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A COBRANÇA

Viver. Como é difícil! Naquela manhã Marta sentiu quanto isso era verdade. Noção
disso teve desde criança, mas, naquele dia, essa percepção lhe caiu duramente, como
em nenhum outro em sua vida.

Nunca o disse a ninguém. Se o dissesse não a ouviriam. Entre eles sempre houve um
pacto de silêncio. Todo falar era uma denúncia. Denúncias são temidas. São maus os
que denunciam.

Era isso o que Marta andava pensando, naquela manhã, em que se esforçava para ler
‘Um Campo Vasto’. Não o conseguia. Como não conseguia sequer o controle dos
próprios pensamentos.

Voltava sempre ao domingo. Nem se lembrava de que era segunda feira. O dia
anterior, cumprindo uma obrigação de que não podia fugir, Marta visitou a casa da
mãe. Lá estavam Pedro e Higínia. Sem palavras, como convinha, e como quase
sempre havia sido.

A mãe não estava de pé, o que não era normal. Higínia estava no escritório.
Preparava-se para a reunião com outros diretores da empresa. Nessas reuniões
comparecia munida de números e anotações. Falava o incontestável. Era ouvida.
Detinha o Poder. Um prêmio para uma vida de trabalho, renúncia.

Durante algum tempo Marta e Pedro ficaram sozinhos na sala, preocupados com o
que estaria acontecendo no quarto e na cabeça da mãe. Imaginavam que ali tudo
poderia acontecer, até um suicídio, e isso deveria ser evitado.

Decidiram: um deles deveria entrar no quarto. Ver a mãe. Escolhido foi Pedro, o
irmão de quem, se a mãe não gostava, pelo menos tinha mais piedade: ele, o único dos
filhos para com quem Deolinda não conseguiu fugir da obrigação de ser mãe. De
Pedro, pelo menos em um certo tempo, ela havia cuidado.

Deolinda, o rosto mais envelhecido do que deviam mostrar os seus oitenta anos, toda
ela expressão de dor e revolta, disse a Pedro, a Marta e a Higínia, que também se
aproximaram: “Não vou me levantar, o que desejo é a morte. Odeio todos vocês,
odeio o pai de vocês, morto ha vinte anos, odeio a mim mesma, porque fui mulher
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dele e mãe de vocês.”.

A mãe falou de tudo o que ela considerava desamor. Da filha mais nova, que a
expulsou de casa. De Marta, solteira, que preferiu morar sozinha. Do marido, que tão
discretamente a traiu. De Higínia, a boa filha, mas muito dura e exigente, por vezes
desumana. E falou, ainda, de tudo o mais que a vida a havia feito viver.

Culpava a todos, recriminava-se a si mesma, pelo que fez e pelo que deixou de fazer,
ainda mesmo nos casos em que uma ou a outra coisa lhe haviam custado esforços ou
sacrifícios.

Pedro ouviu surpreso, Higínia desolada e Marta tranqüila. O médico foi chamado,
prescreveu o que lhe pareceu conveniente, e, como amigo da família, ouviu tudo o
que Deolinda lhe disse, exatamente o que ela havia dito aos filhos, que ali estavam.
Pedro saiu antes que a paz houvesse voltado. Naquele dia, ele era o escalado para
vôos domésticos, nas próximas vinte e quatro horas, um trabalho tenso e perigoso.

Depois de ter ficado longo tempo insistindo com a mãe para que tomasse o remédio
indicado pelo médico, Higínia dividiu a noite entre os livros e a enferma. A mãe,
adulta, se negando a fazê-lo, obrigando a filha a fazer-lhes promessas tolas para que
ela se medicasse, fizesse o que a ninguém era mais útil de que a ela mesma, a doente.

Marta voltou a sua casa, decidiu que os outros irmãos deveriam ser avisados do
problema. Resolveu comunicar a todos. Telefonou ao mais velho e a Irene. De Irene
não esperava qualquer ajuda, mesmo que essa fosse uma boa irmã, talvez a melhor de
todas.

E Marta se perturbou por se sentir tranqüila, quando tudo, naquele dia, havia atingido
ao dramático na casa em que ela havia morado por tanto tempo, e com pessoas que
eram o que se diziam: a sua família.

Por tudo isso se lembrou de que a mãe faria oitenta anos no mês seguinte. Todos lhe
desejariam felicidade, fariam festas e diriam, como dizem os filhos em oportunidades
semelhantes: ela é a melhor mãe do mundo.

A mãe falaria do quanto se sentia feliz pelos filhos que havia tido, todos tão corretos e
bem sucedidos. Nem os filhos, nem a mãe, diriam que entre eles alguém era feliz,
talvez isso não importasse ou todos soubessem: era absolutamente falso.

E Marta se lembrou de novo de que aquela mãe havia vivido oitenta anos, oitenta
anos de memórias e de certeza de que nada do que havia acontecido durante aquela
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vida poderia ser refeito. Oitenta anos vividos, um verbo no passado, nenhuma palavra
de futuro.

A lembrança da mãe tomava-lhe os pensamentos e, por não entender a


impossibilidade de se esquecer dos acontecimentos da véspera, Marta passou em
revista o que sabia da história de sua mãe, tentando encontrar o que pudesse justificar
a cena do domingo. E o fez intrigada por que, afinal de contas, mesmo com boa
vontade, a filha seria capaz de dizer a respeito da própria mãe: “A vida lhe deu muito
mais de que ela mereceu!”.

A mãe era saudável, fazia passeios sozinha. Suas mãos e sensibilidade pintavam belos
quadros, faziam bordados lindos, tocavam piano, faziam bem feitos todos os trabalhos
que as mulheres de seu tempo aprenderam a fazer.

Amigos e vizinhos a conheciam pela alegria jovial, pelos filhos bem educados,
corretos, profissionais conhecidos. Diriam todos: “Mulher feliz”.

Marta sentiu pena daquela mulher, que conhecia de perto e que tantas vezes
considerou frívola, se não ridícula: esta mulher era sua mãe e fraquejava diante da
força de erros que ela mesma sabia ter cometido, cobrando dos filhos um amor que
ela estava consciente de não merecer.

Tranqüila mas atenta, Marta se acreditava em paz quando julgava que deveria estar
aflita. A paz suposta lhe dava uma grande culpa.

No dia seguinte, Marta tentou reconstituir o tempo de cada um: daqueles que ali se
encontravam e de outros, ausentes naquela noite mas que, sendo irmãos, ela
imaginava deviam ter alguma ainda que remota participação no que se passava com a
mãe, que não era apenas dela, mas de todos.

Marta, a terceira dos filhos de Deolinda, se lembrou de que, ainda criança, impedida
de brincar com os irmãos maiores, e mesmo com outras meninas, era obrigada a ficar
assentada junto da mãe que, por não ter amiga de sua idade, fazia da filha sua
confidente.

A mãe lhe falava do pai, o avô de Marta, e o fazia com tanto carinho que até a filha se
apaixonou pelo homem rude e alegre, aquele avô que ela nem sequer chegou a
conhecer.

E, se era certo que muitas vezes a mãe lhe contava histórias alegres do tempo em que
ela havia sido uma adolescente, e feliz, não raro a mãe lhe falava do marido, o homem
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que, em troca de poucos prazeres, lhe tinha tirado até o direito de pensar.

Mas, o marido mau de Deolinda era o pai de Marta. O pai, que quando vinha do
trabalho trazia brinquedos ou bombons para os filhos e para Marta, tão fraca que mal
podia andar, ele oferecia os braços e lhe dizia palavras de carinho.

E Marta logo se esquecia de que o homem chamado senhor Otávio, era o marido ruim
de sua mãe, e se lembrava que ele era o pai afetuoso, todas as tardes abraçando a ela e
aos irmãos, como se os quisesse proteger de tudo, quem sabe até da própria mãe.

Quando adolescente, Marta visitou a avó e a tia mais nova. Também elas lhe diziam:
“Marta, venha ficar comigo, não brinque na chuva, você será sempre a mais fraca
entre seus irmãos, sua saúde precisa de mais cuidados.”.

Quando uma tarde os irmãos saíram e só Marta estava em casa, a tia lhe falou: “Você
teria sido a mais saudável de seus irmãos, você resistiu a todas as tentativas de aborto
de sua mãe, você é a mais fraca dos que nasceram, mas muitos de seus irmãos, nem
sequer chagaram a termo. Sua mãe os matou antes que nascessem.”.

Marta parou o assunto, como quem para um automóvel à frente do perigo, evitando
que a tia lhe falasse do passado, que ela pressentia, e que, por defesa, não tinha ao
menos a intenção de ouvir.

Desde esse tempo, Marta percebeu que as pessoas são parciais em suas informações:
“bons são aqueles a quem amamos, maus são os outros”. Impingimos nossas
impressões àqueles que nos ouvem. E para afastar as manipulações alheias, Marta
ainda criança, adquiriu o hábito de juntar palavras que os outros diziam e,
pacientemente, conferi-las com fatos evidentes. Descobrir verdades que não lhe eram
ditas claramente. Uma verdade com a qual ela estivesse de acordo, dentro de uma
lógica que ela julgasse possível.

