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Manoel Luiz Gonçalves Corrêa

O MODO HETEROGÊNEO DE CONSTITUIÇÃO DA ESCRITA

Tese apresentada ao Curso de


Lingüística do Instituto de Estudos da
Linguagem do Universidade Estadual de
Campinas como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em
Lingüística

Orientadora: Prof". Dfl. Mario Bernadete


Marques Aba urre

Campinas

Instituto de Estudos da Linguagem

1997

C817m

30275/BC
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA IEL - UNICAMP

Corrêa, Manoel Luiz Gonçalves


C817m O modo heterogêneo de constituição da
escrita I Manoel Luiz Gonçalves Corrêa. - -
Campinas, SP : [s. n.], 1997.

Orientador: Mario B. Marques Aba urre


Tese (doutorado) - Universidade Estadual de
Campinas, Instituto de Estudos da Ling_uagem.

1. Escrita. 2. Imaginário. !. Abaurre, Maria


Bernadete Marques. IL Universidade Estadual de
Campinas. Instituto de Estudos d,a linguagem. 11!.
Título.

li
BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho

Prof0 • Df'. Helena Hathsue Nagamine Brandão

Pro f. Dr. Luíz Antônio Marcuschi

Pro f. Dr. Sírio Possenti

IIl
AGRADECIMENTOS

Pelas diferentes formas de participação neste trabalho, agradeço a:

Ataliba Teixeira de Castilho

Helena Hathsue Nagamlne Brandão

Luíz Antonio Marcuschi

Maria Augusta Bastos de Mattos

Maria Cândida Drumond Mendes Barros

Neide Medeiros Santos

Raquel Salek Fiad

Sirio Possenti

Vânia Cristina Pires Nogueira Valente


(pelas conslontes e paclenie5 instruções sobre o uso do computador)

Aos colegas (Sônia e Sueli, incluídas) do Departamento de Lingüística da

FCL-UNESP, campus de Assis {SP)_

Aos colegas {C ris, Wânia e Rogério, incluídos) do Dep. de Ciências Humanas do

FAAC-UNESP, campus de Bauru {SP)-

A todos os amigos.

IV
AGRADECIMENTO ESPECIAL:

À BERNADETE,

pelo acompanhamento atento,

pelas contribuições,

por ter tornado possível a rea lfzação deste trabalho.

v
SUMÁRIO

RESUMO .............................................................................................................................. VIII

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 1
L A ESCRITA COMO OBJETO DE PESQUISA ..................................................................... I
2. A REDAÇÃO NO EVENTO VESTIBULAR ........................................................................... 3
A seleção do corpus ................................................................................................... 8

Capítulo I: O MODO HETEROGÊNEO DE CONSTITUIÇÃO DA ESCRITA .................. 18


I. A TÍTULO DE INTENÇÕES .....................................•........................................................ 18
11. PASSOS DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ................................................................... 22
[1) Breve revisão sobre letramento e oralidade ................................................... 23
(2) Das dicotomias radicais à dicotomização metodológica ........................... 27
(3} Da dicotomização metodológica ao modo heterogêneo de
constituição da escrfta ....................................................................................... 37
(4} A heterogeneidade na base semiótica do falado e do escrito ............... ,., 53
(5} Algumas percepções do modo heterogêneo de constituição do
oral/falado e do letrado/escrito ....................................................................... 69
(6) Conceituação ...................................................................................................... 86

Capítulo 2: COMO APREENDER O IMAGINÁRIO SOBRE A ESCRITA: TRÊS


EIXOS DE REPRESENTAÇÃO ........................................................................................... 89
L RASTROS DA INDIVIDUAÇÃO DOS SUJEITOS .............................................................. 90
O enfoque lingüístico ................................................................................................ 97
O uso do paradigma indiciárío na análise de textos de vestibulandos ......... 101
2. O TEXTO E O MÉTODO: PARA ONDE OLHAR ............................................................ 115
A proposta de Redação ........................... ., ............................................................ 116
Um exemplo de textuolização praticada por um vestibulando ..................... 123
Três atos de apropriação da escrito e suas marcas ........................................... 164

Capítulo 3: O ESCREVENTE E A REPRESENTAÇÃO DA GÊNESE DA ESCRITA ....... 185


I. IMPLICAÇÕES TEÓRICAS DA CONSIDERAÇÃO DO IMAGINÁRIO SOBRE A
GÊNESE DA ESCRITA ................................................................................................... 188
Duas recusas teóricas .............................................................................................. 188
2. A GÊNESE DA ESCRITA NO CONJUNTO DE TEXTOS ANALISADOS .......................... 195
Marcas sintáticas ................................................................................................. 198
Marcas prosódicas e lexicais ............................................................................. 215
Marcas organizacionais do texto ...................................................................... 241
Recursos argumentativos .................................................................................... 252
Considerações finais ............................................................................................... 264

VI
Capítulo 4: O ESCREVENTE E A REPRESENTAÇÃO DO CÓDIGO ESCRITO
INSTITUCIONALIZADO .................................................................................................... 270
I. IMPLICAÇÕES TEÕRICAS DA CONSIDERAÇÃO DO IMAGINÁRIO SOBRE O
CÓDIGO ESCRITO INSTITUCIONALIZADO ................................................................. 273
2. O CÓDIGO INSTITUCIONALIZADO NO CONJUNTO DE TEXTOS ANALISADOS ...... 287
Marcos sintáticos .................................................................................................. 289
Marcas lexícais ..................................................................................................... 305
Marcas organizacionais do texto ...................................................................... 310
Recursos argumentativos .................................................................................... 320
Marcas ortográficas ............................................................................................... 329
Considerações finais ............................................................................................... 332

Capítulo 5: O ESCREVENTE E A DIALOGIA COM O JÁ FALADO/ESCRITO ........ 338


I. IMPLICAÇÕES TEÓRICAS DA CONSIDERAÇÃO DO IMAGINÁRIO SOBRE A
DIALOGIA COM O JÁ FALADO/ESCRITO .................................................................. 345
2. A DIALOGIA COM O JÁ FALADO/ESCRITO NO CONJUNTO DE TEXTOS
ANALISADOS ...................................................................................................... 364
A presença de outro enunciador no texio do escrevente ............................... 365
As referências à própria língua ............................................................................., 375
As referências a um registro discursivo ................................................................. 380
As referências oo leitor ............................................................................................ 382
As citações da coletânea apresentada para a produção do texto ........... , 387
As remissões ao próprio texto ................................................................................. 396
Considerações finais ............................................................................................... 398

CONCLUSÃO ................................................................................................................... 404

ABSTRACT .......................................................................................................................... 413

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 415

VII
RESUMO

Este trabalho tem como proposta a caracterização de um modo

heterogêneo de constituição da escrita. Considerado o imaginário sobre a escrita

que circula pela sociedade, a questão central abordada é a da atuação da

1magem que o escrevente faz da escrita na construção do texto. A

caracterização desse modo heterogêneo de constituição da escrita está

baseada, por um lado, na percepção de vários autores de que há textos

produzJdos em pontos intermediários entre os pólos considerados típicos do

falado e do escrito; e, por outro, na atuação do princípio dialógico da linguagem

como condição de articulação de sua heterogeneidade. Primeiramente, essa

caracterização é feita pelo estabelecimento de uma conceituação do modo

heterogêneo de constituição de escrita a partir da discussão de dois pontos de

vista básicos sobre a escrita: o da visão autonomista. que trabalha com a

dicotomia radica! entre o falado e o escrito, e o da visão que relativiza essa

autonomia propondo um contínuo entre esses pólos. O segundo passo dessa

caracterização consta da fixação de uma metodologia de trabalho a partir da

criação de um espaço de observação que postula a circulação dialógica do

escrevente por três eixos de representação da escrita: o da imagem que o

escrevente faz da gênese da (sua) escrita, o da imagem que o escrevente faz do

código escrito institucionalizado e o da representação que o escrevente faz do

escrita em sua dialogia com o já falado/escrito. Ainda nesse momento de fixação

de uma metodologia, é adotado um modo particular de olhar paro os textos, a

saber. o do paradigma indicíório. tomado como base para investigação de

VIII
pistas, regularidades e propriedades lingüísticas dos textos analisados. Abordando

separadamente cada um dos três eixos propostos para observação, procede-se,

num terceiro passo. à análise de um conjunto de oitenta e três dissertações do

vestibular/1992. O funcionamento desse modo heterogêneo de constituição da

escrita evidencia o caráter específico (ao mesmo tempo, geral e particular) da

relação escrevente/linguagem, permitindo problematizar tento a visão que

considera esse modo heterogêneo como interferência do oral no escrito, como a

visão que o considera apenas como produto da retomada de modelos de escrita

institucionalizados.

PALAVRAS-CHAVE: 1. Escrita. 2. Imaginário.

IX
INTRODUÇÃO

1. A ESCRITA COMO OBJETO DE PESQUISA

Numa época em que se discute o declínio da escrita em favor de outros

modos de comunicação, sobram, ao lado dessa, muitas outras razões para o seu

estudo. A presente pesquisa, por exemplo, é movida pelo interesse em melhor

conhecer seus segredos para contribuir com esse conhecimento tanto para o

trabalho didático com o texto, como para as mais diversas áreas científicas em

que seja relevante explorar a relação sujeito/linguagem a partir da consideração

do texto escrito.

Tornada simbólica pelo homem, e guardando, embora remotamente,

marcas da capacidade imagéfica do ícone, a escrita, e em especial a escrita do

tipo alfabético, impera sobre as mais variadas formos de registro. Três razões se

destacam na sustentação desse império. Em primeiro lugar, porque, no que se

refere a sua matéria - entendida como traços gráficos passíveis de manipulação

técnica-, o fato de ser fixável no plano, isto é, de ser registrável espacialmente,

foz que, ao oferecer-se à apreensão visual, seja percebida em sua concretude.

Mas não só por essa razão. Também quanto ao caráter simbólico da escrita

alfabética, esta, ao apreender, de modo segmentalizado, o enunciado ora! e

suas unidades significantes - fazendo-o de maneira satisfatória, ainda que

imperfeita -, permite que o material apreendido no produto gráfico adquira

grande flexibilldade em relação ao objeto de sua apreensão, tornando-o, a


partir de então, suscetível às experimentoções possibilitadas pelo registro dado à

visão. Uma última razão, também ligado a seu registro espacial, é que, ao olhar

das sucessivos gerações, o visibilidade invariante do produto gráfico acrescento-

lhe a propriedade de permanecer no tempo. Sua matéria gráfica, seu caráter

simbólico próprio e seu produto invariante no tempo são, portanto, três aspectos

que podem explicar o império da escrita alfabética sobre outras formas de

registro!.

Afora esses aspectos mais gerais, a escrita produzida no escola tem um

interesse ainda mais vivo. Pensamos, por exemplo, na possibilidade de abordá-la,

tomando-a a partir da relação entre sujeito e linguagem, do ponto de vista de

sua sempre dada e, ao mesmo tempo, sempre inédita relação com a oralidade.

Quanto mais forem considerados os fatores co-atuantes na constituição do

escrevente e quanto mais a escrita for tomado no seu processo de apreensão

não-exaustiva da oralidade, menos regulamentação normativa será solicitada e

melhores frutos serão colhidos. Considerando-se o escrevente como parte

fundamenta! do processo dessa apreensão da oralidade pela escrita, altera-se o

próprio sentido da expressão "língua líterádd', tradicionalmente entendida como

a língua que se sobrepõe aos dialetos- "nenhum dos quaiS', segundo o que

entôo se acreditava, "se impõe aos demaiS' - para tornar-se a língua oficial e

comum de um povo -sentido que ainda aparece em Saussure ( 1975, p. 226-7). Tai

alteração de sentido ocorre à medida que se abre, no espaço de comunidade

simbólica criado pela escrita, a possibilidade de se observar a intervenção do

1 A título de exemplificação, um dos mitos que mantêm a força desse império e que é
tomado como efeito direto do registro escrito é o da permanência do sentido por ela
registrado. O tato de que a "visibilidade invariante" do registro gráfico freqüentemente seja
confundido com uma suposta invoríôncia do sentido do texto não é nenhuma novidade, mas
ainda persiste no fabricação de numerosos equívocos. Expressões populares como "Valeu o
escrito" mostram o espaço assertivo aberto pela escrita e sua suposta força de preservação
de um sentido único para o texto.

2
escrevente a partir da imagem que ele próprio faz {aspecto do ineditismo da

escrita) da língua escrita (aspecto do que já está institucionalizado para a escrita,

em parte através do imaginário socialmente construído sobre a chamada "lfngua

liferánd'). Dentre os segredos que a escrita desperta, destacam-se, pois, esses

fatores de constituição do escrevente e o desvendamento das representações

que ele faz da relação entre oralidade e escrita.

Com o objetivo de desvendar esses segredos, tomamos como material

para análise um conjunto de redações do Vestibular/1992 da Universidade

Estadual de Campinas (UN!CAMP), mos, antes de tratar da caracterização desse

material, faremos uma rápida descrição do evento discursivo que cerca a

produção desses textos, a saber, o próprio Vestibular UN!CAMP.

