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ELISABETH

BISHOP

Compilações extraídas da web.


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Edição 35 > _correspondência > Agosto de 2009

"O Brasil é mesmo um horror"


Em cartas inéditas ao colega Robert Lowell, a poeta americana Elizabeth Bishop descreve a
literatura, a política e costumes nos anos dourados. "O Rio está mais louco do que nunca",
ela escreveu. "Falta água e o gás anda escasso; em cada edifício só um elevador funciona e
há filas intermináveis, quarteirões inteiros para pegar os ônibus miúdos. Enquanto isso o
Brasil está construindo uma capital novinha em folha, longe, no interior, onde sequer existia
uma estrada um ano atrás"
por Elizabeth Bishop e Robert Lowell - Introdrução de Otavio Frias Filho

Ah, turista,
então é isso que este país tão longe ao sul
tem a oferecer a quem procura nada
[menos
que um mundo diferente, uma vida
[melhor?
"Chegada em Santos", 1952, tradução de Paulo Henriques Britto

Em novembro de 1951, a poeta americana Elizabeth Bishop embarcou em Nova York num navio
mercante para o que seria uma longa viagem em redor da América do Sul. Aos 40 anos, acolhida
nos meios especializados como revelação promissora, ela havia publicado apenas um livro. Vivia da
fortuna deixada pelo pai e enfrentava crises sucessivas de alcoolismo. Desembarcou em Santos,
mas seguiu de trem para o Rio de Janeiro, onde pretendia visitar amigos americanos radicados na
capital do Brasil. Ficaria duas semanas para então retomar viagem num próximo cargueiro.

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No Rio, provando da hospitalidade dos nativos, ela mordeu um caju, fruta que lhe pareceu
"indecente", e foi acometida por violenta alergia, que deformou suas feições a ponto de impedi-la
de enxergar por dias. Escreveria depois que se afeiçoou aos brasileiros por causa das atenções,
receitas e mandingas que prodigalizaram a uma desconhecida - uma mulher retraída, asmática,
criada por familiares (a mãe permaneceu em internação psiquiátrica a partir da morte prematura
do pai) na atmosfera exigente das melhores escolas da Nova Escócia, no Canadá, e de
Massachusetts, nos Estados Unidos. Aqui nos trópicos, num país "sem classe média", como ela
repete em suas cartas, numa sociedade em miniatura na qual todos pareciam aparentados entre si,
ela foi bem recebida em um círculo ainda mais res-trito, o do grupo vanguardista, elegante e lésbico
reunido em torno de Maria -Carlota Costallat de Macedo Soares, conhecida como Lota.

O pai de Lota, José Eduardo de Macedo Soares, oposicionista na República Velha, depois
adversário histórico de Getúlio Vargas, era dono do periódico mais influente em meados do século
passado, o Diário Carioca. Lota havia nascido em 1910, em Paris, onde o pai se achava exilado. Era
uma mulher cultivada, que estudou no ateliê do pintor Candido Portinari, amiga de escritores e
artistas. Sem ter frequentado universidade, foi reconhecida como arquiteta autodidata e paisagista
emérita. Tinha ao mesmo tempo uma personalidade prática, impaciente. Deixou sua marca na
paisagem e na história do Rio - apreciada até hoje por quem desembarca em um de seus aeroportos
- quando Carlos Lacerda, seu amigo e primeiro governador (1960-4) da Guanabara, deu-lhe a
missão de criar o Parque do Flamengo.

Bishop e Lota viveram juntas durante dezesseis anos, a maior parte desse tempo na casa
modernista, envidraçada e coberta de alumínio, que Lota e o arquiteto Sérgio Bernardes fizeram na
mata de uma escarpa de um sítio em Samambaia, na região de Petrópolis. Ali, cercada de carinho,
segurança e isolamento, a poeta americana viveu dias felizes, apesar do alcoolismo renitente. Ali
pôde cultivar o ócio - requisito que ela destaca como imprescindível, numa das cartas, à consecução
da atividade artística, ainda que num sentido reverso: dedicação absoluta, no caso do poeta, à
feitura do poema. Grande parte de sua obra foi composta no Brasil, sendo inúmeras as alusões a
temas brasileiros.

A construção do parque no Aterro do Flamengo, se não afastou as duas mulheres, serviu de


pretexto ao afastamento. Lota ficava no Rio, onde se entregava de maneira obstinada ao trabalho,
redobrado no interminável confronto de sua personalidade impetuosa e perfeccionista com a
politicagem administrativa. Bishop passou a viajar a Ouro Preto, em Minas, onde havia comprado e
tratava de restaurar uma edificação do início do século xviii - a "Casa Mariana", homenagem a sua
mentora, a poeta Marianne Moore (1887-1972). Em 1966, premida pelo esgotamento da herança
familiar, sem que os prêmios literários que passara a receber servissem de compensação suficiente,
Bishop aceitou dar seu primeiro curso acadêmico, na Universidade de Washington, em Seattle.
Detestou lecionar (tinha aversão a falar em público, mesmo os próprios poemas), mas se apaixonou
por uma jovem aluna americana que seria sua amante por alguns anos. O caso tinha todo um
aspecto escandaloso: a estudante estava grávida quando se conheceram, chegou a morar em Ouro
Preto com Bishop e a criança, e voltou a viver em Seattle depois de uma tumultuosa ruptura.

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A saúde de Lota deteriorou, conforme ela se debatia nas escaramuças burocráticas, prestes a
romper com o próprio Lacerda, cuja estrela política, depois do golpe de 1964, declinava depressa.
Lota recebeu diagnósticos de arteriosclerose e depressão. Numa atitude drástica, contrária ao
conselho médico, viajou para Nova York a fim de conversar com Bishop, que foi buscá-la no
aeroporto. Na manhã seguinte, 20 de setembro de 1967, Lota ingeriu tranquilizantes em
quantidade. Já quase inconsciente quando socorrida por Bishop, que se recriminaria por ter
dormido demais, ela foi hospitalizada e entrou em coma. Morreu de falência cardíaca uma semana
depois, aos 57 anos.

Embora a maioria dos amigos de Lota no Rio tenha se voltado contra ela, Bishop manteve laços
com o Brasil, sobretudo com Ouro Preto, até o início dos anos 70. Aos poucos voltou a viver na
Nova Inglaterra, na companhia de outra mulher. Foi vítima de aneurisma cerebral que a matou em
1979, aos 68 anos. Desde então sua fortuna crítica cresce, seu nome muitas vezes é incluído entre os
dez poetas americanos mais influentes no século de Eliot, Pound e Cummings.

Como muitos autores que parecem sentir uma necessidade quase física de escrever, Elizabeth
Bishop produziu vasta correspondência. Os trechos aqui publicados estão no volume Words in Air:
the Complete Correspondence -between Elizabeth Bishop and Robert -Lowell, editado por Thomas
Travisano e Saskia Hamilton, publicado em Nova York, no fim de 2008, pela Farrar, Straus and
Giroux. Suas 875 páginas emulam as 792 de outro livro epistolar, uma coletânea de cartas enviadas
a diversos missivistas, já conhecido do público brasileiro: Uma Arte: as Cartas de Elizabeth
Bishop, que a Companhia das Letras publicou em 1995. Eventuais redundâncias entre os dois livros
foram evitadas nos trechos editados aqui, que são inéditos no Brasil.

Robert Lowell (1917-77), o destinatário dessas cartas, foi um poeta de estatura semelhante à de
Elizabeth Bishop. Provinham do mesmo ambiente, a elite anglo-saxã de Massachusetts.
Desenvolveram líricas que evoluem numa influência recíproca admitida por ambos, ele num
registro que foi chamado de confessional, ela praticando uma poesia mais descritiva. Tornaram-se
amigos em 1947. Assim como Bishop sofria de alcoolismo, Lowell era sujeito a surtos de mania que
também resultavam em internações periódicas. Embora mais jovem, obteve uma proeminência
precoce que lhe permitiu ajudar Bishop, a quem indicou para sucedê-lo no cargo de consultor de
poesia da Biblioteca do Congresso. Continuaria a patrocinar a obra da amiga junto a editores e
comitês literários americanos durante sua longa ausência. A seu convite visitou o Brasil, com a
mulher e a filha, em meados de 1962. Lowell comparou sua amizade com Bishop à dos escritores
ingleses Lytton Strachey e Virginia Woolf.

É maciça, nas cartas, a quantidade de livros e autores que os dois poetas comentam à medida que
os lêem. Trocam poemas de própria autoria, cada um reagindo com manifestações de inveja ante a
perícia do parceiro. Como seria de esperar, há muita trivialidade. Lowell relata fofocas da política
literária americana com minúcia, num estilo enérgico e humorístico, mas muitas vezes de
referência longínqua ou cifrada para o leitor brasileiro. Já pelo lado da poeta, o interesse não
poderia ser maior nem mais variado. Como tantos viajantes estrangeiros que escreveram sobre o
Brasil, Elizabeth Bishop exalta a natureza e deplora a sociedade. Contra o pano de fundo da

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desigualdade e do atraso, seu olhar duro logo identifica o elemento provinciano, o hábito irracional,
a desordem e a "loucura" em que vivem os brasileiros: "O Brasil é mesmo um horror." Nem por isso
ela fica insensível a certa doçura na familiaridade, na ênfase afetiva das relações pessoais, outro
traço assíduo na historiografia que não lhe passou despercebido no cotidiano.

Em sua opinião, Gilberto Freyre é "legível", embora faça ressalva a sua condescendência para com a
escravidão. Gosta de Camões ("soberbo") e de Vieira ("excelente"), diz que está "estudando"
Fernando Pessoa. É entusiástica quanto a Os Sertões, de Euclides da Cunha, que considera o
melhor na literatura local depois de Machado de Assis. Ficou tão encantada com Minha Vida de
Menina, o diário de Helena Morley (pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant) sobre sua
infância em Diamantina, que o traduziu e publicou em inglês. Escreve que João Cabral de Melo
Neto é dos poucos poetas brasileiros que de fato aprecia - os outros seriam Carlos Drummond de
Andrade e Manuel Bandeira. Viu telas de Francis Bacon na Bienal de São Paulo de 1959. Desanima
de suas gestões para introduzir as amigas Clarice Lispector e Rachel de Queiroz nos Estados
Unidos. Critica os poemas concretos, que "parecem experiências pré-1914 com uma pitada de
Cummings". E conta ao menos uma peripécia amorosa de Vinicius de Moraes, "que não consegue
parar de beber e casar".

Considere-se, no entanto, a aspereza desta passagem: "Se você nunca vê um Picasso autêntico,
finge que Portinari é bom - ou se você nunca na vida ouviu boa música, finge que bossa nova é bom
e que Villa-Lobos é o maior etc." O principal valor destas cartas talvez se deva à posição privilegiada
da autora ao contemplar o panorama brasileiro nos "anos dourados" das décadas de 50 e 60. A
crítica é unânime em ressaltar, entre as qualidades literárias de Bishop, a precisão verbal e a
profundidade descritiva. Tinha, além disso, o olho treinado de uma turista quase profissional,
tomada pelo demônio geográfico que a fez viajar como nômade pela vida afora e espalhou
topônimos e estrangeirismos ao longo de sua obra, na qual o deslocamento é tantas vezes assunto.
Algo em sua atitude para com o Brasil tinha a imparcialidade da indiferença: ela desceu na
primeira escala do navio e permaneceu ostensivamente por causa da paixão por Lota. Pouco do que
vê, ouve e lê, num lugar onde a competição rarefeita lhe parecia induzir à preguiça, passa pelo rigor
de seu crivo.

Apesar de certo folclore diáfano no qual figuram verdadeiros clubes de lesbianismo clandestino no
Rio de Janeiro da década de 50 - casas de praia alugadas por mulheres galantes em recantos ermos,
onde se reuniam irmanadas na cumplicidade de suas inclinações, parte das convidadas em vestidos
longos, parte envergando terno e gravata -, nada disso nem sequer é sugerido nas cartas desta
narradora pudica e, à sua maneira, puritana. Por motivos de gosto e até de geração (ela nasceu em
1911), toda conotação sexual é omitida e qualquer explicitação nesse sentido é condenada, como nas
passagens em que parece recriminar as novas maneiras que anunciavam a revolução sexual entre
os estudantes dos anos 60.

O feminismo, que tanto ajudaria a alavancar a reputação póstuma de sua obra, não exerceu apelo
sobre Bishop. Como é comum entre poetas, ela não se interessava por política nem tampouco a
compreendia. Suas opiniões a respeito tendiam ao conservador, reflexo, talvez, do ambiente elitista

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em que se formou ou de seu próprio temperamento individualista. Diante de uma comissão de


diplomatas chineses, por exemplo, que visitava o Rio em 1961, ela conta que "pela primeira vez, eu
creio, um verdadeiro calafrio de medo e horror ao comunismo me desceu pela espinha. Eram uns
homenzinhos lúgubres de aparência ignorante, seus olhos queimando de paixão justiceira".

Após a renúncia de Jânio Quadros e a vitória do movimento para dar posse ao vice João Goulart na
Presidência, em 1961, ela adverte o amigo: "Não acredite no que você vir [na imprensa] sobre
'legalidade' e salvar a preciosa 'Constituição'! - Todos os velhos vigaristas estão correndo de volta
aos cargos o mais depressa que podem - e o pc [Partido Comunista] agora age às claras."

Se a etnografia involuntária de Bishop é de uma objetividade quase infalível, sua apreciação da


política brasileira é sempre parcial. Numa das cartas, depois de dizer com casualidade cômica,
como se falasse de meteorologia, que "tivemos uma revolução na semana passada", ela explica: "O
motivo pelo qual menciono isso é que um dos meus melhores amigos aqui foi o líder da revolução
que não aconteceu - um deputado e editor de jornal que foi responsável por se livrar de Vargas no
ano passado [1954] quase sozinho. É um homem maravilhoso, realmente - 41, acho, muito corajoso
e inteligente (...) e pode acabar sendo qualquer coisa, claro, até mesmo ditador; católico, mas
liberal." Lowell, que conheceu Carlos Lacerda pessoalmente, tinha impressão semelhante e notou,
ao compará-lo a Robert Kennedy, "uma sensação assustadora de ambição e poder" em torno de
ambos.

A simpatia se converte em apoio apaixonado conforme o amigo se torna governador e possibilita a


Lota realizar o sonho de sua vida no Flamengo. Enquanto isso, a polarização que conduziu ao
desfecho de 1964 crescia. Em novembro de 1963 Bishop diz que "estamos esperando um golpe [em
português] (do presidente) a qualquer momento". Em abril do ano seguinte, logo depois da
derrubada de Goulart: "Mais de 3 mil prisioneiros apenas no Rio. Carlos deu várias e várias ordens,
nenhuma brutalidade policial será permitida etc. - mas incidentes ocorrem com qualquer polícia."

Mais tarde, quando Lacerda, já dissidente do regime que ajudara a instalar, articulou a Frente
Ampla (1966-8) com os adversários Juscelino Kubitschek e João Goulart, ela escreve que "Carlos
traiu todo mundo de forma horrível - depois de todos os anos de luta contra a gangue do velho
Vargas e a corrupção, de repente, por razões políticas, ele se passou para o lado deles (e dos
comunistas) outra vez." Como não poderia deixar de ser, seus pontos de vista em tais assuntos
espelham os de Lota, que a essa altura já estava afastada de Lacerda, as relações entre ambos
praticamente rompidas.

O que vemos aqui é um Brasil duplamente remoto, focalizado a partir do distanciamento da autora
(exceto nas diatribes políticas), mas também do afastamento de meio século decorrido desde então.
Muito antes disso, a primeira onda do modernismo brasileiro - a da geração de 1922 - havia
demonstrado a falsidade de toda arte que imitasse os moldes europeus cultivados por uma elite
estreita, enquanto o país real jazia desconhecido. Desde Sílvio Romero e Euclides da Cunha essa
descoberta interior, na qual se confundem imensidões geográficas e sociais, seria uma busca
permanente, o Santo Graal - o muiraquitã da cultura brasileira rumo à utopia da sua própria

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realização.

Elizabeth Bishop chegou quando se esboçava o período que muitos consideram uma renascença
tropical, época de reinvenção nacional no romance, na poesia, no cinema, na arquitetura, no teatro,
na música popular. O vetor mais arcaico e o mais dinâmico na sociedade - expressos em
antagonismos como sertão/litoral, folclórico/moderno, passado/futuro - eram mobilizados pela
primeira vez numa síntese artística original e poderosa, que prenunciava a síntese social a ser
produzida pelas reformas que a ruptura de 1964 afinal frustrou. Era como uma promessa suspensa
a meio caminho, admirável e arruinada. Sob um enfoque menos peremptório ou mais cumulativo
dos acontecimentos conforme eles se distanciam no tempo, a leitura atual das cartas brasileiras de
Elizabeth Bishop - com seu frio discernimento sobre tudo o que não seja política - parece deslocar a
posição daquela fase dourada na História: não tanto um apogeu seguido de prematuro declínio,
mas ainda a turbulenta adolescência de uma sociedade que continua em formação.

a/c de Macedo Soares


rua Antônio Vieira 5, Leme
Rio de Janeiro, Brasil
21 de março de 1952

[1]
Querido Cal ,

Puxa, comecei esta carta ontem & fui interrompida & deixei a máquina de escrever descoberta
durante a noite & acabei tendo de tirar de cima dela uma teia de aranha grande e espessa. Tenho
uma carta sua escrita no dia 6 de novembro. Acho que escrevi para você mais ou menos na mesma
época - escrevi umas duas vezes, mas não sei se você chegou a receber alguma delas -, acabei de
receber a carta de 6 de novembro, uma semana atrás mais ou menos, e logo depois chegou a carta
de 16 de fevereiro. A primeira aparentemente ficou naquele lote de cartas que o Vassar Club deixou
metido no escaninho por mais de três meses. Bem, me desculpe. Eu estava morrendo de vontade de
receber notícias suas, sem saber se o American Express em Amsterdã encontraria você ou não etc.
(Foi para lá que mandei uma carta, eu acho.) Comecei com a intenção de percorrer o continente
inteiro, mas parece que virei uma brasileira caseira e agora fico tão agitada com uma viagem de jipe
para comprar querosene num vilarejo vizinho quanto ficava em novembro com a idéia da minha
viagem em torno do cabo Horn. Eu não tinha nenhum interesse especial pelo Brasil, no início, mas
foi a primeira parada do navio cargueiro em que eu viajava. Na verdade, queria viajar pelo mundo e
terminar a viagem mais ou menos por agora, visitando você, mas aconteceu que cometeram algum
engano com as minhas reservas naquele cargueiro e assim, por acaso, acabei ficando na América do
Sul. Tenho uns amigos brasileiros no Rio, que conheci em Nova York, e assim fui com a intenção de
ficar duas semanas para visitá-los e acabei ficando quatro meses. Mas não tenho ficado muito
tempo no Rio - vou lá só para cortar o cabelo e tratar do meu visto, de vez em quando. Lota de M.
S., minha anfitriã, tem um apartamento lá, na famosa praia de cartão-postal, mas passa a maior
parte do tempo no campo, se bem que essa palavra delicada dificilmente se adapte ao caso,
Petrópolis, uma estação de veraneio nas montanhas, rústica e deslumbrante, a uns 65 quilômetros

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de distância. Ela está construindo uma ca-sa ultramoderna na encosta de uma montanha de granito
preto, com uma cascata na ponta, as nuvens invadem a sala no meio da nossa conversa etc. A casa
está inacabada e usamos lampiões de querosene, não tem assoalho - só cimento coberto por
pegadas de cachorros. A "família" consistia em uma outra garota americana, também amiga minha
[2]
em Nova York, uns condes poloneses por um tempo, o arquiteto nos fins de semana etc., todos
numa estranha miscelânea de três ou quatro línguas, que me agrada muito. Depois de algumas
semanas de chuva (que, por alguma ilusão racial, acho, são chamadas de "verão" [sic]), a cozinheira
foi embora e durante mais ou menos um mês eu cuidei da cozinha. Gosto de cozinhar etc., mas não
estou acostumada a enfrentar os ingredientes em estado bruto, todos com casca, crus, com pele ou
ainda vivos. Pois é, agora posso cozinhar carne de cabra - com molho ao vinho. E estamos com uma
nova cozinheira, do "Norte" (o "Norte" é encarado mais ou menos como nós encaramos o "Sul"),
que chegou munida de um enorme crucifixo cromado. Ela "adora a natureza", assim a gente espera
que ela fique aqui. Mas ela gosta tanto da natureza que, quando a gente precisa dela, em geral está
lá fora colhendo flores na montanha. A cozinha seria aprovada por Max Schling, com orquídeas e
tudo o mais. Esta manhã resolvi que eu queria um ovo. Falei cinco minutos, o ovo veio muito mole
e ela disse que na cozinha há dois relógios que não estão andando exatamente juntos e então ela
não tinha como medir o tempo do cozimento do ovo, é claro.

Quando começo a descrever, acho difícil parar, como você está vendo, mas estou passando uma
temporada muito boa mesmo e só vou voltar porque ainda quero conhecer mais coisas da América
do Sul e escrever mais um pouco sobre o assunto. Tenho de fazer uma apresentação em Bryn Mawr,
em maio. Vou partir daqui a um mês, mas provavelmente vou retornar para cá em julho. Então,
acho que no próximo inverno eu já vou ter visto o bastante por um tempo e também já vou ter
economizado dinheiro bastante para viajar para a Europa, daqui provavelmente, ou então de
Buenos Aires. Não sei se você ia gostar, e na verdade vi muito pouca coisa do país, e é tão
extraordinário. Provavelmente é demasiado informe para você e as pessoas não são em número
suficiente. Lota conhece "todo mundo" - conheci ou vi muitos dos luminares da literatura -, mas ela
vive "retirada", como diz, e bastante farta do Brasil, como todos os brasileiros que conheci. Eles
desejam: 1) Paris; 2) Nova York. (NY é um gosto recente, só uns dez anos de idade - antes, era
considerada excessivamente vulgar e Lota foi muito criticada por passar mais de dois anos lá.) Há
um grande renascimento do catolicismo pelo que vejo e famílias grandes são o estilo predominante:
dez ou doze. Todos os meninos se chamam "José" alguma coisa e todas as meninas se chamam
"Maria" alguma coisa. Esses nomes são sempre abreviados em apelidos absurdos que pegam para a
vida toda. Conheci um muito elegante, "Magu", para Maria Augusta - ou "dona Bebê", para uma
senhora idosa. Eu agora sou a "dona Elizabétchi". Bem, eu não me incomodaria com as famílias
grandes se ficassem restritas à classe alta (e como tudo fica simples quando não existe classe
média). Por fim, recomecei a escrever - terminei dois poemas compridos. Não tenho lido grande
coisa, apesar de termos aqui uma biblioteca excelente - agora ando lendo um pouco de poesia
portuguesa. Consigo ler porque sei espanhol, mas não consigo de maneira alguma pronunciar os
versos - todo mundo que encontro em geral fala um inglês ou um francês excelente.

Pelo amor de Deus me mantenha informada dos seus endereços para eu poder escrever para você, e
espero que você também escreva para mim. Na certa vou precisar disso mais do que você. Vou estar

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aqui até 19 de abril, depois vou para Key West passar uma semana, depois vou passar seis semanas
no Hotel Grosvenor, na Quinta Avenida com a rua Dez. Quero ver alguns poemas. Antonio Vieira,
me diz Lota, foi um santo português menor que "sofria de bilocação" (muito mais engraçado em
francês). Agora estou estudando os poemas do poeta português moderno mais popu-lar, Fernando
Pessoa - já ouviu falar? -, que tinha uma personalidade cindida em quatro; escrevia quatro tipos
diferentes de poesia, sob quatro nomes di-ferentes - volumes diferentes para cada um deles -, e se
[3]
suicidou em meados da década de 30, mas se estivesse vivo teria apenas a idade da senhorita
[4] [5]
Moore . Como já escrevi para Randall - talvez a cisão da personalidade seja uma coisa
particularmente portuguesa -, já topei com uns casos reais desse tipo.

Ah, meu título agora é (já faz alguns meses) A Cold Spring (Uma Primavera Fria) - há um poema
também com esse título. E agora acho que vai sair em novembro.

Mande um beijo para Elizabeth. O que ela anda escrevendo? Por favor, escreva de novo, mais cedo.
Tenho um tucano - chamado Tio Sam, num rompante de chauvinismo. Ele é maravilhoso, engole
jóias ou finge engolir, pode jogar bola com uvas e tem olhos brilhantes como luzes de neon.

Com amor,

Elizabeth, Samambaia - o lugar onde moro, perto de Petrópolis. O endereço é Rio. Mas você ponha
os dois! Uma carta aérea aqui custa 10 centavos. Sua carta veio de navio.

28 de julho de 1953

Caríssimo Cal,

Vou ter alguns poemas em inglês e português publicados num suplemento literário daqui - não
existem revistas, assim os jornais cobrem a literatura com graus variados de seriedade. O poeta
brasileiro Manuel Bandeira, um homem de uns 65 anos, está traduzindo os poemas, e traduzindo
extremamente bem, eu acho. Tenho tentado retribuir a gentileza: tenho lido um bocado de poesia
brasileira de lá para cá e é tudo gracioso, delicado, eu acho, se bem que Bandeira às vezes é
extremamente mordaz, como um Cummings mais amável. Mas não há meios de escrever em
português. No entanto, agora consigo ler Camões etc. muito bem; ele e seus sonetos são soberbos,
tão bons quanto qualquer soneto em inglês, sem dúvida.

Porém o Brasil é mesmo um horror; mas um dia vou lhe contar mais. Você ficaria de fato fascinado
pelas histórias de família. A sociedade do Rio é inacreditável. Proust nos trópicos com samba em
vez da pequena melodia de Vinteuil - não, isso é banal. Mas é algo assim.

Aqui eu sou "dona Elizabétchi" - sempre os prenomes. Você seria "seu Roberto". Não, acho que
como tem um diploma seria o "doutor Roberto".

"Calígula" não surpreenderia ninguém - conheço um Tácito, um Aristides, um Teófilo, um

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Praxíteles - & os apelidos são maravilhosos. Magu é o mais encantador - uma amiga chamada
Maria Augusta. Lota na verdade se chama Maria Carlota + 3 nomes.

E qual é o seu endereço: Burlington St. ou Summit Street?

O meu é: rua Antonio Vieira 5, Leme, Rio de Janeiro. É o apartamento de Lota no Rio.

Antonio Vieira foi um excelente escritor e também um santo incomum...

