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Isabel Maria Pinto do Souto e Melo 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
O Anfigurismo na Poesia de Ângelo de Lima 
 
 
 
Dissertação de Mestrado em 
Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea 
Apresentada à 
Faculdade de Letras da Universidade do Porto 
 
 
 
 
 
ORIENTADOR 
Prof. Doutor Luís Adriano Carlos 
 
 
 
 
Porto 
 
2003 
Agradecimentos

Ao meu orientador, Prof. Doutor Luís Adriano Carlos,


que me proporcionou o encontro com a poesia de Ângelo de Lima e que, pelo
profundo envolvimento, imensa disponibilidade, sugestões críticas, valiosas
indicações bibliográficas e empréstimo de livros, tornou possível a concretização
deste estudo; mas também porque, no domínio de tantas áreas do saber, alimentou a
descoberta de um percurso cruzado, tantas vezes inquietante, mas sempre um estímulo
ao conhecimento.

À Dra. Ana Rodrigues,


pela amável cedência da sua cópia do dossier clínico de Ângelo de Lima, a que de
outro modo não teria tido acesso.

À Dra. Inês Silva Dias,


que, na qualidade de co-autora de uma comunicação sobre Ângelo de Lima
apresentada no Hospital Miguel Bombarda, me facultou o acesso ao texto não
publicado.

À Drª Deolinda Gomes,


por ter facilitado todo o processo de consulta de bibliografia no Centro de Linguística
da Universidade do Porto.

Às minhas amigas Clara e Célia,


à Clara, em particular, a sua inesgotável disponibilidade e o apoio na área da
linguística, e às duas, o carinho, o estímulo, a troca de experiências e por continuarem
presentes nos momentos mais importantes da minha vida.
Nota Prévia

Os poemas que constituem o corpus do presente estudo serão citados a partir


de Poesias Completas, de Ângelo de Lima (organização, prefácio e notas de Fernando
Guimarães), Lisboa, Assírio & Alvim, 1991.
Na Bibliografia, serão apenas referenciados os materiais citados ou
directamente implicados neste estudo.
As traduções de excertos provenientes de obras ou artigos em língua
estrangeira são da responsabilidade da autora, à excepção de textos literários ou afins,
em que se optou por manter a língua de origem. Nas citações de autores de língua
portuguesa foram respeitadas as variações ortográficas dos originais.
A autora teve acesso a documentos médicos e jurídicos, disponibilizados por
Ana Rodrigues, que, por sua vez, a eles acedeu no Hospital Miguel Bombarda. Estes
textos são reproduzidos nos Anexos.
INTRODUÇÃO

Ângelo de Lima integra um «campo epistemológico», na expressão


foucaultiana1, composto por autores cujos textos subvertem as regras linguísticas,
situação-limite que caracteriza a poética da Modernidade. A preocupação do poeta
moderno assenta na experimentação de valores que coexistem pacífica ou
antagonicamente na própria palavra, explorando desenfreadamente os princípios
fundamentais da produção verbal. Tal só é possível dada a «imperfeição» das próprias
línguas, no sentido mallarmiano, sobretudo ao nível do carácter metafórico dos
vocábulos, condição geradora por si só de equivocidade. Ao destacar certas categorias
da linguagem, este processo deformador exclui o paralelismo convencional entre
significante e significado, conferindo ao discurso a possibilidade de um só significante
poder evocar significados distintos e, desta forma, ter a capacidade de jogar com o
funcionamento da própria língua.
Com o contributo da psicanálise, a relação entre significante e significado
tomou contornos diferentes daqueles que haviam sido propostos por Ferdinand de
Saussure. A poesia moderna, ao fazer uma apologia do inconsciente no desejo do
retorno à língua universal, incorpora esses novos contornos, veiculando a primazia do
significante e destruindo a sua relação directa mas convencional com o significado. Os
fonemas adquirem assim um papel duplo na poesia: são elementos significantes que
fazem corresponder o signo à realidade; por outro lado, estão eles próprios
directamente ligados à experiência sensorial pelas «correspondências sintomáticas e
simbólicas entre os fenómenos fonéticos e os fenómenos não linguísticos»2. Na
própria gesticulação fonética há um sentido inerente que é formado pelo fonema,
sentido esse que revela aquilo que não poderá ser traduzido pelo significado das
palavras, pois estas são apenas intermediárias das mensagens subconscientes e não
censuradas pelo espírito do poeta moderno que ousa dizer o que ainda não foi dito.
1
Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, Lisboa, Edições 70, 1991, p. 53.
2
Ivan Fónagy, «Le Langage Poétique: Forme et Function», Diogène, 51, Paris, Gallimard,
1965, p. 90.
INTRODUÇÃO 6

A poesia de Ângelo de Lima, ao recusar a mera designação dos objectos,


ocultando-os ou distorcendo-os, questiona os limites do significado e as possibilidades
da linguagem. As palavras existem para além daquilo que se entende ser a realidade,
na medida em que a linguagem se representa a si mesma num regime de ficção
extensivo às matrizes do significante. Os problemas surgem no próprio acto de
nomear, na organização dos significados ou ainda na relação das palavras com o que
elas significam, pois as formas não aderem aos referentes. Umberto Eco, fazendo
apelo à teoria peirciana, destaca o facto de o signo ser entendido como «alguma coisa
que está para alguém em lugar de outra, ou por outra», para concluir que o signo
representa o objecto sob um determinado ponto de vista, não podendo, portanto,
representá-lo na sua totalidade3. Por conseguinte, haverá sempre espaço para os signos
sem referente nos textos de Ângelo de Lima, nomeadamente para aqueles que existem
a partir dos significantes e dos extensivos valores metafóricos da sua sonoridade.
O seu discurso poético apresenta-se desta forma impotente mas ao mesmo
tempo criador, quando a palavra transformada e liberta do peso da lógica penetra na
opacidade da linguagem para captar a essência das coisas. Nos seus poemas, a
multiplicidade de referentes, fecundados no espaço-limite entre a consciência e o
inconsciente, revela uma resistência das palavras à representação verosímil do real
pré-constituído, pelo menos através de um resultado fixo e estável que permita uma
descodificação textual definitiva.
Por conseguinte, em finais do século XIX e inícios do século XX, período que
compreende a produção artística de Ângelo de Lima, as reacções ao que o poeta ia
publicando em jornais e revistas são reveladoras do exíguo clima cultural a que então
se assistia numa sociedade adversa a qualquer tipo de renovação ou inovação literária.
Carregando para sempre o estigma da loucura, justificado por dois internamentos
sucessivos em hospitais psiquiátricos, Ângelo de Lima viu a sua poesia reduzida na
crítica da imprensa à manifestação sombria de um poeta maldito4, situação para a qual
3
Umberto Eco, O Signo, Lisboa, Editorial Presença, 1997, p. 26.
4
São vários os testemunhos deixados nesse sentido, dos quais se destacam: Albino Forjaz de
Sampaio, «Um Poeta em Rilhafolles», Ilustração Portuguesa, 286, Lisboa, 14 de Agosto de 1911;
Amadeu Cunha, «A Propósito do Orpheu – O Poeta Angelo de Lima», República, Lisboa, 1 de Julho de
1915; Afonso de Castro, «Ângelo de Lima», O Diabo, 151, Lisboa, 16 de Maio de 1937, e «Como
Conheci o Poeta Ângelo de Lima», Gazeta do Sul, Montijo, 4 de Novembro de 1951.
INTRODUÇÃO 7

contribuiu a sua colaboração na polémica revista Orpheu. No entanto, se essas


críticas, muitas vezes subordinadas a um sentimentalismo paternalista, limitaram o
alcance literário da sua poesia na época, não mais podem ser compreendidas no
contexto actual, até pela forma como evoluiu a própria literatura. A sua poesia
manifesta antes uma necessária ousadia poético-formal, rompendo claramente com a
tradição literária portuguesa e antecipando estratégias retórico-poéticas, factos que
levaram Jorge de Sena a afirmar que Ângelo de Lima foi um dos poetas que melhor
fizeram a transição do Simbolismo para os movimentos de vanguarda5.
Os poemas de ruptura estabelecem a continuidade entre eles num espaço
intertextual que se poderá denominar, em muitos casos, anfigúrico, como resultado de
progressivas transformações textuais deformantes. Esses ataques ao regramento
linguístico e estilístico surgiram teoricamente com os primeiros movimentos de
vanguarda nos inícios do século XX, embora se saiba que estas incursões ao nível da
palavra e do texto só foram possíveis graças a um difuso caminho percorrido até se
chegar ao Simbolismo, que marca o grande ponto de ruptura na libertação da
linguagem poética.
Neste sentido, o presente trabalho divide-se em três momentos. No primeiro,
procurando esconjurar a tentação biografista dos estudos sobre Ângelo de Lima e
assim suspender essa forma de resistência à leitura, põe-se em prática a intersecção da
psicanálise e da linguística como método de acesso à intersecção da loucura e da
literatura. No segundo, através da análise dos poemas de Ângelo de Lima, pretende-se
demonstrar que a sua experiência anfigúrica, além de recair inevitavelmente sobre
aspectos da versificação, incide sobretudo na metamorfose sígnica, mediante
processos de criação lexical, quer pela invenção de formas novas, quer pela
deformação e intersecção de formas já existentes. Por fim, são examinadas as relações
de continuidade e ruptura entre a experiência anfigúrica de Ângelo de Lima e as
correntes estéticas contemporâneas até à Poesia Experimental.

5
«Poesia Portuguesa de Vanguarda: 1915 e Hoje», in Estudos de Literatura Portuguesa – III,
Lisboa, Edições 70, 1988, p. 113.
Se ao menos endoidecesse deveras! 
Mas não: é este estar entre, 
Este quase, 
Este poder ser que... 
Isto. 
Álvaro de Campos 
 
 
Pára‐me de repente o Pensamento... 
Ângelo de Lima 
 
 
O amanhã é dos loucos de hoje. 
Fernando Pessoa 
LOUCURA E LINGUAGEM

Esquizofrenia e Modernidade

A nova atitude estética que surge em finais do século XIX, período que
compreende já uma parte da produção poética de Ângelo de Lima, funda-se na
heterogeneidade decorrente de um discurso críptico que rejeita as formas tradicionais
no uso da linguagem. Os poetas manifestam a partir daí uma preocupação com a
possibilidade de o mundo da interioridade ser mais autêntico do que a própria
realidade convencional, cedendo, por isso, nos termos de Mallarmé, a iniciativa às
palavras1. A poética resultante desta procura no seio do inconsciente traduz-se num
pensamento com tendência para a hiperabstracção, aproximando-se deste modo do
pensamento esquizofrénico. Em Ângelo de Lima, esta experiência é duplamente
conseguida quando o poeta se cruza com o louco na expressão desse lugar
desconhecido, tornando-o caso singular e limite na literatura portuguesa.
O sujeito alienado recorre sistematicamente a referências estranhas que deixam
o ouvinte confuso e à deriva num sistema linguístico caótico e cheio de mistérios, num
mundo independente da linguagem que atrai e inspira, por isso mesmo, o poeta
moderno. Nada complicado foi, pois, para Louis Sass, professor de Psicologia Clínica
na Universidade de Rutgers, estabelecer as afinidades entre a esquizofrenia e o
Modernismo, leia-se Modernidade, no livro que intitulou Madness and Modernism,
concluindo que a esquizofrenia, uma das formas mais comuns de que se reveste a
loucura, é uma doença com tendência a desenvolver-se no seio da cultura moderna2. A
verdade é que, em muitos aspectos, esta doença se aproxima do que de mais
sofisticado se fez na poesia do século XX, tornando-se expressão de uma linguagem

1
Stéphane Mallarmé, «Crise de Vers», in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1945, p. 366.
2
Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought,
Cambridge, Harvard University Press, 1998, p. 367.
LOUCURA E LINGUAGEM 10

que deixa de ser patológica para ser subversiva, comportando uma transgressão formal
e questionando a ordem estabelecida. Na Modernidade, estes aspectos, mais do que
uma tendência, revelam-se portadores de uma identificação poética: «numa época
como esta a esquizofrenia constitui talvez a única garantia de sinceridade em
determinados domínios que, noutros tempos menos incoerentes do que o actual, eram
susceptíveis de vivências e expressões honradas, mas à margem da demência»3.
As invulgaridades lexicais dos nefelibatas, o versilibrismo e as palavras em
liberdade de Marinetti e do futurismo italiano, as experiências paúlicas,
interseccionistas e sensacionistas nos textos dos nossos modernistas, o niilismo
proclamado pelos dadaístas, a destruição dos códigos semânticos pelos surrealistas
franceses, ou a rejeição da sintaxe discursiva no Concretismo brasileiro e no
Experimentalismo português foram entendidas, nas respectivas épocas, como
composições marginais ou extravagantes de gente louca que desafiava o bom gosto
literário. Considerem-se, por agora, as resistências que se fizeram sentir, no caso
português, com o aparecimento do Simbolismo e do Modernismo, pois é em relação a
uma e a outra corrente literária que convém situar, para já, a poesia de Ângelo de Lima.
Não foi pois passivamente que o meio literário acolheu, em 1890, Oaristos de
Eugénio de Castro, poeta pioneiro do Simbolismo em Portugal. A propósito das
reacções que promoveu, refere o autor no Prefácio à segunda edição (1899):

O livro que tão profundamente desconcertou o espirito commodista dos meus


compatriotas, feroz inimigo de tudo o que possa quebrar o somno em que se
deleita de contínuo, o livro que tanta celeuma levantou na imprensa e fez estoirar
tantas girandolas de injurias, esse livro irreverente e estouvado [...] perfume até
então nunca aspirado [...] constituiu um verdadeiro escandalo entre as uniformes

3
Karl Jaspers, Genio y Locura (Ensayo de Análisis Patográfico Comparativo sobre
Strindberg, Van Gogh, Swedenborg y Hölderlin), Madrid, Aguilar, 1956, p. 273. Karl Jaspers, ao
reflectir sobre as relações entre a esquizofrenia e a cultura do seu tempo, refere – a propósito de Van
Gogh, embora possa ser transferido para muitos outros artistas – que o que sobressai da sua obra e o
que a torna deveras excitante é o facto de não pertencer ao nosso mundo e de provocar em nós uma
transformação (idem, p. 272).
LOUCURA E LINGUAGEM 11

sobrecasacas pretas, os occulos uniformes e os uniformes lenços tabaqueiros dos


seus collegas consagrados ou em vias de consagração.4

A sua poesia, ao reflectir uma preocupação mais formal do que temática,


insistindo na renovação vocabular e exaltando a liberdade do ritmo, acabou por
instaurar a polémica literária. Era de facto uma obra ousada no estilo e na
metrificação, como forma de protesto pela originalidade, «premeditadamente anormal
na sua esthetica», que «vae por vezes até á hysteria da imagem e do rythmo»,
hasteando o autor «o pendão da revolta, todo arrebicado em louçanias de phrases, em
themas exoticos, em termos barbaros»5. Eugénio de Castro, na década de noventa,
assumia uma postura contra as gastas convenções da tradição literária portuguesa e
teve de enfrentar algumas oposições de críticos que viam no esteticismo finissecular
uma ameaça aos próprios alicerces da arte na sociedade portuguesa.
Alguns anos depois, muitos foram os epítetos aplicados pela imprensa aos
jovens poetas de Orpheu, apelidando-os de loucos e ligando-os a Rilhafoles. A
ousadia de «alguns rapazes com muita mocidade e muito bom humor»6 escandalizou
aqueles que, por curiosidade, adquiriram e esgotaram o primeiro número da revista,
em Março de 1915, com um título e uma capa indiscutivelmente simbolistas da autoria
de José Pacheco. As composições do heterónimo pessoano Álvaro de Campos, de
Mário de Sá-Carneiro e de José de Almada Negreiros, entre outras, atrevidas na forma
e no conteúdo, provocaram e desafiaram até a ala menos conservadora do meio
literário da época, já habituada às últimas criações simbolistas. O número 2 do
Orpheu, saído em Junho do mesmo ano, consolidou os ideais vanguardistas ao
transgredir o código poético dominante e alcançou o fim proposto: irritar o burguês.

4
Oaristos, Coimbra, J. França Amado Editor, 1900, p. 12.
5
Expressões críticas utilizadas respectivamente por Ramalho Ortigão (p. 15), Fialho
d’Almeida (p. 16) e Abel Botelho (p. 17), in idem.
6
Júlio Dantas, «Poetas Paranoicos», Ilustração Portuguesa, Lisboa, 19 de Abril de 1915,
p. 481. A depreciação directa de Júlio Dantas ao Orpheu e a crítica à publicidade do sucesso da revista,
quanto a ele injustificado, leva à reacção de Almada Negreiros, em Outubro do mesmo ano, com a
publicação do Manifesto Anti-Dantas, contra a geração tradicionalista burguesa, por Dantas
representada, contestando a cultura instituída num país limitado.
LOUCURA E LINGUAGEM 12

Júlio de Matos, ilustre psiquiatra da época, declarou-os doidos publicamente7, ao que


Sá-Carneiro terá respondido: «[…] Então vencemos!»8.
Não foi, pois, inocentemente que Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro,
então directores da revista, acolheram os estranhos versos de Ângelo de Lima,
sensibilizados pela inconstância e pela incoerência do seu discurso: «Tinham dito que
eles, os poetas de Orpheu, eram doidos? Pois agora assumiam-no conscientemente»9.
São vários os testemunhos da loucura ligados à geração órfica: por carta, Sá-Carneiro
desabafa o seu estado demente a Fernando Pessoa10, loucura que acabaria por levá-lo à
aventura, ao excesso e ao suicídio; Raul Leal, além do seu comportamento
assumidamente excêntrico no que diz respeito à sexualidade, tenta o suicídio em
Madrid, através de atropelamento, depois de ter gasto tudo o que tinha herdado «numa
orgia sardanapalesca»11. Por fim, destaca-se o caso Pessoa, que, nas cartas a João
Gaspar Simões ou a Adolfo Casais Monteiro, alude à sua condição de «histero-
-neurasténico» na origem dos seus heterónimos, defendendo que a «hiper-excitação»
passou a ser regra12.

7
Refere Júlio de Matos que «os psichiatras [...] teem abundante materia de estudo [...] Os
collaboradores do Orpheu [...] pertencem a uma cathegoria de individuos que a sciencia definiu e
classificou dentro dos manicomios, mas que podem sem maior perigo andar fóra d’ elles...» («Literatura
de Manicómio – Os Poetas do Orpheu – Casos de Paranoia – Tem a Palavra o Sr. Julio de Mattos», A
Capital, Lisboa, 30 de Março de 1915, p. 1).
8
Cf. Jorge de Sena, «Poesia Portuguesa de Vanguarda: 1915 e Hoje», art. cit., p. 112.
9
António Quadros, «O Movimento do Orpheu que foi? Que pretendeu? Que significou?», in O
Primeiro Modernismo Português – Vanguarda e Tradição, Lisboa, Publicações Europa-América, 1989,
p. 126.
10
Numa carta a Fernando Pessoa, datada de 13 de Janeiro de 1916, Mário de Sá-Carneiro
alude à sua própria doidice, comparando-a com a de Ângelo de Lima: «eu estou doido [...] Doidice que
pode passear nas ruas – claro. Mas doidice. Assim como o Ângelo de Lima sem gritaria»
(Correspondência com Fernando Pessoa, vol. II, Lisboa, Relógio d’Água, 2003, p. 142).
11
João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa – História de uma Geração,
Amadora, Livraria Bertrand, 1981, p. 450. Também Raul Leal foi apelidado de louco, chegando mesmo
Fernando Pessoa a ter de intervir publicamente em sua defesa (idem, pp. 537-539). De resto, esta
excentricidade de Raul Leal fora já percebida na «Novela Vertígica», do livro inédito Devaneios e
Alucinações, publicada no Orpheu 2 (1915).
12
Páginas de Doutrina Estética, Lisboa, Editorial Inquérito, 1946: carta a J. G. Simões, pp.
176-177, e carta a A. C. Monteiro, p. 261. João Gaspar Simões diz que esta mania pessoana não era
apenas resultado das leituras sobre psiquiatria, nomeadamente de Max Nordau. O crítico literário
afirmou ser pela sua histeroneurastenia, uma vez que os desvios apresentados por Pessoa eram
hereditários. Além disso, o criador dos heterónimos apresentava graves sintomas de degenerescência:
emotividade excessiva, depressões intelectuais e pessimismo agudo, completa abulia, etc. (Vida e Obra
de Fernando Pessoa – História de uma Geração, ob. cit., pp. 259-265). Cf. ainda as próprias palavras
LOUCURA E LINGUAGEM 13

Pode-se afirmar, no entanto, que a loucura destes homens era, em boa parte,
encenada e decorrente de um misto de euforia e depressão, resultante das experiências
extáticas com o ópio – como dá conta o poema «Opiário» de Álvaro de Campos – e de
todo o misticismo com que promovem as intervenções públicas. Este estado de
pseudo-loucura contrasta com a doença clinicamente confirmada com internamentos
obrigatórios sucessivos de Ângelo de Lima, que surge então como o caso mais trágico
de Orpheu, porque nele a loucura se apoderou do homem e não só da obra13.
Por conseguinte, a crítica não se fez esperar em relação ao segundo número da
revista, chamando as atenções do público e especialmente dos psiquiatras:
«Dividiram-se as opiniões sobre os moços [...] affirmando-se ora que são loucos,
varridinhos de todo, ora que apenas querem divertir-se á nossa custa e vender a
avariada mercadoria [...] soffrem quasi todos da cabeça»14. A suspeita de alienação
mental que pesava sobre os seus autores estava agora comprovada: o segundo número
do Orpheu abre com «Poemas Inéditos» de Ângelo de Lima, poeta internado em
Rilhafoles e cuja «originalidade consiste em semear de maiúsculas os versos que
compõe e que denotam um profundo agravamento de inspiração»15. A loucura real de
Ângelo de Lima só viria corroborar alguns títulos trocistas de jornais e revistas
referentes ao arrojo de poetas para quem se reclamava o hospício16. De facto, como
referiu António Cabral, a doença de Ângelo de Lima acabou por ser «profícua para os

de Pessoa (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Edições Ática, 1966, pp. 9, 94 e 164).
Também Mário Saraiva, através da análise dos antecedentes familiares, das cartas e da obra poética de
Pessoa, isola os sintomas e conclui que o poeta sofreu de «transtorno esquizofrénico», não tendo tempo
a doença de progredir até à dissolução (O Caso Clínico de Fernando Pessoa, Lisboa, Universitária
Editora, 1999, p. 162).
13
Clara Rocha, «Ângelo de Lima: Loucura, Criação e Marginalidade», Letras & Letras, 89,
Porto, 17 de Fevereiro de 1993, p. 10.
14
[S/A], «Artistas de Rilhafolles», A Capital, Lisboa, 28 de Junho de 1915, p. 1.
15
Ibidem.
16
Exemplos: André Brun, «Praxedes Futurista», A Capital, Lisboa, 31 de Março de 1915;
[S/A], «Maluqueira Literária», A Vanguarda, Lisboa, 6 de Abril de 1915; Júlio Dantas, «Poetas
Paranoicos», art. cit.; [S/A], «O Orpheu nos Infernos», Jornal da Noite, Lisboa, 8 de Maio de 1915;
[S/A], «Antipathico Futurismo. Os Poetas do Orpheu não Passam, afinal, de Creaturas de Maus
Sentimentos», A Capital, Lisboa, 5 de Julho de 1915; [S/A], «Muito... Paúlico – Literatura de
Manicomio Astral», O Mundo, Lisboa, 5 de Julho de 1915; [S/A], «Gente para Tudo», A Capital,
Lisboa, 6 de Julho de 1915.
LOUCURA E LINGUAGEM 14

de Orpheu»17. É que, além de promover junto do meio jornalístico o efeito polémico


desejado, a sua «voz acrescentava à dos demais modernistas uma nota que estes não
saberiam dar se os não tivesse ajudado o estranho hóspede de Rilhafoles»18.
Ângelo de Lima havia sido internado nesse hospital psiquiátrico de Lisboa,
hoje Miguel Bombarda, em Dezembro de 1901, e aí viria a falecer vinte anos depois.
Em 1902, numa reportagem sobre os «doidos» de Rilhafoles, intitulada «Miseria em
Lisboa», Ângelo de Lima alega não se sentir bem e que cada dia lhe parece «um
degrau descido a mais»19. Também Albino Forjaz de Sampaio não deixa de fazer
observações ao comportamento excêntrico do poeta, que diz «nada destituído de
habilidade», e aponta uma das razões para o seu internamento: Ângelo de Lima era
frequentemente visto a andar por casa nu, tendo a vizinhança protestado junto das
autoridades «da sua toilette mais do que primitiva»20. Além disso, a entrada aos gritos,
proferindo obscenidades, no teatro D. Amélia, a 3 de Dezembro de 1901, importunado
pelo barulho que se fazia na sala, valeu-lhe a prisão e o reinternamento definitivo em
Rilhafoles21.
Poder-se-ia dizer que a loucura era já uma herança familiar. O seu pai, Pedro
Augusto de Lima, terá morrido louco, depois de ter estado internado no Hospital do
Conde Ferreira, quando o filho tinha apenas onze anos. São várias as referências aos
seus antecedentes sombrios: de nove irmãos, uns haviam nascido mortos, outros logo

17
«Patético versus Noético», Letras & Letras, Porto, 17 de Fevereiro de 1993, p. 11.
18
João Gaspar Simões, «Os Poetas Paúlicos: Luís de Montalvor, Ângelo de Lima, Alfredo
Pedro Guisado e Armando Côrtes-Rodrigues», in Perspectiva Histórica da Poesia Portuguesa, Porto,
Brasília Editora, 1976, p. 246.
19
Título completo: «Miseria em Lisboa – Em Rilhafolles – Os Doidos – Aspectos e Typos – O
Pastellista Monteiro e o Biblico Pinto Ramos – Um Poeta no Manicómio – A Morte duas vezes»,
O Dia, Lisboa, 5 de Setembro de 1902, p. 2.
20
«Andava nú por casa e era assim que elle pintava, acocorado sobre a cama» (Albino Forjaz
de Sampaio, «Um Poeta em Rilhafolles», art. cit., p. 212). Esta situação acentua o seu carácter invulgar
e lembra as excentricidades de William Blake, poeta romântico inglês, várias vezes surpreendido em
casa completamente nu a declamar textos de Milton e Dante, também ele desde muito novo obcecado
com visões que soube traduzir na pintura e na poesia.
21
O Auto passado pelo 2º Distrito Criminal de Lisboa (Anexo 1) refere que Ângelo de Lima
foi acusado por «crime de offensas à moral pública» por proferir em «alta voz» a palavra «pôrra».
Perante tal acusação, o arguido responde que «não se lhe podia pedir responsabilidade alguma, pois que
a palavra não é obscena e não tem culpa alguma que o povo lhe dê tal interpretação». Na «Ficha de
Identificação» do doente Ângelo de Lima, de Rilhafoles, pode ler-se que foi «Admittido» «Em virtude
de officio nº 343 do Juiz de Direito do 2º Districto Criminal de Lisboa» para «observação» (cf. Anexo 2).
LOUCURA E LINGUAGEM 15

se extinguiram por meningite; sofria ainda outro de perturbações mentais, ficando a


única rapariga sobrevivente a residir no Porto com a mãe; o avô paterno matou a
mulher com quem maritalmente vivia e de quem tivera o pai de Ângelo de Lima22.
A «Autobiografia» confirma alguns dados incluídos no Relatório Médico e
esclarece algumas características pessoais, fazendo remontar a primeira manifestação
da doença à fase em que é expulso do Colégio Militar23, em 1888, depois de lá passar
seis anos. Taborda de Vasconcelos lembra a propósito a «personalidade pré-psicótica
que, desde criança, se manifesta[va] na rebeldia, indolência e versatilidade do
humor»24, concorrendo para a longa evolução da doença de Ângelo de Lima. O poeta
afirma já na mocidade passar horas imóvel a fixar um objecto e, na tropa, noctívago e
estroina, falta aos compromissos militares, acabando por sofrer «30 dias de prisão
correccional»25.

22
Mendes Corrêa, O Genio e o Talento na Pathologia, Porto, Imprensa Portuguesa, p. 175.
Ver ainda Litoral, 4, Lisboa, Outubro-Novembro de 1944, p. 449, e Taborda de Vasconcelos, «Retrato
Psicológico de Ângelo de Lima», O Tripeiro, 5, Porto, Maio de 1968, p. 138. Segundo Júlio de Matos,
num estudo de 1884, nove em cada dez casos observados de alienação mental comprovam uma
predisposição para a influência hereditária (cf. Manual das Doenças Mentaes, Porto, Livraria Central,
1884, p. 15).
23
«Autobiografia» publicada pela primeira vez em Litoral, n. cit., p. 449. Carlos Azevedo
Coutinho Braga, na Revista da Associação dos Antigos Alunos do Colégio Militar, traça sucintamente a
biografia do seu primo Ângelo, aluno nº 205, referindo que a expulsão se deveu somente ao facto de ter
reprovado nos 3º e 4º anos («Responda Quem Souber», rev. cit., 15, Lisboa, Abril de 1969, p. 56).
Ângelo de Lima, porém, na já referida «Autobiografia», assume, «por tendência e um tanto por
preocupação», ser «um turbulento [...] talvez porque raciocinasse com certo valor as turbulências»
(Ângelo de Lima, Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1991, pp. 101-102).
24
«Retrato Psicológico de Ângelo de Lima», O Tripeiro, n. cit., p. 140.
25
Baseando-se na «Autobiografia» do poeta, Ana Rodrigues salienta a posição de Ângelo de
Lima na época face ao sistema político vigente, referindo no seu estudo que Ângelo «teve uma breve
incursão no meio da oposição política, envolvendo-se com grupos de conspiração republicana,
chegando mesmo a inscrever-se num Batalhão Académico (que foi proibido pelas autoridades) e a
participar nos planos que resultaram no falhado golpe republicano de 31 de Janeiro de 1891». A
investigadora destaca ainda que os escritos referentes ao projecto da Bandeira Nacional (cf. Ângelo de
Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 113-118), embora confusos, mostram-no crítico «em relação ao
modelo de democracia representativa posto em prática pela República [...] o que o aproxima do grupo
de intelectuais desiludidos com o novo regime» («Ângelo de Lima», trabalho inédito, realizado no
âmbito da disciplina de História Cultural e das Mentalidades Contemporâneas na Universidade Nova de
Lisboa, 1999/2000. Consultado em http://planeta.clix.pt/ilinx/textos/angelolima.htm, em 19 de Março
de 2003).
LOUCURA E LINGUAGEM 16

De qualquer forma, Ângelo de Lima chegou ao posto de 2º Sargento de


Infantaria nº 6, participando numa expedição militar a Manica no ano de 189126.
Passou sete meses em África «com as vísceras flutuando em vinho», conforme
revelam as cartas que de lá envia aos seus familiares, patenteando uma já clara
desarticulação lógica do discurso e do pensamento. Regressou de Moçambique com
infecções e doenças várias e, «após irregularidades de conduta [e] excitações
irregulares de sentimento», por «tentar amores com uma irmã», foi internado no
Hospital do Conde Ferreira, no Porto, entre Novembro de 1894 e Janeiro de 1898. Na
revista Litoral, publica-se o diagnóstico clínico feito naquela época: desconfiança da
família, alcoolismo, delírio de perseguição, insónia e períodos de grande excitação27.
Desse período bastante criativo, sabe-se que colaborou como director artístico
na revista portuense A Geração Nova e que, a par do desenho, escrevia, chegando
mesmo a ver publicados na época alguns poemas em jornais e revistas literárias. A
propósito da sua veia artística, dirá Miguel Bombarda: «com o lápis é um emérito
desenhista [...] Com o pincel, porém, é uma lástima e não chega a ter consciência do
seu nulo valor [...] Poeta a suas horas, tem coisas de valor [...] E ao mesmo tempo
produz bocados de prosa sem redacção nem gramática [...] com palavras [...] algumas
vezes ininteligíveis pelo sentido». Reconhece, no entanto, que «o fundo mental dêste
doente é de um formidável desequilíbrio»28.

26
O poema «Aos Mortos de Coolela» (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp.
40-41), publicado pela primeira vez por Alberto Moreira no Jornal de Notícias, em 16 de Dezembro de
1955, terá sido escrito no Hospital do Conde Ferreira e dá conta, além da homenagem aos seus muitos
camaradas mortos em Coolela (no combate de 1895), da sua vivência enquanto soldado amedrontado,
vigilante e perseverante, nas selvas «D’uma outra gente». Também as cartas que envia aos seus
familiares (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 105-109) são reveladoras da ansiedade
que tão frequentemente o invadia nessa aventura a África, criando-lhe mesmo alucinações e estados
oníricos tenebrosos. Cf. o poema «O Mar...» (idem, p. 90).
27
«Relatório sôbre o estado mental de Angelo de Lima», Litoral, n. cit., pp. 452-455.
Desaparecido o seu processo clínico do Hospital do Conde Ferreira, resta uma Certidão, passada pela
instituição a pedido de sua mãe, que confirma o diagnóstico (cf. Anexo 3).
28
«Relatório sôbre o estado mental de Angelo de Lima», Litoral, n. cit., p. 453. Desconhecem-
-se as pinturas de Ângelo de Lima a que terá tido acesso o Dr. Miguel Bombarda, sendo difícil confirmar
o tal «nulo valor» que diz terem. No entanto, são conhecidos os seus desenhos n’A Geração Nova, por
exemplo, cuja qualidade, sempre discutível, aponta para um domínio técnico apreendido certamente
enquanto aluno da Academia de Belas Artes, no Porto, entre 1888 e 1891. No jornal Diário da Manhã,
faz-se referência a um «papel de forrar casas, commemorativo do Centenário da India» da autoria de
Ângelo de Lima: «É, porém, de justiça que se saiba que o primoroso desenho d’aquele papel é devido ao
lapis do nosso desventurado amigo Angelo de Lima» («Angelo de Lima», Diário da Manhã, Lisboa, 26
de Maio de 1898, p. 9). Na «Ficha de Identificação» de Ângelo de Lima (cf. Anexo 2), preenchida
LOUCURA E LINGUAGEM 17

Ainda segundo o relatório pericial, de 26 de Novembro de 1902, feito a pedido


de um juiz, aquando da detenção de Ângelo de Lima no Teatro D. Amélia,
«frequentemente se via o doente em solilóquios» pelo Hospital de Rilhafoles, como se
conversasse com alguém «em fortes gesticulações e tom colérico», ao que se
acrescentam as «ameaças, as cóleras, acompanhadas de palavras e de socos pelos
móveis [como] resposta a alucinações do ouvido». Conclui Miguel Bombarda que
«Ângelo de Lima é um alienado», situação agravada pelo álcool, que perturbou «ainda
mais uma evolução cerebral já de si desviada»29. A actividade delirante, o
comportamento autístico, a destruição de padrões morais ou a frieza afectiva,
divulgados neste Relatório, foram sintomas suficientes para Luiz Navarro Soeiro,
psiquiatra do Hospital Júlio de Matos, arriscar o quadro clínico do poeta – a
esquizofrenia30. Este médico refere que Ângelo de Lima, na redacção da
autobiografia, por exemplo, revela «a característica fusão arbitrária de conceitos
diferentes, própria das psicoses esquizofrénicas», ao que se pode acrescentar a
utilização de neologismos, como galcimatia e parvena, e o desregramento na

aquando da sua entrada no Hospital de Rilhafolles, pode ler-se «Profissão: desenhador particular»,
pormenor que aponta para uma determinada valorização do desenho, pelo menos em 1901, em
detrimento da poesia. No Auto do Processo Judicial, que terá levado ao seu internamento, o arguido
declarou ser aquela a sua profissão (cf. Anexo 1).
29
«Relatório sôbre o estado mental de Angelo de Lima», Litoral, n. cit., pp. 453-454. Na já
referida «Ficha de Identificação» de Rilhafoles, refere-se que Ângelo padecia de «Loucura Moral
(nervosa)».
30
«Sôbre o estado mental de Angelo de Lima», Litoral, 6, Lisboa, Janeiro-Fevereiro de 1945,
p. 222. «Esquizofrenia: do grego esquizo (fender; separar) + freno (espírito) – afecção mental
caracterizada pelo relaxamento das formas usuais de associação de ideias, baixa de afectividade,
autismo e perda de contacto com a realidade; demência precoce» (Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986, pp. 711-712). Esta doença
«diversifica-se em formas aparentemente muito dissemelhantes», podendo distinguir-se, no entanto, as
seguintes características: «incoerência do pensamento, da acção e da afectividade [...] o afastamento da
realidade com um dobrar-se sobre si mesmo e predominância de uma vida interior entregue às
produções fantasmáticas (autismo), uma actividade delirante» e a «deterioração intelectual e afectiva»
(Jean Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulário da Psicanálise, Lisboa, Editorial Presença, 1990, p. 146).
Destacam-se ainda, de uma maneira geral, as seguintes características: isolamento do sujeito para
dentro de si mesmo, alucinações, delírios, falar sozinho, desorientação espaço-temporal, amnésia e
inadaptação radical ao mundo exterior (Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, Dicionário de Psicanálise,
Mem Martins, Editorial Inquérito, 2000, pp. 209-212). Eugen Bleuler aplicou pela primeira vez o termo
«esquizofrenia», em 1908, à doença que Emil Kraepelin tinha diagnosticado e designado por «dementia
praecox» em 1896 (Louis Sass, Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art,
Literature, and Thought, ob. cit., pp. 13-14). No entanto, foi Bénédict-Augustin Morel o primeiro a
descrever esta forma de loucura como uma degeneração mental e emocional (cf. Traité des Maladies
Mentales, Paris, Masson, 1860).
LOUCURA E LINGUAGEM 18

construção gramatical das frases, características que são comuns a outros textos seus,
literários ou não, como as cartas com o projecto para a nova bandeira nacional
enviadas ao Governo da República31. Júlio de Matos explica que as palavras
inventadas aparecem neste tipo de doença psíquica como forma de expressão de
sensações e estados de espírito muito particulares e ocorrem a par das «dyslogias
verbaes», palavras estropiadas a que o doente dá um sentido seu e arbitrário32. A
inovação de palavras, quando imposta pela necessidade de exprimir concepções
extravagantes e singulares, é sintomática de alguns tipos de patologias clínicas. Estes
pormenores da escrita são indicativos do estado mental que o atormentava, pois,
parafraseando Lacan, as palavras são os primeiros sintomas das doenças psíquicas,
sintomas esses que são estruturados como linguagem33.
No texto «Eu não estou doudo», que deixou incompleto, Ângelo de Lima
declarou estar a ser manipulado pela sociedade que o abandonara. Afirma-se vítima de
maus tratos e de intrigas e justifica o seu comportamento sobre-excitado como efeito
dos venenos subministrados na comida e não, como lhe querem fazer crer,
consequência do álcool34. Na verdade, como puderam apurar António Lobo Antunes e
Inês Silva Dias, em vinte anos de internamento, o Relatório de Miguel Bombarda
constitui o único parecer médico sobre Ângelo de Lima, «o que diz bem do abandono

31
Esta disfunção linguística mais flagrante se torna num escrito inédito que sugere uma
resposta de Ângelo de Lima ao que ele diz ser um convite do Ministério da Justiça no sentido de se
fazer uma reforma na legislação portuguesa. Nesse texto de 1911, aproveitando a oportunidade para
mais uma vez criticar o excesso de zelo dos tribunais ao decretarem o internamento forçado de alguns
indivíduos em hospícios, Ângelo de Lima ultrapassa todas as regras da coerência do discurso, abusando
paradoxalmente dos conectores textuais. Se por um lado existe uma preocupação com a ligação frásica,
por outro lado também se verifica uma despreocupação ao nível semântico, fazendo aparecer frases
como «E pois ao Individuo, por que Faculte em cumprir se mande – Vivêr – sob ficção que se lhe, Em,
Pois, faça.» ou «Tambem, pois, não Invista, Acceda, senão por sufficientes que, como é legal, se
concizem nas de Instituto» (cf. Anexo 4).
32
«Perturbações da Linguagem», in Elementos de Psychiatria, Porto, Lello & Irmãos, 1911,
pp. 106-107.
33
Escritos, Editora Perspectiva, S. Paulo, 1978, p. 133. Diz ainda Lacan que o «sintoma é [...]
o significante de um significado recalcado na consciência do sujeito» (idem, p. 145).
34
Texto sem data, in Poemas in Orpheu 2 e Outros Escritos, Lisboa, Hiena Editora, 1984, pp.
41-43. Na «Autobiografia», que escreveu antes do segundo internamento, Ângelo refere que «a
sociedade portuense acordando tardia da bronquidão de sentimentos mentais legais, à sobreexcitação
prematura de uma espécie de poltronaria [...] [o] encerrou no Hospital do Conde Ferreira, aonde a
ingénua reclamação do revoltado na surpresa mais auxiliou mentalmente o só motivado encerramento,
custosamente sofrido durante 3 anos e tal» (Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 103-104).
LOUCURA E LINGUAGEM 19

em que [...] viveu durante esse lapso de tempo»35. Sem perceber a doença, aceitou a
sua condição de alienado36.
Afonso de Castro, contemporâneo no liceu de Ângelo de Lima, relembra uma
visita que fez ao malogrado poeta, em 1918, no Hospital de Rilhafoles, e descreve a
sua «figura esguia, angulosa, aprumada de imaginário príncipe exilado», com um
«rosto macerado de asceta» e os «olhos grandes, enigmáticos, possessos de todas as
miragens [...] órfãos de todas as alegrias, viúvos de todas as ilusões, pobres enfermos
de sonhar», numa «aparente serenidade, circunspecção e compostura, abstracto,
ensimesmado». Confessou-lhe Ângelo de Lima que era «assediado, todas as noites,
por flageladoras obsessões» que o obrigavam a permanecer vigilante no «sombrio
desterro». Encontrou-o Afonso de Castro «inteiramente isolado dos outros, dando a
impressão de que estava ali por equívoco, ou vítima de interdição imposta por
criminosa má fé». Refere ainda que, nessa altura, com o «espírito quase inteiramente
restabelecido», não era já a doença que o retinha naquele hospital, era a «miséria»,
pois fora esquecido pela família, que não lhe perdoara a tentativa de incesto com uma
meia-irmã37.

35
Loucura e Criação Artística: Ângelo de Lima, Poeta de «Orpheu», comunicação proferida
na Sessão Científica da Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria, Lisboa, Hospital Miguel
Bombarda, 1974, p. 11. O processo clínico de Ângelo de Lima desapareceu do Hospital Miguel
Bombarda, à semelhança do que aconteceu no Hospital do Conde Ferreira, tendo os autores da referida
comunicação tido a ele acesso em 1974. Não deixam de salientar, ainda, que o nome do doente «nem
sequer figura nos ficheiros do Arquivo...».
36
Um dos desenhos de Ângelo de Lima, reproduzido por Mendes Corrêa em O Genio e o
Talento na Pathologia, retrata dois homens diabolescos escondidos nas trevas, um a tentar alcançar a
lira na parte luminosa e o outro como que a prendê-lo na escuridão (ob. cit., p. 127). Valendo sobretudo
pela legenda que Ângelo lhe atribuiu, «Surgindo sobre o Cerebro o Censo vence com a sua presença as
trevas da loucura, que a bestialidade moral mantem» (sic), este desenho poderá ilustrar o seu estado de
inconformismo perante o internamento em Rilhafoles e a revolta contra aqueles que insistem em mantê-
-lo preso nas trevas da loucura, não o deixando alcançar a musicalidade da vida, simbolizada pela lira.
Aliás, vários documentos referem o estado inconformado de Ângelo face aos internamentos, mas basta
referir-se aqui uma Certidão passada pelo Hospital do Conde Ferreira, em 1898, onde se pode ler: «Diz
[Ângelo] que uns homens mesquinhos exercem prepotencias sobre elle» (cf. Anexo 1).
37
«Angelo de Lima», «Ângelo de Lima, O Diabo, Lisboa, 16 de Maio de 1937, p. 5. Perante
tais acusações, Maria de Nazareth, irmã de Ângelo de Lima, enviou uma carta ao jornal O Diabo, que
publicam em 13 de Julho do mesmo ano, pedindo a rectificação de algumas das inexactidões daquele
artigo, entre elas o facto de ser a doença a não permitir que Ângelo regressasse a casa e de ter tido
sempre a assistência da mãe e da irmã até aos últimos dias da sua vida. O pedido de Mª Amália de
Azevedo Coutinho de Lima, dirigido ao Director do Hospital de Alienados do Conde Ferreira, no
sentido de lhe ser passada uma Certidão justificativa da permanência de seu filho naquela instituição,
bem como das fases detalhadas de todo o tratamento até à data, são indicadoras desse cuidado, embora
só relativas ao primeiro internamento.
LOUCURA E LINGUAGEM 20

As relações entre o sujeito esquizofrénico e o mundo objectivo são


radicalmente transformadas, bem como os laços afectivos, que deixam de existir,
podendo a própria família não ser reconhecida como tal38. As recordações
permanecem isoladas na mente caótica do sujeito que se vê impossibilitado de as
reunir. Além disso, a sensibilidade suscita no doente esquizofrénico sentimentos,
sensações e reacções contraditórias ou nulas. Afastado do convívio familiar e social,
restava a Ângelo de Lima o isolamento junto daqueles que viviam desprovidos de
razão, completamente alienados, indivíduos que, por habitarem num outro mundo, se
tornavam, para a sociedade que os desprezava, sinistros e aterradores.
A absoluta rejeição dos loucos, na época moderna, é o resultado do medo das
suas imprevisibilidades ameaçantes, das suas manifestações demoníacas e da sua
pobreza de espírito. O homem normal erige-se como guardião da razão, lutando pela
protecção dos outros e inviabilizando a contaminação. Michel Foucault, em História
da Loucura, mostra que a «civilização, de um modo geral, constitui um meio
favorável ao desenvolvimento da loucura»39, dado que esta se manifesta sempre
através da colectividade. O homem louco é, sempre foi e será, aos olhos do mundo, o
anti-social e terá sempre a marca da sua condição desprezível ao fugir à normalidade e
ao não respeitar determinadas conveniências estabelecidas pela sociedade onde vive.
Repare-se, no entanto, que este discurso não foi o mesmo em todas as épocas,
pois o próprio conceito de «loucura» foi flutuando bastante também em função das
diferentes sociedades. Para os povos primitivos, aquele a que hoje se chamaria
«louco» seria aceite como um ser superior, porque entendiam estar habitado por
espíritos, e, em consequência disso, mais próximo do conhecimento verdadeiro.
Conforme esclarece Michel Foucault, em História da Loucura, no começo da
Renascença, «a loucura fascina porque é um saber», e este saber «tão inacessível e

38
António Lobo Antunes e Inês Silva Dias consideram a justificação de Ângelo de Lima,
sobre a sua tentativa de incesto, de grande interesse diagnóstico: «julga o doente que o feminino de um
indivíduo é precisamente a sua irmã» (Loucura e Criação Artística: Ângelo de Lima, Poeta de
«Orpheu», texto cit., p. 11).
39
História da Loucura, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1999, p. 366. Muito pertinente é também
esta observação de Juana Elbein dos Santos: «Nomes foram dados – o bárbaro, o escravo, a mulher, a
criança, o leproso, o louco, o criminoso – para marcar a diferença» (O Emocional Lúcido, livro III, s.l.,
Edições SECNEB – Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, 2002, p. 21; sublinhado meu).
LOUCURA E LINGUAGEM 21

temível, o Louco o detém em sua parvoíce inocente»40. A loucura passa então a ser
objecto de reflexão nas várias manifestações da arte: denunciada, exposta, defende-se
e reclama estar mais perto do verdadeiro conhecimento que a razão. Recordem-se os
quadros de Jerónimo Bosch, A Cura da Loucura (1475-1480) ou A Nau dos Loucos
(1490-1500), e a obra Elogio da Loucura (1509) de Erasmo de Roterdão, duas leituras
que se complementam, porque tomam direcções diferentes: «tudo o que havia de
manifestação cósmica obscura na loucura, tal como a via Bosch, desapareceu em
Erasmo», dado que, para este humanista, a «personificação mitológica da Loucura, é
[...] apenas um artifício literário», ou «objecto de seu riso»41. Estas leituras,
sintetizadas no confronto entre a experiência trágica e a consciência crítica,
estimularam o desdobramento da loucura, a partir daqui, em «louca» e «sábia»,
mostrando que o homem «soube encontrar na loucura o caminho capaz de o conduzir
a uma sabedoria interior [...] ao realizar a denúncia, pela desrazão [...] e a transformá-
-la [...] na fonte ambígua de um conhecimento esclarecido»42.
O resultado da descoberta de uma loucura interior à razão, com Erasmo,
possibilitou a separação das duas: a loucura deixa então de ser a figura escatológica
que povoou a pintura de Bosch e o elogio faz-se à razão, condição para a qual René
Descartes contribuiu de forma decisiva. O filósofo francês seiscentista abriu o
caminho para o pensamento filosófico moderno ao postular o dualismo entre o corpo e
a mente e ao eleger a consciência como a sede da razão. A loucura passou então a ser
entendida como um desvio não consciente do indivíduo: «não se pode supor, mesmo
através do pensamento, que se é louco, pois a loucura é justamente a condição de
impossibilidade do pensamento»43.
A aniquilação da consciência, tida como a característica mais comum a todas
as formas de loucura, não deixa de promover reacções contraditórias, como destaca
Louis Sass: se por um lado pressupõe a perda das capacidades da lógica, da reflexão e

40
História da Loucura, ob. cit., pp. 20-21. O Bobo «toma lugar no centro do teatro, como o
detentor da verdade» (idem, p. 14).
41
Idem, p. 28. Cf. ainda p. 24.
42
Fernando Guimarães, «Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in Ângelo de Lima, Poesias
Completas, ob. cit., p. 12. Cf. Michel Foucault, História da Loucura, ob. cit., p. 36.
43
Michel Foucault, idem, p. 47.
LOUCURA E LINGUAGEM 22

da vontade própria, tornando-se o louco num ser estranho e absorto e, por isso,
repulsivo, por outro lado, manifesta-se peculiar ao nível do pensamento e da própria
linguagem, revelando ser um campo de possibilidades infinitas na descoberta de um
mundo até então desconhecido e, por isso, fascinante. Talvez essa razão tenha levado
Sass a afirmar que «os esquizofrénicos sentem muitas vezes que estão, não longe, mas
perto da verdade e da iluminação»44.
A poesia é o meio privilegiado da «descoberta do Logos pelo caminho do
ilogismo»45 e só através dela é possível percorrer as «vias secretas de acesso ao
sentido»46, o que só vem abonar a ideia de que o discurso da loucura e o discurso
poético permanecem frequentemente unidos na tradição ocidental. São pois muitos os
exemplos a que se poderia recorrer, mas basta pensar-se na linguagem sugestiva e
visionária, carregada de um magnetismo misterioso e alucinatório, dos contos de
E. T. A. Hoffmann; ou no Marquês de Sade e na anomalia erótica de que se reveste
toda a sua obra; nos poemas de Hölderlin, ensombrados pela sua doença depressiva;
em Kafka e nas personagens quase esquizofrénicas por ele criadas; ou então em
Alfred Jarry, o grande inspirador do teatro do absurdo, e nas inovações rebeldes que o
dão como um provável esquizofrénico; ou em Antonin Artaud e no seu desespero
existencial convertido em teatro da crueldade; ou ainda no texto de Samuel Beckett À
Espera de Godot, cheio de personagens grotescas, de repetições vazias e de palavras
vagas que formam frases obscuras; e, nas artes plásticas, na técnica pictórica
distorcida com origem na visão interior de Van Gogh e no método paranóico-crítico
de Salvador Dali, todos eles verdadeiros génios loucos que souberam explorar as
profundezas da natureza humana, dando importantes passos na evolução da arte
moderna.

