensar que procuram preservá-lo. Numa
variáveis de dependência. Um certo número de partes engajadas palavra: a noção de equilíbrio, aplicada a um sistema social em seu
numa rede de trocas mútuas pode vê-las dependeram, até o último conjunto, deveria, em princípio, poder aplicar-se, por igual, a suas
ponto, totalmente, umas das outras, para satisfação de suas neces- partes. Assim, é possível esperar que as partes de um sistema sociaJ
sidades. Possível dizer, em semelhante caso, que o sistema que as "mantenham suas fronteiras". Portanto, deve-se presumir que par-
tes que gozam de um certo grau de autonomia funcional neguem-se
engloba é "altamente interdependente", mas igualmente é lícito dizer
a deixar-se integrar, plena e completamente, no seio de um sistema
dessas partes que elas possuem uma "fraca" autonomia funcional. mais vasto. Ao contrário, é lícito supor que o próprio sistema, em
Inversamente, há a possibilidade de existir um sistema constituído seu esforço de integração, busque submeter as partes unicamente às
de partes e do qual todas elas não obtêm das outras senão uma exigências da posição que elas ocupam. Segue-se que pode surgir • '!-"
reduzida satisfação de suas necessidades. Neste caso. o sistema apre· uma tensão entre a tendência das partes para manter o grau de
sentaria uma interdependência mínima e as partes possuiriam forte autonomia funcional de que gozam e a pressão exercida pelo sistema
autonomia. Em linguagem operacional, poder-se-ia dizer que a autõ- para controlar aquelas partes.
nomia funcional de uma parte de sistema é medida pelas suas pro- Parece que este modelo, ou qualquer outro do mesmo gênero, pode
babilidades de sobrevivência, quando ela se acha separada de dito servir de fundamento a diferentes teorias, tais como as de Freud,
sistema. que postula a existência de um conflito endêmico entre, de um lado~
Tínhamos aqui sugerido uma conceptualização da H globalidade" o indivíduo e, de outro lado, a sociedade, ou o grupo. No respei-
em termos de autonomia funcional, porque a noção de interdepen ~ tante ao essencial, respondeu~se a essas, teorias por meio de análises
que insistem, ao contrário, sobre a maleabilidade do organismo indi-
dência mútua, comumente utilizada nas definições dos sistemas, tende
viduaI, sobre o poder do processo de socialização e também sobre a
a enfatizar principalmente o "todo" ou as relações entre as partes, inaptidão do organismo para expandir-se plenamente, como H ser
ou) ainda, as necessidades funcionalmente recíprocas que elas têm humano", fora da sociedade.
umas das outras. Quanto à autonomia funcional incide ela sobre as
Na verdade, entretanto, essa mesma maleabilidade do organismo,
partes, ainda que ao nível de suas respectivas relações; atrai a aten- que o torna apto para a socialização, "por via de um sistema social
ção para o fato de que cada parte pode às vezes experimentar uma qualquer, torna-o semelhantemente apto para a sua ressocialização,
fraca ou, ao contrário, uma grande necessidade de uma outra parte por meio de um outro. Assim é que a sua maleabilidade representa,
e de que a mútua necessidade das partes não é forçosamente simé- verdadeiramente, uma condição de sua autonomia funcional. De
trica. Em resumo, ela considera principalmente as trocas mútuas para resto', interessa-nos, sobretudo, a aptidão de um indivíduo já sociali-
as quais a reciprocidade funcional pode não ser simétrica; acentua, zado para o continuar sendo, após haver-se separado de um dado
assim, um gênero de relações geradoras de tensões. sistema social. Não nos preocupamos principahpente aqui com a
formação de um indivíduo fora de toda e qualquer sociedade.
Isto dito, ainda é possível levantar a seguinte questão: "Que se
poderá afirmar relativamente ao grau de autonomia funcional das Adiantando mais as coisas, pareceria que, uma vez socializados,
inúmeros indivíduos adquirem uma aptidão para "evadir-se rapida";
partes de um sistema social e de que formas o problema de seme- mente": os seres humanos não se caracterizam, pois, invariavelmen,;.
lhante autonomia entra na análise dos sistemas sociais ?". Nos comen- te, por uma total dependência em relação a um único sistema social.
tários que virão a seguir e que se propõem enunciar um certo núme- Os indivíduos socializados possuem uma certa margem de mobilida-
ro de hipóteses, insistir-se-á no fato de que o problema enfocado é de, vertical e horizontal, em meio aos sistemas sociais de sua socie-
de considerável importância para a análise das tensões no seio ,dos dade, e passam, com maior ou menor facilidade, ou com maior ou
'sistemas sociais e, portanto, para a análise das mudanças também menor dificuldade, de um para outro. Podem, também, e disso não
sociais. se privam, emigrar para ou passar um tempo em sociedades dife-

26[) 261
rentes das em que foram originalmente socializados. Apresentam, . J?arece que um modelo, unicamente COm base no "conjunto" do
segundo nossos critérios, graus consideráveis e, sem dúvida, variados sistema e que negligencia a autonomia funciopal de suas partes, seria
de autonomia funcional em relação a qualquer sistema social dado. inadaptável ao gênero de dados recolhidos por Hughes ou Goffman
Se, por conseguinte, imaginamos O °indivíduo socializado" como
sendo, de algum modo, uma "parte", e não somente a matéria-pri-
no .curso de suas pesquisas. E ele sobretudo não seria de natureza a
indicar sistematicamente ao pesquisador a origem das tensões que,
ma, de sistemas sociais, pareceria necessário renunciar aos modelos T:l9~ sistemas sociais, nascem dos esforços empregados pelas partes
que insistem exageradamente na interdependência das partes e sele- pa.ra chegarem à autonomia. Do ponto de vista do gênero de modelo
cionar os que se dedicam sistematicamente ao exame da autonomia qu~ Parsons preconiza, a importância dada à interdependência atrai-
funcional destas últimas. Para concordar com os dados do compor- ria sobretudo a atenção para um tipo unilateral de comportamento,
tamento social, deve o modelo requerido ser de natureza a facilitar, que corresponderia, segundo a terminologia de Goffman, ao "ritual
não somente a análise da interdependência do sistema tomado em de apresentação". Isso levaria a se terem cuidados com os mecanis4
~eu conjunto, mas também a da autonomia funcional de suas partes. I!l0s de integração social e a se negligenciarem os "rituais de esqui-
Deve também dar contas das tensões concretas que podem resultar vança", que constituem, para os indivíduos socializados, amei')
dos esforços desenvolvidos para manter aquela autonomia. próprio de resistir à sua total incorporação num sistema social e de
A análise sociológica foi recentemente enriquecida com dois mé- ey:itar, assim, a perda absoluta de sua autonomia funcional.
todos interpretativos, que se acham notavelmente próximos das hipó- No modelo parsoniano do sistema social, analisam-se sobretudo as
teses relativas à autonomia funcional. O primeiro resulta de um n~ce.ssidades do sistema em seu conjunto e faz-se depender sua esta-
estudo das profissões, realizado por E. C. Hughes e seus alunos, bilidade da satisfação das mesmas. Em nossa perspectiva, entretan-
no qual as observações repetidas e tendo por objeto diversas profis- to, 'só o esforço que faz o sistema para satisfazer às suas necessidades
sões, umas nobres, outras profanas, revelam que os que a isso se es~cíficas pode, comprometendo a autonomia funcional de suas par-
entregam esforçam-se particularmente no sentido de preservar um tés'," tornar-se, do mesmo passo, gerador de tensão. O que significa
certo grau de autonomia funcional. Segundo os próprios termos de
que sistemas que compreendem partes desfrutando um certo grau de
Hughes, procuram eles manter uma certa margem de distância social, autonomia funcional devem necessariamente inibir suas próprias ten~
não somente cOm respeito àqueles que evoluem no seio do mesmo dêl)cias no sentido de impor uma subordinação e uma especialização
sistema social, mas, mais particularmente ainda, "com respeito aos
estrita às partes em questão. Resumindo, deverá o sistema, se quiser
que são mais especificamente tocados por seu próprio trabalho" (104). permanecer estável, inibir suas próprias tendências favoráveis a uma
Um segundo caminho, mais geral que o precedente e pelo qual a conipleta integração. Este modelo de análise do comportamento social
gente se esforçou por abordar o problema da autonomia funcional em nãó' é dos que poderiam ser comparados à imagem do "especulador",
termos sociológicos, é o seguido por Erving Goffman. Usando mate- q"ue" joga o todo pelo todo. Antes se aproxima do comportamento do
riais recolhidos no curso de um inquérito levado a cabo em um jogador que procura um equilíbrio de estilo federalista, a meio cami~
hospital psiquiátrico, Goffman estabeleceu uma distinção entre dois "ho entre o totalitarismo e a anarquia (106).
tipos de comportamento de deferência (expressão do julgamento que
faz uma pessoa a respeito de outra e vice-versa). O primeiro tipo é Admite-se comumente que a "organização" do sistema, isto é.
o "ritual de esquivança": refere-se às formas de deferência que esti- que o arranjo particular de suas partes tem por principal objeto
pulam o que um não se pode permitir fazer a outro, e incita ao permitir-lhes a integração. A nosso ver, contudo, a "organização"
mesmo tempo os atores a manterem entre si distâncias sociais. O não tem por utilidade somente ligar, controlar, estabelecer re1açõe:;
s'egundo, chamado "ritual de apresentação", define o que se deve mútuas entre as partes: incumbe-lhe também separá-las, manter e
fazer e implica que se exprimam sentimentos positivos de apreço e preservar-lhes a autonomia funcional. Pode-se, pois, considerar a
de consideração (105). organização como modelada por uma situação conflitual e, mais parM
ticularrnente, pelas tensões resultantes das pressões centrípetas e cen-
(104) E. C. Hughes, "Work and Self", em J. H. Rohrer e M. Sherif, trífugas; como limitado o controle que exerce sobre as partes, impon-
eds., Social Psychology at the Crossroads (Nova York, Harper & Brothers, do-o; como estabelecendo um equilíbrio entre a dependência e a
1951), pág. 322.
(lOS) E. GoHman "The Nature of Deference and Demeanor", Ame-
-_._---
(06) A atitude filosófica é paralela, no caso, à descrita por E. Cassirer
rica. Anthropologist, 58 (junho de 1956), pág,. 486-488. em An Essay on J.lan (New Haven, Yale University Press, 1944).

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sistema, parece igualmente lógico sustentar que elas não estão todas
independência das mesmas; e como agindo, enfim, ao mesmo tempo, tão completamente engajadas na resolução das tensões do sistema
na qualidade de fator de separação e na de fator de ligação das ou na mobilização das defesas contra aquelas tensões. Por' outras
partes (107). palavras, as partes que possuem menos autonomia funcional, e que
As organizações sociais, na medida em que comportam sistemas não podem sobreviver à sua separação do sistema social, têm mais
de papéis, apresentam o mesmo dualismo que o por nós atrás indi- probabilidades de se ver empenhadas na sua conservação do que
cado. É da própria essência dos papéis sociais o não exigirem dos aquelas que disso se mostram capazes. Inversamente, as partes que
atores engajamentos absolutos, mas somente segmentados e parciais. gozam de maior autonomia são mais aptas a fazer pressão para que
Dizer de alguém que é "ator" num sistema social e que aí desem- intervenham mudanças ou estão em melhor posição de aceitá-las quan-
penha um papel implica que ele é objeto de algum controle por parte do .compatíveis com a sua própria autonomia. É evidente, por exem-
do sistema, que ele se encontra sujeito às exigências de seu papel e plo, que a nobreza francesa do século XVIII tinha mais interesse
que tem, finalmente, obrigações para com a estrutura social de que na manutenção do Antigo Regime do que a burguesia, que, essa, po-
seu papel faz parte. Em compensação, isso também implica que suas dia sobreviver, e efetivamente sobreviveu, à sua separação de um sis-
obrigações a respeito da estrutura social são um pouco limitadas. tema social mais velho. Aliás, foi essa mesma burguesia que, por
Mesmo quando o ator está engajado num sistema social primário, sua ação, estimulou a reorganização radical do regime. Em outros
em que as obrigações inerentes ao seu papel são difusas e múltiplas, termos, pareceria, portanto, que todas as partes do sistema não têm
não está jamais sujeito a obrigações ilimitadas. H interesses" equivalentes na manutenção do mesmo. O conceito de
A autonomia funcional das partes tem sido, no mais das vezes, autonomia funcional diferencial das partes chama a atenção para a
considerada, implicitamente, na análise sociológica, como elemento necessidade de distinguir as que têm grandes "interesses" na manu-
gerador de tensões no sistema. Neste sentido, o esforço comum das tenção do sistema das que não os têm assim tão fundamentais.
partes subalternas, tendo em vista manter ou estender sua autono-
mia funcional, tem sido freqüentemente interpretado como fonte de
tensões para o sistema. Na sociologia das organizações, por exemplo, As estratégias das partes- e dos sistemas
as tensões entre as "agências" e a sede central, entre os diferentes
serviços de uma organização, as oscilações correntemente observadas A autonomia funcional de uma parte supõe, entre outras coisas,
entre centralização e descentralização implicam, todas, que se reco- que ela não dependa unicamente do sistema para a satisfação de
nheça a importância da autonomia funcional. Do mesmo modo, u suas próprias necessidades. Do pento de vista da parte, existem pelo
interesse dado ao desenvolvimento do "desvio organizado" e às suas menos três estratégias muito diferentes, que pedem ser adotadas nessa
capacidades de ruptura do sistema testemunha, ainda, que se admite, situação. Uma delas é a estratégia da retração. A parte pode, diga-
tacitamente, o petencial gerador de tensões das partes que gozam de mo-lo, colocar-se por sua conta e risco e resistir a toda e qual-
uma autonomia funcional. quer especialização que lhe faça, de tão avançada, perder a fa-
O fato de que as partes possuam ou se esforcem por manter .,di- culdade de assegurar o serviço de suas próprias necessidades meta-
ferentes graus da citada autonomia não autoriza a presumir que bólicas mínimas. Uma segunda estratégia consiste em dividir seus
todas tenham igual papel a desempenhar como fatores geradores de riscos de tal sorte que suas necessidades possam ser satisfeitas nor-
tensões no sistema. ·Parece razoável supor que as partes de um sl:s- malmente por um certo número de sistemas em que ela se acha
tema social que usufruem a maior autonomia funcional possam mai., comprometida.
facilmente vir a ser a fonte dos desvios organizados e da resistência As duas estratégias, aplicadas com o objetivo de manter a auto-
efetiva aos controles por parte do sistema. nomia funcional de uma parte, apresentam dificuldades e constituem
Se é razoável supor que certas partes de um sistema desempenham uma fonte de tensão para o sistema. A autonomia funcional de um:l
um papel mais importante do que outras, como fonte de tensões nesse parte, qualquer que seja a estratégia empregada, permite-lhe, com
efeito, um certo grau de resistência aos controles impostos pelo sis-
(107) Para o exame, de um ponto de vista filosófico, de alguns dos tema. Pode'7"se citar como exemplo o caso da resistência burocrática
problemas aqui colocados, ver R. B. Winn, "The Nature of Relations ", Philo- às decisões tomadas em escalão superior.
sophical Revi"., 50 (janeiro, 1941), pág,. 20-35.
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, 'Uma fonte particular de tensão vem do comprometimento da parte tema. É aí que se encontra, ainda, uma causa importante de teu--
em sistemas múltiplos. Na medida em que dois sistemas dividem são para o sistema.
entre si uma parte, as leis de um e de outro afetam-lhe o com- Desse ponto de vista, existe uma ambigüichrde inerente ao conflito
portamento. O que significa que não apenas essa parte, desfrutando
autonomia funcional, se mostrará refratária às diretivas do sistema,
entre uma parte e o sistema que a engloba. Tal tensão pode signi'-
como tenderá, também, a oscilar de um para outro e a provocar,. ficar duas coisas opostas: ou 1) que a parte geradora de tensão não
assim, mudanças em ambos. foi ainda controlada pelo sistema geral ou dele ainda não foi ex,
c1uída (mas sê-lo-á, afinal de contas), ou 2) que a parte geradora
Por exemplo, não se trata simplesmente, para o ser humano socia-
lizado, de se mostrar eventualmente refratário ao controle de 'uril
de fricção anuncia uma nova reorganização de todo o sistema. "
sistema social, em razão de sua integração num sistema biológicb, Parece que um sistema pode adotar ao menos três estratégias para
que lhe impõe o comer, O dormir ou o respirar. Mas, achando-.se fazer face às possibilidades de tensões assim provocadas. Uma con'
engajado num sistema biológico, o ser humano está igualmente ex- siste em isolar-se, em retirar suas partes do sistema circunjacente',
posto a um certo número de riscos inerentes à sua condição ter- em excluir as partes que possuem autonomia funcional significativa,
restre: a enfermidade, os ferimentos e a morte. Outros tantos aci- admitindo aquelas sobre que ele pode assegurar um controle bem
dentes estão muito longe de depender inteiramente das leis de qual- rigoroso e recusando dividir as partes com outros sistemas. A exi:"
quer sistema social: produzem-se ao acaso, em relação ao funcion~­ gência de profundos engajamentos no plano profissional, a divisãlJ
mento dos sistemas sociais. Posto que os sistemas em questão PO::i- entre a vida familiar e a vida profissional, a aplicação de progrà-
sam acionar mecanismos próprios para amortecer os efeitos daql~~­ mas altamente seletivos de recrutamento poderiam constituir exem-
.1es acidentes mediante, por exemplo, o "substituto" ou as regras plos dessa estratégia, tal como é praticada por numerosas empresa.;".
prescritas para a sucessão, (108) tais efeitos devem sempre, em cer~a A segunda estratégia é a da expansão: o sistema esforça-se por ane-
medida, determinar uma brusca ruptura do sistema social, ainda que xar outros, que têm partes comuns com ele e, por aí, chega a con-
apenas naquilo em que eles afetam as relações personalizadas esta- trolá-Ias mais de perto. Disso serão igualmente encontrados exemplos
belecidas no seio do sistema. na tendência que certas indústrias modernas manifestam no sentido
Se temos insistido, aqui, sobre a filiação de uma parte a dois de se interessarem pela vida particular de seu pessoal, !lO de pro-
sistemas, um biológico, outro social, poder-se-ia considerar, do mes- curarem saber se as mulheres de seus empregados têm bom caráter
mo modo, o caso em que partes estejam divididas entre dois ou mais e no de resolverem seus problemas de habitação. (109) A terceira es-
sistemas sociais. As partes assim divididas correm mais riscos ,de
tratégia é a do chamado "risco seletivo". Para o sistema, consiste ela
se verem sujeitas a oscilações que tendem ao estouro de um dos
sistemas, ou dos dois. Quanto à análise sociológica, reconheceu ela em obter o máximo de segurança, delegando o cuidado de garantir a
esse fenômeno desde quando se preocupou com a participação e~ satisfação de suas necessidades metabólicas fundamentais a suas estru-
múltiplos papéis em geral e em situações de Hpressões conflituaia,:' turas interiores, que gozam de uma autonomia funcional mínima. Por
em particular. mais incompleta que seja, a exposição das diversas estratégias espe-
Além das estratégias de retração e de divisão dos riscos, existe cificas, por meio das quais sistemas podem responder às tensões, cons-
ainda uma terceira, que uma parte que desfruta autonomia fundo- titui - parece - uma formulação nitidamente mais precisa do que
'nal pode adotar. Pode ela empreender a reorganização do conjunto a proposição que se contenta com afirmar que os sistemas se esfor-
do sistema em meio ao qual evolui com vistas a assegurar melhor çam por "manter suas fronteiras",
satisfação de suas necessidades específicas, a fim de que elas fiquem Ao nível dos sistemas sociais, essas considerações supõem seja feita
mais bem colocadas na escala das prioridades para as quais o novo uma distinção entre as funções centrais e as funções periféricas, (110)
sistema se orienta. Em suma, as partes que gozam da autonomia
funcional podem ter Hinteresses" que favoreçam a mudança do Sls- (109) Um quadro impressionista deste modelo, mas muito vivo, pode ser
encontrado em' W_ H. White, Is Anybody Listeningr (Nova York, Simon &
(108) Sobre o problema da sucessão nos sistemas SOCiaIS, ver A. W. Schuster, Inc., 1952).
Gouldner, Patterns of Industrial Bureaucracy (Glencoe, lU., Free Press, 1954), (110) Para exemplo, ver A. W. Gouldner, Wildecat Strike, Antioch Press,
pág,. 59-104. Ohio, pág, 24,

266 267
entre um pes""al firme e um pessoal duvidosc (ou desleal), (lll) Todavia, dado um sistema cujas partes possuem certo grau de
sendo as fu~ções mais altas confiadas ao pessoal firme. Seria possível autonomia funcional, existe uma terceira solução para fazer face a
também procurar descobrir as tendências das organizações de finali- um estímulo carregado de considerável força d,e ruptura, isto. é, a
dade limitada para se transformarem em "instituições totais", ou, ao desdiferenciação. Equivale a dizer que o sistema pode renunciar iI
contrário, as das instituições totais para se transformarem em organi- manter-se em elevados níveis de integração e permitir a algumas das
zações de finalidade limitada, por meio de diferenciações funcionais, partes que apresentam forte autonomia funcional se reformem em
de especializações e, mais particularmente, devido ao isolamento das um nível inferior de complexidade. Sociologicamente falando, isso
partes. Enfim, estas considerações sobre as estratégias dos sistemas significa que, quando os mecanismos defensivos de um sistema so-
implicam que o sociólogo deve, necessariamente, examinar a política cial complexo não lhe permitem que adapte seus meios de defesa
específica adotada por um sistema social, em suas relações com O~ às ameaças, pode ele desestruturar-se em agrupamentos internos pri-
sistemas que o rodeiam. Pode-se esperar, portanto, que todos os sis- mários e abandonar sua soberania às partes.
temas sociais, e não somente os governos, mas também as famílias, O fenômeno de desdiferenciação indica que a autonomia funcio-
as escolas ou as fábricas, adotem, por sua vez, uma espécie de "po_ naI das partes de um sistema pode conduzir a tensões em seu seio.
lítica estrangeira", tácita ou explícita, que regule suas relações com os Mas pode~ igualmente, fornecer uma base para responder a essas
sistemas sociais que os circundam. (112) ,Pode-se notar, de passagem, tensões. Mais ainda, a autonomia funcional de um sistema social,
que as ameaças, às quais o sistema reage, de diversas maneiras. suscetível de provocar uma desdiferenciação estrutural, pode funcio-
vêm das reações de defesa de suas partes, que desfrutam autonomia nar, além disso, no sentido da manutenção da integridade do sistema
funcional. O que, neste contexto, representa uma ameaça, do ponto cultural. ',Porque este sistema, que representa a herança cumulativa
de vista do sistema, equivale a uma manobra de defesa, do ponto de das crenças e dos conhecimentos, pode manter-se pelo menos em
vista da parte. Inversamente, as defesas que o sistema lhes opõem algumas partes reduzidas, onde uma entidade mais vasta foi desdi-
são, por sua vez, ameaças contra as defesas da parte. (113) Pode-se íerenciada. A fim de que isto seja possível, é sempre necessário,
esperar, por conseguinte, que os esforços empregados para reduzir todavia, que a parte possua mais conhecimentos do que o indispen-
o comportamento, ameaçador, da parte, ou do sistema, vão de encon- sável para O cumprimento de sua função distinta dentro do sistema.
tro a uma forte resistência. Em resumo, não só os esforços para Em duas palavras: não é preciso que a parte seja exageradamente
mudar o sistema, mas também os que visam a mantê-lo, têm todas especializada. Pode-se ver, portanto, segundo uma outra perspectiva~
as probabilidades de acarretar conflitos e suscitar resistências. por que as partes dos sistemas sociais devem beneficiar-se, por parte
do sistema, de certas medidas de autonomia funcional. Esta autono-
mia não constitui, pois, uma fonte de imensas dificuldades para o
Autonomia funcional e desdJferenciação estrutural sistema: pode ela, em última instância, servir de base a uma estra-
tégia de defesa, a saber, a desdiferenciação estrutural.
Na medida em que um sistema compreende partes possuidoras de Certamente, não é de ontem que os sociólogos tomaram consciência
um certo grau de autonomia funcional, contém potencialmente deter- dos processos de desdiferenciação estrutural. Refletindo, todavia, so-
minados tipos de mudanças ou de respostas a tensões que não exis- blie isso, tiveram a tendência para centralizar a atenção, principal-
tiriam sem aquela autonomia. Um sistema que não possuísse alguma mente, sobre o nível de atomização do indivíduo anômico e para
parte com autonomia funcional não teria escolha senão entre dois encarar esse fenômeno como puramente patológico. A existência de
meios de esquivar-se do perigo eventual de violentas rupturas: po· màssas de indivíduos separados, por causas anômicas, de mais vastos
deria, ou dis:;;olver-se, o que significaria sua completa liquidação, sistemas sociais, e que, devido a isso, flutuam à deriva, supõe, com
ou sofrer uma transformação radical. toda a evidência, que tais sistemas experimentam sérias dificuldades
para manter sua integridade. Mas pode-se também considerar uma
(111) Ver A. W. Gouldner, "The problem af loyalty in groups under ta] desdiferenciação anômica. como sendo ~ni d~'sesperado meio, acio-
tension ", Social Problems, 2 de outubro de 1954, págs. 82-87. mido pelo sistema, no esforço de manter-se. COnlO diz Merton, Hum
(112) Cf. K. Mannheim, Man and Society in an Age of Reconstructiem
(Nova York, Rareourt, Brace & Company, Inc., 1941), pág. 245. c"rto grau (desconhecido) de desvio das normas correntes tem, sem
(113) Para um estudo mais aprofundado, ver A. W. Gouldner, ibidem, capo dú-vida, caráter funcional para os objetivos fundamentais de todos
10 e, especialmente, a pág. 171. os grupos. De um certo grau de 'inovação', por exemplo, pode re-

268 269

19 ~T.S.
sultar a formação de novos modelos institucionais de comportamen- tes, no seio dos sistemas SOClaJS, podem ser examinadas, do ponto
tos que apresentam maior faculdade de adaptação do que os antigos,
de vista de s.ua autonomia funcional. Sua observação sistemática" de-
com vistas à realização dos objetivos fundamentais". (114)
veria poder facilitar a análise das tensões e das mudanças que se ma-
A desdiferenciação anômica de um sistema social, por mais gera- "
nifestam no interior do sistema (Traduzido de "Reciprocity and
dora de tensão que possa ser, não é necessariamente um dobrar de Autonomy in Functional Theory", in L. GROSS (ed.), Symposium
~inos anunciando sua total dissolução, mas, antes, o prelúdio indis- on Saciolagical Theory, Nova York, Harper & Row, 1959, págs.
pensável de sua reorganização. Porque a desordem anômica pode dar 150-164).
origem ao fermento inovador, capaz de salvar o sistema da destrui-
ção. (115) Quando, para resolver importante problema, um sistema
esgotou, baldadamente, suas soluções de rotina, atinge aquele ponto
em que a desordem anômica se torna mais funcional que os métodos
habituais ou o manejo regular das velhas estruturas. O indivíduo anô-
mico pode não constituir senão um incontrolável ucâncer social",
mas ser, ao revés disso, um germe de cultura que, por um golpe
de sorte, pode cair 'em terreno fértil. Resumindo, aumentos limitados .
.. , .
de ocorrências devidas ao acaso, sob o efeito da desdiferenciação
estrutural, podem representar a derradeira defesa de sistemas redu-
zidos ao extremo.
Aventou-se uma hipótese de que a importância da especialização
das partes que desfrutam autonomia funcional no seio de um sistema
social era devida ao fato de que elas ajudam a identificar os pontos
de tensão possíveis no interior do sistema e a traçar os limites se-
gundo os quais a desdiferenciação pode produzir-se. Em termos de
papel, conceito fundamental na análise do sistema social, o que no,
parece, portanto, é que a identificação dos papéis, os mais 'e os me-
nos funcionalmente autônomos no interior do sistema, pode servir de
precioso ponto de partida para a análise das tensões dentro de um
sistema. Podem-se qualificar de "cosmopolitas" os papéis que pos-
suem uma autonomia funcional relativamente grande, enquanto os
que possuem somente uma autonomia pequena farão figura, ao con-
trário, de "locais". Tentei, em outro trabalho, analisar certas crises
nos sistemas sociais resultantes de tensões entre os cosmppolitas e os
locais. (116) Entretanto, além dos papéis, outras categorias de par-

(114) R. Merton, Social Theor'Y and Social Structure, Free Press, Glencoe,
1957, pág. 182.
(115) Em seu estudo intitulado Moral Progress, Morris Ginsbe.rg fornece-
·nos explicações de alcance comparável: "Não há razão, parece-me, para que
as pessoas de nossa época sofram um relaxamento de moralidade". Para ele,
uma parte do extravio humano "não é um sinal de apodrecimento, mas, antes,
de fermentação moral". M. Ginsberg, Reason and Unreason in Society (Cam~
bridge, Harvard University Prçss, 1948), págs. 317-318.
(116) A. W. Gouldner, "Cosmopolitans and locais: Toward an analysis of
latent social roles", Admin-istrative S cience Quarterly~ 2 de dezembro de 1957,
págs. 281-306, e março de 1958, págs. 444-480.

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271
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CAPÍTuLO I

A TEORIA GERAL DOS SISTEMAS

TEORIA GERAL DOS SISTEMAS

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LunWIG VON BERTALANFFY

Concepções e pontos de vista similares desen'(olveram-se em di-


versas disciplinas da ciência moderna. Enquanto no passado a ciên-
cia tentava explicar os fenômenos observáveis, reduzindo-os a um
jogo de unidades elementares, estudáveis independentemente umas das
outras, aparecem concepções na ciência contemporânea ligando-se ao
que se pode chamar, assaz vagamente, a "totalidade l1 , a saber: 05
problemas de organização, os fenêmenos que não se reduzem a acon-
tecimentos locais, as interações dinâmicas manifestadas na diferença
de comportamento das partes, quando isoladas ou situadas num con-
junto complexo etc.; em resumo, os "sistemas" de diversas ordens
que não podem ser apreendidos pelo estudo de suas partes, tomada;
isoladamente. Concepções e problemas dessa natureza apareceram em
todas as disciplinas científicas, sem levarem em conta o objeto do
estudo: seres inanimados, organismos vivos, fenômenos sociais. É esta
correspondência que mais surpreende, porque os desenvolvimentos das
diversas ciências foram mutuamente independentes, ignorando uns 03
outros, fundados em fatos diferentes e em filosofias contraditórias.
Isto indica uma mudança geral da atitude e das concepções cientí-
ficas.
Mas não há somente essa similitude dos aspectos em ciências di-
ferentes. Encontramos, freqüentemente, em diversos domínios, leis
idênticas no plano formal, ou isomorfas. Em muitos casos, leis iso-
morfas são válidas para certas classes ou subclasses de "sistemas".
sem levar em consideração a natureza dos seres envolvidos. Parece
existirem leis gerais dos sistemas aplicáveis a todo sistema de um

275

L
certo tipo, independentemente de suas propriedades particulares ou Por exemplo, os sistemas podem ser definido. por famílias de equa-
de seus elementos. ções diferenciais. Se se introduzirem, no sentido habitual do ra-
Tais considerações conduzem ao postulado de uma nova disciplina ciocínio matemático, condições mais precisas, poçler-se-ão encontrar
científica, que chamamos a teoria geral dos sistemas. Seu objetivo é numerosas propriedades importantes dos sistemas em geral e dos
formular princípios válidos para os "sistemas" em geral, independen- casos particulares.
te da natureza dos elementos que os compõem e das relações, das A aproximação matemática utilizada na teoria geral dos sistemas
((forças", que as ligam. não é a única possível, nem m'esmo a mais geral. Existem muitas
A teoria geral dos sistemas é, pois, uma ciência geral daquilo que, aproximações modernas que lhe são ligadas, tais como a teoria da
até hoje, era considerado como um conceito vago, brumoso e semi- informação, a cibernética, a teoria dos jogos, da decisão, das redes,
metafísico, a "totalidade", Na sua forma elaborada, seria uma dis- os modelos stochastiques, a pesquisa operacional, para não citar senão
ciplina lógico-matemática, em si mesma puramente formal, mas com as mais importantes. Entretanto, a utilização das equações diferen-
aplicação às diversas ciências empíricas. Para as ciências que se ciais pela física, pela bíologia e pela economia, e, provavelmente,
ocupam de "conjuntos organizados", ela teria a mesma importância também, pelas ciências do comportamento dá-lhes um acesso prático
que a teoria das probabilidades para as que se ocupam de "aconteci- ao estudo dos sistemas generalizados.
: 'f
mentos aleatórios". Esta última é também uma disciplina matemá- Vou agora ilustrar a teoria geral dos sistemas com alguns exem-
tica formal, com aplicação em domínios muito variados, como a ter- plos.
modinâmica, a experiência biológica e médica, a genética, as estatí3-
ticas de duração da vida para fins de seguro etc.
O que se segue mostra as miras principais da teoria geral dos sis- S.'stemas abertos e fechados: limites da física convencional
temas:
Meu primeiro exemplo é o dos sistemas fechados e abertos. A fí-
I) Tendência geral para uma integração das diversas ciências, sica convencional não trata senão de sistemas fechados, isto é, de
naturais e sociais. sistemas considerados isolados de seu meio-ambiente. Assim, a quí-
2) A integração de que se trata parece estar centralizada sobre mica-física nos falará de reações, de suas taxas e, eventualmente,
uma teoria geral dos sistemas. dos equilíbrios químicos que se estabelecem, isto em um recipiente
3) Esta teoria pode ser um meio importante para atingir uma fechado, contendo certo nÚmero de reagentes. A termodinâmica de-
teoria exata nos domínios científicos não físicos. clara expressamente que suas leis só se aplicam aos sistemas fecha-
4) Desenvolvendo "verticalmente" princípios unificadores através dos. Em particular, o segundo princípio da termodinâmica estabelece
do universo das ciências individuais, a teoria em questão nos apro- que, num sistema fechado, uma certa quantidade chamada entropia
xima do seguinte objetivo: a unidade da ciência. deve crescer até um ponto máximo e que, eventualmente, o pro-
cesso pára num estado de equilíbrio. O segundo princípio pode ser
5) Isto pode conduzir a uma integração muito útil no ensino
formulado de diversas maneiras. Particularmente, a entropia é uma
científico.
medida de probabilidade. Portanto, um sistema fechado propende
Uma observação sobre a delimitação da citada teoria afigura-se, para um estado de distribuição mais provável. Contudo, a distribuição
aqui, útil. A expressão teoria geral dos sistemas e o programa dessa mais provável de uma mistura, digamos de pérolas de vidro, verme-
teoria foram introduzidos pelo autor há um certo nÚmero de anos. lhas ou azuis, ou de moléculas com velocidades diferentes, é um
Torna-se patente, contudo, que um grande punhado de pesquisado- estado em completa desordem. Altamente improvável obter um esta-
res em diversas disciplinas deixou-se conduzir a conclusões e a vias do em que todas as pérolas vermelhas fiquem separadas de um
de aproximação similares. Pode-se sugerir, portanto, a manutenção lado e as azuis de outro; ou ainda ter, num espaço fechado, todas
da denominação referida, que se tornou de utilização corrente, mes- as moléculas rápidas, isto é, uma alta temperatura à direita, assim
mo que só seja como uma 'etiqueta prática. como todas as moléculas lentas, isto é, uma baixa temperatura à
Parece, em primeiro lugar, que a definição dos sistemas como esquerda. Assim, a tendência para uma entropia máxima ou para
"conjuntos de elementos em interação" é tão geral e tão vaga que a distribuição mais provável representa tendência para a maior de-
daí não é possível tirar grande coisa. Isto, contudo, não é certo. sordem.

276 277
Sem embargo, encontram-se sistemas que, por sua própria natu- Não obstante, é possível mostrar que os sistemas abertos, à medida
reza e por sua definição, não são sistemas fechados. Todo organis- que atingem um estado estável, devem apresentar uma eqüifinidade,
mo vivo é essencialmente um sistema aberto. Mantém-se num fluxo de sorte que desapareça a presumida violação das 'Ieis físicas.
de entrada e num fluxo de saída contínuos, uma geração e uma Outro aparente contraste entre a natureza inanimada e a anima-
destruição de componentes. Não conhece, e!1quanto vivo, equilíbrio da é O que algumas vezes se chama a contradição violenta entre a
químico e termodinâmico, mas é mantido no que se chama um estado degradação, de Lord Kelvin, e a evolução, de Darwin, entre a lei de
estável, que disso se distingue totalmente. O processo químico inter- dissipação, em física, e a de evolução, em biologia. De acordo com
no das células é que constitui a própria essência desse fenômeno o segundo princípio da termodinâmica, a tendência geral dos acon-
fundamental da vida chamado metabolismo. Ele o que é dela? Evi- tecimentos, na natureza física, é ir para estados de máxima desordem
dentemente, as formulações convencionais da física não se aplicam, e de nivelamento das diferenças, com o que se chama, como visão
em princípio, ao organismo vivo considerado como um sistema aberto final, a morte calorífica do universo. Toda a energia é partida em
em estado estável. É-nos preciso, além disso, supor que muitas ca- calor de baixa temperatura, regularmente distribuído, e o processo
racterísticas dos sistemas vivos, que se afiguram paradoxais em face do mundo se paralisa. Ao contrário, o mundo vivo mostra, no curso
das leis da física, são desse fato uma conseqüência. Somente de un3 de seu desenvolvimento embrionário e de sua evolução, uma passagem
anos para cá é que a física procura estender-se, para incluir os para ordem mais elevada, uma heterogeneidade maior e mais orga-
sistemas abertos. Esta teoria trouxe luz nOva a numerosos fenôme- nização. Mas, sobre a base da teoria dos sistemas abertos, a contradi-
nos obscuros em física e em biologia, e conduziu a importantes ção aparente entre a entropia e a evolução desaparece.. Em todos os
conclusões gerais. Mencionarei duas apenas. processos irreversíveis, a entropia deve crescer. A variação de
A primeira é o princípio de eqüifinalidade. Num sistema fechado, entropia nos sistemas fechados é, pois, sempre, positiva. A ordem
o estado final é determinado de maneira unívoca pelas condições i:. eo:ntinuamente destruída. Entretanto, nos sistemas abertos, não há
iniciais. Por exemplo, o movimento num sistema planetário, em que somente produção de entropia por processos irreversíveis, mas, tam-
as posições dos planetas no tempo t são determinadas univocamente bém, uma importação de entropia, que pode muito bem Ser negativa.
por suas posições no tempo to. Ou, ainda, num equilíbrio químico: É o caso do organismo vivo que recebe moléculas complexas, car-
as concentrações finais dos reagentes dependem naturalmente das regadas de energia livre. Assim, os sistemas vivos mantidos em
concentrações iniciais. Mudando-se as condições iniciais, ou o pro- estado estável podem evitar o acréscimo de entropia. :Podem, mes-
,
,
cesso, o estado final será também modificado. Assim não acontece mo, evoluir para estados de ordem e de organização acrescidos. A
". nos sistemas abertos. Aqui, o mesmo estado final pode ser atingido partir desses exemplos, adivinha-se o alcance da teoria dos sistemas
a partir de condições iniciais diferentes ou por caminhos diferentes. abertos. Entre outras coisas, vê-se que muitas das presumidas vio-
É o que se deuomina eqüifinalidade. Tem ela uma grande siguifica- lações da lei física pela natureza viva não existem, ou, antes, desa-
ção para os fenômenos de regulação biológica. Aqueles que estão parecem com a generalização da teoria física. Numa versão genera-
familiarizados com a história da biologia se lembrarão de que foi lizada, o conceito de sistema aberto pode aplicar-se em níveis não
justamente a eqüifinalidade que impeliu o biologista alemão Driesch físicos. Por exemplo, em ecologia, na evolução para uma formação
a aderir aO vitalismo, isto é, à doutrina que afirma que os fenôme- de clímax (Whittacker); em psicologia, em que os "sistemas neu-
nos vitais não podem explicar-se em termos de ciência natural. rológicos" são considerados como "sistemas dinâmicos abertos"
Driesch fundava seu argumento em experiências sobre o começo do (Krech); em filosofia, em que a tendência que opõe o ponto de
desenvolvimento dos embriões. O mesmo resultado final, um ouriça- vista Utransacional" aos de "ação individual" ou aos de "ações
do-mar normal, obtém-se a partir de um ovo completo, a partir de interpessoais" corresponde muito bem ao modelo do sistema aberto
cada metade de um ovo cortado, ou a partir do produto obtido pela (Bentley) .
fusão de dois ovos inteiros. Dá-se o mesmo COm os embriões de
muitas outras espécies, inclusive a humana, em que gêmeos verda-
deiros são o produto da divisão de um óvulo. A eqüifinalidade, Informação e .entropia
segundo Driesch, contradiz as leis físicas e não pode ser realizada
senão por um fator vitalista "animista", que governa o processo com Outro desenvolvimento muito prOXlmo da teoria dos sistemas é ')
vistas ao alvo a atingir: o estabelecimento de um organismo pormal. da moderna teoria da comunicação. Tem-se dito, com freqüência,
I

l
278 279
que a energia representava a unidade monetária da física, exatamen- Um segundo conceito central da teoria da comunicação e do con-
te como o dólar ou a libra esterlina exprimem os valores econômi- trole é o da retroação (feedback). Um esquema simples de retroação
cos, Entretanto, em certos ramos da física e da tecnologia, essa é o seguinte (fig. 1). O sistema compreende, inicialment<i, um recep-
moeda não é diretamente aceitável. É o que acoptece no domínio tor ou "órgão sensorial", uma célula fotelétrica, uma tela de radar,
da comunicação, onde o desenvolvimento do telefone, do rádio, dos um termômetro ou um órgão dos sentidos, na acepção biológica do
radares, das máquinas de calcular, dos servomecanismos e de outros termo. A mensagem pode ser uma corrente fraca, para oS aparelhos
engenhos fez surgir um novo ramo da física. técnicos, ou uma condução nervosa, para o organismo vivo etc. Em
seguida, acha-se um centro que interpreta as mensagens e as trans-
A noção geral da teoria da comunicação é a de informação. Em mite a um realizador constituído por uma máquina, como um motor
muitos casos, o fluxo de informação corresponde a um fluxo de elétrico, uma resistência ou um solenóide, ou, ainda, por um músculo.
energia. Por exemplo, as ondas luminosas emitidas por um objeto Este realizador responde à mensagem, de modo que há saída de uma
qualquer atingem o olho ou uma célula fotelétrica, fazem sair uma força de elevada energia. Finalmente, o funcionamento do realizador
reação do organismo, ou de certa máquina, e fornecem, assim, uma ê retransmitido ao receptor, o que torna o sistema auto-regulado, isto
informação. Todavia, podem-se facilmente dar exemplos em que o é, o que garante a estabilidade e a direção da ação.
fluxo de informação é oposto ao de energia, ou, mesmo, em que a
informação é transmitida sem fluxo de energia ou de matéria. O
primeiro é o caso do cabo telegráfico, por onde uma corrente con-
,
Estlmulol
- . Receptor.
I
Mensa.
gem Aparelho
de controle
Mensa-,----,
gem Reali. Resposta
zador
tínua passa num sentido, mas por onde a informação (uma mensa-
gem) pode ser enviada em qualquer das duas direções, interrompendo Retroação
a corrente num ponto e registrando, em outro ponto, a interrupção.
Quanto ao segundo caso, pense-se nas portas automáticas de célula Fig. 1. - Esquema simPles de retroação
fotelétrica instaladas nos supermercados ~ a sombra, a interrupção
da energia luminosa, informa a célula de que alguém quer entrar, Os mecanismos de retroação têm grande emprego na moderna
e a porta se abre. Assim, em geral, a informação não pode expri- tecnologia, para estabilização de certas ações, como nos termostatos
mir-se em termos de energia. ou nos receptores de rádio; ou para dirigir uma ação no sentido
Há, entretanto, outra maneira de medir a informação: em termos de um objetivo, quando o afastamento deste é retransmitido como
de decisão. Tomemos o "jogo das vinte perguntas", com que devemos informação e até que ele, ou o alvo, seja atingido. É o caso dos
achar um objeto, graças às respostas feitas por um simples "sim" mísseis teIecomandados, que procuram seu alvo, dos sistemas de
ou H não" a nOssas perguntas. A quantidade de informação rece- controle de D. C. A., dos lemes automáticos e de tudo aquilo que
bida em cada resposta é a decisão entre os dois ramos de uma alter- chamamos servomecanismos.
nativa: animal, ou não animal, por exemplo. Com duas perguntas Grande número de fenômenos biológicos corresponde, evidentemen-
é possível escolher entre quatro eventualidades. Por exemplo: mamí- te,. ao modelo de retroação. Há, em primeiro lugar, o fenômeno
fero ou não mamífero, planta que dá flores ou planta que não dá chamado homeostase, a manutenção de um equilíbrio no organismo
flores. Com três respostas a decisão fica entre 8 possibilidades etc. vivo, cujo protótipo é a termo-regulação nos animais de sangue
Assim, O logaritmo de base 2 das decisões possíveis pode servir de quente. O esfriamento do sangue estimula certos centros cervicais,
medida da informação, sendo a unidade a chamada unidade binária, que "previnem" os mecanismos que reaquecem o corpo; a tempera-
ou bit. A informação contida em duas respostas é log2 4= 2 bits; tura deste é levada de volta ao centro, de modo que ela se mantém
a contida em 3 respostas é log2 8= 3 bits etc. Acontece que esta em um nível constante. Existem mecanismos homeostáticos seme-
medida da informação é semelhante à da entropia, ou, antes, da lhantes, no corpo, que conservam constante um grande número de
entropia negativa, pois que a entropia é definida como um logaritmo variáveis. físico-químicas. Além disso, sistemas de retroação compa-
de probabilidade. Mas a entropia, como já vimos, mede a desordem; ráveis aos servomecanismos da tecnologia existem no animal e no
donde a entropia negativa ou informação medir a ordem ou a orga- corpo humano e regularizam as ações. Se quisermos pegar de um
nização, já que esta última, comparada COm uma distribuição aleató- lápis, é' dada uma informação ao sistema nervoSO central sobre a
ria, é um estado improvável. distância que, inicialmente, nos fez errar o lugar do lápis; esta infor-

280 281
mação torna a voltar ao sistema nervoso central, de modo que' o tividade, à ordem, à finalidade. O mundo do' organismo aparecia
movimento é controlado, até que o objetivo seja atingido. como um produto arrojado, obtido pelo jogo estúpido das mutações
Dessa forma, muitos sistemas, tanto em tecnologia como na natu- aleatórias e da seleção; o mundo mental, como um epifenômeno
reza viva, seguem o esquema de retroação. Sabe-se que uma nova curioso, 'e assaz pouco conseqüente, dos acontecimentos materiais.
disciplina, chamada cibernética, foi introduzida por N orbert Wiener. O único alvo da ciência era analítico: cisão da realidade em uni-
a fim de estudar esses fenômenos. Semelhante teoria tenta mostrar dades cada vez menores e isolamento das cadeias causais individuais.
que os mecanismos do tipo retroação representam o fundamento do Assim, a realidade física era dividida em pontos dotados de uma
comportamento teleológico ou refletido das máquinas feitas pelo massa ou átomos, o organismo vivo em células, o comportamento
homem, assim como o dos organismos vivos e dos sistemas sociais. em reflexos, a percepção em sensações pontuais etc. Do mesmo mo-
Deveria ocorrer-nos, todavia, que o esquema de retroação é de do, a causalidade era essencialmente de sentido único. Na mecânica
natureza assaz especial. Ele pressupõe um ordenamento estrutural newtoniana, um sol atrai um planeta, um gen, num óvulo fecundado,
do tipo mencionado atrás. Existem, entretanto, muitas regulações no produz este ou aquele caráter hereditário, tal bactéria produz esta
organismo vivo de natureza essencialmente diferente; vale dizer, ou aquela enfermidade, os elementos mentais se acham enfiados pela
aqueles em que a ordem é obtida por uma interação dinâmica dos lei da associação, como as pérolas no fio de um colar. Recorde-se a'
famosa tabela das categorias de Kant, que tenta resumir as noçõe.;
processos. Lembramos, por exemplo, as regulações embrionárias em
fundamentais da ciência clássica: é sintomático que as noções de
que o conjunto é restabelecido, a partir das partes, por processos
interação e de organização não tenham sido senão tapa-buracos ou
eqüifinais. Pode-se mostrar que as regulações primárias dos siste-
não hajam, mesmo, aparecido.
mas orgânicos, isto é, as mais fundamentais, primeiras, tanto no
desenvolvimento embrionário quanto na evolução, têm o tipo de É característico da ciência moderna que o esquema de unidades
interações dinâmicas. Baseiam-se no fato de que o organismo vivo é isoláveis atuante por uma causalidade de sentido único se tenha mos-
um sistema aberto, que se mantém em estado estável, ou dele se trado insuficiente. Donde o aparecimento, em todas as disciplina~
aproxima. Por cima, há regulações que podem ser qualificadas de científicas, de noções como as de totalidade, de organismo, de forma
sec.undárias e que são controladas por meio de arranjos fixos, par- (gesta/I) etc., todas significando, em última instância, que devemos'
ticularmente as do tipo retroação. Esse estado é a conseqüência de pensar 'em termos de sistemas de elementos em mútua interação.
um princípio geral da organização, o qual pode ser chamado meca- Do mesmo modo, as noções de teleologia, de diretividade, parecia
nização progressiva. No começo, os sistemas biológicos, nervosos, estarem fora do campo da ciência, do terreno de operações miste-
psicológicos ou sociais são governados por uma interação dinâmica riosas, sobrenaturais ou antropomórficas; ou, ainda, serem um pseu-
de seus componentes. Ulteriormente, estabelecem-se arranjos fixos e doproblema, intrinsecamente estranho à ciência, uma simples pro-
coerções, que tornam mais eficazes o sistema e as suas partes, mas jeção deslocada do espírito do observador numa natureza governada
que diminuem, gradualmente, abolindo, mesmo, às vezes, sua eqüi- por leis inúteis. Não obstante, esses aspectos existem, e não se pode
potencialidade. Assim, a dinâmica é o aspecto mais amplo, uma vez conceber um organismo vivo e, ainda mais, o comportamento ou as
que podemos sempre chegar a funções mecânicas a partir das leis sociedades humanas, sem levar em conta o que se chama, diversa-
gerais dos sistemas e introduzindo as coerções apropriadas. O inver- mente e assaz vagamente, a adaptação, a 'existência de um alvo, a,
so, porém, é impossível. procura de um alvo etc.
O que caracteriza o ponto de vista atual é a tomada desses aspec-
tos, como legítimos problemas científicos, em séria consideração.
Causalidade e teleologia Além do mais, podem-se indicar modelos simuladores de um tal
comportamento. Já citamos dois desses modelos. Um deles é a eqüi-
Outro ponto que eu gostaria de mencionar é o que se refere à finalidade, tendência para um estado final característico, a partir de
evolução da imagem científica do mundo no curso dos últimos decê- diferentes estados iniciais e por diversas vias, fundada sobre a ipte··
nios. Na visão mecanista do mundo nascido da física clássica do ração dinâmica num sistema aberto, que atinge um estado estável.
século XIX, O jogo sem alvo d(J.s átomos governados pelas leis O segundo é a retroação, conservação uomeostática de um estado
inexonvei.s da causa\ida<le é liue !lro<lu~ia too.os os I.enômenos <lo característico ou l>rocura <le um alvo, í.un<la<las em cao.eias causais
mut\.llo i.nan.ima<lo, vi.vo e mental. Nenuum lugar era <leixado à <lire- circulares e em mecanismos que reexl>edem a iníormação sobre os

282 283
desvios, a partir do estado a manter ou do alvo a atingir. Um terceiro As noções de totalidade, de crescimento, de diferenciação, de
modelo de comportamento adaptativo, "um modelo para um cérebro", ordem hierárquica, de dominação, de comando, de competição etc.
foi desenvolvido por Ashby. Diga-se de passagem que ele partiu para são características da organização, quer se trate da de um ser vivo,
um sistema geral das mesmas definições e equações matemáticas que quer da de uma sociedade. Estas noções não aparecem na física
utilizei. Desenvolvemos nossos sistemas independentemente e seguin~ convencional. A teoria dos sistemas pode ter bom êxito no campo
do linhas de interesse diferentes. Chegamos a teoremas e a conclu- dessas matérias. É possível definir tais noções no interior do mode-
sões diferentes. O modelo de adaptação de Ashby é, por alto, o de 10. matemático de um sistema. Além do mais, podem-se, em certo,;
funções que definem um sistema, isto é, de funções que, após exce- casos, desenvolver teorias pormenorizadas, inferindo, a partir das
derem um certo valor crítico, saltam para uma nova família de hipóteses gerais, casos particulares. Bom exemplo é fornecido pela
equações diferenciais. Isto significa que, depois deste valor crítico, teoria dos equilíbrios biológicos, das flutuações cíclicas etc., come-
o sistema adota um outro tipo de comportamento adaptativo, gra- çada por Lotka, Volterra, Gause e outros. Pensar-se-á, certamente,
ças àquilo que o biólogo chamaria de ensaios e erros: ele tenta que a teoria biológica de Volterra e a teoria da economia quantitati·
diferentes caminhos e diferentes meios e instala-se, eventualmente, ~a são isomorfas sob muitos aspectos.
em um domínio onde já não se acha em conflito com valores crí- Entretanto, muitos dos aspectos das organizações não se pres- "-
.'
ticos do meio-ambiente. Um tal sistema, que se adapta por meio de tam facilmente à interpretação quantitativa. Encontra-se tal difi"
tentativas e de erros, foi construído por Ashby sob a forma de má- culdade, já, em ciências naturais. Assim, a teoria dos equilíbrios
quina eletromagnética, chamada homeostato. biológicos ou a da seleção natural são domínios altamente desenvol-
Não vou discutir os méritos e os erros desses modelos de cOm- vidos da biologia matemática. Ninguém duvida que elas sejam
portamento teleológico, ou dirigido. É contudo necessário insistir no legítimas, em grande parte corretas, e que desempenham importante
fato de que o comportamento teleológico dirigido para um estado papel na teoria da evolução ou na ecologia. Todavia, é difícil apli-
final característico, ou alvo, não representa uma coisa situada fora cá-las em campo, porque os parâmetros escolhidos, COmo o valor
dos limites das ciências naturais ou má concepção antropomórfica seletivo, a taxa de destruição e de geração etc. não podem medir-se
de processos, em si mesmos não dirigidos ou acidentais. Ao revés, facilmente. Devemos, pois, contentar-nos com uma "explicação de
representa uma forma de comportamento que pode muito bem defi- princípio", com um argumento qualitativo, que pode, todavia, ter
nir-se em termos científicos e para a qual se podem precisar as con- conseqüências interessantes.
dições necessárias e os mecanismos possíveis.
Como exemplo de aplicação da teoria geral dos sistemas à socie-
dade humana, citemos um livro recente de Boulding, intitulado A
Revolução Organizacional. O autor parte de um modelo geral de
Que é organização? organização e enuncia o que chama as leis de bronze, válidas para
todas as organizações. Exemplo de leis de bronze: a lei de Malthus,
Considerações da mesma ordem aplicam-se ao conceito de orga- enunciadora de que o aumento das populações é geralmente maior
nização. Ela também era estranha ao mundo mecanista. O problema do que o dos recursos. Existe então uma lei· referente ao tamanho
não aparecia em física clássica, em mecânica, em eletrodinâmica etc. ótimo das organizações: quanto mais uma organização cresce, mais
Ainda há mais: o segundo princípio da termodinâmica indicava como distantes ficam as comunicações, o que, em função da natureza das
tendência geral dos acontecimentos uma destruição da ordem. É ver- organizações, age como um fator limitativo, que interdiz à organi-
dade que o mesmo não acontece mais na física moderna. Um átomo, zação crescer além de um tamanho crítico. Segnndo a lei de instabi-
um cristal ou uma molécula são organizações, como Whitehead não lidade, muitas organizações não estão em equilíbrio estável, mas
deixava jamais de notar. Em biologia, são os organismos, por defini- experimentam flutuações cíclicas, que resultam das interações de sub-
ção, objetos organizados. Mas, ainda que tenhamos uma enorme sistemas. Diga-se de passagem: isto poderia provalmente ser tra-
quantidade de dados sobre a organização biológica, da bioquímica tado no contexto da teoria de Volterra. A chamada primeira lei de
à citologia, da histologia à anatomia, não existe nenhuma teoria daque- Volterra descreve, COm efeito, os ciclos periódicos das populações
la organização, isto é, nenhum modelo que permita explicar os fatos formadas de duas espécies, uma das quais vive à custa da outra.
empíricos. A importante lei dos oligopólios afirma que, havendo organizações

284 285

20-T.S.
em competição a instabilidade de suas relações e portanto, o perigo
l l sarnentos, sistemas de leis, os sistemas solares, oS sistemás orgamcos,
de atritos e de conflitos variam no sentido inverso do do número sistemas de gestão, sistemas de comando e de controle, sistemas
das mesmas organizações. Assim, enquanto forem bastante pequenas eletrônicos etc. Os sentidos do conceito de sistemas são muitas vezes
e bastante numerosas, podem coexistir. Mas, quando ficam só algu- confusos. O sentido mais geral, entretanto, é este: um conjunto de
mas ou mesmo duas em competição, como é, atualmente, o caso dos unidades ligadas entre si (Bertalanffy). A palavra "conjunto" suge-
blocos políticos colossais, os conflitos podem tornar-se devastadores
re que as unidades possuem caracteres comuns. A natureza de cada
até à destruição mútua. Pode-se facilmente ampliar o número desses
teoremas referentes às organizações. É possível desenvolvê-los bem unidade é condicionada e determinada pelo estado das outras unida-
sob forma matemática, o que, aliás, já foi feito por certos indivíduos. des. As unidades são acopladas. Além disso, pelo menos de certo
modo, o conjunto dessas unidades ultrapassa a simples adição das
mesmas.
A teoria geral dos sistemas
e a unidade da ciência
I . 1. O sistema conceptual
Permita-se-me terminar com alguns reparos sobre as implicações . f
gerais de uma teoria interdisciplinar. 1 . 1 . 1 . As unidades. - As unidades de um sistema conceptual
O papel integrante da teoria geral dos sistemas pode, sem dúvida, são termos semelhantes às palavras (substantivos comuns, prono·
resumir-se assim. Durante muito tempo, foi a unificação da ciência mes e seus modificadores), aos números e aos outros símbolos,
considerada como a redução de todas as ciências à física, como a inclusive os utilizados nas simulações e nos programas de ordena-
resolução última de todos os fenômenos em acontecimentos físicos. dores.
Segundo nosso ponto de vista, a unidade da ciência vem a ser mais
realista. Podemos basear nossa concepção unitária do mundo, não na 1. 1. 2. As relações. - As relações são expressas por palavras
esperança, talvez fútil e, certamente, ultrapassada, de reduzir, em (verbos comuns e seus modificadores), ou por símbolos lógicos ou
última instância, todos OS níveis da realidade ao nível da física, mas, matemáticos - inclusive os utilizados nas simulações e nos progra-
antes, nos isomorfismos existentes entre os diversos domínios. Para mas de ordena dores - que representam operações coma a inclusão,
falar segundo o chamado modo "formal", isto é, dirigindo a atenção a exclusão, a identidade, a implicação, a eqüivalência, a soma, a
para as construções conceptuais da ciência, esses isomorfismos sig- subtração, a multiplicação, a divisão e muitas outras. A linguagem,
nificam uniformidade estrutural dos esquemas que aplicamos. Em os símbolos ou os programas de ordenadores são todos conceitos e
linguagem "material", isto quer dizer que o mundo, ou seja, o con- existem, sempre, no interior de um ou de vários sistemas concretos.
junto dos acontecimentos observáveis, apresenta uniformidades estru- vivos ou não.
turais que se manifestam nos diversos níveis, ou nas diversas disci- 1.1.3. O observador. - O observador, para seus fins particula-
plinas, por traços de ordem isomorfos (Excerto de LUDWIG VON res e na base de suas características também particulares, escolhe,
BERTALANFFY, Théori.e génerale des sistemes, Paris, Dunod, 1973, por entre um número infinito de unidades e de relações, um con-
págs. 35-47). junto determinado.
1.1.4. A variável. - Cada membro desse conjunto se torna
uma variável do seu sistema conceptual. O observador pode escolher
as variáveis de um número infinito de unidades e de relações que
O CONCEITO DE SISTEMA existem em todo sistema concreto, ou um conjunto de sistemas con·
eretos, ou, por outro lado, escolher variáveis sem relação com qual-
JAMES MILLER quer sistema concreto (117). Seu sistema conceptual pode ser lasso
ou preciso, simples ou elaborado.

o termo siste'J1Ul possui um certo número de sentidos. Encontram- (117) Ver W. R. Ashby, DeStgn for a Brain, Nova York, Wiley, 1960,
Se sistemas de números e de equações, sistemas de valores e de pen- pág. 16.