Samambaia

5 de dezembro de 1953

Querido Cal,

Use uma piteira Dunhill Denicontina - mas na certa você já deve usar há anos. Gosto muito delas e
a gente pode ficar mascando enquanto datilografa, porém as minhas agora já estão muito gastas. E
a gente pode comprar umas bem bonitas, vermelhas e azuis. Aqui a gente paga muito caro pelos
cigarros americanos. Pensei que eu sempre ia conseguir fumar qualquer cigarro velho e gostei do
Gauloise em Paris etc., mas os cigarros brasileiros - experimentei dúzias - são de fato muito ruins.
(O melhor é o Louis xv.) Lembro que meus amigos sempre ficaram muito irritados quando pararam
de fumar e isso agora deve ter virado um verdadeiro vício nos eua - vejo até anúncios de cigarros de
mentira para ficar chupando. Em geral só fumo quando estou trabalhando, do contrário são três ou
quatro por dia e nunca mais de vinte. Mas aqui eu consegui parar de beber quase completamente, o
que sem dúvida é mais importante para mim. Por aqui, ninguém pensa nisso: um drinque de
uísque escocês ou de gim com tônica, se a pessoa está tentando ser chique. A cerveja é maravilhosa,
mas eu só gosto de tomar um pouco. O resultado de ficar tomando cafezinhos toda hora - e mais a
disenteria, que vai e vem - é que perdi 9 quilos e continuo emagrecendo. Acredito que você nunca
me viu no meu tamanho normal.

Uma coisa boa aqui: tenho lido mais do que nunca - quase todo o Dickens, sobre o qual estou
escrevendo agora um soneto pequeno, concentrado, & me engalfinhando com o português. Camões
é muito parecido com o que Ezra Pound diz, mas você já viu um dos seus sonetos religiosos? São
soberbos. "Jacó e Raquel" etc. Provavelmente você conseguirá ler com toda facilidade. Tenho de
tentar escrever para Randall. Por alguma razão, sinto que foi uma coisa muito nobre da parte
[6]
dele deixar-me em Poetry and the Age e, se estou só sendo masoquista ou não, eu não sei.

Nossos melhores votos e amor para vocês dois,

Elizabeth

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Samambaia

30 de novembro de 1954

Querido Cal,

[7]
Estou me dedicando, sobretudo, a uma tradução de um livro brasileiro. Talvez eu já tenha falado
com você sobre ele há muito tempo - não tenho certeza; comecei a fazer isso só para aprender
português e depois resolvi que poderia ser uma tradução muito bem-sucedida; assim, depois de
alguns inícios frustrados já estou agora quase na metade do livro e contratei uma datilógrafa que
escreve em inglês etc. É o diário de uma garota - um diário fictício, porém. Parece uma coisa
horrível, eu receio: uma garota entre os 12 e os 15 anos, que mora numa cidade dedicada à
exploração mineral chamada Diamantina, na década de 1890. Há uma imensa família de tias, tios e
ex-escravos, comandados por uma avó, todos muito pobres, religiosos e supersticiosos, e a garota
escrevia de fato extremamente bem. É divertida, obstinada e as anedotas são repletas de detalhes
sobre a vida, a comida, os padres etc. Acho que você vai gostar. Agora ela é uma viúva rica no Rio,
[8] [9]
75 anos. O marido, de uns 80 anos, foi presidente do Banco do Brasil. Não li muita literatura
brasileira, mas este é de longe o melhor livro que li, desde o famoso Machado de Assis, que pelo que
vejo é a única glória das letras que existe por aqui. (Minha amiga Lota tem um poeta na árvore da
família, que era de uma beleza arrebatadora, ganhou um prêmio em um baile à fantasia, num
Carnaval - disfarçado de mulher -, escrevia poesia romântica ruim e morreu aos 22 anos dizendo
"Que pena...".)

10 de dezembro

Com muito amor e saudades, como dizem por aqui, palavra muito bonita que parece incluir, num
só, todos os sentimentos relativos a amigos distantes.

Elizabeth

Samambaia

20 de maio de 1955

Caríssimo Cal,

O jugo da igreja aqui é quase inexistente. Os pobres são batizados e enterrados - não se casam - e o

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padre não vai ao cemitério. A família vai andando devagar, debaixo de guarda-chuvas pretos, em
geral levando um caixão coberto por um papel crepom preto. No entanto, o Congresso Eucarístico
está prestes a se realizar no Rio: são esperados 600 mil peregrinos, uma terrível falta de água,
pouca comida; além do mais, o tifo ou a febre tifóide - não sei qual dos dois - já está grassando.
Promete ser uma coisa muito, muito medieval. Certa mulher da sociedade doou todas as suas jóias.
Esqueci quanto valem agora, talvez centenas de milhares - dois punhados de jóias para fazer o
monstrum.

Ah, e na minha carta comprida eu agradecia a você pela boneca. Na verdade pegar a boneca na
alfândega foi o que suscitou a carta (primeira parte de abril). No caso de a carta nunca aparecer,
vou repetir tudo outra vez para você: fiquei com o embrulho aqui comigo durante duas semanas
mais ou menos e pensei que era uma outra coisa; por isso não me dei ao trabalho de abrir até que
fui para o Rio passar uns dias. É sempre muito divertido ir à Alfandaga (gosto muito dessa
palavra), mesmo que isso signifique toda sorte de pequenos selos, assinaturas, carimbos
de funcionários, cera de lacre etc. Era um dia aterradoramente quente e todo -mundo estava
esperando para retirar pequenos aparelhos elétricos a um alto custo ou coisas feitas de plástico, e
um velho ao meu lado, um monte de filactérios e solidéus etc.; assim, a boneca provocou uma
enorme sensação, a única coisa antique em muitos anos, imagino. O homem que me atendeu teve
de chamar seus "colegas" - palavra muito apreciada por aqui - para ver e fiz o melhor que pude no
meu português trôpego para explicar o que era. No final ela foi colocada de volta na caixa (obrigado
a você também pelo bom suprimento de papel de seda branco) e lacrada com uma porção de cera
vermelha e por selos barrocos, e fomos embora num táxi. Ela é extraordinária e eu gostaria de saber
mais a respeito disso - a respeito dela, na verdade -, como eu disse na minha outra carta. Acho que
gostei mais da parte detrás do avental, com os lacinhos, mas as perninhas também são muito
bonitas. Eu a guardo na estante de livros do meu quarto: uns dias de frente para o quarto, outros
dias de costas, entre um ninho de passarinho e um cachorro de barro da Bahia, e ela tem uma ótima
aparência, no seu jeito triste. O jardineiro, ao encerar o chão, disse que ela parecia uma loura que
ele conhece... (A propósito, não tive de pagar nenhum imposto.)

Por favor, escreva uma autobiografia - ou esboços para uma autobiografia. Os dois ou três contos
desse tipo que consegui escrever foram, de todo modo, uma grande satisfação - o desejo de pôr as
coisas no seu lugar e contar a verdade. É quase impossível não dizer a verdade na poesia, eu acho,
mas na prosa ela não pára de se esquivar da gente de uma forma engraçadíssima. Minha tradução
vai avançando devagar - a primeira terça parte agora está em n.y. Aí pela semana que vem, mais ou
menos, vou viajar para a cidade onde tudo aquilo aconteceu, a fim de escrever a introdução:
Diamantina. Hoje em dia é um lugar completamente abandonado e de imponente, lindo barroco
tardio português - reboco branco e pedra-sabão verde, chafarizes, pontes e igrejas. Cidade
absolutamente morta, embora 100 anos atrás estivesse repleta de europeus que faziam fortuna e
fosse conhecida em todo o mundo. Acho que vamos ser ciceroneadas pelo prefeito! Eles são
carentes de diversão, é compreensível. Na minha carta que se perdeu, eu reclamava amargamente
de nunca mais ser capaz de escrever um poema decente etc. etc., e depois de me forçar - levei cinco
meses - para terminar uma coisa dura, completamente artificial, de 32 versos, tudo acabou dando
certo e agora parece que voltei a escrever. Por favor, reze por mim para um santo anglicano. Estou

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tão feliz com a sua "divulgação", e agradecida, porque isso certamente vai ser de grande ajuda
também.

Acabei de ir lá fora e gritar LUZ! para as montanhas negras, de um jeito bem diferente de Goethe
[10]
(mais parecido com Deus), e miraculosamente alguém lá embaixo, na casa, me ouviu e ligou o
[11]
gerador. Está escuro, frio e chuvoso. Um dia, um dia, eu gostaria muito que você e E. viessem me
visitar aqui. A América do Sul é insatisfatória para quem viaja, eu receio, mas vocês gostariam
muito de algumas coisas - & temos espaço de sobra.

Com amor,

Elizabeth

Petrópolis

23 de novembro de 1955

Querido Cal,

Dito e feito. Aqui estão o primeiro e o último poema de uma leva em que ando trabalhando. O
[12]
último eu acabei de escrever ontem & provavelmente não deveria mandar tão cedo. Mas se ele
não der certo como poema, pode dar certo como uma carta, pois esse tipo de coisa é o cotidiano por
aqui.

[13]
Tivemos uma revolução na semana passada, uma revolução-antirrevolução, e neste exato
momento a situação parece muito ruim, apesar de ter começado de maneira muito cordial. Estamos
na pior temporada de chuvas e, como disse Lota, ninguém nem sonha em ir à rua para lutar. A
velha gangue do ditador está de volta outra vez. (Se por acaso você ler alguma coisa sobre o assunto
nos jornais, não acredite no que dizem. O New York Times está entendendo a situação de forma
completamente equivocada - mais um passo em favor da "democracia" etc. Acho que nossos
repórteres recebem ordens de sempre concordar com quem estiver no poder.) O motivo pelo qual
estou mencionando isso é porque um de meus melhores amigos aqui era o líder da revolução que
não aconteceu - um editor de jornal e deputado, responsável por se livrar de Vargas, no ano
[14]
passado, quase que sozinho. É um homem maravilhoso, de verdade - 41 anos, eu acho, muito
corajoso e inteligente, brilhante como orador e homem de tevê, que pode acabar sendo qualquer
coisa, é claro, até um ditador; católico, mas de forma liberal. Pois bem - ele teve de fugir do país,
primeiro num navio da Marinha de Guerra (o velho us St. -Louis, hoje Tamandaré), depois voltou
para a embaixada cubana e agora está em Nova York. Sua esposa e seus filhos vão partir depois.
Escrevi para diversas pessoas em Nova York e me pergunto se, no caso de ele ir para Boston, você e
E. não estariam interessados em conhecê-lo. Tenho certeza de que você ia gostar dele e os dois iam
se dar bem. Ele fala inglês e está interessado em tudo o que existe sob o sol, além de política -

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acabou de construir uma casa perto de mim, aqui no campo, e descobriu a jardinagem e a culi-
nária. Sua última viagem a Nova York durou só dois dias e de algum jeito ainda arranjou tempo
para comprar vinte frascos de temperos para mim.

Conhece você de nome, eu sei. Mencionei você quando escrevi para ele, mas não dei seu endereço -
vou mandar depois. O endereço dele e seu nome são: Carlos Lacerda: a/c Hugo Gouthier, cônsul,
Consulado do Brasil, 10 Rockefeller Plaza, n.y.

Ah, lembrei, foi ele que mandou para você aquela boneca pelo correio a meu pedido. Ele conta
histórias ótimas - sobre o rei Farouk num piquenique etc. Estou escrevendo para Agnes Mongan
também. Ela o conheceu quando esteve aqui. Não creio que você vá achar isso um fardo, e ele vai
fazer umas transmissões de rádio etc. em American Life e eu quero mostrar para ele o lado
"espiritual" disso. Esconda aquele automóvel!

[15]
Estou mergulhada até o pescoço, ou mais ainda, no segundo volume da vida de Freud. É
maravilhoso e assustador, embora o doutor Jones seja sem sal e dê um trabalho danado para ler.

Com amor para vocês dois,

Elizabeth

(Manuelzinho = pequeno Manuel; h = y, em inglês)

27 de fevereiro de 1957

Temo que hoje seja o meu último dia de paz por algum tempo. Amanhã vamos para o Rio encontrar
uma amiga americana que veio para o Carnaval - uma senhora rica, idosa, casada várias vezes, que
começou sua carreira dirigindo uma ambulância na Primeira Guerra Mundial. Nós temos pavor de
Carnaval, mas nunca vi direito como é e esta será minha grande chance de fazer isso. Temos lugares
[16]
na arquibancada com o prefeito do Rio etc., onde teremos de ficar durante toda a noite de
domingo, enquanto ele julga as Escolas de Samba dos negros. Porém isso é o melhor do Carnaval.
Consomem o ano inteiro todo o seu dinheiro fazendo ensaios, fantasias, compondo canções de fato
soberbas etc. Na maior parte, o Carnaval se degenerou de forma triste. Vi um deles em uma
[17]
horrorosa noite de chuva. Foi pouco depois do filme David & Bathsheba estrear no Rio e havia
milhares de d e b - e aqueles que não eram, pareciam homens usando peitos postiços.

Uma prova final com a costureira esta tarde. Temos cinco, juro, trabalhando para nós agora, mas
ainda tenho muito receio de que aquilo que parece chique no Rio vá parecer St. Louis de 1948, em
Nova York - ou em Boston. Vou partir daqui no dia 15 de março e sigo com a americana para a
Bahia e o Recife, depois é provável que vá para Porto Rico - se eu conseguir convencê-la a desistir
de suas idéias sobre o Amazonas. Vou ficar uma semana em Key West, até 5 de abril - a/c senhora
m.c. Stevens, caixa postal 668. Lota e eu vamos nos encontrar em Nova York, onde sublocamos um
apartamento: endereço e telefone ignorados no presente momento. Estou dividida entre os

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prazeres de ser incansavelmente servida, ainda que de modo displicente, por todos os nossos
pequenos negros, ou fazer uns ovos mexidos direito para mim mesma... Lota está ansiosa para
trazer alimentos para o café da manhã. Já contei a você que da última vez que voltamos de avião
trouxemos 4 litros de leite homogeneizado na geladeira do avião e demos uma festa de flocos de
milho bem no Carnaval? Também foi um grande sucesso.

Bem, ainda tenho de refletir mais um pouco sobre a minha vontade. Você gostaria que eu mandasse
[18]
alguma coisa? Não consigo ler Amy Lowell - embora ela pareça ser muito popular por aqui!

Lembranças para Elizabeth, e espero poder ver você em breve.

Com muito amor,

Elizabeth

Castine, Maine

3 de julho de 1957

Querida Elizabeth,

Bem, Cummings foi apresentado como alguém que era contra o comunismo quando ainda era
perigoso tomar essa posição. E lá ficamos nós sentados, uma fileira deveras eminente e abominável
- todas as idades, todos os níveis de inocência e cinismo - enquanto Cummings lia poemas
ultrajantes e sentimentais, bons e ruins, de ambos os tipos. Cerca de 8 mil pessoas escutavam e
aqueles que não conseguiam ouvir se aglomeravam em enorme multidão do outro lado do poço do
Jardim Público para ver pinturas não objetivistas. A revolução chegou, eu creio, embora
continuemos a ser criaturas de carne e osso.

Amor,

Cal

Primeiro de abril [de 1958]

dia da mentira

Querido Cal,

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O Rio está mais louco do que nunca. Falta água em partes da cidade e o gás anda escasso; em cada
edifício só um elevador funciona e há filas intermináveis, quarteirões inteiros para pegar os ônibus
miúdos, cromados e brilhantes ou os bondes velhos e abertos. Eles têm setores de primeira classe e
segunda classe, embora ninguém mais preste a menor atenção a isso. Há uns poucos ônibus
elétricos enormes e novos - do tipo caminhão com reboque, com um engate e oito rodas. São
chamados "papa-filas", como dragões. Enquanto isso o Brasil es-tá construindo uma capital
novinha em folha, longe, no interior, onde sequer existia uma estrada, um ano atrás. Dizem que é
exatamente igual a uma ci-dade de fronteira nos filmes em cartaz, uma fileira de prédios
provisórios feitos de madeira, bares e motéis, e uma rua de lama. Eu gostaria de ver.

Sua,

Elizabeth

Domingo, 20 de abril de 1958.

Querida Elizabeth,

Você faz as clínicas de reabilitação parecerem portos para poetas, no entanto eu agora estou bem.
Ontem comecei a ler Helena Morley. Eu estava num quarto horroroso - consolo de lareira creme,
janelas creme de 3 metros, no quarto vizinho um professor de direito de Harvard com depressão,
[19]
lendo Look Back in Anger e as Decisões Inéditas de Brandeis, fazendo ruídos iguais aos de um
pombo (às vezes eram pombos de verdade) e gemendo "Décadas, Oh, décadas!" e "HorrOR,
HorrOR". Helena é de fato arrebatador; tudo é uma história. De repente percebi que estava
sublinhando quase que todas as páginas. Ela alcança tanta coisa que um autor de verdade - andei
lendo A Princesa de Clèves e O Pai Goriot - não consegue em centenas de páginas. Eu gosto do
"protetor", o padre fofoqueiro, sua divertida paráfrase de contos adultos ruins e pantomimas
banais. Nem em um milhão de anos eu conseguiria a fresca naturalidade mundana que ela tem. Sua
tradução parece um original.

8 de maio de 1958

Querido Cal,

E agora os últimos boatos são de que Pound está vindo para cá. Pelo menos um amigo telefonou do
Rio na noite passada e disse que saiu uma carta sobre o assunto no Jornal de Letras. Ainda não vi,
mas vou tentar conseguir um exemplar hoje ou amanhã. Será possível? Pensei que ele queria voltar
direto para a Itália. Há uma enorme colônia italiana em São Paulo e ele pode muito bem ter amigos
fascistas aqui. De fato ele traduziu alguma coisa de Camões e agora o câmbio está extremamente
alto (mas os preços por aqui também andam altos...), então eu creio que existem razões para que
isso possa ser verdade.

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Mas fico tremendamente deprimida ao pensar nele propagando mais idéias antiamericanas por
aqui, onde já existe muita gente fazendo isso... Você soube alguma coisa a respeito? Se ele está
mesmo vindo para cá, é claro, eu gostaria de visitá-lo no Rio, ajudar a senhora P., se eu puder, e até
trazê-lo aqui, quem sabe? Mas na certa ele vai para São Paulo; e se por acaso ele tiver visto aquele
meu poema, ou a senhora P., talvez ele não queira me ver. Bem, se você souber de alguma coisa, por
favor, me avise... Se ele um dia vier para cá vou ter primeiro de fazer Lota jurar que não vai se
exaltar com ele, nem vai começar uma discussão! (Sou covarde, eu sei - mas nunca vi motivo para
muita discussão sobre nada, nem sou capaz de suportar discussões.) No fundo, espero que não seja
verdade. Já existem malucos demais por aqui. Porém, se for verdade e você souber qual o endereço
dele, lá ou aqui, pode mandar para mim, para que eu possa redigir um bilhete? Estou feliz por ele
estar livre. (E saiu uma nota antipática dele no Times de Londres, em que diz não estar interessado
em poetas e por isso que eles façam o favor de não incomodá-lo - só se interessa por historiadores!)

Como você vê, não tenho muitas novidades. Estamos começando a garagem; é mais uma ponte do
que uma garagem e Lota está contente com quinze "homem" para comandar. Parece que
finalmente voltei a escrever poemas - mas são todos poemas tão velhos que mais parece uma faxina
no sótão. Só tem um novo e é sobre Miami... Também ando escrevendo sobre a neve na Nova
Escócia - ninguém vai imaginar que estamos tendo maravilhosos dias de inverno por aqui, nuvens
[20]
& crepúsculos etc., bem aqui debaixo do meu nariz. Nosso amigo Alfredo - a pessoa com quem a
gente acha que você podia ficar no Rio - anda grudado numa garota americana e todo sábado ou
domingo os dois vêm juntos para cá. Ela também nasceu em Worcester. É viúva de um compositor
[21]
brasileiro - ex-comunista, agora católica e escreve romances . Vai me trazer um romance
proletário para eu ler. Ah, céus. Fizemos um lindo passeio a Teresópolis no fim de semana passado
- uma pequena cidade nas montanhas, muito mais alta e mais fria, batizada em homenagem à
esposa de dom Pedro, assim como Petrópolis recebeu esse nome em homenagem a ele. Eu gostaria
que você visse aquele cenário - e vou incluir na carta um cartão-postal muito ruim para lhe dar uma
idéia, se eu conseguir lembrar onde pus. Tem um jeito de coisa chinesa: picos finos como dedos,
uma lua nova vermelha e embaixo um rinque de patinação com homens jogando hóquei em patins -
todos de uniforme de cetim verde ou vermelho. Lota disse para Alfredo não ser um "motorista no
banco de trás...".

Desculpe pela carta maçante, mas com muito amor,

Elizabeth

[Dezembro de 1958]

Querido Cal,

Este cartão veio do Japão para as montanhas do Brasil, para uma loja japonesa - naturalmente, as

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montanhas não são estas. Fiquei com vontade de escrever alguma coisa para você e isto é o que
tenho à mão... O presente foi trazido por uma certa senhora Ovalle um dia desses (na verdade uma
[22]
garota de Worcester - a tal que mora com um velho amigo de Lota em cuja casa nós planejamos
hospedar você!) - eu espero que ela ponha no correio. (Pedi que fizesse isso.) Estou muito contente
por deixar de lado o Dr. Jivago (como escrevem os franceses) e esperar por Dr. Zhivago. Agora eu
gostaria de também mandar para você um disco de samba que é de fato bom e estranho, mas eu
não sabia que teria a chance de lhe enviar nada.

Lota está comprando um gato siamês, não sei se já lhe contei isso, e resolveu lhe dar o nome de
Suzuki - o que fica a alguns países orientais de distância... Não podemos eleger Jarrell de novo e
para Flannery O'Connor (o mais cedo possível, no caso dela?) darei todo o apoio. Aqui é lindo, mas
eu e Lota estamos nos sentindo tremendamente tristes e com muitas saudades (palavra surrada).
Ah, por favor, me conte logo: acha que vai passar por Sevilha na sua viagem pela Espanha? Se for
assim, eu gostaria de escrever para um amigo meu que está lá, um dos poucos poetas brasileiros
que eu de fato admiro, um sujeito muito boa praça - também fala inglês, tem um carro e sei que
ficaria encantado de receber você e até de passear com você pela Andaluzia. (Conversamos sobre
você.) (Ele também tem uma esposa, que eu receio não vá agradar a E., além de ter já nem sei
quantos filhos, nesta altura.) Seus ancestrais são quase pré-romanos, pelo que entendi, e ele conta
umas histórias muito boas sobre a árvore genealógica da família. (O nome dele é João Cabral de
Melo Neto - o último item significa apenas "neto", portanto você já pode ver como é.) Agora
estamos de volta às montanhas certas. "A mulher de pedra." Do jeito como você o retrata,
[23]
Snodgrass é muito triste, mas a poesia dele também é. não confie no "mau poeta grisalho" - ele
conta tudo, sabe, lamento dizer. A sua versão de tudo, a bem dizer, e nos lugares errados. Eu gosto
da piada sobre o avião - é exatamente assim que são aqueles índios. Uma das minhas favoritas foi a
do garoto na nossa viagem que, quando pediram para posar para uma foto, educadamente tirou
todas as roupas. (Depois fui nadar com ele.) Não sei por que não escrevi uma carta e acabei logo
com o assunto, mas por favor nunca use o endereço acima - é apenas para uso local. (E o telefone
não está funcionando nesta semana.) Eu queria lhe contar uma boa piada brasileira - mas acabei de
ver a piada contada na Time também -, com a esperança de que você não leia (não tenha de ler)
essa publicação abominável como eu faço: a inflação aqui anda mesmo muito ruim - houve duas
pequenas quase revoluções. Bem, o homem que fixa o índice de reajuste dos preços foi mandado
para o enterro do papa e agora os brasileiros andam dizendo: "Ele chegou lá e o papa pulou de xii
para xxiii."

Minha campainha "hospitalar" especialmente suave me avisa que está na hora do jantar. As estrelas
estão enormes - há uma bem amarela. Tenho um mapa celeste que mostra o céu daqui em todos os
meses do ano e nunca fui capaz de estabelecer muita correspondência entre o mapa e as estrelas de
fato - não sei se é boa idéia ter de trocar o nome de tudo o que a gente conhece numa fase tão tardia
da vida!

Com muito amor,

Elizabeth

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2 de fevereiro de 1959

Querido Cal,

Passamos duas semanas muito agradáveis longe da vida doméstica - fomos pescar e pegamos uns
golfinhos enormes e outros peixes. Cabo Frio é uma cidadezinha miserável; todas as aldeias de
[24]
pescadores estão horríveis nesta época - ao que parece, no tempo do capitão Slocum não eram
tão devastadas pela pobreza -, mas a paisagem e as praias são de fato insuperáveis e raramente há
alguém à vista. A "areia branca" de Lota é verdadeira, mas existem pedras também, quase como no
Maine - só que em geral com cactos gigantescos e outras plantas esquisitas, onde era de se esperar
que só houvesse pinheiros. Na véspera do Ano-Novo, nosso anfitrião trouxe um telescópio
magnífico e observamos Marte e a Lua, houve queima de fogos e tomamos champanhe. Se você e E.
[25]
(e H) vierem, vamos fazer tudo para levar vocês até lá para passar pelo menos um fim de
semana - é uma casa de praia muito bonita, ao estilo de Turgueniev - colunas grossas e redondas
com redes amarradas, um pátio com plantas crescidas demais e dunas branquíssimas e mais altas
do que a cidade, como "moby dicks". Um dos dias de pescaria foi muito divertido. (Manoel, o
anfitrião, tem um barco de pesca que parece saído de um Heming-way superHemingway - embora
Manoel seja um tipo muito mais simpático.) O outro convidado, um jovem, pescou o que até agora
achamos que é o maior marlim já pescado no Brasil. Todos ficaram muito entusiasmados, bem
diferente dos meus dias de pescaria no Maine, em Nova Escócia ou na Flórida. Quando o monstro
foi finalmente içado a bordo todos nos abraçamos, inclusive a tripulação, e depois tomamos uma
demi-tasse de um café gostoso. Quando chegamos em terra, a esposa do rapaz, a cunhada e os
filhos nos receberam no cais e a esposa me disse: "Ele andava muito mal-humorado porque não
estava conseguindo pescar nada grande nesta temporada, por isso enquanto vocês foram pescar eu
fui à igreja e acendi uma vela para ele." O fotógrafo de Cabo Frio apareceu para tirar fotos para as
páginas de esporte do Rio (ou talvez para as colunas sociais...) e ficou tentando o tempo todo
interromper a agitação e a conversa. "Atenção! Camera!", ficou falando, enquanto se metia no
nosso caminho com o seu tripé.