44
Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought, ob.
cit., p. 6. Cf. ainda p. 15. Em História da Loucura, de Foucualt, pode ler-se: «A Loucura […] reivindica
para si mesma o estar mais próxima da felicidade e da verdade que a razão, de estar mais próxima da
razão do que a própria razão» (ob. cit., p. 15). João Lúcio, simbolista português, escreveu: «Diz, às
vezes, um louco: eu vou subir ao céu; // Tenho asas, vou voar, na terra sou proscrito; // E riem todos
dele e ninguém entendeu // Que ali há uma luz que busca o Infinito…» (Descendo, Coimbra, J. França
Amado Editor, 1901, pp. 20-21).
45
Fernando Guimarães, «Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., p. 12.
46
Luís Adriano Carlos, «Entre duas Efemérides: Evocação de Ângelo de Lima», Critério,
Série Nova, 1, Porto, Universidade Católica Portuguesa, Maio de 1987, p. 9.
LOUCURA E LINGUAGEM 23

Até ainda há bem pouco tempo poeta era quase sinónimo de louco, imagem
que se foi concretizando em importantes escritores como Poe, Nerval, Nietzsche,
Hemingway, ou Gomes Leal e Mário de Sá-Carneiro, de quem muitas vezes se disse
que determinado texto era absurdo mas genial. Esta genialidade só era conseguida, no
entender de alguns, por aqueles que haviam entrado no desatino e deixado o
inconsciente governar a sua escrita, criando os efeitos ilógicos que, de outro modo,
seriam impossíveis de atingir. Como destacou Karl Jaspers, com ou sem doença,
aqueles homens estiveram sempre na «primeira fila», pois «O espírito exprime-se por
cima da antinomia saúde-enfermidade»47.
Contraditando a ideia de que não há grande artista que não sofra de qualquer
mania e chamando a atenção para o facto de existirem poucas obras de doentes que
possam reclamar qualquer interesse artístico, Júlio Dantas publicou um estudo em
1900, com o título Pintores e Poetas de Rilhafoles, onde se pode ler:

O preconceito leigo de que não há grande poeta ou grande pintor que não tenha
«aduéla de menos» poderia dar margem a que se esperassem preciosidades da arte
de Rilhafolles. Puro engano. O grande valor do documento do louco é
exclusivamente psychiatrico. O valor esthetico é minimo ou nullo. [...] Sem base
de academias, sem technica, sem cultivo profissional, não há bom pintor nem bom
modelador [...] Evidentemente, do artista louco pode esperar-se mais do que do
louco artista. O que não quer dizer que se deva esperar muito. A ecclosão d’uma
vesania n’um homem de talento, dá immediatamente uma baixa consideravel no
valor esthetico das suas produções ulteriores.48

A ideia do poeta inspirado ou louco deve-se a Platão. No Íon, o filósofo


desvaloriza o poeta por produzir um discurso sobre o qual não é capaz de discorrer
racionalmente, uma vez que está fora de si, não sendo portanto dono da razão. Ao
acreditar que o poeta estava possuído pelos deuses, Platão funde inspiração e

47
Genio y Locura: Ensayo de Análisis Patográfico Comparativo sobre Strindberg, Van Gogh,
Swedenborg y Hölderlin, ob. cit., p. 259.
48
Pintores e Poetas de Rilhafoles, Lisboa, Livraria Editora, 1900, pp. 7-8.
LOUCURA E LINGUAGEM 24

loucura49. Num dos seus mais importantes diálogos, A República, o autor, pela voz de
Sócrates, defende que os poetas imitadores devem ser expulsos da cidade ideal. Por
recorrerem à falsa imitação do mundo sensível, os poetas perturbam a razão e a
harmonia dos componentes da alma, ludibriando o público, ao contrário dos filósofos,
que, através da razão e da reflexão, pretendem alcançar o mundo perfeito dos
arquétipos. Em breves palavras, Platão rejeita a poesia em nome da moral, porque ela
não traz qualquer conhecimento nem contribui para o aperfeiçoamento humano, antes
sujeita os homens à tirania do Eros e das paixões50. Aristóteles apresenta uma
perspectiva contrária: para ele, a poesia não aparece oposta à filosofia, sendo o poeta
um sábio conhecedor do seu ofício. Além disso, o discípulo de Platão reconhece na
mimesis o modo de produção característico do poeta, porque é «congénito ao homem
imitar»51. Seguindo as pisadas aristotélicas, Horácio valoriza a prática poética,
declinando a ideia de que um certo grau de loucura aumenta o talento poético. Para
Horácio, o malus poeta não é mais do que o símbolo do génio não ensinado, para
quem a técnica em nada contribuiu52. Longino, numa síntese das teses platónica e
aristotélica que concilia metafísica e estilística, considera que o arrebatamento sublime
provém do talento inato, da paixão e do entusiasmo do poeta, excluindo a intervenção
dos deuses. Os poetas possuem uma força racional naquilo que dizem, mas estão sob o
impulso do ilógico e do irracional na forma como o dizem53.
Com o Romantismo, a figura platónica do poeta inspirado vulgarizou a
correlação entre loucura e génio artístico. Não surpreende pois que, na segunda

49
Cf. Platão, Íon, Lisboa, Editorial Inquérito, 1988, pp. 49-50. No Fedro, a poesia é
explicitamente uma mescla de inspiração, desejo e loucura: Sócrates declara que o delírio não é um
mal e que os maiores bens vêm por intermédio da loucura, «que é sem dúvida um dom divino» e «a
mais bela das artes, aquela com que se interpreta o futuro». Sócrates vai mais longe, dizendo que a
loucura, «quando encontra uma alma delicada e pura, desperta-a e arrebata-a, levando-a a exprimir-se
em odes e outras formas de poesia», pelas quais o homem «arde no desejo de voar», porque «é a melhor
de todas as possessões divinas e a de melhor origem» (Platão, Fedro, Lisboa, Edições 70, 1997, pp. 57,
58, 59 e 66, respectivamente).
50
Sobre a tirania do Eros ver Livro IX, in A República, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001. Ver também Livro III sobre a expulsão dos poetas da sociedade ideal.
51
Cf. Poética, Lisboa, INCM, 1994, p. 103 e seguintes.
52
Ao tratar a formação do poeta, Horácio mostra que na criação poética não basta ter só ingenium,
sendo preciso também ter ars (cf. Arte Poética, Lisboa, Inquérito, 1984, pp. 99-121).
53
Cf. Tratado do Sublime de Dionísio Longino, Lisboa, INCM, 1984, pp. 44-49, 57-60, 71-73,
82-83, 90-91.
LOUCURA E LINGUAGEM 25

metade do século XIX, o médico italiano Cesare Lombroso considere o génio como
uma faceta afortunada da psicose degenerativa. Numa das suas mais importantes
obras, L’Homme de Génie (1860), Lombroso encontrou características psicológicas
comuns entre o génio e o alienado54. A sua tese conquistou inúmeros seguidores, mas
outros houve que facilmente comprovaram que a fase da escrita produtiva, dos
homens a quem Lombroso se referia, antecedia os períodos mais críticos da
psicopatologia, períodos esses onde dificilmente se encontravam obras com valor
artístico. Lombroso foi ainda acusado de confundir o sistema nervoso dos homens de
génio com o próprio génio55. Aqueles que contestaram as teorias lombrosianas
insistiam, segundo André Blavier, na necessidade de a criatividade comportar a
unidade psíquica56. Além disso, as similitudes encontradas por Lombroso nesses
homens, que ele julga fazerem prova da associação entre genialidade e demência, não
poderão constituir argumento para que sejam adjudicadas gratuita e indiferentemente a
uns e a outros.
Contra Lombroso, Max Nordau, em Dégénérescence (1899), defendia que a
genialidade era um fenómeno saudável e que os modernos seriam os verdadeiros
degenerados57. A sua obra, como aliás a do psiquiatra italiano, teve grande difusão em
Portugal naquela época. Fernando Pessoa foi um dos leitores assíduos de Nordau,
acabando mesmo por encontrar nas suas palavras um conforto para os desvios
sintomáticos que vinha sentindo e expressando através de Alexander Search e que
continuariam a manifestar-se por Álvaro de Campos58. Tal como os simbolistas-

54
Lombroso apresenta um estudo sobre o comportamento psicológico de trinta e seis homens,
que entende serem seres desmesuradamente excepcionais, no sentido patológico do termo (cf. prefácio
de Charles Richet, in L’Homme de Génie, Paris, Librairie Félix Alcan, 1903, pp. VI-VII), entre eles,
Nerval, Baudelaire, Swift, Hoffmann e Schopenhauer. Sobre a teoria da «degenerescência» (cf.
«Introduction», p. XXII).
55
Por Jean Vinchon, por exemplo, em L’Art et la Folie, Paris, Librairie Stock, 1924, p. 30. Cf.
ainda o Prefácio à 3ª ed. (L’Homme de Génie, ob. cit., pp. III-IV), onde Lombroso enumera as várias
críticas que foram feitas à sua teoria.
56
Les Fous Littéraires, Paris, Éditions des Cendres, 2001, p. 23.
57
Cf. texto-introdução da obra, que Nordau dedica ao «mestre Cesare Lombroso»
(Dégénérescence, vol. I, Paris, Félix Alcan Éditeur, 1899, pp. V-VIII). Sobre a posição de Nordau, cf.
Fernando Guimarães, Poética do Simbolismo em Portugal, Lisboa, INCM, 1990, pp. 72-76.
58
Segundo Georg Rudolf Lind, «Este veredicto de degeneração deixou vestígios na obra de
Fernando Pessoa, e a criação dos heterónimos corresponde, entre outras coisas, a esta tentativa de
libertar-se do decadentismo de Alexander Search» («Fernando Pessoa e a Loucura», in AAVV, Actas
LOUCURA E LINGUAGEM 26

-decadentistas, também os primeiros modernistas se aproveitaram da ideia de que os


homens geniais tinham a sua parcela de loucura, fazendo a arte entrar nos domínios da
patologia, da neurose e da degenerescência mental.
Ângelo de Lima era, de facto, um alienado, diagnosticado e comprovado
clinicamente, pelo que muitos foram afirmando ser mais pela sua loucura do que pela
sua genialidade. Entretanto, vários estudos sociológicos e psicológicos vieram mostrar
que certas doenças ligadas à depressão maníaco-depressiva podem, por vezes,
aumentar a criatividade de alguns, pois, nesses casos, a produção linguística torna-se
excitável e intrusiva e os pensamentos fluem rapidamente de um tópico para o outro59.
A psicose poderá estimular a actividade artística e facilitar a expressão de um mundo
que não é refreado por inibições racionais. A loucura torna-se assim um veículo de
comunicação e não de alienação, permitindo, por um lado, a proximidade com uma
linguagem que parece inacessível, facilitando a sua tradução em imagens e em
palavras, e, por outro, a substituição da linguagem poética por uma outra linguagem
adulterada, inconsequente e irracional, só possível de alcançar como consequência
desta fusão entre poesia e loucura.
No soneto «Pára-me de repente o Pensamento...»60, Ângelo de Lima descreve a
entrada no desatino e, ao mesmo tempo, a dor consciente de não poder alterar a sua
condição. Falando «da psicose a partir da psicose»61, este poema manifesta ainda a
interpretação poética de um fenómeno esquizofrénico peculiar, o bloqueio do
pensamento, como um distúrbio das associações que regem o curso da cogitação,
assim descrito nas palavras de um outro esquizofrénico, Antonin Artaud:

do I Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, Porto, Brasília Editora/Centro de Estudos


Pessoanos, 1979, p. 285).
59
Cf. Karl Jaspers, «Sobre as Relaciones entre la Esquizofrenia y la Obra», in ob. cit., p. 256.
60
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 52. As diferentes versões do poema, nas
várias publicações que teve, não alteram o texto na sua essência, pelo que se utilizará para análise
aquele que corresponde ao manuscrito (idem, pp. 28-29) deixado pelo autor. Este poema foi publicado
primeiramente com o título «Tédio», no jornal O Portugal, a 12 de Junho de 1900, e n’ O Dia, a 5 de
Setembro de 1902.
61
Expressão de Julia Kristeva, «A Vrai Dire…», in AAVV, Folle Vérité - Vérité et
Vraisemblance du Texte Psychotique, Paris, Seuil, 1979, p. 9.
LOUCURA E LINGUAGEM 27

[...] contracção que bloqueia o meu pensamento a partir do interior, [que] o torna
rígido como num espasmo; o pensamento, a expressão pára porque o fluxo é
demasiado violento, porque o cérebro quer dizer demasiadas coisas em que pensa
simultaneamente. Dez pensamentos em vez de um apressam-se para a saída, o
cérebro vê todo o pensamento de uma só vez com todas as suas circunstâncias, e
também vê todos os pontos de vista que este pode assumir.62

Desta forma, Ângelo de Lima parece querer traduzir naquele poema a


necessidade consciente do desvio do pensamento para uma dimensão nova e infinita,
que se mostra, ao mesmo tempo, catalisadora de realidades diferentes. O sujeito
poético expressa exaustão e dor no pensar, como se o pensar, por ser tão sôfrego e
alucinado, o tivesse desprovido da própria actividade mental. O pensamento, e não o
acto de pensar, aparece neste texto como algo em-si-mesmo, isolado do sujeito
pensante. E é este produto do acto de pensar que «– Anda em Busca... da Paz... do
Esquecimento». No entanto, a partir da fórmula cartesiana cogito, ergo sum63, um dos
maiores marcos da história do pensamento humano, o pensamento é algo que só pode
ser produzido pelo sujeito; logo, a procura da paz e do esquecimento só pode
constituir um meio de desinvestir o sujeito daquilo que lhe confere existência, ou seja,
do acto de pensar ou de ser racional.
Todavia, este poema encontra-se muito longe da vontade de destituir o sujeito,
mas de garantir ao sujeito um novo espaço que lhe confere ainda maior autoridade
sobre si mesmo: o espaço do inconsciente. Deixar de ser sujeito é perder a consciência
de si e do mundo; mas, neste caso, pelo contrário, o que o sujeito poético ambiciona é,
exactamente, não a perda, mas o aumento da sua autonomia, garantido pela descoberta
de algo além da consciência. A entrada nesta outra dimensão inicia-se no verso
«– Pára Surpreso... Escrutador... Atento», com desenvolvimento explicativo na
comparação «Como pára... um Cavalo Alucinado». A solução não poderia então ser
outra «Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...», na ampliação do seu domínio de
sujeito «– Pára... e Fica... e Demora-se um Momento...», para imediatamente

62
Cit. por Louis Sass, Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art,
Literature, and Thought, ob. cit., p. 201.
63
René Descartes, Discurso do Método, Lisboa, Publicações Europa-América, 1986, p. 78.
LOUCURA E LINGUAGEM 28

mergulhar na Noite, que ele descreve como «escura» e «fria». A dupla adjectivação
caracteriza algo que desconhece, enquanto sujeito que, no percurso do acto de
conhecer, sabe o ponto de partida «Pára à beira do Abismo e se demora» e deduz o
ponto de chegada «E Ele Galga... e Prossegue... sob a Espora!». É que da própria
dificuldade de conhecer surge a certeza de que o sujeito pensa mesmo quando duvida,
mesmo quando não sabe. E, se pensa, existe, ou, dito de outro modo, para pensar é
preciso existir64. Além disso, o existir não é deduzido do pensar, mas intuído nele,
pois a mente é o seu objecto privilegiado e não apenas instrumento do conhecimento.
O sujeito poético, demitindo-se da sua função de sujeito pensante, recusa o
pensamento que, por sua vez, é produto acabado dele, como ser consciente, e obriga-
-se a atingir a inconsciência, esse lado não conhecido que permite o acesso ao
verdadeiro conhecimento de si65. Por conseguinte, com «Um Olhar d’Aço», ele não se
recusa a cavalgar e a explorar os caminhos desconhecidos, enfrentando o problema de
conhecer, isto é, de pensar. O sujeito antevê uma cavalgada do consciente para o
inconsciente, dorida porque desconhecida, mas continuada porque é próprio do
homem avançar, ele que é um ser pensante, na busca incessante do auto-
-conhecimento66.

64
A recusa da dor do pensamento equivaleria a recusar o conhecimento e a própria vida. Esta
preocupação com o sentido anímico da dor é também sentida nos versos de Camilo Pessanha: «Porque
a dor, esta falta de harmonia, // [...] Sem ela o coração é quase nada: // Um sol onde expirasse a
madrugada // Porque é só madrugada quando chora» («Caminho», in Clepsidra, Lisboa, Editorial
Comunicação, 1979, p. 69).
65
A propósito, parece-me bastante pertinente a afirmação de Clara Rocha de que com o
«desvio do pensamento» vem a «possibilidade de distanciamento que permite a Ângelo de Lima assistir
ao espectáculo do seu próprio fluir psíquico» («Ângelo de Lima: Loucura, Criação e Marginalidade»,
art. cit., p. 10).
66
Não me parece, por isso, linear a ligação estabelecida por Yara Frateschi Vieira entre o
conteúdo deste poema e a melancolia, embora tendo em conta que o primeiro título com que aparece
publicado poderá precipitar-nos nessa associação. Tédio é de facto uma palavra-chave no entendimento
do conceito da melancolia; no entanto, este título em pouco ou nada interfere no conteúdo do poema e,
talvez por isso, deixou de o acompanhar na maior parte das publicações do soneto. Além disso, este
título não consta do manuscrito deixado por Ângelo de Lima, o que poderá levar a questionar a sua
autoria. Colocando então de parte o título, encontram-se no texto outros vocábulos (como paz,
esquecimento, abismo e dor) que, quando isolados, poderão remeter para a condição dita melancólica
do sujeito poético. Acontece que, neste poema, embora sendo dominantes, estas palavras não possuem
um desenvolvimento que permita aceder gratuitamente à ideia de melancolia, nomeadamente se se
pensar, como a referida autora, no sentido baudelairiano do termo. O tédio que poderá ser
experienciado pelo sujeito poético em muito pouco se compraz com o tédio enaltecido por Baudelaire
nos poemas de «Spleen e Ideal». É que o que move um e outro poeta são coisas distintas, ou melhor,
são estados distintos perante a sua existência: o primeiro traduz um mal-estar derivado da sua condição
LOUCURA E LINGUAGEM 29

O poema «Vai, sobre o sombrio abismo»67 dialoga com o texto atrás


referenciado, na medida em que invoca o poder do sonho como forma de
esquecimento: «– Sonha!... e sonhando te esquece!...». Mais uma vez o sujeito poético
expressa vontade em abandonar a realidade «D’esta existência terrena» através do
sonho («– Nas asas d’um misticismo») para partir «Sob a luz calma e suave» à
procura «Dos mundos do sentimento...», mundos esses que garantem ao poeta o
excesso imaginativo e interpretativo. Conforme referiu Alberto Augusto Miranda, «a
loucura estava na existência»68, logo, ciente disso mesmo, Ângelo de Lima refugiava-
-se no poder evasivo da poesia. Por essa razão, poder-se-ia enquadrar o poeta naquele
grupo a quem Jean Vinchon, médico francês, dera o nome de «Loucos Discordantes»
– homens, escritores ou pintores que confundem a vida do sonho com a vida real,
chegando mesmo o sonho a impor raros contactos com a realidade69.
O sonho atrai o poeta ou o artista que pretende alcançar o êxtase de um delírio
místico, tornando-se por isso o modo de inspiração que representa a forma superior do
automatismo psíquico. A vigília oferece a passagem para uma outra dimensão,
proporcionando ao poeta resultados surpreendentes na elaboração das recordações,
durante e depois do processo ilusório da realidade dita real. O poeta coloca a actividade
automática ao serviço da sua imaginação, potenciando imagens que apenas se podem
comparar a alucinações psicóticas pela intensidade singular de que se revestem.

de doente esquizofrénico; o segundo traduz um mal-estar resultante da sua incapacidade de, como
poeta, ser aceite perante todos. Diz a autora que o «que aproxima os textos melancólicos, em geral, do
poema de A. L. [...] é a particular vivência do tempo: a oscilação entre a exaltação e a tristeza, com
tendência à imobilização e rigidez, nulificando a dor e a esperança [...] Toda a experiência de tédio ou
de melancolia faz-se acompanhar de uma modificação na percepção do tempo» («Pára-me de repente o
Pensamento...», in AAVV, Século de Ouro – Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX,
Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002, pp. 70-74). Porém, no poema que se analisa, não me parece
haver anulação da esperança pelos motivos já expostos. Além disso, a percepção do tempo não parece
ter qualquer relevância, neste poema, para a justificação do conceito de melancolia.
67
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 47-48. O manuscrito deste poema data de
31 de Outubro de 1898.
68
«Ângelo de Lima: do Estado de Lactência ao Desmame Inconsumado», Letras & Letras, 89,
Porto, 17 de Fevereiro de 1993, p. 12.
69
L’Art et la Folie, ob. cit., p. 64. De acordo com o estudo de Freud sobre Leonard Da Vinci,
poder-se-ia incluir também o pintor italiano no grupo dos «loucos discordantes». A sua pintura traduzia,
no entender de Freud, um «fantasma da infância», que, tal como o sonho, a visão ou o delírio, possuía
um sentido, na medida em que parecia «exercer uma influência decisiva sobre a estrutura da sua vida
interior» (Sigmund Freud, Un Souvenir d’Enfance de Léonard de Vinci, Paris, Gallimard, 1927, p. 90).
LOUCURA E LINGUAGEM 30

Em Ângelo de Lima, o lado psicótico da sua esquizofrenia levianamente


sugere a desagregação da própria personalidade do sujeito. Esta condição anula
qualquer tentativa, por parte do poeta, de conscientemente poder construir o espaço
inconsciente, pelo que ele sabe ter de cavalgar para conseguir alcançar a paz e o
esquecimento, no fundo, para poder descansar da luta incessante com o seu
pensamento. Com a consciência de que se está sempre longe de uma resposta
definitiva, pode-se questionar se, na poesia de Ângelo de Lima, é a linguagem que
reflecte o inconsciente ou é o próprio inconsciente que reflecte a linguagem.
A poesia, a loucura e a linguística são «três delírios nascidos do signo e do
desejo»70, como referiu Michael Pierssens na sua Tour de Babil, delírios esses que
correspondem a uma única perspectiva sob a qual deve ser abordada a poesia de
Ângelo de Lima: a loucura surge, nos seus textos, na manifestação de elementos
obscuros e incompreensíveis através do signo e da linguagem, que se afigura caótica e
ao mesmo tempo grotesca, reinventada pelo próprio mistério que traduz. Além disso,
o nosso poeta faz parte daquele grupo de homens que recusam impor o silêncio aos
demónios interiores, tornando-se por isso escravos do desejo. Por outro lado, só
podem dar voz a esse anseio num domínio governado pelo inconsciente. As ideias
obsessivas que habitam o sujeito esquizofrénico deixam de estar limitadas pela
barreira da vontade e da consciência, libertando-se através das palavras ou das
possibilidades do verbo.
Com efeito, em Ângelo de Lima, «o texto fala precisamente a loucura»71,
numa síntese perfeita entre os aspectos temáticos e os formais, entre o que se quer
dizer e como se diz, estimulando as significações suspensas ou até mesmo a
anamorfose verbal e provando, deste modo, ser um «caso anormal na própria
anormalidade»72. Mas tal só é possível na medida em que no seu psiquismo subsiste
uma parte consciente que lhe permite dar forma a esse estado delirante do mundo da
psicose.

70
La Tour de Babil – La Fiction du Signe, Paris, Minuit, 1976, p. 15.
71
Luís Adriano Carlos, «Entre Duas Efemérides: Evocação de Ângelo de Lima», art. cit., p. 9.
72
António de Navarro, «Estudo para um Ensaio – Ângelo de Lima», Presença, 31-32,
Coimbra, Março-Junho de 1931, p. 11.
LOUCURA E LINGUAGEM 31

Para os psiquiatras António Lobo Antunes e Inês Silva Dias, ambos do


Hospital Miguel Bombarda, os poemas de Ângelo de Lima constituem importantes
documentos artísticos da experiência da loucura. No estudo já mencionado sobre o
binómio loucura/criação artística, questionaram se o poeta seria o mesmo artista se
fosse um indivíduo dito mentalmente são. Referem os autores que as marcas
distintivas da sua poesia, apresentadas por Fernando Guimarães no Prefácio às
Poesias Completas, são as características da escrita dos esquizofrénicos,
acrescentando ser «pouco provável que o poeta [...] as possuísse sem a doença». Mas
vão mais longe: ao compararem os poemas escritos nos períodos de «relativa
compensação» com os compostos em «plena fase delirante», concluem que os
primeiros são «claramente de uma feitura mais clássica, de uma menor invenção
técnica», mas «bem menos conseguidos e belos»73.
Curiosamente, as fases da sua escrita produtiva coincidem com os dois períodos
de internamento. «Eu ontem vi-te...»74, um dos primeiros poemas escritos por Ângelo de
Lima, data de 22 de Setembro de 1894 e é publicado sete dias depois no número 8 da
revista A Geração Nova. Um mês depois, o poeta dá entrada no Hospital do Conde
Ferreira. Sabe-se que, apesar do internamento, Ângelo de Lima mantém o contacto com
a referida revista, colaborando como Director Artístico do sétimo (11 de Setembro de
1894) ao décimo número (31 de Outubro de 1894), substituindo Carneiro Júnior.
Aquele poema foi, no entanto, o único texto que publicou nessa revista portuense.
Segue-se a publicação de «A Meu Pai», num jornal não identificado75, com a data de
Novembro de 1895, «Súplica» no número 3 de A Arte, no mesmo ano, «É o mundo
estreita Tapada»» n’ A Nação e «Inês de Castro» no Diário da Manhã, ambos datados
de Maio de 1898, e «Vai, sobre o sombrio abismo», publicado em Outubro do mesmo
ano. Este conjunto dá conta dos primeiros textos do autor, mas é provável que outros

73
Loucura e Criação Artística: Ângelo de Lima, Poeta de «Orpheu», texto cit., pp. 12-14.
74
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 36. Segundo o testemunho de Carlos
Azevedo Coutinho Braga, os poemas «Fique na Terra a triste humanidade» e «Alma que da minh’alma
se aproxima» terão sido escritos por Ângelo de Lima durante o período militar, sendo, portanto,
anteriores a «Eu ontem vi-te...» («Responda Quem Souber – Ângelo de Lima, Ex-205/1882», art. cit.,
p. 57 e seguintes).
75
De acordo com as notas de Fernando Guimarães, este poema faz parte da colecção de Carlos
Azevedo Coutinho Braga, primo de Ângelo de Lima, desconhecendo-se o jornal onde foi publicado
(Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 138).
LOUCURA E LINGUAGEM 32

poemas tenham sido compostos durante a sua estada no manicómio do Porto e que se
tenham perdido entre ofertas a familiares, a amigos ou a enfermeiros e médicos.
Entre os dois internamentos, porém, não se conhecem quaisquer referências a
publicações em jornais e revistas, com excepção para o soneto «Tédio», publicado em
Junho de 1900 no jornal O Portugal. Em 1911, Albino Forjaz de Sampaio dedica-lhe
três páginas da Ilustração Portuguesa, reproduzindo os poemas «Para-me de repente o
pensamento...», «Sozinho» e «Sonhos» e apresentando o desenho a carvão de uma
«mulher normal com cabeça de louca», que explica ser resultado do seu
aborrecimento «numa eclosão doentia [...] numa fúria»76. O certo é que, nos primeiros
tempos da sua neurastenia, «a inspiração de uma musa de vesânica tristeza estendia já
os seus véus» sobre os versos que ia escrevendo e a sua vida, ao contrário de ter sido
uma «bohemia risonha [,] foi alguma coisa de um longo calvário»77.
As perturbações linguísticas fazem-se sentir na maior parte dos seus poemas,
mas não em todos, pois os «seus versos, se têm por vezes a incoerência de estados
alucinatórios, são outras vezes perfeitamente lúcidos, bem construídos e de estranha
beleza»78. As composições referidas fazem prova desses momentos de escrita lúcida e
organizada, mas contrastam veemente com uma série de outros textos posteriores, como
«Cântico Semi-Rami», «Neitha-Kri», «Ninive» ou «Edd’ora Addio... Mia Soave!...»79,
poemas que são o resultado artístico de uma personalidade de quando em vez
assombrada por delírios poéticos reais. Verifica-se, de facto, que uma boa parte da sua
poesia está cheia de incoerências, de imagens fragmentadas, de associações impossíveis,

76
Esta figuração da própria loucura é, segundo Júlio Dantas, uma «Auto-reproducção
somatica», ou seja, a tendência de certos artistas loucos de reproduzirem nas cabeças que desenham as
suas próprias cabeças (Pintores e Poetas de Rilhafoles, ob. cit., p. 40).
77
Amadeu Cunha, «A propósito do Orpheu – O Poeta Angelo de Lima», República, Lisboa, 1
de Julho de 1915, p. 1.
78
Jacinto do Prado Coelho, «Ângelo de Lima», in Dicionário de Literatura, vol. II, Porto,
Mário Figueirinhas Editor, 1997, p. 528.
79
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 75, 78, 82 e 86, respectivamente. Dado que
estes textos integram o conjunto de poemas publicados em Orpheu 2, altura em que o poeta já está
internado em Rilhafoles, vários críticos defendem a existência de duas fases distintas na poesia de
Ângelo de Lima. Mas o problema da fixação dos textos pode, por si só, impedir a comprovação dessa
divisão, ou seja, o facto de existirem poemas dos quais se desconhece a data de composição, como
«Thora...», «Ocaso» e «Edane!», que poderiam exemplificar a fase da escrita mais agitada, bem como
de outros anteriores a essa publicação de 1915, como «Fado» e «Rhada», revela que essa leitura não
poderá ser tomada de forma linear, tornando-se de difícil verificação.
LOUCURA E LINGUAGEM 33

de aparentes automatismos e de inadequações sintácticas. No entanto, estas estruturas,


que remetem para o discurso do sem-sentido, não aparecem de forma linear na
totalidade da sua produção, o que poderá, repare-se, confirmar o estado psicótico que
por vezes o invadia e do qual estava Ângelo de Lima receoso. Na carta que envia a
Albino Forjaz de Sampaio, o poeta dá conta dessa consciência: «Sou sensato: passei é
certo por tenebrosas em delírios, quando não compreendo o meu orgânico e
incomodado por subsequentes, e de tabagismo, abstraía no exaspero, em alucinações de
espírito – hoje estou à espera da minha cura, pelo que sinto em mim, de mim, como
diria, para amanhã...»80. O seu amigo referiu, a propósito, que o pensamento normal
deste poeta ia só até certo ponto e logo a loucura povoava o seu espírito, enchendo as
páginas da sua poesia «de guinchos, de exclamações, de trechos incompreensíveis»81.
As múltiplas possibilidades de significação, aliadas à lógica disforme da argumentação,
são manifestações do inconsciente, fragmentado ou hesitante, e caracterizam um
discurso que andará muito próximo do esquizofrénico, se se pensar nas interrogações
que os textos de Ângelo de Lima insistem em deixar vagas e difusas.
Mas a variabilidade e a instabilidade são características da esquizofrenia,
podendo mesmo o doente apresentar por vezes uma utilização correcta da linguagem.
As acções, os pensamentos e as percepções do indivíduo esquizofrénico tanto estão
rigidamente controlados e ordenados como caóticos e sem qualquer lógica. Refere
Louis Sass que as excentricidades da linguagem esquizofrénica são difíceis de
caracterizar, porque tal como o pensamento e o comportamento esquizofrénicos, não
são estáveis82. A dificuldade reside sobretudo na descoberta do elemento comum que
está na base dos múltiplos sintomas de que se reveste a doença. Diferente de indivíduo
para indivíduo, a esquizofrenia caracteriza-se pela ocorrência de impulsos
inesperados, afectos incompreensíveis, pausas súbitas na conversação, ideias

80
«Carta a Albino Forjaz de Sampaio», in Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 111.
81
Albino Forjaz de Sampaio, «Um Poeta em Rilhafolles», art. cit., p. 212.
82
Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought, ob.
cit., p. 175. Louis Sass destacou o exemplo de Friedrich Hölderlin, esquizofrénico durante os últimos
quarenta anos da sua vida, cuja poesia, incompreensível para alguns, mas cheia de sentido para outros,
mantinha, na maior parte, uma boa organização sintáctica e semântica. No entanto, a comunicação oral
com Hölderlin era dificultada pela utilização de uma linguagem confusa que manifestava falta de
controlo próprio (idem, p. 25).
LOUCURA E LINGUAGEM 34

imotivadas, distracção, fala incoerente, consciência fragmentada, entre outras, razões


pelas quais esta doença será sempre descrita em termos negativos.
A poeta americana Sylvia Plath (1932-1963), no abismo da sua depressão,
argumentava: «Eu escrevo porque há uma voz dentro de mim – que não sossega»83. A
figura que o esquizofrénico cria dentro de si, como se fosse um outro eu, prejudica a
sua comunicação com o exterior, dado que, ao impor-se, desactiva os mecanismos
convencionais da linguagem. Embora de uma forma inconsciente, através daquilo que
poderá parecer um jogo de palavras ou uma simples aliteração, «o psicótico interroga
[...] a língua e [...] as suas leis, que guardarão a seus olhos um carácter enigmático»84,
chegando mesmo a pôr em causa a própria racionalidade linguística.
No entanto, na perspectiva de Christian Delacampagne, «o que caracteriza o
discurso do louco não é a ausência de regras, mas a substituição do jogo de regras
normal por um jogo novo», que passa essencialmente pelo «relaxamento das
associações»85. Do mesmo modo, Roman Jakobson, na separação dos dois tipos de
afasia, destaca a incapacidade do indivíduo para poder seleccionar e/ou combinar as
unidades linguísticas, distinguindo uma deficiência no domínio da selecção, a
«perturbação de identidade», e uma outra, a «perturbação de contiguidade», ao nível
da combinação86.

83
Citada por João Lobo Antunes, «Loucura», in Os Outros em Eu, Porto, IPATIMUP, 2001,
p. 96. Maria Clotilde Almeida refere que, na esquizofrenia, existe um eu interior e um eu exterior,
«sendo o primeiro real mas dificilmente visível e o segundo irreal mas visível» («Discurso
Esquizofrénico e Estatitividade: Análise de um Caso», in AAVV, Actas do 3º Encontro da Associação
Portuguesa de Linguística, Lisboa, 1987, p. 473).
84
Silla Consoli, «Le Récit du Psychotique», in AAVV, Folle Vérité - Vérité et Vraisemblance
du Texte Psychotique, ob. cit., p. 74.
85
«L’Écriture en Folie», Poétique, 18, Paris, Seuil, 1974, p. 165. Poder-se-á descrever este
fenómeno desta forma: «As associações perdem a sua coesão. Entre os milhares de fios que guiam os
nossos pensamentos, a doença quebra, aqui e ali, de forma irregular, este ou aquele, às vezes uns tantos,
às vezes grande parte. Por este facto, o resultado do pensamento é insólito, e muitas vezes falso do
ponto de vista lógico» (Jean Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulário da Psicanálise, ob. cit., p. 147).
86
No primeiro tipo, o contexto surge como um factor indispensável e decisivo, uma vez que,
para estes doentes, as palavras dependem dele. O maior problema do segundo tipo de afásicos reside na
perda da capacidade para construírem frases, ou seja, para combinarem as entidades linguísticas, uma
vez que se perdem as regras sintácticas que organizam as palavras. Na dissolução das ligações de
coordenação e subordinação, manifesta-se uma ordem caótica do discurso com tendência a fazer
desaparecer as palavras com funções gramaticais, como as conjunções, as preposições, os pronomes e
os artigos (cf. Roman Jakobson, «Deux Aspects du Langage et Deux Types d’Aphasie», in Essais de
Linguistique Générale/1, Paris, Minuit, 1974, pp. 50-61).
LOUCURA E LINGUAGEM 35

Também Luce Irigaray, na obra Le Langage des Déments, considera que a


análise das perturbações da linguagem constitui um meio de identificação e
confirmação de certas doenças psíquicas, como a esquizofrenia ou a afasia. Neste
estudo de fôlego, a investigadora linguista apresenta as características do discurso
esquizofrénico, que passam pela pobreza do discurso na utilização de termos
abstractos e de termos genéricos, resultante da incoerência dos enunciados, da
ausência da organização interna e do aparecimento de neologismos activos e passivos.
As séries de sons que não formam palavras do léxico denotam a ausência de controlo
real sobre aquilo que é emitido pelo doente, daí o recurso às palavras e, noutros casos,
aos conjuntos de sons que parecem automáticos. A argumentação surge então
desordenada, criando dificuldades na recepção e interpretação das mensagens87.
Embora se verifiquem algumas destas especificidades no discurso poético de
Ângelo de Lima, dificilmente se poderá afirmar que se reduz simplesmente a um
diálogo com a doença e, consequentemente, só analisável sob o ponto de vista
psicológico. Deste modo, não deixa de ser pertinente a seguinte questão levantada por
Fernando Guimarães: poderá a loucura, como o sonho, ser o próprio autor de um
texto? O crítico reconhece na loucura de Ângelo de Lima uma função textual que
possibilita o encontro com o sentido, através das estruturas dinâmicas do estilo e das
coordenadas expressivas da linguagem, dado que, ainda nas suas palavras, «a loucura
do autor não é, afinal, o texto»88. Embora se verifique que as excentricidades de uma
lucidez genial que aparecem nos versos de Ângelo de Lima são analisáveis num plano
linguístico e até mesmo estilístico, não se torna possível, por outro lado, ignorar o
plano psicológico que norteia, sem dúvida, toda a sua produção literária.
As relações entre a psicanálise e a linguística sempre foram muito complexas e
só possíveis depois de Sigmund Freud e Ferdinand de Saussure. Na verdade, a teoria
saussuriana possibilita o cruzamento das duas áreas se pensarmos que o significado só
se torna entidade linguística quando associado a uma imagem acústica, que não se
reduz ao «som material, puramente físico», mas à «marca psíquica desse som», ou

87
Le Langage des Déments, Paris, Mouton, 1973, pp. 8-10.
88
«Ângelo de Lima: Poeta do Orpheu», Diário de Lisboa, Lisboa, 22 de Outubro de 1970, p. 4.
LOUCURA E LINGUAGEM 36

seja, à sua representação fornecida pelos sentidos89. Por outro lado, a descoberta do
inconsciente modificou a concepção clássica da linguagem e, consequentemente, do
signo: «Do sintoma ao símbolo, a psicanálise entendeu os problemas do significado»,
desenvolvendo «segundo o seu próprio ritmo empírico uma teoria do significante»90.
Jacques Lacan vai mais longe, argumentando que «Somente a psicanálise está em
condições de impor ao pensamento esta primazia demonstrando que o significante
dispensa toda cogitação»91. Para este psicanalista, a barra de separação entre
significante e significado representa o recalcamento do significado, adquirindo o
significante um valor próprio que não tinha em Saussure. É que, para Lacan, o que se
percebe não é o significado, mas sim o significante, que pela sua natureza antecipa
sempre o sentido92.
Ao considerar qualquer sintoma como linguagem, a psicanálise fez dela uma
espécie de «sistema significante [...] secundário», porque lhe sobrepôs uma
«organização própria [e] uma lógica específica»93, conferindo um novo significado ao
universo psico-linguístico do homem moderno. O equilíbrio entre significante e
significado, condição sine qua non na definição clássica de signo, é deste modo posto
em causa com o aparecimento da psicanálise e do primado funcional do significante.
Observando a prática psicanalítica freudiana, Foucault aponta as suas
incidências no campo da linguagem escrita: «propondo a tarefa de fazer falar através

89
Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1992, pp. 122 e 176-177. Se, por um lado, Saussure defende que a língua é forma e não substância
(idem, pp. 192 e 206), excluindo o objecto da relação significante/significado, por outro, pensa
justamente no referente quando afirma que dois significantes, por exemplo [kazα] e [haws], são
diferentes, mas correspondem a uma mesma ideia ou significado (cf. Julia Kristeva, História da
Linguagem, Lisboa, Edições 70, 1969, pp. 28-29).
90
Henri Meschonnic, Le Signe et le Poème, Paris, Gallimard, 1975, p. 307.
91
Jacques Lacan, Escritos, ob. cit., p. 198. Cf. p. 232.
92
No fundo, o que Lacan pretende dizer é que o significado é uma latência do significante. As
consequências do entendimento de que «o significado é imanente ao significante» são apontadas por
Mikel Dufrenne: «a significação não tem [no objecto estético] existência autónoma; ela apenas existe
no objecto estético que a revela, ela não preexiste» (Phénoménologie de l’Expérience Esthétique, Paris,
Presses Universitaires de France, 1967, p. 171-172).
93
Julia Kristeva, História da Linguagem, ob. cit., p. 309. Freud verá no significante uma
autonomia relativa, na medida em que um significado não tem que estar forçosamente incluído na
unidade morfo-fonológica. Julia Kristeva explica a posição freudiana: quando duas unidades
significantes estão condensadas num só unidade, esta pode ter um significado diferente, ou
independente, do significado dos seus componentes se isolados (idem, p. 310).
LOUCURA E LINGUAGEM 37

da consciência o discurso do inconsciente, a psicanálise avança na direcção dessa


região fundamental onde estão em jogo as relações da representação e da finitude»94.
Estas questões estão intimamente ligadas e problematizadas na poesia de Ângelo de
Lima, na medida em que as dificuldades instauradas na ordem da representação são
resultantes da incapacidade de produzir enunciados estabelecendo relações de
significação com a realidade. Estes problemas estendem-se ao nível das relações de
finitude que compreendem a reflexão do poeta sobre a condição humana, na transição
da Vida, para ele uma «Fábula Ilusória» (cf. poema «Oh Vida»), para a Morte, que diz
ser «Efémera Ilusão» (cf. «Epitáfio»)95. Tal como o sonho, a Morte proporciona ao
sujeito poético a libertação romântica do eu, num espaço onde as incompatibilidades
na ordem da representação não passam necessariamente pelas palavras, embora sejam
potencialmente verbalizáveis.
Freud veio dizer que certas formas de poesia podem aparentar-se ao sonho ao
sugerirem o mesmo modo de (des)organização linguística no trabalho sobre o
conteúdo efectivo dos pensamentos96. Tal como os discursos esquizofrénico e poético,
o discurso onírico obedece, segundo o mesmo autor, às leis do significante, dado que
o inconsciente se revela dotado de uma verdadeira faculdade de combinar sílabas e
palavras97. Por conseguinte, para Freud, a interpretação dos sonhos deve ser feita
através da linguagem. Do mesmo modo, o discurso do sujeito alienado descodificar-
-se-á segundo tais premissas. Nos três tipos de discurso referidos, os significantes
ganham autonomia face aos significados, estimulando uma pluralidade de sentidos e,
consequentemente, afastando-se da linguagem vulgar que tende para uma rigidez na
relação significante/significado. Trata-se de facto da utilização de uma linguagem
especial, tanto no sonho como na poesia, que engendra efeitos próprios decorrentes da

94
As Palavras e as Coisas, Lisboa, Edições 70, 1991, p. 409.
95
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 71 e 70, respectivamente.
96
Sigmund Freud, A Interpretação dos Sonhos, vol. II, Lisboa, Pensamento, 1989, p. 128. Mas para
Lacan, o trabalho dos sonhos, tal como o do texto poético, estrutura-se, não ao nível do signo, mas na cadeia
do significante, onde o sentido insiste. Quer isto dizer que obedece às leis do significante de um significado,
este recalcado na consciência do sujeito (cf. Escritos, ob. cit., pp. 232-240). Ver ainda p. 145.
97
O processo pode ir tão longe que «uma única palavra, se, graças às suas numerosas
conexões, for especialmente adequada, pode representar toda uma cadeia de pensamentos» (Sigmund
Freud, «O Inconsciente» (1915), in Textos Essenciais da Psicanálise - I, Lisboa, Publicações Europa-
-América, 1989, p. 180; sublinhado meu). Cf. Jacques Lacan, Escritos, ob. cit., p. 242.
LOUCURA E LINGUAGEM 38

violação de determinadas características do fenómeno linguístico. Segundo Freud,


tanto o processo de criação como o de recepção artísticas encontram as suas origens
no inconsciente, que é, na perspectiva lacaniana, o «capítulo censurado», «essa parte
do discurso concreto, enquanto transindividual, que falta na disposição do sujeito para
restabelecer a continuidade do seu discurso consciente»98.