2. A REDAÇÃO NO EVENTO VESTIBUlAR

Um dos pioneiros na avoliaçõo da produção textual dos alunos, desde

1987, o vestibular do UNICAMP tem-se caracterizado pela aplicação de provas

dissertativas sobre as diferentes áreas de conhecimento. O vestibular proposto em

1992, que é o foco de interesse deste trabalho, apresenta duas fases: na primeira,

uma prova de redação e doze questões gerais sobre História, Geografia, Biologia,

Química, Física e Matemática, e, na segunda, provas dissertativas específicas

sobre essas áreas de conhecimento e sobre língua estrangeira (Inglês ou Francês}

e língua Portuguesa e Literatura .

Pelo influência positiva que a Universidade gostaria de exercer sobre o

ensino secundário, mas também- do ponto de visto do aluno- pelo risco que um

tal instrumento de avaliação pode representar para o sonho de tomar-se um

3
universitário, a provo de redação tem sido objeto de muito atenção por porte dos

envolvidos no concurso: de um lado, a Comissão Permanente para os

Vestibulares, órgão da Universidade, responsável pela concepção, elaboração e

correção das provas; e, de outro, escolas secundárias- talvez com mais destaque

para as particulares-, cursos pré-vestibulores. pais, professores e alunos. Para se ter

uma idéia da atenção requerida, basta observar que, no cômputo dos provas da

1° fase do vestibulor/1992, seu peso corresponde a 62,5% do total de pontos, fato

que justifica as preocupações apontadas: a valorização da expressão escrita, por

parte da Universidade; o risco de não corresponder à expectativa da

Universidade, por parte do candidato.

Elaborada para medir a capocidade "de organizar as idéias, de

estabelecer relações, de interpretar dados e fatos e de elaborar hipóteses

explicativas para conjuntos de dados relativos a quaisquer áreas de

conhecimento" (Manual do Candidato: Vestibular Nacional UNICAMP/93, p. 23),

essa prova tem apresentado, quanto ao quesito ADEQUAÇÃO, três opções,

envolvendo cada uma delas, de modo articulado: um tema, um tipo de texto

{dissertação, narração ou carta} e uma coletânea de textos que, conhecida no

momento do prova, deve ser utilizada adequadamente no sentido de contribuir

para a "discussão e/ou desenvolvimento do femd' (idem, ibidem) escolhido. A

fuga ao tema e/ou a não-obediência ao tipo de texto escolhido e/ou, ainda, a

não-utilização da coletânea têm como conseqüência a anulação da prova do

candidato. Cada uma das três opções deve adequar-se ainda à "modalidade

escrífa em !ihgua padrão" (idem, ibidem).

Destacam-se, portanto, na prova de redação, dois aspectos ligados a sua

elaboração e correção. A prova é, ao mesmo tempo e nessa ordem, um

4
exercício de leitura e de produção do texto. Desse modo, embora o candidato

esteja diante de uma solicitação que vai avaliá-lo quanto a suo capacidade de

produção, devem também estar integrados a seu texto marcas de sua

capacidade de recepção do texto escrito. A concepção dessa prova tem, pois,

a escrita como eixo organizador, uma vez que, no processo de sua realização, o

aluno estará diante do texto escrito tomado, primeiramente, como um dos

elementos catalisadores de seu próprio processo de escrito {um dos papéis da

coletânea) e, em seguida, como produto fina!, no texto entregue ao examinador.

As opções postas para o aluno e a proposta que articula tema-coletânea-

tipo de texto, colocam~no em posição de ativar seu conhecimento prévio; [a}

acerca de um assunto - e do que ele traz de associações possíveis -; {b} acerca

dos textos da coletânea - e de sua relação com outros textos lidos ou não pelo

aluno- e {c) acerca de um certo tipo de texto- e de sua relação com os mais

variados tipos de texto que o aluno já produziu durante sua vida escolar

pregressa. É, pois, num sentido amplo de leitura que o evento de linguagem que

rege a produção da redação procura captar o modo particular de leitura do

candidato. Como produto dessa leitura, procura-se captar, também, o

capacidade do candidato de adequar sua bagagem de conhecimento ao tipo

de conhecimento institucionalizado por uma comunidade específica: a

universitária. Essa exigência de adequação do escrevente, ao lado da situação

típica de prova - presença de examinadores, tempo !imitado, espaço dividido

com dezenas de concorrentes, entre outros fatores~ sintetizam o que se poderia

chamar o contorno etnográfico do evento de linguagem - o próprio vestibular-

que cerca a produção dos redações.

5
Esquematicamente, teríamos, pob, um evento que, segundo a proposta

de Himes {apud Brown & Yule, 1985, pp. 37-46), contaria com um remetente

[ addresso~: o candidato-escrevente; um destinatádo [addressee]: a

Universidade, personificada nos participantes da banca de correção; a audiência

[audience]: pais, professores, colegas, vizinhos, parentes; um tópico [topiCj: o

assunto a ser tratado; o local de tomado do exame [setting]: sala com dezenas

de concorrentes, tempo limitado, examinadores, restrições quanto ao uso de

certos instrumentos e quanto a certos comportamentos, como o de trocar idéias

com os colegas; o canal [channe1: esclita: o código [code]: registro formal de

linguagem; a forma-mensagem [message-form]: dissertação, narração ou carta;

a chave [keyj: avaliação quanto à qualidade da produção; e o propósito

[purpose]: ser convincente junto à banca examinadora.

Esse contorno etnográfico compõe, do ponto de vista da instituição que o

organiza, um evento que, ao valorizar a leitura em seu sentido amplo, privilegio

uma avaliação essencialmente lingüística. Pretendendo ser um exame que leva

em conta a capacidade de leitura do mundo por parte do candidato. constitui-


,

se, ao mesmo tempo, numa proposta que, ao procurar valorizar o conhecimento

global do candidato, exige que o escrevente recorra - quase que

inevitavelmente, dado o tipo de conhecimento institucionalizado pela

comunidade universitário - ao seu conhecimento lingüístico, conhecimento que,

segundo Brown & Yule, não é senão uma parte do conhecimento sobre o mundo

(cf., op. cit., p. 233).

Não é difícil perceber, portanto, que o uso do conhecimento do mundo,

solicitado como instrumento de leitura no evento vestibular, escapa de sua

dimensão antropológica mais ampla poro, no âmbito de uma troca simbólica

6
particular- seja na recepção, seja na produção lingüística-, impor, como objetos

de decifração, a linguagem verbal como código e a escrita como modalidade.

Invertem-se, pois, os papéis de um tal conhecimento global e de um

conhecimento específico sobre a prática lingüística, à medida que este último

passa a ser tanto solicitação de partida quanto de chegada e termina por

caracterizar o conhecimento institucionalizado pela comunidade específica que

o solicita: a universitária.

Mas, embora solicitado como conhecimento lingüístico, não se trata de

um conhecimento lingüístico estrito. Como se sabe, toda prática lingüística

impõe um inevitável jogo de imagens {Pêcheux, 1990 a), que é o que põe o

sujeito em ponto de linguagem. No caso do vestibular, mais do que diante de

um evento passível de minuciosa descrição etnogrófica2, o candidato se

confronta com um conjunto menos aparente de solicitações pessoais e

institucionais, que vão desde aquelas referentes à auto-imagem até aquelas

relativos às expectativas familiares quanto a seu desempenho e às exigências de

adequação de seu registro discursivo à modalidade escrita da língua padrão.

Tudo confluindo para a conformação lingüístico finaL

Conseqüentemente, no que se refere ao tópico "a redação no evento

vestibular", pode-se dizer que a produção do texto do vestibulando está

mediada, acima de tudo, por um imaginário sobre uma dada região do código

(registro formal de linguagem} e sobre uma especificação da modalidade {a

escrita) e da norma (a cu!ta). Ou seja, cabe ao candidato, no momento da

prova, tanto a atividade metolingüística de adequar seu uso da linguagem

2Vale lembrar. com Veyne {1971), que "um ocontecimento [no caso. o "evento" vestlbu!arj
não é um ser [um indivíduo::: "un être"J, mas um cruzamento de itineródos posslveis" (op. clt..
p. 38).

7
verbal ao que supõe ser o registro discursivo esperado pela Universidade, como

a injunção fática de tomar a palavra, pela escrita, e de adequá-la ao que seria

o lugar do escrevente: aquele que é capaz, segundo a anunciada expectativa

da Universidade, de compreender e de se fazer compreender satisfatoriamente

por meio da escrita.

A seleção do corpus

Dos textos disponíveis para análise, optamos pelas dissertações - e não

pelas narrativas ou pelas cartas. Vários são os motivos para essa escolha.

O tipo de relação entre oralidade e escrita que buscamos determinar e

que será melhor definido no capítulo 1 tem, pode-se adiantar, uma propriedade

bastante típica de impor um modo de enunciação heterogeneamenfe

constituído que- dado o material a ser onalisado- será apreendido por meio da

atividade escrita.

Bem conhecidas, as pesquisas feitas por Tannen { 1982} sobre narração

procuram definir um modo "letrado" e um modo "oral" de narrar; por suo vez, e

também bem conhecidas, as pesquisas feitas por Chafe {1982 e 1985) procuram

mostrar que a corta se caracteriza por um pressuposto muito presente na

oralidade, qual seja, o do diálogo, em que o envolvimento com o tema e com o

destinatário são, nas produções menos formais, muito fortes, podendo, nesses

casos. ser esse gênero textual localizado, numa gradação, em pontos de mínima

formalidade em relação a outros gêneros da escrita. Tanto as narrações, nas

quais se poderia investigar o aparecimento de um modo "ora!/!etrado" de narrar,

como as cartas, nas quais se poderia investigar um modo "ora!/letrado" de

dialogar parecem, portanto, conter as condições ótimas de aparecimento, em

8
textos escritos. de um modo heterogêneo de constituição da escrita a partir

desses pólos. Ambas as produções seriam. pois, certamente, fontes de muitas

descobertas interessantes nos textos dos vestibulandos.

Contudo, por um lado, fica descartado o estudo das narrações devido a

uma opção teórica. Como a narratividode está presente sempre que o homem

enuncio, para os objetivos deste trabalho, é mais produtivo considerá-la -

enquanto princípio enunciativo e não enquanto tipo {ou gênero) de texto- como

uma opção compulsória qualquer que seja o texto estudado. Não se trata, pois,

propriamente, de abandoná-la, mas de observar sua eventual presença também

nas dissertações.

Por outro lado, não será levado em conta o estudo das cartas em razão

do tipo de argumentação predominante nesse gênero. A corto, especialmente

da maneira como proposta no vestibular, é um gênero em que o contexto paro

a argumentação é relativamente bem delimitado. tanto em relação ao tema,

quanto em relação ao destinatário. É provável que essa delimitação seja uma

dos razões do sucesso dessa proposta de texto quanto ao posicionamento

pessoal do candidato em relação a temas polêmicos. Como a argumentação

dirigida a um destinatário específico implica um pressuposto muito presente na

conversação face a face {embora não exclusivo dela), qual seja, o do diálogo,

em que o envolvimento com o tema e com o destinatário são, em geraL muito

fortes, poderiam ficar muito restritas a esses dois elementos as conclusões sobre o

modo de enunciação particular que estávamos destinados a definir.

Sem descartar o envolvimento com o tema e com o destinatário, o

dissertação, ao contrário das cartas, é um tipo de texto que, em suas formas orais

mais acabadas {pensamos, por exemplo, no caráter dissertativo das

9
conferências), aparece em manifestações mais formais. Por sua vez, esse modo

de argumentação em torno de um tema é, ao mesmo tempo, um dos conteúdos

mais freqüentes no ensino da produçôo escrita formal. Para caracterizar seu

registro mais formal, bastaria atermo-nos ao tipo de destinatário que esse tipo de

texto constrói na escrita. Não se tratei, em gera!, de buscar o destinatário,

lançando vôo - como seria possível no texto narrativo - basicamente à

imaginação de um leitor solitário. Tompouco se trata de dirigir-se a um

destinatário identificado individualmente numa carta. Trata-se, ao contrário, de

um destinatário difuso, espécie de compilação imaginária de traços,

relacionados com o próprio imaginário ~;obre as instituições reconhecidas como

modelares da escrita, em suas manifestações mais formais. Mais do que um

destinatário específico, seu leitor responde, em gera!, por uma instituição.

Podemos mesmo dizer que a dissertação fala com uma instituição, fato que

coloca o escrevente em posição de enunciar-se perante a opinião pública,

noção cuja vaguídade talvez explique o trânsito, freqüentemente não

controlado pelo escrevente, entre a comunhão de idéias suposta na opinião


'
pública e a comunhão de idéias presente no senso comum.