286 287

L
1.1. 5. A função. - Uma correspondência entre duas variáveis zada de maneira não aferida em subsistemas ou componentes ligados
tais que o valor de uma delas dependa do valor da outra e determi- e agindo entre si.
nada. assim, por algumas regras ou relações (por exemplo, mais,
multiplicada pOr n, maior do que a) é uma função. Isto representa 1. 2.1. As unidades. - As unidades (subsistemas, componentes,
partes ou números) desses sistemas são igualmente sistemas con-
um sistema conceptual simples. Sistemas que tais podem ser muito
cretos (118).
complexos e implicados de numerosas funções ligadas entre si. Este
sentido do termo função é habitualmente utilizado em matemáticas. 1. 2 .2. As relações. - As relações nos sistemas concretos podem
Num sistema concreto, a palavra possui significação diferente. ser múltiplas; por exemplo, de caráter espacial, temporal, espaço··
1.1.6. O estado de um sistema conceptual. - Este estado é o temporal ou causal.
conjunto de valores, medidos em certa escala, numérica ou outra, As unidades, como as relações, podem ser determinadas mediante
que suas variáveis têm, num momento dado. Pode ele mudar 011 uma operação realizada por um observador. Nas declarações teóri·
não, no tempo. cas a propósito dos sistemas concretos, os nomes, os pronomes e
1.1.7. A identidade formal. - Um sistema dado pode possuir seus modificadores referem-se, de maneira geral, a sistemas concre-
uma ou mais variáveis. Estas podem variar de maneira comparável tos, a subsistemas ou a componentes; os verbos e seus modificado-
a uma variável em outro sistema. Se tais variações comparáveis res referem-se, habitualmente, às relações que entretêm entre si.
forem tão semelhantes· que não possam ser expressadas pela mesma
função, uma identidade formal ou isomorfismo existirá entre os dois I. 2.3. O observador de um sistema concreto. - O observador
sistemas. Se funções diferentes precisarem ser utilizadas para expri- distingue um sistema concreto de entidades não organizadas com
mir as variações, não haverá identidade formal. auxílio dos seguintes critérios: a) a proximidade física de suas
1.1.8. As relações entre os sistemas conceptuais e os outros sis- unidades; b) a similaridade de suas unidades; c) o destino comum
temas. - Um sistema conceptual pode ser puramente lógico ou de suas unidades; e d) a estrutura distinta ou reconhecível de suas
matemático; seus termos e suas relações podem ser destinados a ter unidades. As suas fronteiras são antes descobertas por operações
uma como identidade formal ou isomorfismo com unidades e rela- empíricas acessíveis à vasta comunidade científica do que estabeleci-
ções que um observador é capaz de determinar de maneira empírica das de modo conceptual por um só observador.
por uma operação dada. O observador escolhe as variáveis de se 1 1
1.2.4. A variável de um sistema concreto. - Toda propriedade
sistema conceptual. Quanto às numerosas outras variáveis dos sis- de uma unidade ou de uma relação em um sistema e que pode ser
temas concretos ou abstratos, que não selecionou, ele pode, ou a) reconhecida por um observador, que pode modificar-se com o tempo
notar que elas permanecem constantes, ou b) agir sobre o sistema e cuja mudança é passível de mensuração por via de operações espe-
concreto ou abstrato, para assegurar-se de que permanecem cons- cíficas, constitui uma variável num sistema concreto. O número dos
tantes, ou c) supor, sem prova, que permanecem constantes, ou subsistemas de um sistema concreto ou o de seuS componentes, seu
d) simplesmente negligenciá-las. tamanho, a mudança de sua posição nO espaço, sua taxa de cresci-
A ciência progride à medida que a identidade formal ou o isomor- mento, o número de informações que ele pode assimilar por segundo
fismo se desenvolve entre um sistema conceptual teórico e as desco- ou a intensidade de um som a que ele reage são exemplos disso.
bertas objetivas realizadas a propósito dos sistemas concretos ou
abstratos. I. 2.5. O estado de um sistema concreto. ~ O estado de um
O objetivo principal deste artigo é estabelecer, aqui, um sistema sistema concreto em um dado momento é representado por uma série
conceptual a partir das variáveis - unidades e relações - que pos- de valores que medem, segundo uma escala qualquer, suas diferen-
suem importantes identidades formais ou isomorfas, com relação a tes' variáveis. Este estado evolui sempre no tempo.
sistemas concretos e vivos. 1. 2.6. O sistema aberto. - A maioria dos sistemas concretos
têm fronteiras permeáveis, ao menos parcialmente; elas permitem
a diferentes categorias de matéria-energia ou de informação pene-
1. 2. O sistema concreto trar no sistema. Tal sistema é um sistema aberto . .Nos sistemas aber-
I

Um sistema concreto OU real é uma acumulação não aferida de (118) A. Hall e R. Fagen, "Definition of System ", Yearb. Soco gtn. Sys.
matéria-energia, em uma região, em um esoacp-tempo físico, organi- Res., 1956, pág. 18.
I

288 I
,
289

L
tos, a entropia pode aumentar, permanecer no mesm·o estádio,- ou o programa original de que lhes provêm a estrutura e o processo,
decrescer. desde a sua origem.
1.2.7. O sistema fecluulo. - Um sistema com fronteiras imper- e) São compostos, em grande parte, de protoplasma (contendo
meáveis, através das quais nenhuma transmissão de matéria-energia água e proteínas) e de seus derivados.
ou de qualquer informação pode efetuar-se, é um sistema fecluuJo: f) Contêm um decisor: é o subsistema essencial crítico que C011-
neste caso, as entradas e as saídas são nulas. Nenhum sistema con- trola inteiramente o sistema e faz que os subsistemas e os compo~
creto verdadeiro pode ser completamente fechado: por conseguinte. nentes ajam conjuntamente; sem ele não pode haver sistema.
todos os sistemas concretos são relativamente abertos ou relativa-
g) Contêm igualmente certos outros subsistemas específicos crí-
mente fechados. Nos sistemas fechados, a entropia geralmente
ticos ou mantêm relações simbióticas ou parasíticas com outros siste-
aumenta: produzem-se às vezes exceções, no momento em que se
mas vivos ou não vivos, que realizam os processos, que lhes faltam,
formam certos processos reversíveis. A entropia não decresce nunca.
de todo sistema.
Seja qual for a quantidade de matéria-energia que um sistema
contém. ela não se modificará mais e o sistema se desintegrará pouco h) Estes subsistemas são integrados a fim de formar sistema'3
a pouco. Um corpo contido em um cofre hermeticamente fechado unitários ativos e auto-reguladores, que se desenvolvem, reprodu-
desintegra-se, por exemplo, lentamente, e as moléculas que o com- zem, para preencher certas finalidades.
põem se misturam. Do mesmo modo, camadas distintas de líquidos Os sistemas vivos não podem existir senão em determinado meio-
Ou de gases situadas em um continente evoluem para uma distri- ambiente. Qualquer mudança nas seguintes variáveis de seu
buição ao acaso. A gravidade pode, todavia, impedir completamente ·meio-ambiente - a temperatura, a pressão do ar, a proporção de
uma distribuição ao acaso. oxigênio na atmosfera ou a intensidade da radiação - desencadeia
1.2.8. O sistema não vivo. - Todo sistema concreto que não tensões a que eles não se podem ajustar. Só podem, pois, morrer.
possui as características de um sistema vivo é um sistem.a não vimo,
Os sistemas vivos não são senão um caso particular dos não vivos.
1 .3. O sistema abstrato
Não é necesário para os sistemas não vivos terem os mesmos subsis-
temas críticos dos sistemas vivos, embora às vezes possuam alguns.
1. 3.1. As unidades. - As unidades dos sistemas abstratos são
1 .2.9. O sistema vivo. - Os sistemas vivos constituem um sub- relações abstratas ou escolhidas por um observador à luz de seus
conjunto particular do conjunto geral de todos os sistemas concretos interesses, de seu ponto de vista teórico ou de seu pendor filosó-
possíveis, composto de plantas e de animais. Todos possuem aS fico. Algumas dessas relações podem ser determinadas empirica-
seguintes características: mente, com ajuda de uma operação realizada pelo observador, mas
a) São sistemas abertos. outras não o podem, porque são somente conceitos.
b) Mantêm um estado habitual de negentropia, mesmo quando 1. 3.2. As relações. - As relações atrás mencionadas estão em
intervêm mudanças entrópicas em seu interior, como intervêm em interação em sistemas concretos habitualmente vivos. Num sentido,
outra parte. Chegam a este estado assimilando (inputs) elementos esses sistemas concretos são, por conseguinte, as relações dos sis-
de matéria-energia, que possuem uma organização mais complexa e temas abstratos. Os usos verbais dos enunciados teóricos, a propósito
uma entropia negativa mais pobre em entropia do que os que eles dos sistemas abstratos, são muitas vezes o inverso dos que respei-
rejeitam (outputs). ,Podem, assim, recuperar sua própria energia tam aos sistemas concretos. Os substantivos e seus modificadores se
e reparar os danos de sua própria organização. referem especificamente às relações, ao passo que os verbos e res-
pectivos modificadores (inclusive os predicados), aos sistemas con-
c) São sistemas assaz complexos. cretos em que agem aquelas relações, umas em função das outras.
d) Contêm matéria genética composta de ácido desoxirribonu- Os sistemas concretos podem ser determinados empiricamente pelo
cléico, que, provavelmente, provém do ADN, encontrado em toda observador. Em falando de um sistema concreto, dir-se-ia: uLincoln
forma de vida. Podem também ter uma lei. Uma ou outra constitui foi presidente". Ao revés, se a gente se referir a um sistema abstrato,

290 291
acentuará as relações e os papéis e dirá, provavelmente: H A Presi- B
dência foi ocupada por Lincoln". '
Um sistema abstrato difere de uma abstração, porque ela é um
conceito (como os que formam os sistemas conceptuais), que repre-
senta uma categoria de fenômenos capazes, todos, de ser considera-
dos como tendo alguma característica semelhante. Os membros -de
uma tal categoria não parece acharem-se em interação, como Se acham
as rehções rlp 11m siste-m<l :::!bstrato. A D c
Os sistemas abstratos são encontrados mais freqüentemente nas Fig. 1. - Um modelo euclidiano
ciências sociais do que nas ciências naturais. Como habitualmente
esses sistemas são antes orientados para as relações do que para os correspondia a nenhuma fronteira real no espaço. O triângulo ABD
sistemas concretos possuidores de relações, a ênfase não é costumei- era indicado como sendo congruente com o triângulo CBD e, portan-
ramente posta nos arranjos espaciais. Por conseqüência, os limite,; to, o ângulo BAD era igual ao BCD. Atingida a prova, a linha
físicos freqüentemente não coincidem no espaço, ainda que possam pontilhada podia ser apagada, pois que não correspondia ao real e : '{
fazê-lo, com as fronteiras de um sistema concreto. não era útil senão à elaboração da prova. Tais linhas de construção,
Parsons tentou desenvolver uma teoria geral do comportamento, que representam relações entre as linhas reais, eram utilizadas para
utilizando os sistemas abstratos (119). Para ele, o sistema é abstrato criar as primeiras formas dos sistemas abstratos.
porque representa o conjunto de relações que constitui a forma de Se os diversos domínios da ciência devessem ser unificados, seria
organização. A seu ver, as unidades importantes são classes de rela- um grande progresso se todas as disciplinas estivessem orientadas
ções de inputs e de outputs, antes de subsistemas que os próprios para os sistemas concretos, ou para os abstratos. Mais ainda: é
subsistemas. essencial para a ciência poder distingui-los claramente. Utilizar na
teoria os dois gêneros de sistema conduziria a problemas inúteis.
Seria preferível que um ou outro dos dois tipos de sistema fosse
1.4. Os sistemas abstratos em oposição utilizado, de maneira geral, por todas as disciplinas. As tradições
aos sistemas concretos do passado não são suficiente escusa para se continuar a utilizar 05
dois. Já que se pode conceber uma relação entre um sistema concreto
Uma distinção fundamental entre os sistemas abstratos e os- con- e um outro, sistemas abstratos sem correspondência alguma com 3.
cretos é que as fronteiras dos abstratos podem às vezes ser estabe- realidade podem ser, igualmente, concebidos. A ciência afirma, fre-
lecidas conceptualmente, em regiões que atravessam as unidades e qüentemente, a existência de tais sistemas, quando com freqüência
às relações do espaço físico ocupado por sistemas concretos, ao pas- estudos empíricos demonstram que eles não existem.
so que as fronteiras destes últimos se encontram sempre em regiões A partir dessa confusão entre sistemas abstratos e concretos, afir~
que compreendem todas as uuidades e relações internas de cada sis- mau-Se que o conceito de sistema é vazio logicamente, porque pode
tema. aplicar-se a qualquer objeto. Que é que não é um sistema concreto?
Uma ciência dos sistemas abstratos é certamente possível e,' em Todo conjunto de subsistemas ou de componentes no espaço-tempo
certas condições, poderia, mesmo, ser útil. No momento em que Eütli- que não se acham em interação, que não têm relações em função
des desenvolvia sua geometria, com suas aplicações práticas a pro- das variáveis consideradas, não é um sistema concreto. Meu cora-
pósito da disposição da propriedade fundiária egípcia, as linhas cheias ção e seu estômago, juntos, não são Um sistema concreto. Todos os
de seus esquemas representavam, originalmente, as fronteiras daque- mineiros do País de Gales não formavam um sistema concreto, antes
las propriedades ou daqueles objetos. Por vezes, como na figura I, de se terem organizado num sindicato, que lhes permitisse agir con-
ele utilizava linhas de construção pontilhadas, para facilitar a con- juntamente.
ceptualização de uma prova geométrica. A linha pontilhada não Quando se utilizam os sistemas abstratos, é essencial distingui-las-
das abstrações. É a "cultura" uma abstração que congrega todos
'(119) T. Parsons e E. Shils, Toward a General Theory of Action, Cam- os elementos de informação correntes e armazenados que certos indi ..
bridge j Harvard University Press, 1951. víduüs, membros de um grupo, de uma organização ou de uma socie-

292 293

,
dade, tais como os revelam as similaridades do comportamento habi- e políticos eram estudados com ajuda de um modél o matemático
tual ou das criações - objetos de arte, linguagem ou escritos (120) geral de redes de retroações limitativas das tendências para o desvio.
- partilham em comum? Ou então o termo "cultura" implica inte- Preocupando-se sobretudo com a maneira como as relações causais
rações entre os elementos de informação e representa, assim, um mútuas limitavam os desvios, os cibemeticistas tinham tendência pàra
sistema abstrato? Termos como esse podem ser úteis na ciência do silenciar sobre os sistemas em que os efeitos causais mútuos sã.)
comportamento, para se referirem às coisas comuns às pessoas ou amplificadores de desvio. Tais sistemas são onipresentes: acumulação
às características de uma só pessoa, mas devem ser empregados sem de capital na indústria, evolução dos organismos vivos, surto de
ambigüidade, quer como abstração, quer como sistema abstrato. culturas de tipos diversos, relações interprofissionais produtoras de
enfermidades da mente, conflitos internacionais, assim como os pro-
cessos designados, de forma imprecisa, com o nome de H círculos vicio-
1. 5. Os sistemas abstratos opostos sos". Resumindo: todos os processos de relações causais mútuas. que
aos sistemas conceptuais amplificam um impulso inicial insignificante, ou acidental, estabe-
lecem um desvio e afastam-se da condição· inicial.
Em razão da escolha feita pelos observadores científicos, pelos Em contraste com o progresso no estudo dos sistemas que lhes ~ 'f
teoricistas e/ou os empiristas de algumas das relações dos sistemas mantêm o equilíbrio, os sistemas amplificadores de desvios não têm
abstratos, pode-se dar o caso de qne semelhantes sistemas sejam sido tão estudados pelos matemáticos, de um lado, nem suscitado
muitas vezes confundidos com oS sistemas conceptuais, uma vez que tantas aplicações práticas por parte dos geneticistas, ecologistas, polí-
tanto as unidades como as relações destes últimos sistemas são igual-
ticos e psicoterapeutas, de outro lado.
mente escolhidas. As duas categorias de sistemas diferem, todavia,
porque certas unidades elou relações podem ser determinadas empi- Os ,sistemas causais mútuos eliminadores de desvio e os sistemas
ricamente nos sistemas abstratos, o que não é o caso nos con- causais mútuos amplificadores de desvio podem aparecer como tipos
ceptuais. de sistemas opostos. Mas eles têm em comum uma característica
Assim, OS três sentidos da palavra "sistema" são todos úteis à essencial: são todos sistemas causais mútuos, valendo dizer que cada
ciência, mas, enquanto não estiverem realmente diferenciados, daí elemento situado no interior de um sistema influencia todos os outros,
resultará, com freqüência, uma confusão (Traduzido de JAMES simultaneamente ou de maneira alternada. A diferença entre os dois
MILLER, "Living Systems: Basic Concepts", Behavioral Sciences, tipos de sistemas é que o sistema eliminador de desvio tem efeitos
julho, 1965, págs. 200-209). de retroação negativos mútuos entre os elementos que' o compõem,
ao passo que o sistema amplificador de desvio tem efeitos de retroação
mútuos positivos entre esses mesmos elementos.
Visto que os dois tipos de sistemas são ~istemas de relações cau-
A SEGUNDA CIBERNÉTICA: UM PROCESSO sais mútuas, ou, por outras palavras, sistemas de retroações mútuas,
CAUSAL MúTUO AMPLIFICADOR DE DESVIO ambos pertencem ao domínio da cibernética. Mas, já que o tipo
eliminador de desvio foi, até aqui, estudado, sobretudo, sob o nome
de cibernética, chamemo-lo pelo de primeira cibernética e denomi-
MAOOROH MARUYAMA nemos segunda cibernética a rede de relações causais mútuas ampli-
ficadoras de desvio. O processo causal mútuo, eliminador de .desvio,
é também chamado "morfostase", enquanto. o processo causal mútuo,
Desde suas origens que a cibernética era mais ou menos conside- amplificador de desvio, recebe o nome de "morfogênese".
derada como uma ciência dos sistemas que se auto-regulam e equili- Aiuda que a segunda cibernética se ache em retração em face do
bram. Os termostatos, a regulação fisiológica da temperatura do atual desenvolvimento da. primeira cibernética, o aparecimento do
corpo, os processos de direção automática, os fenômenos econômico!; conceito de processo causal mútuo, amplificador de desvio, não é
inteÍramente novo. Foi esse conce!to formulado em algumas disci-
(120) A. Kroeber e C. Kluckhohn, Culture, Nova York, Vintagc Books, plinas, antes, mesmo, dos primórdios da cibernética, e sua utilização
1952, pág. 157. revelou-se frutuosa. A economia é disso um bom exemplo.

294 295

1
Durante numerosos anos, os economistas proclamaram ser inútil Uma vez que a economia foi orientada em boa direção e com efi-
tentar elevar o nível de vida da classe menos favorecida. Porque, ciente impulso inicial, os efeitos de retroação positivos mútuós,'
diziam, se a renda da população formadora dessa classe aumentasse, amplificadores de desvio, tornam o processo definitivo: o desenvol-
nasceriam mais filhos e, assim, se reduziria o nível de vida de saíd::..; vimento que daí resultará terá uma importância fora de proporção,
os pobres continuando pobres, e os ricos, ricos. Isto era um modelo comparada com o impulso inicial.
morfostático de eliminação de desvios mútuos entre a renda e o Encontramos este mesmo princípio de uma rede de relações cau-
número de filhos. O referido modelo teórico levava os governantes sais mútuas, amplificadora de desvio, em ação em outros numerosos
a uma política de não-intervenção. De um lado, pensava-se também acontecimentos naturais, como, por exemplo, na resistência das ro-
que "quanto mais importante o capital, tanto mais elevada a taxa chas. Uma ligeira fenda em uma rocha recolhe água: esta congela-se
de seu crescimento". Em outros termos: os pobres ficavam cada vez e aumenta a fenda. Uma fenda maior recolhe mais água, alargando-a
mais pobres; e os ricos, cada vez mais ricos. Aí estava um modelo ainda mais. O desenvolvimento de uma cidade em uma planície
morfogenético de processo amplificador de desvio. agrícola pode, também, ser compreendido com auxílio do mesmo
Posteriormente, J. Tinbergen e H. Wold trouxeram mais preci- princípio. Originariamente, uma grande planície é toda homogênea
são e mais refinamento matemático à teoria do processo causal mút:uo quanto às suas potencialidades, no que diz respeito à agricultura. Um
na análise econômica. Mais recentemente, G. Myrdal sublinhou o acaso qualquer faz que um explorador ambicioso construa uma fa-
fato de que, quando, nos países economicamente muito desenvolvidos, zenda em determinado lugar da planície. Isto constitui o impulso
as desigualdades regionais, sociais e hierárquicas no nível econômi- inicial. Vários fazendeiros seguem o exemplo do explorador e diver-
co tendem a descrever, nos países economicamente subdesenvolvidos sas fazendas são 'Construídas. Um dentre eles abre uma lojinha de
aumentam as desigualdades entre os pobres e os ricos. Numa socie- ferramentas, que, em seguida, se torna lugar de encontro dos fazen-
dade economicamente muito desenvolvida, os projetos concernente3 deiros. Uma mercearia é aberta ao lado da lojinha de ferramentas.
aos transportes, aos meios de comunicação, à educação, aos sistemas Pouco a pouco, surge uma aldeia. Esta facilita a comercialização
de seguro e ao bem-estar nivelam as condições de vida em toda a dos produtos agrícolas e numerosas fazendas prosperam, assim, em
sociedade. Numa sociedade economicamente subdesenvolvida, ao con- redor da aldeia. O aumento da atividade agrícola faz que seja neces-
trário, em razão da política de não-intervenção e do livre jogo dos sário o desenvolvimento da indústria na aldeia, e esta se transforma
mecanismos do mercado, as poucas categorias privilegiadas acumu- em cidade.
lam riqueza e poder, enquanto o nível de vida dos pobres tende a É um processo, esse, muito corrente. Mas de tal processo decor-
baixar. Um baixo nível de vida, poucas riquezas e pouca eficiência rem algumas importantes conseqüências técnicas. O ponto da planí-
no trabalho têm repercussão entre si. A discriminação racial ou so- cie a partir do qual se estende a cidade depende do lugar onde, aci-
cial, como outros fatores sociais, psicológicos e culturais podem-, ser dentalmente, se manifestou o impulso inicial. O primeiro fazendeiro
acrescentados a este "quadro vicioso". Do mesmo modo, entre nações; teria podido escolher qualquer lugar da planície, já que esta era
o liberalismo do mercado mundial é favorável aos países ricos e homogênea. Mas, uma vez escolhido lugar, desenvolve-se uma cidade
não aos países pobres. Essa reformulação morfogenética da teoria e a planície perde sua homogeneidade. Se um historiador experimen-
econômica orienta a política do Estado para a economia planificada tasse achar uma "causa" geográfica para explicar por que este lugar,
nos países economicamente subdesenvolvidos e para um mercado em vez de um outro, se tornou uma cidade, não conseguiria encon-
internacional controlado. trá-Ia na homogeueidade inicial da planície. E o primeiro fazendeiro
Myrdal acentua também a importância da direção do impulso não poderia ser reconhecido como fundador da cidade. O segredo
inicial, que determina a direção da amplificação de desvio subse- do crescimento desta está antes no processo de redes de efeitos de re-
qüente na economia planificada. Do mesmo modo, o desenvolvi- troação positivos mútuos, amplificadores de desvio, do que na situa-
mento daí resultante será muito mais importante que o investimento ção inicial, ou no impulso inicial. Tal processo, mais do que a situação
dedicado à arremetida inicial. Assim, nos países economicamente inicial, 'engendrou uma cidade estruturada de maneira complexa. É
subdesenvolvidos, é necessário, não somente planificar a economia, neste sentido que o processo causal mútuo, amplificador de desvio,
mas, também, dar o impulso inicial e reforçá-lo, durante um certo se chama "morfogênese".
tempo, em uma direção e com uma intensidade tais que elas tornem De acordo com uma lei causal essencial da filosofia clássica,
máxima a eficiência do desenvolvimento, por investimento inicial. condições similares produzem efeitos similares: resultados dis-'

296 297
semelhantes eram, por conseguinte, atribuídos a condições disseme- segunda lei da termodinâmica enuncia que um sistema isolado passa.
lha.ntes. Numerosas pesquisas científicas foram ditadas por essa freqüentemente, a maior parte de seu tempo em estado de forte pro-
filosofia. ,Por exemplo, quando um homem de ciência tentava achar babilidade. Assim, se um sistema iselado estiver em estado de impro-
a razão por que duas pessoas que ele estudava eram diferentes, pro- babilidade, estará, muito provavelmente, com o tempo, em um estado
curava uma diferença em seu meio-ambiente, ou em sua heredita- de probabilidade. Na hipótese de acontecimentos aleatórios, estados
riedade. Não via que o meio-ambiente, bem como a hereditariedade, homogêneos são mais prováveis que estados não homogêneos. Por
podiam não ser responsáveis por essa diferénça. Ignorava, conse- exemplo, uma distribuição de temperatura desigual é menos provável
qüentemente, a possibilidade de a diferença ter podido ser produzida, que uma distribuição de temperatura uniforme. Na hipótese da
mediante um processo de interação, amplificador de desvio, em suas segunda lei da termodinâmica, um sistema isolado, em estaqo não
personalidades e em seus meios-ambientes. homogêneo, estará, muito provavelmente, com o tempo, em estado
À luz do processo causal mútuo, amplificador de desvio, a lei maIS homogêneo. A segunda lei da termodinâmica é, neste sentido,
de causalidade deve ser agora revisada, a fim de incluir o fato de uma lei do deperecimento da estrutura e do desaparecimento da não-
que condições similares podem dar origem a situações diferentes. homogenidade.
Importante notar que essa revisão é feita sem por isso introduzir () Todo processo, tal como o crescimento biológico, que aumenta a
estruturação e a não-homogeneidade, estaria em contradição com a • 1·
indeterminismo ou a possibilidade. Os processos causais mútuos .
amplificadores de desvio, são possíveis até num universo determinado, segunda lei da termodinâmica e levantaria, por conseguinte, um pro-
e conduzem a revisar a lei da causalidade mesmo no estrito deter- blema difícil para os cientistas. Esta embaraçadora questão foi tem-
minismo. Além disso, quando o processo causal mútuo, amplificado! porariamente ignorada, por força do argumento de que um orga-
de desvio, está associado ao indeterminismo, torna-se ainda mais neces- nismo não é um sistema isolado. Mas não se havia jamais respon-
sária uma revisão das leis fundamentais. Dir-se-á, então, que um
dido, realmente, à questão de saber que processos e princípios per-
mitem a um organismo desenvolver sua estrutura e acumular calor.
pequeno desvio inicial, compreendido numa seqüência de probabili-
Agora, à luz do processo causal mútuo, está esclarecido o mistério.
dade elevada, pode transformar-se num desvio de probabilidade muito Examinemos, mais de perto, o que representam as redes de efeito
fraca (ou, de maneira mais precisa, num desvio muito improvável no de retroação positivas e negativas. Acentuemos, de saída, o fato de
interior do esquema de causalidade unidirecional probabilista). que a presença de influências que se exercem em vários sentidos ao
Não semente a lei de causalidade, mas também a segunda lei da mesmo tempo, entre dois ou três elementos, não implica, necessaria.
termodinâmica é afetada pelo processo de causalidade mútua, ampli- mente, a existência de um liame de causalidade mútuo. Se a impor-
ficador de desvio. Voltemos ao nosso exemplo do crescimento de tância da influência em uma direção é independente da importância
uma cidade numa planície agrícola. Este crescimento aumenta, ante" da influência em outra direção, ou se sua correlação aparente é cau-
de mais nada, a estruturação interna da própria cidade. Em seguida, sada por um terceiro elemento, não há liame mútuo de causalidade.
diminui a homogeneidade da planície por sua ação de desvio, a partir Tal liame só existirá no caso em que a importância da influência em
da situação que prevalecia originariamente. Em terceiro lugar, o cres- uma direção tiver efeito sobre a importância da influência em outra
cimento da cidade num certo ponto pode produzir efeito de bloqueio direção e for, por sua vez, afetada por esta última.
sobre o crescimento de outra cidade, situada nas vizinhanças, assim Por exemplo, a empresa Eisen Iron produz ferro a partir do
como a presença de uma piscina de natação pode desencorajar um minério de ferro. Por seu lado, a companhia Dexter Roal fabrica
empreiteiro quanto a construir outra, justamente aO lado, bem COmo instrumentos de ferro. Dexter compra ferro de Eisen e Eisen com-
as árvores grandes impedem, pela sombra que projetam, o cresci- pra instrumentos de Dexter. Uma rede de relações causais mútuas
existe, assim, entre as duas sociedades. Mas suponha-se que Dexter
mento, à sua volta, de algumas espécies de árvores pequenas. Uma
compre ferro de várias sociedades. Quando a produção de Eisen
cidade necessit~ ter atrás de si uma região supletiva. Por esta razão,
baixa, a compra de ferro de Dexter junto a outras sociedades aumen-
devem as cidades ser separadas por intervalos. Tal efeito inibitório ta. Quando a produção de Eisen aumenta, a compra de ferro de
aumenta ainda a não-homogeneidade da planície. Dexter junto a outras seciedades diminui. A quantidade de instru-
O aumento gradual da não-homogeneidade é um processo que vai mentos que Dexter pode oferecer a Eisen não depende da quanti-
de encontro à segunda lei da termodinâmica. Em poucas palavras, a dade de ferro que Dexter compra de Eisen. Além disso, Dexter tem

298 299
outros clientes que não apenas Eisen. Que Eisen não compre ins- quer dizer que uma melhoria do serviço sanitário determina uma
trumentos ou compre 10.000 de Dexter não tem para este grave3 diminuição do número de bactérias por unidade de superfície. Mas,
conseqüências. No caso, ainda que haja uma circulação de merca- ao mesmo tempo, isso significa que uma deterioração do serviço
dorias nos dois sentidos, ao mesmo tempo, entre Eisen e Dexter, sanitário acarreta um aumento do número de bactérias, também por
as quantidades circulantes nesses dois sentidos não estão ligadas por unidade de superfície. Comç é possível observar, algumas flechas for-
uma rede de relações causais mútuas. mam argolas. Por exemplo, há uma argola de flechas de P a M,
Suponha-se que, de repente, uma indústria naval se estabeleça de M a C e de C a P. Uma argola indica a existência de redes de
nas vizinhanças e que ferro e instrumentos sejam reclamados em relações causais mútuas. Numa argola, a influência de um elemento
grandes quantidades. A produção de Eisen e a de Dexter vão aumen- volta a exercer-se sobre si mesmo, através dos outros elementos. Por
tar simultaneamente. Mas esse aumento simultâneo não foi causado exemplo, na argola P - M - C - P, um crescimento da população
pela existência de uma rede de relações causais mútuas entre Eisell origina um acréscimo da modernização, que, por sua vez, provoca uma
e Dexter, mas, sim, por um terceiro elemento, que é a indústria naval. imigração urbana, imigração por seu turno geradora de um cresci-
Por outro lado, se a quantidade produzida por Dexter depender da mento da população da cidade. Em resumo, um crescimento popula-
produzida por Eisen e com ela variar no mesmo sentido, ou em cional tem como conseqüência um crescimento suplementar da popu-
sentido oposto, e se a quantidade produzida por Eisen depender da lação em causa, através da modernização e da imigração. Ao con-
produzida por Dexter e -com ela variar no mesmo sentido, ou em trário, uma diminuição no tamanho da população provoca uma baixá
sentido oposto, então existirá uma rede de relações causais mútuas da modernização, que, por sua vez, dá origem a uma baixa da imi-
entre a produção de um e a produção de outro. gração, baixa que leva a uma diminuição dos índices populacionais.
Uma rede de relações causais mútuas pode ser definida entre mais Ainda resumindo, diremos que uma diminuição no vulto da popu-
de dois clientes. Considere-se o esquema seguinte (cf. figo 1). As lação acarreta uma diminuição suplementar desse mesmo vulto, atra-
flechas indicam o sentido da influência. Um +
significa que a vés de uma modernização mais lenta e de uma imigração mais fraca.
mudança intervém no mesmo sentido, mas não é necessariamente Qualquer que seja a natureza da mudança, aumento ou diminuição,
positivo. Por exemplo, o +entre G e B indica que um aumento ela própria, a mudança, se amplia. É assim quando tomamos a popu-
Tamanho da população 1:ú;ão como critério. Mas isso também é certo se tomarmos COmo cri-
da cidade tério a modernização: um aumento da modernização acarreta um
y--P~ acrescimo suplementar dessa mesma modernização, por meio da imi-
gração e do aumento demográfico; uma diminuição de modernização
Detritos por / M Modernização traz consigo uma diminuição suplementar dessa modernização, por
unidade de superf. G ~
via imigratória, e uma população em baixa. O mesmo princípio se
. ( + verificaria, se tomássemos, afinal, a imigração como critério.
+ Em uma argola, por -conseguinte, cada elemento tem influência
+ C Imigração sobre todos os outros, de maneira direta ou indireta, e influ~ncia a
Bactérias por urbana si próprio, por intermédio dos outros. Não há prioridade causal hie-
unidade de superfície B rárquica para qualquer um desses elementos. Tal é a significação das
~/ S Serviço sanitário
redes de relações causais mútuas.
Tomemos, em seguida, a argola P - G - B - D - P. Ela
MorbidezD~ encerra uma influência negativa de D sobre P. Nessa argola, um
Fig. 1 acréscimo da população tem como resultado um aumento do número
de detritos por unidade de superfície. Este aumento provoca, por sua
da quantidade de detritos por unidade de superfície acarreta uma vez, um aumento do número de bactérias por unidade de superfície.
alta do número de bactérias também por unidade de superfície. Mas, Em conseqüência, haverá um aumento da morbidez, que, por seu
ao mesmo tempo, isso significa que uma diminuição daquela quan- turno, determinará uma diminuição do tamanho da população. Em
tidade acarreta uma baixa de número de bactérias. O - entre S e B resumo, um aumento da população acarreta uma diminuição dessa

300 301
I

!
21-T.S .
.L
mesma população, por intermédio dos detritos, das bactérias e das influência daquele imposto cresce e, eventualmente, estabiliza o mon-
doenças. Ao contrário, uma diminuição da população provoca uma tante do capital.
diminuição do número de detritos, de bactérias e de doenças, e Uma cultura pode seguir um processo similar. A gente às vezes
isto tem como resultado um aumento da população. Portanto, na pode admirar-se da maneira por que uma cultura, inteiramente dife-
argola indicada, qualquer mudança do tamanho da população con- rente das que lhe são geograficamente próximas, logrou desenvol-
traria-se a si mesma. Do mesmo modo, qualquer mudança do ver-se em território que de forma alguma difere do destas últimas.
número de detritos por unidade de superfície se contraria a si Provável que uma tal cultura se tenha antes desenvolvido a partir
mesma. A rede de relações mútuas causais é, na argola, uma rede de um processo causal mútuo, amplificador de desvio. Mais tarde
de relações mútuas causais eliminadora de desvio. Tal processo eli- ela atingiu o seu próprio equilibrio, quando OS fatores eliminadores
minador de desvio pode traduzir-se por uma estabilização ou por de desvio se fizeram predominantes. Doravante, ela mantém, normal-
uma oscilação, em virtude, ao mesmo tempo, da decalagem que o
mente, sua especificidade, apesar da parecença de suas próprias con-
fenômeno da eliminação implica e da intensidade do fenômeno.
dições geográficas com as de seus vizinhos (Traduzido de MAGOROH
Consideremos ainda a argola P - M - S - D - P. Contém
MARt'YAMA, "The Second Cybernetics: Deviation-Amplifying Cau·
ela duas influências negativas. Um momento da população traz um
acréscimo da modernização, que, por seu turno, conduz a uma melho- sal Processes", American Scientist, 51, 1963, págs. 164-179). . f

ria do serviço sanitário; esta acarreta uma diminuição do número


de doenças, a qual, por sua vez, provoca um aumento da população.
Trata-se, pois, aí, de uma argola amplificadora de desvio. Duas
influências negativas se anulam mutuamente e seu efeito torna-se CONTROLE SOCIAL E RETROAÇAO
poaitivo.
Em geral, uma argola que compreende um número par rJ.e influên-
cias negativas é amplificadora de desvio; pelo contrário, uma argola WALTER BUCKLEY

que contém um número ímpar de influências negativas é elinuna-


dora de desvio. Afora as três argolas mencionadas atrás, há uma
outra, P - M - S - B - D - P, amplificadora de desvio, em Entre os mais eficientes instrumentos da análise contemporânea
razão das duas influências negativas que encerra. No esquema, o dos sistemas, podem-se citar a cibernética e, mais especi ficamente,
sistema contém várias argolas, algumas das quais são amplific.ado- o conceito de argola de retroação como mecanismo fundamental ue
ras e outras eliminadoras de desvio. O fato de o efeito final do regulação e de controle dos sistemas. No presente estudo, queremos
sistema ser amplificador ou eliminador de desvio depende da forç~ discutir brevemente as possibilidades de utilização deste princípio, a
de cada argola. Uma sociedade ou um organismo contém numero- fim de fazer dele o fundamento de um modelo da realização de
sas argolas amplificadoras, bem como eliminadoras de desvio. Não objetivos societais ou organizacionais, nos casOs em que os obje-
se pode, portanto, atingir a compreensão de uma sociedade ou de um
tivos ou alvos sejam explícitos, conscientes e desejados.
organismo, sem um estudo simultâneo dos dois tipos de argolas e da
rede de relações que as liga. Daí a razão por que nossa segunda
cibernética é essencial para o estudo ulterior das sociedades e dos _ Ação produtora
organismos. G) Parametros (3) de outputs Efeitos sobre o
dos
Não somente são encontradas argolas amplificadoras e argolas Centro(s) L_~ble..!i~~~.
de I A prova
t sistema e sobre
o meio-ambiente
eliminadoras de desvio na sociedade e no organismo, como ainda, em controle lda retrÇ)ação ® Ação corretiva
certas condições, uma argola amplificadora pode tornar-se elimina- : @)
dora, e uma eliminadora vir a ser amplificadora. Por exemplo, um
acréscimo do investimento traz consigo Um acréscimo do capital, e
t o Influência da coleta
dos dados sobre j.--
uma alta do capital possibilita investimentos mais numerosos. Ante..; Retroação os efeitos do output
que o lucro atinja um certo nível, o efeito do imposto de renda é
desprezável. Mas, quando o lucro chega a ser mais importante, a Fig. 1

302 303

L
De tempos em tempos, a partir dos anos 40, alguns sociólogos entre esses objetivos e a resposta inicial dos output;; 5) se a mar-
esboçaram um modelo de retroação social. Entretanto, a idéia não gem d\:: erro for tal que o sistema ultrapasse os limites fixados pelos
foi 'desenvolvida em profundidade antes dos trabalhos de, por exem- parâmetros dos objetivos, uma ação corretiva, produtora de outputs,
11' plo, Geoffrey, Vickers, Karl Deutsch e David Easton (121). Assim, será efetuada pelo centro de controle. .
num artigo publicado em 1947, Kurt Lewin trata "dos problemas Este tipo de modelo deve ser aplicado com prudência, porque, .e
II
da retroação em face do diagnóstico e da ação sociais" (122). Sugere pode esclarecer a natureza sistêmica e as complexidades da procura
que a ação social planificada emerge normalmente de uma idéia mais de objetivos sacietais ou organizacionais, as tentativas de aplicação
Ou menos vaga, que se transforma em Hplano", quando clarificado correta nos incitam a não contar em demasia com a esperança de um
o objetivo, quando determinados o caminho a percorrer e os meios fácil salto para frente. Por outras palavras, um tal modelo parece
de ação e quando elaborada uma estratégia. Depois de haver reco- válido como representação generalizada do que tende a produzir-se,
phecido que esse plano, ou Hfotocalque da ação a ser conduzida", quando grupos estão à procura de objetivos; ou então do que se
deveria permanecer flexível e modificável durante a sua realização, produziria (ou, talvez, devesse produzir-se) se não houvesse "fato-
alude ele aos armamentos, tais como os mísseis autodirigidos, desen- res de complicação". Mas são precisamente os citados fatores que
volvidos quando da segunda guerra mundial, e transpõe o princípio impedem o analista de aplicar tal modelo, sem precauções. A dis-
fundamental da retroação para o domínio social. Após ter indicado cussão seguinte aprofunda esta afirmação: seu teor negativo não visa,
qual o postulado importante que fundamenta a autodireção, a saber, entretanto, a desencorajar o desenvolvimento da utilização do
a descoberta de métodos de coleta dos dados que possibilitam um~ modelo da retroação na análise social.
determinação suficientemente precisa da natureza e da posição clt') Partindo da primeira etapa do modelo da retroação, tal como pode-
objetivo social, assim como da direção e da força da "locomoção" ria ser aplicado à procura de objetivos societais, somos postos ime-
provocada por uma ação dada, escreve: diatamente diante de alguns problemas consideráveis. Haverá um cen-
tro de controle, no seio da sociedade, que possa validamente ser
Para ser eficiente, a coleta dos dados deve estar ligada à organiza,ção da
própria ação: deve integrar-se num sistema de retroação que conecte o ramo considerado como o ponto de mira das decisões quanto aos objetivos
da organização responsável pela coleta aos que realizam a ação. A r.'~troação societais, decisões que só elas têm efeitos significativos sobre o esta-
precisa ser tal, que uma divergência entre a direção procurada e :l direção do do sistema ou de seu meio-ambiente? A não ser assim, não pode-
efetiva acarrete, .. automaticamente", uma correção das ações ou uma mudança mos esperar seguir o curso progressivo do restante do ciclo de re-
do plano de ação.
troação, sem determinar quais sejam os outros centros de decisão,
sem lhes avaliar as inter-relações sistêmicas e sem meter ombros à
No seio do modelo cibernético do sistema retroativo de controle difícil tarefa de retraçar-lhes os efeitos conjuntos sobre o ciclo em
pelo erro, podemos distinguir - ainda que de maneira mais ou seu todo. Se várias argolas de retroação estivessem circulando atra-
menos arbitrária - cinco etapas (ver a figo 1): 1) um centro de vés do mesmo sistema, no meSmo momento, algumas em sentido con-
controle estabelece certos parâmetros de objetivos a serem procur:l- trário ao de outras, a tarefa poderia ficar demasiado difícil.
dos e meios de atingi-los; 2) as decisões quanto aos objetivos são Presumindo-se que conheçamos o (s) centro (s) de controle, colo-
transformadas por órgãos administrativos em ação produtora de
cam-se problemas de interpretação dos objetivos ou de seus parâ-
outputs que provocam certos efeitos sobre o estado do sistema e
J
metros de hierarquização desses objetivos, quando existem diversas,
de seu meio-ambiente; 3) infonnações respeitantes a esses efeitos e, enfim, problemas dependentes das possíveis conseqüências dos meios
são registradas e transmitidas retroativamente ao centro de controle; de ação escolhidos. Por exemplo, os governos optam em geral por
4) o centro confronta o novo estado do sistema com os parâmetros objetivos que não são mais que expressões de valores societais ge-
dos procurados, para medir a margem de erro ou de divergência rais, o que torna difícil a especificação dos critérios concretos utili-
zados para nossa informação sobre erros ou sucessos. Evitam eles
(121) Geoffrey Vickers, The Undirect Society, Toronto, University oÍ estabelecer escalas de preferência para objetivos diferentes, ou mesmo
Toronto Press, 1959; Kar! Deutsch, The Nerves of Government, Nova York,
Free Press, 1963; David Easton, Analyse du systeme politique, Paris, A. Colin, interrogar-se sobre a questão de saberem se não há incompatibilida-
1974. des entre os objetivos. E os meios de ação escolhidos parece fre-
(122) Kurt Lewin, .. Frontiers in Group Dynamics ", 2. a parte, B, HunuJn qüentemente terem pouca relação com os fins procurados. Além do
Relations, 1, 1947, págs. 147-153. mais, resta a questão de saber se presumimos ou não, desde a saída,

304 305

L
que os principais outputs para um sistema social decorrem sempre, blema da longa decalagem temporal entre uma ação produtora de
ou, mesmo, normalmente, dos principais centros de decisão. Referi- output e as manifestações concretas de suas principais conseqüências.
mo-nos aqui ao papel das decisões planificadas concernentes aos obj e- É possível que o sistema não seja capaz de aguardar o conheci-
tivos, quanto ao agregado das numerosas decisões individuais e de mento de todos os resultados. Ou, se fosse disso capaz, poderia não
grupo. que poderiam ser mais determinantes diante do estado do haver tempo para levar-se a bom termo uma ação corretiva, antes
sistema, em qualquer momento. O modelo de retroação não será aplI- de acontecer o desastre. Ademais, efeitos que se manifestam algum
cável senão às sociedades ou organizações caracterizadas por 'UUl tempo depois da ação produtora de outputs podem confundir-se, de
elevado gran de planificação centralizada? tr:ianeira desesperadora, com as conseqüências de outputs subse-
Na segunda etapa do modelo, as escolhas dos objetivos são trans- qüentes.
fdrmadas, por meio de um aparelho administrativo, em atividades Deixando de lado O problema da transmissão retroativa comple-
coneretas e em regras da ação que um outro conjunto de grupos e ta e rápida da informação ao (s) centro (s) de controle, importa fazer
de indivíduos deverá aplicar. Assim, o número das ligações e a di~­ face a dificuldades inerentes à quarta etapa, a saber, verificar a infor-
tância entr~ as mesmas, relativamente ao programa dos objetivos a mação proveniente da retroação, tendo em vista confrontar os re-
atingir - por exemplo, a luta contra a pobreza, ou o desenvolvi- sultados do output com os parâmetros dos objetivos escolhidos, Po- • 1"
mento agrícola - possibilitam grande quantidade de "deslize", de dem os dados da informação estar associados aos outputs corres-
reinterpretação ou de estudo seletivo dos outputs de origem, ou, pondentes? Foram os objetivos de origem especificados de maneirA.
mesmo, de pura sabotagem, a tal ponto que não se sabe mais ao certo suficientemente concreta e clara, a fim de permitir uma verificação
se as divergências subseqüentes quanto aos objetivos foram imputá- significativa dos resultados? E, levando em conta a natureza da maio-
veís aOS citados outputs de origem ou a erros administrativos ulte- ria dos órgãos de governo dos nossos dias, que dizer do problem,1
riores. Assim, o modelo idealizado tende a presumir não somente a
do estudo e da interpretação seletivos da informação provenientes da
existência de um centro de controle consensual e unificado, mas, tam-
bém, a transformação automática e infalível das decisões em ações retroação, alguns de cujos dados poderiam, com excessiva facilidade,
finais. ser aceitos como indicações do bom êxito do empreendimento e
outros rapidamente rejeitados, como insuficientes para estabelecer-se
A consideração dos problemas da terceira etapa - a coleta e " uma constatação de malogro?
transmissão retroativa de informações sobre as divergências quanto
aos 'objetivos - atinge inevitavelmente um ponto sensível para o Enfim, a última etapa - a implantação da ação corretiva - no'3
sociólogo, que deve estar perfeitamente consciente da ausência ou traz de volta aos problemas da primeira etapa, adicionando outros.
da insuficiência da metodologia e dos processos científicos necessá- Por exemplo, a quantidade e o cálculo do tempo 'de aplicação da
rios para levar a bom termo semelhante tarefa. As técnicas de me-o ação corretiva poderiam suscitar dificuldades especiais, tais como a
di da quantitativa da economia e as associadas ao recenseamento' da' necessidade de evitar uma sobrecorreção, ou uma interferência exces-
população estão bem desenvolvidas, mas uma avaliação apurada, em ::;:iva nas atividades conexas com outros objetivos. Uma dificuldade
grande escala, da maioria dos traços sociais, psicológicos e culturais mais grave é, talvez, a introdução da "política" e do potencial de
de uma sociedade ou de uma organização complexa acha-se longe perturbação social coma fatores de complicação, quando a informa-
de estar realizada. Entretanto, mesmo com técnicas adequadas de ção devida à retroação indica que mudanças significativas na estru-
coleta e de medida dos dados, permanece ainda o problema do pros- tura mesma do sistema soóocultural e, portanto, nas atitudes e nos
seguimento daquilo que Paul Lazarsfeld chamou "os dados da feli- comportamentos são necessárias para atingir os objetivos. Uma últi-
cidade", recolhidos em todos os cantos e recantos da vida social. ma dificuldade incide sobre a questão das condições em que a res-
Não somente nos falta uma teoria sociológica ou um quadro con- posta sistêmica mais viável poderia consistir numa mudança nos pa-
ceptual para guiar-nos na pesquisa das conseqüências importantes râmetros dos próprios objetivos, resposta que foi recebida como uma
das decisões e de suas repercussões através da sociedade, COmo surge espécie de aprendizagem organizacional ou de grupo, Porque o fato
também o problema psicopolítico do engajamento completo dos órgãos é que Os objetivos societais, assim como os valores também societais,
de governo na pesquisa dos resultados distorcidos quanto aos ob- mudam, o que levanta o grande problema teórico das condições em
jetivos, isto é, das conseqüências negativas de suas decisões, quais- que isso se produz, bem como suas relações com o modelo da re-
quer que sejam, Enfim, o leitor já pensou provavelmente no pro- troação.

306 307

1
Sem dúvida, só temos que abordar de leve as numerosas dificul-
dades inerentes à aplicação de um tal modelo. Ele deveria ser estu-
dado de maneira muito mais aprofundada, mas com precaução e
modestas expectações quanto aos resultados a curto prazo. É possível
que este modelo não seja particularmente aplicável à sociedade atual, CAPiTULO II
antes de tudo porque os "controladores" das sociedades contemporâ-
neas não tomaram consciência, absolutamente, do interesse que ele
apresenta (Traduzido de Sociology and Modern Systems Theory, de o ALCANCE DOS MODELOS CIBERNÉTICOS
Walter Buckley © 1967. Reproduzido com autorização de Prentice-
Hal!, Inc., Englewood Cliffs, Nova Jersey, págs. 172 a 176).

o FUNCIONALISMO E A TEORIA
GERAL DOS SISTEMAS

PAUL LAZARSFELD

Não procuro nem criticar o funcionalismo, nem fazer-lhe a apo-


logia, mas tento apenas mostrar em que ele simboliza o atual estado
da teoria sociológica. Se se quisesse fazer piada, poder-se-ia dizer
"
que os sociólogos não são capazes nem de viver com ele, nem de
viver sem ele. Não satisfazendo inteiramente às suas esperanças, é
o que melhor responde a elas. Os exemplos a seguir o mostrarão
ainda mais claramente.

Os sistemas sociais. - Com o maxlmo de simplificação, pode-


se dizer que, até cerca de 1960, a análise funcional operava da
maneira seguinte. Seja uma realidade social complexa (S), que nos
interessa, JXlrque alguns de seus traços distintivos resistem, durante
certo tempo, a variações internas e externas (compara-se, no mais
das vezes, esta realidade social com o corpo humano, cuja tem-
peratura se mantém em estreitos limites); no seio do aludido sis-
tema (S), estudamos um elemento social específico ou um subsis-
tema (i), que participa do "equilíbrio" de (S), de sua homeos-
tasia; (i) e (S) estão ligados por um "dispositivo auto-regula-
dor" (123).
Se a noção de sistema desempenha, assim, um papel fundamental,
nunca foi claramente definida, o que a natureza do empreendimento
não tornava, aliás, necessário. A engenhosidade do funcionalista con-
siste em trazer à luz relações existentes entre (i) e (S). Goode obser-

(123) Ver o texto de Ernest Nagel, neste mesmo volume (N.d.E.).


308
309
va, por exemplo, que as organizações profissionais e os sindicatos sucessivas gerações. (129) O sociólogo fundonalista pensa sempre no
protegem os menos capazes de seus associados, uma vez admitidos segundo tipo de sistema. Este recebe certa quantidade de informação
em suas classes. Esta política presta serviço à sociedade global, na do . 'meio exterior e é capaz de adaptar sua reação de maneira a
medida em que lhe garante um amplo leque de talentos, constituindo annlar a diferença entre as condições reais que absorveu e as para
uma reserva de pessoas à margem e de que ela terá necessidade, as quais está programado. É o famoso feedback negativo da ciber-
de tempos em tempos. (124) nética, que garante a homeostasia.
Kingsley Davis sublinha, de seu lado, que o ciúme não é unica- O· a que aspiram os autores do terceiro grupo é que o terceiro
mente um sentimento individual. A sociedade o legitima de diversas tipo de sistema venha a ser o mode1o da análise sociológica de van-
maneiras, a fim de proteger a propriedade em geral e a propriedade guarda. Encontra-se a respeito uma descrição muito desenvolta num
das mulheres, em particular. (125) Harry Johnson atribui à proi- autor que fala de "segunda revolução cibernética", em que os sis-
bição do incesto três funções sociológicas: remove os conflitos fami- te~as têm não somente feedback negativos, mas também positivos.
liares; reforça a coesão da sociedade global, com a ajuda de uma O feedbacll negativo esforça-se por contrariar os afastamentos, a fim
rede de laços matrimoniais; facilita a função dos pais, consistente de,m'~nter um equilíbrio. O positivo "amplia uma impulsão inicial infi-
em socializar os filhos. (126) nitesimal, a partir da condição inicial". (130) É morfológico, já que
Nesses exemplos, os sistemas sociais podem ser extremamente di- enge~dra, no bojo de seu próprio sistema, novas formas e novos
versos. Quando os sociólogos tentaram classificá-lo - nomeadamen- alvos~ O autor dá como exemplo o camponês, que constrói sua fa-
te Parsons e seus discípulos - ora se fundaram na natureza da fun· ze~rida' eni um ponto qualquer. Outros o imitam, constroem em torno
ção (sistemas políticos, econômicos, religiosos), ora no nível de agru- iiú3talações comuns e uma cidade acaba surgindo. O gesto inicial não
pamento (família, empresa, nação, Estado etc.). De alguns anos para tem explicação, mas o que se lhe segue é um encadeamento de
c~" as coisas mudaram, sob a influência do que agora se denomina feedback positivos, mesclados de feedback negativos.
~I-a teoria geral dos sistemas". Apresentarei um só aspecto desses .tra-
Importa compreender que esses teoricistas têm consciência de for-
balhos. A citada teoria estabelece entre os sistemas uma distinção mular outra coisa além de princípios superficiais, como a lei de
fundada sobre a complexidade das inter-relações existentes entre os Spencer sobre a diferenciação crescente. É de fato possível construir
seus elementos. Ela ordena os sistemas em função dessa complexidade. sistemas de elementos evolutivos internos. "Co,ntinuando a fabricar
Certos autores distinguem até nove níveis. (127) Outros formulam objetos que preenchem funções de comunicação e de organização,
princípios gerais de c1assificação. O nivel superior está sempre em torna-se inevitável que, com o tempo, tenhamos ocasião de compreen-
condições de realizar, "deliberadamente", aquilo que o nível inferior der melhor essas próprias funções". (131)
realiza por via de dispositivos mais ou menos primitivos e espontâ- A análise dos sistemas pode contribuir de duas maneiras para a
neos. (128) Se se olhar bem aí, todos esses níveis se reduzem a uma reflexão sociológica. Inicialmente, pode reduzir as tensões lógicas entre
classificação tripartite: os sistemas em que só entram mecanismos
aqt~eres que desejam empregar, no estudo dos fatos humanos, méto-
de movimentos de relojoaria ou de. molas montadas sobre armadura;
os sistemas de tipo orgânico, capazes de manter um equilíbrio; os dos suscetíveis de serem utilizados e verificados por outros pesquisa-
sistemas que evoluem, quer por meio de uma aprendizagem, no dores. Noções como as de alvos e de objetivos impõem-se por si
curso de sua existência, quer por meio de mudanças seletivas entre mesmas a todo observador, mas parecem afastar-se, freqüentemente,
de. uma certa tradição "científica", por mais lata que seja a inter-
pretação que se lhe der. Ora, este novo método permite reduzir o
(124) J. Goode, "The Protection of the Inept", America.n Sociologica.l
RC".ne-w, fevereiro de 1967, pág. 5. afástamento. Cada novo vocábulo tecnológico, cada descoberta bio-
(125) K. Davis, "Jealousy and Sexual Property", em fluman Society, N-ova lógica, enriquece a família das noções sociológicas reconhecidas.
York, Macmillan, 1959.
(126) Sociology~ Harcourt, Brace & Co., 1960, pág. 67. (129) A. Rapoport, "Mathematical Aspects of General Systems Analysis ",
(127) K. E. Bou1ding, "General System Theory", em W. Buckley (ed.) , em Les sciences sociales: problêmes et orientations, Paris, Mouton, 1968.
Modern Systems Research for the Behavioral Spientist,' Chicago, 1968. pág.'3. (130) M. Maruyama, La deuxiême c:ybernetique (Neste mesmo livro, págs.
(128) K. Deutsch, "Toward a Cybernetic of Man and Society", em W. 294 a 303 (N. d. E.).
Buckley, op. cit, pág. 387. I
(131) K. Deutsch, op. cit., pág. 389.