A Hegemonia do Significante

Em Ângelo de Lima, a actividade criadora é levada em êxtase, como pulsão de


Vida, até ao esgotamento, mas num sentido contrário ao da autodestruição,
oferecendo, no entanto ou por isso, uma resistência ao sentido. Se se entender, com
Todorov, que a psicose consiste numa perturbação da relação entre o eu e a realidade
exterior, pressupondo uma recusa do real, «o discurso psicótico será um discurso que
falha no trabalho de evocação da realidade, ou seja, no trabalho de referência»99. Ora
isto significa que a linguagem perde a sua capacidade representativa, ou, nas palavras
de Foucault, deixa de formar quadro100. A substituição da representação do real,
mimesis, pela não-representação, semiosis, altera a relação entre signo e referente e,
consequentemente, entre a linguagem e o mundo.
Esta relação sempre esteve em discussão desde a Antiguidade, quando o tema
norteava a génese da linguagem ou a motivação do signo101. Repare-se que as

98
Jacques Lacan, Escritos, ob. cit., pp. 123-124.
99
Tzvetan Todorov, «O Discurso Psicótico», in Os Géneros do Discurso, Edições 70, Lisboa,
1981, p. 81.
100
A «linguagem enquanto representa: a linguagem que nomeia, que delimita, que combina,
que articula e desarticula as coisas, mostrando-as na transparência das palavras. Nesse papel, a
linguagem transforma a sucessão das percepções em quadro, e, em contrapartida, recorta o contínuo dos
seres em caracteres» (Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, ob. cit., p. 350).
101
«Um signo motivado é um signo que admite a presença parcial da realidade, que incorpora
no seu significante, em vez de se contentar com a sua denotação pura e simples» (Ivan Fónagy,
«Motivation et Remotivation», Poétique, 11, Paris, Seuil, 1972, p. 414).
LOUCURA E LINGUAGEM 39

consequências de Babel foram irreversíveis, pois as línguas, quando separadas,


tornaram-se incompatíveis e a resultante ambiguidade traduziu-se na arbitrariedade do
signo. Esse desvio na relação entre significantes e significados originou significantes
finitos para significados infinitos102, destruindo, deste modo, a sua unidade. Antes de
Babel, a relação entre significante e significado era necessária, mas essa conformidade
foi subvertida aquando da desintegração do significante e do significado e, a partir daí,
a motivação natural não mais pôde justificar a criação linguística.
O diálogo de Crátilo acerca da justeza dos nomes é representativo das teorias
etimológicas que sempre estiveram em jogo: a linguagem nasceu como imitação ou
como convenção? Gérard Genette, em Mimologiques, mostra que ambas as teses, a
naturalista e a convencional, mais do que contraditórias, são complementares, e
fundamenta esta ideia na posição assumida por Sócrates, um terceiro interveniente no
diálogo de Platão103. A segunda teoria defende o aparecimento do nome como
resultado de um acordo ou convenção, logo, a «justeza» só pode significar uma
«correspondência artificial aceite e reconhecida por todos»104. O acto de nomear,
propriamente dito, ou «acto da fabricação do nome», consiste então em atribuir-se a
forma ideal, de sons ou sílabas, aos objectos, sem interferência da natureza.
Questiona-se, no entanto, se nesse acto será possível ignorar a motivação mimética e,
no caso de ela existir, se não se estará a regressar à tese mimológica cratiliana. A
primeira tese explica a substituição do signo pelo designado, ou seja, o nome designa
determinado objecto com o qual tem uma relação natural ou mimética, pelo que deve
estar ajustado ao objecto através de uma estrutura metonímica ou através de uma
«mimesis vocal», que não se reduz à onomatopeia105. Contudo, só se percebe a
significação do nome pelo uso, isto é, pelo poder permanente de designação desse
signo, o que leva à questionação da existência de uma motivação indirecta.

102
Cf. Maria Leonor Carvalhão Buescu, «Origem e Natureza da Linguagem. Babel ou a
Ruptura do Signo», in Babel ou a Ruptura do Signo, Lisboa, INCM, 1983, p. 256.
103
Mimologiques - Voyage en Cratylie, Paris, Éditions du Seuil, 1976, p. 11. Cf. Roman
Jakobson, «A la Recherche de l’Essence du Langage», Diogène, 51, Paris, Gallimard, 1965, p. 25.
104
Mimologiques - Voyage en Cratylie, ob. cit., p. 12.
105
Idem, p. 28.
LOUCURA E LINGUAGEM 40

Simplificando, regressa-se, deste modo, à tese convencional106. Os sucessivos círculos


incompletos provocados por Sócrates, que recorre ao que hoje se designa em sentido
saussuriano como motivação do signo, podem ilustrar a posição de Platão acerca da
capacidade mimética dos elementos da linguagem e sobre a íntima relação entre os
sons e o significado das palavras, apresentando, ao mesmo tempo, uma primeira
filosofia linguística.
A teoria dual do signo, característica do epistema clássico, entra em choque
com o sistema ternário que já vinha desde os primeiros gramáticos gregos, quando o
pensamento por semelhança é substituído pelo poder representativo107. Mas esta
organização, defendida pelos gramáticos de Port-Royal (século XVII), possibilitou o
aparecimento do pensamento moderno. A linguagem adquire assim um ser próprio,
convertendo-se em objecto de conhecimento, porque as «palavras não formam [...] a
fina película que serve de duplo ao pensamento do lado da fachada; elas suscitam-no,
indicam-no, mas conduzem ao seu interior, onde todas as representações representam
outras»108.
As teses sobre a origem da linguagem e os projectos das línguas universais
desenvolveram-se em paralelo, porque, em todas as épocas, segundo Marina Yaguello,
o sujeito criador, consciente ou não, tem uma relação ambivalente de amor/ódio com a
linguagem109. Desta forma, o logófilo110, tanto o inventor das línguas novas como
aquele que deseja o retorno à língua original, pré-babélica e comum a todos os
homens, é um amador, nos dois sentidos do termo: está enamorado pela linguagem, e,
por outro lado, desconhece a sua ciência111. A procura do paraíso adâmico inspira os
inventores da língua, portadores privilegiados do pensamento utópico e mítico, que

106
Umberto Eco coloca uma questão óbvia, porque fundamental: «O certo é que as línguas não
podem ter nascido por convenção, já que, para se porem de acordo sobre as suas regras, os homens
necessitariam de uma língua anterior; mas se esta última existisse, porque se dariam os homens ao
trabalho de construir outras, empreendimento esforçado e sem justificação?» (A Procura da Língua
Perfeita, Lisboa, Presença, 1996, p. 326).
107
Cf. Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, ob. cit., pp. 118-121.
108
Idem, p. 131.
109
Les Fous du Langage, Paris, Seuil, 1984, p. 16.
110
Termo de Michel Pierssens (La Tour de Babil – La Fiction du Signe, ob. cit.).
111
Marina Yaguello, Les Fous du Langage, ob. cit., p. 36.
LOUCURA E LINGUAGEM 41

tentaram desde Babel remediar os seus defeitos112. Na Modernidade, James Joyce


redescobre o anfigurismo como forma de reinventar a linguagem. Em Finnegans
Wake (1939), invade «o espaço onírico de um modo hipersurrealista»113, fazendo
deste texto um modelo da infinidade dinâmica do código poético, através das histórias
sobrepostas, dos lapsos linguísticos, das oposições e das tensões estimuladas pelo
discurso anfigúrico.
Nas duas décadas que precedem Ulisses (1922) de Joyce, encontra-se também
em Ângelo de Lima o recurso ao anfigurismo, que, mesmo sendo inconsciente, não
deixa de o inscrever na lista daqueles que levaram a linguagem à sua «dissolução»114.
Os grandes forjadores da língua, sonhadores ou loucos, «utilizam e realizam no grau
mais alto as possibilidades do sistema»115. Mais do que renovar a linguagem, os
poetas modernos pretendem inovar, utilizando todas as possibilidades que a língua
lhes oferece e rompendo conscientemente com a norma. Para tal, recorrem à função
poética e à sua capacidade de balançar os limites da linguagem.
O soneto «Edd’ora Addio... – Mia Soave!...», de Ângelo de Lima, é
representativo do texto plural, plurilinguístico e polifónico116 que caracteriza a poética
da Modernidade, ultrapassando qualquer experiência que se diga apenas consequência

112
Consideremos de relance alguns fous du langage, que, a partir do Romantismo, tentaram o
aperfeiçoamento da língua: Baudelaire, ao fazer da analogia o centro da sua poética, redescobre as
correspondências universais entre as palavras e as coisas (cf. «Réflexions sur quelques-uns de mes
Contemporains: Victor Hugo», in Oeuvres Complètes, Paris, Seuil, 1968, pp. 470-471); Rimbaud
defende que só o «poeta vidente» tem o poder de «Descobrir uma língua [...] [e,] como toda a palavra é
ideia, chegará o tempo de uma linguagem universal» [cf. carta a Paul Demeny (1871),
«Correspondance», in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1951, p. 255]; Mallarmé, também ele um
visionário na reinvenção da linguagem poética, propõe a decifração dos textos através do poder
sugestivo das sonoridades (cf. «Sur l’Évolution Littéraire», in Oeuvres Complètes, ob. cit., p. 869);
Khlebnikov, o «poeta astrónomo», investe sobretudo nos efeitos sinestésicos ao nível do significante,
redescobrindo na linguagem «zaoum» ou «transracional» a potencialidade do sentido dos sons
(cf. Vélimir Khlebnikov, «Livre des Préceptes II», Poétique, 2, Paris, Seuil, 1970, e Ossip Brik, «Sur
Khlebnikov», Change, 4, Paris, Seuil, Dezembro de 1969, pp. 196-201); Breton e os seus discípulos, à
procura de uma língua que reconduza «o homem ao homem», promovem o automatismo psíquico puro
como uma fonte privilegiada da intuição e da imaginação poética (cf. André Breton, Manifestos do
Surrealismo, Lisboa, Edições Salamandra, 1993, p. 45, e Durozoi e Lecherbonnier, O Surrealismo,
Coimbra, Almedina, 1976, pp. 41-45).
113
Luís Adriano Carlos, «Poesia Moderna e Dissolução», Línguas e Literaturas, VI, Porto,
1989, p. 258. Cf. Jean-Paul Rabaté, «Lapsus Ex Machina», Poétique, 26, Paris, Seuil, 1976, p. 154.
114
Ver Luís Adriano Carlos, «Poesia Moderna e Dissolução», art. cit.
115
Eugenio Coseriu, Teoría del Lenguaje y Lingüística General, Madrid, Gredos, 1973, p. 99.
116
Julia Kristeva, Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, Paris, Seuil, 1969, p. 16.
LOUCURA E LINGUAGEM 42

da loucura. Segundo Yaguello, existe um nível elevado de sofisticação em certas


línguas criadas por alienados que não se distinguem, pelo menos formalmente, de
certas tentativas poéticas conscientes. Yaguello explica que há glossolálias que são
nitidamente patológicas, mas, de acordo com o seu grau de elaboração, poderão
tornar-se uma verdadeira língua117. Não deixam de ser um processo criativo que supõe
apenas a capacidade de inventar uma pseudo-língua. Tal como a poesia
dessemantizada de Khlebnikov ou a prosa anfigúrica de Joyce, as glossolálias
conservam paradoxalmente a sua significância semântica, mas perdem a sua
significância semiótica118. Existe mensagem, mas sem código, porque os signos, não
sendo reconhecidos no sistema, possuem um valor original, ou virginal, ao traduzir o
inefável. É então o «carácter não semiótico que confere à glossolália a sua
universalidade»119. A Modernidade mais não é do que o regresso às formas poéticas
originais, pois a poesia foi a primeira linguagem dos homens.
Por conseguinte, a experiência moderna da linguagem é fragmentária por tudo
aquilo que oculta no mundo das dissociações psíquicas. A linguagem experimentada,
libertada e libertadora, com possibilidades ilimitadas e infinitas, que caracteriza o
epistema moderno, foi possível com o contributo da psicanálise. A afirmação de
Foucault, que a seguir se transcreve, é elucidativa do papel da loucura no pensamento
moderno:

[...] quando essa linguagem se mostra no estado nu, mas se furta ao mesmo tempo
a toda a significação como se fosse um grande sistema despótico e vazio, quando
o Desejo reina no estado selvagem, como se o rigor da sua regra houvesse
nivelado toda a posição, quando a Morte domina toda a função psicológica e se
mantém acima dela como a sua norma única e devastadora – então reconhecemos
a loucura tal como se dá à experiência moderna, como sua verdade e alteridade

117
Marina Yaguello, Les Fous du Langage, ob. cit., p. 116.
118
Segundo Émile Benveniste, a linguagem combina dois modos distintos de significância: o
semiótico e o semântico. O primeiro compreende o sistema onde se podem identificar os signos,
independentemente do referente; esses signos são combinados no discurso para formar significações, ou
seja, o modo semântico, este sim dependente do referente. O semiótico deve ser reconhecido; o
semântico deve ser compreendido («La Communication», in Problèmes de Linguistique Générale,
vol. II, Paris, Gallimard, 1974, pp. 63-65).
119
Marina Yaguello, Les Fous du Langage, ob. cit., p. 131.
LOUCURA E LINGUAGEM 43

[...] Eis porque a psicanálise acha na loucura por excelência – que os psiquiatras
chamam esquizofrenia – o seu íntimo, o seu mais invencível tormento; porque
nessa loucura apresentam-se, sob uma forma absolutamente manifesta e
absolutamente retraída, as formas da finitude para a qual, de ordinário, a
psicanálise avança indefinidamente (e sem fim), a partir do que lhe é voluntária-
-involuntariamente oferecido na linguagem do paciente.120

O poeta confronta-se com o louco, na cultura ocidental moderna, quando a


linguagem se converte em experiência das palavras e das coisas e quando se descobre
o poder do significante: a «paixão do significante torna-se desde então uma dimensão
nova da condição humana na medida em que não somente é o homem que fala, mas
também no homem e pelo homem que se fala»121. Além disso, tal como no discurso
psicótico, só aparentemente a poesia reenvia às coisas e aos significados. Trata-se, em
ambos os casos, de «uma linguagem que se basta a si própria, uma fala plena que não
reenvia a nada que lhe seja exterior»122.
A busca de reajustamento entre significante e significado ajudou a desenvolver
a crise semântica do mundo moderno, na medida em que, como observa Benveniste,
não é a relação entre significante e significado que é arbitrária, mas a relação do signo
com a realidade que nomeia123. Este «défaut des langues»124 foi aproveitado pelos
poetas modernos para promoverem a correspondência motivada entre as palavras e as
coisas, ao mesmo tempo que se libertam da concepção de que o significante responde
à função de representar o significado.
É com base na afirmação saussuriana de que o que constitui um signo é o que o
distingue dos outros125 que Derrida avança com uma alternativa àquela teoria: não fala
de «diferença» mas de différance, um neografismo que surge da aglutinação do

120
Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, ob. cit., p. 411.
121
Jacques Lacan, Escritos, ob. cit., p. 265; sublinhado meu.
122
Tzvetan Todorov, «O Discurso Psicótico», in Os Géneros do Discurso, ob. cit., p. 88.
123
Cf. Problèmes de Linguistique Générale, vol. I, ob. cit., pp. 49-54.
124
Cf. Stéphane Mallarmé, «Crise de Vers», in ob. cit., p. 364.
125
«A língua é um sistema em que todos os termos são solidários e em que o valor de um
resulta da presença simultânea dos outros [...] A característica mais exacta dos valores é serem o que os
outros não são» (Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, ob. cit., pp. 193-204).
LOUCURA E LINGUAGEM 44

substantivo francês «différence» com o verbo «différer», no latim «differe», com dois
sentidos, um inscrito na cadeia temporal, significando adiamento, desvio,
representação, e o outro no espaço, pelo facto de não ser idêntico, de ser outro126. Uma
vez que só significam pela diferença, os signos são sempre uma presença diferida.
O encadeamento faz com que cada elemento do significante linguístico
– fonema ou grafema – se constitua a partir da marca que existe nele dos outros
elementos da cadeia ou sistema127. Pelo recurso aos metaplasmos, entre outros
processos de decomposição ou recomposição vocabular, a linearidade do significante
é destruída em Ângelo de Lima. A sequência fónica prevista pelo código é desfeita na
operação metaplasmática em função da remotivação do signo, que assume na poesia
um valor autónomo. Por conseguinte, a «redistribuição das articulações no plano
expressivo remodela as estruturas do plano do conteúdo»128, reactivando mecanismos
de significação ilimitada.
A oposição significante/significado perde com Derrida a pertinência que havia
conquistado com Saussure, pois essa união não esgota o acto semântico, visto que o
signo vale também pelo que o rodeia na relação entre significantes.129. A significação
só é então possível se, na língua entendida como «tecido de diferenças», cada
elemento se relacionar com outra coisa, num «jogo» ou «movimento» de reenvios,

126
O sentido aparece diferido, como que adiado: «a substituição da coisa mesma pelo signo é
simultaneamente secundária e provisória: secundária em relação a uma presença original e perdida de
que o signo derivaria; provisória perante essa presença original e ausente em vista da qual o signo se
encontraria num movimento de mediação». Esse intervalo é entendido como «espaçamento», devir-
-espaço do tempo, ou temporização, devir-tempo do espaço, logo différance é simultaneamente espaço
e tempo (Jacques Derrida, «A Diferença», in Margens da Filosofia, Porto, Rés, s.d., p. 38). Cf. ainda,
do mesmo autor, L’Écriture et la Différence, Paris, Seuil, 1967, pp. 411-413.
127
Cf. Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, ob. cit., pp. 128 e 201.
128
Luís Adriano Carlos, «Metamorfoses do Signo e uma Supra-Metamorfose de Jorge de
Sena», Cruzeiro Semiótico, 2, Porto, Janeiro de 1985, p. 91. Compreende-se, pois, a posição de Roman
Jakobson ao contestar a linearidade proposta por Saussure: «Do ponto de vista estritamente
articulatório, a sucessividade de sons não existe. Em vez de se seguirem, os sons entrelaçam-se; e um
som que de acordo com a impressão acústica sucede a outro pode articular-se simultaneamente com
este último ou mesmo em parte antes dele» (Six Leçons sur le Son et le Sens, Paris, Minuit, 1976, p. 30).
129
Derrida opõe-se ao sistema binário saussuriano, dado que, neste sistema, um dos termos
domina sempre o outro, ocultando a autonomia do significante, relegado para segundo plano. O
princípio da «diferença» defendido por Saussure, como condição da significação, afecta, segundo
Derrida, a «totalidade do signo», simultaneamente a face do significado e a face do significante (cf. «A
Diferença», in Margens da Filosofia, ob. cit., p. 39).
LOUCURA E LINGUAGEM 45

que, na perspectiva de Jacques Derrida, promovem a différance130. O vínculo entre o


sentido e a realidade fica, deste modo, anulado para que cada um dos termos surja
como oposto ao outro, accionando as diferenças como desvios.
Por usar uma linguagem ilegível resultante das relações vazias que instaura
entre as palavras, o sujeito, igualmente irreferenciável, poeta ou louco, que não se
conforma com o logos, desvia-se da norma. As transformações linguísticas operadas
pelos psicóticos ao nível das invenções lexicais e gramaticais não contribuem, porém,
para alterar o código131. No entanto, o uso que o poeta faz da língua pode contribuir
nesse sentido, por duas razões: uma determinada invenção pode ser excepção num
primeiro momento e, com o uso, deixar de o ser e passar a ser norma; além disso, o
artista sabe moldar os materiais oriundos da sua língua para exprimir o seu
inconsciente. Quando o consegue, já está perante uma língua entre outras, a lalangue,
que acentua o «saber inconsciente da língua ela-mesma» e designa «um real que
excede toda a fonologia possível»132. É este registo que leva a língua, segundo Jean-
-Claude Milner, a um «modo singular de fazer equívoco», através da sua
«destratificação [...], na confusão sistemática entre som e sentido, menção e uso,
escrita e representação»133. Neste estádio da língua, quase pré-verbal, poeta e louco
voltam a encontrar-se para dizer o impossível, pois para ambos o real é essencialmente
não representável. Foi no interior da loucura que a literatura descobriu o pensamento
impensável e a recusa da linguagem enquanto imitação do mundo.
Com a destruição do referente linguístico e a explosão da palavra poética, a
linguagem moderna começa a «psicotizar-se», transformando-se numa «linguagem-
-limite», quando atinge o seu «grau zero»134. Christian Delacampagne sintetiza esta ideia
no que ele designa por «hemorragia do código»135, um processo que não levará muito

130
Idem, pp. 40-42. Roland Barthes retira daí as suas consequências: uma vez que os signos
são constituídos por diferenças, o significado não pode ser analisado de um modo isolado (A Aventura
Semiológica, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 150).
131
Christian Delacampagne, «L’Écriture en Folie», art. cit., p. 162.
132
Jean-Claude Milner, L’Amour de la Langue, Paris, Éditions du Seuil, 1978, pp. 89 e 93.
133
Idem, pp. 21-24.
134
Roland Barthes, Lição, Lisboa, Edições 70, 1988, pp. 18 e 20, respectivamente.
135
«L’Écriture en Folie», art. cit., p. 167.
LOUCURA E LINGUAGEM 46

tempo a passar da polissemia à própria «disseminação»136 das palavras com a destruição


de toda a lógica que subjaz ao conceito de signo. A palavra «pluralizou-se»137.
Roland Barthes entende a literatura moderna como «revolução permanente da
linguagem», pois é no seu interior que a «língua deve ser combatida, transviada», para
que, deste modo, as palavras sejam «lançadas como projecções luminosas, explosões,
vibrações, sabores»138. Por conseguinte, compara a palavra poética à caixa de
Pandora, de onde saem todas as virtualidades da linguagem, as boas e as más,
provocando desta forma «um discurso cheio de buracos e cheio de luzes, cheio de
ausências e de signos supernutritivos»139. A poesia de Ângelo de Lima apresenta-se
como um exemplo deste tipo de discurso. Vivendo dos múltiplos processos sonoros
associativos, que acabam por dissolver o material fónico, anulando assim o poder
representativo da linguagem, exprime a «vibração duma alma transida, que vibra,
dolorosa e ungida de pre-signo»140.
A prática do significante na literatura moderna visa o obscurecimento da
mensagem poética, fazendo do leitor não um consumidor mas um produtor do texto e
confirmando a máxima de Eugénio de Castro segundo a qual a poesia está doravante
destinada aos «Raros apenas»141. Ora, os trabalhos dos formalistas russos vieram
justamente insistir na destruição do automatismo perceptivo da obra de arte. Para
Viktor Chklovski, o processo de «singularização dos objectos» aumenta a duração da
percepção e o prazer estético142. A desautomatização formalista e o automatismo
surrealista são, pois, «técnicas estéticas complementares», na medida em que «em
ambos os casos o tipo de experiência procurada envolve uma certa passividade e
descompromisso dos modos de agir habituais», diferindo no entanto porque «enquanto

136
Cf. Jacques Derrida, Dissémination, Paris, Seuil, 1972, passim.
137
Henri Meschonnic, Le Signe et le Poème, ob. cit., p. 15.
138
Lição, ob. cit., p. 21. «A escrita acontece sempre que as palavras tenham sabor» (idem, p. 22).
139
Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita, Lisboa, Edições 70, 1973, p. 51.
140
António de Navarro, «Estudo para um Ensaio – Ângelo de Lima», art. cit., p. 12.
141
Horas, 2ª ed., Coimbra, J. França Amado Editor, 1912, p. 29.
142
«A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como
reconhecimento» (V. Chklovski, «A Arte como Processo», in AAVV, Teoria da Literatura: Textos dos
Formalistas Russos, vol. I, Lisboa, Edições 70, 1999, pp. 81 e 92-93). Cf. B. Eikhenbaum, «A Teoria
do Método Formal», in idem, p. 44.
LOUCURA E LINGUAGEM 47

os surrealistas enfatizaram a passividade necessária para a visão criativa [...], os


formalistas enfatizaram formas de consciência»143. Ao transformar o referente, dá-se a
autonomização da palavra e, consequentemente, a intensificação da percepção. O
efeito estético de estranhamento surge como a qualidade diferencial que atribui ao
texto poético uma semiose infinita. No seu engendramento, a significação expande-se
como resultado de um determinado uso que se faz da linguagem através da opacidade,
da intensificação e da singularização do objecto. O discurso poético define-se, então,
pela sua função de «obscuridade», fazendo do «enigma [...] um género poético» com
transformações imprevisíveis, e, a partir daqui, ao leitor não mais se lhe pede que
descodifique o texto, dado que deixa de haver código144.
Em «Crise de Vers» (1880), Stéphane Mallarmé faz a apologia de uma poesia
cujo valor adviesse do resultado do trabalho com o estilo e com a linguagem e não
como expressão das emoções e dos pensamentos. Com a preocupação na extracção do
melhor efeito poético a partir das palavras, que devem sugerir e não nomear, o poeta
desaparece145. Também Rimbaud havia exaltado a condição lírica da obscuridade,
cantando a alucinação das palavras para um leitor que, nas palavras de Álvaro
Cardoso Gomes, seria o louco dos novos tempos, uma vez que é totalmente
desprezado no acto de criação poética146. Ora Rimbaud não pretendia mais do que
evitar que o trabalho poético se transformasse em objecto de consumo, tal como os
formalistas no século seguinte, defendendo por isso a alquimia da linguagem e
trilhando o caminho da poesia da Modernidade. No fundo, Rimbaud retroprojecta-se
no passado, pois acaba por recuperar o estranhamento (ostranenia) proclamado por
Aristóteles, e projecta-se como um teórico do futuro, explorando as visões poéticas
através de processos que excluem o controlo da razão, na experiência imaginativa dos
sentidos, e antevendo, deste modo, uma realidade-outra, ou surrealidade, no entender
dos surrealistas, também eles procurando transcender a comum limitação da realidade.

143
Louis Sass, Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and
Thought, ob. cit., p. 65.
144
Paul Zumthor, «Jonglerie et Langage», Poétique, 11, Paris, Seuil, 1972, p. 323.
145
Cf. «Crise de Vers», in Oeuvres Complètes, ob. cit., p. 366.
146
Álvaro Cardoso Gomes, A Estética Simbolista, S. Paulo, Cultrix, 1984, p. 57.
LOUCURA E LINGUAGEM 48

«Je est un autre»147 tornou-se a fórmula mágica para a poesia de excesso que veio
caracterizar a poética da fragmentação, pois já em Rimbaud se manifestava a
consciência de que o ser era dual.
Esta duplicidade estaria na origem da heteronímia pessoana, mas, na poesia de
Ângelo de Lima, essa realidade-outra corresponderia, não ao resultado da
fragmentação do sujeito, mas à fragmentação da linguagem e, consequentemente, da
realidade, ou seja, àquilo que Julia Kristeva designou por «Vréel», na fusão entre o
«real» e a «verdade que os falantes procuram dizer»148. Este mot-valise, que condensa
a vérité e o réel, sem que um preceda o outro, anula a separação entre o que se quer
dizer e o dizer. E a verdade é que «Ângelo de Lima, numa guerra incessante com o
seu inconsciente, mexe com as palavras, até consequências simbólicas extremas»149.
Ivan Fónagy explica que os esquizofrénicos, ao procurarem a via que os reconduz à
realidade, «tentam recuperar os objectos perdidos com a ajuda das palavras que os
designam»150, daí a dificuldade em separar ou distinguir a palavra do objecto que
representa. Estes doentes acreditam no poder mágico dos significantes livres; para
eles, as palavras e os objectos aproximam-se e confundem-se, ou seja, as palavras
transformam-se facilmente em objectos tangíveis151. Há como que um regresso a um
estado anterior à arbitrariedade do signo, a um tempo em que as palavras eram
sentidas como sendo propriedade intrínseca do seu objecto em vez de com ele terem
apenas uma relação convencional. Para o psicótico, o significado não possui um
universo distinto do significante, pois «este não tem a função de dizer, nem mesmo,
como na poesia, de sugerir ou evocar», ou seja, «o significado não é mais do que o
ponto de vista do significante, um certo modo de perspectivar o significante»152.

147
Expressão que surge na já referida carta a Paul Demeny (Arthur Rimbaud,
«Correspondance», in Oeuvres Complètes, ob. cit., p. 254).
148
«Le Vréel», in AAVV, Folle Vérité – Vérité et Vraisemblance du Texte Psychotique, ob.
cit., p. 11. Ver ainda a perspectiva de Antoine Compagnon (idem, p. 33).
149
Almerinda Alves, «A Finitude in Ângelo de Lima», Letras & Letras, n. cit., p. 8.
150
«Motivation et Remotivation», art. cit., p. 415.
151
Um paciente de Louis Sass explicou esta dificuldade: «As palavras têm uma textura, tal como
os objectos [...] mas às vezes elas não têm a mesma textura que os objectos a que se referem» (cit. in
Madness and Modernism: Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought, ob. cit., p. 51).
152
Christian Delacampagne, «L’Écriture en Folie», art. cit., p. 175.
LOUCURA E LINGUAGEM 49

Iuri Lotman perspectiva a poesia como um espelho duplo, já que esta faz
aparecer a conotação no desdobramento de imagens153. Sem suprimir as diferenças e a
distância entre as palavras e as coisas, esta duplicação especular não devolve o
modelo; além disso, «o objecto artístico só é artístico na medida em que não é real»,
pois o «retratado e o seu retrato são dois objectos completamente distintos»154. Neste
sentido, a poesia de Ângelo de Lima não funciona como um mero espelho, na medida
em que, através da própria linguagem, a sua produção reflecte uma realidade
deformada. Sendo críptica, não encontra o referente na relação linguagem/mundo.
Deve pois ser entendida como um simulacro metamorfoseador da linguagem. Este
facto aproxima-a do conceito dos «espelhos deformantes» de Umberto Eco: o prazer
que se experimenta na apreensão das formas alteradas, neste jogo de «funções
alucinatórias», é de ordem estética, porque o que se propõe é «esquecer o referente
para fantasiar o conteúdo»155.
Há, no entanto, um aspecto importante a reter: essa inadequação entre signo e
referente é também resultante do facto de o poeta moderno se confrontar com um
problema de insuficiência de palavras para abarcar uma realidade inefável e
incompreensível, daí referir-se que a arte representa uma ilusória satisfação de desejos
negados ao artista pela realidade, pois proporciona-lhe satisfações substitutivas ou
compensatórias da mesma. Só a arte poderá, portanto, comportar o interesse natural do
poeta pelo desconhecido.
Mas a desintegração da écriture en folie, operada pelos poetas modernos,
simbólica e não representativa, só pode conduzir ao «silêncio da escrita»156, porque é
uma linguagem sonhada individualmente. Se «a literatura é a exaltação da linguagem
até à sua anulação»157, a Modernidade pretende suprimir os antagonismos, não

153
«A literatura imita a realidade, cria a partir do seu material, sistémico pela sua própria
essência, um modelo de extra-sistemicidade [...] um elemento num texto artístico deve pertencer pelo
menos a dois sistemas» (A Estrutura do Texto Artístico, Lisboa, Editorial Estampa, 1978, p. 117).
154
José Ortega Y Gasset, «Arte Artístico», in La Deshumanizacion del Arte, Madrid, Revista
de Occidente, 1967, p. 23.
155
«Sobre os espelhos», in Sobre os Espelhos e Outros Ensaios, Lisboa, Difel, 1985, pp. 30-33.
156
Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita, ob. cit., p. 74. Cf. Octavio Paz, Los Hijos del
Limo, Barcelona, Seix Barral, 1998, p. 111.
157
Octavio Paz, idem, p. 160.
LOUCURA E LINGUAGEM 50

reduzindo, mas exagerando as oposições através da analogia, que, para Octavio Paz, é
a ponte verbal reconciliadora das diferenças. Cada texto é, ao mesmo tempo, excepção
e transgressão das estruturas poéticas e a voz do poeta vai desaparecer para fazer
renascer a voz da linguagem. Diz Octavio Paz que, independentemente do nome que
se dê à relação do poeta com a linguagem (inspiração, inconsciente, hazard,
revelação), em qualquer época que seja, o resultado é sempre a voz do outro158,
podendo cada um «encontrar na loucura, que não é dele, a própria voz que lhe
pertence»159.
O tempo moderno veicula o princípio da alteridade no seio da linguagem
poética. Depois de Babel, a língua adâmica, que era universal porque pressupunha a
supressão do outro ou da identidade de cada um, dá lugar a uma língua que é sempre
outra e que deixou de ser perfeita, pois não é mais pertença do mestre, mas dos
homens com todos os seus defeitos e diferenças. Na Modernidade, a palavra poética
passou a excluir as relações entre os homens para os confrontar com as imagens mais
verdadeiras da natureza: o transitório, o estranho, o único, o plural, a negação, a
desagregação, a dispersão e a excepção. A consciência deste facto leva Barthes a dizer
que não há humanismo poético na literatura da Modernidade, pois aquelas
características trazem consigo inevitavelmente a marca da solidão e da morte160.
A fragmentação do eu, ou a perda da noção de unidade do ser, surge na poesia
moderna porque o homem, na ânsia de se libertar da realidade, rende-se ao subjectivo
e tenta criar um material novo susceptível de funcionar como linguagem,
proporcionando um diferente tratamento da língua e uma nova percepção da realidade
interior do indivíduo. Fala-se, pois, na desumanização da arte moderna, antipopular
pelo efeito sociológico que provoca. De acordo com Ortega Y Gasset, a maioria não a
percebe, uma vez que as formas verdadeiramente artísticas, fantasias ou irrealidades,
só são toleradas quando não interferem na percepção das formas reais, o que falseia o

158
Idem, p. 224. Ver ainda p. 109. Octavio Paz vai deste modo ao encontro do que diz Jacques
Lacan: o inconsciente não é, em termos exactos, pessoal, «o inconsciente é o discurso do Outro»
(Escritos, ob. cit., p. 22).
159
Fernando Guimarães, Prefácio, in Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 13.
160
Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita, ob. cit., p. 52. Recorra-se, a título de exemplo, ao
cenário desolador do mundo fragmentado em The Waste Land (1922), de T. S. Eliot.
LOUCURA E LINGUAGEM 51

pressuposto de igualdade entre os homens161. Como não há significância da realidade,


a arte moderna fica restrita a uma minoria distinta dotada de sensibilidade artística
para apreender a perda da referência directa com a vida quotidiana. Por conseguinte,
afirma o mesmo ensaísta que «a ocupação com o humano [...] é, em princípio,
incompatível com a estrita função estética»162. O moderno fica assim condenado ao
pluralismo, à novidade e à alteridade, bem como à condição psicológica da alienação.
No século XIX, os simbolistas, quais poetas malditos, abordavam temas como
o tédio e a inconstância da vida, a aniquilação do sentimento e a desintegração íntima
entre a nevropatia e a superstição, explorando esteticamente a insanidade mental e
recorrendo aos paraísos artificiais na exagerada análise subjectiva do eu. Mas
nenhuma corrente literária aclamou tanto as características esquizofrénicas como o
Surrealismo francês nos seus manifestos163. Na vontade de explorar livremente o
inconsciente, libertando o sonho e a imaginação, e com a intenção de reproduzir «tão
exactamente quanto possível o pensamento falado»164 através de formas não
premeditadas, os surrealistas tentam fazer comunicar o génio com a loucura. Bem
longe, no entanto, da loucura entravada pela psiquiatria, é sua pretensão libertar os
mecanismos da criação artística dos constrangimentos do razoável, do convencional
ou do bom-senso.
Louis Sass encontrou razões mais do que suficientes para poder estabelecer o
paralelo entre a esquizofrenia e a Modernidade, uma vez que a tendência do
esquizofrénico e a do homem moderno é a de rejeitar ou ignorar os imperativos de
ordem social, bem como as preocupações realistas proeminentes da linguagem165. Se o

161
José Ortega Y Gasset, La Deshumanizacion del Arte, ob. cit., pp. 15-26.
162
Idem, p. 22.
163
Foi esse o significado da carta-manifesto da autoria de Antonin Artaud e Robert Desnos
(«Carta aos médicos chefes dos Asilos de Alienados», publicada em La Révolution Surréaliste, 3, de 15
de Abril de 1925), quando elogiam o «carácter perfeitamente genial das manifestações de alguns loucos
[...] e a legitimidade absoluta da sua concepção da realidade» e exigem a libertação das forças da
sensibilidade em nome dessa individualidade que é própria do homem (in AAVV, Textos de Afirmação
e Combate do Movimento Surrealista Mundial, Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1977, pp. 99-101).
Cf. texto de André Breton, «A Arte dos Doidos – A Chave dos Campos», pp. 357-361.
164
André Breton, «Manifesto Surrealista (1924)», in Manifestos do Surrealismo, ob. cit., p. 31.
165
Refere Michel Foucault: «o louco surge agora [...] portador de uma linguagem e envolvido
numa linguagem nunca esgotada, sempre retomada, e remetido a si mesmo pelo jogo dos seus
contrários, uma linguagem onde o homem aparece na loucura como sendo outro que não ele próprio
LOUCURA E LINGUAGEM 52

primeiro o faz de forma inconsciente, como resultado de uma alienação involuntária, o


segundo, de forma consciente, procura evadir-se de uma realidade exterior, que deixa
de reconhecer porque considera redutora, lutando por descobrir as múltiplas
possibilidades linguísticas. O poeta, disse-o Rimbaud, deve procurar uma nova
linguagem, livre, feita de imagens, de sonoridades e de ritmo, a fim de fixar as
vertigens e de exprimir o inexprimível166.
O discurso da interioridade que assinala a poética da Modernidade é deste
modo comparável ao discurso do sujeito esquizofrénico, pois também para ele
escrever é «um verbo intransitivo, fala sem nada dizer»167. Por outro lado, desta fusão
entre palavra e objecto, ou entre desejo e realidade, surge a magia verbal, folia que
confere ao discurso uma força irresistível. Aproxima-se, como sublinha Todorov, «a
apoteose e o fim da linguagem»168.

[...] O louco [...] é o alienado na forma moderna da doença. Nessa loucura, o homem não é mais
considerado numa espécie de recuo absoluto em relação à verdade» (História da Loucura, ob. cit., p. 520).
166
Arthur Rimbaud, «Alchimie du Verbe», in Oeuvres Complètes, ob. cit., p. 219.
167
Tzvetan Todorov, «O Discurso Psicótico», in Os Géneros do Discurso, ob. cit., p. 88.
168
Ibidem.
Though this be madness,  
yet there is method in’t. 
Polonius, in Hamlet  
 
Porque, se vou ser louco, quero ser louco 
com moral e siso. 
Fernando Pessoa 
 
Posso muita vez não sentir nem pensar o 
que digo, 
mas, o que escrevo, sinto‐o sempre, 
 e sempre o penso. 
Ângelo de Lima 
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO

Entre o Lisível e o Ilisível

Na Modernidade, o inconsciente tornou-se em muitos autores condição da


própria expressão estética, manifestando-se ao nível da linguagem ao anular a
distinção limitadora entre real e irreal e ao diluir as fronteiras entre ambos. O
inconsciente expressa-se através da linguagem poética, porque só esta poderá
proporcionar aquele conjunto de efeitos linguísticos que melhor podem exprimir o
lado obscuro da mente humana. Deste modo, perante o legado poético de Ângelo de
Lima, deixa de fazer sentido especular se os limites da linguagem são destruídos
apenas como resultado da psicopatologia, clinicamente comprovada, ou se, por outro
lado, se trata de mais um caso em que o inconsciente faz parte da subversão
linguística, potencializando criativamente a produção literária.
A poesia de Ângelo de Lima não se furta à presença de alguns traços de
diagnose da doença esquizofrénica, pelo que se considera importante, antes de se
avançar com o objectivo central deste capítulo, percorrer alguns estudos sobre o
discurso psicótico e tentar compreender de que forma e até que ponto essas marcas
são, talvez inconscientemente, ultrapassadas, dando lugar a um resultado poético
singular na literatura portuguesa.
Júlio Dantas, na já referida obra Pintores e Poetas de Rilhafoles, estabelece as
características mais comuns dos objectos de arte de artistas loucos a partir da
apreciação de diversos textos e pinturas. O crítico explica a predilecção destes homens
por motivos obsoletos: «o paranoico é, intellectualmente, a resurreição de velhos
typos ancestraes da especie. É [...] um antepassado de si mesmo»1. Mas o que
caracteriza esta nostalgia e o que a faz ser indicadora de degenerescência é, ainda nas

1
Júlio Dantas, Pintores e Poetas de Rilhafoles, Lisboa, Livraria Editora, 1900, p. 34.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 55

suas palavras, «o anachronismo da maneira, da intenção, do processo, da technica, o


recúo da visão esthetica, [...] todo esse ar de manifesta primitividade que faz regressar
de muitos séculos a arte»2. Ora, em Ângelo de Lima, este tipo de regressão, se existiu,
por exemplo na evocação de personagens histórico-mitológicas, estaria intimamente
relacionado com a segunda característica apontada por Dantas, o desenvolvimento do
simbolismo. Descobre-se facilmente na sua poesia uma tendência para a figuração de
conceitos abstractos através da substituição das palavras por um largo número de
figurações simbólicas, bem como a sua preferência pelas formas externas de culto, que
se supõe serem marcas da cultura que foi adquirindo antes da doença.
Mas a maior propensão deste tipo de doentes é a criação de palavras novas.
Explica Dantas que «a exteriorisação symbolica do seu dilirio leva o paranoico á
necessidade do neologismo», dado que o «vocabulario de que se servia a primeira
personalidade torna-se insufficiente para a personalidade nova»3. Na poesia de Ângelo
de Lima, surgem palavras novas que, como se verá mais à frente neste capítulo, não se
limitam a traduzir uma utilização aleatória característica do automatismo neológico do
doente esquizofrénico. Pelo contrário, a utilização de processos como o
metaplasmático, nomeadamente a immutatio, parece ser uma garantia de equivalência
entre os termos, promovendo, no entanto, a obscuridade semântica, já que as
substituições fonemáticas veiculam sentidos que dificultam o acesso ao significado
das palavras-base. Tal como o alienado, o poeta moderno, afirmando-se múltiplo, tem
necessidade de criar novos termos, sobretudo aqueles que possam consubstanciar as
diferentes realidades que vai experienciando e transfigurando.
O estudo de Luce Irigaray Le Langage des Déments é revelador do
funcionamento da linguagem psicótica e explica algumas das características também
apontadas por Júlio Dantas4. A autora refere que, mesmo quando existe permutação
fonémica ou redução de grupos silábicos, estas ocorrem com tão pouca frequência que
não podem ser interpretadas como uma incapacidade de realização fónica por parte do

2
Idem, p. 36.
3
Idem, pp. 41-42.
4
Le Langage des Déments, Paris, Mouton, 1973, p. 343. As conclusões a que, de um modo
resumido, se fará referência encontram-se entre as páginas 344 e 351.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 56

sujeito. Do mesmo modo, as dificuldades em iniciar um enunciado ou em continuar


um outro, embora expliquem algumas agramaticalidades, como as frases lacunárias e
a escolha de certos termos improváveis e incorrectos, não põem em causa, segundo a
autora, o funcionamento das regras sintácticas, resultando, porém, na pobreza ou
ausência de conteúdo nas mensagens transmitidas.
Sublinha Irigaray que, no discurso psicótico, é essencialmente ao nível do
léxico que se verificam as maiores dificuldades. O stock lexical deste tipo de doentes é
francamente reduzido, atingindo o limite na utilização frequente de termos genéricos.
Correlativamente, assiste-se a uma indiferenciação progressiva na utilização dos
lexemas, que aparecem reduzidos somente a certos traços semânticos que os
constituem, figurando facilmente em contextos inadequados e aleatórios. Dificilmente
o demente conseguirá fazer remeter uma palavra a um conjunto paradigmático e
operar as correlações adequadas entre os termos dependentes entre si, ainda menos
entre os termos que relevam de paradigmas diferentes, não conseguindo, portanto,
fazer a selecção vocabular. A autora faz ainda notar que a redução do stock lexical se
verifica mais numas classes de palavras do que noutras: os verbos, os pronomes, as
preposições e os conectores são mais resistentes do que os substantivos ou os
adjectivos. Dito de outra forma, subsistem as palavras de relação, que sustentam a
adequação sintáctica, esta muitas vezes resultante do funcionamento automático de
modelos de enunciados anteriormente produzidos; os substantivos e os adjectivos
remetem para o discurso, dependendo da memória que se revela cada vez mais
enfraquecida, dada a natureza da doença.
Luce Irigaray junta-se assim a alguns dos psicolinguistas que estudaram o
discurso esquizofrénico e concluíram que o que o caracteriza não é somente a
desorganização da linguagem. Vários estudos vieram provar que os textos dos
esquizofrénicos em pouco ou nada comprometiam as regras fonológicas, sintácticas e
semânticas. Louis Sass refere então que, nos últimos anos, se defende que os traços
distintivos deste tipo de discurso se devem a outros factores como a «maneiras de falar
e de interpretar a linguagem e formas da linguagem quando ligada a contextos práticos
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 57

e interpessoais», que se resumem a três tendências: dessocialização, autonomização


linguística e empobrecimento discursivo5.
Curiosamente, só as duas primeiras se revelam caracterizadoras da poética da
Modernidade: valorizando a palavra autónoma, o poeta moderno confronta os limites
linguísticos convencionalmente aceites por todos. Mas, por esta razão, e correndo o
risco da dessocialização, o seu discurso reinventa a linguagem e, por conseguinte, o
mundo, afirmando-se enriquecedor na amplificação das suas possibilidades.
De acordo com Jean Vinchon, a arte e a loucura encontram-se no campo do
automatismo psíquico. No entanto, se para o médico francês este facto explica a
criação instantânea, não comporta seguramente o exagero da tese lombrosiana. Os
signos da desordem intelectual encontram-se em obras violentas e pomposas,
incoerentes, ou desajeitadas e absurdas. Mas, segundo Vinchon, estes textos só
sobrevivem ao delírio e à decadência intelectual até certo ponto: o automatismo dá
origem à mecanização e o esforço original dura só um instante, uma vez que a loucura
interdita o seu desenvolvimento. Afirma Vinchon que uma obra de arte é excepcional
pela escolha do objecto, pelos processos de execução e pelas técnicas pessoais que
singularizam o artista que deseja inovar6. Deste modo, como muito bem destacou, o
automatismo da arte é bem diferente e opõe-se ao acto inconsciente da folia:

5
O primeiro problema prende-se com o facto de haver uma falha ao nível dos requisitos
mínimos numa conversação: «os esquizofrénicos falham na transição clara de tópico para tópico, o que
dá um carácter ainda mais desorganizado e incoerente ao discurso». Além disso, a sua «linguagem
poderá parecer telegráfica, como se uma grande quantidade de informação estivesse condensada nas
palavras e nas frases que continuam obscuras porque o falante não providencia o contexto necessário
para o perceber». A segunda característica da linguagem esquizofrénica prende-se com a tendência para
a perda da coerência do discurso, que é conduzido pelas qualidades acústicas (rimas ou aliterações), por
irrelevantes conotações semânticas ou ainda pelo valor dos potenciais significados das sílabas isoladas.
Os esquizofrénicos revelam-se hipersensíveis à natureza polissémica da linguagem, facto que justifica a
repetição de palavras, que apontam sempre para novos significados, tornando-a deste modo autónoma.
Por fim, a pobreza do discurso esquizofrénico, terceira característica apontada por Sass, é derivada do
facto de não haver um discurso espontâneo em grande quantidade. Além disso, é pobre também em
termos de conteúdo ou de informação que transmite, dado que a linguagem é vaga, abstracta, repetitiva
e estereotipada, reflectindo um pensamento em bloqueio (Louis Sass, Madness and Modernism:
Insanity in the Light of Modern Art, Literature, and Thought, Cambridge, Harvard University Press,
1998, p. 176 e seguintes).
6
Cf. L’Art et la Folie, Paris, Librairie Stock, 1924, p. 119. No caso da loucura discordante, o
médico francês admite que a própria discordância poderá libertar «elementos da sensibilidade capazes
de criar uma forma elementar de poesia» (ibidem).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 58

o artista [...] prepara voluntariamente o seu automatismo: a inspiração [...]


elaborará de seguida os materiais reunidos [...] O louco sujeita-se ao automatismo
imposto pela loucura; a sua inteligência é gravemente perturbada pela presença
deste fenómeno estranho, parasitário, que vem interromper a série de operações
intelectuais [...] A loucura pode, porém, [...] despoletar o arrebatamento inicial
onde nós podemos crer ver nascer a Arte e a Poesia. [Mas] o verdadeiro
desenvolvimento destas disposições fica interdito ao alienado.7

Para Silla Consoli, no discurso psicótico predominam os mecanismos


associativos, que funcionam sobre os significantes ou sobre o referente, através de
associações idiossincrásicas que reenviam a elementos autobiográficos precisos8. As
estratégias do discurso com as suas categorias morfológicas ou sintácticas permitem
ao sujeito articular as passagens abruptas entre o real, o imaginário e o simbólico.
Conclui Julia Kristeva que «a psicose é a crise da verdade da linguagem»9. O
psicótico toma a linguagem por aquilo que ela é, sem prejuízo para a sua incapacidade
e inadequação; portanto, a verdade adquire um outro valor10.
Deste modo, no discurso dos esquizofrénicos, tal como em alguns poemas de
Ângelo de Lima, as palavras e os objectos aproximam-se e confundem-se. No entanto,
na poesia, «Esta fusão da palavra e do objecto é a base teórica e emotiva da magia
verbal»11, nomeadamente se estiver associada a outros mecanismos de ruptura
linguística. Quer isto dizer que o corte que a linguagem de Ângelo de Lima instaura
mais não é do que insistir numa prática linguística experienciada no limite, através de
sucessivas rupturas, contribuindo para a destruição da linguagem na configuração da
poética da Modernidade.
Este tipo de efeitos estéticos deformadores da expressão literária inscreve-se
numa tradição anfigúrica de «linguagens forjadas», que, segundo Etienne Souriau,

7
Idem, pp. 119-120.
8
«Le Récit du Psychotique», in AAVV, Folle Vérité - Vérité et Vraisemblance du Texte
Psychotique, Paris, Seuil, 1979, p. 74.
9
«Le Vréel», in idem, p. 12.
10
Cf. Antoine Compagnon, «Psychose et Sophistique», in idem, p. 185.
11
Ivan Fónagy, «Motivation et Remotivation», Poétique, 11, Paris, Seuil, 1972, p. 416.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 59

proliferam desde os textos de Aristófanes até aos de Michaux12. Conforme pôde aferir
Luís Adriano Carlos, na única sistematização existente da tradição do anfigurismo
literário, que, aqui, será tomada como farol e referência, esses fenómenos não ocorrem,
na literatura universal, de uma forma constante, mas cíclica13.
Jorge de Sena, num dos seus verbetes, faz corresponder o «anfiguri» a um
«Termo retórico que se aplicava a um trecho ou discurso para não ser inteligível; e [...]
a qualquer peça literária desordenadamente composta e sem claro sentido». Este efeito
era utilizado por aqueles autores clássicos que almejavam «sugerir uma peculiar
desordem do espírito, ou quando pretendiam criar um contraste entre a clareza
desejável [...] e [...] a irrupção do absurdo [...] ou, ainda, se desejavam caricaturar a
ilogicidade ou o primarismo de uma fala “não-educada”». Sena conclui assim que o
«anfiguri não era [...] exactamente uma figura ou um tropo, mas um vício ou defeito
de estilo», empregue essencialmente nas rimas, criando um efeito propositado de
nonsense14.
Verifica-se, por conseguinte, a presença de algumas características do
anfigurismo em certas tragédias clássicas e, posteriormente, nas aplicações distorcidas
do latim na poesia popular tradicional e no «latinório» dos cancioneiros medievais. A
poesia dos Goliardos constitui um bom exemplo na base da retórica anfigúrica15. Os
seus textos, enquanto promotores da dissolução dos próprios significantes, apresentam
uma grande virtuosidade técnica, trabalhada ao nível da acentuação das palavras, do
número de sílabas e da rima. A maior parte destas composições conservou-se
anónima: os seus autores mascaravam as identidades com medo de possíveis
represálias, por parte da Igreja, pelo carácter agressivo com que se insurgem face aos

12
«Sur l’Esthétique des Mots et des Langages Forgés», Revue d’Esthétique, 18, Paris, Editions
du Centre National de la Recherche Scientifique, 1965, pp. 42-43.
13
Para aprofundar esta questão, cruzar dois textos fundamentais do autor: «Trajectórias da
Ruptura: O Intertexto Deformante», in Jorge de Sena e a Escrita dos Limites: Análise das Estruturas
Paragramáticas nos «Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena», Dissertação de Mestrado, Porto,
Universidade do Porto, 1986, pp. 30-41, e «Poesia Moderna e Dissolução», Línguas e Literaturas, VI,
Porto, FLUP, 1989, pp. 253-255.
14
«Anfiguri», in Amor e Outros Verbetes, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 71. Também in Grande
Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1977, p. 285.
15
Os textos de três Goliardos conhecidos, Hugo d’Orleans (1095-1160), Arquipoeta (1130-
-1165) e Walter de Chatillon (1135-1184), fazem parte da maior e mais importante colecção de cantigas
latinas medievais, Carmina Burana, com data imprecisa entre 1225 e 1250.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 60

limites constrangedores da correcção da língua, que deliberadamente corrompem, e


pelos temas litúrgicos que parodicamente subvertem.
Mas o anfigurismo toma uma nova dimensão em França, desconhecendo
limites e fronteiras, com os quatro livros do Pantagruel de François Rabelais (1490-
-1533). Este autor constitui na escrita da Renascença o paradigma do progresso
linguístico, abrindo, no entender de alguns críticos, as portas à Modernidade. Na base
da extraordinária proliferação de vocabulário está o francês medieval com os seus
dialectos diversos; juntam-se-lhe várias línguas como o espanhol, o italiano, o alemão,
o holandês, o inglês, o irlandês e o árabe; mais as línguas antigas renovadas, o latim e
o grego. A este fenómeno poliglótico misturam-se o calão e os jargões de estudantes,
médicos, mercenários, músicos, filósofos, alquimistas e astrólogos. Nos seus textos
não faltam outros processos de invenção linguística como os hibridismos ortográficos
e os neologismos. A tudo isto acrescentam-se várias formas poéticas, como o rondel
ou as cançonetilhas, cómicas ou grotescas, cheias de trocadilhos, grosserias,
onomatopeias, enigmas, jogos de palavras e enumerações extravagantes, sacrificando
as matrizes sintáctico-semânticas convencionais16.
É através da sua obra que o escritor inglês Laurence Sterne (1713-1768) presta
homenagem, três séculos mais tarde, a François Rabelais, retomando dele uma série
de processos experimentais sobre as estruturas discursivas em The Life & Opinions of
Tristram Shandy. A par da invenção verbal, as súbitas variações poliglóticas, a
polissemia e a ambiguidade, aliadas à desarrumação e à excentricidade de palavras
fragmentadas e desarticuladas sintacticamente, promovem um género de anti-romance
que, no entender de Luís Adriano Carlos, «prefigura já os sinais turbulentos de uma
nova situação, na qual a ruptura do significante enquanto limite (codificado) irá
finalmente fazer parte integrante do sistema: a modernidade»17.
O Petit Glossaire pour Servir à l’Inteligence des Auteurs Décadents et
Symbolistes, de Jacques Plowert, data de 1888 e tem como objectivos a «iniciação do
16
Resumindo, Étienne Souriau refere que o efeito estético da linguagem macarrónica assenta
fundamentalmente em três mecanismos: de invenção de palavras arbitrárias e sem sentido, o
«baragouin» de Molière; de deformação, a «charabia» de Joyce; e de invenção subtil de palavras
plausíveis, o «lanternois» de Rabelais («Sur l’Esthétique des Mots et des Langages Forgés», art. cit.,
pp. 34, 37-38, 40, respectivamente).
17
«Trajectórias da Ruptura: o Intertexto Deformante», in ob. cit., p. 33.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 61

leitor no hermetismo dos vocábulos» utilizados nos textos simbolistas, bem como o
«estabelecimento de princípios gerais e processos técnicos de formação poética de
novas palavras»18. Os poetas simbolistas rejeitaram a poesia como mimesis do real e
trabalharam a capacidade sugestiva das palavras através do adequado uso do símbolo
(Mallarmé). A poesia passou somente a sugerir, num mundo oculto onde, através das
«correspondências» (Baudelaire), o «poeta vidente» (Rimbaud) invade o mistério das
palavras. Sendo a linguagem a maior preocupação dos autores simbolistas, o resultado
não poderia ser outro senão o carácter hermético das suas composições, carregadas de
palavras estranhas, obscuras e inacessíveis, mas autónomas pelo poder emancipador
que conferiram ao significante na experimentação das formas linguísticas.
Pela mesma altura, mas em Inglaterra, o matemático Lewis Carroll (1832-
-1898) excede-se na escrita como forma de melhor explorar o sentido, mais
concretamente ao nível das estruturas lexicais. Através do onirismo ou do lúdico, ele
cria um efeito de nonsense muito admirado posteriormente pelo Surrealismo, tendo
sido, curiosamente, traduzido em França por Louis Aragon. As teorias psicanalistas de
Freud e Jung transformaram as suas histórias de crianças em algo bem mais complexo,
tendo também sido discutidas e desenvolvidas nos estudos linguísticos. De facto,
Carroll criou um universo ficcional, muito revolucionário para a época, jogando com o
vocabulário como se de um puzzle se tratasse – matemático, é certo – pois o conjunto
das palavras, das ideias e das personagens sem qualquer sentido aparece como um
todo ordenado nos textos Alice’s Adventures in Wonderland (1865) ou em Through
the Looking Glass (1871)19. A linguagem «portmanteau» de Humpty Dumpty, que
viria mais tarde a ser explorada por James Joyce, vem provar que, para Carroll, não há
limites para o que se pode dizer ou fazer com as palavras.
Nos finais do século XIX, surgem na Alemanha as paródias grotescas de
Christian Morgenstern (1871-1914), também ele um admirável exemplo do

18
Luís Adriano Carlos, «Trajectórias da Ruptura: o Intertexto Deformante», in ob. cit., p. 39.
19
Recorra-se, como exemplo, ao poema «The Jabberwocky Song», pertencente ao último livro
citado, um texto aparentemente incompreensível, soando, no entanto, a uma composição de língua
inglesa: algumas palavras (conjunções, determinantes, pronomes, etc.) indicam as categorias
gramaticais das outras que se desconhecem (verbos, substantivos e adjectivos); daí Alice, ao ler o
poema na Casa-Espelho, referir que tem «imensas ideias» do que é dito, embora não consiga explicar
«muito bem quais são» (Lewis Carroll, Through the Looking Glass, Londres, Penguin, 1998, p. 134).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 62

anfigurismo moderno. Este poeta impôs-se pelo lirismo espirituoso dos seus textos
filosófico-místicos, ao mesmo tempo grandiloquentes e intencionalmente patéticos,
vocacionados para promover o carácter enigmático das libertinagens fonéticas. A sua
revolução foi além das estruturas formais e linguísticas, inventando línguas para
compor os seus poemas e adornando-os com a ironia e o humor. Antes dos dadaístas,
Morgenstern escreveu sem palavras, desencadeando ou contribuindo para o poder
criador e autónomo da linguagem poética20.
Mas o paradigma do anfigurismo moderno é sem dúvida a obra Finnegans
Wake de James Joyce (1882-1941). Como uma linguagem em permanente gestação, o
inglês acumula-se e mistura-se com raízes de dezenas de outras línguas, destruindo
qualquer tentativa de restruturação morfológica. As transgressões são, neste texto,
exploradas no seu limite através das oposições, das tensões, das combinações, das
dispersões, ou das permutações, condensações, mots-valise, dos jogos musicais e
gramaticais, dos trocadilhos, ou ainda pela multiplicidade de vozes que injectam
fragmentos citacionais de variadas culturas. Joyce coloca-nos perante um verdadeiro
«labirinto de lapsus encadeados», numa «maquinaria infernal», na «utopia de um
discurso duma eficácia mágica»21.
Não foi sem motivos que Jorge de Sena, no já referido verbete «Anfiguri»,
lembrou o escritor brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967) como exemplo
moderno de escrita com alcance anfigúrico. Com uma variedade de temas e de tons, os
seus contos, desde o fantástico ao anedótico, passando pelo satírico, o jocoso ou o
patético, exploram de forma singular e renovadora a linguagem literária brasileira. Este
feiticeiro de palavras, como ficou conhecido, misturava arcaísmos com regionalismos
jamais escritos e com os vocábulos de vários idiomas e fazia aparecer um vocabulário
repleto de neologismos, muitos inventados a partir da justaposição de palavras
existentes na língua portuguesa. As rimas internas, as aliterações, as sonoridades, as
20
«Morgenstern veio a ser admirado pelo seu uso do absurdo e do humor, o seu desafio às
estruturas tradicionais da linguagem [...] Mais revolucionário e subversivo da expressão do que, de
certa maneira, os dadaístas e os surrealistas o foram, [...] foi também um precursor da aplicação de
novas filosofias da linguagem à literatura. E o seu absurdo, caricaturando a sintaxe corrente, encerrava
uma profunda e sensível visão da vida» (Jorge de Sena, in AAVV, Poesia do Século XX, Porto,
Editorial Inova, 1978, p. 509).
21
Jean-Paul Rabaté, «Lapsus Ex Machina», Poétique, 26, Paris, Seuil, 1976, pp. 152, 158 e
162, respectivamente.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 63

aglutinações e as repetições vocabulares reflectem uma visão lírica. Fazendo largo uso
da semântica, da sintaxe e da morfologia populares, Guimarães Rosa não se submetia à
tirania da gramática. Em função da expressividade e da procura de uma nova forma de
expressão, a sua linguagem ilude o convencionalismo linguístico.
O próprio Jorge de Sena foi devedor do anfigurismo enquanto promotor da
«supra-metamorfose» nos seus Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, por ele
descritos como «Exemplo de linguagem anfigùricamente inventada para significar o
que seria extremamente grosseiro ou chocante para ser descrito pelos seus nomes (e
não para evitá-lo, mas para transfigurá-lo)»22. Mas, para Luís Adriano Carlos, os
Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena «desenvolvem processos que Ângelo de Lima
apenas iniciara e cujas potencialidades os modernistas nem sequer entreviram»,
nomeadamente ao nível da linearidade convencional do significante, que aparece ilesa
nos seus textos, sobretudo preocupados com os níveis sintáctico, semântico e
prosódico. Por conseguinte, Luís Adriano Carlos destaca o facto de os sonetos
senianos representarem «um preenchimento de uma lacuna do Modernismo português,
constituindo a desforra de um dos seus cursos traídos»23. Numa breve reflexão crítica,
Jorge de Sena explica os objectivos na base da elaboração daqueles sonetos:

O que eu pretendo é que as palavras deixem de significar semanticamente, para


representarem um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas
associações sonoras que as compõem. Eu não quero ampliar a linguagem corrente
da poesia; quero destruí-la como significação, retirando-lhe o carácter mítico-
-semântico, que é transferido para a sobreposição das imagens (no sentido
psíquico e não estilístico), compondo um sentido global em que o gesto
imaginado valha mais que a sua mesma designação24.

Neste conjunto de poemas, a linguagem parece desintegrar-se através da


ocorrência de palavras aparentemente esvaziadas de significado, deixando, no entanto,

22
«Anfiguri», verbete cit., p. 72.
23
«Trajectórias da Ruptura: O Intertexto Deformante», in ob. cit., p. 42. Luís Adriano Carlos
remete para Jorge de Sena quando ele diz que «os sonetos são uma tentativa para retomar em Ângelo de
Lima [...] um dos cursos traídos do modernismo português» (Jorge de Sena, «Post-fácio – 1963», in
Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 159).
24
Jorge de Sena, «Post-fácio – 1963», in ob. cit., pp. 158-159.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 64

a estrutura sintáctica ilesa. Desta forma, a estrutura semântica encontra um sentido,


que não o tradicional, no «anfigurismo» de uma criatividade ilimitada25.
Do mesmo modo, a obra poética de Ângelo de Lima, na esteira de escritores
como Joyce, Carroll ou Morgenstern, apresenta uma linguagem feita de malhas
perdidas, plena de vazios que correspondem a palavras ou frases que não tiveram
tempo de fixar-se no texto, tornando-o ilisível e obscuro.
Segundo Fernando Guimarães, a poesia de Ângelo de Lima «põe-nos, afinal,
um problema de legibilidade que não é essencialmente diferente do que diz respeito a
qualquer texto literário...»26. Repare-se, no entanto, que o efeito plurissignificativo dos
significantes desfigurados em Ângelo de Lima não permite que se fale em termos de
legibilidade, mas de lisibilidade, pois esse efeito deforma a materialidade do objecto,
trazendo consequências ao nível da significação e não da leitura. Dennis Ferraris
sustenta o valor deste argumento, quando refere que «toda a afirmação de
ilegibilidade [...] é um acto que visa a instauração de uma ordem do lisível» 27. O texto
moderno caracteriza-se pelo recurso sistemático a transfigurações da própria palavra,
como os anagramas e os jogos vocabulares, que tornam o texto ilisível. Apesar de
alguns destes processos estarem presentes em textos de várias épocas28, nunca a sua

25
Cf. Luís Adriano Carlos, «Metamorfoses do Signo e uma Supra-Metamorfose de Jorge de
Sena», Cruzeiro Semiótico, 2, Porto, Janeiro de 1985, pp. 88-99, e «Quatro Sonetos e um Labirinto»,
Colóquio/Letras, 125/126, Julho-Dezembro de 1992, pp. 97-104.
26
«Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 15.
27
«Quaestio de Ligibilibus aut Legendis Scriptis», Poétique, 43, Paris, Seuil, Setembro de
1980, p. 282. Segundo Ferraris, existem dois tipos de ilegibilidade: uma «material», relativa a um texto
que não somos capazes de ler, no sentido de descodificar; e uma «segunda», que depende da
semanticidade do texto e dos valores inscritos nas relações entre significado e significante (ibidem).
Luís Adriano Carlos traduz por «legibilidade» e «lisibilidade» as duas situações que, em francês, são
sustentadas pela mesma palavra («lisibilité»). A seu ver, um manuscrito em mau estado é ilegível, mas
não é ilisível, uma vez que esse estado é já um significante, veiculando um sentido (cf. «Entre Dois
Limites: A Poiética do Texto», in Jorge de Sena e a Escrita dos Limites: Análise das Estruturas
Paragramáticas nos «Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena», ob. cit., p. 82). Cf. Philippe Hamon
sobre a delimitação dos graus de lisibilidade («Note sur les Notions de Norme et de Lisibilité en
Stylistique», Littérature, 14, Paris, Larousse, Maio de 1974, p. 121).
28
Como os anagramas e os paragramas nos textos de poetas gregos e latinos (Homero,
Virgílio, Séneca, Horácio e Ovídio, entre outros), pesquisados por Ferdinand de Saussure em 99
cadernos (cf. Jean Starobinski, Les Mots sous les Mots, Paris, Gallimard, 1971). Outros exemplos,
como os labirintos, os acrósticos, os cronogramas e os lipogramas, surgem das pesquisas de Ana
Hatherly na poesia portuguesa seiscentista e setecentista (cf. A Experiência do Prodígio: Bases
Teóricas e Antologia de Textos-Visuais Portugueses dos Séculos XVII e XVIII, Lisboa, INCM, 1983, e
A Casa das Musas, Lisboa, Editorial Estampa, 1995).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 65

utilização foi feita de forma tão recorrente e consciente. Por conseguinte, esse recurso
na Modernidade torna-se ele próprio um significante, pois, ao mesmo tempo que
dificulta a decifração, transmite uma significação, manifestando-se por isso como um
processo de ilisibilidade e lisibilidade.
Entre o lisível e o ilisível, o texto moderno é entendido também como
escrevível29, uma vez que, como já foi referido no capítulo anterior, o leitor deixou de
ser um consumidor para participar na criação do próprio poema. A poesia de Ângelo
de Lima exige um trabalho por parte do leitor na consequente reconstrução textual,
nomeadamente no preenchimento de espaços em branco criados pela decomposição
sígnica30. Pelo seu carácter polissémico e polifónico, o «objecto poético» amplia-se
sob a forma do jogo das associações livres, na «abertura» do significante e do
significado, pelo que os limites da linguagem só serão estabelecidos pela performance
do leitor.

Intersecções e Anamorfoses

Vários são os processos que contribuem para a fragmentação da linguagem na


poética da Modernidade, mas é ao nível da palavra que mais se investe tendo em vista
a remotivação do signo linguístico. Para Gérard Genette, a motivação dos signos
processa-se em duas vias: se a primeira consiste na aproximação do significado ao
significante, a segunda sugere a operação inversa, aproximando o significante do

29
Jean-Paul Rabaté, «Lapsus Ex Machina», art. cit., p. 171.
30
Como observa Umberto Eco, o texto literário «é uma máquina preguiçosa que requer do
leitor um árduo trabalho cooperativo para preencher espaços do não-dito e do já-dito, por assim dizer,
deixados em branco» (Leitura do Texto Literário – Lector in Fabula, Presença, Lisboa, 1983, p. 27;
sublinhado meu). Cf. Luís Adriano Carlos, a propósito dos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena:
«Cabe [então] ao leitor a função de pôr o texto a trabalhar, reactivando os operadores textuais e
estabelecendo níveis de articulação possíveis entre o sistema produtivo e o campo de leitura de que faz
parte, de modo a permitir o funcionamento dos circuitos de sentido» («Metamorfoses do Signo e uma
Supra-Metamorfose de Jorge de Sena», art. cit., p. 92).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 66

significado. No primeiro caso, pretende-se a adequação das «virtualidades sémicas»


da palavra à «forma sensível da expressão», enquanto que no segundo a acção sobre o
significante subdivide-se em dois níveis, o morfológico, com a criação verbal, e o
semântico, que pressupõe, não uma deformação dos significantes nem a invenção de
vocábulos, mas a substituição do termo próprio por um outro termo que lhe confere
um emprego e sentido novos31.
Ângelo de Lima não é excepção e, tal como uma boa parte dos poetas a partir
do Simbolismo, faz incidir a deformação da linguagem essencialmente ao nível
morfológico, sobre significantes que parecem vazios de significação, ou outros que se
aglutinam, misturando-se e desligando-se por isso do seu significado. Por conseguinte,
Luís Adriano Carlos destaca que a ruptura dos limites da linguagem exemplifica
singularmente, na poesia de Ângelo de Lima, uma forma de «interseccionismo
morfológico» que excede o interseccionismo de tipo sintáctico-semântico praticado
pelos poetas de Orpheu32.
Através de uma rede de conexões, as poesias de Ângelo de Lima movimentam-
-se entre a integração e a metamorfose, revelando-se promotoras das múltiplas
possibilidades linguísticas e retóricas. Por essa razão, enquadram-se nos textos
modernos que fazem com que a «produção [seja] irredutível à representação»33. Ao
transformar a matéria linguística, sobretudo ao nível do trabalho sobre o significante,

31
Gérard Genette, Figures II, Paris, Seuil, 1969, p. 146-148. Ivan Fónagy assinala que «Um
signo motivado é um signo que admite a presença parcial da realidade, que incorpora uma parcela dessa
realidade no seu significante, em vez de se contentar com a sua denotação pura e simples». Por
conseguinte, «jamais poderá pretender a transparência de um signo imotivado» («Motivation et
Remotivation», art. cit., p. 414).
32
«Entre duas Efemérides: Evocação de Ângelo de Lima», Critério, Série Nova, 1, Porto,
Universidade Católica Portuguesa, Maio de 1987, p. 9. Cf. «Elegia da Loucura», Apeadeiro, 2, Vila
Nova de Famalicão, Quasi Edições, Primavera de 2002, p. 136.
33
Julia Kristeva, Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, Paris, Seuil, 1969, p. 41. Ver
também p. 180, sobre o entendimento da linguagem poética como uma «infinidade real impossível de
ser representada». Refere Michel Foucault: «a palavra não deixa de possuir um sentido e de poder
“representar” alguma coisa no “espírito” de quem a utiliza ou ouve; mas esse papel já não é constitutivo
da palavra no seu próprio ser, na sua arquitectura essencial, no que lhe permite tomar lugar no interior
de uma frase e de nela se ligar a outras palavras mais ou menos diferentes» (As Palavras e as Coisas,
Lisboa, Edições 70, 1991, p. 322).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 67

o texto transforma automaticamente o real, daí Julia Kristeva dizer que o texto está
orientado duplamente em função da língua e da sociedade34.
Antes de Babel, a linguagem transportaria em si mesma a essência do
significado. Mas, com o castigo babélico, «a torre metamorfoseia-se em poço»35 ao
impor a relação arbitrária entre a palavra e o seu significado, fazendo questionar a
comunicabilidade ou a transparência da linguagem. Em Through the Looking Glass,
Lewis Carroll aborda a questão da arbitrariedade do significante, problematizando a
própria legitimidade do acto de nomear:

«Quando uso uma palavra», disse Humpty Dumpty com desdém, «ela significa
exactamente o que eu quero que ela signifique – nem mais nem menos.»
«A questão», disse Alice, «é se tu podes fazer com que as palavras tenham
significados tão diferentes!»
«A questão é», disse Humpty Dumpty, «quem deve ser o mestre [...]»36.

Entre significante e significado existe, recorrendo novamente a Saussure, uma


relação arbitrária, ou imotivada, resultante de um contrato colectivo e, por conseguinte,
naturalizado37. Ao ceder a iniciativa às palavras, o poeta moderno invade o contexto
semântico convencional, neutralizando-o. E se, por um lado, Ângelo de Lima destitui a
ligação entre significante e significado, investindo na capacidade metafórica da palavra
e possibilitando a atribuição de múltiplos significados a um só significante, por outro,
inventa palavras na ausência do seu significado directo. Dado que a linguagem se
apresenta como uma estrutura dual, esses vocábulos, quando combinados, formam
frases, adquirindo um valor que dificilmente se percebe fora do contexto38.

34
Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, ob. cit., p. 10.
35
Maria Leonor Carvalhão Buescu, «Origem e Natureza da Linguagem. Babel ou a Ruptura do
Signo», Babel ou a Ruptura do Signo, Lisboa, INCM, 1983, p. 260. Cf. Henri Meschonnic, Le Signe et
le Poème, Paris, Gallimard, 1975, p. 65.
36
Ob. cit., p. 186.
37
Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, Lisboa, Publicações Dom Quixote,
1992, pp. 124-127.
38
Trata-se da dupla articulação da linguagem: a primeira relativamente à relação que as
palavras estabelecem entre si num determinado contexto sintáctico; a segunda, na organização interna
das próprias palavras, ou seja, na combinação de unidades mais pequenas, letras ou fonemas (André
Martinet, Elementos de Linguística Geral, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1991, pp. 18-19). Cf.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 68

Assim, Fernando Guimarães aponta, no caso concreto de Ângelo de Lima, três


tipos fundamentais de desvios: os raros vocábulos, os termos anómalos e as
irregularidades sintácticas, afirmando, desde logo, que é possível entrever na sua
poesia «uma norma interna que os estrutura e os opõe à linguagem quotidiana»39.
Os «raros vocábulos» aparecem na poesia dos simbolistas e, mais
concretamente, dos parnasianos, como expressão da preocupação de recriar e,
consequentemente, de enaltecer a linguagem poética. Sem a frequência com que
ocorrem nos poemas daqueles grupos literários, tais palavras parecem ser em Ângelo
de Lima limitadamente oriundas de um léxico clássico, afastando-se da origem verbal
variada dos vocábulos que surgem, por exemplo, na poesia de Eugénio de Castro. Este
poeta, no Prefácio da primeira edição, revela que em Oaristos escolheu um
vocabulário variado, valorizando a palavra em si mesma, «porque ás fastidiosas
periphrases prefere o termo preciso» e «porque pensa, como Baudelaire, que as
palavras, independentemente da ideia que representam, teem a sua belleza propria».
Eugénio de Castro acaba ainda por citar Théophile Gautier na definição do estilo
decadente, caracterizado pela expressão de ideias «com formas novas e com palavras
que nunca se ouviram antes»40. Conforme destacou o poeta no Prefácio de Horas
(1891), por se tratar de uma poesia feita de palavras desconhecidas, ela seria «silva
esotérica para os Raros apenas [...] longe dos barbaros»41, exigindo a decifração
demorada através das sugestões provenientes da musicalidade do próprio verso. Dado
que o significante se sobrepõe ao significado, a ausência de sentido é superada pelas
virtualidades expressivas da musicalidade verbal que potenciam a valorização da
própria palavra. Além disso, a autonomia vocabular daí decorrente acaba por estar
limitada pelas relações léxico-semânticas, pois o vocábulo raro sugere e evoca

P. H. Matthews, Morphology: An introduction to the Theory of Word-structure, Cambridge, Cambridge


University Press, 1989, pp. 9-10.
39
«Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., pp. 16-17.
40
Oaristos, Coimbra, J. França Amado Editor, 1900, pp. 24-25. Cf. José Carlos Seabra Pereira,
Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1975,
p. 147. Sobre os «raros vocábulos», cf. António Cândido Franco, «O Léxico de Eugénio de Castro», in
Poesia Oculta, Lisboa, Vega, 1996, pp. 27-33. Ver ainda Fernando Guimarães, «Camilo Pessanha e os
Caminhos de Transformação da Poesia Portuguesa», Colóquio/Letras, 60, Março de 1981, p. 37
41
Horas, Coimbra, J. França Amado Editor, 1912, pp. 29-30.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 69

múltiplos sentidos, fazendo depender a sua significação mais do cotexto, isto é, da


interacção com as outras palavras que se apresentam no mesmo sintagma, do que do
contexto.
Na poesia de Ângelo de Lima, termos como «Crastina», «Al», «Êxul»,
«Místera», «Espasma» e «Místice»42 constituem alguns dos exemplos de palavras
perdidas no tempo, se vistas isoladamente, mas actualizáveis se confrontadas com as
outras que as rodeiam. Os «raros vocábulos» apresentam-se como «termos que
excedem geralmente as possibilidades de memória do autor e do leitor»43,
desencadeando a renovação vocabular. Tal como nos poemas simbolistas, estes termos
não possuem qualquer intenção designativa, valendo unicamente pela função
expressiva que veiculam através das conexões e do poder sugestivo das sonoridades44.
Outros casos há em que os termos, já arcaicos na época de Ângelo de Lima,
são como que actualizados pela transformação a que são sujeitos, nomeadamente ao
nível da significação. «Psalma», por exemplo, no poema «Oh Céu», aparece no
feminino, quando a palavra que existe, embora tenha caído em desuso, seja psalmo45.
A palavra «inora», no poema «Súplica»46, deixa algumas dúvidas quanto à sua
significação:

Para alguém, foi, do teu olhar a flama,


Como, após noite escura, a luz d’aurora.
Da «selva oscura» entre a sombria trama,
Ouve, mulher, como esse alguém t’implora.
Oh, baixa sobre mim o olhar fulgente!...
Que o teu olhar é bálsamo que inora,
Do céu sobre este seio, em que, latente,

42
Nos poemas «Fado», «Oh Céu», «Thora...», «Epitáfio», «Cântico Semi-Rami» e «Neitha-
-Kri» (in Poesias Completas, ob. cit., pp. 60, 64, 67, 70, 77 e 79, respectivamente).
43
Fernando Guimarães, Linguagem e Ideologia, Porto, Editorial Inova, 1972, p. 112. Cf. pp.
116-118.
44
Também em Ângelo de Lima o equilíbrio musical do verso justifica a utilização de termos
com ausência de sentido. Esta característica poderá, a meu ver, ajudar a compreender a inclusão de
Ângelo de Lima, reclamada por alguns críticos literários, no grupo dos simbolistas portugueses.
45
Psalmo, de acordo com o Novo Diccionario da Lingua Portugueza (1836), de José da
Fonseca, é um termo antigo que significa cântico, o mesmo que salmo.
46
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 37.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 70

Remorde, há, muito, o cancro de um anseio,


De um desejo insensato e sede ardente
De um não sei quê, que em teu olhar eu leio.

A leitura isolada do verso faz crer que «inora» está ligado a «bálsamo», significando
algo próximo de inodoro, portanto, que não exala cheiro: «[...] o teu olhar [não exala
o] bálsamo [que eu exalo]». No entanto, a palavra aparece no Novo Dicionário da
Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, como termo antigo e
popular que significa ignora, relativo a que não sabe ou a que desconhece algo,
também possível no contexto do poema: «[...] o teu olhar [...] [desconhece] [...] [que]
sobre este seio [...] Remorde, há muito, o cancro de um anseio». Neste caso, tal como
com os «vocábulos raros», é a própria palavra que manifesta o desejo de concentrar
vários significados. A verdadeira descodificação da mensagem só se torna então
possível se se atender ao resultado dessa amálgama poética, que acaba por, à sua
maneira, fazer aparecer uma palavra nova ou, melhor ainda, um conceito novo,
inatingível na associação directa entre significante e significado.
A par de criações vocabulares a partir do latim, encontra-se também na poesia
de Ângelo de Lima o recurso a algumas palavras latinas: com ligeiras alterações
gráficas como «Vésper» («A meu pai»), sem acento no latim, significando Vénus ou
estrela da tarde, ou «Miser» («Edane!»), no latim ‘misere’, que significa infeliz, ou
ainda «Adolida», do latim ‘dolidus, a, um’, para dolorosa; outras sem alterações,
como «Liber» («Thora...»), significando livre, e «Fulgur» («Oh Vida») para raio ou
brilho; e algumas apresentando uma evolução dentro das regras gramaticais da língua
latina para o português como em «Ínscios» («Não tinha»), proveniente de insciens.
Estas palavras, alteradas somente na face do significante, limitam-se a veicular o
significado previsto, não fazendo pois parte do rol das inovações vocabulares que
prevêem a alteração complementar do significado. No entanto, criam alguns impasses
na interpretação imediata, uma vez que são de utilização rara, contribuindo desta
forma para o hermetismo dos textos.
Paralelamente, surgem nos poemas de Ângelo de Lima os termos
desconhecidos, que aparecem misturados com vocábulos perfeitamente legíveis e
reconhecíveis na língua portuguesa. E é de facto ao nível das mutações na ordem do
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 71

significante que a poesia de Ângelo de Lima singularmente se impõe e obriga a


descartar a possibilidade de invenção arbitrária da linguagem, apenas como resultado
da sua perturbação mental. São pois vários os fenómenos retóricos detectados ao nível
da gestação vocabular nos seus textos poéticos, nomeadamente os neologismos, os
mots-valise e os metaplasmos47.
Algumas palavras aparecem nos seus textos como que mutiladas, resultantes
de detritos silábicos reunidos por simples aliterações ou assonâncias, ou feitas de
agrupamentos de sílabas ao acaso que podem fazer supor o neologismo. As alterações
são feitas no item lexical, com a alteração gráfica do significante. Surgem então os
termos dilatados a partir de uma base conhecida, mantendo-se, no entanto, inexistentes
na língua e adquirindo, consequentemente, uma ampliação do sentido, como em
«Emprona» («Fado»), que no contexto faz remeter para proa, e «Dogaresa» (idem),
como esposa de doge, alto magistrado em Veneza.
A origem do termo «fulguro», no verso «– Meu Olhar é Fulguro docemente»,
pertencente a «Neitha-Kri», é passível de várias interpretações: se for entendido como
um substantivo, terá sido formado a partir do verbo fulgurar, por derivação regressiva;
no caso de se entender como adjectivo, correspondendo a fulguroso, forma esta, aliás,
presente num outro verso do mesmo poema, ler-se-ia «– Meu Olhar é fulguroso
docemente»48. Confrontando-se os dois versos, percebe-se que a opção do poeta pela
forma abreviada foi conduzida pelo poder sonoro do verso (decassílabo heróico), ou
seja, para adoptar as expressões jakobsonianas, o princípio da «equivalência» passou a
reger a «sequência» sintagmática, manifestando-se a função poética da linguagem49.

47
Estas ocorrências permitem-me afirmar que a poesia de Ângelo de Lima faz aparecer
predominantemente o neologismo «activo». Séglas distingue o neologismo passivo, resultado de um
simples automatismo psicológico, do neologismo activo, criado intencionalmente com a vontade de
exprimir uma ideia nova relativamente clara (cf. André Blavier, Les Fous Littéraires, Paris, Éditions
des Cendres, 2001, p. 125).
48
Em «Oh Vida» (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 71), no verso «Imaginar
Fulgur dos Céus da Glória!...», o poeta expõe uma outra subversão do termo, destacando-se ainda a
ausência do artigo definido antes do substantivo: «Imaginar o Fulgor dos Céus da Glória» seria então a
expressão morfossintáctica aceitável. Repare-se ainda que, ao verificar-se a aplicação correcta em
«Têm um fulgor estranho singular // Os teus olhos Febris... Incendiados!...» (cf. «Olhos de Lobas!», p.
54), descarta-se a possibilidade de haver um desconhecimento da grafia por parte do autor.
49
Para Roman Jakobson, a «função poética projecta o princípio da equivalência do eixo da
selecção sobre o eixo da combinação» («Linguistique et Poétique», in Essais de Linguistique
Générale/I, Paris, Minuit, 1974, p. 220). É nesta perspectiva que Henri Meschonnic define o trabalho
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 72

Por conseguinte, os cortes silábicos e as alterações gráficas, presentes em


muitas outras palavras nos textos de Ângelo de Lima, algumas decorrentes de algo
próximo do fenómeno «haplológico»50 e outras resultantes de processos
metaplasmáticos, mais não fazem do que pôr «em evidência o lado palpável dos
signos»51, aprofundando a dicotomia existente entre signos e objectos. Atente-se, pois,
nos seguintes exemplos:

- «Narra» («Fado»), de narração;


- «Kaleiscopo» («Oh Vida»), a partir de caleidoscópio;
- «Cintis» («Qual?...»), pelo contexto, o corte foi feito a partir de cintilantes;
- «Luctula» («Alva»), proveniente do termo luctuoso, já na época em
desuso, que significa fúnebre, triste, lamentável52;
- «Anxe» («Cântico Semi-Rami»), de ‘anxiedade’ (latim), para significar
ansiosa;
- «Cilos» (idem) por cílios;
- «Desvirgada» (idem), o mesmo que desvirginada;
- «Dista» (idem), de distante.

Estas deformações resultantes de cortes vocabulares veiculam uma significação


poética contraditória: «pretende-se que a linguagem signifique por si própria, dentro
de uma semiótica onde os processos de significação jamais residem nos signos mas na
sua metamorfose»53.

poético da Modernidade «como a projecção da homonímia sobre a sinonímia» (Le Signe et le Poème,
ob. cit., p. 15).
50
Este fenómeno pressupõe, segundo Manuel Rabanal Alvarez, a dicção simplificada e
consiste «em escrever uma só vez o(s) caracter(es) que deveriam repetir-se» (Voces Griegas con
Eliminacion Silabica – Estudio sobre las Formas Haplológicas y Hapaxépicas del Vocabulario Griego,
Universidade de Santiago de Compostela, 1974, p. 8). O autor faz ainda referência a outras
denominações mais modernas para a «haplografia», como «superposição silábica» ou «dissimilação
silábica» (cf. pp. 10-11).
51
Cf. Roman Jakobson, «Linguistique et Poétique», in ob. cit., p. 218.
52
Cf. Novo Diccionario da Lingua Portugueza, ob. cit.
53
Luís Adriano Carlos, a propósito de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, «Metamorfoses
do Signo e uma Supra-Metamorfose de Jorge de Sena», art. cit., p. 90.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 73

Se, por um lado, a neologia dá lugar à criação poética, por outro, face à
violação do sistema linguístico, promove um hermetismo textual, impossibilitando a
comunicação directa. É o caso da neologia fonológica, que, segundo Ieda Maria
Alves, supõe a criação de um item léxico cujo significante seja totalmente novo, isto
é, tenha sido criado sem qualquer apoio numa palavra já existente54. Este tipo de
neologismo é extremamente raro, ocorrendo, na maior parte das vezes, uma só vez e
num único texto. Quando assim é, deve entender-se como uma «palavra forjada»55, ou
seja, uma palavra engendrada com o intuito de abarcar uma realidade nova, também
ela inexistente. Encontra-se nos poemas de Ângelo de Lima o emprego destes
vocábulos, denominados hapax legomena56, cujo significado se desconhece e
dificilmente se adivinha através do contexto. No poema «Ocaso»57, «Cocital»
exemplifica o hapax legomenon:

– Serapi... sê na Tua Majestade


Desde o Teu Longe Trono Cocital
– Redentor!... Stator!
– Paz!... Piedade!...

Este termo pode ter sido forjado, eventualmente, pelas necessidades da sonoridade do
verso e da rima: «Cocital» surge para rimar com «Divinal» e «Fatal», cumprindo assim,
nos tercetos do soneto, o esquema rimático CDC // DCD, apregoado pela lição clássica.
Em «Edane!» e «Neitha-Kri»58 surgem novamente dois vocábulos de origem e
significação desconhecidas: «Erta» e «Seter». A justificação para o emprego de uma

54
Neologismo – Criação Lexical, São Paulo, Editora Ática, 1990, p. 11. Cf. Louis Guilbert,
«Grammaire Générative et Néologie Lexicale», Langages, 36, Paris, Didier/Larousse, Dezembro de
1974, p. 34.
55
Etienne Souriau: «uma palavra forjada é linguisticamente aquilo que os filólogos chamam
hapax» («Sur l’Esthétique des Mots et des Langages Forgés», art. cit., p. 45).
56
No singular «hapax legomenon», que significa uma só vez, «utilizado como substantivo [...]
para designar uma palavra, uma forma, um emprego de que só se aponta um exemplo» (cf.
J. Marouzeau, Lexique de la Terminologie Linguistique, Paris, Librairie Orientaliste Paul Geuthner,
1943, p. 105). Alexandre do Amaral adverte para o facto de que o significante tem de ser inédito
também, não estando incluídas nos hapax legomena aquelas palavras conhecidas mas usadas com um
sentido novo (Dois Dedos de Conversação sobre Palavras Reiterantes & alguns Hapax Legomena –
Estudo Semântico, sep. Revista Estudos, Coimbra, 1949, p. 16).
57
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 69.
58
Idem, pp. 73 e 80, respectivamente.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 74

ou de outra palavra só poderá advir da sugestão sonora que permeia os poemas,


questão que será repensada, mais à frente, quando for abordado o simbolismo
fonético. Estes significantes originais não estão previstos na língua portuguesa; por
conseguinte, dificilmente serão descodificados. No entanto, não se pode afirmar que
estas «lacunas acidentais» constituem uma transgressão das regras da linguagem, na
medida em que não apresentam irregularidades sob o ponto de vista fonológico, mas
semântico. Por outro lado, não é pelo simples facto de serem conformes à língua que
poderão integrar o sistema, até porque são inexistentes, logo, impróprias para
comunicar. Segundo Ivan Fónagy, as novas formas são compreendidas no contexto
onde aparecem, «dado que a distorção releva, também ela, de um código, de uma
‘gramática’ paralinguística»59.
Repare-se que, tanto em «Edane!» como em quase todos os poemas de Ângelo
de Lima, as maiúsculas são exageradamente utilizadas por adquirirem para ele, «no
momento em que lhe saltavam do bico da pena, um sentido, uma significação
superior, mais intensa e mais alta, no seu máximo valor expressional», como teve
oportunidade de explicar a Afonso de Castro60. Uma vez que as maiúsculas surgem
em todas as classes morfológicas (verbos, adjectivos, advérbios, conjunções,
determinantes, pronomes e preposições), embora cubram maioritariamente os
substantivos, não se consegue perceber qualquer rigor metodológico na sua utilização.
Esta incoerência cria mais um impasse no alcance do sentido de algumas palavras,
pois desta forma não é possível sequer agrupá-las por categorias verbais. Para tal,
dever-se-á sempre recorrer à posição da palavra na estrutura sintagmática e verificar
as relações que estabelece com as outras palavras que a rodeiam.
Os neologismos sintácticos, ao contrário dos fonológicos, são combinações de
elementos lexicais existentes no sistema. Estas inovações retóricas podem ser
formadas por elementos oriundos da própria língua ou por empréstimo de elementos
lexicais provenientes de outros sistemas linguísticos, como é o caso do latim. Os

59
«Motivation et Remotivation», art. cit., p. 430.
60
«Ângelo de Lima», O Diabo, Lisboa, 16 de Maio de 1937, p. 5.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 75

processos de formação vocabular encontram a sua origem no «paradigma


derivacional»61, seja ele nominal ou adjectival. Vejam-se os seguintes exemplos:

- «Exaustinados» («Olhos de Lobas!»), do latim ‘exhaustione’, significando


esgotados ou extenuados;
- «Lete» («Morreu o Rei D. Carlos!... – A Cidade») adjectivo formado a
partir de ‘letum, i’ (morte), ou ‘letalis, e’, (mortal);
- «Pristinas» (idem), adjectivo originário de ‘pristinus, a, um’, significando
antigas ou de outros tempos;
- «Longido» («Ocaso») e «Longeva» («Fado») - ‘longi’ é um elemento
latino de formação de palavras;
- «Fatos» («Qual?...»), do latim ‘fatum, i’ que significa predição, destino,
fado; e «Fatas» («Neitha-Kri»), variação no feminino do plural para
concordar com «Horas», significando fatais;
- «Purfictrio» («Edane»), do latim ‘purificatio, onis’, significando purificada
ou purificadora.