Em decorrência do maior distanciamento do interlocutor, as dissertações

parecem ater-se a solicitações típicas dos gêneros mais formais da escrita, tais

como envolvimento moderado quanto c1o assunto e quanto ao futuro leitor bem

como registro maís formal de linguagem, Também a escolha e ordenação mais

ou menos explícita dos argumentos e a cmtecipação {na falta da presença física

do interlocutor} quanto a possíveis objeções (apenas supostas, portanto) são

propriedades que, embora não-exclusivas desse tipo de texto, aparecem de

modo mais pronunciado na dissertação. Com efeito, nesse contexto de emissão

10
para um destinatário difuso, tais propriedades desempenham o papel de fatores

bastante riíuolizados da textuaHdade das dissertações, contribuindo não só para o

que comumente se espera em termos de sua coesão e coerência (como devem

ser organizadas do ponto de vista forma! e semântico), mas principalmente para

o que comumente define a aceitabllidade do texto díssertativo (manipulação,

por parte do escrevente. de elementos padronizados que ele supõe levarem à

cooperação do leitor em relação ao texto}, Ao lado desse efeito de texfualidade

produzido, essas propriedades também atuam, juntamente com o

distanciamento do interlocutor, para a produção de um envolvimento moderado

com o assunto {defesa moderada de um ponto de vista) e com o futuro leitor

(controle do efeito de distanciamertto/aproximação com o leitor). Essas

característicos, embora também não-exclusivas nem desse tipo de texto nem da

modalidade escrita, dão, ao material a ser analisado, uma conformação

bastante favorável à apreensão do modo de constituição dessa escrita no que se

refere à conjunção de aspectos da modalidade oral e da modalidade escrita,

conjunção que, considerado a partir das representações do escrevente, é um dos

elementos-chave na determinação do tipo particular de enunciação que

buscamos detectar nos textos dos vestibulandos.

Diante do exposto, foi constituído como corpus um conjunto de oitenta e

três dissertações do vestibular/1992, realizado em 1° de dezembro de 1991. Esses

textos foram selecionados a partir de uma amostra maior do mesmo vestibular,

cuja elaboração estatística - de responsabilidade de especialistas ligados à

própria Comissão Permanente para o Vestibular- contempla: curso para o qual o

candidato concorre, perfil do candidato (idade, sexo, procedência, situação

sócio-econômica. curso secundário freqüentado - se particular ou oficia!

li
freqüência ou não de curso pré-vestibular) e nota obtida na prova de redação.

Sabendo que essa amostra maior contempla a variação no aproveitamento dos

candidatos, em termos de notas obtidas. tomamos um leque de dissertações que

cobre todo o espectro do aproveitamento, desde textos anulados por

inadequação ao tema, ao tipo de texto ou à coletânea até textos avaliados com

nota máxima. De modo a refletir a tendéncia estatística que a prova apresentou,

o corpus estabelecido reúne um número maior de redações com avaliações em

torno de um aproveitamento médio. Embora dispuséssemos de dados sobre a

caracterização socio!ingüística da clientela, tais como idade, sexo, formação

escolar etc., preferimos englobar essos variações como manifestações do

imaginário sobre a escrita que, de modo geral - em virtude do ensino mais

institucionalizado e do prestígio devotado a ela -, circula por toda o sociedade e

atinge todo e qualquer escrevente. As diferentes formas pelas quais os

escreventes lidam com esse imaginário não foram, porém, desprezadas, uma vez

que, em nossa análise. trabalhamos justamente com as representações que o

escrevente faz de si mesmo, do interlocutor e da própria escrita, as quais

registram, no texto. outras particularidades a respeito da inserção sociolingüfstica

do escrevente, tais como, representações sobre o espaço e~ o tempo da

interlocução, sobre o registro a ser utilizado, sobre a norma, sobre a modalidade.

De modo particular. a investigação desse imaginário sobre a escrita está, neste

trabalho, diretamente ligada à consideroção do dialogismo na linguagem e da

conjunção de aspectos do modo oral e do modo escrito de elaboração textual,

tomados como indícios da relação sujeito/linguagem na escrita dos

vestibulandos.

12
Não se trata de insistir, é bom que se esclareça, no erro de julgar um

fenômeno de linguagem (o imaginário sobre a escrita que circula pela

sociedade) pela desconsideração dos interesses particulares e de

particularidades lingüísticas dos vários grupos que compõem a sociedade. Pelo

contrário, buscamos também alertar para o heterogêneo que constitui a própria

norma. Isto é, ao valorizar a representação que o escrevente faz da (sua} escrita,

do interlocutor e de si mesmo, tem-se um tipo de individuação da experiência

lingüística que não traduz apenas o imaginário que ele, individualmente, foz do

escrita, mas um imaginário que é adquirido do grupo de que faz parte, da escola

que freqüenta, do vestibular que presta ... E não há opção metodológica possível

para se tratar desse tipo de relação entre oralidade e escrita, isto é, do ponto de

vista do imaginário do escrevente sobre a escrita, se se tomar como exigência

metodológica o tratamento exaustivo de todo o espectro da sociedade. Até

mesmo pelo fato de que, no imaginário do escrevente sobre a escrita, está

registrado um tipo particular de relação com a linguagem, consigo mesmo e

com o outro. Portanto, parece ser improcedente um tipo de objeção que

consistisse em afirmar que não se pode falar do imaginário sobre a escrita que

circula pela sociedade, de um modo geraL apenas porque é- como, de fato, se

sabe- muito restrito o número de pessoas que chegam a se candidatar a uma

vaga na universidade. Como se vê, o fato de contar com um número restrito de

pessoas que chega a se candidatar a ter uma provo analisada não impede que

se postule um imaginário sobre a escrita. Pode-se mesmo defender que a

exclusão ao acesso à universidade é mais um fator que auxilia na fixação de um

certo imaginário sobre a escrita, tomada especialmente como fonte de ascensão

social e de prestigio. Neste trabalho, buscam-se, porém, não precisamente

!3
ligações do tipo escrita/ascensão social, mas especialmente as marcas

lingüísticas desse imaginário, cujo processo de registro escrito contribui para a

constituição de um modo heterogêneo de enunciação. Certamente, a

consideração desse imaginário contribuirá não só para melhor definir o papel da

escrita na sociedade atuaL como também para melhor interferir em seu ensino.

No vestibular/1992, o tema associado ao tipo de texto que escolhemos

para análise é: Violência nos tribos urbanas modernos. Para o desenvolvimento

desse tema, acompanham seis diferentes textos (ou fragmentos de textos),

compondo uma coletânea. No enunciado da prova, uma observação sobre a

coletânea informa: "os textos foram tirados de fontes diversas e apresentam tatos,

dados, opiniões e argumentos relacionados com o temd' (Cadernos de Questões

da 1"' fase do vestibulor/1992, realizada em P/12/91, p. 2}. Além de descrever os

textos como similares aos que o candidato está acostumado a ler

cotidianamente, ressaltando que "não representam a opinião da banca

examinadora" [idem, ibidem), a observação prossegue informando que o

candidato deve utilizar a coletânea, mas não deve copiá-la~


'
Ainda quanto à bagagem de informação de que o candidato pode servir-

se, é importante observar que o enunciado da prova alerto para a possibilidade

de o candidato "utilizar-se também de outros jnformações que julgar relevantes

poro o desenvolvimento do tema escolhidO" {idem, ib.). Portanto, a bagagem de

informação trazida pelo próprio candidato é bem-vinda desde que ele obedeça

ao requisito de utilizar a coletânea.

Duas letras de música, um trecho de entrevista com o voca!ista de um

grupo de rock {publicada na Revista Isto é Senhor), um trecho de uma matéria

sobre o grupo de rock Gun's N'Roses {publicado na revista Top Metal Band} e dois

14
fragmentos de textos extraídos de livros compõem um material para leitura cuja

característica básica é apresentar pontos de vista divergentes. Destaque-se,

também, que os gêneros postos para leitura são bastante acessíveis, com

exceção talvez dos fragmentos extraídos dos livros, que poderiam criar alguma

dificuldade quanto ao tipo de abordagem que fazem do problema da violência.

No gera!, a linguagem caracteriza-se pela informalidade, cabendo expressões do

tipo: "acertar as ponfas", "palavrões cabeludos", "descem o verbo", "um lance

de rebeldia". Em um dos fragmentos extraído de livro, pode-se constatar, porém,

um vocabulário menos conhecido, como, por exemplo: "engendrando crises

sacrifidais suplementares" e "novas vítimas expiatórias". Não parece, porém, que

a dificuldade de leitura estivesse no léxico. Além do tipo de abordagem sobre o

tema, acredita-se que também a novidade do próprio tema parece ter

surpreendido grande parte dos candidatos, que, àquela allura, não contava com

Informações muito precisas sobre o que se chamava, na proposto. de ''tribos

urbanas".

* • •

Dando seqüência à contextua!ização da análise, trataremos, no capítulo

1, da conceituação do modo de enunciação que se constitui a partir da

conjunção entre o oral/letrado e o falado/escrito, ao qual chamaremos modo

heterogêneo de constituição da escrita.

No que se refere aos textos produzidos como resposta à proposta de

redação acima descrito, eles serão abordados a partir do capítulo 2. Nesse

capítulo, exporemos a metodologia ut!lizada a partir de três eixos que, segundo o

que estamos propondo, orientam a circulação do escrevente pelo imaginário

sobre a escrita.

15
No capítulo 3, abordaremos o primeiro desses eixos - o da representação

da escrita em sua suposta gênese _ Nesse capítulo, procuraremos investigar em

que medida o escrevente se prende a um imaginário sobre a escrita, quando ele

constitui um modo de enunciação em que a conjunção entre o oral/letrado e o

falado/escrito traduz-se, na escrita, como tentativa de transcrição termo a termo

de recursos mais típicos de gêneros dc1 expressão oraL Essa investigação será

precedida de um apanhado dos implicações teóricas da consideração de um

tal eixo, no qual procuraremos observar em que medida os reflexões lingüísticas

sobre a escrito podem contribuir pc:ra desvelar esse modo particular de

enunciação. Para tanto, serão utilizadas também as reflexões sobre o modo oral

de organização do discurso como uma forma de trazer para o campo da

reflexão lingüística a presença do oral nQ escrito.

No capHulo 4, abordaremos o segundo eixo - o do imaginário sobre o

código escrito institucionalizado. Nesse capítulo, serão tratadas as implicações

teóricas da consideração de um tal E~ixo, observando de que modo um tal

imaginário pode ter-se sustentado por toda a tradiçOo gramatical e em que

medida esse fenômeno se reproduz na escrita dos vestibulandos.

No capítulo 5, abordaremos o terceiro eixo - o da relação do texto do

vestibulando com o já escrito/falado e com o já !ido/ouvido. Nesse capítulo,

procuraremos explorar o dialogismo na escrita do vestibulando, de tal forma que

a circulação que ele foz pelo imaginário sobre a escrita possa ser detectada não

só como a necessária dia!ogia estabelecida com outros textos - dialogia que

regula qualquer utilização do linguagem-, mas também como um tipo particular

de dialogia, aquele que, neste trabalho, é visto como constitutivo da escrita do

vestibulando, isto é, que a constituí segundo a circulação imaginária do

16
escrevente pelos três eixos aqui estabelecidos para análise. Para esse tipo de

tratamento. buscamos auxílio nas teorias lingüísticas que tratam do fenômeno da

polifonia, tais como as produzidas por Bakhtin, Ducrot e Authíer-Revuz.

Na conclusão, apresentaremos um apanhado das discussões consideradas

mais relevantes, procurando reintroduzir, no âmbito da prática pedagógica (mas

também em outros campos que envolvam a relação sujeito/linguagem), um

outro discurso sobre a escrita, de modo a trazer de volta a questão da variação

da língua e da heterogeneidade que constitui o escrevente e seu discurso.

17
Capítulo 1

O MODO HETEROGÊNEO DE CONSTITUIÇÃO DA ESCRITA

L A TÍTULO DE INTENÇÕES

A delimitação do campo da escrita não é um assunto consensual.

Baseados na classificação proposta por Marcuschi {1995}, buscaremos

problematizar, nos discussões teóricas que se seguem, duas oposições que têm

orientado a reflexão sobre a escrita: a oposição entre oral/letrado, por um lado, e

o oposição entre falado/escrito, por outro. Segundo Marcuschi, os relações entre

ora!idade/letramento e fala/escrito são "fenônemos de fala e escdfa enquanto

relação entre falos lingüísticos (relação fala x escdfaj e enquanto relação entre

práticos sociais (oralidade x leframento)"{op. dt, p. 11 ).

Vale ressaltar, ainda nessa classificação de MorcuschL que, se os

fenômenos de fala e escrita dados à observação podem ser vistos enquanto

fatos lingüísticos e enquanto práticas sociais, deve-se levar em consideração a

íntima relação entre um fato lingüístico e uma prática sociaL Desse modo, nem o

presente trabalho, nem- acreditamos- o próprio Marcuschi negam que todo fato

lingüístico se vincula a uma prática socioL De nossa parte, a assunção de que os

fatos lingüísticos do falado/escrito são práticas sociais e se vinculam, portanto, ao

ora!/falado será muito útil para que possamos questionar a delimitação do

campo da escrita apenas pela constatação óbvia de um material específico - o

gráfico- que lhe serve como base semiótica.

