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O Anfigurismo na Poesia de Ângelo de Lima
Dissertação de Mestrado em
Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea
Apresentada à
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
ORIENTADOR
Prof. Doutor Luís Adriano Carlos
Porto
2003
Agradecimentos
5
«Poesia Portuguesa de Vanguarda: 1915 e Hoje», in Estudos de Literatura Portuguesa – III,
Lisboa, Edições 70, 1988, p. 113.
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...
Isto.
Álvaro de Campos
Pára‐me de repente o Pensamento...
Ângelo de Lima
O amanhã é dos loucos de hoje.
Fernando Pessoa
LOUCURA E LINGUAGEM
Esquizofrenia e Modernidade
A nova atitude estética que surge em finais do século XIX, período que
compreende já uma parte da produção poética de Ângelo de Lima, funda-se na
heterogeneidade decorrente de um discurso críptico que rejeita as formas tradicionais
no uso da linguagem. Os poetas manifestam a partir daí uma preocupação com a
possibilidade de o mundo da interioridade ser mais autêntico do que a própria
realidade convencional, cedendo, por isso, nos termos de Mallarmé, a iniciativa às
palavras1. A poética resultante desta procura no seio do inconsciente traduz-se num
pensamento com tendência para a hiperabstracção, aproximando-se deste modo do
pensamento esquizofrénico. Em Ângelo de Lima, esta experiência é duplamente
conseguida quando o poeta se cruza com o louco na expressão desse lugar
desconhecido, tornando-o caso singular e limite na literatura portuguesa.
O sujeito alienado recorre sistematicamente a referências estranhas que deixam
o ouvinte confuso e à deriva num sistema linguístico caótico e cheio de mistérios, num
mundo independente da linguagem que atrai e inspira, por isso mesmo, o poeta
moderno. Nada complicado foi, pois, para Louis Sass, professor de Psicologia Clínica
na Universidade de Rutgers, estabelecer as afinidades entre a esquizofrenia e o
Modernismo, leia-se Modernidade, no livro que intitulou Madness and Modernism,
concluindo que a esquizofrenia, uma das formas mais comuns de que se reveste a
loucura, é uma doença com tendência a desenvolver-se no seio da cultura moderna2. A
verdade é que, em muitos aspectos, esta doença se aproxima do que de mais
sofisticado se fez na poesia do século XX, tornando-se expressão de uma linguagem
1
Stéphane Mallarmé, «Crise de Vers», in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1945, p. 366.
2
Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought,
Cambridge, Harvard University Press, 1998, p. 367.
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que deixa de ser patológica para ser subversiva, comportando uma transgressão formal
e questionando a ordem estabelecida. Na Modernidade, estes aspectos, mais do que
uma tendência, revelam-se portadores de uma identificação poética: «numa época
como esta a esquizofrenia constitui talvez a única garantia de sinceridade em
determinados domínios que, noutros tempos menos incoerentes do que o actual, eram
susceptíveis de vivências e expressões honradas, mas à margem da demência»3.
As invulgaridades lexicais dos nefelibatas, o versilibrismo e as palavras em
liberdade de Marinetti e do futurismo italiano, as experiências paúlicas,
interseccionistas e sensacionistas nos textos dos nossos modernistas, o niilismo
proclamado pelos dadaístas, a destruição dos códigos semânticos pelos surrealistas
franceses, ou a rejeição da sintaxe discursiva no Concretismo brasileiro e no
Experimentalismo português foram entendidas, nas respectivas épocas, como
composições marginais ou extravagantes de gente louca que desafiava o bom gosto
literário. Considerem-se, por agora, as resistências que se fizeram sentir, no caso
português, com o aparecimento do Simbolismo e do Modernismo, pois é em relação a
uma e a outra corrente literária que convém situar, para já, a poesia de Ângelo de Lima.
Não foi pois passivamente que o meio literário acolheu, em 1890, Oaristos de
Eugénio de Castro, poeta pioneiro do Simbolismo em Portugal. A propósito das
reacções que promoveu, refere o autor no Prefácio à segunda edição (1899):
3
Karl Jaspers, Genio y Locura (Ensayo de Análisis Patográfico Comparativo sobre
Strindberg, Van Gogh, Swedenborg y Hölderlin), Madrid, Aguilar, 1956, p. 273. Karl Jaspers, ao
reflectir sobre as relações entre a esquizofrenia e a cultura do seu tempo, refere – a propósito de Van
Gogh, embora possa ser transferido para muitos outros artistas – que o que sobressai da sua obra e o
que a torna deveras excitante é o facto de não pertencer ao nosso mundo e de provocar em nós uma
transformação (idem, p. 272).
LOUCURA E LINGUAGEM 11
4
Oaristos, Coimbra, J. França Amado Editor, 1900, p. 12.
5
Expressões críticas utilizadas respectivamente por Ramalho Ortigão (p. 15), Fialho
d’Almeida (p. 16) e Abel Botelho (p. 17), in idem.
6
Júlio Dantas, «Poetas Paranoicos», Ilustração Portuguesa, Lisboa, 19 de Abril de 1915,
p. 481. A depreciação directa de Júlio Dantas ao Orpheu e a crítica à publicidade do sucesso da revista,
quanto a ele injustificado, leva à reacção de Almada Negreiros, em Outubro do mesmo ano, com a
publicação do Manifesto Anti-Dantas, contra a geração tradicionalista burguesa, por Dantas
representada, contestando a cultura instituída num país limitado.
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7
Refere Júlio de Matos que «os psichiatras [...] teem abundante materia de estudo [...] Os
collaboradores do Orpheu [...] pertencem a uma cathegoria de individuos que a sciencia definiu e
classificou dentro dos manicomios, mas que podem sem maior perigo andar fóra d’ elles...» («Literatura
de Manicómio – Os Poetas do Orpheu – Casos de Paranoia – Tem a Palavra o Sr. Julio de Mattos», A
Capital, Lisboa, 30 de Março de 1915, p. 1).
8
Cf. Jorge de Sena, «Poesia Portuguesa de Vanguarda: 1915 e Hoje», art. cit., p. 112.
9
António Quadros, «O Movimento do Orpheu que foi? Que pretendeu? Que significou?», in O
Primeiro Modernismo Português – Vanguarda e Tradição, Lisboa, Publicações Europa-América, 1989,
p. 126.
10
Numa carta a Fernando Pessoa, datada de 13 de Janeiro de 1916, Mário de Sá-Carneiro
alude à sua própria doidice, comparando-a com a de Ângelo de Lima: «eu estou doido [...] Doidice que
pode passear nas ruas – claro. Mas doidice. Assim como o Ângelo de Lima sem gritaria»
(Correspondência com Fernando Pessoa, vol. II, Lisboa, Relógio d’Água, 2003, p. 142).
11
João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa – História de uma Geração,
Amadora, Livraria Bertrand, 1981, p. 450. Também Raul Leal foi apelidado de louco, chegando mesmo
Fernando Pessoa a ter de intervir publicamente em sua defesa (idem, pp. 537-539). De resto, esta
excentricidade de Raul Leal fora já percebida na «Novela Vertígica», do livro inédito Devaneios e
Alucinações, publicada no Orpheu 2 (1915).
12
Páginas de Doutrina Estética, Lisboa, Editorial Inquérito, 1946: carta a J. G. Simões, pp.
176-177, e carta a A. C. Monteiro, p. 261. João Gaspar Simões diz que esta mania pessoana não era
apenas resultado das leituras sobre psiquiatria, nomeadamente de Max Nordau. O crítico literário
afirmou ser pela sua histeroneurastenia, uma vez que os desvios apresentados por Pessoa eram
hereditários. Além disso, o criador dos heterónimos apresentava graves sintomas de degenerescência:
emotividade excessiva, depressões intelectuais e pessimismo agudo, completa abulia, etc. (Vida e Obra
de Fernando Pessoa – História de uma Geração, ob. cit., pp. 259-265). Cf. ainda as próprias palavras
LOUCURA E LINGUAGEM 13
Pode-se afirmar, no entanto, que a loucura destes homens era, em boa parte,
encenada e decorrente de um misto de euforia e depressão, resultante das experiências
extáticas com o ópio – como dá conta o poema «Opiário» de Álvaro de Campos – e de
todo o misticismo com que promovem as intervenções públicas. Este estado de
pseudo-loucura contrasta com a doença clinicamente confirmada com internamentos
obrigatórios sucessivos de Ângelo de Lima, que surge então como o caso mais trágico
de Orpheu, porque nele a loucura se apoderou do homem e não só da obra13.
Por conseguinte, a crítica não se fez esperar em relação ao segundo número da
revista, chamando as atenções do público e especialmente dos psiquiatras:
«Dividiram-se as opiniões sobre os moços [...] affirmando-se ora que são loucos,
varridinhos de todo, ora que apenas querem divertir-se á nossa custa e vender a
avariada mercadoria [...] soffrem quasi todos da cabeça»14. A suspeita de alienação
mental que pesava sobre os seus autores estava agora comprovada: o segundo número
do Orpheu abre com «Poemas Inéditos» de Ângelo de Lima, poeta internado em
Rilhafoles e cuja «originalidade consiste em semear de maiúsculas os versos que
compõe e que denotam um profundo agravamento de inspiração»15. A loucura real de
Ângelo de Lima só viria corroborar alguns títulos trocistas de jornais e revistas
referentes ao arrojo de poetas para quem se reclamava o hospício16. De facto, como
referiu António Cabral, a doença de Ângelo de Lima acabou por ser «profícua para os
de Pessoa (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 9, 94 e 164).
Também Mário Saraiva, através da análise dos antecedentes familiares, das cartas e da obra poética de
Pessoa, isola os sintomas e conclui que o poeta sofreu de «transtorno esquizofrénico», não tendo tempo
a doença de progredir até à dissolução (O Caso Clínico de Fernando Pessoa, Lisboa, Universitária
Editora, 1999, p. 162).
13
Clara Rocha, «Ângelo de Lima: Loucura, Criação e Marginalidade», Letras & Letras, 89,
Porto, 17 de Fevereiro de 1993, p. 10.
14
[S/A], «Artistas de Rilhafolles», A Capital, Lisboa, 28 de Junho de 1915, p. 1.
15
Ibidem.
16
Exemplos: André Brun, «Praxedes Futurista», A Capital, Lisboa, 31 de Março de 1915;
[S/A], «Maluqueira Literária», A Vanguarda, Lisboa, 6 de Abril de 1915; Júlio Dantas, «Poetas
Paranoicos», art. cit.; [S/A], «O Orpheu nos Infernos», Jornal da Noite, Lisboa, 8 de Maio de 1915;
[S/A], «Antipathico Futurismo. Os Poetas do Orpheu não Passam, afinal, de Creaturas de Maus
Sentimentos», A Capital, Lisboa, 5 de Julho de 1915; [S/A], «Muito... Paúlico – Literatura de
Manicomio Astral», O Mundo, Lisboa, 5 de Julho de 1915; [S/A], «Gente para Tudo», A Capital,
Lisboa, 6 de Julho de 1915.
LOUCURA E LINGUAGEM 14
17
«Patético versus Noético», Letras & Letras, Porto, 17 de Fevereiro de 1993, p. 11.
18
João Gaspar Simões, «Os Poetas Paúlicos: Luís de Montalvor, Ângelo de Lima, Alfredo
Pedro Guisado e Armando Côrtes-Rodrigues», in Perspectiva Histórica da Poesia Portuguesa, Porto,
Brasília Editora, 1976, p. 246.
19
Título completo: «Miseria em Lisboa – Em Rilhafolles – Os Doidos – Aspectos e Typos – O
Pastellista Monteiro e o Biblico Pinto Ramos – Um Poeta no Manicómio – A Morte duas vezes»,
O Dia, Lisboa, 5 de Setembro de 1902, p. 2.
20
«Andava nú por casa e era assim que elle pintava, acocorado sobre a cama» (Albino Forjaz
de Sampaio, «Um Poeta em Rilhafolles», art. cit., p. 212). Esta situação acentua o seu carácter invulgar
e lembra as excentricidades de William Blake, poeta romântico inglês, várias vezes surpreendido em
casa completamente nu a declamar textos de Milton e Dante, também ele desde muito novo obcecado
com visões que soube traduzir na pintura e na poesia.
21
O Auto passado pelo 2º Distrito Criminal de Lisboa (Anexo 1) refere que Ângelo de Lima
foi acusado por «crime de offensas à moral pública» por proferir em «alta voz» a palavra «pôrra».
Perante tal acusação, o arguido responde que «não se lhe podia pedir responsabilidade alguma, pois que
a palavra não é obscena e não tem culpa alguma que o povo lhe dê tal interpretação». Na «Ficha de
Identificação» do doente Ângelo de Lima, de Rilhafoles, pode ler-se que foi «Admittido» «Em virtude
de officio nº 343 do Juiz de Direito do 2º Districto Criminal de Lisboa» para «observação» (cf. Anexo 2).
LOUCURA E LINGUAGEM 15
22
Mendes Corrêa, O Genio e o Talento na Pathologia, Porto, Imprensa Portuguesa, p. 175.
Ver ainda Litoral, 4, Lisboa, Outubro-Novembro de 1944, p. 449, e Taborda de Vasconcelos, «Retrato
Psicológico de Ângelo de Lima», O Tripeiro, 5, Porto, Maio de 1968, p. 138. Segundo Júlio de Matos,
num estudo de 1884, nove em cada dez casos observados de alienação mental comprovam uma
predisposição para a influência hereditária (cf. Manual das Doenças Mentaes, Porto, Livraria Central,
1884, p. 15).
23
«Autobiografia» publicada pela primeira vez em Litoral, n. cit., p. 449. Carlos Azevedo
Coutinho Braga, na Revista da Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar, traça sucintamente a
biografia do seu primo Ângelo, aluno nº 205, referindo que a expulsão se deveu somente ao facto de ter
reprovado nos 3º e 4º anos («Responda Quem Souber», rev. cit., 15, Lisboa, Abril de 1969, p. 56).
Ângelo de Lima, porém, na já referida «Autobiografia», assume, «por tendência e um tanto por
preocupação», ser «um turbulento [...] talvez porque raciocinasse com certo valor as turbulências»
(Ângelo de Lima, Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1991, pp. 101-102).
24
«Retrato Psicológico de Ângelo de Lima», O Tripeiro, n. cit., p. 140.
25
Baseando-se na «Autobiografia» do poeta, Ana Rodrigues salienta a posição de Ângelo de
Lima na época face ao sistema político vigente, referindo no seu estudo que Ângelo «teve uma breve
incursão no meio da oposição política, envolvendo-se com grupos de conspiração republicana,
chegando mesmo a inscrever-se num Batalhão Académico (que foi proibido pelas autoridades) e a
participar nos planos que resultaram no falhado golpe republicano de 31 de Janeiro de 1891». A
investigadora destaca ainda que os escritos referentes ao projecto da Bandeira Nacional (cf. Ângelo de
Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 113-118), embora confusos, mostram-no crítico «em relação ao
modelo de democracia representativa posto em prática pela República [...] o que o aproxima do grupo
de intelectuais desiludidos com o novo regime» («Ângelo de Lima», trabalho inédito, realizado no
âmbito da disciplina de História Cultural e das Mentalidades Contemporâneas na Universidade Nova de
Lisboa, 1999/2000. Consultado em http://planeta.clix.pt/ilinx/textos/angelolima.htm, em 19 de Março
de 2003).
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26
O poema «Aos Mortos de Coolela» (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp.
40-41), publicado pela primeira vez por Alberto Moreira no Jornal de Notícias, em 16 de Dezembro de
1955, terá sido escrito no Hospital do Conde Ferreira e dá conta, além da homenagem aos seus muitos
camaradas mortos em Coolela (no combate de 1895), da sua vivência enquanto soldado amedrontado,
vigilante e perseverante, nas selvas «D’uma outra gente». Também as cartas que envia aos seus
familiares (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 105-109) são reveladoras da ansiedade
que tão frequentemente o invadia nessa aventura a África, criando-lhe mesmo alucinações e estados
oníricos tenebrosos. Cf. o poema «O Mar...» (idem, p. 90).
27
«Relatório sôbre o estado mental de Angelo de Lima», Litoral, n. cit., pp. 452-455.
Desaparecido o seu processo clínico do Hospital do Conde Ferreira, resta uma Certidão, passada pela
instituição a pedido de sua mãe, que confirma o diagnóstico (cf. Anexo 3).
28
«Relatório sôbre o estado mental de Angelo de Lima», Litoral, n. cit., p. 453. Desconhecem-
-se as pinturas de Ângelo de Lima a que terá tido acesso o Dr. Miguel Bombarda, sendo difícil confirmar
o tal «nulo valor» que diz terem. No entanto, são conhecidos os seus desenhos n’A Geração Nova, por
exemplo, cuja qualidade, sempre discutível, aponta para um domínio técnico apreendido certamente
enquanto aluno da Academia de Belas Artes, no Porto, entre 1888 e 1891. No jornal Diário da Manhã,
faz-se referência a um «papel de forrar casas, commemorativo do Centenário da India» da autoria de
Ângelo de Lima: «É, porém, de justiça que se saiba que o primoroso desenho d’aquele papel é devido ao
lapis do nosso desventurado amigo Angelo de Lima» («Angelo de Lima», Diário da Manhã, Lisboa, 26
de Maio de 1898, p. 9). Na «Ficha de Identificação» de Ângelo de Lima (cf. Anexo 2), preenchida
LOUCURA E LINGUAGEM 17
aquando da sua entrada no Hospital de Rilhafolles, pode ler-se «Profissão: desenhador particular»,
pormenor que aponta para uma determinada valorização do desenho, pelo menos em 1901, em
detrimento da poesia. No Auto do Processo Judicial, que terá levado ao seu internamento, o arguido
declarou ser aquela a sua profissão (cf. Anexo 1).
29
«Relatório sôbre o estado mental de Angelo de Lima», Litoral, n. cit., pp. 453-454. Na já
referida «Ficha de Identificação» de Rilhafoles, refere-se que Ângelo padecia de «Loucura Moral
(nervosa)».
30
«Sôbre o estado mental de Angelo de Lima», Litoral, 6, Lisboa, Janeiro-Fevereiro de 1945,
p. 222. «Esquizofrenia: do grego esquizo (fender; separar) + freno (espírito) – afecção mental
caracterizada pelo relaxamento das formas usuais de associação de ideias, baixa de afectividade,
autismo e perda de contacto com a realidade; demência precoce» (Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986, pp. 711-712). Esta doença
«diversifica-se em formas aparentemente muito dissemelhantes», podendo distinguir-se, no entanto, as
seguintes características: «incoerência do pensamento, da acção e da afectividade [...] o afastamento da
realidade com um dobrar-se sobre si mesmo e predominância de uma vida interior entregue às
produções fantasmáticas (autismo), uma actividade delirante» e a «deterioração intelectual e afectiva»
(Jean Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulário da Psicanálise, Lisboa, Editorial Presença, 1990, p. 146).
Destacam-se ainda, de uma maneira geral, as seguintes características: isolamento do sujeito para
dentro de si mesmo, alucinações, delírios, falar sozinho, desorientação espaço-temporal, amnésia e
inadaptação radical ao mundo exterior (Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, Dicionário de Psicanálise,
Mem Martins, Editorial Inquérito, 2000, pp. 209-212). Eugen Bleuler aplicou pela primeira vez o termo
«esquizofrenia», em 1908, à doença que Emil Kraepelin tinha diagnosticado e designado por «dementia
praecox» em 1896 (Louis Sass, Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art,
Literature, and Thought, ob. cit., pp. 13-14). No entanto, foi Bénédict-Augustin Morel o primeiro a
descrever esta forma de loucura como uma degeneração mental e emocional (cf. Traité des Maladies
Mentales, Paris, Masson, 1860).
LOUCURA E LINGUAGEM 18
construção gramatical das frases, características que são comuns a outros textos seus,
literários ou não, como as cartas com o projecto para a nova bandeira nacional
enviadas ao Governo da República31. Júlio de Matos explica que as palavras
inventadas aparecem neste tipo de doença psíquica como forma de expressão de
sensações e estados de espírito muito particulares e ocorrem a par das «dyslogias
verbaes», palavras estropiadas a que o doente dá um sentido seu e arbitrário32. A
inovação de palavras, quando imposta pela necessidade de exprimir concepções
extravagantes e singulares, é sintomática de alguns tipos de patologias clínicas. Estes
pormenores da escrita são indicativos do estado mental que o atormentava, pois,
parafraseando Lacan, as palavras são os primeiros sintomas das doenças psíquicas,
sintomas esses que são estruturados como linguagem33.
No texto «Eu não estou doudo», que deixou incompleto, Ângelo de Lima
declarou estar a ser manipulado pela sociedade que o abandonara. Afirma-se vítima de
maus tratos e de intrigas e justifica o seu comportamento sobre-excitado como efeito
dos venenos subministrados na comida e não, como lhe querem fazer crer,
consequência do álcool34. Na verdade, como puderam apurar António Lobo Antunes e
Inês Silva Dias, em vinte anos de internamento, o Relatório de Miguel Bombarda
constitui o único parecer médico sobre Ângelo de Lima, «o que diz bem do abandono
31
Esta disfunção linguística mais flagrante se torna num escrito inédito que sugere uma
resposta de Ângelo de Lima ao que ele diz ser um convite do Ministério da Justiça no sentido de se
fazer uma reforma na legislação portuguesa. Nesse texto de 1911, aproveitando a oportunidade para
mais uma vez criticar o excesso de zelo dos tribunais ao decretarem o internamento forçado de alguns
indivíduos em hospícios, Ângelo de Lima ultrapassa todas as regras da coerência do discurso, abusando
paradoxalmente dos conectores textuais. Se por um lado existe uma preocupação com a ligação frásica,
por outro lado também se verifica uma despreocupação ao nível semântico, fazendo aparecer frases
como «E pois ao Individuo, por que Faculte em cumprir se mande – Vivêr – sob ficção que se lhe, Em,
Pois, faça.» ou «Tambem, pois, não Invista, Acceda, senão por sufficientes que, como é legal, se
concizem nas de Instituto» (cf. Anexo 4).
32
«Perturbações da Linguagem», in Elementos de Psychiatria, Porto, Lello & Irmãos, 1911,
pp. 106-107.
33
Escritos, Editora Perspectiva, S. Paulo, 1978, p. 133. Diz ainda Lacan que o «sintoma é [...]
o significante de um significado recalcado na consciência do sujeito» (idem, p. 145).
34
Texto sem data, in Poemas in Orpheu 2 e Outros Escritos, Lisboa, Hiena Editora, 1984, pp.
41-43. Na «Autobiografia», que escreveu antes do segundo internamento, Ângelo refere que «a
sociedade portuense acordando tardia da bronquidão de sentimentos mentais legais, à sobreexcitação
prematura de uma espécie de poltronaria [...] [o] encerrou no Hospital do Conde Ferreira, aonde a
ingénua reclamação do revoltado na surpresa mais auxiliou mentalmente o só motivado encerramento,
custosamente sofrido durante 3 anos e tal» (Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 103-104).
LOUCURA E LINGUAGEM 19
em que [...] viveu durante esse lapso de tempo»35. Sem perceber a doença, aceitou a
sua condição de alienado36.
Afonso de Castro, contemporâneo no liceu de Ângelo de Lima, relembra uma
visita que fez ao malogrado poeta, em 1918, no Hospital de Rilhafoles, e descreve a
sua «figura esguia, angulosa, aprumada de imaginário príncipe exilado», com um
«rosto macerado de asceta» e os «olhos grandes, enigmáticos, possessos de todas as
miragens [...] órfãos de todas as alegrias, viúvos de todas as ilusões, pobres enfermos
de sonhar», numa «aparente serenidade, circunspecção e compostura, abstracto,
ensimesmado». Confessou-lhe Ângelo de Lima que era «assediado, todas as noites,
por flageladoras obsessões» que o obrigavam a permanecer vigilante no «sombrio
desterro». Encontrou-o Afonso de Castro «inteiramente isolado dos outros, dando a
impressão de que estava ali por equívoco, ou vítima de interdição imposta por
criminosa má fé». Refere ainda que, nessa altura, com o «espírito quase inteiramente
restabelecido», não era já a doença que o retinha naquele hospital, era a «miséria»,
pois fora esquecido pela família, que não lhe perdoara a tentativa de incesto com uma
meia-irmã37.
35
Loucura e Criação Artística: Ângelo de Lima, Poeta de «Orpheu», comunicação proferida
na Sessão Científica da Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria, Lisboa, Hospital Miguel
Bombarda, 1974, p. 11. O processo clínico de Ângelo de Lima desapareceu do Hospital Miguel
Bombarda, à semelhança do que aconteceu no Hospital do Conde Ferreira, tendo os autores da referida
comunicação tido a ele acesso em 1974. Não deixam de salientar, ainda, que o nome do doente «nem
sequer figura nos ficheiros do Arquivo...».
36
Um dos desenhos de Ângelo de Lima, reproduzido por Mendes Corrêa em O Genio e o
Talento na Pathologia, retrata dois homens diabolescos escondidos nas trevas, um a tentar alcançar a
lira na parte luminosa e o outro como que a prendê-lo na escuridão (ob. cit., p. 127). Valendo sobretudo
pela legenda que Ângelo lhe atribuiu, «Surgindo sobre o Cerebro o Censo vence com a sua presença as
trevas da loucura, que a bestialidade moral mantem» (sic), este desenho poderá ilustrar o seu estado de
inconformismo perante o internamento em Rilhafoles e a revolta contra aqueles que insistem em mantê-
-lo preso nas trevas da loucura, não o deixando alcançar a musicalidade da vida, simbolizada pela lira.
Aliás, vários documentos referem o estado inconformado de Ângelo face aos internamentos, mas basta
referir-se aqui uma Certidão passada pelo Hospital do Conde Ferreira, em 1898, onde se pode ler: «Diz
[Ângelo] que uns homens mesquinhos exercem prepotencias sobre elle» (cf. Anexo 1).