Atos e palavras da mãe deixavam claro que, dos filhos, o único de quem ela gostava,
pelo simples fato de ser seu filho, era Gilberto, o mais velho de todos.

Dos outros, os filhos não amados, um deles, Pedro, conseguiu se aproximar da mãe
quando, já adulto, sofreu um acidente, não de avião, como era de se esperar, mas de
automóvel, e circunstâncias especiais fizeram com que, dele, e não de nenhum outro,
a mãe fosse obrigada a cuidar como se espera cuidem as mães.

Pedro, o motorista daquela noite, foi o único a se machucar, e a perícia feita no local e
no automóvel, mostrou que, dentro da lógica aparente dos fatos, quem deveria ter se
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ferido seria a mãe e não o filho.
E, se isso não aconteceu, foi porque a destreza de Pedro e seu inconsciente amor pela
mãe, fizeram com que ele, bom motorista, mudasse o esperado, ferindo-se ele, e não
ela.

Apesar disso, quando Pedro deixou o hospital e voltou para casa, a mãe foi, de início,
um tanto displicente nos cuidados que deveria ter com aquele filho que havia se
exposto a um grande risco para evitar que ela sofresse.
E foi neste tempo que Higínia, sempre muito franca e autoritária, e já estudante de
Medicina, disse à mãe:

“Não posso passar o dia aqui vigiando esta casa, pela qual a senhora deve responder,
mas, se quando eu voltar, meu irmão não houver tomado os remédios que lhe foram
prescritos, comunicarei tudo a meu pai. A senhora sabe que Pedro necessita de ajuda,
ele não pode ao menos se movimentar.”

A mãe, mais do que do marido, tinha medo de Higínia e, até não eram só eles, mas,
naquela casa, todos tinham medo daquela moça, de poucas e justas palavras, e de
quem todos os atos eram um esforço para atingir a perfeição.

Desde esse dia, quando Higínia voltava da faculdade ou do hospital, a mãe havia dado
todos os remédios a Pedro, fazendo isso com tanto carinho, que, vendo-a,
pensaríamos que ela o fazia por si mesmo, e não por medo da filha e do marido.

De ter cuidado do filho, restaram para sempre duas conseqüências: ela poder falar
com amigos de sua dedicação a esse filho, e, tendo sentido a bondade e paciência com
que ele havia suportado a dor temporária, sentiu uma ternura permanente por esse
filho bom, um filho que, como os outros, displicentemente, ela havia tido.

Das filhas, a mãe sempre manteve distância. Não se sabe exatamente porque, mas
Marta pensava naquela segunda feira: “Talvez esse desamor houvesse nascido porque
havendo em cada uma a projeção de mãe, ainda que em futuro, a mãe invejasse nas
filhas a possibilidade de alegrias que ela não havia tido e a idade lhe dizia que não iria
ter.”.
E entre as dúvidas de Marta, havia pelo menos a certeza de que, entre as filhas, a de
quem a mãe menos gostava, era ela: já de pequena, magra, doente e feia, ela em nada
acrescia à ingênua vaidade da mãe e, ainda mais, esta filha, do pai recebia sempre
piedosas atenções.
A mãe também não gostava de Higínia e, no entanto essa era uma filha inteligente e
saudável. As razões nesse caso eram outras. A primeira filha era bonita e, dela, o pai
sentia um orgulho incontido, sem aquele sinal de piedade que se podia encontrar no
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afeto que o pai dedicava a Marta.

Mais tarde, quando Irene se tornou uma menina grande e se fez diferente de todas as
outras, a mãe, e também Higínia, a colocaram em segundo plano, como se da família
não fosse. Marta percebeu que Irene era menos querida porque, mais bonita, mais
alegre, era sempre quem, por bons motivos, atraía lisonjeiros comentários de amigos e
vizinhos.

Bastou isso para que a mãe, desde então, encontrasse em cada filha muitos defeitos,
alguns deles notados também pelos irmãos. Higínia era franca além dos limites
convencionais e, muitas vezes, exigia, sem qualquer direito, que os irmãos, e até os
pais, pensassem e agissem da forma que ela julgava correto. Marta era quieta e, afora
sua qualidade de ouvinte, tudo nela era inteiramente fraco ou apagado. Irene era -
diziam - doentiamente vaidosa.

Mas, Irene, que em jovem não se preocupava com o que pensassem os outros, e
menos ainda os da família, continuou o seu caminho, sempre igual ao que ela mesma
traçava.

Um caminho que não era o de Marta, feia e sem inteligência, nem o de Higínia, que se
comportava sempre de modo que os outros a julgassem mais inteligente do que
efetivamente era.

Isabel queria o seu mundo escolhido e delimitado por ela mesma, nos limites do que a
fizesse feliz, para ela, os outros, quaisquer que fossem, ficavam muito distantes, não
importava onde.

Dos filhos, pensava Marta, a mãe, de início, gostava muito de Gilberto, esse filho
nascido no começo do casamento, quando Deolinda ainda admitia que alguém
pudesse viver oitenta anos sem quaisquer problemas, mais ainda, irresponsavelmente.

E Deolinda teria amado esse filho com o mais puro e dedicado afeto, não houvesse
ele, ainda muito jovem, cometido alguns erros, graves não pelas conseqüências que
deles advieram, mas graves para os padrões familiares que nem ela, a mãe, pôde
perdoar.

E a própria mãe disse muitas vezes: “Envergonha-me saber que um de meus filhos
tem entre seus melhores amigos pessoas não aceitas pelo mundo social, que tantos
esforços tivemos de fazer para que nos recebesse.”.

É que Gilberto, sempre unido aos amigos de sua primeira infância, levava para casa
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os amigos, conhecidos do bairro pobre, onde Deolinda e Álvaro tiveram o seu começo
de vida. Os filhos que haviam nascido naquele tempo haviam se esquecido desse
passado que Gilberto fazia questão de reviver, mostrando nas festas da família seus
antigos amigos, agora relegados por todos da casa. Isto Deolinda não podia perdoar,
como também não perdoava os modos rudes do filho, que se negou a se transformar
no moço elegante que a mãe exigia que ele fosse.

Mesmo assim, durante muito tempo, Gilberto foi um filho amado, mais do que Pedro
e muito mais do que Ari. Deste, ela, no máximo, sentiu pena e, por causa dele, teve
até remorsos, pois lhe foi de todo impossível amar esse filho, fisicamente tão parecido
com os irmãos, e de espírito tão igual ao pai, um homem por quem seus sentimentos
eram contraditórios.

Mas, foi justamente Ari que, por ser silencioso e saudável, não precisou tanto da
presença da mãe. Ele e ela mal se notavam. Por causa dele ela não se culpou de coisa
alguma, e ele não se sentiu tão obrigado a gostar dela. Um e outro viveram muito
tempo naquela casa, seguindo cada um o seu caminho, indiferentes os dois, como se
não fossem mãe e filho.

A infância de Ari não deixou lembranças especiais para Marta, ela o definiria como
um menino comum, mesmo não sabendo ao certo o que seria uma criança comum. É
que Ari brincava na hora de brincar, estudava muito quando devia estudar e não
falava, mesmo quando se esperava devesse falar.

Assim, aquela casa andou bem por muito tempo, todos seguindo os seus ***caminhos
e nem mesmo os erros de Gilberto ou as doenças de Marta trouxeram transtornos
aparentes. E, por isso ninguém se perguntava se alguma coisa estranha podia minar
essa calma, tão conveniente a uma casa de família.

As pequenas ou grandes preferências do pai ou da mãe andavam sempre equilibradas


e quase nunca muito perceptíveis.

Mas Marta, que em criança não brincava, já sabia desde esse tempo que a mãe não
havia tido o casamento feliz que era mostrado aos amigos nas grandes festas com que
se comemoravam os aniversários ou, até mesmo, na alegria das noites em que amigos
eram recebidos em casa, a propósito de nada.

Que o casamento de sua mãe começou ruim, Marta o soube, ainda na adolescência.
Certa vez, em visita *a casa da avó, a tia mais nova do que a mãe, na idade em que a
mulher admite que o tempo de se casar lhe escapou, disse-lhe:
“Seu pai era um homem pobre, com excessivo amor ao dinheiro, e que, embora
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houvesse desde o início proibido *a sua mãe, o exercício de qualquer trabalho
lucrativo, reclamava até de seus gastos mais insignificantes, como o brinquedo ou a
roupa comprado para aquele primeiro filho, nascido quando ainda existiam ilusões.”

E como as cobranças do marido, dizia a tia, chegaram a um nível que Deolinda não
*pode suportar, ela decidiu, contra o que pensava o marido, viver como havia vivido
em casa dos pais: trabalhando e mantendo-se a si própria.

Nesse tempo, Deolinda era mãe de Gilberto e Higínia, e, pensava ela, filhos não
passavam de uma restrição à liberdade. Desde então fez esforços para que outros
filhos não lhe viessem. Foi por isso que Mara só veio ao mundo cinco anos depois de
sua irmã, por um erro de avaliação a respeito do valor de certas plantas que sua mãe
acreditava fossem abortivas.

Essa informação, prestada pela tia, veio reforçar a indiferença de Marta, não apenas
para com a mãe, mas para com a maternidade, para com a instituição familiar, e até
mesmo por quaisquer grupos que se organizam em razão de quaisquer afetos. Marta
sentia isso e se reprovava.