Ao assumirmos o falado e o escrito como práticas sociais vinculadas ao

letramento e à oralidade, estamos defendendo uma posição que toma como

18
matéria, em diferentes graus, a existência histórico-social do letramento. É, po1s,

nessa perspectiva, que defendemos o encontro entre as "prát/cos sociais" do

oral/letrado e os "fotos lingüísticos"do falado/escrito.

Esse encontro, mesmo sendo te::;temunhado pela intuição dos falantes

comuns3, não tem produzido um acordo entre os estudiosos do assunto. Há os

que defendem, quanto a essas práticaJ e quanto a esses fatos, uma dicotomia

radical [Goody {1979); Olson {1977), por exemplo]; há os que defendem uma

autonomia relativa {Vachek, 1989, por exemplo); há os que utilizam a dicotomia

apenas como um recurso metodológico na criação de um contínuo tipológico

de gêneros textuais, nos quais são observados pontos intermediários localizados

entre os extremos do suposto como típico oral, de um lado, e do suposto como

típico escrito, de outro[{Tannen {1982); Chafe {1982, 1985); Biber (1988); Marcuschi

{1994 b, 1995), por exemplo]. Há, ainda, oque!es que fazem referências explícitas

a um misto entre oral/letrado e falado/escrito (Street {1984) e outros]. Finalmente,

3
A formo como convivem os "práticos sociais" do or-al e o do letrado aparece na falto de
limites Precisos entre elas, já que têm em comum o fato de não se confundirem com o ensino
formaL Por exemplo: toda pessoa que se orienta pelos sinais de trânsito (o exemplo é de
Gratt, apud Street, 1984, p. l lO) mesmo sem dominar a escrito alfabética, é- no sentido que
estornos dando ao termo - uma pessoa letrada. Esse fato mostro que o saber que vem da
chamado tradição ora! - o modo de acesso a ele, seu conteúdo menos suscetível à
institucionolização formal, suo transmissão mois vinculada às práticos cotidianas - pode
confundír·se com certos saberes letrados que, embora convencionalizodos em signos
gráficos, caracterizam-se por um modo de acesso, um conteúdo e uma transmissão
desligados de instituições formalmente instituídas, como os escolas, por exemplo. Os limites
entre o oral e o letrado ficam ainda menos nítidos se atentarmos para m formos orais
rituolizadas. Pense-se, por exemplo, nos provérbios, É sabido que eles dividem com as formas
letradas tidas como puras - aquelas provenientes da prática da escrita - tanto o aspecto da
permanência no tempo, como o aspecto- talvez menos óbvio no que se refere à escrita - do
suscetibilidode às variações. Sobre o partilha deste último aspecto, vale sempre lembrar que
também a permanência da escrito não a exime das várias possibilidades de leitura a que o
texto escrito estó sujeito, dado que o sentido não pertence nem ao produtor nem ao leitor,
mas à relação que entre eles se estabelece a partir do que fico registrado no texto.
Por sua vez, o exemplo mais claro da convivência entre os "fotos lingüísticos" do falado e
do escrito é o reclamação de muitos professores de que o texto de seus alunos sofre muito
"interferência" do oralidade. Uma tal afirmação é. segundo o que pensamos, um tipo de
percepção da convivência entre o falado e o escrito, portanto não exata ou
necessariamente a percepção de um proble.ma do texto. t freqüente também, entre os
falantes, a percepção inversa, ou seja, a percepção de traços do escrito - certas
construções, certo vocabulário - no falado. É o que cotidianamente ocorre. por exemplo,
quando as pessoas rejeitam aqueles interlocutores de fala muito rebuscado, tachando-os de
"quererem folor difícil".

19
há os que procuram conceber a escrita no processo de sua produção (Luria

(1988), Vygotsky (1987, 1988), Abaurre (1989, 1990 a, 1990 b,l994) e Abaurre et ai.

(s/d, 1995) sobre ritmo da escrita e sobre a aquisição da linguagem escrita; Silva

{1991} sobre alfabetização; Chacon {1996) sobre o ritmo da escrita como uma

propriedade organizadora do heterogêneo da linguagem).

Neste capítulo, estaremos às voltas com essas diferentes posições acerca

do assunto. No entanto, antecipamos, de saída, nossa posição. inspiramo~nos, de

certo modo. no que chamamos a utilização metodológica da dicotomia, feita

por autores como Biber e Marcuschi, paro propormos não a comparlimentaçõo

de gêneros em um contínuo (contribuição já dada por esses autores), mas um

modo heterogêneo de constituição da escrita, no que nos aproximamos às idéias

de Street, de Abaurre, de Silva e de Chacon. Poro tanto, criaremos, nós também,

um lugar para observação do fenômeno do encontro entre essas práticas. Esse

lugar, metodologicamente construído (cf. descrição e exemplificação no

capítulo 2), é composto, no presente trabalho, por três eixos de representação da

escrita pelos quais - sustentamos - os escreventes de um modo geral {no caso

estudado, estudantes em situação de vestibular) circulam em sua prática textual

escrita. Os eixos propostos são os seguintes: o da representação que o escrevente

faz sobre o que imagina ser a gênese4 da {sua) escrita; o da representação que o

4 Por falta de melhor denominação. chamamos de representaçõo da "gênese" do escrita ao

primeiro eíxo que propusemos. Temos consciência do perigo dessa escolha. Não há,
naturalmente. um ponto de origem localízáveL nem imaginariamente. Nosso objetivo foi
referir à expectativa de completude mantida pelo escrevente quanto a evidenciar
integralmente uma prática em seu produto, no caso, a prática do registro gráfico do falado
em relação ao produto escrito. t nesse sentido que, em determinados momentos, nos
sentimos autorizados a descrever o prática do escrevente como uma tentativa de plasmar o
falado no escrito, foto que inclui a tentativa de tradução fiel também de fatores
pragmáticos envolvidos no ato de enunciação. Em termos dm reloç6es escrito/mundo e
escrito/falado, a atuação desse eixo de representação impõe uma tentativa de tomar o
escrito como representação fiel, seja como símbolo de primeira ordem {relação
escrita/mundo), seja como símbolo de segundo O!dem (relação escrito/falado). Voltaremos
a esse temo no capítulo 3, p. 188-194.

20
escrevente faz sobre o que imagina ser o código escrito institucionalizado e o da

representação que o escrevente faz sobre a diologia com o já falado/escrito e

com o já ouvido/lido.

Embora, neste trabalho, nos limitemos à análise de textos de vestibulandos,

acreditamos que a idéia de um modo heterogêneo de constituição da escrita a

partir desses três eixos de circulação ima~~inária seja localizável em qualquer tipo

de texto escrito. Portanto, nossa hipóte:>e é que, em diferentes graus e com

diferentes possibilidades de adequação ao gênero produzido, essa circulação

venha, sempre, de alguma forma marcoda. A comprovação que temos- como

veremos na análise (capítulos 3, 4 e 5) - refere-se aos textos analisados, em que,

embora em diferentes graus e com dife1·entes níveis de adequação ao tipo de

texto dissertativo produzido, foi possível localizar essa circulação imaginária em

todos os textos.

Ainda com relação à abrangência dessa circulação imaginária do

escrevente, defendemos que nenhum te:do escrito se caracteriza por apenas um

desses três eixos de representação. É nesse sentido que buscamos as marcas

lingüísticas da conjunção entre o oral/letrado e o falado/escrito - ou, como

preferimos, entre o oral/falado e o letrado/escrito - tomados enquanto práticas

sociais. Acreditamos, portanto, que a investigação do produto escrito permite

observar marcas deixadas pela conjunção dessas práticass, marcas que, como

vimos nas abordagens intuitivas exemp!ificadas acima {cf. nota 3}, permitem

flagrar a presença do oral/falado no !etrodo/escrito.

s Mais especificações metodológicas sobre encarar o produto escrito como um momento do


processo de escrita do escrevente e sobre como determinar as marcas lingüísticos serão
dadas no capítulo 2.

21
No presente trabalho, não nos preocuparemos em resolver a

ambigüidade que o escrito mantém em suas relações com o mundo {escrita

como símbolo de primeira ordem} e com o falado (escrita como símbolo de

segunda ordem6). Pretendemos, ao contrário, questionar o papel da escrita como

representação para encará-la como um tipo particular de enunciação. Desse

modo, as relações que o escrito mantém com o mundo e com o falado serão

tratadas no próprio processo de escrita, pois defendemos que, a cada momento,

o escrevente se divida quanto ao modo de Hdar com essa ambigüidade. A

hipótese que buscaremos forlalecer é, como dissemos, a de que o

escrevente, em seu processo de escrita, circula por um imaginário sobre a

língua - este sim um sentido de representação que interessa perseguir neste

trabalho - em suas diferentes manifestações e variedades, imaginário que se

particulariza para os situações específicos e concretas de uso da escrita e que se

estende aos diferenfes e instáveis modos de conceber a relação escrita/mundo e

escrita/falo.

11. PASSOS DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Este capítulo obedecerá aos seguintes passos teóricos: { 1) breve revisão

sobre !etramenfo e oralidade; (2) das dicotomias radicais à dlcotomlzação

metodológica; (3) da dicotomização meiodológica ao modo heterogêneo de

constituição da escrita; {4) a heterogeneidade na base semiótica do falado e do

escrito; {5) referências ao modo heterogêneo de constituição da escrita; {6}

conceituação.

~ Essa é a posição defendida em Vygoisky {1988). Segundo o aulor. o sistema de escrita


"constitui um simbolismo de segunda ordem que, gradualmente, torno-se um simbolismo
direto. (... ) Groduolmente, esse elo infermediódo (a linguagem falado) desaparece e a
linguagem escdfa converte-se num sistema de signos que simboliza diretamente as enfldades
reais e os relações entre elos" (op. cit., p. 120).

22
{l) Breve revisão sobre letramento e oralidade

Nesta revisão, será destacada a natureza sócio-histórica de cada uma

dessas práticas. Por um lado, procuraremos chamar a atenção - ainda que

rapidamente - para a necessária desidentificação do !etramento com a

alfabetização, bem como para o caráter processual do !etramento e sua

natureza sócio-histórica. Por outro lodo, destacaremos os diferentes gêneros que

compõem a oralídade, isto é, buscaremos caracterizá-la não apenas por seu

aspecto material, cujo existência fônicc-acústica estrita poderia levar o leigo a

confundi-la com uma única de suas realizações, a conversação face o face.

Para que possamos assumir, de saída, o uso da palavra "letramento", ora

corrente em português, atentemos para o observação de Gnerre:

''entre as princípais línguas européias somente o inglês


dispõe de uma palavra como I i f e r a c y, que foz
referência de forma oi:Jstrota a todos os possíveis
aspectos de envolvimento social e individual com a
prátiCo de escrever. Em outras línguas dispomos de
palavras como écrilure, schrift escrita.
s c r i f fura, que fazem referência tonto à atividade
concreta de escrever quanto ao produto concreto de.
tal atividade" {op. cit., p. 26-7).

Tfouni {1994), ao mostrar preocupoção semelhante com o uso da palavra

"letramento", atribui seu amplo empre9o em textos técnicos à ''tomada de

consciência que se deu, pdncipolmente entre os lingüistas, de que havia alguma

coisa além da alfabetização e que era mais ampla, e até determinante desta"

(idem, p, 50). Em virtude de sua crescente po!lssemia em função de. vários

posições teóricas adotadas, a autora procura, então, dar contornos mais precisos

ao conceito:

" letramento, poro mim, é um processo, cuja


natureza é sócio-histórica. Pretendo, com esta

23
colocação, opor-me o outros concepções de
leframenfo atualmente em uso, que não sôo nem
processuais, nem históricas, ou então adotam uma
posição 'fraca' quanto à sua opção processual e
histónCa. Refiro~me a trabalhos nos quais,. muitos vezes,.
encontra-se a palavra lelrarnento usado como
sinônimo de alfabe#zação." (idem, ib., destaques no
original).

Essa questão retorno em Marcuschi (1995) quando o autor trata da relação

entre !etramento, alfabetização e escolaridade. Marcuschi liga o letramento a

"um processo de aprendizagem" em "contextos informais e poro usos utilitádos"

{op. dt., p. 2), Por sua vez, a escolarização é definida como uma "prói!Co formal e

institucional de ensino" (idem, ib.) mais amplo do que a "habilidade residia" da

alfabetização, que consiste no "domínio ativo e sistemático" do ler e escrever e

se define "como apenas uma dos atnbuições/afividodes" da escola {idem, ib.).

Neste trabalho, será assumido o sentido original do inglês. exposto por

Gnerre, salientados os contornos concepfua-is propostos por Tfouni e MarcuschL

Outras referências serão feitas ao conceito de !etramento no decorrer de outras

seções. Por ora, em função das discussões que se seguirão, trataremos do

conceito de oralidade.