Alguns dos neologismos lexicais criados por Ângelo de Lima passam por
processos normais de derivação à procura de uma forma fonética e ortográfica em
harmonia com a língua onde o poeta pretende integrá-las. Nos seus poemas,
verificam-se certos vocábulos que originam uma certa indeterminação do sentido: os
afixos utilizados pelo poeta, embora reconhecidos na nossa língua, aparecem
combinados com palavras, também elas com valor autónomo, resultando desse
processo um significante novo com um significado imprevisível, isto é, uma totalidade
sígnica não prevista no sistema. Destacam-se alguns exemplos de termos formados:

- por derivação prefixal:

- «desdeixados» («Olhos de Lobas!»);


- «Infados» («Canção Portuguesa»);
- «Improfundado» («Oh Céu») e «Improfundo» («Fado»);

61
Louis Guilbert, «Grammaire Générative et Néologie Lexicale», art. cit., p. 38.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 76

- por derivação sufixal:

- «murchadas» («Inês de Castro»), adjectivo formado a partir do particípio


passado do verbo murchar;
- «Olorescente» («Cântico Semi-Rami»), adjectivo do latim ‘olor’ (aroma;
odor) + escente formado a partir do sufixo –escer, característico dos verbos
incoactivos, que indicam o começo de um estado, não fazendo ‘oleo’
(cheirar) parte desse grupo verbal;
- «Argentida» («Alva») – argentar (que significa pratear) + ida (sufixo do
particípio passado dos verbos regulares).

Estas deformações, que acabam por ser palavras plausíveis, isto é, conformes
com a estilística geral da língua que lhes serve de veículo, criam efeitos estéticos
variados. O neologismo sintáctico estabelece relações ao nível do sintagma: o termo
«Improfundável» («Deus») exemplifica a combinação de três elementos «solidários»,
dado que tanto o prefixo como o sufixo, tomados isoladamente, são inexistentes e só a
série de termos com afixos comuns (por exemplo ingerir, importar e louvável,
durável) é que lhes confere um lugar na língua. Segundo Saussure, as relações
sintagmáticas, derivadas do encadeamento de palavras no discurso, dão-se in
praesentia: «o valor de um termo surge da oposição entre ele e o que o precede, ou
que se lhe segue, ou ambos»62. Mas, de acordo com o linguista suíço, o sentido de
uma palavra é determinado, simultaneamente, pela influência das palavras que a
rodeiam e pela evocação das que teriam podido tomar o seu lugar. Sendo a língua uma
combinatória de «redes de significação», além das «relações sintagmáticas», Saussure
destaca também as «relações associativas», que unem termos in absentia através do
processo de selecção e, correlativamente, de substituição, como se se tratasse de uma
mnemónica virtual63.
Afigura-se também importante mencionar os neologismos semânticos, embora
não tenham, no autor em estudo, a relevância dos outros tipos de neologia. Ademais,
62
Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, ob. cit., p. 208.
63
«Na língua, tudo se reduz a diferenças, mas tudo se reduz também a associações» (Ferdinand
de Saussure, idem, p. 215). Sobre estas «redes de significação», ver Marcel Cressot, O Estilo e as suas
Técnicas, Lisboa, Edições 70, 1980, p. 62.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 77

são frequentemente utilizados por todos os escritores, não marcando a diferença na


poesia de Ângelo de Lima. De qualquer modo, os «neologismos de sentido» ocorrem
sem que nenhuma alteração se verifique ao nível do significante64, valendo apenas
quando inseridos numa frase e/ou num sintagma. Ao contrário dos neologismos
lexicais, que são reconhecidos pela própria forma, os de sentido só no discurso
adquirem significação. No plano das conotações, através dos processos retóricos da
metáfora, da metonímia ou da sinédoque, o próprio significado, juntamente com o
significante seu correlato, metamorfoseia-se em significante de um outro
significado65.
Assim, no soneto «1500»66, numa narração da chegada de Pedro Álvares
Cabral ao Brasil, o sujeito poético descreve a «Candidez de Núpcia – de Donzelas»,
que «Erguem a Flora – ao Sol Meridiano...». Estes dois exemplos da metonímia e da
metáfora, respectivamente, constituem os chamados «neologismos semânticos», que
ocorrem sempre que «qualquer transformação semântica manifestada num item lexical
ocasiona a criação de um novo elemento»67. No caso da metonímia, «Candidez de
Núpcia» adquire o valor semântico de virgem, através da relação de contiguidade com
a palavra que imediatamente sugere. Já no caso da metáfora, o significado básico de
«flora» não é mantido, verificando-se, pois, uma mudança no conjunto dos semas
referentes a esse termo68. No entanto, na intersecção dos dois termos, o de origem (um
conjunto de plantas indígenas de uma região) e o novo (corpo nu), aparece uma
classe limite que está ausente do discurso, mas que é fundamental para a significação

64
Louis Guilbert, La Créativité Lexicale, ob. cit., p. 59, e «Grammaire Générative et Néologie
Lexicale», art. cit., pp. 34-35 e 43. Cf. Jacqueline Bastuji, «Aspects de la Néologie Sémantique»,
Langages, 36, Paris, Didier/Larousse, Dezembro de 1974, pp. 6-7.
65
Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita, Lisboa, Edições 70, 1973, pp. 166-167. À mesma
conclusão chega Umberto Eco: «No processo de semiose ilimitada cada significado pode tornar-se o
significante de um outro significado, mesmo do seu próprio significante anterior, e acontece até que um
objecto (um referente) seja semiotizado e se torne signo» («Geração de Mensagens Estéticas numa
Língua Edénica», in Obra Aberta, Lisboa, Difel, 1962, p. 309).
66
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 51.
67
Ieda Maria Alves, Neologismo – Criação Lexical, ob. cit., p. 62.
68
Jacques Lacan sintetiza esta relação: «Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora»
(Escritos, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1978, p. 238) ou, dito de outro modo, é na substituição do
significante pelo significante que se produz um efeito de significação. Por conseguinte, através do
processo conotador, a metáfora apresenta-se como um signo «plurívoco» (Umberto Eco, O Signo,
Lisboa, Editorial Presença, 1997, p. 46).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 78

da imagem pretendida, daí o Grupo μ dizer que «a metáfora é o produto de duas


sinédoques»69.
O texto poético traduz um artifício infinito e permanente «no interior de um
espaço estruturado por um emprego particular da linguagem»70, definindo o traço
distintivo do estilo de cada poeta, que acaba também ele por veicular a efectivação de
uma mensagem. A motivação da linguagem passa inevitavelmente pela criação
vocabular, mormente quando o poeta «não está satisfeito com os recursos expressivos
do seu próprio idioma»71. Surgem então os termos figurados, que compreendem não
só a motivação forjada pelas relações entre palavras, quer por analogia (metáfora)
quer por contiguidade (metonímia), mas também pelo aparecimento de significantes
novos que, consequentemente, veiculam novos significados. As «anomalias
semânticas», segundo expressão de Todorov, são recorrentes na poética da
Modernidade, pois «as palavras ganham um sentido que não pode ser revelado de
outra forma»72.
O mot-valise constitui um outro processo de neologia. O termo corresponde a
portmanteau-word, teorizado por Lewis Carroll, que o define em Through the Looking
Glass como um significante novo onde estão reunidos dois significantes, portadores
de dois significados distintos73. Neste tipo de redução vocabular, as duas bases são
privadas de parte dos seus elementos para constituírem uma nova unidade lexical. No

69
Grupo μ, Rhétorique Générale, Paris, Seuil, 1982, p. 106. Nas palavras de Barthes «qualquer
série metafórica é um paradigma sintagmatizado e qualquer metonímia um sintagma congelado e
absorvido num sistema; na metáfora, a selecção torna-se contiguidade e, na metonímia, a contiguidade
torna-se campo de selecção», concluindo que «é na fronteira dos dois planos que se joga a criação» (O
Grau Zero da Escrita, ob. cit., p. 164). Barthes vai, deste modo, ao encontro da posição jakobsoniana,
que se recorda: «A sobreposição da semelhança sobre a contiguidade confere à poesia a sua essência
[...] simbólica, complexa, polissémica [...] Em poesia, onde a semelhança é projectada sobre a
contiguidade, toda a metonímia é ligeiramente metafórica, toda a metáfora tem uma matiz metonímica»
(Roman Jakobson, Essais de Linguistique Générale/I, ob. cit., p. 238).
70
Daniel Delas e Jacques Filliolet, «La Fonction Poétique», in Linguistique et Poétique, Paris,
Larousse, 1973, pp. 47-48.
71
Gérard Genette, Figures II, ob. cit., p. 148.
72
Tzvetan Todorov, «Les Anomalies Sémantiques», Langages, 1, Paris, Didier/Larousse,
Março de 1966, p. 106.
73
Simplificando, Humpty Dumpty explica: «‘slithy’ significa ‘lithe e slimsy’ [...] como um
portmanteau – dois significados reunidos numa só palavra» (ob. cit., p. 187). Em The Hunting of the
Snark (1872), Carroll reutiliza o «portmanteau» em «snark», pela intersecção de «snake» e «shark» (cf.
Gilles Deleuze, Lógica do Sentido, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1998, p. 48).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 79

poema «Deus»74, verifica-se o recurso a este processo neológico no vocábulo


«Imesto», que se entende resultante da força anafórica ou do poder do verso «Teu
Gesto Imenso Gerou a Vida...», no elogio que o sujeito poético faz a Deus. Da fusão
de duas entidades autónomas e reconhecidas na língua (gesto e imenso), neste caso
através de uma relação de intersecção invertida, uma vez que o poeta não recorreu à
ordem com que estas palavras ocorrem no verso, resulta um vocábulo original, que
corresponde à criação de uma só unidade significante, e, consequentemente, de um
significado e de um referente. No exemplo referido, repare-se que o vocábulo criado
sugere um adjectivo e não um substantivo, ao contrário do que normalmente deriva
dos mots-valise:

– Eras nos Tempos


Antes da Idade!...
Teu Gesto Imenso Gerou a Vida...
E, após teu Gesto...
– Supremo, Imesto...
Depós..., – é a Noute da Imensidade!...

Ao contrário do que acontece com a metáfora, os significantes iniciais, antes


do processo de junção, não partilham qualquer relação analógica ao nível do conteúdo,
exigindo-a, no entanto, no plano dos significantes75. Como destaca Gilles Deleuze, a
propósito de Carroll, este processo neológico expressa-se através de outros tipos de
formação vocabular, mas nem todos formam necessariamente os mots-valise76. Neste
processo, conclui Deleuze, «É a função ramificante ou a síntese disjuntiva que dá a
definição real da palavra-valise»77.

74
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 65.
75
Catherine Kerbrat-Orecchioni, «L’Image dans l’Image», Revue d’Esthétique, 1-2, Paris,
Union Générale d’Éditions, 1979, p. 207. Cf. ainda Grupo μ, Rhétorique Générale, ob. cit., p. 56, e
Pierre Guiraud, Les Jeux de Mots, Paris, Presses Universitaires de France, 1979, p. 66.
76
Lógica do Sentido, ob. cit., p. 47. Também em Ângelo de Lima se encontram expressões em
que se verifica uma contracção dos elementos silábicos de uma proposição ou de várias que se seguem,
o alongamento silábico, ou a simples desvocalização, não pertencendo, portanto, no entender de
Deleuze, ao grupo dos mots-valise: «quando a palavra esotérica não tem somente por função conotar ou
coordenar duas séries heterogêneas, mas além disso introduzir nelas disjunções, então a palavra-valise é
necessária ou necessariamente fundada» (pp. 49-50). Obviamente, a melhor tradução literal de «mot-
-valise» seria «palavra-mala» ou «palavra-saco», embora seja preferível manter a francesa.
77
Gilles Deleuze, ob. cit., p. 50. Cf. p. 243.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 80

A poesia anfigúrica de Ângelo de Lima conta ainda com um outro tipo de


transmutação retórica: o metaplasmo. De proveniência greco-latina, este vocábulo
designa as diferentes alterações da estrutura de uma palavra, provocadas pela adição,
supressão ou mudança de sons, analisáveis em termos sincrónicos ou diacrónicos. Esta
figura da expressão implica uma mudança parcial na forma ao nível morfológico, com
repercussões maiores ao nível da totalidade linear do significante, fazendo aparecer
uma variante que não é normal, mas admissível no sistema. Na linguagem literária, a
variante e a forma normal constituem «formas sincréticas», dado que «o metaplasmo
estabelece uma variante em face de uma forma básica»78. Estas transformações
fonéticas encontram-se presentes nos poemas de Ângelo de Lima, sob as diversas
categorias possíveis e previstas pelo sistema. A «supressão» de, pelo menos, um
fonema da totalidade, é possível através de:

- aférese, quando a queda do fonema se dá no início da palavra como em


«Mergir» («Edane!»), no verso «Quando For do Mergir na Sepultura», em
vez de emergir ou imergir; ou «Dormece» («Viver»), por adormece;
- síncope, no interior da palavra como em «oscura» («Dizem os sábios que já
nada ignoram», «Súplica» e «Fado»), por obscura; ou em «Hierata»
(«Edane!») por hierática, referente às coisas sagradas;
- apócope, no final, como em «Adulterin» («Cântico Semi-Rami») em vez
de adulterina, significando adúltera; ou em «Glor» («Thora...») por glória.

Com, pelo menos, um fonema a mais na variante, a «adjunção» é feita através de:

- prótese, se o fonema surge no início do vocábulo, como o /α/ em


«avergado» («Aos Mortos de Coolela»);
- epêntese, quando o fonema aparece no meio do vocábulo, como em
«Azual» («Edd’ora Addio...»), ampliando o conceito de azul e
contrastando com «azu» («Quantos... desde Chu-Si a Kuan-Su»), que
manifesta a redução na apreensão da cor;

78
J. Mattoso Camara Jr., Dicionário de Lingüística e Gramática, Petrópolis, Editora Vozes,
1999, p. 167.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 81

- paragoge no exemplo «serapida» («Ocaso») em vez de Serapis, relativa ao


acrescento feito no final da palavra.

Além da redução ou do aumento provocado pela supressão ou adição de sons,


o metaplasmo conta ainda com uma terceira categoria que inclui «a substituição de,
pelo menos, um elemento, que até agora pertenceu à totalidade, por um elemento, até
agora, estranho à totalidade»79. São exemplos da immutatio:

- «Exubero» («Thora...»), em vez de exúbere;


- «Cramem-me» («Vita!...»), em vez de chamem-me («– Chamem-me a Só... //
e a Sempre Abençoada.»);
- «Tacida» («Qual?...»), por tecida («– Ó Noute Grande pelos Céus
Tecida»).

Dado que desencadeiam múltiplas possibilidades associativas, estes termos


disformes, além de fazerem suspeitar tendências simbólicas, «testemunham-nos o
modo como pode o significado resvalar para um significante, sem que nele todavia se
esgote»80, contribuindo, deste modo, para a «anamorfose textual»81.
A formação de um discurso cheio de neologismos, através da formação e
emprego de palavras novas e inexistentes, ou de palavras existentes mas com uma
acepção nova, ou de expressões neológicas bizarras compostas por transformações e
flexões incorrectas, estabelecendo relações falsas, tendencialmente utilizando formas
sintácticas inusitadas, conflui numa pseudo-língua, a chamada glossolália, que se fixa
e enriquece progressivamente. As inovações, sobretudo as sintácticas e as semânticas,
ainda que totalmente inéditas, não resultam aberrantes, não se percebem como erros e
não chocam o sentido linguístico de quem as recebe, porque de alguma forma elas
estão previstas no sistema como oposições legítimas, embora não se realizem na
norma, daí Eugenio Coseriu referir que «o sistema é um conjunto de vias cerradas e
79
Heinrich Lausberg, Elementos de Retórica Literária, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1993, p. 102.
80
Fernando Guimarães, «Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., p. 21.
81
Expressão de Mireille Calle-Gruber, «Anamorphoses Textuelles», Poétique, 42, Paris, Seuil,
Abril de 1980. «Anamorfose» e não «metamorfose», na medida em que se trata de uma «deformação
trabalhada para reactivar a forma, o corpo textual» (cf. p. 252).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 82

vias abertas, de coordenadas prolongáveis e não prolongáveis»82. Além disso, a norma


só realiza o sistema parcialmente, pois admite certas oposições para determinadas
palavras e não para outras. O trabalho poético consiste cada vez mais em descobrir
novas associações significativas possíveis no sistema, mas inéditas na norma. No
entanto, como destaca Louis Guilbert, «o texto literário é também um acto linguístico
e a criação linguística não pode ser um acto de expressão puramente pessoal, porque a
língua é ao mesmo tempo objecto e veículo dessa mesma criação»83. Por conseguinte,
as fantasias verbais estão de certa forma limitadas pelo código da língua e pelas
relações que o escritor pretende desenvolver com o leitor.
A neologia é, pois, ao mesmo tempo «uso do código e subversão do código,
reconhecimento da norma e transgressão da norma, enfim, ‘criatividade governada
pelas regras’ e ‘criatividade que muda as regras’»84. Destaca-se, deste modo, a
distinção chomskiana entre competência e performance, entre o conhecimento que o
sujeito tem do sistema das regras da língua e a utilização que faz do mesmo numa
situação concreta, em termos latos, entre o domínio linguístico e o domínio
psicológico85. A gramaticalidade torna-se, deste modo, independente da
aceitabilidade, o que poderá instaurar um desvio entre as regras sintácticas e a
significação das frases, levando Tzvetan Todorov a afirmar que o critério para
descobrir uma «anomalia» não é o sistema das regras da gramática, mas a intuição dos
sujeitos falantes86.
As irregularidades linguísticas de Ângelo de Lima são também visíveis ao
nível da estrutura de superfície, segundo a terminologia de Chomsky, e devem-se a

82
Eugenio Coseriu, Teoría del Lenguaje y Lingüística General, Madrid, Editorial Gredos,
1973, p. 78.
83
La Créativité Lexicale, ob. cit., p. 42.
84
Jacqueline Bastuji, «Aspects de la Néologie Sémantique», art. cit., p. 18.
85
Noam Chomsky, Aspects of the Theory of Syntax, Massachusetts, The M.I.T. Press, 1976,
pp. 8-10 e 24-25.
86
«Les Anomalies Sémantiques», art. cit., p. 101. Convém, pois, assinalar o facto de que dois
enunciados podem ser semelhantes na organização da estrutura de superfície e muito diferentes quanto
à sua estrutura profunda, ou seja, são as regras gramaticais que existem na estrutura profunda que
permitem a interpretação semântica da frase. Do mesmo modo, duas frases podem ter a mesma
interpretação semântica, apresentando uma estrutura superficial diferente, pois a interpretação de uma
frase equivale a procurar-lhe a significação ao nível da estrutura profunda (cf. Noam Chomsky, Aspects
of the Theory of Syntax, ob. cit., p. 16).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 83

operações transformacionais efectuadas a partir das sequências de base, através de


substituições, supressões, adições ou permutações sintagmáticas. Fernando Guimarães
aponta o terceiro desvio da poesia de Ângelo de Lima ao nível do plano sintáctico87.
Num discurso aparentemente cheio de suspensões e elipses, as irregularidades
sintácticas acabam por alterar a significação das frases, uma vez que o componente
sintáctico e o componente semântico são dependentes um do outro. São vários os
exemplos a que se poderia recorrer para comprovar o desconcerto sintáctico, promotor
de inúmeras modificações na ordem frásica. Seleccionaram-se aqueles que parecem
ser os mais representativos daquilo que se pretende agora destacar, salvaguardando-se,
no entanto, que estes modos de distorção sintáctica não se impõem na poesia de
Ângelo de Lima com a força da metamorfose do significante.
No «Cântico Semi-Rami», pode ler-se na décima estrofe:

E se Há de Amor, algum Amor Eleito


Aquela também Fui, que Ninguém Fosse,
Que, n’um Mistério, como o Inferno, Doce,
Amei a Minha Filha, no seu Leito... 88

Além do recurso à sínquise, que Lausberg define como o «caos da sequência


vocabular na frase»89, esta estrofe anuncia algumas irregularidades gramaticais que
acabam por interromper a correcta estruturação sintáctica das restantes estrofes,
nomeadamente na falta de coerência entre os modos verbais – «Aquela também Fui,
que Ninguém Fosse», onde deveria estar «que Ninguém Foi» – e de concordância
sujeito/verbo – «Aquela [...] // Que [...] // Amei a Minha Filha [...]», onde deveria ler-
-se «Amou a Sua Filha [...]». Além disso, verifica-se a antítese no terceiro verso,
«Que, n’um Mistério, como o Inferno, Doce», dado que «doce» surge como aposto de
«mistério» e, consequentemente, de «Inferno», confrontando deste modo ideias

87
«Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., p. 17. O soneto «1500» não me parece
ser, no entanto, o melhor exemplo para ilustrar as ditas irregularidades. Quando muito, este poema
poderá justificar o uso do hipérbato, dado que apresenta algumas inversões sintácticas, isto é, alterações
na ordem das palavras. Ainda assim, não existe qualquer enfraquecimento da estrutura frásica.
88
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 76.
89
Elementos de Retórica Literária, ob. cit., p. 206.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 84

opostas. No entanto, «doce» surgirá da necessidade rimática com «fosse», que, por sua
vez, também aparece num tempo e modo irregulares.
A construção das outras estrofes do «Cântico Semi-Rami» está submetida ora
ao poder rítmico das apóstrofes «– Oh! Noute», «– Oh! Estrelas», «Oh! Memória»,
ora à subordinação de frases: «Já fui... uma Criança Pubescente // Que des’abrocha em
Amor Inconsciente» ou «Como n’um Vago Sonho... Comovente // Desabrocha uma
Rosa Oloresente», ou ainda pelas anáforas no início das estrofes «E já fui», «Já Fui» e
«E a que», não apresentando grandes irregularidades sintácticas, com a excepção de
um ou de outro caso relativamente à ordem das palavras na frase.
Em «Súplica»90, o primeiro verso, «Para alguém, foi, do teu olhar a flama»,
compreende uma desordem na sequência frásica rematada pelo emprego das vírgulas
antes e após «foi», emprego esse que o faz corresponder ao pretérito perfeito do verbo ir
e não, como à primeira vista poderá parecer, do verbo ser. Assim, pode ler-se «Para
alguém foi a flama do teu olhar», que será o mesmo que dizer «Para alguém saiu a flama
do teu olhar». As trocas dos elementos na frase são sintomáticas da procura, por parte do
poeta, de um maior apuro formal, relegando a frase para segundo plano em prol de uma
rima perfeita, neste caso, segundo o esquema cruzado AB // AB // C // BC // DC // D.
A transmutação ou metátese, segundo Lausberg, consiste na «mudança de
lugar [dentro da totalidade] de, pelo menos, um elemento»91. Este processo, além de
poder ocorrer no interior de um vocábulo, também pode manifestar-se entre os
elementos de uma frase, compreendendo, neste caso, ainda segundo o autor, o
hipérbato e a anástrofe92. A segunda figura é talvez mais recorrente na poesia de
Ângelo de Lima, embora o hipérbato tenha um impacto maior na medida em que
provoca uma ruptura nas relações de contiguidade entre os elementos frásicos: «– Eu,
Sobre a terra, Sou a Vencedora!...» e, mais violento ainda, «Em que esquecem – a par
da Dor do Mal – // Os Estrangeiros, o seu Lar Deixado» («Neitha-Kri»). São exemplos

90
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 37.
91
Elementos de Retórica Literária, ob. cit., p. 102.
92
Pelo primeiro entende «a separação de duas palavras que sintacticamente estão em íntima
ligação, por meio da interposição de um membro da frase [...], que não pertencia directamente àquele
lugar»; o segundo consiste na «mudança de posição de membros da frase que se sucedem» (idem, pp.
205 e 204, respectivamente).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 85

da anástrofe: «– Cai a Tarde serena harmoniosa» («Ocaso»), «Balsame – a Campa – o


Rocio» («Edd’ora Addio...») e «Quem sabe – o Sol que nos Rege // Anjo de Luz onde
Vai?...» («Fado»), entre outros, situações em que surge apenas uma troca de
elementos próximos na oração. A ordem directa seria então, respectivamente, «A
Tarde cai serena harmoniosa», «Quem sabe onde Vai o Sol que nos Rege, Anjo da
Luz» e «O Rocio balsame a Campa», leia-se «o orvalho perfuma-me a campa».
As três figuras referidas, o hipérbato, a anástrofe e a sínquese, fazem parte
daquele rol que o Grupo μ designa por «metataxes por permutação», figuras essas que,
na poesia de Ângelo de Lima, concorrem a par das «metataxes por supressão»93. A
elipse, enquanto supressão de signos necessários a uma construção sintáctica
completa, traduz o melhor exemplo deste tipo de «metataxes». Em «Epitáfio»94,
surgem versos que mostram que «a informação é conservada mesmo com a forma
incompleta», pois esses elementos omitidos «subsistem [...] no contexto»95. Veja-se a
primeira estrofe:

Aqui Dorme e Descansa um Coração!


Palpito outrora...
– Qual Dorme Agora...
– Vivo na História...
– Vibrou d'Amor e Comovente Glória
Mas – Algum Dia...
– Veio afinal!...

Para melhor se entender esta questão, destaca-se em primeiro lugar a aparente


inexactidão sintáctica relativa ao tempo verbal de palpitar: «Aqui Dorme e Descansa
um Coração» // [que palpitou] «outrora» seria a forma correcta. Acontece que tanto o
sujeito, neste caso através do pronome relativo, como a desinência flexional foram
omitidos, criando irregularidades sintácticas. Com a omissão da marca de pessoa,
aparece uma forma verbal que se confunde com o presente do indicativo. No entanto,
essa forma não é definitiva, uma vez que na fusão da última sílaba do verbo com a
primeira do advérbio de tempo, através da sinalefa, se recupera o tempo e a pessoa

93
Rhétorique Générale, ob. cit., pp. 82-86 e 72-76, respectivamente.
94
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 70.
95
Grupo μ , Rhétorique Générale, ob. cit., p. 73.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 86

correctos. De qualquer modo, nessa confusão poder-se-á ler a intenção de entrecruzar


aquele «Coração», referido sempre na 3ª pessoa, com o próprio coração do sujeito
poético. Da mesma forma deve ser entendida a forma «Vivo», que, pela omissão da
forma verbal «está», proporciona a confusão das categorias morfológicas. «Vivo» não
remete para a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo viver,
mas para o adjectivo: «– Qual Dorme Agora... // [está] Vivo na História...». Essas
elipses chegam a ser previsíveis se trabalhadas na lógica do texto, que acaba por
evidenciar, à sua maneira, uma produtividade significante.
Veja-se agora a segunda estrofe:

– Fatal!...
– Aquela Fata Místera e Sombria...
– Que os Homens chamam Morte e Despiedade...
– E é Invencível... Místera e Sagrada!...
– Talvez Piedosa...
– ou Al Descoroada...!
– E o Palpitar do Coração Parou!
– E assim – Pois... ora
– Palpito outrora...
– Qual Dorme agora!
– Transe Emmorte de Efémera Ilusão...
– Aqui Dorme e Descansa um Coração!

Verifica-se neste excerto um outro exemplo da apócope sintáctica: o zeugma,


que se pode definir como «o emprego único (porque se omite um elemento) de um
membro da frase, o qual é comum a vários membros dessa mesma frase, coordenados
sintacticamente entre si, mas diferentes quanto ao corpo de palavra»96. Assim, o verso
«Talvez Piedosa...» só se compreende se for remetido para o verso anterior, sob a
alçada do verbo ser, na continuação de «[...] é Invencível». Outros exemplos desta
construção elíptica verificam-se no poema «Alva», em «Ergue Hermes em Sidon!... //
– [Ergue] Thor em Rami!...», ou no «Cântico Semi-Rami», em «E já Fui... a Noivada
pelo Amante, // [já Fui] A Cingida de Abraço Palpitante»97, casos em que os
elementos omitidos são exactamente os mesmos utilizados nas orações anteriores.

96
Elementos de Retórica Literária, ob. cit., p. 198.
97
«Alva», p. 74, e «Cântico Semi-Rami», p. 75, in Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 87

Em muitos dos versos de Ângelo de Lima, a estrutura da «frase mínima» não é


respeitada, havendo mesmo exemplos de frases nominais, organizadas sem verbo, que
povoam o texto de uma forma quase completa, como em «Thora»:

– Thora!...
Da Glória do Triunfo Êxul
Do Deus Mithra... no Céu...
– Por Sobre o Mar
– Melkar? De tiro, de Sidon Sem Par!...
– Mais Glor, que é Glor o Gesto do Deus Phul!...

– Thora da Luz do Céu...


– De norte a Sul
– Thora da Vida...
– Ó Thora do Estiar!...
Glória a Ti Thora...
– Como ao Deus Saul!...

– Liber! Apolin!... Mithra!... Hermes!... Deus!


– Glória a Ti Dyos de Invencível Gesto
– Sol... – Ó Rei dos Espaços pelos Céus!...
– Glória a Thora do Sol de Luz Infesto!...

O verbo é dispensado em função do novo efeito criado pela sucessão rápida


dos vocábulos, apresentando a «elipse verbal», no entender de Rodrigues Lapa, «um
modo primitivo de registar as impressões das coisas». As reticências, associadas à
omissão do verbo, reflectem, ainda segundo o autor, «a expressão dúbia ou incompleta
do pensamento», acabando a «entoação exclamativa» por lhe dar «o valor de um
grupo fraseológico»98.
Atente-se agora no verso «Luz... Canção... e Perfume!... Amor... Poesia!»,
pertencente a «Rhada»99. Esta sequência é marcada pela distribuição de cinco
substantivos comuns abstractos, intercalados pelas reticências, marcas da pausa
rítmica, e pela ocorrência da conjunção coordenativa copulativa «e» no interior do
verso. Esta conjunção deveria ocorrer entre os dois últimos substantivos, dado que o
verso parece apresentar uma enumeração. Mas, se se analisar os três primeiros
vocábulos, eles apelam aos sentidos visão, audição e olfacto, respectivamente. Por

98
Estilística da Língua Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pp. 193-194.
99
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 62.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 88

conseguinte, a conjunção antes do último substantivo, bem como o ponto de


exclamação a seguir ao mesmo, marcam a separação dos substantivos que
correspondem às sinestesias. Todo o poema parece regulado pelo automatismo de
palavras que se sucedem com ou sem ligação sintáctica, como se de uma enumeração
se tratasse. Através dos verbos (nasce, anima, desenvolve, abre, emurchece), dos
adjectivos (radiosa, deliciosa, transitória) e dos substantivos (paixão, fantasia, luz,
canção, perfume, amor, poesia, glória, embriaguez, folia, prazer, dor, ódio), o sujeito
poético caracteriza os lados opostos da vida. Uma outra versão deste texto surge em
«Viver»100, poema que vive da força dos verbos no infinitivo (viver, palpitar, ser,
amar, vencer, conquistar) e da pontuação, que, a par das reticências, faz aparecer o
ponto de exclamação de uma forma mais frequente do que em «Rhada». Comparem-
-se os dois poemas:

100
Idem, pp. 88-89. Note-se que estes textos, «Rhada» e «Viver», apresentam vários anos de
intervalo nas datas de composição e de publicação: o primeiro, datado de 1910, foi publicado em 1958;
o segundo data de 1917 e foi publicado antes de «Rhada», em 1939, na revista Presença.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 89

Rhada Viver

– Oh Vida!... – Viver!...
– Bohodhi!... – Viver... – e Palpitar!...
Por Ti!... – Ser!... – Amar!...
Nasce... – Vencer!...
e anima – e Conquistar!...
e desenvolve a Vida!
– Viver!
E– – Oh Fantasia!...
Radiosa!... – Luz!... – Perfume!... – Canção!...
Deliciosa!... – d’Amor!...
Abre a Flor da Paixão como uma Rosa!... – Poesia!...
– Rosa da Vida
– Rosa Eperdida!... – Paixão e Glória!
– Oh Viver!... – Embriaguez... – Folia!...
– Fantasia!... – Viver!... – Um dia!...
– Luz... Canção... e Perfume!... Amor... Poesia! – Viver... –
Paixão e Glória! – Vencer...
– Embriaguez!... – Folia!... – Amar...

Rosa da Vida!... Rosa da Alegria – Rosa da Vida... – Rosa da Alegria!...


Que é Como a Rosa que Emurchece um Dia... – Flor da Vida e Paixão – Epurpur Rosa!...
Dia do Esmaecer de Toda a Glória – Deliciosa!...
Prazer ou Dor! – Ódio ou Amor!... – Que É Como a Rosa...
– Do Palpitar da Vida Transitória –. – Que Fenece um Dia!...
– Um Dia em Que Dormece Toda a Glória...
– Prazer ou Dor!...
– Ódio ou Amor!...
– Do Palpitar, da Vida Transitória!...
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 90

Não será difícil perceber que se trata do mesmo poema com alterações feitas a
posteriori, nomeadamente:

- no título: «Rhada» e «Viver», estando o primeiro ligado a Krishna, embora


ambos desencadeiem um louvor à Vida;
- nos termos desconhecidos: «Bohodhi» desaparece em «Viver»;
- nas colagens, que pressupõem a junção de significantes autónomos na
cadeia sintagmática, criando a ilusão de uma totalidade consistente:
«Eperdida» (na junção de «é» com «perdida») não aparece em «Viver»,
embora surja neste poema «Epurpur» («é» com «púrpura»), ausente em
«Rhada»;
- na pontuação: mais forte em «Viver», transmitindo um ritmo mais marcado
e mais intenso do que em «Rhada», pelo uso frequente do travessão, que,
em «Rhada», surge de uma forma mais moderada, veiculando um certo
sentido, a saber, introduzindo as apóstrofes, servindo de parênteses nos
apostos e marcando as oposições; em «Viver», o travessão introduz cada
verso e marca a própria enumeração dos verbos no infinitivo e dos
substantivos, atribuindo uma pausa maior entre as palavras e revestindo o
texto de um ritmo muito mais entrecortado do que em «Rhada»;
- ao nível sintáctico: em «Rhada», as únicas frases (com verbo finito e
actantes por ele seleccionados) estão separadas por aquilo que se pode
entender como apostos, sintetizando todo o poema:

«Por ti!... // Nasce... e anima e desenvolve a Vida! // E [...] Abre a Flor da Paixão
como uma Rosa!... [...] Que é Como a Rosa que Emurchece um Dia...».

Já nos últimos versos de «Viver», a primeira frase surge quebrada, aliás como
todo o poema:

«– Rosa da Vida... – Rosa da Alegria!... // – Que É Como a Rosa... // – que Fenece


um Dia!... // Um Dia em Que Dormece Toda a Glória...».

Estas alterações permitem concluir que houve uma intenção de modificar o


poema ao nível formal e, consequentemente, em elevar o tom da exaltação, fazendo
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 91

entrever em «Viver» uma atitude bem mais positiva perante a Vida, tendo, no entanto,
consciência da sua finitude. A própria estruturação sintáctica é feita, num e noutro
poema, para dar conta do carácter fugidio e transitório da Vida. As suspensões
frásicas, marcadas pelas reticências, com ou sem exclamação, quebram o texto e,
aliadas ao uso mais frequente do travessão em «Viver», imprimem ao poema um ritmo
finito de avanços e consequentes interrupções. Além disso, as frases assindéticas
asseguram a individualidade e a independência das palavras separadas por pausas
rítmicas que substituem as vírgulas, marcando desta forma a sequência vertiginosa de
vocábulos que se evocam. Nos dois poemas, a linguagem espontânea é resultante da
explosão súbita da emoção, na medida em que «o pensamento se faz em dois tempos,
não tendo a precipitação, nascida da afectividade, chegado a deixá-lo organizar-se e a
encontrar a sua unidade». Neste tipo de frases, as diremáticas, «a explosão é seguida
de um segundo termo, que completa a ideia»101 e, se não há lugar para a ligação
sintáctica, há, pelo menos, para a ligação semântica.
Todas as figuras de sintaxe apresentadas dão conta do efeito assimétrico que o
poeta desenha no seu discurso, ficando, no entanto, muito aquém dos efeitos
conseguidos através da metamorfose lexical. A língua criada por James Joyce, em
Finnegans Wake, por exemplo, conserva o inglês no material fónico e na estrutura das
frases, mesmo quando o léxico está profundamente deformado. É que a estrutura
sintáctica de uma língua é muito mais resistente do que o léxico, tornando-se por isso
mais fácil investir na deformação vocabular. As relações sintácticas, embora pouco
rígidas, são geralmente mantidas e fazem perceber uma preocupação estética,
delineadora da cadência ou do ritmo que o poeta pretende imprimir ao texto. Assim, o
efeito retórico será procurado mais ao nível da palavra do que ao nível da frase.
No entanto, estas alterações a que se fez referência, de frases sem verbo ou
sem sujeito, de inversões dos elementos frásicos ou, simplesmente, de frases
inacabadas, ocorrem no plano sintagmático e só em alguns poemas, dizendo bem da
independência entre competência e performance. Convém, pois, sublinhar que a obra
de Ângelo de Lima também inclui poemas correctamente estruturados sob o ponto de
vista sintáctico, como é o caso de «Inês de Castro» ou de «Vai, sobre o sombrio

101
Marcel Cressot, O Estilo e as suas Técnicas, ob. cit., p. 200.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 92

abismo», embora sejam em menor número e acabem por não criar aquele efeito
discursivo característico do autor em estudo. Repare-se ainda que, em «Inês de
Castro»102, a pontuação não apresenta grandes variações. Entre as reticências e alguns
pontos de exclamação, os nove tercetos descrevem as exéquias daquela que «morreu
d’amores» por D. Pedro, o «régio amante». Do mesmo modo, não existem grandes
surpresas ao nível lexical. As palavras foram despretensiosamente seleccionadas para
obedecerem a uma estrutura rítmica sem sobressaltos, mas com um esquema rimático
meticulosamente bem construído. De cada terceto, o poeta faz transportar a rima do
segundo verso para os primeiro e terceiro versos da estrofe seguinte, perfazendo um
total de dez rimas diferentes. Só no primeiro verso do último terceto surge uma
pequena diferença dos sons vocálicos (escolheu, céu e conheceu), fazendo aparecer a
rima imperfeita. Porém, o segundo verso da estrofe anterior acaba por rimar de uma
forma perfeita com o último desse terceto:

Cerca o andor o choro lancinante


Das fiéis açafatas que escolheu
Para a Morte Rainha o régio amante...

E ela sorri serena para o céu


N’aquele seu sorriso doloroso
D’anjo que as dores da terra conheceu...

Desintegração e Intertextualidade

O verso é como um todo, un mot total, adaptando a expressão de Mallarmé103,


e uma relação intrínseca une as partes que o constituem para que se possa apresentar
como uma organização autónoma. Em Ângelo de Lima, as transgressões criativas
ultrapassam os fenómenos linguísticos para fazer aparecer uma série de outras
102
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 45-46. Este poema foi publicado em 1898
e escrito ainda no Hospital do Conde Ferreira. No original traz a indicação «Por concluir».
103
«Prefácio» a Traité du Verbe, de René Ghil, Paris, Alcan Lévy Éditeur, 1887, p. 9.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 93

categorias, como o ritmo, a rima, a métrica e a estrutura estrófica, que com eles se
cruzam, promovendo a transformação textual e accionando outros efeitos de
estranhamento, seguindo, com efeito, uma tradição anfigúrica assinalada pela
tendência para a ininteligibilidade.
A especificidade da sua poesia passa também pelo trabalho deformador ao nível
da versificação. O soneto, pelo dinamismo da sua estrutura, tem vindo a prestar-se a
diferentes concretizações, perdendo a rigidez a que foi condenado pela cultura que o
assimilou104. Na Modernidade, aparece reinventado se comparado com o sistema
estrófico dito clássico, que compreende quatro estrofes isométricas, duas quadras e dois
tercetos, perfazendo um total de catorze versos, seguindo o esquema rimático ABBA //
ABBA // CDC // CDC. Amorim de Carvalho prevê no seu Tratado de Versificação
Portuguesa algumas variantes do soneto perfeito, nomeadamente ao nível da
distribuição das rimas, da métrica e da divisão das estrofes105, variantes necessárias
face à evolução que esta forma sofre ao longo dos tempos. Etimologicamente, «soneto»
surge do italiano «sonetto», pequeno som ou melodia, que, por sua vez, encontra a sua
origem no termo provençal «sonet», reportando-se às quadras e aos tercetos, portanto,
às chamadas poesias curtas destinadas ao canto. Este aspecto está de alguma forma
entrevisto em Ângelo de Lima, dado que, como adiante se demonstrará, a sua
intervenção destrutiva no campo da versificação não deixa de se subordinar a uma
norma interna, que singularmente acciona outros mecanismos textuais.
O poema «Pára-me de repente o Pensamento...»106 constitui um dos exemplos
da transgressão sobre a forma convencional do soneto. De acordo com o manuscrito
deixado pelo autor, o poema apresenta duas quadras seguidas de dois dísticos,
findando com dois versos isolados, e está estruturado segundo o esquema ABBA //
ABBA // CD // CD // C // D, com versos interpolados e cruzados. Este soneto,

104
Cf. Isabel Paula Monteiro, Dissolução e Reinvenção do Soneto em E. M. de Melo e Castro,
Dissertação de Mestrado, Universidade do Porto, 2000, e E. M. de Melo e Castro, Poligonia do Soneto,
Lisboa, Guimarães Editores, 1963.
105
Tratado de Versificação Portuguesa, Coimbra, Almedina, 1991, pp. 105-110. Ver também
o «Apêndice Histórico», p. 145 e seguintes (idem). Sobre a evolução do soneto em Portugal, desde Sá
de Miranda até aos nossos dias, cf. António José Vilas-Boas, «Rondo capriccioso – o Som do Soneto»,
in Poesia e Música – O Neobarroco em Media Vita de Fernando Echevarría, Dissertação de Mestrado,
Universidade do Porto, 1999, p. 70 e seguintes.
106
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 52.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 94

desfigurado quanto à forma gráfica, mas perfeito no que diz respeito ao esquema
rimático, prevê as simetrias características do soneto português clássico. Todos os
versos são decassílabos, alternando o heróico, com acentuação interna na 6ª e na 10ª
sílabas, na primeira quadra e nos 6º, 8º, 9º, 10º, 11º, 13º e 14º versos, com o sáfico,
acentuado na 4ª, na 8ª e na 10ª sílabas, nos 5º, 7º e 12º versos. Esta combinação é
frequente, embora, à boa maneira quinhentista, predomine o decassílabo heróico. De
relevar ainda o facto de ser possível encontrar nos ditos decassílabos sáficos uma
chave que poderá resumir todo o poema: «– Pára Surpreso... escrutador... Atento»,
«Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...» e «Um Olhar d’Aço, que na Noute
explora...», bem como no 13º verso a conjunção adversativa «Mas», muito usual na
definição do carácter conclusivo dos tercetos.
Na poesia de Ângelo de Lima, as maiores irregularidades ao nível da
versificação são facilmente visíveis nos poemas «Ocaso», «Edane!» e «Alva», que
contrastam com «Sonhos» e o já referido «1500»107, estes últimos construídos
segundo o esquema rimático clássico, ABBA // ABBA // CDC // DCD, e com versos
decassílabos que alternam entre o heróico e o sáfico. O poema «Sonhos», publicado
pela primeira vez n’ A Ilustração Portuguesa, em 1911, pode dar conta do
conhecimento do poeta acerca da construção formal do soneto clássico, daí a sua
estrutura regular que chega a impor uma certa contenção na utilização das próprias
palavras. A destreza versificatória de Ângelo de Lima é manifestamente distinta nos
outros três textos, muito mais ricos em variados níveis e, talvez por isso, mais
arrojados sob o ponto de vista formal. Pode-se dizer que alguns dos poemas do «poeta
louco» enriqueceriam o «museu de curiosidades» do soneto de Agostinho de
Campos108.
Em «Ocaso», por exemplo, verifica-se a seguinte divisão no primeiro verso da
segunda quadra:

– Cresce a Treva
Na Dor Silenciosa

107
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 69, 73, 74, 50 e 51, respectivamente.
108
Estudos sobre o Soneto, Coimbra, Biblioteca da Universidade de Coimbra, 1936, p. 16.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 95

e no terceiro verso do primeiro terceto:

– Redentor!... Stator!
– Paz!... Piedade!...

Tais divisões acabam por pressupor a intenção de desmistificar o modelo canónico do


soneto, se se atentar no facto de que só entendendo a segunda parte como continuação
da primeira, como se estivessem alinhadas no mesmo verso, se podem contar os
catorze versos. Repare-se que Agostinho de Campos prevê a existência de sonetos
constituídos por quinze ou dezasseis versos109; mas, neste caso, se assim fosse, o
esquema rimático ABBA // ABBA // CDC // DCD, na sua forma mais pura, era
desconstruído. A mesma dificuldade surge na primeira estrofe de «Edane!»:

Edane Clara e Santa...


Edane Pura!
– Purfictrio do Símbolo de Prata...
Erta Emmemor na Alma
– Erta Hierata!
Clareia Calma na Alta Noute Escura

O mesmo acontece por todo o soneto «Vita!...»110: o primeiro e o terceiro


versos da primeira quadra surgem quebrados, bem como o primeiro da segunda
estrofe e o último verso do poema, e só alinhados perfazem o total de catorze versos e
cumprem o referido esquema métrico.
Já no poema «Alva», a leitura pressupõe a estratégia oposta: só separados, tal
como são apresentados pelo poeta, se contam os catorze versos. Porém, o esquema
rimático sofre as consequentes deformações, nomeadamente ao nível dos últimos
versos. Deste modo, o texto possibilita uma solução com duas vias: recorre-se à
sinalefa no quarto verso da última quadra, alinhando «Ante...» e «– Ó Luz Glora da
Manhã Dourada», para construir assim o único verso decassílabo sáfico do poema e
completar o esquema ABBA; por outro lado, além do alinhamento necessário à rima
no primeiro verso, só com a repetição dos segundo e terceiro versos se chega ao
esquema CDC // DCD:

109
Idem, p. 42.
110
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 68.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 96

Ergue Hermes em Sidon!...


– Thor em Rami!...
E és Divina no Céu! Dea Argentida!...
Ó Ama Terassu – Omi-Rami!...
Fata da Alma – Ser Ressus – Remida!...