Com muito amor,

Elizabeth

5 de maio [1959]

Querido Cal,

Tenho passado boa parte das últimas semanas no Rio para fazer um tratamento dentário; é por isso

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que ando tão lenta para escrever para você, se bem que levei sua última carta comigo para cima e
para baixo, em duas dessas viagens. Tenho um dentista novo e simpático - escocês, criado no Brasil,
que me serve cafezinhos na cadeira. O clube atlético português é um edifício do outro lado do pátio
e nas nossas sessões de manhã cedo os homens de negócios estão lá fazendo ginástica ("Ah... lá vão
os tarados por ginástica", diz o dentista) ao som do Danúbio Azul, tocado num piano. Numa
extração do meu dente de siso rachado, havia uma assistente japonesa maravilhosa, igual a uma
boneca, que tinha acabado de voltar de três anos em Yale. Adoro essa miscelânea internacional -
por exemplo, acabei de vender o meu mg para uma jovem brasileira que trabalha na embaixada dos
eua (depois de seis anos de uso e mais dois anos antes de eu comprar; vendi pelo mesmo preço que
paguei) e tenho de esperar pelo dinheiro que vai vir do avô dela, em Xangai. Na minha última
[26]
viagem tive de almoçar na embaixada com nossa amiga Vera - na lanchonete. Foi estranho
comer sanduíches ao estilo de lanchonete americana e ouvir tantas vozes americanas. Tive a
impressão de que conhecia todo mundo, mas não conhecia ninguém. O adido cultural se uniu a
nós; com muito medo, creio, de que eu fosse produzir livros sobre a sua última operação, que ele
me contou. Porém parece que um funcionário itinerante do Departamento de Estado tinha acabado
de passar por lá (esqueci o nome) e, quando perguntaram sobre você, ele ficou muito satisfeito e
disse: "Esse é o tipo de pessoa que nós queremos; quem dera mais gente boa quisesse fazer essas
viagens etc." Portanto acho mesmo que se você ainda quiser vir na primavera de 1960 vai ser fácil.
Além disso, parece que já existe um ótimo grupo interessado em receber você na Bahia (Salvador) -
que provavelmente seria um lugar ainda mais interessante para visitar, por um breve tempo - e
assim, por favor, vamos planejar isso. Você fez algo a respeito disso enquanto esteve em
Washington? Outro item: Vera, que passou por aqui numa viagem, me contou que há em Porto
Alegre um clube muito grande de homens, que estudaram nos eua, chamado "O Sino Rachado".
Não sei por que quando contei isso para uns amigos, eles ficaram muito histéricos - ao que parece
há conotações obscenas em português. Ou talvez seja por isso mesmo.

Umas noites atrás, o nosso amigo que é político e editor de jornal, Carlos Lacerda, veio jantar. É
pena que você não o tenha encontrado quando esteve no exílio porque é um ótimo exemplo do tipo
do homem de poder - sobre o qual a maioria dos poetas é (ou sobre o qual eu sou) muito ignorante.
Enquanto ele esteve aqui a Time não parou de telefonar pedindo uma entrevista com ele sobre o
[27]
fato de, no fim das contas, Clare Boothe Luce não vir para o Brasil. Ele foi muito astuto, mas
eles não pararam de tentar torcer seus comentários para mostrar que os comunistas americanos
estavam por trás de tudo isso, ou que havia aqui um golpe de comunistas etc. Estou curiosa para
ver se alguma coisa vai sair publicada. Por acaso a gente também conhece o repórter - um
americano de fato psicótico, casado com uma brasileira. Ele odeia o Brasil, os judeus, os negros e os
eua também - uma escolha perfeita da Time.

Se as próximas eleições correrem do jeito como parece que vão correr, Carlos talvez consiga ser
vice-presidente (ou até presidente, mais cedo ou mais tarde), ou pelo menos ministro da Educação.
[28]
Talvez eu consiga que o Departamento de Es-tado do B . convide você para vir aqui então! Ele foi
muito divertido ao contar uma recente viagem a Portugal para trazer de volta o general Delgado,
[29]
que se atreveu a desafiar Salazar nas eleições do ano passado. (Não sei se você acompanhou
algum desses fatos, mas saíram no noticiário internacional.) Delgado é um exilado muito malvisto

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por aqui, agora - e ficou três meses na embaixada do Brasil em Lisboa, antes disso. Parece que ele
quase deixou todo mundo maluco lá na embaixada, se enfurecendo e esbravejando que era homem,
e que não admitia ser privado de "vinho, mulheres e fados". No avião, ele quis dormir numa cama e
alguém tentou achar a sua mala, o seu pijama etc., mas ele reagiu cheio de orgulho e disse: "Eu
durmo nu." Foi recebido no aeroporto por um grupo muito pequeno de portugueses, jogou beijos &
chorou, enquanto gritava: "Parem! Parem! É lindo demais!"

Amor de novo,

Elizabeth

[Papel de carta do hotel Othon Palace, decorado com arranha-céus. Uma seta desenhada por e.b.
aponta para uma janela no 9º andar.]

[São Paulo,]

24 de setembro de 1959

Querido Cal,

Depois dos nossos longos e maçantes meses de leitura, gamão, jardinagem, culinária & leitura, a
vida ultimamente anda quase fervilhante demais. Quando voltar para a minha machina vou tentar
compor isso numa espécie de carta. Fomos a São Paulo para a abertura da Biende [sic] - 4 485
obras de arte -, dei minha atenção a umas 400. A melhor é de Francis Bacon - um verdadeiro
horror; as outras em geral só conseguem dizer BU. Vamos voltar para o Rio hoje à tarde. Lota tem
inúmeras tias, tios e primos por aqui. Dos mais de 66 netos, ela é a única que não casou & não pára
[30]
de receber congratulações por isso. Reconheci Meyer Schapiro no saguão e tomei coragem para
ir falar com ele - & ele não podia ter sido mais simpático. Espero que possamos encontrá-lo de novo
[31]
no Rio ou lá na serra, na casa. Os Calder estiveram por um tempo no Rio & estivemos com eles
muitas vezes. Ele é muito engraçado (mas sou a única que consegue compreendê-lo, pois ele apenas
resmunga baixinho suas tiradas espirituosas). A esposa é um pouco parecida com o tio-avô dela,
Henry James, acho! Eu queria saber se você já voltou para casa & como está passando. Nós vamos
para Nova York em janeiro - vamos ficar até março. Se souber de um bom apartamento para
sublocar em Nova York por esse período - digamos, alguém que queira uma pessoa para tomar
conta do seu canarinho -, por favor, me avise. Vai ser maravilhoso ver você, mas eu gostaria que
você estivesse aqui agora. A vista daqui & o meu cérebro estão repletos de arranha-céus, igual a
[32]
isto.

Com amor,

Elizabeth

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[Incluso: cartão-postal do Parque do Anhangabaú, São Paulo, uma paisagem de letreiros em


neon nos prédios altos, com os dizeres goomtex.]

Esta palavra maravilhosa (significado desconhecido para mim) fica acesa de noite, é claro - na
verdade nunca vi tantos letreiros elétricos na minha vida. Uma empresa japonesa fabrica os
letreiros & são os maiores & melhores do mundo, creio - & e os mais incríveis.

15 de fevereiro de 1960

Querido Cal,

Os Calder estão voltando para o Carnaval. São três ou quatro noites: bailes, gente chique, boemia,
os mais famosos bailes de bichas do mundo e desfiles - e Lota está ficando apreensiva. Sempre
tentamos ir na noite das Escolas de Samba dos negros, mas só isso - porém os Calder gostam de
ficar acordados até as seis da manhã e dançam, dançam, dançam, e bebem, bebem, bebem... É
provável que eu fique fora durante uma parte do Carnaval - vou a Belém, na boca do Amazonas.
Andamos tendo umas atividades sociais bem estranhas, no Rio, por um breve tempo, para dar uma
mãozinha a um amigo nosso da embaixada: saímos num barco bem pequeno para ver a baía com o
[33]
ex-governador de Nevada, sua esposa e quatro filhos... Foi muito confuso: demos a direção
errada para o capitão e fomos parar numa outra ilha; os quatro garotos enormes ficaram de cara
amarrada; de Nevada, só conhecemos Reno... O rapaz da embaixada me disse que o governador se
interessava por literatura. Não acreditei nisso, é claro, mas nossa conversa foi mais ou menos
[34]
assim: "Soube que você escreve poemas." "Sim." "Olha, Lucius Beebe é muito amigo meu."
Coitados, eles foram mesmo muito simpáticos, estavam a caminho do Paraguai (Lota soltou um
resmungo sem o menor tato quando lhe disseram) e agora já está acontecendo uma revolução por
lá. O homem usava uma gravata-borboleta abotoada muito esquisita e, quando jovem, carregou
ouro amarrado na cintura para a Wells Fargo.

Fomos a Cabo Frio outra vez passar o Natal e foi muito bom. Mas, para dizer a verdade,
ultimamente andamos bastante tristes. Uma de minhas mais velhas amigas, que vinha nos visitar
[35]
em abril, morreu de repente, de um ataque do coração - em Nassau, que lugar para morrer - e os
nossos vizinhos simpaticíssimos, o melhor historiador do Brasil e sua esposa, excelentes amigos de
[36]
Lota, morreram num estúpido acidente de avião. Um homem por aqui, ligeiramente excêntrico,
depois que dois amigos morreram de ataque do coração, bateu com as mãos nos joelhos gordos e
falou, revoltado: "Não existe mais a menor garantia!" Uma coisa para se pensar nesse momento.

Com muito amor, Cal (desculpe por não ter escrito antes - Lota também manda lembranças), & os
melhores votos para a família.

Elizabeth

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24 de fevereiro de 1960

Querida Elizabeth,

Já viu o filme franco-italiano Orfeu Negro, sobre o seu Carnaval? É um pouco colorido, exuberante,
operístico e americano demais, porém a história é contada com uma surpreendente ternura; a
gente se sente mesmo dentro do Carnaval e ouve a música dos seus discos.

Amor,

Cal

Abril de 1960

Querido Cal,

Esqueci de incluir isto ontem. Também me esqueci de dizer que em Belém conheci um jovem poeta,
[37]
Joaquim Francisco. Ele acabou de ganhar uma bolsa para passar um ano nos eua onde vai
estudar poesia americana. Quando o encontrei, ele não sabia para qual universidade ia ser
mandado, mas achava que ia partir do Brasil em junho ou julho. Achei-o adorável e tomei a li-
berdade de lhe dar um bilhete para você e para uns outros poetas. Na certa ele nunca vai chegar
nem a milhas de distância de você, mas se acontecer de aparecer, acho que você vai gostar dele. E
tenho certeza de que não vai trazer nenhum incômodo - é muito educado. Tem só 22 anos, muito
bonito, gentil e conhece de cor todos os poetas contemporâneos - o que deve lhe ter custado um
enorme trabalho, morando em Belém -, e foi muito comovente. Leva tudo isso muito a sério e é
agradável conhecer aqui alguém que acha que a poesia americana, no presente, é melhor do que a
francesa, e que você é o melhor de todos. Agora estão fazendo uma coisa no Rio chamada
"concretismo". Parecem as experiências anteriores a 1914, com um pouco de "transição" & Jolas, e
uma pitada de Cummings. É terrivelmente triste. Fui entrevistada sobre o assunto em Belém e falei
furiosamente que isso talvez tenha "um certo charme nostálgico", e Joaquim ficou encantado.
Durante a entrevista (foi no Carnaval) entrou no café onde estávamos um mascarado com fantasia
[38]
listrada de presidiário, que veio direto falar comigo. Estava com máscara de Chessman e levava
um livro preto com o rótulo LEX. Abriu o -livro debaixo dos meus olhos e disse: "Só Deus pode
matar." Os dois poetas que estavam comigo ficaram em êxtase.

Estou ficando tão maçante quanto Verlaine com as minhas mudanças de opinião, mas me dei conta
de que minhas queixas financeiras de ontem não caem muito bem depois de meus comunicados
radiantes sobre o dinheiro que se pode ganhar no Brasil. Porém isso ainda é verdade, ando

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investindo meus pequenos lucros aqui para tentar ganhar mais algum dinheiro e, nesse caso
particular, ele continuou a crescer no ano passado. Em dois ou três anos, devo ter mais, sem
dúvida.

Acho que Harriet vai ser muito bonita. Lembranças minhas para a mãe dela.

Com amor,

Elizabeth

19 de maio de 1960

Vou tentar arranjar uns exemplares para você no primeiro dia da semana. Na semana que vem
vamos para Ouro Preto (a cidade colonial mais perfeita, uma longa viagem de um dia, daqui), para
passar uns dias lá. Ah, acho que uma vez mandei umas fotos para você de esculturas de Aleijadinho,
o último e melhor escultor do barroco brasileiro. O nome quer dizer "pequeno aleijado"; não se
sabe o que ele tinha, mas toda a sua obra da fase final foi feita, como a de Renoir, com as
ferramentas amarradas nas mãos. Ouro Preto tem igrejas inteiras feitas por ele - pequenas, mas
lindas.

Mande meu amor para as suas senhoras - e muito para você também.

Elizabeth

J
(Continua na próxima edição de piauí.)

[1]
Cal, de Calígula, era o apelido que Robert Lowell tinha desde a infância devido ao seu
temperamento difícil.

[2]
O brasileiro Sérgio Bernardes (1919-2002).

[3]
Na verdade, Fernando Pessoa morreu de cirrose hepática, em 1935.

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[4]
A poeta americana Marianne Moore (1887-1972).

[5]
O poeta americano Randall Jarrell (1914-65).

[6]
Este livro de Randall Jarrell, de 1953, inclui a resenha dele de North & South, de Elizabeth
Bishop.

[7]
Minha Vida de Menina (RJ: José Olympio, 1942) foi traduzido sob o nome The Diary of
"Helena Morley" (Farrar, Straus, and Cudahy, 1957).

[8]
Alice Dayrell Caldeira Brant (1880-1970).

[9]
Augusto Mário Caldeira Brant (1876-1978).

[10]
Dizem que as últimas palavras de Goethe no leito de morte foram "Luz, mais luz!".

[11]
A crítica, ensaísta e editora Elizabeth Hardwick (1916-2007), casada na época com Robert
Lowell.

[12]
"Manuelzinho".

[13]
Refere-se ao movimento do ministro da Guerra, marechal Lott, para garantir a posse de
Juscelino Kubitschek, ameaçada por um movimento militar e civil no qual se destacava Carlos

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Lacerda.

[14]
Carlos Lacerda.

[15]
Ernest Jones, A Vida e a Obra de Sigmund Freud (1989).

[16]
Francisco Negrão de Lima (1901-81).

[17]
Davi e Betsabá, dirigido por Henry King (1951).

[18]
Amy Lawrence Lowell, poeta americana (1874-1925).

[19]
Look Back in Anger, peça do dramaturgo inglês John Osborne (1929-84), intitulada em
português Geração em Revolta. The Unpublished Opinions of Mr. Justice Brandeis: The Supreme
Court at Work é de -Alexander M. Bickel e Louis Dembitz Brandeis (1957).

[20]
O escritor católico Alfredo Lage (1904-1973).

[21]
Virginia Peckham Ovalle foi casada com o compositor e poeta Jayme Ovalle (1894-1955). Autor
de O Santo Sujo: A Vida de Jayme Ovalle (2008), o jornalista Humberto Werneck esclarece que,
depois de viúva, Virginia teve um "breve affair, sem maiores consequências", com Alfredo Lage.

[22]
Segundo Humberto Werneck, Virginia Ovalle nunca morou com Alfredo Lage.

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[23]
O poeta americano William DeWitt Snodgrass (1926-2009).

[24]
Joshua Slocum, Sailing Alone Around the World (1900).

[25]
Elizabeth Hardwick e a filha dela com Lowell, Harriet.

[26]
Vera Pacheco Jordão (1910-1980), jornalista e escritora, foi casada com o editor José Olympio.

[27]
A mulher de Henry Luce, o criador e dono da revista Time.

[28]
Ministério das Relações Exteriores.

[29]
Humberto da Silva Delgado concorreu à presidência de Portugal com o almirante Américo
Tomás, candidato de António de Oliveira Salazar nas eleições de 1958. Depois que perdeu, ele foi
expulso das Forças Armadas e pediu asilo na embaixada brasileira, antes de partir para o exílio.

[30]
Meyer Schapiro (1904-1996), crítico de arte.

[31]
Louisa James Calder e o artista plástico americano Alexander Calder (1898-1976).

[32]
O papel de carta é enfeitado na margem esquerda e embaixo com imagens de arranha-céus, que
invadem o texto de e.b.

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[33]
Charles H. Russell (1903-1989), governador de 1951 a 1959, que liderava a missão da
International Cooperation Administration para o Paraguai.

[34]
O colunista de moda Lucius Beebe (1902-1966) publicou um livro de poemas, Corydon and
Other Poems (1924).

[35]
Marjorie Carr Stevens morreu em 21 de outubro de 1959.

[36]
Octávio Tarquínio de Sousa e sua esposa, a escritora Lúcia Miguel Pereira, morreram em 22 de
dezembro de 1959.

[37]
Joaquim Francisco Coelho.

[38]
Caryl Chessman, escritor condenado à morte, cujo caso se tornou célebre para os oponentes da
pena capital.

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Uma casa para Elizabeth | piauí_59 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais Page 1 of 20

Uma casa para Elizabeth


O refúgio e os amigos que a poeta americana encontrou em Ouro Preto
por Roberto Pompeu de Toledo

osé Alberto Nemer calculou em 70 anos, talvez mais, a idade daquela senhora miúda, cabelos
grisalhos penteados para trás, contraída como bicho torcido para dentro de si mesmo. O ano
era 1968, a cidade Ouro Preto, a ocasião um dos almoços que aos sábados o pintor Carlos Scliar
costumava oferecer em sua casa. A senhora era americana, o sotaque não deixava mentir. Quem
era? Uma poeta famosa, Elizabeth Bishop, não conhece? Não, ele nunca tinha ouvido falar.
Aproximou-se dela. A conversa fluiu como costuma ocorrer com pessoas sintonizadas na mesma
faixa existencial de ondas. E tal era a agilidade mental daquela mulher, tal o senso de humor e
capacidade de observação que, à medida que a conversa progredia, Nemer ia lhe abatendo os anos.
Sessenta talvez? Cinquenta? Quarenta e alguma coisa? A certa altura, ela até parecia uma
companheira da mesma idade – e, no entanto, Elizabeth Bishop contava 57 anos, contra os tenros
23 de Nemer.

Ao término do almoço de Scliar ainda sobrava vontade de conversar. Bishop convidou-o para uma
esticada em sua casa. Ela morava, na época, numa casa alugada da amiga Lili Correia de Araújo.
Ficava na mesma rua, só um pouco mais adiante. Foram a pé Nemer, Bishop e a companheira da
poeta,uma jovem americana de longos cabelos louros. Chegaram e Bishop recolheu-se à cozinha
para fazer um café. Nemer ficou só na sala. Ou melhor, na companhia dos dois gatos da casa,
Suzuki e Tobias. Quando a poeta voltou, os gatos estavam aninhados em seu colo. “Você gosta de
gatos?”, ela perguntou. Ele hesitou: “Não especialmente.” Ela comentou: “Esses gatos sempre
gostam de experimentar o colo de certas visitas.”

José Alberto Nemer e, um pouco depois, sua irmã Linda iriam se tornar os melhores amigos de
Elizabeth Bishop, em Ouro Preto. Ouro Preto é, digamos, a fase dois da permanência de Bishop no
Brasil. A fase um desenvolve-se entre Rio de Janeiro e Petrópolis. É o período entre 1951 e 1967 em
que a poeta viveu com Lota Macedo Soares, conhecida primeiro por ser de ilustre família, em
seguida por ter emprestado seu talento de arquiteta e urbanista sem diploma à montagem do

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Uma casa para Elizabeth | piauí_59 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais Page 2 of 20

Parque do Flamengo, e hoje em dia, sobretudo, por ter sido amante de Bishop. O romance entre as
duas, que começa com arrebatamento duplicado pela voraz carência de uma e outra, alimenta-se da
coincidência dos temperamentos artísticos, entra em declínio com as recíprocas crises de
insegurança e depressão, e termina em tragédia, com o suicídio de Lota em Nova York, já suscitou
livros (o mais recente dos quais a ficção A Arte de Perder, do americano Michael Sledge), peças de
teatro (Um Porto para Elizabeth Bishop, de Marta Góes, monólogo interpretado por Regina Braga)
e filme (do diretor Bruno Barreto, em preparação). E mais ainda continua a suscitar nos simpósios
e publicações que vêm se sucedendo este ano, o do centenário do nascimento da poeta.

Menos celebrado é o período de Ouro Preto. E, no entanto, Bishop manifestou desde cedo atração
pela cidade mineira. “Estamos planejando uma viagem a Ouro Preto”, escreve ela a um de seus
numerosos correspondentes, logo no primeiro mês da estada no Brasil, em dezembro de 1951. Em
carta à poeta Marianne Moore, sua amiga e mentora literária, de abril de 1953, anuncia que enfim
fará a planejada viagem, na companhia de Lota, e vai além: “Era o único lugar no Brasil que eu
realmente pretendia conhecer.” A viagem teve os inconvenientes de estradas péssimas, pneus
furados e hotéis sofríveis, mas valeu a pena. “Não faço turismo há tanto tempo que provavelmente
o superestimo”, escreveu, em outra carta, “mas as igrejas e capelas – brancas com enfeites de
pedra-sabão de um cinza avermelhado – são excelentes, a meu ver.” Outras idas a Ouro Preto se
sucederam, com passagens por Tiradentes (Toothpuller, traduz ela aos amigos americanos), “uma
cidadezinha perfeita”. Em Ouro Preto, vai se consolidando a amizade com a dinamarquesa Lili
Ebba Correia de Araújo, que ao enviuvar do artista pernambucano Pedro Correia de Araújo
radicou-se na cidade mineira e ali criou o Pouso do Chico Rei, destinado a se tornar a hospedaria de
eleição de artistas e intelectuais.

Bishop ora se hospedava no Chico Rei, ora na casa de Lili no bairro das Lajes, aquela em que
Nemer foi recepcionado pelos gatos. Esta casa ofereceu-lhe as cenas presentes no poema “Under
the Window: Ouro Preto” (“Pela janela: Ouro Preto”), assim traduzido por Paulo Henriques Britto:

Conversas singelas: fala-se de comida,


ou: “Quando minha mãe me penteia,
machuca.”
“Mulheres.” “Mulheres!” Mulheres
com vestidos

vermelhos, sandálias plásticas, e bebês


quase invisíveis – agasalhados, só os
olhos
de fora, no calorão – que elas
desembrulham

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Uma casa para Elizabeth | piauí_59 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais Page 3 of 20

e levam até a água, e dão de beber


com mãos sujas e amorosas, aqui
onde antes
havia uma fonte, e onde todos passam.

Ao lado da casa, sobre as “lajes” – as encostas de pedra do morro em que se assenta todo o bairro –,
desce uma corrente de água que lá embaixo, na rua, vai ser aproveitada pelos passantes para matar
a sede ou para se lavar. O poema, dedicado a Lili Correia de Araújo, continua por mais catorze
estrofes, descrevendo o que a poeta via ou ouvia da janela: o motorista do caminhão Mercedes-
Benz que lava o rosto, o peito e o pescoço; a tropa de burros que se encaminha mecanicamente para
a água; as exclamações de “está fria”, “gelada”, com que “todos concordam há séculos”. Menos
relevante para a literatura, mas bem mais para a vida pessoal de Bishop, foi outra vista que ela
tinha da mesma janela: a de uma casa, do outro lado da rua, um pouco mais para a direita, que
observada do alto, como ela o fazia, exibia “um enorme jardim murado e o telhado mais bonito de
Ouro Preto”. A família proprietária pensava em vendê-la. Bishop acabou comprando-a. “Vim passar
uns dias aqui e acabei comprando uma casa”, anunciou ao crítico literário e amigo Ashley Brown,
numa carta escrita em Ouro Preto, em setembro de 1965. O compromisso da poeta com a cidade
mineira mudava de patamar.

casa, datada de fins do século XVII e início do XVIII, era pouco mais que uma ruína. Os três
anos seguintes seriam dedicados à restauração. Bishop continuava morando entre Rio e
Petrópolis e vinha vez ou outra a Ouro Preto. Da direção das obras encarregou a amiga Lili. Não
haveria pessoa mais indicada. Lili, que conhecera o marido Pedro Correia de Araújo em Paris, ao
procurá-lo para tomar aulas de pintura, era ela também dotada para o desenho e o artesanato, e,
como o marido, tomou gosto pelas antiguidades e pelo preservacionismo. Testemunha de seus
talentos é o Pouso do Chico Rei, decorado com um bom gosto até então desconhecido em Ouro
Preto, e saudado em versos pelos hóspedes poetas, como Vinicius de Moraes:

Amiga, só quero pouso


No Pouso do Chico Rei

Ou Elizabeth Bishop:

Let Shakespeare and Milton


Stay at a Hilton.
I will stay
[1]
at Chico Rei.

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Uma casa para Elizabeth | piauí_59 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais Page 4 of 20

O trabalho de restauro, além de longo, foi caro. “Para mim a casa já está lindíssima, embora ainda
haja muita coisa a fazer e meu dinheiro tenha acabado, pelo menos por ora”, escreveu Bishop numa
carta de maio de 1967. Mais adiante: “A casa foi uma extravagância um tanto impensada, ao que
parece, mas do jeito que os trabalhadores estão fazendo a reforma ela vai ficar em forma por mais
três séculos. Tem um velho bem velhinho sentado no chão trançando lascas finas de bambu para
refazer o teto – é como trabalho de cesteiro –, depois tudo é pintado de branco exatamente como se
fazia no século XVIII.”

Na ocasião, Bishop encontrava-se em Ouro Preto com Lota, e animada. A amiga parecia sair da
crise de depressão, tanto que se entretinha em medir o terreno da casa, para planejar o novo
jardim. (Era ilusão: quatro meses depois Lota se mataria.) No ano seguinte, quando José Alberto
Nemer a conheceu, a casa ainda não estava pronta, tanto que ela ainda se hospedava na casa de Lili.
Mas estava quase.

escriba que vos fala conheceu José Alberto e Linda Nemer num evento em São Paulo, no
começo de maio, às vésperas da reestreia da peça Um Porto para Elizabeth Bishop. Quem
convidava eram a autora Marta Góes e a atriz Regina Braga; além delas, do diretor José Possi e de
outros responsáveis pela montagem, compareceu um pequeno grupo de jornalistas e amigos. O
local era uma casinha de entrada quase imperceptível na rua Lopes Chaves, de literária notoriedade
(é a rua onde morou Mário de Andrade), em que a irmã de Regina, Bia Braga, montou o restaurante
Feijoada da Bia. Os e-mails aos convidados afirmavam que o encontro se daria “em torno de Linda
e José Alberto Nemer”. Foram servidas bebidas e salgadinhos, formaram-se rodinhas, até que a
alturas tantas os presentes foram instados a se agrupar junto à mesa mais próxima da entrada,
onde os Nemer acabavam de se instalar. Agora sim, estávamos “em torno” dos dois irmãos. E
distraídos de raciocínio lento, como o já mencionado escriba, se deram conta de que estávamos ali
para escutar histórias de quem conviveu com Bishop muito intensamente, na fase Ouro Preto da
vida da poeta.

De certa forma, a convivência continua. Pois a casa que Elizabeth Bishop tão cuidadosamente pôs
em ordem, e à qual dedicou tanta afeição, a casa “mais bonita do mundo”, como a chamou numa
carta ao poeta e grande amigo Robert Lowell, agora é de propriedade de Linda Nemer, e de
usufruto de José Alberto e de toda a numerosa família Nemer. Linda comprou-a em 1982.
Os irmãos falaram da casa e contaram histórias. Linda leu uma carta da poeta. Em português?,
estranharam. Sim, aos dois irmãos, que não dominavam o inglês, ela escrevia em português.