A forma mais evidente de comunicação oral é a da interação face a

face, em que a elaboração do discurso é coletiva, dada a participação ativa

dos interlocutores. É chamada, nesse caso, de "língua falada", "conversação"

ou "discurso falado". A título de esclarecimento, é interessante observar que

Marcuschi (1986) define, "conversação" como a primeira e provavelmente a

única forma de linguagem "da qual nunca abdicamos pela vida afora" (idem, p.

14).

24
Contudo, há, como sabemos, outros modos de se produzir comunicação

oral, cada um dos quais ligado a determinadas práticas culturais. Bakhtin (1992}

vincula os gêneros às esferas de atividade humana e, por essa via, define os

enunciados como genéricos?. Para se te~r uma idéia da importância que Bakhtin

dá ao papel e à diversidade de gêneros, atente-se para a afirmação seguinte:

"os enunciados e{ ... } os gêneros do discurso são as correias de transmissão que

levam da históda do sociedade à histónO da língua" (op. cit., p, 285). Portanto,

podemos pensar a comunicação ora! de acordo com uma gama muito diversa

de gêneros, vinculados a práticas específicas da atividade humana.

Ligados ao que normalmente se chama "tradição oral", dispomos, por

exemplo, dos modos de comunicação que se materializam em gêneros textuais

orais como as máximas, as anedotas, os estórias populares, Ligados a práticos

mais marcadamente institucionais como, por exemplo, as do religião ou do

pedagogia podemos também citar, entre outros, gêneros como os sermões e as

conferências.

Há, finalmente, os modos de comunicação oral à distância, que produzem

uma ampla variedade de gêneros, como, por exemplo, as reportagens

radiofônicas ou te!evisuais. As conve·rsas ao telefone constituem um caso

particular desses modos de comunicação oral à distância, uma vez que o modo

de elaboração do discurso é semelhante ao da interação face a face, pois o

número de interlocutores é restrito e há c1 possibilidade de construção coletiva do

discurso, a qual se faz sempre no âmbito das reações imediatas entre os

interlocutores. Com exceção das conversas ao telefone, os outros são exemplos

7Como bem observo Barros ( 1994), "Bokhfin concebe o enunciado como matéria lingüística e
como contexto enunciativo e afirma ser o enunciado. assim entendido, o objeto dos estudos
da linguagem"(op. cit., p. l ).

25
de modos de comunicação oral que fogem aos critérios da interação face a

face e/ou da elaboração coletiva do discursos.

Tomemos como exemplo o caso do gênero "reportagem radiofônica ao

vivo". O evento discursivo em que ele se constitui exige a produção de um texto

minimamente preparado, ainda que não necessariamente "escrito no papel".

Há, por exemplo, nesse modo de comunicação ora!. o necessidade de

contextualização verbal devida à falta de interação face a face, fato estranho

aos textos orais em que a situação imediata preenche esse requisito.

Parece, pois, que esse gênero de texto radiofônico apresenta - ao lado de

traços da oralidade como o aspecto tônico-acústico e a marca do momento de

sua produção- um forte parentesco com' o que normalmente se atribui ao modo

de elaboração do texto escrito, como, por exemplo, a elaboração solitária do

texto, isenta, portanto, das reações imediatas do interlocutor, características da

elaboração conjunta própria à interação face a face. Desse modo, podemos

dizer que, na reportagem ao vivo, temos exemplo de uma constituição

heterogêna e não, como pode parecer à primeira vista. de um típico exemplo de

texto oraL

Dando por esclarecido que a oralidade não se reduz a seu aspecto

tônico-acústico e que, sobre o suporte desse mesmo materiaL podemos verificar

seu modo heterogêneo de constituição - caso das reportagens radiofônicas ao

vivo-, buscaremos situar o problema dos dicotomias entre oral/letrado e entre

falado/escrito.

s Um estudo desses gêneros de produção ora! levaria certamente a interessantes


constatações o respeito do caráter escrituro! de muitas dessas produções, tema que
1etomorá maís de uma vez nos discussões que irão se seguir.

26
{2) Das dicotomias radicais à dicotomiza~~ão metodológica

No que se refere à questão das dicotomias radicais entre o oral e o letrado

e o falado e o escrito, procuraremos mostrar que elas se sustentam tanto na

afirmação de mudanças radicais nos conteúdos e nos modos de interação

verbal a partir da uso dos primeiros ref~istros escritos {Goody, 1979)9, como na

afirmação de um papel decisivo da E~scolarização, que teria levado a uma

crescente autonomia do texto {escrito) em relação ao enunciado {falado) [Oison,

1977].

Um dos nomes mais importantes na defesa da dicotomia radical é, como

dissemos, Goody, embora se possa afirmar que, em relação a restringir o

letramento ao aprendizado escolar da escrita, esse autor seja um caso à parte.

Tratando de como aparece a razão gráfico a partir da confecção de listas,

quadros, fórmulas e receitas, o autor defende "que o oposição 'oral' e 'escrito'

implico {... } diferenças nos meios de comunicação" e que, a partir dessa

oposição, "os conteúdos e os modos de.r interação verbal" também conhecem

"outros mudanças" w (op. cit, p. 71). Com destaque, também Olson, este mais
'
propenso a assimilar o letramento ao papel da escola, se alinha nessa

perspectiva quando defende a crescente autonomia do "texto" {escrito) em

relação ao "enunciado" {falado), criando, desse modo, dois pólos opostos na

produção verba!. Pode-se dizer que é a partir da criação dessa dimensão entre

dois pólos opostos que se desenvolveu a reflexão mais significativa a respeito da

relação entre o oral e o letrado tanto no produção de textos escritos, como na

produção de textos falados.

9 Embora tenhamos recorrido, em vários momentos deste trabalho, à consulta do publicação

original em inglês, "The domeslicolion of the sovage mihd': datado de 1977, foi a tradução
francesa. datado de 1979. a versão bóslco utiliwda.
1o Todas as traduções de obras em língua estrangeira são de nosso responsabilidade.

27
Goody afirma que a palavra escrita "acrescento uma importante

dimensão às ações sociais': Ela não substitui, portanto, a fala, assim como esta

não substitui o gesto (cf. op. cit., p. 55). Particularizemos nossa observação à

questão da preservação do gesto pela fala e da não-eliminação da fala pela

escrita, que nos parecem argumentos incontestáveis. Vale notar, a esse respeito,

que Goody deixa de mencionar uma terceira possibilidade de relação: a

presença do gesto em relação à escrita. Com efeito, se levarmos em conta a

atividade de escrita, tomaremos contato com marcas eloqüentes do processo de

escrita no texto resultante.

A propósito, Abaurre (1991), ao reclamar maior atenção para o fenômeno

do ritmo da ''língua falada': bem como do "ritmo que se apresenta no texto

escrito·: afirma que o próprio "gesto rítmico com o qual o texto foi produzido se

'congela' em signos gráficos sobre uma página em bronco" (op. cit., p. 77-8). Essa

metáfora, que busca registrar a materialização lingüística do processo de

produção da escrita e que pode ser estendida para o papel do ritmo da escrita

no que se refere a organizar o heterogêneo da linguagem [cf. Chacon (1996}1,

nâo desdiz em nada o fato de que a escrita "acrescenta uma importante

dimensão a muitas ações sociais" (Goody, idem, ib.). Põe, no entanto, em

circulação a atividade do sujeito que produz linguagem e, por essa via, não só

permite ver o caráter não-substitutivo da escrita em relação à fala, como

também permite observar vestígios dessa atividade no próprio texto escrito.

Sobretudo, a consideração desse "gesto" introduz, no produto escrito, a presença

de traços prosódicos e, portanto, semânticos. Desse modo, pode-se supor que

Goody daria certamente uma outra direção a sua argumentação se

28
considerasse apenas como aparente o C!pagamento do processo da escrita no

produto escrito.

Uma outro observação do autor no direção da defesa de uma dicotomia

radical! I é a que questiona o caráter reprodutivo da escrita em relação à fala.

Segundo Goody, "o escnla transforma nitidamente e de várias maneiros a própria

natureza do prática da linguagem" {idem, p. 143). Nada a contestar também

quanto a esse fato se se deixa de lado a presença constante do produtor de

!!nguagem no seu produto. Se esta presença é. ao contrário, considerado - pelo

menos como particularizadora dos processos de escrita nos quais se insere como

sujeito -, já não se tratará mais de obsEnvar apenas a relação entre falado e

escrito, mas a relação entre sujeito e linguagem {cf. Abourre et ai., 1995, p. 40). O

ineditismo (considerados os processos de escrita nos quais se insere o sujeito 12) e o

já-dado dessa relação é que seriam, pois, em conjunto, o fator transformador das

práticas da linguagem, uma vez que estão ligados aos usos {tanto da falo quanto

da escrita), os quais- é uma das hipóteses que pretendemos levantar aqui- não

são apenas variados. mas submetidos às particularidades históricas de seus


'
acontecimentos, incluindo aproximações de falas a escritas.

Vejamos, neste ponto, a referêncio à dicotomia radica! entre o falado e o

escrito feita por Olson. Optamos por diE.cutir sua posição por um viés que nos

11 Preocupado com o ensino de redação, Câmara Jr. (1972) assume posição semelhante à

de Goody quanto à mudança no modo de pensar pela fala e pela escrita. O autor se refere,
por exemplo. a saber "pensar em termos cfe língua escnla" {op. cit., p. 76). A própria
metodologia que sugere para a produção do texto escrito. caracterizado por procedimentos
essencialmente gráficos, mereceria maior atenção no momento de sua aplicação. Embora
nem professores nem alunos se apercebam do foto. estes últimos são orientados o se
utilizarem de recursos gráficos apenas como reprodução técnica. Desse modo. o escrevente
pouco pode explorar as propriedades específicos desses recursos. como, por exemplo, seu
caráter prospectivo. pressuposto na elaboraçôo do plano de redação, ou seu caráter de
reversão. pressuposto no idéia de rascunho.
12 Ineditismo não significa aqui originalidade ou criatividade. Defendemos apenas que
marcas da ''individuação" histórico do sujeito podem ser vistas como dados de ineditismo. A
noção de "individuação". tomada de Veyne (1983), será discutida no capitulo 2.

29
permita mostrar como essa assunção está presente nos estudos lingüísticos por

meio de uma inversão entre a proposta teórica de partida (preferência pelo oral)

e os procedimentos práticos efetivamente cumpridos {recurso subliminar à

escrito}. A referência à dicotomia radical entre fala e escrita que escolhemos foi

retirada de um contexto em que Olson discute a pertinência da teoria de

Chomsky quanto a sua aplicação para a linguagem em geral ou apenas para

uma de suas modalidades. O autor faz uma "conjeturo"acerca do fato de que a

teoria de Chomsky se aplicaria apenas à "prosa escn'fa explicito", uma vez que

os falantes "raramente confinam suas representações 6 informação

convenôonalizada no texto·: de onde conclui que a controvérsia entre

sintaticistas e semanticistas "se reduz às hipóteses de ·que a língua é

apropriadamente representada em termos de significados de sentenças ou em

termos de significados de falantes'' (idem, p. 271 ).

A oposição que o autor faz entre "significados dos sentenças" e

"significados dos falantes" revela a dicotomia que a sustenta, a saber, a

dicotomia radical entre o escrito e o falado ou. nos termos do autor, entre "texto"

e "enunciado': A questão por meio da qual O!son especula sobre a teoria

gerativo-transformacional é uma questão central, a do sentido. É interessante

observar que, sabendo ser baseada essa teoria em princípios tidos como

universais, Olson não questiona propriamente essa universalidade, mas

simplesmente procura transferirl3 seus pressupostos para o domínio da escrita, a

13 A propósito da transferência de princípios universais para o domínio da escrita, Vachel<


[1989 {1974). p. 25-34] toma emprestado. para título de seu artigo, o nome de um capítulo
de um livro de Householder (1971 ). justificando que "o próprio título do copítvlo [A primazia da
escrito} é apto paro chocar o ortodoxo, foneticamente propenso" (op. dL. p. 26). Vachek
opta por uma indagação: "A primazia da escrito?". no mesma medido em que busco
relativizar a posição de Householder quanto a postular, no lugar dos formos subjacentes
artificiais de Chomsky, uma tormo "mais realista" representada pelos "formas gráficos das
palavras como pontos de partido dos quais o usuódo da língua obtém suas formas
fonológicos" (idem, p. 31). Vachek explica que, para Householder, deve ser dado ao
componente gráfico, nas comunidades com escrlfo, um lugar de prioridade no processo

30
partir do qual- para retomarmos a quesfôo do sentido- pode-se pensar em tipos

universais de "sigmficodos de sentenças". É claro que Olson já conta, nesse ponto

de sua argumentação, com uma especificação do tipo de escrita: a alfabética.