37
«Angelo de Lima», «Ângelo de Lima, O Diabo, Lisboa, 16 de Maio de 1937, p. 5. Perante
tais acusações, Maria de Nazareth, irmã de Ângelo de Lima, enviou uma carta ao jornal O Diabo, que
publicam em 13 de Julho do mesmo ano, pedindo a rectificação de algumas das inexactidões daquele
artigo, entre elas o facto de ser a doença a não permitir que Ângelo regressasse a casa e de ter tido
sempre a assistência da mãe e da irmã até aos últimos dias da sua vida. O pedido de Mª Amália de
Azevedo Coutinho de Lima, dirigido ao Director do Hospital de Alienados do Conde Ferreira, no
sentido de lhe ser passada uma Certidão justificativa da permanência de seu filho naquela instituição,
bem como das fases detalhadas de todo o tratamento até à data, são indicadoras desse cuidado, embora
só relativas ao primeiro internamento.
LOUCURA E LINGUAGEM 20
38
António Lobo Antunes e Inês Silva Dias consideram a justificação de Ângelo de Lima,
sobre a sua tentativa de incesto, de grande interesse diagnóstico: «julga o doente que o feminino de um
indivíduo é precisamente a sua irmã» (Loucura e Criação Artística: Ângelo de Lima, Poeta de
«Orpheu», texto cit., p. 11).
39
História da Loucura, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1999, p. 366. Muito pertinente é também
esta observação de Juana Elbein dos Santos: «Nomes foram dados – o bárbaro, o escravo, a mulher, a
criança, o leproso, o louco, o criminoso – para marcar a diferença» (O Emocional Lúcido, livro III, s.l.,
Edições SECNEB – Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, 2002, p. 21; sublinhado meu).
LOUCURA E LINGUAGEM 21
temível, o Louco o detém em sua parvoíce inocente»40. A loucura passa então a ser
objecto de reflexão nas várias manifestações da arte: denunciada, exposta, defende-se
e reclama estar mais perto do verdadeiro conhecimento que a razão. Recordem-se os
quadros de Jerónimo Bosch, A Cura da Loucura (1475-1480) ou A Nau dos Loucos
(1490-1500), e a obra Elogio da Loucura (1509) de Erasmo de Roterdão, duas leituras
que se complementam, porque tomam direcções diferentes: «tudo o que havia de
manifestação cósmica obscura na loucura, tal como a via Bosch, desapareceu em
Erasmo», dado que, para este humanista, a «personificação mitológica da Loucura, é
[...] apenas um artifício literário», ou «objecto de seu riso»41. Estas leituras,
sintetizadas no confronto entre a experiência trágica e a consciência crítica,
estimularam o desdobramento da loucura, a partir daqui, em «louca» e «sábia»,
mostrando que o homem «soube encontrar na loucura o caminho capaz de o conduzir
a uma sabedoria interior [...] ao realizar a denúncia, pela desrazão [...] e a transformá-
-la [...] na fonte ambígua de um conhecimento esclarecido»42.
O resultado da descoberta de uma loucura interior à razão, com Erasmo,
possibilitou a separação das duas: a loucura deixa então de ser a figura escatológica
que povoou a pintura de Bosch e o elogio faz-se à razão, condição para a qual René
Descartes contribuiu de forma decisiva. O filósofo francês seiscentista abriu o
caminho para o pensamento filosófico moderno ao postular o dualismo entre o corpo e
a mente e ao eleger a consciência como a sede da razão. A loucura passou então a ser
entendida como um desvio não consciente do indivíduo: «não se pode supor, mesmo
através do pensamento, que se é louco, pois a loucura é justamente a condição de
impossibilidade do pensamento»43.
A aniquilação da consciência, tida como a característica mais comum a todas
as formas de loucura, não deixa de promover reacções contraditórias, como destaca
Louis Sass: se por um lado pressupõe a perda das capacidades da lógica, da reflexão e
40
História da Loucura, ob. cit., pp. 20-21. O Bobo «toma lugar no centro do teatro, como o
detentor da verdade» (idem, p. 14).
41
Idem, p. 28. Cf. ainda p. 24.
42
Fernando Guimarães, «Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in Ângelo de Lima, Poesias
Completas, ob. cit., p. 12. Cf. Michel Foucault, História da Loucura, ob. cit., p. 36.
43
Michel Foucault, idem, p. 47.
LOUCURA E LINGUAGEM 22
da vontade própria, tornando-se o louco num ser estranho e absorto e, por isso,
repulsivo, por outro lado, manifesta-se peculiar ao nível do pensamento e da própria
linguagem, revelando ser um campo de possibilidades infinitas na descoberta de um
mundo até então desconhecido e, por isso, fascinante. Talvez essa razão tenha levado
Sass a afirmar que «os esquizofrénicos sentem muitas vezes que estão, não longe, mas
perto da verdade e da iluminação»44.
A poesia é o meio privilegiado da «descoberta do Logos pelo caminho do
ilogismo»45 e só através dela é possível percorrer as «vias secretas de acesso ao
sentido»46, o que só vem abonar a ideia de que o discurso da loucura e o discurso
poético permanecem frequentemente unidos na tradição ocidental. São pois muitos os
exemplos a que se poderia recorrer, mas basta pensar-se na linguagem sugestiva e
visionária, carregada de um magnetismo misterioso e alucinatório, dos contos de
E. T. A. Hoffmann; ou no Marquês de Sade e na anomalia erótica de que se reveste
toda a sua obra; nos poemas de Hölderlin, ensombrados pela sua doença depressiva;
em Kafka e nas personagens quase esquizofrénicas por ele criadas; ou então em
Alfred Jarry, o grande inspirador do teatro do absurdo, e nas inovações rebeldes que o
dão como um provável esquizofrénico; ou em Antonin Artaud e no seu desespero
existencial convertido em teatro da crueldade; ou ainda no texto de Samuel Beckett À
Espera de Godot, cheio de personagens grotescas, de repetições vazias e de palavras
vagas que formam frases obscuras; e, nas artes plásticas, na técnica pictórica
distorcida com origem na visão interior de Van Gogh e no método paranóico-crítico
de Salvador Dali, todos eles verdadeiros génios loucos que souberam explorar as
profundezas da natureza humana, dando importantes passos na evolução da arte
moderna.
44
Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought, ob.
cit., p. 6. Cf. ainda p. 15. Em História da Loucura, de Foucualt, pode ler-se: «A Loucura […] reivindica
para si mesma o estar mais próxima da felicidade e da verdade que a razão, de estar mais próxima da
razão do que a própria razão» (ob. cit., p. 15). João Lúcio, simbolista português, escreveu: «Diz, às
vezes, um louco: eu vou subir ao céu; // Tenho asas, vou voar, na terra sou proscrito; // E riem todos
dele e ninguém entendeu // Que ali há uma luz que busca o Infinito…» (Descendo, Coimbra, J. França
Amado Editor, 1901, pp. 20-21).
45
Fernando Guimarães, «Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., p. 12.
46
Luís Adriano Carlos, «Entre duas Efemérides: Evocação de Ângelo de Lima», Critério,
Série Nova, 1, Porto, Universidade Católica Portuguesa, Maio de 1987, p. 9.
LOUCURA E LINGUAGEM 23
Até ainda há bem pouco tempo poeta era quase sinónimo de louco, imagem
que se foi concretizando em importantes escritores como Poe, Nerval, Nietzsche,
Hemingway, ou Gomes Leal e Mário de Sá-Carneiro, de quem muitas vezes se disse
que determinado texto era absurdo mas genial. Esta genialidade só era conseguida, no
entender de alguns, por aqueles que haviam entrado no desatino e deixado o
inconsciente governar a sua escrita, criando os efeitos ilógicos que, de outro modo,
seriam impossíveis de atingir. Como destacou Karl Jaspers, com ou sem doença,
aqueles homens estiveram sempre na «primeira fila», pois «O espírito exprime-se por
cima da antinomia saúde-enfermidade»47.
Contraditando a ideia de que não há grande artista que não sofra de qualquer
mania e chamando a atenção para o facto de existirem poucas obras de doentes que
possam reclamar qualquer interesse artístico, Júlio Dantas publicou um estudo em
1900, com o título Pintores e Poetas de Rilhafoles, onde se pode ler:
O preconceito leigo de que não há grande poeta ou grande pintor que não tenha
«aduéla de menos» poderia dar margem a que se esperassem preciosidades da arte
de Rilhafolles. Puro engano. O grande valor do documento do louco é
exclusivamente psychiatrico. O valor esthetico é minimo ou nullo. [...] Sem base
de academias, sem technica, sem cultivo profissional, não há bom pintor nem bom
modelador [...] Evidentemente, do artista louco pode esperar-se mais do que do
louco artista. O que não quer dizer que se deva esperar muito. A ecclosão d’uma
vesania n’um homem de talento, dá immediatamente uma baixa consideravel no
valor esthetico das suas produções ulteriores.48
47
Genio y Locura: Ensayo de Análisis Patográfico Comparativo sobre Strindberg, Van Gogh,
Swedenborg y Hölderlin, ob. cit., p. 259.
48
Pintores e Poetas de Rilhafoles, Lisboa, Livraria Editora, 1900, pp. 7-8.
LOUCURA E LINGUAGEM 24
loucura49. Num dos seus mais importantes diálogos, A República, o autor, pela voz de
Sócrates, defende que os poetas imitadores devem ser expulsos da cidade ideal. Por
recorrerem à falsa imitação do mundo sensível, os poetas perturbam a razão e a
harmonia dos componentes da alma, ludibriando o público, ao contrário dos filósofos,
que, através da razão e da reflexão, pretendem alcançar o mundo perfeito dos
arquétipos. Em breves palavras, Platão rejeita a poesia em nome da moral, porque ela
não traz qualquer conhecimento nem contribui para o aperfeiçoamento humano, antes
sujeita os homens à tirania do Eros e das paixões50. Aristóteles apresenta uma
perspectiva contrária: para ele, a poesia não aparece oposta à filosofia, sendo o poeta
um sábio conhecedor do seu ofício. Além disso, o discípulo de Platão reconhece na
mimesis o modo de produção característico do poeta, porque é «congénito ao homem
imitar»51. Seguindo as pisadas aristotélicas, Horácio valoriza a prática poética,
declinando a ideia de que um certo grau de loucura aumenta o talento poético. Para
Horácio, o malus poeta não é mais do que o símbolo do génio não ensinado, para
quem a técnica em nada contribuiu52. Longino, numa síntese das teses platónica e
aristotélica que concilia metafísica e estilística, considera que o arrebatamento sublime
provém do talento inato, da paixão e do entusiasmo do poeta, excluindo a intervenção
dos deuses. Os poetas possuem uma força racional naquilo que dizem, mas estão sob o
impulso do ilógico e do irracional na forma como o dizem53.
Com o Romantismo, a figura platónica do poeta inspirado vulgarizou a
correlação entre loucura e génio artístico. Não surpreende pois que, na segunda
49
Cf. Platão, Íon, Lisboa, Editorial Inquérito, 1988, pp. 49-50. No Fedro, a poesia é
explicitamente uma mescla de inspiração, desejo e loucura: Sócrates declara que o delírio não é um
mal e que os maiores bens vêm por intermédio da loucura, «que é sem dúvida um dom divino» e «a
mais bela das artes, aquela com que se interpreta o futuro». Sócrates vai mais longe, dizendo que a
loucura, «quando encontra uma alma delicada e pura, desperta-a e arrebata-a, levando-a a exprimir-se
em odes e outras formas de poesia», pelas quais o homem «arde no desejo de voar», porque «é a melhor
de todas as possessões divinas e a de melhor origem» (Platão, Fedro, Lisboa, Edições 70, 1997, pp. 57,
58, 59 e 66, respectivamente).
50
Sobre a tirania do Eros ver Livro IX, in A República, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001. Ver também Livro III sobre a expulsão dos poetas da sociedade ideal.
51
Cf. Poética, Lisboa, INCM, 1994, p. 103 e seguintes.
52
Ao tratar a formação do poeta, Horácio mostra que na criação poética não basta ter só ingenium,
sendo preciso também ter ars (cf. Arte Poética, Lisboa, Inquérito, 1984, pp. 99-121).
53
Cf. Tratado do Sublime de Dionísio Longino, Lisboa, INCM, 1984, pp. 44-49, 57-60, 71-73,
82-83, 90-91.
LOUCURA E LINGUAGEM 25
metade do século XIX, o médico italiano Cesare Lombroso considere o génio como
uma faceta afortunada da psicose degenerativa. Numa das suas mais importantes
obras, L’Homme de Génie (1860), Lombroso encontrou características psicológicas
comuns entre o génio e o alienado54. A sua tese conquistou inúmeros seguidores, mas
outros houve que facilmente comprovaram que a fase da escrita produtiva, dos
homens a quem Lombroso se referia, antecedia os períodos mais críticos da
psicopatologia, períodos esses onde dificilmente se encontravam obras com valor
artístico. Lombroso foi ainda acusado de confundir o sistema nervoso dos homens de
génio com o próprio génio55. Aqueles que contestaram as teorias lombrosianas
insistiam, segundo André Blavier, na necessidade de a criatividade comportar a
unidade psíquica56. Além disso, as similitudes encontradas por Lombroso nesses
homens, que ele julga fazerem prova da associação entre genialidade e demência, não
poderão constituir argumento para que sejam adjudicadas gratuita e indiferentemente a
uns e a outros.
Contra Lombroso, Max Nordau, em Dégénérescence (1899), defendia que a
genialidade era um fenómeno saudável e que os modernos seriam os verdadeiros
degenerados57. A sua obra, como aliás a do psiquiatra italiano, teve grande difusão em
Portugal naquela época. Fernando Pessoa foi um dos leitores assíduos de Nordau,
acabando mesmo por encontrar nas suas palavras um conforto para os desvios
sintomáticos que vinha sentindo e expressando através de Alexander Search e que
continuariam a manifestar-se por Álvaro de Campos58. Tal como os simbolistas-
54
Lombroso apresenta um estudo sobre o comportamento psicológico de trinta e seis homens,
que entende serem seres desmesuradamente excepcionais, no sentido patológico do termo (cf. prefácio
de Charles Richet, in L’Homme de Génie, Paris, Librairie Félix Alcan, 1903, pp. VI-VII), entre eles,
Nerval, Baudelaire, Swift, Hoffmann e Schopenhauer. Sobre a teoria da «degenerescência» (cf.
«Introduction», p. XXII).
55
Por Jean Vinchon, por exemplo, em L’Art et la Folie, Paris, Librairie Stock, 1924, p. 30. Cf.
ainda o Prefácio à 3ª ed. (L’Homme de Génie, ob. cit., pp. III-IV), onde Lombroso enumera as várias
críticas que foram feitas à sua teoria.
56
Les Fous Littéraires, Paris, Éditions des Cendres, 2001, p. 23.
57
Cf. texto-introdução da obra, que Nordau dedica ao «mestre Cesare Lombroso»
(Dégénérescence, vol. I, Paris, Félix Alcan Éditeur, 1899, pp. V-VIII). Sobre a posição de Nordau, cf.
Fernando Guimarães, Poética do Simbolismo em Portugal, Lisboa, INCM, 1990, pp. 72-76.
58
Segundo Georg Rudolf Lind, «Este veredicto de degeneração deixou vestígios na obra de
Fernando Pessoa, e a criação dos heterónimos corresponde, entre outras coisas, a esta tentativa de
libertar-se do decadentismo de Alexander Search» («Fernando Pessoa e a Loucura», in AAVV, Actas
LOUCURA E LINGUAGEM 26
[...] contracção que bloqueia o meu pensamento a partir do interior, [que] o torna
rígido como num espasmo; o pensamento, a expressão pára porque o fluxo é
demasiado violento, porque o cérebro quer dizer demasiadas coisas em que pensa
simultaneamente. Dez pensamentos em vez de um apressam-se para a saída, o
cérebro vê todo o pensamento de uma só vez com todas as suas circunstâncias, e
também vê todos os pontos de vista que este pode assumir.62
62
Cit. por Louis Sass, Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art,
Literature, and Thought, ob. cit., p. 201.
63
René Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Publicações Europa-América, 1986, p. 78.
LOUCURA E LINGUAGEM 28
mergulhar na Noite, que ele descreve como «escura» e «fria». A dupla adjectivação
caracteriza algo que desconhece, enquanto sujeito que, no percurso do acto de
conhecer, sabe o ponto de partida «Pára à beira do Abismo e se demora» e deduz o
ponto de chegada «E Ele Galga... e Prossegue... sob a Espora!». É que da própria
dificuldade de conhecer surge a certeza de que o sujeito pensa mesmo quando duvida,
mesmo quando não sabe. E, se pensa, existe, ou, dito de outro modo, para pensar é
preciso existir64. Além disso, o existir não é deduzido do pensar, mas intuído nele,
pois a mente é o seu objecto privilegiado e não apenas instrumento do conhecimento.
O sujeito poético, demitindo-se da sua função de sujeito pensante, recusa o
pensamento que, por sua vez, é produto acabado dele, como ser consciente, e obriga-
-se a atingir a inconsciência, esse lado não conhecido que permite o acesso ao
verdadeiro conhecimento de si65. Por conseguinte, com «Um Olhar d’Aço», ele não se
recusa a cavalgar e a explorar os caminhos desconhecidos, enfrentando o problema de
conhecer, isto é, de pensar. O sujeito antevê uma cavalgada do consciente para o
inconsciente, dorida porque desconhecida, mas continuada porque é próprio do
homem avançar, ele que é um ser pensante, na busca incessante do auto-
-conhecimento66.
64
A recusa da dor do pensamento equivaleria a recusar o conhecimento e a própria vida. Esta
preocupação com o sentido anímico da dor é também sentida nos versos de Camilo Pessanha: «Porque
a dor, esta falta de harmonia, // [...] Sem ela o coração é quase nada: // Um sol onde expirasse a
madrugada // Porque é só madrugada quando chora» («Caminho», in Clepsidra, Lisboa, Editorial
Comunicação, 1979, p. 69).
65
A propósito, parece-me bastante pertinente a afirmação de Clara Rocha de que com o
«desvio do pensamento» vem a «possibilidade de distanciamento que permite a Ângelo de Lima assistir
ao espectáculo do seu próprio fluir psíquico» («Ângelo de Lima: Loucura, Criação e Marginalidade»,
art. cit., p. 10).
66
Não me parece, por isso, linear a ligação estabelecida por Yara Frateschi Vieira entre o
conteúdo deste poema e a melancolia, embora tendo em conta que o primeiro título com que aparece
publicado poderá precipitar-nos nessa associação. Tédio é de facto uma palavra-chave no entendimento
do conceito da melancolia; no entanto, este título em pouco ou nada interfere no conteúdo do poema e,
talvez por isso, deixou de o acompanhar na maior parte das publicações do soneto. Além disso, este
título não consta do manuscrito deixado por Ângelo de Lima, o que poderá levar a questionar a sua
autoria. Colocando então de parte o título, encontram-se no texto outros vocábulos (como paz,
esquecimento, abismo e dor) que, quando isolados, poderão remeter para a condição dita melancólica
do sujeito poético. Acontece que, neste poema, embora sendo dominantes, estas palavras não possuem
um desenvolvimento que permita aceder gratuitamente à ideia de melancolia, nomeadamente se se
pensar, como a referida autora, no sentido baudelairiano do termo. O tédio que poderá ser
experienciado pelo sujeito poético em muito pouco se compraz com o tédio enaltecido por Baudelaire
nos poemas de «Spleen e Ideal». É que o que move um e outro poeta são coisas distintas, ou melhor,
são estados distintos perante a sua existência: o primeiro traduz um mal-estar derivado da sua condição
LOUCURA E LINGUAGEM 29
de doente esquizofrénico; o segundo traduz um mal-estar resultante da sua incapacidade de, como
poeta, ser aceite perante todos. Diz a autora que o «que aproxima os textos melancólicos, em geral, do
poema de A. L. [...] é a particular vivência do tempo: a oscilação entre a exaltação e a tristeza, com
tendência à imobilização e rigidez, nulificando a dor e a esperança [...] Toda a experiência de tédio ou
de melancolia faz-se acompanhar de uma modificação na percepção do tempo» («Pára-me de repente o
Pensamento...», in AAVV, Século de Ouro – Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX,
Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002, pp. 70-74). Porém, no poema que se analisa, não me parece
haver anulação da esperança pelos motivos já expostos. Além disso, a percepção do tempo não parece
ter qualquer relevância, neste poema, para a justificação do conceito de melancolia.
67
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 47-48. O manuscrito deste poema data de
31 de Outubro de 1898.
68
«Ângelo de Lima: do Estado de Lactência ao Desmame Inconsumado», Letras & Letras, 89,
Porto, 17 de Fevereiro de 1993, p. 12.
69
L’Art et la Folie, ob. cit., p. 64. De acordo com o estudo de Freud sobre Leonard Da Vinci,
poder-se-ia incluir também o pintor italiano no grupo dos «loucos discordantes». A sua pintura traduzia,
no entender de Freud, um «fantasma da infância», que, tal como o sonho, a visão ou o delírio, possuía
um sentido, na medida em que parecia «exercer uma influência decisiva sobre a estrutura da sua vida
interior» (Sigmund Freud, Un Souvenir d’Enfance de Léonard de Vinci, Paris, Gallimard, 1927, p. 90).
LOUCURA E LINGUAGEM 30
70
La Tour de Babil – La Fiction du Signe, Paris, Minuit, 1976, p. 15.
71
Luís Adriano Carlos, «Entre Duas Efemérides: Evocação de Ângelo de Lima», art. cit., p. 9.
72
António de Navarro, «Estudo para um Ensaio – Ângelo de Lima», Presença, 31-32,
Coimbra, Março-Junho de 1931, p. 11.
LOUCURA E LINGUAGEM 31
73
Loucura e Criação Artística: Ângelo de Lima, Poeta de «Orpheu», texto cit., pp. 12-14.
74
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 36. Segundo o testemunho de Carlos
Azevedo Coutinho Braga, os poemas «Fique na Terra a triste humanidade» e «Alma que da minh’alma
se aproxima» terão sido escritos por Ângelo de Lima durante o período militar, sendo, portanto,
anteriores a «Eu ontem vi-te...» («Responda Quem Souber – Ângelo de Lima, Ex-205/1882», art. cit.,
p. 57 e seguintes).
75
De acordo com as notas de Fernando Guimarães, este poema faz parte da colecção de Carlos
Azevedo Coutinho Braga, primo de Ângelo de Lima, desconhecendo-se o jornal onde foi publicado
(Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 138).
LOUCURA E LINGUAGEM 32
poemas tenham sido compostos durante a sua estada no manicómio do Porto e que se
tenham perdido entre ofertas a familiares, a amigos ou a enfermeiros e médicos.
Entre os dois internamentos, porém, não se conhecem quaisquer referências a
publicações em jornais e revistas, com excepção para o soneto «Tédio», publicado em
Junho de 1900 no jornal O Portugal. Em 1911, Albino Forjaz de Sampaio dedica-lhe
três páginas da Ilustração Portuguesa, reproduzindo os poemas «Para-me de repente o
pensamento...», «Sozinho» e «Sonhos» e apresentando o desenho a carvão de uma
«mulher normal com cabeça de louca», que explica ser resultado do seu
aborrecimento «numa eclosão doentia [...] numa fúria»76. O certo é que, nos primeiros
tempos da sua neurastenia, «a inspiração de uma musa de vesânica tristeza estendia já
os seus véus» sobre os versos que ia escrevendo e a sua vida, ao contrário de ter sido
uma «bohemia risonha [,] foi alguma coisa de um longo calvário»77.
As perturbações linguísticas fazem-se sentir na maior parte dos seus poemas,
mas não em todos, pois os «seus versos, se têm por vezes a incoerência de estados
alucinatórios, são outras vezes perfeitamente lúcidos, bem construídos e de estranha
beleza»78. As composições referidas fazem prova desses momentos de escrita lúcida e
organizada, mas contrastam veemente com uma série de outros textos posteriores, como
«Cântico Semi-Rami», «Neitha-Kri», «Ninive» ou «Edd’ora Addio... Mia Soave!...»79,
poemas que são o resultado artístico de uma personalidade de quando em vez
assombrada por delírios poéticos reais. Verifica-se, de facto, que uma boa parte da sua
poesia está cheia de incoerências, de imagens fragmentadas, de associações impossíveis,
76
Esta figuração da própria loucura é, segundo Júlio Dantas, uma «Auto-reproducção
somatica», ou seja, a tendência de certos artistas loucos de reproduzirem nas cabeças que desenham as
suas próprias cabeças (Pintores e Poetas de Rilhafoles, ob. cit., p. 40).
77
Amadeu Cunha, «A propósito do Orpheu – O Poeta Angelo de Lima», República, Lisboa, 1
de Julho de 1915, p. 1.
78
Jacinto do Prado Coelho, «Ângelo de Lima», in Dicionário de Literatura, vol. II, Porto,
Mário Figueirinhas Editor, 1997, p. 528.
79
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 75, 78, 82 e 86, respectivamente. Dado que
estes textos integram o conjunto de poemas publicados em Orpheu 2, altura em que o poeta já está
internado em Rilhafoles, vários críticos defendem a existência de duas fases distintas na poesia de
Ângelo de Lima. Mas o problema da fixação dos textos pode, por si só, impedir a comprovação dessa
divisão, ou seja, o facto de existirem poemas dos quais se desconhece a data de composição, como
«Thora...», «Ocaso» e «Edane!», que poderiam exemplificar a fase da escrita mais agitada, bem como
de outros anteriores a essa publicação de 1915, como «Fado» e «Rhada», revela que essa leitura não
poderá ser tomada de forma linear, tornando-se de difícil verificação.
LOUCURA E LINGUAGEM 33
80
«Carta a Albino Forjaz de Sampaio», in Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 111.