Mesmo depois que Deolinda, sem o consentimento do marido, passou a trabalhar em


casa, como contadora de algumas firmas, outros filhos lhe vieram, nem um deles pelo
querer da mãe, e todos com absoluta indiferença do pai, que gostava de brincar com
crianças e, de filhos, ainda não tinha a exata consciência de que, para criá-los se
precisa de dinheiro. Mas, mesmo quando o soube, não teve grandes problemas, pois,
ao tempo, seus negócios iam muito bem.

E assim foram criados aqueles filhos, de um pai amável e severo, que, quando voltava
do trabalho, trazia-lhes presentes e brincava com eles, durante toda a infância em que
os meninos nada fizeram que não fosse exatamente à vontade daquele pai.

A mãe não era amável. Era às vezes severa, às vezes indiferente. Não era amável,
porque entre os filhos, muitos haviam nascido quando o casamento já havia se
tornado um desgosto. E era severa para que os filhos não deixassem de ser o que o pai
queria que eles fossem e ela não tivesse, por causa deles, outras amolações além
daquelas, já consideradas muitas.

Marta se lembrava, havia sido assim a sua infância, não muito diferente daquela que
haviam tido os seu irmãos e, segundo ela supunha, da maioria das crianças do seu
mundo.

Mas, o que ela mais queria saber agora, era o que a mãe cobrava de si mesma, agora
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aos oitenta anos, quando tudo isso era passado e nenhum dos filhos proclamava que a
vida lhes houvesse sido trágica ou mesmo diferente de tantas vidas que supunham eles
conhecerem.

Onde estaria a culpa que a mãe tinha sobre si, onde a culpa que ela atribuía aos
outros? Onde estariam as razões da culpa de Marta, por não sofrer com aquela mãe
que sempre lhe fora indiferente, senão hostil?

E Marta tentou buscar na memória outras coisas deste passado tão distante que
pudessem justificar o que havia de sombrio e de amaldiçoado naquela casa, onde
todos viviam tão sós e, nunca falavam aos outros do que lhes havia marcado a vida.
Marta se lembrava de que a mãe falava do avô e da avó, que eram pobres, ele sempre
alegre, e ela sempre triste.

A respeito do pai, sabia Marta, ele vinha de uma família que um dia tivera um nome
respeitável e até algum dinheiro, nome e dinheiro perdido juntos, quando a República
nos tirou a corte e seus ourives, e aqueles que ficaram não tinham mais ouro, e, se o
tivessem, não teriam o que fazer com ele. Os colonos daquele lugar não tinham tanto
apego às jóias.

Em solteira, a vida de Deolinda havia tido os encantos possíveis da juventude numa


família onde o trabalho era muito e o dinheiro pouco. Isso não impediu que o pai
deixasse de levar a filha a muitas festas, e o mesmo fizeram todos os irmãos, a família
inteira sonhando com a felicidade de Deolinda, única mulher no meio de iramos
homens, todos encantados com ela, porque nada embeleza mais do que os olhos do
afeto.

A mãe, muitas vezes, discordava desse modo com que o pai e os irmãos viam a moça.
E foi só por isso que Deolinda, não tendo chegado a ser de grande brilho na escola,
pelo menos conseguiu um diploma, suficiente para sua expectativa, que era apenas a
de entender tudo que fosse belo e agradável na vida.

Da família do pai, Marta sabia muito pouco, porque a avó, viúva desde cedo,
administrou sozinha o que o marido, morto ainda jovem, lhe havia deixado.

Foi então que a mãe de Álvaro, antes feminina e graciosa, vestiu toda a força dos
homens e fez com que os negócios progredissem e ainda teve tempo para criar,
segundo todos os bons princípios da fé e da moral, os três filhos que havia tido.

Forçada a ser mulher de negócios, a mãe de Álvaro, que nunca mais pensou em se
casar outra vez, matou todo o afeto que um dia havia sido capaz de sentir. E se fez
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tão justa e honesta que a cidade, e mais ainda seus parceiros comerciais, tiveram por
ela tanto respeito, que até os erros de todos se tornavam pequenos se ela não os
censurasse.

Esse respeito foi para os filhos um orgulho e uma carga durante toda a vida: se
praticavam um ato censurável as pessoas diziam: “Um filho de Laura não pode fazer
uma coisa dessas”.

Mas, se por outro lado, eles precisavam do aval de um nome, eles poderiam dizer
orgulhosos: “Sou filho de Laura”.

Marta não conheceu de perto a tia, irmã do pai e que se chamava Antônia, porque a
mãe nunca permitiu que seus filhos fossem à casa de sua cunhada. Mas, quando
Marta, desajeitada, deixava cair um objeto ou ela mesma caía no chão, à mãe
rispidamente a chamava de Antônia. Marta imaginava essa tia desconhecida como
uma pessoa que fosse a tudo um estorvo.

Quando cresceram os filhos do tio Jacó, irmão de Álvaro, e todos eles gostavam tanto
da tia Antônia, Marta pôde ver que a mãe, no mínimo a havia privado de uma pessoa
de quem ela poderia ter gostado com ternura.

A mãe também não gostava do tio, mas esse, pelo menos, Marta conheceu de perto
porque quando eram crianças, o tio vinha sempre contar-lhes muitas histórias que
nunca foram escritas em livros, e que, adulta, Marta descobriu eram inventadas
apenas para alegria daqueles sobrinhos tão queridos.

Por todas essas informações, Marta não podia fazer mentalmente a imagem de sua
mãe como igual a muitas outras mães, sempre maravilhosas, descritas nos livros
infantis, até então as únicas outras mães que Marta conhecia.

E foi desde esse tempo que Marta passou a ter olhos muito críticos para aquela mãe
exuberantemente vestida, que usava sempre colares e brincos, não suportava os
irmãos de seu marido e deixava que as empregadas cuidassem de seus filhos, ela
sempre ocupada com livros de contabilidade.

E Marta estava certa de que ela e a mãe eram pessoas tão diferentes que ninguém,
mesmo com esforço e aviso, poderia imaginar eram mãe e filha.
Ainda mais, porque, muitas vezes, por razões que a filha, menina ainda, não podia
entender, a mãe tinha crises de choro, se irritava com os filhos e o com as
empregadas, e depois de tudo isso, ficava afastada de tudo. Todos da casa diziam a
eventuais visitas que a mãe estava em viagem de turismo.
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Marta odiava tudo isso, sempre odiou mentiras, e então odiava a mãe que a fazia,
como a todos da casa, mentir a pessoas amigas que com freqüência visitavam a
família.

Tanto quanto isso, Marta odiava o trabalho profissional da mãe, quando via Pedro ou
Irene, os irmãos menores, que se machucavam nas brincadeiras, ou adoeciam como
adoecem crianças pequenas, e a mãe deixava que, os cuidados com eles ficassem a
cargo das empregadas. E, como que muito apressada, dizia: “Não tenho tempo para
cuidar de crianças, preciso ganhar o meu pão de cada dia”.

Então ficava no ar uma pergunta, cuja resposta, só muito tarde Marta veio a saber. Se
o pai era um homem bem sucedido em negócios, porque a mãe precisava, como dizia,
“ganhar o pão de cada dia”?

Quando Marta e Higínia se tornaram um pouco maiores, foram elas e não a mãe que
substituíram as empregadas no cuidado com os irmãos, ainda crianças, a mãe,
*obsedada pelo seu trabalho de contadora, ganhando, como continuava a dizer, aquele
infame pão de cada dia?

E tanto Marta e Higínia, que há esse tempo ainda se falavam com intimidade,
discutiam os pequenos mistérios não bem entendidos naquela casa. Ficavam ambas de
acordo em que o dinheiro ganho pela mãe era todo gasto em coisas inúteis, como
roupas bonitas e desnecessárias, com que a mãe gostava de se vestir, a ela e aos filhos.
Melhor seria, pensavam as duas irmãs, que tudo em casa fosse mais simples e
econômico e a mãe se desse conta de que antes de ser profissional, fosse ela dona de
casa.

Mas as filhas não ousaram censurar aquela mãe e, nem era preciso que o fizessem. O
pai estava ali para fazê-lo, dizendo à mulher: “Tudo que você compra com seu
trabalho é inútil e desnecessário. Esse trabalho não passa de uma fuga de suas
obrigações de mãe e esposa.”.

Era só isso que, ele poderia falar. De outras criticas havia se livrado a mãe, pois ela
pedia às empresas que todos os trabalhos lhe fossem enviados em casa através de uma
secretária. E para as filhas, ainda crianças, ela explicava: “Secretárias são quase
sempre mulheres e, assim, seu pai nunca poderá dizer que, em razão do meu trabalho,
homens invadem a nossa casa. E, menos ainda, a minha vida.”.

Marta e Higínia não entenderam as razões da mãe explicar aquilo e, de resto, com isso
não se preocuparam. A mãe, parecia lhes, vivia sempre se defendendo dos outros.
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Defendia-se antes mesmo do ataque. As filhas pensavam assim, neste ponto e há esse
tempo estiveram unidas.