Para ele, o sistema de escrita alfabétic!J dó "o pdmeiro posso no direção de

tornar a língua explícita". Essa exp!icitt.:de, segundo o autor, é obtida, num

primeiro momento, em "nível grafêmiCo ': pois, dispondo de "um signo dísfínti'vo

paro cada um dos sons representodos': conta "muito menos com o

conhecimento prévio e expectativas do leitor do que outros sistemas de escrito"

{idem, p. 270). O segundo passo na direção da explicitude se deu, ainda segundo

o autor, "no n/vel semântico, ao permitk que uma dado sentença tivesse uma

único interpretação". O percurso histórico na direção da explicitude do sentido

proposto por Olson começa, portanto, com o aperfeiçoamento do sistema

alfabético pelos gregos. Estes desenvolvem o "estilo escrito" que vai - pela

influência da invenção da imprensa- dar na "técnica ensaística"britânica. Como

resultado, foi obtida "uma fonna de .fnguagem especializado em seNir às

exigências do texto autônomo, escrito, folmallzado" (idem, ib.).

Por postular que a escrita alfabéti'ca prescinde da participação do leitor

na construção do sentido, Olson se permite associá-la à explicltude, deixando a

gerotivo, acima do componente fonológico. Ainda segundo Vochek, no Vlsao de


Householder. "mesmo algumas dos línguas nOo-regisfrodos (embora certamente não em
todos} possuem uma base gerativisto que tem o mesma função nelas que a norma escrita
em knguas de cultura. (... ) Tal base é fomecida, em Jlnguas não-registradas, por um certo esh7o
falado que goza de considerável prestígio e que serve os falantes como um tipo de padrão
referenciOI"(idem, p. 32).
Vachek busco relativizar essa posição. restrinf~indo-o às comunidades lingüísticos letradas e
a falantes que dominem perfeitamente a língua escrito. Apenas nesse coso, um to! falante
"visualizorá prímeiro o formo gráfica do pofovro a ser gerado e, só entôo, será passado paro
suo formo fonológica" (idem, p. 31 ). Con·ludo, destaca que "geneticamente (tanto
Mogenética como ontogeneticamente}, não pode haver dúvida quanto à pnOridade da
palavra falado" (idem. ib.). E conclui com o postulado funcionalista de que a prioridade de
uma formo sobre outra vai depender do reação do usuário do linguagem; se a reoçóo
desejado deve ser rápida e imediato, então é provável que a formo fonológica venha em
primeiro plano; inversamente, "se se desejo rr;;•ogir de um modo documental e preservável
então o formo gráfico pode ter probabilidade de obter pdondode em relação à formo
fonológico"(idem. ib.).

31
opacidade do sentido por conta dos "significados dos falantes". Por esse artifício,

pode, então, transferir a universalidade pretendida pela teoria gerativo-

transformacional para o domínio da escrita, isto é, para uma forma especializada

de linguagem explorada pelos "ensaístas bnfânicos" e "fonnalizoda pelos

positivistas lógicos': ou, mais precisamente, para "a estn;fura da prosa escdta

autônoma': que chama "texto" (idem, p. 272}.

Nossa posição qua-nto a essa transferência, bem como quanto à própria

universalidade pretendida por essa teoria é de discordância. A importância que

atribuímos à relação histórica entre sujeito e linguagem, registrada no processo

de escrita, evidencia uma posição contrária à explidtude e à autonomia do

texto, bem como à universalidade pretendida por esse tipo de teoria. No que se

refere à ênfase na escrita, adotada, mas não reconhecido, pela própria

Lingüística, pretendemos salientar apenas que esse dado vem comprovar o

trabalho híbrido de boa parte dos lingüistas em relação à idéia de uma

dicotomia radical entre o falado e o escrito. Explícita de um modo na teoria

{preferência pelo oral), a dicotomia é recolocada de um outro modo na prática,

em que fica ímplicítado o uso de recursos enraizados na escrita.

Portanto, por menos que se possa concordar com a posição de Olson, é

possível admitir em sua argumentação alguma parcela de verdade quando ele

estabelece uma relação entre a teoria gerativo-transformocíonal e a escrita. Por

caminhos diferentes (entre sL e em relação ao da tendência autonomista de

Olson], Biberu e Abaurre chegam a conclusões semelhantes quanto à influência

da escrita nas pesquisas lingüísticas.

1~ Biber (1988}. ao comentar que o lingüística estrutural (no qual inclui o teoria gerotivo-
tronsformocionol) tem sido inconsistente quanto a considerar a primazia da fala sobre a
escrita, mostra que há um hiato entre teoria e prática na pesquisa sintática. De acordo com
o autor, embora a escrita seja desconsiderada na teoria, no prático é a fala que é
desconsiderado como não-sistemática e não--represenlatívo da verdadeíra estrutura da

32
O questionamento de Aba urre aponto, basicamente, para a possibilidade

de se mostrar a não-espontaneidade elo consciência da estrutura fonológica

segmenta!. A autora lembra que, se reolmente se chegar a essa conclusão, a

universalidade das "representações fonológicas subJacentes" proposta

especialmente pelos "modelos de inspiração menta/isto (como a Fonologia

Gerativo)" poderia ser posta em que~.tão, uma vez que "esses consfructos

teódcos" se baseiam "fortemente na noção de segmento" (idem, p. 12-3.

destaque no original). Eis, portanto. na noção de segmento, o exemplo de um

modeio fonológico baseado na escrita, mais precisamente, baseado num tipo de

representação digitalizada típico do escrita alfabétical5.

língua. Bíber chama a atenção para o paradigma geratlvo-transformacional, em que os


intuições gramaticais- dados. segundo o autor. fundamentais para a análise- coletadas por
meio de dedução verbal são mais próximos à escrito do que à fala. E conclui que. embora os
dados poro análise não sejam tomados "nem do falo real nem da escnfo real, eles são, em
sua formo, muito mais próximos da escnfo estemotípica do que do tala" {op. cit., p. 7).
15 A propósito do segmentação. valeria !embrm o procedimento llngüístico do discretizoção

o elo associado. Em primeiro lugar, é preciso entender que se. em sua relação semiótico, o
linguagem verbal dó formo ao mundo bio-sociol e às relações entre os homens. no sentido
de discreti:zá·los e tornar possível sua discursivizoção, bem diferente. porque metolingüístfca.
é o atitude analítico do lingüista, que busco quebrar a continuidade por meio do qual
percebemos a próprio linguagem.
A referência feita à noção de segmento, proveniente da digitalização próprio da escrita
alfabética. é ilustrativo dessa atitude anolíticct Como sabemos. embora essa herança do
escrito não tenha sido sempre percebida pelos lingüistas. ela tem gerado. nos lingüistas, uma
espécie de obsessão pela discretização. O relativo abandono o que, por um bom tempo,
foram relegados, por exemplo, os chamados troços supro-segmentais. revelo - pelo
dificuldade imposta à segmentação- um tipo de atitude em relação ao material lingüístico.
Na sua próprio denominação, pode-se observar o imputação de um caráter de acréscimo
em relação ao que realmente seria passível de discretização e, portanto. de interesse
analítico- os segmentos. Esse questionamento, jó um tanto antigo. pode iluminar. porém, a
mesma obsessão discretízonte em outros dimensões do llnguogem, mesmo em perspectivas
talvez menos marcadamente estruturolistos. como, por exemplo, a classificação
socíolingüística das variedades de uma língua. em que, de acordo com o número de fatores
sociais escolhidos. podemos chegar a um n(imero determinado {às vezes. excessivo) de
variedades discretas. A atitude discretizante e o limite que o próprio analista dó ao
procedimento de discretização revelam um tipo de investigação marcado por uma visão
globa!izante e homogeneizadora do material de análise. cuja positividade, assim construído.
permitiria ao analista ter acesso às partes constituintes. No caso da língua, essa relação com
o material de análise. se não levou sempre a excluir de consideração os fatos particulares
marcados pela relação histórica sujeito/!inguo•;;Jem, pelo menos deixou que se reintroduzisse,
no método adotado, esse procedimento de exclu~ão do foto particulaL
Num tom diferente e tratando especificam.ente da escrita, Marcuschi também critica a
"formo globolizante de ver o escn'fo": próprio dos que defendem a autonomia da escrito,
esse modo de ver se equivoco ao afirmar o existência de fenômenos sociais homogênos e
globais como o dos supostas "sociedades letradas", em vez de atentar poro a exístência de
"grupos letrados': representados por "e!des que detém o poder social" (J995, p. 5).

33
Essa recusa à universalização pela recusa à espontaneidade na

representação fonológica mostra estar em jogo uma convenção - a da escrita

alfabética - e não uma realidade psicológica tomada no nível abstrato das

representações. Não se trata, pois, neste caso, de aproximar a universalidade

pretendida pela gramática gerativo-transformacional ao domínio da escrita,

como queria Olson. mas de detectar um expediente da escrita alfabética (o

caráter descontínuo pelo qual ela representa a continuidade acústica dos

enunciados} tomado - mos não reconhecido - pelos gerativistos como modelo

de representação. Ainda que obliquamente, reaparece, nesse modelo de

representação, a exclusividade da escrita na construção do objeto de estudo do

lingüista. Não deixa de ser, porém, uma importante forma de emergência da

dicotomia radical entre o falado e o escrito. Talvez mesmo uma indicação de

que a dicotomia radical não se sustenta.

Propomos. neste ponto, um consenso provisório sobre a dicotomia entre o

ora!/falado e o letrado/escrito. Parece ser necessário que, de um ponto de vista

mefológico, reconheçamos a diferença, mas não a oposição radica-! entre o

oral/falado e o letrado/escrito. Não cabe, portanto, atribuir primazla16 à fa-la ou à

escrita, como insistem em fazer vários estudiosos. No consenso provisório que

estamos propondo, podemos pensar a relação entre o falado e o escrito

explorando a posição de Himes e de outros pesquisadores que estudaram o que

chamam a competência comunicativa, posição descrita por Biber pela

comparação com a noção de competência gramatical. Esta ú!tima, diz o autor,

refere-se à "estrutura lingüístiCo dos enunciados gramaticais" (incluindo fatos de

ordem fonológica, sintática e semântica), enquanto a competência

l« Ver a respeito Marcuschi {1995, p. l) e o retomada que fazemos desse autor na seçõo
seguinte {ct.. aqui mesmo. p. 50-1 ).

34
comunicativo se refere "à formo e ao uso de toda a li"nguo- incluindo a fala e a

escnfo" (op. cit., p. 7·8).

Interessa extrair da idéia de competência comunicativa não a suposta

centralidade nem a possível neutralização de um sujeito por um tipo de

universalização próprio a uma dada cultura, mas o reconhecimento mesmo da

relação histórica entre sujeito e lingua9em, presente na heterogeneidade das

várias culturas e, mais particularmente, nos suas práticas faladas ou escritos. Nesse

sentido, e pensando no texto escrito, é importante que estabeleçamos um

consenso a partir da idéia de que o texto varia de acordo com o grau de

convivência entre o oral/falado e o letrado/escrito, convivência que se ancora

nas representações que o sujeito faz de $UO própria prática lingüística.

A título de exemplo, observemos, em texto de nosso corpus, como as

representações que o sujeito faz sobre a {sua) escrita estão marcadas em seu

texto:

"Nossa Cdação
"Os fovens por não terem formação intelectual por
desinterece de ambos os lados tanto de si própdo quanto por parte
de seus governantes no coso do Brosíl.
"Não conseguem expressor suo revolta de formo criativa,.
convincente e globoi"(Texto 04-199,).

Sem entrarmos em detalhes sobre a escrita deste vestibulando, podemos

dizer que nela convivem percepções do oral/falado com percepções do

!etrado/escritol7. Destacaremos como uma percepção do ora!/falado a

constituição desse fragmento a partir de uma única "unidade de comunicação"-

conceito utilizado por Marcuschi ( 1986, p. 61-2)) para referir-se a um conteúdo

17 t preciso, porém, tomar o fragmento citado como um típico produto do escolarização,


fato que nos leva a enfatizar a ligação - muito presente em nosso material de análise - entre
os prátiCas menos formais do oral/letrado e o domínio formal da escrita instituído pela escola.