81
Albino Forjaz de Sampaio, «Um Poeta em Rilhafolles», art. cit., p. 212.
82
Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought, ob.
cit., p. 175. Louis Sass destacou o exemplo de Friedrich Hölderlin, esquizofrénico durante os últimos
quarenta anos da sua vida, cuja poesia, incompreensível para alguns, mas cheia de sentido para outros,
mantinha, na maior parte, uma boa organização sintáctica e semântica. No entanto, a comunicação oral
com Hölderlin era dificultada pela utilização de uma linguagem confusa que manifestava falta de
controlo próprio (idem, p. 25).
LOUCURA E LINGUAGEM 34
83
Citada por João Lobo Antunes, «Loucura», in Os Outros em Eu, Porto, IPATIMUP, 2001,
p. 96. Maria Clotilde Almeida refere que, na esquizofrenia, existe um eu interior e um eu exterior,
«sendo o primeiro real mas dificilmente visível e o segundo irreal mas visível» («Discurso
Esquizofrénico e Estatitividade: Análise de um Caso», in AAVV, Actas do 3º Encontro da Associação
Portuguesa de Linguística, Lisboa, 1987, p. 473).
84
Silla Consoli, «Le Récit du Psychotique», in AAVV, Folle Vérité - Vérité et Vraisemblance
du Texte Psychotique, ob. cit., p. 74.
85
«L’Écriture en Folie», Poétique, 18, Paris, Seuil, 1974, p. 165. Poder-se-á descrever este
fenómeno desta forma: «As associações perdem a sua coesão. Entre os milhares de fios que guiam os
nossos pensamentos, a doença quebra, aqui e ali, de forma irregular, este ou aquele, às vezes uns tantos,
às vezes grande parte. Por este facto, o resultado do pensamento é insólito, e muitas vezes falso do
ponto de vista lógico» (Jean Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulário da Psicanálise, ob. cit., p. 147).
86
No primeiro tipo, o contexto surge como um factor indispensável e decisivo, uma vez que,
para estes doentes, as palavras dependem dele. O maior problema do segundo tipo de afásicos reside na
perda da capacidade para construírem frases, ou seja, para combinarem as entidades linguísticas, uma
vez que se perdem as regras sintácticas que organizam as palavras. Na dissolução das ligações de
coordenação e subordinação, manifesta-se uma ordem caótica do discurso com tendência a fazer
desaparecer as palavras com funções gramaticais, como as conjunções, as preposições, os pronomes e
os artigos (cf. Roman Jakobson, «Deux Aspects du Langage et Deux Types d’Aphasie», in Essais de
Linguistique Générale/1, Paris, Minuit, 1974, pp. 50-61).
LOUCURA E LINGUAGEM 35
87
Le Langage des Déments, Paris, Mouton, 1973, pp. 8-10.
88
«Ângelo de Lima: Poeta do Orpheu», Diário de Lisboa, Lisboa, 22 de Outubro de 1970, p. 4.
LOUCURA E LINGUAGEM 36
seja, à sua representação fornecida pelos sentidos89. Por outro lado, a descoberta do
inconsciente modificou a concepção clássica da linguagem e, consequentemente, do
signo: «Do sintoma ao símbolo, a psicanálise entendeu os problemas do significado»,
desenvolvendo «segundo o seu próprio ritmo empírico uma teoria do significante»90.
Jacques Lacan vai mais longe, argumentando que «Somente a psicanálise está em
condições de impor ao pensamento esta primazia demonstrando que o significante
dispensa toda cogitação»91. Para este psicanalista, a barra de separação entre
significante e significado representa o recalcamento do significado, adquirindo o
significante um valor próprio que não tinha em Saussure. É que, para Lacan, o que se
percebe não é o significado, mas sim o significante, que pela sua natureza antecipa
sempre o sentido92.
Ao considerar qualquer sintoma como linguagem, a psicanálise fez dela uma
espécie de «sistema significante [...] secundário», porque lhe sobrepôs uma
«organização própria [e] uma lógica específica»93, conferindo um novo significado ao
universo psico-linguístico do homem moderno. O equilíbrio entre significante e
significado, condição sine qua non na definição clássica de signo, é deste modo posto
em causa com o aparecimento da psicanálise e do primado funcional do significante.
Observando a prática psicanalítica freudiana, Foucault aponta as suas
incidências no campo da linguagem escrita: «propondo a tarefa de fazer falar através
89
Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1992, pp. 122 e 176-177. Se, por um lado, Saussure defende que a língua é forma e não substância
(idem, pp. 192 e 206), excluindo o objecto da relação significante/significado, por outro, pensa
justamente no referente quando afirma que dois significantes, por exemplo [kazα] e [haws], são
diferentes, mas correspondem a uma mesma ideia ou significado (cf. Julia Kristeva, História da
Linguagem, Lisboa, Edições 70, 1969, pp. 28-29).
90
Henri Meschonnic, Le Signe et le Poème, Paris, Gallimard, 1975, p. 307.
91
Jacques Lacan, Escritos, ob. cit., p. 198. Cf. p. 232.
92
No fundo, o que Lacan pretende dizer é que o significado é uma latência do significante. As
consequências do entendimento de que «o significado é imanente ao significante» são apontadas por
Mikel Dufrenne: «a significação não tem [no objecto estético] existência autónoma; ela apenas existe
no objecto estético que a revela, ela não preexiste» (Phénoménologie de l’Expérience Esthétique, Paris,
Presses Universitaires de France, 1967, p. 171-172).
93
Julia Kristeva, História da Linguagem, ob. cit., p. 309. Freud verá no significante uma
autonomia relativa, na medida em que um significado não tem que estar forçosamente incluído na
unidade morfo-fonológica. Julia Kristeva explica a posição freudiana: quando duas unidades
significantes estão condensadas num só unidade, esta pode ter um significado diferente, ou
independente, do significado dos seus componentes se isolados (idem, p. 310).
LOUCURA E LINGUAGEM 37
94
As Palavras e as Coisas, Lisboa, Edições 70, 1991, p. 409.
95
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 71 e 70, respectivamente.
96
Sigmund Freud, A Interpretação dos Sonhos, vol. II, Lisboa, Pensamento, 1989, p. 128. Mas para
Lacan, o trabalho dos sonhos, tal como o do texto poético, estrutura-se, não ao nível do signo, mas na cadeia
do significante, onde o sentido insiste. Quer isto dizer que obedece às leis do significante de um significado,
este recalcado na consciência do sujeito (cf. Escritos, ob. cit., pp. 232-240). Ver ainda p. 145.
97
O processo pode ir tão longe que «uma única palavra, se, graças às suas numerosas
conexões, for especialmente adequada, pode representar toda uma cadeia de pensamentos» (Sigmund
Freud, «O Inconsciente» (1915), in Textos Essenciais da Psicanálise - I, Lisboa, Publicações Europa-
-América, 1989, p. 180; sublinhado meu). Cf. Jacques Lacan, Escritos, ob. cit., p. 242.
LOUCURA E LINGUAGEM 38
A Hegemonia do Significante
98
Jacques Lacan, Escritos, ob. cit., pp. 123-124.
99
Tzvetan Todorov, «O Discurso Psicótico», in Os Géneros do Discurso, Edições 70, Lisboa,
1981, p. 81.
100
A «linguagem enquanto representa: a linguagem que nomeia, que delimita, que combina,
que articula e desarticula as coisas, mostrando-as na transparência das palavras. Nesse papel, a
linguagem transforma a sucessão das percepções em quadro, e, em contrapartida, recorta o contínuo dos
seres em caracteres» (Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, ob. cit., p. 350).
101
«Um signo motivado é um signo que admite a presença parcial da realidade, que incorpora
no seu significante, em vez de se contentar com a sua denotação pura e simples» (Ivan Fónagy,
«Motivation et Remotivation», Poétique, 11, Paris, Seuil, 1972, p. 414).
LOUCURA E LINGUAGEM 39
102
Cf. Maria Leonor Carvalhão Buescu, «Origem e Natureza da Linguagem. Babel ou a
Ruptura do Signo», in Babel ou a Ruptura do Signo, Lisboa, INCM, 1983, p. 256.
103
Mimologiques - Voyage en Cratylie, Paris, Éditions du Seuil, 1976, p. 11. Cf. Roman
Jakobson, «A la Recherche de l’Essence du Langage», Diogène, 51, Paris, Gallimard, 1965, p. 25.
104
Mimologiques - Voyage en Cratylie, ob. cit., p. 12.
105
Idem, p. 28.
LOUCURA E LINGUAGEM 40
106
Umberto Eco coloca uma questão óbvia, porque fundamental: «O certo é que as línguas não
podem ter nascido por convenção, já que, para se porem de acordo sobre as suas regras, os homens
necessitariam de uma língua anterior; mas se esta última existisse, porque se dariam os homens ao
trabalho de construir outras, empreendimento esforçado e sem justificação?» (A Procura da Língua
Perfeita, Lisboa, Presença, 1996, p. 326).
107
Cf. Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, ob. cit., pp. 118-121.
108
Idem, p. 131.
109
Les Fous du Langage, Paris, Seuil, 1984, p. 16.
110
Termo de Michel Pierssens (La Tour de Babil – La Fiction du Signe, ob. cit.).
111
Marina Yaguello, Les Fous du Langage, ob. cit., p. 36.
LOUCURA E LINGUAGEM 41
112
Consideremos de relance alguns fous du langage, que, a partir do Romantismo, tentaram o
aperfeiçoamento da língua: Baudelaire, ao fazer da analogia o centro da sua poética, redescobre as
correspondências universais entre as palavras e as coisas (cf. «Réflexions sur quelques-uns de mes
Contemporains: Victor Hugo», in Oeuvres Complètes, Paris, Seuil, 1968, pp. 470-471); Rimbaud
defende que só o «poeta vidente» tem o poder de «Descobrir uma língua [...] [e,] como toda a palavra é
ideia, chegará o tempo de uma linguagem universal» [cf. carta a Paul Demeny (1871),
«Correspondance», in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1951, p. 255]; Mallarmé, também ele um
visionário na reinvenção da linguagem poética, propõe a decifração dos textos através do poder
sugestivo das sonoridades (cf. «Sur l’Évolution Littéraire», in Oeuvres Complètes, ob. cit., p. 869);
Khlebnikov, o «poeta astrónomo», investe sobretudo nos efeitos sinestésicos ao nível do significante,
redescobrindo na linguagem «zaoum» ou «transracional» a potencialidade do sentido dos sons
(cf. Vélimir Khlebnikov, «Livre des Préceptes II», Poétique, 2, Paris, Seuil, 1970, e Ossip Brik, «Sur
Khlebnikov», Change, 4, Paris, Seuil, Dezembro de 1969, pp. 196-201); Breton e os seus discípulos, à
procura de uma língua que reconduza «o homem ao homem», promovem o automatismo psíquico puro
como uma fonte privilegiada da intuição e da imaginação poética (cf. André Breton, Manifestos do
Surrealismo, Lisboa, Edições Salamandra, 1993, p. 45, e Durozoi e Lecherbonnier, O Surrealismo,
Coimbra, Almedina, 1976, pp. 41-45).
113
Luís Adriano Carlos, «Poesia Moderna e Dissolução», Línguas e Literaturas, VI, Porto,
1989, p. 258. Cf. Jean-Paul Rabaté, «Lapsus Ex Machina», Poétique, 26, Paris, Seuil, 1976, p. 154.
114
Ver Luís Adriano Carlos, «Poesia Moderna e Dissolução», art. cit.
115
Eugenio Coseriu, Teoría del Lenguaje y Lingüística General, Madrid, Gredos, 1973, p. 99.
116
Julia Kristeva, Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, Paris, Seuil, 1969, p. 16.
LOUCURA E LINGUAGEM 42
[...] quando essa linguagem se mostra no estado nu, mas se furta ao mesmo tempo
a toda a significação como se fosse um grande sistema despótico e vazio, quando
o Desejo reina no estado selvagem, como se o rigor da sua regra houvesse
nivelado toda a posição, quando a Morte domina toda a função psicológica e se
mantém acima dela como a sua norma única e devastadora – então reconhecemos
a loucura tal como se dá à experiência moderna, como sua verdade e alteridade
117
Marina Yaguello, Les Fous du Langage, ob. cit., p. 116.
118
Segundo Émile Benveniste, a linguagem combina dois modos distintos de significância: o
semiótico e o semântico. O primeiro compreende o sistema onde se podem identificar os signos,
independentemente do referente; esses signos são combinados no discurso para formar significações, ou
seja, o modo semântico, este sim dependente do referente. O semiótico deve ser reconhecido; o
semântico deve ser compreendido («La Communication», in Problèmes de Linguistique Générale,
vol. II, Paris, Gallimard, 1974, pp. 63-65).
119
Marina Yaguello, Les Fous du Langage, ob. cit., p. 131.
LOUCURA E LINGUAGEM 43
[...] Eis porque a psicanálise acha na loucura por excelência – que os psiquiatras
chamam esquizofrenia – o seu íntimo, o seu mais invencível tormento; porque
nessa loucura apresentam-se, sob uma forma absolutamente manifesta e
absolutamente retraída, as formas da finitude para a qual, de ordinário, a
psicanálise avança indefinidamente (e sem fim), a partir do que lhe é voluntária-
-involuntariamente oferecido na linguagem do paciente.120
120
Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, ob. cit., p. 411.
121
Jacques Lacan, Escritos, ob. cit., p. 265; sublinhado meu.
122
Tzvetan Todorov, «O Discurso Psicótico», in Os Géneros do Discurso, ob. cit., p. 88.
123
Cf. Problèmes de Linguistique Générale, vol. I, ob. cit., pp. 49-54.
124
Cf. Stéphane Mallarmé, «Crise de Vers», in ob. cit., p. 364.
125
«A língua é um sistema em que todos os termos são solidários e em que o valor de um
resulta da presença simultânea dos outros [...] A característica mais exacta dos valores é serem o que os
outros não são» (Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, ob. cit., pp. 193-204).
LOUCURA E LINGUAGEM 44
substantivo francês «différence» com o verbo «différer», no latim «differe», com dois
sentidos, um inscrito na cadeia temporal, significando adiamento, desvio,
representação, e o outro no espaço, pelo facto de não ser idêntico, de ser outro126. Uma
vez que só significam pela diferença, os signos são sempre uma presença diferida.
O encadeamento faz com que cada elemento do significante linguístico
– fonema ou grafema – se constitua a partir da marca que existe nele dos outros
elementos da cadeia ou sistema127. Pelo recurso aos metaplasmos, entre outros
processos de decomposição ou recomposição vocabular, a linearidade do significante
é destruída em Ângelo de Lima. A sequência fónica prevista pelo código é desfeita na
operação metaplasmática em função da remotivação do signo, que assume na poesia
um valor autónomo. Por conseguinte, a «redistribuição das articulações no plano
expressivo remodela as estruturas do plano do conteúdo»128, reactivando mecanismos
de significação ilimitada.
A oposição significante/significado perde com Derrida a pertinência que havia
conquistado com Saussure, pois essa união não esgota o acto semântico, visto que o
signo vale também pelo que o rodeia na relação entre significantes.129. A significação
só é então possível se, na língua entendida como «tecido de diferenças», cada
elemento se relacionar com outra coisa, num «jogo» ou «movimento» de reenvios,
126
O sentido aparece diferido, como que adiado: «a substituição da coisa mesma pelo signo é
simultaneamente secundária e provisória: secundária em relação a uma presença original e perdida de
que o signo derivaria; provisória perante essa presença original e ausente em vista da qual o signo se
encontraria num movimento de mediação». Esse intervalo é entendido como «espaçamento», devir-
-espaço do tempo, ou temporização, devir-tempo do espaço, logo différance é simultaneamente espaço
e tempo (Jacques Derrida, «A Diferença», in Margens da Filosofia, Porto, Rés, s.d., p. 38). Cf. ainda,
do mesmo autor, L’Écriture et la Différence, Paris, Seuil, 1967, pp. 411-413.
127
Cf. Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, ob. cit., pp. 128 e 201.
128
Luís Adriano Carlos, «Metamorfoses do Signo e uma Supra-Metamorfose de Jorge de
Sena», Cruzeiro Semiótico, 2, Porto, Janeiro de 1985, p. 91. Compreende-se, pois, a posição de Roman
Jakobson ao contestar a linearidade proposta por Saussure: «Do ponto de vista estritamente
articulatório, a sucessividade de sons não existe. Em vez de se seguirem, os sons entrelaçam-se; e um
som que de acordo com a impressão acústica sucede a outro pode articular-se simultaneamente com
este último ou mesmo em parte antes dele» (Six Leçons sur le Son et le Sens, Paris, Minuit, 1976, p. 30).
129
Derrida opõe-se ao sistema binário saussuriano, dado que, neste sistema, um dos termos
domina sempre o outro, ocultando a autonomia do significante, relegado para segundo plano. O
princípio da «diferença» defendido por Saussure, como condição da significação, afecta, segundo
Derrida, a «totalidade do signo», simultaneamente a face do significado e a face do significante (cf. «A
Diferença», in Margens da Filosofia, ob. cit., p. 39).
LOUCURA E LINGUAGEM 45
130
Idem, pp. 40-42. Roland Barthes retira daí as suas consequências: uma vez que os signos
são constituídos por diferenças, o significado não pode ser analisado de um modo isolado (A Aventura
Semiológica, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 150).
131
Christian Delacampagne, «L’Écriture en Folie», art. cit., p. 162.
132
Jean-Claude Milner, L’Amour de la Langue, Paris, Éditions du Seuil, 1978, pp. 89 e 93.
133
Idem, pp. 21-24.
134
Roland Barthes, Lição, Lisboa, Edições 70, 1988, pp. 18 e 20, respectivamente.
135
«L’Écriture en Folie», art. cit., p. 167.
LOUCURA E LINGUAGEM 46
136
Cf. Jacques Derrida, Dissémination, Paris, Seuil, 1972, passim.
137
Henri Meschonnic, Le Signe et le Poème, ob. cit., p. 15.
138
Lição, ob. cit., p. 21. «A escrita acontece sempre que as palavras tenham sabor» (idem, p. 22).
139
Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita, Lisboa, Edições 70, 1973, p. 51.
140
António de Navarro, «Estudo para um Ensaio – Ângelo de Lima», art. cit., p. 12.
141
Horas, 2ª ed., Coimbra, J. França Amado Editor, 1912, p. 29.
142
«A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como
reconhecimento» (V. Chklovski, «A Arte como Processo», in AAVV, Teoria da Literatura: Textos dos
Formalistas Russos, vol. I, Lisboa, Edições 70, 1999, pp. 81 e 92-93). Cf. B. Eikhenbaum, «A Teoria
do Método Formal», in idem, p. 44.
LOUCURA E LINGUAGEM 47
143
Louis Sass, Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and
Thought, ob. cit., p. 65.
144
Paul Zumthor, «Jonglerie et Langage», Poétique, 11, Paris, Seuil, 1972, p. 323.
145
Cf. «Crise de Vers», in Oeuvres Complètes, ob. cit., p. 366.
146
Álvaro Cardoso Gomes, A Estética Simbolista, S. Paulo, Cultrix, 1984, p. 57.
LOUCURA E LINGUAGEM 48
«Je est un autre»147 tornou-se a fórmula mágica para a poesia de excesso que veio
caracterizar a poética da fragmentação, pois já em Rimbaud se manifestava a
consciência de que o ser era dual.
Esta duplicidade estaria na origem da heteronímia pessoana, mas, na poesia de
Ângelo de Lima, essa realidade-outra corresponderia, não ao resultado da
fragmentação do sujeito, mas à fragmentação da linguagem e, consequentemente, da
realidade, ou seja, àquilo que Julia Kristeva designou por «Vréel», na fusão entre o
«real» e a «verdade que os falantes procuram dizer»148. Este mot-valise, que condensa
a vérité e o réel, sem que um preceda o outro, anula a separação entre o que se quer
dizer e o dizer. E a verdade é que «Ângelo de Lima, numa guerra incessante com o
seu inconsciente, mexe com as palavras, até consequências simbólicas extremas»149.
Ivan Fónagy explica que os esquizofrénicos, ao procurarem a via que os reconduz à
realidade, «tentam recuperar os objectos perdidos com a ajuda das palavras que os
designam»150, daí a dificuldade em separar ou distinguir a palavra do objecto que
representa. Estes doentes acreditam no poder mágico dos significantes livres; para
eles, as palavras e os objectos aproximam-se e confundem-se, ou seja, as palavras
transformam-se facilmente em objectos tangíveis151. Há como que um regresso a um
estado anterior à arbitrariedade do signo, a um tempo em que as palavras eram
sentidas como sendo propriedade intrínseca do seu objecto em vez de com ele terem
apenas uma relação convencional. Para o psicótico, o significado não possui um
universo distinto do significante, pois «este não tem a função de dizer, nem mesmo,
como na poesia, de sugerir ou evocar», ou seja, «o significado não é mais do que o
ponto de vista do significante, um certo modo de perspectivar o significante»152.
147
Expressão que surge na já referida carta a Paul Demeny (Arthur Rimbaud,
«Correspondance», in Oeuvres Complètes, ob. cit., p. 254).
148
«Le Vréel», in AAVV, Folle Vérité – Vérité et Vraisemblance du Texte Psychotique, ob.
cit., p. 11. Ver ainda a perspectiva de Antoine Compagnon (idem, p. 33).
149
Almerinda Alves, «A Finitude in Ângelo de Lima», Letras & Letras, n. cit., p. 8.
150
«Motivation et Remotivation», art. cit., p. 415.
151
Um paciente de Louis Sass explicou esta dificuldade: «As palavras têm uma textura, tal como
os objectos [...] mas às vezes elas não têm a mesma textura que os objectos a que se referem» (cit. in
Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought, ob. cit., p. 51).
152
Christian Delacampagne, «L’Écriture en Folie», art. cit., p. 175.
LOUCURA E LINGUAGEM 49
Iuri Lotman perspectiva a poesia como um espelho duplo, já que esta faz
aparecer a conotação no desdobramento de imagens153. Sem suprimir as diferenças e a
distância entre as palavras e as coisas, esta duplicação especular não devolve o
modelo; além disso, «o objecto artístico só é artístico na medida em que não é real»,
pois o «retratado e o seu retrato são dois objectos completamente distintos»154. Neste
sentido, a poesia de Ângelo de Lima não funciona como um mero espelho, na medida
em que, através da própria linguagem, a sua produção reflecte uma realidade
deformada. Sendo críptica, não encontra o referente na relação linguagem/mundo.
Deve pois ser entendida como um simulacro metamorfoseador da linguagem. Este
facto aproxima-a do conceito dos «espelhos deformantes» de Umberto Eco: o prazer
que se experimenta na apreensão das formas alteradas, neste jogo de «funções
alucinatórias», é de ordem estética, porque o que se propõe é «esquecer o referente
para fantasiar o conteúdo»155.
Há, no entanto, um aspecto importante a reter: essa inadequação entre signo e
referente é também resultante do facto de o poeta moderno se confrontar com um
problema de insuficiência de palavras para abarcar uma realidade inefável e
incompreensível, daí referir-se que a arte representa uma ilusória satisfação de desejos
negados ao artista pela realidade, pois proporciona-lhe satisfações substitutivas ou
compensatórias da mesma. Só a arte poderá, portanto, comportar o interesse natural do
poeta pelo desconhecido.
Mas a desintegração da écriture en folie, operada pelos poetas modernos,
simbólica e não representativa, só pode conduzir ao «silêncio da escrita»156, porque é
uma linguagem sonhada individualmente. Se «a literatura é a exaltação da linguagem
até à sua anulação»157, a Modernidade pretende suprimir os antagonismos, não
153
«A literatura imita a realidade, cria a partir do seu material, sistémico pela sua própria
essência, um modelo de extra-sistemicidade [...] um elemento num texto artístico deve pertencer pelo
menos a dois sistemas» (A Estrutura do Texto Artístico, Lisboa, Editorial Estampa, 1978, p. 117).
154
José Ortega Y Gasset, «Arte Artístico», in La Deshumanizacion del Arte, Madrid, Revista
de Occidente, 1967, p. 23.
155
«Sobre os espelhos», in Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Lisboa, Difel, 1985, pp. 30-33.
156
Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita, ob. cit., p. 74. Cf. Octavio Paz, Los Hijos del
Limo, Barcelona, Seix Barral, 1998, p. 111.
157
Octavio Paz, idem, p. 160.
LOUCURA E LINGUAGEM 50
reduzindo, mas exagerando as oposições através da analogia, que, para Octavio Paz, é
a ponte verbal reconciliadora das diferenças. Cada texto é, ao mesmo tempo, excepção
e transgressão das estruturas poéticas e a voz do poeta vai desaparecer para fazer
renascer a voz da linguagem. Diz Octavio Paz que, independentemente do nome que
se dê à relação do poeta com a linguagem (inspiração, inconsciente, hazard,
revelação), em qualquer época que seja, o resultado é sempre a voz do outro158,
podendo cada um «encontrar na loucura, que não é dele, a própria voz que lhe
pertence»159.
O tempo moderno veicula o princípio da alteridade no seio da linguagem
poética. Depois de Babel, a língua adâmica, que era universal porque pressupunha a
supressão do outro ou da identidade de cada um, dá lugar a uma língua que é sempre
outra e que deixou de ser perfeita, pois não é mais pertença do mestre, mas dos
homens com todos os seus defeitos e diferenças. Na Modernidade, a palavra poética
passou a excluir as relações entre os homens para os confrontar com as imagens mais
verdadeiras da natureza: o transitório, o estranho, o único, o plural, a negação, a
desagregação, a dispersão e a excepção. A consciência deste facto leva Barthes a dizer
que não há humanismo poético na literatura da Modernidade, pois aquelas
características trazem consigo inevitavelmente a marca da solidão e da morte160.