Mas quando as crianças começaram a deixar de ser crianças e Higínia, não se sabe por
que instinto, encontrava-se com o namorado na casa da irmã de sua mãe, tia Ifigênia,
o pai, ao saber desse encontro tão inocente, não conteve o seu ódio.

“Como poderia Higínia, ainda uma menina, ter um namorado?” perguntava o pai em
voz alta pela casa, à hora do jantar, e ele mesmo respondia que “aquilo naturalmente
era um arranjo desavergonhado da família da mãe, onde as mulheres eram tão livres,
como se naquela família não existissem homens.”.

Higínia se levantou da mesa e Marta ouviu tudo com olhos tão grandes que pode ver
no rosto bonito de sua mãe, as lagrimas que ela não havia podido esconder.

Higínia, como todos, até a mãe, acreditavam que Marta teria sido, a pessoa que falara
ao pai, sobre a existência do namorado da irmã.

E Marta, que não sabia de nada, não teve como se defender, das acusações da mãe e
da irmã, menos ainda do ódio do pai, este porque imaginava que ela teria alcovitado a
irmã.

Marta ficou só e ela nunca havia tido mais do que a família.

Feia e desajeitada, ela se tornou ainda mais silenciosa, ouvindo e vendo, quase nunca
falando. Estudava muito, lia tantos livros que Ari chegou a dizer com malícia: “Se
Marta deixar de ler o mercado editorial ficará em baixa.” Marta não respondia.
Continuava a ler.

Mas isso não impediu que, uma vez, em obediência à ordem da mãe, ela fosse à casa
da tia, Ifigênia, já que, por ordem do pai, o lugar havia se tornado proibido à Higínia.

Marta, a menina-moça, a quem o pai começava a permitir saídas, porque era ingênua
e boa, ia à casa dos avós maternos e fazia as perguntas que, não podia fazer em casa:

Porque a mãe trabalha tanto?

E a tia solteira, sem muitas obrigações e com alguma idade, não gostava do cunhado
que lhe tirou a irmã, nem da irmã, que ela julgava feliz simplesmente porque casada,
dizia com prazer à sobrinha:
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“Sua mãe passou a trabalhar, porque o seu pai, logo ao nascimento de Gilberto, teve
coragem de devolver à loja tudo o que de melhor ela havia comprado para o enxoval
do menino. Só depois de casada sua mãe descobriu que seu pai ama o dinheiro mais
do que qualquer pessoa ou coisa, mais do que a ela e aos filhos. Essa nunca foi uma
característica de nossa família e, nos orgulhamos disso”.

E Marta lembrou-se de que as roupas bonitas e bordadas com que se vestiam ela e
suas irmãs eram sempre compradas pela mãe, mas não podia esquecer de que o pai
também lhes dava presentes. E quando de suas viagens sempre lhes trazia, para ela e
os irmãos, brinquedos tão lindos, que iguais ela nunca mais chegou a ver. No íntimo
ela discordava da tia, pelo menos do que ela havia falado sobre seu pai. Nele a menina
encontrava algum afeto, e senão por ela, pelo menos por Irene, Ari e Pedro.

Então Marta pensou que alguma razão devia existir para que toda a família de sua
mãe não gostasse daquele pai que, para ela, ainda continuava sendo um homem bom.

Mas, sobre isso a menina já acostumada a saber que para perguntas existem horas
certas, voltou para a casa pensando no de mistério que existia naquelas histórias
tristes que permeavam a vida daquela mulher que, por acaso, era sua mãe.

Depois, quando mocinha, o irmão de sua mãe, o tio Alberto, o mais rico dos irmãos,
nascido daquela família sempre pobre, havia estado na casa da mãe, e Marta escutou:
“Não, Deolinda, todos temos de suportar o que a vida nos manda. Se você estivesse
em nossa casa, é certo estaria entre nós, pessoas que a amamos, mas com tantos
filhos, não teríamos como ajudá-la e você não conseguiria o suficiente para mantê-
los.”.

E Marta ouviu a mãe se lamentar: “Se vocês houvessem deixado que eu me separasse
dele, quando apenas Gilberto tinha nascido, tudo teria sido mais fácil, agora eu
mesma vejo que isso não é mais possível. Naquele tempo vocês não me quiseram
ajudar”.

A mãe havia assim recriminado também o irmão, como se fosse ele o culpado do seu
casamento, ou fosse obrigado a ajudá-la a sair de uma situação em que ela, por razões
próprias, havia se colocado.

E por que Deolinda chorasse, o tio pediu que Marta os deixasse a sós ela o fez. Mas,
logo depois o pai chegou do trabalho. Assustou-se com a presença do cunhado, mas,
depois, confiante, convidou-o para ficar com eles algum tempo ou, pelo menos
aceitasse jantar com eles.
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A mãe, o tio, o pai e todos os sobrinhos jantaram juntos. E, pareciam tão felizes que
quando Marta entornou sobre a mesa a jarra de água, ninguém a chamou de
desajeitada.

A mãe parecia feliz. Marta não entendeu. Como seriam eles capazes de inventar para
o pai aquela alegria e amizades inexistentes, se pouco antes tudo o que haviam falado
era tão diferente?

O tempo foi passando, os filhos cresceram e Gilberto, que já não era muito novo e tão
alto quanto o pai, que disto se orgulhava, conseguiu a carteira de motorista, muito
mais desejada do que diplomas de quaisquer escolas.

A mãe não queria o filho dirigindo automóvel: ela imaginava que ele estaria nas ruas
correndo riscos, a conquistar mocinhas, abreviando etapas em sua vida, quando, por
ser novo, ela estava certa, a vida lhe daria tempo para todas as aventuras e prazeres,
independentemente de quaisquer corridas.

Mas o pai entendia de outro modo. Os homens têm de ser livres, porque se conhecem
a liberdade, dela irão gostar, e isso lhes dará mais força para a luta. Os homens devem
ser guerreiros, assim pensava o pai.

E quando a mãe interveio no assunto, o pai, sempre muito sábio, disse e, ao dizer era
sóbrio como o são os mestres: “Toda mãe quer o filho eternamente criança, para que
os outros a vejam como jovem... Isso, como se o tempo não nos envelhecesse a todos.
Com ou sem o filho dirigindo automóvel você envelheceu Deolinda, não há mais
recurso.”.

Isso disse o pai, como se derrotasse um inimigo. Foi a primeira vez que Marta
percebeu no pai a sutileza da maldade.

E a mãe disso não mais falou, nem mesmo quando das saídas noturnas de Gilberto
resultaram muitos cheques sem fundos e acidentes menores, e o pai se enervou com o
filho por causar danos ao carro, o que custa dinheiro.

Mesmo assim o pai ainda encontrou outra razão para deixar sem razão a mãe:

“Quando a mulher não usa a infância de seus filhos para lhe passar os valores que
deveriam ser seus, esse filho lhe trará problemas. Em meus filhos desculparei tudo
porque eles não tiveram mãe.”
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Era isso o que o pai dizia quando Gilberto lhes telefonava da rua para falar do carro
batido ou o pai, por quaisquer outros meios, descobria os erros do filho.

A mãe, mesmo nos tempos em que parecia mais distante do pai e dos filhos, sempre
foi muito solicita, quando a escrita dos negócios do pai precisava de alguma ajuda
sua. Se nelas algum erro existia, e ela não o conseguia corrigir, voltava para casa,
irritada com tudo e, nessas crises de irritação, repreendia os filhos por erros nem
sempre cometidos e, com palavras humilhantes, massacrava as empregadas.

Se, em razão disso, alguma serviçal deixava a casa, o trabalho deveria ser feito por
Marta ou Higínia, ainda que as filhas tivessem importantes trabalhos na escola.

Com isso se irritava o pai. Suas filhas - dizia ele - não foram educadas para esse tipo
de serviço, que nunca deu lucro a ninguém.

A mãe argumentava, alegando que o futuro era incerto, e, mulheres elas sempre
seriam, e melhor seria que elas começassem a entender desse serviço, se não para
fazê-lo, pelo menos para que a outras mulheres pudessem mandar que o fizessem.

O pai sempre pensou diferente. Trabalho é o que rende dinheiro, e tendo dinheiro
pode-se pagar sempre àqueles de profissão mal remunerada. Disto nascia outra razão
de atrito entre o pai e a mãe, e era até bom que assim o fosse, porque estas
divergências, podendo ser faladas em público, serviam como justificativas, quando,
por outras razões, o casal deixava perceber aos amigos seus desentendimentos
inconfessáveis.

E para surpresa de Marta, na noite que veio depois de um desses dias, a mãe não
estava em casa à tarde, e mandou ao pai, por Higínia, um recado de que poderia se
atrasar para o jantar. O recado poderia ser normal, mas soou como estranho.

“A mãe mandou dizer que foi fazer uma visita e não sabe a que horas deverá voltar.”

A mãe não tinha hábitos assim. Sempre que saia, o marido era informado do lugar
exato onde poderia encontrá-la e o horário de sua chegada era observado como se
determinado pelo sino de uma escola. A mãe nunca havia se atrasado para as
refeições.

O jantar foi em silêncio, o dois menor, Ari e Irene, recolhidos pela empregada e os
mais velhos recolhidos por si mesmos. A mãe, ninguém sabia onde ou como estava.