35
conversaclona! expresso numa unidade que pode ser diferente da unidade

sintática da frase. A percepção de uma só unidade de comunicação constituída

pela junção dos dois parágrafos é inegável para qualquer falante da língua

portuguesa. Daí, a facllidade com que qualquer leitor poderia rejeitar a divisão

proposta. Essa divisão em parágrafos, portanto, não tem a ver com uma

percepção, por parte do escrevente, de dois blocos temáticos separados. Pelo

contrário, ela está relacionada, segundo o que pensamos, a uma percepção

particular que o escrevente tem da escrita. O conhecimento, adquirido na

escola, de que o texto escrito deve ser separado em parágrafos parece ser. nessa

passagem, o que oriento a disposição das idéias desse escrevente no papel. Se

observarmos a tripla subordinação ' 8 que se intercala, no primeiro parágrafo, entre

o sujeito e o verbo [" {1°) por não terem fonnoçõo infelectval {2°} por desinterece

de ambos os lodos (3°) tanto de si próprio quanto por parte de seus governantes

no caso do Brasil"], talvez possamos propor um condicionamento lingüístico para

essa divisão em dois parágrafos. Do ponto de vista do escrevente, parece que a

extensão e a complexidade da sentença justificariam essa divisão. Esse

condicionamento lingüístico, confirmando, no texto do escrevente, uma imagem

18 Se levarmos em conla, nesse fragmento, a referência aos textos da colelônea (proposta

poro ser lido e utlllzodo no momento do prova), a tripla subordinação a que nos referimos
poderia ser visto como uma inserção tópica característica do texto oral, ligada à exigência
de utllizoçào do coletânea. O escrevente procura cumprir essa exigência por meio desse
tlpo de inserção na tentativa de estabelecer o diálogo com o interlocutor que constrói poro
seu texto. Com efeito, em seu estudo sobre a inserção em discurso dialogado, Jubron (1993}
afirma que "o tola díalogodo (... ) tende o apresentar caracteres de discurso não previamente
plonejóvel e, portanto, muitas vezes rupfor de estruturas conónicos" (op. cít., p. 71 ). No coso,
a unidade tópica é o produto da redefinlção do segmento gramatical "sentença
complexo"< transformando uma causo em um tópico à porle. Pode-se, então, observar dois
tópicos concorrentes: (o) "os jovem não sobem expressar suo revolto". que começa no
primeiro parágrafo e termina no segundo, porém tomado este último como independenfe;
/b} "o culpa é o desinteresse pela formação intelectual por porte dos próprios jovens e do
governo"< que é a "inserção, responsável pelo divisão do tópico em segmentos nõo-
contlguos" (idem, p. 64). Em termos orgumentativos. a inserção feita pelo escrevente pode
ser visto, ao mesmo tempo, como uma formo de trazer, coloborotlvamente, a posição que
julgo ser a de seu interlocutor e como uma tentativa de olçomento para essa posição. Por
suo vez, o separação em parágrafos proposta pelo escrevente, tomada do ponto de pista
dos procedimentos de articulação do discurso dialogado, pode ser vista como uma tentativa
de reprodução gráfica de um modo de processamento característico do texto oraL

36
que supõe como necessária a complexidade da escrita, não muda, porém. o

tipo de critério gráfico que o escrevente está utilizando na elaboração de seu

texto.

Como se vê, o escrevente trabalha com um modo heterogêneo de

constituição da escrita, ora articulando percepções do que imagina ser o

oral/falado, oro articulando percepções do que imagina dever ser o

letrado/escrito. Parece não haver razão, portanto, para propormos uma

dicotomia radical entre esses pólos.

(3) Da dicotom[zação metodológica ao modo heterogêneo de constituição da


escrita

A questão da dicotomia como recurso metodológico será vista como se

sustentando no fato de que letramento não se restringe nem à alfabetização

nem O escolarização. Por tratar-se de um processo de aprendizagem social e

histórica do leíturo e da escrita, distando-se tanto de uma preocupação voltada

para o domínio ativo e sistemático das habilidades de lere escrever- própria da

alfabetização - como de uma preocupação restrito a uma prático formo/ e


'
institvcionof de ensino- a da escola- {cf. Marcuschi, 1995, p. 2).

foi, em porte, pela crítica a essas aproximações estritas e pela afirmação

das diferenças, mas não da dicotomia19.. entre as "práticos sociais" do oral e do

letrado, que vários estudiosos vislumbraram a possibilidade de propor a dicotomia

entre os "fotos /ingü/sticos" do falado e do escrito também como um recurso

metodológico. Tais fatos lingüíSticos p·::~ssam assim a ser tratados por esses

19 A propósito, Berruto {1974} afirmo que o contraposição entre escrito e falado é multo
menos dicotômica do que parece. Segundo o autor. se a oposição entre escrito e oral
freqüentemente corresponde à oposição formal-informal, no sentido de que o escrito é
formal {cuidado e elaborado) e o falado é informai, podem ocorrer, porém, ainda com
bastante freqüência, uma escrita informal e uma fala formal {cf., op. cit., p. 78).

37
estudiosos2o não unicamente em termos do sistema, mas, sobretudo, em termos

de seu uso. Em uma dos principais verientes desse tipo de reflexão, a noção

central passa a ser a de gênero textuaL fato que se justifica não só em termos da

possibilidade de acesso a acontecimentos enunciativos que se materializam no

texto, mas também em termos da observação de seus correlatos sistêmicos, uma

vez que a língua guarda nos enuncíodos genéricos a memória das esferas de

atividades em que eles se originaram21.

Partindo da postulação de Olson, a relativização da oposição radical

entre o oral e o letrado consiste em tomar os pólos do ora! e do letrado como

opostos paro propor entre eles uma série de relações que podem terminar por

colocar em xeque a própria dicotomia. O procedimento básico da utHização

metodológica da dicotomia entre o oral e o letrado é negar uma oposição

binária entre o oral e o letrado para, em seu lugar, propor a idéia de um

contínuo. Sugerido em Olson -autor que, como adiantamos, se tornou uma das

fontes primários no que se refere ao estudo das relações entre oralidade e

escrita -, esse contínuo estaria no intervalo entre o que ele chama de

"enuncíado''(orol) e o que ele chama de "fexfo''(escrito).

No Brasil, o reconhecimento desse contínuo tem sido defendido, entre

outros estudiosos, por Marcuschi {cf. 1994 b, 1995). Curiosamente, essa idéia tem se

constituído no contraponto mais pertinente à idéia da autonomia do "texto"

{escrito) em relação ao "enunciado" (ora!) proposto pelo próprio Olson {op. cit.).

Pesquisadores como Tonnen (1982} e Chafe (1982, 1985} são duas

referências importantes quanto à consideração desse contínuo, cuja postulação

2o Estaremos omitindo o tratamento da relação entre o oral e o e5crito do ponto de vista da


história do aparecimento da escrita. Conferir, a respeito. Havelock (1996).
21 Pense-se, a propósito, na sugestão feita por Pêcheux quanto à relação entre os conceitos
de campo semântico e de subcódigo ao mostrar que eles antecipavam, no sistema. sua
proposto de regiões marcados pelo domínio particular do discurso {cf. Pêcheux, 1990 o).

38
não aparece propriamente em função da dícotomia entre oral/letrado, mas em

críticas que fazem a uma suposta autonomia entre o oral e o escrito. Com efeito,

ao explorarem as relações entre a línguo oral e a língua escrita, retificam, cada

um a seu modo, a proposição de Olson de que o técnica ensaística britânica,

desenvolvida a partir do surgimento do imprensa, teria historicamente constituído

uma modalidade escrita inteiramente aul'Ônomo em relação à língua ora!.

Preocupada diretamente com a questão da dicotomia. Tannen opta por

chamar a atenção para o problema já no título de um de seus trabalhos "O mito

da oralidade e do /etramento" (1982). Segundo a autora, "não é oralidade vs

letramento per se que é a distinção chave·: Ela adota outros critérios paro a

definição de uma oposição e condu i que a distinção chave está ligada à ênfase

no "foco relativo no envolvimento vs conleúdo" {op. cit., p. 37).

Tannen constrói sua retificação da postulação de Olson quanto à

autonomia do texto escrito ao mostrar que as convenções sociais impõem aos

usuários da língua estratégias associadas, preferencialmente, ou com a expressão

oral da linguagem, ou com sua expresSÕQ escrita ou com ambas os modalidades

de expressão verbaL Enfatizando a propriedade da lexicalização como

fundamental para a expressão escrita. a IJUtora procura recusar dois mitos quanto

ao leframento: {a) o de que "escrever é descontextuallzado": (b) o de que "o

discurso focalizado no texto é encontrado somente na escnla" (op. cit.. p. 41).

Pode-se dizer que a persistência desses mitos deve-se, em grande parte,

ao modo como tem sido encarada oquela propriedade básica da escrita

apontada pela autora: o da !exicalizoçi:Zo. Ao fo~or uma atitude específica em

relaçõo à mensagem escrita, voltada a uma fixação em seu conteúdo, esse

recurso marcaria, segundo a visão criticada, uma focalízação no texto,

39
contrariamente ao que, de fato, ocorre na língua falada, em que a atitude em

relação à mensagem é - como lembra a própria autora - inseparável da

atividade da fala. Como sugere Tannen, o envolvimento interpessoal enfatizado

no falo pode, pois, constituir-se em um dos fatores que levam a enrijecer o

preconceito segundo o qual a língua oral levaria a desprezar o texto para

foca!lzor-se basicamente na contextualização da situação imediata do discurso.

A assumir-se essa posição - chama a atenção o autora - poder-se-la pensar na

afirmação de Olson, por exemplo, de que, na fala. "o sentido está no contexto"

(apud Tannen, Idem, p. 39). A outra face desse mesmo preconceito, subdividido

pela autora nos dois mitos acima expostos, corresponde, como se adiantou, ao

fato de que, na escrita, a ênfase 'no conteúdo tem sido entendida como uma

propriedade segundo a qual a língua escrita levaria a desprezar a

contextua!ização em favor do próprio texto. A se conceber a escrita como

descontextualizada, poder-se-ia afirmar- adverte a autora -, ainda com Olson,

que, na escrito, "o sentido está no texto"(apud Tannen, fdem, ib.j.

Essa suposta descontextuaUzação da escrita baseia-se, como se vê, numa

idéia de texto totalmente desvinculada da interlocução que ele sempre e

necessariamente estabelece. Nas palavras de Marcuschi, atento a uma noção

de contexto voltada para as condições pragmáticas e cognitivas, o texto estaria

sendo visto "como produto ou artefato a ser dissecado" e não como processo

{1994 a, p. 4 e 5). A propósito, Marcuschi afirma que a contextualização não

pode caracterizar apenas uma única modalidade do uso da língua, uma vez

que, tendo o uso da linguagem um modo pragmático de existência, a

contextualização é "intrínseca ao próprio processamento lingüístico em geral"

(idem, p. 10),

40
Ainda no que se refere à retificação encaminhada por Tannen a respeito

de uma suposta autonomia do texio escrito, sua contribuição quanto a

evidenciar a ilusão dessa autonomia complemento-se pelo que a autora mostra

ser uma questão de ênfase no conteúdo, maior na escrita porque tal ênfase está

ligada ao recurso da lexicalização, mois próprio da escrita. Mas não se trata,

desta feita, de opor, por meio do grau de atenção dado ao conteúdo, ênfase no

texto (suposta como típica da escrita) a ênfase no contexto (suposta como típica

da oralidade). Justamente por se tratar de uma questão de grau de atenção ao

conteúdo, não se justificaria a definição sugerida por Olson de duas entidades

autonomamente constituídas, isto é, nôo se justificaria a proposição de uma

tendência histórica de passagem do emmciado ao texto.

Chefe (1982 e 1985}, ao explorara variável do estilo, também relativiza a

afirmação de Olson. Para tanto, propõe categorias gerais para o

estabelecimento das diferenças entre oralidade e escrita, tomando por base, do

material que investigou, em especial o que considera como "extremos da língua

falado e da lihgua escrita: conversação à mesa de jantar [formalidade mínima

investigado] e proso acadêmico [formalidade máxima investigada]" (1985, p.

122). É importante lembrar que, nesse tmbalho, o autor utiliza também exemplos

de conferências e de cartas. Se não bostasse a indicação de um contínuo no

próprio corpus, o autor explicito sua preocupação com um exame mais

detalhado desses estilos mais formais de fala {caso das conferências, por

exemplo), bem como com o exame de estilos mais descuidados de escrita (caso

das cartas, por exemplo).

Essa preocupação com estilos moís formais, é de se supor. tem a ver

também com a relativização da autonomia do texto frente à suposta

41
dependência contextual do enunciado. Ela está manifestada nas próprias

categorias obtidas, segundo Chafe aplicáveis especialmente aos estílos de fala e

escrita localizados respectivamente nos extremos de mínima e de móxima

formalidade por ele estudados. Para o autor, é particularmente relevante o fato

de que os falantes interagem com seus ouvintes diretamente, enquanto que os

escreventes não o fazem com seus leitores. Dessa distinção, Chefe conclui sobre

o maior distanciamento do escritor do que do falante em relação a suas

audiências. Assim, ao distanciamento, próprio da escrita, corresponderia o

envolvimento, próprio da fala. A esse respeito, mais uma vez o autor evidencia a

relativização das formulações de Olson, à medida que, ao tratar da "literatura

oral'', mostro que, em "linguagem ritual': as peças rituolísticas orais tendem o

apresentar certas características que ele entende como mais próprios à escrita,

como, por exemplo, a do distanciamento, uma vez que, no caso da "linguagem

n'tual': a interação com a audiência é reduzida ao mínimo.