A fragmentação do eu, ou a perda da noção de unidade do ser, surge na poesia
moderna porque o homem, na ânsia de se libertar da realidade, rende-se ao subjectivo
e tenta criar um material novo susceptível de funcionar como linguagem,
proporcionando um diferente tratamento da língua e uma nova percepção da realidade
interior do indivíduo. Fala-se, pois, na desumanização da arte moderna, antipopular
pelo efeito sociológico que provoca. De acordo com Ortega Y Gasset, a maioria não a
percebe, uma vez que as formas verdadeiramente artísticas, fantasias ou irrealidades,
só são toleradas quando não interferem na percepção das formas reais, o que falseia o
158
Idem, p. 224. Ver ainda p. 109. Octavio Paz vai deste modo ao encontro do que diz Jacques
Lacan: o inconsciente não é, em termos exactos, pessoal, «o inconsciente é o discurso do Outro»
(Escritos, ob. cit., p. 22).
159
Fernando Guimarães, Prefácio, in Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 13.
160
Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita, ob. cit., p. 52. Recorra-se, a título de exemplo, ao
cenário desolador do mundo fragmentado em The Waste Land (1922), de T. S. Eliot.
LOUCURA E LINGUAGEM 51
161
José Ortega Y Gasset, La Deshumanizacion del Arte, ob. cit., pp. 15-26.
162
Idem, p. 22.
163
Foi esse o significado da carta-manifesto da autoria de Antonin Artaud e Robert Desnos
(«Carta aos médicos chefes dos Asilos de Alienados», publicada em La Révolution Surréaliste, 3, de 15
de Abril de 1925), quando elogiam o «carácter perfeitamente genial das manifestações de alguns loucos
[...] e a legitimidade absoluta da sua concepção da realidade» e exigem a libertação das forças da
sensibilidade em nome dessa individualidade que é própria do homem (in AAVV, Textos de Afirmação
e Combate do Movimento Surrealista Mundial, Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1977, pp. 99-101).
Cf. texto de André Breton, «A Arte dos Doidos – A Chave dos Campos», pp. 357-361.
164
André Breton, «Manifesto Surrealista (1924)», in Manifestos do Surrealismo, ob. cit., p. 31.
165
Refere Michel Foucault: «o louco surge agora [...] portador de uma linguagem e envolvido
numa linguagem nunca esgotada, sempre retomada, e remetido a si mesmo pelo jogo dos seus
contrários, uma linguagem onde o homem aparece na loucura como sendo outro que não ele próprio
LOUCURA E LINGUAGEM 52
[...] O louco [...] é o alienado na forma moderna da doença. Nessa loucura, o homem não é mais
considerado numa espécie de recuo absoluto em relação à verdade» (História da Loucura, ob. cit., p. 520).
166
Arthur Rimbaud, «Alchimie du Verbe», in Oeuvres Complètes, ob. cit., p. 219.
167
Tzvetan Todorov, «O Discurso Psicótico», in Os Géneros do Discurso, ob. cit., p. 88.
168
Ibidem.
Though this be madness,
yet there is method in’t.
Polonius, in Hamlet
Porque, se vou ser louco, quero ser louco
com moral e siso.
Fernando Pessoa
Posso muita vez não sentir nem pensar o
que digo,
mas, o que escrevo, sinto‐o sempre,
e sempre o penso.
Ângelo de Lima
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO
1
Júlio Dantas, Pintores e Poetas de Rilhafoles, Lisboa, Livraria Editora, 1900, p. 34.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 55
2
Idem, p. 36.
3
Idem, pp. 41-42.
4
Le Langage des Déments, Paris, Mouton, 1973, p. 343. As conclusões a que, de um modo
resumido, se fará referência encontram-se entre as páginas 344 e 351.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 56
5
O primeiro problema prende-se com o facto de haver uma falha ao nível dos requisitos
mínimos numa conversação: «os esquizofrénicos falham na transição clara de tópico para tópico, o que
dá um carácter ainda mais desorganizado e incoerente ao discurso». Além disso, a sua «linguagem
poderá parecer telegráfica, como se uma grande quantidade de informação estivesse condensada nas
palavras e nas frases que continuam obscuras porque o falante não providencia o contexto necessário
para o perceber». A segunda característica da linguagem esquizofrénica prende-se com a tendência para
a perda da coerência do discurso, que é conduzido pelas qualidades acústicas (rimas ou aliterações), por
irrelevantes conotações semânticas ou ainda pelo valor dos potenciais significados das sílabas isoladas.
Os esquizofrénicos revelam-se hipersensíveis à natureza polissémica da linguagem, facto que justifica a
repetição de palavras, que apontam sempre para novos significados, tornando-a deste modo autónoma.
Por fim, a pobreza do discurso esquizofrénico, terceira característica apontada por Sass, é derivada do
facto de não haver um discurso espontâneo em grande quantidade. Além disso, é pobre também em
termos de conteúdo ou de informação que transmite, dado que a linguagem é vaga, abstracta, repetitiva
e estereotipada, reflectindo um pensamento em bloqueio (Louis Sass, Madness and Modernism:
Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought, Cambridge, Harvard University Press,
1998, p. 176 e seguintes).
6
Cf. L’Art et la Folie, Paris, Librairie Stock, 1924, p. 119. No caso da loucura discordante, o
médico francês admite que a própria discordância poderá libertar «elementos da sensibilidade capazes
de criar uma forma elementar de poesia» (ibidem).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 58
7
Idem, pp. 119-120.
8
«Le Récit du Psychotique», in AAVV, Folle Vérité - Vérité et Vraisemblance du Texte
Psychotique, Paris, Seuil, 1979, p. 74.
9
«Le Vréel», in idem, p. 12.
10
Cf. Antoine Compagnon, «Psychose et Sophistique», in idem, p. 185.
11
Ivan Fónagy, «Motivation et Remotivation», Poétique, 11, Paris, Seuil, 1972, p. 416.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 59
proliferam desde os textos de Aristófanes até aos de Michaux12. Conforme pôde aferir
Luís Adriano Carlos, na única sistematização existente da tradição do anfigurismo
literário, que, aqui, será tomada como farol e referência, esses fenómenos não ocorrem,
na literatura universal, de uma forma constante, mas cíclica13.
Jorge de Sena, num dos seus verbetes, faz corresponder o «anfiguri» a um
«Termo retórico que se aplicava a um trecho ou discurso para não ser inteligível; e [...]
a qualquer peça literária desordenadamente composta e sem claro sentido». Este efeito
era utilizado por aqueles autores clássicos que almejavam «sugerir uma peculiar
desordem do espírito, ou quando pretendiam criar um contraste entre a clareza
desejável [...] e [...] a irrupção do absurdo [...] ou, ainda, se desejavam caricaturar a
ilogicidade ou o primarismo de uma fala “não-educada”». Sena conclui assim que o
«anfiguri não era [...] exactamente uma figura ou um tropo, mas um vício ou defeito
de estilo», empregue essencialmente nas rimas, criando um efeito propositado de
nonsense14.
Verifica-se, por conseguinte, a presença de algumas características do
anfigurismo em certas tragédias clássicas e, posteriormente, nas aplicações distorcidas
do latim na poesia popular tradicional e no «latinório» dos cancioneiros medievais. A
poesia dos Goliardos constitui um bom exemplo na base da retórica anfigúrica15. Os
seus textos, enquanto promotores da dissolução dos próprios significantes, apresentam
uma grande virtuosidade técnica, trabalhada ao nível da acentuação das palavras, do
número de sílabas e da rima. A maior parte destas composições conservou-se
anónima: os seus autores mascaravam as identidades com medo de possíveis
represálias, por parte da Igreja, pelo carácter agressivo com que se insurgem face aos
12
«Sur l’Esthétique des Mots et des Langages Forgés», Revue d’Esthétique, 18, Paris, Editions
du Centre National de la Recherche Scientifique, 1965, pp. 42-43.
13
Para aprofundar esta questão, cruzar dois textos fundamentais do autor: «Trajectórias da
Ruptura: O Intertexto Deformante», in Jorge de Sena e a Escrita dos Limites: Análise das Estruturas
Paragramáticas nos «Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena», Dissertação de Mestrado, Porto,
Universidade do Porto, 1986, pp. 30-41, e «Poesia Moderna e Dissolução», Línguas e Literaturas, VI,
Porto, FLUP, 1989, pp. 253-255.
14
«Anfiguri», in Amor e Outros Verbetes, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 71. Também in Grande
Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1977, p. 285.
15
Os textos de três Goliardos conhecidos, Hugo d’Orleans (1095-1160), Arquipoeta (1130-
-1165) e Walter de Chatillon (1135-1184), fazem parte da maior e mais importante colecção de cantigas
latinas medievais, Carmina Burana, com data imprecisa entre 1225 e 1250.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 60
leitor no hermetismo dos vocábulos» utilizados nos textos simbolistas, bem como o
«estabelecimento de princípios gerais e processos técnicos de formação poética de
novas palavras»18. Os poetas simbolistas rejeitaram a poesia como mimesis do real e
trabalharam a capacidade sugestiva das palavras através do adequado uso do símbolo
(Mallarmé). A poesia passou somente a sugerir, num mundo oculto onde, através das
«correspondências» (Baudelaire), o «poeta vidente» (Rimbaud) invade o mistério das
palavras. Sendo a linguagem a maior preocupação dos autores simbolistas, o resultado
não poderia ser outro senão o carácter hermético das suas composições, carregadas de
palavras estranhas, obscuras e inacessíveis, mas autónomas pelo poder emancipador
que conferiram ao significante na experimentação das formas linguísticas.
Pela mesma altura, mas em Inglaterra, o matemático Lewis Carroll (1832-
-1898) excede-se na escrita como forma de melhor explorar o sentido, mais
concretamente ao nível das estruturas lexicais. Através do onirismo ou do lúdico, ele
cria um efeito de nonsense muito admirado posteriormente pelo Surrealismo, tendo
sido, curiosamente, traduzido em França por Louis Aragon. As teorias psicanalistas de
Freud e Jung transformaram as suas histórias de crianças em algo bem mais complexo,
tendo também sido discutidas e desenvolvidas nos estudos linguísticos. De facto,
Carroll criou um universo ficcional, muito revolucionário para a época, jogando com o
vocabulário como se de um puzzle se tratasse – matemático, é certo – pois o conjunto
das palavras, das ideias e das personagens sem qualquer sentido aparece como um
todo ordenado nos textos Alice’s Adventures in Wonderland (1865) ou em Through
the Looking Glass (1871)19. A linguagem «portmanteau» de Humpty Dumpty, que
viria mais tarde a ser explorada por James Joyce, vem provar que, para Carroll, não há
limites para o que se pode dizer ou fazer com as palavras.
Nos finais do século XIX, surgem na Alemanha as paródias grotescas de
Christian Morgenstern (1871-1914), também ele um admirável exemplo do
18
Luís Adriano Carlos, «Trajectórias da Ruptura: o Intertexto Deformante», in ob. cit., p. 39.
19
Recorra-se, como exemplo, ao poema «The Jabberwocky Song», pertencente ao último livro
citado, um texto aparentemente incompreensível, soando, no entanto, a uma composição de língua
inglesa: algumas palavras (conjunções, determinantes, pronomes, etc.) indicam as categorias
gramaticais das outras que se desconhecem (verbos, substantivos e adjectivos); daí Alice, ao ler o
poema na Casa-Espelho, referir que tem «imensas ideias» do que é dito, embora não consiga explicar
«muito bem quais são» (Lewis Carroll, Through the Looking Glass, Londres, Penguin, 1998, p. 134).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 62
anfigurismo moderno. Este poeta impôs-se pelo lirismo espirituoso dos seus textos
filosófico-místicos, ao mesmo tempo grandiloquentes e intencionalmente patéticos,
vocacionados para promover o carácter enigmático das libertinagens fonéticas. A sua
revolução foi além das estruturas formais e linguísticas, inventando línguas para
compor os seus poemas e adornando-os com a ironia e o humor. Antes dos dadaístas,
Morgenstern escreveu sem palavras, desencadeando ou contribuindo para o poder
criador e autónomo da linguagem poética20.
Mas o paradigma do anfigurismo moderno é sem dúvida a obra Finnegans
Wake de James Joyce (1882-1941). Como uma linguagem em permanente gestação, o
inglês acumula-se e mistura-se com raízes de dezenas de outras línguas, destruindo
qualquer tentativa de restruturação morfológica. As transgressões são, neste texto,
exploradas no seu limite através das oposições, das tensões, das combinações, das
dispersões, ou das permutações, condensações, mots-valise, dos jogos musicais e
gramaticais, dos trocadilhos, ou ainda pela multiplicidade de vozes que injectam
fragmentos citacionais de variadas culturas. Joyce coloca-nos perante um verdadeiro
«labirinto de lapsus encadeados», numa «maquinaria infernal», na «utopia de um
discurso duma eficácia mágica»21.
Não foi sem motivos que Jorge de Sena, no já referido verbete «Anfiguri»,
lembrou o escritor brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967) como exemplo
moderno de escrita com alcance anfigúrico. Com uma variedade de temas e de tons, os
seus contos, desde o fantástico ao anedótico, passando pelo satírico, o jocoso ou o
patético, exploram de forma singular e renovadora a linguagem literária brasileira. Este
feiticeiro de palavras, como ficou conhecido, misturava arcaísmos com regionalismos
jamais escritos e com os vocábulos de vários idiomas e fazia aparecer um vocabulário
repleto de neologismos, muitos inventados a partir da justaposição de palavras
existentes na língua portuguesa. As rimas internas, as aliterações, as sonoridades, as
20
«Morgenstern veio a ser admirado pelo seu uso do absurdo e do humor, o seu desafio às
estruturas tradicionais da linguagem [...] Mais revolucionário e subversivo da expressão do que, de
certa maneira, os dadaístas e os surrealistas o foram, [...] foi também um precursor da aplicação de
novas filosofias da linguagem à literatura. E o seu absurdo, caricaturando a sintaxe corrente, encerrava
uma profunda e sensível visão da vida» (Jorge de Sena, in AAVV, Poesia do Século XX, Porto,
Editorial Inova, 1978, p. 509).
21
Jean-Paul Rabaté, «Lapsus Ex Machina», Poétique, 26, Paris, Seuil, 1976, pp. 152, 158 e
162, respectivamente.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 63
aglutinações e as repetições vocabulares reflectem uma visão lírica. Fazendo largo uso
da semântica, da sintaxe e da morfologia populares, Guimarães Rosa não se submetia à
tirania da gramática. Em função da expressividade e da procura de uma nova forma de
expressão, a sua linguagem ilude o convencionalismo linguístico.
O próprio Jorge de Sena foi devedor do anfigurismo enquanto promotor da
«supra-metamorfose» nos seus Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, por ele
descritos como «Exemplo de linguagem anfigùricamente inventada para significar o
que seria extremamente grosseiro ou chocante para ser descrito pelos seus nomes (e
não para evitá-lo, mas para transfigurá-lo)»22. Mas, para Luís Adriano Carlos, os
Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena «desenvolvem processos que Ângelo de Lima
apenas iniciara e cujas potencialidades os modernistas nem sequer entreviram»,
nomeadamente ao nível da linearidade convencional do significante, que aparece ilesa
nos seus textos, sobretudo preocupados com os níveis sintáctico, semântico e
prosódico. Por conseguinte, Luís Adriano Carlos destaca o facto de os sonetos
senianos representarem «um preenchimento de uma lacuna do Modernismo português,
constituindo a desforra de um dos seus cursos traídos»23. Numa breve reflexão crítica,
Jorge de Sena explica os objectivos na base da elaboração daqueles sonetos:
22
«Anfiguri», verbete cit., p. 72.
23
«Trajectórias da Ruptura: O Intertexto Deformante», in ob. cit., p. 42. Luís Adriano Carlos
remete para Jorge de Sena quando ele diz que «os sonetos são uma tentativa para retomar em Ângelo de
Lima [...] um dos cursos traídos do modernismo português» (Jorge de Sena, «Post-fácio – 1963», in
Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 159).
24
Jorge de Sena, «Post-fácio – 1963», in ob. cit., pp. 158-159.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 64
25
Cf. Luís Adriano Carlos, «Metamorfoses do Signo e uma Supra-Metamorfose de Jorge de
Sena», Cruzeiro Semiótico, 2, Porto, Janeiro de 1985, pp. 88-99, e «Quatro Sonetos e um Labirinto»,
Colóquio/Letras, 125/126, Julho-Dezembro de 1992, pp. 97-104.
26
«Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 15.
27
«Quaestio de Ligibilibus aut Legendis Scriptis», Poétique, 43, Paris, Seuil, Setembro de
1980, p. 282. Segundo Ferraris, existem dois tipos de ilegibilidade: uma «material», relativa a um texto
que não somos capazes de ler, no sentido de descodificar; e uma «segunda», que depende da
semanticidade do texto e dos valores inscritos nas relações entre significado e significante (ibidem).
Luís Adriano Carlos traduz por «legibilidade» e «lisibilidade» as duas situações que, em francês, são
sustentadas pela mesma palavra («lisibilité»). A seu ver, um manuscrito em mau estado é ilegível, mas
não é ilisível, uma vez que esse estado é já um significante, veiculando um sentido (cf. «Entre Dois
Limites: A Poiética do Texto», in Jorge de Sena e a Escrita dos Limites: Análise das Estruturas
Paragramáticas nos «Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena», ob. cit., p. 82). Cf. Philippe Hamon
sobre a delimitação dos graus de lisibilidade («Note sur les Notions de Norme et de Lisibilité en
Stylistique», Littérature, 14, Paris, Larousse, Maio de 1974, p. 121).
28
Como os anagramas e os paragramas nos textos de poetas gregos e latinos (Homero,
Virgílio, Séneca, Horácio e Ovídio, entre outros), pesquisados por Ferdinand de Saussure em 99
cadernos (cf. Jean Starobinski, Les Mots sous les Mots, Paris, Gallimard, 1971). Outros exemplos,
como os labirintos, os acrósticos, os cronogramas e os lipogramas, surgem das pesquisas de Ana
Hatherly na poesia portuguesa seiscentista e setecentista (cf. A Experiência do Prodígio: Bases
Teóricas e Antologia de Textos-Visuais Portugueses dos Séculos XVII e XVIII, Lisboa, INCM, 1983, e
A Casa das Musas, Lisboa, Editorial Estampa, 1995).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 65
utilização foi feita de forma tão recorrente e consciente. Por conseguinte, esse recurso
na Modernidade torna-se ele próprio um significante, pois, ao mesmo tempo que
dificulta a decifração, transmite uma significação, manifestando-se por isso como um
processo de ilisibilidade e lisibilidade.
Entre o lisível e o ilisível, o texto moderno é entendido também como
escrevível29, uma vez que, como já foi referido no capítulo anterior, o leitor deixou de
ser um consumidor para participar na criação do próprio poema. A poesia de Ângelo
de Lima exige um trabalho por parte do leitor na consequente reconstrução textual,
nomeadamente no preenchimento de espaços em branco criados pela decomposição
sígnica30. Pelo seu carácter polissémico e polifónico, o «objecto poético» amplia-se
sob a forma do jogo das associações livres, na «abertura» do significante e do
significado, pelo que os limites da linguagem só serão estabelecidos pela performance
do leitor.
Intersecções e Anamorfoses
29
Jean-Paul Rabaté, «Lapsus Ex Machina», art. cit., p. 171.
30
Como observa Umberto Eco, o texto literário «é uma máquina preguiçosa que requer do
leitor um árduo trabalho cooperativo para preencher espaços do não-dito e do já-dito, por assim dizer,
deixados em branco» (Leitura do Texto Literário – Lector in Fabula, Presença, Lisboa, 1983, p. 27;
sublinhado meu). Cf. Luís Adriano Carlos, a propósito dos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena:
«Cabe [então] ao leitor a função de pôr o texto a trabalhar, reactivando os operadores textuais e
estabelecendo níveis de articulação possíveis entre o sistema produtivo e o campo de leitura de que faz
parte, de modo a permitir o funcionamento dos circuitos de sentido» («Metamorfoses do Signo e uma
Supra-Metamorfose de Jorge de Sena», art. cit., p. 92).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 66
31
Gérard Genette, Figures II, Paris, Seuil, 1969, p. 146-148. Ivan Fónagy assinala que «Um
signo motivado é um signo que admite a presença parcial da realidade, que incorpora uma parcela dessa
realidade no seu significante, em vez de se contentar com a sua denotação pura e simples». Por
conseguinte, «jamais poderá pretender a transparência de um signo imotivado» («Motivation et
Remotivation», art. cit., p. 414).
32
«Entre duas Efemérides: Evocação de Ângelo de Lima», Critério, Série Nova, 1, Porto,
Universidade Católica Portuguesa, Maio de 1987, p. 9. Cf. «Elegia da Loucura», Apeadeiro, 2, Vila
Nova de Famalicão, Quasi Edições, Primavera de 2002, p. 136.
33
Julia Kristeva, Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, Paris, Seuil, 1969, p. 41. Ver
também p. 180, sobre o entendimento da linguagem poética como uma «infinidade real impossível de
ser representada». Refere Michel Foucault: «a palavra não deixa de possuir um sentido e de poder
“representar” alguma coisa no “espírito” de quem a utiliza ou ouve; mas esse papel já não é constitutivo
da palavra no seu próprio ser, na sua arquitectura essencial, no que lhe permite tomar lugar no interior
de uma frase e de nela se ligar a outras palavras mais ou menos diferentes» (As Palavras e as Coisas,
Lisboa, Edições 70, 1991, p. 322).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 67
o texto transforma automaticamente o real, daí Julia Kristeva dizer que o texto está
orientado duplamente em função da língua e da sociedade34.
Antes de Babel, a linguagem transportaria em si mesma a essência do
significado. Mas, com o castigo babélico, «a torre metamorfoseia-se em poço»35 ao
impor a relação arbitrária entre a palavra e o seu significado, fazendo questionar a
comunicabilidade ou a transparência da linguagem. Em Through the Looking Glass,
Lewis Carroll aborda a questão da arbitrariedade do significante, problematizando a
própria legitimidade do acto de nomear:
«Quando uso uma palavra», disse Humpty Dumpty com desdém, «ela significa
exactamente o que eu quero que ela signifique – nem mais nem menos.»
«A questão», disse Alice, «é se tu podes fazer com que as palavras tenham
significados tão diferentes!»
«A questão é», disse Humpty Dumpty, «quem deve ser o mestre [...]»36.
34
Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, ob. cit., p. 10.
35
Maria Leonor Carvalhão Buescu, «Origem e Natureza da Linguagem. Babel ou a Ruptura do
Signo», Babel ou a Ruptura do Signo, Lisboa, INCM, 1983, p. 260. Cf. Henri Meschonnic, Le Signe et
le Poème, Paris, Gallimard, 1975, p. 65.
36
Ob. cit., p. 186.
37
Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1992, pp. 124-127.
38
Trata-se da dupla articulação da linguagem: a primeira relativamente à relação que as
palavras estabelecem entre si num determinado contexto sintáctico; a segunda, na organização interna
das próprias palavras, ou seja, na combinação de unidades mais pequenas, letras ou fonemas (André
Martinet, Elementos de Linguística Geral, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1991, pp. 18-19). Cf.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 68
42
Nos poemas «Fado», «Oh Céu», «Thora...», «Epitáfio», «Cântico Semi-Rami» e «Neitha-
-Kri» (in Poesias Completas, ob. cit., pp. 60, 64, 67, 70, 77 e 79, respectivamente).
43
Fernando Guimarães, Linguagem e Ideologia, Porto, Editorial Inova, 1972, p. 112. Cf. pp.
116-118.
44
Também em Ângelo de Lima o equilíbrio musical do verso justifica a utilização de termos
com ausência de sentido. Esta característica poderá, a meu ver, ajudar a compreender a inclusão de
Ângelo de Lima, reclamada por alguns críticos literários, no grupo dos simbolistas portugueses.
45
Psalmo, de acordo com o Novo Diccionario da Lingua Portugueza (1836), de José da
Fonseca, é um termo antigo que significa cântico, o mesmo que salmo.
46
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 37.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 70
A leitura isolada do verso faz crer que «inora» está ligado a «bálsamo», significando
algo próximo de inodoro, portanto, que não exala cheiro: «[...] o teu olhar [não exala
o] bálsamo [que eu exalo]». No entanto, a palavra aparece no Novo Dicionário da
Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, como termo antigo e
popular que significa ignora, relativo a que não sabe ou a que desconhece algo,
também possível no contexto do poema: «[...] o teu olhar [...] [desconhece] [...] [que]
sobre este seio [...] Remorde, há muito, o cancro de um anseio». Neste caso, tal como
com os «vocábulos raros», é a própria palavra que manifesta o desejo de concentrar
vários significados. A verdadeira descodificação da mensagem só se torna então
possível se se atender ao resultado dessa amálgama poética, que acaba por, à sua
maneira, fazer aparecer uma palavra nova ou, melhor ainda, um conceito novo,
inatingível na associação directa entre significante e significado.
A par de criações vocabulares a partir do latim, encontra-se também na poesia
de Ângelo de Lima o recurso a algumas palavras latinas: com ligeiras alterações
gráficas como «Vésper» («A meu pai»), sem acento no latim, significando Vénus ou
estrela da tarde, ou «Miser» («Edane!»), no latim ‘misere’, que significa infeliz, ou
ainda «Adolida», do latim ‘dolidus, a, um’, para dolorosa; outras sem alterações,
como «Liber» («Thora...»), significando livre, e «Fulgur» («Oh Vida») para raio ou
brilho; e algumas apresentando uma evolução dentro das regras gramaticais da língua
latina para o português como em «Ínscios» («Não tinha»), proveniente de insciens.
Estas palavras, alteradas somente na face do significante, limitam-se a veicular o
significado previsto, não fazendo pois parte do rol das inovações vocabulares que
prevêem a alteração complementar do significado. No entanto, criam alguns impasses
na interpretação imediata, uma vez que são de utilização rara, contribuindo desta
forma para o hermetismo dos textos.