Este esforço poderia tornar-se inglório somente se dele nada resultasse. Afigura-
-se, pois, evidente que, desta forma, a leitura do poema ganha novos contornos e veicula
uma intenção destrutivo-construtiva, corroborando tudo aquilo que se tem vindo a
enunciar neste estudo como especificidades da poesia de Ângelo de Lima. Reitera-se
que estas orientações constituem apenas estratégias possíveis de leitura, pois é
inevitável a aceitação do facto de que os seus poemas perseguem a subversão formal
segundo esquemas pouco convencionais e, por isso, facilmente entroncam naqueles
sonetos ditos «malabarismos, exibicionismos e degenerescências» do soneto clássico111.
A fixação do poeta por uma determinada extensão métrica é visível na
preferência do decassílabo, tanto nos sonetos como em poemas mais longos. No
«Cântico Semi-Rami»112, por exemplo, as estrofes são constituídas por um número
irregular de versos, embora predomine a quadra, contando todos, porém, com dez
sílabas. Noutros casos, Ângelo de Lima abandona o decassílabo, mas cumpre com o
mesmo rigor a métrica escolhida, sob pena de ter de sacrificar os próprios vocábulos.
No entanto, alguns dos seus poemas, embora em menor número, apresentam uma
estrutura heterométrica, como nos já referidos «Rhada» e «Viver», ou em «Ninive»,
onde porém faz prevalecer uma sucessão irregular mas equilibrada de ritmos. Em
alguns poemas, o número de versos por estrofes também é variável: em «Fado», a
primeira estrofe tem 4 versos e as restantes têm 10; «Ninive» apresenta as duas
primeiras estrofes com 6 versos, a terceira com 5 e a última com 13 versos.
A falta de rigor estrófico e métrico corrompe ainda os esquemas rimáticos
utilizados. Em «Ninive», por exemplo, se a primeira estrofe arruma os versos segundo
o esquema ABCABC, a segunda já segue o esquema DCDDDC. Nas duas últimas
estrofes, ocorrem versos sem rima entre outros versos que rimam mas sem qualquer
sequência lógica. Em «Thora...», sem o alinhamento dos versos que parecem

111
Amorim de Carvalho, Tratado de Versificação Portuguesa, ob. cit., p. 110.
112
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 75-77.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 97

quebrados torna-se difícil desenhar o esquema rimático. De qualquer forma, a rima


interna é repetitiva, e a externa, por vezes, imperfeita, fazendo rimar, por exemplo,
«Céus» com «Deus».
Já no poema «Fado», a rima ABAB da primeira estrofe é retomada na aparente
desarrumação dos esquemas CDDCAEFFEA da segunda e GHHGBIJJIB da terceira.
As rimas A e B são rigorosamente recuperadas para separar as novas rimas
interpoladas e emparelhadas. Tal simetria é ainda visível nas restantes estrofes, o que
faz perceber uma estrutura rímica quase obsessiva. Neste poema, surge ainda a
combinação da rima interna com a externa, do interior do verso para o fim de um
outro, em «– Oh Devoção do Futuro!...?!... // – Pressaga...?!... – Iniciação!?... //
– Audácia!... – ou Presunção...», e do interior para o fim do mesmo verso, como na
similicadência113 percebida em «Margarida Enflorescida» e «Foi Dogaresa, em
Veneza». Esta preocupação com a rima talvez possa justificar o aparecimento de
termos desconhecidos como «Emprona», que surge para rimar com «Lissabona». A
rima apresenta assim uma função deformadora dos próprios vocábulos, potenciando
deste modo a própria expressão poética. Mas estas irregularidades em benefício
estético são extensíveis também à metrificação: a ampliação de «Lisboa» para
«Lissabona» surge da necessidade de o compositor fazer cumprir o heptassílabo do
primeiro ao último verso do poema:

7 sílabas em «O / Ri/o / de / Li/ssa/bo(na)!... »


6 sílabas em «O / Ri/o / de / Lis/bo(a)», se tivesse utilizado Lisboa.

O soneto «Edd’ora Addio... – mia soave!...»114 cumpre em termos gráficos os


catorze versos divididos por duas quadras e dois tercetos, falseando, no entanto, a
concepção da métrica clássica. Este poema segue o esquema rímico clássico, embora
com rima imperfeita, e apresenta por vezes versos irregulares mais curtos. O uso
obsessivo do travessão faz destacar os quatros versos que não são por ele introduzidos,
«Que d’Alado Lidar, Canse...», «Dorto... Stringe... o Corpo Elance... // Vai À

113
Segundo Heinrich Lausberg, esta figura consiste na igualdade «sónica» de fins de palavras
(Elementos de Retórica Literária, ob. cit., p. 214).
114
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 86.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 98

Campa... – Il C’or descanse...» e «Que Cai sobre o Último Leito!...», versos estes que
proporcionam uma chave de leitura importante dada a complexidade que o poema
insiste em transmitir. Desta forma, torna-se necessário um olhar mais demorado sobre
este texto, talvez um dos mais bem conseguidos poemas de Ângelo de Lima, na
medida em que sintetiza uma série de aspectos formais que caracterizam a subversão
linguística da poética anfigúrica.
O ritmo musical de «Edd’ora Addio...» transmite a calma e a serenidade de
alguém que aceitou a condição da sua finitude. A vida do sujeito poético é comparada
à da «mariposa», como uma vida cheia de beleza, mas muito curta, sujeito que vê a
sua alma a transformar-se pelo cansaço «d’Alado Lidar», encontrando por fim a «Paz»
no «Último Leito». Esta separação da alma e do corpo parece não trazer
descontentamento ao sujeito poético, que diz «– Não Choro no Orar Cicio...» e se
considera «Edd’ora... Eleito!...». E assim se compreende a dicotomia dia/noite, ou
dia/morte, na substituição das consoantes sonoras m e d em «Mia» e «Dorta», ou
«Dorto», fazendo aparecer por depreensão analítica «Dia» e «Morta», na primeira
estrofe, ou «Morto», na estrofe seguinte. O verso «Dia Soave... – Ave?!...» sugere,
além do automatismo com que aparece o último «Ave», o facto de o vocábulo
«Soave» poder remeter para dia suave ou dia em que sou ave, sob a aglutinação do
verbo e do substantivo e consequente transformação metaplasmática pela supressão do
u115. Optando quer por uma quer por outra leitura, este verso cria a tensão lírica e entra
em oposição com o primeiro verso da segunda quadra «– Do Ocaso pela Epopeia»,
sua antítese, intensificando-o, na medida em que o fim da luz de uma vida cheia de
grandes acontecimentos contrasta com a calma da morte numa «Campa» perfumada
pelo «Rocio». É a própria natureza que chora a sua morte, fazendo ao mesmo tempo
nascer um novo dia, que para o sujeito da enunciação é «– Mi’Soave!», leia-se muito
suave ou para mim suave ou ainda para mim que sou ave, atingindo o poema o seu
clímax: é a hora da despedida «Edd’ora Addio!...».

115
Esta leitura resulta de sessões de trabalho de orientação da dissertação. Cf. a leitura críptica
de Luís Adriano Carlos, a propósito deste soneto: «Ele vê e mia suave num dia suave, ele vê e sabe que
a mariposa azual está morta em paz, porque o transe é trespasse da Ideia e da Letra, do eidos e do
eidolon» («Elegia da Loucura», art. cit., pp. 137-138).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 99

A pontuação sincopada faz passar a ideia de um discurso sereno: as reticências


marcam as pausas entre os vocábulos, tornando-os autónomos, e, ao mesmo tempo,
adjuvantes na dissolução sintáctica. Assim imobilizadas no verso, as palavras, mais do
que em latência, vivem num estado de lactância116. Os termos novos encerram em si
sentidos latentes, como todos os neologismos, que, em Ângelo de Lima, não chegam a
ser actualizados, pois não passam do período lactante.
A força aliterativa dos vocábulos, sobretudo daqueles que se constituem como
fragmentos do latim e do italiano, criados por analogia fónica, reveste «Edd’ora
Addio...» de uma rara sonoridade, conferindo-lhe uma beleza rítmica singular e
conforme ao tema. Tanto as vogais nasaladas como os ditongos cobrem o poema de
uma força sonora bem mais sugestiva do que aquela que advém da utilização de
vogais simples117. Nas duas primeiras estrofes, as vogais nasais (/ã / e /ĩ/) são
combinadas com as consoantes fricativas (/z/, /s/, /з/) nos vocábulos «Transe»,
«Canse», «Transpasse», «Stringe», «Elance» e «Descanse». Esta associação
paronomástica de palavras com sons caracterizados pelo traço [+ contínuo] faz com
que o texto viva de um ritmo que se arrasta e demora e que se amplia nas
ressonâncias. Em todo o poema, porém, a semivogal [j] sobressai entre todos os outros
sons linguísticos nos tritongos «Almeia», «Ideia», «Epopeia» e nos ditongos «dói»,
«Peito», «Eleito», «Cai» e «Leito», redundâncias em excesso que produzem a
melopeia, carregando a linguagem de significado poético pela indução de «correlações
emocionais entre o som e o ritmo do discurso»118. Esta semi-vogal, bem como a
própria vogal /i/, nos vocábulos «Cicio», «Rocio» e «Addio», revela-se extremamente
musical, e, segundo Ivan Fónagy, quando associada aos sons nasais, é muito frequente
em diálogos sentimentais, nomeadamente em «cenas de despedida»119.

116
Conceitos sintetizados no termo «lactência» de Alberto Augusto Miranda, «Ângelo de
Lima: do Estado de Lactência ao Desmame Inconsumado», Letras & Letras, 89, Porto, 1993, p. 12.
117
Cf. António Feliciano de Castilho, Tratado de Metrificação Portugueza, vol I, Lisboa,
Empreza de História de Portugal, 1908, pp. 107-108.
118
Ezra Pound, ABC of Reading, London, Faber and Faber, 1973, p. 63. Sobre os três
mecanismos da linguagem literária, a fanopeia, a melopeia e a logopeia, ver ainda p. 37.
119
La Métaphore en Phonétique, Otava, Didier, 1979, p. 67.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 100

A associação da poesia à música foi reclamada pelos simbolistas franceses,


enquanto forma de accionar a sugestão, acabando por transformar a relação dos poetas
com a própria linguagem. O primeiro verso de «Art Poétique» (1874), de Paul
Verlaine, «De la musique avant toute chose»120, acabou por se tornar um dos motes da
poesia simbolista. É que na música, segundo Baudelaire, «há sempre uma lacuna a ser
completada pela imaginação do ouvinte»121. Diz René Ghil que «as atitudes, os gestos,
as sensações e os pensamentos podem reduzir-se ao ritmo», uma vez que «os sons são
vistos», referindo-se à «música das palavras, evocadoras de Imagens-coloridas»122.
Cabe ao poeta evocar as palavras, promovendo deste modo a decifração dos símbolos,
enquanto enigmas, por parte do leitor123. Tal como a música, a poesia deveria, no
entender de Mallarmé, ser composta por sons puros que inevitavelmente eclipsariam
toda e qualquer referência directa. O poema seria então entendido como uma
«orquestração polifónica»124, colector das mensagens da consciência e do inconsciente.
Através da musicalidade dos versos, as palavras ganham um poder que
transcende o seu significado directo, ficando dependentes de um ritmo
metamorfoseador de sons que se evocam e se reclamam mutuamente. Conforme
salientou António Cândido Franco, o poema «Edd’ora Addio...» «isola a linguagem de
todas as racionalizações possíveis, pois retira-lhe a base referencial [...],
transformando-a antes num elemento maleável de significação, sempre mais sugestiva
que precisa», recorrendo «mais à musicalidade fónica, sincopada e lenta, que à
vontade intelectiva de perceber significados e referências»125.
A incoerência de muitos poemas de Ângelo de Lima surge da reunião ou
incrustação de vocábulos segundo um critério dependente de uma maior riqueza

120
Paul Verlaine, Oeuvres Poétiques Complètes, Paris, Gallimard, 1954, p. 206.
121
«Richard Wagner et Tannhäuser à Paris», in Oeuvres Complètes, Paris, Seuil, 1968, p. 512.
Ivan Fónagy refere mesmo que a «‘Música’ em Poesia é tão expressiva como a própria música, que não
se deixa reduzir a uma simples sequência rítmica de tensões e resoluções» («Le Langage Poétique:
Forme et Function», Diogène, 51, Paris, Gallimard, 1965, p. 108).
122
Traité du Verbe, ob. cit., pp. 46, 47 e 39, respectivamente.
123
Stéphane Mallarmé, «Sur l’Evolution Littéraire», in Oeuvres Complétes, Paris, Gallimard,
1945, p. 869.
124
Expressão de Ivan Fónagy, «Le Langage Poétique: Forme et Function», art. cit., p. 110.
125
«Ângelo de Lima: a Palavra Desconhecida», in Poesia Oculta, Lisboa, Vega, 1996, pp. 37-
-38; sublinhado meu.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 101

musical. No longo «Cântico Semi-Rami», aparecem vocábulos estranhos em função do


rigor métrico e da determinação rímica a que o poeta se obriga no aperfeiçoamento
musical dos versos. Esta utilização do material fonético, embora deformadora, reflecte
um conhecimento instintivo dos traços fonológicos e acústicos por parte do poeta, pois
não se verificam transgressões a esses níveis. Assim, surgem termos como
«Olorescente» para rimar com «Pubescente», ou «Acinte», «Cispresinte» e «Orinte»
para rimar com «Requinte», e «Hiante» para rimar com «Amante». Este apuro musical
dá origem a um princípio linguístico construído a partir dos finais homófonos: as rimas
com vogais nasais predominam ao longo de todo o poema (com várias palavras
terminadas em –antes, –ente, –inte, –ante); porém, a partir da sétima estrofe, essas rimas
são intercaladas com outras sem tipo definido (–or; –ção; –eito; –osse; –ino e –dade).
A gradação crescente sugerida pela acumulação assonante das vogais nasais,
na primeira estrofe o /ã/, na segunda o /ẽ/ e na terceira o /ĩ/, do som da vogal
[- fechada] para a [+ fechada] e do som [+ baixo] para o [+ alto], corresponde
simbolicamente às diversas fases do crescimento e consequente maturação sexual
feminina descritos em cada uma das estrofes: de «Criança Pubescente», no
desabrochar do «Amor Inconsciente» da «Adolescente... Casta e Curiosa», passando
pela «Galante com Requinte», que se esquiva dos perigos da «Ventura», d’«A
Nubente... Temente e Desejosa» ao sacrifício da «Noivada pelo Amante», a
«Desvirgada... Grata e Dolorosa», até à «Senhora», a «Matrona Virtuosa». O valor
intrínseco das qualidades distintivas dos sons, embora latente, «assume-se quando
encontra uma correspondência no significado de uma dada palavra na nossa atitude
afectiva ou estética para com ela»126.
Assiste-se igualmente nas estrofes do «Cântico Semi-Rami» a uma
sistematização do esquema rímico ABBA // CCCCA // DDDDA // EEEEA // ABBA //
EEEEA, que é desconstruído a partir da passagem à «Adulterin... que Trai o seu
Senhor», fazendo aparecer então novas rimas, sem qualquer sequência lógica
perceptível, portadoras de sons mais fortes, que dizem bem do estado doloroso de
quem «Perdeu a Esp’rança» na «busca de Amantes do Destino». Repare-se ainda que
a primeira quadra é repetida três vezes ao longo do poema, como se se tratasse de um

126
Roman Jakobson, Six Leçons sur le Son et le Sens, Paris, Minuit, 1976, p. 119.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 102

refrão, trocando o primeiro com o quarto verso apenas na primeira repetição, mas sem
qualquer prejuízo para a rima.
Este poema conta, como se viu, com uma grande variedade rímica, pelo que a
notação rítmica dos versos decassilábicos terá de, por si só, imprimir uma cadência
favorável ao canto. Por outro lado, essa rima diversa é conseguida quase sempre
através de versos graves, que fazem sobressair a medida musical, assinalando para o
ouvido o limite de cada verso, como se fosse intenção do autor estabelecer, neste
texto, uma correspondência rítmica e rímica. No interior dos versos, porém, os acentos
rítmicos não têm uma periodicidade rigorosa, ficando o texto assim reduzido a uma
colocação quase arbitrária de tempos fortes, que pode ser compensada pelo facto de
alguns versos não constituírem necessariamente uma frase, tendo de ser completados
pelo verso seguinte.
Em poesia, «a equivalência dos sons [...] implica inevitavelmente a
equivalência semântica»127. As rimas significam, quer pela semelhança ou identidade
dos sons, quer pela diferença ou contraste no sentido. Logo, o semantismo da rima é
metafórico, pois a própria sonoridade conota um valor que contrasta com o valor
denotativo previsto pelo nosso código linguístico. Nesse desabrolhar nostálgico dos
valores mais profundos da língua, as palavras redescobrem o seu valor original, pois
em jogo estão as suas propriedades intrínsecas. A linguagem poética acaba por ser o
tipo de linguagem mais propício à actualização do simbolismo fonético, na medida em
que o signo assume um valor autónomo. Através da «sensibilidade
onomatopoética»128 dos seus forjadores, essas palavras contribuem para a motivação
da própria linguagem.
O «Cântico Semi-Rami» revela-se, assim, um campo fónico de possibilidades
ilimitadas, coerentemente avaliadas em função do desenvolvimento do tema, que é dado
pelo próprio título. É que, em poesia, «os sons pintam ideias»129, nas palavras de
António Feliciano de Castilho, uma vez que os efeitos fónicos sugerem associações que
produzem significados diferentes dos convencionados. O poema «Ninive» surge como

127
Roman Jakobson, Essais de Linguistique Générale/I, ob. cit., p. 235. Ver ainda p. 240.
128
Expressão de Ivan Fónagy, La Métaphore en Phonétique, ob. cit., p. 54.
129
Tratado de Metrificação Portugueza, vol II, ob. cit., p. 5.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 103

um outro exemplo do que se acabou de referir. Os vários valores de que se reveste o


grafema s dominam as palavras-chave do texto: o som /s/ em Sepultura, Saudade,
Serpente, Semi, Singular, Sagrado, Sacro, Sois; o som /z/ em adjectivos como
Silenciosa, Misteriosa, Gloriosa, Saudosa, Vigorosos, Pressurosos, Escabrosos,
Saudosa; o som /∫/ em Istar, País, Paz, Distante, Expedição, Fiéis, Imortais,
Caminhos, Inimigos e Chacais. Estas consoantes, segundo o modo de articulação,
dizem-se fricativas, pois a passagem do ar é sujeita a uma espécie de fricção ou ruído.
Entre os sons /s/, /∫/e /z/, repare-se que os dois primeiros são surdos e o último sonoro,
mas todos fazem parte do grupo das sibilantes. Uma vez que estes sons povoam o
poema do início ao fim, ao lado da insistente vogal /i/, parecem querer transmitir, por
um lado, o ritmo lento de sons contínuos, que se arrastam na recordação triste de quem
se diz ter sido infeliz, e, por outro, um louvor à corajosa rainha guerreira da Assíria,
«Semiramis». Conforme salientou Ivan Fónagy, a «expressão mímica (articulatória) das
emoções releva de uma competência pré-verbal universal». Por conseguinte, as
metáforas fonéticas são motivadas naturalmente e estão longe de ser arbitrárias130.
Algumas palavras parecem reduzidas à sua função musical, como se surgissem
nos textos para compor uma determinada sonoridade. Esse efeito é percebido, na
maior parte das vezes, nas rimas dos poemas, mas pode também ser visível no interior
dos versos. As propriedades expressivas dos sons são ainda detectadas através da
paronomásia131, na conexão de palavras foneticamente semelhantes, mas diversas na
significação, como em «Pe-chente» e «Pendente», «Amor» e «Ardor» («Neitha-Kri)»;
«Perfumada» e «Perturbada» («Alva»); «explora» e «Espora» («Pára-me de repente o
Pensamento...») e «Saudade – Sultana Lenda» («Fado»). A associação paronomástica
é muito frequente nos poemas de Ângelo de Lima, por vezes através da realização
poliptótica, sustentando ora a construção das rimas ora a musicalidade dos versos. A
título de exemplo, constata-se o poliptoto na alteração flexional do corpo da palavra,
sem qualquer alteração no seu significado, em «Sábia/Sábios» («Neitha-Kri»),
«Minha/Minhas» e «Fui/Fosse» («Cântico Semi-Rami») e «Morreu/Morreram»
130
La Métaphore en Phonétique, ob. cit., pp. 85 e 86-87.
131
«A paronomásia é um jogo de palavras respeitante à significação da palavra, o qual surge
devido à alteração de uma parte do corpo de palavra [...] quase imperceptível» (Heinrich Lausberg, ob.
cit., p. 179).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 104

(«Ninive»). Ainda relativamente aos parentescos entre palavras, encontra-se também


nos seus poemas a figura etimológica na repetição do radical da palavra. No entanto,
neste caso, verifica-se uma diferença no significado das palavras, como em:

- «Imensa/Imensidão» e «docemente/Dulcíssima» («Neitha-Kri»);


- «Cantada/Canto» («Fado»);
- «Confortante/Confortos» e «Amei/Amantes/Amando/Amor» («Cântico
Semi-Rami»);
- «Morreram/Imortais» («Ninive»).

A linguagem poética moderna, como forma de superar as limitações da escrita,


manifesta-se como um sistema de signos mais sugestivos do que imitativos e as
etimologias poéticas, através dos parentescos sonoros ou de sentido, mais não fazem
do que valorizar os elementos linguísticos latentes nas correspondências entre os
níveis fonético, sintáctico e semântico.
Platão, no diálogo Crátilo, acaba por recorrer ao simbolismo sonoro para tratar
da concordância entre nomes e significações, optando no entanto por uma via mais
onomatopaica do que simbólica132. Por esse facto, existem alguns pontos de contacto
entre esta primeira teoria filosófico-linguística e as práticas de Stéphane Mallarmé e
dos simbolistas franceses na exploração do poder sugestivo das sonoridades. Na
procura de um nexo de significação original entre palavras que começam pelo mesmo
som, Mallarmé redescobre associações semânticas a partir das associações auditivas.
Arthur Rimbaud já havia estabelecido relações entre a sonoridade das vogais e a
experimentação de emoções com o enigmático soneto «Voyelles», em 1871, seguindo
a mesma linha das correspondências de Baudelaire. Através dos sons puros das
vogais, o alquimista do verbo chega à combinação das cores com as sensações: ao a
corresponde o negro e os «maus cheiros cruéis»; ao e o branco e as «canduras dos
vapores»; ao i o vermelho de «sangue cuspido» ou do «riso de lábios belos»; ao u o

132
Platão atribui a Sócrates a seguinte teoria: «Em todas as palavras, em geral, o r serve para
exprimir o movimento. Porque via demorar-se a língua, o menos possível, nessa letra e vibrar o
máximo, por isso é que me parece que o autor dos nomes a empregou nessas palavras. Por outra parte,
serviu-se do i para tudo quanto é subtil, para aquilo, principalmente, que poderia atravessar todas as
coisas» (Platão, Crátilo, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1994, p. 122).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 105

verde e as «vibrações divinas dos mares» ou a «Paz dos pastos»; e, por fim, ao o o
azul, «supremo Clarão pleno de insólitas estridências»133.
Em Portugal, lembre-se Gomes Leal a propósito do seu soneto «O Visionário
ou Som e Cor», publicado em Claridades do Sul (1875), no tratamento da
correspondência entre sons e cores134, e o próprio António Feliciano de Castilho, que
elabora um Tratado de Metrificação, atribuindo a todas as letras do alfabeto um
determinado sentido. O mestre Castilho procura na articulação dos sons da língua
portuguesa semelhanças e diferenças, que estende às relações estabelecidas entre eles
numa determinada palavra. Conclui que a língua contém mais palavras imperfeitas do
que perfeitas, uma vez que há muito se perdeu a língua primitiva, sendo só possível
encontrá-la nos «termos onomatópicos»135.
Sugestivos são também os trabalhos mais recentes de Roman Jakobson e de
Ivan Fónagy sobre o simbolismo fonético. Em Six Leçons sur le Son et le Sens,
Jakobson, através dos resultados das suas pesquisas fonéticas, «demonstra que é
impossível separar o som do sentido, [ou seja,] os meios linguísticos dos seus
objectivos»136. Fónagy dirige-se às metáforas fonéticas: «Cada som tem uma cor
própria, as vogais são claras ou sombrias. As consoantes parecem ter uma certa
consistência, elas são duras ou moles, elas são mesmo sentidas, em certos casos, como
húmidas». Fónagy refere que o poeta «para exprimir os conteúdos mentais pré-
-conceptuais – pré-conscientes ou inconscientes – deve recorrer à magia verbal, às
sonoridades, ao ritmo, à transformação expressiva da estrutura gramatical», pois a

133
Oeuvres Complétes, Paris, Gallimard, 1951, p. 103. Cf. notas de Álvaro Cardoso Gomes, A
Estética Simbolista, S. Paulo, Cultrix, 1984, pp. 52-54. Será René Ghil, em 1885, no Traité du Verbe, a
construir um raciocínio rigoroso e complexo sobre as analogias fonéticas e, consequentemente, sobre as
correspondências entre o material (vogais e consoantes) e o espiritual (sinestesias). Em
«Instrumentação Verbal», Ghil, ao promover a «audição colorida» e sinestésica dos versos, deseja
recuperar os valores originais dos sons, relacionando timbre vocálico, cor e sensação: A - vermelhão:
glória, tumulto; E - amarelo: serenidade; I – azul: paixão, súplica; O – rubro: monotonia, dúvida,
simplicidade; U – amarelo: ingenuidade, sorriso (cf. Traité du Verbe, ob. cit., pp. 39, 42-44 e 53).
134
«Procuro em toda a parte a música das cores, // – E nas tintas da flor achei a melodia»
(Gomes Leal, «O Visionário ou Som e Cor», Claridades do Sul, Lisboa, Empreza da Historia de
Portugal Editora, 1901, p. 132).
135
Tratado de Metrificação Portugueza, vol II, ob. cit., p. 8.
136
Claude Lévi-Strauss, Prefácio a Six Leçons sur le Son et le Sens, ob. cit., p. 10.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 106

«verdadeira metáfora fonética é a expressão de uma experiência individual, actual,


fugidia, deve ser inédita, como um hapax legomenon»137.
Em Ângelo de Lima, o elemento fónico reiterativo faz aparecer o princípio
constitutivo de muitos dos seus versos: no uso obsessivo de determinados fonemas,
eleva-se o plano sonoro da linguagem poética a um «elemento focal», que «governa,
determina e transforma os outros elementos», garantindo assim a «coesão da
estrutura»138. Os aspectos fónicos revestem-se de uma função dominante, função essa
que catalisa, influencia, absorve e modifica os outros elementos linguísticos em jogo,
desde os formais, como a métrica e a rima, até à própria semanticidade do texto,
tornando-se pois determinante na leitura da especificidade da sua poesia.
O poema «Edane!»139, por exemplo, revela-se de difícil interpretação, na
medida em que, como a maior parte dos poemas de Ângelo de Lima, faz aparecer uma
série de vocábulos sem referências directas que dificultam a descodificação do texto.
Só através da sugestividade sonora, que, em «Edane!», advém da forte relação
fonemática entre os vários valores conjugados de duas vogais, se torna possível aferir
alguns dos múltiplos sentidos inerentes ao texto. Na análise da textura fónica do
poema destaca-se a aliteração decorrente da repetição frequente dos sons /a/ e /ε/, não
só em adjectivos que descrevem, segundo o sujeito poético, a lua, como Clara,
Hierata, Calma e Alta, como também nos verbos Extracta, Dilata, Salva, Ressalva,
Elege e faze, e ainda em substantivos, no próprio título, «Edane», ou em Prata, Erta e
Alma. Embora a vogal /a/ predomine, uma vez que está presente em todas as palavras-
chave do poema, não deixa de se amparar pela vogal /ε/, que também pode aparecer
como vogal tónica. Estes sons aproximam-se no grau de abertura da cavidade bucal,
pois o /a/ é uma vogal aberta e o /ε/, semi-aberta, condição que poderá explicar esta
contiguidade vocálica.

137
La Métaphore en Phonétique, ob. cit., pp. 1 e 2, respectivamente.
138
Roman Jakobson, «La Dominante», in Questions de Poétique, Paris, Seuil, 1973, p. 145.
Jakobson defende existir, em todas as épocas e correntes literárias, um elemento linguístico específico
que domina a obra na sua totalidade e exerce a sua influência sobre os outros elementos. É este
elemento que especifica determinada tendência artística (cf. p. 146).
139
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 73.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 107

António Feliciano de Castilho, no seu Tratado, atribui ao som /a/ «a expressão


natural [...] da alegria, [...] o sentimento de [...] enthusiasmo para com tudo que é
grande», ou a «consciência instintiva da feminidade», a «marca do nome da mulher»,
bem como das suas «qualidades»140. Já para Ivan Fónagy, o /ε/ é uma vogal
feminina141. Ora, dada a presença incisiva destes sons nos vocábulos desconhecidos
Edane, Erta, Emmemor, Hierata, Extracta, Miser e Infera, em conformidade com a
temática suscitada no título pelo autor, pode-se afirmar que estes fonemas são
portadores do sema [+ feminino]. Os fonemas assim semantizados criam uma
«constelação semântica», na qual participam todos os lexemas que os incluem, pelo
que «os sons da linguagem são muito mais do que simples fonemas»142. Na repetição,
talvez inconsciente, de sons vocálicos idênticos, a assonância assegura em simultâneo
o ritmo fónico e o semântico.
Assim, a lua surge para o sujeito poético, na «Noute Escura», como um
«Símbolo de Prata» e, com todo o seu esplendor feminino e maternal, acolhe a sua
«Alma Adolida», consumida pela «Paixão Infera». Desde há muito tempo que se insiste
nas relações entre o ciclo lunar e o ciclo fisiológico da mulher, representando a lua a
fecundidade dos animais e da terra, as fases da vida, o mistério e a imaginação. Na
mitologia greco-romana, Lua é o lado positivo da deusa Diana, também conhecida por
Febe e correspondente à Selene grega, que contrasta com a forma infernal e misteriosa
de Hécate143. Não deixa de ser sugestiva a presença do som /ε/ nestes nomes próprios, o
que permite avançar-se com a possibilidade de o termo «Edane» ter sido forjado a partir
de uma conjugação anagramática. A vogal /i/, de Diana, terá sido substituída pelo som
/ε/ e, através de uma inversão vocálica com recurso à mutação metaplasmática, terá
talvez surgido Edane, como mote dos sons a evocar ao longo do poema.
Observando as pesquisas anagramáticas de Saussure, Jean Starobinski conclui
que alguns poetas introduzem no verso o material fónico a partir de uma

140
Tratado de Metrificação Portugueza, vol I, ob. cit., pp. 95-97.
141
La Métaphore en Phonétique, ob. cit., pp. 90-91.
142
Julia Kristeva, La Révolution du Langage Poétique, Paris, Seuil, 1974, p. 222. Cf. Roman
Jakobson, «La Transformation Poétique», Change, 3, Paris, Seuil, Setembro de 1969, pp. 94-95.
143
Encyclopedia of Greco-Roman Mythology, Sta. Barbara, ABC-Clio, 1998: Febe, p. 250;
Selene, p. 277; Hécate, p. 146.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 108

«palavra-tema», como se existisse «um texto sobre o texto» ou um «pré-texto»


regulador das técnicas de composição poética144, ou seja, uma mensagem vinda das
profundezas do inconsciente que se revela nos versos e nos seus esquemas rítmicos.
Segundo Saussure, os sons dominantes no verso podem constituir o anagrama de uma
palavra-chave do poema, correspondendo aos fonemas principais de um nome próprio
como acontece, por exemplo, com «Edane» de Ângelo de Lima. Se no «Cântico Semi-
-Rami» não se verifica qualquer substituição nas letras que compõem o vocábulo
hifenizado «Semi-Rami», derivado de Semiramis, já em «Edane!» o mesmo não
acontece, havendo lugar a uma troca entre o /i/ e o /ε/ na passagem de Diana a
«Edane». No entanto, por inversão anagramática a partir de «Semi-Rami», poder-se-á
ler também miseriam, que acaba por ser a «palavra-tema» de todo o poema.
Saussure acabará por ampliar o conceito limitador de anagrama para um
conceito, no seu entender, mais justo, o paragrama, do qual o anagrama é só «uma
parte ou acidente»145. O enfoque saussuriano deixa de ser a simples repetição
aliterativa dos vocábulos para abranger uma série de fenómenos gráficos e fónicos que
incluem a substituição, a transposição e a disseminação, tratando-se de uma lógica
textual que, segundo Kristeva, mais do que semiológica ou semiótica, uma vez que
ultrapassa a noção de signo, compreende o domínio da semanálise146. O paragrama
consiste assim num «grama» que se move e que «faz, mais do que exprime, um
sentido»147. A concepção paragramática leva Kristeva a concluir que o texto literário
é, ao mesmo tempo, escrita e leitura, ou seja, é construído, por um lado, através dos
gramas escriturais, que abrangem os fonéticos, os sémicos e os sintagmáticos, e, por

144
Jean Starobinski, Les Mots sous les Mots, ob. cit., p. 23. Sobre o «mot-thème», cf. Mitsou
Ronat, «Vers une Lecture des Anagrammes par la Théorie Saussurienne», Change, 6, Paris, Seuil,
Setembro de 1970, p. 122.
145
Ferdinand de Saussure, cit. por Jean Starobinski (Les Mots sous les Mots, ob. cit., p. 31). O
«anagrama» consiste na dispersão do mot-thème num espaço restrito, e o «paragrama» a dispersão dos
fonemas por um certo número de versos (Mitsou Ronat, art. cit., p. 123). Uma caracterização
sistemática desta questão é feita por Luís Adriano Carlos (cf. «Introdução», in Jorge de Sena e a
Escrita dos Limites: Análise das Estruturas Paragramáticas nos «Quatro Sonetos a Afrodite
Anadiómena», ob. cit., p. 19).
146
Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, ob. cit., p. 19.
147
Julia Kristeva, idem, p. 184; sublinhado meu.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 109

outro, através dos gramas leiturais, que compreendem a reminiscência e a citação148. É


que «todo o texto se constrói como mosaico de citações, todo o texto é absorção e
transformação de um outro texto», logo a linguagem poética é, no mínimo, dupla149. A
prática de escrita intertextual pressupõe um diálogo entre os textos, ou seja, a
interacção de dois textos, a inserção de um no outro. O texto assimilado ou integrado é
transformado, aparecendo num novo contexto e com um novo sentido: a
intertextualidade pressupõe «um trabalho de transformação e de assimilação de vários
textos operado por um texto central que guarda a liderança do sentido»150. Há
apropriação, mas sem transplante, porque é um convite a uma leitura nova. A
intertextualidade «não se contenta [...] apenas com o incorporar [de um outro texto],
submete-o a uma actividade transformadora, encaixa o texto primitivo num contexto
novo com o objectivo de lhe modificar o sentido»151.
Em «Rhada»152, mais de metade das palavras utilizadas, incluindo as cinco
conjunções coordenativas copulativas, incluem o som /i/. Há, por sugestão sonora, na
exaltação à vida, uma correspondência clara com Krishna, deus da mitologia hindu, e
com a sublimação do seu amor por Radha, tornando-se assim possível aferir a
legibilidade de outros significados no texto, que passa a ser entendido como uma
produtividade significante. O curto poema «A Deusa de Rhada»153 acabará por
confirmar esta leitura em três versos: «Radha» – ou Vida – é Amor, Paixão, Luz,
Harmonia e Dor.
O já referido «Cântico Semi-Rami» dialoga com «Ninive», na medida em que
ambos convocam a lenda de Semiramis. No primeiro, pela voz do poeta, ouvem-se as
confissões da sua vivência enquanto mulher, que em muito se aproximam do que se

148
Idem, p. 175. Sobre os «gramas escriturais e leiturais», cf. pp. 185-195.
149
Idem, p. 146.
150
Laurent Jenny, «La Stratégie de la Forme», Poétique, 27, Paris, Seuil, 1976, p. 262.
151
Marc Eigeldinger, Mythologie et Intertextualité, Genève, Editions Slatkine, 1987, p. 11.
152
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 62. A troca da letra h da segunda para a
primeira sílaba deve-se, provavelmente, ao desconhecimento da grafia correcta por parte do poeta.
153
Idem, p. 63. Sobre Krishna e Rhada, ver Anna L. Dallapiccola, Dictionary of Hindu Lore
and Legend, Londres, Thames & Hudson, 2002, pp. 116-118.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 110

sabe desse mito154. Ainda jovem, Semiramis é descoberta por um conselheiro e general
do rei Ninus, da Assíria, que a desposa. Mas o rei logo se apaixona pela sua beleza e
argúcia, afasta o seu marido, levando-o à morte, e faz dela rainha. No «Cântico Semi-
Rami», Semiramis lembra os «Tempos de Ventura Confortante», ao lado do seu
marido, e assume a traição com o rei, sentindo «Doer o Coração [...] Nas Esp’ranças da
sua Devoção». O rei, sendo muito mais velho, cedo a deixa viúva, pelo que ela segue
«Entre a Treva das Selvas Pavorosas [...] em busca de Amantes do Destino». No
poema «Ninive», celebra-se o seu carácter de rainha guerreira. Semiramis aconselhava
o marido antes das investidas, chegando mesmo a comandar alguns grupos de
guerreiros nas conquistas. Conquistou o Egipto e a Etiópia e quase perdeu a vida
quando invadiu a Índia com os seus soldados. Uma outra versão desta lenda, talvez a
conhecida por Ângelo de Lima, defende que Semiramis acabou mesmo por morrer
nessa batalha sangrenta, de onde saíra derrotada. Da sua «Morte Misteriosa», diz-se
também que foi o filho que a afastou do poder, matando-a, ao fim de quarenta e dois
anos como rainha. Acredita-se, no entanto, que o seu espírito tomou a forma de uma
pomba e que voou em direcção ao céu: «– E Hoje… stá por Ali [...] E anda no Céu
Supremo a Eterna Istar», que corresponde naturalmente a Ishtar155 de Ninive, deusa do
amor e da volúpia, síntese de Afrodite e Vénus. O título do poema remete para a capital
da Assíria no tempo de Semiramis, perto da qual se julga ter mandado construir a
Babilónia com os seus jardins suspensos. Entre a ficção e o mito, Semiramis constitui
uma das lendas femininas históricas mais fortes de todos os tempos, perpetuando
valores de poderio e de liderança, comummente atribuídos aos homens, valores esses
também evocados por Ângelo de Lima, como se verá, em «Neitha-Kri».
Os seus poemas constituem um espaço literário onde a intertextualidade
assume um papel privilegiado, fazendo comunicar os aspectos bíblico, mitológico e
histórico. No poema «Thora...», sobrepõem-se nomes de deuses e de lugares míticos e
históricos, com apóstrofes fortes, sons duros e frases sem verbo, que deixam o leitor
154
Cf., por exemplo, The New Encyclopaedia Britannica, vol. X, 15ª ed., Chicago, 1995, p.
377, ou Encyclopedia of Greco-Roman Mythology, ob. cit., p. 277.
155
Ishtar: deusa guerreira da Assíria; deusa das manhãs e das noites; do seu culto fazia parte a
prostituição sagrada e quando vinha à terra era acompanhada por um cortejo de cortesãs; deusa da
satisfação dos desejos amorosos (Maria Lamas, «Mitologia Assírio-Babilónia», in Mitologia Geral, vol.
I, Lisboa, Referência/Editorial Estampa, 2000, pp. 246-248).
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 111

perdido entre várias referências que dificilmente se cruzam, tornando-se talvez, sob o
ponto de vista da significação, um dos textos mais complexos de Ângelo de Lima.
Desde «Thora», que advém da mitologia nórdica, até «Hermes», da mitologia greco-
-romana, passando por «Mithra», da mitologia hindu, e por «Melkar», deus da
mitologia fenícia, o poema está carregado de referências que passam também pela
citação bíblica, com «Saul», ou pela histórico-geográfica através de «Tiro» e «Sidon».
Naquilo que parece ser uma exaltação ao deus da guerra, Ângelo de Lima faz
comunicar uma série de referências aparentemente confusas, mas que no fundo podem
apenas querer investir Thor de características comuns a outros deuses. Diz Pierre
Guiraud que «o significante é abusivamente investido das propriedades do
significado»156. Assim, Thor é comparado a «Melkarth» adorado em Tiro, também ele
deus guerreiro vitorioso, a «Mithra», um dos génios da religião mazdeísta, deus da
verdade e da boa-fé que representa o sol e o fogo, a «Apolin», o deus solar, o bem-
-feitor dos homens e purificador das doenças, e a «Hermes», irmão de Apolo, deus dos
ladrões e mediador das almas dos mortos e ainda a «Saul» (o solicitado, em hebraico),
o primeiro rei de Israel, conhecido pelo seu carácter guerreiro e desobediente, e a
«Phul», que terá sido um dos reis da Assíria. São igualmente referenciáveis as cidades
de «Tiro» e «Sidon», a primeira por ser uma das cidades mais importantes da Fenícia
e a segunda por ser a terra prometida dos israelitas157. Sem referentes directos, uma
vez que a maior parte dos nomes surgem modificados, «é o nome que cria a
personagem e a situação» como «uma espécie de motivação, mas ao contrário»158.
Como Thor aparece correctamente escrito no subtítulo do poema, ao contrário da
deformação no título, ficará por esclarecer se foi intenção do autor modificar os
restantes nomes ou se foi simplesmente por desconhecimento da grafia correcta.

156
Pierre Guiraud, «Étymologie et Ethymologia – Motivation et Rétromotivation», Poétique,
11, Paris, Seuil, 1972, p. 407.
157
Indicações retiradas de Arthur Cotterell, Enciclopédia de Mitologia Nórdica, Clássica e
Celta, Lisboa, Livros e Livros, 1998: sobre Thor, pp. 234-235; de P. Lévêque e L. Séchan, Les Grandes
Divinités de la Grèce, Paris, Armand Colin, 1990: sobre Apolo, pp. 201-216; sobre Hermes, pp. 269-
-279; de E. O. James, The Ancient Gods, Londres, Weidenfeld and Nicolson, 1960: sobre Mitra, pp.
317-318; e de André-Marie Gerard, Dictionnaire de la Bible, Paris, Éditions Robert Laffont, 1991:
sobre Saul, pp. 1253-1257; sobre Sidon e Tiro, p. 1280.
158
Pierre Guiraud, «Étymologie et Ethymologia – Motivation et Rétromotivation», art. cit., p. 405.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 112

Viu-se já neste capítulo que a preocupação com a rima levou o poeta à


utilização de grafias incorrectas, embora em «Thora...» essa situação não se verifique.
No entanto, a adopção de estranhas grafias para as palavras comuns, como «Dyos» e
«Glor», parecem ter surgido por contágio, como manifestação do mistério que enche a
poesia de nomes, epítetos ou simples radicais maiusculados, dando lugar a uma
«semiosis ilimitada»159.
No desejo de sugerir emoções e sentimentos mais do que ideias, Ângelo de
Lima convoca uma série de referências das mitologias egípcia, fenícia e romana,
misturando-as com outras que parecem ter sido inventadas, para que os seus textos
possam, como um produto global, adquirir outros significados. «Neitha-Kri»160, o
poema mais longo de Ângelo de Lima, faz chegar múltiplas referências histórico-
-mitológicas através do processo intertextual, assumindo desta forma a linguagem da
pluralidade. Uma vez que o texto não se limita a reproduzir mas a metamorfosear e a
transpor as referências que assimila e associa, a intertextualidade exerce em «Neitha-
-Kri» uma função transformadora ao nível do significante, nomeadamente no que diz
respeito aos nomes próprios161.
O texto conta que uma determinada rainha egípcia se apropria do nome da
deusa-mãe, almejando a sua protecção162. «Kri» seria provavelmente o nome verdadeiro
da rainha, que se diz filha de Neit. Acontece que os nomes «Neitha-Kri», «Nofrei-Ari»
e «Mentha-Suf’reh», tal como surgem escritos no poema, não se conhecem na história
egípcia. De qualquer forma, o próprio texto sugere que a tal rainha havia assassinado o
rei, seu irmão, para poder governar sobre o «País d’Esneh». O soneto «Sonho

159
Segundo Umberto Eco, «Todo o signo interpreta um outro signo, e a condição basilar da
semiose é, justamente, esta condição de regresso infinito» (Leitura do Texto Literário – Lector in
Fabula, ob. cit., p. 46). Cf. Luís Adriano Carlos, «Metamorfoses do Signo e uma Supra-Metamorfose
de Jorge de Sena», art. cit., pp. 93-94.
160
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 78-81.
161
Por conseguinte, verificam-se neste poema as várias funções da intertextualidade, no
sentido que lhes dá Marc Eigeldinger (cf. Mythologie et Intertextualité, ob. cit., pp. 16-17).
162
Esta situação era muito frequente durante as primeiras dinastias no Egipto, pois Neit
aparece incorporado nos nomes das rainhas como forma de culto àquela que foi considerada a primeira
deusa egípcia (cf. Christian Jacq, As Egípcias: Retratos de Mulheres do Egipto Faraónico, Lisboa,
Edições ASA, 1998, p. 31). Sobre Neit, cf. ainda Veronica Ions, Egyptian Mythology, Middlesex, Paul
Hamlyn, 1968, pp. 38 e 103-105.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 113

Egípcio»163, de Alfredo Pedro Guisado, publicado em Orpheu 1, ajuda a solucionar o


problema referencial, ao fazer aparecer o nome «Nitokris», tradução inglesa de Neith-
-Ikeret, Nitokert ou Neit-Iqeret, que terá sido a primeira mulher consagrada faraó do
Egipto unificado, vivendo entre 2152 e 2249 a.C.164. A versão de Ângelo de Lima,
porém, só parcialmente coincide com o pouco que se sabe da governação desta rainha.
Seu irmão, Merenrê-Nemtyemsf, ou, noutras versões, marido, terá sido assassinado por
um grupo de homens da sua corte que queriam ver a rainha no poder165. Para se vingar,
Neith-Ikeret afogou-os no rio Nilo. O poema «Neitha-Kri», por outro lado, sugere que
foi ela que o envenenou. A divergência pode ser explicada de duas formas: sentindo-se
culpada, uma vez que foi em seu benefício, a rainha assume a morte do irmão; ou, a
mais provável, Ângelo de Lima conhecia uma outra versão e não teria tido acesso a
todos os dados históricos sobre esta personagem166.
O certo é que os nomes próprios que surgem nas suas composições, quer sejam
inventados, derivados por analogia fonética, ou resultantes de operações
paronomásticas, veiculam combinações de sons muito próximas daquelas que se
identificam como sendo egípcias. Por conseguinte, «Neitha-Kri», «Nofrei-Ari»,
«Mentha-Su’reh», «Thanitas» e «Tacite» seriam nomes possíveis no Egipto.