Quando a mãe voltou a casa, acabavam os outros de jantar, não houve palavras, ela
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apenas foi se descalçando, desabotoando a roupa, e dirigiu-se ao quarto, onde o pai
logo se recolheu. E no silêncio dos outros, a fala alta do pai se fazia ouvir.

Do que falaram ninguém comentou e, para Marta, não houve surpresas: um homem
tentando manter o seu mando, uma mulher buscando a liberdade.

As crianças puderam brincar com as irmãs mais velhas.

Gilberto sofria agora o castigo pelo abuso da liberdade que o pai lhe dera, por todos
os seus erros, tudo tão dentro da normalidade.

Higínia, punida pelo namoro, que não havia começado de todo.

Eram filhos perdidos para a mãe e para o pai.

Pedro, já adolescente, não se ligava mais em seus brinquedos. Irene andava pela casa,
desenhando bichinhos ou brincando com as bonecas. Ari era mais do que uma
criança, mas não chegava a ser um adulto, pelo menos era o que pensavam os pais.

A mãe, presa aos seus livros de contabilidade, não os vinha ver.

E o pai, quando chegava do trabalho, Irene, já muito crescida para isso, se assentava
nos joelhos dele, derramava sua alegria sobre todos e, até parecia que a ausência da
mãe os fazia mais felizes. Dela, ninguém se lembrava.

Essa ausência estava se tornando normal e pela mãe ninguém mais perguntava, como
se naquela casa não fosse ela mais do que visita raramente convidada.

Marta pensou durante muito tempo que a mudança de comportamento da mãe havia
se dado apenas em razão dos erros de Gilberto.

Mas agora, que a mãe não podia contar com Higínia, que não a ouvia, novamente
Marta voltara a ser a ouvinte da mãe, transformada, depois de vinte anos de
casamento, em alguém sem amigas, com filhos que dela se afastavam, com um
marido que se transformava pouco a pouco em um estranho.

E foi então que Marta veio a saber de muitas outras histórias, que haviam feito a
história de sua mãe.

E no correr do tempo, a mãe foi contando à filha, pouco a pouco, as razões que ela se
dava para nunca mais indagar o que era ou não do agrado do senhor seu marido, o
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homem que assim ela chamava com ironia.

E Marta não perdoava a mãe, que lhe falava desse passado, do qual, por não ser parte
dele, não se sentia no direito de intervir. A filha sempre se lembrava de que aquele
homem era o seu pai, e que ela, a filha, nada tinha a ver com as histórias vividas pela
mãe, antes mesmo que ela, Marta, houvesse nascido.

E a mãe, certa vez disse:

“Quando você nasceu, filhos já não faziam parte dos meus desejos: Filhos são, para
mim, mordaças e grilhões que, um dia, me impediram de ganhar a liberdade. Dela eu
usaria com cautela, a mulher nunca é livre. O mundo sempre nos dita o que podemos
fazer, mas, os meus limites não seriam aqueles a que me obrigam nesta casa. E uma
casa tem sempre um senhor. E meu limite, eu sempre quis que fosse do tamanho do
mundo, mesmo que esse mundo fosse apenas um mundo de mulher. Em minha
família as mulheres sempre foram muito livres, sempre fizemos o que desejávamos.”

E Marta, desde então se sentiu culpada de ser filha, de ter roubado a liberdade dessa
mãe. Antes já se culpava de ser desajeitada e feia, agora a mãe lhe dava outra razão
para culpas. Marta odiava essa mãe, e sem saber por que, estava sempre presente,
procurando ouvi-la, cheia de atenções.

Foi muito tempo depois que Marta ficou sabendo.

Seu avô materno havia morrido e de material havia deixado muito pouco. Não
chegava a ser o suficiente para que a viúva vivesse tranqüila. O genro, o pai de Marta,
por mais entendido de negócios do que os irmãos de Deolinda, se pôs a cuidar de tudo
e, quando instado a devolver, não o quis fazer, porque dizia ele que melhor de que os
próprios filhos ou a viúva, ele faria com que o pouco se multiplicasse e se
transformasse em muito.

Mas o irmão de Deolinda entendeu que isso não era certo, o genro era ainda na
família um recém chegado, porque ser ele a cuidar dos negócios, se todos os filhos,
ainda que mais pobres e menos entendidos, eram seguramente mais honestos?

E foi o seguramente mais honesto, que é diferente de tão honesto quanto, o que deu
origem à discórdia e quase partiu o casamento de Deolinda. E se o nascimento de
Marta ainda foi possível, foi porque plantas abortivas muitas vezes falham e, dessa
vez, haviam falhado.

Isso Marta ficou sabendo muito em segredo, a irmã de sua mãe já lhe havia contado.
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O que não se falou foram das razões porque o casamento de Deolinda se recompôs, já
que depois de tudo isso nasceram Marta, Pedro, Irene e, ainda, Ari.

Mas mesmo refeito o casamento, aquela casa nunca mais foi igual, ao que dizem
serem as outras. O que dizem não se assemelha ao que é: em família somos todos
partes, somos cúmplices. É mau. É feio. Marta nunca faria isso. Já lhe bastava ser
magra, feia e desajeitada.

O que Marta via era um casal que se unia pelo trabalho e por pequenas e leves
cortesias, talvez mesmo se dessem muito bem e até se amassem. Os que se amam,
acham normal o amor, ainda que ele importe em muitas mágoas, muitos segredos e
reticências.

E, pensando bem, ou Marta não entendia o casal, ou não entendia o amor. Na casa de
Deolinda, afora as proibições do marido, as palavras eram normais, as comuns de
todas as casas, mas a elas não se igualavam o atos. Nestes, as mais das vezes, marido
e mulher pareciam se odiar, um ódio mudo, sem maiores perigos.

E porque continuavam juntos? Perguntava-se a filha, que isso nunca perguntaria aos
outros um absurdo destes. Haveriam de dizer que os pais, ela os preferiria separados.
E Marta se culpou porque descobriu que realmente a esta lhe parecia a melhor
solução.
Quando as filhas se tornaram mocinhas, Marta se lembrou, o pai não as repreendia
nunca, era sempre gentil e carinhoso e a mãe se fez há esse tempo, aquela que proíbe.
Era a mãe que sempre repreendia as filhas, não permitia que saíssem com estranhos,
falassem com rapazes ou freqüentassem festas. Se saíssem de casa, deveriam ter a
companhia de irmãos ou dos pais.

O pai, ao contrario, era amável. Muitas vezes permitia o que a mãe já havia proibido,
e, de suas viagens trazia presentes lindos. A mãe sempre se ocupava do trivial: dava-
lhes vestidos comuns e todas as roupas íntimas, quando muito uma jóia, muito
brilhante e falsa.

Já com os filhos, mesmo já adultos, não era a mãe quem exercia funções de mando.
Essas as tinha o pai, e o fazia com autoridade tal que muitas vezes Marta teve dúvida
se seus irmãos eram filhos ou escravos.

Marta sofria com isso, sempre viu em seus irmãos uma parte de si mesma e, aos
poucos, tanto ao pai quanto à mãe, não foi capaz de ver senão como os donos da casa,
dos bens e dos filhos. Marta estava consciente de que não os amava, e esta culpa lhe
era extremamente pesada. E Marta pensou que o pai nunca havia sido tão bom quanto
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em sua infância ela o imaginava.

A mãe, a maior parte do dia ou até da noite, mesmo depois que o pai chegava do
trabalho, permanecia no escritório e fazia sempre a contabilidade, como se nem
soubesse que eram dela aquele marido e aqueles filhos...

O pai brincava com as filhas, falava de seus negócios, o que de princípio elas nada
entendiam, depois vieram a entender, e foi até por isso que Higínia se reconciliou com
ele, passados já os desentendimentos de quando ele a proibia de freqüentar a casa da
tia, onde um principio de namoro ingênuo havia começado.

Mas foi também por esse tempo que, para Marta, o pai começava a ser apenas um
profissional que, como professor, a ensinava coisas que ela não queria e nem dava
conta de aprender:

Isso tudo aconteceu porque o pai com suas doutrinas, dizia que Marta era ingênua e
nada aprenderia do que lhe ensinasse a vida, Higínia sim, era muito mais esperta. O
pai admirava Higínia, tão igual a ele, e ela se anulava para que ele a admirasse cada
vez mais.

Nenhum dos dois admirava Marta, e ela se sentiu livre para não se igualar a nenhum
deles e até mesmo para lhes ser indiferente, nunca hostil. Ela não seria capaz disso.

Gilberto polarizou o amor materno, aproximou-se de Higínia e nem assim conseguiu


o amor do pai. Ari foi sempre um filho distante da família, o mais alegre quando na
escola ou na rua e, em casa, só muito tarde descobriram as qualidades que o fizeram
brilhante no mundo dos negócios.

Pedro, o mais tímido de todos, de palavras pensadas, não era especialmente amado em
casa, mas era dele que ninguém se queixava.

E isso era justo, ele se mantinha exatamente nos limites afetuosos de um estranho.
Estudioso obediente e, sobretudo, humilde e gentil. Ainda jovem, sem que ninguém se
interessasse saber o porquê, Pedro havia optado por uma escola militar, onde lhe era
pago um salário que, se não era grande, pelo menos o fazia independente do pai, a
quem, Marta pensava, o filho não admirava em nada.