Paralelamente, surgem nos poemas de Ângelo de Lima os termos
desconhecidos, que aparecem misturados com vocábulos perfeitamente legíveis e
reconhecíveis na língua portuguesa. E é de facto ao nível das mutações na ordem do
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 71
47
Estas ocorrências permitem-me afirmar que a poesia de Ângelo de Lima faz aparecer
predominantemente o neologismo «activo». Séglas distingue o neologismo passivo, resultado de um
simples automatismo psicológico, do neologismo activo, criado intencionalmente com a vontade de
exprimir uma ideia nova relativamente clara (cf. André Blavier, Les Fous Littéraires, Paris, Éditions
des Cendres, 2001, p. 125).
48
Em «Oh Vida» (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 71), no verso «Imaginar
Fulgur dos Céus da Glória!...», o poeta expõe uma outra subversão do termo, destacando-se ainda a
ausência do artigo definido antes do substantivo: «Imaginar o Fulgor dos Céus da Glória» seria então a
expressão morfossintáctica aceitável. Repare-se ainda que, ao verificar-se a aplicação correcta em
«Têm um fulgor estranho singular // Os teus olhos Febris... Incendiados!...» (cf. «Olhos de Lobas!», p.
54), descarta-se a possibilidade de haver um desconhecimento da grafia por parte do autor.
49
Para Roman Jakobson, a «função poética projecta o princípio da equivalência do eixo da
selecção sobre o eixo da combinação» («Linguistique et Poétique», in Essais de Linguistique
Générale/I, Paris, Minuit, 1974, p. 220). É nesta perspectiva que Henri Meschonnic define o trabalho
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 72
poético da Modernidade «como a projecção da homonímia sobre a sinonímia» (Le Signe et le Poème,
ob. cit., p. 15).
50
Este fenómeno pressupõe, segundo Manuel Rabanal Alvarez, a dicção simplificada e
consiste «em escrever uma só vez o(s) caracter(es) que deveriam repetir-se» (Voces Griegas con
Eliminacion Silabica – Estudio sobre las Formas Haplológicas y Hapaxépicas del Vocabulario Griego,
Universidade de Santiago de Compostela, 1974, p. 8). O autor faz ainda referência a outras
denominações mais modernas para a «haplografia», como «superposição silábica» ou «dissimilação
silábica» (cf. pp. 10-11).
51
Cf. Roman Jakobson, «Linguistique et Poétique», in ob. cit., p. 218.
52
Cf. Novo Diccionario da Lingua Portugueza, ob. cit.
53
Luís Adriano Carlos, a propósito de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, «Metamorfoses
do Signo e uma Supra-Metamorfose de Jorge de Sena», art. cit., p. 90.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 73
Se, por um lado, a neologia dá lugar à criação poética, por outro, face à
violação do sistema linguístico, promove um hermetismo textual, impossibilitando a
comunicação directa. É o caso da neologia fonológica, que, segundo Ieda Maria
Alves, supõe a criação de um item léxico cujo significante seja totalmente novo, isto
é, tenha sido criado sem qualquer apoio numa palavra já existente54. Este tipo de
neologismo é extremamente raro, ocorrendo, na maior parte das vezes, uma só vez e
num único texto. Quando assim é, deve entender-se como uma «palavra forjada»55, ou
seja, uma palavra engendrada com o intuito de abarcar uma realidade nova, também
ela inexistente. Encontra-se nos poemas de Ângelo de Lima o emprego destes
vocábulos, denominados hapax legomena56, cujo significado se desconhece e
dificilmente se adivinha através do contexto. No poema «Ocaso»57, «Cocital»
exemplifica o hapax legomenon:
Este termo pode ter sido forjado, eventualmente, pelas necessidades da sonoridade do
verso e da rima: «Cocital» surge para rimar com «Divinal» e «Fatal», cumprindo assim,
nos tercetos do soneto, o esquema rimático CDC // DCD, apregoado pela lição clássica.
Em «Edane!» e «Neitha-Kri»58 surgem novamente dois vocábulos de origem e
significação desconhecidas: «Erta» e «Seter». A justificação para o emprego de uma
54
Neologismo – Criação Lexical, São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 11. Cf. Louis Guilbert,
«Grammaire Générative et Néologie Lexicale», Langages, 36, Paris, Didier/Larousse, Dezembro de
1974, p. 34.
55
Etienne Souriau: «uma palavra forjada é linguisticamente aquilo que os filólogos chamam
hapax» («Sur l’Esthétique des Mots et des Langages Forgés», art. cit., p. 45).
56
No singular «hapax legomenon», que significa uma só vez, «utilizado como substantivo [...]
para designar uma palavra, uma forma, um emprego de que só se aponta um exemplo» (cf.
J. Marouzeau, Lexique de la Terminologie Linguistique, Paris, Librairie Orientaliste Paul Geuthner,
1943, p. 105). Alexandre do Amaral adverte para o facto de que o significante tem de ser inédito
também, não estando incluídas nos hapax legomena aquelas palavras conhecidas mas usadas com um
sentido novo (Dois Dedos de Conversação sobre Palavras Reiterantes & alguns Hapax Legomena –
Estudo Semântico, sep. Revista Estudos, Coimbra, 1949, p. 16).
57
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 69.
58
Idem, pp. 73 e 80, respectivamente.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 74
59
«Motivation et Remotivation», art. cit., p. 430.
60
«Ângelo de Lima», O Diabo, Lisboa, 16 de Maio de 1937, p. 5.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 75
Alguns dos neologismos lexicais criados por Ângelo de Lima passam por
processos normais de derivação à procura de uma forma fonética e ortográfica em
harmonia com a língua onde o poeta pretende integrá-las. Nos seus poemas,
verificam-se certos vocábulos que originam uma certa indeterminação do sentido: os
afixos utilizados pelo poeta, embora reconhecidos na nossa língua, aparecem
combinados com palavras, também elas com valor autónomo, resultando desse
processo um significante novo com um significado imprevisível, isto é, uma totalidade
sígnica não prevista no sistema. Destacam-se alguns exemplos de termos formados:
61
Louis Guilbert, «Grammaire Générative et Néologie Lexicale», art. cit., p. 38.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 76
Estas deformações, que acabam por ser palavras plausíveis, isto é, conformes
com a estilística geral da língua que lhes serve de veículo, criam efeitos estéticos
variados. O neologismo sintáctico estabelece relações ao nível do sintagma: o termo
«Improfundável» («Deus») exemplifica a combinação de três elementos «solidários»,
dado que tanto o prefixo como o sufixo, tomados isoladamente, são inexistentes e só a
série de termos com afixos comuns (por exemplo ingerir, importar e louvável,
durável) é que lhes confere um lugar na língua. Segundo Saussure, as relações
sintagmáticas, derivadas do encadeamento de palavras no discurso, dão-se in
praesentia: «o valor de um termo surge da oposição entre ele e o que o precede, ou
que se lhe segue, ou ambos»62. Mas, de acordo com o linguista suíço, o sentido de
uma palavra é determinado, simultaneamente, pela influência das palavras que a
rodeiam e pela evocação das que teriam podido tomar o seu lugar. Sendo a língua uma
combinatória de «redes de significação», além das «relações sintagmáticas», Saussure
destaca também as «relações associativas», que unem termos in absentia através do
processo de selecção e, correlativamente, de substituição, como se se tratasse de uma
mnemónica virtual63.
Afigura-se também importante mencionar os neologismos semânticos, embora
não tenham, no autor em estudo, a relevância dos outros tipos de neologia. Ademais,
62
Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, ob. cit., p. 208.
63
«Na língua, tudo se reduz a diferenças, mas tudo se reduz também a associações» (Ferdinand
de Saussure, idem, p. 215). Sobre estas «redes de significação», ver Marcel Cressot, O Estilo e as suas
Técnicas, Lisboa, Edições 70, 1980, p. 62.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 77
64
Louis Guilbert, La Créativité Lexicale, ob. cit., p. 59, e «Grammaire Générative et Néologie
Lexicale», art. cit., pp. 34-35 e 43. Cf. Jacqueline Bastuji, «Aspects de la Néologie Sémantique»,
Langages, 36, Paris, Didier/Larousse, Dezembro de 1974, pp. 6-7.
65
Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita, Lisboa, Edições 70, 1973, pp. 166-167. À mesma
conclusão chega Umberto Eco: «No processo de semiose ilimitada cada significado pode tornar-se o
significante de um outro significado, mesmo do seu próprio significante anterior, e acontece até que um
objecto (um referente) seja semiotizado e se torne signo» («Geração de Mensagens Estéticas numa
Língua Edénica», in Obra Aberta, Lisboa, Difel, 1962, p. 309).
66
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 51.
67
Ieda Maria Alves, Neologismo – Criação Lexical, ob. cit., p. 62.
68
Jacques Lacan sintetiza esta relação: «Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora»
(Escritos, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1978, p. 238) ou, dito de outro modo, é na substituição do
significante pelo significante que se produz um efeito de significação. Por conseguinte, através do
processo conotador, a metáfora apresenta-se como um signo «plurívoco» (Umberto Eco, O Signo,
Lisboa, Editorial Presença, 1997, p. 46).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 78
69
Grupo μ, Rhétorique Générale, Paris, Seuil, 1982, p. 106. Nas palavras de Barthes «qualquer
série metafórica é um paradigma sintagmatizado e qualquer metonímia um sintagma congelado e
absorvido num sistema; na metáfora, a selecção torna-se contiguidade e, na metonímia, a contiguidade
torna-se campo de selecção», concluindo que «é na fronteira dos dois planos que se joga a criação» (O
Grau Zero da Escrita, ob. cit., p. 164). Barthes vai, deste modo, ao encontro da posição jakobsoniana,
que se recorda: «A sobreposição da semelhança sobre a contiguidade confere à poesia a sua essência
[...] simbólica, complexa, polissémica [...] Em poesia, onde a semelhança é projectada sobre a
contiguidade, toda a metonímia é ligeiramente metafórica, toda a metáfora tem uma matiz metonímica»
(Roman Jakobson, Essais de Linguistique Générale/I, ob. cit., p. 238).
70
Daniel Delas e Jacques Filliolet, «La Fonction Poétique», in Linguistique et Poétique, Paris,
Larousse, 1973, pp. 47-48.
71
Gérard Genette, Figures II, ob. cit., p. 148.
72
Tzvetan Todorov, «Les Anomalies Sémantiques», Langages, 1, Paris, Didier/Larousse,
Março de 1966, p. 106.
73
Simplificando, Humpty Dumpty explica: «‘slithy’ significa ‘lithe e slimsy’ [...] como um
portmanteau – dois significados reunidos numa só palavra» (ob. cit., p. 187). Em The Hunting of the
Snark (1872), Carroll reutiliza o «portmanteau» em «snark», pela intersecção de «snake» e «shark» (cf.
Gilles Deleuze, Lógica do Sentido, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1998, p. 48).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 79
74
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 65.
75
Catherine Kerbrat-Orecchioni, «L’Image dans l’Image», Revue d’Esthétique, 1-2, Paris,
Union Générale d’Éditions, 1979, p. 207. Cf. ainda Grupo μ, Rhétorique Générale, ob. cit., p. 56, e
Pierre Guiraud, Les Jeux de Mots, Paris, Presses Universitaires de France, 1979, p. 66.
76
Lógica do Sentido, ob. cit., p. 47. Também em Ângelo de Lima se encontram expressões em
que se verifica uma contracção dos elementos silábicos de uma proposição ou de várias que se seguem,
o alongamento silábico, ou a simples desvocalização, não pertencendo, portanto, no entender de
Deleuze, ao grupo dos mots-valise: «quando a palavra esotérica não tem somente por função conotar ou
coordenar duas séries heterogêneas, mas além disso introduzir nelas disjunções, então a palavra-valise é
necessária ou necessariamente fundada» (pp. 49-50). Obviamente, a melhor tradução literal de «mot-
-valise» seria «palavra-mala» ou «palavra-saco», embora seja preferível manter a francesa.
77
Gilles Deleuze, ob. cit., p. 50. Cf. p. 243.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 80
Com, pelo menos, um fonema a mais na variante, a «adjunção» é feita através de:
78
J. Mattoso Camara Jr., Dicionário de Lingüística e Gramática, Petrópolis, Editora Vozes,
1999, p. 167.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 81
82
Eugenio Coseriu, Teoría del Lenguaje y Lingüística General, Madrid, Editorial Gredos,
1973, p. 78.
83
La Créativité Lexicale, ob. cit., p. 42.
84
Jacqueline Bastuji, «Aspects de la Néologie Sémantique», art. cit., p. 18.
85
Noam Chomsky, Aspects of the Theory of Syntax, Massachusetts, The M.I.T. Press, 1976,
pp. 8-10 e 24-25.
86
«Les Anomalies Sémantiques», art. cit., p. 101. Convém, pois, assinalar o facto de que dois
enunciados podem ser semelhantes na organização da estrutura de superfície e muito diferentes quanto
à sua estrutura profunda, ou seja, são as regras gramaticais que existem na estrutura profunda que
permitem a interpretação semântica da frase. Do mesmo modo, duas frases podem ter a mesma
interpretação semântica, apresentando uma estrutura superficial diferente, pois a interpretação de uma
frase equivale a procurar-lhe a significação ao nível da estrutura profunda (cf. Noam Chomsky, Aspects
of the Theory of Syntax, ob. cit., p. 16).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 83
87
«Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., p. 17. O soneto «1500» não me parece
ser, no entanto, o melhor exemplo para ilustrar as ditas irregularidades. Quando muito, este poema
poderá justificar o uso do hipérbato, dado que apresenta algumas inversões sintácticas, isto é, alterações
na ordem das palavras. Ainda assim, não existe qualquer enfraquecimento da estrutura frásica.
88
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 76.
89
Elementos de Retórica Literária, ob. cit., p. 206.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 84
opostas. No entanto, «doce» surgirá da necessidade rimática com «fosse», que, por sua
vez, também aparece num tempo e modo irregulares.
A construção das outras estrofes do «Cântico Semi-Rami» está submetida ora
ao poder rítmico das apóstrofes «– Oh! Noute», «– Oh! Estrelas», «Oh! Memória»,
ora à subordinação de frases: «Já fui... uma Criança Pubescente // Que des’abrocha em
Amor Inconsciente» ou «Como n’um Vago Sonho... Comovente // Desabrocha uma
Rosa Oloresente», ou ainda pelas anáforas no início das estrofes «E já fui», «Já Fui» e
«E a que», não apresentando grandes irregularidades sintácticas, com a excepção de
um ou de outro caso relativamente à ordem das palavras na frase.
Em «Súplica»90, o primeiro verso, «Para alguém, foi, do teu olhar a flama»,
compreende uma desordem na sequência frásica rematada pelo emprego das vírgulas
antes e após «foi», emprego esse que o faz corresponder ao pretérito perfeito do verbo ir
e não, como à primeira vista poderá parecer, do verbo ser. Assim, pode ler-se «Para
alguém foi a flama do teu olhar», que será o mesmo que dizer «Para alguém saiu a flama
do teu olhar». As trocas dos elementos na frase são sintomáticas da procura, por parte do
poeta, de um maior apuro formal, relegando a frase para segundo plano em prol de uma
rima perfeita, neste caso, segundo o esquema cruzado AB // AB // C // BC // DC // D.
A transmutação ou metátese, segundo Lausberg, consiste na «mudança de
lugar [dentro da totalidade] de, pelo menos, um elemento»91. Este processo, além de
poder ocorrer no interior de um vocábulo, também pode manifestar-se entre os
elementos de uma frase, compreendendo, neste caso, ainda segundo o autor, o
hipérbato e a anástrofe92. A segunda figura é talvez mais recorrente na poesia de
Ângelo de Lima, embora o hipérbato tenha um impacto maior na medida em que
provoca uma ruptura nas relações de contiguidade entre os elementos frásicos: «– Eu,
Sobre a terra, Sou a Vencedora!...» e, mais violento ainda, «Em que esquecem – a par
da Dor do Mal – // Os Estrangeiros, o seu Lar Deixado» («Neitha-Kri»). São exemplos
90
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 37.
91
Elementos de Retórica Literária, ob. cit., p. 102.
92
Pelo primeiro entende «a separação de duas palavras que sintacticamente estão em íntima
ligação, por meio da interposição de um membro da frase [...], que não pertencia directamente àquele
lugar»; o segundo consiste na «mudança de posição de membros da frase que se sucedem» (idem, pp.
205 e 204, respectivamente).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 85
93
Rhétorique Générale, ob. cit., pp. 82-86 e 72-76, respectivamente.
94
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 70.
95
Grupo μ , Rhétorique Générale, ob. cit., p. 73.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 86
– Fatal!...
– Aquela Fata Místera e Sombria...
– Que os Homens chamam Morte e Despiedade...
– E é Invencível... Místera e Sagrada!...
– Talvez Piedosa...
– ou Al Descoroada...!
– E o Palpitar do Coração Parou!
– E assim – Pois... ora
– Palpito outrora...
– Qual Dorme agora!
– Transe Emmorte de Efémera Ilusão...
– Aqui Dorme e Descansa um Coração!
96
Elementos de Retórica Literária, ob. cit., p. 198.
97
«Alva», p. 74, e «Cântico Semi-Rami», p. 75, in Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 87
– Thora!...
Da Glória do Triunfo Êxul
Do Deus Mithra... no Céu...
– Por Sobre o Mar
– Melkar? De tiro, de Sidon Sem Par!...
– Mais Glor, que é Glor o Gesto do Deus Phul!...
98
Estilística da Língua Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pp. 193-194.
99
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 62.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 88
100
Idem, pp. 88-89. Note-se que estes textos, «Rhada» e «Viver», apresentam vários anos de
intervalo nas datas de composição e de publicação: o primeiro, datado de 1910, foi publicado em 1958;
o segundo data de 1917 e foi publicado antes de «Rhada», em 1939, na revista Presença.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 89
Rhada Viver
– Oh Vida!... – Viver!...
– Bohodhi!... – Viver... – e Palpitar!...
Por Ti!... – Ser!... – Amar!...
Nasce... – Vencer!...
e anima – e Conquistar!...
e desenvolve a Vida!
– Viver!
E– – Oh Fantasia!...
Radiosa!... – Luz!... – Perfume!... – Canção!...
Deliciosa!... – d’Amor!...
Abre a Flor da Paixão como uma Rosa!... – Poesia!...
– Rosa da Vida
– Rosa Eperdida!... – Paixão e Glória!
– Oh Viver!... – Embriaguez... – Folia!...
– Fantasia!... – Viver!... – Um dia!...
– Luz... Canção... e Perfume!... Amor... Poesia! – Viver... –
Paixão e Glória! – Vencer...
– Embriaguez!... – Folia!... – Amar...
Não será difícil perceber que se trata do mesmo poema com alterações feitas a
posteriori, nomeadamente:
«Por ti!... // Nasce... e anima e desenvolve a Vida! // E [...] Abre a Flor da Paixão
como uma Rosa!... [...] Que é Como a Rosa que Emurchece um Dia...».
Já nos últimos versos de «Viver», a primeira frase surge quebrada, aliás como
todo o poema:
entrever em «Viver» uma atitude bem mais positiva perante a Vida, tendo, no entanto,
consciência da sua finitude. A própria estruturação sintáctica é feita, num e noutro
poema, para dar conta do carácter fugidio e transitório da Vida. As suspensões
frásicas, marcadas pelas reticências, com ou sem exclamação, quebram o texto e,
aliadas ao uso mais frequente do travessão em «Viver», imprimem ao poema um ritmo
finito de avanços e consequentes interrupções. Além disso, as frases assindéticas
asseguram a individualidade e a independência das palavras separadas por pausas
rítmicas que substituem as vírgulas, marcando desta forma a sequência vertiginosa de
vocábulos que se evocam. Nos dois poemas, a linguagem espontânea é resultante da
explosão súbita da emoção, na medida em que «o pensamento se faz em dois tempos,
não tendo a precipitação, nascida da afectividade, chegado a deixá-lo organizar-se e a
encontrar a sua unidade». Neste tipo de frases, as diremáticas, «a explosão é seguida
de um segundo termo, que completa a ideia»101 e, se não há lugar para a ligação
sintáctica, há, pelo menos, para a ligação semântica.
Todas as figuras de sintaxe apresentadas dão conta do efeito assimétrico que o
poeta desenha no seu discurso, ficando, no entanto, muito aquém dos efeitos
conseguidos através da metamorfose lexical. A língua criada por James Joyce, em
Finnegans Wake, por exemplo, conserva o inglês no material fónico e na estrutura das
frases, mesmo quando o léxico está profundamente deformado. É que a estrutura
sintáctica de uma língua é muito mais resistente do que o léxico, tornando-se por isso
mais fácil investir na deformação vocabular. As relações sintácticas, embora pouco
rígidas, são geralmente mantidas e fazem perceber uma preocupação estética,
delineadora da cadência ou do ritmo que o poeta pretende imprimir ao texto. Assim, o
efeito retórico será procurado mais ao nível da palavra do que ao nível da frase.
No entanto, estas alterações a que se fez referência, de frases sem verbo ou
sem sujeito, de inversões dos elementos frásicos ou, simplesmente, de frases
inacabadas, ocorrem no plano sintagmático e só em alguns poemas, dizendo bem da
independência entre competência e performance. Convém, pois, sublinhar que a obra
de Ângelo de Lima também inclui poemas correctamente estruturados sob o ponto de
vista sintáctico, como é o caso de «Inês de Castro» ou de «Vai, sobre o sombrio
101
Marcel Cressot, O Estilo e as suas Técnicas, ob. cit., p. 200.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 92
abismo», embora sejam em menor número e acabem por não criar aquele efeito
discursivo característico do autor em estudo. Repare-se ainda que, em «Inês de
Castro»102, a pontuação não apresenta grandes variações. Entre as reticências e alguns
pontos de exclamação, os nove tercetos descrevem as exéquias daquela que «morreu
d’amores» por D. Pedro, o «régio amante». Do mesmo modo, não existem grandes
surpresas ao nível lexical. As palavras foram despretensiosamente seleccionadas para
obedecerem a uma estrutura rítmica sem sobressaltos, mas com um esquema rimático
meticulosamente bem construído. De cada terceto, o poeta faz transportar a rima do
segundo verso para os primeiro e terceiro versos da estrofe seguinte, perfazendo um
total de dez rimas diferentes. Só no primeiro verso do último terceto surge uma
pequena diferença dos sons vocálicos (escolheu, céu e conheceu), fazendo aparecer a
rima imperfeita. Porém, o segundo verso da estrofe anterior acaba por rimar de uma
forma perfeita com o último desse terceto:
Desintegração e Intertextualidade
categorias, como o ritmo, a rima, a métrica e a estrutura estrófica, que com eles se
cruzam, promovendo a transformação textual e accionando outros efeitos de
estranhamento, seguindo, com efeito, uma tradição anfigúrica assinalada pela
tendência para a ininteligibilidade.
A especificidade da sua poesia passa também pelo trabalho deformador ao nível
da versificação. O soneto, pelo dinamismo da sua estrutura, tem vindo a prestar-se a
diferentes concretizações, perdendo a rigidez a que foi condenado pela cultura que o
assimilou104. Na Modernidade, aparece reinventado se comparado com o sistema
estrófico dito clássico, que compreende quatro estrofes isométricas, duas quadras e dois
tercetos, perfazendo um total de catorze versos, seguindo o esquema rimático ABBA //
ABBA // CDC // CDC. Amorim de Carvalho prevê no seu Tratado de Versificação
Portuguesa algumas variantes do soneto perfeito, nomeadamente ao nível da
distribuição das rimas, da métrica e da divisão das estrofes105, variantes necessárias
face à evolução que esta forma sofre ao longo dos tempos. Etimologicamente, «soneto»
surge do italiano «sonetto», pequeno som ou melodia, que, por sua vez, encontra a sua
origem no termo provençal «sonet», reportando-se às quadras e aos tercetos, portanto,
às chamadas poesias curtas destinadas ao canto. Este aspecto está de alguma forma
entrevisto em Ângelo de Lima, dado que, como adiante se demonstrará, a sua
intervenção destrutiva no campo da versificação não deixa de se subordinar a uma
norma interna, que singularmente acciona outros mecanismos textuais.
O poema «Pára-me de repente o Pensamento...»106 constitui um dos exemplos
da transgressão sobre a forma convencional do soneto. De acordo com o manuscrito
deixado pelo autor, o poema apresenta duas quadras seguidas de dois dísticos,
findando com dois versos isolados, e está estruturado segundo o esquema ABBA //
ABBA // CD // CD // C // D, com versos interpolados e cruzados. Este soneto,
104
Cf. Isabel Paula Monteiro, Dissolução e Reinvenção do Soneto em E. M. de Melo e Castro,
Dissertação de Mestrado, Universidade do Porto, 2000, e E. M. de Melo e Castro, Poligonia do Soneto,
Lisboa, Guimarães Editores, 1963.
105
Tratado de Versificação Portuguesa, Coimbra, Almedina, 1991, pp. 105-110. Ver também
o «Apêndice Histórico», p. 145 e seguintes (idem). Sobre a evolução do soneto em Portugal, desde Sá
de Miranda até aos nossos dias, cf. António José Vilas-Boas, «Rondo capriccioso – o Som do Soneto»,
in Poesia e Música – O Neobarroco em Media Vita de Fernando Echevarría, Dissertação de Mestrado,
Universidade do Porto, 1999, p. 70 e seguintes.
106
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 52.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 94
desfigurado quanto à forma gráfica, mas perfeito no que diz respeito ao esquema
rimático, prevê as simetrias características do soneto português clássico. Todos os
versos são decassílabos, alternando o heróico, com acentuação interna na 6ª e na 10ª
sílabas, na primeira quadra e nos 6º, 8º, 9º, 10º, 11º, 13º e 14º versos, com o sáfico,
acentuado na 4ª, na 8ª e na 10ª sílabas, nos 5º, 7º e 12º versos. Esta combinação é
frequente, embora, à boa maneira quinhentista, predomine o decassílabo heróico. De
relevar ainda o facto de ser possível encontrar nos ditos decassílabos sáficos uma
chave que poderá resumir todo o poema: «– Pára Surpreso... escrutador... Atento»,
«Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...» e «Um Olhar d’Aço, que na Noute
explora...», bem como no 13º verso a conjunção adversativa «Mas», muito usual na
definição do carácter conclusivo dos tercetos.