José Alberto contou, entre muitas outras, a história do dia em que Zenite, uma vizinha que prestava
pequenos serviços a Bishop, levou a mãe para visitá-la. Sentaram-se, a poeta no meio, Zenite de um
lado, a mãe de Zenite do outro. A mãe achava que aquela estrangeira seria incapaz de entendê-la.
Dizia então à filha: “Pergunta se ela gosta de Ouro Preto.” A filha perguntava: “A senhora gosta de
Ouro Preto?” Bishop respondia: “Gosto.” A filha traduzia: “Ela disse que gosta.” A mãe repicava:
“Pergunta se ela sabe de cozinhar.” A filha: “Ela perguntou se a senhora sabe de cozinhar.” Bishop:

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“Sei, e gosto muito.” A filha: “Ela disse que sabe e que gosta muito de cozinhar.” E assim
transcorreu a visita, com Zenite investida no papel de intérprete do português para o português e
vice-versa.

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*Close close all night/ the lovers keep./ They turn together/ in their sleep,/ close as two pages/ in a book/ that read each
other/ in the dark./ Each knows all/ the other knows,/ learned by heart/ from head to toes.

O clima no sobrado da Lopes Chaves era de serão familiar; a pequena plateia guardava uma
atenção reverente. Ao encerrar-se o evento, dois insistentes pensamentos me ocupavam a mente.
O primeiro era a impressão de que Elizabeth Bishop vai se transformando num culto, até com algo
de... religioso? Cabe dizer religioso? Vá lá: religioso... em certos círculos brasileiros. O interesse
com que escutávamos os Nemer era indício disso. O ambiente de poucas pessoas num espaço
restrito como o restaurante da Bia quase nos conferia ares de catecúmenos. O culto tem a ver em
primeiro lugar, é evidente, com a alta qualidade da literatura da poeta.

Em segundo lugar tem a ver, também é evidente, com o longo tempo em que ela viveu no Brasil –
cerca de duas décadas, somados os períodos de permanência contínua com aqueles em que ia e
vinha.

Em terceiro lugar, tem a ver com o quanto o Brasil colou na pele da poeta. Aqui começam as razões
mais fecundas do fenômeno. Outros escritores estrangeiros viveram no Brasil, e muitos escreveram
sobre o país. Nenhum, até onde a vista alcança, durante tão longo período, e ocupando lugar tão
importante em sua obra.

O Brasil está presente mesmo quando não é citado, como no poema “Crusoé na Inglaterra”. O
personagem do título descreve, entre saudoso e aliviado, a terra que deixou para trás, onde teve de
se adaptar a uma natureza exótica, sofreu e foi feliz. Na superfície é Robinson, agora de volta à
pátria, a lembrar de sua ilha. Um nível abaixo é Bishop, de volta aos Estados Unidos, a lembrar do
Brasil. Nas cartas, as numerosas cartas da poeta, que juntas compõem vultosíssimo repertório, ela
ama e detesta o Brasil, faz juízos pertinentes e comete erros de estrangeira, desfere certeiras
estocadas e exibe preconceitos – mas como o assunto a ocupou! Bishop pratica a antropofagia de
Oswald de Andrade ao inverso. Deglutiu o Brasil e o expele em forma de alta literatura ou, nas
cartas, de comentário casual.

Por último, o culto tem a ver com martírio. Religião que se preza há de ter mártir. O martírio de
Lota é também o martírio de Bishop. Os sofrimentos já vinham de longe. O pai morreu quando
tinha 8 meses e, quando tinha 5 anos, a mãe, portadora de transtorno mental, foi internada para
nunca mais voltar. A poeta nunca mais a viu. O Brasil, que lhe oferecera um lar, a ela que só tivera o
dos avós quando criança, e um porto, a ela que desde cedo elegeu a itinerância como sistema de
vida, agora lhe oferecia a ferida incicatrizável do suicídio da companheira brasileira.

O segundo pensamento era a tentação de pôr no papel a história da poeta em Ouro Preto e de sua
convivência com os Nemer. Enviei-lhes a proposta, eles concordaram. Um mês depois, eis-me em
Ouro Preto, recebido com o calor característico dos lares mineiros na casa que Elizabeth Bishop,
em homenagem a Marianne Moore, chamou de Casa Mariana. Durante três dias, além de muitas
horas de entrevistas gravadas com os irmãos, tive oportunidade de vasculhar-lhes os papéis e
conhecer o ambiente da poeta. José Alberto Nemer, aos 66 anos, é um artista plástico de currículo

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rico e obra consolidada. Naqueles dias mesmo, primeira quinzena de junho, estava inaugurando em
Ouro Preto uma exposição das produções mais recentes, belas aquarelas em que combina formas
abstratas e geométricas. A maior originalidade está nas dimensões dos trabalhos. As aquarelas,
quase sinônimo de formato miúdo no universo das artes plásticas, em suas mãos se agigantam:
medem 1,30 por 2 metros. O crítico Olívio Tavares de Araújo afirma, na apresentação da exposição,
não ter notícia de artista que produza aquarelas de semelhantes proporções. Bishop reconhecia o
talento do jovem amigo. Tentou, por mais de uma via, conseguir-lhe uma bolsa nos Estados
Unidos. Acabou saindo primeiro a bolsa que Nemer pleiteara em Paris. Na França, na década de
70, começou estudante e acabou professor na Sorbonne.

inda Nemer, que completou 80 anosno dia 13 de julho, também estudou na França. É
economista e socióloga. Exerceu funções no INSS e no Ministério da Educação, em Brasília, e
deu aulas na Universidade Federal de Minas Gerais. Os irmãos nasceram em Ouro Preto, filhos de
pais libaneses, e moram em Belo Horizonte. A casa de Ouro Preto é para férias ou fins de semana.
Linda é solteira, José Alberto casado com a francesa Annie Rottenstein, também artista plástica.
Tanto Linda quanto José Alberto não falam “Bishop”, e muito menos “Elizabeth Bishop”. Falam
“Elizabeth”, de forma que se impõe a este texto, agora que adentrou a intimidade desta casa e desta
família, chamar a amiga dos Nemer de “Elizabeth”, rogando ao leitor que o traduza por Elizabéti, à
moda brasileira, e de preferência por Elizabétchi, com capricho no tchi final, à boa moda mineira.

Casa Mariana assenta-se sobre um terreno em declive. Tem um único patamar ao nível da
rua e, abaixo, um porão em que são visíveis as colunas de sua sólida base de pedra. Da rua, o
que se vê são três janelas e uma porta e, à direita, um muro alto que esconde o jardim, aquele que a
poeta reservara para o talento de Lota (mas que acabou sendo trabalhado por Linda, com desvelo,
ao longo dos anos). À esquerda, um muro menor cobre um trecho das lajes em que a água vinda lá
de cima, depois de passar por baixo da rua, volta a correr a céu aberto. Esta casa foi a primeira que
Elizabeth teve como realmente sua, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil. Não lhe faltaram casas
deslumbrantes no Brasil.

No Rio, morou em apartamento de cobertura no Leme e, em Petrópolis, na famosa casa de vidro


incrustada na Mata Atlântica, no bairro de Samambaia, projeto de Sergio Bernardes. Mas eram de
Lota. À casa de Ouro Preto, por ser o que era e por ser a primeira, dedicou uma afeição que
persistia mesmo quando a afeição por Ouro Preto, ou pelo Brasil, afrouxava. Na mesma carta a
Roberto Lowell em que diz que a casa é “a mais bonita do mundo”, acrescenta que, no entanto, não
está certa de querer morar na cidade mineira. “Eu queria levar a casa ou a casa de Lota pelo ar –
como aquela igreja na Itália –, milagrosamente, para Connecticut ou algum estado assim.”

O interior da casa conserva-se em grande parte tal qual a poeta o deixou. Na sala, a lareira de ferro
que ela trouxe dos Estados Unidos, assim como o sofá. Nemer lembra-se do comentário de

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Elizabeth ao tentar em vão acender o fogo: “Não compreendo. Ponho madeira, papel, jogo álcool,
acendo o fósforo, e nada acontece. E há prédios enormes que queimam inteiros sem ninguém pôr
fogo.” Comprados em antiquários de Ouro Preto são o armário antigo, triangular, do tipo que se
encaixa no ângulo entre duas paredes, e a queijeira rústica que, outrora destinada a secar os
queijos, hoje serve de mesinha de centro. As poltronas não estavam aqui ao tempo de Elizabeth,
mas ela as conheceu muito bem. Vieram de Petrópolis, da casa de Lota. Foram oferecidas a Linda
pela atual proprietária, Zuleika Torrealba. A papeleira encostada na parede pertenceu ao pai de
Lota. Na sala de jantar reinam uma mesa mineira antiga, do tipo cavalete, e um armário de
farmácia, um dos três em que Elizabeth acomodava seus livros. Dali se acessa uma sacada que, nos
fundos da casa, oferece vista de tirar o fôlego, primeiro de Ouro Preto, escorrendo pelas encostas,
depois das montanhas, lá longe.

O cômodo seguinte é a cozinha, onde sobrevivem os mesmos armários de treliça mandados fazer
por Elizabethe até alguns de seus utensílios, como uma pequena balança de fabricação americana.
José Alberto conta que Elizabeth cozinhava – e bem – com métodos “hiper-rígidos, tudo medido e
cortado”. A balança era para não dar chance ao azar. Algumas das especialidades da poeta de que
José Alberto se recorda são abobrinha ao forno e lombinho de porco com maçã verde. Inesquecíveis
eram a geleia de laranja amarga e a conserva de legumes em banho de mostarda. Linda lembra-se
da torta de maçã. Um dia, ao chegar na casa, Elizabeth disse que estava mesmo a esperá-la. “Acabei
de fazer uma torta de maçã e imaginava que, se você sentisse o cheiro, viria.” Em outra ocasião, a
poeta pediu-lhe que escrevesse com a maquininha de rotular os nomes dos ingredientes – “Sal”,
“Pimenta”, “Açúcar”, “Farinha” –, para bem orientar a empregada na manipulação dos potes.

Dos cinco quartos da casa, Elizabeth ocupava um dos menores. A janela dava para a face em que
corre a água das lajes, e José Alberto descreve o ambiente como “monástico”; não havia ali mais
que cama, cômoda e mesinha de cabeceira. Sobre a cômoda pendurava-se um quadro de Scliar,
representando uma fruta. Por uma porta interna, o quarto dá acesso ao cômodo vizinho, do qual
Elizabeth fazia seu escritório. Trabalhava de costas para a janela. À sua frente, uma estante de
livros. Elizabeth tinha 3 mil livros na casa. A presença dos livros, em pessoas de sua índole, pode
ser tomada como âncora. Significa que aquele é seu porto.

lizabeth mudou-se para a casa no segundo semestre de 1969. Com ela veio aquela jovem
americana de longos e louros cabelos que José Alberto conhecia desde o almoço na casa de
Scliar. Era sua nova companheira. X. Y. será seu nome neste relato, por razões que adiante ficarão
claras. Elizabeth conhecera X. Y. em Seattle, em 1965, durante o período em que deu aulas nessa
cidade. Ela estava grávida, na ocasião. Agora tinha um filho pequeno, que iria compor com o casal
de mulheres a família da casa. X. Y. chegou esbanjando autoridade, segundo José Alberto.
Desembarcou “como a dona do galinheiro”. Assumiu, entre outras responsabilidades, a supervisão
dos trabalhos que ainda restavam fazer na casa, e uma das consequências disso foi bater de frente
com Lili. X. Y. encontrou erros, ou julgou que os encontrou, nas prestações de contas de Lili, e
induziu Elizabeth a processar a amiga. A poeta conta numa carta a cena “muito engraçada” que

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protagonizou um dia em que se viu a sós com Lili. “Os olhos dela se encheram de lágrimas e ela
disse: ‘Mas você está me processando.’ E eu disse: ‘Estou sim’, provavelmente com os olhos cheios
de lágrimas também.”

Elizabeth tinha em X. Y. também uma ajudante, que cuidava da correspondência comercial e


profissional. Nas cartas, é frequente se referir a ela como “minha secretária”. X. Y. encarregava-se
de mandar de Ouro Preto a Belo Horizonte convites para ocasiões festivas. Telegrama a José
Alberto, 6 de fevereiro de 1970: “Venha festinha domingo três da tarde aniversário Elizabeth, olhar
Carnaval conosco depois, seu quarto está pronto.” O aniversário da poeta era no dia 8 de fevereiro,
e “olhar o Carnaval”, isto é, assistir ao desfile dos blocos ou das escolas de samba, era um prazer
que Elizabeth adquirira no Rio. Já era costume de José Alberto, a essa altura, hospedar-se na Casa
Mariana.

Outro telegrama da mesma época, guardado por José Alberto, convida-o para “festa sábado, 20
horas, aqui, honorar Elizabeth”. “Honorar” quer dizer “honrar”, ou “em honra de”, mas, fora o
deslize, é de admirar como, em pouco tempo, X. Y. já conseguia manejar o português. Ela era
“inteligentíssima”, segundo José Alberto. A festa para “honorar” Elizabeth celebraria o National
Book Award que ela ganhou em 1970, um dos mais importantes prêmios literários americanos.

A Casa Mariana escondia um mistério. Ouro Preto e casa de quase 300 anosjá em si induzem ao
mistério. O mistério aumenta quando se tem um mapa indicando que naquela casa foi enterrado
um tesouro. Os Nemer ainda guardam uma cópia do mapa, entregue a Elizabeth, quando comprou
a casa, por um especialista carioca em antigos tesouros. Não é propriamente um mapa. Não tem
desenhos. É uma descrição em palavras do lugar onde estaria enterrado “um costal com 6 mil
moedas”.

O texto, na boa linguagem dos enterradores de tesouro, começa com “deixo tudo o que tenho para
as mãos do senhor para a felicidade de todo o povo da vila”, para a seguir referir-se a “dois paus de
jacarandá”, “pau oitavado”, “canelo enfiado no paredão”, “calçamento de estrela”, e outras
desconcertantes indicações da localização da fortuna. Numa carta à colega de escola e antiga
companheira Louise Crane, Elizabeth aborda o assunto. “Já lhe contei a história do ouro que estaria
enterrado em minha casa de Ouro Preto, ou no jardim? Mandei até escavar o porão e abrir buracos
nas paredes e nos assoalhos, talvez esta fosse a solução para todos os meus problemas – encontrar
um tesouro escondido. Tem até mesmo um mapa, mas imagino que, se houvesse de fato ouro
escondido ali, já o levaram há muito tempo.” Elizabeth teria levado o tesouro a sério? Os irmãos
divergem. José Alberto assegura que Elizabeth tratava a história como “folclore”. Linda retruca: “Ô,
José Alberto, ela ironizava, mas, no íntimo... Você acha que alguém, tendo notícia de um tesouro
em casa, não vai pesquisar? Mandaram escavar.” Escavar, para José Alberto, foi “loucura da X. Y.”.

e todos os problemas em Ouro Preto se resumissem à falta de um tesouro enterrado, estaria


tudo azul no horizonte das duas mulheres. Elizabeth relata que um vizinho certa vez jogou

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uma pedra em X. Y. Talvez fosse reação da vizinhança de bons e cristãos hábitos a duas mulheres
vivendo abertamente uma relação homossexual. No Rio, Elizabeth conhecera o cordão protetor da
fortuna e dos amigos de mente aberta, ou que se faziam de mente aberta, de Lota. Numa pequena
cidade do interior do Brasil a conversa era outra.

Noutra ocasião, X. Y. achou que a prefeitura não recolhia o lixo da casa, por perseguição a elas.
Apanhou o lixo de vários dias e despejou-o na porta da prefeitura. O episódio da pedrada pode ser
real. O do lixo prenuncia uma derrapada na saúde mental de X. Y., que logo assumiria graves
proporções. Ao estado da jovem somavam-se as crises de Elizabeth. O alcoolismo que ela trazia já
de muitos anos se manifestaria em repetidos episódios. José Alberto a socorrerá em vários deles,
alguns graves a ponto de ser necessário interná-la. Numa dessas ocasiões, ele chamará Linda, que
acabava de voltar da Europa, para ajudá-lo. É assim que a irmã mais velha conhece Elizabeth.

As duas tomavam muitos remédios – remédios para dormir, remédios para acordar. Bilhete de X.
Y. guardado por José Alberto: “Faça o favor de falar com o doutor para ele receitar para nós mais
quatro caixas de Anorexil e mais dois vidros de Nardil. Pode dizer a ele que nós estamos tomando
cada uma entre um e meio e dois comprimidos de cada droga, cada dia. Talvez ele achará que é
demais mas não podemos ficar com menos.” X. Y. acrescentará à história do lixo a suspeita de que
operários estariam pondo veneno na caixa d’água da casa. Ou que estariam, à sua revelia,
escavando o porão, em busca do tesouro. Um dia, em Belo Horizonte, José Alberto almoçava em
casa quando bateram à porta dois fortes rapagões, cabelo escovinha, jeito de americanos, sotaque
de americanos. Disseram que tinham ordens do cônsul dos Estados Unidos de levá-lo ao consulado.
José Alberto respondeu que o.k., passaria lá mais tarde. Não, o assunto era urgente e tinham
ordens de levá-lo de imediato. Ele foi. Chegou ao casarão do consulado, atravessou os jardins, subiu
uma escadaria, passou pela varanda e, para seu grande espanto, quando lhe abriram a porta, deu
com X. Y.

A moça atirou-se em seus braços. “Ô, José Alberto, que bom que você chegou, que bom que você
veio!” O cônsul observava a cena com surpresa. Chamou José Alberto de lado, introduziu-o em seu
escritório, fechou a porta. “Há aqui uma confusão”, disse. “Estava preparado para uma coisa e me
deparo com outra.” A história começara de madrugada, em Ouro Preto. X. Y. pegou o filho, acordou
o motorista de táxi que costumava servi-la, solicitou-lhe que os levasse, a ela e ao filho, a Belo
Horizonte, dirigiu-se ao consulado e pediu asilo ao governo dos Estados Unidos da América. Uma
conspiração, informou, estava em curso em Ouro Preto. O intuito era matar os americanos e José
Alberto seria um dos cabeças.“O senhor me desculpe”, disse o cônsul. “Pelo jeito que ela o recebeu,
percebo que a história não faz sentido.” Da parte da potência americana, o caso estava encerrado. O
cônsul desculpou-se ainda uma vez e ao despedir-se perguntou: “E miss Bishop, como está?” José
Alberto respondeu que, até onde sabia, miss Bishop estava bem, em Ouro Preto. Quem estava mal
era X. Y. Chegara a um limite. Era caso de internação.

episódio é de abril de 1970. José Alberto guarda o recibo do pagamento da Casa de Saúde

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Santa Clara, onde a jovem foi internada: “Recebi do senhor José Alberto Nemer a quantia de
500 cruzeiros, por conta da pensionista X. Y. Assinado, Sérgio Figueiredo Lacerda.” Lembre-se de
que a ditadura no Brasil vivia o auge de sua fúria. Para uma pessoa acometida de surto psicótico,
caracterizado por delírios paranoicos, o clima para imaginar conspirações era o ideal. A relação de
X. Y. com Elizabeth trincara irremediavelmente. A poeta não queria mais a outra por perto. “Ela
estava apavorada”, diz José Alberto. Dera-se conta de que estivera “dormindo com o inimigo”.
Pediu que os amigos a ajudassem. José Alberto não tem certeza, mas lhe parece que Elizabeth
achara um revólver em poder de X. Y.

Contatou-se a família da moça nos Estados Unidos e deu-se um jeito de enviá-la de volta para a
terra natal. “Elizabeth literalmente despachou X. Y., quase à força”, conta José Alberto. Linda foi
encarregada de levar a jovem e o filho ao aeroporto. Cuidou de apresentar as passagens e os
passaportes no balcão da companhia aérea. Já com os cartões de embarque na mão, vira-se de lado
e... “Que é de X. Y.?”, conta Linda. “Que é de X. Y.?” Procura daqui, procura dali e vão encontrá-la
escondida atrás do balcão de uma das lojas do aeroporto. “Rápido, seu filho já embarcou”, diz-lhe
Linda. Na verdade o menino não embarcara. Foi um estratagema para forçá-la a encaminhar-se ao
portão de embarque.

“Lamento lhe dizer que tenho péssimas notícias. A X. Y. teve uma crise nervosa muito séria”,
escreveu a poeta para sua médica de Nova York e confidente da vida inteira, doutora Anny
Baumann. Na carta, de 11 de maio de 1970, o dia seguinte à partida da jovem,ela afirma, de permeio
ao relato de várias estripulias protagonizadas pela ex-companheira: “Acho que, de algum modo, a
X. Y. queria ser eu, e por isso no fundo queria mesmo me matar, ficar com a casa etc. só para ela.
Sei que isso parece loucura, mas muitas e muitas coisas que ela fez provam que tenho razão e os
poucos amigos que temos (que vinham aqui nos fins de semana) observaram a mesma coisa.”

X. Y. só reapareceria na vida de Elizabeth uma única vez, em novembro daquele ano. A poeta
encontrava-se agora nos Estados Unidos, iniciando as funções de professora na Universidade
Harvard. X. Y. surgiu sem aviso, para terror de Elizabeth, na porta da sala, quando ela acabava de
dar uma aula, e encheu-lhe os ouvidos dos supostos horrores que sofrera no Brasil, inclusive da
parte dos irmãos Nemer, que (1) tinham tentado expulsá-la de Ouro Preto, muito antes de ela
efetivamente partir; (2) tinham tentado matá-la no hospital; e (3) tramavam ficar com o dinheiro e
a casa dela, Elizabeth. O episódio também está narrado em carta da poeta e assinala o fim do
capítulo X. Y. em sua vida. Nos anos seguintes, a moça reconstruiria a vida nos Estados Unidos,
faria uma carreira profissional e ganharia na Justiça o direito de não figurar com o verdadeiro
nome nos relatos sobre Elizabeth. Virou X. Y.

Os Nemer haviam se tornado protetores de Elizabeth, e não só contra os delírios de X. Y. Também


contra ela própria. Ao ganhar o National Book Award de 1970, a poeta tinha todos os motivos para
estar satisfeita consigo mesma. Seu editor, Robert Giroux, lhe dera a boa notícia pelo telefone. “Ele
me abrrraçava tanto, tanto”, contou a José Alberto. “Ainda bem que os abrrraçoseram pelo
telefone.” (Os erres triplicados vêm para indicar que José Alberto, quando reproduz as falas de
Elizabeth, imita-lhe o sotaque americano.) No entanto, dias depois, ao procurá-la em casa, Linda

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tocou a campainha, tocou de novo, bateu à porta – nada. Pulou então o muro. Foi encontrar
Elizabeth estendida no chão da varanda, desacordada. Tinha bebido, caído e quebrado a costela.
Menos mal que podia até perder o equilíbrio, mas não perdia o humor. Ao saber que quebrara a
costela, José Alberto comentou com ela: “É mesmo, Elizabeth? E como foi isso?” Ela respondeu:
“Acho que foram os abrrraços do meu editor.”

s recaídas no alcoolismo eram prolongadas, dramáticas, pungentes. José Alberto assistiu a


algumas delas de perto, em períodos em que estava hospedado na casa. Ela nunca bebia na
frente de outras pessoas. Nas reuniões que promovia, preparava os drinques, mas não os provava, e
orgulhava-se disso. Bebia trancada no quarto – uísque, cachaça, mas também, na falta de
alternativas, perfumes ou o álcool da lareira. Passava dias trancada no quarto. José Alberto ouvia
os sons que vinham de lá. “Oh, no, no, no, impossible! Really??? Ha... Ha…Ha... My God!!” Ela
falava alto, ria, chorava. Podia acontecer de – plaft! -– vir do quarto também o som de algo
despencando. José Alberto batia à porta: “Elizabeth, você está bem?” Batia de novo, até ela
responder: “Yeeesss,estou bem.”

O padrão era que, depois de quatro, cinco ou até sete dias, ela saísse do quarto e pedisse: “Me
ajuda.” Era sinal de que chegara ao fundo do poço. “Quer ser internada?” Ela respondia que sim. Se
era noite, ia-se acordar o motorista de táxi, como X. Y. fizera em seu surto. Corria-se a Belo
Horizonte; levavam-na à Clínica Pinel. Começava então uma nova fase, em que aos Nemer cabia
assisti-la na tomada de pequenas providências. A internação tinha sido feita na urgência, ela
precisava agora de artigos que a ajudariam a levar a vida no hospital. Nemer guarda um bilhete em
que ela pede “camisola, desodorante, sabonete, máquina de escrever” (assim mesmo, sublinhado) e
ainda “uma caixa de Hilton, fósforos”, e que providenciassem “carne para Suzuki” (o gato). Linda
era encarregada de comprar livros americanos descartáveis no aeroporto – “paperback qualquer,
mas não faroeste”, especificava.

poeta James Merrill, grande amigo de Elizabeth – artista de muitos méritos, ganhador do
prêmio Pulitzer e filho de um dos fundadores da financeira Merrill Lynch –, veio visitá-la em
julho de 1970. Finalmente encontrara um meio de atender aos insistentes convites da amiga. Ficou
hospedado na Casa Mariana. Em julho também José Alberto se hospedava na casa; era época do
Festival de Inverno, durante o qual dava aulas. Na noite da chegada de James Merrill, ao entrar na
sala, José Alberto deu com os dois sentados no sofá e Elizabeth a chorar. José Alberto ensaiou um
recuo, Elizabeth o deteve. “Não se preocupe, José Alberto. Estou chorando em inglês.”

A tirada correu o mundo. James Merrill a relatou num texto e o editor Robert Giroux repetiu-a na
introdução de Uma Arte, o livro que enfeixa a correspondência de Elizabeth. Menos poético
transcorreu o restante da visita de Merrill. Cozinheiro de bons dotes, ele se dispusera a preparar
um frango ao curry no dia seguinte. Elizabeth lhe dissera que estava com saudades de seu frango

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ao curry. Merrill trouxera os temperos. Juntou-os, providenciou o frango e se pôs ao trabalho.


Elizabeth continuava no quarto. Chegou a hora do almoço e nada de ela sair do quarto. O frango foi
melancolicamente deglutido sem a presença da dona da casa, que também não saiu do quarto no
dia seguinte, nem no outro. “James Merrill passou aqui três ou quatro dias praticamente sem vê-
la”, conta José Alberto. Sua impressão é de que o choro daquela noite era porque ela falava de Lota.
Pode ser também que falasse de X. Y., cujo surto atingira o auge fazia apenas dois meses. Fosse
qual fosse o motivo, o choro era prenúncio de estado depressivo, e estado depressivo de mergulho
na bebida.