163
Orpheu, Lisboa, Contexto, 1994, p. 43.
164
O rei Pépi II teve como sucessor Merenré, cujo reinado foi muito breve. Nitócris sobe então
ao trono por volta de 2184 a.C., mostrando ter mais coragem do que os homens da sua época. Não
existe, porém, nenhum documento arqueológico com o seu nome, daí as inúmeras versões que possam
surgir. Este dramático conto egípcio não tem portanto fundamento histórico. Neit-Iqeret, que significa
«Neit é excelente», é o modelo egípcio da Atenas grega (cf. Christian Jacq, ob. cit., pp. 49-51).
165
Cf. César Vidal Manzanares, Diccionario Histórico del Antiguo Egipto, Madrid, Alianza
Editorial, 1993, pp. 137-138.
166
Repare-se que no tempo de Ângelo de Lima os estudos sobre egiptologia não estariam
ainda muito desenvolvidos: o túmulo de Tutankamon, que marca o grande avanço das pesquisas
inglesas no Egipto, só foi descoberto em 1922. Por essa razão, na época do poeta de Rilhafoles, pouco
ou nada era divulgado em Portugal sobre a cultura oriental, a não ser pelo contacto esporádico que
alguns dos nossos intelectuais dos finais do século XX manteriam com a imprensa parisiense. Não
convém esquecer, porém, que Ângelo fez parte de uma expedição militar a Manica, passando vários
meses em África. Na nossa literatura são frequentes as referências à cultura e história do Médio-
-Oriente, nomeadamente em finais do século XIX com as descobertas nas pirâmides egípcias, muito
divulgadas, se não em Portugal, pelo menos em Paris. Mas basta pensar-se na obra de Eça de Queirós
para se perceber o fascínio dos escritores pelo exotismo oriental, fascínio esse que percorreu toda a
cultura europeia da segunda metade do século XIX, nomeadamente n’ O Primo Basílio (1878), n’ O
Mandarim (1880), n’ A Relíquia (1887) ou n’ O Egipto.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 114

As referências egípcias são também percebidas noutros vocábulos: «Lótus»,


flor emblemática do Alto Egipto, simboliza a vida nascente, a evolução e a eternidade;
«Esneh» é o nome de um templo egípcio que contém inscrições sobre as origens de
Neit; e «Pe-chente», na forma correcta pschent, corresponde à dupla coroa usada pelos
faraós, símbolo da união do Alto e do Baixo Egipto167. Estas alusões culturais
estendem-se a outros poemas de Ângelo de Lima, dando conta da preferência do poeta
por motivos histórico-mitológicos. «Ocaso» apresenta como subtítulo «Serapi-
-Anubi», como evocação dos deuses Serapis e Anubis, ambos pertencentes à
mitologia egípcia. O primeiro ficou conhecido como o deus-síntese de todos os
deuses, filho de Osíris e Apis, ou, numa outra versão, o deus dos ladrões e dos
viajantes; e o segundo, representado pela cabeça de chacal, como o deus negro,
funerário, protector dos túmulos e patrono dos embalsamadores168.
Ângelo de Lima não se fica, porém, pelos mistérios da mais importante
civilização do Médio-Oriente, misturando, por vezes, referências de outras culturas.
«Targitas», no poema «Ocaso»169, remete para o termo de origem hebraica targum,
que significa o conjunto de traduções e comentários de textos bíblicos datado do
século VI a.C. «Ramayana» («Vita!...»)170 corresponde, na mitologia hindu, ao poema
épico que celebra a genealogia de Ramatchandra e a sua luta com o gigante Râvana,
raptor da sua esposa Sita. Em «Alva»171, «Ressus», provavelmente, corresponde a
Resus, homem da mitologia greco-romana nascido das musas e criado por ninfas para
ajudar os troianos na guerra. No poema «– E a Mãe do Rei do Reino Sul-Occaso»172,
misturam-se as mitologias chinesa («Hoang», por hoangs, entidades que presidiam aos

167
Indicações retiradas de Maria Helena Assam, Arte Egípcia, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1991, pp. 40-43, e de Veronica Ions, Egyptian Mythology, ob. cit., pp. 40, 68 e 90-91.
168
Referências retiradas de George Hart, Dictionary of Egyptian Gods and Goddesses,
Londres, Routledge, 1986 (sobre Anubis, pp. 21-26, e sobre Serapis, p. 189). Serapis, no entanto, seria
uma divindade comum a egípcios e a gregos e estaria entre Osíris e Zeus (cf. P. Lévêque, e L. Séchan,
Les Grandes Divinités de la Grèce, ob. cit., pp. 13-18).
169
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 69.
170
Idem, p. 68. Sobre o poema épico «Ramayana», cf. Introdução à Mitologia Oriental,
Lisboa, Editorial Estampa, 2000, pp. 52-54 e 76.
171
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 74. Cf. Encyclopedia of Greco-Roman
Mythology, ob.cit., p. 270.
172
Ângelo de Lima, idem, p. 84.
POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO 115

três reinos: céu, terra, homem) e japonesa («Kuan-Su», por Kuan-Ti, deus da guerra e
dos letrados), fazendo ainda referência a «Mu-Ang», principal cidade da Tailândia
com o mais importante templo budista.
Diz-nos Kristeva que «O texto é [...] uma produtividade [...] é uma permutação
de textos, [ou seja] uma intertextualidade [pois] no espaço de um texto há vários
enunciados de outros textos, que se cruzam e neutralizam»173. Em Ângelo de Lima, o
cruzamento neutralizador de discursos revela-se no sincretismo de referências
distantes deformadas e conjugadas com outras tantas inventadas pelo poeta. Os seus
textos parecem andar à volta de uma concepção de mundo muito própria, veiculando
vestígios de algo que foi apreendido antes da doença e que resultam particularmente
na transfiguração sígnica e no hibridismo de temas e motivos poéticos. Nessa
insistência temático-formal, reclamada por vários textos que se entrelaçam, surge a
loucura do poeta, «essa bola de cristal, que para todos está vazia, a seus olhos está
cheia de um saber invisível»174. Por conseguinte, torna-se pertinente a afirmação de
Almerinda Alves: «Mitologia, linguística, psicologia, ideologia não esclarecem o
poema. O poema é que, acidentalmente, pode esclarecê-las a elas»175.

173
Julia Kristeva, Séméiotikè - Recherches pour une Sémanalyse, ob. cit., p. 113.
174
Michel Foucault, História da Loucura, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1999, p. 21.
175
«A Finitude in Ângelo de Lima», Letras & Letras, 89, Porto, 1993, p. 8.
Se para uns a tradição existe e deve ser 
imitada,  
para outros, se existe é para ser 
reinventada. 
Ana Hatherly 

 
 
We die. That may be the meaning of life.  
But we do language.  
That may be the measure of our lives. 
Toni Morrison 
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA

A Matriz Simbolista

O favoritismo de Ângelo de Lima pela história e pela mitologia é igualmente


visível nos poucos desenhos que deixou1. Tal como na poesia, confluem e confundem-
-se nessas ilustrações vários temas, indicadores, no seu tempo, da desarrumação
mental que o perseguia2. Na verdade, esta intersecção de elementos traduz antes uma
vertente da experiência anfigúrica, que prevê, como se viu no capítulo anterior, a
congregação de uma pluralidade de aplicações poético-estéticas.
A sua poesia apresenta-se contudo bem mais complexa quando nela converge
uma série de tendências literárias anteriores, contemporâneas e posteriores ao autor:
com raízes ultra-românticas e desenvolvimentos simbolistas, Ângelo de Lima percorre
singularmente o Modernismo e desemboca nas experiências surrealistas e na Poesia
Experimental, demonstrando a ausência de filiação numa corrente estética definida.
Perfecto Cuadrado, através de um esquema-síntese3, que se apresenta, ilustra com
clareza esta intrincada questão:

1
Não poderiam faltar no espólio pictórico de Ângelo de Lima as referências a uma
personalidade histórica, como é o caso de Viriato (que poderia ilustrar o «anacronismo» nas obras
artísticas de alienados de que falava Júlio Dantas, abordado no início do capítulo anterior), e à cultura
egípcia, com o desenho de um homem sentado no chão a desenhar, apenas com o toucado na cabeça e o
saiote com a faixa vertical (desenhos reproduzidos por Mendes Corrêa, em O Genio e o Talento na
Pathologia, Porto, Imprensa Portuguesa, 1911, pp. 135 e 143).
2
Mendes Corrêa, depois de verificar alguns dos seus trabalhos artísticos no álbum do Hospital
Miguel Bombarda, refere-se-lhe como «um curioso alienado-artista» (idem, p. 175). Deste espólio só se
conhecem as pinturas reproduzidas na obra referida, pois o álbum desapareceu daquele hospital.
3
«Ângelo de Lima», in Modernidad y Vanguardia en la Poesía Portuguesa Contemporánea.
Perspectiva Histórica del Surrealismo Portugués, Tese de Doutoramento, Palma, Universidade das
Ilhas Baleares, 1986, p. 89.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 118

O Romantismo manifesta-se em alguns poemas de Ângelo de Lima como


resultado da influência paterna, embora se possa também apreender alguns laivos do
tom melodramático de autores como António Feliciano de Castilho, João de Lemos,
Soares de Passos, Alexandre Braga ou Maria Browne, sem, no entanto, cair no
exagero temático-formal de algumas das suas composições4. É que essas leituras não
limitam o domínio da produção de Ângelo de Lima e em nenhum momento se poderá
circunscrever um ou outro poema unicamente à esfera ultra-romântica. Os seus textos
traduzem, pelo contrário, uma redefinição poética amplificadora, resultante da
intervenção simultânea de vários padrões literários, dos quais se destacam agora os de
cariz ultra-romântico.
Uma boa parte da sua poesia contorna os lugares-comuns do exagero
romântico: desde o inevitável encontro com a Morte em «Epitáfio» e «Sozinho» ou,
com inigualável maturação linguístico-retórica, em «Edd’ora Addio... – Mia Soave!...»,
à descrição do funeral de «Inês de Castro» ou de Semiramis (cf. «Ninive»), passando

4
Não poderão ser extensíveis a Ângelo de Lima, nem mesmo a seu pai, as críticas
censuradoras do exagero da poesia ultra-romântica. Jacinto do Prado Coelho destaca «a monotonia
temática, a falta de visão original das coisas, a estreiteza de limites da escala afectiva [...], a pobreza de
vocabulário, [...] o descuido no arranjo rítmico e na escôlha das rimas» (cf. A Poesia Ultra-Romântica,
Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1944, p. 29) como algumas das limitações desta tendência, que nunca
deixou de ser uma das vertentes do Romantismo. Por conseguinte, só mantendo as devidas distâncias se
poderá falar de Ultra-Romantismo em Ângelo de Lima, ainda que seja a título de caprichosa influência
literária.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 119

por uma homenagem ao pai, Pedro de Lima, no Dia dos Finados (cf. «A Meu Pai»), e
encontrando na Noite um refúgio (cf. «Ocaso» e «Cântico Semi-Rami»)5.
Verificam-se ainda em Ângelo de Lima algumas das tendências temáticas
ultra-românticas: «Sonhos» e «Pára-me de repente o Pensamento...» traduzem um
estado de sonho e de inquietação espiritual que de alguma forma se aproxima do
estado transmitido pelos poetas daquela geração; do mesmo modo, percebe-se a
resignação fatalista do sujeito poético em poemas como «Rhada» e «Ocaso»; a
Natureza enlutada, esfumada, agreste e convulsa, em comunhão com o sentimento do
poeta, surge em composições como «Sozinho», «Edd’ora Addio... – Mia Soave!...» e
«Epitáfio»; a poesia de inspiração patriótica é visível na procura de temas e cenários
históricos (cf. «Inês de Castro», «1500» e «Morreu o Rei D. Carlos!») e na
dignificação do popular (cf. «Canção Portuguesa»); a evasão no tempo e no espaço
encontra forte desenvolvimento no exotismo de «Neitha-Kri» e «Ninive»6. A estas
características juntam-se ainda outras relativas a uma tendência formal: as elipses e as
suspensões frásicas são frequentes em Ângelo de Lima (cf. capítulo anterior), bem
como os versos exclamativos, traduzindo uma sintaxe essencialmente afectiva; outros
casos há em que se verifica uma forma simples e cadenciada, quer na monotonia
melopaica dos versos (cf. «Não tinha», «Eu ontem vi-te...» e «Súplica»), quer na
repetição rímica em versos seguidos (cf. «Cântico Semi-Rami» e «Ninive»).
No entanto, as maiores proximidades com a poesia romântica passam
necessariamente pelo conhecimento que Ângelo tinha da obra poética de seu pai,
apesar do pouco contacto que com ele manteve. Enquanto colaborador da revista
portuense A Grinalda, entre 1855 e 1859, Pedro de Lima ver-se-á conotado com a
terceira geração do Romantismo português. Com efeito, a sua obra poética Occasos,

5
São pois vários os poemas de Ângelo de Lima que se podem cruzar com os textos ultra-
-românticos: a ampliação do locus horrendus n’«A Noite do Cemitério» de António Feliciano de
Castilho é retocada, mas sem o mesmo exagero, em «Epitáfio» e «Edd’ora Addio...»; com «Edane!»,
num claro louvor à misteriosa luz da noite, Ângelo de Lima evoca superficialmente o poema «A Lua de
Londres» de João de Lemos; a religiosidade vaga percebida nas interrogações retóricas de «O
Firmamento», de Soares de Passos, não ficará esquecida, encontrando um profundo eco em «Dizem os
sábios que já nada ignoram», «Miserere», «Oh Céu», «Deus» e «Qual?...»; «Eu ontem vi-te», pela sua
singela expressão, traduz o estilo de aparente simplicidade do poeta João de Deus, também ele
perseguido por alguns laivos ultra-românticos.
6
Sobre as temáticas sublinhadas, cf. Jacinto do Prado Coelho, A Poesia Ultra-Romântica, ob.
cit., pp. 15-17.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 120

de 1867, reflecte uma formação literária claramente romântica, acentuando-se mesmo


em alguns poemas a influência do Ultra-Romantismo. Este facto não exclui, no
entanto, conforme destacou Jacinto do Prado Coelho, a possibilidade de se entrever
em alguns passos da sua poesia uma aproximação à poética simbolista7. Ângelo de
Lima ter-se-á apercebido desta oscilação, incorporando-a em alguns dos seus poemas
e afirmando-se como um dos «poetas visionários do Simbolismo português»8.
Desta forma, em «Rhada» e «Viver»9, encontram-se reminiscências
sinestésicas dos versos de seu pai «Tudo era para mim // Perfumes, sons e flores»
(«?...»), «Tudo são esplendores; // Tudo canta e sorri; tudo é bálsamo, luz, // Um
dilúvio de sons, e, grinaldas de flores» («Ebrio»)10. Do mesmo modo, «Sobre as
ondas, Tranquilas, do Oceano // Pousa, Serena, a Nau de Brancas Velas... // – Traz, no
flanco, o Vestígio das Procelas» do soneto «1500»11, de Ângelo de Lima, lembram os
versos de seu pai «Ai! fluctua á mercê do vento das porcellas, // E eu, partido o leme e
rasgadas as velas» («Aos Poetas»12). Também descreve a noite como «Escura e Fria»
(«Pára-me de repente o Pensamento...»13), aproximando-se da descrição romântica de
Pedro de Lima «Em quanto aqui é noite, densa, escura, sombria» («Sidera»14). Mas as
semelhanças entre os poemas de ambos estendem-se ainda à disposição dos versos nas
estrofes, às estrofes completas de frases sem verbos, à exploração das sinestesias, em
versos carregados de aromas, odores, sons e cores, bem como ao desenvolvimento
temático de poemas que reflectem sobre a noite, a morte ou a atracção do divino, e a

7
«Pedro Augusto de Lima», in Dicionário de Literatura, vol. II, Porto, Mário Figueirinhas
Editor, 1997, pp. 530-531.
8
Título de subcapítulo onde Perfecto Cuadrado inclui Ângelo de Lima, in ob. cit., p. 72.
9
Ângelo de Lima, Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1991, pp. 62 e 88,
respectivamente. Repare-se que estes poemas datam de 1910 e 1917, não correspondendo à fase inicial
da escrita de Ângelo de Lima, pelo que se conclui que a influência de Pedro de Lima se prolonga por
toda a produção de seu filho.
10
Versos de poemas pertencentes a Occasos, Porto, Typographia Lusitana, 1867, pp. 12, 31 e
129, respectivamente.
11
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 51.
12
Pedro de Lima, Occasos, ob. cit., p. 108.
13
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 52.
14
Pedro de Lima, Occasos, ob. cit., p. 30.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 121

referências que Ângelo acabará por ilustrar com os desenhos n’ A Geração Nova,
como a lira, a mulher-anjo, as campas e as trevas nocturnas15.
Também os termos desconhecidos e anómalos que brotam na poesia de Ângelo
de Lima fazem eco do requintado e pretensioso vocabulário utilizado por seu pai. Em
Occasos abundam termos como róseo, gemebundo, cerúleo, almo, níveo, estivo,
favónio, nebel, entre outros tantos, que, a par das epígrafes não traduzidas que
sustentam cada poema, de Hugo, Dante, Racine, Byron, Balzac, Chateaubriand e
Goethe, e das próprias referências bíblicas, históricas e literárias, retratam a cultura de
Pedro de Lima, bem mais vasta e consistente do que a de seu filho16.
Mas a utilização de vocábulos raros na poesia de Ângelo de Lima tem sido
apontada por vários críticos como uma das mais importantes marcas que o aproximam
do Simbolismo. Conforme esclarece Fernando Guimarães, a forma linguística destes
termos pode ser detectada ao nível das sucessões fónicas e ao nível das funções
sintácticas ou morfológicas17. Quer isto dizer que alguns dos vocábulos desconhecidos
encontram a sua origem na necessidade de fazer aparecer uma determinada classe
morfológica, que, por sua vez, pode ser detectada pela posição sintáctica que ocupa no

15
Ângelo de Lima, em quase todos os desenhos das capas desta revista, recorre à lira, que, a
par da assinatura «ANGELO», se revelou uma marca do autor. Na mitologia grega, este instrumento
representava a relação entre o céu e a terra, simbolizando a música dos deuses. Num dos desenhos, a
lira surge nos braços de um rapaz com umas vestes largas, ao lado de uma mulher que lhe dá a mão, e
ambos parecem movimentar-se, como se fugissem, olhando o rapaz fixamente para o céu. Poderá ser
uma referência a Orfeu, enquanto jovem, amparado por sua mãe (cf. A Geração Nova, nº 9, Porto, 20
de Outubro de 1894). A lira surge, num outro desenho, nos braços de uma «Muza» (sic), segundo
legenda do autor, com asas de anjo e longos cabelos ondulados (rev. cit., nº 8, 29 de Setembro de 1894).
A figura da mulher-anjo, inacessível, também se destaca numa outra capa preenchida por um cenário
tipicamente romântico: a figura de Antero de Quental surge das trevas criadas por troncos de árvores
que se entrelaçam e que mais parecem desenhar monstros infernais; a lira, porém, encontra-se numa
parte mais clara, quase encoberta pela vegetação suave, por baixo de uma figura feminina angelical
(rev. cit., nº 7, 11 de Setembro de 1894). No número oito, destaca-se ainda «O Tumulo do Cruzado»
(sic), numa clara ilustração da estética sepulcral.
16
O primo Carlos de Azevedo Coutinho Braga, também ex-aluno do Colégio Militar, refere
que Ângelo de Lima guardava um exemplar de La Légende des Siècles de Victor Hugo, que havia
pertencido a seu pai. Ângelo traduziu a lápis alguns versos no próprio livro, ilustrando outros com
desenhos, e nele compôs os poemas «Fique na Terra a triste humanidade» e «Alma que da minh’alma
se aproxima». Curiosamente, o poema traduzido intitula-se «Un peu de musique» (cf. «Responda Quem
Souber – Ângelo de Lima, Ex-205/1882», Revista da Associação dos Antigos Alunos do Colégio
Militar, 15, Lisboa, Abril de 1969, pp. 57-60).
17
«Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., p. 20.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 122

verso18. Por outro lado, verifica-se que a preocupação com o apuro musical dos
versos, condição tão cara aos simbolistas, desencadeou o surgimento de termos como
Olorescente, Acinte, Cipresinte, Orinte e Hiante, em «Cântico Semi-Rami», ou, mais
flagrante ainda, Almeia, Azual, Transe, Stringe e Elance, em «Edd’ora Addio... – Mia
Soave».
Repare-se ainda que a musicalidade neste poema de Ângelo de Lima não se
reduz ao jogo de sonoridades do verso, pois prolonga-se em ressonâncias interiores e
exteriores ao texto, tornando-o um «laboratório do sentido»19. A própria ilusão
referencial vai fazer com que os signos deste poema, meticulosamente arrumados no
verso, se apropriem do carácter irreferenciável, polivalente e extensivo do símbolo. A
relação convencional entre significante e significado ficará, deste modo, anulada pela
secreta musicalidade de que se revestem as palavras. Em «Edd’ora Addio», a
libertação de ritmos contribui para a sugestão sonora, criando múltiplas possibilidades
associativas entre as palavras e fazendo do texto um espaço ilimitado de sensações,
emoções e sentimentos.
O predomínio do vocabulário maiusculado complexamente evocativo nos
textos de Ângelo de Lima, fruto do surgimento de termos pouco usuais, de outros
deformados sob a aplicação de afixos ou pela supressão de formas, do recurso aos
latinismos e da própria criação neológica, corrobora a renovação linguística e
estilística levada a cabo pelos poetas do Simbolismo na revalorização do valor musical
das palavras20. O poema «Olhos de Lobas!»21 é exemplificativo de uma linguagem
subjugada a um equilíbrio fonético do verso, fazendo aparecer termos como

18
Termos como «Espasma», no poema «Cântico Semi-Rami», e «Espeos», em «Ocaso», por
exemplo, dificilmente serão descodificados se vistos fora do contexto; mas, quando colocados no verso,
percebe-se, pelo menos, a sua classe gramatical: «E Errou Espasma Noutes sem Termino» – adjectivo;
«– Povos – Orai no Espeos Divinal...» – substantivo (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit.,
pp. 77 e 69, respectivamente).
19
Expressão de Mireille Calle-Gruber, «Anamorphoses Textuelles», Poétique, 42, Paris, Seuil,
Abril de 1980, p. 250.
20
Segundo José Carlos Seabra Pereira, «Nesta sua inaudita preocupação formal (no melhor
sentido), o Simbolismo entrega-se a uma alta valorização da palavra em si, ou antes, da beleza do
significante» (Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos
Românicos, 1975, p. 89).
21
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 54.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 123

«Exaustinados», «desdeixados» e «Fulgisse» ou expressões como «criptas d’um


Jazigo Tumular», «Perpétuas Febris» e «Luz do Olhar das Lobas Amorosas».
O tratamento musical que se acentua neste e noutros poemas de Ângelo de
Lima aproxima-os do rigor de Camilo Pessanha22. No cruzamento das imagens visual
e sonora, através do símbolo e das sinestesias, os níveis simbólicos do plano
conotativo salientam em Pessanha uma poesia baseada na estética da sugestão: «a
invocação do modo simbolista da sugestão não impede, antes permite, um gesto
decifrador que declara claramente legível um texto, que, no entanto, se reconhece ter
muitas leituras»23. As elipses, os hiatos, as frases nominais, o anacoluto, as reticências,
as perguntas e as exclamações enfáticas são, em Ângelo de Lima e em Camilo
Pessanha, fenómenos portadores de correspondências sugestivas, que pretendem
formular o mundo e não representá-lo24. Na tentativa de aproximação da poesia à
música, o próprio soneto, tão meticulosamente pensado e realizado por Pessanha e tão
subversivamente desarrumado em Ângelo de Lima, faz aparecer uma série de
cambiantes, que, através de reorganizações sintácticas, suspensões frásicas e da livre
colocação de acentos no verso, imprimem ao poema um ritmo quebrado e irregular,
contribuindo, na poética portuguesa, para o avanço em direcção ao verso livre e a
esquemas prosódicos maleáveis e diversificados.
Compreende-se, pois, o interesse que o grupo de Orpheu manifestou pelos dois

22
Posição defendida por Fernando Guimarães («Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob.
cit., p. 16). Jorge de Sena vai mais longe, argumentando que a linha representada por Camilo Pessanha
«foi levada à pura música e angustiosa imaginação com a criação audaciosa de palavras e distorções de
sintaxe por Ângelo de Lima» [«Literatura Portuguesa (Europeia e do Brasil Colonial)», in Amor e
Outros Verbetes, Lisboa, Edições 70, 1992, p. 253]. A complexa proximidade entre os dois poetas
agudiza-se no cruzamento dos versos do poema «Dizem os sábios que já nada ignoram», de Ângelo de
Lima, com a curta «Inscrição», que abre a obra poética Clepsydra de Pessanha, mais concretamente na
coincidência rímica de verme com inerme (cf. Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 35) ou
de inerme com verme (cf. Camilo Pessanha, Clepsidra, Lisboa, Editorial Comunicação, 1979, p. 67).
23
Gustavo Rubim, «Traços Fugitivos: a Inscrição em Camilo Pessanha», in A Inscrição
Espectral – Poética do Vestígio em Camilo Pessanha, Dissertação de Doutoramento, Lisboa,
Universidade Nova de Lisboa, 1998, p. 40.
24
Ângelo de Lima e Camilo Pessanha perseguem, de diferentes modos, mas sustentados por
um pensamento comum, o desejo de Stéphane Mallarmé: «sugerir, eis o sonho [...] Deve haver sempre
enigma na poesia, e o objectivo da literatura – não há quaisquer outros – é evocar os objectos» («Sur
L’Évolution Littéraire», in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1945, p. 869).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 124

poetas de um «Simbolismo sem escola»25, ao publicar alguns poemas de Ângelo de


Lima em Orpheu (1915) e o essencial de Pessanha na revista Centauro (1916). É que
os poetas simbolistas «representam o grande limiar a partir do qual estas inovações se
tornarão mais perturbadoras e radicais com a próxima chegada dos modernistas»26.
Além dos aspectos formais, ao tactear alguns dos motivos simbolistas, Ângelo
de Lima comprova ser devedor daquela corrente literária. Destacam-se agora alguns
exemplos temáticos explorados na sua poesia:

- a paisagem esfumada e crepuscular traduz a melancolia e a aceitação da


morte (cf. «Sozinho» e «Edd’ora Addio... – Mia Soave»);
- a dolorosa sensação de efemeridade (cf. «Epitáfio»);
- a aniquilação do sentir – a mors liberatrix (cf. «Vai, sobre o sombrio
abismo»);
- inquietação religiosa (cf. «Miserere», «Deus» e «Qual?...»);
- o fado humano na predestinação da angústia e da desgraça (cf. «Fado»);
- a incidência sobre a patologia e o delírio, concretizados na dor do
pensamento (cf. «Pára-me de repente o Pensamento...»);
- a procura das sugestões do inconsciente e do onírico (cf. «Sonhos»);
- o gosto pelo exótico, sob a forma de mitos e lendas orientais (cf. «Neitha-
-Kri», «Cântico Semi-Rami» e «Ninive»)27.

Seria ainda possível fazer coincidir alguns aspectos biográficos de Ângelo de


Lima e o modus vivendi simbolista-decadentista: as confusas ligações entre o génio
artístico e a insanidade mental; o desvio erótico percebido na tentativa de incesto com a
sua irmã e, de uma forma explícita, num dos seus poemas (cf. «Cântico Semi-Rami»);

25
Cf. Fernando Cabral Martins, Poesia Simbolista Portuguesa, Lisboa, Editorial
Comunicação, 1990, pp. 27-28. A ligação entre os dois poetas, e, em última análise, entre estes e os de
Orpheu, foi feita, por exemplo, no panfleto de arte Lácio: os poemas «Neitha-Kri», «Ninive» e «Estes
Versos Antigos Que Eu Dizia», de Ângelo de Lima, foram publicados na Antologia da Poesia Viva,
juntamente com os poemas de Camilo Pessanha (cf. Lácio, 1, Lisboa, Fevereiro de 1938). Os números
2 e 3 são dedicados, respectivamente, a Mário de Sá-Carneiro e a Fernando Pessoa.
26
Fernando Guimarães, «Camilo Pessanha e os Caminhos de Transformação da Poesia
Portuguesa», Colóquio/Letras, 60, Lisboa, Março de 1981, p. 38.
27
As temáticas simbolistas destacadas neste parágrafo foram retiradas de José Carlos Seabra
Pereira, Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, ob. cit., pp. 71-86 e 262-356.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 125

o alcoolismo; o tormento interior, os medos, as forças superiores e misteriosas


traduzidas nas suas cartas; o devaneio, a nevrose, a morbidez e a dor do isolamento; e,
por fim, o rótulo de poeta maldito que o acompanhou para além da morte. Sublinhe-se
também a participação de Ângelo de Lima em opúsculos literários portuenses, na sua
generalidade ligados ao círculo de influência do Simbolismo, como n’ A Geração
Nova, publicando «Eu ontem vi-te» no oitavo número em 1894, e na revista A Arte,
onde deu à estampa o poema «Súplica», no terceiro número, em 189528.
Por tudo o que foi dito, compreende-se a posição de Fernando Guimarães, ao
defender persistentemente a inclusão de Ângelo de Lima no Simbolismo português29.
Mas, paralelamente, verifica-se que o seu discurso poético – talvez de uma forma não
consciente ou involuntária – traduz uma estratégia de antecipação poético-estética que
em muito se assemelha às atitudes vanguardistas que se lhe seguiram,
consubstanciando-se, paradoxalmente porém, através da marca deixada por correntes
literárias anteriores, como de resto acontece com toda a poesia da Modernidade, que
vive de avanços e de recuos, entre o novo e a tradição30.

28
Sobre as revistas A Geração Nova e A Arte, cf. José Carlos Seabra Pereira, idem, p. 218.
29
Cf. «Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit., p. 18; Simbolismo, Modernismo e
Vanguardas, Lisboa, INCM, 1982, p. 19; Poética do Simbolismo em Portugal, Lisboa, INCM, 1990,
pp. 13 e 38-39. Salienta-se ainda a selecção de poemas de Ângelo de Lima que Fernando Guimarães
apresenta em duas antologias poéticas do Simbolismo: «Tédio», «Neitha-Kri», «Edd’ora Addio... – Mia
Soave», «Não Tinha» e «Olhos de Lobas!» (idem, pp. 209-212); e estes três últimos com o poema «O
Mar...», em Simbolismo, Saudosismo e Modernismo: Antologia de Poesia Portuguesa do Século XX,
Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2001, pp. 79-82. Também Fernando Cabral Martins inclui na
antologia Poesia Simbolista Portuguesa os poemas «Eu ontem vi-te...», «Pára-me de repente o
Pensamento...», «Sonhos» e «Dizem os sábios que já nada ignoram» (in ob. cit., pp. 141-145).
30
Acerca do paradoxo tradição/ruptura, cf. Octavio Paz, Los Hijos del Limo, Barcelona, Seix
Barral, 1998, passim. O próprio movimento de Orpheu foi devedor da oposição pós-simbolismo /
vanguardismo: com marcas simbolistas, decadentistas e saudosistas, congregando o passado e o
presente, os modernistas portugueses projectaram a sua poesia no futuro, incorporando as novas
tendências europeias. Sobre o hibridismo do movimento órfico, cf., entre outros, Fernando Guimarães,
«A Geração do Orpheu e o Simbolismo», in Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, ob. cit., pp.
35-43, e O Modernismo Português e a sua Poética, Porto, Lello Editores, 1999, pp. 69-70; Fernando J.
B. Martinho, «Fernando Pessoa e a Problemática das Influências Literárias», in Pessoa e a Moderna
Poesia Portuguesa – do «Orpheu» a 1960, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991, pp.
17-26; e Jorge de Sena, «Prefácio», in Poesia do Século XX, Porto, Editorial Inova, 1978, pp. 38-46.
Ver ainda Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, 1966, p. 126. Mas
nem por isso «podemos [...] [considerar Ângelo de Lima] rigorosamente como um poeta da geração do
Orpheu» (Fernando Guimarães, «Ângelo de Lima: Poeta do Orpheu», Diário de Lisboa, Lisboa, 22 de
Outubro de 1970, p. 4).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 126

Da Continuidade na Ruptura

Com evidentes traços românticos e simbolistas, Ângelo de Lima junta-se aos


poetas da primeira vanguarda portuguesa, quando, no número dois da revista Orpheu,
Fernando Pessoa lhe publica um conjunto de poemas que, de alguma forma, traduzem
o espírito subversivo do grupo31. Além dos motivos já expostos no primeiro capítulo
do presente estudo, os literatos da Brasileira procuravam no poeta de Rilhafoles uma
extensão das suas inovações vanguardistas, tendo em vista o desmoronamento da
poética dominante. O certo é que a sua passagem pelo Orpheu não ficou por aqui,
acabando por, sem ter disso Ângelo noção e longe da percepção de Pessoa, fazer
aparecer um outro tipo de implicações estéticas.
Como salientou Luís Adriano Carlos, ao transformar as matrizes
convencionais do significante linguístico-poético, a poesia de Ângelo de Lima excede
a do grupo órfico, concluindo o processo interseccionista – que, nas suas mãos, havia
ficado pelo plano dos significados – e antecipando modelos de significação que outras
figuras e movimentos iriam privilegiar. Verifica-se, pois, em Ângelo de Lima a
expressão do «interseccionismo morfológico», transpondo desta forma o
interseccionismo sintáctico-semântico de Fernando Pessoa, que ficou iconizado pelo
poema «Chuva Oblíqua», publicado em Orpheu 2. O ismo pessoano, apropriando-se
da linguagem plástica do cubismo, recaía sobretudo na sobreposição de percepções,

31
Na verdade, muito pouco se sabe da relação do poeta com os de Orpheu. Afonso de Castro
refere que Ângelo de Lima tinha obtido permissão, no Hospital de Rilhafoles, para sair à noite,
passando a frequentar a «Brasileira do Chiado» («Ângelo de Lima», O Diabo, Lisboa, 16 de Maio de
1937, p. 5). A ser verdade, poderá Ângelo de Lima ter conhecido nesse café o grupo de Fernando
Pessoa. Percebe-se nas cartas de Mário de Sá-Carneiro a Pessoa uma curiosidade pelos poemas de
Ângelo de Lima (cf. Mário de Sá-Carneiro, Correspondência com Fernando Pessoa, vol. II, Lisboa,
Relógio d’Água, 2003, p. 34). Também Almada Negreiros, a propósito da loucura, refere-se-lhe num
dos seus poemas: «Já alguém sentiu a loucura vestir de repente o nosso corpo? // Já. // E tomar a forma
dos objectos? // Sim. // E acender relâmpagos no pensamento? // Também. // E às vezes parecer ser o
fim? // Exactamente. // Como o cavalo do soneto do Ângelo de Lima? // Tal e qual.» («Reconhecimento
à Loucura», in Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, pp. 156-157).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 127

presentes ou ausentes, reais ou oníricas, e na consequente intersecção de planos


temáticos, mas mantendo ilesas as formas convencionais do significante32.
Com a poesia de Ângelo de Lima, através da utilização dos «raros vocábulos»
de difícil reconhecimento, da invenção de palavras que não chegam a ser actualizadas,
do aproveitamento deformador dos arcaísmos e da transformação dos significantes,
quer por associação não regrada de elementos mais ou menos semantizados quer por
aglutinação, o interseccionismo semântico de Orpheu é prolongado até atingir a
própria dissolução. Sustentando múltiplos desvios linguísticos e formais, o seu
discurso fragmentado atinge o estádio enigmático do pré-verbal.
O poema «Epitáfio»33, publicado pela primeira vez nas Folhas de Poesia, em
1957, sob organização de António Salvado, aproxima-se, ainda que muito subtilmente,
do interseccionismo modernista. Além do cruzamento de tempos verbais, entre o
passado e o presente (palpitou, vibrou, veio, parou / dorme, descansa, chamam, é), e
da oposição de dois estados, Vida/Morte, os versos deste poema carregam o peso das
reticências, incentivadoras das frases nominais, e entregam-se ao poder sonoro de
vocábulos como Coração, História, Amor, Comovente Glória, Fatal, Místera e
Sombria, Morte e Despiedade, Invencível, Sagrada, Transe e Efémera Ilusão.
Das oito composições inéditas publicadas em Orpheu 2, o poema «– Estes
Versos Antigos Que Eu Dizia»34 parece evidenciar alguns lances interseccionistas,
nomeadamente na sobreposição de tempos psíquicos («Lembram Ainda?... –
Lembrarão um Dia...»), na intersecção de ideias («– Nas Memórias Dispersas
Recolhidas [...] D’Algum Livro de Cousas Esquecidas?...»), bem como na
fragmentação do Eu que se adivinha com a Morte («– Acaso o Que Ora Canta...
Vive... Existe // Nunca Mais Lembrará – Eternamente?... // – E, Vindo do Não-Ser,
Vai, Finalmente, // Dormir no Nada... Majestoso e Triste?...»).

32
«Entre duas Efemérides: Evocação de Ângelo de Lima», Critério, 1, Porto, Universidade
Católica Portuguesa, Maio de 1937, p. 9, e «Elegia da Loucura», Apeadeiro, 2, Vila Nova de
Famalicão, Quasi Edições, Primavera de 2002, p. 136.
33
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 70.
34
Idem, p. 87, ou em Orpheu, Lisboa, Contexto, 1994, p. 93.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 128

Mais elucidativo ainda das possíveis afinidades de Ângelo com o primeiro


movimento modernista é talvez o poema «Edd’ora Addio... – Mia Soave!...»35,
dedicado pelo seu autor aos «amigos de Orpheu». Com toda a certeza sem o saber,
Ângelo de Lima concretizava com este texto a «ambiguidade órfica», «pela
sobreposição de estados diferenciados da língua», nas palavras de José Augusto
Seabra36. Na verdade, e em rigor, como já se assinalou, a intersecção atinge o nível
morfológico da linguagem no pleno esmagamento dos significantes: intersectando Dia
com Morta, descobre-se «Mia» e «Dorta»; «Ave» emerge da sequência da forma
verbal «Vae», da qual forma seu anagrama; «Soave» dilui-se em Sou Ave ou Suave;
«Azual» atribui o género feminino à cor azul, adjectivando «Mariposa». Mas estes
vocábulos aparentemente desagregados, na própria composição e/ou nas relações que
estabelecem com todos os outros, encontram o seu equilíbrio na sugestiva sonoridade
dos versos, fundindo-se nos fragmentos latinos e italianos, como «Edd’ora», «Addio»
e «C’or». Uma linguagem assim labutada a partir do inconsciente é capaz de conciliar
a expressão do Eu fragmentário perante a Morte («Dorto... Stringe... o Corpo
Elance...») e a do Eu que acredita na ascese da alma, para que, finalmente, «Il C’or
descanse».
A libertação dos significantes gera, deste modo, a ficção do signo, ao mesmo
tempo que encaminha a linguagem para o seu estado primitivo. Sob este aspecto,
nenhum poeta de Orpheu superou Ângelo de Lima. Compreende-se, pois, a afirmação
seniana de que o nosso poeta seria «um dos cursos traídos do Modernismo
português»37, tornando-se os Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena a continuidade
consciente de um percurso iniciado inconscientemente.
Da colaboração de Ângelo de Lima na revista Orpheu, distinguem-se ainda os
poemas «Neitha-Kri» e «Cântico Semi-Rami»38, que deixam antever uma possível

35
Excepcionalmente, utilizar-se-á para citação deste poema a versão publicada em Orpheu 2,
ob. cit., p. 93.
36
«Tempo e Texto de Orpheu», in Poligrafias Poéticas, Porto, Lello & Irmão Editores, 1994,
p. 279.
37
Jorge de Sena, «Post-fácio – 1963», in Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1998, p. 159.
38
Orpheu, ob. cit., pp. 88-90 e 87-88, respectivamente; ou Ângelo de Lima, Poesias
Completas, ob. cit., pp. 78-81 e 75-77.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 129

contracção entre o sujeito poético, isto é, o Eu da enunciação, e o Eu poeta39, fusão


essa camuflada pela justaposição de diferentes alusões míticas que contagiam as
próprias palavras, tornando-as aglutinadoras de significados perdidos. No texto de
Semiramis, a «Noute» acolhe a «Memória Dolorosa» do sujeito poético, «que Perdeu
a Esp’rança, // E Errou [...] Noutes sem Termino», lembrando «os Tempos de
Criança», vagando «como a Sombra da Saudade». Em «Neitha-Kri», as dimensões
temporais são continuamente sobrepostas, entre o passado e o presente, nas memórias
que, em jeito de confissão, encontram o conforto na «Noute Imensa pela Imensidão» e
adivinham o futuro «– Meu Amor – o Sem Fim – gera a Loucura!».
Estes dois poemas, associados a «Ninive», a «– E a Mãe do Rei do Reino Sul-
-Occaso», e a «– Quantos... desde Chu-Si a Kuan-Su», na redescoberta do gosto pelo
exótico, evocam o mundo oriental. Com laivos simbolistas-decadentistas, estas
alusões místicas tomam uma das formas da evasão no tempo e no espaço: Alfredo
Pedro Guisado deixou-se envolver pelo «Sonho Egípcio»; Mário de Sá-Carneiro
percorre outras distâncias «Num sonho d’Íris», entre «Tapêtes doutras Persias [...]
Cortinados de Chinas mais marfim... Aureos Templos de ritos de setim [...]
Zimbórios-panthéons de nostalgias [...] Novas Bysancios-alma, outras Turquias»; o
heterónimo Álvaro de Campos, em «Opiário», diz ir «buscar ao ópio que consóla»,
num navio «Pelo canal de Suez», «Um Oriente ao oriente do Oriente»; o próprio
Fernando Pessoa, na terceira parte de «Chuva Oblíqua», cria um espaço alternativo
pela intersecção do passado histórico mitificado (evocando referências como
«Egypto», «Esphynge», «pyramides», «rei Cheops» e «Nilo») e o momento presente
da escrita, projectado numa dimensão simbólica que procura reflectir sobre os poderes
da composição poética40.

39
António de Navarro, «Estudo para um Ensaio – Ângelo de Lima», Presença, 31-32,
Coimbra, Março-Junho de 1931, pp. 11-13.
40
Orpheu, ob. cit.: Alfredo Pedro Guisado, p. 44; Mário de Sá-Carneiro: versos de «Distante
Melodia...», p. 13; Álvaro de Campos, pp. 71-76, e Fernando Pessoa, p. 162. As referências egípcias
presentes em alguns poemas de Ângelo de Lima constituem um dos elementos que levariam Georg
Rudolf Lind a levantar a hipótese de Fernando Pessoa, «na qualidade de redactor responsável de
Orpheu II», ter retocado os esboços originais do poeta de Rilhafoles. Como justifica Lind, «os motivos
egípcios do Cântico Semi-Rami reaparecem na Chuva Oblíqua do próprio Pessoa», ao que acrescenta
«o número elevado de noções cultas nestas oito poesias, ausentes – ou quase ausentes – do resto das
poesias de Ângelo de Lima». O crítico remata dizendo que estes poemas publicados em Orpheu 2 «têm
uma elaboração artística consciente, que não encontramos na restante produção» (recensão crítica a
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 130

Os textos de Ângelo de Lima acusam, pois, alguns rasgos do estilo paúlico,


reminiscências claras do Simbolismo e do Decadentismo, insuficientes, porém, para
que se possa afirmar que constituem um caso típico de Paùlismo41. Como se pode
observar em «Ninive»42, o exotismo do tema, o cenário oriental, as reticências e as
exclamações desgovernadas, além do uso anárquico das maiúsculas, não bastam para
conferir ao texto um carácter paúlico, de acordo com a expressão que lhe deu a
geração de Orpheu.
O Paùlismo foi entendido como a primeira estética do grupo, derivando a sua
designação da primeira palavra do poema «Impressões do Crepúsculo»43, publicado
no único número da revista A Renascença, em 1913. Pretendeu Fernando Pessoa, ao
aproximar o Paùlismo daquilo a que chamou «ultra-decadentismo»44, afastar-se da
estética da poesia saudosista, acabando os poetas de Orpheu, no entanto, por glosar os
seus temas. Mário de Sá-Carneiro terá sido o mais paúlico do grupo, expressando um
dramático simbolismo em poemas como «Salomé» e «Apoteose», publicados em

«Ângelo de Lima, Poesias Completas», Colóquio/Letras, 3, Lisboa, Setembro de 1971, p. 78). Esta
hipótese, aliás bem difícil de provar, seria objecto de rejeição por parte de Fernando Guimarães. Ao
comparar os poemas escritos antes e depois da referida publicação, o crítico conclui que essa diferença
qualitativa não é assim tão linear como Lind faz crer. Além disso, coloca uma questão, a meu ver,
fundamental e decisiva nesta controversa possibilidade: se Fernando Pessoa tivesse efectivamente
retocado as composições mais extensas de Ângelo, por que razão não o teria feito também nos textos
mais curtos, como no fragmentado poema «– Eras... nos Tempos Antes da Idade...»? Parece-me haver
ainda um outro argumento importante sublinhado pelo organizador das poesias de Ângelo de Lima: «a
ocorrente perturbação da contiguidade textual [...] abre novas direcções [...] no domínio expressivo, que
se não esgotaram totalmente até à poesia dos nossos dias» (cf. «Uma Hipótese sobre Ângelo de Lima»,
Colóquio/Letras, 5, Lisboa, Janeiro de 1972, pp. 64-65).
41
Esta posição é assumida por Maria Aliete Galhoz, que considera Ângelo de Lima paúlico à
margem do Paùlismo («O Momento Poético do Orpheu», in Orpheu, Lisboa, Edições Ática, 1959, p.
XXXVI); bem como por João Gaspar Simões, que o aproxima mais do interseccionismo [«Ângelo de
Lima, Poesias Completas», in Crítica II (Poetas Contemporâneos 1960-1980), Tomo II, Lisboa,
INCM, 1999, p. 52].
42
Orpheu, ob. cit., p. 91; ou Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 82.
43
José de Almada Negreiros, porém, propõe os Paludes de André Gide na origem do termo
Paùlismo, provavelmente como forma de mostrar a abertura da geração de Orpheu à cultura europeia
(Almada Negreiros, Orpheu 1915-1965, Lisboa, Ática, 1965, p. 11).
44
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, ob. cit., p. 126. Cf. José Augusto Seabra, «Tempo
e Texto de Orpheu», in ob. cit., pp. 270-277, e Fernando Guimarães, Simbolismo, Modernismo e
Vanguardas, ob. cit., p. 26. Ver ainda «Tentativa de um Ensaio sobre a Decadência», de Luís de
Montalvor, Centauro, Lisboa, Contexto, 1982, pp. 7-12.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 131

Orpheu 145. Estes textos celebram singularmente a estética paúlica, chegando mesmo
a perceber-se em «Apoteose» certas afinidades com o poema-referência do Paùlismo,
«Pauis», apoiando-se no seu restrito vocabulário e traçando as temáticas deste ismo,
mas superando-o, pois levou-o mais longe do que qualquer outro poeta de Orpheu.
Em «Salomé», na libertação das imagens perceptivas, a insónia roxa, a luz
morta de luar, o aroma que virou cor, as sombras fátuas, o sujeito poético mantém-se
vigilante perante a Morte que se desenha no espaço que o rodeia. Desta forma, o
discurso faz intervir a regência anómala («Ela chama-me em Íris», «A doida quer
morrer-me»), a frase nominal ou infinitiva («Luz morta de luar, mais Alma do que a
lua...», «A luz a virgular-se em medo») e o neologismo («virgular-se», «upou-se»,
«mordoura-se») na intensificação visionária das correspondências, com sentido
baudelairiano, entre o sujeito e a sensação que o próprio percepciona, resultando na
objectivação do domínio subjectivo.
Sá-Carneiro vive obsessivamente o drama, também pessoano, da fragmentação
do Eu, visível em muitos dos seus versos, dos quais se destacam: «E em metade de
mim hoje só moro» («Apoteose»), «Eu não sou eu nem sou o outro, // Sou qualquer
coisa de intermédio» («7»), «– Por sôbre o que Eu não sou há grandes pontes // Que
um outro, só metade, quer passar» («Angulo»), todos pertencentes a poemas
publicados em Orpheu 146. Esta problemática expressão existencial estende-se aliás,
embora sem a mesma projecção, aos outros elementos do grupo, como a Ronald de
Carvalho: «e sinto [...] a sombra do que sou morrer em mim...» («A Alma que
Passa»), a Armando Côrtes-Rodrigues: «Fui Outro e, Outro sendo, Outro serei»
(«Outro»), que, com Violante de Cysneiros, cede ao encanto da heteronímia, e a Luís
de Montalvor: «Miro-me, e não serei a sombra onde me vi?...» («Narciso»)47.