Na poesia de Ângelo de Lima, as maiores irregularidades ao nível da
versificação são facilmente visíveis nos poemas «Ocaso», «Edane!» e «Alva», que
contrastam com «Sonhos» e o já referido «1500»107, estes últimos construídos
segundo o esquema rimático clássico, ABBA // ABBA // CDC // DCD, e com versos
decassílabos que alternam entre o heróico e o sáfico. O poema «Sonhos», publicado
pela primeira vez n’ A Ilustração Portuguesa, em 1911, pode dar conta do
conhecimento do poeta acerca da construção formal do soneto clássico, daí a sua
estrutura regular que chega a impor uma certa contenção na utilização das próprias
palavras. A destreza versificatória de Ângelo de Lima é manifestamente distinta nos
outros três textos, muito mais ricos em variados níveis e, talvez por isso, mais
arrojados sob o ponto de vista formal. Pode-se dizer que alguns dos poemas do «poeta
louco» enriqueceriam o «museu de curiosidades» do soneto de Agostinho de
Campos108.
Em «Ocaso», por exemplo, verifica-se a seguinte divisão no primeiro verso da
segunda quadra:
– Cresce a Treva
Na Dor Silenciosa
107
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 69, 73, 74, 50 e 51, respectivamente.
108
Estudos sobre o Soneto, Coimbra, Biblioteca da Universidade de Coimbra, 1936, p. 16.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 95
– Redentor!... Stator!
– Paz!... Piedade!...
109
Idem, p. 42.
110
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 68.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 96
Este esforço poderia tornar-se inglório somente se dele nada resultasse. Afigura-
-se, pois, evidente que, desta forma, a leitura do poema ganha novos contornos e veicula
uma intenção destrutivo-construtiva, corroborando tudo aquilo que se tem vindo a
enunciar neste estudo como especificidades da poesia de Ângelo de Lima. Reitera-se
que estas orientações constituem apenas estratégias possíveis de leitura, pois é
inevitável a aceitação do facto de que os seus poemas perseguem a subversão formal
segundo esquemas pouco convencionais e, por isso, facilmente entroncam naqueles
sonetos ditos «malabarismos, exibicionismos e degenerescências» do soneto clássico111.
A fixação do poeta por uma determinada extensão métrica é visível na
preferência do decassílabo, tanto nos sonetos como em poemas mais longos. No
«Cântico Semi-Rami»112, por exemplo, as estrofes são constituídas por um número
irregular de versos, embora predomine a quadra, contando todos, porém, com dez
sílabas. Noutros casos, Ângelo de Lima abandona o decassílabo, mas cumpre com o
mesmo rigor a métrica escolhida, sob pena de ter de sacrificar os próprios vocábulos.
No entanto, alguns dos seus poemas, embora em menor número, apresentam uma
estrutura heterométrica, como nos já referidos «Rhada» e «Viver», ou em «Ninive»,
onde porém faz prevalecer uma sucessão irregular mas equilibrada de ritmos. Em
alguns poemas, o número de versos por estrofes também é variável: em «Fado», a
primeira estrofe tem 4 versos e as restantes têm 10; «Ninive» apresenta as duas
primeiras estrofes com 6 versos, a terceira com 5 e a última com 13 versos.
A falta de rigor estrófico e métrico corrompe ainda os esquemas rimáticos
utilizados. Em «Ninive», por exemplo, se a primeira estrofe arruma os versos segundo
o esquema ABCABC, a segunda já segue o esquema DCDDDC. Nas duas últimas
estrofes, ocorrem versos sem rima entre outros versos que rimam mas sem qualquer
sequência lógica. Em «Thora...», sem o alinhamento dos versos que parecem
111
Amorim de Carvalho, Tratado de Versificação Portuguesa, ob. cit., p. 110.
112
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 75-77.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 97
113
Segundo Heinrich Lausberg, esta figura consiste na igualdade «sónica» de fins de palavras
(Elementos de Retórica Literária, ob. cit., p. 214).
114
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 86.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 98
Campa... – Il C’or descanse...» e «Que Cai sobre o Último Leito!...», versos estes que
proporcionam uma chave de leitura importante dada a complexidade que o poema
insiste em transmitir. Desta forma, torna-se necessário um olhar mais demorado sobre
este texto, talvez um dos mais bem conseguidos poemas de Ângelo de Lima, na
medida em que sintetiza uma série de aspectos formais que caracterizam a subversão
linguística da poética anfigúrica.
O ritmo musical de «Edd’ora Addio...» transmite a calma e a serenidade de
alguém que aceitou a condição da sua finitude. A vida do sujeito poético é comparada
à da «mariposa», como uma vida cheia de beleza, mas muito curta, sujeito que vê a
sua alma a transformar-se pelo cansaço «d’Alado Lidar», encontrando por fim a «Paz»
no «Último Leito». Esta separação da alma e do corpo parece não trazer
descontentamento ao sujeito poético, que diz «– Não Choro no Orar Cicio...» e se
considera «Edd’ora... Eleito!...». E assim se compreende a dicotomia dia/noite, ou
dia/morte, na substituição das consoantes sonoras m e d em «Mia» e «Dorta», ou
«Dorto», fazendo aparecer por depreensão analítica «Dia» e «Morta», na primeira
estrofe, ou «Morto», na estrofe seguinte. O verso «Dia Soave... – Ave?!...» sugere,
além do automatismo com que aparece o último «Ave», o facto de o vocábulo
«Soave» poder remeter para dia suave ou dia em que sou ave, sob a aglutinação do
verbo e do substantivo e consequente transformação metaplasmática pela supressão do
u115. Optando quer por uma quer por outra leitura, este verso cria a tensão lírica e entra
em oposição com o primeiro verso da segunda quadra «– Do Ocaso pela Epopeia»,
sua antítese, intensificando-o, na medida em que o fim da luz de uma vida cheia de
grandes acontecimentos contrasta com a calma da morte numa «Campa» perfumada
pelo «Rocio». É a própria natureza que chora a sua morte, fazendo ao mesmo tempo
nascer um novo dia, que para o sujeito da enunciação é «– Mi’Soave!», leia-se muito
suave ou para mim suave ou ainda para mim que sou ave, atingindo o poema o seu
clímax: é a hora da despedida «Edd’ora Addio!...».
115
Esta leitura resulta de sessões de trabalho de orientação da dissertação. Cf. a leitura críptica
de Luís Adriano Carlos, a propósito deste soneto: «Ele vê e mia suave num dia suave, ele vê e sabe que
a mariposa azual está morta em paz, porque o transe é trespasse da Ideia e da Letra, do eidos e do
eidolon» («Elegia da Loucura», art. cit., pp. 137-138).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 99
116
Conceitos sintetizados no termo «lactência» de Alberto Augusto Miranda, «Ângelo de
Lima: do Estado de Lactência ao Desmame Inconsumado», Letras & Letras, 89, Porto, 1993, p. 12.
117
Cf. António Feliciano de Castilho, Tratado de Metrificação Portugueza, vol I, Lisboa,
Empreza de História de Portugal, 1908, pp. 107-108.
118
Ezra Pound, ABC of Reading, London, Faber and Faber, 1973, p. 63. Sobre os três
mecanismos da linguagem literária, a fanopeia, a melopeia e a logopeia, ver ainda p. 37.
119
La Métaphore en Phonétique, Otava, Didier, 1979, p. 67.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 100
120
Paul Verlaine, Oeuvres Poétiques Complètes, Paris, Gallimard, 1954, p. 206.
121
«Richard Wagner et Tannhäuser à Paris», in Oeuvres Complètes, Paris, Seuil, 1968, p. 512.
Ivan Fónagy refere mesmo que a «‘Música’ em Poesia é tão expressiva como a própria música, que não
se deixa reduzir a uma simples sequência rítmica de tensões e resoluções» («Le Langage Poétique:
Forme et Function», Diogène, 51, Paris, Gallimard, 1965, p. 108).
122
Traité du Verbe, ob. cit., pp. 46, 47 e 39, respectivamente.
123
Stéphane Mallarmé, «Sur l’Evolution Littéraire», in Oeuvres Complétes, Paris, Gallimard,
1945, p. 869.
124
Expressão de Ivan Fónagy, «Le Langage Poétique: Forme et Function», art. cit., p. 110.
125
«Ângelo de Lima: a Palavra Desconhecida», in Poesia Oculta, Lisboa, Vega, 1996, pp. 37-
-38; sublinhado meu.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 101
126
Roman Jakobson, Six Leçons sur le Son et le Sens, Paris, Minuit, 1976, p. 119.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 102
refrão, trocando o primeiro com o quarto verso apenas na primeira repetição, mas sem
qualquer prejuízo para a rima.
Este poema conta, como se viu, com uma grande variedade rímica, pelo que a
notação rítmica dos versos decassilábicos terá de, por si só, imprimir uma cadência
favorável ao canto. Por outro lado, essa rima diversa é conseguida quase sempre
através de versos graves, que fazem sobressair a medida musical, assinalando para o
ouvido o limite de cada verso, como se fosse intenção do autor estabelecer, neste
texto, uma correspondência rítmica e rímica. No interior dos versos, porém, os acentos
rítmicos não têm uma periodicidade rigorosa, ficando o texto assim reduzido a uma
colocação quase arbitrária de tempos fortes, que pode ser compensada pelo facto de
alguns versos não constituírem necessariamente uma frase, tendo de ser completados
pelo verso seguinte.
Em poesia, «a equivalência dos sons [...] implica inevitavelmente a
equivalência semântica»127. As rimas significam, quer pela semelhança ou identidade
dos sons, quer pela diferença ou contraste no sentido. Logo, o semantismo da rima é
metafórico, pois a própria sonoridade conota um valor que contrasta com o valor
denotativo previsto pelo nosso código linguístico. Nesse desabrolhar nostálgico dos
valores mais profundos da língua, as palavras redescobrem o seu valor original, pois
em jogo estão as suas propriedades intrínsecas. A linguagem poética acaba por ser o
tipo de linguagem mais propício à actualização do simbolismo fonético, na medida em
que o signo assume um valor autónomo. Através da «sensibilidade
onomatopoética»128 dos seus forjadores, essas palavras contribuem para a motivação
da própria linguagem.
O «Cântico Semi-Rami» revela-se, assim, um campo fónico de possibilidades
ilimitadas, coerentemente avaliadas em função do desenvolvimento do tema, que é dado
pelo próprio título. É que, em poesia, «os sons pintam ideias»129, nas palavras de
António Feliciano de Castilho, uma vez que os efeitos fónicos sugerem associações que
produzem significados diferentes dos convencionados. O poema «Ninive» surge como
127
Roman Jakobson, Essais de Linguistique Générale/I, ob. cit., p. 235. Ver ainda p. 240.
128
Expressão de Ivan Fónagy, La Métaphore en Phonétique, ob. cit., p. 54.
129
Tratado de Metrificação Portugueza, vol II, ob. cit., p. 5.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 103
132
Platão atribui a Sócrates a seguinte teoria: «Em todas as palavras, em geral, o r serve para
exprimir o movimento. Porque via demorar-se a língua, o menos possível, nessa letra e vibrar o
máximo, por isso é que me parece que o autor dos nomes a empregou nessas palavras. Por outra parte,
serviu-se do i para tudo quanto é subtil, para aquilo, principalmente, que poderia atravessar todas as
coisas» (Platão, Crátilo, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1994, p. 122).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 105
verde e as «vibrações divinas dos mares» ou a «Paz dos pastos»; e, por fim, ao o o
azul, «supremo Clarão pleno de insólitas estridências»133.
Em Portugal, lembre-se Gomes Leal a propósito do seu soneto «O Visionário
ou Som e Cor», publicado em Claridades do Sul (1875), no tratamento da
correspondência entre sons e cores134, e o próprio António Feliciano de Castilho, que
elabora um Tratado de Metrificação, atribuindo a todas as letras do alfabeto um
determinado sentido. O mestre Castilho procura na articulação dos sons da língua
portuguesa semelhanças e diferenças, que estende às relações estabelecidas entre eles
numa determinada palavra. Conclui que a língua contém mais palavras imperfeitas do
que perfeitas, uma vez que há muito se perdeu a língua primitiva, sendo só possível
encontrá-la nos «termos onomatópicos»135.
Sugestivos são também os trabalhos mais recentes de Roman Jakobson e de
Ivan Fónagy sobre o simbolismo fonético. Em Six Leçons sur le Son et le Sens,
Jakobson, através dos resultados das suas pesquisas fonéticas, «demonstra que é
impossível separar o som do sentido, [ou seja,] os meios linguísticos dos seus
objectivos»136. Fónagy dirige-se às metáforas fonéticas: «Cada som tem uma cor
própria, as vogais são claras ou sombrias. As consoantes parecem ter uma certa
consistência, elas são duras ou moles, elas são mesmo sentidas, em certos casos, como
húmidas». Fónagy refere que o poeta «para exprimir os conteúdos mentais pré-
-conceptuais – pré-conscientes ou inconscientes – deve recorrer à magia verbal, às
sonoridades, ao ritmo, à transformação expressiva da estrutura gramatical», pois a
133
Oeuvres Complétes, Paris, Gallimard, 1951, p. 103. Cf. notas de Álvaro Cardoso Gomes, A
Estética Simbolista, S. Paulo, Cultrix, 1984, pp. 52-54. Será René Ghil, em 1885, no Traité du Verbe, a
construir um raciocínio rigoroso e complexo sobre as analogias fonéticas e, consequentemente, sobre as
correspondências entre o material (vogais e consoantes) e o espiritual (sinestesias). Em
«Instrumentação Verbal», Ghil, ao promover a «audição colorida» e sinestésica dos versos, deseja
recuperar os valores originais dos sons, relacionando timbre vocálico, cor e sensação: A - vermelhão:
glória, tumulto; E - amarelo: serenidade; I – azul: paixão, súplica; O – rubro: monotonia, dúvida,
simplicidade; U – amarelo: ingenuidade, sorriso (cf. Traité du Verbe, ob. cit., pp. 39, 42-44 e 53).
134
«Procuro em toda a parte a música das cores, // – E nas tintas da flor achei a melodia»
(Gomes Leal, «O Visionário ou Som e Cor», Claridades do Sul, Lisboa, Empreza da Historia de
Portugal Editora, 1901, p. 132).
135
Tratado de Metrificação Portugueza, vol II, ob. cit., p. 8.
136
Claude Lévi-Strauss, Prefácio a Six Leçons sur le Son et le Sens, ob. cit., p. 10.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 106
137
La Métaphore en Phonétique, ob. cit., pp. 1 e 2, respectivamente.
138
Roman Jakobson, «La Dominante», in Questions de Poétique, Paris, Seuil, 1973, p. 145.
Jakobson defende existir, em todas as épocas e correntes literárias, um elemento linguístico específico
que domina a obra na sua totalidade e exerce a sua influência sobre os outros elementos. É este
elemento que especifica determinada tendência artística (cf. p. 146).
139
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 73.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 107
140
Tratado de Metrificação Portugueza, vol I, ob. cit., pp. 95-97.
141
La Métaphore en Phonétique, ob. cit., pp. 90-91.
142
Julia Kristeva, La Révolution du Langage Poétique, Paris, Seuil, 1974, p. 222. Cf. Roman
Jakobson, «La Transformation Poétique», Change, 3, Paris, Seuil, Setembro de 1969, pp. 94-95.
143
Encyclopedia of Greco-Roman Mythology, Sta. Barbara, ABC-Clio, 1998: Febe, p. 250;
Selene, p. 277; Hécate, p. 146.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 108
144
Jean Starobinski, Les Mots sous les Mots, ob. cit., p. 23. Sobre o «mot-thème», cf. Mitsou
Ronat, «Vers une Lecture des Anagrammes par la Théorie Saussurienne», Change, 6, Paris, Seuil,
Setembro de 1970, p. 122.
145
Ferdinand de Saussure, cit. por Jean Starobinski (Les Mots sous les Mots, ob. cit., p. 31). O
«anagrama» consiste na dispersão do mot-thème num espaço restrito, e o «paragrama» a dispersão dos
fonemas por um certo número de versos (Mitsou Ronat, art. cit., p. 123). Uma caracterização
sistemática desta questão é feita por Luís Adriano Carlos (cf. «Introdução», in Jorge de Sena e a
Escrita dos Limites: Análise das Estruturas Paragramáticas nos «Quatro Sonetos a Afrodite
Anadiómena», ob. cit., p. 19).
146
Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, ob. cit., p. 19.
147
Julia Kristeva, idem, p. 184; sublinhado meu.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 109
148
Idem, p. 175. Sobre os «gramas escriturais e leiturais», cf. pp. 185-195.
149
Idem, p. 146.
150
Laurent Jenny, «La Stratégie de la Forme», Poétique, 27, Paris, Seuil, 1976, p. 262.
151
Marc Eigeldinger, Mythologie et Intertextualité, Genève, Editions Slatkine, 1987, p. 11.
152
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 62. A troca da letra h da segunda para a
primeira sílaba deve-se, provavelmente, ao desconhecimento da grafia correcta por parte do poeta.
153
Idem, p. 63. Sobre Krishna e Rhada, ver Anna L. Dallapiccola, Dictionary of Hindu Lore
and Legend, Londres, Thames & Hudson, 2002, pp. 116-118.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 110
sabe desse mito154. Ainda jovem, Semiramis é descoberta por um conselheiro e general
do rei Ninus, da Assíria, que a desposa. Mas o rei logo se apaixona pela sua beleza e
argúcia, afasta o seu marido, levando-o à morte, e faz dela rainha. No «Cântico Semi-
Rami», Semiramis lembra os «Tempos de Ventura Confortante», ao lado do seu
marido, e assume a traição com o rei, sentindo «Doer o Coração [...] Nas Esp’ranças da
sua Devoção». O rei, sendo muito mais velho, cedo a deixa viúva, pelo que ela segue
«Entre a Treva das Selvas Pavorosas [...] em busca de Amantes do Destino». No
poema «Ninive», celebra-se o seu carácter de rainha guerreira. Semiramis aconselhava
o marido antes das investidas, chegando mesmo a comandar alguns grupos de
guerreiros nas conquistas. Conquistou o Egipto e a Etiópia e quase perdeu a vida
quando invadiu a Índia com os seus soldados. Uma outra versão desta lenda, talvez a
conhecida por Ângelo de Lima, defende que Semiramis acabou mesmo por morrer
nessa batalha sangrenta, de onde saíra derrotada. Da sua «Morte Misteriosa», diz-se
também que foi o filho que a afastou do poder, matando-a, ao fim de quarenta e dois
anos como rainha. Acredita-se, no entanto, que o seu espírito tomou a forma de uma
pomba e que voou em direcção ao céu: «– E Hoje… stá por Ali [...] E anda no Céu
Supremo a Eterna Istar», que corresponde naturalmente a Ishtar155 de Ninive, deusa do
amor e da volúpia, síntese de Afrodite e Vénus. O título do poema remete para a capital
da Assíria no tempo de Semiramis, perto da qual se julga ter mandado construir a
Babilónia com os seus jardins suspensos. Entre a ficção e o mito, Semiramis constitui
uma das lendas femininas históricas mais fortes de todos os tempos, perpetuando
valores de poderio e de liderança, comummente atribuídos aos homens, valores esses
também evocados por Ângelo de Lima, como se verá, em «Neitha-Kri».
Os seus poemas constituem um espaço literário onde a intertextualidade
assume um papel privilegiado, fazendo comunicar os aspectos bíblico, mitológico e
histórico. No poema «Thora...», sobrepõem-se nomes de deuses e de lugares míticos e
históricos, com apóstrofes fortes, sons duros e frases sem verbo, que deixam o leitor
154
Cf., por exemplo, The New Encyclopaedia Britannica, vol. X, 15ª ed., Chicago, 1995, p.
377, ou Encyclopedia of Greco-Roman Mythology, ob. cit., p. 277.
155
Ishtar: deusa guerreira da Assíria; deusa das manhãs e das noites; do seu culto fazia parte a
prostituição sagrada e quando vinha à terra era acompanhada por um cortejo de cortesãs; deusa da
satisfação dos desejos amorosos (Maria Lamas, «Mitologia Assírio-Babilónia», in Mitologia Geral, vol.
I, Lisboa, Referência/Editorial Estampa, 2000, pp. 246-248).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 111
perdido entre várias referências que dificilmente se cruzam, tornando-se talvez, sob o
ponto de vista da significação, um dos textos mais complexos de Ângelo de Lima.
Desde «Thora», que advém da mitologia nórdica, até «Hermes», da mitologia greco-
-romana, passando por «Mithra», da mitologia hindu, e por «Melkar», deus da
mitologia fenícia, o poema está carregado de referências que passam também pela
citação bíblica, com «Saul», ou pela histórico-geográfica através de «Tiro» e «Sidon».
Naquilo que parece ser uma exaltação ao deus da guerra, Ângelo de Lima faz
comunicar uma série de referências aparentemente confusas, mas que no fundo podem
apenas querer investir Thor de características comuns a outros deuses. Diz Pierre
Guiraud que «o significante é abusivamente investido das propriedades do
significado»156. Assim, Thor é comparado a «Melkarth» adorado em Tiro, também ele
deus guerreiro vitorioso, a «Mithra», um dos génios da religião mazdeísta, deus da
verdade e da boa-fé que representa o sol e o fogo, a «Apolin», o deus solar, o bem-
-feitor dos homens e purificador das doenças, e a «Hermes», irmão de Apolo, deus dos
ladrões e mediador das almas dos mortos e ainda a «Saul» (o solicitado, em hebraico),
o primeiro rei de Israel, conhecido pelo seu carácter guerreiro e desobediente, e a
«Phul», que terá sido um dos reis da Assíria. São igualmente referenciáveis as cidades
de «Tiro» e «Sidon», a primeira por ser uma das cidades mais importantes da Fenícia
e a segunda por ser a terra prometida dos israelitas157. Sem referentes directos, uma
vez que a maior parte dos nomes surgem modificados, «é o nome que cria a
personagem e a situação» como «uma espécie de motivação, mas ao contrário»158.
Como Thor aparece correctamente escrito no subtítulo do poema, ao contrário da
deformação no título, ficará por esclarecer se foi intenção do autor modificar os
restantes nomes ou se foi simplesmente por desconhecimento da grafia correcta.
156
Pierre Guiraud, «Étymologie et Ethymologia – Motivation et Rétromotivation», Poétique,
11, Paris, Seuil, 1972, p. 407.
157
Indicações retiradas de Arthur Cotterell, Enciclopédia de Mitologia Nórdica, Clássica e
Celta, Lisboa, Livros e Livros, 1998: sobre Thor, pp. 234-235; de P. Lévêque e L. Séchan, Les Grandes
Divinités de la Grèce, Paris, Armand Colin, 1990: sobre Apolo, pp. 201-216; sobre Hermes, pp. 269-
-279; de E. O. James, The Ancient Gods, Londres, Weidenfeld and Nicolson, 1960: sobre Mitra, pp.
317-318; e de André-Marie Gerard, Dictionnaire de la Bible, Paris, Éditions Robert Laffont, 1991:
sobre Saul, pp. 1253-1257; sobre Sidon e Tiro, p. 1280.
158
Pierre Guiraud, «Étymologie et Ethymologia – Motivation et Rétromotivation», art. cit., p. 405.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 112
159
Segundo Umberto Eco, «Todo o signo interpreta um outro signo, e a condição basilar da
semiose é, justamente, esta condição de regresso infinito» (Leitura do Texto Literário – Lector in
Fabula, ob. cit., p. 46). Cf. Luís Adriano Carlos, «Metamorfoses do Signo e uma Supra-Metamorfose
de Jorge de Sena», art. cit., pp. 93-94.
160
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 78-81.
161
Por conseguinte, verificam-se neste poema as várias funções da intertextualidade, no
sentido que lhes dá Marc Eigeldinger (cf. Mythologie et Intertextualité, ob. cit., pp. 16-17).
162
Esta situação era muito frequente durante as primeiras dinastias no Egipto, pois Neit
aparece incorporado nos nomes das rainhas como forma de culto àquela que foi considerada a primeira
deusa egípcia (cf. Christian Jacq, As Egípcias: Retratos de Mulheres do Egipto Faraónico, Lisboa,
Edições ASA, 1998, p. 31). Sobre Neit, cf. ainda Veronica Ions, Egyptian Mythology, Middlesex, Paul
Hamlyn, 1968, pp. 38 e 103-105.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 113
163
Orpheu, Lisboa, Contexto, 1994, p. 43.
164
O rei Pépi II teve como sucessor Merenré, cujo reinado foi muito breve. Nitócris sobe então
ao trono por volta de 2184 a.C., mostrando ter mais coragem do que os homens da sua época. Não
existe, porém, nenhum documento arqueológico com o seu nome, daí as inúmeras versões que possam
surgir. Este dramático conto egípcio não tem portanto fundamento histórico. Neit-Iqeret, que significa
«Neit é excelente», é o modelo egípcio da Atenas grega (cf. Christian Jacq, ob. cit., pp. 49-51).
165
Cf. César Vidal Manzanares, Diccionario Histórico del Antiguo Egipto, Madrid, Alianza
Editorial, 1993, pp. 137-138.