Seguiram-se a internação e um período em que esteve hospedada na casa dos Nemer, em Belo
Horizonte. “Você deve estar pensando que eu não sou apenas a pior anfitriã (e dona de casa) do
mundo como também a pior correspondente”, escreveu ela a James Merrill, no dia 24 de agosto. Só
então, passado mais de um mês, tomara coragem de se dirigir ao amigo. Na mesma carta, fala da
temporada de repouso com a família de Linda e José Alberto. “Ficar na casa dos Nemer é uma
experiência estranha – uma visita ao Líbano deve ser mais ou menos assim. Azeitonas pretas e um
iogurte fantástico feito em casa no café da manhã, quibe, pilan – montanhas de comida árabe o dia
inteiro – e sete pessoas entrando e saindo, todos os mais jovens ganhando dinheiro.” As “sete
pessoas” eram os sete irmãos Nemer: Linda, José Alberto e mais cinco, duas mulheres e três
homens. “À noite eles soltam um cachorrão enorme, preto, terrível, para devorar qualquer intruso,
e ele fica uivando em volta da casa.” A mãe viúva, dona Najla – informa Elizabeth a Merrill –,
nunca aprendeu o alfabeto latino, só o árabe. “Ela se achava na obrigação de passar um bom tempo
à minha cabeceira e nossas conversas eram muito estranhas, porque nós duas éramos muito
educadas uma com a outra, mas uma não entendia nada que a outra dizia.”

carta contém um pedido de desculpas “por você ter chegado aqui quando eu estava tendo um
pequeno – ou grande – colapso nervoso”. Para José Alberto, Elizabeth apresentava uma
fragilidade emocional que a fazia viver num fio de navalha. “Quandoa conheci, parecia um animal
ferido de morte. Estava com uma chaga aberta, que era o suicídio de Lota.” Sempre que era
internada – e nem sempre pelo álcool, havia também as crises de asma e os problemas gástricos –,
achava que ia morrer. Levava um caderno em que, suspeita José Alberto, alinhava as últimas
vontades. Às vezes chorava antes mesmo de abrir uma carta, ou demorava a abri-la de medo do que
pudesse conter. José Alberto não encontra melhor palavra para defini-la do que a francesa
catastrophée. Era uma pessoa “catastrofada”.

Os menores incidentes a desestabilizavam. Certo dia – agora é julho de 1971 –, ela perguntou a José
Alberto o que significava “tia”. “Ora, tia é tia – a irmã do pai, ou da mãe. Aunt”, responde ele. “E na
gíria, o que é tia?” “Na gíria, é uma mulher de mais idade.” José Alberto percebeu pelo jeito de ela
falar, e de rir de modo que não lhe era habitual, que tinha bebido. “Ô, tiiiaaa, tiiiaaa”, repetia.
“Porrr que tia? Porrr que tia?” (Ela tinha o hábito de dizer “Porrr quê? Porrr quê?”, diante de tudo
que a intrigava ou a infelicitava.) À noite, José Alberto se encontrou com a namorada e ela lhe
contou que havia passado de carro, com uns amigos, na Casa Mariana, à sua procura. Atendeu à

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porta Elizabeth, e informou que ele não estava. Despediram-se e, quando o carro arrancava, o
amigo que estava no banco de trás esticou a cabeça para fora e gritou: “Obrigado, hein, tia.” Foi o
bastante para ativar o turbilhão interno que tanto a maltratava.

osé Alberto faz questão de lembrar, no entanto, que Elizabeth não lhe era um peso. Muito ao
contrário, proporcionava-lhe uma convivência da qual extraía prazer e ensinamento. À tarde,
iam a Mariana comer os apreciados salgadinhos de uma lanchonete local. Se não lia inglês e por
isso não lhe conhecia a obra, em compensação convivia com os momentos de poesia viva que a
amiga lhe proporcionava. Um desses momentos foi o de “chorar em inglês”. Outro ocorreu a
propósito de um objeto que ela guardava em cima da lareira, uma rudimentar lamparina feita com
uma lâmpada elétrica envolvida em restos de lata de cerveja e tampinha de garrafa. Era um dos
produtos que a Pinga Fogo, uma mendiga de Ouro Preto, costumava vender pelas ruas. O marido
funileiro os fabricava e ela os vendia, para comprar a sagrada cachaça de cada dia do casal.

Um dia, Elizabeth olhava para a lamparina (que José Alberto guarda até hoje) e comentou: “Eu
sempre gostei desse objeto e não sabia por que. Agora sei. Quem fez isso quis ressuscitar a luz da
lâmpada.” José Alberto encantou-se. “Que coisa bonita você disse, Elizabeth.” Para ele, o
comentário da amiga eleva a lamparina ao status do readymade de Marcel Duchamp. “Uma frase
dessas equivale a um tratado de estética.” José Alberto, que, lembremos, estava nos vinte e poucos
anos, atribui a Elizabeth papel decisivo em sua formação. “Ela me valorizava. Gostava da minha
companhia, me achava inteligente, ria do que eu dizia. Lacan diz que a autoestima da criança nasce
com o olhar da mãe. Para mim, Elizabeth foi uma mãe intelectual.”

O mesmo julho de 1971 do episódio da “tia” foi ocasião de um evento que abalou Ouro Preto e ecoou
mundo afora. “Dona Elizabeth, seu Júlio foi preso, seu Júlio foi preso”, informou-lhe a empregada.
“Júlio” era Julian Beck, líder do Living Theatre, grupo americano teatral de vanguarda que se
apresentava no Festival de Inverno. Não só “Júlio”, mas toda a trupe – 21 pessoas – fora presa na
casa em que se hospedava, acusada de porte de maconha. Naquele mesmo dia, Elizabeth daria um
jantar a um grupo de amigos, e ficou preocupada. Ela abrigava em casa um americano que servia de
secretário ao Living Theatre, e que contratara para ajudá-la na correspondência. “Você acha que ele
também tem maconha entre suas coisas?”, perguntou a José Alberto. Sim, era possível. Elizabeth
decidiu fuçar nos pertences do americano e realmente achou maconha. “Que faço com isso?” “Joga
no rio”, sugeriu José Alberto, referindo-se ao córrego ao lado da casa. “Não, eles têm cães
farejadores, não é uma boa ideia.” “Então esconde entre os livros.” “Não, é fácil de achar.”

Elizabeth preparava um frango ao curry para os convidados – de novo frango ao curry, agora com
outro mestre-cuca. Veio-lhe então a solução. Jogou a maconha no panelão, para fazer companhia
ao frango, ao curry e aos demais ingredientes. Linda, que estava entre os convidados, comeu e
sentiu-se mal. Terminado o jantar, os convidados ainda reunidos na sala, tocou a campainha. “Ó, é
a polícia!!! Enfim chegou a polícia!!!”, disse Elizabeth, rindo. José Alberto encantava-se com o
humor da poeta. Quem tocara a campainha na verdade era um dos moleques de rua que tantas

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vezes tocavam e saíam correndo. Dias depois, no entanto, quando bateram à porta para colher-lhe a
assinatura num manifesto em favor da liberação da turma do Living Theatre, o humor tinha ido
embora. “Não assino. Traíram a minha confiança. Não assino.”

Se foi protegida pelos Nemer, Elizabeth também os protegeu. Não cansou de recomendar José
Alberto – “o rapaz mais encantador que já conheci”, diz numa carta a James Merrill – aos amigos
americanos. Um dia, José Alberto comentou que gostava de uma casa então à venda, um
sobradinho que até chamara a atenção de Manuel Bandeira e fora descrito pelo poeta, em seu Guia
de Ouro Preto, como “dos mais interessantes da cidade”. “Por que você não o compra?”, sugeriu
Elizabeth. “Não posso, não tenho o dinheiro.” “Eu empresto”, replicou a amiga. José Alberto
concordou, desde que fizessem um contrato estipulando as condições em que ele pagaria o
empréstimo. Assim foi feito. Elizabeth emprestou-lhe 7 mil cruzeiros, equivalentes a 2 mil dólares,
e ele adquiriu a casa.

Em outra ocasião, Elizabeth apareceu a Linda, na sala da Casa Mariana, trazendo uma caixa de
sapato. Disse-lhe, séria: “Você não faz muita ideia, mas sou uma pessoa famosa.” Estendeu-lhe a
caixa. Parecia cerimônia de entrega de prêmio. “Você fica com isto. Um dia, se precisar de dinheiro,
vende.” A caixa, amarrada com elástico largo, do tipo usado nas ligas das meias femininas, não
fazia jus a tanta formalidade. Já o conteúdo... Dentro, havia manuscritos em folhas soltas de
fichário. A cerimônia fora mesmo de entrega de prêmio. Pelos anos seguintes, Linda tomaria muito
cuidado com a tosca caixa de sapatos. “Mamãe, atenção, é de Elizabeth”, dizia, quando saía de
viagem. Dona Najla, pelo respeito que devotava a “dona Beth”, como a chamava, excluía a caixa da
ânsia de jogar fora as caixas e os papéis velhos. Linda reforçou a segurança comprando um cofre de
metal, no qual introduziu a caixa.

lizabeth morou em Ouro Preto seguidamente de julho de 1969 a setembro de 1970. Em


outubro de 1970, suas cartas já são de Harvard. Em 1971, passará uns poucos meses em Ouro
Preto e, nos anos seguintes, voltará por menos tempo ainda. Em 1972 ela escreve a Ashley Brown
que tem saudades de Ouro Preto, mas teme se sentir só e entediada na cidade. “Se a Lili, coitada (o
“coitada” em português), não tivesse comprado aquela tevê enorme e terrível e ficado viciada,
minha situação em O. P. talvez não fosse tão má!” Em 1973 adquiriu um apartamento em Boston,
junto ao porto. Em 1974 contratou o transporte de todos os livros para Boston, sinal definitivo de
que o lar mudava de sede. Nesse mesmo ano fez a última visita a Ouro Preto.

Nos anos de escassa presença, ou de presença alguma, a relação com os Nemer se fará por cartas,
cartões-postais e bilhetes, com exceção de um encontro com Linda nos Estados Unidos, em 1972.
Nas cartas, o mau português é temperado pelo humor. “Eu vou agora escrever sem ajuda do
diccionário. Seja preparada”, diz numa carta a Linda. Em outra, a José Alberto: “Desculpe meus
verbos, preposições, pronomes, tudo.” Numa carta a José Alberto de 1972, enviada de Harvard,
conta que no dia anterior fora esquiar em Vermont, e que em seu apartamento na universidade tem
uma mesa de pingue-pongue. Conclui: “Sou muito atleta na velhidade.” Em outra, anexa o recorte

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de um anúncio de máquina detetora de metais numa revista americana e faz ironia com o tesouro
da Casa Mariana: “Devo comprar esta máquina?” Às vezes, o humor é mudo. Numa viagem à
Finlândia, manda a José Alberto um cartão-postal em que não está escrito nada – vale pela
estampa: uma foto de finlandesas nuas na sauna.

cachorrão que tomava conta da casa dos Nemer era na verdade uma cachorra, a pastora-
alemã Tula. Elizabeth manda um presente dos Estados Unidos para Tula – uma coleira
antipulgas. Metódica, anexa um bilhete em que traduz as instruções de uso da coleira (que ela
chama de “colar”). Transcrição literal, com todos os erros e hesitações: “Pus (?) no pescoço dela –
não apertado. Deixa espaço para botar dois ou três dedos dentro. CORTE o restinho, e bote no lixo
– ou queme – immediatamente (E VENENOSO para as crianças ou para chupar etc.). O colar
começa immediatamente a matar as pulgas – e continua matando as pulgas para três meses.”

Mas a preocupação central, obsessiva, nas cartas, é com a casa. Os Nemer estão incumbidos de
cuidar dela, na medida em que lhes permitam o trabalho e as próprias viagens. Elizabeth manda
dinheiro e cheques em branco para fazer face às despesas. Desespera-se quando o dinheiro não
chega. Desespera-se mais ainda com as notícias de que a empregada encarregada de manter e
guardar a casa não cumpre a contento seus deveres. “Por favor, fala muito [sublinhado] com Vitória
e manda ela assar uma galinha etc. de vez em quando. Provavelmente ela está fazendo nada, só
olhando a televisão dos vizinhos”, escreve. E também: “Espero que Vitória estar trabalhando, não
passando todo dia a olhar televisão na casa dos vizinhos.” A casa mais bonita do mundo virara um
fardo. Impossível administrá-la à distância. Queria livrar-se dela. Consolidou a decisão de vendê-la
e expressou-a seguidas vezes aos Nemer e a amigos americanos. A venda casava com outra de suas
obsessões: a de o dinheiro vir a faltar-lhe na velhice. Escreveu a José Alberto: “A casa representa a
minha futura. Tenho que guardar bem, pintar etc. porque sem vender eu vou ficar na lona aqui. É
serioso isso.”

Não encontrou comprador – até o fim da vida a conservaria –, mas ganhou algum alívio quando
surgiram interessados em alugá-la. Um dos locatários, em 1977, foi um jovem pintor inglês e a
mulher. O pintor era um admirador de Elizabeth, ardoroso a ponto de querer que o filho nascesse
não apenas na casa, mas no quarto dela. Uma das atrações até hoje oferecidas pela Casa Mariana é
a inscrição que o artista deixou gravada no vidro da janela da poeta, aqui reproduzida no
alinhamento original:

In this room
in the house of Elizabeth Bishop,
poet of Boston, Massachussets,
on the night 22 october 1977
was born
Jesse Dunford Wood,
an Englishman and son of

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Hugh Diarmid Dunford Wood,


painter,
and Emma Stacey Dunford Wood,
silversmith of
Oxfordshire, England
[2]
Thanks be to God

Enfeixam a inscrição, como a cercá-la entre parênteses e enobrecendo-a como aos atletas e poetas
da Antiguidade, dois pares de louro. Pai e filho voltaram a Ouro Preto quando o rapaz fez 18 anos e
ficaram hospedados na casa, àquela altura já de Linda. O filho dormiu no quarto em que nascera. O
pai é hoje um requisitado pintor, designer e gravador. O filho, um premiado chefe de cozinha
conhecido nacionalmente na Inglaterra pelas aparições em programas culinários da televisão.

Numa noite do começo de outubro de 1979, José Alberto sonhou com Elizabeth. Há tempos não a
via nem tinha notícia dela. A poeta lhe surgia sem uma perna, numa imagem parada e semelhante a
uma emissão holográfica. Ele virava de um lado, via a imagem. Virava de outro, vinha-lhe a mesma
imagem. Segue-se uma cena em movimento: ao abrir uma porta, dois gatos avançam em sua
direção e lhe rasgam a roupa. “Eram gatos-doberman”, diz ele a alguém. No dia seguinte, veio a
saber que Elizabeth morrera, na mesma noite do sonho, 6 de outubro. O sonho colou-lhe fundo na
memória. Para ele, aposto ao primeiro encontro, em que os gatos de Elizabeth lhe pulam no colo,
“fecha uma gestalt”. Ainda mais o impressiona o fato de a poeta aparecer no sonho sem perna. De
certa forma, combina com as circunstâncias de sua morte. Elizabeth preparava-se para ir a um
concerto, no apartamento de Boston. Já tinha calçado e amarrado um sapato, faltava amarrar o
outro. Debruçou-se para fazê-lo e caiu fulminada. Aneurisma. Tinha 68 anos.

anto a poeta se afeiçoara aos Nemer que os contemplou no testamento. A Linda, para sua
grande surpresa, deixou cinco salas de escritório na avenida Presidente Vargas, no Rio.
Haviam pertencido ao pai de Lota, que as legara à filha, que as legara à companheira. Em favor de
José Alberto, dispôs que a dívida contraída para a compra do sobradinho de Ouro Preto estava
perdoada. (Não lhe valeu: ele a quitara dois anos antes.) A Casa Mariana foi destinada a Alice
Methfessel, a última companheira, que morava com Elizabeth em Boston. Quando soube que Alice
queria vender a casa, Linda entrou em contato com seu advogado e fechou o negócio.

Alguns anos depois, ao receber uma americana estudiosa de ElizabethBishop, Linda mostrou-lhe os
papéis guardados na caixa de sapatos. Para a americana foi como deparar com uma pepita de ouro.
Ela levou a notícia aos Estados Unidos. Pouco tempo depois Linda recebeu telefonema do Vassar
College, a faculdade de elite em que Elizabeth estudara e que guarda a maior parte de seu acervo.
Estavam interessados em adquirir os manuscritos. Combinou-se que Linda iria pessoalmente aos
Estados Unidos, e lá foi ela levando a surrada caixa de sapatos a esta altura corroída pelos anos. Foi
recebida num “carrão” (é como ela o descreve) no aeroporto em Nova York e conduzida a Vassar,
cento e poucos quilômetros ao norte. Hospedaram-na num “apartamentão”, no prédio destinado a

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alojar ex-alunos.

Linda surpreendia-se cada vez mais com as atenções que lhe dispensavam e a solenidade
emprestada pelos anfitriões à operação. Levaram-na a uma sala à prova de fogo, onde o conteúdo
da caixa seria examinado por peritos vindos de Nova York. Os peritos não demoraram a dar o o.k. –
os papéis eram autênticos. Cumpria agora negociar o preço. Quanto pedia pelo material? Ela não
fazia ideia. Lembrou-se de alguns reparos necessários no telhado e em outras partes da Casa
Mariana. Arriscou:30 mil dólares. Os americanos não regatearam. Providenciaram o cheque, e
ainda lhe fizeram a gentileza de fornecer-lhe uma cópia dos manuscritos.

inda mostra-me a cópia. O conjunto é composto de duas séries de folhas numeradas, uma até
242, outra até 205. Somam, portanto, 447 páginas, em que se alternam poemas, esboços de
poemas, sonhos, desenhos, ideias para contos ou ensaios, trechos de outros autores. Entre estes
últimos, há transcrições de Os Cantos de Maldoror, de Lautréamont, e, mais surpreendentemente,
uma passagem de Imperialismo, Último Estágio do Capitalismo, de Lênin, completada, na mesma
página, por uma citação de Lincoln: “Quando o homem branco governa a si mesmo, isto é
autogoverno; mas quando o homem branco governa a si mesmo e também outro homem, isto é
mais que autogoverno, é despotismo.” Sucedem-se os poemas. Entre muitos outros, “The
Museum”, “Blue Postman”, “A Red Kite”, “Money”, em que compara o dinheiro a pássaros que vão
e vêm, seus hábitos migratórios afetando tanto sábios quanto ignorantes.

Outra pepita de ouro chegou às mãos de José Alberto quase um ano depois da morte de Elizabeth.
Uma pessoa mostrou-lhe carta da poeta na qual constava um poema. José Alberto copiou-o em sua
agenda, na página do dia – 24 de agosto de 1980. A pessoa pediu-lhe sigilo quanto à sua identidade.
José Alberto o mantém. O poema, sem título, começa com o verso “Close, close all night”. Tanto se
empolgou com a inesperada joia que José Alberto fez um desenho para ilustrá-la e o gravou em
metal, com o poema. Dez anos mais tarde, mostrou a gravura ao poeta, crítico, amigo dos últimos
anos de Elizabeth e organizador de alguns de seus livros póstumos Lloyd Schwartz, então em visita
ao Brasil. Schwartz encantou-se e incluiu o poema, ainda mais precioso porque carregado de
erotismo de explicitude rara na autora, num artigo para a revista New Yorker, de onde migrou para
as antologias de inéditos e dispersos da autora. (O poema, com a gravura que o ilustra, está
traduzido na página 56.) Se o tesouro da Casa Mariana teimava em não ser achado, o de Elizabeth
Bishop continuava fecundo. J

[1]
“Deixemos Shakespeare e Milton/ Ficar num Hilton./ Eu ficarei/ no Chico Rei.”

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[2]
“Neste quarto, na casa de Elizabeth Bishop, poeta de Boston, Massachusetts, na noite de 22 de
outubro de 1977, nasceu Jesse Dunford Wood, inglês filho de Hugh Diarmid Dunford Wood, pintor,
e de Emma Stacey Dunford Wood, ourives de Oxfordshire, Inglaterra. Graças sejam dadas a
Deus.” (Bishop na verdade nasceu em Worcester, perto de Boston.)

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Edição 36 > _correspondência > Setembro de 2009

“Foi uma revolução rápida e


bonita”
"A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito,
por mais sinistro que pareça", escreveu Elizabeth Bishop a Robert Lowell a propósito do golpe
militar de 1964. "De outro modo teria sido uma mera 'deposição', e não uma 'revolução' -
muitos homens de Goulart continuariam lá no Congresso, todos os comunistas ricos fugiriam
(como alguns fugiram, é claro) e os pobres e ignorantes seriam entregues à sua sorte"
por Otavio Frias Filho

Nesta segunda e última parte dos trechos selecionados da correspondência entre os poetas
americanos Elizabeth Bishop e Robert Lowell, a crise política que agitou o Brasil no começo dos
anos 60 vem para o primeiro plano. Bishop passara a viver no Rio (e em Petrópolis) em 1951;
estava de passagem quando se apaixonou por Lota de Macedo Soares. Incentivadora do gosto pela
arte moderna e amiga íntima de Carlos Lacerda, Lota seria incumbida por ele, governador da
Guanabara a partir de 1960, de criar o parque do Aterro do Flamengo. Convocou o paisagista
Roberto Burle Marx como seu braço direito, com quem depois se desentenderia.

Surpreende a veemência que uma poeta nada interessada em política, como Bishop, emprega
contra os herdeiros populistas de Vargas e seus aliados comunistas. Ela reflete a intensa
polarização ideológica que devastou a vida pública brasileira na época. Reflete também a posição de
Lota, então lacerdista incondicional (Lacerda e sua amiga viriam a romper relações depois de
1965). Mas não apenas isso: Bishop tinha aversão à vulgaridade justiceira dos grandes projetos
coletivistas, ao contraste entre seus belos propósitos e à mediocridade militante. Sintomático,

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conforme consta de uma das cartas, que ela lesse Alexander Soljenítsin já em 1963, mal o
"dissidente" soviético fora traduzido para o inglês.

No âmbito privado, o contexto das passagens a seguir é a dissolução do amor entre as duas
mulheres. Lota se deixa enredar no labirinto burocrático do governo, vê o sonho do Parque do
Flamengo ser amputado, sofre de depressão e doença cardíaca. Bishop se afasta do Rio, compra
uma casa em Ouro Preto. E se apaixona pela "companheira vivaz, gentil e divertida" mencionada
em uma passagem abaixo. Em setembro de 1967, Lota viajou em desespero a Nova York, à procura
de alguma reconciliação com Bishop. Depois de um encontro tumultuoso, Lota tentou se matar por
ingestão de barbitúricos. Hos-pitalizada, morreu uma semana depois. O centenário de Lota
acontece no ano que vem; o de Bishop, no seguinte.

Rio de Janeiro, 15 de junho de 1961

Querido Cal

Um bom exemplo do humor político brasileiro derivado do cinema. Não sei se um filme italiano
medianamente bom chamado O Belo Antonio chegou a Nova York ou não. Trata do tema ousado da
impotência. Bem, o novo e único porta-aviões brasileiro, de segunda mão, que custa milhões e
milhões de dólares inexistentes e desliza lentamente para cima e para baixo pela baía com um ou
dois helicópteros na vasta pista do convés, agora é chamado de Belo Antonio.

Lota está trabalhando duro e está se saindo tremendamente bem. Tem sido até atacada nos jornais,
a intriga corre solta e duas pessoas pediram demissão. Devo ter contado a você que ela trabalha
como "coordenadora- chefe do Aterro" - tendo o aterro, ao que parece, 6 quilômetros de
comprimento. Não tinha me dado conta do tamanho até irmos ver ontem. Ela está recusando o
pagamento - isso é muito ruim, mas uma boa precaução. Está sendo maravilhoso para ela e, se a
coisa sair da maneira como ela quer, será um grande e esplêndido parque sombreado, dois ou três
restaurantes, parques de recreação, cafés ao ar livre etc. - oferece a todas as classes do Rio um lugar
para ir caminhar, desfrutar a paisagem e a brisa marinha, do que eles carecem tremendamente. Se
você tiver alguma idéia sobre parques de recreação (como deve ter provavelmente) nos diga...
[1]
Perguntei a Howard Moss sobre isso e ele escreveu que tinha uma boa idéia: enormes estátuas de
cimento dos patriarcas. (Ele também ficou extasiado com as suas traduções de Baudelaire na
Partisan Review.)

O paisagista... (sei que você provavelmente não compartilha o meu interesse por decoração de
interiores, arquitetura moderna, jardins etc., mas afinal de contas moro de fato num dos
pretensamente melhores exemplos - de arquitetura, quero dizer - na América do Sul). Bem, você
[2]
deve ter ouvido falar dele - dão aulas sobre ele em Harvard, é chamado o moderno Le Nôtre e eu
acho que é um dos verdadeiros gênios brasileiros - Roberto Burle Marx. Ele deu uma grande festa
na sua fazenda (na verdade, seu viveiro de plantas - acres e acres de lindos, e de certo modo tristes,
[3]
flamboyants, e de ameaçadoras plantas e árvores subtropicais) para o nosso amigo governador e
todo mundo que tem algo a ver com o "aterro". Burle Marx é também um bom cozinheiro. Havia

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porcos assados, peixes de 1 metro de comprimento e fantásticas decorações de frutas e flores com
metros de altura, que todo mundo rasgou em tiras no fim do dia para levar para casa. Infelizmente
alguém teve a idéia de trazer uma comissão comercial chinesa que tinha acabado de chegar de Cuba
- oito ou dez chineses pequenos, de aspecto relaxado, joviais, de cabelos compridos, que não
tocavam em álcool e faziam muitas perguntas sobre as pessoas, em francês ou em mau inglês.
(Mao-Mao - que se pronuncia como Mow - quer dizer "mau-mau" em português e é uma expressão
comum. Depois que todos eles recusaram o uísque e o vinho outra vez, com ar cada vez mais
severo, Roberto disse "Mao-Mao Tse-tung".) Tentei conversar com um deles cujo inglês era muito
limitado e quando me disse que "Castro-forte-forte", brandindo o punho, e "Batista-mau-
mau" (como se eu não tivesse ouvido falar dele, provavelmente), pela primeira vez, eu creio, um
verdadeiro calafrio de medo e horror do comunismo desceu pela minha espinha. Eram uns
homenzinhos lúgubres, de ar ignorante, os olhos ardiam com uma paixão justiceira - e lá estávamos
nós muito alegres, admirando as plantas e a coleção de antiguidades de Roberto etc., nos entupindo
de comida e à beira de colher o que semeamos.

Elizabeth

Castine, Maine, 31 de agosto de 1961

Querida Elizabeth

Passei a semana inteira preocupado com você, no seu tumulto. Na tevê, vimos [Jânio] Quadros
deixando o país sem uma gravata sequer, soldados brasileiros protegendo a embaixada americana
no Rio etc. Espero que tudo esteja bem com você. Avise se eu puder fazer alguma coisa, como lhe
mandar dinheiro.

Rio, 14 de setembro de 1961

Querido Cal

Ficamos todos muito comovidos com sua oferta de dinheiro... Recebi sua carta quando subimos
para Samambaia no último fim de semana. Por acaso tínhamos ido ao banco e às casas de câmbio
um dia antes de serem fechadas, portanto estamos bem - na verdade, podemos até mandar
dinheiro para os nossos amigos que ficaram desguarnecidos. Agora os bancos estão abertos de
novo. De todo modo, não imaginava que você estivesse vendo tevê em Castine.