310 I 311

l
Em seguida e, sobretudo, importa indagar se semelhante método rede de comunicações automáticas, ou, finalmenté, no de seres hu-
inspira observações novas e novos estudos concretos. Como eu já o manos situados numa organização social. Os processos fundamen··
disse atrás, o grande mérito do funcionalismo foi o de enfocar o tais de comunicação e de controle em todos esses tipos de orga-
conceito de função latente. Tomando de empréstimo aos sistemas nização seguem ao menos certos traços fundamentais permanentes.
evolutivos e morfogênicos suas novas representações, pode-se pen- Descobriram-se alguns deles, de modo preciso, no domínio da técni~
sar que será dada maior importância aos problemas da mudança so- ca de comunicação aplicada às máquinas. É possível que outros traços
cial, da comunicação e da influência. Em compensação, não se pode permanentes sejam mais familiares aos neurofisiologistas ou àque-
saber, adiantadamente, se isso permitirá compreendê-los melhor. Um les que estudam a sociedade. Qualquer que seja o domínio em que
teoricista, W. Buckley, tentou medir a contribuição da teoria dos se analisem antes esses processos, podem eles ser utilizados para
sistemas para a sociologia. (132) É um ponto sobre o qual não estou levantar problemas em outros campos de aplicação.
de acordo com ele, que opõe nOvas concepções ao funcionalismo, ao A perspectiva geral das teorias da comunicação ou da cibernética
passo que seria mais justo conceber a teoria geral dos sistemas como não substitui, certamente, a pesquisa concreta, mas sugere uma estra-
uma nova etapa da exigência intelectual fundamental, que inspira o tégia para essa mesma pesquisa. Mercê de semelhante estratégia.
funcionalismo em sociologia. Chamei a atenção para o fato de que vê'se que determinadas questões são mais pertinentes que outras e : 'f
aparece, periodicamente, um "novo" funcionalismo; e este é, justa- que', assim, seria interessante obter e medir alguns dados que a
mente, o caso da teoria geral dos sistemas. Penso que Buckley de- isso se referem, mesmo ao preço de um considerável esforço. Em
monstra somente que os funcionalistas mais recentes, por serem mais termos mais gerais, a aproximação pela comunicação indica linhas
sutis que seus predecessores, observam fenômenos que a estes últi- de ataque no estudo das organizações. Antes de mais nada, ao invés
mos escapavam (Excerto de PAUL LAZARSFELD, Qu'est-ce que la so- de analisar somente o alvo aparente da organização, a gente se
ciologie?, Paris, Gallimard, 1970, págs. 111-116). ap'licará às duas seguintes questões: Como são conectadas as ca-
deias de comunicação formais e informais da organização e como são
mantidas? Uma tal aproximação estaria perfeitamente acorde com o
ponto de vista de Chester Barnard, que considera que as organiza·
COMUNICAÇÃO E CONTROLE ções têm leis de conduta diferentes das de seu,s membros conside-
NAS ORGANIZAÇOES rados em sua individualidade. (133)
Ao lado do estudo da manutenção dos meios de comunicação e do
ordenamento desses meios, ser-nas-ia preciso, também, estudar 03
KARL DEUTSCH
div.ersos mecanismos de retroação (feedback) no seio da organiza-
ção. Examinar-se-ia, também, que tipo de desequilíbrio interno tem
por efeito originar uma certa conduta da organização, isto é, le-
Comunicação e controle constituem os dois processos decisivos gra- vá-la a mudar suas relações com o mundo exterior. E a que alvo,
ças aos quais as organizações funcionam. A comunicação é o que em função desse mundo, corresponde um limiar mínimo de dese·
dá sua coerência às organizações, e o controle o que assegura a quilíbrio interno na organização? Há, enfim, um ou mais mínimos?
regulação de sua conduta. Se nos fosse possível levantar um mapa E a informação de que a organização pode dispor é adequada para
das vias pelas quais a informação se propaga entre as diferentes atingi-los?
partes de uma orgp.nização, para lhe determinarmos a conduta em A segunda prioridade no estudo das organizações diz respeito ao
relação com o mU11do exterior, então teríamos realizado um grande problema da memória. Qual a natureza da informação acumulada na
passo na compreensão dessa organização. organização e onde se acha localizada? Qual o mecanismo de seleção,
Assim aconteceria no caso de uma organização composta de cé- de divisão e de reconstrução da informação? Como esta determina a
lulas no seio de um organismo, ou ainda no de máquinas em umtl orientação? Uma organização é autônoma na medida em que recorda

(132) W. Buckley, Sociology and M odern Systema Theory, Prentice-Hall. (133) Organization and Management, Cambridge, Harvard Universi:~' Press,
Nova Jersey, 1967 (Ver o texto, de Buckley, neste mesmo volume. N.d.E.). 1949, págs. 114-115.

312 313
o seu passado e em que este a orienta, com a condição de que esteve da iminente queda de Tróia, isto é, permanecendo incapazes de.
informação semelhante, avivada pela memória, seja confrontada com modificá-la, mesmo assim?
ou equilibrada pela informação provinda do mundo exterior, tal como Até que ponto se podem atribuir os malogros na conduta de uma
ele' é naquele momento: essa informação permite então à organiza· organização à falta de algum elo de comunicação nevrálgico e não "
ção situar-se relativamente ao mundo exterior. Deve-se querer saber presença de elementos nefastos? Acontece inúmeras vezes que as teo~
onde se acham os lugares em que estão armazenados os memoriais? rias segundo as quais a gente melhora uma organização procedendo a
Onde são eles confrontados com as informações do momento? Tais exclusões e a expurgos descende, em linha reta, das teorias med.ie~
lugares são essenciais para o controle da conduta da organizp,ção vais ,de possessão demoníaca e de exorcismo e mal se revelam mais
em seu conjunto. Se chegarmos a compreender a estrutura da orga- eficientes do que estas últimas. É possível que liquidar os empre-
nização nesses lugares, compreenderemos também muito melhor a gados pareça menos oneroso do que assegurar a rígida vigilância
estrutura do sistema de decisão pela qual a própria organização é sobre o funcionamento de uma 'Organização, mas raro é que se venha
orientada. a resolver os congestionamentos de trânsito com matar os automo~
Uma terceira linha de pesquisa teria por alvo o estudo do liame bilistas, ou a descongestionar os centros telefônicos com executar as
entre os símbolos secundários e a informação primária de que , telefonistas (Traduzido de KARL DEuTsCH, "Communication Mode!s
organização se serve. Quais as mensagens secundárias de que se in the Social Sciences", Public Opinion Quarterly, outono de 1952;
serve a organização como mensagens primárias que circulam através págs. 367-370).
de suas redes? (134) Qual o seu número? Em que medida isso
influencia seus próprios processos internos e que uso é feito. da
informação assim obtida? Resumindo: até que ponto a organizaçã,)
tem consciência de seu próprio saber, de' sua conduta e das de seU3 OS MECANISMOS DO CONSENSO
componentes? Em outros termos: Quais os dados internos respei"
tantes ao saber acumulado na organização e à conduta de seus ele-
mentos, dados que são condensados e transmitidos aos comitês de AMITAI ETZIONI
organização, aos órgãos definidores da linha política, aos executivos
e aos órgãos governamentais de toda espécie, e que uso é feito d~les?
Quais os custos dessa auto-regulação ou desse controle interno'. em A ação de toda e qualquer unidade da sociedade global não é
termos de recursos, de trabalho e de tempo de atraso, no que taÍlge senão em parte determinada JXlr sua aptidão para controlar as outras
à decisão finalmente adotada? unidades, ou pela extensão do controle que sobre ela exercem estas
Até que ponto é realista esse conhecimento que a organização tem unidades. Dita ação parece também influenciada pelo grau de com-
de si mesma? Em que medida certas categorias de informações .inte.r- patibilidade existente entre, de um lado, os alvos que a unidade pro-
nas ficam incontroladas ou não transmitidas e, desta forma, perm<:;.- cura atingir e os meios que emprega e, de outro lado, os alvos
necem ineficientes, ao nível da política geral? A propósito, qual 1.) escolhidos e os meios utilizados pelas outras unidades, isto é, o grau
efeito de retroação das decisões políticas visíveis? Poder-se-á avalíar- de consenso da sociedade global.
se o grau de eficiência na modificação da conduta real das organiza- .. A aptidão da sociedade para controlar os seus membros e para
sões? Resumindo, em que medida o sistema de conduta da orga- elaborar entre eles um consenso é geralmente fraca. Posto que as
nização permanece cego ao seu meio-ambiente e às conseqüências de
sociedades difiram quanto às suas capacidades globais de direção, o
sua própria conduta? E, por outro lado, quantas vezes os dirigentes
de uma organização estarão verdadeiramente conscientes das conse- método mais satisfatório consiste, não em classificá-las em função de
qüências da conduta defeituosa da mesma, mas como Cassand,ra \) suas capacidades relativas, mas, antes, em determinar as causas de
suas respectivas insuficiências. Duas sociedades podem obter scoreS
de direção fracos para insuficiências totalmente diferentes.
(134) Para as definições das "mensagens primárias" e "secundádas" e
do conceito geral de consciência, cf. K. Deutsch, "Mechanism, Teleo!,-,gy and Proporemos, para começar, uma classificação estabelecida a partir
Mind", PhilosoPhical anel Phenomenological Research, vol. 12, n. 2, dezembro dos çomponentes fundamentais da direção de uma sociedade global.
de 1951, págs. 205-208. classificação que permite destacar quatro modelos de sociedade: I)

314 315
as em que o controle e a elaboração do consenso são fracos - :valecerão quando b controle social for mais frouxo. Ao mesmo tem-
as sociedades passivas - modelo assaz próximo das nações em viaa pb, o grau, a qualidade e a própria substância do consenso -influen..
de desenvolvimento; 2) as cujas capacidades de controle são menos ciam, juntamente, a estabilidade e a forma da estrutura social. Por
deficientes que seus mecanismos de elaboração do consenso - as so- conseguinte, a relação entre a morfologia e a elaboração do con-
ciedades superdirigldas - modelo assaz próximo dos Estados totali- senso é comparável à relação entre os aspectos estáticos e dinâmico,
tários; 3) as em que a elaboração do consenso é menos deficiente de"um mesmo fenômeno.
que as capacidades de controle - as sociedades de não-intervenção . No estudo do consenso, não se deve considerar aos atores da 80-
_ modelo assaz próximo das sociedades democráticas capitalistas; dedade global como "dados", mas como suscetíveis de mudar. A
4) as em que esses dois aspectos Se revelam a um tempo eficientes capacidade de que dão prova dois ou vários atores para realizar seU3
_ as sociedades ativas - modelo que é um Usistema futuro", ou um valores depende, em grande parte, não somente da congruência de
projeto da sociedade global seus compromissos, mas também de sua aptidão para definir o grau
Examinaremos aqui a elaboração do consenso em geral e, em par- de complementaridade ou de identidade de seus objetivos, bem como
ticular, o consenso "societal" e político. Isso nos leva a precisar e pâra estabelecer em que medida os meios utilizados são afetados, no
a comparar as dimensões dos diversos tipos de estrutura que inter- decurso dessa interação, pelo grau de redefinição de seus objetivos,
no sentido de uma complementaridade ou de uma identidade. Muitas
vêm na elaboração do consensO. vezes, as posições iniciais de várias subcoletividades (expressas por
:;u,<:tS diversas organizações) são relativamente vagas e instáveis, ~
- se a elaboração do consenso for eficiente - se definem numa di-
Consenso e ação societal reção congruente. Ou então, quando suas posições foram previamente
definidas, modificam-se no decorrer do processo de elaboração do
Estrutura da sociedade global e elaboração do consenso consenso, porque os atores se dão conta çle que não podem manter
seus objetivos iniciais e de que preferem uma mudança de perspec-
O nível de atividade da sociedade global influencia o grau de tiva a um impasse ou a um "fracasso", ou porque processos expres-
elaboração do consenso: quanto mais uma sociedade H funciona", tanto sivos como o comando (mais precisamente, a elite própria do siste-
mais as diferenças de valores, de interesses e de opiniões de seus ma) lhes influenciam as preferências. Esta elasticidade dos atores
membros Cl devem" ser superadas. Esta necessidade pode ser encara- societais significa. que a elaboração de um consenso é bem mais fre-
da de duas maneiras diferentes: a) se as divergências entre os mem- qüentemente realizável do que o seria se todos os participantes ti-
bros não forem reduzidas, o nível de resistência tenderá a elevar- vessem posições fixas.
se na sociedade global, até bloquear toda ação; e b) se a elabo- Com efeito, ela não depende somente do estabelecimento de um
ração do consenso for negligenciada, os valores que sobre ele re- acordo, ou de um compromisso, mas também da criação de novos
pousam serão minados, mesmo que o acréscimo da atividade socie- objetivos partilhados, de novos líderes e de outros fatores conéxos.
tal permita a realização de outros valores. Vários inquéritos aprofundados mostraram que o consenSo é fraco
Há uma estreita relação entre a estrutura de uma sociedade e sua no eleitorado americano; que há mais consenso entre os líderes de
partidos opostos do que entre os membros desses partidos; que o
aptidão para elaborar o consenso. A estrutura da sociedade global
conceito de democracia é homologado pelos eleitores, mas não com-
serve de fundamento para a elaboração do consenso. Quanto menoS preendido. Tais inquéritos pretendem demonstrar que a democra-
liames societais houver, tanto mais pesada será a "carga" que a ela- cia pode funcionar sem a realização das condições prévias -estipuladas
boração do consenso deverá suportar (para o mesmo nível de ati· por certos modelos de consensO. (135) Esta conclusão não é válida
vidade). Além disso, as diferenças de estrutura não deixarão de
influenciar os mecanismos de elaboração do consenso de que a so- (135) James VI/. Prothro e C. Grigg, "Fundamental PrincipIes of Demo-
ciedade dispõe. Por exemplo, quando a natureza do controle social ::. cracy: Bases of Agreement and Disagreement", Journal o/ Politics,' vaI. 22
muito precisamente e estreitamente especificada, a tendência será para (960), págs. 276~294, mostram que não existe nos Estados Unidos um acordo
preferir os mecanismos descendentes de mobilização do consenso, ao wbre os "princípios fundamentais" relacionados com numerosas questões. Ver
também Herbert McClosky, "Consensus and Ideology in American Politics",
passo que os mecanismos ascendentes de formação do mesmo pre~ in ]. Fiszman, The Americau Political Arena (Boston, Little-Brown, 1966), e

316 317

22~T.S.
senão na medida em que ditos inquéritos refocalizam a questão dos miladas a um consenso, e espera-se que exista um forte consenso
modelos que supõem que a maioria dos membros de uma sociedad.e em grupos homogêneos. Mas numerosos atores, cujos alvos são idên-
deve estar de acordo, na maior parte do tempo, sobre a maior parte' ticos, podem estar em desacordo e em violento conflito, como o
das questões. Mas sua crítica não se aplica ao modelo aqui utilizado, demonstra a célebre declaração do rei da Áustria, a propósito do rei
que supõe necessário um certo consenso entre os membros relativa· da Espanha e de si mesmo: "Queremos ambos a meSma coisa; ambos
mente ativos. Além disso, usamos um modelo funcional corrigido. queremos Milão". Embora pareça que atores que compartem valores
Por outras palavras, pensamos que, se uma parte do consenso exigido idênticos ou similares estejam mais em condições de chegar a um
faltar, a democracia funcionará menos eficientemente, mas não se acordo sobre os fins e os meios do que aqueles que aderem a va-
desmoronará necessariamente. Esses inquéritos negligenciam a cone- Iares diferentes - e, sobretudo, opostos - não é possível presumir
xão entre as deficiências particulares do consenso, as quais eles re- que um consenso incidente sobre os fins, os meios e as prioridades
velam, e as outras deficiências das democracias estudadas. resulte automaticamente de um consenso sobre os valores. Tal con w

Dois ou mais atores são capazes de elaborar um consenso, na me- senso deve ser elaborado e, a menos que haja eficientes mecanismos
dida em que puderem, ao mesmo tempo, determinar suas necessida- para elaborá-lo, poderá permanecer em estado virtual.
des recíprocas e partilhadas e formular, assim, nOvas necessidades. As teorias coletivistas mais características consideram o consenso
Quanto mais fraca for essa capacidade - quer por causa da diver- como em grande parte dado (ou como cambiante, sob o impacto de
gência de certos fatores pertencentes ao "contexto", quer por causa processos contínuos). Para os teorizadores voluntaristas, ele pode ser
da ineficiência dos mecanismos de elaboração do consenso - t3.i1to manipulado por um letUiership carismático e/ou pelos meios de infor-
mais fraca lhes será a aptid~o para dirigir a sociedade global. . mação coletiva. No âmbito próprio da teoria da direção societal, ó
consenso será, ao contrário, a conseqüência de um processo em que
o consenso: um estado e um processo as perspectivas existentes e os esforços deliberados afetam o resul·,
tado: um consenso em constante mudança. Essa aproximação foi
Designar-se-á por consenso urna congruência de perspectivas> em utilizada em numerosos estudos; só aqui é que ela acha um funda,:'
dois ou mais atores. (136) Uma vez que a elaboração de um consenso menta teórico.
não é, freqüentemente, senão em parte, um processo consciente P:.
intencional, preferimos esse termo, "consenso", a "acordo" (agr~(J- O dissenso é o estado entrópico da sociedade global. O consenso
111.oent). Similitudes de perspectivas são, com efeito, muitas vezes, assi- não é preexistente: deve ser criado. Os processos "normais" e con-
tínuos de socialização preparam-lhe o fundamento, mas não o C01t-
senso verdadeiro, requerido pela direção societal. Uma vez estabele:·
Herbert McClosky, Paul Hoffmann e Rosemary O'Hara, "Issue Conflict and
Consensus among Party Leaders and Followers ", American Political Scie/!-ce cido, o consenso não depende das leis da inércia. Se os esforços pari
Review, voI. 54, 1960, pág. 406-427. Para dados a respeito da homogcneida,de mantê-Ia diminuem de maneira significativa, a sociedade se enca-
das características sociais e dos valores nos diversos grupos da elite americana, minha para o estado entrópico de dissenso. Um dissenso elevad,)
ver James Rosenau, "Consensus-Building in the American National Commu- não concerne apenas aos fins derradeiros, mas também aos alvo3
nity: Hypothesis and Supporting Data", Journal of Politics, vaI. ~4, 1962,
págs. 639-661. e aos meios imediatos. É preciso levar isso em conta, porque um dis-
(136) Para um inventário das definições e dos métodos de estudo sobre senso elevado sobre os fins derradeiros pode justapor-se a mil
este ponto, ver Theodore N ewcomb, "The Study of Consensus", em ).{erton, consenso sobre os alvos imediatos, e isso basta para criar uma ação
Broorn e Cottrell (eds.), Sociology Today, Nova York, Basic Books, 1%5, pags. societal relativamente eficiente. Quando este último é elevado, a ca-
277-292; Orrin Klapp, "The Concept of Consensus and its Importance", Socio- pacidade de ação das unidades da sociedade global tende a ser fraca.
logy and Social Research, voI. 41, 1957, págs. 336-342; Thomas ScheH, "Towar'd
a Sociological Model of Consensus ", American Sociological Rcview, vol. 32, Falaremos de forrna.ção do consenso para caracterizar os processos
1967, págs. 32-46; Irving Horowitz, Three Worlds of Development (Nova ascendentes (da unidade-membro à camada superior de controle) que
York, Oxford University Press, 1966), págs. 367-369. Para medidas deste aumentam a congruência de perspectivas. A mobilização do consenso
conceito, ver Matilda Riley, John Riley e Márcia Toby, "The Mea.:iurement refere-se aos processos descendentes, que torpam maior essa con-
of Consensus", Social Forces, vol. 31, 1952, págs. 97-106; e N. R. Luttberg,'e
H. Zeigler, " Attitude Consensus and Conflict in an Interest Group: an Assess- gruência. E a elaboração do consenso engloba, ao mesmo tempo, 05
ment of Cohesion ", America-n Political Science Review, 1966, págs, 655-666.. processos ascendentes e descendentes.

318 319
o nível' t:k consenso necessário
nas etc. Em todas as sociedades, as diferentes coletividades possuem
um poder politico muito desigual. A necessidade de ganhar-lhes o
apoio para conseguir a eficiência da ação societa! depende direta-
Certos sociólogos sublinham o fato de que o consenso não é uma
mente de sua aptidão para favorecer uma ação específica ou, ao
condição prévia da ação societal. Isso parece uma observação fun-
contrário, para miná-la, assim como depende de suás outras ativi-
dada, mas gostaríamos de acrescentar que um certo grau de con-
senso é condição prévia para uma ação eficaz. Não supomos, por- dades, da estabilidade das elites e da própria estrutura do controle.
O - governo democrático não é, pois, senão um modo particular de
tanto, que o consenso deva ser necessariamente elevado, nem que uma
elaboração do consenso politico.
ação ineficaz não possa ser empreendida em caso de dissenso, mas
Em terceiro lugar, para que uma ação concertada e' eficaz tenha
somente que um dissenso elevado exija um alto preço ...
bqm êxito, é interessante evitar um forte dissenso, mas um consenso
Quando se examinam o grau de consenso existente numa socie- referente a cada atividade nem por isso é necessário. A maioria dos
dade dada e os meios utilizados para criá-lo e mantê-lo, devem-se atores possuem uma certa "margem" de consensó, com que podem
evitar vários erros. Primeiramente, o grau de consenso difere de jogar. Também não é necessário obter-lhes o apoio, antes de em-
um a outro setor societal. Consideremos, por exemplo, o consenso preender uma ação. Uma nova atividade, que engendre de início ,\
societal no tocante ao papel e ao campo de ação da camada superior hostilidade ou a indiferença, mas que possa, mais tarde, adquirir o • 1"
de controle político. O consenso relativo aos outros setores de ativi- apoio dos atores interessados, suscita um consenso global mais ele-
dade da sociedade global influencia o consenso político, mas não há vado do que uma atividade aceita de saída, porém que encontra opo-
relação unívoca entre os diferentes setores. Com efeito, o dissenso que sição cada vez maior, à medida que se desenvolve.
incide sobre certos valores não políticos pode ter somente uma fraca Em resumo, não é necessário que exista, precedendo a ação, um
incidência sobre o consenso político, notadamente nos seguintes casos: consenso sobre todas as questões, ou entre todos os átóres, mas,
a) se os outros valores forem explicitamente definidos como não afinal, um certo consenso parece condição prévia para a realização
tendo relação alguma com o domínio político; b) se o mesmo pro- dos fins que os atores se haviam 'proposto, ou, pelo menos, de
grama político se revelar favorável a valores não políticos diver- uma boa parte desses fins. Não pode haver sociedade ativa sem
gentes, ou mesmo opostos; c) quando os atores politicamente enga~ uma elaboração muito forte do consenso, porque de outro modo o
jados se sentem menos visados pelos valores não políticos, e quando aumento da atividade societa! daria nascimento a uma camada su4
os que se vêem mais atraídos pelos ditos valores não têm senão poucos perior de controle demasiado forte, que, pelo peso de que disporia,
engajamentos políticos nos domínios que não afetam diretamente suas falsearia os mecanismos de elaboração do consenso (Traduzido de
preocupações extrapolíticas. É quase impossível compreender o con- AMITAI ETZIONI, The Aclive Soci-ety, Nova York, Free Press, 1968,
senso político que reinou em Israel de 1948 a 1966, sem levar em págs. 466-472). .
conta as diferenças de intensidade de engajamento dos partidos reli-
giosos e do Mapai. A maioria dos governos de coalizão israelenses
repousavam sobre uma "transação": o Mapai fazia concessões so-
bre as questões religiosas, em troca de uma liberdade quase total no PROCESSO DE VIOL1l.NCIA POLíTICA
domínio econômico e na política 'estrangeira. Para maiores indicações,
ver Amitai Etzioni, "Kulturkampf ou coalition, le cas d'Israel", TED GURR
Rev"e trançaise de Science politique, vaI. 8 (1958), págs. 311-331.
Em segundo lugar, não se deveria confundir a elaboração do COn' Numerosos modelos do "processo revolucionário" foram propos~
senso político com o sistema de governo democrático. O consenso po- tos,notadamente os de Hopper, Brinton ou Schwartz. (137) Têm eles
lítico pode desenvolver-se entre os que detêm o poder, o que não re- por objetivo implícito predizer as conseqüências de condições par-
presenta quase sempre senão uma fração mínima da população. E ticulares: se um certo conjunto de condições existe núm tempo .t',
o consenso obtido traduz o poder respectivo dos que dele participam,
não sendo a extensão deste poder unicamente determinada (nem (137) R. Hopper, "The Revolutionary Process" Social Forces, março de
mesmo principalmente) pelo número de votos que eles podem mobi- 1950; Crane Brinton, The Anatom)! of Revolution, Nova York, Norton, 1938;
lizar. O poder político resulta também da capacidade de custear a David Schwartz, "A Theory of Revolutionary Behavior", em J. Dayies (ed.),
lYhen Men Revolt and WhJ.', Nova York, Free Press, 1970.
campanha eleitoral, da de obter o apoio da T"reja e de forças exter-

320
, 321
I
I
L
então consequencias específicas se produzirão, verossimilmente, 'no rizada na sociedade. :É preciso insistir sobre o fato de que l1em
tempo y. Entretanto, esses modelos não levam em consideração, se- as müdanças no conteúdo dos media) nem o emprego de apelos sim-
não raramente, mais de uma ou duas condições que poderiam exis- bólicos têm, verossimilmente, efeitos decisivos sobre o potencial de
tir no tempo x; as condições significativas no tempo s não são, fre- violência política.
qüentemente, consideradas como tais, em períodos seguintes; só se Qualquer que seja o nível inicial de descontentamento politizado,
podem raramente identificar, em fases anteriores, os efeitos de re- o controle social pode ser alterado pelos regimes e pelos dissidentes,
troaç.ão devidos à superveni~ncia de y ou a condições associadas a )o'. ao. mesmo tempo: as conseqüências serão imediatas para as três pri-
Tais modelos têm com efeito, tendência para analisar a violência po- meiras variáveis essenciais. Graças ao aumento do suporte ip.stitu-
lítica como um processo unilinear. Um esforço foi aqui empreendido cional obtido com ajuda das organizações estatais, o regime pode
para desenvolver um modelo abstrato, que ultrapasse alguns desses diminuir a amplitude da violência política. A extensão da organiza-
defeitos. Uma de suas vantagens é permitir identificar aS melhores ção do regime aos grupos não pertencentes à oposição deve aumen-
estratégias para os regimes, assim como para os seus opositores. tar, verossimilmente, os IIvalores" dos mesmos, fazendo acrescer suas
possibilidades de intervenção e diminuindo, assim, o descontentamen-
to. A extensão da organização do regime aos grupos de opositore3
. f
Um modelo do processo deve criar, em compensação, uma ruptura nos modelos de ação va··
10rizados, intensificando, por isso mesmo, o descontentamento. Não
o modelo do processo revQlucionário ilustrado pela figura 1 revela obstante, tais políticas chegam melhor a diminuir a violência do que
a existência de um certo potencial de violência coletiva (descontenta- um regime fundado sobre o acréscimo de um controle coercitivo, que
mento), numa comunidade política, em qualquer momento dado. Ba- pode provavelmente conter, a curto Pt:azo, a violência aberta, mas
seia-se em dez das variáveis causais que parecem mais sensíveis a aumenta e politiza, do mesmo passo, a hostilidade das pessoas des-
uma mudança a curto prazo, devida aos esforços dos opositores, ou, contentes, que são, assim, submetidas a um controle intensificado.
então, aos das elites dominantes. As variáveis não representadas, tais Além disso, se o acréscimo de um controle coercitivo afeta grupos
como a· dimensão histórica da violência' ou as taxas de mobilidade já providos, quer limitando a sua liberdade de ação, quer exigindo
que os grupos consideram como tendo validade aceitável, são igual- que sacrifiquem os "valores" raros à sustentação do regime, isso
mente sensíveis à mudança previsível (ou não), mas mudam, de cria um descontentamento suplementar. Um aumento no suporte ills-
ordinário, gradualmente, e não são senão raramente levadas em con- titudonal da oposição produz efeitos opostos sobre as variáveis essen-
sideração pelas elites dominantes ou pelos opositores. Oito das dez ciais. Se os dissidentes forem irremediavelmente engajados na 0IX>-
variáveis causais de que nos servimos neste modelo têm efeitos. si- sição violenta, um aumento de seu suporte institucional fará acres-
multâneos sobre as variáveis essenciais. Importaria notar que o mo- cer a amplitude da violência política. A curto prazo, aumentos do
delo permite descrever os efeitos das diferentes políticas, medir " suporte institucional dissidente farão acrescer, por conseguinte, veros-
amplitude da violência política e avaliar, também, os efeitos de se- similmente, de maneira marginal, a amplitude da violência; a longo
melhantes políticas sobre o potencial de violência futura. prazo, reduzirão, todavia, o potencial de violência coletiva. Um acres-
cido controle coercitivo da oposição amplifica diretamente a violên-
Dada a existência de um potencial de violência coletiva, os oposi-
tores podem dirigi-lo mais facilmente para alvos políticos, articulan- cia política, sem ter efeitos significativos de retroação sobre as outras
variáveis.
do novos apelos, que oferecem justificações para a violência de ca-
ráter político. Ao mesmo tempo, é possível aumentar um desconten- :É possível que o surgimento real da violência política tenha efeitos
tamento generalizado, na medida em que os apelos dos opositores disparatados sobre o potencial de violência futura, dependendo tais
proporcionam, simultaneamente, justificativas para expectações novas efeitos do grau de sucesso da oposição e do gênero de resposta pro-
ou intensificadas e meios específicos para atingi-las. A curto prazo, v"eniente do regime. Diante da violência política, pode o regime, quer
a tática à disposição de um regime e que é potencialmente mais efi- aumentar as medidas coercitivas, quer responder parcial ou sistema-
caz para minimizar a politização do descontentamento consiste em ticamente às exigências da oposição. Se os regimes se tornam rnaü
controlar o conteúdo dos meios de comunicação política, mas isto fará fortes e aumentam a severidade das sanções em nível elevado, ten-
acrescer o descontentamento, se a liberdade de expressão for valo- dem a desencorajar os indivíduos de lançar mão da violência polí-

322 323
t.ic~· a curto prazo, mas, ao mesmo tempo, intensificam, verossimil~ Os opositores podem "triunfar", com auxílio da violência política,
mente, o descontentamento e estendem-lhe a duração, criando, assim, na defesa dos "valores" ameaçados, na imposição de novos "valo~
um novo descontentamento entre as pessoas diretamente afetadas 'e res" ou na obtenção das concessões ou dos ganhos. Se os recursos
aumentando-lhes, também, a vontade de resistência. Não se utilizan- (estoques de "valores") obtidos pelos opositQres forem bens de con~
do, senão moderadamente, a força e as sanções, os efeitos são :ge· sumo, que sirvam para remediar privações imediatas mais do que
ralmente disfuncionais para o regime. Um recurso médio à força para criar recursos suplementares, os beneficiários terão, proporcio-
intensifica o descontentamento dos opositores, assim como a vontade nalmente, mais possibilidades de empregar a violência, uma vez esgo-
de resistir, sem, nem por isso, desencorajá-los. Se, pelo contrá,r:io, tados aqueles recursos. Se, ao contrário, os recursos obtidos forem
os regimes aplicarem as sanções de maneira mais permanente,: o "valores" essenciais, que os próprios opositores poderão utilizar para
aumento consecutivo, na certeza das penas em que incorrerem os opo~ criar outros bens e "valores", o potencial de violência coletiva se
sitores, desencorajá-los-á e realçará a legitimidade do regime, reduc- verá reduzido. O mesmo argumento pode ser aplicado aos aumentos
zindo com isso O potencial de violência futura. de "valores" desejados pela oposição e obtidos pela violência: o
efeito consistirá num acréscimo das capacidades para criarem valo~
res e, por conseguinte, numa redução do descontentamento (Tra-
duzido de TED GURR, Why M en Rebel, Princeton University ,Press,
+ I à custa
,..._ _ _.;!;..jda organização R aumenta L=----:r--;:~:::~~~:-, Nova Jersey, 1971, págs. 347-351).
de O ~eu" su!:'ortel R aumenta
I -I entre os grupos institucional - a continuidade :.;..
4: '"'ão organizados das sançõest~

"R aumenta"
a severidade, .

+
+

+ "Valores"
O aum-enta seu de consumo R au.mento dos
apelo à violência "Valores" ou estoq~es de
com; ajuda dos + ess'enç:iais D "valores" de O
slmbolos

11 IR das
aumento
possibilidades I,
ou de aquisição de
o aumenta D "valores" de O
seu suporte +
institucional

o aumenta +
seu controle
coercitivo

Fig. ,1 - Um modelo do processo de violência política


R =regime. D = opositores

'321 325
INTRODUÇAO

Nas grandes tipologias clássicas, as de Tonnies e de Durkheim, de


Park e de Redfield, o sistema social se transformava, de uma for-
ma ou de outra, com o tempo. Viu-se, ao contrário, que era freqüen-
temente difícil achar de novo a história no quadro das análises estru-
.• ,c
turo-funcionalistas ou sistêmicas. Nesta derradeira parte, seria inte-
r'essante confrontar o sistema social com a história e, em semelhante
perspectiva, tentar reconstruir a gênese ~a mudança social com auxÍ-
lio' de modelos teóricos recentes. Esta última, com efeito, não se
produz de si mesma, como propendiam a crer, no seu quadro de
pensamento evolucionista, autores como Park· e Redfield, para os
quais a industrialização, ou a urbanização, conduzia quase natural-
mente à desintegração social e à mudança de sistema. Para estudar
os' :mecanismos de transformação social, parece indispensável atuali-
zar' suas fontes conflituais e tomar igualmente em consideração, em
cada caso de mudança estudado, o papel desempenhado pelas ideo-
logias.

N um primeiro capítulo, seria interessante, antes de tudo, examinar


as relações existentes entre as desigualdades sócio-econômicas, as
classes sociais e as tensões mais ou menos vivas que podem desen··
volver-se no seio do sistema social. As classes sociais são capazes
de constituir, com efeito, uma fonte essencial da mudança social, na
medida em que entretêm relações conflituais.
Notemos de início que há casos em que elas não desempenham
esse papel, se analisadas em termos de gradação ou, ainda, numa
perspectiva funcional. Ossowski observa, assim, que elas podem ser
concebidas segundo relações de ordenamento que levam a um sis-
tema de estratificação social, graduado e não conflitual, em que a
classe vem a identificar-se com o estrato. Do mesmo modo, numa
perspectiva funcional, que pode apoiar-se em certos textos de Marx
(o último capítulo de O Capital, por exemplo), as classes preenchem
tarefas específicas e necessárias ao funcionamento do sistema socia1.

329
Como já o haviam notado Kingsley Davies e Wilbert Moore (1), ção de classe, muito forte. Recusando, na esteira de outros, (3) a tese
vêem-se então estreitar, para manter também a expressão de Ossowski, do emburguesamento da elasse operária, mostra Runciman, igual-
laços de ordenamento ou de dependência recíproca. mente, a partir de uma análise de grande sutileza, que OS operáriàs
Laços de dependência unilaterais criam, ao contrário, relações pro- que chegam a identificar-se com a classe média, seja por causa de
pícias à emergência dos conflitos de interesse entre classes opostas. sua origem social, seja ainda em função de sua renda elevada ou
Além das indicadas relações estruturais, Ossowski sublinha, também, de seu tipo de residência, nem por isso adotam as normas e as
que a consciência de classe vem acentuar a intensidade daqueles con- convicções políticas daquela classe. Mesmo quando ela lhes serve de
flitos, que de outro modo permaneceriam latentes. É o que Marx grupo normativo de referência, a especificidade deles não é abolida,
só {Xlr esse fato. A oposição mais ou menos consciente que as classes
havia, já, afirmado, num texto que se tornou, hoje, clássico. A fim
~ociais movem umas às outras introduz, assim, no sistema social,
de relatar o comportamento eleitoral da classe camponesa, que .sus-
uni elemento fortemente conflitual. Para reduzir-lhe a intensidade, Q
tentou com o seu voto a candidatura de Luís Napoleão Bonapar.te, sistema aciona, com freqüência, mecanismos de socialização, que ten-
1--farx evidenciou o fato de que, se a gente do campo parece fOffilar:, dem a facilitar a reprodução das normas próprias das categorias do-
objetivamente, uma classe social, na medida em que se acha sujejta minantes. Na França, por exemplo, sociólogos põem em causa o
a condições econômicas comuns, realmente não constitui uma, em .v~r:­ . l'
funcionamento da escola, considerando que ela não é senão um ins-
tude de não ter consciência de sua própria especificidade em Jace trumento de reprodução social adaptado aos anseios das classes do-
das demais classes sociais. Do mesmo 'modo, a relação assimétricÇl. minantes. Tal, e para exemplificar, a posição de Pierre Bourdieu, en,l
e conflitual não pode verdadeiramente existir, nem, com mais for:te alguns de seus trabalhos. (4) Mas, no texto aqui apresentado, eSSe
razão, dar origem a um processo de mudança social. Luckacs tam- ê,utor parece introduzir a idéia de que a escola e seus diplomas nã9
bém enfatizará o fato de que a consciência classista é indispensável seriam verdadeiramente valorizados senão por aqueles que, devido à~
à formação de uma classe social atuante por si mesma, com ajuda· de suas condições sociais desfavoráveis, não podem, em verdade, tirar
um partido político específico. (2) Alguns, como, por exemplo, Alún proveito deles. O diploma seria, ao contrário, menos útil para os
Touraine, acham, contudo, que, no caso da classe operária, essa cons:- descendentes das camadas dominantes, que se beneficiariam de su<,1
ciência classista encontra-se mais principalmente ligada a um momento situação de classe e não lhe atribuiriam, pOrtanto, grande conside:'
particular do que desenvolvimento econômico, correspondente às a~i,­ ração. Nesta última perspectiva, a escola torna-se, antes, disfuncio.-
vidades industriais do fim do século XIX e do princípio do século nal: a estrutura social permanecendo estática, quaisquer que sejam
XX. Foi naquele momento, essencialmente (a fase B), que a classe os bons resultados escolares alcançados pelos descendentes das elas'-
operária adquiriu forte consciência de si mesma e chegou realmente ses médias ou desfavorecidas, a pura e simples reprodução social pa-
a opor-se como classe às outras classes sociais, no quadro de ~ma rece agora conduzir a fortes tensões socioculturais, no seio do sistem~.
oposição que se referia à totalidade de uma sociedade. Segundo Tou·· A. partir de uma aproximação teórica muito diferente, Raymond Bou-
raine, a consciência classista da classe operária está arriscada a fi0t don também concluiu pelo caráter disfuncional do sistema escolar
substituída, na civilização industrial, por uma simples consciência', da francês, que se revela incapaz de levar a "verdadeiras carreiras pro-
estratificação social, que não poderia conduzir, como tal, à luta cont~a fissionais. Este aspecto é ainda mais acentuado, segundo ele, uma
butros grupos sociais ou à mudança. Os movimentos sociais nem por vez que os próprios descendentes das classes favorecidas estão agora
isso desapareceriam, mas teriam, daí por diante, novas bases. Parece, ameaçados de regressão social. Em semelhante perspectiva, o siste'-
apesar de tudo, que a consciência de classe não se desvanece na pre- má escolar francês, longe de corrigir as desigualdades socioculturais,
é de molde a provocar crises sociais, de que a de maio de 1968
tensa sociedade da abundância. Runciman acentua, com efeito, que constituiria, segundo Boudon, uma ilustração.
a .classe operária, como a classe média, conserva, hoje, uma autofilia:-
(3) Ver, por exemplo, ]. Goldthorpe, D. Lockwood, F. Bachofer, J. Platt,
(1) K. Davies e W. Moore, "Some principIes of stratification ", Ameríc~'n Vouvrier de l'Abondance, Paris, Le Seuil, 1972, e G. Miche1at e M. Simon,
Saciological Revie'W, n. 2, 1945. Ver também a crítica de Melvin TumÍn, .., Some "Classe sociale objective, classe sociaIe subjective et comportement électoral ''',
principIes of stratification. A criticaI analysis ", American Sociological Revie'lJ!, Revue française de Soci%gi!!, outubro-dezembro de 1971.
agosto de 1953. , (4). Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, La l'eproduction~ Pads, Ed.
(2) G. Luckacs, Histoire et conscience de classe, Paris, Ed. de Minuit, 1960. de Minuit, 1970.

330 331
A estrutura de classes e as desigualdades socio-econômicas são valores nem por isso desaparecem. É o que Himmelstrand demonstra,
igualmente responsáveis, segundo Jean-Claude Chamboredon, pela admiravelmente, em sua análise das diversas significações da despo··
delinqüência juvenil, que Se manifesta na França. Seu fator deter- litização. O autor assinala, de seu lado, que, mesmo quando a política
minante não é mais a simples desorganização suscitada pelo nasci· se torna mais instrumental, a despolitização aparece, sempre, comD
mento das sociedades industriais, mas a rigidez de uma estrutura "falsa" ou "escondida", conservando uma ideologia latente forte
social é, antes, o que limita, fortemente, a mobilidade social e acar- impacto sobre os comportamentos dos atores sociais. Para ser prag-
reta certos tipos de delinqüência anômica. Este fenômeno seria mais mática, uma política pode, assim, não ser, por isso, menos ideológica.
.particularmente marcado em relação a frações específicas dasclas- Nos Estados Unidos, por exemplo, país onde a política instru-
ses médias perturbadas pelas conseqüências disfuncionais de sua socia- mentaI parece largamente impor-se, dada a grande tecnicidade dos
lização antecipadora, que elas não chegariam a pôr em adequação problemas, as ideologias manifestas parecem, ainda na época atual,
com a sua situação atual. Notou-se, precedentemente, que um risco preservar a sua força. Mesmo que não sejam a verdadeira expres~
de regressão social, ou uma socialização defeituosa, são suscetíveis são das próprias classes sociais (o que confirmaria a tese de Haber-
de suscitar desvios de comportamento entre as classes favorecidas. mas), nem por isso facilitam menos o renascimento dos conflitos
Estas mesmas características explicam, legalmente, a delinqüência dos de caráter social. Na perspectiva da sociologia radical americana, que • 1'"
jovens oriundos das classes médias e tornam compreensível, além impugna tanto as teorias liberais que concebem a sociedade em ter-
disso, uma parte da delinqüência própria dos filhos de pais que mos de equilíbrio como certas análises marxistas, Kenniston insiste
~xercem, muitas vezes, profissões marginais, no seio da classe opc- pariicularmente a respeito da oposição das gerações e da contestação
'rária. A estrutura das classes sociais, bem como as diversas inadap- dos jovens, a que atribui um aspedo positivo. Para ele, somente d.
taçóes do sistema escolar, podem, assim, conduzir a consideráveis oposição da juventude assegura a permanência do conflito necessário'
tensões sociais,. que constituem outras tantas fontes em potencial de à mudança social. Voltando, de certo modo, às análises que Herbert
eonflitos de caráter social. Blumer havia conduzido em nível interacional, Kenniston afirma que
Os referidos conflitos não se atualizam verdadeiramente senão os jovens podem escapar aos diversos mecanismos de socialização que
{}uando os atores sociais podem fazer coincidir suas reivindicações contribuem para o controle social e aprêssar, assim, a vinda da
com ideologias tendentes a racionalizar seus interesses específicos. mudança, também social.
1Iarx demonstrou, assim, em A Ideologia Alemã, como, a seu' ver, A teoria marxista da mudança social e da passagem de um tipo de
todas as classes dominantes se esforam por impor ao sistema social sociedade para outro apresenta-se, de imediato, como uma das mat3
inteiro a ideologia que lhes justifica o poder. Como as classes sociais, importantes para a compreensão da gênese das transformações histó~
sem exceção, dão origem à sua própria ideologia (Mannheim), tor- ricas. No prefácio da Contribuição à Critica da Economia Política,
na-se o conflito, para autores tão diferentes como Marx e Simmet, Marx propõe a sua síntese mais completa. Nesse texto, sobre que se
,mais impessoal e mais implacável, ao mesmo tempo. Lewis Coser debruçaram numerosos autores e, em particular, Gramsci, (5) ele faz
ilustra esta última observação, focalizando o papel que os intelectuais do modo de produção da vida material o fator provocador número
desempenham na exacerbação dos conflitos de tipo social, quando con- um .da mudança social, política ou intelectual. Segundo ele, sobre-
tribuem para reforçar o caráter ideológico das lutas sociais. Para vé~ um momento, com efeito, em que se produz uma inadequação
limitar a amplitude do conflito que opõe as classes sociais umas à'i entre o estado das forças produtivas e a natureza das relações de
Qutras, o sistema capitalista aciona, segundo Jürgen Habermas, o produção, estas tornando dificeis um desenvolvimento, acrescido, da-
teorizador da nova extrema-esquerda alemã, mecanismos de regula- quel~s forças: "Então" - diz Marx - "abre-se uma época de revo-
ção que mascaram seu caráter político e contribuem para diminuir o lução social". O texto indicado, que originou algumas vezes interpre-
impacto das ideologias. Para Habermas, como para Raymond Aron, tações estruturalistas do pe.nsamento marxista, atribui um papel decio
o surgimento de conflitos periféricos, assim como a tentativa de dar sivo à infra-estrutura na gênese da mudança social, H jamais a huma-
um aspecto cada vez mais instrumental e técnico aos problemas nidade colocando a si mesma senão problemas que ela pode resolver".
sociais, têm como conseqüência atenuar a situação conflitual entre as Para Ernst Bloch, é igualmente importante focalizar o peso das
principais classes e diminuir, assim, o peso das ideologias. Não obs-
tante, segundo Aron, se os sistemas globais de interpretação pare-
-cem perder um pouco de seu caráter sistemático, as hierarquias de (5) A. Gramsc.i, Oeuvres compliti'S~ Paris, Ed. Sociales, pág. 63.

332 333

23 -T.S.
idéias e das utopias na transformação das sociedades. U ninclo-se, deste bém' se esforçaram por superar a oposlçao entre sociologia do con-
ponto de vista, aos trabalhos de Weber, (6) ele tem, assim, tendência flito e estruturo-funcionalismo: Lockwood entende salvar, deste
para insistir nos processos espirituais e religiosos que constituem, rI modo, uma parte específica das teorias funcionalistas, aproximan-
seu ver, um fator decisivo no desencadeamento dos diversos movimen- do-as dos modelos elaborados pelos sociólogos do conflito e, em par-
tos milenaristas e, notadamente, da guerra dos camponeses, condu- ticular, de Marx. Depois de haver sublinhado que os teoricistas do
zida por Thomas Munzer contra o poder senhorial. conflito, tais como Dahrendorf, criticam, sobretudo, um funciona-
Insistindo talvez mais do que Bloch nas condições objetivas da lismo normativo, fundado sobre uma análise em termos de equilíbrio,
mudança social, Althusser também não revela menos que as idéias, (' Lockwood, próximo, desse ponto de vista, de Godelier, (7) adianta,
a superestrutura em seu conjunto, possuem uma "eficácia própria", por seu turno, a idéia de que conviria ligar a aproximação marxista do
a respeito da qual lhe parece indispensável interrogar-se mais lon- conflito ao conflito "sistêmico", antes resultante do arranjo das par-
gamente do que foi feito até o presente. Para ele, com efeito, as tes no interior do sistema global do que no engendrado pelos pró-
contradições não operam de maneira simples e mais ou menos mecâ- prios atores. A mudança nasce então do conflito entre as partes do
nica: são, ao contrário, sempre, superdeterminadas". Althusser con-
H
sistema e não mais entre os atores. É preciso notar, apesar de tudo,
vida-nos, assim, a fazer uma análise mais atenta das ideologias ou que essa aproximação das teorias funcionalistas e do modelo mar-
das tradições políticas que, por conseguinte, figuram como elemen- xista não pode realizar-se senão a partir de uma interpretação PJr - 1"
tos essenciais das transformações históricas. Embora pertencendo, por demais estruturalista da obra de Marx.
seu lado, à sociologia americana mais clássica, William Ogburn sus- Robert Nisbet, um dos mais importantes teoricistas atuais da his-
tenta, igualmente, que os diversos elementos determinantes da evolu- tória da sociologia, rejeita, por seu lado, o conjunto dos modelos que,
ção das sociedades não se transformam no mesmo ritmo: pode resul- no prolongamento do evolucionismo clássico, aceitam os postulados de
tar disso, segundo ele, uma decalagem" entre, por exemplo, a cultu-
H
imanência, de continuidade, de diferenciação, de orientação predeter-
ra de adaptação, assaz lenta, e os elementos materiais da existência minada e de uniformidade. Ele acusa, assim Marx, como acusa ;Par-
que, pelo contrário, evoluem, com freqüência, mais depressa. As dife- sons. (8) de terem tais postulados, que levam a uma concepção meta-·
rentes variáveis que condicionam a mudança social parecem, todas, fórica da história, sem grande relação com os acontecimentos reais. E
ser, em conseqüência, dotadas de autonomia relativa, urnas quanto recorda que não há uma História determinada por antecipação e
às outras.
linear, mas histórias múltiplas e diversas. De maneira mais geral, a
Wright Mills tem razão, todavia, de sublinhar que a hipótese d~ posição de Nisbet o conduz a impugnar tanto as teorias conflituais
H decalagem cultural" está ligada a uma concepção da mudança social.
da mudança social, que revestem, segundo ele, modelos abstratos sobre
baseada na simples constatação de que os diversos elementos do sis- a realidade empírica, quanto as teorias funcionalistas mais ou menos
tema social evoluem em ritmos diferentes, mascarando, do mesmo neo-evolucionistas, que se esforçam, COm auxílio do processo da dife-
passo, o papel representado na história pelo defrontamento dos ato- renciação, no sentido de relatar a mudança dos sistemas sociais e não
res sociais: é, também, em função do conflito, que opõe uns a03 simplesmente o seu equilíbrio. Denunciando com razão certas metáfo-
outros os grupos sociais, que a indústria e a cultura se transformam. ras da mudança imanente, Nisbet atribui, entretanto, uma impor-
De Marx a Coser, Ou a Mills, é, pois, o conflito que suscita a'S tância por demais exclusiva aoS fatores exteriores ao sistema social,
perturbações sociais e provoca a evolução das sociedades. A despeito que seriam, presume-se, capazes de explicar por si mesmos as muta-
de suas fortes divergências e da diversidade das escalas teóricas de ções_ Assim, ele tende a passar em silêncio os fatores internos, que.
referência, a maioria dos autores apresentados nesta última parte ana- por sua natureza propriamente conflitual, provocam igualmente trans-
lisam, por conseguinte, as transformações históricas dos sistemas so- formação do sistema. Sua crítica meritória das teses evolucionistas o
ciais a partir dos conflitos em que se defrontam OS múltiplos grupos leva a subestimar a contribuição, todavia indispensável, de uma teo-
sociais. Era, pelo contrário, nas disfunções que os adeptos de um ria geral, que entretém, no mais das vezes, estreitas relações com a
funcionalismo relativizado viam, por seu lado, o elemento essencial
suscetível de explicar a evolução dos sistemas sociais. Alguns bm- (7) Maurice Godelier, "Systeme, structure et contradiction dans Le Capi-
tal ", Les temps 1'nodernes, novembro, 1966, pág. 850.
(8) A posição neo-evolucionista de Parsons é muito particularmente marcada
(6) Max Weber, L'éthique protestante et l'esprit du caPitalisme, Paris, em seu trabalho Sociétés, Paris, Dunod, 1973 (Introdução de François Chazel).
Plon, 1964. Ver também Georges Balandier, Sens et Puissance, Paris, P.V.F., 1971, capo 1.

334 335
sociologia conflitual. Charles Tilly, por fim, critica, por sua vez e
também duramente, as teorias evolucionistas, sejam quais forem.
Afirma que as teorias sociológicas ganhariam em inspirar-se em pes-
quisas históricas, particularmente quando estas descrevem os proces-
sos de mudança social regressiva. Mas, se ele sublinha, como Nisbet, CAPÍTuLO I
° caráter não linear da história, fá-lo, sobretudo, para insistir sobre
a devolução dos sistemas sociais, que examina a partir de um grande CLASSES SOCIAIS E
número de exemplos tomados, com mais freqüência, aos trabalhos dos
historiadores franceses. Tilly deseja, por conseguinte, que haja igual- DESIGUALDADES SOCIOCULTURAIS
mente interesse pelos "vencidos" da história e pelo destino dos mes-
mos. Esse belíssimo texto tem, por isso, a vantagem de realçar, ao
mesmo tempo, oS múltiplos sentidos da história, que afetam diferen-
temente cada um dos grupos sociais e os conflitos através dos quais
esses grupos tentam construir a sua própria história. CLASSE E CONSCI~NCIA DE CLASSE : 'f

KARL MARX

Os camponeses que cultivam pequenas parcelas agrícolas constituem


uma enorme massa, cujos membros vivem todos na mesma situação,
sem serem, entretanto, unidos entre si por meio de relações variadas.
Seu modo de produção isola-os uns dos outros, ao invés de levá-los a
um relacionamento mútuo. O isolamento em que vivem é ainda agra-
vado pelo mau estado dos meios de comunicação na França e pela
pobreza deles, camponeses. A exploração da parcela não permite
nenhuma divisão do trabalho, nenhuma utilização dos métodos cien-
tíficos e, por conseguinte, nenhuma diversidade de desenvolvimento,
nenhuma variedade de talentos, nenhuma riqueza de relações sociai"3.
Cada uma das famílias camponesas é quase completamente auto-sufi-
ciente. Ela mesma produz, diretamente, a maior parte do que con- ,
some e assim consegue seus meios de subsistência mais por um inter- i
câmbio COm a natureza do que com a sociedade. A parcela, o cam-
ponês e sua família; ao lado, uma outra parcela, um outro campo-
nês e uma outra família. Certo número dessas famílias forma uma
aldeia, e determinado número de aldeias, um departamento. Assim,
a grande massa da nação francesa é constituída por simples adição
de grandezas do mesmo nome, quase da mesma maneira pela qual um
j,
saco cheio de batatas forma um saco de batatas. Na medida em que i
milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que i
as separam umas das outras e opõem seu gênero de vida, seus inte-
resses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, constituem !1
uma classe. Mas não a constituem na medida em que não existe entre
os camponeses, cultivadores de pequenas parcelas agrícolas, senão um I
1

336 337

J
[
-'---
liame local e na em que a similitude de seus interesses não cria dida nos dois casos como repousando sobre liames de causali-
entre eles nenhuma comunidade, nenhuma ligação nacional, nem orga- dade ...
nização política nenhuma. É por isso que eles são incapazes de defen- Em todos os casos, podemos tratar o sistema de dependência e o
der seus interesses de classe em seu próprio nome, quer por inter- de gradação não somente como dois aspectos diferentes de uma mes-
médio de um parlamento, quer por intermédio de uma assembléia.
ma realidade, mas ainda como dois aspectos diferentes da mesma
Não podem representar-se: devem ser representados. Ao mesmo divisão de uma mesma realidade.
tempo, os representantes precisam aparecer-lhes COmo seus amos, como
uma autoridade superior, como um poderio governamental absoluto,
que os protege contra as outras classes 'e lhes envie, de cima, a chuva Duas interpretações da dependência recíproca
e o bom tempo. A influência política dos camponeses cultivadores de
pequenas parcelas encontra, por conseguinte, Sua última expressão Quando caracterizei a segunda maneira de compreender os sis-
na subordinação da sociedade ao poder executivo (Excerto de KARL temas de classes, falei das relações de dependência unilateral ou
MARX, Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte, Paris, Ed. Sociales, recíproca. A dependência unilateral, nas relações sociais, é de ordi-
págs. 126-127). .nário compreendida como o fato de depender do poder de alguém.
Quanto à dependência recíproca, pode ela ter dois aspectos. O pri-
meiro é a dependência "orgânica": os grupos são necessários uns
aos outros, dado que cada um cumpra uma outra tarefa. O segundo
OS TIPOS DE INTERPRETAÇÃO DA ESTRUTURA SOCIAL aspecto é a dependência negativa dos interesses: os sucessos de unia
classe são os reveses de outra ...
ENSAIO DE CLASSIFICAÇÃO
Os critérios da cOtesão interna
STANISLAW OSSOWSKI
A distinção entre as duas principais maneiras de compreender os
sistemas de classes é independente da escolha dos critérios da filia-
ção de classe: tanto pode tratar-se da consciência social quanto de
As relações de ordena1w.Jnto e as relações
de dependência nos sistemas de classe critérios "objetivos", com exclusão de todos os mais. Pouco im-
porta também se, quando da delimitação das fronteiras entre classes,
se recorrer a critérios culturais ou ao da comunicabilidade ...
São de dois gêneros as relações que nos permitem falar de um
sistema de classe: relações de ordenamento e relações de dependên-
Se aceitarmos ver nas classes grupos constituindo um siste1114 de
Cta . ..
grupos na estrutura social, precisaremos não esquecer que o liame
social, o esprit de corps (em francês no texto original), a "comuni-
Às duas categorias de relações correspondem duas interpretações cabilidade", o "sentimento de ser estranho um ao outro" não são
fundamentais da classe social. Temos em vista a primeira, no caso critérios suficientes para que os grupos diferenciados sobre essa base
em que a divisão em classes é compreendida como uma divisão em possam ser considerados como um sistema de classes. Um sistema -
grupos diferenciados, em razão do grau em que o caráter, que é o como ordenamento, em que cada elemento tem uma posição deter-
critério de semelhante divisão, lhes pertence; por exemplo, o mon- minada em face dos elementos restantes - não pode ser construído
tante da renda. E, como, em virtude do grau referido, tais grupos senão com auxílio de relações de ordenamento ou de relações de de-
se organizam num sistema de classes superiores e inferiores, a pendência.
estrutura de classe não tem senão uma significação, no caso: é Em compensação, o esprit de corps (em francês no texto original),
a mesma coisa que estratificação das classes . .. a consciência social, a comu1)icabilidade, a cultura de.. classe consti-
De acordo com a segunda interpretação, as classes sociais consti- tuem outros tantos critérios cuja coincidência com as fronteiras de
tuem um sistema, em razão das relações de dependência unilateral classes, num sistema oestabelecido por um outro meio, é de uma im-
ou recíproca que se estabelecem entre elas, dependência compreen- portância muito grande para o caráter de classe da sociedade ...