E foi exatamente o acidente de automóvel que o fez inválido para o trabalho militar,
deixando-o com um soldo irrisório, complementado por trabalhos esporádicos, que o
mantinham agora, a ele, à mulher e aos filhos.
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Irene, ainda bem criança, era a quem o pai trazia em seus joelhos, interrompendo
quaisquer conversas, para mostrar-lhe na parede os bichinhos feitos com a sombra de
sua mão.

Das irmãs de Marta foi Irene, quando cresceu, a que, primeiro ignorou a severidade
do pai e a indiferença da mãe. Tinha com eles a espontaneidade que se espera de uma
filha, não os temia a nenhum dos dois, nem aos irmãos. Irene, esperava-se, de todos
aqueles filhos, seria a mais feliz.

De Ari, Marta se lembrava sempre como um menino cuja perfeição a assustava. De


todos, ele e Gilberto, haviam sido os únicos a terem amigos fora de casa. Mas,
enquanto Gilberto nunca foi, em criança, estudioso e, em adulto, dado ao trabalho, Ari
fazia tudo intensamente. E mais de que isso, tudo com objetivos muito definidos,
media resultados e estes sempre lhe vieram.

Durante a juventude deles, havia em casa uma desordem pacífica. O pai e a mãe,
cada um cuidando de seus interesses; os filhos, cada um a seu modo cumprindo seus
deveres de estudantes, algum por interesse próprio, outros, pelo medo silencioso
sentido em relação ao pai, mesmo quando este estivesse em silencio ou até contente, o
que era raro.

A idade veio chegando de mansinho para todos, tornando em rapazes e moças, os


filhos de Deolinda. Todos o perceberam, menos ela, sempre presa, agora, não só ao
trabalho, mas a algumas diversões, na maioria das vezes, sem a presença ou a objeção
do marido.

O homem da casa é que as mais das vezes conversava com os filhos, descrevendo-se
como pessoa de todos os bons adjetivos, sem esconder a capacidade de torná-los tão
perfeitos quanto ele mesmo, o pai, ainda que para isso devesse usar mão de ferro.

Dos filhos homens, Gilberto foi o primeiro a procurar a rua, ver as mocinhas de sua
idade. Ninguém tinha certeza se era para ver pessoas ou se, simplesmente, para fugir
da presença do pai que, ao vê-lo, tinha palavras cheias de rancor para com aquele
filho, que sem grandes defeitos, não era exatamente aquele que a vaidade paterna
esperava que fosse.

Foi desde esse tempo, o pai se aproximando de Higínia, Gilberto passou a ver nessa
irmã, a protegida, o obstáculo que o distanciava ainda mais daquele pai que sempre o
atormentou.

A diferença foi se fazendo tão grande que eles um do outro se afastaram


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definitivamente, e o rapaz foi, aos poucos, se transformando num estranho dentro da
casa de seus pais. Na verdade, Marta se lembrava, esse afastamento de Gilberto
aumentou quando, de seu casamento, se descobriu que a mulher escolhida parecia
muito diferente de todas as da família e, por essa diferença, a mantiveram à distancia,
todos um tanto amedrontados.

Higínia seguiu o caminho que se tinha como certo. Foi brilhante na escola e foi
lamentável que o seu casamento não fosse tão duradouro quanto o queriam todos.

Em pouco tempo Higínia se tornou viúva de um homem que ela diria sempre “o mais
inteligente deste país”. E Marta chegava a pensar que, se a morte do marido da irmã
havia causado tanto sofrimento, por outro lado se compensou: não houve tempo para
que ele trouxesse à sua jovem esposa qualquer decepção. Por outro lado, desde a sua
morte, Higínia nunca mais pensou em outro homem e em todo o tempo de sua vida
não fez mais do que trabalhar e olhar o retrato do homem que havia morrido.

A morte do marido fez com que Higínia se afastasse de tudo que não fosse livros e
clientes. E por isso foi grande a surpresa quando esta filha, silenciosa e indiferente,
quis voltar a viver na casa da mãe, cada vez mais afastada que esta era de todos, e
todos dela se afastando.

Esta mãe distante, depois de casados alguns filhos, passou a ser solícita. Talvez
porque já não lhe interessasse tanto a contabilidade, ou porque percebesse que o
marido, se não era exatamente um velho, começava a ficar doente.

E foi por isso, pensaram todos, quando nem Deolinda nem Álvaro compareceram ao
sepultamento da mãe desta, ninguém pensou fosse isso em razão de algum problema
entre eles. Pensava-se que o marido estava doente, e a mulher, por dedicação, não o
deixaria para ver a mãe morta.

Nunca se teve certeza se isso não foi um propósito dela, que sempre descobria uma
razão para dizer, principalmente às filhas, que o marido era o mais odioso de todos os
homens e sem razão alguma havia proibido à mulher de viajar para assistir o
sepultamento da própria mãe.

Essa dúvida durou tantos anos, que durante o sepultamento de Álvaro, Deolinda o
mencionou, como se fosse ela a mulher que adorava o marido morto.
“As pessoas nunca imaginaram quanto ele sofreu, quando da morte da mamãe,
estando o Ari muito gripado, ele e eu julgamos imprudente que eu me afastasse de
meu filho doente, só para ver a minha mãe, que já estava morta.”
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Sobre este episódio a verdade nunca foi dita. A vida familiar seguia o seu caminho. O
tempo à frente.

Gilberto ia à faculdade, na sua vida nada falava, recusava o carro do pai, passava o
dia, e muitas vezes a noite, na escola.

Em casa, a luz acesa de seu quarto denunciava que ele ainda estudava. Se em sua
vida, alguma menina ou moça apareceu, em casa ninguém, nem mesmo Marta, nunca
ficou sabendo, a não ser quando ele formalmente anunciou seu casamento com a
estranha.
Higínia, sempre mais próxima do pai, tão próxima foi ficando que, com o estímulo
desse único afeto, ela fez dele um deus, e dele se tornou a imagem e semelhança.

O que dele, nela não foi exatamente igual, foi que ele era um homem, e ela mulher,
mas os adjetivos a um e outro cabíveis, foram sempre os mesmos. Assim pensavam
todos, mesmo Deolinda, que aos desagrados de Higínia, sempre dizia: “É igual ao
pai.”.

De Pedro, as aventuras com carros, asas Delta e assemelhados, chegavam como


notícia aos outros irmãos e, para cada um deles tudo isso era segredo. Em casa,
ninguém contaria a quem quer que fosse que Pedro, o irmão mais gentil e mais
amado, andava a fazer de sua vida o que não fosse o desejo daqueles pai e mãe tão
temidos.

Marta, a menina comum, se tornava moça e continuava quase igual ao que sempre
havia sido, como uma sombra sem qualquer destaque, sem fortes emoções, neutra
como devem ser as testemunhas, os olhos e os ouvidos atentos, sempre prontos, tudo
em silêncio.

Irene, longe de tudo, foi tranqüila em sua infância, nada vendo, nada ouvindo, o seu
mundo não estava em casa, o seu mundo era ela mesma, o rosto bonito refletido no
espelho, a não ser quando alguma obrigação imperiosa a proibia de se ver.

A vida de Irene, das irmãs de Marta, foi a que a todos pareceu melhor, mesmo que,
em família, às vezes se comentasse fossem ela e o marido dois irresponsáveis. Isso
porque um e outro não se preocupassem com o futuro, e todos os dias estivessem
dispostos à felicidade, sem nunca pensar o que lhes aconteceria no amanhã. Deram
sorte, pensava Marta, o amanhã nunca lhes trouxe qualquer problema, até mesmo seus
filhos pareciam sempre muito felizes e saudáveis.

Também os irmãos eram agora casados, e ainda que a Marta, alguma de suas
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cunhadas não lhe fosse simpática, nem ela poderia deixar de reconhecer que, para
com Deolinda, a mãe de seus maridos, todas eram gentis, atenciosas, até mesmo
dedicadas.

Marta, solteira, havia saído de casa, mas Higínia voltou. E isso, quaisquer que fossem
as razões dessa volta, não deixava de ser uma grande homenagem à mãe, pois Higínia
tinha perfeitas condições de morar só e bem. Ainda mais, a volta de Higínia se deu
pouco depois da saída de Marta e muito depois da morte do pai. Não se podia ignorar
que Higínia voltou para casa exclusivamente para fazer companhia à mãe.

Revista a historia, Marta estava certa de que Deolinda se deprimia por exigir muito da
vida. Na verdade, voltava a concluir Marta, os problemas que a mãe viveu eram de
pouca importância. A mãe havia esperado da vida mais do que merecia. Por ter
pensado isso, Marta se culpava de sua impiedade.

Continuando seu raciocínio, a filha pensava: a mãe e o pai viveram muitos anos de
casamento, e a viuvez poderia ser um problema, mas não haveria de ser tão grande, já
que o casamento não havia sido bom.