45
Ob. cit., pp. 10 e 17, respectivamente. Maria Aliete Galhoz refere que, a Sá-Carneiro, «o
paùlismo é adequação íntima e vital. Corresponde à obsessiva canção de um ego em enamoramento
reflexo, denso e fruste, queixoso de libertação e amargado de grotesco» («O Momento Poético do
Orpheu», in ob. cit., p. XL). Sobre o Paùlismo em Sá-Carneiro, ver ainda Fernando M. Cabral Martins,
«Formação do Discurso Paúlico», in Mário de Sá-Carneiro e o Modernismo, Dissertação de
Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, 1992, pp. 248-255, e Fernando J. B. Martinho, Pessoa e
a Moderna Poesia Portuguesa – do «Orpheu» a 1960, ob. cit., pp. 38-40.
46
Orpheu, ob. cit., pp. 17, 14 e 15, respectivamente.
47
Idem, pp. 21, 67 e 157, respectivamente.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 132

Mas a ficção do sujeito será vivida de forma singular por Fernando Pessoa. A
sua obra heterónima terá sido concebida como resposta ao desejo de ser Outro48. O
sentir-se múltiplo deu origem a uma multiplicidade de discursos, procurando Pessoa
ultrapassar a fragmentaridade humana na confrontação directa entre identidade e
alteridade e, deste modo, alcançar a totalidade do espírito. Os seus heterónimos
representarão a corporização de sensações psíquicas contraditórias, ou seja, a
expressão da plurissubjectividade que tão declaradamente o invadia e da qual estava
consciente.
A seu modo, e com alcances totalmente diferentes – basta pensar-se que não
fez delas autoras de textos –, Ângelo de Lima vivificou-se em personagens como
Neitha-Kri e Semiramis. Não se pretende, porém, fazer qualquer tipo de comparação
com o desdobramento pessoano, mas apenas verificar que, se no caso Pessoa há uma
tendência para a despersonalização e multiplicação do eu, Ângelo de Lima, pelo
contrário, ao habitar outro, ao falar através do outro, ao apropriar-se dos seus
sentimentos, deseja solidificar a sua identidade. Nesse sentido convergente, o poeta
ocupa personagens ocasionais, julgando, no entanto, que não deixa de ser ele próprio.
Acontece que, depois de Rimbaud e das teorias freudianas, o confronto entre o eu
romântico e o eu moderno torna-se inevitável, acabando Ângelo de Lima por
manifestar na sua poesia uma outra vertente da crise do sujeito que o afirma como um
eu polifacetado vivendo da vontade de ser sempre outro49.
A experiência órfica da pluralidade traduzirá o desígnio sensacionista da
expressão de todas as sensações, sintetizado na «Ode Triunfal» da autoria de Álvaro
de Campos, em Orpheu 1. Sob a forma de um «Ultimatum» tipicamente futurista, o
«sentir tudo de todas as maneiras» foi assim clarificado por Álvaro de Campos:

Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que


sente por vários. [...] O que é preciso é o artista que sinta por um certo número de

48
Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, ob. cit., pp. 93-94.
49
Com efeito, através do nome disseminado, do nome falso ou do nome-máscara, Ângelo de
Lima acabará por dar uma nova expressão ao projecto da «dissimulação do sujeito», atribuindo-se um
nome-plural, onde se vê e onde o leitor poderá ver o verdadeiro real (as expressões sublinhadas foram
utilizadas tendo em conta os conceitos de Martine Broda, «De l’Amour d’un Nom aux Faux Noms de
l’Amour», Poétique, 55, Paris, Seuil, Setembro de 1983, pp. 294-300).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 133

Outros, todos diferentes uns dos outros, uns do passado, outros do presente,
outros do futuro. [...] Nenhum artista deverá ter só uma personalidade.50

O sensacionismo viu-se então imbuído de um quase-futurismo, numa clara


tentativa de afastamento do tradicionalismo e do provincianismo portugueses. Se, por
um lado, ainda assiste a Orpheu algo do legado simbolista-decadentista, por outro,
aventuram-se os seus poetas no contacto com os manifestos das vanguardas europeias,
associando-se a vontade de ruptura com o desejo de superar temporal e espacialmente
as fronteiras literárias portuguesas. É que «As ideias são sensações, mas de coisas não
situadas no espaço e, por vezes, nem mesmo situadas no tempo»51. O futurismo
português, referenciado por Álvaro de Campos e Almada Negreiros, pretendia
instaurar uma nova visão de mundo, chegando mesmo o seu versilibrismo a atingir a
força dos grafismos de Marinetti, sustentados no primeiro Manifesto de 1909.
Embora os versos de Ângelo de Lima surjam, por vezes, carregados de
exaltações traduzidas em frases infinitivas e exclamativas desembaraçadas dos apertos
sintácticos, abusando das maiúsculas e das palavras novas, ou portadores de arrojados
arranjos gráficos, que coincidiriam com algumas das premissas futuristas52 e que
desmistificariam os modelos canónicos da versificação portuguesa, não foi possível
ver nos seus textos a «Objectividade Absoluta, a eliminação [...] de tudo quanto é
sentimento, emoção, lirismo, subjectividade»53. Repare-se que o poeta chegou mesmo
a participar da prática subversiva do soneto, que, à semelhança do que ocorre no
Modernismo, se torna objecto de variadas experimentações. Tal como foi referido no
capítulo anterior, também Ângelo de Lima recorre ao enjambement, eliminando, deste
modo, um dos preceitos-base do soneto clássico, que pressupunha uma pausa no final

50
Portugal Futurista, Lisboa, Contexto, 1981, pp. 33-34.
51
Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, ob. cit., p. 186. Acerca da
posição vanguardista do grupo de Orpheu, dirá Fernando Pessoa: «Não somos portugueses que
escrevem para portugueses; [...] somos portugueses que escrevem para a Europa [...] e avançamos para
o futuro» (idem, pp. 121-122).
52
Cf. «Manifesto Técnico da Literatura Futurista», de 1912, sobre o tratamento do aspecto
expressivo do Futurismo [in Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro (Antologia de Manifestos),
Petrópolis, Vozes, 1972, pp. 70-74].
53
Definição de Futurismo, Fernando Pessoa, em carta ao Diário de Notícias, Lisboa, 4 de
Junho de 1915.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 134

de cada verso. O poeta antecipa assim uma estratégia formal que viria a ser
experienciada pelos modernistas portugueses, entre eles Álvaro de Campos. «Ah, um
Soneto...», publicado em 1932 na Presença, realiza plenamente o encadeamento dos
versos, desprezando a harmonia cadencial: «Meu coração é um almirante louco // Que
abandonou a profissão do mar // E a que vai relembrando pouco a pouco // Em casa a
passear, a passear...»54. Recorde-se ainda que alguns sonetos de Ângelo de Lima não
perfazem o total dos catorze versos. Paralelamente, o poema «Estou escrevendo
sonetos regulares» tipifica uma vontade do heterónimo pessoano em deixar versos em
branco no final da suposta segunda quadra e do suposto segundo terceto, daí
acrescentar logo no segundo verso «(Ou quasi regulares) [...]» e confessar a «dor
completa» de «taes gestos e taes ares»55.
Entre o irreal, o imaginário e o alucinatório, o poeta de Rilhafoles comunica
através da subversão formal estados de alma e sensações com profundas raízes no
inconsciente, acabando por tocar, ainda que ao de leve, em quase todos os ismos do
primeiro movimento modernista português. Esta constatação levou Maria Aliete
Galhoz a afirmar que Ângelo de Lima «cabe válida e autenticamente nele»56. O
próprio Fernando Pessoa, numa nota publicada no terceiro número da revista Sudoeste
dedicado aos que foram de Orpheu, não esquece a colaboração de Ângelo de Lima e
afirma a seu respeito: «não deixamos de, saudosamente, fazer lembrar quem, não
sendo nosso, todavia se tornou nosso»57.

54
Álvaro de Campos, Livro de Versos, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p. 300.
55
Idem, p. 301.
56
Em Ângelo de Lima «está o brilho paúlico da sedução das imagens; a cintilação sensual das
sinestesias; o transcendentalismo das interrogações metafóricas; a futurista liberdade da disposição
gráfica» (Maria Aliete Galhoz, ob. cit., pp. XLVIII-XLIX).
57
«Nós os de Orpheu», Sudoeste, 3, Lisboa, Novembro de 1935. Para alguns críticos literários,
a poesia de Ângelo de Lima acabou por ficar circunscrita à sua participação no Orpheu (cf., por
exemplo, José-Augusto França, A Arte e a Sociedade Portuguesa no Século XX, Lisboa, Livros
Horizonte, 1980, p. 18, ou António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa,
Porto, Porto Editora, 1987, p. 1046). É que dessa ligação vão dando provas algumas publicações
literárias como o Cancioneiro do I Salão dos Independentes (1930) e a revista Sudoeste (1935), que
tinham como colaboradores alguns elementos da extinta revista Orpheu e outros da Presença. O
segundo Modernismo português acabará então por reiterar esta tendência, publicando um estudo sobre a
poesia de Ângelo de Lima, assinado por António de Navarro (Presença, 31-32, Coimbra, Março-Junho
de 1931, pp. 11-13), e dando a conhecer dois inéditos, «O Mar» (idem, 46, Outubro de 1935, p. 11) e
«Viver» (idem, 1, 2ª série, Novembro de 1939, p. 43).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 135

Sempre à margem, porém, do movimento modernista seu contemporâneo, bem


como havia sido em relação às últimas manifestações simbolistas, a poesia de Ângelo
de Lima aponta para outras direcções, precipitando as novas tendências literárias que
surgem em Portugal em meados do século XX, nomeadamente o Surrealismo, que,
com quase vinte anos de atraso em relação ao movimento francês, pretendeu traduzir,
ainda que à sua maneira, o projecto estético bretoniano baseado na libertação total do
espírito. Dadas as múltiplas interpretações que o Surrealismo fez aparecer,
inclusivamente no espaço literário português, optar-se-á por abordar este fenómeno a
partir da sua concepção inicial, isto é, a partir dos princípios fundadores definidos nos
seus Manifestos, e daí estabelecer uma possível ligação com o caso Ângelo de Lima.
A recuperação poética do pensamento alienado, através da expressão do
inconsciente na associação livre de ideias, traduz uma das mais importantes
reivindicações surrealistas. Compreendendo bem a missiva de Breton, os surrealistas
portugueses fizeram de Ângelo de Lima um precursor, pois viram na sua poesia um
campo exploratório da psique humana. Procurando traçar uma rede de conexões entre
poetas de várias gerações literárias, à semelhança do que haviam feito os surrealistas
franceses, Mário de Cesariny e os seus companheiros não hesitaram em assumir uma
posição surrealista decorrente da obra de Sá-Carneiro, Rimbaud, Apollinaire, Artaud,
Novalis, entre outros, e das alucinações de Gomes Leal e – claro está – de Ângelo de
Lima58.
Os surrealistas seguiriam Arthur Rimbaud na exploração poética das visões,
não em função da inspiração romântica, mas como forma de trabalho alquímico e
instrumento de conhecimento. Na famosa «Carta do Vidente», na ânsia de alcançar o
desconhecido, os surrealistas encontram a expressão de um dos seus mais importantes
princípios: a proposta de uma linguagem nova através de um «long, immense et
raisonné dérèglement de tous les sens»59. A fórmula «Je est un autre» anuncia a
dualidade do ser que se separa, gerando um outro, seu duplo, mas que é o mesmo,
58
A Intervenção Surrealista, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, p. 157. Perfecto Cuadrado
destacou muito pertinentemente, num aparte, que Ângelo de Lima teria também sido proclamado
precursor dos surrealistas por Breton, se este o tivesse conhecido (ob. cit., p. 89). Sobre o interesse dos
surrealistas pela esquizofrenia, ver André Blavier, Les Fous Littéraires, Paris, Éditions des Cendres,
2001, pp. 22-25.
59
«Correspondance», in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1951, p. 254.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 136

porque aquele que escreve é um outro que o possui, tornando-se o poeta um ser
possuído. Desta forma, com as alucinações de Rimbaud, o grande revelador da
realidade-outra, o caminho para a surrealidade estava aberto.
A poesia de Ângelo de Lima, enquanto expressão pura de um espírito
atormentado pela doença que por vezes o dominava, libertando-a de qualquer tipo de
amarras, concretizava naturalmente o que os surrealistas cultivavam com a «escrita
automática»: o seu ser, possuído por um outro, mas sem os estímulos dos paraísos
artificiais de que falava Baudelaire e tão explorados pelos surrealistas, penetra
naquele espaço de correspondências que está interdito ao homem comum. O conteúdo
do soneto «Pára-me de repente o pensamento...» acabaria, então, por traduzir o estado
de inconsciência que os surrealistas tanto desejaram exprimir, em formas quanto
possível não premeditadas, sob condições psíquicas particulares, como os sonhos, as
visões e as alucinações60. «Ante um Abismo... ante seus pés rasgado...»61, o sujeito
poético vê-se à beira de uma nova dimensão psíquica, a latente, que termina com o seu
sofrimento no estado de vigília. No jovem surrealista António Maria Lisboa,
descobriu-se uma expressão paralela à de Ângelo de Lima nos versos finais do poema
«Conjugação», embora o seu alcance se limite à mensagem surrealista de que o acto
poético pressupõe o livre pensamento:

olhar uma paisagem em frente e ver um abismo


ver o abismo e sentir uma pedrada nas costas
sentir a pedrada e imaginar-se sem pensar de repente

NUM TÚMULO EXAUSTIVO.62

Em ambos os poemas, porém, o «abismo» corresponde ao estado-limite, entre


o consciente e o inconsciente, ou seja, à passagem para a interioridade através das
profundezas do espírito, lá onde se afigura possível atingir o desconhecido e sintonizar

60
André Breton refere no primeiro manifesto que os loucos «retiram um grande conforto da
sua imaginação, que saboreiam suficientemente o seu delírio»; logo, «as alucinações, as ilusões, etc.,
não são uma fonte de prazer a desprezar» (in Manifestos do Surrealismo, Lisboa, Edições Salamandra,
1993, p. 17).
61
Verso pertencente a «Pára-me de repente o Pensamento...» (in Ângelo de Lima, Poesias
Completas, ob. cit., p. 52).
62
António Maria Lisboa, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 62.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 137

o mistério dos mundos. Enquanto António Maria Lisboa tem consciência da


necessária «pedrada nas costas», leia-se um qualquer estímulo provocado
artificialmente para alcançar essa totalidade, no poema «Vai, sobre o sombrio
abismo», Ângelo de Lima mostra que a passagem libertadora do espírito pode ser feita
pelo sonho: «Sacia o longo tormento!... // – Sonha!... e sonhando te esquece!....»63.
Tal como as alucinações e as visões, o sonho, embora artificialmente
despertado pela hipnose, foi considerado pelos surrealistas como um verdadeiro
método de trabalho na procura ansiosa do Eu autêntico. Como «exercício da faculdade
imaginante no estado puro, livre de todas as inibições da vigília», o sonho «é o
domínio da liberdade absoluta»64, tornando-se, para os surrealistas, um campo
privilegiado na descoberta daqueles desejos reprimidos no estado de vigília. O
Surrealismo também foi, segundo Franco Fortini, «um método para as investigações
de certas experiências psicológicas [...] e para a sua expressão mediante o emprego de
técnicas [...] literárias ou artísticas»65. Fortemente influenciados pelas teorias
freudianas acerca do sonho, os surrealistas franceses descobrem nesta actividade
psíquica o encontro com o discurso do inconsciente e logo a transferem para o
trabalho poético. Terá sido por esta razão que Breton, no primeiro Manifesto,
convocou o exemplo de Saint-Pol-Roux, que, à hora de adormecer, colocava um
letreiro na porta onde se podia ler «O poeta está a trabalhar»66.
Este interesse pela parte obscura da mente humana estendeu-se a outros
domínios, acabando mesmo por interferir ao nível da linguagem poética. Na fusão dos
dois estados «aparentemente tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, numa
espécie de realidade absoluta»67, o surrealista tenta exprimir através da arte a síntese
dos opostos, criando imaginativamente a «surrealidade» e beneficiando da livre
63
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., p. 47.
64
Robert Bréchon, Le Surréalisme, Paris, Armand Colin, 1971, pp. 39 e 45. No manifesto de
1924, Breton tece um longo comentário sobre as íntimas relações entre o estado de vigília e o estado
onírico, acreditando que o sonho, enquanto continuidade e organização do pensamento do estado de
vigília, pode, nas suas palavras, «ser aplicado à resolução dos problemas fundamentais da vida» (in
Manifestos do Surrealismo, ob. cit., p. 23).
65
O Movimento Surrealista, Lisboa, Editorial Presença, 1980, p. 10. Cf. Álvaro Cardoso
Gomes, A Estética Surrealista, S. Paulo, Editora Atlas, 1995, pp. 24-25.
66
«Manifesto do Surrealismo (1924)», in ob. cit., p. 25.
67
André Breton, idem, pp. 24-25.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 138

expressão do pensamento. Com a criação de uma nova linguagem, pretendiam pôr fim
à insuficiência de palavras e superar a distância entre realidade e inconsciente. A
apropriação surrealista do discurso espontâneo acabou por trazer inevitáveis
consequências para o domínio da escrita, provocando insólitas conjugações de ideias
através de inesperadas analogias entre palavras incompatíveis e, consequentemente,
subvertendo os códigos linguísticos dominantes.
Também a poesia de Ângelo de Lima é confrontada com estranhas associações
de significantes que, por sua vez, se desdobram em vários significados, actualizando
deste modo uma nova realidade. Por ter sido inconscientemente motivada, a sua
linguagem, enquanto instrumento de exploração e de revelação de um novo universo,
estaria mais próxima da «realidade absoluta», no sentido que lhe atribuiu Breton68.
Uma tal linguagem «oferece uma extraordinária lucidez», pois «foi dada ao homem
para ele fazer dela um uso surrealista»69.
A linguagem como factor de transgressão – voluntária pelos surrealistas,
involuntária pelos loucos – acabaria por comprometer «o sempre tão desejado acordo
que existiria entre a natureza, a sociedade e a cultura», de que fala Fernando
Guimarães a propósito da loucura70. Com o Surrealismo, conforme observa Álvaro
Cardoso Gomes:

não só se alteram os códigos convencionais, como também os pontos de


referência que balizam a relação leitor e/ou espectador com a obra de arte [...] O
resultado é uma arte sempre contraditória em si mesma (a partir da sua negação
enquanto arte), provocadora, inquietadora e criadora de abismos, pelo fato de

68
Idem, p. 25.
69
André Breton, idem, pp. 42 e 41, respectivamente. Breton referir-se-ia à necessária
intervenção surrealista no campo da linguagem para a libertar do uso medíocre ou da sua condição
puramente utilitária. Sobre esta questão, cf. André Breton, «Do Surrealismo em suas Obras Vivas
(1953)», in idem, pp. 311-313, e Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier, O Surrealismo, Coimbra,
Almedina, 1976, pp. 113-116.
70
Fernando Guimarães, «Acerca da Poesia de Ângelo de Lima», in ob. cit. p. 13. Repare-se
que o «discurso do interior» tão proclamado na Modernidade, nomeadamente pelos surrealistas, é
marcadamente semelhante ao discurso produzido pelos esquizofrénicos, mas em nenhum momento,
excepto aquando do inicial cruzamento com o movimento Dada, desejou esse discurso evocar o «não-
-verbal» (cf. Louis Sass, Madness and Modernism, ob. cit., pp. 193-194).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 139

visar conscientemente à desorientação, com o fito de tirar o homem do marasmo a


que a sociedade burguesa o condenou.71

Embora já longe do niilismo vocabular dadaísta, em nome da espontaneidade e


do automatismo, os surrealistas recusam obedecer a quaisquer doutrinas estéticas: «a
obra surrealista procura criar uma irritação intelectual, o sentimento de uma falta, um
desafio ou uma provocação»72.
Em poemas como «Thora...», «Rhada» ou «Viver», ou ainda «Edane!» e
«Fado», facilmente se encontram vocábulos que parecem ter surgido pelo poder
evocativo de outras palavras ou ainda expressões que servem de suporte a uma cadeia
de orações que só aparentemente evidenciam uma sucessão automática73. Embora o
seu discurso veicule a expressão de uma espontaneidade natural, dificilmente se
distingue na poesia de Ângelo de Lima qualquer trabalho automático sobre as
palavras. Pelo contrário, em alguns momentos, as estranhas associações vocabulares,
conquanto imprevisíveis, deixam transparecer um princípio de base na construção
textual, nomeadamente com o recurso à metamorfose do significante. Talvez por isso
Ângelo de Lima tenha conseguido atingir uma outra forma de «escrita automática»,
paradoxalmente sem o recurso às técnicas laboradas pelos surrealistas.
O que possivelmente aproxima e, simultaneamente, afasta o Surrealismo de
Ângelo de Lima terá sido a transgressão formal levada ao seu limite pela força do
inconsciente. Mas se para o Surrealismo a revolução foi essencialmente semântica,
visando a reorganização lógico-sintáctica do discurso e, por consequência, a ruptura
da relação significante/significado, em Ângelo de Lima, a destruição desta unidade
sígnica foi resultante de uma transgressão morfológica. Incidindo claramente ao nível
do significante linguístico, através da transformação metaplasmática, das colagens
silábicas, da derivação paronomástica, dos pseudo-neologismos e das fusões

71
A Estética Surrealista, ob. cit., pp. 31-32.
72
Robert Bréchon, Le Surréalisme, ob. cit., p. 154. A mesma posição contra o aprisionamento
de critérios estéticos é tomada pelos surrealistas portugueses: «A literatura nunca nos ocupará
demasiado» (Mário Cesariny, «Sem título» (1948), in A Intervenção Surrealista, ob. cit., p. 88).
73
A antecipação da «escrita automática» nas suas composições revela-se, pois, de difícil
comprovação: por um lado, dificilmente se consegue perceber o grau de automatismo num determinado
texto; por outro, se esse automatismo existiu, poderá ter sido instigado pela própria patologia psíquica.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 140

sintagmáticas, essa transgressão distanciava-se da via sintáctico-semântica percorrida


tanto pelo Surrealismo como pelo Interseccionismo.
Para melhor se exemplificar esta questão, recorra-se ainda, na sua poesia, ao
uso de palavras estranhas à língua, os hapax legomena, abordados no capítulo
anterior. Encontram-se nesta forma de criação vocabular – de certa maneira
redescoberta nos «vocábulos raros» simbolistas e, mais tarde, utilizada também,
embora sob diferentes condições, pelos surrealistas e pelos letristas – significantes que
suscitam o seu próprio significado. São «actos-palavras» e não «palavras que supõem
actos»74, pois o signo deixa de conter o referente para ser um significante em busca de
um sentido.
Mas este trabalho sobre a palavra acabou por ser também contestado pelos
surrealistas, embora numa fase já tardia do movimento. Em 1953, num balanço à
prática surrealista, André Breton vem acentuar o facto de que as suas experiências no
campo da linguagem «de modo nenhum dependiam [...] do critério estético», pelo que
a emancipação da linguagem era mais do que necessária depois de «Lautréamont,
Rimbaud, Mallarmé, [...] Lewis Carroll [...] do futurismo, [...] [do movimento] dada,
[...] James Joyce, E. E. Cummings, Henri Michaux», revolução essa que «não podia
deixar de levar ao letrismo»75. O certo é que a arbitrariedade da «escrita automática»
nunca implicou a invenção de palavras, o desmembramento sintáctico nem a
desintegração do vocabulário, argumentos que afastariam o Surrealismo da corrente
transgressora encetada pela maior parte dos nomes citados. Consciente desse facto,
Breton explica que na base dessa divergência estão «modos de apreensão do mundo
que diferem completamente», embora «traduzam um comum desejo de insurreição
contra a tirania de uma linguagem totalmente envilecida»76.

74
Expressão de António Maria Lisboa, «Cartas», in ob. cit., p. 209.
75
«Do Surrealismo em suas Obras Vivas», in Manifestos do Surrealismo, ob. cit., pp. 311-312.
76
Idem, p. 312. No entanto, alguns dos surrealistas dissidentes ou à margem, como Robert
Desnos, Henri Michaux, Antonin Artaud, Prévert e Queneau, em França, ou António Maria Lisboa,
Mário Cesariny e Alexandre O’Neill, em Portugal, desfrutaram de algumas técnicas poéticas
conducentes à libertação morfológica (cf. Luís Adriano Carlos, «Poesia Moderna e Dissolução»,
Línguas e Literaturas, VI, Porto, FLUP, 1989, pp. 257-258).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 141

Como destacou Luís Adriano Carlos, serão pois os letristas franceses a dar
continuidade a uma via não explorada pelos surrealistas ortodoxos77. Liderado por
Isidore Isou, «o último destruidor na linha dos grandes destruidores»78, o Letrismo
pretenderá, em 1947, acabar com os últimos resquícios do Surrealismo e, por outro
lado, instaurar a «poesia das letras» e pôr fim a «dois mil anos de poesia-em-
-palavras»79. Procurando redescobrir a poesia universal, as suas técnicas passam pela
valorização sonora de cada letra do alfabeto. Ora, é este estado pré-verbal, entrevisto
em alguns dos versos de Ângelo de Lima, que o aproxima dos objectivos da poesia
letrista. Esvaziando os significantes do seu significado, através das justaposições e das
mutilações silábicas, o nosso poeta mais não faz do que valorizar o som de cada letra,
contribuindo antecipadamente na passagem de uma «nova poesia» para uma «nova
música», reclamada pelo grupo de Isou em meados do século XX.
Repare-se que a experiência linguístico-poética de então já não se ficava pela
exploração do desfasamento entre significante e significado, circunscrevendo a sua
acção sobre o significante de maneira a descobrir-lhe a substância primitiva. Tratou-
-se, de facto, de tentar impor uma criatividade modificadora das formas de dispor o
material verbal, como viria a acontecer, de resto, com o Experimentalismo português e
o Concretismo brasileiro.
Pelo que foi dito, não será difícil compreender os motivos que terão levado os
experimentalistas a incluir um poema de Ângelo de Lima na antologia da Poesia
Experimental I em 1964. Carregando a sua poesia uma forte sugestão visual, o autor
de «Edd’ora Addio... Mia Soave...» anuncia a experimentação subversiva na própria
superfície do texto, através da dissolução sintáctica (no recurso a suspensões e
elipses), do uso intempestivo da pontuação e das maiúsculas (que deixam os
vocábulos à deriva no verso), da perturbação do significante (pelo desaparecimento

77
Cf. Luís Adriano Carlos, ibidem.
78
Isidore Isou, Introduction à une Nouvelle Poésie et à une Nouvelle Musique, Paris,
Gallimard, 1947, p. 38.
79
Jean-Paul Curtay, La Poésie Lettriste, Paris, Seghers, 1974, p. 19; sublinhado meu. Segundo
Isidore Isou, os dadaístas, apesar da pretensa destruição da linguagem espelhada em quase todos os seus
manifestos (cf. Tristan Tzara, Sept Manifestes Dada, Paris, Edições Jean-Jacques Pauvert, 1963), não
abandonaram a «palavra», deixando «intacto o principal objecto a destruir». O mesmo terá acontecido,
ainda no seu entender, com os surrealistas, que dos dadaístas receberam a «palavra-herança» (cf.
Introduction à une Nouvelle Poésie et à une Nouvelle Musique, ob. cit., p. 37).
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 142

inusitado de fonemas e das estranhas associações morfemáticas), e aproxima-se


daqueles que, em torno de Melo e Castro e Ana Hatherly, vão, entre os anos 50 e 60,
revalorizar o objecto através da linguagem substantivada, na esteira do grupo
concretista brasileiro liderado por Haroldo de Campos.
Assumindo simultaneamente uma posição de ruptura em relação ao que se ia
fazendo em Portugal em meados do século, nomeadamente com os neo-realistas e
com os surrealistas, e uma posição de tradição decorrente do movimento da Poesia
Concreta no Brasil e na Europa nos anos 50, e de outros movimentos de vanguarda de
início do século, como o Futurismo e o Dadaísmo, explica Ana Hatherly que esta
experiência remonta ainda às «principais formas de texto-visual praticadas no Barroco
português»80. Uma investigação histórica das raízes milenárias da Poesia Visual
portuguesa levou a referida autora a encontrar afinidades técnicas entre as
composições dos anos 60 e as criações medievais e barrocas. Sem «revivalismo», os
labirintos e os anagramas, conjuntamente com outros processos inventivos da escrita
poética, revelavam-se «tão eficazes no passado como no presente»81.
A par desta reabilitação do barroco, há muito iniciada nos estudos literários,
estava o gosto pela escrita e pelo jogo da escrita através do materialismo linguístico e
experimental. A exploração do poema enquanto objecto textual foi apresentada por
Melo e Castro como forma de resistência em muitos textos de reflexão crítica: ao
actuarem como «objectos autónomos»82, as palavras adquirem «uma projecção no
espaço da página abrindo-se num esforço que as esvazia de todos os prévios
significados e significações»83. A palavra concentra em si esse espaço de resistência,

80
«Prólogo», in A Casa das Musas, Lisboa, Editorial Estampa, 1995, p. 10. Acerca dos
motivos na origem deste interesse pela poesia barroca, cf. p. 13. Ver ainda o texto «Experimentalismo,
Barroco e Neobarroco», in idem, pp. 187-193, e, da mesma autora, A Experiência do Prodígio: Bases
Teóricas e Antologia de Textos-Visuais Portugueses dos Séculos XVII e XVIII, Lisboa, INCM, 1983.
81
Ana Hatherly, A Casa das Musas, ob. cit., p. 179. A revalorização de certos recursos
estilísticos da escrita maneirista e barroca daria aos poetas experimentais um outro entendimento da
tradição poética portuguesa e constituiria, «mais uma maneira provocatória de manifestar a sua
oposição ao establishment», [Ana Hatherly, prefácio a Concreta. Experimental. Visual (Poesia
Portuguesa 1959-1989), Bolonha, Universidade de Bolonha, 1989, p. 5].
82
«Introdução», in Antologia de Poesia Concreta em Portugal, Lisboa, Assírio & Alvim,
1973, p. 14.
83
E. M. de Melo e Castro, «A Proposição 2.01», in Po-Ex / Textos Teóricos e Documentos da
Poesia Experimental Portuguesa, Lisboa, Moraes Editores, 1981, p. 128.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 143

opondo-se a um sistema sem dialogar com ele. O poema visual surgirá, portanto,
como um texto que leva ao «silêncio da escrita» e que «conduz o leitor à reflexão
sobre o silêncio das palavras»84.
Também na poesia de Ângelo de Lima se desenha um jogo verbal permeável à
sugestão sonora, à desconstrução semântica e à releitura visual, a que se associa o
efeito de transformação linguística, implicando, tal como reclama Ana Hatherly para a
Poesia Experimental, «uma leitura anagramática», que implica «saber ler o texto sob
o texto»85. Assim, no «Cântico Semi-Rami»86, sob pena de se aprisionar a leitura do
texto, o vocábulo «Semi-Rami» não poderá ser entendido apenas como sendo
resultante do nome próprio Semiramis. Essa derivação, importante aliás na
interpretação do poema, é francamente limitadora se se pensar nas possibilidades
associativas que a simples inversão das letras que compõem o vocábulo pode sugerir:
miseriam. Valorizando cada letra que constitui o anagrama de «Semi-Rami», situação
tão cara a letristas e experimentalistas, pela relação que existe entre o que a palavra
expressa e o que se reflecte na própria expressão do texto, transforma-se a escrita num
labirinto de chaves-de-leitura:

M Matrona, Mistério
I Ideais, Inconsciente
S Silenciosa, Sensitiva, Sacrifício, Senhora, Saudade
E Estrelas, Esp’ranças
R Religiosa, Rosa, Revés
I Inebriante, Inferno, Imensidade
A Amor, Amante, Adolescente, Adulterin
M Memória

O mesmo labirinto de significações poderia ser descoberto a partir dos valores


fonemáticos das palavras noutros textos de Ângelo de Lima, como no emblemático
«Edd’ora Addio...», escolhido por António Aragão e Herberto Helder para, ao lado de

84
Ana Hatherly, «A Reinvenção da Leitura», in idem, p. 150.
85
Idem, p. 143.
86
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 75-77.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 144

«Os Chamados Disparates da Índia» de Luís de Camões e «Ditirambo» de Mário


Cesariny, constar na antologia de Poesia Experimental. Este poema, quer pela força
aliterativa dos vocábulos construídos a partir de raízes latinas, quer pelos neologismos
de circunstância, criados pelo equilíbrio sonoro do verso, adquire uma
comunicabilidade próxima da musical. No entanto, não será esta a razão, pelo menos
principal, da escolha de Melo e Castro. É que esse carácter melódico sugestivo arrasta
consigo uma série de planos, simbioticamente estruturados, que destroem a
linearidade da leitura e exigem uma interpretação dinâmica e orgânica. Propondo-se
num espaço aberto de infinitas significações, «Edd’ora Addio...» impõe a participação
do leitor também ao nível da criação, aproximando-se do duplo objectivo do poema
«Un Coup de Dés» de Stéphane Mallarmé: «utilizar, ao mesmo tempo, todos os
modos de comunicação para conduzir a uma compreensão total e aprofundar o poema
nos planos temporal e espacial ao mesmo tempo»87. Compreende-se, pois, que «Un
Coup de Dés» tenha sido apontado como um dos textos precursores do Concretismo e
do Experimentalismo: segundo Hatherly, o poema-objecto tem, simultaneamente, de
ser visto e lido e é desse equilíbrio «imagístico-plástico» que resulta a desconstrução
discursiva da poesia visual88.
A própria desmistificação do soneto, levada a cabo por Ângelo de Lima em
poemas como «Pára-me de repente o Pensamento...», «Vita!...», «Ocaso» e
«Edane»89, representa, no contexto da Poesia Experimental, uma acção subversiva
sobre a apresentação convencional do texto e, ao mesmo tempo, uma experimentação
que desembocaria na dinâmica dimensão visual da escrita90. Contra a falsa e gasta
tradição do discurso sentimental ou retórico, «porque já tudo está dito e redito», os
experimentalistas redescobrem nas experiências de carácter visual e linguístico «a

87
Gilberto Mendonça Teles, Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro (Antologia de
Manifestos), ob. cit., p. 46. Cf. Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro, Po-Ex / Textos Teóricos e
Documentos da Poesia Experimental Portuguesa, ob. cit., p. 99.
88
Ana Hatherly, idem, p. 97. Cf. E. M. de Melo e Castro, As Vanguardas na Poesia
Portuguesa do Século XX, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980, pp. 78-80.
89
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 52, 68, 69 e 73, respectivamente.
90
Veja-se o livro de E. M. de Melo e Castro, Poligonia do Soneto, Lisboa, Guimarães
Editores, 1963, passim.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 145

mecânica estrutural de organizar e propor relações sintácticas com objectos e


sinais»91.
O fascínio dos substantivos isolados que se verificam, por exemplo, em
«Rhada» e «Viver», ou mais flagrantemente ainda em «Thora»92, à deriva nos versos
pela força da pontuação, a par dos impulsos frásicos ininterruptos e da sintaxe
distorcida, levaria Óscar Lopes a referir que seriam «coisas que, superiormente
integradas, permitiriam [...] estruturas como as da poesia concretista»93. Ângelo de
Lima estaria a trinta anos de distância dessa possibilidade, mas muito próximo da
substantivação da palavra e, consequentemente, da tentativa experimentalista da
redução do pensamento a esquema.
Todas estas tendências de Vanguarda, do Modernismo ao Experimentalismo,
fundem uma atitude estética de preservação com uma atitude de ruptura. Através da
analogia, numa rede de correspondências entre passado, presente e futuro, a
Modernidade caracteriza-se dialecticamente pela ruptura, quando é crítica e se nega a
si mesma, e pela tradição, quando se repete na negação para continuar-se94. José
Ortega Y Gasset refere então que as «gerações» com vertente vanguardista nascem
umas das outras, apresentando-se simultaneamente como um espaço de
homogeneidade, entre o recebido e o próprio, e um espaço de heterogeneidade,
enquanto edificam o novo e assumem uma identidade diferente da anterior95. Tome-se
como exemplo o caso português: no Modernismo, a geração de Orpheu assumiu um
compromisso entre o «polémico», de que dá conta a «Ode Marítima», por exemplo,
com todos os traços das correntes modernas, e o «acumulativo», nas relações de
homogeneidade com o Saudosismo, o Decadentismo e o Simbolismo, ou até mesmo
com o Romantismo, se se pensar na influência de Woodsworth em Pessoa; do mesmo
modo, o Surrealismo apresentou-se como uma geração anacrónica, exacerbando os

91
E. M. de Melo e Castro, «Experimental – Estrutura», in Po-Ex / Textos Teóricos e
Documentos da Poesia Experimental Portuguesa, ob. cit., pp. 70-71.
92
Ângelo de Lima, Poesias Completas, ob. cit., pp. 62, 88 e 67, respectivamente.
93
«Outras Personalidades do Primeiro Modernismo», in Entre Fialho e Nemésio (Estudos de
Literatura Portuguesa Contemporânea II), Lisboa, INCM, 1987, p. 584.
94
Octavio Paz, Los Hijos del Limo, Barcelona, Seix Barral, 1998, p. 147.
95
Cf. «La Idea de las Generaciones», in El Tema de Nuestro Tiempo, Madrid, El Arquero,
1966, pp. 4-10.
ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA 146

ideais românticos e actualizando as crenças simbolistas, e, simultaneamente, como


uma geração moderna, quando os supera, negando a tradição; o Experimentalismo,
nomeadamente com a revalorização do barroco, vê-se ligado ao passado para se impor
no futuro, ou seja, apropriou-se da tradição para combater a tradição e, assim, se
afirmar como um momento de ruptura.
À luz da concepção da différance de Jacques Derrida, em função da dualidade
espaço/tempo, afigura-se possível, pelo poder mágico da palavra, pelo poder
reconstrutivo da desconstrução discursiva, desfazer as fronteiras entre as oposições,
sobretudo entre sujeito e objecto, e promover a irredutibilidade do significante ao
significado, ou seja, accionar as palavras separadas da intenção primária de significar,
restaurando o estranhamento da obra literária através das complexas analogias entre
poetas de diferentes gerações. Derrida designa por différance «o movimento pelo qual
a língua, ou qualquer código, qualquer esquema de reenvios em geral se constitui
‘historicamente’ como tecido de diferenças». Este fenómeno «é o que faz com que o
movimento da significação não seja possível a não ser que cada elemento dito
‘presente’ [...] se relacione com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a
marca do elemento passado e [...] [a] marca da sua relação com o elemento futuro»96.
O poema «Edd’ora Addio... Mia Soave!...» de Ângelo de Lima, reservando o
carácter enigmático do texto moderno, através do rompimento claro com o modo
directo de dizer o mundo, encontrará referências a todas as tendências literárias que
invistam as palavras do poder criador dos seus próprios significados na exploração
textual das suas potencialidades sonoras. É precisamente num contexto paradoxal,
entre tradição e ruptura, que deve ser perspectivada a poesia de Ângelo de Lima, pois
só assim se poderá compreender que um poeta de descendência simbolista possa
deslocar-se no tempo e antecipar a negação face a um passado, reiterando, no entanto,
valores que, a partir do Romantismo, se tornaram intemporais.

96
Jacques Derrida, «A Diferença», in Margens da Filosofia, Porto, Rés, s/d, pp. 42-44. Sobre a
desconstrução textual, cf. do mesmo autor, «Carta a un Amigo Japonés», in El Tiempo de una Tesis:
Desconstrucion y Implicaciones Conceptuales, Barcelona, Proyecto A. Ediciones, 1997, pp. 23-27
(carta publicada em Psyché. Inventions de l’autre, Paris, Galilée, 1987). As questões ligadas ao
conceito de desconstrução perpassam quase a totalidade da obra de Jacques Derrida, mesmo quando o
termo não está explícito. No entanto, a aplicação prática deste conceito pode ser encontrada em La
Carte Postale, de Socrate à Freud et au-delà (Paris, Flammarion, 1980), onde, através da fragmentação
do texto, Derrida exercita a desconstrução discursiva.
CONCLUSÃO

A transfiguração do significante em Ângelo de Lima e a sua inclusão numa


corrente de textos representativos do anfigurismo moderno impossibilitam a sua mera
e simples classificação como «poeta louco» ou como «poeta de Orpheu». Reserva-se,
no entanto, a ideia da importância que a loucura ou a participação na revista do
primeiro Modernismo português teve para a projecção do poeta. Por tudo o que foi
dito nesta reflexão, esse enquadramento só poderá ser entendido como uma
valorização e nunca como uma limitação. Quer isto dizer que, se a loucura esteve
presente na sua poesia, foi como sinónimo de libertação interior e exterior,
autorizando o arrojo morfossintáctico, a audácia do discurso e o desprendimento das
formas convencionais da versificação. Como sublinha Michel Foucault, «Só há
loucura como instante último da obra», pois «onde há obra, não há loucura; e no
entanto a loucura é contemporânea da obra, dado que ela inaugura o tempo de sua
verdade»1. E o fenómeno Orpheu, enquanto movimento libertador da criação, do
pensamento e da expressão literária, tornou possível o entendimento das estruturas
deformantes caracterizadoras da poesia de Ângelo de Lima, ainda que sem o saber, ao
actualizar e validar a experimentação sobre a palavra poética.
Na inexistência de palavras que traduzam o pensamento inefável, «Vindo do
Não-Ser»2, Ângelo de Lima ousa experimentar na busca do signo perfeito, alargando
os limites da linguagem, e, consequentemente, do seu mundo3. A procura de uma
linguagem mais próxima das fontes do Sentido é para o poeta da Modernidade a única
via de superação da escassez de palavras. Para habitar essa nova realidade, o poeta – é
o caso de Ângelo de Lima – incarna uma tendência para a rejeição dos imperativos
comunicacionais, tornando-se a palavra um objecto independente e fonte de múltiplas

1
História da Loucura, S. Paulo, Editora Perspectiva, 1999, p. 530.
2
Cf. Ângelo de Lima, «– Estes Versos Antigos Que Eu Dizia», in Poesias Completas, Lisboa,
Assírio & Alvim, 1991, p. 87.
3
No sentido da proposição de Ludwig Wittgenstein «Os limites da minha linguagem são os
limites do meu mundo» (Tratado Lógico-Filosófico: Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1987, p. 114).
CONCLUSÃO 148

significações. Por conseguinte, no entender de Tzvetan Todorov, a reacção contra a


representação (clássica, obviamente) dá-se a partir do século XX segundo um regime
de esquizofrenia, pois «não é o mundo habitualmente representado que se tenta
substituir por um outro mundo, é a própria representação que deve dar lugar à não-
-representação»4. Os limites entre o homem louco e o poeta excessivo esbatem-se
quando a literatura adquire a consciência de que não é o homem que possui a
linguagem, mas é a linguagem que o possui a ele.
O discurso de Ângelo de Lima caracteriza-se singularmente pela imprecisão da
linguagem, pela intensidade da sugestão, pelas flutuações de significado e
consequentes interpretações contraditórias. Os seus poemas vivem do poder sugestivo
das palavras deformadas e nunca conformadas: palavras sem amarra, palavras que se
convocam e que se associam pelo som, palavras que se atravessam, que se fundem e
que confundem, palavras carregadas de variados sentidos, palavras que são o resultado
das infinitas possibilidades sonoras da linguagem.
A homofonia surge então como uma possibilidade de contornar as tensões que,
nos textos de Ângelo de Lima, se instalam entre as novas unidades significantes,
aproximando-os da poética simbolista. Parafraseando Ivan Fónagy, o contraste que
poderá advir da mensagem que as palavras transmitem e da mensagem sugerida pelas
sonoridades desenrola um trabalho imaginativo que procura resolver a aparente
incompatibilidade5. Ao accionar determinados mecanismos destrutivo-construtivos na
superfície morfológica da língua, como o hapax legomenon, o mot-valise, a
paronomásia, a aliteração, a metátese ou o anagrama, entre outros processos, Ângelo
de Lima desemboca numa prática retórica experienciada no limite pelos movimentos
literários de ruptura. Através da exploração de algumas características do anfigurismo
retórico, o poeta anuncia certas tendências desenvolvidas posteriormente no meio
literário português, nomeadamente com o Surrealismo e com o Experimentalismo,
sobretudo ao nível da pulsão onírica que transparece em alguns dos seus poemas, na
investida sobre o significante ou na reorganização lógico-sintagmática. Graças a ele, a

4
Relativamente à reacção literária contra a representação na Modernidade, Todorov distingue
entre reacção paranóica, perseguida pelos românticos e pelos simbolistas, e reacção esquizofrénica,
patenteada pelas correntes posteriores (cf. «O Discurso Psicótico», in Os Géneros do Discurso, Lisboa,
Edições 70, 1981, p. 89).
5
«Le Langage Poétique: Forme et Function», Diogène, 51, Paris, Gallimard, 1965, p. 91.
CONCLUSÃO 149

poesia portuguesa do século XX atravessa um triplo processo de «experimentação das


formas, imaginação do signo e remotivação da linguagem», levado aos limites do
possível semiológico, factores que dão origem a «uma espécie de epistemologia
poética da dissolução»6.
O efeito aliterativo associado ao efeito de estranheza caracteriza aquilo a que
Barthes chama «texto de prazer»: «a palavra pode ser erótica [...] se for repetida a todo
o custo, ou pelo contrário se for inesperada, suculenta pela novidade»7. Deste modo,
com a hegemonia do significante redescobre-se o amor das palavras. Através do
«Sentir tudo de todas as maneiras»8, o signo será coberto de emoção, paixão e
imaginação, como todo o signo estético digno desse nome. O texto é um lugar
múltiplo, aberto a infinitas possibilidades de leitura, mas exigindo a cumplicidade
amorosa do leitor.
Enquanto emotividade patológica, a loucura acabará naturalmente por ser
transferida para um outro plano, longínquo e apagado, quando nas estruturas
expressivas da linguagem se encontra o sentido do excesso9. Uma vez submetido a
operações de invenção, deformação ou intersecção, o significante assume em Ângelo
de Lima uma condição alucinatória e uma semiótica potencial, transformando-se o
psicótico em «psicóptico»: «o psicótico é um psicóptico arrombando a casa do ser
semiótico»10.
A luz da significação, em Ângelo de Lima, vem até nós dos confins das trevas
da razão e do abismo discursivo, lá onde mora o sem-fim da poesia: «Meu Amor – o
Sem Fim – gera a Loucura!»11.

6
Luís Adriano Carlos, «Poesia Moderna e Dissolução», Línguas e Literaturas, VI, Porto, FLUP,
1989, p. 252.
7
Roland Barthes, O Prazer do Texto, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 84. O autor destaca ainda
que «para que [a palavra] consiga deportar para muito longe o significado [...] isso granula, isso faz
ruído, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui» (idem, p. 116).
8
Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Lisboa, Ática, 1966, p. 124.
9
Segundo Yaguello, a «palavra louco [...] comporta uma ambiguidade [...] O louco não é
somente aquele que não responde aos critérios da normalidade; é também aquele que ama com
excesso» (Marina Yaguello, Les Fous du Langage, Paris, Seuil, 1984, p. 46).
10
Luís Adriano Carlos, «Elegia da Loucura», Apeadeiro, 2, Vila Nova de Famalicão, Quasi
Edições, Primavera de 2002, p. 137. «Psicóptico» é um mot-valise do autor resultante da intersecção
dos significantes «psicótico» + «óptico».
11
Ângelo de Lima, «Neitha-Kri», in Poesias Completas, ob. cit., p. 81.
ANEXOS
BIBLIOGRAFIA
178

Bibliografia Activa

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ÍNDICE

Agradecimentos ............................................................................................... 3
Nota Prévia ..................................................................................................... 4

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 5

LOUCURA E LINGUAGEM ................................................................................... 9

Esquizofrenia e Modernidade .................................................................... 9


A Hegemonia do Significante .................................................................... 38

POÉTICA E RETÓRICA DO ANFIGURISMO ........................................................... 54

Entre o Lisível e o Ilisível .......................................................................... 54


Intersecções e Anamorfoses ....................................................................... 65
Desintegração e Intertextualidade .............................................................. 92

ÂNGELO DE LIMA E A POSTERIDADE ANFIGÚRICA ............................................ 117

A Matriz Simbolista ................................................................................... 117


Da Continuidade na Ruptura ...................................................................... 126

CONCLUSÃO ..................................................................................................... 147

Anexos .............................................................................................................. 150


Anexo 1 ........................................................................................................ 151
Anexo 2 ........................................................................................................ 163
Anexo 3 ........................................................................................................ 167
Anexo 4 ........................................................................................................ 172

Bibliografia ..................................................................................................... 177


Activa ........................................................................................................ 178
Passiva ........................................................................................................ 179
Geral ........................................................................................................... 182
Dicionários e Enciclopédias ....................................................................... 192

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