~
338 339
Os atributos das classes e os gêneros de dependência mente, para sublinhar uma dependência fundada sobre a cooperaçã')
no esquema dicotômico e no esquema funcional e sobre a divisão das tarefas: os proprietários da terra, oS do capital
e os da força física são, no esquema de Adam Smith, indispensáveis
Examinamos, na curso deste artigo, três esquemas fundamentais uns aos 'Outros.
da estrutura de classes... Dois deles (o dicotômico e o funcional) Mas tal divisão em três classes, em razão das funções, no pro·
compreendem a estrutura social coma um sistema de dependência, cesso da produção, é, ao mesmo tempo, uma divisão em função das
e o terceiro a compreende como um sistema de gradação. Nos esque- fontes de renda (renda fundiária, lucro, salário de operário). Neste
mas dos sistemas de dependência, os diversos elementos de um sis- caso, a diversidade das fontes de renda - ao passo que as depen-
tema se caracterizam por atributos diferentes; no de gradação, por dências são recíprocas - conduz a oposições de interesses. Assim,
graus diferentes de um mesmo caráter. (9) no esquema funcional de Smith, encontramos os dois aspectos da de-
Isolamos o sistema dicotômico, não porque ele apresente só dois pendência recíproca. O segundo aspecto, a saber, a dependência atra-
elementos, mas porque estes elementos são definidos por atributos vés do antagonismo, é ainda mais nitidamente sublinhado por Ma-
opostos: os que trabalham/os que não trabalham; exploradores/ dison ...
jexplorados; governantes/governados; possuidores/não possuidores. Assim, portanto, os dois aspectos da dependência recíproca podem
Isto faz das classes, no esquema em questão, os elementos de uma entrar em jogo tanto nas concepções dicotômicas quanto nas de ele-
relação assimétrica, definida como uma dependência unilateral de mentos múltiplos do sistema das classes compreendido como um
tipo: poder ou influência decisiva sobre o destino de outrem. O sistema de dependência, ainda que o esquema dicotômico de atribu-
escravo está sob a autoridade de seu amo; o camponês, sob a do tos opostos convenha muito particularmente para pôr em relevo as
proprietário da terra; o operário, em período de desemprego, à mercê dependências antagônicas, e o esquema funcional de vários elementos,
da boa ou da má vontade do capitalista. Isso não exclui, todavia, a dependência fundada na cooperação.
uma dependência funcional recíproca entre os membros da relação
assimétrica.
Uma dependência recíproca desse gênero cria, antes de tudo" um Duas interpretações da dicotomia no esquema de Marx
antagonismo: a oposição dos interesses é, evidentemente, uma rela-
ção simétrica. (10) Mas a dependêncil) recíproca entre as classes com Temos tratado o esquema de Marx COmo resultado da intersecção
atributos opostos é, às vezes, também, qualificada de outro modo: de três dicotomias. A luz da perspectiva do desenvolvimento sodal
como uma dependência baseada na cooperação e na divisão das ta- esboçada por Marx, talvez conviesse ver, antes, na concepção mar-
xista da estrutura social. uma dicotomia única fundada em três cri-
refas" . térios de divisão. Nesta última interpretação, aS duas classes funda-
Os termos em que geralmente é formulado o esquema dicotômico mentais se opõem mutuamente, em razão de três pares de atributqa
(governantes/governados, exploradores/explorados etc.) resolvem ca- opostos: a classe dos indivíduos que dispõem dos meios de produção,
tegoricamente a questão: trata-se de urna dependência de sentido "ecorrem a mão-de-<lbra assalariada e não trabalham (11) opõe-se
único. É por isso que consideramos a denominação "esquema dico- à dos que não dispõem de meios de produção, não empregam mão-
tômico" como abreviatura de "esquema dicotômico de dependência de-obra assalariada, mas, em compensação, trabalham como assala-
unilateral", ou de "esquema dicotômico de atributos opostos". riados.
Os atributos das classes, no esquema funcional de vários elementos, Esse tipo ideal da estrutura dicotômica da sociedade capitalista
sugerem a existência de relações mútuas. Eles convêm, principal- não foi realizado em parte alguma do mundo que constituiu objeto
----- de Marx e de seus discípulos, dado que a coincidência dos atribu-
(9) Cf. Llevellyn Gross: "An attribute refers to a quality which has an tos jamais é total. Essa coincidência aumenta ao mesmo tempo que
all-or-no existence. A variable refers to a quality which exists in varying cresce a polarização econômica da sociedade; decresce, quando
degrees" ("The Use of the Class Concept in Social Research", A.I.S.,
aumenta o número dos indivíduos medianamente ricos; mas, sempre,
março de 1949).
(lO) Adam Smith, entre outros, põe em evidência a existência simultânea
de uma dependência unilateral e de uma dependência recíproca entre operário (11) Lembramo-nos de que, num contexto semelhante, as funções de direção
c industrial. não são consideradas como um trabalho.

340 341
entre as duas classes, que preenchem a um tempo as três condições considerar-se como filha de suas obras, mas esta consclencia de uma
da dicotomia ideal, estende-se a esfera daqueles a quem faltam uma totalidade em ato não se desenvolve senão quando o trabalho indus-
trial se torna, em todos os níveis, um sistema de organização, quan-
Tipos de interpretação da e.sotrutura de classes do técnica, administrativa e economicamente se impõem modelos ra-
Esquemas fundados em Esquemas fundados em cionalizadores, aceitos, de algum modo, por todos os atores. É quan-
relações de dependência relações de ordenamento do essa referência à totalidade coexiste ao lado da manutenção dos
(As classes diferem (As classes diferem pelo.grau interesses privados tradicionais que surge a consciência de classe ...
por seus atribatos) da grandeza variável)
I I A entrada no sistema técnico de trabalho é que transforma, disse-
mo-lo, O princípio de totalidade, a concepção da sociedade. Doravante
I
Esquema funcional
I
Esquemas dicotômicos
I
Esquema de
I
Esquema de poderá nascer a idéia de uma sociedade, de uma ordem social indus-
(Esquema de atributos opostos gradação gradação trial. Ao meSmO tempo, no momento daquela entrada, pelo menos em
de dependência (Esquemas de depen- simples sintético numerosos casos, o princípio de identidade e o de oposição conservam
recíproca) dência unilateral)
suas formas tradicionais: o operário defende a sua ocupação, a um
I tempo profissional e economicamente, e, de uma fonua concomitan-
I
Dicotomia
I
Intersecção de duas
te, ataca o lucro e o poder dos capitalistas. Se o operário não puder
apoiar-se em seu ofício, como é O caso do trabalho dos O. S. em
simples ou três divisões
dicotômicas cadeia sem-fim, essa complexa união ruirá e dela não subsistirá senão
(Esquema marxista uma hostilidade ao empregador, ao mesmo tempo que um desejO de
clássico) fazer acrescer o salário a que o interesse pelo trabalho foi sacrifi-
cado.
ou duas das condições requeridas para pertencerem a uma das clas-
ses em oposição. Essa esfera, a das "classes intermediárias", constituÍ- A consclencia de classe é, pois, a forma construtiva da consciência
ria, nesse aspecto do esquema, uma certa margem entre as classes operária, que corresponde à fase central da evolução do trabalho.
da dicotomia ideal, sendo certo que a palavra "margem" não tem Ainda esta definição é perigosa. A consciência de classe, do mesmQ
aqui conotação quantitativa: conforme a estrutura da sociedade con- modo que a fase B da evolução do trabalho, não é uma realização
siderada, a coletividade que lhe corresponde pode ser mais numerosa simples, definível em si mesma. O apelo ao ofício, aos direitos do
do que uma das classes fundamentais, ou, mesmo, do que cada uma trabalho e do esforço, que constitui, aqui, o princípio em ;nome do
dentre elas (Excerto de S. OSSOWSKI, La structure de c/asses dans quai são formuladas as reivindicações, está na dependência da antiga
la conscience sociale, ,Paris, Anthropos, 1971, págs. 241-252). consciência operária. A consciência da sociedade industrial é um dos
elementos que constituem a nova consciência operária.
Portanto, a consciência de classe é sempre dominada por uma con-
tradição, tende sempre a estourar. No ramo dos metais-equipamento,
o MOMENTO DA CONSCI~NCIA DE CLASSE
onde o ofício é muito preservado, a defesa profissional tende, com
freqüência, a transcender a consciência de classe; no ramo dos me-
ALAIN TOURAINE
tais-fabricação, onde se faz sentir com mais força o peso do tra-
balho em grande série, a consciência de classe se aproxima, muitas
vezes, de uma oposição econômica.
A formação da consciência de classe supõe que o conflito privado
entre o patrão e o operário, o trabalho e o dinheiro torne-se um Mas seria ir demasiado longe dissolver a noção de consciência de
conflito social, de sorte que cada um dos atores possa invocar a to- classe, em nome das observações que precedem. Dupla e contraditória,
talidade da sociedade e o interesse geral, ao invés de somente de- jamais completa, nem por isso essa consciência existe menos. Ela é a
.fender seus direitos particulares. A indústria permite à sociedade o união real de dois princípios sucessivos e opostos de orientação da

342 343
cohsclencia operária: a consciência da classe operária e a da socie~ A AUTOFILIAÇAO DE CLASSE
dade industrial.
W. G. RUNCIMAN
Tudo quanto foi dito da antiga consciência operária pode ser assim
resumido: as classes são unidades históricas reais, ousar~se-ia ql,.lase
dizer grupos. Um operário ou um patrão não se definem por seus
Em nosso inquérito, procurou-se saber, de início, junto às pessoas
problemas e interesses na sociedade industrial, mas pelo seu ser social. in'terrogadas - por meio de uma pergunta aberta - a que "classe"
Uma classe é marcada por um tipo de relações sociais, por ,u.ma pensavam pertencer, e, depois de terem sido convidadas, as que não
cultura e, talvez, por um tipo modal de personalidade. Vem daí que quiseram identi ficar-se com nenhuma classe, a precisarem a sua po-
cada classe mobiliza tão facilmente, para a própria defesa, as id~ias sição, fez-se a todas uma pergunta que permitisse definir o que
e os sentimentos de seus membros. Inversamente, uma sociedade entendiam pelos termos utilizados. O que deu as quatro seguintes
industrial é sempre, em seu princípio, uma sociedade de massa;. os questões: I) "De que classe social o Sr. acredita fazer parte 1". 2)
indivíduos, os grupos, as categorias sociais se definem, aí, por seu (Para OS que não respondiam à primeira) "Se lhe perguntássemos
- O Sr. pertence à classe média ou à classe operária? - em qual
lugar no conjunto. O princípio de totalidade, outrora prolongamen-
delas se colocaria?". 3) "Em que gênero de pessoas pensa o Sr.,
to ou projeção do princípio de identidade ou do de oposição, tor- qüa"ndo fala em classe média?". 4) "Em que gênero de pessoas pen-
na-se, daí por diante, o principal. A consciência de classe tira sua sa, quando fala em classe operária?". Por ocasião da pergunta to-'
força e sua importância dessa união, sempre incerta, entre urna cons- talmente aberta, uma pequena proporção das pessoas interrogadas
ciência de grupo e a consciência de um conjunto histórico. não. quis colocar-se em nenhuma classe, mas o número das que per-
Tal o paradoxo da noção de classe, na acepção que lhe deram o sistiram nessa disposição, mesmo depois que se tivesse insistido, atin-
movimento operário e seus inspiradores marxistas: ela define, :ao giu somente 1% do total, incluindo, o que é bem engraçado, a única
mulher U titulada" da amostragem.
mesmo tempo, uma coletividade social particular e um principio ·ge-
ral de funcionamento da sociedade. As doutrinas sociais podem esfor- As perguntas relativas à significação dos termos produziram, como
çar-se por ligar completamente estes dois aspectos, mas a análise so- se eôperava, (12) grande diversidade de respostas, muitas formulada>
ciológica deve separá-los e mostrar que a consciência de classe nasce e11.1 termos de ocupação profissional. Algumas eram, antes, vagas, en-
de seu encontro conflitual. quanto outras traçavam um limite precisa - mas diferentemente co-
]o~do - entre as profissões de "classe média" e as de operários.
Nas sociedades pré-industriais, a consclencia de grupo se C010C,1 Outras ficavam numa apreciação pessoal de aprovação ou desapro-
dentro do reconhecimento de uma ordem social fundada sobre ga- vação, que poderia ou não ter relações com a profissão. Outras ainda
rantias meta-sociais. É somente nas sociedades prato-industriais, do- eram expressas de maneira tão geral, em termos de pessoas "médias"
minadas pelo ofício e pelo lucro, que a consciência de grupo se acha ou :' trivIais", que não se podia descobrir, nelas, nenhuma imagem
libertada. O que pode conduzir a uma consciência proletária, como precisa da estrutura social. Um pequeno número de pessoas deu res-
é o caso, particularmente, nas minas, mas, quando se entra, real- po.stas embrulhadas ou, mesmo, incompreensíveis, e algumas decla-
mente, na civilização industrial, na racionalização, nasce a consciên- raram não saber o que significava II classe média", nem "classe
cia de classe, ou, então, Um economismo elementar. A medida que operária".
se penetra mais profundamente na civilização industrial, que o ofício Tal diversidade revela que não é legítimo deduzir do fato de um
e o lucro perdem algo de sua importância, forma-se a nOva consciên- trabalhador manual descrever-se como fazendo parte da "classe mé-
cia operária, ou, na sua falta, uma simples consciência da estratifi- dia'!: que ele tenha "embourgeiosé", (13) ou deseje emburguesar-se.
cação e das tensões, que essa civilização acarreta, entre estratos e
categorias. A consciência de classe encontra-se, portanto, no limiar '(12) Cf. os resultados puh1icados em Martin, "Some Subjective Aspects of
da sociedade industrial: representa o acontecimento imprevisto e fa- Social Stratification ", in D. V. Glass, ed., Social Mobílity in Britain, Londres,
tal, que lhe marca o nascimento (Excerto le ALAIN TOURAINE, I,. 1954, capo 3.
conscience ouvriere, Paris, Le Seui!, 1966, pág. 119 e págs. 329-331 l· (13) Em francês no texto (N.d.T. do original francês).

344 345
Do mesmo modo, uma pessoa de profissão não manual, que se des- para uma e outra class'e. No tocante às significações dadas à "classe
creva como fazendo parte da "classe operária", pode querer dizer média", utilizaram-se as seguintes categorias de codificação: 1) os
alguma coisa de muito diferente da adesão consciente ao proletaria- trabalhadores não manuais; 2) HOS que se situam entre os ponto;;;
do, como a frase parece sugerir. Ainda que as pessoas possam dar extremos da escala"; 3) m_enção de ofícios manuais particulares; 4)
sentidos diversos à sua auto filiação de "classe", seria tão errado não 'lOS ricos"; 5) marcas de aprovação pessoal; 6) marcas de desapro-
tirar de sua auto-apreciação alguma conclusão quanto às atitudes que vação pessoal; 7) menção de elementos do estilo de vida das classes
assumem relativamente à desigualdade como fundar sobre ela gene- médias. E, quanto às significações dadas à ((classe operária": 1)
ralizações ambiciosas e temerárias sobre a fusão da camada de tra- os trabalhadores manuais; 2) as pessoas "comuns"; 3) menção de
balhadores manuais e da de não manuais. ofícios não manuais particulares; 4) H os pobres"; 5) marcas de
Grande número de respostas revela hesitação ou ambigüidade de aprovação pessoal; 6) marcas de desaprovação pessoal; 7) "todo v
atitude. Mas nenhuma sugere um modelo de hierarquia social que mu~do". As respostas que não puderam ser assimiladas a nenhum,l
difira completamente ou que seja um derribamento total do comu- das sete categorias foram classificadas em "outras" e em "não sabe".
mente admitido. Certas pessoas incluem os operários qualificados na Cada uma das categorias utilizadas recobre um"a gama assaz exten".
classe média, ou então encaixam na classe operária os empregados, sa de significações. Entretanto, mesmo quando a gama é suficient~­
os profissionais liberais (professional men), ou, mesmo, "todos 0'3 mente ampla para destruir de um só golpe toda teoria que sustenta
que trabalham". Mas ninguém filia trabalhadores braçais à classe mé- que um operário que se diz da "classe média" é um operário "em-
dia, nem descreve simultaneamente essa classe como a dos operários burguesado", as respostas demonstram que a maioria das pessoas têm
qualificados, nem a classe operária como a dos homens de negócios uma imagem bem definida de sua posição na hierarquia social e que
e das profissões liberais. É normal esperar, portanto, que os operá- quase todas as imagens podem ser reduzidas a um pequeno número
rios e suas esposas se coloquem na "classe média", que se distin- de extensas categorias. A distribuição das porcentagens figura nos
gam, de certa maneira, mesmo fraca ou confusamente, da classe ope- três quadros adiante apresentados. O primeiro dá a distribuição da,
rária "ordinária", ou "inferior", ou, para alguns, "vulgar". Seme- respostas às duas questões levantadas no início da entrevista: "Em
lhantemente, uma pessoa de ocupação não manual, que se designa sua opinião, de que classe social o Sr. faz parte?"; e, para os que
como membro da "classe operária", assimila-se a uma parte pelo não respondem: Se lhe perguntassem se pertence à classe média
H

menos da camada social dos trabalhadores manuais. Pode acontecer, ou à operária, em qual das duas o Sr. se colocaria ?". O segundo e o
no que concerne aos dois tipos dos que respondem, que assimilem terceiro quadros mostram como se distribuem as diferentes signifi-
quase todo o mundo a sua própria classe subjetiva. (14) Entretanto, cações dadas à "classe média" e à "classe operária" pelos que se
mesmo que toda generalização feita a partir da autofiliação de classe incluíam, respectivamente, numa ou noutra. Para ambas as pergun-
requeira ser nuançada com precisão à luz do sentido dado à "classe tas, a pessoa interrogada dava, por vezes, mais de uma resposta. Por
operária" ou à "classe média", parece legítimo considerar um tra- isso as porcentagens globais são superiores a cem.
balhador manual, que se inclui na "classe média" - ou um traba-
lhador não manual, que se inclui na Hclasse operária" - como se Podem-se fazer várias comparações interessantes entre os quadros
distanciando, ao menos em certo grau, da distinção ortodoxa e lar- II 'e IH. Primeiramente, o grupo menos inclinado a definir a "classe
gamente admitida entre a camada social dos não-manuais, ou "classe média" cama a dos traba1hadores não manuais é o dos trabalhado-
média", e a dos manuais, ou "classe operária". Tendo sido feitas res manuais e de suas esposas, que se incluem, eles mesmos, na
as nuanças necessárias, no que concerne à significação, a auto filiação "classe média". Em seguida, simetricamente, o grupo menos incli-
de "classe" permite, então, esclarecer a relação entre a privação rela- nado a definir a classe operária" como a dos trabalhadores ma-
OI

tiva e a desigualdade. nuais é o dos trabalhadores não manuais e de suas esposas, que
A análise possibilita patentear que quase todas as respostas relacio- se incluem, eles mesmos, na "classe operária". Este resultado con·
nadas com as interrogações do tipo HEm que gênero de pessoas o firma o de Martin, ainda que as codificações utilizadas sejam dife-
Sr. pensa, quando fala da classe ... ?" poderiam ser colocadas em rentes. (15) Somente 28% dos trabalhadores não manuais que deram
uma ou outra de sete categorias. Entre as sete, cinco são idêntica." respostas como identificados com a classe operária definem-na como

(14) Cf. Martins, op. cit., pág. 64. (15) Op. cit., págs. 59-60.

~. 346 347
QUADRO I
QUADRO II
Autofiliação de U classe n por camada socioprofissional
U Em que gênero de pessoas () Sr. pensa, quando fala de elasse média'"
Não-manuais Manuais (jJor autofiliação de classe dentro de cada camada sociofJrofissional)

Superior ou rnédia-
.superior 6% • Não-manuais Manuais
Média 51 - 22%
Média-inferior 10 7- Autofi/. Au/ofi/. Anto!il. Autofil.
Operária 19 - 52 - el. méd. cl. op. el. méd. el. op.

= j operár.
média 7 média 4
Não sabe, outra, nenhuma 14 - = operár. 14 19 - 6
} n. sabe I n. sabe 1 Tra-balhadores não manuais 49% 51 % 16% 43%
Total 100% (N = 496) ••• - "
lW'i0. tl" - 919) Os que se situam" entre a:
parte mais alta e a mais
* : uma só pessoa. baixa da escala" 11- 3- 14 - 6-
Menção de ofícios manuais
precisos l- I- 6- 0-
a dos trabalhadores manuais, parecendo assim assimilar·se, ao mesmo Os ricos 7- 23- 8- 27-
tempo, com a camada proletária. Neste grupo é que mais se tem Marcas de aprova<:ão pes·
tendência para emitir um julgamento quanto a "pessoas comuns", soai 16- 2- 27 - 2-
Marcas de de.saprovação
o qual subentende, antes, uma comum filiação a uma camada social pessoal 0- 2- 0- 6-
que englobe todo o mundo, salvo os extremos. Na mesma ordem de Menção de elemrntos do
idéias, constaía·se que um menor número ainda de trabalhadores estilo de vida próprio da
manuais que deram respostas como identificados com a "classe mé- classe média lO - 10- 12- 10-
dia" definem-na por um critério não manual. Somente 16% das pes- Outra 8- 8- 16- 5-
soas desse grupo parecem conscientemente assimilar·se à camada so- Não sabe 3- S- ó- lO -
cial dos nâo·manuais. Têm elas mais do que as outras tendência para Total 105% 108% 105% 109%
escolher um critério puramente pessoal. E várias deles - um pouco (N = 365) (N = 124) (N = 303) (N = 610)
mais numerosas do que entre OS nâo·manuais que deram respostas
como identificadas com a Hclasse média" - respondem o seguinte,
mais ou menos literalmente: "Os que se situam entre a parte mais milmente mais inclinados a compartilhar as perspectivas dos tra-
alta e a mais baixa da escala". É também neste grupo que se balhadores manrul.is propriamente ditos. Outra diferença é que os
~ncontra a maioria das respostas que não rx>dem entrar em uma das hão-manuais, que responderam incluindo-se na "classe operária", não
categorias predefinidas. adiantam quase nunca um julgamento depreciativo para caracterizar
. Há, entretanto, uma diferença entre estes dois grupos: do lado a classe média (20/0), ao passo que 150/0 dos manuais, que responde-
d6s manuais, que se consideram da classe média, a porcentagem dos ram incluindo-se naquela classe, manifestam sua desaprovação rela-
que responderam, definindo a classe operária como a dos traba- tivamente à classe operária. Os primeiros parecem, portanto, mais
lhadores manuais, é 17 pontos inferior à porcentagem simétrica, entre conscientes de sua situação de classe; os últimos, mais inclinados a
Os não-manuais identificados com a classe operária, de pessoas que sentir-se distanciados da classe operária em termos de status . ..
definem a classe média comO a dos trabalhadores não manuais. Este As porcentagens, portanto, fazem pensar que, mesmo quando ~
resultado reforça a tese segundo a qual o fato de numerosos traba- autofiliação, em termos de "classe", pode variar largamente, até para
lhadores manuais se julgarem muito diferentes da classe operária pessoas que ocupam a mesma posição na hierarquia profissional; a
tradicional não significa que eles conscientemente se assimilem à ca- diversidade, aí, não é, nem desprovida de sentido, nem fruto do
mada dos Hcolarinhos brancos" ou dos assalariados. Em contrapar- acaso. Ela é assaz extensa para sublinhar o caráter ilusório de uma
tida, os não-manuais identificados com a classe operária são verossi- análise que colocasse num só grupo todas as pessoas identificadas

348 349

24~T.S.
_ _ '1Irooo.u....,,,
QUADROU! Esta questão não permite somente testar as respostas dadas sobre
"classes". Indica também 'em que medida é a referência a outros
(( Em que .gin.ero 'de pessoas o Sr. pe1tsa~ quando fala de classe opera-ria?" grupos de filiação que sobressai no espírito das pessoas interroga-
(por auto/iliação de classe dentro de cada camada socioprofissiona/) das. Um velho aposentado, por exemplo, pode muito bem identificar-
se claramente com uma das duas classes, vendo-se, antes de tudo,
como um velho aposentado. E é possível que seja esta última imagem
Não-manutJu Manuaiso - muito mais do que sua auto filiação de classe - que lhe forneça,
Autofiliação Autofiliação Aut<.lfiliação Autofil~ão entre suas diversas filiações, sua referência máxima e constitua, tal-
el. média el. operária el. média el. operária vez mesmo, seu grupo de referência normativo. Acontece que a maio-
ria das respostas - tanto entre os trabalhádores manuais como
Trabalhadores manuais entre os não-manuais - comportava uma referência à profissão,
65 % 28% 34% 42 %
Pessoas comuns quer estivesse ou não em ligação estreita com uma distinção de classe
9- 40 - 13 - 29-
Menção de ofícios não ou com a oposição manuais - não-manuais. Mas houve um certo
.. manuais precisos 1- J- 0- 2- número de respostas de outro tipo, como o quadro IV o mostra ...
Os pobres 5- 7- 9- 9- Um exame detalhado das respostas individuais revelou que, para
Marcas de aprova~ão pes~ várias pessoas, a autofiliação de classe não tinha grande significação.
soaI 1- 10- 5- 12 - ;Eram, principalmente, de dois tipos: primeiramente, aquelas qu~,
Marcas de desaprovação apesar de sua facilidade de colocar-se em uma ou em outra classe.
pessoal 11- 1- 13- 1- não faziam, quase, ou não faziam, absolutamente, diferença entre
Todo o mundo 3~ 1- 7- 1~ elas; em segundo lugar, as cujas respostas referentes à classe esta-
Outra 4- lO ....: 7- 5- vam diretamente em contradição com a designação que faziam de
Não sabe 7- 7- 16- 4- "gente como o Sr.". Também havia um certo número dos que se
106% 107 % 106% 105% colocavam na "classe média", descrevendo as "pessoas como eles"
(N = 365) (N = 124) (N =303) (N = 610) por expressões assim: "os simples trabalhadores", ou "os .operários
qualificados", ou, ainda, "os trabalhadores qualificados". Mas estes)
embora estivessem em geral codificados sob a rubrica "classe operá-
ria, trabalhadores manuais", no quadro IV, não eram, na realidade,
COm a lidasse média" ou, ao contrário, com a "classe operária",
inco'erentes, em suas respostas: traçavam somente a linha divisória
ou que lhes atribuísse visões da sociedade absolutamente idênticas.
entre classe operária e classe média abaixo dos operários qualifica·,
Mas forma um conjunto suficientemente coerente para que dele se dos. Uma parte dos que deixavam entrever que não faziam distinção
Possam tirar conclusões. Uma só precaução suplementar deve ser significativa alguma aparecem no quadro UI entre os que definem
tomada. O único perigo que os quadros precedentes dissimulam é a classe operária como a de "todo o mundo". Mas este grupo não
este: mes,mo se a codificação for legítima, certos pares de respostas se parece, de maneira alguma, com a totalidade dos que responde-
poderão ser incoerentes. Com efeito, sendo a amostra ventilada se- ram e cuja auto filiação de classe se revelou sem grande significação.
paradamente para a classe "média" e a classe "operária", não apa- O número total dos mesmos - depois de um exame de caso por
!ecem as respostas que, tomadas duas a duas e para cada pessoa caso de todas as entrevistas - monta a 83 (6% da amostragem). A
interrogada, revelariam uma visão muito menos coerente da distin- proporção não é completamente desprezável. Mas tampouco suficien-
ção entre uma e outra classe. Aliás, a imposição dessa dicotomia temente elevada para invalidar a conclusão segundo a qual a autofi-
pôde conduzir a uma coerência artificial de certas respostas, su·· liação de classe tem para quase todo o mundo um mínimo de signi-
perior à que teria sido com uma formulação mais livre. Todavia, ficação. Uma vez que não existe nenhum critério perfeitamente esta-
colocou-se, durante a conversa, uma pergunta aberta, que permite, belecido para selecionar as respostas "anormais", é possível que outro
por um lado, eliminar este aspecto e que se apresentava sob a pesquisador haja detectado um maior número, que não teria, cer-
seguinte forma: HEm que gêoero de pessoas pensa, quando fala em tamente, ultrapassado a centena (isto é, 7'70 da amostragem). Se
"pessoas como o Sr. ?". a isso se acrescentarem as treze pessoas que não quiseram colocar-

350 351
QUADRO IV santes no que tange à escolha dos grupos de referência. Se nove dé·
cimos dos ingleses se sentem como pertencendo a uma ou outra de
U Em que gênero de pessoas pensa~ quando fala em çpcssoas como o Sr.f":I duas categorias sociais distintas, e se essas categorias forem forte-
(por camada socioprofissional) mente personalizadas - não somente pelas profissões ou pelas ren·
das, mas também pelo estilo de vida, pelos valores e pelas visões do
Não-manuais Manuais mundo - então é plausível deduzir daí que sua autofiliação de classe
implica a escolha de um grupo de referência normativo.
Restam, todavia, dois perigos a evitar, em qualquer tentativa de
A "classe operária", os trabalhadores manuais 12% 41 %
A jj classe média" os trabalhadores não-
generalização deste gênero. Quaisquer que sejam as correlaçães que
manuais, as profissões liberais, os meios -ressaÍam dos cruzamentos de variáveis da pesquisa de opinião, s_eria
comerciais 42- 7- audácia, e muita, afirmar, a propósito das atitudes para com a de-
Marcas de valorização pessoal (j' as pessoas sigualdade social, que elas têm como "causa" a escolha do grupo de
de qualidade", "as pessoas que se respei- referência )1ormativo. Até esta escolha pode ser determinada por
tam ", etc.) ll- 9-
outras influências, que seriam ao meSmo tempo a caUSa das atitudes
.os velhos, os aposentados, os VIUVOS 8- 12-
para com a desigualdade: a auto-estimação seria então antes um
Os- jovens ou as pessoas de meia-idade 1- 1-
revelador do que um determinante de tais atitudes. Além do mais,
'f As pessoas comuns" 4- 7-
não é evidente, de modo algum, que a escolha de um grupo de
Os que subiram por si mesmOs 2- 1-
referência normativo afete, de uma ou de outra maneira, a exten··
As pessoas da mesma profissão, da mesma
classe, mas sem referência precisa d. distin- são da privação relativa em todos os casos e para qualquer pessoa.
ção entre manuais e não-manuais 12- 10 - Por isso duas questões devem ser levantadas, antes que se possam
Os amigos, os vizinhos, as pessoas do mesmo apreciar os efeitos da auto filiação de classe sobre outras atitudes. A
bairro 2- 2- primeira diz respeito à natureza das características sociais suscetí-
Os que têm a mesma situação de família (por veis de influenciar a escolha, por parte dos indivíduos, de sua auto-
exemplo, número de pessoas a seu cargo) 4- 7- filiação, em particular a dos trabalhadores manuais e de suas esposas,
Outras 2- 2-
que se consideram como fazendo parte da classe média. Somente a
Não sahe 4- 5-
partir do momento em que essas primeiras determinações são iden-
Total 104 '}'. 104 %
(N = 496) (N = 1119) tificadas é que se pode, mantendo-as constantes, testar oS efeitos da
autofiliação. O segundo problema é tangente à natureza dos efeitos
eventuais que poderia ter a autofiliação a uma classe sobre as áti-
se em nenhuma das duas classes, assim como as sessenta e duas tudes para COm as desigualdades decorrentes da estrutura social. A
que declararam não saber o que queriam dizer por sua auto filiação, pesquisa de opinião fez aparecer um certo número de correlaçãe.
á proporção eleva-se a 1170. Nem por isso é menos de duvidar que, previsíveis entre a identificação de alguns trabalhadores manuais e
praticamente, nove adultos em dez da Inglaterra e do ,Pais de Gales de suas esposas com a classe média e características como a renda,
têm uma visão mais ou menos definida e coerente de seu lugar na o lugar de residência 'e a origem social. As diferenças na formulação
estrutura de "dasse" ... das questões tornam impossível uma comparação direta com outros
São divernas aS significações da auto filiação. Mas este fato, mes- estudos. Mas nossos resultados sugerem conclusões muito próximas
mo quando invalide as conclusões demasiado absolutas, que às vezes das das outras pesquisas sobre o mesmo assunto. É certo que a
foram tiradas da autofiliação de classe, (16) nem por isso interdiz que maioria dentre eles são os que o senso comum teria levado a prever.
ela seja utilizada como variável independente na análise das pes- Mas seu principal interesse está na confirmação suplementar que
quisas de opinião. Esta pode em particular ter implicações interes- trazem do fato de que a auto filiação a uma classe raramente' é
desprovida de sentido. Com efeito, as determinações visíveis de uma
classe são outras tantas razões nOvas de considerá-la, de certo modo l
(16) Por exemplo, por Mark .<\.brams, em "Class and Politics", Ef'/,counter,
outubro de 1961. como um grupo de referência normativo ...

352 353
A auto filiação dos membros das camadas SOCl31S não manuais à QUADRO V
dasse operária ~ o fenômeno inverso explicam-se, em boa parte, em
termos de origem social. Dos trabalhadores manuais que deram res- Auto/iliação de classe dos não-ma-nuais, pela profissão dos pais, por sexo
.posta, a tendência para se incluírem na classe média era muito mais
forte entre aqueles cujos pais tinham profissão não manual do que Homens .. Mulheres
entre os outros: 54% dos primeiros declararam fazer parte da clas- Pai Pai Pai Pai
se média, contra 31 % dos segundos. Uma subdivisão pela variável não manual manual não ma-nua.l manual
11 sexo " não fez, entretanto, aparecer nenhuma diferença entre ho-
mens e mulheres, mesmo quando a profissão dos pais foi tida como Autof. à classe média 79 % 57 % 92 % 71 %
constante. No que concerne aos não-manuais, observa-se também uma Aut'of. à classe operár. 21-, 43 - 8- .29-
tendência muito mais forte para sua inclusão na classe operária 'entr~ Total 100 0/0 100 0/0 100 0/0 100 % .
as pessoas cujos pais eram trabalhadores manuais. Mas aqui a di- (N = 99) (N = 125) (N = 127) (N = 128)
ferença entre homens e mulheres é muito marcada. Este efeito per-
~istente da variável sexo no meio não manual aparece no quadro V.
O número dos que deram resposta é ligeiramente inferior ao número não manual, e seus efeitos - ou os efeitos das influência's d~, que
total dos não-manuais, porque algumas pessoas declararam não co- ela própria é manifestação - não são simples e mecânicos. Se- tE
nhecer a profissão dos pais. certo - com poucas exceções - que uma autofiliação à 'classe· mé.:
Outra notável diferença entre manuais e não-manuais que deram dia tem significação como escolha de um grupo' de referência, qual
resposta foi revelada através do exame da relação entre auto filiação será o efeito dessa escolha sobre o modelo de' privação relativa?
de ciasse e renda. Para as neeessidades do inquérito, as pessoas inter- Consideremos, antes de m·ais nada, as implicações que pode ter. 'a
rogadas foram classificadas, quer em função de sua própria renda, autofiliação de um trahalhador manual à classe média sobre sua pri2,
quer, no caso das mulheres casadas, 'em função da renda dos mari- vação relativa em termos de classe. Os dados históricos sugerem que~,
dos. A amostragem toda foi dividida em três grupos: rendas elevadas, na Inglaterra de 1962, os grupos de referência comparativos dos tra-
médias e baixas. O que apresenta interesse, aqui, é o efeito da balhadores mannais, em matéria de classe, tinham todas as probabi-
renda sobre a tendência - entre os trabalhadores manuais 'e suas lidades de serem tomados na camada social dos manuais; ou que, se
esposas - para se identificarem com a classe média. Entre os não- fossem feitas comparações com a camada não manual, teriam pou-
manuais, a tendência para se filiarem à classe operária não diminui cas chanças de fundar-se sobre a real extensão da desigualdade entre
quando a renda aumenta, o que é talvez um resultado inesperado. as duas camadas. Vimos que a auto filiação à classe média, no caso
Mas, na camada dos trabalhadores manuais, a freqüência da escolha de um trabalhador man~l, raramente significa uma identificação
"classe média" cresce, com a renda, de 240/0 a 36%, depois a 41 %. pura e simples com os trabalhadores não manuais. São, mesmo, sua ~
Esta constatação pareceria, portanto, confirmar a tese segundo a
bases de comparação verossimilmente tiradas do estrato social dos
qual os operários "se aburguesam" progressivamente, à medida que
manuais, e vão, segundo toda a probabilidade, contribuir para manter
adquirem uma facilidade material maior. Mas qualquer conclusão
deste tipo deve ser acolhida com prudência. A tendência de certos a amplitude e a itltensidade de sua privação relativa em um fraco
nível. Pode ele, com efeito, sentir-se relativamente gratificado,. quan~
membros da classe operária para se atribuírem como grupo de refe-
rência a "classe média" - seja qual for o sentido que lhe empres- do se compara ao que toma por "classe operária", a saber, aos me~
tem - pode ter importãncia para a relação entre a desigualdade nos qualificados e aos menos bem pagos dos operários manuais. Ne,~
e a privação relativa. Mas ainda aqui é preciso levar em conta a nhuma razão para pensar que a privação relativa que poderá expe-"
diferença entre as desigualdades de classe e as de status. A autofilia- 'rimentar seja superior ou inferior ao que seria se ele se identifi-
ção à classe média - no caso de um trabalhador manual ou de sua casse com a classe operária, nem que, no caso em que ele real ..
mulher - parece ser largamente determinada pelo seu lugar de resi- mente sentisse uma privação relativa, fosse ela menos H solidarista "
dência, pelo montante desua renda e pela sua origem social. É possí- do que a do trabalhador manual identificado, explicitamente, coln
vel que por aí eles procurem distinguir-se dos outros operários. Mas aquela classe. Em compensação, acontece diferentemente no que
a distinção, no caso, não implica que se assimilem à camada social tange às desigualdades de status. Um trabalhador manual que se

l 354 355
considera como fazendo parte da "classe média" propenderá a sentir que o bom êxito do ensino é função do capital cultural e da propen-
uma privação relativa em termos de status mais fortemente do que são para investir no mercado escolar (função, ela própria, como se
aquele que se considera Como fazendo parte da "classe operária~"; ~ sabe. das chanças objetivas de sucesso na escola) e, por conseguinte,
essa privação relativa tem todas as probabilidades de ser de tipo que as diferentes frações são tanto mais reconhecidas e consagradas
"egoísta". Defendi a tese de que a privação relativa em termos de pela casa de ensino quanto mais ricas em capital cultura e mais
status havia aumentado, simultaneamente em amplitude e em fre- dispostas a investir em trabalho e em zelo escolares; e sabendo-se.
qüência, na camada dos manuais, no curso do período indicado, e de por oatro lado, que a adesão atribuida por uma categoria às sanções
que esse aumento se tinha efetuado de maneira a fazer ressair as e às hierarquias escolares depende não só da categoria que a escola
possibilidades de mobilidade individual tanto quanto as chanças de lhe atribui em suas hierarquias, mas também do grau em que seus
uma igualdade coletiva entre as duas camadas sociais. Se assim é. interesses estão ligados a essa instituição, isto é, do grau em que
o trabalhador manual que possui o suficiente para viver bem, que seu valor comercial e sua posição social dependem (assim no passado
se considera como pertencendo à "classe média", terá verossimil- como no futuro) da garantia escolar, comprecmde-se que o sistema
mente aspirações de status não partilhadas pelos seus semelhantes que educativo jamais consiga tão completamente impor o reconhecimen:-
se vêem como pertencendo à "classe operária". Isto não quer neces- to de seu valor e do de suas classificaçõ,es, como no caso em que
sariamente dizer que ele deseje tornar-se idêntico, sob todos os pon- as sanções que prescreve se exerçam sobre classes ou frações de
(os de vista, aos membros da camada social dos trabalhadores não- classe que não lhe podem opor nenhum princípio concorrente de
manuais, ou que pense ser parecido com eles. Mas sua tendência hierarquização. Ao passo que as frações mais ricas de capital eco-
será para ter da própria posição social urna imagem não compartida nômico autorizam e encorajam um estilo de vida cujas seduções sã,')
pelos trabalhadores manuais que se incluem, espontaneamente, na bem feitas para entrar em concorrência com as exigências ascética.'s
"classe operária" (Traduzido de W. G. RUNCIMAN, Relative De- do sistema escolar e asseguram ou prometem garantias ao lado da;
privation and Social Justice, Routledge & Kegan, 1972; Penguin quais as da escola não podem senão parecer a um tempo custosas e
Books (L" ed., 1966), págs. 181-183, 187-193, 195-196, 197-200). de pouco valor (" o diploma não é tudo"), as frações mais ricas
em capital cultural nada têm a opor à atração exercida pelos sinais
de consagração escolar que lhes vale o seu zelo na escola. Em resu-
mo, a 'eficiência dos mecanismos pelos quais o sistema de ensino asse-
gura a sua própria reprodução encerra em si mesma o seu próprio
REPRODUÇÃO CULTURAL limite. Se a escola pode usar sua autonomia relativa para impor o
E REPRODUÇÃO SOCIAL reconhecimento de suas próprias hierarquias e a entrada na carreira
universitária, que lhe constitui o ponto alto, não conquista completa-
mente a adesão senão quando exorta convertidos ou oblatos, filhos
PIERRE BOURDIEU de professores ou crianças das classes populares ou médias, que tudo
lhe devem e tudo esperam dela. Long-e de desviar as crianças, em
favor próprio, das frações dominantes das classes também dominan-
A análise dos mecanismos propriamente escolares, conforme se tes (como o podem fazer crer alguns exemplos notórios, que auto-
produzem oS debates entre as diferentes instituições, permite sur-
preender uma das formas mais sutis do ardil da razão social, o que mobilidade entre as classes do que à mobilidade no interior das diferentes
faz que o sistema de ensino trabalhe objetivamente na reprodução classes e, em particular, no das classes dominantes. ~ também porque o modo
da estrutura das relações entre as frações das classes dominantes, de pensar analítico e atomístico, que controla as pesquisas sobre a mobilidade,
interdiz os clássicos inquéritos sobre as "elites" de irem além da apreensão
quando parece que ele usa plenamente sua autonomia para impor os de fenômenos como a simples hereditariedade profissional. De fato, a estrutu'ra
próprios princípios de hierarquização. (17) Sabendo-se, por um lado, das relações entre as frações pode permanecer inalterada mesmo quando a
população que as constitui se encontre profundamente mudada: assim, para
citar um só exemplo, a estrutura das relações entre as frações intelectuais ou
(17) Se o papel do sistema das instituições de ensino superior, na repro- artísticas e as outras frações das classes dominantes quase não mudou na
dução da estrutura das relações entre as frações das classes dominantes, passa França, a partir de meados do século XIX, ao passo que o recrutamento social
freqüentemente despercebido, é porque os inquéritos dedicam mais atençã,o à dos artistas ou dos intelectuais variou consideravelmente, segundo as épocas.

356 357
rizam as frações mais conservadoras da burguesia a gritar contra constitui a condição, senão o fator principal, do triunfo. O habitus
'a corrupção da juventude e os professores, ou os intelectuais, a inculcado por uma aprimorada educação burguesa produz práticas
acreditar no ilimitado poder de suas idéias), ela afasta as crianças que, mesmo em se tratando das mais desinteressadas, como as cultu-
das outras frações e das outras classes de reivindicar a recompensa rais, são altamente rendosas na medida 'em que permitem obter o
de seus investimentos escolares e de tirar de seus títulos o proveito rendimento máximo dos títulos escolares, sempre que o recrutamen·
econômico e simbólico que os filhos da grande burguesia dos negôcios, to ou a promoção se baseiam na cooptação ou em critérios difusos
em melhores condições para relativizar os julgamentos escolares, sa- e totais ("boa apresentação", U cultura ger~l" etc.). Equivale a dizer
bem deles tirar, quando é o caso. que, como numa economia precapitalista, onde uma garantia vale c
:Nlas a escola seria t~o completamente bem sucedida em afastar, que vale o fiador, o valor do diploma, fora do mercado propria-
em proveito próprio, as categorias em que re"conhece o mais alto mente escolar, depende do valor econômico e social de seu possuidor,
valor (como O testemunha, por exemplo, a relação entre a qualidade sendo o rendimento do capital escolar (forma convertida do capital
escolar e a qualidade social dos alunos da E. N . S . e dos da cultural) função do capital econômico e social que pode ser dedi-
E. N . A. ), se os títulos que outorga fossem conversíveis aO par
cado à sua valorização: para o filho do industrial, egresso do
no mercado do dinheiro e do poder? Os limites da autonomia deixa-
H . E. C., o diploma não representa senão um titulo suplementar,
da à escola na produção de suas hierarquias coincidem estritamente
com os limites objetivamente estabelecidos ao seu poder de garantir, para que 'ele suceda legitimamente ao seu pai ou ocupe· o posto de
fora do mercado escolar, o valor ·econômico e simbólico dos títulos direção que a rede de relações de sua família lhe assegura, ao passo
que ela outorga. Esses mesmos títulos escolares recebem valores e que ao filho de empregado, que só deve o acesso ao mesmo título
funções muito variáveis, segundo o capital econômico e social (em ao êxito escolar, não está assegurado obter uma colaboração de adi-
particular o capital de relações herdadas da família) de que dispõem do comercial na mesma empresa. (19) Em resumo, se, como o indica
seus detentores e segundo os mercados em que eles os utilizam. Sa- a análise das características sociais e escolares dos indivíduos men-
be-se, por exemplo, que o bom êxito profissional dos antigo$ alunos cionados no Who' s who, quanto mais uma pessoa é oriunda de fa-
da Escola de Altos Estudos Comerciais (recrutados, em vigorosa mília desprovida de capital econômico e social tanto mais indispen.
parte) em meio à burguesia parisiense dos negócios) varia· muit;) sávei lhe é o diploma, subentende-se que o sistema escólar é cada
mais fortemente em função da maneira como foi obtido o primeiro vez menos capaz de garantir o valor dos títulos que outorga, à me-
emprego· profissional (isto é, se por m·eio de relações de família, se dida que a gente se distancia do domínio que ele controla comple-
por outras vias) do que em função da classificação alcançada nO tamente, o de sua própria reprodução, sendo a posse de um diplo~
concurso de saída da Escola. Sabe-se também que os profissionais ma, por mais prestígio que ele dê, cada vez menos suscetível, em
dos quadros superiores e filhos de empregados recebiam, em 1962. todo o caso, de assegurar acesso às posições mais elevadas e não
um salário anual médio de 18.027 francos, contra 29.470 francos bastando, nunca, para garantir, por si só, acesso ao poder econômico.
ganhos pelos dos quadros superiores e filhos de industriais ou de Inversamente, 'o acesso à classe .dominante e, a fortiori, às fraçó'es
grandes comerciantes. (18) E se, como o revelou o inquérito da co-
dominantes da classe também dominante é relativamente independente
missão Boulloche junto a 600 empresas, somente 2,40/0 dos 17.000
chefes empregados das mesmas são licenciados ou doutores em ciên- das oportunidades de acesso ao ensino superior por parte dos indi-
cias, contra 370/0 de diplomados por uma grande escola de enge- víduos oriundos das frações mais próximas do poder econômico e
nharia, é porque os detentores dos títulos mais prestigiosos dispõem poJitico·administrativo, do pessoal dos quadros do setor público e
'também de um capital herdado de relações e de aptidões que per- ---_._-
1l)item adquiri-los, t'lis como a prática dos jogos e dos esportes de (19) A análise secundária do inquérito realizado pelo I.N.S.E.E. sob.re
boa sociedade ou as maneiras e os gostos de boa companhia, o que, :<.mobilidade profissional pemite estabelecer ainda que a posição ocup.ada na
~m certas, carreiras (sem falar das permutas matrimoniais, oportuni- í:mpresa pelos engenheiros, pelo pessoal dos quadros administrativos superiores
,dades de aumentar o capital social de honorabilidade 'e de relações) (; pelos técnicos está fortemente ligada à origem social, sendo os filhos dos
professores primários, dos professores em geral e dos membros das profissões
----'-- liberais, por exemplo, os mais representados nas funções de direção, ao passo
(18) M. Praderie, "Héritage social et chances d'ascension", in Darras (ed.) j que os filhos de operários qualificados, de contram.estres e de técnicos são-no
Le. partage des' béntfices., Paris, Ed. de Minuit, 1966, págs. 346-347. nas funções de produção, de fabricação e de manutenção.

l 358 359
'I

1'1
chefes da indústria e do comércio (cf. diagrama). (20) As,;im, tudo
se passa como se, à medida que a gente se afasta do domínio da escola, , Assim, a autouomia relativa de que o mercado escolar dispõe, de-
o diploma perdesse sua eficácia própria de garantia de uma qualifi- vido a que a estrutura da distribuição do capital cultural não re-
cação específica, asseguradora do acesso a carreiras também especi ~ cobre exatamente a estrutura da distribuição do capital econômico
ficas, de acordo com regras formalizadas e homogêneas, para tornar- e ··do JXlder, não confere as aparências de justificação à ideologia
se urna simples condição permissiva, um direito de acesso, que só m"eritocrática, de acordo com a qual a justiça escolar forneceria, de
podem fazer valer plenamente os detentores de um forte capital de algum modo, um recurso ou uma compensação aos que não têm
outro meio além de Sua "inteligência" ou de seu "mérito". Salvo se
se quiser ignorar, de um lado. que a Hinteligência" Ou a boa vontade
escolar representam somente uma forma particular de capital, que,
Profissões liberais
• ..
Engenheiro
na maior parte dos casos, vem juntar-se à posse do capital econô-
rp.~co e do capital correlativo de poder e de relações sociais, e, d~
1;" 50
outro lado, que os detentores do capital econômico têm mais opor-
"iCo .Professor t1lL\idades, em face dos dele desprovidos, de possuir também o ca-
pital cultural e, em todo o caso, de poder dispensá-lo, porque o
.,~o 40 ti~ul0 escolar é moeda fraca, que só tem todo o seu valor nos limites
-g d9 !~l'ercado também escolar (Excerto de PIERRE BOURDIEU) "Repro--
-;;; duction culturelle et reproduction sociale", Informations Sm" les
CP 30 Sciences sociales, abril de 1971, págs. 67-71).
• Pessoal administrativo
ti! superior
g •
Professor primário
~ 20

."."
"t>

Empregado _
'essoal adminjstr~
.. médio /'
Grande.
_~
-Industrial
A CRISE UNIVERSITÁRIA FRANCESA:
ENSAIO DE DIAGNÓSTICO SOCIOLÓGICO
fi!. 10J,. • Peque!10 comerciante'" )
Técnico comercIante ~
5 RAYMOND BOUDON
'oo
01 <Art1são, r I r r

051020304050
% de acesso às classes dirigentes Afinal, a Universidade de antes de 1950 assemelhava-se ainda mui-
Diagrama de correlação entre /Wobabilidades de acesso às classes dirigentea e to à descrita nos romances do século XIX. Frédéric Moreau, em
probabilidades de acesso aos estudos superiores~ segundo a origem .9Ocial L' éducation sentimentale} de Flaubert, decide inscrever-se na Facul..
(Fonte; Inquérito Formação~ qualificação e emprego~ LN. S.E.E., dade de Direito de Paris (dizia-se, na época, Escola de Direito).
1964. Investigação de nivel secundário. realizada no C.S.E.) A entrada nesse estabelecimento de ensino é tida por ele e por seu~
amigos como levando às grandes carreiras da política, da magistra-
relações sociais (particularmente nas profissões liberais) e, finalmen- tura, dos negócios. A categoria é determinada pela família e confir-
te, quando só serve para legitimar a herança, uma espécie de cauçã.) mada pela Universidade. O sucesso social decorre, em seguida, da
facultativa. personalidade e do caráter. Frédéric Moreau prepara-se para os exa-
mes sem grande obstinação, mas passa sem grandes dificuldades.
(20) O fato de que o ingresso nas profissões liberais supõe a posse df> títulos Os traços primordiais do tipo ideal da Universidade burguesa per-
escolares eminentes não deve dissimular que o acesso às posições mais elevadas sistem até 1950. Quanto ao princípio da liberdade de acesso ao ensi-
dessas profissões depende, sem dúvida, pouco menos da posse de um capital no superior 'e da orientação liberal, dele não se cogitou em nenhuma
econômico e social que o ingresso no setor da indústria e do comércio, como o
testemunha uma taxa muito elevada de hereditariedade profissional, sobretudo da!;i reformas que se sucederam a partir dessa data, quer na refor-
na elite do corpo médico, onde são encontradas verdadeiras dinastias de chefes. ma Fouchet. quer na reforma Edgar Faure, que se seguiu aos acon-
tecimentos de maio-junto de 1968. O estudante tem sempre inteira
360
361
liberdade de entrar na Universidade e só ele é responsável pela sua Ao passo que as ambições do aluno de classe alta são essencial'
Qrie;n~ação. Quando muito, certas faculdades decidiram introduzir mente determinadas pelo nível social de sua família, as do aluno de
restrições quanto à natureza do diploma final de estudos secundáriús meio modesto são fixadas, mediante um processo de ensaios e de
(exigência do grau de bacharel na secção "matemáticas", para ingres- erros, a partir de seu bom êxito escolar. Com efeito, a relação entre
so na Faculdade das Ciências). Mas tais limitações são muito re- o prestígio da profissão escolhida e a aprovação escolar é muito
centes e muito excepcionais. Além disso, permanece predominante 9- estreita, quando ° nível cultural da família é baixo, e muito frouxa,
orientação para a "cultura", nas Faculdades de Letras e de Direito.
notadamente. QUADRO 2
Os estudantes protestaram com veemência, em maio-junho de 1968, Relação entre aprovação escolar e prestígio da profissão escolhida em função
contra os dois caracteres principais do tipo ideal. A "cultura", de do nível cultural da familia
um lado, os exames, de outro, representaram dois alvos privilegiados
da "contestação". Sem dúvida, não propuseram, os que protestavam, Nível cultural da família
a substituição do sistema de orientação negativa por um de orien- -----------------
tação positiva, opondo-se, pelo contrário, a qualquer sistema de "se- Baixo Média Alto
leção". Mas as razões desse processo de transposição eram eviden- Aprovação escolar Aprovação escola,. Aprovação escolar
tes. Por que uma tal contestação? Porque a harmonia entre o sistema
social e o sistema universitário, caracterizado pela centralização exclu- Prestigio
do o o o
siva na cultura e pelo liberalismo dos mecanismos de orientação foi
~
o o
profissão .~
progressivamente destruída, de uma parte pela mutação sobrevinda na o ~ .~
o
'1ô
.~
~ .~ ~ ~
escolhsda O< ;,; ;,; ;,;
'" '"
Co
composição social dos estudantes, de outra parte por certas mudan-
ças do próprio sistema social. Fraca (%) 27,5 16 8 14,5 8,5 9
O<

11 10,5
'8,5"
As pesquisas incidentes sobre os mecanismos de orientação mos- Média (%) 45 52,5 28 47,5 47,5 24,5 15,5 30,5 20
tram que eles variam amplamente em função das classes sociais. A Alta (%) 27,7 31,5 64 38 44 66,5 74 59 71,5
medida que se desce nas categorias sociais, a criança é menos guiada N (%) 40 212 25 55 391 45 27 144 35
pelo modelo familiar. Em nível de liceu, o pai de status social ele- (I) 14,5 76,5 19 11 79,5 9 13 70 17
vado terminou geralmente seus estudos secundários, teve contactos (100) (100) (100)
mais diretos com os representantes de profissões que supunham certo
(I) Distribuição dos alunos segundo os graus de aprovação.
nível de formação. Por isso, com quatorze ou quinze anos, COmo o
confirma uma recente pesquisa de opinião, efetuada na região de (Fonte: Boudon-Bourricaud, "A escolha profissional dos alunos
Bordéus, a manifestação da escolha de uma profissão torna-se mais de liceus ", COn'l/enção, D.G.R.S.T., julho de 1968.
freqüente à medida que se vai subindo a escala social (quadro 1):

Ql.!ADRO 1
quando elevado (quadro 2). Quando baixo, a proporção dos que
escolhem um ofício de reduzido prestígio varia de 26,7ro a 64%
Porcentagem de aluHos que ,ç escolheram" um ofício, em função do status em função da aprovação escolar. Quando elevado, a variação é pra-
s6cio-econâmico
ticamente nula.
Status sócio-econômico Notemos, além disso (linha final do quadro 2) que as diferenças
no nível d·e bom êxito escolar, em função do nível cultural da fa-
Baixo Alto mília, aparecem como muito atenuadas naquele nível (classes de 3.°
1 2 3 4 5 e 2.0 anos), em relação às diferenças observadas entre as crianças
mais jovens, como, por exemplo, nos inquéritos de A. Girard. (21)
% de escolha 53 58,2 60,7 65,5 61,4
(21) A. Girard e P. CIerc, "Nouvelles données sur l'orientation scolaire au
N 492 534 303 203 277 moment de l'entrée en sixiême ", Population, outubro-dezembro de 1964, n. S,
págs. 829-864.