166
Repare-se que no tempo de Ângelo de Lima os estudos sobre egiptologia não estariam
ainda muito desenvolvidos: o túmulo de Tutankamon, que marca o grande avanço das pesquisas
inglesas no Egipto, só foi descoberto em 1922. Por essa razão, na época do poeta de Rilhafoles, pouco
ou nada era divulgado em Portugal sobre a cultura oriental, a não ser pelo contacto esporádico que
alguns dos nossos intelectuais dos finais do século XX manteriam com a imprensa parisiense. Não
convém esquecer, porém, que Ângelo fez parte de uma expedição militar a Manica, passando vários
meses em África. Na nossa literatura são frequentes as referências à cultura e história do Médio-
-Oriente, nomeadamente em finais do século XIX com as descobertas nas pirâmides egípcias, muito
divulgadas, se não em Portugal, pelo menos em Paris. Mas basta pensar-se na obra de Eça de Queirós
para se perceber o fascínio dos escritores pelo exotismo oriental, fascínio esse que percorreu toda a
cultura europeia da segunda metade do século XIX, nomeadamente n’ O Primo Basílio (1878), n’ O
Mandarim (1880), n’ A Relíquia (1887) ou n’ O Egipto.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 114
167
Indicações retiradas de Maria Helena Assam, Arte Egípcia, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1991, pp. 40-43, e de Veronica Ions, Egyptian Mythology, ob. cit., pp. 40, 68 e 90-91.
168
Referências retiradas de George Hart, Dictionary of Egyptian Gods and Goddesses,
Londres, Routledge, 1986 (sobre Anubis, pp. 21-26, e sobre Serapis, p. 189). Serapis, no entanto, seria
uma divindade comum a egípcios e a gregos e estaria entre Osíris e Zeus (cf. P. Lévêque, e L. Séchan,
Les Grandes Divinités de la Grèce, ob. cit., pp. 13-18).
169
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 69.
170
Idem, p. 68. Sobre o poema épico «Ramayana», cf. Introdução à Mitologia Oriental,
Lisboa, Editorial Estampa, 2000, pp. 52-54 e 76.
171
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 74. Cf. Encyclopedia of Greco-Roman
Mythology, ob.cit., p. 270.
172
Ângelo de Lima, idem, p. 84.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 115
três reinos: céu, terra, homem) e japonesa («Kuan-Su», por Kuan-Ti, deus da guerra e
dos letrados), fazendo ainda referência a «Mu-Ang», principal cidade da Tailândia
com o mais importante templo budista.
Diz-nos Kristeva que «O texto é [...] uma produtividade [...] é uma permutação
de textos, [ou seja] uma intertextualidade [pois] no espaço de um texto há vários
enunciados de outros textos, que se cruzam e neutralizam»173. Em Ângelo de Lima, o
cruzamento neutralizador de discursos revela-se no sincretismo de referências
distantes deformadas e conjugadas com outras tantas inventadas pelo poeta. Os seus
textos parecem andar à volta de uma concepção de mundo muito própria, veiculando
vestígios de algo que foi apreendido antes da doença e que resultam particularmente
na transfiguração sígnica e no hibridismo de temas e motivos poéticos. Nessa
insistência temático-formal, reclamada por vários textos que se entrelaçam, surge a
loucura do poeta, «essa bola de cristal, que para todos está vazia, a seus olhos está
cheia de um saber invisível»174. Por conseguinte, torna-se pertinente a afirmação de
Almerinda Alves: «Mitologia, linguística, psicologia, ideologia não esclarecem o
poema. O poema é que, acidentalmente, pode esclarecê-las a elas»175.
173
Julia Kristeva, Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, ob. cit., p. 113.
174
Michel Foucault, História da Loucura, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1999, p. 21.
175
«A Finitude in Ângelo de Lima», Letras & Letras, 89, Porto, 1993, p. 8.
Se para uns a tradição existe e deve ser
imitada,
para outros, se existe é para ser
reinventada.
Ana Hatherly
We die. That may be the meaning of life.
But we do language.
That may be the measure of our lives.
Toni Morrison
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA
A Matriz Simbolista
1
Não poderiam faltar no espólio pictórico de Ângelo de Lima as referências a uma
personalidade histórica, como é o caso de Viriato (que poderia ilustrar o «anacronismo» nas obras
artísticas de alienados de que falava Júlio Dantas, abordado no início do capítulo anterior), e à cultura
egípcia, com o desenho de um homem sentado no chão a desenhar, apenas com o toucado na cabeça e o
saiote com a faixa vertical (desenhos reproduzidos por Mendes Corrêa, em O Genio e o Talento na
Pathologia, Porto, Imprensa Portuguesa, 1911, pp. 135 e 143).
2
Mendes Corrêa, depois de verificar alguns dos seus trabalhos artísticos no álbum do Hospital
Miguel Bombarda, refere-se-lhe como «um curioso alienado-artista» (idem, p. 175). Deste espólio só se
conhecem as pinturas reproduzidas na obra referida, pois o álbum desapareceu daquele hospital.
3
«Ângelo de Lima», in Modernidad y Vanguardia en la Poesía Portuguesa Contemporánea.
Perspectiva Histórica del Surrealismo Portugués, Tese de Doutoramento, Palma, Universidade das
Ilhas Baleares, 1986, p. 89.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 118
4
Não poderão ser extensíveis a Ângelo de Lima, nem mesmo a seu pai, as críticas
censuradoras do exagero da poesia ultra-romântica. Jacinto do Prado Coelho destaca «a monotonia
temática, a falta de visão original das coisas, a estreiteza de limites da escala afectiva [...], a pobreza de
vocabulário, [...] o descuido no arranjo rítmico e na escôlha das rimas» (cf. A Poesia Ultra-Romântica,
Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, p. 29) como algumas das limitações desta tendência, que nunca
deixou de ser uma das vertentes do Romantismo. Por conseguinte, só mantendo as devidas distâncias se
poderá falar de Ultra-Romantismo em Ângelo de Lima, ainda que seja a título de caprichosa influência
literária.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 119
por uma homenagem ao pai, Pedro de Lima, no Dia dos Finados (cf. «A Meu Pai»), e
encontrando na Noite um refúgio (cf. «Ocaso» e «Cântico Semi-Rami»)5.
Verificam-se ainda em Ângelo de Lima algumas das tendências temáticas
ultra-românticas: «Sonhos» e «Pára-me de repente o Pensamento...» traduzem um
estado de sonho e de inquietação espiritual que de alguma forma se aproxima do
estado transmitido pelos poetas daquela geração; do mesmo modo, percebe-se a
resignação fatalista do sujeito poético em poemas como «Rhada» e «Ocaso»; a
Natureza enlutada, esfumada, agreste e convulsa, em comunhão com o sentimento do
poeta, surge em composições como «Sozinho», «Edd’ora Addio... – Mia Soave!...» e
«Epitáfio»; a poesia de inspiração patriótica é visível na procura de temas e cenários
históricos (cf. «Inês de Castro», «1500» e «Morreu o Rei D. Carlos!») e na
dignificação do popular (cf. «Canção Portuguesa»); a evasão no tempo e no espaço
encontra forte desenvolvimento no exotismo de «Neitha-Kri» e «Ninive»6. A estas
características juntam-se ainda outras relativas a uma tendência formal: as elipses e as
suspensões frásicas são frequentes em Ângelo de Lima (cf. capítulo anterior), bem
como os versos exclamativos, traduzindo uma sintaxe essencialmente afectiva; outros
casos há em que se verifica uma forma simples e cadenciada, quer na monotonia
melopaica dos versos (cf. «Não tinha», «Eu ontem vi-te...» e «Súplica»), quer na
repetição rímica em versos seguidos (cf. «Cântico Semi-Rami» e «Ninive»).
No entanto, as maiores proximidades com a poesia romântica passam
necessariamente pelo conhecimento que Ângelo tinha da obra poética de seu pai,
apesar do pouco contacto que com ele manteve. Enquanto colaborador da revista
portuense A Grinalda, entre 1855 e 1859, Pedro de Lima ver-se-á conotado com a
terceira geração do Romantismo português. Com efeito, a sua obra poética Occasos,
5
São pois vários os poemas de Ângelo de Lima que se podem cruzar com os textos ultra-
-românticos: a ampliação do locus horrendus n’«A Noite do Cemitério» de António Feliciano de
Castilho é retocada, mas sem o mesmo exagero, em «Epitáfio» e «Edd’ora Addio...»; com «Edane!»,
num claro louvor à misteriosa luz da noite, Ângelo de Lima evoca superficialmente o poema «A Lua de
Londres» de João de Lemos; a religiosidade vaga percebida nas interrogações retóricas de «O
Firmamento», de Soares de Passos, não ficará esquecida, encontrando um profundo eco em «Dizem os
sábios que já nada ignoram», «Miserere», «Oh Céu», «Deus» e «Qual?...»; «Eu ontem vi-te», pela sua
singela expressão, traduz o estilo de aparente simplicidade do poeta João de Deus, também ele
perseguido por alguns laivos ultra-românticos.
6
Sobre as temáticas sublinhadas, cf. Jacinto do Prado Coelho, A Poesia Ultra-Romântica, ob.
cit., pp. 15-17.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 120
7
«Pedro Augusto de Lima», in Dicionário de Literatura, vol. II, Porto, Mário Figueirinhas
Editor, 1997, pp. 530-531.
8
Título de subcapítulo onde Perfecto Cuadrado inclui Ângelo de Lima, in ob. cit., p. 72.
9
Ângelo de Lima, Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1991, pp. 62 e 88,
respectivamente. Repare-se que estes poemas datam de 1910 e 1917, não correspondendo à fase inicial
da escrita de Ângelo de Lima, pelo que se conclui que a influência de Pedro de Lima se prolonga por
toda a produção de seu filho.
10
Versos de poemas pertencentes a Occasos, Porto, Typographia Lusitana, 1867, pp. 12, 31 e
129, respectivamente.
11
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 51.
12
Pedro de Lima, Occasos, ob. cit., p. 108.
13
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 52.
14
Pedro de Lima, Occasos, ob. cit., p. 30.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 121
referências que Ângelo acabará por ilustrar com os desenhos n’ A Geração Nova,
como a lira, a mulher-anjo, as campas e as trevas nocturnas15.
Também os termos desconhecidos e anómalos que brotam na poesia de Ângelo
de Lima fazem eco do requintado e pretensioso vocabulário utilizado por seu pai. Em
Occasos abundam termos como róseo, gemebundo, cerúleo, almo, níveo, estivo,
favónio, nebel, entre outros tantos, que, a par das epígrafes não traduzidas que
sustentam cada poema, de Hugo, Dante, Racine, Byron, Balzac, Chateaubriand e
Goethe, e das próprias referências bíblicas, históricas e literárias, retratam a cultura de
Pedro de Lima, bem mais vasta e consistente do que a de seu filho16.
Mas a utilização de vocábulos raros na poesia de Ângelo de Lima tem sido
apontada por vários críticos como uma das mais importantes marcas que o aproximam
do Simbolismo. Conforme esclarece Fernando Guimarães, a forma linguística destes
termos pode ser detectada ao nível das sucessões fónicas e ao nível das funções
sintácticas ou morfológicas17. Quer isto dizer que alguns dos vocábulos desconhecidos
encontram a sua origem na necessidade de fazer aparecer uma determinada classe
morfológica, que, por sua vez, pode ser detectada pela posição sintáctica que ocupa no
15
Ângelo de Lima, em quase todos os desenhos das capas desta revista, recorre à lira, que, a
par da assinatura «ANGELO», se revelou uma marca do autor. Na mitologia grega, este instrumento
representava a relação entre o céu e a terra, simbolizando a música dos deuses. Num dos desenhos, a
lira surge nos braços de um rapaz com umas vestes largas, ao lado de uma mulher que lhe dá a mão, e
ambos parecem movimentar-se, como se fugissem, olhando o rapaz fixamente para o céu. Poderá ser
uma referência a Orfeu, enquanto jovem, amparado por sua mãe (cf. A Geração Nova, nº 9, Porto, 20
de Outubro de 1894). A lira surge, num outro desenho, nos braços de uma «Muza» (sic), segundo
legenda do autor, com asas de anjo e longos cabelos ondulados (rev. cit., nº 8, 29 de Setembro de 1894).
A figura da mulher-anjo, inacessível, também se destaca numa outra capa preenchida por um cenário
tipicamente romântico: a figura de Antero de Quental surge das trevas criadas por troncos de árvores
que se entrelaçam e que mais parecem desenhar monstros infernais; a lira, porém, encontra-se numa
parte mais clara, quase encoberta pela vegetação suave, por baixo de uma figura feminina angelical
(rev. cit., nº 7, 11 de Setembro de 1894). No número oito, destaca-se ainda «O Tumulo do Cruzado»
(sic), numa clara ilustração da estética sepulcral.
16
O primo Carlos de Azevedo Coutinho Braga, também ex-aluno do Colégio Militar, refere
que Ângelo de Lima guardava um exemplar de La Légende des Siècles de Victor Hugo, que havia
pertencido a seu pai. Ângelo traduziu a lápis alguns versos no próprio livro, ilustrando outros com
desenhos, e nele compôs os poemas «Fique na Terra a triste humanidade» e «Alma que da minh’alma
se aproxima». Curiosamente, o poema traduzido intitula-se «Un peu de musique» (cf. «Responda Quem
Souber – Ângelo de Lima, Ex-205/1882», Revista da Associação dos Antigos Alunos do Colégio
Militar, 15, Lisboa, Abril de 1969, pp. 57-60).
17
«Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., p. 20.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 122
verso18. Por outro lado, verifica-se que a preocupação com o apuro musical dos
versos, condição tão cara aos simbolistas, desencadeou o surgimento de termos como
Olorescente, Acinte, Cipresinte, Orinte e Hiante, em «Cântico Semi-Rami», ou, mais
flagrante ainda, Almeia, Azual, Transe, Stringe e Elance, em «Edd’ora Addio... – Mia
Soave».
Repare-se ainda que a musicalidade neste poema de Ângelo de Lima não se
reduz ao jogo de sonoridades do verso, pois prolonga-se em ressonâncias interiores e
exteriores ao texto, tornando-o um «laboratório do sentido»19. A própria ilusão
referencial vai fazer com que os signos deste poema, meticulosamente arrumados no
verso, se apropriem do carácter irreferenciável, polivalente e extensivo do símbolo. A
relação convencional entre significante e significado ficará, deste modo, anulada pela
secreta musicalidade de que se revestem as palavras. Em «Edd’ora Addio», a
libertação de ritmos contribui para a sugestão sonora, criando múltiplas possibilidades
associativas entre as palavras e fazendo do texto um espaço ilimitado de sensações,
emoções e sentimentos.
O predomínio do vocabulário maiusculado complexamente evocativo nos
textos de Ângelo de Lima, fruto do surgimento de termos pouco usuais, de outros
deformados sob a aplicação de afixos ou pela supressão de formas, do recurso aos
latinismos e da própria criação neológica, corrobora a renovação linguística e
estilística levada a cabo pelos poetas do Simbolismo na revalorização do valor musical
das palavras20. O poema «Olhos de Lobas!»21 é exemplificativo de uma linguagem
subjugada a um equilíbrio fonético do verso, fazendo aparecer termos como
18
Termos como «Espasma», no poema «Cântico Semi-Rami», e «Espeos», em «Ocaso», por
exemplo, dificilmente serão descodificados se vistos fora do contexto; mas, quando colocados no verso,
percebe-se, pelo menos, a sua classe gramatical: «E Errou Espasma Noutes sem Termino» – adjectivo;
«– Povos – Orai no Espeos Divinal...» – substantivo (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit.,
pp. 77 e 69, respectivamente).
19
Expressão de Mireille Calle-Gruber, «Anamorphoses Textuelles», Poétique, 42, Paris, Seuil,
Abril de 1980, p. 250.
20
Segundo José Carlos Seabra Pereira, «Nesta sua inaudita preocupação formal (no melhor
sentido), o Simbolismo entrega-se a uma alta valorização da palavra em si, ou antes, da beleza do
significante» (Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos
Românicos, 1975, p. 89).
21
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 54.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 123
22
Posição defendida por Fernando Guimarães («Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob.
cit., p. 16). Jorge de Sena vai mais longe, argumentando que a linha representada por Camilo Pessanha
«foi levada à pura música e angustiosa imaginação com a criação audaciosa de palavras e distorções de
sintaxe por Ângelo de Lima» [«Literatura Portuguesa (Europeia e do Brasil Colonial)», in Amor e
Outros Verbetes, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 253]. A complexa proximidade entre os dois poetas
agudiza-se no cruzamento dos versos do poema «Dizem os sábios que já nada ignoram», de Ângelo de
Lima, com a curta «Inscrição», que abre a obra poética Clepsydra de Pessanha, mais concretamente na
coincidência rímica de verme com inerme (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 35) ou
de inerme com verme (cf. Camilo Pessanha, Clepsidra, Lisboa, Editorial Comunicação, 1979, p. 67).
23
Gustavo Rubim, «Traços Fugitivos: a Inscrição em Camilo Pessanha», in A Inscrição
Espectral – Poética do Vestígio em Camilo Pessanha, Dissertação de Doutoramento, Lisboa,
Universidade Nova de Lisboa, 1998, p. 40.
24
Ângelo de Lima e Camilo Pessanha perseguem, de diferentes modos, mas sustentados por
um pensamento comum, o desejo de Stéphane Mallarmé: «sugerir, eis o sonho [...] Deve haver sempre
enigma na poesia, e o objectivo da literatura – não há quaisquer outros – é evocar os objectos» («Sur
L’Évolution Littéraire», in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1945, p. 869).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 124
25
Cf. Fernando Cabral Martins, Poesia Simbolista Portuguesa, Lisboa, Editorial
Comunicação, 1990, pp. 27-28. A ligação entre os dois poetas, e, em última análise, entre estes e os de
Orpheu, foi feita, por exemplo, no panfleto de arte Lácio: os poemas «Neitha-Kri», «Ninive» e «Estes
Versos Antigos Que Eu Dizia», de Ângelo de Lima, foram publicados na Antologia da Poesia Viva,
juntamente com os poemas de Camilo Pessanha (cf. Lácio, 1, Lisboa, Fevereiro de 1938). Os números
2 e 3 são dedicados, respectivamente, a Mário de Sá-Carneiro e a Fernando Pessoa.
26
Fernando Guimarães, «Camilo Pessanha e os Caminhos de Transformação da Poesia
Portuguesa», Colóquio/Letras, 60, Lisboa, Março de 1981, p. 38.
27
As temáticas simbolistas destacadas neste parágrafo foram retiradas de José Carlos Seabra
Pereira, Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, ob. cit., pp. 71-86 e 262-356.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 125
28
Sobre as revistas A Geração Nova e A Arte, cf. José Carlos Seabra Pereira, idem, p. 218.
29
Cf. «Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., p. 18; Simbolismo, Modernismo e
Vanguardas, Lisboa, INCM, 1982, p. 19; Poética do Simbolismo em Portugal, Lisboa, INCM, 1990,
pp. 13 e 38-39. Salienta-se ainda a selecção de poemas de Ângelo de Lima que Fernando Guimarães
apresenta em duas antologias poéticas do Simbolismo: «Tédio», «Neitha-Kri», «Edd’ora Addio... – Mia
Soave», «Não Tinha» e «Olhos de Lobas!» (idem, pp. 209-212); e estes três últimos com o poema «O
Mar...», em Simbolismo, Saudosismo e Modernismo: Antologia de Poesia Portuguesa do Século XX,
Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2001, pp. 79-82. Também Fernando Cabral Martins inclui na
antologia Poesia Simbolista Portuguesa os poemas «Eu ontem vi-te...», «Pára-me de repente o
Pensamento...», «Sonhos» e «Dizem os sábios que já nada ignoram» (in ob. cit., pp. 141-145).
30
Acerca do paradoxo tradição/ruptura, cf. Octavio Paz, Los Hijos del Limo, Barcelona, Seix
Barral, 1998, passim. O próprio movimento de Orpheu foi devedor da oposição pós-simbolismo /
vanguardismo: com marcas simbolistas, decadentistas e saudosistas, congregando o passado e o
presente, os modernistas portugueses projectaram a sua poesia no futuro, incorporando as novas
tendências europeias. Sobre o hibridismo do movimento órfico, cf., entre outros, Fernando Guimarães,
«A Geração do Orpheu e o Simbolismo», in Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, ob. cit., pp.
35-43, e O Modernismo Português e a sua Poética, Porto, Lello Editores, 1999, pp. 69-70; Fernando J.
B. Martinho, «Fernando Pessoa e a Problemática das Influências Literárias», in Pessoa e a Moderna
Poesia Portuguesa – do «Orpheu» a 1960, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991, pp.
17-26; e Jorge de Sena, «Prefácio», in Poesia do Século XX, Porto, Editorial Inova, 1978, pp. 38-46.
Ver ainda Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, 1966, p. 126. Mas
nem por isso «podemos [...] [considerar Ângelo de Lima] rigorosamente como um poeta da geração do
Orpheu» (Fernando Guimarães, «Ângelo de Lima: Poeta do Orpheu», Diário de Lisboa, Lisboa, 22 de
Outubro de 1970, p. 4).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 126
Da Continuidade na Ruptura
31
Na verdade, muito pouco se sabe da relação do poeta com os de Orpheu. Afonso de Castro
refere que Ângelo de Lima tinha obtido permissão, no Hospital de Rilhafoles, para sair à noite,
passando a frequentar a «Brasileira do Chiado» («Ângelo de Lima», O Diabo, Lisboa, 16 de Maio de
1937, p. 5). A ser verdade, poderá Ângelo de Lima ter conhecido nesse café o grupo de Fernando
Pessoa. Percebe-se nas cartas de Mário de Sá-Carneiro a Pessoa uma curiosidade pelos poemas de
Ângelo de Lima (cf. Mário de Sá-Carneiro, Correspondência com Fernando Pessoa, vol. II, Lisboa,
Relógio d’Água, 2003, p. 34). Também Almada Negreiros, a propósito da loucura, refere-se-lhe num
dos seus poemas: «Já alguém sentiu a loucura vestir de repente o nosso corpo? // Já. // E tomar a forma
dos objectos? // Sim. // E acender relâmpagos no pensamento? // Também. // E às vezes parecer ser o
fim? // Exactamente. // Como o cavalo do soneto do Ângelo de Lima? // Tal e qual.» («Reconhecimento
à Loucura», in Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pp. 156-157).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 127
32
«Entre duas Efemérides: Evocação de Ângelo de Lima», Critério, 1, Porto, Universidade
Católica Portuguesa, Maio de 1937, p. 9, e «Elegia da Loucura», Apeadeiro, 2, Vila Nova de
Famalicão, Quasi Edições, Primavera de 2002, p. 136.
33
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 70.
34
Idem, p. 87, ou em Orpheu, Lisboa, Contexto, 1994, p. 93.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 128
35
Excepcionalmente, utilizar-se-á para citação deste poema a versão publicada em Orpheu 2,
ob. cit., p. 93.
36
«Tempo e Texto de Orpheu», in Poligrafias Poéticas, Porto, Lello & Irmão Editores, 1994,
p. 279.
37
Jorge de Sena, «Post-fácio – 1963», in Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1998, p. 159.
38
Orpheu, ob. cit., pp. 88-90 e 87-88, respectivamente; ou Ângelo de Lima, Poesias
Completas, ob. cit., pp. 78-81 e 75-77.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 129
39
António de Navarro, «Estudo para um Ensaio – Ângelo de Lima», Presença, 31-32,
Coimbra, Março-Junho de 1931, pp. 11-13.
40
Orpheu, ob. cit.: Alfredo Pedro Guisado, p. 44; Mário de Sá-Carneiro: versos de «Distante
Melodia...», p. 13; Álvaro de Campos, pp. 71-76, e Fernando Pessoa, p. 162. As referências egípcias
presentes em alguns poemas de Ângelo de Lima constituem um dos elementos que levariam Georg
Rudolf Lind a levantar a hipótese de Fernando Pessoa, «na qualidade de redactor responsável de
Orpheu II», ter retocado os esboços originais do poeta de Rilhafoles. Como justifica Lind, «os motivos
egípcios do Cântico Semi-Rami reaparecem na Chuva Oblíqua do próprio Pessoa», ao que acrescenta
«o número elevado de noções cultas nestas oito poesias, ausentes – ou quase ausentes – do resto das
poesias de Ângelo de Lima». O crítico remata dizendo que estes poemas publicados em Orpheu 2 «têm
uma elaboração artística consciente, que não encontramos na restante produção» (recensão crítica a
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 130
«Ângelo de Lima, Poesias Completas», Colóquio/Letras, 3, Lisboa, Setembro de 1971, p. 78). Esta
hipótese, aliás bem difícil de provar, seria objecto de rejeição por parte de Fernando Guimarães. Ao
comparar os poemas escritos antes e depois da referida publicação, o crítico conclui que essa diferença
qualitativa não é assim tão linear como Lind faz crer. Além disso, coloca uma questão, a meu ver,
fundamental e decisiva nesta controversa possibilidade: se Fernando Pessoa tivesse efectivamente
retocado as composições mais extensas de Ângelo, por que razão não o teria feito também nos textos
mais curtos, como no fragmentado poema «– Eras... nos Tempos Antes da Idade...»? Parece-me haver
ainda um outro argumento importante sublinhado pelo organizador das poesias de Ângelo de Lima: «a
ocorrente perturbação da contiguidade textual [...] abre novas direcções [...] no domínio expressivo, que
se não esgotaram totalmente até à poesia dos nossos dias» (cf. «Uma Hipótese sobre Ângelo de Lima»,
Colóquio/Letras, 5, Lisboa, Janeiro de 1972, pp. 64-65).
41
Esta posição é assumida por Maria Aliete Galhoz, que considera Ângelo de Lima paúlico à
margem do Paùlismo («O Momento Poético do Orpheu», in Orpheu, Lisboa, Edições Ática, 1959, p.
XXXVI); bem como por João Gaspar Simões, que o aproxima mais do interseccionismo [«Ângelo de
Lima, Poesias Completas», in Crítica II (Poetas Contemporâneos 1960-1980), Tomo II, Lisboa,
INCM, 1999, p. 52].