Foi um período triste e terrível para todos aqui e agora não estamos gostando nem um pouco da
[4]
forma como as coisas estão andando. Lota, é claro, se envolveu muito em tudo isso e passou
noites inteiras no palácio do governador, chegando em casa só para o café da manhã. Você sabe que
o governador do estado da Guanabara é um velho amigo nosso, Carlos Lacerda, e foi ele quem
deflagrou todo o movimento, mais ou menos. É extremamente complicado, claro. Até escrevi uma
nota para o New York Times a respeito, uns dez dias atrás - talvez você tenha visto, talvez não
[5]
publiquem. Mas na verdade, os jornais americanos que vi - ou o que foi citado deles nos jornais

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daqui - entenderam tudo completamente errado. Meu único postulado era que os eua não
acreditam em nenhuma palavra do que a Rússia diz; no entanto, quando se trata da América do
Sul, a tudo o que qualquer um diga - ditadores ou aspirantes a ditadores, da direita ou da esquerda
(como agora) -, os eua dão fé. A situação parece muito ruim. Porém - não vou entrar em detalhes! -,
acho que quando for para n.y. darei palestras, depois de jantares, a respeito da situação no Brasil.
Parece que sei muito a respeito do assunto. A esquadra passou para um lado e para o outro,
soltando fumaça no mar, na frente do nosso apartamento aqui, e eu olhei pelo binóculo. Mas o Rio
mesmo ficou muito tranquilo graças ao Carlos, que o New York Times chama de "feudal e
reacionário" etc., etc. O Exército de fato é tão pouco belicoso que eles recuaram - e na verdade se
portaram muito bem!

Elizabeth

Sábado, 16

Não acredite no que você vê sobre "legalidade" e salvar a preciosa "Constituição"! Todos os velhos
vigaristas estão voando de volta para os seus cargos o mais depressa que podem & o pc age
abertamente agora.

A grande Bienal vai começar daqui a pouco em São Paulo - temos de ir, eu acho.

Será que terei de fazer outra viagem ao pesadelo de Brasília? Deus me livre.

No momento, ando meio apaixonada pelo último imperador - dom Pedro II - seguramente o mais
[6]
nobre imperador do mundo, no que diz respeito ao caráter. Tentou abraçar Whittier, à maneira
brasileira, quando se conheceram. Whittier recuou, é claro. Quando se separaram, dom Pedro
[7]
desceu atrás dele pela escada (isso aconteceu na casa de Longfellow, num jantar) e finalmente
conseguiu abraçá-lo (dom Pedro tinha 1,95 metro de altura). Traduziu um poema muito ruim de
Whittier, "O lamento de uma alma perdida" - não sobre a escravidão, como eu tinha pensado, mas
sobre um pássaro do Amazonas - e mandou para ele uma caixa de vidro com esses pássaros,
empalhados. Mas não vou continuar a revelar minhas surpresas eletrizantes...

Até logo, nos veremos em breve - Lota manda abraços.

Elizabeth

25 de setembro [1961]

Querido Cal

Aqui, tudo está uma confusão, e uma tragédia, na verdade. Deus sabe o que vai acontecer depois.
[8]
Parece excessivamente pró-comunista para mim e, por favor, diga a Kennedy ou a Arthur S. Jr.
para se mexerem. A América do Sul inteira poderia muito bem azedar - para o lado do comunismo

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-, como uma leiteira, eu acho, e a culpa é metade do Brasil e metade nossa. (Um pensamento alegre
para deixar com você.) Lota está de novo no "palácio" - ela adora uma briga felizmente, mas isso
tudo já é demais. Todo mundo acusa todo mundo, e Lota está sendo atacada nos jornais também -
em geral por ciúmes e despeito. Acho que é como nos eua, na verdade, mas numa escala tão
pequena e tão pessoal - e eu nunca me envolvi nos eua!

Como seria bom encontrar você.

Elizabeth

Rio, 22 de janeiro de 1962

Querido Cal

Vi um anúncio de Os Sertões - Rebellion in the Backlands -, o melhor livro brasileiro depois de


Machado de Assis & escrevi pedindo que lhe mandassem um exemplar. Você nunca vai ler o livro
inteiro, mas pule a primeira metade e passe direto para a parte narrativa - é maravilhoso, de fato.
Desconfio que influenciou Hemingway - numa tradução para o espanhol - e ele quase mostrou isso
[9]
(sua descrição da retirada em Caporetto).

14 de abril de 1962

Querida Elizabeth

Estou pessimamente preparado para falar a platéias brasileiras. Botsford parece supor que posso
adquirir em poucos dias fluência na leitura em português, mas é claro que nunca vou conseguir.
Gosto de verdade de alguns poemas de Bandeira, e também de Jorge de Lima, e já cheguei à
[10]
metade de Epitaph of a Small Winner de Machado de Assis - tremendamente bom. Posso
adivinhar que os brasileiros vão me deixar com a sensação de ser um bárbaro, com a cultura
francesa e latina deles, que nós jamais tivemos. É muito mais contundente descobrir que os
brasileiros têm isso do que ver a mesma coisa na França, onde já é de se esperar que seja assim.
Estou começando a acreditar nas tiradas arrogantes de Eliot sobre nós, a respeito da maturidade da
mente latina. Vou levar uma porção de antologias etc., e acho que posso declamar e ler em voz alta,
interminavelmente, a poesia em inglês deste século. Acho que eles já conhecem os grandes nomes -
[11]
ou serão tão ignorantes como nós? Ninguém aqui, exceto o jovem entusiasta, sequer conhece
Neruda.

Querida, mal podemos esperar, lembranças a Lota.

Cal

Rio, 19 de dezembro de 1962

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Querido Cal

Também ando fazendo algumas traduções. Acabei de ler um livrinho muito bom sobre Santos
Dumont - você até podia gostar, eu acho - muito justo e cordial. Ele era um personagem delicado,
feito um colibri, e é uma pena que os aviões não tenham sido desenvolvidos da maneira como ele (&
Leonardo) sonhava - todos seus aviões e seus planos fazem os nossos jatos parecerem grosseiros e
mortíferos. E esses pilotos musculosos e aeromoças sensuais teriam lhe inspirado pavor. (Um dia
quero escrever um poema sobre tudo isso.)

10 de fevereiro de 1963

Querida Elizabeth

Espero ver a sua Lispector na The New Yorker. Quer que eu entre em contato com Jack Thompson
[12]
e fale sobre sua outra amiga? Sei perfeitamente bem quem ela é - o jovem brasileiro que esteve
aqui disse que ela e Clarice são as melhores prosadoras no Brasil -, mas não tenho a sua carta à mão
e não tenho certeza da grafia.

Rio, 5 de março de 1963

Querido Cal

Brasil e França estão prestes a entrar em guerra, parece, por causa das lagostas brasileiras - navios
de guerra a postos, notícias de hora em hora, igual a uma comédia musical.

Aquela senhorita Kray me escreve dizendo que minhas traduções de Cabral de Melo são
"excelentes" - que bom, mas eu queria saber como ela sabe disso. Posso escrever aquele poema
[13]
longo inteiro só por diversão - se encaixa em inglês com muita facilidade. Também traduzi
alguns poemas de Drummond. Você se importa por eu ter traduzido "A mesa", aquele de que você
gostou? É o melhor dos poemas de memórias da infância - e essa parte da poesia dele é a que mais
me agrada. Claro que traduzi do meu jeito rigorosamente literal, de modo que se você, a qualquer
momento, quiser produzir uma versão Lowell, cheia de vivacidade, eu não acho que a minha vá
interferir com a sua nem um pouco - elas seriam muito diferentes. Além do mais, no poema, tem
muita gíria do Rio que não está no dicionário - assim você podia "pesquisar" o sentido das palavras
na minha versão (se eu fizer isso - só farei se me pagarem por mais outros trabalhos).

Obrigado por oferecer ajuda para Rachel de Queiroz. No momento, estou de folga quanto a tentar
ajudar quem quer que seja! - talvez só para brasileiros! Eles são tão inconfiáveis... É adorável poder
ser assim, e nós talvez sacrifiquemos muita coisa, com as nossas consciências e tudo o mais.

Mas tenho a sensação de que, se eu conseguir organizar tudo, ela pode muito bem dizer que não,
que está sem vontade, ou que sem o marido não pode ir - e depois irá embora para as suas fazendas
do Norte, assoladas pela seca, e ficará deitada numa rede enquanto vê o gado morrer de sede... Ah,

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querido, eu gosto dela, mas já tive problemas de personalidade de sobra por um tempo. Ela acabou
de voltar para o Norte outra vez, para ficar seis meses, bem na hora em que eu achava que
estávamos chegando a algum lugar; e agora tudo voltou à estaca zero outra vez. Também não ouvi
mais falar dos contos de Clarice. Ela se ofereceu para mandar os contos pelo correio algumas
semanas atrás - aposto que nunca fez isso! Infelizmente só fui descobrir o melhor conto quando já
era tarde demais. Ela me entregava um conto de vez em quando - talvez eu termine isso também, só
[14]
para fazer o trabalho direito - e depois acabou. Ah, sem dúvida vou acabar cedendo, mas por um
tempo quero pensar nos meus assuntos.

Elizabeth

Piada infantil brasileira: por que um Volkswagen parece uma bunda? Resposta: porque todo
mundo tem um...

14 de março

Cal,

Isto está na minha escrivaninha há uma semana porque achei que era maçante e mal-humorado
demais para mandar - acabei de reler e, embora não ache muito interessante, acho que dá para
enviar... O Brasil venceu a guerra da lagosta. Meu canarinho teve um ataque do coração (acho). Faz
uma semana que mal vejo Lota, mas sábado é o aniversário dela e teremos uma espécie de noite de
gala em Samambaia nesse dia... Fui maldosa a respeito de Rachel de Q. Ela quer muito ir para os
eua, eu sei, e se ela escrevesse artigos para cá, provavelmente, talvez tivesse dinheiro para pagar a
viagem do marido também - os dois são muito dedicados. Ela devia ir, o lugar está ficando
inundado de literatura antiamericana violenta, poemas (acabei de receber dois livros desse tipo)
etc. - todos tão rasteiros. Os escritores e poetas soam como no início da década de 30 nos eua e é
uma pena que pareçam querer passar por tudo aquilo outra vez - também passaram por isso aqui (a
[15]
geração de Rachel). Acabei de ler Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - o livro que Philip
Rahv resenhou. É comovente e estimulante, acho.

Elizabeth

Rio, manhã de terça-feira,

26 de maio de 1963

Querido Cal

Supõem-se que Carlos [Lacerda] concorrerá para presidente em 1965. Salve-nos. Muita coisa pode
acontecer antes, mas se ele for eleito tenho certeza de que Lota seria ministra da Educação ou
embaixadora, ou outra coisa. Acredito que ela é de fato a única amiga que ele tem, às vezes - a única
que ousa dizer a ele a amarga verdade de vez em quando, e ele aceita. Levamos a ele uma carta às

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onze da noite de domingo, na qual ela o advertia quanto ao "macarthismo" - e ela já produziu
efeitos.

Todos os comunistas, estudantes, janguistas, nacionalistas etc. se esgoelam sobre "reforma agrária"
- como se qualquer um com juízo fosse contra a reforma agrária no Brasil. Mas o que eles realmente
querem são mudanças aterrorizantes na Constituição que dariam a Goulart poderes ditatoriais.
Aparentemente há muitas leis boas - sempre existem aqui - e tudo que eles têm que fazer é colocá-
las em prática. Mas rotulando tudo de "reforma agrária", quando o que querem é escrever uma
nova Constituição, eles mantêm o povo atordoado, como de hábito, e os estudantes esgoelando que
Carlos é contra o camponês... Ó, Senhor, estou cheia disso.

Os rapazes brasileiros são muito diferentes dos americanos, sem dúvida - amantes dos 14 anos em
diante, mais ou menos. Eles sabem tudo de l'amour, mas não têm a menor idéia de como fazer a
cama. Ou limpar os sapatos, ou de como ganhar dinheiro - ou quanto custa viver - ou como é a vida
real da sua empregada. De fato, eles nem vêem a classe pobre como gente, e ainda acham que são
comunistas.

Com amor sempre.

Elizabeth

Rio, 28 de junho [1963] - alvorada

Querido Cal

Acho que o desejo vem primeiro e é isso o que conta, mas se você nunca vê um Picasso autêntico,
finge que Portinari é bom - ou se nunca na sua vida ouviu música boa, finge que "bossa nova" é
bom, ou Villa-Lobos é o maior etc.

Muito amor.

Elizabeth

Rio, 2 de julho de 1963

Querido Cal

Darcy Ribeiro - que era o reitor da Universidade de Brasília quando você esteve aqui (& lhe deu seu
livro sobre arte plumária) - subiu muito e bem rápido desde então. Chegou a ministro da Educação,
a chefe de alguma coisa - gabinete - e no momento está travando uma queda de braço com Carlos.
Os jornais vespertinos dizem que o governo vai destituir Carlos; os jornais da manhã dizem que

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Carlos entrou com uma ação na Justiça contra o governo! Que a maldição caia sobre as suas duas
[16]
casas...

Clarice foi convidada para outro congresso literário na Universidade do Texas e está se mostrando
muito reticente e complicada, mas acho que em segredo está muito orgulhosa e vai acabar indo, é
claro. Vou ajudá-la com o seu discurso. Penso que vamos ser "amigas", mas ela é a escritora mais
não literária que já vi e "nunca abre um livro", como a gente costumava dizer. Nunca leu nada que
eu pudesse descobrir - acho que é escritora autodidata, como uma pintora primitiva.

Rio, 11 de outubro de 1963

Vinicius [de Moraes]- lembra dele?- casou pela quinta vez. Fugiu com uma garota de 20 anos, filha
do embaixador ou cônsul italiano - e ela estava noiva de outro. O jovem descartado desafiou V. para
uma briga. Aí quando os dois "foram lá fora", ele olhou para o coitado e bêbado V., desistiu e foi
embora. V. deixou uma carta para os pais, dizendo saber que era um comportamento ruim para um
"diplomata", mas que como "poeta" ele não se conteve... Todos têm pena da garota...

Rio, 26 de novembro de 1963

Querido Cal

Não tenho muito o que dizer a você, na verdade - os últimos dias foram como um pesadelo, é claro -
, mas senti vontade de lhe escrever um bilhete. Lota chegou cedo em casa na sexta-feira, de volta do
trabalho, para me contar sobre Kennedy antes de eu ouvir a notícia no rádio. Se bem que há uma
greve no rádio e na tevê já faz uma semana mais ou menos, e só a rádio do Ministério da Educação
está no ar. Todos os jornais publicaram edições especiais naquela noite. Fomos à rua e a visão das
multidões foi terrivelmente comovente - as ruas lotadas de gente, as bancas de jornal cheias e
muitas pessoas chorando abertamente. A dor aqui foi autêntica, sem dúvida - certos ou errados,
eles tinham a sensação de que Kennedy era um amigo do Brasil. Você sabe que os brasileiros são
muito mais formais a respeito da morte do que nós. Devo ter recebido quinze ou vinte telefonemas
e algumas visitas - de "condolências". Eles também se sentem tão mais próximos de seus políticos
do que nós - na sua maneira de pensar, todos os americanos devem se sentir como se tivessem
perdido um parente. E têm reações emocionais muito mais rápidas do que os anglo-saxões - ou do
que eu tenho, pelo menos. Lota almoçou com Carlos hoje e ele disse que estava começando a se
sentir normal outra vez; ao passo que hoje é o dia em que estou começando de fato a me sentir mal.

Uma estação de tevê finalmente voltou ao ar e assim nós vimos, provavelmente, alguns dos
horríveis cinejornais que você viu - aqueles carros desmesurados adernando feito gelatina nas
curvas, aqueles rostos gordos do Texas, solenes e burros, aquelas intermináveis imagens das costas
de guardas cobertas de coldres e cartuchos de munição... Ah, Deus, que barafunda. Talvez uma
parte esteja esclarecida quando você receber esta carta, mas receio que o assunto vai se arrastar.

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Amigos nossos acabaram de voltar depois de passar três meses em Washington e na Filadélfia -
americanos - e dizem que estão contentes por estar de volta, por mais horrível que seja a situação
por aqui. Acham que a atmosfera por lá está muito Sodoma e Gomorra, creio - dinheiro, dinheiro,
dinheiro e aterradores problemas com os negros. Bem, aqui estamos esperando um golpe (do
presidente) a qualquer momento. Hoje e ontem o clima ficou mais quente, muito quente - e a gota
de água, no que diz respeito a greves, é uma greve de coveiros... aqui não se costuma embalsamar e
não há refrigeração que chegue!

Com muito amor, como sempre.

Elizabeth

10 de março de 196[4]

Querida Elizabeth

Saiu uma matéria no Times nesta manhã sobre o fato de Goulart ter encampado refinarias de
petróleo e muitas terras - lúgubres ponderações dos eua sobre a agitação incessante. Espero que
não haja nenhum problema novo.

Penso em vocês duas todo dia. Mande mais notícias, e um outro poema ou poemas. A família
manda seu amor e eu, todo o meu.

Cal

3 de abril de 1964

Querida Elizabeth

Tudo parece calmo e em paz no Brasil no último dia e meio, mas ainda tremo ao tentar imaginar a
agitação dos últimos dias e, sem dúvida, das últimas semanas ou meses.

As últimas notícias que li informam que os fuzileiros navais estavam atacando o palácio do
governador cercado por barricadas e, enquanto isso, a polícia do governador tentava tomar o
pequeno Forte de Copacabana. Enquanto eu voltava de avião para casa, havia um céu claro sobre o
Atlântico quando chegamos lá e imaginei a mesma lua, milhares de milhas ao sul, brilhando sobre o
mesmo oceano, tudo estranhamente mais próximo, porque a praia de areia, como uma estrada,
levava até você, e em pensamento a gente podia andar sobre ela e se perder, quando então pensei
em aglomerações em conflito, formadas por soldados magros e de capacete. Graças a Deus tudo
acabou. Percebo que depois que deixei o Brasil tudo fermentou e que aquela única semana tinha

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pouco a revelar do que viria a ser a realidade na semana seguinte. Espero que a mudança tenha
atenuado as sombras para você e Lota, e também para o país. Escreva e conte o que aconteceu com
vocês e tudo aquilo que seus olhos iluminaram.

Rio de Janeiro, 4 de abril de 1964

Queridos Lowellzinhos,

Bem, foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva - tudo terminado em menos de 48 horas.
De fato, sentimos um estranho esvaziamento, nos preparamos para viver coladas no rádio e na tevê,
deitadas sobre muitos sacos de café; eu assei pão - não havia pão para vender etc. - e também assei
um pernil de porco! Porque achamos que ia faltar gás. Agora estamos comendo o pernil todo...
Revoluções modernas, aprendi, são engraçadas, tudo pára de funcionar - menos o telefone, porque
é automático -, portanto todo mundo fica sentado no escuro, sem tomar banho etc., telefonando
para os amigos o dia inteiro e a noite inteira.

Lota e outra mulher eram as únicas no Palácio Guanabara (de Carlos). Lota tinha um salvo-conduto
de um dos generais, e entrava e saía passando pelas tropas do presidente, que cercaram o palácio.
Todos os homens lá dentro mostravam as armas uns para os outros etc. Mas o palácio não resistiria
a um ataque, havia apenas 100 soldados, com armas leves. No dia 1º de abril, Carlos lançou um
pedido de socorro pelo rádio e pareceu de fato desesperado. Peguei a transmissão em ondas curtas,
por intermédio do estado de Minas, pois o governo ocupou as estações de rádio aqui e, por dois
dias, só captamos um monte de mentiras e o hino nacional. Esse foi o pior momento - eu sabia que
Lota estava lá dentro, ela insistiu em voltar para lá, ou eu esperava que estivesse e que não fosse
apanhada pelas tropas federais. Contudo uma hora mais tarde tudo havia terminado. Todo o
exército veio e voltou-se contra Goulart - e ele já havia fugido, mas nós não sabíamos. Então uma
enxurrada de pessoas saiu para as ruas - chuvas de papel picado, bandeiras, música etc. Saí de
carro com um amigo para ver a cidade. Na calçada, um autêntico toque do Rio - homens grandes e
peludos, de calção de banho, dançando feito loucos, sacudindo suas toalhas molhadas. A coisa toda
transcorreu debaixo de violentas tempestades, portanto o papel ficou grudando - carros, tanques,
tudo lambuzado de papel molhado.

As duas últimas semanas correram cada vez mais alucinantes. Goulart exagerando o seu papel
obviamente, e pelo visto superestimando sua força como um tolo - ou sendo forçado a isso. O outro
lado (nós somos os "rebeldes"!), subestimando a força deles. Segunda à noite vimos Goulart na tevê
fazendo um discurso bombástico num comício-monstro de sargentos. Foi terrível, quase patético -
os agitadores tentando ler discursos escritos para eles, sem conseguir ler direito etc. L & eu
chegamos a dizer uma para a outra: "Bem, isso é o fim, não tem jeito." E sem dúvida foi mesmo. O
Exército não ia aceitar aquilo. Só um exército continuava supostamente leal ao presidente - e então
em 1º de abril ele também mudou de lado & foi o fim. Mas o clima estava bastante tenso quando
soubemos que o Rio se encontrava completamente sob controle federal, exceto por Carlos, que se

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mantinha resistindo naquele tolo palaciozinho, enquanto o único exército "inimigo" estava
marchando para su-pos-tamente nos subjugar... Muito pouca gen-te morreu, pelo menos até onde
a gente sabe. (Desconfio que isso ocorreu porque não havia veículos de transporte e poucos carros
estavam na rua; provavelmente algumas dúzias das mortes de costume devidas a atropelamentos e
acidentes de carro foram evitadas...) O Forte de Copacabana desempenhou um papel importante,
mas só um soldado foi morto. Agora faz dois dias que estão prendendo pessoas - oh, Deus - e a
maioria dos figurões fugiu.

Rio de Janeiro, 7 de abril de 1964

Mais de 3 mil pessoas presas só no Rio. Carlos deu várias e várias ordens, nenhuma brutalidade
policial será permitida etc., mas incidentes acontecem com qualquer polícia.

A coisa mais estimulante, na verdade, foi a passeata do dia 2. Foi planejada por duas semanas como
uma manifestação anticomunista. Nessa ocasião, no dia 2, a revolução já estava terminada e os
comunistas em fuga; portanto, não era mais necessária. Porém mais de 1 milhão de pes-soas saíram
às ruas e marcharam - de novo debaixo de uma chuvarada. Foi de fato impressionante. Estou
mandando para você algumas revistas com fotos - vamos ver se você recebe. De fato a manifestação
foi espontânea e não é possível que sejam todos da direita rica e reacionária... O dia 1° de abril é
aqui o dia da mentira, portanto agora andam dizendo: "A verdade apareceu no dia da mentira."
Não acredito em tudo o que os jornais dizem, é claro, mas Lota está em condições de saber bastante
coisa. Desco-briram até agora mais de 15 toneladas de material de propaganda chinesa e russa -
além de armas, explosivos etc. A quantidade é que é impressionante.

Ando horrivelmente deprimida com o que está acontecendo por aqui e meu único pensamento é ir
embora por um tempo. A Inglaterra é o melhor lugar, creio - posso falar a língua, mais ou menos, e
acho que eles não dão a mínima para o Brasil, assim ninguém vai me fazer perguntas.

Elizabeth

Rio, domingo, 13 de abril de 1964

Querido Cal

A junta militar provavelmente parece muito pior vista de fora do que vista daqui. Como você sabe,
os militares no Brasil jamais na sua história tentaram tomar o poder ou mantê-lo - e Castelo
[17]
Branco relutou em ser presidente. Agora temos um vice-presidente terrível - sagaz, mas
desonesto -, porém não acredito que ele vai ter muito poder. A suspensão dos direitos, a cassação
de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito por mais sinistro que pareça. De outro modo

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teria sido uma mera "deposição", e não uma "revolução" - muitos homens de Goulart continuariam
lá no Congresso, todos os comunistas ricos iriam fugir (como alguns fugiram, é claro) e os pobres e
ignorantes seriam entregues à sua sorte.

Muito amor.

Elizabeth

14 de abril

Estou furiosa com o que os jornais dos eua andam dizendo, pelo que vejo citado, e com os
comentários do adido cultural que veio jantar conosco na noite passada...

Ele estava admitindo que os eua eram pró-Carlos embora, claro, não possa dizer isso abertamente,
e que as coisas saíram da maneira como eles queriam. Enquanto isso, argumenta que é errado
retirar os direitos civis etc. Bem - idealmente falando, é claro -, o que é que se pode conseguir num
país pobre, fraco, praticamente sem polícia nenhuma? Os eua podem enfrentar espiões,
sindicalistas, corridas armamentistas; o Brasil obviamente não pode. Se tivessem dado esse passo
trinta anos atrás, na primeira vez que Vargas ficou fora do poder - cassando seus direitos civis -, ele
nunca teria sido capaz de voltar como ditador, e todos os anos de degradação e abatimento
[18]
poderiam ter sido evitados... R. Aron foi a única pessoa que conseguiu entender as coisas por
aqui - e sou grata a Carlos por ter citado Aron. Pergunte para Hannah Arendt! Aposto - se ela
souber alguma coisa sobre o Brasil - que ela estaria de acordo com Carlos agora. Claro que é o que
ele faz - o que ele é capaz de fazer - e eu gostaria de poder ficar longe por dois anos e não ter de
passar pela próxima fase.

É gozado, os americanos esbravejam sobre "democracia" há anos - um grande princípio geral -,


depois esbravejam de novo quando espiões chineses são presos ou uma dúzia de conhecidos
desonestos e cretinos são mandados para o exílio... É um estranho senso de proporção acerca dos
países, para dizer o mínimo.

Claro que um problema é que os eua nunca mandaram pessoal de primeira linha para cá. Gordon
[19]
comportou-se bem, acho. Ele fez uma piada: "Agora os EUA têm a sua Casa Branca e o Brasil
tem o seu Castelo Branco..." Não é a perfeita piada de sala de aula de que os estudantes riem
educadamente? Coi-tado do professorzinho.

1º de maio de 1964

Querida Elizabeth

Não acho que a revolução aí não deu certo. A última Time traz um levantamento da apropriação

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indevida de terras feita por Goulart - um por cento das terras do Brasil! Ele parece mais desonesto
do que Kubitschek. Parece loucamente ineficiente, desonesto e corrupto. Só o seu ministério, acho,
era de figuras ilustres, mas é possível escrever uma tragédia ótima sobre como o presidente
preparou a própria queda. O problema com as matérias da imprensa é que há excessivas palavras
políticas fixas. Atualmente, elas não significam a mesma coisa em dois países, quaisquer que sejam,
e até de um mês para o outro os fatos mudam. Acho que todo mundo tem a sensação de que o
Brasil estava caindo rapidamente no caos, até mais rapidamente do que os brasileiros sabiam ou
previam, até o último momento.

Você fala sobre o temperamento artístico, que não combina com esses assuntos. Mas você capta as
coisas de forma bem perspicaz e retorna à superfície com as mãos cheias. Sou um pateta nessa
matéria. Gostaria que você pudesse achar formas, narrativa, descrição, ficção, poemas para expor
isso. Talvez seja preciso tempo e distância. Olho nenhum no mundo viu o que seus olhos viram.
Tenho uma vaga imagem de uma sequência de poemas ao longo dos quais a Revolução se
movimenta - nenhum enredo ou polêmica óbvios, mas a coisa corporificada, presente em todo o
seu aspecto terrível, absurdo - bom, mau, real, confuso, esclarecido e, no fim, julgado. Não me
refiro a nada neutro ou para além da política, é bem o contrário, tudo resgatado dos clichês
levianos, duros, superficiais de que os que se afastam abrem mão da realidade, de que nós todos
abrimos mão até daquilo que conhecemos bem. Estou pensando de fato que a Revolução podia
fornecer a você um fio para costurar as impressões coletadas ao longo da sua estada de dez anos.