362 363

~~
r.,
,I

QUADRO .4
Isso resulta de que os mecanismos da orientação espontânea tornam
a progressão escolar muito mais dependente do bom êxito também Fracassos em função do meio social
escolar nos meios modestos. A conseqüência desse processo é que M cio social de origem
os estudantes de origem modesta são mais selecionados, uma· vez
que a ausência de ascendente da família os faz mais tributários do Baixo Médio Alto
sistema implícito de orientação constituído pela aprovação escolar.
Resulta desses mecanismos o chegarem à Universidade populaçõe3 Fracassaram ao menos uma vez 35% 36% 42%
(84) (157) (89)
de características distintas: uma população de alta origem social,
crescente em núm'ero, mas que se tornou proporcionalmente minori-
(Fonte: C. Delage, La 'laiSSmlCe d'u1l-e wlivcrsité, Orléans, tese
tária; uma população de média e baixa origem, proporcionalmente 3.° ciclo, dat.)
majoritária. A primeira é pouco selecionada. A segunda é super-
selecionada. Conseqüência: em situação igual, os estudautes de baixa
origem social vencem mais facilmente (quadro 3). As taxas de fracasso são elevadas: nas classes médias e baixas,
porque os estudantes são, muitas vezes, obrigados a ter uma atividade.
QUADRO 3 remunerada, ou porque e atrasaram em seu cursus anterior à entra-
Bom êxito quando do licenciamento, em função do meio social, da na faculdade; (23) nas classes altas, porque a "seleção natural" é
do sexo e da U situação " muito fraca.
(Idade quando do ingresso na faculdade e exercício de uma atividade remunerada) Não somente os fracassos são numerosos e o, estudante vê Q sell
futuro universitário limitado ao pró~imo exame: também o futuro
M cio social de origem profissional é tido como incerto. Urna forte proporção de estudantes
BaIXO Me'dio Alto espera o momento conveniente para fazer sua escolha profissional
----- Mas, ao contrário do que se observa entre os alunos de liceus na
~ ,~ ~
~ idade de quatorze a quinze anos, são, em nível universitário, os
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estudantes das classes abastadas, os que menos escolhem (quadro 5).
Situação
E
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A inversão se explica facilmente: em nível de ensino secundário,
os alunos das classes abastadas retomam modelos profissionais im-
Jovens sem profissão 53% 39% 49% 43% 42% 39% postos ou sugeridos pelo meio familiar. Na faculdade percebem que
(57) (145) (156) (390) (219) (911) seu horizonte profissional de fato se reduziu e não lhes oferece pos-
Idosos sem profissão 44% 26% 20% 21% 24% 15% sibilidades acordes com o seu nível de aspiração. Por isso os 'estu-
(34) (70) (50) (98) (82) (192) dantes de origem social elevada das Faculdades de Letras hesitam em'
jovens, atividade externa 18% 16% 11% 14% 20% 180/0
(33) (61) (27) (105) (44) (157)
Idosos, atividade externa 13% 10% 13% 40/0 11% 11% sidades inglesas, onde a democratização (medida pela proporção dos filhos e
(64) (89)
(46) (78) (82) (155) filhas de operários da indústria com acesso ao ensino superior) é mais adian~
(Fonte: Bisseret, ver nota 1, pág. 476.) tada que nos outros países da Europa ocidental, utilizam o sistema seletivo e
são as únicas a utilizá-lo. Se evocam o estereótipo da Universidade de classe,
Tais resultados se referem à Faculdade de Letras de Paris e po- fazem-no, em grande parte, em virtude da diferença de composição social que
c~racteriza "Oxbridge~', de um lado, e as redbrick universities, de outro lado.
dem ser - parece - generalizados. Em Orléans, os fracassos no Mas não é certo que este fator também não contribua para a democratização.
1.0 ciclo (Ciências, Letras e Direito) são mais freqüentes entre os Com efeito, a Superioridade dos estudantes egressos de camadas desfavorecidas
estudantes egressos de meios abastados, posto que eles provavelmente aparece como sensivelmente maior em Orléans do que em Paris. Ora, o recru-
se beneficiem. também aí, de melhores condições materiais (qua- tamento social em Orléans é muito mais baixo do que em Paris. Mas o efeito
c:ontextual da composição da sociedade sobre o bom êxito diferencial, em função
dro 4). (22) das origens sociais, permanece uma hipótese a ser verificada de maneira siste~
niática.
(22) Daí resulta que um sistema de recrutamento seletivo, associado a um '(23) Cf. N. Bisseret, 11 La naissance et le diplôme lO, Revue française de
sistema de bolsas teria o efeito de democratizar, imediatamente e de maneira Sociologie, voI. 9, 1968, número especial, págs. 185~207.
sensível, o recrutamento universitário. É de notar, a nropósito, que as univer-

364
365

2.5-T.S4
I'
~

QUADRO S Hoje em dia, a entrada na Universidade não é mais correlativa,


Escolha profissional em função do sexo (! da clMse social (Paris) para falar como Merton. de uma "socialização antecipadora (anti.
cipatory socialization). Os riscos de maus êxitos, de falsas orienta·
ções, são elevados. São-no não somente porque os novos modelos
Meio social de origem
proiissionais, cujo conteúdo dá lugar a representações imprecisas c
Bai.'ro Médio Alto cuja valorização. em termos de categoria social, é incerta, se multi·
.=:::7:::.-=-..::.::.:....:::=.:...... ~-~ plicaram, mas porque a massa de estudantes que não podem espe-
~ ::l :: ::l rar orientação da parte dos que os rodeiam cresceu de modo con-
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siderável, tanto em valor absoluto quanto em valor relativo. No
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que se refere aos estudantes provenientes dos meios sociais eleva-
dos, estão eles expostos, cada vez com maior intensidade, à concor-
Escolhem o ensino 69% 73% 5' % 69% 48% 52% rência das "camadas ascendentes" e, por toda a parte, à regressão
Não manifestam social. Tanto mais que, não tendo sido sujeitos a uma seleção tão
escolha alguma 26- 23- 39- 27- 42- 41- intensa, são, em geral. estudantes menos bons
Outras profissões 5- 4- 6- 4- 10- 7-
N 153 283 217 536 308 1066 Mas importante é insistir em um fator já evocado. que contribui
(Fonte: Bisseret, op. cit.) largamente para aumentar a dificuldade da escolha profissional, a
saber: o aumento dos empregos e das carreiras de tipo "semiprcfis-
sionalizados". Ao formador de adultos, ao psicólogo, ao sociólogo, ao
Escolha profissional em função do Sl?'ro e da profissão do pai (Caen):
% de estudantes que escolheram engenheiro-consultor. ao engenheiro comercial não correspondem
imagens sociais tão precisas como as que se ligam ao professor de
Profi9são do pai liceu, ao médico ou ao engenheiro. O conteúdo das atividades repre-
sentadas por essas denominações é mal conhecido, quase sempre
Operário Empregado Profissão
variável e, geralmente, mal codificado. A categoria social a que per-
superior
mitem acesso é incerta e diversificada. Isso explica que os estudantes
Rapazes
de psicologia, não sabendo a maioria, no momento em que começam
90 % (17) 80 % (23) 73% (13)
Moças 70- (14) 73- (14) 45 - (27) seus estudos, o que psicologia significa, preferem utilizar uma escala
de referência conhecida, a da medicina. O que também contribui para
(Fonte: G. Desaunay, Relatório de pesquisas sobre os estudantes explicar as altas taxas de abandono observadas em sociologia.
do 1.0 cicIo da Faculdade de Letras de Caen, 1966-1967, dat)
De modo geral, a efervescência de maio-junho parece ter sido
particularmente elevada nas seções correspondentes a disciplinas mal
adotar a profissão de professor, que os expõem a uma regressão conhecidas e que levam essencialmente a empregos semiprofissionali-
social relativamente ao seu meio de origem, tanto mais quanto mui- zados.
tos não podem ou não ousam enfrentar concursos e exames (livre O aluimento dos mecanismos de socialização antecipadora fez, pois,
docência, doutoramento) que conduzem às camadas elevadas do ensino. da condição do estudante, uma condição de marginalidade social. Ao
Alto risco de fracassos, de marcar passo, de regressão social para passo que o ingresso na Universidade bastava, quase que até 1950,
uns, de dificuldades de acesso a um emprego correspondente a qua- para assegurar a inserção antecipada do estudante no mundo dos
tro ou cinco anos de ensino superior, para outros, tal a situação do
adultos. para conferir-lhe uma promessa de categoria social, hoje
estudante de faculdade, nomeadamente do de Letras e Ciências. O
jogo incontrolado dos mecanismos sociais conduziu, assim, a uma constitui (sobretudo nas Faculdades de Letras, mas também em
considerável degradação da situação estudantil, numa sociedade cada outros lugares), um como purgatório social.
vez mais rica, onde a intelligentsia se compraz, talvez prematura- Es-se purgatório social se prolonga, muitas vezes, por sinal, além
mente, em analisar os males 'engendrados pela opulência das socie- da Universidade, quando o ex-estudante tem acesso a um daqueles
dades industriais ... empregos semiprofissionalizados, cuja massa vai crescendo. O que ex~

366 367
u
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plica a profunda ressonância que o movimento de estudantes provo~ mente em um debate de consclencia particular do delinqüente, (25)
Cou em maio-junho entre o pessoal jovem dos quadros das reparti~ :não estando o mundo exterior presente senão sob a forma de percep-
ções de estudo, dos serviços de pesquisa das repartições adminis- ções mais ou menos nítidas, da opinião de diversos grupos de referên-
trativas e das empresas e entre os pesquisadores científicos do setor cia e das oportunidades de sucesso oferecidas por diversos tipos de
públicu (24) (Excerto de RAYMOND BOUDON, "La crise universitaire carreiras. (26) O jovem delinqüente, tal como o herói da tragédia
française", Anna/es, maio-junho de 1969, págs. 748-758). clássica, traz consigo uma deliberação quase racional, em que se opõem
dois sistemas de valores, francamente antagônicos, colocados no mesmo
plano, valores "convencionais" e valores delinqüentes, e, depois, de
um só golpe e sem ambigüidade, "escolhe" a delinqüência. O obje-
tivo privilegiado e quase único das referidas ,análises é o momento
A DELINQD:BNCA JUVENIL da aceitação ou da rejeição das normas dominantes: I'Consideremos
de saída o exemplo de um indivíduo que procura, consciente ou
JEAN-CLAUDE CHAMBOREDON inconscientemente, resolver a ambivalência de sua relação com uma'
expectativa institucionalizada: um médico que se interroga para saber
se deve praticar os abortos proibidos, um agente de polícia debaten-
Anomi.a e socialização do-se por saber se deve aceitar uma gorjeta da parte do dono de
uma casa de tolerância, ou um indivíduo com pendor homossexual e
As análises tradicionais e, especialmente, as análises funcionalistas que hesita em ceder às suas inclinações. -. . ". (27) Esta exposição,
baseada na imagem da escolha moral, não representa um obstácul.5
são na maior parte penetradas por uma série de esquemas metafó~
para uma análise completa? Definir negativamente a delinqüência jU"
ricos, que compõem uma representação H dramatúrgica". Segundo,
venil cOmo uma conseqüência, juridicamente sancionada, entre outras
essa representação, a gênese da delinqüência se estabelece essencial~' socl'11mente sancionadas ou não" resultantes de uma socialização im-
perfeita, é evitar reduzir o problema ao da rejeição ou da neutra-
(24) A. Touraine (Le mouvement de mai et le cammunisme utopique. Paris1
Le Seuil, 1969) sustenta que o movimento de maio tem o sentido de um movi~
mento social análogo ao movimento operário do século XIX. A sociedade (25) Encontra-se esse tipo de representação na maior parte das teorias da
"programada" engendraria conflitos de classe de um novo tipo, opondo aos' criminalidade, que têm por centro a explicação da gênese dos atos ou dos
tecnocratas os tecnicistas, os "profissionais" etc. Nesta tese, vejo uma difí- projetos delituosos. As representações do comportamento, que subtendem tais
culdade: é que muitos tecnicistas e "profissionais" não foram atingidos pelo teorias, esquemas metafOricos mais freqüentemente que paradigmas eXp1icita~
movimento de maio. Por outro lado, seria fácil mostrar que, em muitos casos, mente formulados, como· o esquema da possessão por uma força superior, da
a greve e o conflito assumiram a forma clássica da reivindicação, antes de ação sob a influência de forças exteriores, do espontâneo surgimento do ato,
criminoso, estão mais vezes próximas dos esquemas do senso comum. "Para uma
prefigurarem 'um novo tipo de movimentos sociais. Em contrapartida, parece-me descrição dos mesmos, cf. D. Glaser, "Criminality Theories and Behavioral
incontestável que o conjunto dos tecnicistas e dos "profissionais" comporta Images", American Journal of Socialagy, 61 (5), 1956, págs. 433-444.
uma proporção cada vez mais ampla de pessoas em situação de semiprofissio-
nalização, de semi-integração nos organismos que as empregam (quadros dos (26) Essas, análises seguem o esquema geral da análise de Merton sobre
a anomia (" Social Structure and Anomie li, American Sociological Revie-w, (3),
serviços' de pesquisa etc.). De um lado, minha conclusão seria exatamente a outubro de 1938, págs. 672-682). Cf. A. K. Cohen, Delinquent Boys, the Culture
mesma de Toura'ine, porque é certo que as sociedades "programadas" parece of the Gang, Nova York, The Free Press of Glencoe, 1955 j R. A. Cloward e
engendrarem nQ:vas formas de alienação. Mas esse tipo de alienação aíigura.-se-me L. E. Ohlin, Delinquency and Opportunity, a Theory of Delinquent Gangs, Nova
muito mais próximo da anomia durkheimiana que da alienação marxista. De York, The Free Press of Glencoe, 1960: As tentativas para abrandar, nuançar
outro lado, representa-se-me difícil crer e pouco acorde com a observação afir- ou 'complicar a análise do momento da rej eição ou da "neutralização" das
mar que os estudantes se hajam revoltado contra os futuros "tecnicistas" ou normas dominantes (cf. G. M. Sykes e D. Matza, "-Techniques of Neutralisa-
" profissionais", que a sociedade os constrangeria a tornar-se. Parece-me muito tion:, a Theory of Delinquency", Atnerican Saciological Review, 22 de dezem-
mais simples e muito mais acorde com a observação postular uma revolta contra: bro de 1957, págs. 664-670) não mudam O esquema fundamental de todas as
a semi profissionalização e a marginalização social, a que estão expostos nume- análises desse tipo.
rosos estudantes e dirigentes, do que uma revolta contra a sociedade progra~ (27) A. K. Cohen, '4 The Study of SOCial Disorganization and Deviant
mada. A explicação pela anomia tem também, relativamente à explicação pela Behavior", in R. K. Merton, L. Brom, L. S. Cottrell Jr., Saciology Toda:;,
a1ienação, a vantagem de expor o caráter "psicodramático" da revolta. Nova York, Basic Books, 1959, pág. 468.

368 369
lização das normas convencionais. Os "fracassados'" de socialização é possível comparar a parte de cada categoria social (definída de
não podem Ser dissociados das condições de socialização e das for- acordo com a categoria socioprofissional do chefe de família) em
ma; de regulação características de cada classe social: estas, com meio ao conjunto dos jovens de 10 a 18 anos (amostragem extraída do
efeito, definem, quando não o conjunto das causas da delinqüência,
pelo menos suas condições de possibilidade e de aparecimento. A ti" propensão para a delinqüência": os riscos ti" de anomia."

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Os fracassados de socialização nos diversos grupos ~
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Os dados disponíveis não permitem calcular precisamente uma ~~ ~:9
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taxa de delinqüência juvenil para cala categoria social: com efeito,
os relativos aos delinqüentes dizem respeito ao período de 1961 a
1967, e não se conhece a distribuição dos jovens da comuna, segundo

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a origem social, para o mesmo período, mas somente para 1968. (28) ~ Cl Cl "l 0'<: a.t
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Além disso, as estatísticas de que nos ocupamos foram estabelecidas 0/0 0/0 % 9'0. % %
sobre uma amostragem que não se pode ainda comparar com os Distribuição de jovens de 10 a
resultados do recenseamento para o mesmo periodo. (29) Não se está, 18 anos por C.S.p. do chefe de 10,4 30,7 24,S 16,7
pois, suficientemente seguro de sua representatividade para se fazerem
extrapolações, com base na população em seu todo, (30) e que per-
mitam calcular taxas de delinqüência por categoria social. Na falta,
família (amostra do r€"censea-
mento de 1968).
s'(
41

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41,2

(28) O recenseamento de 1962 não permite conhecer a distribuição dos


jovens segundo a categoria socioprofissional (c.s.p.) do chefe de família. Foi
1 I
,j,
possível estabelecê-la para 1968, por meio da exploração de uma amostra de Distribuição de jovens delin-
fichas tiradas do recenseamento. qüentes por C.S.p. do chefe de 11 40 22 11 11
(29) Constituiu-se a amostra tirando-se ao acaso unidades de habitação, familia (1961-1966). 73 22
quarteirõe's, segundo a terminologia do Instituto Nacional da Estatística e dos
Estados Econômicos (l.N.S.E.E.). Os quarteirões foram tirados de catego-
rias definidas ao mesmo tempo pelo setor geográfico, pelo tipo de habitação recenseamento de 1968) e entre os jovens delinqüentes. Semelhante
(' pela data de construção (achando-se estes três caracteres e, sobretudo, os comparação faz aparecer uma nítida oposição entre as classes médias e
dois últimos fortemente ligados entre si) e delimitados segundo a análise dos superiores, entre quadros médios e artesãos-comerciantes, e entre qua-
.-esultados dos 'recenseamentos de 1954 e 1962. A representatividade da amostra
(amostra relativa ao pessoal do décimo ano) foi testada por via de referência dros superiores, (31) subrepresentados na população dos jovens de'
aos resultados de 1962: nesse ano, a população de tais quarteirões era repre- linqüentes (22%, quando representavam 41,2% dos jovens) e as clas-
sentativa, sob o aspecto da categoria' socioprofissional, do conjunto da popu- ses populares, trabalhadores braçais, operários, empregados, sobre-re-
lação da comuna. presentados nessa população (7370, quando representavam 59% do,
(30) Em particular, a amostra, representativa em relação ao estado da jovens). A delinqüência dos jovens de classe popular e a dos jovem
população em 1962, não leva em conta mudanças que a emigração pôde intro~ das classes médias e superiores se distinguem uma da outra por um
duzir. Entretanto, a comparação dos recenseamentos (de 1954 a 1962 e, por conjunto de traços sistemáticos. A primeira é mais freqüentemente
amostras, de 1968) faz ..aparecer uma diminuição dos operários, especialmente
dos qualificados, e um aumento das classes médias e superiores. Para conhe- masculina: 89% de rapazes entre os delinqüentes de pais trabalha-
cer-lhes precisamente o efeito sobre as comparações a seguir, seria preciso; dores braçais, operários ou empregados, contra 81 % entre os delin·
além disso, conhecer a distribuição, por· idade, dos migrantes, a firo de saber qüentes egressos das outras categorias sociais. Ela começa mais cedo:
como os movimentos de população afetam a distribuição dos adolescentes. Não a parte dos jovens de menos de 14 anos de idade é de 2470, contra
obstante, pode-se estimar que as comparações, aqui apresentadas e ftlndadas
num estado de população (em 1968), em que a porção das classes médias e
superiores aumentou, -tendem a minimizar ligeiramente a importância da delin- (31) Importa notar a ausência de filhos de membros das profissões liberais
qüência juvenil naquelas classes. entre os jovens delinqüentes da amostra.

370 371
'us delinqüentes egressos das outras categorias SOCIaIS, e 14% entre .(2 contra perto de 1,5 para os quadros superiores e membros das
:provindos das classes superiores, por exemplo. Ela comporta. mais .profissões liberais) a relação entre a parte dessa categoria na po-
recidivas: 33% de recidivistas contra 7% para as demais categorias. pulação jovem e a da mesma categoria na dos delinqüentes. Embora
E consiste. mais freqüentemente. em roubos: 72% de roubos entre a descrição sociológica dos delitos e dos delinqüentes, fornecida pelo
os delinqüentes de classe popular, contra 62% entre os das outra, . registro, seja muito pobre e o sistema de categorias utilizado, muito
. categorias sociais; e, por exemplo, 58% entre filhos de quadros mé- afastado de uma tipologia sociológica, podem-se assinalar, na delin.-
dios e 6610 entre os de quadros superiores. No caso destes, OS de- qüência dos adolescentes de classe média, traços que se ligam, de
litos distantes da pequena delinqüência clássica. tais como o van· maneira significativa, à posição social dessa classe. Entre o conjun-
dalismo e os relativos à sexualidade, são mais freqüentes. Ela é, a to dos delinqüentes confiados a um conselho de assistência educativa.
delinqüência que vimos focalizando, praticada, mais comumente, em os jovens de classe média 'são os que mais freqüentemente se vêem
bando: 42% contra 39% para os delinqüentes egressos das demais censurados (5 casos sobre 8) de indocilidade, de revolta e de opo-
categorias sociais. (32) Finalmente, as idades dos delinqüentes de sição aos pais. (34) Tais traços não são encontrados em nenhum nos
classe popular situam-se numa faixa mais extensa, enquanto, entre os adolescentes oriundos das camadas inferiores das classes médias. Só
delinqüentes de classe média e superior, estreitam-se mais em torno muito raramente entre os adolescentes, filhos de operários. E, ainda
do tempo. em que ocorre a acrise de adolescência", sendo a parte neste último caso, sob uma forma muito diferente: em três casos
dos menores de 14 anOs e dos indivíduos de 17 mais fraca entre os (sobre 18), vêm eles descritos como teimosos ou indivíduos que
delinqüentes das classes média e superior: 24% dos de menos de recusam a autoridade. O traço dominante da descrição faz lembrar
14 anos entre os da classe média contra 11 % dos da classe supe·· a revolta contra os pais e contra os valores por eles transmitidos
rior;e 2310 dos de 17 anos completos Il<l classe média contra 18% (ordem, esforço, coragem). As atitudes de retraimento, caracteriza-
da classe superior. das como indolência, falta de enegia, incapacidade de submeter-se a
,Pode-se ainda distinguir uma delinqüência "anômica", sintoma e uma disciplina, exprimem, de outra maneira, a recusa dos mesmos
conseqüência de uma crise de educação, tipo característico de de- valores. O jovem delinqüente tem, aqui, a aparência de alguém que
linqüência dos adolescentes das classes favorecidas, em oposição à Se opõe aos valores dominantes de seu grupo e deve muitas de suas
dos adolescentes de classe popular e. que. aparece como um fenômeno caraoterísticas a semelhante oposição. Os delinqüentes de classe média
endêmico, ligado a determinado estilo de vida. Os traços caracte- estão, diferentemente dos delinqüentes de classe superior, o mais
rísticos do primeiro tipo de delinqüência - fraca diferenciação de das vezes matriculados em um cursus escolar inferior ao da maioria
acordo com o sexo, ausência de recidivas, concentração etária em dos adolescentes de sua classe social. (35) Igualmente, o estudo
redor da crise da adolescência, aumento da parte dos delitos, com
exceção do roubo - surgem à medida que se vai subindo na escala aqui particularmente, próximos dos operá-rios. Se os quadros médios se apresen-
.social, crescendo ligeiramente da categoria dos quadros médios à dos tassem isolados, os caracterf!S aqui destacados apareceriam ainda mais clara-
mente.
superiores, o que representa um índice da homogeneidade deste tipo.
(34) A contagem é feita segundp os julgamentos psicológicos de que é
Os grupos aqui representados pertencem principalmente às classes alvo o menor por parte dos que o cercam ou, na falta. pelo psicólogo. Não se
médias - como técnicos, pessoal subalterno - e a categorias inter- pode considerar a esses delinqüentes comO uma subamostra perfeitamente repre-
mediárias entre as classes médias e as superiores - como agentes sentativa do conjunto dos delinqüentes, mas como uma seleção de casos que,
por isso que se consideram particularmente graves, são particularmente signi-
imobiliários, engenheiros comerciais - de sorte que se podem tomar ficativos.
os quadros médios, categoria ce!ltral e mais numerosa deste grupo, (35) A parte dos alunos de liceu é muito mais fraca entre eles. No con-
como exemplar amostra desse tipo de delinqüência. É nos quadros mé- junto dos jovens de classe média (quadros médios e artesãos comerciantes)
dios (33) que a delinqüência se mostra menos freqüente, sendo maior de 15 e 16 anos, 44% são alunos de liceu, 29% de colégios de ensino geral
"( C. E. G.). 22% do ensino técnico e 6% são representados por aprendizes.
Entre os delinqüentes. a parte dessas diferentes categorias é, respectivamente,
(32) O fenômeno é particularmente claro entre os filhos de operários (52% de 17%. ~7%, 8% e 17%. Contam-se 25% de inativos (16% sem res:>ostas).
Ao contrário, para os filhos de quadros superiores, as duas distribuições são
dos delitos cometidos em bando). muito mais próximas: têm-se, no conjunto, 67% de alunos de liceu j 29% são
(33) Artesãos e comel'ciantes foram reagrupados com 05 quadros médios, de C.E.a., 19% são do ensino técnico e 4% são aprendizes; 4% são do
por causa dos fracos efetivos dessas categorias, ainda que os artesãos estejam, ensino técnico; e, quànto, aos delinqüentes, 67% são .de liceu, 10% de C.E.G.

:312 37$
dos casos mais complexos e mais detalhados, confiados a um con- dio do sentimento de segurança, 'é o conjunto das características
selho de assistência educativa, faz aparecer, como característica re- econômicas e sociais que age sobre a taxa de natalidade de um
-corrente, um curso escolar irregular, que passa por fieiras escolares grupo. (38)
de prestígio cada vez menor, das seções clássicas às seções moder- Essa taxa de natalidade aproxima as famílias de delinqüentes de
nas, ou do liceu ao colégio, depois ao colégio de ensino técnico, por
classe média das classes populares (número médio de filhos para os
exemplo, com numerosos fracassos escolares.(36) Tudo se passa como operários: 2,4). A análise das profissões sugere uma outra dimensão
se os filhos não pudessem sustentar o propósito de mobilidade de
da anomia característiCa da situação das famílias de delinqüentes de
seus pais ou manter-se à altura da trajetória de sua família. Há,
com efeito, na situação das famílias de classe média, ou, antes, de classe média. Observa-se a freqüência das profissões técnicas ou, so-
certas frações das classes médias, às quais se abrem mais -perspecti- bretudo, comerciais, (39) que comportam, menos freqüentemente, uma
vas de mobilidade, elementos de anomia, quer por causa dos riscos forte estabilidade de emprego, um desdobramento ordenado, garantias
de fracasso e de regressão social, quer, sobretudo, porque a passagem, estatutárias, perspectivas de carreiras regulares; em resumo, menos
real ou antecipada, ou somente' esperada e ilusória,' a novos status princípios de ordem que contribuam para regularizar a existência e os
ameaça a integridade de um sistema de valores ajustado a outras projetos e que, portanto, favoreçam uma socialização" regular dits
posições. A oposição aos pais, em que se vê: uma característica ge· crianças. A taxa de natalidade exprime, ao nível da conduta gerai
nérica e irivariante segundo as classes, não será específica de uma da existência, certa marginalidade devida, em parte, à situação pro-
. situação em que o hiato entre a condição dos pais e a de aspiração fissional, tendo as categorias mais marginais das classes médias (e,
dos filhos cria riscos de conflitos? É pelo menos nessa situação notadamente, categorias em curso de ascensão a tais classes) acesso
que a "crise de adolescência" tem a sua maior acuidade. Nesse grupo mais fácil a profissões mais abertas e menos "carreirizada's",
é que se encontram as maiores probabilidades de "incoerência" ou Quanto à delinqüência anômica dos adolescentes de classe média
de "contradição éticas", podendo os filhos, quer "descair" em re- - a delinqüência dos adolescentes egressos das categorias mais des-
lação ao projeto de seus pais, quer, ao contrário, prolongando até favorecidas, trabalhadores braçais, operários, empregados - aparece
muito longe e até muito alto a trajetória projetada para eles, assimi- ela como sendo uma delinqüência. endêmica. Mais freqüente, não. é
lar' completamente e muito cedo, e em seus aspectos mais opostos ao conseqüente a uma crise de educação. É, antes, .uma possível decor...
sistema de valores de seu grupo, os valores de sua condição de rência das condições de vida e das de lazeres: as saídas em bando
aspiração. implicam o risco de conduzir mais facilmente aos tumultos, às de..:
Entretanto, não se deveria, por uma espécie de julgamento de predações, aos roubos, que constituem uma parte importante dos de~
essência, ver uma característica genérica das classes médias numa si- litos. Em meio aos delinqüentes das classes mais desfavorecidas, duas
tuação, ao parecer, própria de grupos que ocupam uma posição par- categorias, filhos de trabalhadores braçais e filhos de empregados,
ticular no interior das referidas classes, como o sugere o número se caracterizam por probabilidades de delinqüência particularmente
médio de crianças, 3 contra 1,7 para a mesma categoria, no con- fortes: sua parte entre os delinqüentes representa quase o dobro da
junto da população. Com efeito, a diferença de tais' algarismos não entre a população dos jovens de 10 a 18 anos, a saber: para 05
resulta de um liame direto entre a delinqüência e o número de filhos de trabalhadores braçais, 11 5'0 entre os delinqüentes contr~
crianças (este tendendo a enfraquecer o rigor e a continuidade da 5,5;'10 no conjunto dos jovens e, para os filhos de empregados, 22%
vigilância), (37) mas indica posições sociais diferentes: por intermé- contra 12,4%.
As duas categorias, por mais diferentes que sejam, ocupam posi-
(36) Esses fracassos escolares não podem ser reduzidos a simples conse- ções sociais homólogas. Situadas numa posição inferior em seu uni-
qüência da delinqüência, porque aparecem muito antes do primeiro delito. Não verso social, a saber, respectivamente as classes populares e as classes
se pode tampouco contestar o papel específico das carreiras escolares dos refe-
ridos adolescentes, se se observar que a situação escolar dos delinqüt'ntes de
classe superior e cuja delinqüência aparece mais freqüentemente cornO um inci- (38) Cf. P. Bourdieu e ~. Darbel, "La fin d'un malthusianisme", in
dente passageiro não se distingue, apreciada segundo os mesmos critérios, da Darras, Le partage des bénéfices, Paris, Ed. de Minuit, 1965.
do conjunto dos adolescentes de sua classe. (.39) As profissões CÇlmerciais !)u aparentadas, inspetor de seguros, repre-
(37) N em a precocidade, nem a freqüência das recidivas variam, em cada sentante, agente de negócios imobiliários etc., somam 27% do conjunto do
categoria' social, em função do número de crianças da família. pessoal dos quadros médios e superiores.

374 375
,li"

médias, (40) são categorias afetadas· particularmente pela mobilidadé implica malfeitorias regulares, mais freqüentemente ro'ubas,' com,
~ ,em que a socialização dos adolescentes comporta mais riscos de eventualmente, formas mais graves de criminalidade, que traduzem G
insucesso, em conseqüência de sua posição particular relativamenté engajamento numa "carreira criminosa" (organização do roubo etc.).
ao cursus seguido pela maioria dos adolescentes de sua classe. Com É também nesse grupo que se percebem sinais de uma tradição de
efeito, cada classe sociaforganiza o trabalho de incukação por via de delinqüência: esta não é só um episódio individual, mas, em 17%
,'referência a uma definição social de Um tipo de cursus, série gra~ dos casos (contra 7% no conjunto), segue a delinqüência do pai, da
duaáa de posições escolares e profissionais: para cada etapa são mãe 0'1 de um irmão. (41) Um grande número de casos explica um
definidos modelos que inspiram a socialização, para cada posição Se fracasso escolar ou (e) profissional, particularmente no grande nú-
fixam certos comportamentos estatutários e, correlativamente, certa.3 mero de indivíduos que não puderam adquirir qualificação profis'
interdições. Essas definições sociais inspiram a ação de formação sional e são trabalhadores braçais: 29,5% (contra 160/0 para o C011-
dos agentes e, notadam'ente, a farriília, concorrendo para a sociali- junto). (42)
zação dos adolescentes, e contribuem para organizaras comporta, Os jovens delinqüentes são oriundos de grupos profissionais par-
mentos e estruturar os projetos dos mesmos adolescentes. O cursus ticulares, muitas vezes e notadamente de ofícios da' construção e dos
inodal destes jovens de uma classe determinada dá uma aproximada transportes, pedreiros, pintores, encanadores, motoristas, motoristas':'
imagem desse cursus de referência. entregadores, que Se opõem aos ofícios da indústria, partiCularmente
Numa determinada classe, os adolescentes pertencentes às catego- raros na amostra, como ofícios que não comportam formação insti..:.
rias inferiores e sobre quem se exercem, mais pesadamente, a eli- tucionalizada, oferecendo poucas perspectivas de carreira e pouca esta~
minação e a relegação escolares têm, com mais freqüência, carrei. . bilidade de emprego e em que se conservam hábitos mais "rudes";
ras que divergem fortemente do cursus de referência. Em CO)1se- costumes mais próximos de uma "cultura operária" arcaica. Poder-
qüência da incerteza das carreiras e_ da incoerência dos projetos de se-ia, ~em, dúvida alguma, pôr melhor em evidência o efeito per-
·futuro, os adolescentes têm mais oportunidades de escapar à açãq turbador de Uma posição marginal e inferior dentro de uma classe
de socializac;ão dos. diversos agentes de enquadramento e a modelos social particular, se, COmo no caso dos empregados e- dos trabalha-
de socialização, que se acham, por assim dizer, em pOrle-à-faux, de- dores braçais, fosse possível isolar, segundo o meSmO princípio,
finidos por outras e ajustados a outras situações. A grande parte outras frações no interior da classe operária (por exemplo, distin-
dos indivíduos "inativos" entre os filhos de empregados e de trà· guir os O. S. dos O. P . ). A análise estatística sugere, com efeito,
balhadores braçais (24% ·e 18% respectivamente, contra 16% para que, sejam quais forem as diferenças nas oportunidades para a de-
o conjunto) é um ,índice do número dos' que escapam a uma socia~ linqüência e nas formas de delinqüência, os meios de que se origi~
Iização regular pela integração no cursus moda!. Os delitos que dão naram os delinqü'entes têm por característica comum situar-se às mar-
conta de desordens diversas são particularmente numerOsos entre os gens de seu grupo, sendo o número médio de filhos por família -
"inativos": contam-se 8,5% de fugas (contra 4,5% para o con- se concedermos que a natalidade é bem um indicador geral da po-
junto), 11,5% de delitos relativos à sexualidade (contra 7% do sição social - sempre superior ao obtido relativamente a famílias,
conjunto) e 20,5% de contusões e ferimentos (contra 8% para " de igual categoria social, na mesma comuna. De igual modo, o curs1J,S
conjunto). dos delinqüentes, sempre abaixo do cursus modal, sugere uma po-;
A delinqüência dos indivíduos de classe operária distingue-se cla- siçõo de marginalidade. (43)
ramente da dos filhos de empregados: é mais precoce, apresenta re-
cidivas mais freqüentes, compõe-se quase exclusivamente de rapazes (41) Trata-se, sem dúvida, aqui, de uma franja de população, vestígio dos
que, muitas vezes, agem em bandos, culpados, no mais das vezes, habitantes da zona ou da população .de certos bairros de pardieiros do centro
de roubos caracterizados, parecendo estes delinqüentes aproximar-se de Paris transferidos para os arrabaldes, quando de operaçges de renovação;
mais do tipo da subcultura delinqüente como estilo de virIa que (42) Situação que implica um enquadramento menos estreito que a do
aprendiz e frusta a ação de socialização que acompanha a simples aprendi-
zagem técnica e que está mesmo como necessariamente implicada por esta (cf.
(40) No inquérito, a categoria dos etnpr~gados, consiste no que é essencial~ C. Grignon, Les colleges d' enseignement technique, Paris, Centro de Sociologia
em pessoal subalterno dos hospitais ou das clínicas (auxiliares de enfermagem), Européia, 1970, rnultigr.).
pequenos empregadO_f> municipais (cantoneiros etc.), pessoal subalterno (de vigia (43) Os filhos do pessoal de quadros, superiores fazem exceção a estéi regu~
ou de manutenção) nas empresas particulares. ldridade. que não pode ser explicada como um efeito da delinqüência.

376 377
1!
:11

É a partir dessas observações qtre se imporia discutir os trabalhos da delinqüência (apanhada através dos indicadores, tais como a re-
explicativos da delinqüência juvenil pela desunião do lar. Se a ano- cidiva e a precocidade), em função da anomia familiar, entre os
mia familiar é freqüente na amostragem de delinqüentes (26% em delinqüentes de classe popular (filhos de trabalhadores braçais e
média para 15% numa amostra de população ordinária), uma ana- de operários), não dão certo no sentido esperado: a parte de reci-
lise mais apurada de sua distribuição por categoria sódo-profissio· divistas e a de delinqüentes precoces é maior entre os indivíduo:;
nal conduz a pôr em questão o papel etiológico privilegiado que a oriundos de casais comuns (36% e 39,5%, respectivamente) do que
teoria comum lhe confere. As variações de uma categoria social para entre os provindos de casais "anômicos" (divórcios, separações, novo o:;.
Qutra são fortes, quando se deveriam observar taxas vizinhas em casamentos, concubinatos, viuvez: 25% e 28,5%, respectivamente).
todas as categorias, se a anomia familiar fosse mesmo a causa prin- ~ somente nos delinqüentes da classe média e da superior que a
cipal e geral da delinqüência juvenil. Constata-se mesmo que, para variação corresponde às expectativas. (45) Sem tirar desses fatos con-
certas categorias, as taxas não são superiores àquelas que se podem clusões definitivas, deles não Se deverá reter que o esquema etioló-
calcular com base nas amostras de população ordinária da mesma gico comum deve sua força mais aos temas ideológicos que o susten-
comuna. (44) Nas classes populares é que melhor se aplicaria o esque- tam do que às confirmações experimentais que recebe? Seria pelo
ma etiológico comum, sendo a taxa de casais anômicos nitidamente menos preciso examinar os efeitos diferenciais da anomia familiar,
mais forte, para os trabalhadores braçais e os operários, na amostra segundo as classes. Pode-se aventar a hipótese de que é nas classes
de delinqüentes do que nas de população ordinária: 36% e 27~1o, médias que eles são mais fortes, porque a integração doméstica tem
respectivamente, contra 27ro e IOro, ou 18,5ro e 11 %, segundo outra mais valor e porque a sociabilidade familiar está centralizada na fa-
comparação. Mas a ligação que aqui se observa não exprime uma mília nuclear. De sorte que a etiologia comum da delinqüência, etio-
influência. causal simples. Com efeito, as variações da "gravidade"' logia que atribui um papel privilegiado à desunião familiar, se ba-
searia na experiência das classes médias. Nas classes populares, pelo
Taxas de casais <õ anômicos JJ por categoria profissioncl contrário, a anomia familiar não parece uma característica específica
das famílias de delinqüentes, mas uma característica genérica ligada,
População U comum n ao meSmo tempo que outras, à posição particular dessas classes; (46)
e é, talvez, pela atenção especial que lhe dedicam as instituições de
De um De vários repressão, que se deve explicar a estreita associação desse índice
Delinq'Úentes aquarteirão de quarteirões
delinqüência» '" ao acaso de anomia com a delinqüência juvenil (Excerto de }EAN-CLAUDE
CHAMBOREDON, "La délinquance juvénile", Revue française de So-
Trabalhadores braçais (%) (%) (%) ciologie, julho-setembro de 1971, págs. 337-346).
Operários 36 'i!1 18,5
Empregados 27 10 11
Quadros médios e artesãos-
-comerciantes 23 27,5 'i!1
(45) Sejam 33% de 14 anos e menos entre os delinqüentes egressos de
Quadros sup. e memLros das 13 16 14
casais anômicos e 29% entre os provindos de casais comuns. Os recidivistas
profissões liberais 28,5 9 8 são muito pouco numerosos entre os delinqüentes de classe média e superior
Conjunto 26,5 16 15 para que se possa testar a ligação.
(46) Seria precíso fazer uma aproximação com as taxas de suicídio e com
* Trata-se de um quarteirão do grande conjunto que os serviços policiais as de mortalidade (cf. A. Darbel, "Ordre ou désordre?!!, in Darras, Le par-
e assistenciais consideram como um dos "pontos quentes" da delinqüência tape des bénéfices, op. cit., págs. 202-217) e em particular com as de morta-
juvenil na comuna. lidade por alcoolismo e por acidente. Estas se hierarquizam assaz regular-
mente em função inversa da hierarquia social, culminando entre os trabalha-
dores braçais (7,4% de óbitos no grupo etário compreendido entre 36 e 45
anos são devidos à cirrose do fígado e ao alcoolismo, -15,2% a acidentes, 4,6%
(44) Ainda é preciso notar que estas taxas, diferentemente das que se podem a suicídios), contra, para os quadros médios do setor público, por exemplo.
estabelecer para as familias de delinqüentes, têm probabilidades de ser infe- 1,7%, 3,7%--e 1,1%, respectivamente (G. Galot e M. Febvay, "La mortalité
riores às taxas reais já que estabelecidas segundo declarações de situação matri- différentielle suivant te milieu- social lO, Etudes et conjoncture [11], novembro
monial feitas pelos chefes de família. de 1965, pág. 103).

378 379
mesmo (e quase sempre sem que lhe diga respeito), mas também
por uma grande causa, que transcende os limites de seus próprios
interesses ... ". (47)
A proposiçã0 de Simmel chama particular atenção para a dis-
CAPÍTULO II tinção entre um conflito em que os participantes se engajam a tf~
tulo privado e o em que o fazem como representantes de coletivi··
IDEOLOGIA E CONFLITO dades em que investiram uma parte de sua personalidade. Este últi-
mo tipD de conflito reveste um caráter mais intransigente. O respeito
ao desinteresse, a que Simmel se refere, é condicionado pelo papel
de representante. Uma cultura centralizada na realização individual
uesaprova a corrida atrás do interesse pessoal em tais domínios, onde
se espera que os indivíduos ajam como representantes. O papel de
SIMMEL, MARX E O CONFLITO SOCIAL representante fixa um limite normativo à perseguição ao interesse
pesscal. E isto acontece mesmo num sistema social impregnado por
uma ética do bom êxito pessoal.
LEWIS COSER
Pode-se agora relacionar esta noção de representação com a nossa
primeira proposição. Os grupos se tornam cada vez mais conscien-
tes de sua especificidade, através do conflito. Assim, estabelecem ou
mantêm fronteiras entre si mesmos e o exterior. O conceito de "cons-
"As 'partes' têm consciência de ser simplesmente representantes ciência de grupo" (ou de "consciência de classe", conforme o caSQ)
de reivindicações que ultrapassam as dos indivíduos exclusivamente, traduz, entre outras, essa transformação dos indivíduos em cons-
de combater, não para si mesmas, porém unicamente para uma- cau· cientes representantes do grupo. 0- individuo será mais intransigente
sa: isso pode dar ao conflito um radicalismo e um caráter impla- no seu papel de representante, porque se considera como encarrega-
cável, que é comparável ao comportamento geral de certas pessoas do de missão do grupo. Ao nível da conduta pessoal, as concessões
particularmente dispostas ao desinteresse e ao idealismo. .. Tal luta, são permitidas ou, mesmo, desejáveis. Em compensação, elas não
empreendida por uma pessoa que mobiliza todas as suas forças. são mais toleráveis para o que representa interesses de grupo trans-
quando a vitória não aproveita senão e exclusivamente à causa, pos~ cendentes do plano puramente pessoal.
sui um caráter nobre ... O combate é travado com total asperidade, N este contexto, devemos sublinhar a importância sociológica da
e funda-se num mútuo acordo das duas partes, segundo o qual cada teoria de Marx, que rejeita todo e qualquer elemento pessoal, quando
uma deve defender unicamente suas reivindicações e sua própria critiCa o capitalismo: "Não pintei roseamente o capitalista e o pro·
causa, renunciando a toda 'e qualquer consideração pessoal ou egoís- prietário de imóveis. Mas aqui não se trata das pessoas, senão na
ta. Assim, o combate se desenrola segundo a sua lógica intrínseca. medida em que personificam categorias econômicas, na medida em
não sendo nem intensificado nem atenuado por fatores subjetivos. que são os suportes de interesses e de relações de classes determi·
O contraste entre a unidade e o antagonismo é sentido talvez mais nadas. Meu ponto de vista... pode menos do que qualquer outro
nitidamente onde as duas partes perseguem realmente um alvo idênti- tornar o indivíduo responsável pelas relações de que ele permanece
co, tal como o da pesquisa científica. Aqui, toda concessão, toda con- socialmente a criatura, faça o que for para disso desembara-
ciliação antes de uma vitória verdadeiramente decisiva trairia aquela: çar-se". (48)
objetividade para a qual se eliminou do combate qualquer dimensão Marx e Simmel estão de acordo quanto a esse ponto de vísta. No
pessoal. A partir de Marx, as lutas sociais sempre se desenvolveram sentir de ambos, a luta de classes deve ser despersonalizada, par::!.
nesse sentido. .. A amargura pessoal diminuiu grandemente no sel:J que os adversários apareçam, de um e de outro lado, no seu papel
das lutas, tanto as gerais como as locais ... Nem por isso, entretanto, de representant~s de grupos antagônicos. Só assim a luta pode atin-
decresceu a violência do combate.
Ao contrário, tornou-se mais aguda ... por causa da tomada de (47) G. Simmel, Confli'ct, Glencoe, Free Press, 1955, págs. 39-40.
consciência do indivíduo: sabe ele que combate não somente por si (48) Karl Marx, Le Capital, Prefácio, Paris, Ed. Sociales, 1969, pág. 20.

380 381

26 - T.S.
gir essa intensidade e essa intransigência que Marx preconiza. Insis- tornaram-no consciente de seu alcance e, fazendo isto, deram-lhe
tindo no caráter impessoal da luta de classes, ele procurava fazer outro sentido. Naturalmente, tornaram-no radical, ao imprimir às prâ-
sentir ao operário não somente que este lutava no sentido das gera~ ticas sindicalistas mais burguesas uma tendência revolucionária". (51)
ções futuras, mas que também devia adotar comportamentos dife- Para ilustrar semelhante papel dos intelectuais no agravamento
rentes, quando agisse a título privado ou, ao contrário, como repre- dos conflitos, poderiam ser dados outros exemplos, além dos que
sentante dos interesses e da organização de uma classe social. concernem ao movimento operário. Sabemos que, produzindo e sis-
Chamando a atenção sobre o fato de que a luta se intensifica por tematizando a ideologia de um movimento, deram-lhe os intelectuais
força da despersonalização de seu objeto, Simmel enfoca um dos uma orientação coletiva e contribuíram, principalmente, para trans-
aspectos do papel dos intelectuais nos acontecimentos de caráter so- formar os movimentos no plano ideológico e para intensificar as luta~
cial. Os intelectuais têm "objetivado" os movimentos sociais. Trans:" entre os estratos e os grupos. Mas restam por fazer, ainda, nume-
formaram os interesses de grupos em movimentos ideológicos. Tive- rosas pesquisas, antes que os sociólogos possam determinar, com
ram, assim, uma importância fundamental. O próprio Marx foi, na- a1guma certeza, as condições em que os intelectuais a isso foram le·
turalmente, o exemplo, por excelência, do intelectual que, na palavra vados.
de Karl Mannheim, transforma sem cessar conflitos de interesses' Importa agora considerar a seguinte opinião de Simmel: para ele.
em conflitos de idéias. Despojando-os de suas motivações pessoais eliminar do conflito que as opõe tudo aquilo que é pessoal consti-
e transformando-os inteiramente em lutas por "verdades eternas"~ tui, sempre, para as duas partes, um fator de unidade. Evidente,
os intelectuais contribuíram para aprofundar e intensificar as lutas porém, que o exemplo por ele tomado se refere, de fato, a dois
de classe. (49) tipos de conflitos distintos:
Precisamente essa função é que valeu aos intelectuais a aversão - O primeiro surge quando duas partes que perseguem o mesmo
dos teoricistas do movimento operário americano. Estes últimos se todo se confrontam, utilizando os melhores meios de atingi-lo. Sim-
dedicam antes a limitar os conflitos a objetivos imediatos do que a mel dá como exemplo uma controvérsia no domínio científico. As
estendê-los a esferas políticas e ideológicas. Selig Perlman defende partes antagônicas têm como ponto comnm a pesquisa da verdade;
ardorosamente o pragmatismo tradicional do movimento operário ambas devem, com este objetivo, seguir modelos e métodos que re-
americano e rejeita a objetivação dos alvos e da estratégia marxistas., conhecem a ética científica e seu objetivo institucionalizado: o desen-
Assim, escreve ele: "A principal característica dos intelectuais foi volvimento do saber científico. (52) Valendo-se de teorias adversas,
sempre a de considerar os operários como 'massa' abstrata animada os protagonistas são levados a confrontar-se a propósito de inter-
por uma força abstrata. Os trabalhadores deixam então de ser um pretações que podem excluir-se. Entretanto, esse conflito implica não
agregado de indivíduos que procuram, reagrupando-se, defender inte- somente um ponto comum de referência, um assentimento a regras
resses econômicos comuns. Ao -contrário, adquirem o aspecto de comuns, mas, também, um alvo comum.
'massa' empurrada por uma 'força' em direção de um 'todo últi- - Simmel evoca ainda um outro tipo de conflito, em que o fator
mo' e glorioso. No fundo, os intelectuais permanecem convencidos de unidade é diferente: ele já não procede do fato de que as duas
(essa convicção está bem enraizada) de que o proletariado seria partes aceitam um objetivo comUm e métodos semelhantes para atin-
como um 'receptáculo' de tudo quanto tem o poder de moldar o des- gi-lo. O que agora as une é que cada nma delas recusa, pura e
tino de uma sociedade". (50) Por outro lado, Perlman indica ainda simplesmente, toda motivação de interesse pessoal e, assim, se empe-
que abstrair tudo o que é particular e imediato conduz a intensifi- nha em favor de uma causa que ultrapassa o plano individual. Entre
car o combate. Começa-se assim a compreender, igualmente, a crí- o agora citado caso e o precedente não existe simplesmente uma
tica que Joseph Schumpeter dirige ao papel dos intelectuais no movi- diferença de grau, como Simmel o subentende. Na verdade, a obje·
mento operário: "Os intelectuais" - observa Schumpeter - "deram tivação pode ter aqui efeito inverso. Ela traça, efetivamente, uma
ao movimento um vocabulário; forneceram-lhe teorias e slogans ... linha de demarcação muito nítida entre os antagonistas_ Isso tem
como conseqüência. que cada uma das partes se esforça por vencer
(49) Joseph Schumpeter, Capitalisme, socialisme et démocratie, Paris,.
Payot, 1965. (51) ]oseph Schumpeter, Capitalisme, .Ncialisme et démocratie, op. cito
(50) Selig Perlman, A Theory oi the Labor Movement, Nova York,. (52) Ver Robert Merton, "Science and Democratic Social Structure", em
Macrnillan, 1%2, pág,. 145-155. Social Theory and Social Structure, Glencoe, Free Press, 1949, págs. 307-316.

382 383
a outra, lutando 'encarniçadamente. Aqui, a crítica de Simpson parece A TÉCNICA E A CIÊNCIA COMO "IDEOLOGIA"
válida. (53) O que é integrado em primeiro lugar é cada parte dentro
de si mesma. Um movimento operário revolucionário, que se empe-
nhou em destruir as relações de propriedade existentes e uma orga- ]ÜRGEN HABERMAs
nização patronal que também se empenhou em defendê-las são muito
bem capazes de pôr-se de acordo para rejeitar qualquer argumento
e qualquer animosidade pessoais (pode-se querer saber, aliás, se isto
tem sido, freqüentemente, ocaso). Mas esta "base comum" é de A sociedade capitalista transformou-se de tal maneira, por força
importância secundária, a partir do momento em que eles perse- da dupla evolução tendencial que acabamos de lembrar, que não é
guem, unicamente, objetivos diametralmente opostos. mais possível aplicar diretamente duas categorias fundamentais do
Se a objetivação de que fala Simmel leva a um aluimento do con- teoria marxista, a saber, o conceito de luta de classes e o de ideo-
senso, é porque" o elemento comum" permanece superficial nas rela- logia.
ções entre as duas partes. Consiste ele, somente, em conciliar, para Foi sobre a base do modo de produção capitalista que a luta das
excluir, certos meios de luta, como a difamação pessoal. No seu classes sociais se instituiu como tal, criando, assim, uma situação ob-
desdobramento, o combate acarreta uma integração dentro de cada jetiva, a partir da qual se tornava possível reconhecer, retrospectiva'
parte: uma volta, por conseguinte, a rejeitar os valores e os objetivos mente, a estrutura de classes das sociedades tradicionais; estrutura
da outra. imediatamente política. O capitalismo regulado pela intervenção do
Entretanto, na maioria dos conflitos, inclusive nos que ultrapassam Estado e que nasceu para fazer face aos perigos representados para
o plano individual, outros elementos de comunhão, internos, existem, o sistema por um declarado antagonismo entre as classes bloqueia-lhes
ou se produzem. A objetivação não é um fator de unidade, a me- o conflito. O sistema do capitalismo avançado define-se por uma
nos que se acompanhe de outros fatores de unidade, como um obje- política que assegura para si a lealdade das massas por via de grati-
tivo comum. ficações compensadoras, isto é, uma política que evita os conflitos.
Para reformular a proposição de Simmel, diremos: A tal ponto, que o conflito, inerente, como no passado, à estrutura
- Os conflitos em que os participantes têm consciência de repre- da sociedade, em virtude da valorização do capital no âmbito da
sentar simplesmente coletividades ou grupos e de combater, não por economia particular, é precisamente o que tem mais probabilidades
si mesmos, mas pelos ideais de grupos que representam, são, pro· de permanecer latente. Eclipsa-se por detrás de outros conflitos, que,
vavelmente, mais radicais, mais impiedosos do que aqueles em que certamente, estão, eles próprios, condicionados, de igual maneira, pelo
se combate por motivos pessoais. modo de produção, mas que já não podem revestir a forma de con..
- Eliminar do conflito tudo que é pessoal e, pela mesma razão, flitos de classes. Oauss OHe analisou esse estado de fato parado-
toda modificação que possa disso normalmente resultar tende a tor- xal, nos termos do qual os conflitos abertos irrompem a propósito
nar o combate mais 'encarniçado. de certos interesses sociais, com uma probabilidade tanto maior quan·
- Objetivar um conflito torna-o radical; o atual movimento ope- to o prejuízo sofrido por estes últimos apresenta para o sistema
rário marxista é disso um exemplo. Alinhamentos ideológicos rigo- conseqüências menos perigosas. São potencialmente conflituais as ne-
rosos têm mais oportunidade de se produzirem em estruturas rígidas cessidades que se situam na periferia do domínio da ação do Estado,
do que em estruturas elásticas. porque estão distantes do conflito central mantido latente e, por con"
- É provável que a objetivação do conflito se torne um fator de seguinte, não gozam da meSma prioridade no seio de semelhante ação
unidade para as duas partes em luta, quando elas estão atrás do preventiva. Necessidades assim é que engendram os conflitos, na
mesmo alvo: é este o caso, por exemplo, das controvérsias científi- medida em que as intervenções do Estado são distribuídas de ma-
cas que têm por objetivo estabelecer a verdade (Traduzido de neira desproporcional e criam domínios que permanecem a reboqu~
LEWIS COSER, The Fonction of Social Conflict, Glencoe, Free Press, do desenvolvimento, com as correspondentes tensões geradoras de
1964, pág. 111 e págs. 114-119). tais disparidades.
Os interesses que têm parte ligada à manutenção do modo de pro-
(53) George Simpson, Conflict and Community, Nova York, T. S. dução não são mais "claramente localizáveis" como interesses de
Simpson, 1937, págs. 25-26. classe. Porque o sistema de dominação, que tende a evitar se ponh:-t
384 385
em perigo o sistema, exclui a "dominação" no sentido da dominação autodestruição desesperadas. Mas a uma guerra civil desse tipo fal-
política imediata ou da dominação social mediatizada pela economia, tarão as probabilidades de bons êxitos revolucionários, próprios das
exercendo-se de tal sorte que um individuo-classe se vê confrontado lutas de classes, enquanto não se celebrarem alianças COm certos gru-
com outro como grupo identificável. pos privilegiados.
Isso absolutamente não significa que os antag,onismos de classes Sob determinadas reservas, eSSe modelo parece poder aplicar-se
desapareceram, mas que se tornaram latentes. As diferenças especí- às' relações' entre as sociedades industriais adiantadas e os antigos
ficas entre as classes persistem ainda sob a forma de tradições sub4 territórios coloniais do Terceiro Mundo. Aí também, de uma cres-
culturais e das diferenças correspondentes respeitantes não só ao nível cente disparidade resulta uma forma de situação subprivilegiada, que
de vida e aos hábitos de vida, maS também às atitudes políticas. poderá ser, no futuro, cada vez menos considerada em termos d~
Além disso, as estruturas da sociedade tornam provável que a exploração. Mas importa notar que, nesse nível, os interesses eco-
classe dos assalariados seja mais duramente tocada pelas disparidades nômicos cedem. lugar a interesses imediatamente militares.
sociais que os outros grupos. Enfim, o interesse generalizado pela ,Seja como for, na sociedade capitalista adiantada, os grupos sem
manutenção do sistema está hoje ainda ancorado numa estrutura de vantagem e os grupos privilegiados não mais fazem face uns aos
privilégios, ao nível das próprias possibilidades da existência. O con- outros como classes sócio-econômicas; as situações subprivilegiadas
ceito de um interesse que se tornou completamente autônomo quanto não são mais, aliás, tão delimitadas por fronteiras específicas deste
aos indivíduos vivos deveria ele próprio superar-se. Mas, com a ou daquele grupo. Estas fronteiras separam, de fato, diferentes ca-
defesa do sistema contra o que o põe em perigo, a dominação po- tegorias da população. Assim se acha mediatizada a relação funda-
lítica no seio do capitalismo regulado pela intervenção do Estado mental que existiu em todas as sociedades tradicionais e que se ma-
faz seu um interesse em manter uma fachada de rlistribuiçáo com- nifestou como tal no liberal capitalismo, a saber: o antagonismo de
pensadora, interesse que transpõe as fronteiras latentes entre as classes entre parceiros que se situam em uma relação institucionali-
classes. zada de violência, de exploração econômica e de opressão política,
De resto, o deslocamento das zonas de conflito, longe das frontei- o que deforma e limita a comunicação, a ponto de as legitimações
ras de classes para os setores subprivilegiados da vida social, não ideologicamente mistificadoras não serem novamente postas em causa.
significa, absolutamente, que esteja eliminado todo e qualquer po- A categoria de totalidade moral de relações vividas, tal como a con-
tencial de conflito importante. Assim como o indica o extremo exem- cebia Hegel, e que se achava destruída quando um dos indivíduos
plo do conflito racial nos Estados Unidos, podem-se acumular em não satisfazia às necessidades do outro, não é mais um modelo ade-
certos setores, e no seio de certos grupos, tantas conseqüências das quado à relação mediatizada de classes no capitalismo avançado e
disparidades, que daí resultem explosões com contornos de guerr3 organizado. Achando-se bloqueada a dialética da moralidade, dá nasci-
civil. Mas se ficam sem conexão com os potenciais de protesto pro- mento à ilusão inteiramente particular da post-histoire. (54) A razão
vindos de fontes diferentes, todos esses conflitos engendrados pela disso é que um aumento relativo das forças de produção não repre-
existência de situações s.ubPrivilegiadas têm a caracterizá-los o fato senta mais, ipso facto, um potencial superabundante e cujas conse-
de que podem eventualmente compelir o sistema para reações vio- qüências emancipadoras abalam as legitimações da dominação. Por-
lentas, não mais compatíveis com a democracia formal. Mas não po .. que, daqui por diante a principal força produtora, isto é, o progres-
dem, estritamente falando, derrubá-lo. Porque os grupos subprivile- so científico e técnico, uma vez alcançado, tornou-se um princípio
giados não constituem classes sociais. Jamais representam, nem mes- de iegitimação. Esta nova forma de legitimação não tem mais, para
mo a título potencial, o grosso da população. A privação de direitos dizer a verdade, a antiga forma da ideologia.
de que são vítimas e sua pauperização não representam mais uma Por um lado, a consciência tecnocrática é "menos ideológica" que
exploração, porque o sistema não vive do seu trabalho. Podem re- todas as ideologias anteriores, porque não tem o poder opaco de
presentar no máximo, um estádio anterior da exploração. Mas eles
J uma cegueira, que se contenta com dar a ilusão de uma satisfação
não poderiam impor a satisfação das reivindicações que legitimamente dos'. Ínteresses. Por outro lado, a ideologia hoje antes transparente,
apresentam, recusando-se a cooperar. Por isso elas conservam ° ca- e que domina implicitamente, em segundo plano, a ciência, e a feti4
ráter de um apelo. A força de verem que jamais se levam em con- chiza, é mais irresistível e vai muito mais longe que as ideologias de
sideração algumas de suas legítimas reivindicações, os grupos sub-
privilegiados podem 'reagir, em casos extremos, por destruição e por (54) Em francês no texto (N.d.T. do original).