42
Orpheu, ob. cit., p. 91; ou Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 82.
43
José de Almada Negreiros, porém, propõe os Paludes de André Gide na origem do termo
Paùlismo, provavelmente como forma de mostrar a abertura da geração de Orpheu à cultura europeia
(Almada Negreiros, Orpheu 1915-1965, Lisboa, Ática, 1965, p. 11).
44
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, ob. cit., p. 126. Cf. José Augusto Seabra, «Tempo
e Texto de Orpheu», in ob. cit., pp. 270-277, e Fernando Guimarães, Simbolismo, Modernismo e
Vanguardas, ob. cit., p. 26. Ver ainda «Tentativa de um Ensaio sobre a Decadência», de Luís de
Montalvor, Centauro, Lisboa, Contexto, 1982, pp. 7-12.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 131
Orpheu 145. Estes textos celebram singularmente a estética paúlica, chegando mesmo
a perceber-se em «Apoteose» certas afinidades com o poema-referência do Paùlismo,
«Pauis», apoiando-se no seu restrito vocabulário e traçando as temáticas deste ismo,
mas superando-o, pois levou-o mais longe do que qualquer outro poeta de Orpheu.
Em «Salomé», na libertação das imagens perceptivas, a insónia roxa, a luz
morta de luar, o aroma que virou cor, as sombras fátuas, o sujeito poético mantém-se
vigilante perante a Morte que se desenha no espaço que o rodeia. Desta forma, o
discurso faz intervir a regência anómala («Ela chama-me em Íris», «A doida quer
morrer-me»), a frase nominal ou infinitiva («Luz morta de luar, mais Alma do que a
lua...», «A luz a virgular-se em medo») e o neologismo («virgular-se», «upou-se»,
«mordoura-se») na intensificação visionária das correspondências, com sentido
baudelairiano, entre o sujeito e a sensação que o próprio percepciona, resultando na
objectivação do domínio subjectivo.
Sá-Carneiro vive obsessivamente o drama, também pessoano, da fragmentação
do Eu, visível em muitos dos seus versos, dos quais se destacam: «E em metade de
mim hoje só moro» («Apoteose»), «Eu não sou eu nem sou o outro, // Sou qualquer
coisa de intermédio» («7»), «– Por sôbre o que Eu não sou há grandes pontes // Que
um outro, só metade, quer passar» («Angulo»), todos pertencentes a poemas
publicados em Orpheu 146. Esta problemática expressão existencial estende-se aliás,
embora sem a mesma projecção, aos outros elementos do grupo, como a Ronald de
Carvalho: «e sinto [...] a sombra do que sou morrer em mim...» («A Alma que
Passa»), a Armando Côrtes-Rodrigues: «Fui Outro e, Outro sendo, Outro serei»
(«Outro»), que, com Violante de Cysneiros, cede ao encanto da heteronímia, e a Luís
de Montalvor: «Miro-me, e não serei a sombra onde me vi?...» («Narciso»)47.
45
Ob. cit., pp. 10 e 17, respectivamente. Maria Aliete Galhoz refere que, a Sá-Carneiro, «o
paùlismo é adequação íntima e vital. Corresponde à obsessiva canção de um ego em enamoramento
reflexo, denso e fruste, queixoso de libertação e amargado de grotesco» («O Momento Poético do
Orpheu», in ob. cit., p. XL). Sobre o Paùlismo em Sá-Carneiro, ver ainda Fernando M. Cabral Martins,
«Formação do Discurso Paúlico», in Mário de Sá-Carneiro e o Modernismo, Dissertação de
Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, 1992, pp. 248-255, e Fernando J. B. Martinho, Pessoa e
a Moderna Poesia Portuguesa – do «Orpheu» a 1960, ob. cit., pp. 38-40.
46
Orpheu, ob. cit., pp. 17, 14 e 15, respectivamente.
47
Idem, pp. 21, 67 e 157, respectivamente.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 132
Mas a ficção do sujeito será vivida de forma singular por Fernando Pessoa. A
sua obra heterónima terá sido concebida como resposta ao desejo de ser Outro48. O
sentir-se múltiplo deu origem a uma multiplicidade de discursos, procurando Pessoa
ultrapassar a fragmentaridade humana na confrontação directa entre identidade e
alteridade e, deste modo, alcançar a totalidade do espírito. Os seus heterónimos
representarão a corporização de sensações psíquicas contraditórias, ou seja, a
expressão da plurissubjectividade que tão declaradamente o invadia e da qual estava
consciente.
A seu modo, e com alcances totalmente diferentes – basta pensar-se que não
fez delas autoras de textos –, Ângelo de Lima vivificou-se em personagens como
Neitha-Kri e Semiramis. Não se pretende, porém, fazer qualquer tipo de comparação
com o desdobramento pessoano, mas apenas verificar que, se no caso Pessoa há uma
tendência para a despersonalização e multiplicação do eu, Ângelo de Lima, pelo
contrário, ao habitar outro, ao falar através do outro, ao apropriar-se dos seus
sentimentos, deseja solidificar a sua identidade. Nesse sentido convergente, o poeta
ocupa personagens ocasionais, julgando, no entanto, que não deixa de ser ele próprio.
Acontece que, depois de Rimbaud e das teorias freudianas, o confronto entre o eu
romântico e o eu moderno torna-se inevitável, acabando Ângelo de Lima por
manifestar na sua poesia uma outra vertente da crise do sujeito que o afirma como um
eu polifacetado vivendo da vontade de ser sempre outro49.
A experiência órfica da pluralidade traduzirá o desígnio sensacionista da
expressão de todas as sensações, sintetizado na «Ode Triunfal» da autoria de Álvaro
de Campos, em Orpheu 1. Sob a forma de um «Ultimatum» tipicamente futurista, o
«sentir tudo de todas as maneiras» foi assim clarificado por Álvaro de Campos:
48
Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, ob. cit., pp. 93-94.
49
Com efeito, através do nome disseminado, do nome falso ou do nome-máscara, Ângelo de
Lima acabará por dar uma nova expressão ao projecto da «dissimulação do sujeito», atribuindo-se um
nome-plural, onde se vê e onde o leitor poderá ver o verdadeiro real (as expressões sublinhadas foram
utilizadas tendo em conta os conceitos de Martine Broda, «De l’Amour d’un Nom aux Faux Noms de
l’Amour», Poétique, 55, Paris, Seuil, Setembro de 1983, pp. 294-300).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 133
Outros, todos diferentes uns dos outros, uns do passado, outros do presente,
outros do futuro. [...] Nenhum artista deverá ter só uma personalidade.50
50
Portugal Futurista, Lisboa, Contexto, 1981, pp. 33-34.
51
Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, ob. cit., p. 186. Acerca da
posição vanguardista do grupo de Orpheu, dirá Fernando Pessoa: «Não somos portugueses que
escrevem para portugueses; [...] somos portugueses que escrevem para a Europa [...] e avançamos para
o futuro» (idem, pp. 121-122).
52
Cf. «Manifesto Técnico da Literatura Futurista», de 1912, sobre o tratamento do aspecto
expressivo do Futurismo [in Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro (Antologia de Manifestos),
Petrópolis, Vozes, 1972, pp. 70-74].
53
Definição de Futurismo, Fernando Pessoa, em carta ao Diário de Notícias, Lisboa, 4 de
Junho de 1915.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 134
de cada verso. O poeta antecipa assim uma estratégia formal que viria a ser
experienciada pelos modernistas portugueses, entre eles Álvaro de Campos. «Ah, um
Soneto...», publicado em 1932 na Presença, realiza plenamente o encadeamento dos
versos, desprezando a harmonia cadencial: «Meu coração é um almirante louco // Que
abandonou a profissão do mar // E a que vai relembrando pouco a pouco // Em casa a
passear, a passear...»54. Recorde-se ainda que alguns sonetos de Ângelo de Lima não
perfazem o total dos catorze versos. Paralelamente, o poema «Estou escrevendo
sonetos regulares» tipifica uma vontade do heterónimo pessoano em deixar versos em
branco no final da suposta segunda quadra e do suposto segundo terceto, daí
acrescentar logo no segundo verso «(Ou quasi regulares) [...]» e confessar a «dor
completa» de «taes gestos e taes ares»55.
Entre o irreal, o imaginário e o alucinatório, o poeta de Rilhafoles comunica
através da subversão formal estados de alma e sensações com profundas raízes no
inconsciente, acabando por tocar, ainda que ao de leve, em quase todos os ismos do
primeiro movimento modernista português. Esta constatação levou Maria Aliete
Galhoz a afirmar que Ângelo de Lima «cabe válida e autenticamente nele»56. O
próprio Fernando Pessoa, numa nota publicada no terceiro número da revista Sudoeste
dedicado aos que foram de Orpheu, não esquece a colaboração de Ângelo de Lima e
afirma a seu respeito: «não deixamos de, saudosamente, fazer lembrar quem, não
sendo nosso, todavia se tornou nosso»57.
54
Álvaro de Campos, Livro de Versos, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p. 300.
55
Idem, p. 301.
56
Em Ângelo de Lima «está o brilho paúlico da sedução das imagens; a cintilação sensual das
sinestesias; o transcendentalismo das interrogações metafóricas; a futurista liberdade da disposição
gráfica» (Maria Aliete Galhoz, ob. cit., pp. XLVIII-XLIX).
57
«Nós os de Orpheu», Sudoeste, 3, Lisboa, Novembro de 1935. Para alguns críticos literários,
a poesia de Ângelo de Lima acabou por ficar circunscrita à sua participação no Orpheu (cf., por
exemplo, José-Augusto França, A Arte e a Sociedade Portuguesa no Século XX, Lisboa, Livros
Horizonte, 1980, p. 18, ou António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa,
Porto, Porto Editora, 1987, p. 1046). É que dessa ligação vão dando provas algumas publicações
literárias como o Cancioneiro do I Salão dos Independentes (1930) e a revista Sudoeste (1935), que
tinham como colaboradores alguns elementos da extinta revista Orpheu e outros da Presença. O
segundo Modernismo português acabará então por reiterar esta tendência, publicando um estudo sobre a
poesia de Ângelo de Lima, assinado por António de Navarro (Presença, 31-32, Coimbra, Março-Junho
de 1931, pp. 11-13), e dando a conhecer dois inéditos, «O Mar» (idem, 46, Outubro de 1935, p. 11) e
«Viver» (idem, 1, 2ª série, Novembro de 1939, p. 43).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 135
porque aquele que escreve é um outro que o possui, tornando-se o poeta um ser
possuído. Desta forma, com as alucinações de Rimbaud, o grande revelador da
realidade-outra, o caminho para a surrealidade estava aberto.
A poesia de Ângelo de Lima, enquanto expressão pura de um espírito
atormentado pela doença que por vezes o dominava, libertando-a de qualquer tipo de
amarras, concretizava naturalmente o que os surrealistas cultivavam com a «escrita
automática»: o seu ser, possuído por um outro, mas sem os estímulos dos paraísos
artificiais de que falava Baudelaire e tão explorados pelos surrealistas, penetra
naquele espaço de correspondências que está interdito ao homem comum. O conteúdo
do soneto «Pára-me de repente o pensamento...» acabaria, então, por traduzir o estado
de inconsciência que os surrealistas tanto desejaram exprimir, em formas quanto
possível não premeditadas, sob condições psíquicas particulares, como os sonhos, as
visões e as alucinações60. «Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...»61, o sujeito
poético vê-se à beira de uma nova dimensão psíquica, a latente, que termina com o seu
sofrimento no estado de vigília. No jovem surrealista António Maria Lisboa,
descobriu-se uma expressão paralela à de Ângelo de Lima nos versos finais do poema
«Conjugação», embora o seu alcance se limite à mensagem surrealista de que o acto
poético pressupõe o livre pensamento:
60
André Breton refere no primeiro manifesto que os loucos «retiram um grande conforto da
sua imaginação, que saboreiam suficientemente o seu delírio»; logo, «as alucinações, as ilusões, etc.,
não são uma fonte de prazer a desprezar» (in Manifestos do Surrealismo, Lisboa, Edições Salamandra,
1993, p. 17).
61
Verso pertencente a «Pára-me de repente o Pensamento...» (in Ângelo de Lima, Poesias
Completas, ob. cit., p. 52).
62
António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 62.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 137
expressão do pensamento. Com a criação de uma nova linguagem, pretendiam pôr fim
à insuficiência de palavras e superar a distância entre realidade e inconsciente. A
apropriação surrealista do discurso espontâneo acabou por trazer inevitáveis
consequências para o domínio da escrita, provocando insólitas conjugações de ideias
através de inesperadas analogias entre palavras incompatíveis e, consequentemente,
subvertendo os códigos linguísticos dominantes.
Também a poesia de Ângelo de Lima é confrontada com estranhas associações
de significantes que, por sua vez, se desdobram em vários significados, actualizando
deste modo uma nova realidade. Por ter sido inconscientemente motivada, a sua
linguagem, enquanto instrumento de exploração e de revelação de um novo universo,
estaria mais próxima da «realidade absoluta», no sentido que lhe atribuiu Breton68.
Uma tal linguagem «oferece uma extraordinária lucidez», pois «foi dada ao homem
para ele fazer dela um uso surrealista»69.
A linguagem como factor de transgressão – voluntária pelos surrealistas,
involuntária pelos loucos – acabaria por comprometer «o sempre tão desejado acordo
que existiria entre a natureza, a sociedade e a cultura», de que fala Fernando
Guimarães a propósito da loucura70. Com o Surrealismo, conforme observa Álvaro
Cardoso Gomes:
68
Idem, p. 25.
69
André Breton, idem, pp. 42 e 41, respectivamente. Breton referir-se-ia à necessária
intervenção surrealista no campo da linguagem para a libertar do uso medíocre ou da sua condição
puramente utilitária. Sobre esta questão, cf. André Breton, «Do Surrealismo em suas Obras Vivas
(1953)», in idem, pp. 311-313, e Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier, O Surrealismo, Coimbra,
Almedina, 1976, pp. 113-116.
70
Fernando Guimarães, «Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit. p. 13. Repare-se
que o «discurso do interior» tão proclamado na Modernidade, nomeadamente pelos surrealistas, é
marcadamente semelhante ao discurso produzido pelos esquizofrénicos, mas em nenhum momento,
excepto aquando do inicial cruzamento com o movimento Dada, desejou esse discurso evocar o «não-
-verbal» (cf. Louis Sass, Madness and Modernism, ob. cit., pp. 193-194).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 139
71
A Estética Surrealista, ob. cit., pp. 31-32.
72
Robert Bréchon, Le Surréalisme, ob. cit., p. 154. A mesma posição contra o aprisionamento
de critérios estéticos é tomada pelos surrealistas portugueses: «A literatura nunca nos ocupará
demasiado» (Mário Cesariny, «Sem título» (1948), in A Intervenção Surrealista, ob. cit., p. 88).
73
A antecipação da «escrita automática» nas suas composições revela-se, pois, de difícil
comprovação: por um lado, dificilmente se consegue perceber o grau de automatismo num determinado
texto; por outro, se esse automatismo existiu, poderá ter sido instigado pela própria patologia psíquica.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 140
74
Expressão de António Maria Lisboa, «Cartas», in ob. cit., p. 209.
75
«Do Surrealismo em suas Obras Vivas», in Manifestos do Surrealismo, ob. cit., pp. 311-312.
76
Idem, p. 312. No entanto, alguns dos surrealistas dissidentes ou à margem, como Robert
Desnos, Henri Michaux, Antonin Artaud, Prévert e Queneau, em França, ou António Maria Lisboa,
Mário Cesariny e Alexandre O’Neill, em Portugal, desfrutaram de algumas técnicas poéticas
conducentes à libertação morfológica (cf. Luís Adriano Carlos, «Poesia Moderna e Dissolução»,
Línguas e Literaturas, VI, Porto, FLUP, 1989, pp. 257-258).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 141
Como destacou Luís Adriano Carlos, serão pois os letristas franceses a dar
continuidade a uma via não explorada pelos surrealistas ortodoxos77. Liderado por
Isidore Isou, «o último destruidor na linha dos grandes destruidores»78, o Letrismo
pretenderá, em 1947, acabar com os últimos resquícios do Surrealismo e, por outro
lado, instaurar a «poesia das letras» e pôr fim a «dois mil anos de poesia-em-
-palavras»79. Procurando redescobrir a poesia universal, as suas técnicas passam pela
valorização sonora de cada letra do alfabeto. Ora, é este estado pré-verbal, entrevisto
em alguns dos versos de Ângelo de Lima, que o aproxima dos objectivos da poesia
letrista. Esvaziando os significantes do seu significado, através das justaposições e das
mutilações silábicas, o nosso poeta mais não faz do que valorizar o som de cada letra,
contribuindo antecipadamente na passagem de uma «nova poesia» para uma «nova
música», reclamada pelo grupo de Isou em meados do século XX.
Repare-se que a experiência linguístico-poética de então já não se ficava pela
exploração do desfasamento entre significante e significado, circunscrevendo a sua
acção sobre o significante de maneira a descobrir-lhe a substância primitiva. Tratou-
-se, de facto, de tentar impor uma criatividade modificadora das formas de dispor o
material verbal, como viria a acontecer, de resto, com o Experimentalismo português e
o Concretismo brasileiro.
Pelo que foi dito, não será difícil compreender os motivos que terão levado os
experimentalistas a incluir um poema de Ângelo de Lima na antologia da Poesia
Experimental I em 1964. Carregando a sua poesia uma forte sugestão visual, o autor
de «Edd’ora Addio... Mia Soave...» anuncia a experimentação subversiva na própria
superfície do texto, através da dissolução sintáctica (no recurso a suspensões e
elipses), do uso intempestivo da pontuação e das maiúsculas (que deixam os
vocábulos à deriva no verso), da perturbação do significante (pelo desaparecimento
77
Cf. Luís Adriano Carlos, ibidem.
78
Isidore Isou, Introduction à une Nouvelle Poésie et à une Nouvelle Musique, Paris,
Gallimard, 1947, p. 38.
79
Jean-Paul Curtay, La Poésie Lettriste, Paris, Seghers, 1974, p. 19; sublinhado meu. Segundo
Isidore Isou, os dadaístas, apesar da pretensa destruição da linguagem espelhada em quase todos os seus
manifestos (cf. Tristan Tzara, Sept Manifestes Dada, Paris, Edições Jean-Jacques Pauvert, 1963), não
abandonaram a «palavra», deixando «intacto o principal objecto a destruir». O mesmo terá acontecido,
ainda no seu entender, com os surrealistas, que dos dadaístas receberam a «palavra-herança» (cf.
Introduction à une Nouvelle Poésie et à une Nouvelle Musique, ob. cit., p. 37).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 142
80
«Prólogo», in A Casa das Musas, Lisboa, Editorial Estampa, 1995, p. 10. Acerca dos
motivos na origem deste interesse pela poesia barroca, cf. p. 13. Ver ainda o texto «Experimentalismo,
Barroco e Neobarroco», in idem, pp. 187-193, e, da mesma autora, A Experiência do Prodígio: Bases
Teóricas e Antologia de Textos-Visuais Portugueses dos Séculos XVII e XVIII, Lisboa, INCM, 1983.
81
Ana Hatherly, A Casa das Musas, ob. cit., p. 179. A revalorização de certos recursos
estilísticos da escrita maneirista e barroca daria aos poetas experimentais um outro entendimento da
tradição poética portuguesa e constituiria, «mais uma maneira provocatória de manifestar a sua
oposição ao establishment», [Ana Hatherly, prefácio a Concreta. Experimental. Visual (Poesia
Portuguesa 1959-1989), Bolonha, Universidade de Bolonha, 1989, p. 5].
82
«Introdução», in Antologia de Poesia Concreta em Portugal, Lisboa, Assírio & Alvim,
1973, p. 14.
83
E. M. de Melo e Castro, «A Proposição 2.01», in Po-Ex / Textos Teóricos e Documentos da
Poesia Experimental Portuguesa, Lisboa, Moraes Editores, 1981, p. 128.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 143
opondo-se a um sistema sem dialogar com ele. O poema visual surgirá, portanto,
como um texto que leva ao «silêncio da escrita» e que «conduz o leitor à reflexão
sobre o silêncio das palavras»84.
Também na poesia de Ângelo de Lima se desenha um jogo verbal permeável à
sugestão sonora, à desconstrução semântica e à releitura visual, a que se associa o
efeito de transformação linguística, implicando, tal como reclama Ana Hatherly para a
Poesia Experimental, «uma leitura anagramática», que implica «saber ler o texto sob
o texto»85. Assim, no «Cântico Semi-Rami»86, sob pena de se aprisionar a leitura do
texto, o vocábulo «Semi-Rami» não poderá ser entendido apenas como sendo
resultante do nome próprio Semiramis. Essa derivação, importante aliás na
interpretação do poema, é francamente limitadora se se pensar nas possibilidades
associativas que a simples inversão das letras que compõem o vocábulo pode sugerir:
miseriam. Valorizando cada letra que constitui o anagrama de «Semi-Rami», situação
tão cara a letristas e experimentalistas, pela relação que existe entre o que a palavra
expressa e o que se reflecte na própria expressão do texto, transforma-se a escrita num
labirinto de chaves-de-leitura:
M Matrona, Mistério
I Ideais, Inconsciente
S Silenciosa, Sensitiva, Sacrifício, Senhora, Saudade
E Estrelas, Esp’ranças
R Religiosa, Rosa, Revés
I Inebriante, Inferno, Imensidade
A Amor, Amante, Adolescente, Adulterin
M Memória
84
Ana Hatherly, «A Reinvenção da Leitura», in idem, p. 150.
85
Idem, p. 143.
86
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 75-77.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 144
87
Gilberto Mendonça Teles, Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro (Antologia de
Manifestos), ob. cit., p. 46. Cf. Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro, Po-Ex / Textos Teóricos e
Documentos da Poesia Experimental Portuguesa, ob. cit., p. 99.
88
Ana Hatherly, idem, p. 97. Cf. E. M. de Melo e Castro, As Vanguardas na Poesia
Portuguesa do Século XX, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980, pp. 78-80.
89
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 52, 68, 69 e 73, respectivamente.
90
Veja-se o livro de E. M. de Melo e Castro, Poligonia do Soneto, Lisboa, Guimarães
Editores, 1963, passim.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 145
91
E. M. de Melo e Castro, «Experimental – Estrutura», in Po-Ex / Textos Teóricos e
Documentos da Poesia Experimental Portuguesa, ob. cit., pp. 70-71.
92
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 62, 88 e 67, respectivamente.
93
«Outras Personalidades do Primeiro Modernismo», in Entre Fialho e Nemésio (Estudos de
Literatura Portuguesa Contemporânea II), Lisboa, INCM, 1987, p. 584.
94
Octavio Paz, Los Hijos del Limo, Barcelona, Seix Barral, 1998, p. 147.
95
Cf. «La Idea de las Generaciones», in El Tema de Nuestro Tiempo, Madrid, El Arquero,
1966, pp. 4-10.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 146
96
Jacques Derrida, «A Diferença», in Margens da Filosofia, Porto, Rés, s/d, pp. 42-44. Sobre a
desconstrução textual, cf. do mesmo autor, «Carta a un Amigo Japonés», in El Tiempo de una Tesis:
Desconstrucion y Implicaciones Conceptuales, Barcelona, Proyecto A. Ediciones, 1997, pp. 23-27
(carta publicada em Psyché. Inventions de l’autre, Paris, Galilée, 1987). As questões ligadas ao
conceito de desconstrução perpassam quase a totalidade da obra de Jacques Derrida, mesmo quando o
termo não está explícito. No entanto, a aplicação prática deste conceito pode ser encontrada em La
Carte Postale, de Socrate à Freud et au-delà (Paris, Flammarion, 1980), onde, através da fragmentação
do texto, Derrida exercita a desconstrução discursiva.
CONCLUSÃO
1
História da Loucura, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1999, p. 530.
2
Cf. Ângelo de Lima, «– Estes Versos Antigos Que Eu Dizia», in Poesias Completas, Lisboa,
Assírio & Alvim, 1991, p. 87.
3
No sentido da proposição de Ludwig Wittgenstein «Os limites da minha linguagem são os
limites do meu mundo» (Tratado Lógico-Filosófico: Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1987, p. 114).
CONCLUSÃO 148
4
Relativamente à reacção literária contra a representação na Modernidade, Todorov distingue
entre reacção paranóica, perseguida pelos românticos e pelos simbolistas, e reacção esquizofrénica,
patenteada pelas correntes posteriores (cf. «O Discurso Psicótico», in Os Géneros do Discurso, Lisboa,
Edições 70, 1981, p. 89).
5
«Le Langage Poétique: Forme et Function», Diogène, 51, Paris, Gallimard, 1965, p. 91.
CONCLUSÃO 149
6
Luís Adriano Carlos, «Poesia Moderna e Dissolução», Línguas e Literaturas, VI, Porto, FLUP,
1989, p. 252.
7
Roland Barthes, O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 84. O autor destaca ainda
que «para que [a palavra] consiga deportar para muito longe o significado [...] isso granula, isso faz
ruído, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui» (idem, p. 116).
8
Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, 1966, p. 124.
9
Segundo Yaguello, a «palavra louco [...] comporta uma ambiguidade [...] O louco não é
somente aquele que não responde aos critérios da normalidade; é também aquele que ama com
excesso» (Marina Yaguello, Les Fous du Langage, Paris, Seuil, 1984, p. 46).
10
Luís Adriano Carlos, «Elegia da Loucura», Apeadeiro, 2, Vila Nova de Famalicão, Quasi
Edições, Primavera de 2002, p. 137. «Psicóptico» é um mot-valise do autor resultante da intersecção
dos significantes «psicótico» + «óptico».
11
Ângelo de Lima, «Neitha-Kri», in Poesias Completas, ob. cit., p. 81.
ANEXOS
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Agradecimentos ............................................................................................... 3
Nota Prévia ..................................................................................................... 4
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 5