Samambaia, 22 de maio de 1964

Querido Cal

Carlos vai partir nesta noite para ficar uns meses fora - esse estranho sistema brasileiro é uma boa
idéia no caso dele. Se ficasse, sem dúvida iria começar a lutar contra o Castelo Branco, mais dia,
menos dia, pois é da natureza dele lutar, e agora que perdeu a sua grande causa, pelo que mais pode
lutar? Quero dizer, ele venceu este round contra os "comunistas", então o que vai fazer agora? Há
pessoas muito boas e honestas no novo gabinete - o New York Times etc. estão absolutamente
errados -, mas estou tão farta de tudo isso que não suporto mais pensar no assunto.

Elizabeth

27 de agosto de 1964

Querido Cal

Todos estão morrendo. Um de nossos melhores amigos, o arquiteto Affonso Reidy (não sei se você

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o conheceu - magro, alto, impecável, mais escocês do que brasileiro, e um dos melhores arquitetos)
acabou de morrer aos 54 anos, depois de seis meses terríveis. Lota ficou muito abalada (por essa
razão parti de Londres duas semanas mais cedo - para chegar aqui antes da morte dele). Reidy e
sua esposa tinham uma -ca-sa de fim de semana perto da nossa e agora acho que não sobrou
ninguém para a gente conversar ou receber em casa para jantar no domingo - está um deserto.
Reidy -também era uma das poucas pessoas sãs com quem Lota tinha trabalhado. Ela jura que
todos os homens brasileiros são ligeira-mente doidos - as mulheres podem ser sãs, mas
infelizmente são retardadas mentais...

O Brasil?, você me perguntou. Eu prefiro não pensar nisso. Quando voltei, tive a sensação de que
não conseguiria suportar, e não conseguiria mesmo se não fosse por Lota, claro. Agora já estou me
acostumando um pouco outra vez. Mas tenho de ficar me lembrando de que Lota, de algum modo,
assume isso a sério, de que ela está fazendo um trabalho útil e muito bem-feito, e de que no ano que
vem nós vamos para a Europa outra vez (agora isso parece estar mesmo certo). Há uma tênue
depressão, a inflação anda horrível, embora não tenha mudado grande coisa enquanto estive fora, e
se sente uma agitação em toda parte e o tempo todo.

Elizabeth

Rio, 6 de julho de 1965

Querido Cal

Não houve muito estardalhaço sobre a ida de soldados brasileiros para a República Dominicana -
acharam que ia haver, mas não houve. Fico acordada e rezo de noite para que ninguém seja morto!
(Três feridos voltaram até agora. O primeiro caiu de uma árvore. Como diz L., na certa estava
roubando frutas, no tradicional estilo brasileiro. Um outro explodiu sua própria granada de mão,
nada sério, e um de fato foi ferido pelo "inimigo", de novo sem gravidade.) Os jornais dizem que o
Exército americano os enviou para "comandar o trânsito - com calma e tranquilidade"! Isso parece
o procedimento rotineiro do Exército - mandar um ferreiro costurar ou soldados que falam francês
para o Japão...

Elizabeth

Rio, 2 de agosto de 1965

Querido Cal

Li de fio a pavio uma enorme antologia - Uma Controvérsia de Poetas - e os seus três poemas

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familiares na antologia são os únicos que me fariam, bem, atravessar a rua para cumprimentar o
poeta. Talvez haja um ou dois bons além deles, mas nada de comparável, na verdade. Achei o livro
inteiro tremendamente deprimente; fez me sentir muito démodé, como diz Lota. Eu tenho de
escrever prosa usando palavrões, f..., m... e assim por diante, vejo isso... - e não é estranho que de
todos os problemas e de todo o nervosismo possa sair algo razoavelmente "sereno"? Bem, agora eu
nem me importo se for mal recebido - o que você disser já é o bastante!

Também acabei de ler o último livro de Sylvia Plath e o de Auden - e queria saber o que você acha
deles. Sylvia P. me parece uma perda trágica - embora eu mal consiga suportar ler seus poemas até
o fim, são muito sofridos. Um pouco informes demais para o meu gosto, também - mas um
verdadeiro talento, não acha? E Auden parece estar desfrutando em excesso uma espécie de velhice
prematura... Há alguns bons, porém.

Bahia - bem, acho que você deu uma passada por lá, ou ficou lá por uns dias bem insatisfatórios que
eu me lembre, quando ninguém conseguia encontrar ninguém. Passei uma temporada ótima de
fato, mas é tão pobre - mesmo comparado com o pior do Rio - que acaba sendo muito deprimente.
Ruínas magníficas, na maior parte - e ouvi muita música meio africana, e comi um monte de
comida meio africana. As prostitutas (sempre em volta das igrejas, na rua atrás da igreja) quase
arrastaram Ashley, que estava do meu lado, e assoviavam e chamavam por ele das janelas das
sacadas. Como ele é o homem de aspecto mais professoral do mundo - alto, magro, de óculos muito
grossos e costas curvadas -, acho que ficou um pouco assustado. Todos os "intelectuais" são assim,
muito de esquerda - quando não são comunistas, como Jorge Amado - e muito friamente polidos
conosco, americanos. Ficamos oito dias.

Lota anda estafada de tanto trabalho. Levamos o maior susto por causa do coração dela. Sem
contar nada para Lota, chamei o médico e o cardiologista para virem no domingo de manhã e tudo
está bem, graças a Deus. Em consequência dormimos direto por umas quatro horas - de alívio,
suponho. Lota anda tremendamente importante ultimamente e, é claro, correm rumores (sempre
correram, na verdade) de que ela está ganhando uma "fortuna" com o seu parque e guardando o
dinheiro no exterior - uns dizem que nos eua, outros na Suíça... Carlos está cometendo um erro
depois do outro, me parece - perdeu a mão, ou algo assim. Duvido muito que venha a ser eleito
agora. (E tenho medo que seja eleito.)

Elizabeth

Ouro Preto, Minas Gerais,

19 de setembro de 1965

Querido Cal

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O Rio começou a ser demais para mim outra vez e por isso subi para cá - com a intenção de ficar só
duas semanas. Agora já faz um mês e é provável que fique mais duas semanas. Depois é possível
que Lota tire uns dias de folga, suba para cá e então volto com ela. Tem sido uma fase
absolutamente mortal para ela e me sinto culpada por abandoná-la, mas eu não estava ajudando
grande coisa, de fato - vagando pelo apartamento no meio do maior calor, tentando trabalhar, sem
nenhum sucesso, enquanto ela enfrenta políticos, salafrários, jornalistas, dezoito horas por dia...
Agora escrevo para ela quase todo dia e tenho certeza de que ela aprecia minhas cartas mais do que
minha companhia por ora, coitada! Aqui é muito parado, mas adoro. Fico com a nossa amiga Lili
Correia de Araújo, a dona do hotel onde você ficou, mas moro na casa dela - um enorme prédio
construído numa encosta na periferia da cidade, com uma mina de ouro no quintal, além de
alojamentos de escravos em ruínas, jardins morro acima em degraus nivelados e água corrente que
desce por um maravilhoso conjunto de aquedutos, túneis, fontes, tanques de pedra etc. agora
cobertos por samambaias muito crescidas e musgos. Lili tem uma aterradora coleção de algemas e
argolas de prender os pés encontradas em escavações no terreno. Ela é dinamarquesa, casada com
um pintor brasileiro muito tempo atrás, quando estudava arte em Paris. Nossos idiomas ficam
muito misturados. Eu a chamei de tow-headed [mulher de cabelo muito claro] e ela pensou que eu
tinha dito two-headed [de duas cabeças]. Ela diz your ass [sua bunda] em vez de dizer your ace
[seu ás] quando estamos jogando cartas.

Rio, 18 de novembro de 1965

Querido Cal

Houve uma pequena manifestação de intelectuais na frente do hotel Copacabana Palace, e dois ou
[20]
três homens foram presos. Porém, não tenho muita simpatia por eles tampouco. não há uma
"ditadura" aqui - acho que todos eles só querem virar mártires, na verdade. Por outro lado, parece
que a nossa diplomacia latino-americana se perdeu de todo e transferiram tudo para as mãos do
Pentágono - tenho a sensação que, de fato, é apenas uma manobra militar.

Gosto de Ouro Preto porque tudo aqui foi feito na hora, à mão, de pedra, ferro, cobre e madeira - e
tiveram de inventar muita coisa -, e tudo resistiu muito bem durante quase 300 anos. Eu achava
que era só sentimentalismo da minha parte - agora estou começando a levar isso mais a sério. Bem,
estou curiosa para ver minha terra natal outra vez. Conte o que anda fazendo - em Harvard de
novo? E eu estou morrendo de von-tade de ver você & conversar com você.

Amor.

Elizabeth

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15 West 67 Street, Nova York,

15 de setembro de 1966

Querida Elizabeth

Em meados do verão, seguindo meu desejo e ignorando meu bom senso, fui a uma festa de
aniversário para Jackie Kennedy: um edifício branco em forma de torre, quartos alugados para os
convidados pela nossa anfitriã, a senhora Paul Mellon, sob os olhares de relance vespertinos do que
deviam ser outros convi-dados, mulheres com penteados de 30 centímetros de altura, sorrisos, mas
nada de apresentações, informação de que o nosso barco ia chegar às oito, que podíamos tomar um
drinque ou alguns drinques grátis, nadar sozinhos - na água quase congelada do Maine -, um
passeio de carro solitário e maçante, e o regresso para os convidados reunidos e bebendo. Pessoas
com nomes como os dos figurões do noticiário, das finanças, da política, mas muitas vezes sem
nenhum parentesco, ou primos distantes. Barco com champanhe em copos de papel, uma lancha
acompanhando nosso barco, lindo pôr do sol, creditado ao planejamento da senhora Mellon.
Depois atracar no cais, enxames de novos conhecidos-desconhecidos com lampiões, grande
barraca, ar de simplicidade rústica muito cara. Horas de espera, com a sensação de que ninguém do
nosso mundo era conhecido de nenhum dos outros convidados, exceto Mike Nichols. Ar de drama e
espera por Jackie, o avião fretado para Lillian Hellman e os Styron. Após um tempo, de súbito,
Jackie se faz presente e conversa com Mike Nichols; o grupo de Hellman está lá, os dois senadores
Kennedy, McNamara. Mais tarde, um jantar suntuosamente simples: só consigo me lembrar das
costelas de carneiro cor de sangue. Mike Nichols ao lado de Jackie, depois pessoas de meia-idade
dançando as danças novas, não muito frenéticas, mas jovens demais para mim. A sensação foi de
uma festança para uma extemporânea Maria Antonieta ligeiramente cafona, quando a idade para
ficar empolgado com esse tipo de coisa já passou, o esplendor da alta sociedade, um pouco sinistro
e de mau gosto num mundo de pobreza e sangue. A pessoa mais interessante para conversar era
Bobby Kennedy, mas, como Carlos, junto com a franqueza, ele dá uma sensação assustadora de
ambição e poder.

Cal

3 de março de 1967

Querido Cal

Fiquei comovida com a "leitura" do meu poema... meu único poema em um ano ou mais. Bem, é
simpático da sua parte gostar dele, certamente não poderia ser muito mais simples do que é. Fiquei
debruçada naquela janela dia após dia (foi escrito um ano atrás, em outubro - dane-se a New
Yorker! Mas é o único jeito de ganhar algum dinheiro) porque a casa velha aonde fui e que comprei
fica em frente à casa de Lili, numa diagonal, no outro lado da rua - e também na frente de uma

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cascata, que passa embaixo das janelas. Tenho uma vista magnífica que inclui seis ou oito igrejas.
Estou instalando uma varanda pequena, mas autêntica, nos fundos, para tomar o café da manhã ou
tomar um café depois do jantar. A casa é de 1720-40, refeita muitas vezes, claro, mas L. e eu sempre
quisemos ter uma casa velha para brincar, e ela está planejando um jardim celestial e murado, com
uma fonte etc. É provável que só passemos lá um mês ou dois de cada vez - mas eu espero que você
veja a casa num dia desses.

Mas tivemos de abreviar nossa estada em duas ou três semanas. Lota estava piorando e eu estava
louca para levá-la para casa de novo - e ela também queria vir, diferente da sua personalidade
viajante de costume. Ela detestou Londres - não sei se algum dia serei capaz de levá-la a Londres
outra vez. É pena porque acho que foi a sua saúde que a deixou tão crítica - chegou a me convencer
que Trafalgar Square é feia e completamente errada... & assim com tudo o mais! Faz muito tempo
que esse ataque vinha se preparando em Lota, os médicos me garantiram - ela estava com um
aspecto horrível quando voltei em julho. Mas não consigo deixar de me culpar por ter me afastado,
embora eu achasse que precisava deixar a atmosfera daqui por um tempo - & isso faz-me sentir
culpada. Ela ficou numa clínica aqui por dois períodos - depois, por fim, eu também desabei e fui
para a mesma clínica (dirigida por freiras de Barcelona), mas ela estava dez vezes mais doente do
que eu e só está melhorando muito gradualmente. Agora no dia 8 vamos para Samambaia passar
uma longa temporada, por isso se você escrever por favor use o endereço de Petrópolis. Ela está
muito melhor, mas passamos de fato um mau pedaço & torço muito para que ela abandone aquele
emprego de todo - ah, bem, tudo isso é muito complicado para ir mais a fundo e tenho certeza de
que seria a mesma coisa que trabalhar para um governo ou uma prefeitura em qualquer outro lugar
do mundo...

Uma das questões mais sérias é que Carlos traiu todos de uma forma horrível - depois de todos os
seus anos de luta contra a gangue de Vargas e a corrupção, de repente, por razões políticas, passou
para o lado deles (e dos comunistas) de novo. Faz anos que não consigo suportá-lo; ao menos
continua a escrever cartas de amor para L.; na verdade, tenta fazer as pazes com ela de novo - mas
como Carlos deixou, de fato, o "parque" de Lota indefeso, e agora ele pode muito bem ser dividido
em duas partes, ela ainda se sente muito amargurada e não creio que algum dia vá mudar. De todo
modo, para o inferno com os políticos.

Lembranças para a família - muito amor - e obrigado pelo seu livro.

Elizabeth

Caixa Postal 279, Petrópolis, Est. do Rio de J. (melhor agora), 23 de abril de 1967

Querido Cal

Carlos começou (com seus ex-inimigos, a maioria dos quais está oficialmente no exílio ou pelo

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menos não pode ocupar cargos públicos por dez anos) uma coisa chamada "Frente Ampla"! Faz
mais de dois anos que não o vejo. Parece que ficou ofendido com uma pequena matéria que escrevi
para o New York Times, que foi abominavelmente cortada e desfigurada, mas me atrevi a dizer que
o Rio estava em muito mau estado e não incluí um elogio a ele...

[21]
Esse novo presidente, por mais sinistra que fosse a sua "imagem" quando estive nos eua, na
verdade é provavelmente um pouco mais liberal do que o último, mas não parece muito promissor.
[22]
Lota teve diversas entrevistas com o novo governador (que derrotou Carlos duramente) e ele é
desolador - disse para Lota que essa parte da cidade estava boa (está caindo aos pedaços) e não
fazia nenhum sentido tentar fazer nada sobre a "Zona Norte" onde vivem milhões de pobres.
[23]
Imagine dizer uma coisa dessas. Sem falar nos deslizamentos de terra, com centenas de mortos.
"Não é culpa minha se a terra resolve se mexer quando sou governador", e assim por diante -
inacreditável. Um velho homem de Vargas.

Lembranças à esposa e à filha, se estiverem com você outra vez.

Elizabeth

Nova York, n.y., 10 de julho de 1967

Querido Cal

Lota tem um ótimo psiquiatra - shrink, como dizem meus alunos e você também! Não fui
exatamente tratada, mas fui vê-lo uma vez por semana mais ou menos - e graças a Deus Lota tem
esse psiquiatra e a nossa criada dedicada - eu não permitiria que fosse de outro modo. (Ele lê você -
o shrink -, Deus também lê, sem dúvida.)

Elizabeth

1599 Pacific avenue, São Francisco, Califórnia, 9 de janeiro de 1968

Querido Cal

Vou passar a borracha em toda a minha estada no Brasil; foi de fato terrível demais para se
comentar - não só a arrumação das malas, por mais horrível que tenha sido, mas o comportamento
das pessoas que pensei que eram minhas amigas por quase dezesseis anos. Creio que tudo pode ser
explicado, mas tive antes a sensação de que eu estava sendo usada como uma espécie de bode
expiatório - sem exagero - e agora acho que a morte de Lota deixou todo mundo com uma sensação
de culpa, e então eu apareci e fui inconscientemente usada desse modo. Seja como for, vou levar

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anos para esquecer e estou planejando como poderei voltar a Ouro Preto sem passar perto do Rio.
Houve algumas exceções, claro, graças a Deus. Mas se alguém por lá quiser me ver outra vez vai ter
de ir a Ouro Preto me visitar.

A casa lá é absolutamente adorável - espero que você possa vê-la um dia. Deve ficar totalmente
pronta em julho e, se eu conseguir economizar o dinheiro necessário, vou tentar voltar lá no verão,
eu acho. Passei dez dias lá - um alívio enorme na maior parte do tempo. Vinicius de Moraes
também estava hospedado no hotelzinho, "repousando", e foi uma ótima companhia - é de fato
muito gentil e simpático. Levou-me até o avião quando fui embora do Rio (eu estava indo sozinha,
num táxi, do meu hotel) - e chegou até a pagar uma parte do meu excesso de bagagem, de outro
modo eu nunca teria embarcado. Nesta altura, ele deve estar visitando Nova York, acho. Seja como
for, tem tanta admiração por você que assumi a responsabilidade de lhe dar o endereço do seu
apartamento (não do outro) e o obriguei a jurar segredo quanto a isso. Talvez ele vá procurá-lo e
vocês possam ir almoçar juntos ou algo assim... Ele foi um ótimo amigo para mim nesse período.

Graças a Deus, Cal, agora estou com uma companheira vivaz, gentil, divertida - não creio que eu
fosse capaz de morar sozinha por enquanto, ou morar em Nova York, e seguramente não no Brasil.
Suzanne é de fato uma boa garota e datilografa todas as minhas cartas de trabalho; vai datilografar
para mim etc. "Secretária" soa decadente para mim, mas talvez eu estivesse mesmo precisando de
uma secretária, e por muito tempo!

Com muito amor sempre.

Elizabeth

[Ouro Preto, Brasil],

9 ou 10 de dezembro de 1969

Querido Cal

Agora acho que Ouro Preto é um lugar maravilhoso para visitar, mas eu não queria morar aqui...
pelo menos acho que não. Neste momento, faz uma noite maravilhosa depois de um mês de chuva;
as pedras estão lindas, esta É a casa mais bonita do mundo e o guarda-louças foi pintado. No
entanto eu gostaria de levar a casa, ou a casa de Lota, pelo ar - como aquela igreja na Itália -,
milagrosamente para Connecticut ou algum estado assim.

Vinicius de Moraes esteve aqui rapidamente na semana passada - imediatamente seguido pela sua
[24]
quinta esposa, para ficar de olho nele, grávida de seis meses, e com mais três filhos de um
casamento anterior... Perguntou tudo sobre você e de algum jeito viu alguns de seus sonetos, que
admirou imensamente. Coitado, parece doente, terrível, e não consegue parar de casar & beber.

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Tem planos para ir a n.y. em maio, mas duvido que faça isso.

Belo Horizonte, 3 de maio de 1971

Querido Cal

Me dou conta de que o meu mundo brasileiro chegou de fato a um fim e tenho de sair dele
depressa. Levei muito tempo para reagir, como sempre. Céus, mas espero que você esteja bem e
que tudo esteja bem com você.

Elizabeth J

[1]
Howard Moss (1922-87), poeta e editor americano.

[2]
André Le Nôtre (1613-1700), paisagista francês, jardineiro de Luís xiv, criador do parque de
Versalhes.

[3]
Carlos Lacerda (1914-77).

[4]
No início de setembro, os militares e os "legalistas" que queriam honrar a Constituição selaram
um compromisso precário, mudando temporariamente o regime para o parlamentarismo,
governado por um primeiro-ministro. Isso permitiu que Goulart assumisse a Presidência no dia 7
de setembro como uma autoridade simbólica, na dependência de um plebiscito nacional.

[5]
Não foi publicada.

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[6]
John Greenleaf Whittier (1807-92), poeta abolicionista e americano.

[7]
Henry Wadsworth Longfellow (1807-82), poeta americano.

[8]
Arthur M. Schlesinger Jr. (1917-2007), historiador americano, na época conselheiro do
presidente John F. Kennedy.

[9]
Ver Adeus às Armas, Ernest Hemingway (1929).

[10]
Memórias Póstumas de Brás Cubas.

[11]
Refere-se aos versos 136-137 do poema "A vaidade dos desejos humanos" (1749), de Samuel
Johnson, a respeito de um intelectual idealista.

[12]
Rachel de Queiroz (1910-2003).

[13]
Elizabeth Bishop traduziu uma parte de Morte e Vida Severina.

[14]
As traduções de Elizabeth Bishop dos contos "The smallest woman in the world", "A hen" e
"Marmosets" (respectivamente "A menor mulher do mundo", "Uma galinha" e "Macacos"), de
Clarice Lispector, foram publicadas na The Kenyon Review, em 1964.

[15]
Romance de Alexander Soljenítsin (1918-2008) publicado clandestinamente na União Soviética
e traduzido para o inglês em 1963.

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[16]
Alusão a Romeu e Julieta, de Shakespeare. Imprecação feita por Mercúcio, ao morrer, contra os
Montecchio e os Capuleto.

[17]
José Maria Alkmin (1901-74).

[18]
Raymond Aron (1905-83), intelectual francês.

[19]
Lincoln Gordon, o embaixador americano no Brasil.

[20]
A manifestação foi na frente do Hotel Glória e dela participaram oito intelectuais, entre eles
Antônio Callado, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade.

[21]
Arthur da Costa e Silva (1902-69).

[22]
Francisco Negrão de Lima (1901-81).

[23]
Trata-se das enchentes de fevereiro e março de 1967.

[24]
Na verdade, sua sexta esposa, Cristina Gurjão.

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Casa Lota Macedo Soares


Publicado em 26 de agosto de 2011

Petrópolis, RJ. 1951. Arquiteto Sérgio Bernardes.

Publicado na Revista Brasil Arquitetura Contemporânea nº 4, 1954. Rio de Janeiro. Edições Contemporâneas

Texto de apresentação do projeto .

Esta residência, premiada na II Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, exemplifica da melhor forma as
qualidades do arquiteto – a boa e Iivre organização da planta, o uso apropriado do terreno, o emprêgo racional e
ao mesmo tempo lírico dos materiais de construção, dentro de um espírito de contínua pesquisa. As dependências
de estar principal formam agradável jôgo de volumes contrastantes, em íntimo contato com a vista sobre o
paisagem.

A ala dos dormitórios, que dispõe de uma sala de estar própria, e o ala reservada aos hóspedes e aos quartos de
empregados estão em extremos opostos do planta, oferecendo assim a máxima liberdade aos seus ocupantes.

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Casa Lota Macedo Soares | Casasbrasileiras Page 2 of 4

Deve-se notar, ainda, a naturalidade com que essa casa se insere no quadro majestoso das montanhas que lhe
servem de fundo.

Ainda que oferecendo alguns aspectos de uma “procura” plástica nova, sem todavia alcançar a leveza e a
naturalidade de outras suas creações, esta casa se caracteriza pela riqueza e diversidade dos materiais
empregados, numa execução aprimorada. A idéia da separação em dois corpos, a parte da vida diurna e a noturna,
é claramente demonstrada em planta, apenas ligada pelo pórtico coberto. A impressão de pêso da cobertura das
salas foi agravada pelo aumento do vigamento desta, na execução, conforme fàcilmente se percebe entre o projeto
e a execução. Os interiores são interessantíssimos notando-se o contraste dos materiais claramente empregados
sem o “preciosismo” tantas vêzes observado nas recentes obras de muitos dos nossos profissionais.

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Maria Carlota Costallat de Macedo Soares (Lota)

(Paris, 16 de março de 1910 - Nova York, 25 de setembro de 1967)

foi uma paisagista e urbanista autodidata brasileira, umas das responsáveis pelo
projeto do Parque do Flamengo, localizado na cidade do Rio de Janeiro, o maior
aterro urbano do mundo.
Maria Carlota, chamada por todos de Lota, nasceu em Paris, filha de José
Eduardo de Macedo Soares, então Primeiro-Tenente da Marinha baseado na
Europa, e de Adélia de Carvalho Costallat. O casal teve mais uma filha em Paris,
Maria Elvira, conhecida por Marieta. José Eduardo deixa a Marinha em 1912 e
volta para o Brasil com a família. No Rio de Janeiro, funda o jornal O Imparcial,
precursor do Diário Carioca.
No princípio da década de 1940, Lota reside em Nova York, onde faz cursos no
Museu de Arte Contemporânea.
Sem ter frequentado universidade, foi reconhecida como arquiteta autodidata e
paisagista emérita, sendo convidada por Carlos Lacerda, que acabara de ganhar o
governo do então estado da Guanabara (1960-1965) para trabalhar no projeto do
Parque do Flamengo.4 Quando, nas eleições seguintes, Carlos Lacerda perde o
governo, Lota retira-se da construção do aterro do Flamengo.
Todas essas questões políticas em que estava envolvida e mais o afastamento de
sua companheira Elizabeth Bishop, que a esta altura já estava em Nova York,
levaram-na à depressão. Elizabeth Bishop era uma das poetisas mais famosas da
época. Lota e Elisabeth viveram juntas de 1951 a 1965. Em 1967, quando já
separadas, Lota resolveu viajar para Nova York a fim de encontrar Bishop. No
mesmo dia em que chegou, Bishop encontrou-a caída na cozinha, com um vidro
de antidepressivo nas mãos. Lota entra em coma, falecendo poucos dias depois.

Referências
1. ↑ Lotta – a aventura de crescer, Instituto Lotta de Cultura e Arte-Educação,
http://www.institutolotta.org/.
2. ↑ A Arte como Vida, Instituto Lotta de Cultura e Arte-Educação,
http://www.institutolotta.org/a_vida.html.
3. ↑ A obra como arte, Instituto Lotta de Cultura e Arte-Educação,
http://www.institutolotta.org/a_obra.html.
4. ↑ Morales, Lúcia Arrais (23 a 26 de agosto de 2010), Lota de Macedo
Soares e Elizabeth Bishop: projetos interrompidos, "Diásporas,
Diversidades, Deslocamentos" (PDF), Fazendo Gênero (UFSC) 9,
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277920454_ARQUIV
O_LotadeMacedoSoareseElizabethBishopprojetosinterrompidos.pdf.
5. ↑ Frias filho, Otávio (setembro 2009), "O Brasil é mesmo um horror",
Revista Piauí (O Estado de São Paulo),
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-35/correspondencia/o-brasil-e-
mesmo-um-horror.
6. ↑ Frias filho, Otávio (agosto 2009), "Foi uma revolução rápida e bonita",
Revista Piauí (O Estado de São Paulo),
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-36/correspondencia/foi-uma-
revolucao-rapida-e-bonita.