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"
"
tipo antigo, porqne, mascarando os problemas Oa prática, justifica modificada, como propriedade imanente ao sistema. É por isso que a·
não somente o interesse parcial de uma classe determinada na domi- consciência tecnocrática não pode mais repousar sobre um recalcamen-
nação e que, concorrentemente, reprime a necessidade parcial de, to coletivo, do mesmo modo que as ideologias mais antigas. De resto,
emancipação de unza· outra classe) mas ainda afeta até o interesse não é possível obter a lealdade das massas senão mercê de gratifi-
emancipatório da espécie em seu conjunto. cações que satisfaçam a necessidades privatizadas. A interpretação
A consciência tecnocrática não é um fantasma (W unschphantasie"! das realízações (Leistungen) permitidas pelo sistema e as quais lhe
racionalizado, não é uma "ilusão" no sentido de Freud, tal como dão suas justificações não poderia, por princípio, ser de natureza po-
uma estrutura de interações aí se encontra, quer representada, quer lítica: ela se refere, imediatamente, a atribuições de dinheiro e de
reconstruída e fundada. Podiam-se ainda reduzir as ideologias bur- lazer, sem prejuízo de sua utilização, e, mediatamente, à justifica-
guesas ao tema fundamental de uma interação justa e isenta dedo- ção tecnocrática da eliminação dos problemas propriamente práticos.
minação, satisfatória para as duas partes. Quanto a elas, correspon- Por isso a nova ideologia se distingue das mais antigas naquilo que
diam com muita exatidão aos critérios da realização fantasmática do destaca completamente da organização da vida coletiva os critérios
desejo e da satisfação substitutiva, na base de uma comunicação res- da justificação ideológica, isto é, regras normativas da interação.
tringida pelas repressões, a tal ponto que a relação de violência, qUI! Neste sentido, ela os despolitiza e os reduz às funções de um sistema
outrora se institucionalizou COm a relação capitalista, não podia ser subordinado de atividade racional, relativamente a um fim.
chamada por seu nome. Mas a consciência tecnocrática não se funda A consciência tecnocrática não reflete tanto a dissolução desta ou
mais, do meSmo modo, sobre a causalidade de símbolos dissociados e daquela estrutura moral quanto o reca1camento da "moralidade"
de motivações inconscientes, que engendra a falsa consciência e, bem como categoria na existência em geral. A consciência positivista co-
assim, as virtudes da reflexão, sem a qual não haveria crítica da mum desativa o sistema de referência da interação estabelecida n"
ideologia (1cLeologiekritik). A consciência tecnocrática é menos yul- linguagem corrente, em que nascem a dominação e a ideologia, nas
nerável à reflexão, porque não é mais somente ideologia. Com efeito, condições de uma comunicação deformada, e em que essa domina-
ela não mais exprime uma projeção da "vida boa", que pode, senão ção, assim como essa ideologia, podem também ser desmascaradas
ser identificada com a realidade má, pelo menos integrar-se com por um método interpretativo reflexivo. A despolitização da massa
ela num conjunto virtualmente satisfatório. Sem dúvida, esta nova populacional, legitimada por uma consciência tecnocrática, constitui,
ideologia serve também, exatamente como a antiga, para impedir ao mesmo tempo, uma auto-objetivação dos homens segundo as ca··
que sejam tematizados os fundamentos da sociedade. Antigamenk tegorias da atividade racional relativamente a um fim e as do com-
era a violência social que se encontrava imediatamente na base da,; portamento adaptativo: os modelos réifiés, que são os da ciência, pas-
relações entre capitalistas e assalariados. Hoje, são as condiçõe., sam pelo vivido mundo sócio-cultural e adquirem um poder objetivo
estruturais que definem a priori o que é preciso fazer para manter sobre a concepção que ele tem de si mesmo (Selbstverstiindnis).
o sistema, isto é, a forma particular da valorização do capital f- O núcleo ideológico da consciência em questão é a eliminação da
uma forma política de distribuição das gratificações sociais assegu- diferença entre a prática e a técnica, o que representa um reflexo,
radora da lealdade das massas. Todavia, a ideologia de tipo antigo não, porém, o conceito objetivo, das povas relações estabelecidas
e a ideologia de tipo novo diferem uma da outra, de dois pontos entre o quadro institucional, que perdeu o seu poder, e os sistemas.
de vista. de ·atividade relativamente a um fim, os quais se tornaram autônomos.
De um lado, em virtude de sua ligação com um modo de distri- A nova ideologia prejudica, por conseguinte, um interesse ligado a
buição de natureza política e que lhe assegura, portanto, uma certa uma das duas condições fundamentais de nossa existência cultural:
lealdade por parte das massas, a relação capitalista não mais existe, em outros termos, à linguagem ou, mais exatamente, à forma de so-
hoje, na base de uma exploração e de uma opressão sem corretivos. cialização e de individuação, tal como é determinada pela comunica-
Se o antagonismo de classes, que existe sempre, se tornou unica- ção estabelecida na linguagem corrente. Esse interesse tanto diz res-
mente virtual, isso se prende a que a repressão sobre que ele Se fup.- peito à manutenção de uma intersubjetividade da compreensão quan-
da se fez objeto de uma tomada de consciência no curso da história to à realização de uma comunicação isenta de dominação. A consciên...
e que ela então, mas então somente, se estabilizou, sob uma fonp.a da ,tecnocrática faz desaparecer esse interesse prático atrás daquele

388 389
que temos em ampliar nosso poder de dispor tecnicamente das coisas. a partir de um certo estádio de desenvolvimento, parece~me alargar
A reflexão, cujo nascimento a nova ideologia próvoca, deve, pois, ir a zona dos problemas que se acham na dependência do estudo cientí-
além de um interesse de classe historicamente definido e separar, fico e que reclamam a arte do engenheiro social. Mesmo os estatu-
como tal, a constelação dos inter,esses que compelem a espécie hu~ tos de propriedade e os modos de regulação - objeto dos conflitos
mana no sentido de se constituir em si mesma (Excerto de JÜRGEN' de doutrinas ou de ideologia no últjmo século - pareciam-me e
HABERMAS, La technique et la science como ({ idéologie , Paris, Gal1i~
U
parecem-me ainda dizer respeito, sobretudo, à controvérsia técnica. A
mard, 1973, págs. 49-59). sacralização, a transfiguração dos tipos ideais de ordem econômica
Ou social são contrárias ao bom ,uso da razão e à própria honesti-
dade intelectual. Não que o exame objetivo se substitua jamais à
opção e a ciência imponha uma verdade prática. São demasiado múl-
IDEOLOGIAS MORTAS, IDÉIAS VIVAS tiplos e demasiado incertos os efeitos dos diversos estatutos de pro-
priedade e dos diversos modos de regulação para que se possa afir-
mar que um é, a todos os respeitos, preferível ao .outro. Mas irrisó-
RAYMOND ARoN riO .é substituir este inquérito metódico por um decreto que será
ideológico (no sentido pejorativo), se não se basear na experiência.
Sou hoje mais sensivel do que há, 10 anos aos riscos de passivi-
Há dez anos, eu queria realçar os fenômenos históricos reconhe- dade e de indiferença que o esgotamento das sinteses totais incon-
cidos por aqueles mesmos que Jmais criticam os '3lntiideólogo s , a testavelmente cria. Talvez pessoas, muitas pessoas, tenham necessi-
saber, o aplacamento das paixões revolucionárias, um como consenso dade de crer em um absoluto, em uma transformação radical para
nos países desenvolvidos (o que chamei de conformismo democrá- que se realizem reformas, mesmo parciais. Talvez a eloqüência ideo-
tico-liberaI). Designei este fenômeno pela expressão "fim da idade lógica, as ilusões utópicas sejam, precisamente em nossa sociedade
ideológica", porque definia explicitamente a ideologia como um sis- técn~ca, uma contrapartida indispensável para a racionalização, um
fema global de interpretação do mundo histórico-político. Continua aritídoto para a maçante objetividade dos peritos ...
sendc certo, parece-me, que os sistemas globais, quer se trate dos
liberais à Hayek, quer dos marxistas, estão em declínio. Mas é di- O que paralisa o pensamento utópico, o que abafa os sonhos mi-
fícil traçar a linha de separação entre as ideologias, formalização :dc lenaristas. no Ocidente, não é tanto a ignorância do futuro quanto
uma -atitude histórica ou de uma hierarquia de valores, inseparáveis
o conhecimento do presente. Marx, escrevendo no curso de uma fase
de toda política e, em todo o caso, de toda política democrática, e os inicial da industrialização, podia, ao mesmo tempo, criticar implaca-
sistemas globais de interpretação, a que reservava o termo ideologia. velmente um regime cruel para a maioria e confiar ao desenvolvi-
Inevitavelmente, o equívoco do conceito de ideologia se comunica à mento das forças produtivas, à propriedade pública dos instrumentos
de produção e à revolução proletária o cuidado de reconciliar O
idéia do fim da idade ideológica.
homem com o seu destino (ou, se se preferir, superar as "aliena-
Além disso, a análise do fim da idade ideológica implicava uma ções"). O desenvolvimento das forças produtivas foi além das espe-
espécie de elogio do pragmatismo e uma desvalorização do pensa- ranças marxistas. Não pôs fim, mesmo nos países mais avançadO'S
mento totalizante. Eu ligava à análise de uma conjuntura um jul- nos caminhos da modernização, à dialética dos homens e de suas
gamento de valor, sem precisar exatamente o alcance que eu mesmo obras; dialética que é constitutiva da própria história. A antiideolo-
dava a esse julgamento. Seria em função da conjuntura da época, gia, tal como eu a concebia há dez anos e como a concebo ainda
çm em quaisquer circunstâncias, que eu aspirava ao ceticismo, nO to·· hoj~, é a aceitação dessa dialética: não a resignação às atuais formas
cante a "esquemas ou modelos"? da, Halienação", mas a resignação a não divisar o fim das alienações
A crítica das ideologias era, a meus olhos, em 1954, uma reação (Excerto de RAYMOND ARON, Trois essais sur l'âge industriel, Paris~
necessária contra o delírio existencial-hegeliano-marxista dos anos Plon, 1%6, págs. 214-216 e pág. 234).
subseqüentes à Libertação. Ao mesmo tempo, a sociedade industrial,

390 391
A DESPOLITIZAÇÁO E O tes a questões puramente fatuais, técnicas e economtcas relacionadas
ENGAJAMENTO POLíTICO com a política. Empregaremos, às vezes, mais brevemente, a expres-
são pertinência ideológica para essa variável. Logicamente, a expres-
são não é cem por cento correta, do ponto de vista de nossa defini-
ção da ideologia concebida como uma estrutura latente, que se expri·
ULF HIMMELSTRAND
me, também, por outros sintomas, além das afirmações ideológicas
manifestas. Se o leitor compreender bem que se trata somente da
pertinência das afirmações ideológicas t/wnifestas, este resumo pode-
Os diversos sentidos do ternw despolitização)}
tt rá ser útil.
. Analiticamente, os aspectos da despolitização atrás assinalados -
A expressão "a despolitização da política" encerra um conceito o consenso ideológico, o impacto da ideologia, a separação das fun·
amplo e assaz ambíguo, que parece poder implicar pelo menos três ções das afirmações ideológicas relativamente às funções da política
coisas diferentes: instrumental, a pertinência da ideologia manifesta - são perfeita-
Em primeiro lugar, pode ela significar, simplesmente, o deseflvolvi- n)ente independentes, em sua maioria. Isto pode ser demonstrado, com
suficiente facilidade, pela construção de índices quantitativos, que
,
mentI/} do consenso ideológico. Parece assaz razoável afirmar que exis-
te, agora, um consenso ideológico maior que o que havia há cinqüenta exprimem aquelas variáveis. Empiricamente, algumas dentre elas po- "'
anos. Parece igualmente possível dizer que um consenso ideológico dem estar, em parte, 'em correlação entre si, pelo menos em certas
total está longe de ser realizado. mesmo num país como a Suécia. condiç[,es. Assim, uma separação pronunciada entre as funçõec das
Com efeito, é cem por cento evidente, para quem se interessa pela afirmações ideológicas e as da política instrumental está associada,
política sueca, que o fim dos anos sessenta viu uma acentuação cada com freqüência, a um fraco impacto ideológico nessa política. Mas
vez maior das diferenças ideológicas entre os partidos políticos de mesmo semelhante relação permanece puramente hipotética. A despo·
esquerda e de direita. Teremos um novo encontro com esta obse'r- litizá,ção, em conseqüência, não é uma variável unitária única, mas,
vação no fim do texto. antes, um conceito sensibilizante, que se refere a um espaço de pro-
priedade de, pelo menos, quatro dimensões. (SS)
Em segundo lugar, a despolitização pode implkar que o impacto da
A despeito da importância que pode ter a variável do cOnsenso
ide,ologia na política instrumental fique cada vez mais fraco. Mesmo (ou falta de consenso) ideOlógico manifesto nos alvos comparativos.
quando se encontra, ao nível das afirmações ideológicas manifestas, pensamos que ela é menos decisiva para uma análise a curto praz~
uma considerável falta de consenso ideológico, pode existir um con-
dos sistemas políticos democráticos, que são ainda caracterizados por
senso mais nítido aO nível das decisões políticas específicas. Isto po- uma falta de consenso não desprezável. Simplesmente, portanto, essa
deria indicar que a ideologia não tem senão pouca influência sobre
variável não será, aqui, tomada em consideração; ou_, antes, será uti-
a politica prática. A propósito, pode-se fazer referência à observação
lizada como um fator dado.
de Tingsten, segundo a qual os símbolos ideológicos são freqüente-:- O impacto da ideologia, medido pelo grau de afastamento entre a
mente tirados da arena da política instrumental para servir como estrutura ideológica manifesta e as decisões políticas específicas, está,
elementos de rito em situações de um tipo particular, como as e~ei­
com toda a probabilidade, correlatado negativamente com a separação
ções e as festas políticas. É útil, em certos casos, distinguir esse das funções da ideologia relativamente às funções da política instruo
aspecto do impacto ideológico de uma outra observação antes rela-
mental, pelo menos em sistemas democráticos multipartidos. Por mo'
cionada com o desvio de conteúdo que pode existir entre as afirma- tivos teóricos, que mais tarde se tornarão evidentes, preferimos aqui
ções ideológicas manifestas e as decisões politicas específicas. Cha-
concentrar nossa atenção sobre a última variável. O espaço de pro-
mar-se-á a esse novo aspecto a separação das funções das afirmações
priedade restante é, pois, bidimensional: a separação das funções da
Ideológicas relativamente às funções da política instrumental.
ideologia relativamente às da política instrumental, assim como a per-
Em terceiro lugar, o termo despolitização foi utilizado no sentido tinência ideológica, que constituem as duas propriedades daquele
de uma pertinência decrescente das afirmações ideológicas manifestas. espaço.
Isto diz respeito, diretamente, ao número de referências explícitas,
no debate polítko, aos valores e temas preeminentes nas ideologias (55) Ver Paul Lazarsfeld e Morris Rosenberg, The Language of Social
políticas tradicionais, por oposição ao número de referências tangen- Rescarch, Nova York, Free Press, 1955.

392 393

~
o espaço de propriedade representado no quadro I pode ser sim- verdadeira. Uma pertinência igualmente fraca da ideologia manifesta
plificado, com auxílio de suas diferentes divisões. Até certo ponto, indica menos claramente um impacto ideológico fraco, quando não há
essas divisões não fazem senão resumir nossa discussão anterior. - parece - separação siguificativa entre as funções da ideologia e
Com a expressão ((falsa despolitização" ~ queremos indicar a idéia de as da política instrumental. A freqüência das afirmações ideológicas,
que as ideologias políticas poderão ser suficientemente eficazes, ape~ comparada com o número das afirmações que têm implicações fa-
sar da fraca pertinência das afirmações ideológicas manifestas, se tuais, técnicas ou econômicas, representa um índice particularmente
a freqüê)lcia das afirmações ideológicas for maior que o mínimo) ambíguo da despolitização, quando o estilo ideológico dominante é
conforme a nossa definição de ideologia, e se não houver separação antes "pragmático" que "expressivo". Fácil compreender as razões
entre as funções da ideologia e as da política. A despolitização dissi- disso. As pessoas que adotam um estilo ideológico "pragmático" não
mulada é a expressão por nós escolhida para nomear um estado de sentem premente necessidade de parafrasear ou de exprimir, perma-
fato, caracterizado por uma pertinência média, ou acima da média, nentemente, sua ideologia. Isto com certeza reduzirá de muito o
da ideologia manifesta, traduzindo-se semelhante situação por um número das referências ideológicas. Não obstante, a ideologia pode
alto nível de separação entre as funções da ideologia e as da polí- também funcionar como uma estrutura essencialmente latente, capaz
tica instrumental. Neste caso, a ideologia tem antes por função, pro· de ser revelada por modernas técnicas estatísticas, ou com o auxílio
vavelmente, exprimir a identidade de um partido político como tal, de um estudo atento, qualitativo e estrutural. A respeito, pode-se
a lealdade ao partido etc. do que a função pragmática que serve de achar um bom exemplo na análise, a que procedeu Leif Lewin, dos
guia para a ação política. editoriais políticos, dos discursos políticos, dos debates parlamentares
e das decisões políticas incidentes sobre a planificação social e econô-
QUADRO I mica na política sueca. (56) Num sentido fenomenológico, é também
possível examinar o que os atores políticos, eles mesmos, experimen-
Pertinência da ideologia manifesta: talmente verificam.

fraca média forte


I

Separação entre as
-
,~

iraca
Preocupação "pragmática" de ideologia

Falsa I Nenhuma despolitização


Conclusões

Uma decrescente pertinência da ideologia constitui importante


funções da ideolo-
despolitização aspecto da pretensa despolitização. Neste sentido, a despolitização é
tida, freqüentemente, como a causa de um declínio do engajamento
gia e as da política
instrumental
forte
I---~er-~~ei~-- I Preocupação "expressiva"
de ideologia
subjetivo, nos casos de caráter político. Entretanto, nossa análise teó-
~. despolitização Despolitização oculta rica, assim como nossos resultados empíricos, sugerem uma idéia toda
diferente. O engajamento subjetivo nos casos políticos não será pro-
vavelmente reduzido em todos os cidadãos, quando a pertinência ideo-
Várias Suposlçoes se tornaram possíveis por via desse espaço de lógica se tornar menos manifesta. Muito dependerá do estilo ideo-
propriedade assaz reduzido. No presente texto, uma só, dentre elas, lógico dos próprios cidadãos e de seu meio-ambiente imediato. Da
será explicitada. Vamos supor que uma fraca pertinência da ideolo· "justeza do acordo" entre o estilo ideológico do indivíduo e o do
gia manifesta tenha implicações diferentes, segundo haja uma disso- meio-ambiente. Somente quando o referido acordo se torna menor
ciação funcional fraca ou alta da ideologia e da política instrumen- é que podemos suspeitar um declínio do engajamento político. A
tal. Quando se enunciam pouquíssimas afirmações ideológicas mani- gama dos estilos ideológicos, a qual constitui o ponto principal de
festas (fraca pertinência da ideologia manifesta) e quando o peque- nossas pesquisas, pode ser indicada pelas denominações "pragmático
no número de afirmações ideológicas que voltam ainda a manifes- puro", Hideólogo pragmático" e "ideólogo expressivo".
tar-se é feito, em sua maioria, em contextos expressivos muito dis..; Se se supuser um acordo mais profundo, chegar-se-á à conclusão
tanciados da política instrumental, então somente se pode esperar mais específica segundo a qual a despolitização, no sentido de um.
um fraco impacto da ideologia sobre as decisões políticas. O estado
(56) Leif Lewin, Planhushallningsdebatten~ Estocolmo, Almquist & Wiksell,
de fato que daí resulta bem merece a denominação de despolitizaçãn 1966.

394 395
pertinência ideológica decrescente, será a causa de um declínio do (orno agente socializado r, em detrimento da família. Nos países for-
engajamento político, sob a única condição de que ideólogos expressi- temente industrializados - pretendia-se - a educação prolongada e
vos dominem os cidadãos. Uma fraca pertinência dos temas ideoló' inevitável, porque a utilização de um estado industrial complexo exi-
gicos manifestos não se coadunará com a existência de ideólogos ex- ge conhecimentos que somente se adquirem ao cabo de um grande
pressivos. Por outro lado, pode acontecer que os pragmáticos puro:) número de anos. Do mesmo modo, qualquer vocação, trabalho ou
se engajem ainda mais nos casos políticos, se semelhante despolitiza- profissão de alto nível possui suas normas e SUa ética particulare3,
ção atingir um certo grau. Quanto aos ideólogos pragmáticos, que seus métodos próprios e suas técnicas próprias, seu conjunto de
são caracterizados por sua capacidade de integrar considerações ideo- conhecimentos especializados. Assim é que as altas esferas do ensino
lógicas e pragmáticas, parecem eles poder manter, em matéria polí- superior - o terceiro ciclo e o ensino profissional - foram, no mais
tica, o seu engajamento, a despeito do estilo ideológico que lhes do- das vezes, definidas em termos de tlsocialização profissional".
mina o meio-ambiente político (Traduzido de U. HIMMELSTRAND, Os defensores da teoria social liberal não confundiam ingenua-
HDespoliticization and Political Involvement", in E. ALLARDT e S. mente os elementos estáveis com os elementos estáticos. Uma socie-
ROKKAN, Mass Politics, Glencoe, Free Press, 1970, págs. 69-72, dade de base equilibrada era suscetível, apesar disso, de passar, ao
pág. 89). mesmo tempo, por uma rápida mudança: o equilíbrio podia ser de
natureza "dinâmica" A mudança social talvez engendrasse tensões
sociais e psicológicas. Mas, se tudo corresSe bem, ela não acabaria
transtornando o equilíbrio social fundamental. Entre a tensão e o
desequilíbrio sociais, encontrava-se uma série de "mecanismos de
OS JOVENS, A CONTESTAÇÃO controle social", desde as forças de polícia até à prática da psico-
E A MUDANÇA SOCIAL terapia, mecanismos que serviam para reduzir a tensão social, resso-
cializando ou isolando os indivíduos extraviados e recuperando os
KENNETH KENISTON
movimentos sociais também extraviados. Nessa perspectiva, a mudan~
ça social ideal se fazia por sucessivas adições: era lenta, mensurável,
progressiva e não revolucionária. Pensava-se mesmo que certas mu-
danças sociais, como uma crescente prosperidade econômica ou uma
Foram aproximadas, de maneira explícita, as hipóteses liberat5 educação mais desenvolvida, eram fatores de estabilidade para as
concernentes à plasticidade humana e ao equilíbrio sociopolítico das sociedades em que se produziam. O aumento da prosperidade eco·
teorias da socialização e da aculturação. Os liames entre o homem nômica significava que a sociedade podia satisfazer a mais necessi-
.maleável e a sociedade estável eram tidos como forjados através de dades humanas, ao passo que o prolongamento da educação fabri-
um conjunto de instituições especiais de socialização, como a família cava um maior número de indivíduos cuja socialização era mais longa
ou o sistema de educação, cuja função essencial consistia em inte- e mais completa.
grar o indivíduo na sociedade. O alvo principal da família e da esco~ Os sustentadores da teoria social liberal tampouco ignoravam que
la era precisamente o de inculcar nas crianças os comportamentos a', história é abundante em revoluções, em convulsões sociais e em
sociais e os valores culturais de que elas iriam precisar como adul- subltvações dramáticas. Mas quase sempre se considerava que essas
tos, nessa sociedade. As normas sociais-chave, os sistemas de símbo- sublevações sociais de natureza convulsiva revelavam a falência do
los, os valores e os modelos de comportamento eram tidos como sistema de controle social e produziam conseqüências regressivas e
"interiorizados" no curso do processo de socialização, e de sua "inte- d~strutivas. Era de maneira gradual e por via de sucessivas reformas
riorização" resultavam adultos Uajustados" à sociedade, que "funcio- sociais que uma mudança significativa de caráter social tinha mais
navam" com os símbolos, com os valores e com os comportamentos probabilidade de ser bem sucedida. Os defensores da teoria liberal
que a sociedade deles esperava. tampouco ignoravam que, no interior de toda sociedade, existem assas-
Pensa-se geralmente que a família é a principal instituição dé so· sinos, artistas, radicais, racistas, inventores, loucos, gênios, isto é, ho··
cialização e de aculturação. Contudo, o advento de uma escolarização mens e mulheres "não socializados" ou "extraviados". Mas pensa 4

que começa mais cedo e que termina mais tarde teve como conse- va-se que o comportamento individual claramente desviado da norma
qüência dar crescente importância ao sistema de educação formal et;a o resultado de uma socialização aberrante ou desviadora em

396 391

$7-T.S.
11

si mesma e que havia geralmente sucedido durante os primeiros anos: tos sofrimentos e crimes. Em nível coletivo, fazia-se quase sempre"
da infância. remontar a origem dos movimentos revolucionários de massa. como
Teoricamente, não há razão alguma para se julgarem indesejáveis o fascismo, o nazismo ou o comunismo, a condições de socialização"
as falências funcionais, como, por exemplo, no caso do insucesso dos da infância particulares aos países onde essas correntes se haviam
mecanismos de controle social. Estes mecanismos eram numerosos desenvolvido. Pensava-se que as tensões psicológicas, transmitidas
na Alemanha nazista, começando pela própria Gestapo. Se haviam aos indivíduos por suas famílias, rematavam em comportamentos
fracassado de um ponto de vista fnncional, considerações éticas ou estranhos e irracionais: por exemplo, o autoritarismo da família ale-
poIític2s muito mais extensas nos teriam provavelmente levado a jul- mã ccnduziria. indiretamente, ao nazismo, o enfaixamento das crian-
gar-lhes o malogro como particularmente feliz. Logicamente, não há cinhas contribuiria para a natureza totalitária dos russos etc.
tampouco razão para se manter um equilíbrio social: é inteiramente Quanto às suas previsões relativas ao futuro, os porta-vozes da
concebível, em teoria, que bruscas e dramáticas revoluções melhoram teoria liberal viam, aí, com muita clareza, o que consideravam nor-
a 'Sorte do gênero humano. Não há, do mesmo modo, razão alguma, mal, desejável e inevitável: uma produtividade industrial maior, uma
a priori~ para associar o extravio individual ao pecado ou ao caso tecnologia aumentada, novas reformas fragmentárias, uma educação
patológico. Na verdade, os indivíduos ditos "extraviados" são as mais aperfeiçoada, mais estabilidade e uma direção mais eficaz. É
fontes da arte, da filosofia, da religião e de toda inovação ideoló- verdade que certos problemas foram antecipados, como o de evitar a
gica construtiva: o extravio deveria antes ser aplaudido que deplo- apatia politica, quando tivessem sido resolvidos os principais proble·
rado. mas sociais e ideológicos. A maioria dos autores liberais insistiram
Mas, na prática, as teorias sociais liberais tiveram tendência para' na necessidade que havia para os jovens de se identificarem com o
identificar as falências funcionais com indesejáveis insucessos d~ futuro político de seus países, e muitos dentre eles deploraram o
ordem moral. A Revolução Francesa, oscilando no bonapartismo, ou "privatismo" da "geração silenciosa" dos anos 50. Outros problemas
a Revolução Russa, degenerando no estalinismo, foram tomadas como foram igualmente entrevistos: oS da cultura de massa, os da multi-
exemplos demonstrativos de que a revolução não era de desejar: con w dão silenciosa, os da utilização do tempo de lazer, os do homem
firmavam o raciocínio subjacente que considerava a mudança social" como unidade orgânica, os da desqualificação rápida do trabalho etc.
sob forma de conflito aberto como o infeliz produto de Uma falência Mas, relativamente aos antigos problemas de penúria, de depressão
do sistema de controle social. Do mesmo modo, o estudo dos desvios econômica, de luta de classes e de conflitos ideológicos, parecia que
psicológicos consistiu, antes de mais nada, na análise dos criminosos, essas novas questões eram de menor importância. Certos autores,
dos psicopatas, dos delinqüentes e de outros indivíduos "dessocializa- como Daniel BeIl, Seymour Martin Lipset e Edward Shils, empe-
dos" ou "não socializados", cujo comportamento tinha conseqüên- nharam·-se em demonstrar que a era das ideologias havia terminado e
cias manifestamente indesejáveis. que os únicos problemas ainda a resolver pela civilização ocidental
A lógica interna das teorias liberais compele-as, assim, para uma eram, sobretudo, de ordem prática. A questão já não estava em
explicação psicológica do desvio individual e da revolução social. Em "o que". mas em "como". Pensava-se. por conseguinte, que esses
nível individual, pensa-se que os criminosos, os artistas e os insur- problemas achariam, com o tempo, uma solução, graças aos conhe-
gentes são o produto de anomalias na aprendizagem da infância. A cimentos científicos, à competência profissional e à habilidade téc-
teoria psicanalítica foi largamente adaptada à explicação - errô- nIca.
nea, por sinal - do radicalismo, da inovação, da criatividade, da A finalidade dessas teorias era explicar - o que, aliás, fizeram --
homossexualidade, da delinqüência etc., em função das experiências a relativa estabilidade interior das democracias ocidentais dos ano.5
da infância. Mas, uma vez que, por definição, o indivíduo desviado 50, assim como a aceitação, a submissão ou a indiferença da juven-
é o prnduto de uma socialização ela própria desviada, o teorizadoc tude instruída. Mas, retrospectivamente, eram essas teorias, de fato.
liberal não o condenava. Acusava em seu lugar o ambiente primário demasiado herméticas e demasiado acanhadas no plano histórico. É
do sujeito desviado e, em particular. a sua família, e dirigia esforço., possível, no presente, perceber que elas privilegiavam uma época
reformistas no sentido de uma mudança do círculo familiar, que ha- particular da história - época que hoje nos parece anormalmente
via, a seu ver, causado o desvio. Assim é, por exemplo, que a so-- calma - e que a transformaram em situação geral e normal. Entre
lução tipicamente liberal para as tensões raciais consistia em refor- Qutras coisas, aquele sistema de idéias liberais a que poderíamos dar
mar a família preta imperfeita que, manifestamente, engendrava tan- o nome de ideologia nos impediu, além disso, de antecipar e, mais

398 399
11
,

ainda, de compreender os fenômenos que se iriam desenvoiver em de revolução e de transformação em vez de considerar essas situações
meio a uma minoria, sem cessar crescente, de jovens, no decurso dos como exceções lamentáveis, carecentes de explicações particulares. Se-
anos 60. Como as teorias marxistas, as teorias liberais demonstra- melhante concepção da sociedade colocaria a mudança social no pri-
ram, curiosamente, a impossibilidade de uma contestação extensa meiro e não no último lugar, como um dos problemas de nossa
entre os jovens dos meios instruídos e privilegiados, nas democra- teoria ainda não resolvidos. Ela consideraria que os conflitos entre
cias mais industrializadas. os indivíduos, os grupos e as forças históricas são componentes ne-
Não se pode, entretanto, negar, pura e simplesmente, as desco· cessários e indispensáveis da mudança histórica e não as COnse-
bertas, a utilidade ou a força permanente dos diversos pontos áe' qüências da "falência/) dos "mecanismos de controle social". Tal ra-
vista que se ligam ao que chamei a hipótese liberal. Os homens e as ciocínio implicaria, igualmente, que toda "resolução" de um con-
mulheres são, certamente, maleáveis de muitas maneiras e se dei- flito entre forças históricas engendraria, por sua vez, novas forças
xarr, influenciar facilmente. As sociedades dão, com efeito, muitas antitéticas, que contrariariam essa resolução, continuando, assim, a
vezes, provas de estabilidade e põem a trabalhar recursos considerá- dialética da mudança. Uma teoria sociológica fundada sobre o prin-
veis para conservar o próprio equilíbrio. É verdade, igualmente, que cípio do conflito cuidaria, em primeiro lugar, de explicar os meca~
os homens e as mulheres são socializados à imagem da sociedade em nismos segundo os quais uma situação de equilíbrio aparente en~
que vivem desde a mais tenra idade. É fácil caricaturar, criticar e gendra novos conflitos, ao invés de procurar saber como o equilí~
ridicularizar a corrente social liberal, mas produzir uma concepção brio se mantém.
do mundo que escape a todas as críticas representará bem o trabalho Tal concepção da sociedade nos afasta, com toda a evidência, do
de uma geração inteira. Enquanto isto, seria mais justo admitir que liberalismo e nos aproxima do marxismo. Mas deve-se analisar, igual-
todos nós somas basicamente influenciados pelas teorias liberais e, mente, o marxismo, de maneira crítica. Do mesmo modo como de-
às vezes, tanto mais quanto desejamos ser radicais. veríamos, hoje em dia, rejeitar a biologia e a física do século XIX,
Entretanto, na sua análise das relações entre os jovens e a socie- que serviram de base ao determinismo psicológico de Freud e a
dade, a corrente social liberal, como, aliás, o marxismo, predisse exa- muitas de suas concepções específicas da personalidade, não devería-
tamente o contrário do que se realizou. Somente isto nos deveria mos mais aceitar o economismo e o milenarismo do século XIX)
levar a pôr em dúvida e a redefinir as hipóteses de base que fize- prevalecentes em Marx. A concepção marxista de que o conflito his·
ram nascer o pensamento liberal. O surgimento de uma oposição tórico decisivo era um conflito de classes reflete bem os aconteci-
composta de jovens impõe a criação de novas teorias, não somente' mentos dos meados do século XIX, mas traduz, talvez menos bem,
sobre a juventude, mas também sobre a natureza humana, a socie- a realidade do fim do século XX. O otimismo do século XIX, que
dade, e sobre as relações existentes entre elas. Teoricamente, é ai fazia crer a Marx que o conflito histórico acabaria por se resolver
que pode estar a significação essencial da revolta dos jovens ... progressivamente, assim como a sua concepção milenarista do Esta ..
do sem classes como fim do conflito histórico, parecem hoje injusti-
ficados. Em último lugar, devemos perguntar-nos se a dialética his-
o equilíbrio e a socialização tórica pára no termo definido por Marx, ou se continua hoje, sob
formas que este não podia prever.
A utilidade do modelo de sociedade dita "equilibrada" deve ser Qualquer que seja nossa interpretação a respeito de Marx, um
reconsiderada. Cada vez mais, sociólogos críticos sustentam a idéia dos corolários de uma concepção dialética da mudança social implica
segundo a qual o modelo do "conflito" é mais bem adaptado à so- que um grupo, uma instituição, uma força social ou uma ideologid.
ciedade e às mudanças sociais contemporâneas do que a teoria do podem mudar de significação com a evolução das condições históri-
equilíbrio social. Do mesmo modo por que o papel de catalisador cas. Pode um grupo progressista, numa dada época da história, tor~
do conflito na evolução humana deve ser admitido, a importância nar-se reacionário, em época ulterior. Marx sublinhou que, enquantD
crítica do conflito na mudança social deve ser reconhecida. Importa, lutava contra a feudalidade, a burguesia era uma força progressis-
a meu ver, considerar a evolução humana e social como um pro'- ta, ao passo que a burguesia triunfante, no século XIX, se hav;a
cesso dialético, que compreende forças, contra-forças e resoluções po- tornado reacionária, devido à sua oposição às reivindicações da classe
tenciais. Em nível social, tal concepção nos obrigaria a tomar como operária revolucionária. Se se prolongasse a lógica da análise dia~
ponto de partida fundamental e normal o estado de mudança, de luta, léticJ., poder-se-ia esperar que o proletariado, outrora revolucionário,

400 401

~
tando-as com uma nova interpretação da lógica inerente ao desen-
tomasse, por sua vez, uma atitude defensiva e se opusesse à mu-
dança social progressiva. E, à medida que se acelera o ritmo da volvimento humano, do papel fundamental do conflito na mudança
social e da ação das forças humanas que agem contra a aceitação pas-
mudança histórica, a mutação dos grupos sociais, que de progressis-
siva da ordem social existente Crr~duzido de KENNETH KENISTON,
tas passam a ser reacionários, tem fortes probabilidades de verifi-
Youth aruJ Dissent. The Rise of a New Opposition. A Harvest
car-se, em vida de seus membros.
Book © 1971, Nova York. Traduzido e reproduzido com autorização
Se se proceder a uma nova análise crítica do conceito de (lho_ de Harcourt, Brace & Jovanovich, Inc. págs. 371-374, 386-390).
mem maleável" e do de Hsociedade estável", tornar-se-á então ne-
cessário analisar de novo o conceito de socialização como processi)
capital de integração do indivíduo na sociedade. Não se pode negar
que o papel da socialização seja o de fazer descobrir outros proces-
sos pelo menos tão importantes, que prendam o indivíduo à socie-
dade de maneira mais complexa. Como o observou Erik Erikson,
toda e qualquer sociedade, por exemplo, deve adaptar-se às necessi-
dades evolutivas da criança que cresce. Uma atenção maior pres-
tada às promessas e às possibilidades inatas e evolutivas da criança,
do adolescente, do jovem e do adulto nos permitirá apreender melhor
as coerções que a sociedade sofre para integrar indivíduos de toda
idade. Assim como um menino de sete anos não pode compreender
um raciocínio hipotético-dedutivo, assim também um moço de nível
de instrução superior não pode aceitar sem críticas as normas e os
preceitos da sociedade. Em lugar de limitar-se a sublinhar a ma-
neira como a sociedade forja o indivíduo, a fim de satisfazer às suas
próprias necessidades, importa também tomar em consideração o.;
limites que as necessidades humanas e os processos de evolução im-
põem àquilo que a sociedade pode esperar de seus membros.
Se se abandonar o conceito de sociedade estável e homogênea, o
processo de interação dos indivíduos e de sua sociedade ficará então
muito mais complexo. Porque, se toda sociedade segrega conflitos
internos importantes, as crianças não estão, conseqüentemente, em
contacto com um conjunto estável e lógico de previsões sociais e de
valores culturais. Os conflitos intrapsíquicos e as contradições sociais
estão assim ligados entre si, conquanto suas relações não se produ-
zam num sentido único. Além disso, em período de rápida mudança
histórica, os conflitos sociais a que uma geração ficará exposta não
serão os mesmos que os da geração precedente. É esta uma das ra-
zões por que os indivíduos que não pertencem à mesma geração his·
tórica terão personalidade fundamentalmente diferente.
A exposição completa de uma nova análise de nossa concepção das
relações entre o homem e a sociedade será longa. Mas não bastará,
quando da análise de nossos postulados teóricos, rejeitar, pura e
simplesmente, 'O a que chamei "os pontos de vista liberais". Nossa
objetivo deve ser mais ambicioso: procurar analisar tais concepções
de maneira crítica, conservando o que oferecem de válido e comple-

~
403
402

"~
processo de vida social, política e intelectual em geral. Não é a
consciência dos homens que lhes determina o ser; inversamente, o
seu ser social é que lhes determina a consciência. Em um certo
CAPÍTULO lI! estádio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção exis~
tentes, ou, o que não é senão a sua representação jurídica, cOm a5-
A G1tNESE DA MUDANÇA SOCIAL relações de propriedade no seio das quais até então se tinham mo-
vido. De formas de desenvolvimento das forças de produção que
eram, essas relações se tornaram entraves. Começa, então, uma épo ~
ca de revolução social. A mudança na base econômica transtorna mais
Ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura. Quando se con-
FORÇAS PRODUTIVAS E RELAÇOES sideram tais desordens, é preciso distinguir, sempre, entre a de~
DE PRODUÇÃO sordem material - constatável, de maneira cientificamente rigorosa
- das condições econômicas de produção e as formas jurídicas, po-
líticas, religiosas, artísticas ou filosóficas; em suma, as formas ideo-
KARL MARX lógicas sob que oS homens tomam consciência desse conflito e o le-:
vam até ao fim. Assim como não se julga a um indivíduo quanto
à idéia que ele tem de si mesmo, não se poderia julgar semelhante
o primeiro trabalho que empreendi, a fim de resolvt'f as dúvida:; época de perturbações segundo a sua consciência de si mesma. Impor.
que me assaltavam, foi uma revisão crítica da Filosofia do Direito, ta, pelo contrário, explicar essa consciência pelas contradições da vida'
de Hegel, trabalho cuja introdução apareceu nos Deutsch-Franzó· material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais
sische Jahrllücher, publicados em Paris em 1844. Minhas pesquisas e as relações de produção. Uma formação social não desaparece
levaram ao seguinte resultado: as relações jurídicas - assim como jamais antes de serem desenvolvidas todas as forças produtivas que
as formas do Estado - não podem ser compreendidas nem por ela tem capacidade para conter. Jamais novas e superiores relaçõe.,
si mesmas, nem pela pretendida evolução geral do espírito humano, de produção aí são substituídas, antes que as condições materiais de
mas têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de exis· existência dessas relações se manifestem no próprio seio da velha
tência, cujo conjunto Hegel, a exemplo dos ingleses e dos francese3 sociedade. Por isso a hum;midade não coloca para S1, nunca, senão
do século XVIII, engloba sob o nome de "sociedade civil"; e d. problemas que pode resolver, pois, olhando-se com mais atenção.
autonomia da sociedade civil deve ser, por sua vez, procurada na achar-se-á, sempre, que o próprio problema surge somente onde as
economia política. Eu havia iniciado o estudo da economia política condições materiais para resolvê-lo já existem, ou estão, pelo menos,
em Paris e o continuei em Bruxelas, para onde tinha emigrado, em em vias de existir. Em grandes traços, os modos asiático, antigJ.
conseqüência de um decreto de expulsão emanado de M. Guizo!. O feudal e burguês moderno de produção podem ser qualificados como
tesultado geral a que cheguei e que, uma vez alcançado, serviu d~ épocas progressivas da formação social econômica. As relações d~
fio condutor para os meus estudos, pode ser formulado, sucinta- produção burguesas são a última forma contraditória do processo de
mente, da seguinte maneira: na produção social de sua existência, produção social, contraditória não no sentido de uma contradição indi-
os homens entram em relações determinadas, necessárias, indepen- vidual, mas no de uma contradição que nasce das condições de
dentes de sua vontade, relações de produção correspondentes a um existência social dos indivíduos. Entretanto, as forças produtivas que
certo grau de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O se desenvolvem no interior da sociedade burguesa criam ao mesmo
conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica tempo as condições materiais para resolver, tal contradição. Com essa
da sociedade, a base concreta sobre que se eleva, uma superestrutur:\ formação social, encerra-se, portanto, a pré-história da sociedade hu-
jurídica e política e a que correspondem determinadas formas de mana (Excerto de KARL MARX, Contribution à la Critique de l' éco-
consciência. O modo de produção da vida material condiciona o nomie politique, Prefácio, Paris, Ed. Sociales, 1957, págs. 4-5).

404 405
,
r
o MILENARISMO DA GUERRA DOS jogo de interesses em que uma tal afoiteza se apoiava. Tendo a
CAMPONESES E DO ANABATISMO pura doutrina assim se revelado irresistível, a máscara de pária e de
Caliban pôde cair, parecendo que a porta tinha sido arrombada, mes-
mo a mais dura, aquela que se abre para o. reino da libertação.
ERNST BLOCH
Está claro, aqui, que ao elemento econômico se adicionou, para de-
tonar a revolução, um elemento político, cujos mecanismos são de
outra espécie: um povo desesperado e, ao mesmo tempo, o conflito
Entretanto, chegou o dia em que os camponeses se cansaram de das classes dominantes se dilacerando entre si com todas as suas
esperar mais, em que a sua cólera, muito procedente, não pôde senão forças; o edifício inteiro desabando de uma só vez e pela segunda
explodir. Em vales isolados, houve conciliábulo. Saiu-se em massa vez o Santo-Império, em plena decomposição, sendo assaltado por
das encostas e das florestas. Em 1.300, juntaram-se bandos lombar· todos os sedentos de terra, por todos os sedentos de felicidade, pela
dos. Os senhores sentiram a ameaça do punho agitado. A insurreição vontade religiosa e revolucionária do povo, anunciada, de início, sob
foi miseravelmente reprimida. Oitenta anos mais tarde, a jaqueria as aparências do delírio capitalista e principesco.
francesa foi tão rápida quão cruelmente abatida. Agora, era a Ale· Por isso, além de seus aspectos econômicos, convém considerar as
manha que, por sua vez, espumejava. Do princípio ao fim do sécul1 sublevações camponesas em suas mais profundas raízes. Se quiser-
XV, houve toda uma sucessão de revoltas camponesas. De início, foi mos realmente apreender as conjunturas e as virtualidades da época,
°
o tocador de flauta de Niklashausen, qual reclamava, em seus ser- importa necessariamente levar em conta, ao lado dos fatores eco-
mões mariais, a definitiva abolição de todo e qualquer censo, de nômicos, uma outra necessidade e um outro apelo. Porque, se os
toda e qualquer dívida, de toda e qualquer corvéia, a livre e total apetites econômicos são mesmo os mais substanciais e os mais cons-
utilização das florestas, das águas e dos prados. Em 1420, a Guerra tantes, não são os únicos, nem, com o tempo, os mais poderosos:
dos Hussitas aparece ao mesmo tempo como o primeiro sinal de não- constituem, tampouco, as motivações mais específicas da alma
uma sublevação generalizada. Até então os hereges haviam perma- humana, sobretudo nos períodos em que domina a emoção religiosa.
necido em pequenos grupos, geralmente inofensivos, em razão de Contra os acontecimentos econômicos, ou, paralelamente a eles, são
sua própria fraqueza, da força de seus adversários, das tendências vistas, sempre, em ação, não somente livres decisões voluntárias, mas
pacifistas do cristianismo primitivo. Mas, nessa Boêmia, onde a indús,,· também estruturas espirituais de importância absolutamente universal
tria havia tão cedo prosperado, viu-se instaurar uma época heróica e às quais não se pode negar uma realidade pelo menos sociológica.
de revolução a um tempo comunista e cristã, cuja força e impulso, Qualquer que ele seja, o estado do modo de produção, como disposi-
cuja consciência dos fins visados ultrapassavam de muito tudo quan· ção de espírito econômico, depende, já, por si mesmo, de complexos
to se havia conhecido entre os hereges do passado, sem nem mesmo psicológicos e morais mais vastos, que ao mesmo tempo exercem sua
excetuar os albigenses. Aqui, a oposição entre as próprias classes di- ação determinante, e principalmente, como o expôs Max Weber, de
rigentes preludiou o conflito fundamental, apressado pelo suplício de complexos de ordem religiosa. Assim, o próprio econômico se acha
Huss e agravado pela luta nacional dos checas contra os alemães, Jogo lastreado por uma superestrutura e, em seu processo autônomo,
por toda a parte e sempre privilegiados. Assim, foi possível emergir condiciona o aparecimento efetivo de conteúdos culturais e religiosos.
- para lá do ideal pequeno-burguês da partilha das terras, para lá Mas seria errado imaginar que ele possa por si só produzi-los, se-
do ideal grande-burguês e aristocrático de uma República do patri- parados de todo um jogo de ações e de reações que os liga aos
ciado - o comunismo progressista e conquistador dQS taboritas, pro- caracteres nacionais, às ideologias que sobreviveram às antigas rela-
movido por uma classe camponesa radicalizada e por um muito po' ções econômicas, à ideologia da sociedade em vias de edificação e
deroso proletariado. Mesmo na Alemanha - segundo todo um pro- de superestrutura muitas veze;; mais adiantada do que a de uma eco-
cesso de que Kautsky ofereceu a mais lúcida análise econômica - nomia que só mais tarde atingirá a maturidade. E, por fim, é preciso
foi apenas um século mais tarde que estourou, por sua vez, um acrescentar a isso, o que é perceptível a toda classe revolucionária.
escândalo análogo, vindo de cima, quando o espetáculo de um fraco a influência, a longo prazo, que exerce o processo espiritual e re-
monge, que se apresentou com afoiteza diante do imperador e diante ligioso - freqüentemente interrompido - por meio do qual a espé-
do Império, lançou o povo na confusão, numa confusão e numa per- cie humana procede à sua própria educação, processo autônomo,
turbação tanto mais vivas quanto esse povo não pôde discernir o senão histórico, ao menos correspondente a uma exigência da histó-

406 407

~~
ria e referindo-se à H filosofia da história". Por isso, não somente CONTRADIÇAO E SUPERDETERMINA(ÁO
um estudo puramente econômico continua sendo totalmente incapaz de
explicar, com todas as suas condições e com todas as suas causas, LOUIS ALTHUSSER
o simples aparecimento de um fenômeno histórico tão importante
corno a Guerra dos Camponeses, como ainda uma análise desse tipo
seria suscetível de dissolver, de destruir, de despojar de seu c'a~
ráter original, de fazer passar para o estado reflexivo e de desrea~ A desigualdade do desenvolvimento do capitalismo rematou, através-:
lizar, por via de redução à pura ideologia, os conteúdos mais pro-- d.a guerra de 1914, na Revolução Russa, porque a Rússia era, no
fundos dessa história humana em plena efervescência, desse sonho p'eríodo revolucionário que se abriu diante da humanidade, o elo mais
fraco da cadeia dos Estados imperialistas; porque ela acumulava a
acordado do antilobo, de um reino, enfim, fraternal. O próprio Marx
~aior soma de contradições históricas então possível; porque ela
concede lugar às exaltações religiosas, pelo menos no primeiro pe-
tra, concomitantemente, a nação nwis atrasada e mais adiantada, con-
ríodo de toda grande revolução, na medida em que os novos senhores
tradição gigantesca, que suas classes dominantes, divididas entre si,
se sentiram romanos novos) pagãos novos, na medida em que os cam-
não podiam sofismar, mas tampouco resolver. Por outras palavras,
poneses alemães, como o fariam mais tarde os puritanos, para a sua a. Rússia se encontrava atrasada de uma revolução burguesa e à'3 <'.
re\olução burguesa, tomaram de empréstimo ao Velho Testamento o vésperas de uma revolução proletária, pejada, portanto, de duas re·.
seu vocabulário, as suas paixões e ilusões; na medida em que também voluções, e incapaz, mesmo adiando uma, de conter a outra. Lênin.
a Revolução Francesa se enfeitou com os títulos, cOm as palavras de enxergava bem, discernindo, nessa situação excepcional e "sem saída"
ordem, com os costumes do Consulado e do Império romanOS. A (para as classes dirigentes), (57) as condiç;;:es objetivas de uma revo-
despeito do espírito positivista com que Marx extraiu o comunismo ltlção na Rússia e forjando, no partido comunista, que foi uma ca-
ào domínio teológico, para limitá-lo, só e unicamente, ao terreno da deia sem elo fraco, as cQ11,dições subjetivas, o meio do assalto de-
economia política, privando-o, assim, de todos os seus aspectos mi- cisivo contra o elo fraco da cadeia imperialista.
lenaristas, tanto os que lhe vêm da história comO os que lhe são
.Marx e Engels haviam dito outra coisa, ao declararem que a histó-
substancialmente inatos, pelo menos ele reconhece às "necromancia:i
ria progride sempre pelo seu lado mau? (58) Entendamos com isso o.
da história" a realidade de uma estimulação. Com mais forte razão,
lq.do menos bom para os que a dominam. Entendamos também, sem
no caso particular da Guerra dos Camponeses, com toda a sua po.
forçar as palavras, o lado menos bom para os que... aguardam a'
deras'! atividade de fabrico, de comércio de imagens, com todo o seu história ror um outr,o lado ... oS sociais-democratas alemães do fim·
espiritualismo, é impossível - ao lado dos fatores econômicos que do sécuio XIX, por exemplo, que se acreditavam promovidos, ::t
condicionaram a detonação do conflito e a escolha de seus objetivos curto prazo, ao triunfo socialista pelo privilégio de pertencerem ao
- não considerar em si mesmo o que lhe constitui o elemento essen- mais poderoso Estado capitalista, em plena expansão econômica, ele3 .
cial e primitivo: a familiaridade com o mais antigo dos sonhos, a próprios em plena expansão eleitoral (há destas coincidências ... ).:,
abertura e a expansão do velho movimento herético, o arroubado que- Acreditavam eles, evidentetpente, que a História caminha .pelo outro
rer - impaciente, rebelde e grave no mais alto ponto - de uma ÜJ.do o "bom", o do maior desenvolvimento econômico, da maior ex-
J

caminhada que leva diretamente ao paraíso. As inclinações, os de- p~nsão, da contradição reduzida à sua representação mais pu,ra (a do '
vaneios, as mais sérias e puras emoções, os entusiasmos orientados Capital e do Trabalho), esquecendo que, na espécie, tudo isso se pas-
para fins nutrem-se de uma outra necessidade, que não a que salt<l sava numa Alemanha armada de um poderoso aparelho de Estado e
imediatamente aos olhos, e nunca são, contudo, uma vã ideologia. extravagantemente enfeitada de uma burguesia que havia, desde pre-
Não desaparecem e deixam marcado, com sua impressão, um longo cioso tempo, aviltado "sua" revolução política em troca da proteção
,período. Jorram, na alma, de um ponto original: o que faz nascer policial, burocrática e militar <le Bismarck, a seguir de Guilherme: ,
e o que define os valores. Sobrevivem a toda catástrofe empírica e em troca dos gigantescos proveitos da exploração capitalista e colo- ~
conservam pleno vigor, prolongando, numa constante atualidade, o mi- nialista, enroupada de uma pequena burguesia exacerbadamente na-
lenarismo que orientou profundamente o século XVI: o da Guerra
dos Camponeses e do anabatismo (Excerto de ERNST BLOCH, Tho- (Si) Lénin," Sur notre révolution ", Oeuvres choisies. t. II, pág. 1.024.
mas Münzer, Paris, Julliard, 1964, págs. 70-74). (58) !lIisere de la philosophie, Ed. Giard, p;ig. 142.

408 409
cionalista e reacionária, esquecendo que, na especle, essa tão simplea situação supõe a "fusão" das duas condições fundamentais numa
representação de contradição era singelamente abstrata. A contradi- "única crise nacional", como cada condição, tomada (abstratamente)
ção real fazia cor}X>, nesse ponto, com tais Hcircunstâncias", porqul! à parte, supõe também a "fusão" 'de uma "acumulação" de contra~
ela não era discernÍvel, identificável e manejável senão através delaj dições. Como de outro modo seria possível que as massas populares,
e nelas. divididas em classes (proletários, camponeses, pequenos-burgueses j
Tentemos circunscrever o essencial dessa experiência prática e da pudessem, consciente ou confusamente, lançar-.ge, em conjunto, num
reflexão por ela inspirada a Lênin. Mas digamos, antes de mais nada, assalto geral contra o regime exis~ente? E como seria possível que
que e!anão foi a única a esclarecer Lênin. Antes de 1917, houve as classes dominantes, sabendo, de tão longa experiência e de tão
1905. Antes de 1905, houve as grandes decepções históricas da Ingla· seguro instinto, selar entre si, a despeito de suas diferenças (feudais,
terra e da Alemanha. Antes delas, a Comuna. Mais longe ainda no grandes-burgueses, industriais. homens da finança etc.). a união sa-
tempo, o insucesso alemão de 48-49. Todas essas experiências tinham grada contra os explorados, pudessem ser assim reduzidas à impo-
sido refletidas, em sua trajetória (Engels: Révolution et contre-ré- tência, despedaçadas DO supremo instante, sem solução nem dirigen~
volution en Allemagne; Marx: Les luttes de classes en France, Le tes políticos de reserva. privadas dos seus apoios de classe no exte~
18 Brumaire, La guerre civile en Fra;nce; Critique du programmc rior, desarmadas na própria fortaleza de seu aparelho de Estado e
de Gotha; Engels: Critique du programme d'Erfurt etc.), direta OI< repentinamente submersas por esse povo que eles tão bem traziam
indiretOlrnent.e, e haviam sido relacionadas com outras experiências re~ no cabresto e no respeito à exploração, à violência e à impostura?
volucionárias anteriores: as revoluções burguesas da Inglaterra e da Q~ando, nesta situação. entra em jogo, no mesmo jogo, uma pro-.
França. digiosa acumulação de "contradições". algumas das quais radical.
Como então resumir essas provas práticas e seu comentário teórico. lnente heterogêneas, e que não têm, todas, a mesma origem, nem o
senão dizendo que toda a experiência revolucionária marxista de· meSmo sentido, nem o mesmo nível e lugar de aplicação, e que, por
monstra que, se a contradição em geral (ela, porém, já está espe· conseguinte, H se fundem" em uma unidade de ruptura, não é mais
cificada: a contradição entre as forças de produção e as relações de possível falar da única virtude simples da "contradição" geral. Certa-
produção. encarnada essencialmente na contradição entre duas clas- mente, a contradição fundamental dominadora desse tempo (em que
ses antagônicas) basta para definir uma situação em que a revo- a revolução "está na ordem do dia") é ativa em todas essas "contra-
htção está na "ordem do dia". não pode, por sua. simples eficácia dições" e até na "fusão" das meSmas. Não se pode pretender, entre-
direta, provocar uma "situação revolucionária" e, com mais forte!:'a~ tanto. com todo o rigor, que ditas Hcontradições" e sua "fusão" nãO')
zão, uma situação de ruptura revolucionária e o triunfo da rev;::·lu .. tenham sido disso senão o puro fenômeno. Porque as "circupstân-
~ão? Para que semelhante contradição se torne ((ativa", na acepção
das" ou as "correntes" que lhe deram realidade são mais do que seu
ehtrita. princípio de ruptura. é necessária uma acumulação de udr... puro e simples fenômeno. Acham-se na dependência das relações de
cunstânci?s" e de "correntes" tal, que, sejam quais forem a origem produção. que são exatamente um dos termos da contradição, mas,
e o sentido (e muitas dentre elas são, necessariMnente, por sua ori- ao mesmo tempo, sua condição de existência; das f'11pp.r~struturas,
gem e por seu sentido, paradoxalmente estranhas, até mesmo "abso~ instâncias que dela derivam, mas que têm sua consistência e efi-
lutamente opostas", à revolução), elas se fundam em uma unidade de ciência próprias; da própria conjuntura internacional. que intervém
ruptura: quando atingem este resultado de agrupar a imensa maioria como determinação, representando seu papel específico. (60) Equivale
das massas populares no assalto de um regime que suas classes diri- a dizer que as "diferenças" que constituem cada uma das instâncias
gentes se vêem na impossibilidade de defender. (59) Não somente esta em jogo (e que se manifestam nessa "acumulação" de que fala Lê-
ni.n) , se se "fundirem" em uma unidade real, não "se dissiparão"
como um puro fenômeno na unidade interior de uma contradiçã~
(59) A respeito de toda esta passagem, ver: 1) Lênin, MaJadie infantile
(págs. 750~751; págs. 760~762). em particular: "1t somente quando 'os de simples. A unidade que elas constituem nessa 11 fusão" da ruptur~l
baixo' não querem mais viver e 'os de cima' não podem mais continuar
vivendo à maneira antiga, é somente então que a revolução pode triunfar ... ,. absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogêneos, ten-
dências sociais e políticas absolutamente opostas se fundiram com uma des-
(751). Estas condições formais estão ilustradas às págs. 760~762. 2) Lênin,
'" Lettres de loin", I, Oeuvrcs (ed. francesa). t. XXIII, págs. 330-331 e nota- marcada coerência ... " (pág. 330) (O grifo é de Lênin).
damente: '.' Se a revolução triunfou tão depressa... isto se deve unicamente (60) Lênin vai até o. ponto de considerar, entre as causas do triunfo da
a que, em virtude de uma situação histórica de extrema originalidade, correntes revolução soviética, as riquezas naturais do país e a amplidão do seu espaço,
abrigo da revolução e de suas inevitáveis .. retiradas" militares e políticas.