Pelo menos assim pensava a filha, que, enquanto viveu naquela casa, da mãe não
ouviu mais do que lamentações, povoadas de amargura, portanto a morte do pai não
seria para mãe uma tragédia.
Durante a doença do pai, a mãe havia sido muito dedicada, e os filhos não menos.
Seria até possível dizer que o pai havia morrido como o rei que sempre fora.

Com a morte do marido, Deolinda deixou de vez o seu trabalho. E a viuvez de


Higínia, cujo casamento não trouxe filhos, fez com que esta filha retornasse à casa da
mãe, fato não bem compreendido pelos outros filhos, mas que não deixou de ser um
conforto para aquela mãe, ainda jovem e tão disposta a viagens e outros prazeres
comuns da vida.

Mas, não só pelas viagens, a volta de Higínia para a casa materna devia, supunha
Marta, ter representado um gesto de afeto para a mãe. Higínia era uma profissional
competente, por si mesma devia ter ganhado muito dinheiro durante o casamento, isto
e mais ainda o que lhe veio como cônjuge e meeira. Portanto, sua volta ao lar materno
havia sido um ato de liberdade. Tudo indicava, voltou para a casa da mãe apenas por
afeto e solidariedade.

Conquanto Marta não houvesse dito a ninguém as razões porque resolveu deixar a
casa da mãe, ao tempo falou sinceramente de um dos seus motivos. Marta, quando
saiu de casa, tinha a idade que a autorizava pensar que jamais se casaria e ela mesma
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havia dito: “Não vejo razões para que o fato de eu não ter um marido, me obrigue
também a não ter uma casa.”.

A mãe havia dito naquele domingo que havia sido expulsa da casa da filha mais nova.
Isso Marta sabia, fazia parte do mundo doentio em que a mãe se encontrava então.

O que se passou foi o seguinte: Deolinda estava em visita à casa de Irene, esta
morando em cidade que a mãe pouco conhecia.

Irene percebeu que a mãe não ia bem de saúde e Deolinda se recusou a consultar
quaisquer médicos não conhecidos dela. Irene entendeu, então, que a mãe devia voltar
para a própria casa e consultar seu médico. Depois, se o quisesse, a visitasse em outro
tempo, quando sua saúde estivesse melhor.

Na realidade, a filha não a expulsou de casa. Deolinda disse isso porque não
compreendeu o gesto da filha, que desejava fosse a mãe cuidada por seus excelentes e
conhecidos médicos.

Marta não encontrou razões para a depressão da mãe, pelo contrário, a filha pensava
neste momento: “A mãe havia até tido mais de que efetivamente merecia.”.

A indiferença com que sempre havia tratado a todos não lhe deveria ter gerado
expectativa de mais afeto ou conforto, do que lhe davam todos os filhos e, não só eles,
também as noras e genros, estes talvez por que chegaram em meio ao caminho da
história.

De toda forma, Deolinda era a mãe de Marta, e quando Gilberto telefonou à irmã,
dizendo que além dos cuidados médicos que seriam proporcionados a mãe, ele e os
outros irmãos, com quem havia falado, haviam se lembrado de que a mãe se sentiria
muito feliz se, no seu aniversário, os filhos lhe oferecessem uma grande festa.

E Marta se pôs de acordo com o irmão. Agradou-lhe muito saber que não só os
irmãos, como noras e genros, ficaram felizes com a idéia de homenagear aquela mãe,
sempre tão distante de todos.

O que se viu, na realidade, foi um estrondoso mutirão familiar na organização daquela


festa. E Marta até pensou que tamanho movimento teria mais justificativas do que
aquele aniversário, quando a mãe, ao que se sabia, nem havia sido tão mãe assim.

Logo as mulheres da família, sempre preocupadas com minúcias, se defrontaram com


problemas. O primeiro deles estava em se descobrir se o tio Jacó e a tia Idalina, que
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sempre tiveram, quanto à mãe, restrições muito sérias, deveriam estar entre os amigos
e familiares que seriam convidados.

O outro problema igualmente sério para as mulheres, seria o caráter de surpresa que
se queria fosse aquela festa para a aniversariante. Isto se resolveu de modo não muito
conveniente, entenderam todas, mulher alguma gostaria de ser surpreendida por uma
festa, ainda que não em homenagem a ela. Todas esperam o direito de escolher, com
antecedência, a roupa que devem vestir, a pessoa que lhe penteará o cabelo e até a cor
do esmalte que irá usar na oportunidade.

Isto demanda muito tempo, principalmente para a mãe, sempre muito zelosa de sua
aparência, mesmo que filhos lhe fizessem uma grande festa, não seria capaz de
perdoar-lhes se não lhe dessem tempo de, em algum lugar a que ela fosse obrigada a
comparecer, ser a mais elegante das mulheres que lá estivessem.

Nem tudo poderia, pois, ser surpresa e tempo foi dado a Deolinda.

O convite aos tios Jacó e Idalina foi um assunto que Higínia decidiu:

“O convite será feito, sem que mamãe o saiba e, tenho certeza, se a mágoa entre eles e
ela for assim tão grande, inventarão, naturalmente, uma desculpa sábia, e não
comparecerão à festa; se for alguma razão menor, teremos a presença deles e a mãe se
sentirá feliz.”

A uma alegria, talvez sem muita razão, tomou conta de todos os filhos, noras e
genros, descobrindo-se amigos tão antigos que assistiram os caminhos que a vida
havia levado à mãe, surpresas incontáveis tiveram eles a cada encontro com pessoas
que até desconheciam, amigos da mãe, de agora e do tempo em que ela, hoje avó, mal
havia pensado em ser mãe.

E filhos, já de vidas prontas, locaram na cidade um clube mais elegante e, mesmo que
nenhum deles e nem mesmo a mãe fossem dados a freqüentar a igreja, um culto foi
providenciado.

Assim devia ser feito, ninguém poderia imaginar que se comemorassem oitenta anos
sem que nos festejos um Deus fosse lembrado.

Um costureiro foi contratado, tudo tão especial, filhos contentes com aquela mãe
feliz, como não se imaginava nem mesmo alguém que estivesse completando quinze
anos.
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Naquele dia, todo o passado acabou e o futuro, se dele alguém houvesse se lembrado,
certamente seria maravilhoso.

Na escolha do que Deolinda vestiria no dia do aniversário, a mulher de Gilberto


entendeu dever acompanhar a sogra e todos com isso concordaram, já que sempre se
considerou que a mãe era reconhecidamente de mau gosto no vestir.

E Marta se lembrou de que a mãe certa vez lhe havia dito, com tristeza, que nos
primeiros tempos de seu casamento, quando ainda era o marido quem lhe dava
roupas, ele nunca permitiu que ela as comprasse a sós.

Antônia, a irmã de seu marido, deveria estar presente, com o que, pretendia o pai, a
mãe não se vestisse tão mal quanto em solteira. E Deolinda comentou com a filha:
“Seu pai sempre teve pequenas faltas de tato, quando me queria elegante, mandava
chamar sua tia para comprar as roupas que eu devia vestir. Estava ele me dizendo que
eu era de mau gosto, ou pior ainda, mostrando-me que, em verdade, eu continuava
com modos de pessoa de classe social inferior à dele.”.

Disso Marta se lembrou, mas nem assim tentou impedir que, de novo, mostrassem à
mãe sua falta de gosto de mulher menos afeita às normas estabelecidas pela elegância.
Durante toda a vida Deolinda se cobriu de exageros, em cores e brilhos vestidos como
se fosse de suas filhas, a mais nova, ridículo que todos procuravam evitar, pelo menos
naquela festa de aniversário.

Marta não pensou em outra solução, o problema era também dela e de suas irmãs,
todas desejosas de que mãe se apresentasse no melhor dos estilos socialmente aceitos,
ainda que este não fosse o que mais lhe agradasse. Agora que não tinham o pai, a
homenagem à mãe mostraria o sucesso dos filhos.

E a mãe compareceu a todas as festas programadas com as roupas elegantes que a


mulher de Gilberto havia escolhido. E essa mãe, assim vestida, se mostrou feliz como
adolescente, dançou com os filhos, desajeitadamente como lhe era possível dançar, e
foi gentil com os convidados, falou com todos eles, pouco tempo sobrando para
aqueles que lhe eram mais íntimos.

E então foram estes, os mais íntimos, convidados para um almoço em família no dia
seguinte.

Ao fazer convite, Isabel entendeu que a tia Idalina e o tio Jacó, os dois tão amáveis
durante a festa, no dia anterior, se incluíam entre aqueles que deveriam ser recebidos
em casa.
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Marta entendia que, os tios não deveriam merecer este segundo convite, pois, na
verdade, mesmo quando da doença do pai, pouco vieram vê-lo e a mãe sempre se
referiu à tia Idalina como a uma figura odiosa.

Mas, a filha também não falou, e a tarde foi de alegria, todos os irmãos juntos se
lembraram da infância, que eles mesmos pensavam já havia se perdido no tempo.
Deolinda estava junto deles como deveria ter estado há muito tempo, quando aquelas
infâncias não eram lembranças, eram presente.

E não demorou muito, todos, como convinha, beijaram o rosto da mãe, desejando-lhe
feliz aniversário e voltaram às suas casas. No dia seguinte teriam todos, em casa da
mãe, um almoço para os íntimos.

Seriam realmente íntimos? Pensou Marta. Ela sabia a resposta.