Ligações externas
• NOGUEIRA, Nadia Cristina Invenções de Si em Histórias de Amor – Lota
Macedo Soares e Elizabeth Bishop : amores e desencontros no Rio dos
anos 1950-1960. Departamento de História do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas, dezembro de
2005.
• Sugimoto, Luís (dez 2005), "Sobre as práticas amorosas entre as
mulheres", Unicamp hoje (Campinas, SP, BR: Unicamp): 12,
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/dezembro2005/ju312pag1
2.html.
• Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

LOTA DE MACEDO SOARES E ELIZABETH BISHOP: PROJETOS


INTERROMPIDOS
Lúcia Arrais Morales1

Maria Carlota Costellat de Macedo Soares faleceu aos 57 anos em 25 de setembro de 1967
na cidade de Nova York. Em vida, foi conhecida como Lota de Macedo Soares, ou Dona Lota, ou,
para os mais próximos, Lota.
No Brasil, Carlos Lacerda, ex-governador do Estado da Guanabara (1960-1965), na
administração de quem Lota de Macedo Soares trabalhou, escreve uma nota sobre sua morte. Nela,
afirma que a autoria do projeto do Parque do Flamengo pertence a ela e prossegue dizendo: morreu
sem o parque, que lhe foi tomado pela politicagem e a chicana. Mas o que fica do parque, se ele existe, se ele sobrevive,
tudo isso se deve àquela miúda e franzina criatura, toda nervos, toda luz, que se chamou Dona Lota 2.
Enquanto governador, Lacerda interveio na carta que Roberto Burle Marx publicou no jornal
O Globo em sua edição de 20 de outubro de 1965. O paisagista traduzia Lota de Macedo Soares
como uma mulher déspota, pretensiosa, usurpadora de suas idéias e acrescentando dizia: talvez seja
oportuno lembrar a você que ter o bom gosto de escolher uma colher ou uma panela finlandesa não implica em ter
capacidade criadora 3
. Lacerda vem a público, dirige-se a Burle Marx e chama atenção para o fato de
que o gabarito profissional não desobriga ninguém de ter caráter 4.
A manifestação de Burle Marx não é produto de uma idiossincrasia individual. O
pensamento não é um ato privado acontecendo no interior de um indivíduo, tampouco é o produto
exclusivo da neurologia e da fisiologia do sistema nervoso humano. Ele é construído
historicamente, mantido em sistemas sociais e aplicados a cada indivíduo. Portanto, o pensamento
humano é uma atividade social não apenas em suas origens, funções e formas, mas também em suas
aplicações. Além disso, comparado a outros atos sociais, suas conseqüências são as de mais longa
duração. Assim, quando, de um só golpe, Burle Marx junta conhecimento perceptual diferenciador
com utensílios de cozinha, ele aplica a um indivíduo, Lota de Macedo Soares, injunções que
supostamente se impunham sobre ela: pertencer ao gênero feminino implica portar um limitado
potencial criativo e ter no espaço doméstico a única chance de validação social. Ao se manifestar
nos termos em que fez e assumindo-se como superior, Burle Marx não estava sozinho. Idéias não

1
Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional. Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da
Universidade Estadual Paulista/Campus Marília.
2
- OLIVEIRA, Carmem L.Flores Raras e Banalíssimas: a história de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop. 1º
edição. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p.206.
3
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p.153.
4
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p.157.

1
Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

andam por si mesmas pelas ruas. Elas são conduzidas por indivíduos que pertencem a grupos
sociais organizados e específicos. Nelas estão presentes os elementos que produzem as conexões
para que cada um perceba a si mesmo e aos outros. Burle Marx, portanto, era a voz de um coletivo.
Além disso, seu pronunciamento era feito em um momento específico: o final da administração
Lacerda.
Lota de Macedo Soares e o governador Carlos Lacerda, além de vizinhos em Petrópolis,
eram amigos de longa data. Ao vencer as eleições, ele a convidou para ser colaboradora. Lota de
Macedo Soares escolhe uma extensa área: um aterro no bairro do Flamengo, oriundo do desmonte
do Morro de Santo Antônio cujas terras foram ali lançadas, e propõe a criação de um parque. Desde
1958, havia um projeto semelhante engavetado, Lacerda lhe dá carta branca para levá-lo à frente.
Ela estuda em profundidade o projeto e convida Affonso Reidy, um dos mais reconhecidos
arquitetos modernistas brasileiros, para juntos elaborarem uma nova proposta. Em pouco tempo,
entrega o novo projeto a Lacerda que o aprova.
Lota de Macedo Soares, cuja falta de diploma seria compensada pelo trabalho gratuito 5, constitui
pessoas gabaritadas para, sob sua coordenação, formar uma equipe, definida como Grupo de Trabalho
(GT). Ergue-se um barracão no aterro e é nele que Lota de Macedo Soares e esses profissionais
trabalham. Ethel Bauzer Medeiros, especialista em recreação, relutou em aceitar o convite para
integrar o GT, mas, segundo Oliveira: convenceu-se quando conheceu o Barracão, uma construção precária onde
Lota estava despachando, no Aterro. Lota conseguia fazer com que todos ficassem de manhã à noite naquele Barracão
desconfortável, no meio de um aterro deserto, como se estivessem no melhor ambiente de trabalho do mundo 6.

Ao longo daqueles quatro anos Lota de Macedo Soares enfrentara diversas dificuldades, mas
o crédito de confiança junto ao governador lhe garantia um importante apoio. Desse modo, a saída
de Lacerda do palácio da Guanabara a afetou bastante. Todavia, as palavras do paisagista não
estavam restritas aquele momento e aquele lugar. Através delas, emergia o tom da vida coletiva
brasileira que se ergue quando entre homens e mulheres está a pressão das circunstâncias do
conflito e da disputa.
Em 04 de junho de 1994, falece Roberto Burle Marx no Rio de Janeiro. Em 02 de Julho de
1994, o Jornal O Globo faz uma matéria sobre Lota de Macedo Soares e colhe depoimentos de
freqüentadores do Parque do Flamengo. Em um momento da reportagem o jornalista escreve:
Arnaldo de Oliveira, comerciante aposentado. Há trinta anos morando no Flamengo, fazia caminhadas diárias no
Aterro, com outros aposentados. Nunca imaginou que aquilo tivesse sido feito por uma mulher. Sempre achou que era

5
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p. 94.
6
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p.100.

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obra de Burle Marx 7. Isso significa dizer que a partir das referências de mundo que possui lhe era
impossível construir um entendimento que o levasse a presumir não ser de um indivíduo do gênero
masculino a autoria de uma obra de tamanha envergadura.
Em 2010, já se passaram 16 anos da publicação dessa reportagem. Contudo, os créditos da
autoria do projeto do Parque do Flamengo ainda são conferidos a Burle Marx e, portanto, assim
como o senhor Arnaldo, continua-se a imaginar suavemente que esse espaço urbano não foi
pensado por uma mulher. Além disso, muito menos ainda se imagina que, assim como Lota de
Macedo Soares, Roberto Burle Marx também não possuía educação formal em arquitetura. Ou seja,
nem um nem outro tinham um diploma. Além do que, desde 1932, Carlos Lacerda tinha
interrompido seu curso de Direito.
Junto a isso, outras informações sobre Lota de Macedo Soares são importantes. Entre elas, o
fato de que destacadas figuras do mundo literário, acadêmico e artístico como, por exemplo, o
escritor americano John dos Passos, o poeta americano Robert Lowell, o escritor inglês Aldous
Huxley, o escritor francês Raymond Aron, o escritor russo naturalizado americano Nicolas
Nabokov e o escultor e artista plástico americano Alexander Calder foram seus hóspedes na casa
serrana em Petrópolis.
O projeto dessa casa foi por ela pensado e, durante sua elaboração, manteve contínuas
discussões com Sérgio Bernardes, um dos notáveis da arquitetura modernista brasileira. É oportuna
a nota de que, em 1954, na II Bienal Internacional de Arquitetura para arquitetos com menos de 40 anos,
concurso presidido por Walter Gropius, a casa de Lota de Macedo Soares recebeu um prêmio como
exemplo da aplicação inovadora de princípios modernistas à arquitetura.
Fora do Rio de Janeiro, Lota de Macedo Soares também tinha trânsito no mundo intelectual.
Oliveira, ao fazer considerações sobre o livro O Grupo da escritora americana Mary MacCarthy,
amiga de Hanna Arendt, assim descreveu a reação dessa última ao conhecer Lota de Macedo
Soares: Mary MacCarthy tinha saído com Lota e Bishop duas ou três vezes, quando da passagem das duas por Nova
York em 57. Lota foi precedida de recomendações de Hanna Arendt, que ficara encantada com o brilho e o sense of
humor da brasileira 8.
Esse conjunto de indivíduos, apesar de campos discursivos diversos, estava interessado uns
nos outros e compartilhava um momento histórico. Sua presença no círculo de relações cultivado
por Lota de Macedo Soares demonstra o quanto ela experimentava o clima intelectual e cultural de
sua época, marcado pela ênfase na experimentação rigorosamente trabalhada, na preocupação com

7
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p.209.
8
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p118

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o belo, na abertura à alteridade e em uma ânsia consciente pela renovação. Contudo, Lota de
Macedo Soares não estava apenas habilitada intelectualmente para experimentar, de modo alargado,
o seu tempo. Também tinha preparo social para o diálogo e, consequentemente, para se colocar em
igualdade e exigir tratamento recíproco de seus contemporâneos.
Afora isso, Lota de Macedo Soares era eximia ao volante de seu carro conversível (um
jaguar), vestia calças jeans quando as mulheres sequer pensavam em fazê-lo, tinha aulas de pintura
com Cândido Portinari e de arquitetura com Carlos Leão. Esse último chegou a afirmar que Lota de
Macedo Soares era uma arquiteta nata9. Nas aulas de pintura, privou da companhia de Burle Marx e
do pintor Enrico Bianco o qual deu o seguinte depoimento a Oliveira:
Bianco conhecia Lota desde o tempo em que ela freqüentava o ateliê de Portinari, onde Bianco trabalhava
diariamente. Ficou contente, quando tantos anos depois, Lota o convidou para trabalhar no Aterro. Reviu a
moça petulante de cabelo cortado a la homem e olhos faiscantes de paixão naquela mulher grisalha,
empolgada, ainda segurando a bandeira do moderno. Lota se postava como um cão de guarda estético do
Aterro. Encolerizava-se com a entronização da burocracia, não se submetia ao que se quisesse interferir em seu
sonho.Era magnífica de se ver10.

Esse testemunho de Enrico Bianco sinaliza para a profundidade vigorosa do compromisso


dessa mulher com suas idéias, as quais eram idéias do seu tempo. Bianco traduz sua percepção
traçando uma linha de continuidade entre dois momentos: quando a conhece na juventude e quando
a reencontra na maturidade à frente do projeto do Parque. Usa, então, expressões que a qualificam
como alguém ainda segurando a bandeira do moderno e assumindo-se como um cão de guarda estético. Com
isso, o pintor sintetiza de modo claro a adesão dessa mulher a uma concepção de vida humana
construída nos princípios do modernismo. Afora isso, seu depoimento fornece indicações de que a
crença no indivíduo e em sua autonomia eram valores sagrados para ela.
O pensamento de Enrico Bianco adensa e torna mais complexa a seguinte indagação: em
que condições sociais Lota de Macedo Soares se constituiu? De outro modo: quem era essa mulher
que, sem marido, sem filhos, sem diploma e vivendo com outra mulher, teve, durante seis anos,
assento na administração pública de um dos mais importantes estados da região sudeste do país,
elaborou um projeto de intervenção espacial urbana para criar uma área de 1.200.000 metros
quadrados e presidiu o grupo de trabalho que materializou essas idéias?
Buscar respostas a essa pergunta permite construir um entendimento das razões pelas quais
Lota de Macedo Soares não existe na memória nacional. No espaço deste artigo, trabalha-se com a
hipótese de que gênero e homossexualidade, enquanto categorias de pensamento e, portanto,

9
- NOGUEIRA, Nadia. Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop: amores e desencontros no Rio de Janeiro dos anos
1950-1960. 2005. Doutorado. UNICAMP, Campinas, p.31.
10
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p.110.

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organizadoras da percepção de mundo e produtoras de princípios de classificação, permitiram


operacionalizar esse processo de esquecimento.

Flores Raras e Comuns: liberdade e opressão.


Todas as informações acima estão contidas no livro Flores Raras e Banalíssimas: a História de Lota
de Macedo Soares e Elizabeth Bishop de Carmem Lúcia Oliveira, publicado em 1995, um ano após a
morte de Burle Marx. Nessa obra, através de cartas, agendas, artigos em jornais e revistas,
depoimentos de artista, políticos, escritores, jornalistas, amigos e empregadas domésticas, a autora
organiza um relato biográfico sobre Lota de Macedo Soares, contido no período entre 1960 a 1967.
Nele, os eventos em torno da elaboração e execução do projeto do Parque do Flamengo, na cidade
do Rio de Janeiro, são priorizados e a vida de Lota com Elizabeth é a eles articulada. O foco é
mostrar as lutas travadas por Lota de Macedo Soares para fazer valer princípios fundados em uma
concepção de política, civilização e modernidade. Portanto, não é uma biografia sobre
homossexualidade feminina. É muito mais um documento que, ao traçar caminhos nos quais se
lançou alguém ao esquecimento, oferece ao leitor um modus operandi de assim proceder. Desse
modo, ao fazer esse recorte preciso, a autora toca no obscurecimento de uma memória coletiva,
oficial, nacional.
Neste artigo, o livro de Carmem Lúcia Oliveira funciona como referência para pensar as
condições que, por um lado, possibilitaram Lota de Macedo Soares ocupar uma posição de poder na
execução das obras do Parque do Flamengo e, por outro, agiram para seu esquecimento.
É importante reafirmar que, além da ausência de um diploma, ela não era legitimada pelo
discurso normativo que confere às mulheres a preeminência dos atributos de mães e esposas em
suas vidas e, ao fazê-lo, restringe sua presença no mundo público. Acrescido a isso, e não de menor
peso, Lota de Macedo Soares construía sua vida privada numa convivência íntima e diária com
outra mulher. Portanto, ela estava na contramão das prescrições do modelo burguês para a
existência humana. Daí, a importância do oximoro no título do livro de Oliveira: ele comunica que
liberdade e opressão estavam em coexistência.
Aqui vale a pena ressaltar as datas da reportagem do jornal O Globo e da publicação do
livro: ambas são posteriores à morte de Roberto Burle Marx. Ao que tudo indica, o fim da
existência desse indivíduo deu vida a elementos imprescindíveis para a recuperação de uma história.
Isso sugere que o impacto da morte empresta seu ambiente mental e emocional ao movimento
inesperado e não desejável da memória coletiva.

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Tecniquins 11
A explicação de que as posições políticas de Lota de Macedo Soares seja a razão para o seu
desconhecimento na cidade do Rio de Janeiro é frágil. O parque do Flamengo recebe o nome de
Parque Brigadeiro Eduardo Gomes. Confere-se homenagem a um militar que, em 1964, participou
da destituição de João Goulart da presidência e, no governo Castelo Branco, foi ministro da
aeronáutica. Se as perspectivas políticas de Lota de Macedo Soares eram à direita, o Brigadeiro
Eduardo Gomes estava na mesma direção. Portanto, sua visão política não é razão predominante.
Quando, em 1960, Carlos Lacerda assume o governo do Rio de Janeiro dá prosseguimento a
um conjunto de obras e projeta outras. Ele é o primeiro governador do Estado da Guanabara após a
transferência da capital federal para Brasília. Até então, o posto administrativo mais alto da cidade
era o de prefeito e coube a Francisco Negrão de Lima a última gestão. Naquela ocasião, Negrão de
Lima iniciou uma série de obras: abertura de avenidas, canais ao longo de rios, saneamento de
esgotos, túneis, viadutos e radiais. Nessa gestão, entre 1956 e 1958, cria a Sursan (Superintendência
de urbanização e saneamento). Nomeia como presidente o engenheiro João Augusto Penido, tendo
como seus auxiliares Ivo Magalhães e Evaldo Cravo Peixoto. Quando Lacerda assume o governo,
esses engenheiros prosseguem nesses postos e permanecem, quando Negrão de Lima ganha as
eleições, sucede Lacerda e administra a Guanabara no período de 1965 a 1970.
A Sursan ganha força no governo Lacerda. Para operacionalizar seu plano de metas cujos
destaques estavam na ampliação do sistema escolar, na modernização da infra-estrutura de
abastecimento de água e na ordenação do espaço urbano do Rio de Janeiro, Lacerda inicia uma
reforma administrativa. As secretarias de estado passam a ser classificadas entre administração
centralizada (Finanças, Economia, Educação, Administração, Saúde, Cultura, Justiça e Obras
Públicas) e descentralizada. A Sursan passou a fazer parte dessa última e ser subordinada à
Secretaria de Obras, encarregada de executar projetos de grande porte como a Adutora do Rio
Guandu, um reservatório de água de 73 metros de profundidade cavado em rocha, os túneis de
Santa Bárbara e Rebouças, Lagoa Rodrigues de Freitas e o Parque do Flamengo. Essas três últimas
obras eram prioridades para os festejos do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, em 1965,
data do término do mandato de Lacerda. Nessa ocasião, o Parque do Flamengo estava inacabado e
Lota de Macedo Soares enfrentaria o novo governador.
A Secretaria de Obras Públicas torna Lota de Macedo Soares alvo de ações que, do ponto de
vista da civilidade e da responsabilidade de um agente do poder público, atingem o limite do

11
- Ver OLIVEIRA, C.L. Op. Cit. 1995, p.139.

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inadmissível. Elas demonstram a que ponto administradores públicos chega para destruir o trabalho
e a reputação moral de alguém, visto como oponente:
Toda a equipe sabia que Dona Lota estava sob forte tensão. A visita do governador Negrão de Lima em
fevereiro não tinha alterado em nada o quadro lúgubre do Parque. Os secretários mantiveram o boicote geral e
houve mesmo alguns atos ostensivos de intimidação. Caminhões do Estado jogaram no Parque os escombros
de uma barreira que rui na Rua Santo Amaro, e o braço de uma pessoa soterrada emergiu, apontando tétrico
para um céu pererento. A Limpeza Urbana passou a despejar sistematicamente entulho na área já aterrada 12.

Descrevendo situações menos extremas, mas com o igual objetivo analítico de sinalizar para
os possíveis interesses em jogo, Oliveira apresenta, ao longo do livro, vários acontecimentos. Há,
por exemplo, o seguinte relato de uma das disputas entre Lota de Macedo Soares e engenheiros da
Sursan: Para sua exasperação, a Sursan insistia em buscar soluções menos avançadas. Se vamos usar métodos do
século XIX, não sei por que devemos gastar vinte e cinco mil contos, protestava ela 13.
Um outro momento é o texto que Lota de Macedo Soares escreveu para o jornal O Globo,
usando do direito de resposta à carta de Roberto Burle ali publicada. Ao mostrá-lo, Oliveira fornece
pistas para as razões do insulto do paisagista:
Quanto à prepotência da Presidente do GT, ela hoje manifestada, naturalmente, depois das eleições, vem do
fato de que consultada pela Sursan, no começo deste ano, opinei em ofício que procurassem outras firmas para
fornecer grama ao Parque, já que a firma Roberto Burle Marx Ltda. propunha preços astronômicos por m².
Essa “prepotência” deu ao Estado uma economia de mais e cem milhões de cruzeiros, o que naturalmente
mudou a opinião que tinha o Sr. Roberto Burle Marx do meu temperamento, antes tão apreciado14.

Algo semelhante também ocorre em sua relação com o arquiteto Sérgio Bernardes: Agora, o
que me levou às alturas é o que ele [Sergio Bernardes] cobrou pelo projeto. Sabe quanto? A
bagatela de quatorze milhões de cruzeiros 15.
Portanto, interesses econômicos, sociais e políticos de indivíduos e grupos com trânsito na
administração pública e notoriedade no cenário cultural brasileiro eram contrariados pelo modelo de
gestão de Lota de Macedo Soares. Eles tinham acesso não apenas às instâncias que encomendavam
projetos, mas também àquelas que liberavam recursos para sua execução. Nas disputas com Lota de
Macedo Soares, são eles os vencedores.
Ela pertencia à geração da primeira década do século. Nasceu em 1910. Por parte de mãe,
Adélia Costellat, vinha de uma família de grandes proprietários rurais fluminenses. Seu pai, José
Eduardo de Macedo Soares, fazia parte de família de políticos, diplomatas, advogados e juízes
paulistas. Sua rede de contatos e suas disposições sociais o habilitavam a gravitar nos centros de
poder local e nacional. Contudo, após o Estado Novo, o contexto brasileiro é outro. Getúlio Vargas

12
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p.175.
13
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p.97.
14
Ver OLIVEIRA, C.L. Op. Cit. 1995, p.155.
15
Ver OLIVEIRA, C.L. Op. Cit. 1995, p.105.

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realizou reformas institucionais de envergadura que permitiram o surgimento de uma outra elite
política e econômica. Lota de Macedo Soares herdou as terras maternas e o capital social e
simbólico paternos. Mas, em 1960, o país no qual se constituíra era outro.
Nesse novo ambiente institucional, destaca-se o lugar dos engenheiros nas dificuldades
vividas por Lota de Macedo Soares. Em 1930, houve a regulamentação desse ofício e, com isso, a
legitimação de seu discurso. A partir daí, passam a impor uma voz ativa na vida política brasileira,
quebrando o predomínio dos médicos e dos bacharéis em direito. Em 1960, sua presença está tão
consolidada que engenheiras participaram de importantes obras na cidade do Rio de Janeiro, como
por exemplo, Carmem Portinho e Bertha Leitchic. Essa última executou os cálculos de vários túneis
da cidade. Entretanto, ambas eram casadas e com filhos. Lota de Macedo Soares não tinha marido,
nem filhos, nem diploma universitário. Apesar de discreta, sabia-se de suas preferências afetivas.
Assim, instinto maternal e realização conjugal, marcas definidoras de uma noção de feminilidade,
estavam nela ausentes. Em conseqüência disso, ela não atendia à normativa disciplinadora do
modelo burguês de nação.

Pistas e subterrâneos
Lota de Macedo Soares sofreu um processo de destituição de sua autoridade em um campo
de atuação pública e profissional, no qual suas idéias e modos de operacionalizá-las editavam outros
procedimentos. Tal processo foi executado por importantes figuras do campo da arquitetura, da
engenharia, do jornalismo e da política brasileiras da época. Sua eficácia atesta-se pela ausência na
memória nacional da presença autoral de Lota de Macedo Soares em uma das mais importantes
obras de intervenção urbana da cidade do Rio de Janeiro.
Pensar esse fato é pensar uma memória coletiva. Isso implica em perceber a existência de
acontecimentos ecoando nos interesses de um grupo dominante e gerando duas possibilidades: se
positivos, realizam-se operações de estabilidade e durabilidade; se negativos, operacionaliza-se o
silêncio. Essas ações são todas levadas a cabo por atores sociais que quando exaltam, produzem
uma memória coletiva, nacional, oficial. Quando agem no sentido contrário, geram memórias de
minorias, de excluídos, de marginalizados. Nesse sentido, criam-se memórias subterrâneas16. A primeira
age para ser referência na construção do entendimento da vida social. Faz isso de modo
homogeneizante e, portanto, opressivo e destruidor. As memórias subterrâneas, por sua vez, escapando
à vigilância, operam sobre esse silêncio e, apostando que mesmo as coisas contínuas são perecíveis,

16
- POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, V. 2, nº3, 1989, p.2

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aguardam o instante para emergirem. Esse momento pode ser uma morte quando temores de
possíveis conflitos deixam de existir, o encontro de corajosos testemunhos revelando o
impronunciável, ou instantes de um sobressalto brusco e exacerbado 17.
O Parque do Flamengo é um patrimônio arquitetônico e faz parte de uma memória coletiva,
nacional, oficial. Por isso que, em insuspeito e imprevisível movimento, memórias subterrâneas estão
em ação. São elas que tomam de assalto quem caminha a pé ou de carro pelo Parque do Flamengo,
como ocorreu ao Sr. Arnaldo de Oliveira. Sua fala oferece pistas para o entendimento das razões
pelas quais Lota de Macedo Soares foi alijada da memória nacional. O testemunho desse senhor
mostra como o indizível e o inexistente são produzidos através do controle sobre uma das
coordenadas de inteligibilidade humana: a imaginação. Ao receber a nova informação de um
jornalista do O Globo, o Sr. Arnaldo suspende evidências que o dominavam. Disso resulta o
sobressalto de sua perplexidade: nunca imaginou que aquilo tivesse sido feito por uma mulher18. Seu espanto é o
de ter de se haver com um automatismo cultural no qual ser inteligente, ter voz na administração
pública e executar arrojadas obras de intervenção urbana são atributos incompatíveis com o gênero
feminino.
A fala do Sr. Arnaldo permite enxergar a imaginação como o lugar propício para a produção
da ausência e da tomada de consciência; da alienação e da consciência de si; da reificação e da
desnaturalização. Ela parece ser o lócus frágil da memória. Ao imaginar, é possível conceber uma
alternativa ao estabelecido, ao durável e ao contínuo. Desse modo, haver-se com a imaginação é
haver-se com um automatismo e, desse modo, ter a chance de poder sair de uma submissão.
No depoimento do Sr. Arnaldo de Oliveira, manifesta-se a vida coletiva brasileira na qual
uma definição de feminino está fortemente arraigada. Por meio dela, constroem-se e contam-se
histórias sobre as mulheres que fizeram ou fazem parte desse país. O silêncio sobre Lota de Macedo
Soares fortalece a crença de ser inexpressiva a atuação pública feminina. A inexistência dessa
memória gera a ausência do contraditório. Impede a referência que contesta, desfaz e põe dúvida
sobre uma definição consagrada às mulheres brasileiras.

Bibliografia
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.1º edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. 1º ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
GOMES, Ângela de Castro. Engenheiros e Economistas: novas elites burocráticas. 1º Edição, Rio
de Janeiro: FGV, 1994.

17
- Ver POLLAK, M. Op. Cit. 1989, p.4
18
- Ver OLIVEIRA, C. L. Op. Cit. 1995, p.209.

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NOGUEIRA, Nadia. Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop: amores e desencontros no Rio dos
anos 50 e 60. 2005. Tese de doutorado. Departamento de História do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas/ Unicamp, Campinas.
OLIVEIRA, Carmem L. Flores Raras e Banalíssimas: a história de Lota de Macedo Soares e
Elizabeth Bishop. 1º edição. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, V. 2,
nº 3, 1989, páginas 3 a 15.

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