~.
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revolucionária, (61) constituem-na com sua essênda e com sua eb'ciên- exploração e nela prosseguiu? Só conheço Gramsci. (63) Todavia, a
cia próprias, a partir daquilo que são e segundo as modalidades espe- tarefa em questão é indispensável para permitir se enunciem pelo me-
cíficas de SUa ação. Constituindo essa unidade, elas reconstituem e nos, proposições mais precisas do que essa aproximação sobre o ca-
realizam bem a unidade fundamental que as anima; mas, fazendo isso, ráter, fundado, antes de tudo, na existência e na natureza das supe-
indicam-lhe também a natureza, a saber: que a Hcontradição" é inse- restruturas, da superdeterminação da contradição marxista (Excerto
parável da estrutura do corpo social inteiro, em que se exerce, inse- de LoUIS ALTHussER, Pour MGffz, Paris, F. Maspero, 1965, págs.
parável de Suas condições formais de existência e, mesmo, das ins- 96-100, 111-114).
tâncias que ela governa, que ela própria é, portanto, em seu coração,
afetada por elas, determinante, mas, igualmente, determinada num só
e mesmo movimento; e determinada pelos diversos níveis e pelas di·
versas instâncias da formação social que anima, Dela poderíamos A HIPÓTESE DA DECALAGEM CULTURAL
dizer que é superdeterminada em seu princípio ... (62)
A idéia de uma contradição "pura e simples", e não superdeter-
minada, é, como Engels o disse da Hfrase" economista, "uma frase WILLIAM OGBURN
vazia, abstrata e absurda". Ainda que ela possa servir de modelo
pedagógico, ou, antes, que tenha podido servir, num certo momento
preciso da história, de meio polêmico e pedagógico, o fato não fixa
para sempre o seu destino. Afinal, os sistemas pedagógicos mudam A rapidez da mudança nas sociedades modernas conduz-nos a con-
muito na história. Seria tempo de um esforço com o fim de elevar siderar de mais perto a importante questão do ajustamento social.
a pedagogia à altura das circunstâncias, isto é, das necessidades his- que origina dois tipos de problemas. O primeiro se refere à adap-
tóricas. Mas quem não vê que esse esforço pedagógico pressupõe tação do indivíduo à cultura, ou, ainda mais, da cultura ao indivíduo.
um outro', puramente teórico? Porque, se Marx nos dá princípios ge- Nosso interesse aqui estará mais particularmente voltado para o se"·
rais e exemplos concretos (Le 18 Brutnaire, La guerre civile en gundo problema que o ajustamento social suscita.: trata-se mais pre-
France etc.), se toda a prática política da história do movimento so- cis;~mente dos ajustamentos <;las qiferentes partes da cultura que se
cialista e comunista constitui um inesgotável reservatório de "pro- produzem por ocasião de rápidas mudanças sociais.
tocolos de experiências" concretas, importa dizer, e muito, que a De acordo com nossa hipótese, as diferentes partes da cultura mo-
teoria da eficiência específica das superestruturas e outras circuns- (f dern'a, não mudam no mesmo ritmo, sendo que algumas mudam mais
tâncias" está ainda em grande parte para ser elaborada; e, antes da rapidamente do que outras. Como entre as partes existe urna correl~­
teoria de sua eficiência, ou ao mesmo tempo (porque é pela con.c;~ ção I: uma interdependência, uma rápida mudança de parte da cul-
tatação de Sua eficiência que se pode atingir-lhes a essêncía), a teo- tura torna necessários reajustamentos das outras partes, que, tam-
ria da essência própria dos elementos específicos da superestrutura. bé;m, devem modificar-se. A indústria e a educação acham-se, por
Esta teoria permanece, como o mapa da África antes das grandes exemplo, em correlação uma com a outra. Uma mudança na indús-
explorações, um domínio reconhecido em seus contornos, em suas tria, por conseguinte, faz que seja necessária uma mudança do .sis..
grandes cadeias e em seus grandes rios, porém, no mais das vezes, I
afora algumas regiões bem traçadas, desconhecido, nos pormenores, (63) As tentativas de Lukacs, limitadas à história da literatura e da fil(}-
Quem, depois de Marx e de Lênin, tentou, verdadeiramente, a sua sofia, parecem-me contaminadas por um vergonhoso. hegelianismo. Como se
Lukacs quisesse fazer-se absolver por Hegel de ter sido aluno de Simme1 e
de Dilthey. Gramsci é farinha de outro saco, As explanações e 'as notas de
(61) A situação de "crise" desempenha, como Lênin o disse freqüentes seus (adernos de Prisão, atingem todos os problemas' fundamentais 'da história·
vezes, um papel revelador da estrutura e da dinâmica da formação social que italiana e européia,: econômica, social, política, cultural. Encontram-se aí pontos
a vive. O que está dito da situação revolucionária concerne, pois, também, d~ vista. absolutamente originais e, por vezes, geniais, sobre o ,problema"hoje'
guardadas as devidas proporções, à formação social numa situação anterior fu,o,damental, das· superestruturas. Encontram-se também, como 'sói acontecer
à crise revolucionária. quando' se trata de verdadeiras descobertas, "novos conceitos, como o' de k:ege;
(62) Cf. a explanação consagrada por Mao Tsé-Tung ao tema d'l distin- món!'a, notável exemplo de um esboço de ~olução teórica dos probleomas dá~
'Cão das contradições antagônicas (explosivas, revolucionárias) e das contra- interpenetração do econômico e do político. Infelizmente .. , quem retomou, ,e
<lições não antagônicas (De la contradiction, ed. Pequim, 1960, págs. 67 c segs.), coil'tinuou, pelo menos na França, o esforço teórico de Gramsci?

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l. _-----
"'--
28 -T.S.
tema educativo, a fim de que ele se ajuste novamente. A indústria e cam ao mesmo tempo que aquelas que se desenvolvem na cultun
a educação representam duas variáveis: se uma mudança se produzir material. Semelhante decalagem pode ser de curta duração, mas igual-
de início na indústria e que seja, em seguida, preciso um ajusta- mente pode estender-se por numerosos anos (Traduzido de WILLIAM
mento da educação, pode-se qualificar de variável independente" FIELDING OGBURN, Social Change, Nova York, The Viking Press ©
indústria, e de variável dependente a educação. Quando, por ocasião 1922, B. W. Huebsch, Inc.; © renovado em 1950 por W. F. Ogburn,
de uma descoberta ou de uma invenção, se produz, inicialmente,' págs. 200-204. Traduzido e reproduzido com autorização de The
uma mudança em parte específica da cultura, outras mudanças, de- Viking Press).
pendentes da primeira, irão também aparecer em outras partes da
cultura. Mas, quase sempre, as mudanças só nessas partes se pro-
duzem depois de um certo prazo. Uma tal decalagem pode variar e111
função da natureza da cultura, mas sendo possível estender-se por A DECALAGEM CULTURAL (64)
numerosos anos, durante os quais persistirá um mau ajustamento.
Parece necessário reduzir a duração de semelhante ajustamento, a fim
de que a cultura reencontre, o mais rapidamente possível, a sua coe-
rência ... WRIGHT MILLS
Experimentemos agora precisar um pouco a nossa hipótese. As con-
dições materiais da existência constituem uma grande parte de nosso
meio-ambiente, do mesmo modo que a cultura material forma uma Na velha sociologia emplf1Ca dos meios, os problemas da política
grande parte de nossa herança social. Os elementos materiais com· . raramente são tratados de um ponto de vista radical. A empiricidade.
preendem as casas, as empresas, as máquinas, os materiais brutos, liberal é ordinariamente apolítica e aspira a uma espécie de oportu-
os produtos manufaturados etc. Para utilizá-los, empregamos deter· nismo democrático. Quando seus campeões abordam um domínio po-
minados métodos. Uns continuam sendo simples, mas outros, ao con-- lítico, o caso é "patológico" e fala-se, geralmente, em coisa "anti-
trário, requerem, para utilização desses elementos materiais da' cul:.. ' social", em HCQrrupção". Em outros contextos, o Hpolítico" se con-
tura, costumes, crenças, filosofias, leis ou ações governamentais. Uma funde com o bom funcionamento do statu quo político, com a jus-
das principais funções do governo consiste, deste modo, em ajustar tiça e a administração. Raramente a ordem social é atingida. A gente
a população às condições materiais da vida. Sumner qualificou' de se contenta com postular-lhe a existência, imóvel e longínqua.
costumes alguns desses processos de ajustamento. Todavia, o ajus- A empiricidade liberal convém muito bem às pessoas que, por via
tamento cultural às condições materiais baseia-se igualmente em de sua posição social, chegaram a conhecer, não sem alguma autori-
outros processos, que não os costumes: entre eles, encontram-se tanto dade, Hcasos de espécie". Os juízes, as assistentes sociais, os alienis- J
as instituições sociais quanto os folkways. De nosso ponto de vista, tas, os educadores e os reformadores em miniatura pensam sempre as
pode-se chamar "cultura adaptativa" a esses processos de ajustamen- "situações". Vivem com antolhos, e sua profissão os torna inaptos
to. A cultura adaptativa é, por conseguinte, a parte da cultura não a ver outra coisa além dos Hcasos de espécie". Sua experiência e,
material ajustada ou adaptada às condições materiais. Determinada.; os pontos de vista de que julgam a sociedade são por demais idên-
partes da cultura não material se acham totalmente incluídas nl ticos, por demais homogêneos para dar margem a uma emulação inte--,
cultura adaptativa: acontece assim com regras particulares que inter- lectual c a um espírito de polêmica que permitam construir a tota·
vêm na aplicação de técnicas específicas. Outras partes, como are ... lidade. A empiricidade liberal é uma sociologia dos meios de ten-
ligião, aí não estão incluídas senão indiretamente; OU de maneira dência moralizadora.
parcial. Mesmo que algumas dessas funções permaneçam constan· A noção de Hdecalagem cultural" entra inteiramente no estilo desse'-
tes, a família poderá, do mesmo modo, modificar-se, _para adaptar~se pensamento "utópico" e amigo do progresso. Deixa entender que é'
às mudanças das condições materiais. Segundo a nossa terminologia, preciso mudar alguma coisa para fazer-lhe ualcançar" o avanço da
a família é, por conseqüência, uma parte da cultura não material tecnologia. O elemento "atrasado" existe no presente, mas suas ra-
Parcialmente adaptativa. Vê-se, assim, que, quando se produzem mlj.
danças nas condições materiais, resultam daí mudanças, na ,cultura' (64) Julgamos preferível verter a expressão cultural lag para If decalagem
adaptativa. Mas tais mudanças na cultura adaptativa não, se verifi- cultural" e -não' para" retardo cultural" (N.d.E. do original).

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zões de ser pertenceriam ao passado. Faz-se passar, portanto, julga- turat. a análise do conflito entre ua indústria e os negócios". (65)
mentos por afirmações sobre seqüências cronológicas. Sob sua forma Sua pergunta era a seguinte: Onde o retardo se faz sentir? E ele
de enunciado de valor a respeito da desigualdade do progresso, o se empregava em mostrar que a incapacidade bem exercida dos ho-
retardo cultural se presta excelentemente aos desígnios dos homens do mens de negócios, os quais se regulavam pelos cânones dos empre-
literalismo e do optativo; ensina-lhes que as mudanças "se impõem" sários, (66) tinha como resultado sabotar propriamente produção e
e que tipos de mudanças "deveriam" produzir-se. Por ele ficam sa- produtividade. Não ignorava tamPQuco o papel do lucro num sistema
bendo onde progrediram e onde falharam. A descoberta do "retardo" de propriedade particular, e preocupava-se muito pouco com a "obra
patológico se complica com o disfarce histórico sob o qual é apre- mal feita". Mas o importante é que ele atualizava a mecânica estru-
sentado e com verdadeiros pequenos programas metidos com impu- tural do "retardo". Todavia, numerosos sociólogos utilizam ainda a
dência sob expressões falsamente objetivas, como O verbo "impor-se:'. noção de "decalagem cultura!", que perdeu toda ressonância política
Formular os problemas em função da decalagem cultural é dissi- e toda vinculação precisa, estrutural. Generalizaram essa idéia a fim
mular as avaliações. Mas uma questão mais crucial é colocada: Quais de utilizá-la a todo propósito e sempre de maneira parcelária (Excer-
foram as avaliações a que recorreram as pessoas da empiricidade li- to de WRIGHT MILLS, L'imagination sociologique, Paris, Maspero,
beral? Gosta-se muito de alimentar a idéia de que geralmente as "insti- 1967, págs. 93-96).
tuições" estão em atraso em face da Htecnologia e da ciência" em ~

geral. Equivale a pensar, de maneira positiva, a Ciênció. e a mu-


dança progressiva regular. ~m suma, equivale a continuar, no estilo
liberal, o racionalismo do Século das Luzes; o seu culto messiânico, INTEGRAÇÁO SOCIAL E
hoje politicamente ingênuo, da física, modelo de pensamento e· de INTEGRAÇÁO SIST~MICA
ação; a sua concepção do tempo-progresso. Esta noção de progresso
foi introduzida nos colégios americanos pela moral escocesa, outrora
DAVID LoCKWOOD
soberana. Há tima geração aproximadamente, e desde o fim da
Guerra de Secessão, as classes, médias das cidades americanas se com~
punham de prósperos homens de negócio, que se apossavam dos meios
de produção, adquirindo poder político e prestígio social. As primeiras Neste texto almejamos examinar certas críticas recentes endere-
gerações de sociólogos universitários, OU haviam provindo diretamen- çadas às teorias funcionalistas, e em particular, as que dizem respeito
te, dessas camadas sociais em plena ,expansão, ou estavam em parte à origem interna da mudança social numa sociedade. Desejamos de-
ligadas a elas. Os- estudantes" as pessoas em meio às, quais ele di~ monstrar que a maioria dos autores estudaram, antes de tudo, um
f.undiam suas idéias, foram produto dessas camad::ts sociais. É nas tipo particular de análises funcionalistas (o ufuncionalismo normati...
vo"). Esses autores foram assim levados a considerar, com dema-
fileiras dos que galgam a escala sociale os degraus da fortuna quea
siada atenção, o problema da "integração social". Pouco interesse
idéia do progresso fl9resce, naturalmente.
atribuíram, por conseguinte, ao problema da "integração sistêmica",
. As pessoas que utilizam a noção de decalagem cultural abstêmcse o qual também é importante, do ponto de vista do conflito e da mu-
de examinar o que há, aí, de grupos de interesses e de elemento!)' dança social. Parece-nos que, desse ponto de vista, a teoria geral
de decisão, que poderiam achar-se por baixo çlas diferentes "cele- do funcionalismo continua sendo, ainda hoje, um instrumento muito
ridades de transformação", ilOs"múltiplos setores da sociedade. Ca- útil. .. Com efeito, no caso da integração social, examina-se, sobre·
beria dizer que, em comparação com as celeridades de transformação tudo, a natureza, pacífica ou conflitual, das relações sociais entre
d~"que -poderiam estar' ,animados' c't:!rtos· setores da cultura, é antes os atores, quando, no caso da integração sistêmic::a, estudam-se prin-
a ,tecnologia que anda '~a rebOque". Era' exatamente o que se pas- cipalmente as relações sociais, pacíficas ou conflituais entre as partes
sava em torn~ dos anos trint~~, e ,é' ainda o que se· pa~sa nos do-' do sistema social.
mínios do equipamento doméstico e dos transportes em comum.
Contrariamente ao~ outros sociólogos, Thorstein Veblen fez -uso ·da (65) "Lag, leak and friction" (retardo, fuga e fricção).
palavra "retardo;' num ~ntido· que ,1?:,Fo~ditziu a ,uma análise estru- (66) Sobre o sentido da palavra e'mpresário, ver Les eols Nanes.. Paris,
Maspero, 1969, apêndice.

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~
,Pode-se sustentar, desde já, que o funcionalismo normativo tem nalismo 'normativo em forma sistêmica., Elas assumem o a~~çtoj res-
tendência para ligar muito estreitamente esses dois aspectos da inte- pectivamente, de uma "teoria coercitiva da sociedade" e de uro "mode-
gração. Uma crítica capital, freqüentemente dirigida ao funcionalismo lo conflitual da oociedade". (71) Para essa aproximação, apresentam
normativo, é sobretudo a de considerar as instituições como enti- eles razões ainda mais surpreendentes. A primeira é que ambos esti~'
dades morais, sem explorar rigorosamente a interação entre normas main que seus "modelos", ou "escalas de referência", são particular~
e poder, a qual está universalmente presente nos principais contextos mente adaptados a certas zonas delicadas da sociologia, notadamente
institncionais. Essa fraqueza foi sublinhada por autores como Dahren- o estudo das sociedades industriais. (72) Em segundo lugar, Dahren-
dorf (67) e Rex (68). O essencial de suas teses é suficientemente dorf considera que a unificação da teoria integradora (funcionalismo
aproximado para se poder tratar de forma conjunta. Designemos normativo) e da "teoria coercitiva" é improvável e sem dúvida
suas idéias por comodidade, pela expressão "teoria conflitual".
l impossível. (73)
Os teorizadores do conflito observaram, em primeiro lugar, que as Nenhuma dessas razões é muito convincente. Não se pode afirmar
normas e o poder devem ser considerados como modos gerais e alter- que a sociedade seja inconcebível como entidade puramente moral ou
nativos de institucionalização das relações sociais. Em segundo lugar, puramente coercitiva, depois sugerir que um vocabulário construidO')
consideram os conflitos potencialis de interesses como endêmicos em em torno de uma ou de outra de -semelhantes premissas inconcebí-
todos os sistemas sociais que institucionalizam as relações de poder, veis seja indispensável, sob o pretexto de que certas sociedades se
porque o poder (autoridade) é a mais corrente forma de "bem raro". mostram manifestamente mais conformistas ou mais conflituais que ""
ao mesmo tempo que um dos bens raros inerentes à própria so- outras.
ciedade: H A distribuição da autoridade nas associações" - escreveu
Dahrendorl - Ué a causa primária da formação dos grupos confli- Seguramente, à medida que o poder entra nas relações sociais, vai
send,o um elemento imprescindível à compreensão das "imperfeições h
tuais". (69) Assim, se os conflitos potenci.ais de interesses entre os
que exercem a autoridade e os sobre quem a autoridade é exercida re- do consenso e bem assim, da propensão para o' conflito. Mas, mes~
l

vestem um caráter "normal" na organização social, a desinstituciona- mo em situações em que o poder se mostra muito aparente e o con~
lização do poder e o uso do mesmo para manter instituições são flitQ, endêmico, é duvidoso que os fenômenos do conflito possam
possibilidades sempre presentes. Toda visão realista e dinâmica da ser a.dequadamente apreendidos sem incorporar-lhe à teoria numerosos
institucionalização deve atribuir um interesse capital ao papel do conceitos e proposições relativos às propriedades dinâmicas dos sis-
poder, simultaneamente na origem e no controle do conflito. temas dos valores (ou ideologias) que foram desenvolvidos ou reto-
Pensar-se-ia, à primeira vista, que a imagem da sociedade construi~ ma'dos pelo funcionalismo normativo. Porque, numa estrutura de po-
da pelo funcionalismo normativo motivou discussões que, de um gol- der determinada,.a natureza do sistema de valores é significativa da
pe, nos reconduzem à origem, fértil em polêmicas, da moderna socio- gênese, da intensidade e da direção do conflito potencial. A maneira,
logia, isto é, ao debate sobre o controle social. Mas, felizmente, nem em particular, como ela estrutura os níveis de aspirações das dife~
os funcionalistas, nem os teorizadores do conflito estão dispostos a rentes camadas sociais é capital. Pode ela criar por si mesma aspi..
considerar como um verdadeiro problema a dicotomia forçajvontade j rações que engendrem reclamos de mudanças ou alimentem o brasei-
de Green. (70) Os termos "normas-consenso-ordem", assim como ro dos conflitos de interesse materiais. Pode ser suficientemente aber-
'.'poder-alienação-conflito", não são considerados como alternativas
sociológicas viáveis.
(71) Os dois autores apresentam suas propOSlçoes sob forma resumida
É por isso um pouco surpreendente constatar que Rex, assim como (Dahrendorf, págs. 236-240, Rex, págs. 129-131,,195). Suas premissas são
Dahrenrlorf, crêem necessário desenvolver suas antíteses ao funcio~ muito .semelhantes: "Toda sociedade mostra, em cada um dos seus pontos, o
dissemo e o conflito; o conflito social é onipresente" (Dahrendorf, pág. 162);
(67) R. Dahrendorf, Classe et conflit de classe dans les sociétés inJus- "em ,lugar de ser organizado em redor de um acordo sobre valores, os
triélles, Paris, Calmann-Lévy, 1972. sistemas sociais podem ser concebidos como geradores de conflitos em pontos
(68) J. Rex, Key Problems of Sociological Theory, Londres, Hurnanities centrais" (Rex, pág. 129). O principal desacordo entre os dois parecia refe-
Press, 1961. rir-se ao grau de superposição das linhas de conflitos sociais (cf. Rcx, págs.
117-118).
(69) Dahrendorf,.op. cit., pág. 172.
(70) T. H. Green, Principies of Política! Obligation, Londres, Longmans, (72) Dahrendorf, op. cit., págs. 161-164; Rex, op. cit., págs. 112, 114.
1906. . (73) Dahrendorf, op. cit., pág. 164.

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~.
ta e ambígua para que a explorem, simultaneamente: diferentes gtu~ nClstas do conflito nos conduzem na análise da mudança social?
pos conflituais. Ou, muito pelo contrário, pode ser capaz de inte Dahrendorf e Rex asseguram que a mudança social é o resultado de
grar contra~ideologias. Ou, mais ainda, e finalmente: uma brusca um deslocamento do equilíbrio do poder entre grupos conflituais. (76)
mudança na situação material relativa de diferentes grupos pode con- Entretanto, se dita mudança estiver muito freqüentemente associada I
li
duzir a um conflito generalizado, e isto pelo fato que Durkheim ao conflito, o inverso não se verificará, necessariamente. O conflito
I~
,
denomina udesclassificação moral". Poder-se-ia sustentar, portanto, pode ser, de maneira concomitante, endêmico e intenso num sistema
que até mesmo a análise desse aspecto da integração social, a que
social, sem nem por isso ocasionar mudança estrutural profunda. Por
Dahrendorf e Rex consideram que suas teorias estão particularmen-
que certos conflitos rematam em mudanças, e outros não? A teoria:
te adaptadas - a saber, o conflito social - exige, pelo menos, um
alargamento sistemático de seu quadro de análise. Isto para levar em dos conflitos responderia que isso depende dos fatores variáveis qué'
conta, explicitamente, as propriedades variáveis dos sistemas de valor afetam o equilíbrio do poder entre os grupos. '
analisadas pelo funcionalismo normativo. Sua teoria copf1itual deix"l Aqui é que atingimos o limite dos meios de análise da teoria dos
então de ser uma aproximação específica, por mais que isso. sej~l conflitos. Reagindo contra O funcionalismo normativo, ela fica intei.. ,
feito, o que não se poderia dizer senão da versão não modificada do ramente confinada ao problema da integração social. O que falta :,
funcionalismo normativo. a perspectiva de integração sistêmica do funcionalismo normativo, a ~,
Afinal de contas, funcionalismo normativo e teoria conflitual uti- qual não implica nenhuma disposição prévia para o estudo da esta-
lizam, de maneira evidente, para solução de seus respectivos pro· bilidade do sistema.
blemas, numerosos conceitos sociológicos que não são propriedade
Isto é extremamente interessante, porque Dahrendorf, assim como
de nenhuma das duas aproximações. Veja-se, por exemplo, o uso
Rex, chegam a suas respectivas posições através de uma generaliza-
extensivo, feito por Dahrendorf,(74) do conflito das "relações múlti-
plas de grupo", a fim de relatar a variabilidade dos conflitos de elas- ção de Marx; e, tontudo, é precisamente Marx que diferencia clara-
se; uso de modo algum diferente do que dele faz, por exemplo, Wil- mente integração social e integração sistêmica.
liams. (75) Sem dúvida, é antes justamente pelo uso de proposições A propensão para o antagonismo de elasses (problema da inte:
muito difundidas do que oferecendo uma definição admitida dos con- gração social) é geralmente função do caráter das relações de pro-
ceitos de "instituição" ou de "sociedade" que a unificação ambicio- dução (isto é, das possibilidades de identificação e de comunicação
nada, de que Dahrendor! tanto duvida, se acha realizada. Em ver- intraclasses). Mas a dinâmica dos antagonismos de elasses está ela'
dade, a divergência entre o que ele chama teoria "integrativa" e "teo- ramente ligada às crescentes contradições do sistema econômico. Qua'-
ria coercitiva" é muito mais evidente no nível da definição dos pro- se se pode dizer que o "conflito", que, na teoria marxista, é deci~
blemas do que no de sua resolução. sivo "para a mudança, não é o conflito de poder, oriundo das rela-
Por que, em tais condições, essa insistência a respeito do desen- ções no sistema produtivo, mas o conflito sistêmico, provindo 'das
volvimento de esquemas conceituais de substituição, em que as idéias "contradições" entre as instituições da propriedade e as "forças de
de poder e de conflito desempenham um papel central? Isso vem produção". Posto que firmemente ligados, esses dois aspectos da inte-'
em parte de que a aprovação dada pelo funcionalismo normativo aos gração não somente são analiticamente separáveis, mas, igualmente;
argumentos expendidos no presente texto não foi até aqui senão em razão do' elemento temporal introduzido, distintos nos fatos.
pura forma. Mais profundamente, é, sem dúvida, porque certos toori- Assim, de acordo COm essa teoria, é perfeitamente possível dizer que,·
cistas, vendo no seio do funcionalismo normativq a análise de equi- em um momento qualquer de sua existência, uma sociedade apresenbi
líbrio combinar-se com o manifesto interesse de sua parte em rela,ção alto grau de integração social (ausência relativa de conflito de elas'
à mudança social, procuraram, conseqüentemel}te, a chave dessa difi- ses) e, todavia, fraco grau de integração sistêmica (aumento das ca-
culdade do lado do poder e do conflito. Se assim é, até onde os teo- pacidades de superprodução) (Traduzido de ExpÚJrations in socia!
change, ed. G. ZOLLSCHAN e W HIRSCH, Londres, Routledge & Kegan'
Paul, 1964, págs. 244-250).
(74) Ibidem, págs. 213-218.
(75) R. Williams Jr., American Society, a Sociological Interpretation, Nova
York, Knopf, págs. 560-561. ' (76) Dahrendorf, págs. 231-236; Rex, pág. 196.

420 421

....
~
REFLEXOES SOBRE UMA METAFORA vidas ao acaso - são eles agora utilizados, principalmente por Ros·
tow, Lewy, Smelser e outros, para tentar tratar precisamente do tipo
ROBERT NISBET
de fenômenos que os evolucionistas clássicos evitavam, porque sabiam.
com razão, que deviam evitá-los.
As dificuldades encontradas pelos pesquisadores engajados nessa
prátiça poderiam ter sido preditas por qualquer um dos teoricista,i
A pertmencia e a utilidade da metáfora do crescimento são pro- da história natural e da evolução social durante os dois séculos pas-
porcionais à distância cognitiva do assunto a que a metáfora é apli- sados. Num sentido eles as predisseram. Todos, sem exceção, torna-
cada. Quanto mais vasto, distante e abstrato o assunto, maior a ram evidente o fato de que, qualquer que tenha podido ser o valor
utilidade dos atributos derivados da metáfora, como a imanência, a atribuído à teoria do desenvolvimento progressivo no estudo da hu·
continuidade, a diferenciação e, bem assim, outros de que nos temos manidade em geral, no que conceme ao estudo da história, quero
ocupado, a partir dos gregos até os tempos atuais. Podemos, todavi:::t, dizer, da história no sentido do concreto, do particular e do tem·
estabelecer, também, a proposição contrária: quanto mais fraca r. paraI, ela era sem valor.
distância cognitiva, tanto menos pertinente e útil é a metáfora. Em Mas a "história" é objeto, mesmo, das ciências sociais contemporâ-
outros termos: quanto mais concreto, empírico e relativo às con- neas. Não entendo com isso, evidentemente, uma simples narração,
dutas for o nosso assunto, tanto menos a teoria do desenvolvimen- porque ela não é mais fundamental, afinal de contas, para a arte
to, com seus diversos elementos conceptuais, se torna aplicável. da historiografia do que qualquer uma de suas outras técnicas. A
É bastante tentador reinterpretar, assim, as entidades construída~
metodologia da história revela-se pelo seu cuidado com °
concreto
e com o particular, como pela sua estrita observância dos limites do
pelo pensamento social ocidental: nas civilizações concebidas como
tempo. É neste sentido que as ciências sociais se tornaram cada
um todo, na humanidade, na sociedade global; em entidades como vez mais históricas. No início do século, quando o grande F. W.
o capitalismo, a democracia e a cultura; nos sistemas sociais, tais Maitland dizia: "Logo a antropologia poderá escolher entre ser histó-
como os funcionalistas e outros os concebem; e nos pretendidos uni- ria e não ser absolutamente nada", (77) referia-se, em primeiro lugar,
versais da evolução. Uma vez que se dotou de vida um, ou outro a todas as ciências sociais e, em segundo lugar, queria significar por
desses universais, com ajuda do processo familiar da reificação, não "história" cuidado com o tempo e com a particularidade, sem alusã')
falta senão um passo para dotá-lo, além disso, do crescimento dos ao contexto comum da narração.
mecanismos internos de desenvolvimento sobre que foram estabeleci- A partir da época de Maitland, realizou-se uma verdadeira revo-
das as leis de progresso e de evolução_ Esta tem sido, em ampla lução nas ciências sociais. Desapareceu praticamente a preocupação
medida, a história do pensamento social no Ocidente, desde a época das grandiosas perspectivas e das abstrações, dos conjuntos e dos
de Aristóteles_ universais da evolução, caros a Comte, Marx, Spencer e Morgan.
É um objetivo completamente diferente, entretanto, experimentar, Em alto grau, a comparação - comparação verdadeira de modos de
como muitas teorias sociais estão atualmente fazendo, impor esses con- comportamento comparáveis - substituiu o venerável método com-
ceitos de de'senvolvimento, não a entidades construídas, mas ao gênero parativo, para o qual os dados culturais ficavam estacionados, como
de assunto que se tornou fundamental nas ciências sociais de hoje, outros tantos automóveis. Hoje, não são tanto os modelos de evo-
a saber, a conduta social de seres humanos em lugares específicos, lução a longo prazo que interessam aos especialistas das ciências
dentro de determinados limites de tempo_ Os esforços para tirar essa sociais, ainda que, vimo-lo, possam eles ,reaparecer nessas ciência,
utilidade suplementar da metáfora do crescimento são, como vimos, cotr1o na religião, mas os processos de mudança a curto prazo: em
inteiramente infrutíferos. A razão metodológica desse insucesso si- Detroit" em Muncie, no Deep South, nos Midlands ingleses, no leste
tua-se, como também o temos observado, na completa inadequação da África entre os bantos, na América Latina etc. Em resumo, a
do. conceito ao assúnto. Ao passo que os conceitos em questão se história, no sentido de uma compr~ensão do concreto, no' tempo e n~
originaram de uma linha de pesquisa cujo propósito, desde Aristó- éspaço.
teles até aos evolucionistas sociais do século XIX, era determinar o
curso natural da mudança no tempo - o curso que a mudança se- (77) F. W. Maitland, "The Body Politic". in Collected Papers, ed. d,e
guiria, independentemente das interferências dos acontecimentos de- 1-1.'. A. L. Fisher (Cambridge, Cambridge University P!ess, 1911), lII,- 294
e segs.

422 4?3

~ ..

......'W' J
Impõe-se notar que me refiro, aqui, à clencia social emplnca, que Ao contrário, devemos abordar o problema da mudança de ma-
talvez se pudesse chamar monográfica. Como nossa atual teoria So~ neira histórica. Ao invés de supor, de pesquisar e de descobrir cons-
ciaI - ou, pelo menos, o que apareee como a sabedoria convencional tantes estruturais intemporais, que estão pretensamente implicadas
em teoria social - o ilustra de maneira muito clara, a mesma dis.. em. todos os modos de mudança, podemos propor a questão de saber
tância esteve longe, nesse plano, de ser superada, desde o dia 'em quais as condições sob que a mudança social real marca a história
que Maitland lançava a sua advertência às ciências soCiais. Referi- de uma instituição dada ou de um tipo dado de conduta social ou
mo-nos, naturalmente, à grande distância que percorremos em nossa de- ,um domínio cultural. E, se fizermos essa opção, não poderemos
teoria social, desde os belos dias do evolucionismo, no século XIX, ma,i,s fazer a distinção, tão cara a todos os teoricistas sociais, desde
mas uma análise atenta sugere que distâncias assim são largamente Aristóteles, entre a "mudança natural" e as mudanças ligadas a assun-
inexatas e não são em parte alguma tão manifestamente ilusôna3 tos que não pertencem ao desenvolvimento e são de ordem estrita··
como em nossa teoria da mudança. Nosso progresso no campo das mente histórica, como os acontecimentos.
ciências sociais efetuou-se inteiramente, quase, no domínio do estüdo Por acontecimento não' entendo somente um fato ou uma ocorrên-
empírico: condutas sociais em matéria de parentela, de religião, :de cia, que é a significação mais comum dada à palavra. Entendo isto
educação, de estratificação social, nas organizações, nas comunida" também, é certo, mas, do ponto de vista do estudo da mudança, a
des, nos processos de aprendizagem, de comunicação, nos grupos étni .. mais pertinente significação do termo "acontecimento" é algum im-
cos, nos grupos econômicos, nos partidos políticos etc. pacto ou intrusão vinda de fora para o domínio próprio do tipo de •
O que nos revelaram esses estudos empíricos, antigos e novos; conduta social ou da área cultural objeto do estudo. Vale a pena
reduz-se a uma conclusão principal: a teoria da mudança" encarnada, dtar aqui, na Íntegra, o que a respeito escreveu ,F. J. Teggart:
ao mesmo tempo, na teoria clássica da evolução social e nas teorias U A identificaçâo de 'acontecimentos' como 'intrusões' é assunto
contemporâneas do neo-evolucionismo e do funcionalismo, é singu.. @,,';grande ,importância. Para atingir uma compreensão da Imaheira
larmente destituída de méritos, quando trata da natureza da mudança, por que as coisas se desenrolam' no curso do tempo, podemos enca..;
das condições pelas quais ela se instala, ou, ainda, dos seus efeitos rar os fenômenos empíricos como arranjados conceptualmente numa
sobre as condutas sociais. série' de esferas concêntricas. Mais para' fora, teríamos o universo
Proponho-me agora confrontar o que se pode chamar de convencio- estelar;, ":no seu interior, a terra física; no interior da terra física,
nal sabedoria relativa à mudança social, que em toda parte é encon- o!'tnund6 ,da vida 'orgânica; ainda: no interior do mundo da vida orgâ-
trada em nossa pretendida teoria social, com os resultados concer- nitá~' o mundo' das atividades humanas; no interior deste último, o
nentes à natureza dessa mudança trazidos até nós por um grande ag'i'upà:mento de grandes proporções,' ou a nação; no interior das na-,
número de estudos. São estudos referentes às condutas sociais, tais ções, a comunidade local e, finalmente, no interior da mesma, o
quais se manifestam em circunstâncias empíricas, em tempos e luga- in·divíd,uo. Em tal série, é evidente que uma mudança em qualquer
res específicos. esfera exterior 'afetará tudo quanto se situar no irtterior dela. Pode-
nios assim definir um 'acontecimento' como a intrusão de qualquer
esfera mais larga em uma esfera qualquer, ou conio condição que
Mudança e acontecimento poSsa ser objeto do presente interesse" .. (78)
Com uma única ressalva, este en.unciado parece-me dizer mais
É-nos preciso saber como nos arranjar para descobrir as fontes. da sobre a natureza real da mudança do que tudo que pode facilmente
mudança, as condições em que ela manifestamente se instala. Pode- defív'ar da teoria 90 desenvolvimento, com seus conceitos centrais
mos, ao modo por que o faz a teoria clássica do desenvolvim~nto, de imanência e de continuidade. A ressalva refere-se sirÍIplesmente a
estabelecer a mudança como uma constante, como algo de inerente afit'inação de Teggart, segundo a qual "é evidente que a mudança
à realidade social e procurar simplesmente descrevê-la, retraçar seus em qualquer esfera exterior afetatá tudo quanto se encontrar em
supostos ritmos e oscilações. Podemos, como o faz o funcionalismo seu, interior". ,Não é subestimar a grande importância dessa passa-
contemporâneo - e à maneira de muitas outras teorias sociais - gem observar que, dada a tenacidade dos modos de crenças, das con-
tentar relacionar as fontes da mudança através da exploração das
propriedades de sistemas sociais abstratos, de fontes da mudançapre_ OS) "Frederick J. Teggart, Theory ol History, :t'Iew Haven, ·Yaie Univer-
tensamente eternas, contínuas e uniformes. sity Press, 1925, pág. 148.

424 425

I
~'w I
dutas e, mais geralmente, das instituições e dos costumes, não s,:, tempos. O ponto importante, em todo o caso, é marcar bem a dis':
segue, absolutamente, que as mudanças em uma esfera exterior devam· tinção entre mudanças desse tipo e mudanças de significação estru-
ter conseqüências sobre aquilo que se encontra numa esfera interior. tural mais ampla.
Não há aí senão uma possibilidade. Como toda outra proposiçã0 Ainda uma vez, estou longe de negar o atrativo - metafísico, re-
razoavelmente ligada ao estudo da mudança social, tais conclusões ligioso, político - das metáforas do crescimento segundo as quais'-
antes requerem investigação do que afirmação. o que é crucial e causa da mudança é tirado de dentro de algum'
Não procuro aqui dar a entender que todas as mudanças, quaisquer conjunto ou de alguma entidade. Experimente-se imaginar o apelo
que sejam o seu gênero e o seu grau, são externas em suas ori- carismático do marxismo sem a causa-chave situada no interior do
gens. Adotaremos a mesma distinção que faz Raddiffe-Brown: .. capitalismo e, mais especialmente, no interior do proletariado. Tente-
que discrimina mudanças no interior de um modelo dado de condutas se imaginar a causa do nacionalismo negro dos tempos atuais, ou de
- e que, como Radcliffe-Brown O observa, assumem mais ou menos qualquer dos nacionalismos mais antigos. As teorias da "grandeza e
a forma de reajustamentos - das do próprio modelo. Estas última,; da queda" do Império Romano, que se apóiam em processos endê·
são as mais amplas ,e mais visíveis mudanças de tipo ou de estrutura. micos, presentes desde o nascimento de Roma, têm claramente uma
Como ainda Raddiffe-Brown o acentua fortemente, é muito grande superioridade filosófica e poética sobre as que tratam do problem,'
a diferença entre os dois tipos de mudança. (79) inteiro na base dos documentos relativos às relações de Roma com
lnfelizmente, sob a contínua influência das idéias, bem acolhidas povos tão distantes, como o chinês. Elas parecem mais profunda3!
no.século XVIII, de continuidade genética e de uniformitarisrno cau- possuídas de alguns dos elementos da tragédia que oS dramaturgos
sal, existe, na teoria social, uma vigorosa tendência para tentar fa- reservam para os indivíduos. Dão testemunho disso o sucesso d~
zer da mudança de estrutura a conseqüência cumulativa e linear dos Spengler e o de Toynbee !
outros tipos de mudança: as mudanças menores, internas, mais ou Preocupamo-nos, entretanto, não com problemas de profundidade'
menOs uniformes, que se dão na existência ordinária. É somente metafísica ou poética, mas com a natureza da mudança social con-
pr:ocedendo -assim, sustenta-se, que a gente pode elaborar uma ver-o siderada como um processo empírico, que se manifesta nas condu·
dadeira ciência da mudança. A respeito, entretanto, está a teoria tas sociais, através do tempo histórico. E se, do ponto de vista de
social tomando um caminho bem diferente do da genética moderna. todo historiador de boa fé, (81) é impossível encarar entidades tão'
Darwin, como já o vimos, experimentava lançar a teoria inteira da vastas como a Grécia, Roma, a Europa Ocidental ou os Estados
evolução à conta da variação - da variação uniforme, infinitesi- Unidos em termos de forças endógepas, isto é, independentemente
malmente pequena e contínua - e sustentar que as grandes mudanças das relações de cada uma delas com muitos outros povos, com
Ilão passam de acumulação de pequenas variações. A genética mo- intrusões de forças políticas, militares, econômicas, com problema;.;'
derna, a despeito da variação darwiniana, tornou, contudo, muito como as rotas comerciais, as guerras, as invasões, a importação de
claro o papel, na evolução biológica, dos acontecimentos devidos ao. valores estrangeiros etc., é tanto menos verossímil que uma teoria
""aso, das mutações e de mudanças que não podem ser explicadas por aceitável da mudança relativa às instituições possa ser estabelecida
simples variações cumulativas. (80) na ausência de uma referência explícita a tais relações, intrusões e
Existem certamente mudanças engendradas do interior da estrutura impactos.
"Social. Se precedentemente denunciamos a confusão demasiado comum
da mudança com a simples atividade, a interação e o movimento. Os acontecimentos, no sentido em que emprego aqui o termo, são~
com tensões e conflitos ordinários, nem por isso negamos que haj1.·· assim, indispensáveis para a compreens~o da mudança social, pela
mudanças sem dúvida alguma internas e provenientes de fontes autô-
nomas. Se, todavia, nos reportamos aos dados da história, tais mu- (81) Podemos referir-nos, entre outras, às críticas decisivas da obra de
danças são pequenas e se eliminam, elas próprias, com o correr do," Toynbee, A Study of History, e mais particularmente às de Pieter Geyl, o
distinto historiador holandês, que são as mais agudas e as mais pertinentes.
Prestaremos igualmente atenção à maneira como Teggart subtrai à metáfora
(79) A. R. Radc1iffe-Brown, A Natural Science of Society, Glencoe, Ill., o problema da decadência e da queda de Roma, para abordá-lo sob o ângulo
The Free Press, 1957, pág. 87. das reais correlações de acontecimentos em que tomaram parte povos muito
(80) Consultar a introdução do grande trabalho de Ernst Mayr, Animal· distanciados das fronteiras do Império Romano (Roma and China: A Study
Species and E'l101ution,- Cambridge, The Belknap Press, Harvard University o-f Correlations in,.Historical Events, Berkeley, University of Califorma PressJ
Press, 1963. 1939).

427

L j
menos quando ela se alça acima do nível das modificações men:Ol'es, maneira pela qual as coisas crescem naturalmente -.:.... progridem, 'd~
assaz correntes, mas que, como já o adiantei, não deixam sinal algum senvolvem-se, evolvem - independentemente da realidade reveta<1a
de acumulação progressiva nas grandes mudanças das instituições. Se, pela simples abservaçãa.
como se sustenta, hoje, tão freqüentemente (e como o afirmam Aris- : ~sto não pode, absolutamen'te, constituir, todavia, o objetivo· ou
tóteles e todos os filósofos do crescimento, que analisaram oS acon .. i:' tarefa das ciências contemporâneas do comportamento. Com cer-
tecimentos), "os acontecimentos únicos", para repetir a expressão teza, e sem particular exagero, pode-se dizer que esforços sem conta
usual, não são redutíveis às necessidades sistemáticas da teoria so- são empregados, haje, através das experiências de labaratória e de
daI, tanto pior para a teoria. O objetivo, afinal, não é clarificar o sua teorização sistemática, para fazer o que um Adam Smith ou
conceito e a teoria, mas, antes, explicar a realidade, tal como, a um Rousseau fizeram, sós e sem exagerado estridor: localizar a fon-
revelam o espírito e os sentidos. E a distinção entre aparência e te e o modelo da mudança no interior do domínio essencialmente
realidade é intelectualmente tãa vazia - e pragmaticamente perigasa nãa histórico da psicalogia ou da dinâmica de grupo.
- quanto o era na época dos pitagoristas. Notei, atrás, que o isolamento explica, freqüentemente, a inércia
Daí a alta carrelaçãa, freqüentemente natada pelas histariadares, cultural e social. A essa observaçãa podemas agara anexar uma .ob-
eJ;1tre os períodos de mudança pronunciada nos costumes e naS insti .. servação suplementar de que o tipo de acontecimento que denoniina-
tuições e o impacto de acontecimentos como as invasões, as migra .. mbs intrusão ou invasão no isolamento representa uma das mais
ções, as novas rotas comerciais abertas, as guerras, as exploraçõ~s, correntes de tadas as fontes de mudança, da mudança visível e signi-
e~ resumo, dessas forças, que estão mais em condiçõe$ de pro .. ficativa,' da mudança nas instituições, nos costumes, nas. crenças, nos
duzir fissuras naquila que Walter Bagehat denaminava a crosta d.os valores e nas ifiéias. (83) De maneira repetida, esse modo de- inva-
costumes. Assim como o isolamento tende a intensificar as forças sãó·~aparece na história e tem múltiplos tipos de manifestações, como
do conservantismo, assim também o contacto dos povos, das i9.éias gr-àus de importância muito variada. Pode ser o conjunto dos pro-
e dos valores tende, na maior parte do tempo, a criar as condições cessos de intrusão, de impacto e de interpenetração que est-eja na
da mudança. (82) ,or'ig-em da maior de todas as eflorescências culturais e sociais do
.Nãaquero dizer que a dacumenta histórica confirme simplesmente Ocidente, 'isto é, b século V antes de Cristo, na Grécia (imagine"
uma teoria da história que tem como eixo o "grande homem", -ou mos que· se pretenda explicar a eventapela simples desenvalvimeutn
uma tearia fundada samente na papel do acidente e do capricha. ctimulativadas instituições da Ática), (84) .ou pode ser, ainda, a fato
Estau lange de pensar assim. Sugira que, quanda precisamos descer, tão simples cama a invasãa de um gueta .ou de uma cultura de po-
em nossa análise dos todos abstratos, tais como a humanidade e a breza par um administradar federal .ou par militantes das direitos
civilização, no interior das quais, ,por definição, toda, mudança deVa CÍvicos.
te;r sua fonte, até às condutas sociais dos seres humanos considera- Os teoricistas da pragresso natural dos séculas XVII e XVIII
ci;os na tempo 'e no espaço, a mudança significativa provém, quanto viam nas guerras o principal inimigo desse progresso natural do
ao essencial, de, fatores que não dependem do desenvolvimento, isto canhecimenta, que eles adaravam. Mas a grande David Hume e, na
éj; de fatores inseparáveis dos acontecimentos exteriores, e das França, Turgot tinham da problema uma visãa muita diferente: sem
intrusões. de maneira alguma aprovar a guerra, consideravam, entretanto, que
,Recordemos ainda uma vez que nenhum dos grandes defensore, oS gê'neros de contacto - social, cultural, psicológico - que as guer-
da visão evolucionista da sociedade jamais negou a existência de ras' geralmente implicam, contavam entre os processos indispensáveis
acontecimentos exteriores, de impactos acidentais. O que eles afir- da história, a fim de ramper a inércia, a fim de libertar os povas
mavam é que, se tais acontecimentos existiam manifestamente, a ta- das cadeias da costume e da dagma, a fim de favarecer-Ihes a inter-
refa da filasafia (e, pór sua vez, da ciência) era deduzir a verda- penetração, coisas que esses dois filósofos viam, claramente (a outros
d~ira natureza, das coisas, palavra, essa, que, como vimos, os fil9?O"' resoeitos, eles' 'eram homens de seu tempo), constituírem as condi~
~.9s sociais int~rpretavam num sentido muito particular, a sabei;,'" a
(83) Teggart, The Processes of History, capo 3.
(84) Gustave Glotz, La cité grecque, Paris, A. Michel, 1928, e, também,
:,.\(82) . Consultar' Frederick J. Teggart, The ProceSNS of .Histor'),'~ .-New John Linton Myres, The Political Ideas o} the Greeks, Nova York, Methodi~t
l:"Ia-ven, Yale University Press; 1918, notadamente: os capÍtul.)s 2 e 3,. para um~ B'oók Concern, 1927. Esses dois livros esclarecem muito bem os proce-ssos de
focalização ao mesmo tempo inovadora e sistemática do fato. mudança cultural que, então, agiam.

428 429

29-T.S.
'1

ções necessárias ao progresso real do conhecimento e à ultrapassa 4


Continuidade e descontinuidade
gem da rotina e da tradição. (85)
É de toda evidência que as guerras não são hoje - e não O eram Que a mudança é contínua, no sentido genético do crescimento,
mais no passado - essenciais a semelhante progresso. Há e sempre isso constitui, manifestamente, um dos mais sagrados princípios do
houve outros meios de contado, de fusão e de interpenetração cul- pensamento social ocidental. Sem a hipótese crucial da continuidade
turais. O essencial para a compreensão da mudança não é um só da mudança, todas as leis, todos os princípios, todos os ciclos e tra-
tipo de acontecimento. É o acontecimento em si: a intrusão, o im- jetórias ficariam sem valor, se acreditarmos nos filósofos do cres-
pacto, a extensão progressiva sobre um dado modo de conduta so- cimento social, de Aristóteles e Marx aos últimos funciona listas ou
cial, de uma força que não pode, por sua natureza, ser subtraída dessa neo-evolucionistas de hoje. Ou bem a mudança é cumulativa, com
forma de conduta. a transformação de pequenas mudanças em mudanças mais impor-
A mudança, desde que seja de grande importância, é mais inter· tantes, com a passagem do latente ao real e ao manifesto, ou, então,
mitente do que contínua, implica mutações, às vezes explosivas, maiq uma ciência real da mudança é impossível. Era essa a posição dos
do que a simples acumulação de variações internas. Nenhum orde- evolucionistas sociais. Mesmo para Marx, filósofo da revolução, a
nador poderia contar e classificar o número de tensões próprias dos natureza, isto é, a natureza social não dava saltos. E, como o ob-
papéis e dos estatutos, assim como os conflitos de gerações na fa- servamos, a adesão de Danvin - que não pareceu justificada aos
mília monogâmica ocidental. Essas mudanças, entretanto, os tipos de seus discípulos, inclusive ao próprio Huxley - ao princípio leibnitzia-
mudanças visíveis e explícitas que a história das estruturas da famí- no de continuidade bastou para conferir-lhe o sacrossanto status de
lia ocidental revela, foram relativamente pouco numerosas e se acham, que hoje ele goza no mundo das ciências sociais. Não obstante,
sem exceção, ligadas, s'empre, a acontecimentos - políticos, econô- quando consideramos a história real de qualquer região ou, ainda, a
micos, religiosos etc. - que emanam de domínios exteriores à pa- história real de qualquer forma de conduta social institucionalizada e
rentela. (86) durável, não encontramos mais continuidade da mudança do que a3
O que é verdadeiramente no que tange à família é, pela própria anunciadas propriedades de imanência e de direcionalidade. E isto,
natureza do as~unto, infinitamente mais verdadeiro quanto às rela- precisamente, pela meSma razão!
ções entre castas na índia ou, ainda, ao modelo tradicional de rela- . Contentar-nos-emos, aqui, com a sucinta reformulação da propo'-
cionamento entre os negros e os brancos no Deep South dos Estados sição, já por diversas vezes enunciada. Os dados históricos não de-
Unidos. Não tiro nada dos conflitos internos engendrados por um monstram que as macromudanças no tempo sejam resultados cumula-
ou por outro dos sistemas. Estipularei mesmo que tais conflitos são tivos de micromudanças lineares de peqURna escala. Há quem olhe
endêmicos. Com exceção dos funcionalistas, ninguém procuraria, con- uma tal afirmação, uma tal negação da continuidade histórica COf'::lG
tudo, salvo por motivos metafóricos, saber se essas relações institu- abdicação virtual da razão, porque, pretende-se, toda rejeição da con-
cionalizadas no decurso do século passado conheceram uma mudança tinuidade da história é uma rejeição necessária da causalidade real ~
no quadro de um processo intemporal e uniforme. da utilidade da própria história. Mas a causalidade, no sentido (':1.11
que este termo é hoje utilizado nos discursos científicos e tal COt:l0
foi conhecida desde, pelo menos, os trabalhos de Hnme, não tem
(85) Consultar as Recherches sur les cause,so du progres e df4- dédin des nada que ver com a continuidade da história, nem tampouco com a
Jciences et des arts, de Turgot, assim como o seu Plan pour un ouvrage de
géograPhic politique. Consultar, igualmente, o ensaio de Hume, Rise anâ sua descontinuidade. A causalidade como princípio nada. mais indica
Progress oi the Arts and Sciences e os comentários feitos por Tegg3rt com do que isto: para todo efeito há urpa causa. Ela não implica que
referência a esses dois escritores em Theory oi History, capo 15. as causas e os efeitos estejam alinhados no tempo, ao modo 105
(86) Comparar o tipo de saber convencional relativo às mudanças da paren~ "begats" do Velho Testamento.
tela que a corrente dos evolucionistas sociais propõe - Morgan, Engels,
Spencer, até aos mais recentes estudos funcionalistas da parentela - com o Uma das razões porque o sentimento da continuidade da história é
verdadeiro conhecimento subministrado por um estudo hist6rico como o de tão difundido (sem contar o domínio puramente histórico da metá-
George E. Howard, A History oi Matrimonial Institutions, Chicago, Uníver- fora sobre os nossos espíritos) é a facilidade com que a continui-
sity of Chicago Press, 1904. Consultar igualmente meu artigo "Kinship and
Political Power in First Century Rome", in Sociology and History, ed. de dade se confunde com a simples persistência. Que as coisas conti-
,Werner J. Cahman e Alvin Boskoff, Glencoe, Ill., The Free Press, ·-1964, nuam no tempo, persistem e permanecem estáveis não poderia ser
págs. 257-271 . contestado. Dada uma persistência assim, as mudanças, por mais

.430 431
,
j
distantes que sejam, por mais fortuitas, descontínuas e separadas . Mas, em conformidade com a conclusão de Kracauer, Hnão temos
que possam ser em si mesmas, mostram-se, contudo, providas da base para fazer da história um processo, num tempo cronológico
aparência de uma continuidade pela própria identidade que persistl~, homogêneo. Em verdad~, cifra-se a história em acontecimentos cuja
quer se trate do sistema de parentela, da classe social, da religião ou cronologia não nos informa senão parcamente sobre suas relações' e
de qualquer outro. Mas, como uma breve reflexão no-lo faz saber, significações. Uma vez que os acontecimentos simultâneos são, na
não há aqui continuidade de mudança, mas somente continuidade maioria dos casos, intrinsecamente assincrônicos, não é verdadeira~
no sentido de uma persistência, pontuada, todavia, pelas mudanças !11ente legítimo conceber o processo histórico como uma corrente ho-
que se produzem de quando em quando. Há, também, muito clara· mogênea. A ~gem dessa corrente não faz senão velar os tempos
mente, uma continuidade lógica ou classificadora. Mas o fato de divergentes, em virtude dos quais .soe materializam (88) substanciais
que o fenômeno possa ser ordenado sem falhas dentro de um? con- seqüências de acontecintentos históricos".
tinuidade lógica. em alguma hierarquia sistemática, não demonstra, Quando se reflete a respeito, a noção de continuidade é divertida,
por si mesmo, a continuidade da mudança. Era este o erro mais se aplicada à história de qualquer país. Porque a própria história -
fundamental de toda a maneira de raciocínio sobre a mudança, ma- refiro-me, agora, aos documentos históricos - tende irresistive!men-
neira associada ao método comparativo. A continuidade da mudança te' a encher-se de acontecimentos e de mudanças que foram esse1lcial-
era deduzida da continuidade lógica dos exemplos em uma série clas- mente registrados por causa de sua própria falta de "continuidade",
sificadora. Mesmo o temível adversário do evolucionismo, que foi de sua ruptura com a rotina e COm a persistência.
° falecido Robert Lowie, não se pôde abster de abrir uma exceção 'A máxima número um dos evolucionistas sociais e, igualmente, c:1l'lS
para o princípio de continuidade e de "defendê-lo", como afirmou. biologistas que subscreviam o evolucionismo de Darwin era o princí-
C9nstruiu ele sua argumentação precisamente em relação ao orde- pio de Leibniz: a natureza jamais dá saltos. Hoje se demonstrou,
namento de materiais etnográficos, o qual é a substância real (lo assIm em biologia como em outros ramos das ciências físicas, que
,método comparativo evolucionista. Da meSma maneira, procura o a natureza dá, na realidade, saltos. As descrições de descontinuida-
pro!. Parsons demonstrar, hoje, a continuidade da mudança pelo des e de acontecimentos fortuitos, são, importa reconhecê-lo, mais
que ele chama "preencher os vazios" da continuidade no sistema de freqüentes na ciência genética' contemporânea do que nas ciências
classificação, que é o método comparativo. (87) sociais contemporâneas, em que o princípio de continuidade desfruta
Mas, nem a continuidade no sentido da persistência.. nem a con- um tal grau de prestígio que seria preciso remontar até Darwin para
tinuidade de séries de classificação representam a continuidark ela achar de novo o equivalente em biologia.
mudança. Grande parte da argumentação em favor da hipótese dessa A objeção real não visa tanto à continuidade no sentido de dma
continuidade apóia-se na utilização de sistemas construídos, tai:-< ("Orna série linear com vazios preenchidos pelas culturas, e pelos traços cul ..
os universais da evolução. Uma vez admitida a realidade existencial türais, cada vez que um vazio parece existir. A verdadeira objeção
de qualquer "universal da evolução", é um jogo de criança arranjar incide sobre a continuidade genética: sobre a concepção fixada no
os dados em uma classificação tão contínua quão simétrica. âmago da sabedoria convencional das ciências sociais e segundo a
Às bases atrás mencionadas do princípio de continuidade acrescen- qual uma mudança engendra necessariamente uma outra, um "está-
tarei mais uma: a continuidade do tempo. Assim como o distinto his- dio" de mudança no desenvolvimento produz o próximo estádio, exa~
toriador da cultura Siegfried Kracauer o observou, H o tempo cronoló- tamente como o faz no organismo uma etapa do crescimento.
gico é um meio homogêneo, que compreende, indistintamente, todos Não se encontra a mínima confirmação empírica de semelhante
os acontecimentos imagináveis". E acrescentamos: todas as mudan- concepção, quando se concentra a atenção sobre um domír:.io I~on­
ças, todas as dfierenças, todas as similaridades imagináveis. Snb toa ereto e sobre um período de temoo determinado. Há certamente mu-
fórmula mágica da homogeneidade e da irreversível direção do tem- danças num período de tempo, e elas podem, com certeza, ser dispos-
po cronológico", prosseguia Kracauer, "propendemos a centralizar- tas de maneira linear. Mas a passagem dessa proposição para a se-
nos sobre aquilo que acreditamos serem seqüências mais ou me- guinte, postulando uma continuidade genética) foi vencida mais fre-
nos contínuas de acontecimentos e a seguir-lhes o curso através dos qüentemente na obscuridade que à luz jorrante trazida pelos estudos
séculos". empíricos. O fato de que todas as mudanças têm condições, contex..
(87) Talcott Parsons, Societies: Evolutionary and Comparative Perspec- (88) Sigfried Kracauer, "Time and History", in History and the ConcePI
tives~ pág. 42, n. 33. of Time~ Wesleyan University Press, 1966, págs. 66, 68.