No dia seguinte, de todos os filhos, foi Marta quem primeiro chegou à casa da mãe.
Sentia-se também anfitriã, com algumas obrigações para com Higínia e para com a
mãe. Naqueles dias não faltariam serviçais na casa, já que a festa havia sido
patrocinada por todos os irmãos, mesmo aqueles que menos poderiam pensar em
festas com tanta pompa.

Pouco a pouco, os chamados íntimos foram chegando à casa. E Marta viu que eles
não passavam de seus irmãos, suas mulheres ou maridos. Sobrinhos não vieram, e
para isso as desculpas foram variadas, mas em todas elas se podia ver a razão por que
nenhum deles estava ali. Eram alguns quase rapazes e moças, poucos ainda crianças, e
uma festa para comemorar oitenta anos havia lhes bastado, outra não seriam capazes
de suportar. Desagradava-lhes a presença de tantos homens e mulheres, tão velhos
que a eles parecia que todos haviam apenas ressuscitado.

Tia Antônia e Tio Jacó também vieram. A mulher do tio Jacó se negou a comparecer.
A todos o tio disse, como se o fizesse reservadamente: “Ela não tem roupas adequadas
para uma festa assim.” Todos tinham certeza de que isso não era verdade e justamente
por isso procederam com se acreditassem. Todos sabiam que a mulher do tio nunca se
deu bem na casa do cunhado, julgava a família inteira com ares de novos ricos.

A surpresa veio das palavras da tia Antônia, ao abraçar Deolinda: “Sempre tive
vontade de vir à sua casa, mas, enquanto meu irmão foi vivo, julguei que não devia,
para mim isto foi uma questão de honra, disto me arrependo agora, perdi meu irmão
antes da hora. Devia tê-lo aproveitado mais.”
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Deolinda contemporizou: “Em família essas coisas costumam acontecer.”.

Antônia parecia querer que os sobrinhos soubessem o que ainda não haviam sabido e
disse: “Foi uma tolice de minha parte, naquele tempo imaginei que precisaria do
dinheiro que perdi, pelo prejuízo que ele me deu.”.

Deolinda ficou constrangida e os filhos nada entenderam do que se falava, mas não
deixaram de perceber que o assunto não podia continuar.

Então Higínia, sempre distante, mas atenta, procurou se lembrar de todos os sustos
que Pedro passou durante a infância, tentando esconder dos pais as diabruras que ele
fazia e que se descobertas dariam castigo a ele e a todos os filhos que disso
houvessem sabido e não falado.

Perceberam todos, menos Irene, que nada percebia, a gravidade do assunto insinuado
pela tia Antônia.

E, foi por isso que, quando Gilberto falou que a mãe tinha todas as razões para se
sentir feliz, afinal não era tão comum uma família de tantos filhos, todos eles nomes
honrados, Marta querendo ferir a mãe, mais do que atingir ao pai, atalhou:

“Somos uma família igual a qualquer outra, você não ouviu a fala da tia Antônia?
Pelo visto, o pai não era um homem de bem e, mesmo você, quando jovem, não era
tão correto, que justificasse sua observação.”

Gilberto se irritou e na defesa de si mesmo e do pai, de quem, quando vivo, nem tanto
parecia gostar, continuou para desmentir a irmã:

“Por favor, tia Antônia, aponte-me qualquer prejuízo que meu pai lhe tenha dado, e
eu, eu mesmo, sem ajuda de qualquer dos irmãos, estou disposto a ressarci-la, seja do
que for desde que o assunto morra agora e nunca mais seja falado.”

A tia se sentiu como se Gilberto não houvesse acreditado nela e um tanto desapontada
disse que todos os móveis que enriqueciam a casa, deveriam ter sido dividido entre
seu pai, Jacó e ela, e no entanto ele ficara com todos.

Ficaram todos os outros em silêncio e Gilberto disse em tom de desprezo:

“Nem todos tia Antônia, quase tudo aqui foi comprado num tempo de que eu posso
me lembrar, portanto não nos veio de qualquer antepassado e nunca lhe pertenceu, se
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alguma migalha que esteja nesta casa puder ser sua, ela não será suficiente para que
não a consideremos mesquinha por ter falado neste assunto.”

Quando isso aconteceu, tio Jacó, com a gentileza que lhe era própria, conseguiu, de
um modo educado, convidar a irmã para que deixassem sozinha Deolinda e os seus.
Gilberto, o filho de quem sempre pensaram todos que o pai menos gostava, pediu com
humildade à mãe:

“Fale-nos de nosso pai, fale-nos de você, bom ou ruim, é bom que saibamos, somos
seus filhos.”

E a mãe falou:

“Antônia mente, como mentiram todos que alguma vez tenham falado do caráter e
dignidade de seu pai. Dele me queixei muitas vezes, Marta é testemunha disso, mas o
que de ruim encontrei em seu pai não ultrapassou os pequenos limites de minha
sensibilidade feminina. Dele me queixei pelas noites que fiquei só, ele nos bares com
amigos. Também me feriram sua insegurança em relação ao dinheiro, que
ganhávamos os dois, e, sobre a sua utilização, que ele sempre se deu o direito de
decidir, e outras pequenas falhas, não sei se minhas ou dele, que fizeram todo o frio
que atravessou inteira nossa vida de casados.”

A mãe ficou em silêncio, como se na incerteza sobre se deveria ou não continuar o


seu discurso, mas não encontrando em qualquer dos filhos, olhar de censura ou
admiração, continuou, e enquanto falava todos ouviam, nenhum deles muito
interessado.

A vida daquela mãe não tinha qualquer interesse, talvez, nem para eles, mas ninguém
iria dizer, “Não é você quem a nós importa, queremos somente saber do pai, ele sim,
era severo, às vezes desumano, mas outras vezes nos dava um mundo de carinho e
afeto. Ninguém é igual a si mesmo, o tempo todo.”.

Então a mãe continuou: “O que me desagradou no casamento, não foi o pai de vocês,
foi o que se espera seja a vida de mulher casada, responsável pelo que fazem e
pensam os filhos, até mesmo depois que eles são adultos, desagradavam-me todas as
obrigações que se atribuem sempre à mulher, como se o gostar ou não de cumpri-las
fosse uma característica *não essencial ao feminino, esse feminino inventado por uma
cultura, que a respeito dele nada perguntou às mulheres, foi tudo tão marcado pelos
homens.”.

Em silencio, os filhos tiveram olhos de abismada interrogação e a mãe continuou:


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“Não é o caso, me sinto mulher, mas se não o sentisse, não me sentiria culpada por
isso, o que temos de dever não vai além do respeito ao espaço do outro, nisso, creio,
não falhei, não cometi desrespeitos a seu pai, apenas fui indiferente muitas vezes a
vocês, filhos que tive, muitas vezes, sem o querer.”

E Marta, sufocada de ódio, perguntou: “E porque os teve, se conhecia na sua


incapacidade de amá-los, porque os teve?”

“Há mais tempo, quando vocês nasceram, para evitá-los, não havia os recursos de que
dispõem as mulheres de hoje, e meu corpo de mulher sempre quis um homem junto
de mim, mas até dizer isso escandaliza, tudo que a mulher deseja, deve caber na
medida certa do que os homens determinaram.”

Gilberto, o filho sempre amado, ao mesmo tempo para ofender aquela mulher
estranha que sempre lhe havia dado afeto perguntou:

“São sempre os homens opressores e o mundo é sempre deles? Você pensa isso?”

“Não, pelo contrário, toda essa opressão que estabelece o que deve ser um homem e o
que deve ser uma mulher, se inventada pelos homens, é sempre transmitida aos filhos
pela mulher, dão-lhe o dever de transmitir tantas normas. Aí me justifico, às minhas
filhas não ensinei nada disso e aquelas que assim aprenderam, não foi mais do que
pela força da cultura e da biologia.”

E viram todos, muito assustados, quando Marta se levantou, tendo nos olhos o brilho
da loucura e começou a dizer palavras não pensadas, em nenhuma delas havendo
qualquer equilíbrio:

“Você é um monstro, sempre tive ódio de você, só hoje pude notar o quanto a mãe
tem de amar seus filhos, zelar por eles e pelo marido, e nada tem o direito de fazer em
prejuízo disso, você não fez na vida outra coisa, além de cuidar de sua profissão, que
lhe dava algum dinheiro, não tanto que pudesse servir para comprar o que era útil.”

E quando Marta começou a chorar, soluços e palavras, tão misturados que ninguém
entendeu foi Higínia quem falou: “Marta está doente, deve ser cansaço.”.

E enquanto os irmãos levaram Marta para o quarto e a deitaram na cama que antes
havia sido dela, a mãe lhe trouxe à e depois lhe disse:

“Tente dormir um pouco. Dormir faz bem.”


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A porta do quarto foi cerrada e voltaram todos à sala. Todos em silêncio.

Muito depois, Irene, que nunca pensou na forma como os fatos acontecem, olhou na
parede o velho relógio que marcou todas as horas da família e disse: “Está parado.”.

A mãe tranqüilamente respondeu:

“Amanhã Pedro poderá acertá-lo. Hoje estamos muito cansados.”

Moiah Kavinsky - 1996

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