. 4$2 433
tos e fontes não se acha, seguramente, em causa. Tampouco se acha mar inetais sem valor em ouro. Entre o estudo da mudança - dis-
em causa o fato de que o estudo de tais condições, contextos e fontes tinta dos simples movimentos, das ações e interações que -tão fre-
seja objeto próprio das ciências sociais. O que está em causa é ~irn­ qüentemente são confundidos com a mudança - e o da história,
plesmente a hipótese, aventada primeiro pelos gregos, sob a influên- é de toda evidência que existe uma relação inalterável, quando nQS
cia da doutrina da physis, de que a tarefa do especialista da mudan- desprendemos dos empíreos constituídos pelas abstrações, pelos todos
çaé a de descobrir-lhe os laços genéticos. Mas não existe nenhum, e ,'pelos universais. Na verdade, a história significa acontecimentos,
salvo em nossas imaginações retrospectivas. A relação entre o acon- como a Conquista, datas como 1066, indivíduos como William e lu-
tecimento e a mudança torna aO contrário, evidente o fato da des- gares como a Inglaterra. E estes não são suscetíveis de se deixarem
'Continuidade na mudança. assimilar às categorias de uma teoria social que procure fazer de-
Ao revés do que adianta a sabedoria convencional na teoria so- rivar a mudança das estruturas sociais e de seus processos unifor·
cial moderna, não encontraremos a explicação da mudança nesses mes. A linguagem da história não deve certamente ser traduzida na
estudos que fazem abstração da história, quer se trate dos estudos dOI desenvolvimentismo, com seus conceitos. e premissas seculares de
de pequenos grupos, nos laboratórios sociais; quer de dinâmica de imanência, de continuidade, de direcionalidade e de uniformita-
grupo em geral, quer de experiências sobrepostas a respeito da inte- rislljo. (90)
iàção social ou das análises matemáticas de pretensos sistemas so- A generalização é, sem dúvida alguma, aquilo que procuramos a ,
ciais. Não encontraremos tampouco as fontes da mudança nas novas par,tir do empírico e do, concreto. Mas é a generalização a partir do
apresentações do método comparativo com suas escadas ascep,dentes empírico, do concreto e do histórico. Não a generalização obtida pela
de similaridades e de diferenças culturais colhidas em todos os luga- rejeição dos mesmos. Não a generalização tirada da metáfora e da
res e em todos os tempos. Porque, como o vimos, o método ccrn- analogra. Quaisquer que sejam as exigências de uma teoria social, im-
parativo não comporta senão escassa comparação real e nenhuma mu- põe;-se levar em conta, antes ,de tudo, a realidade .social" que soment~
dança. ;E não aprofundaremos tampouco a análise particular da mu- encontramos' através da história. Tudo o mais é certamente secundár-io
dança social, com auxílio de uma utilização falaciosa de conceitos (Excerto de Social Change omd History, Oxford, Oxford University
tirados da biologia contemporânea - como a diferenciação, a adap- I'ress, 1969, págs. 267-270,275,282, 287-291, 302, 304).
tação e a seleção - porque, qualquer que possa ser a sua utilidade
na explicação, em biologia, eles nada têm que oferecer nas ciências
sociais senão um modo de descrição.
Acima de tudo, não encontraremos as fontes de mudança na so- CLIO E MINERVA
ciedade, querendo simplesmente deduzi-Ia de uma propriedade ine-
rente às estruturas sociais. A mudança não pode mais ser deduzida CHARLES TILLY
da estrutura social e de seus processos do que estes últimos do, ele-
mentos da psicologia humana. Posto que a busca de uma teoria uni-
ficada da mudança tenha tido prosseguimento durante dois mil e qui- QU,ando, há dez ou vinte anos, os sociólogos se desembaraçaram
nhentos anos no· pensamento ocidental - busca que o prof. Par5011S de um imobilismo dormente, suas tentativas no sentido de relatar as
descreveu sucintamente como a pesquisa de uma teoria ((igualmente
aplicável aos problemas da mudança e aos processos no interior de um sando pela importante fusão das tradições grega e hebraica, na obra de Santo
Agostinho, até Leibniz, Condorcet. Comte, Spencer e Marx e, enfim, até o
sistema estabilizado" (89) - revela-se à experiência tão vã quanto a saber convencional na teoria social da atualidade, em particular em sua versão
busca de uma juventude eterna ou ainda a que permitiria transfor- funcionaJista. .. tal tem sido o oQj etivo dominante do estudo. das sociedades
humanas, a saber: descobrir em um só e único conjunto de propriedades os
(89) Talcott Parsons, The Social System, Glencoe, Ill., The Free Press, atributos cruciais da estabilidade e da mudança reunidos.
1951. E, já que The Social System foi publicado há uns vinte anos, vale a (90) O que não quer dizer, certamente, que a linguagem da história seja
pena citar a formulação mais recente, proposta por Parsons, da mesma con- incompatível com a da ciência, a saber, com um e~tudo científico e comparativo
cepção, em Societies. pág. 21: "Do ponto de vista teórico mais geral, não há da mudança social, de suas fontes. de seus mecanismos, de seus modelus e de
diferença entre os processos que contribuem para a manutenção da 90ciedade seus impactos. Esta ciência da mudança social não apelará, entretanto, para
e os que contribuem para a sua mudança". Desde o amplo conceito grego de não ,dizer absolutamente, aos conceitos metafóricos do desenvolvimentismo
t"hysis, tirado pelos pré-socráticos do mito e da metáfora e racionalindo por social e aos termos inadequados e de segunda mão, tomados de empréstimo,
Platão e Aristóteles, para lançarem as bases da ciência das sociedades, pas- -vergonhosamente, à biologia.

434 435
'I
profundas mudanças na estrutura das sociedades oS levaram muit.o Revolution, de Smelser e em Dynamics of M odernization, de
naturalmente para o lado das idéias evolucionistas, isto é, de tendênc Bhck. (93) Não obstante, o verdadeiro confronto entre as atuais
das unilinear e irreversível. Até mesmo OS modelos aparentemente teorias evolucionistas e os trabalhos dos historiadores não submeteu I

operatórios elaborados pelos economistas punham em relevo "o ç.res- ta~to à verificação as hipóteses estabelecidas quanto permitiu identi-
cimento" e "o desenvolvimento". Sobretudo, a maioria dos .soció.,. ficar regularidades e demonstrar a aplicabilidade dos conceitos evolu-
i
logos havia já adotado uma teoria social que estava antes na tra. cionistas e casos interessantes.
dição de Durkheim e de Tonnies do que na, digamos, de Spengler, O estudo de Smelser, por exemplo, referente à indústria téxtil br i-
de Marx: ou de Aristóteles. Suas idéias sobre a mudança social, se tânica, é bem esclarecedor e, a muitos respeitos, convincente. Suas
avizinhavam das expressas em Gemeinschaft und Gesellschaft ou em hipóteses de base deverão, todavia, ser ainda mais definidas antes
De la division du travail social. de póderem submeter-se a uma verificação comparativa. Com efeito,
Que é que caracteriza essas idéias sobre a mudança social? Antes a fim de verificar se a pressão exercida sobre a estrutura familiar
de tudo, o fato de estudarem a crescente divisão do trabalho, a di- dos' operários da indústria tinha, em geral, tendência para provocar
ferenciação social como processos primários de mudança. Correlo:!ti.:. sintomas de desordem derivados dos simbolos da vida famiEar. o,
vamente, o fato de fazerem sobressair a ampliação da escala de ·u'rna. coma finalidade de ver se a pressão sobre a organização do próprio
organização social. Em terceiro lugar, a análise das mudanças q\m- trabalho provocava diferentes espécies de sintomas, seria preciso rea-
litativas das relações interpessoais, em <:onseqüência da diferencia':' lizar um importante estudo comparativo e sistemático. Uma vez lan-
ção social e da ampliação da escala de uma sociedade. Em quarto çada.a luva, ela será seguramente apanhada, ao mesmo tempo. I>,)f
lugar, a utilização da noção de "sociedade" (freqüentemente con·· histor~adores que procuram compreender a industrialização e por so-
fundida, para fins práticos, COm o Estado-nação) como principal ciólogos que estudam a modernização e o seu passado.
unidade de análise. Em quinto lugar, a asserção de que um cOmo As teorias sociológicas triunfarão a certos respeitos e fracassarão
consenso ass'egura a coesão da sociedade pelo processo de mudança; relativamente a outros. Existe uma questão à qual o contacto corri
mesmo que cada nova fase de mudança ponha à prova o consensó, a história poderá aproveitar -muitíssimo. Trata-se de obrigar os so.,.
às vezes ao preço de uma perturbação da sociedade. Em sexto lugar. ciólogos a levarem em consideração tanto a devolução (ou evolução
um ponto de vista mais ou menos linear sobre a evolução social, regressiva) quanto a evolução. Os trabalhos dos historiadores abun-
fundado, de uma ou de outra maneira, sobre dicotomias, tais ·::01110: dam em processos Hdevolucionistas". Não se dá o mesmo com ~
complexo/simples, desenvolvido/subdesenvolvido, moderno!tradicio- teoria sociológica. Certamente, os sessenta séculos passados virarrí
nal. Por fim, o postulado segundo o qual os processos de diferen- as· soriedades humanas evolver para uma diferenciação social mals
ciação social e de ampliação da escala de uma sociedade são irre- complexa, para uma escala mais ampla, para uma criatividade mais
versíveis, salvo no caso de uma perturbação geral. Os recentes tra.- rica e para uma liberação dos recursos. Mas, desde a queda da Ba-
balhos de Eisenstadt e de Parsons são os melhores exemplos do bilônia até ao desmoronamento do governo do Congo, passando pela
arranjo dessas idéias neo-evolucionistas, que impregnam, porém, tOtla idade rias trevas, o mundo testemunhou inumeráveis turbilhões. Como
a sociologia contemporânea. (91) Em semelhante contexto, mesmo 11m esc~eve S. D. Clark:
extraviado tão prudente como Mendix, (92) que ousa apoiar-se em
idéias de Max Weber, faz figura de original. "Entre as mudanças no seio da sociedade, pode-se discernir a evolução para
Ora, tais esquemas evolucionistas já apelaram para a história. uma diferenciação de estrutura mais importante. Mas mudanças realizadas no
Encontram-se essas aproximações neo-evolucionistas aplicadas aos da- sentido oposto também podem ser descritas. O fato de que o modelo usado
exclui a consideração das mudanças do segundo tipo não é resposta adequada
dos da história em Folitica! Systems of Empires, de Eisenstadt, em à ci-itica de que o modelo propõe uina imagem deformada de uma sociedade que
Tokugawa Religion, de Bellah, em SocÜJI Change in the Industrial evolve. As tendências para uma diferenciação mais complexa de estrutura (e

(91) Ver S. N. Eisenstadt, Modernizarion: Protest and Change (Engle-


wood Cliffs, Prentice-Hall, 1966); e Talcott Parsons, Sociétés (Paris, Dunod, (93) S. N. Eisenstadt, The Political Systems of Empires (Glencoe, Free
1973). Press, 1963); Robert Bellah, Tokugm.ua Religion (Glencoe, Free Press, 1957);
Neil J. Smelser, Social Change in the Industrial Revolution (Chicago, Univer~
(92) Reinhard Bendix, Nation-Building and Citizenship (Nova York, sity of Chicago Press); e C. E. Black, The Dynamics of Modernbation (Nova
Wiley, 1964).
York, Harper, 1966).

436 437

j
-integração social) estão estreitamente ligadas às que se fazem no sentido oposto, Eisenstadt relegou ao fU\ldo do seu Polltical Systems of Empires
·e toda teoria da mudança deve poder explicar, ao mesmo tempo, os dois tipos
'de tendências." (94)
o esboço de um muito interessante esquema devolucionista. Todavia,
sua afirmação sumária a propósito desta questão faz que as mudan-
ças ,devolucionistas antes se pareçam com as quedas de um alpinist~.
Quais são esses processos complementares que os sociólogos, estu- do que, digamos, com os ziguezagues de um esquiador.
dando a história, descobrirão? Não tendo tais processos encontrado
ainda o seu teorizador, nenhum conceito entre os da sociologia con· .. A história dos modernos sistemas SOC1alS abunda em exemplos de inadap-
temporânea os designa com precisão. Na falta de meios razoáveis tação, ou de uma inadequada adaptação das estruturas existentes a novos tipos
para submeter à verificação a sobrevivência de uma sociedade e, de problemas ou de organizações, assim como em exemplos da incapacidade de
mesmo, de um método seguro para julgar-lhe a adaptabilidade, é a tais' instituições para assimilar, em certa medida, os diversos movimentos de
atraente noção parsoniana da "devolução" (ou evolução regressiva), protesto inerentes ao processo de modernização.
como redução da capacidade de adaptação de uma sociedade, dificil- .Se:melhante bloqueio se manifesta, no mais das vezes, por certos tipos de
'erupções' políticas, isto é, de acessos mais ou menos violentos de atividades
mente aplicável. Entretanto, a análise, a que procedeu Parsons,das políticas e pelo desenvolvimento de símbolos dirigidos contra o sistema existente
mudanças na capacidade de adaptação permite identificar diversos c os 'seus símbolos. O grau de intensidade de tais erupções' assim COIllO suas
elementos constitutivos dos processos evolucionistas: a diferenciaçã'J repercussões sobre a estabilidade dos regimes no seio dos quais elas acontecem,
social) maior capacidade de adaptação, a integração, a generalização e variam muito de lugar para lugar. Mas a eventualidade das mesmas e.·upções,
da incapacidade para assimilar a mudança é tão inerente aos processos da moder-
a especificação. (95) Não é fácil compreender e definir critérios de nizaçãO' e à estrutura da sociedade moderna como as tendências para a mudança
análise das noções, tais comO Ha maior capacidade de adaptação" e "a cón'tínua o são.
especificação". Mas os três outros processos têm contrários, que se Essas·erupções podem levar, quer à transformação do regime existente num
ativam de quando em quando: a desdiferepciação social, a de:iinte- regime mais flexível e mais apto a resolver problemas que evoluem continua-
gração e a particularização. Chamamos desdiferenciação à fusão 011 mente,. quer a perturbações devidas à modernização, quer ao desenvolvimento
de regimes regressivos ou deformados, caracterizados pela autocracia, como os
a'O desaparecimento de unidades sociais anteriormente distintas, quan- regimes fascistas, quer, ainda a tentativas efetivas de deformar a modernidade
to à estrutura e quanto à função. A desintegração designa a dimi- e a 'Sociedade civilizada, quer, finalmente, a urna verdadeira desmodernização
nuição, de forma concomitante, do grau de coordenação e do de (ou evolução arcaizante) (96).
'complexidade dessa coordenação, no seio de um conjunto de unida-
des sociais. E a particularização significa o reforço dos laços entre A teoria emitida nessa passagem está particularmente fundada
recursos e unidades sociais específicas. A desdiferenciação social, a numa tautologia. Não obstante, mostra que a teoria neo-evolucionista,
desintegração e a particularização constituem processos devolucio- agora aplicada pelos sociólogos aos dados da história, é capaz de
nistas. explicar os processos devolucionistas, enquanto estes constituírem mu-
Não que os teorizadores evolucionistas tenham desconhecido com- danças !la orientação do desenvolvimento de toda uma sociedade. Além
pletamente a devolução. As teorias correntes admitem certos casos do mais, estudando tais reviravoltas, as recentes formulações têm nu·
consideráveis de devolução: as perturbações, as decadências e as to- merosas vantagens sobre as clássicas análises da devolução em termos
tais transformações das sociedades. As distinções feitas por Eisenstadt de Decadência e de Queda.
entre as mudanças Hacomodáveis", Htotais" e "marginais", e sua ob- A versão da teoria evolucionista, que faz sobressair a progressiva
servação a respeito do fato de que elas às vezes se ativam simulta- inclusão de círculos cada vez mais extensos da sociedade nas ativi-
neamente dão margem a uma considerável variedade de processos de- dades da rede central (ver os trabalhos de Eisenstadt, Marshall, Ler~
volucionistas. Sua análise das organizações políticas, históricas e bu- ner, Shils e Kerr, (97) contém. em si, também, algumas implicações
rocráticas faz ressair a coexistência, a interdependência e o frágil para os processos devolucionistas. É uma inclusão, essa, que significa,
equilíbrio entre os recursos "tradicionais" e os recursos Hlivremente quase sempre, a atrofia das unidades mais modestas, de que os atores
disponíveis" (free floating). Com efeito, indica ele que o próprio teriam, não há muito, participado. O desenvolvimento do Estado-na-
processo criador dos recursos "livremente disponíveis" acarretou tam-
bém sua imobilização ou sua diminuição. (96') Eisenstadt, M odernization, pág. 40.
(97) T. H. Marshall, CitizenshiP anti Social CIMs, anti Oth" Essays
(94) Clark," History and the Sociological Method ", pág. 33. (Cambridge, Cambridge University Press, 1950); Daniel Lerner, "Compara-
(95) Parsons, Sociétés, págs. 28-31. tive Analysis of Processes of Modernization ", in Horace Miner (ed.)," The

438 439
ção na Europa Ocidental enfraqueceu a vida coletiva das cidades;' do "não é nada desenvolvido e será, portanto, seriamente contestado, dian-
mesmo modo que lhes destruiu a autonomia e engrandeceu o papel te das provas dos dados da história.
de cidadão. Do ponto de vista exclusivo de uma cidade, o processo "Verossimilmente. a lição que nos cumpre tirar de tais reflexões é
era devolucionista. O mesmo tipo de transformação afetava as pro- análoga a uma lição dada por Ravenstein aos que, depois dele, estu-
víncias, os principados e as paróquias. O esquema era bem o de uma daram o fenômeno da migração: observou ele que, a despeito da ilu-
evolução em maior escala, acompanhada de uma devolução em escala são de um movimento linear. indo do campo para a cidade, quase toda
mais reduzida. córrente de migração provoca uma importante contracorrente. (98)
Se esse foi o caso, quer provavelmente dizer que os papéis mais Donde o cuidado tomado pelos que analisam a migração no sentido
sigaificativos em escala reduzida perdem algo de sua importância de distinguir entre os movimentos líquidos e os movimentos brutos.
em escala maior, começando as pessoas, que se haviam investido' de Talv"ez devamos considerar o movimento líquido para uma diferen-
semelhantes funções, a perder suas identidades sociais. Pode-se pen- renciação social mais complexa, ou para liberação dos recursos, como
sar no sacerdote de um culto regional, no chefe de um clã, no coIÍl~i­ sendo os produtos de mudanças muito importantes, indo em deter-
ciante de coalhada, no castelão, no tecelão de aldeia. Seus papéis J;lão mirtada direção, movimento contrariado, em certa medida, por. sig..
se subdividiram simplesmente, desaparecem. Trata-se de uma forl)la riifitativos processos de desdiferenciação social ou de imobilização dos
oculta da desdiferenciação social. A história contemporânea da Euro- retursos. Neste sentido, evidentemente, as distinções entre as regres. .
pa' Ocidental apresenta numerosas provas de que essas pessoas (de sôes, as perturbações e as contracorrentes de um processo evolucio-
preferência às massas, arrancadas aos seus antigos meios de vida pel.a nista se tornariam menos importantes. Essas noções apareceriam com0
urbanização e pela industrialização) têm uma propensão extraordiná- casos especiais de um mesmo fenômeno geral.
ria para sustentar retrógrados movimentos de protesto. Queixam-se lt evidente vantagem de um confronto entre as reíeridas questões
elas das contracorrentes devolucionistas, que acompanham uma' cor- aBstratas e os dados da história é que estes nas permitirão observar
rente evolucionista mais importante. pt6cessos devolucionistas desdobrando-se em importantes porções de
Convém insistir a respeito de uma distinção. É corretamente- "qlla .. tempo e de espaço e de maneira concreta, em toda a expressão de
lificado de devolucionista todo fenômeno de regressão (ou, sob sua sua variedade. rPorque se encontra grande variedade de casos bem
forma específica, de estagnação) que afete a evolução do conjunto ptecisos que ilustram a evolução e a devolução simultâneas e interde-
de uma sociedade: uma perturbação, uma decadência, uma capacidade pendentes. Um bom exemplo do deperecimento e da desdiferenciação
da adaptação inferior por parte do conjunto da sociedade. As teorias "da"s comunidades do interior nos é fornecido por Eric Wo1f, que lhea
da grandeza e da decadência das sociedades podem prevalecer-se de mostrou o movimento cíclico manifestando-se à medida que as cidades
uma longa e rica tradição. Algamas contribuições úteis a essa t,a- "ess"enciais do México aS,sumiam o controle do território sub-
dição foram recentemente feitas por sociólogos. Entretanto, outrà jugado. (99)
forma da devolução é a redução da capacidade de adaptação de algam Convém insistir a respeito de dois traços desse complicado conjun-
elemento de uma sociedade, redução que quase sempre se produz, to de mudanças. Em primeiro lugar, a diferenciação social no seio
quer no próprio instante em que outros elementos, até mesmo a da comunidade indiana constituía, manifestamente, um processo re~
sociedade no seu conjunto, adquirem melhor capacidade de adaptação, versível. A primeira fase após a conquista engendrou comunidades de
quer em seguida a essa mutação. Não é evidente que as teorias dis- maior homogeneidade e de maior coesão do que as precedentes, ho-
poníveis nos propõem índices seguros da interação e do apareci:... :mogeneidade e coesão que exerc.iam Um controle mais "extensivo sobre
mento simultâneos da evolução e da devolução, no seio de uma mes-
ma sociedade. O mais que podemos dizer é que esse aspecto da teoria (98) E. G. Favenstein, "The Laws of Migration ", Journal of the Royal
Statist;cal Saciety, 48 (junho de 1885), págs. 167-235.
City in Modem A/rica (Nova York, Praeger, 1967), págs. 21-38, e The- (99) "Aspects of Group Relations in a Complex Society: Mexico ", Ame..
Passing of Traditional Society (Glencoe, Free Press, 1958); E. A. Shils, "On rica» Anthropologist, vol. 58 (dezembro, 1956), págs. 1.073-1.074. Ver também
the Comparative Study of the New States, in Clifford Geertz (ed.)," Old "Types of Latin-American Peasantry: A Pre1iminary Discussion". Ameri·
Societies and Neu. States (Nova York, Free Press, 1963); Clark Kerr, ca. Anthropolog;st, vaI. 57 (junho de 1955), págs. 452-471; e "Oosed Cor-
"Changing Social Structures", in Wilbert E. Moore e Arnold S. Feldman porate Peasant Communities in Meso-America and Central Java", South-
{eds.). Labor Commitment and Social Change in Developing Areas (Novà western Journal oi Anthropology. vaI. 13 (primavera de 1957). págs. 1-18.
York, Social Science Research Council, 1960), págs. 348-359. Todos esses artigos são de Eric Wolf.

440 441
seus membros. Em segundo lugar, uma transformação naturalmenD:! alternativas a mudanças nas condições do mercado- externo. Isto significa que
umodernizadora" - o desenvolvimento de uma autoridade política um estudo sincrônico de tal comunidade é insuficiente, porque não pode revelar
como se acha ela em condições de adaptar-se a mudanças aparentemente tão
nacional, assim como o engajamento do interior do país, em um profundas". (102)
mercado internacional - promoveu o advento de uma forma prova·
velmente "tradicional" de comunidade. Neste exemplo, as mudanças devolucionistas e evolucionistas eram
Na realidade, o desenvolvimento de uma autoridade política central realmente interdependentes.
fortaleceu, no mais das vezes, as comunidades rurais que se achavam I?oder-se-ia dizer o mesmo a propósito de um segundo processo
sob a sua autoridade. Como o afirma o apotegma de Plácido· Ram- devolucionista, qualificado por Clifford Geertz como involução agrí-
baud, "o Estado, para realizar-se, cria a comuna". (100) Rambaud faz cola: trata-se da intensificação da agricultura e do aumento da den-
observar que a sede do dinheiro característica do novo Estado pie- sidade da população na Indonésia, que diminuíram a flexibilidade do
montês do século XVI conduziu simultaneamente os fazendeiros dos sistema e agravaram a sorte de todos aqueles a quem diziam respei-
altos Alpes para o mercado e reforçou a responsabilidade coletiva, to. (103) Outros autores consideram que o "dualismo" da economia
assim como o controle da comuna sobre os seus membros. Receben· indonésia - sua nítida divisão entre empresas de grande enverga-
do impostos sobre bens de raiz em moeda (mais do que em espécie) dura e de forte concentração de capital e pequenos estabeleci!"ento3
baseada no valor corrente e na capacidade de produção - o que primitivos baseados em intenso trabalho humano, característicos da
tomou as obrigações externas de um lar proporcionais a uma ava- agricultura de subsistência - provém de uma penetração muito in-
liação impessoal de sua propriedade rural - o Estado reforçou o. càmplela de modernos modos de organização no seio de uma so-
liames entre a família e suas terras. (101) Num semido, a terra parti- ciedade tradicional, que resiste à mudança. Geertz mostrou até que
cipava do Estado e os proprietários rurais participavam da terr~, na ponto o aumento de plantações pertencentes a estrangeiros engendrou
medida em que se achavam a ela ligados (semelhante arranjo deveria, fracas comunidades camponesas, por meio do comércio feito em torno
ulteriormente, ser a causa das enormes dificuldades através de, ,toda do acesso a pequepos pedaços de terra para o trabalho na época da
a Europa, à proporção que crescia o número de trabalhadores sem cana, da borracha ou do fumo.
terra nas zonas rurais e aparecia o que C. B. Macpherson chama Esta parte do processo tem numerosos traços comuns com a expe-
Ha teoria política do individualismo possessivo", que punha em pri- riência das fazendas na América Latina analisada por Wolf. De
meiro lugar a pessoa como sendo a unidade que melhor convém à maneira menos evidente, sua lógica profunda assemelha-se à da inte-
participação no Estado). Depois de um ou dois séculos, a liberação ração entre a cidade e as comunidades do interior nas regiões d~
dos recursos pelo Estado (o que incontestavelmente constituía um África contemporânea, onde prevalece uma migração circular da mão-
processo "evolucionista", do ponto de vista nacional) trouxe consigo, de-obra. (104) Como a maioria dos homens subtraem suas energias
ao mesmo tempo, uma diminuição e uma imobilização dos recursos no à comunidade, mas ganham fora suficiente dinheiro para fazer face
seio da comuna alpina. à demanda de impostos e de produtos manufaturados, a aldeia con-
Os processos que se desenrolaram nos Alpes ou no México tinham rentra-se na agricultura de subsistência. Efetivamente, toda uma ca-
muito em comum. Wolf resume, assim, uma das principais conclu- tegoria de relações de exploração (particularmente correntes em si-
sões a tirar de sua análise: tuações coloniais) suscita este tipo de processo. No caso da Indo-
nésia, s'egundo Geertz, a plantação para exploração contribuiu no
11 Estudando a América Latina de hoje, seria preciso evitar tratar a produ-

ção para subsistência e a produção para fins comerciais como duas etapas progres-
sentido da formação de um novo tipo dependente da comunidade
sivas do desenvolvimento. É preciso antes levar em consideração a alteração autóctone. As novas firmas de' comunidade permitiram um rápido
cíclica dos dois tipos de produção dentro da mesma comunidade e perceber que, aumento da população no setor rural, com alta exploração de mão-
do ponto de vista dessa comunidade, ambos os tipos podem constituir respostas de-obra, mas inibiu os crescimentos da produtividade por pessoa. A

(100) Economie et sociologie de la montagne (Paris, Colin, 1962. E,scola (102) Wolf, "Types of Latin American Peasantry", pág. 463.
Prática de Altos Estudos, VIa. Seção, Centro de Estudos Econômicos, ",Etudes (103) Agricultural lnvolution (Berkeley e Los Angeles, University of
et Mémoires ", 50), pág. 131. CaJifornia Press, 1963).
(101) Ver os documentos reunidos por Gabriel Ardant para ilustrar o (104) Elliot J. Berg, .. The Economics of the Migrant Labor, Systern", in
caráter largamente difundido e penoso dessa associação de Circunstâncias em Hilda Kuper (ed.), Urbanization anti Migration in West A/rica (Berkeley e
Tkéorie sociologique de l'impôt (2 vols.; Paris, S.E.V.P.E.N., 1965). Los Angeles, University of California Press, 1965), págs. 160-181.

:442 443
prazo mais longo, a combinação de uma população em constante: au"-: cliamou a. revolução industrial. Entre os séculos XVI e XVII, cer-
mento com uma produtividade agrícola de caráter estático tornou a ta~:' regiões ruraís, em quase todos os países europeus (mas, sobre-
economia inteira mais vulnerável e mais imóvel. O modo de colo'ni- tudo, na Inglaterra, na França, nos Países Baixos e. na Alemanha),
zação contribuiu para uma desdiferenciação social dentro das córrlu- t"ivetam acesso à produção industrial em uma escala sem preceden-
nidades rurais, para a imobilização dos recursos econômicos e, com tes';."produção destinada aos mercados nacional e internacional. A pre-
a derrocada definitiva das próprias plantações, para a desintegração dominância foi dos tecidos de lã, de seda, de linho e cânhamo "-
da sociedade em seu conjunto. (lOS) .. (ulteriormente) de algodão. Mas havia também regiões mineiras, de
Um terceiro processo devolucionista é o da "pastorilização" de boa indústria de metais, de produção de cestos, de marcenarias, de pro-
parte da campanha francesa, o qual, segundo François Crouzet, se dução de papel e de vidro. O princípio organizacional básico dessa
desdobrou à medida que a produção industrial, baseada na economia flo~escente indústria-sem-fábricas foi o que os alemães chamaram de
doméstica, recuou diante das fábricas situadas na cidade. (106) Em Verlagssystem. Tratava-se de uma disposição segundo a qual Um
contradição com os pressupostos evolucionistas mais simples, grande empresário (um mercador de panos, Verleger, fabricante) adquiria
número de comunidades francesas era bem mais "rural" em ~8S0 s-qas próprias matérias-primas, arranjava-se de modo a que pessoas,
do que em 1750: estavam elas mais exclusivamente baseadas Ila homens e mulheres, trabalhando em suas próprias casas, transfor-
agricultura e menos na produção destinada aos mercados n~cional e massem tais matérias-primas em produtos acabados, lançando-os ele,
internacional. Durante estes cem anos, experimentaram as mesmas então, no mercado. Por exemplo, um fabricante da indústria de linho
uma desdiferenciação social. É certo que, nesse mesmo período, a in- em:Cholet, na França, comprava, de maneira caracterítica, esse linho
dústria francesa, em seu conjunto, tornou-se mais complexa, evo- num dos mercados da região do Loire, enviava-o a diversos. traba-
luiu. Mas, em nível de comunidade rural, verificou-se um pro,cesso lhaqores rurais, para que fosse fiado e tecido por determinado pre-
de. devolução. ço e, depois, o passava para outros artesãos locais, para fins de pi..
A experiência francesa da pastorilização entra no quadro de um dos soamento, descoloração e tingimento; posteriormente, vendia o esto...
grandes capitulos ainda não escritos da história européia. A grandeza fo acabado num dos mercados regionais, donde ele seguia para uml
e a decadência da produção industrial fundada sobre a economia do- das grandes cidades francesas e lhe vestia os habitantes; ou então
méstica moldaram a vida econômica de importantes partes da Europa. atingia um dos portos do Atlântico e era vendido na Africa ou na
durante os três séculos que precederam o ano de 1900. (107) Seme- América. Em fins do século XIX pelo menos um quarto da POP'I-
lhante experiência forneceu um bom número das condições prévias lação das comunidades rurais, estabelecidas em torno de Cholet, par-
às mudanças técnicas e organizacionais que caracterizaram o que ·se ticipava de semelhante forma de indústria caseira.
Histórica e geograficamente, a extensão dessa espécie de indústria
(l05) Cf. Nathan, Keyfitz, "Political-Economic Aspects of Urbanization ru:ral antecipava, mais ou menos, a extensão ulterior da industrializa-
in South and Southeª-st Asia ", in Philip M. Hauser e Leo F. Schnore (eds.), ção com base nas fábricas. Na Inglaterra e nos Países-Baixos, a
The Study of Urbanization (Nova York, Wiley, 1965), págs. 265-309. indústria têxtil doméstica apareceu já no século XIV e teve plena
(106) "As conseqüências econômicas da Revolução: a provósito de um, tra- expansão nos séculos XV e XVI. Na França, o século XVIII foi
balho inédito de Sir Francis d'lvernois ", Annales historiques de la Revolution testemunha do início da expansão. No Oeste alemão, foi-o a primeira
Française, 34 (abril-junho de 1962), págs. 182-217.
(107) Encontrar-se-ão bons estudos do sistema doméstico (e, particUlar- metade do século XVIII. No Leste europeu e na Rússia, isso se prc·
mente, de seu crescimento) em David S. Landes, .. Technological Change and duziu em fins do século XIX.
Development in Western Europe, 1750-1914", in H. J. Habakuk e M. Póstan 'Contrariamente à primeira expansão do comércio interurbano dos
(eds.), The Cambridge Economic History of Europe, vol. 6: The Industrial produtos de luxo, o crescimento da indústria caseira parece ter de N

Revolution and After: Incomes, Population and Technological Change (Cam-


bridge, Cambridge University Press, 1965), parte I, págs. 274-601, com uma pendido do desenvolvimento de Estados poderosos, de mercados em
bibliografia na parte 11; Hermann Kellenbenz, .. Les industries rurales en escala nacional e de grandes cidades. Joan Thirsk sugeriu que, dada
Occident de la fin du Moyen Age au XVIIIe siêc1e", Annales: Economies, a existência de um mercado potencial para o tecido barato, a indús-
Sociétés, Civilisation, 18 (setembro-outubro de 1963)', págs. 833-882; Joseph tria caseira apareceu, po mais das vezes, nas regiões especializadas em
Kulischer, Allgemeine Wirtschaftsgeschichte des Mittelalters UM der Neuzeit, certas formas de agricultura - como a indústria do leite e deriva-
2 vols. (Munique, Oldenbourg, 1965), vol. 2, págs. 113-137; e Werner Sombart,
i, Rudolf Meerwartin, .. Hausindustrie", in Handwõrterbuch der Sttatswissens~ dos, cuja expansão implicava numerosas dificuldades e elevados cus-
chaften (J ena, Fischer, 1923), vol. 5, págs. 179-207. tos - e que permitiam tempo para ocupações subsidiárias, sobretudo

~444 445

aO-T.S.
nos casos em que as regras da herança ou as condições demográfic~s do poderio competitivo da Grã-Bretanha, "a época <la tecelagem ca-
engendravam uma considerável população, que dispunha de quantí~ seira estava por acabar em meados do século XIX, salvo para os
dade insuficiente de terras para assegurar a sua sobrevivência. (1.08), produtos de primeiríssima qualidade e excetuado o distrito de Bolton.
Nos lugares em que se desenvolveu, a indústria caseira reorganizou, a Aliás, a urbanizaç.ão da indústria de tecidos estava quase concluída
vida local e absorveu grande número de pessoas. Uma hipótese plau- e era mais adiantada do que na indústria de fiação". (113) Graças a
sivel, que diz respeito à Inglaterra do começo do século XVIII, sus-, esse processo, as zonas que ficavam distantes de Manchester perina·
tenta que uma boa décima parte da população trabalhava na indústria nece.am mais puramente agrícolas do que desde séculos antes. (114)
da lã. E a maior parte desta indústria se encontrava no campo. (109)' Trata-se do processo de pastorilização, ao contrário da urbanização
Foram estes os belos dias. Em toda parte, na Europa, o século da indústria têxtil.
XVIII conheceu o apogeu da produção têxtil caseira. Depois;, o Curiosamente, difícil é saber o que aconteceu com milhões de trá.::
sistema cedeu lugar à fiação e à tecelagem na cidade e na fábrica. balhadores rurais e com seus milhões de filhos, à medida que lhes
Uma longa experiência da indústria caseira havia preparado o país peric1itavam os meios de existência. Em princípio, s'enão sempre na
para as formas ulteriores da industrialização. Rudolf Braun concluiu prática, quatro caminhos estavam-lhes abertos: 1) aterem-se ao seu
que, sob a influência da indústria caseira nas terras altas além ,de artesanato, sem se importarem com uma diminuição de sua ren~a
Zurique, e de seu trabalho; 2) voltarem-se para um outro tipo de artesanato,
ou para a agricultura; 3) continuarem vivendo no campo, deslo-
.. a indústria criou raízes no íntimo mesmo do homem, foi plantada no fundo cando-se diariamente até ao local de trabalho, num centro industrial:
do seu coração. Tal fato era particularmente perceptível na população obri-
gada a emigrar. Os homens levavam consigo toda a habilidade, toda a éxpe... ou 4)" viverem na cidade, próximo às zopas industrtais. A long.o
riêricia, todos os modos de comportamento, de vida e de pensamento que haviam prazo, a decadência da indústria rural provocou migração enorme
assimilado em seu quadro industrial e iam implantar a indústria dentro de em direção às cidades européias, mas os três outros caminhos foram,
suas novas comunidades" (110). sem embargo, trilhados, durante um longo período. Assim descreve
Armengaud o que se passou no Sudoeste da França:
De fato, no que concerne aos homens e ao seu estilo de vida, havia
uma tal continuidade da produção têxtil rural no sistema da fábrica .. ~ certo que o desenvolvimento da atividade têxtil urbana foi acompanhado
que Braun contestou a aplicabilidade da expressão sumária "revolu:" de ~m declínio, ou, pelo menos, de uma estagnação, da indústria rural, tom todo
ção industrial" à introdução do modo de produção e da organização o distrito de Castres. Assim, a utilização de máquinas penteadorJ.s e de fiar
provocou a concentração da fiação, em detrimento da população rural, que
em fábrica na região de Zurique. (111) perdeu uma parte de seus meios tradicionais de subsistência. Foi, entre outras,
Entretanto, em certas regiões, em numerosas comunidades, e para uma das explicações, essa, aventadas para a diminuição demográfica das regiões
milhões de homens e de mulheres, a decadência da indústria do- montanhosas. Mas aqui, também, foi lenta a reviravolta" (115).
méstica provocou uma profunda mudança de modo de vida. Quase
todas as zonas européias de produção têxtil rural sentiram, antes Alhures, boa parte da população que havia pouco trabalhava na
de meados do século XIX, a viva concorrência do algodão britânico indústria passou para a agricultura. Esse retorno à terra não se fez,
barato e bem fabricado. Essa concorrência afetou mesmo os produto. por vezes, sem choques. O grande estudo, a que procedeu Thompsoll,
res rurais das terras afastadas de Moscou, (112) No Lancashire, fon~e do movimento de revolta da classe operária inglesa, no começo no
século XIX, concede lugar privilegiado à' classe moribunda dos te-
(l08) "Industries in the Countryside", in F. J. Fisher (ed.), Essays in
the Economic and Social History of Tudor and Stuart England in Honóur
of R. H. Ta...vney (Cambridge, Cambrirlge University Press, 1961), págs. (113) A. J. Taylor, "Concentration and Specialisation in the Lancashire"
70-88, Cotton Industry, 1825-1850", The Economic History Review, segundas séries,
(109) Phyl1is Deane, The Fir.Jt Industrial Revoluh"on (Cambridge, Catn~ r (1949), 119.
bridge University Press, 1967), pág. 14. (114) T. W. Freeman, H. B. Rodgers e R. H. Kinvig, Lancashire, Cheshire
(110) lndustrialisierung und Volksleben, pág. 255. anil lhe [sle of Ma. (Londres, Nelson, 1967), caps, 4 e 5,
(111) Sozialer UM Kultureller Wandel, sobretudo a pág. 16. (115) André Armengaud, Les populatioM de l'Est-Aquitaine au début de
(112) Meshalin, Tekstil'naia; Maurice Lévy-Leboyer, Les banqups eurQ- l'époque contemporaine (Paris, Mouton, 1961), pág. 240. Cf. Philippe Pin~
péennes ct l'industrialisation internationale dans la premiere moitié du XIXe chemeI, Structures sociales et dépopulation rurale dans les campagnes picardes
sihle (Paris, Presses Universitaires de France, 1964), capo 1-8. de 1836 à 1936 (Paris, Colin, 1957).

446 447

j
celões de aldeia. (116) Seus equivalentes alemães se sublevaram du- de 1789, transbordavam de indústrias e estavam profundamente
rante a revolução de 1848. (117) Na França, a maciça resistência ao engajadas em mercados internacionais, encontraram-se isoladas é
golpe de Estado de Luís Napoleão, em 1851, nutriu-se, antes de tudo, pouco ativas em seguida à Revolução de 1848, entregando-se
da cólera dos artesãos rurais. (118) Em toda a Europa, o angustiado principalmente ao que parecia ser uma agricultura "tradicional". As
temor de serem eliminados, de perderem a sua identidade, que os mudanças econômicas do início do século XIX produziram, no seio
trabalhadores rurais sentiam, deu uma coloração reacionária aos mo- de tais comunidades, uma desdiferenciação social, uma desintegração
vimentos revolucionários de protesto dos primórdios da industriali- e, talvez mesmo, uma particularização. O crescimento evolucionista
zação. da indústria originou uma contracorrente devolucionista em impor-
A míngua de estudos precisos e sistemáticos, a melhor maneira de tantes partes da Europa.
dar contas das possíveis respostas à urbanização da indústria é sim- O fato de que os três primeiros exemplos que vêm ao espirito
plesmente propor uma hipótese de trabalho: nas cercanias imediatas concernem todos a zonas rurais sugere a possibilidade de que proces e
das prósperas cidades industriais (tais como a da alta região de Zu- sos devolucionistas se produzem, sobretudo, em seguida aos grande')
rique), os antigos centros da indústria rural se tornaram, quer o
movimentos de centralização e de controle, pelos quais muito se
lugar de indústrias auxiliares especializadas, quer arrabaldes a par-
interessam os especialistas da mudança social. Isso é provavelment~
tir dos quais trabalhadores se deslocavam, para ir até às suas fábricas.
Mais longe, lá onde as terras para tanto Se prestavam (como no ca50 certo. Sem embargo, convém recordar que a análise de Geertz trata
do intensivo desenvolvimento da produção de leite e derivados em de um conjunto de mudanças - as que engendram uma" sociedade
dualista" - que outros especialistas, erradamente e de maneira
Rossendale, sob o efeito da expansão de Manchester), as comunida-
des tinham tendência para voltar-se no sentido da cultura especia~ muito simples, haviam tratado como fases de transição, no interior
lizada e de alta rentabilidade, tendo em vista o mercado urbano. Lá do movimento, de uma estrutura social tradicional para uma estru·
onde a terra era demasiado pobre e as cidades demasiado inacessí~ tura social moderna. Além disso, outros processos devolucionistas
veis (como nas circunvizinhanças dos Alpes e dos Pireneus), oS tra- por vezes se produzem no próprio seio de outros fenômenos: a
balhadores tinham tendência para se apegar ao seu artesanato até na contra-revolução, a diminuição populacional, a resistência à mudança,
miséria, para -recorrer a uma agricultura de subsistência e, eventual- a desmobilização política. Nenhum desses fenômenos políticos cons·
mente, para emigrar. tituiu objeto de uma boa análise sociológica.
O primeiro caminho está em conformidade com o esquema evo~ O fato de que duas das melhores análises históricas da devoluçã0
lucionista clássico: uma diferenciação social mais forte, mais se devem a etnólogos (Wolf e Geertz) merece, também, reflexão.
integração e melhor generalização dos recursos por meio de um Por que razão há uma convergência entre a disciplina sociológica
engajamento mais intenso no mercado. O segundo caminho (a saber, mais orientada para o estudo dos povoados iletrados e a que mais
a mutação para uma agricultura de alto rendimento) está em con- depende dos investigadores letrados? Sem dúvida, ambas as discipli-
formidade menor com o esquema, porque claramente implica uma nas se aproximam entre si por um estilo de pesquisa e de formação
desdiferenciação das estruturas profissionais e de classe. Mas o que incide bastante sobre a familiaridade com casos preciosos (119).
terceiro caminho (o retorno à economia de subsistência, seguido de Muito verossimilmente, o profundo interesse do etnólogo pelas
um eventual êxodo rural) não está, absolutamente, em conformida~ experiências dos povoados iletrados que se encontram à margem do~
de com o esquema. Trata-se do caso a que se aplica o termo "pasto- grandes movimentos centralizadores encoraja-o a levar em conta a
rilização", inventado por Crouzet. Pelo menos no Oeste e no Sul devolução, quando esta se produz. É' certo que a atribuição "-
da França, centenas de comunidades, que, na época da Revolução etnólogos de uma boa parte da responsabilidade da análise do,

(116) E. P. Thompson, The Making of the English Working elass (119) Ver Robert T. Anderson, "The Flirtation of Anthropology and
(Londres, Gollancz, 1963), sobretudo o capítulo 9. History", Research Studies, 35 (dezembro de 1967), págs. 291·300; Charles
(117) Theodore H. Hamerow, Restoration, Revolution, Reaction: Econo- ]. Erasmus e Waldemar R. Smith, .. Cultural Anthropology in the United
mies and Politics in Germany, 1815·1871 (Princeton, Princeton University States since 1900: A Quantitative Analysis ", Sout'hwestern Journal oi Anthro~
Press, 1958). pology, 23 (verão de 1967), págs. 111·140; Conrad M. Arensberg, "Anthro-
(118) Georges Duveau, La vie ouvriJre en France sous le Second Empire pology as History", in Kar! Polanyi, Conrad M. Arensberg e Harry W.
(Paris, Gallimard, 1946), sobretudo a pág. 100. Pearson (eds.), Trade mui Markee in the Early EmPires (Glencoe, Free Press,
1957), págs. 87-113.
448 449
.
j
processos descontínuos da apré-história" fez acrescer eSSa sensibi- frente e em' mais' vasta escala. ivlais profundamente, eles põem em
lidade. questão os postulados do movimento linear e da irreversibilidade.
Há um outro fator que importa levar em linha de conta. Se as . Os casos que passamos em revista sugerem dois meios funda-
pesquisas de campo, feitas por etnólogos, produziram quase sempre mentais pelos quais transformações evolucionistas engendram regu-
descrições de comunidades ou de sociedades apanhadas num "eterno láimente contratransformações devolucionistas. O primeiro é sim-
presente etnológico", igualmente os acostumaram a dedicar uma pfe~mente a particularização, isto é, a adaptação e a vinculação de
atenção indormida a unidades sociais mais restritas, quando obser- for,nas ou de recursos sociais gerais a contextos específicos, que se
vam a evolução da mudança. Os sociólogos, os politólogos e os infi:erem no tempo, ;no espaço e num quadro humano. Os membros
economistas desejam ardentemente seguir o desdobramento da ação: da~ ,organizações remodelam a estrutura formal da sociedade parq
saltam de um para outro nível, quando uma organização se cria em atingir seus próprios objetivos. Cada agrupamento lingüístico, que
maior escala. Mais precisamente, têm eles propensão para concentrar 'fala uma das 'Jinguas internacionais, desenvolve seus próprios idio·
seus trabalhos na última fase do processo. Por exemplo, explicam mas. Grupos aparentados, fragmentados pela migração e pela mobili-
antes a integração num mercado nacional de produtores e de consu- dad.e. social, reafirmam o seu controle. Sátrapas apossam-se do podet
midores marginais do que a criação de um mercado nacional por em nível local.
via de fusão dos mercados locais. ,Por essa razão, temos pouquíssi.
mas análises sociológicas daquilo que Etzioni chama a epigênese. ~ Parece razoável (embora um tanto tautológico) dizer que a ten-
"Unidades emergem de um processo no seio do qual partes que dência para a particularização cresce à medida que aumenta o valor
aSsumem novas funções juntam-se às partes existentes, até que o con- di)s' r"cursos generalizados de que dispõe toda unidade social especi-
junto da análise fique congregado" (120). Muito justamente, Etzioni fica, .e à medida que se amplifica a incompatibilidade entre 05
contrasta esse modelo de mudança social com um modelo da diferen- objetivos da subllnidade e da estrutura mais ampla de que ela faz
ciação social. Parece que os analistas que remontam os tempos :\ parte. Na ausência de poderosos meiós externos de controle, o efeito
partir de uma fase situada em nível avançado de um soberbo pro- da:"criação e da difusão de um recurso que tenha valor ou de Uffi:l
cesso de mudança são atraídos por modelos de diferenciação social\ forma de organização através de toda uma sociedade poderia bem
enquanto os que progridem a partir de um nível menos elevado são consistir em sua apropriação e em sua adaptação ~ SUa particulari-
mais atraídos por modelos epigenéticos. zaçijo - pelas" subunidades -da sociedade, o que conduz a um
reforço das mesmas e a uma redução da capacidade de adaptação
E o modelo epigenético é sensivelmente mais operatório para ex·
da sociedade em seu conjunto.
plicar a possibilidade da evolução e da devolução simultâneas. Os
etnólogos, postos em face de processos de mudança em grande escah .A mobilização, pela força, de homen~, de serviços, de alimentos
são mais dispostos que a maioria dos sociólogos a dedicar uma e de bens no seio dos primeiros impérios, a constante luta dos
atenção indormida a unidades mais restritas, a progredir a partir de imperadores para impedir ?eus vice-reis de se apropriarem desses
uma escala mais reduzida e, portanto, a observar processos devolu- recursos e consolidarem seus reinados e a tendência resultante da
cionistas. estrutura imperial para estilhaçar-se, com a morte do imperador, em
. A sujeição do mundo ao crescimento, à expansão e ao desenvol~ múltiplos reinos, são uma boa ilustração desse problema e desse
vimento faz aparecer processos que vão na ,direção oposta, como processo. Se os recursos aumentarem mais. rapidamente do que o:;
indignos de uma atenção indormida. É certo que uma teoria operató- controles, poderemos esperar que o remate de tal processo seja uma
ria do desenvolvimento econômico tem melhores probabilidades de nítida devolução de toda. estrutura. Mas o que importa é q11e os dO'1s
encontrar uma rápida e entusiástica aplicação do que uma teoria. processos se desdobrem simultaneamente e dependam um do Qutl">:}.
operatória d~ decadência econômica. Entretanto, os processos regres- O segundo meio fundamental pelo qual transformações evoludo-
-sivos exibem um desafio bem mais interessante para as nossas teo- njstas engendram regularmente contrfatransfarmações devolucionis-
rias da mudança social do que os processos que se apresentam na 'tas é o que se poderia designar pelo termo retraimento. O próprio
modelo corrente da diferenciação social funcional implica que
(120) Amitai Etzione, "The Epígenesis of Polítical Communities at the unjdades mais antigas, tais corno· famílias, apresentam, comumente,
International LeveI ", American !oumal of Svciology, 68 (janeiro de 1963),
pág. 409. u~a estrutura mais simples, quando emergem do processo da diferen-

450 451

,
dação social. (121) Como vimos, um geral movimento para a espe- dados da história fornecem a esse tipo de investigação as vantagens
cialização industrial e a integração tornam caducos certos empregos mencionadas no início do presente texto: o acesso aos próprios
e certas organizações. Ampliações da escala de Uma organização exemplos sobre que se fundaram nossos modelos mais correntes das
social. como as que se produzem com a emergência dos Est~dos­ mudanças sociais, a disponibilidade de uma extensão de tempo
nações e dos mercados internacionais, engendram regularmente suficientemente importante para permitir que o processo se desenrole.
uma atrofia das unidades mais restritas, que são, por conseguinte, a observação do fenômeno em toda uma variedade de contextos.
fundidas, tornam-se subordinadas ou são ultrapassadas. O fenômeno Os dados da história tornam a análise do retraimento mais fácil
de retraimento é muito diferente do da particularização, já que e mais eficiente do que os estudos contemporâneos feitos com ajuda
provém de uma redução dos recursos de que dispõem unidades de porções de amostras. Curiosamente, faltam análises da mudança
sociais particulares. Poder-se-ia imaginar, portanto, que a clara das Ílmçõe, profissionais no seio da população ativa (ou, simples-
devolução do conjunto de uma sociedade tenha acontecido, quer à mente, termos que designem essas funções) durante importantes
medida que todos os recursos disponíveis se rarefizeram, quer à lapsos de tempo. É sabido que, a partir de 1900, o movimento se
medida que foram desviados recursos das unidades mais cruciais deu no sentido de um crescimento vertiginoso da variedade das
para a continuação da diferenciação social, da integração e da gene- funções profissionais nos países do Ocidente. Mas quantas dentre
ralização, quer por meio de alguma mudança de estrutura ou de elas desapareceram, e como? Do mesmo modo, uma rigorosa análise
uma ampliação da escala que excedeu a capacidade de absorção da das mudanças na estrutura das cidades e dos Estados-cidades, à
estrutura. Se é certo que J ones atribui o golpe de misericórdia à medidq que foram incorporados aos Estados-nações, forneceria
ação dos bárbaros, sua análise das fraquezas da parte ocidental do importante informação,. concernente aos correlativos devolucionistas
Império Romano sugere que os dois tipos de retraimento aí se desen- dos aumentos de escala (123). O estudo contínuo, em longos espaços
rolaram (122). Em termos de diferenciação social, de integração e de tempo, das unidades mais restritas faz que os dados da história
de generalização, a descrição de Jones implica uma clara devolução constituam materiais particularmente atraentes para o estudo do
da estrutura do Império. Mas, ainda uma vez, o que importa é o fenômeno de retraimento.
fato de que a evolução e a devolução se desdobram simultaneamente Contudo, achamo-nos, finalmente, diante de um paradoxo. A his-
e são interdependentes. tória é abundante em processos devolucionistas e, sem embargo, 05
Se essa formulação for fundada, reclamará, evidentemente, uma estudos históricos os dissimulam. A própria associação da produção
verificação histórica. Para melhor compreender a particularização, de documentos COm movimentos centrípetos impele as análises a
é-nos preciso examinar, sistematicamente, como uma estrutura clás- silenciar sobre a devolução. Assim como o desenvolvimento de uma
sica, tal como a organização imperial romana, pode mudar de acordo organização de grande envergadura e o aumento de controles vindos
Com o contexto no seio do qual pessoas a situam. Poder-se-iam do centro tendem a acelerar a produção de arquivos escritos, assim
utilizar estudos das condições em que o nepotismo, a transmissão também a particularização e o retraimento tendem a abafá-los. Por
hereditária das funções e a absorção das mulheres e das criança< outro lado, também os historiadores, bem corno seus irmãos, 03
pela firma apareceram, a fim de contrapor-se à diferenciação fun- sociólogos, analisaram, sobretudo, as mudanças evolucionistas (isto
cional entre o trabalho e a parentela. Seria preciso estudar os meios é, as tendências para a centralização, para a diferenciação social,
de controle que permitiram a certas nações o confinamento. 9.03 para a modernização), quando as descobriram. Já que eles foram
militares em papéis técnicos, ao passo que em outras nações puderam freqüentemente considerados como investidos da função de preparar
os militares empolgar e desviar - a fim de particularizá-lo _. o um estudo do advento de nosso mundo contemporâneo, isso apenas
pouer resultante de suas posições. Estudos de semelhantes fenômenos
não têm, evidentemente, necessidade alguma de ser históricos. ,03 (123) Dada a quantidade de provas e de índices de uma devolução que
afetou numerosas classes e regiões européias depois de 1550, e dada a agres-
siva expansão dos Estados-nações e, finalmente, a sujeição das comunas e
(121) Neil J. Sme1ser, "Mechanismes of Change and Adjustment to das classes ao poder final e militar dos ~onarcas, sem esquecer as gue~ras
Change ", in Bert F. Hoselitz e ~Wi1bert E. Moore (eds.), I ndustriahsation civis, há razões para acreditar que. a famosa .. crise do século XVII" na
anã Society (Paris, Unesco-Mouton, 1%6), págs. 32-54. Europa poderia com proveito ser estudada sob o ângulo de uma crise devo-
(122) A. H. M. Jones, The Later Roman EmPire, 3 "Is. (Oxford, Black- lucionista. Encontrar-se-ão os melhores textos sobre o assunto in Social Change#
well, 1964), vol. 2, págs. 1.050-1.051. de Lawrence Stone.

452 453
:"é. surpreendente. Aí está uma boa razão para insistir 'no' fato de' q~'e do presente. A intervenção deles no campo de estudo da história
·os sociólogos não podem esperar conduzir Um trabalho comhom enriquecerá e transformará, também, o próprio estudo da história
êxito, usando dados da história, cedendo à facilidade e subtraindo a' (Traduzido de CHARLES TILLY, "Oio and Minerva", em J. C.
análises preparadas pelos historiadores. Por sua vez, os historiadqtes MCK:rNNEY e EnWARD A. TIRYAKIAN (eds.), Theoretical Sociology:
deixaram de lado, com demasiada freqüência, os fatos da mais _alta Perspectives and Developments, © 1970. Reproduzido com autori-
re1evância sociológica. zação de Prentice-HalI, Inc., Englewood Cliffs, Nova Jersey, págs.
É sempre certo que o partido tomado em favor da evolução, de 450-466).
preferência sobre a devolução, e de que fazem prova os materiais
. da história e, mesmo, os escritos históricos; é menor que o de' que
fa,zem prova as teorias e os dados da sociologia. Não se trata de
convidar os sociólogos a se desviarem da história. Já se menciona-
ra:p:l transformações sofridas pela história, em seu contacto com ~s
ciências sociais. Certo número de fenômenos históricos e de dados
da história e, mesmo, os escritos históricos, é menor que o de que
dos demógrafos, dos politólogos e de outros não-historiadores. Em
todo o caso, HOS materiais da história" não representam menos _do
que um resíduo no seio do mundo atual de todo o comportamento
'passado do homem. Neste sentido, a história já faz parte das ciên-
ciàs sociais.
Esse resíduo é seletivo, sobretudo no que tange ao seu aspecto
mais compreensível e acessível. Enfatiza as atividades e os homens
que pertencem a organização importantes e complexas. Entretanto,
o caráter seletivo dos dados históricos não é um problema, ,nem
na prática, nem em teoria, mais difícil de enfreptar do que o dos
processos, igualmente seletivos, utilizados por sociólogos para cole~
tarem informações sobre o mundo contemporâneo. Em verdade, à
medida que procuram de novo explicar as profundas mudanças de es-
trutura no bojo das sociedades, voltam-se os sociólogos, quer queiram.
quer não. para os materiais da história. O grande perigo' que
s,e apresenta é que pouquíssimos dentre eles acederão a ir além da
comparação dos estudos históricos publicados, para procederem a
uma análise sistemática dos próprios materiais históricos. Assim,
os sociólogos consolidarão os -erros dos historiadotes,' em que se
inspiram.
De: passagem, eles, os sociólogos, descobrirão, pelo menos, -que,
a certos respeitos, suas concepções da mudança social estão erradas.
Em particular, os habituais postulados do· movimento linear e .da
irreversibilidade se chocarão com as múltiplas provas históricas da
:existência de contramovimentos- devolucionistas, que se manifestam
êónoomitantemente com os' movimentos evolucio·nistas. Todavia,
quaisquer que sejam as revisões da teoria sociológica, provocadas
,p~10, contacto com a história, semelhante encontro .abrirá vastas perti-
pectivas aos sociólogos que trabalharam dentro dos. estreitos limites

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