Com a particularidade do olhar do antropólogo, também Street { 1984)

aborda diretamente a relação entre o oral e o letrado, bem como a intervenção

da escolarização e da alfabetização formais numa aldeia do !rã. fazendo fortes

críticas à dicotomia oral versus letrado, o autor divide os estudos sobre a escrita

em dois modelos básicos: o modelo que encara a escrita como autônoma - ao

qual liga, entre outros, mos de um modo especiaL O!son e Goody - e o modelo

'ideológico', que encara o letramento "em termos de práticos sociais concretas':

teorlzando-o "em termos das tdeologias em que diferentes letromentos estão

embutidos" (op. cit., p. 95).

Ao modelo chamado 'tdeo/ógico', o autor liga (entre outros) Graff,

historiador social que teve publicado, em 1979, o livro "O mito do letramenlo"

42
[The !iterocy mythj sobre o estudo de diferentes grupos profissionais e étnicos do

século XIX em cidades do Canadá. A partir desse estudo, Graff concluiu que o

letramento "correlaciono~se com a estrofifícoç6o social continuada" (apud

Street, idem, p. 105] desmitifícando a idéia, que Street atribui também- mas não

só- aos "autonomistas", de que o letramento levaria ao "desenvolvimento social,

civtYizoção e mobilidade social" (idem, p. 1O). Street ainda de um modo especiaL

liga, ao modelo 'ideológico', Clanchy, historiador que descreveu a mudança "da

memódo poro o registro escdto no Inglaterra medieval de modo a realçar o

natureza social e ideológico da prótk:a de letromento': Essa mudança fica

facilitada, segundo C!anchy, "pela con/inuoda misturo [ "mtX"] dos modos oral e

letrado·: misturo que teria levado as formas escritos o serem "adaptadas à

prática oral" mais do que a imporem a ela uma mudança radical {apud Street,

p. 10). Além desses dois historiadores, vale destacar um antropólogo, também

ligado ao modelo que Sfreet chama "idj:Jológico': Trata-se de Parry, cujo trabalho

de campo em Benares {Índia) mostro, segundo Street, que, a exemplo da

Inglaterra medievo!, "o desenvolvimento do escdta toma lugar dentro de um

sistema oral de pensamento e isto pode continuar o dominar os usos de

letromento" {Idem, p. 98}. Nas palavras de Parry, "muito do literatura sagrado do

lndio foí composto de uma formo e com uma redundância que foi claramente

planejada paro facilitar o memodzação e a repetição fiel" (apud Street, idem,

p. 99).

Podemos dizer que, em Street, vemos mais do que a dicotomização

metodológica que vem sendo destacada na seqüência da presente exposição.

O autor procura mostrar que, na aldeia do Irã em que realizou seu trabalho de

campo, a escrita comercial surgida na década de 70 é um misto [ "m1X" l entre o

43
oral e o letrado, com claro aproveitamento do letramento adquirido junto à

escola religiosa locaL Ao mostrar os raízes culturais desse letramento. o autor se

sente autorizado a colocar, no centro da dicotomia oral versus letrado, não uma

divisão que levasse, por exemplo, a afirmações sobre o desenvolvimento

cognitivo de um povo, mas, ao contrário, uma questão política. Segundo o autor,

ao mesmo tempo em que é necessário negar a dicotomia para evitar _,4


- -
discriminações do ponto de vista cognitivo {estas também com implicações

sociais óbvias), é preciso cuidar de criar "instituições que possibl1item às pessoas

adquirirem o que elas dizem que querem e não o que os professores, os [teóricos

da alfabetização] radicais {... ) acham que elos querem" {idem, p. 226}. Mas,

além da existência dessas instituições, acrescenta d autor que, a longo prazo,

essa questão política envolveria ''mudanças, no nível do ideologia, dentro das

próprios instituições" e que "um posso nessa direção seda dado pela

disseminação do modelo 'ideológico' de letromento (... ) entre as pessoas

responsáveis pela organização desses estabelecimentos, assim como entre os

pessoas que, neles, estão engaJadas no dia-a-dio do ensino de letromenfo''

{idem, P- 227-8).

Vemos, portanto, que, embora a dicotomização metodológica esteja de

alguma forma presente, a argumentação desse autor dirige-se diretamente à

tematlzação crítica da dicotomia, tomada, desse modo, pelo autor mais como

objeto de reflexão e menos como um recurso propriamente operatório. De

qualquer maneira, o que interessa destacar é que, num campo em que o

consenso parece difícil, há alguma convergência na direção de uma

abordagem que toma como matéria- em diferentes graus- a existência histórico-

social do letramento, percebido já por Luria {1988) ao tratar da pré-escrita infantil

44
como "uma função [psicológica} que se realiza, culturalmente, por mediação"

(op. cít., p. 144) e interpretada por Marcuschi em termos da relação entre práticos

sociais (ora!idade/letramento) e fatos lin~Jüísticos (fala/escrita).

Para encerrar as referências aos argumentos contrários à dicotomia radical

entre o oral e o letrado com uma reflexão mais voltada paro o campo do

literatura, Maingueneau (1993) defende que a dicotomia radical pode resultar

em uma fonte de equívocos "à medida que mistura distinções situadas em planos

diferentes". A inconsistência de critérios deve-se, para o autor, ao

embarolhamento de tais "planos dif.arentes': destacando-se: o plano dos

enunciados orais e o dos enunciados gróficos, em que se opõem "dois meios de

transmissão, os ondas sonoras e os signos gráficos" ; o plano dos enunciados

dependentes e o dos enunciados independentes do contexto não-verbal; o

plano dos enunciados de estilo escrito e o dos enunciados de estilo falado; o

plano dos enunciados mediatizados e o dos nõo-mediatizodos; o plano dos

enunciados estáveis e o plano dos enunciados instáveis. O autor segue sua

exposição, argumentando que um dos pressupostos comumente vigentes é


'
tomar o "literário''- sua preocupação principal na obra - como sendo, ao mesmo

tempo, gráfico, independente do conte:<to não-verbaL estilo escrito, mediotízado

e estáveL Contra esse pressuposto, o próprio autor argumenta que o "literónO": é

também oral; dependente do contexto {recriado); pode reproduzir estilo falado;

e que. se o "literário" é também oral. entõo o oral também pode ser mediatizado

(op. cit., p. 86-7).

A partir da dicotomização m~etodo!ógica entre o oral/letrado que

acabamos de ver, interessa. neste ponto, particulan'zar a discussão da

dicotomização metodológica para os '·'fotos lingüísticos" do falado e do escrito.

45
Como adiantamos, na dicotomização metodológica, tomam-se os pólos como

opostos paro propor entre eles uma série de relações que podem terminar por

colocar em xeque a própria dicotomia.

Iniciemos retomando o exemplo citado na seção anterior:

"Nosso Criação
"Os jovens por não terem formação intelectual por
desínterece de ambos os lados tanto de si próprio quanto por porte
de seus governantes no coso do BrostZ
"Não conseguem expressar sua revolta de fom1o criativa,
convincente e globa/"'Texto 04-199).

Como vimos, esse é um exemplo que mostra o que estamos chamando

de modo heterogêneo de constituição da escrita pela conjunção do oral/letrado

com o escrita formalmente ensinado na escola. Já vimos que ele evidencia o

jogo entre uma percepção típica do oral/falado {a de que existe oí uma ú-nica

unidade de comunicação) e a percepção típica do letrado/escrito {divisão

dessa unidade em dois blocos, como busca de uma forma sintática adequada

ao crilério gráfico da separação em parágrafos). Esse modo heterogêneo de

constituição levo-nos a propor- na linha que assume Street para o oral/letrado-

um processo de mixagem. isto é. um processo de agrupamento do heterogêneo

dos fotos lingüíSticos do falado e do escrito. Nossa posição - a exemplo do que

mostramos com relação à posição de Street - foge tanto à postulação de uma

dicotomia radical. como à assunção de um trabalho específico com o

dicotomização metodológico. Estamos mais preocupados em evidenciar o uso

da dicotomia como um recurso metodológico para nos permitirmos. nós

também, a criação de um espaço para observação do fenômeno de

agrupamento do heterogêneo, segundo o que pensamos, característico do

46
modo de constituição da escrita. Esse espaço de observação será comentado

em detalhe, como ficou dito, no capítulo 2.

Como uma primeiro contribuiçC1o para a relativização da dicotomia

radical entre o falado e o escrito na dir·eção da dícotomizoção metodológico,

Marcuschi busca enfatizar o estudo do uso da língua e do processo comunicativo

em que o texto se constitui {1994 b, p. 4 e 5). Ao mesmo tempo, o autor

problematiza o uso de dicotomias como oral versus letrado, procurando redefini-

las e alertando para o fato de que elas sôo, sobretudo: "fruto de uma observação

fundada na natureza das condições empidcas de uso do linguo (envolvendo

planeJamento e verbalização) e não de coracterisficas dos TEXTOS PRODUZIDOS"

(op. cit., p. 7, destaque nosso).

Tannen e Chofe são também autores que defendem essa nova visão da

dicotomia. Porém, o exemplo mais acabado desse procedimento é o de Biber

11988).

A dicotomia é colocado de forma direto quando Biber diz: ''seguindo

Tonnen (... ),uso o lermo 'oral' poro reftHir à falo f/pica e 'letrado' para refedr à

escrita t/pico"(op. cít., p. 44). Contudo, essa decisão. por ser apenas de natureza

operatória. não encontra correspond,ente, em seu trabalho, na realidade

empírica do volumoso conjunto de dodos que analisa. O autor adota uma

perspectiva que ele próprio avalia como sendo, ao mesmo tempo, quantitativa e

qualitativa. Quantitativa. porque trabolha com o levantamento de traços

lingüísticos em diferentes gêneros textuais e sua variação de acordo com seis

diferentes dimensôes22 - "contfnuo[s} dfJ vadações [lingüisticas} mais que pólos

22 A idéia de um contínuo entre os pólos opostos do falado e do escrito aparece em cada


uma dos seis dimensões que o autor propôe: na dimensão 1. os traços lingüísticos que
constituem os pólos desse contínuo são "produção envolvida" versus ''produção
informacíonal'; na dimensão 2: "preocupação narrativo" versus ''preocupação não~
narrativo'~ na dimensào 3: "referência explícito" versus ''referência dependente do situação';

47
discretos" {ldem, p. 38), em cujas ordenadas os gêneros textuais se localizam de

acordo com padrões de coocorrência constantes entre traços lingüísticos.

Qualitativa, porque cabe ao pesquisador interpretar os dados estatísticos obtidos

por meio de programas específicos de contagem de traços e cruzamento de

dados. Lembrando o caráter metodológico da exploração de pólos opostos em

dimensões, o autor demonstra que, isoladamente, a dimensão l (contínuo de

traços entre a produção informaciona! versus a produção envolvida) é uma

distinção fundamenta! entre "os tipos de discurso orais e letrados': Aleria, porém,

que "caroctenZações de sirm7andade ou de diferença com respeito a qualquer

dimensão isolada são inadequados e freqüentemente imprecisas" (idem, p. 168}.


Identificadas e interpretadas as dimensões lingüísticas, Biber busca

estabelecer as "relações" {idem, p. 19) que os diferentes gêneros textuais mantêm

entre si. Para tanto, focaliza os textos sob um ângulo muftidimensiona! -

comparação simultânea dos textos com respeito a todas as dimensões -, modo

pelo qual procura especificar as semelhanças lingüísticas entre os gêneros, bem

como a extensão em que são semelhantes.

Em vários momentos de seu trabalho, fica patente o consideração

metodológica da dicotomia: defende a idéia de que a distinção absoluta entre

o falado e o escrito é uma questão "não central poro as relações entre textos

falados e escdtos': deslocando o relação entre fala e escrita paro o domínio do

texto {op. cit., p. 25): define dimensão como "um contlnuo de variações mais que

pólos discretos" (idem, p. 38, destaque nosso); chama de "definição operafótia"

a definição de discurso oral e letrado (idem, p. 161, destaque nosso); afirma que

no dimensão 4: "expressão clara de persuasão': isto ê, "grau em que a persuasão é


claramente marcado" ; no dimensão 5: "informação abstrato" versus "informação não-
abstraio': dimensão 6: "elaboração informocionol on-line•: isto é. grau de e!aboraçõo
lnformacional em função das restrições da produção em tempo real (ídem. p. 104-l 15).

48
"mesmo os noções de textos 'orais' e '/eirados', tomados para representar o falo

e a escrito típicos, são construtos multidínwnsionoís." (idem, ib., destaque nosso}.

Podemos concluir, portanto, com o autor, que há, no cruzamento das

vánas dimensões, grandes surpresas em relação às expectativas normalmente

mantidas quanto à caracterização !ingüi'stica de vários gêneros textuais do inglês.

As relações mu!tidimensionaís provam sobretudo que não são dicotomias

absolutas as que definem as várias dimensões. Nesse sentido, podemos dizer que

o reconhecimento metodológico da dicotomia passou de um uso operatório

para a própria contestação de sua validade em termos empíricos, dado que o

que conta como resultado da análise não são as dimensões isoladas, mas os

gêneros textuais, definidos em termos de ''relações multidimensionoiS" e dispostos

num contínuo.

Variações do que se está chamando dicotomização metodológica estão

presentes também em trabalhos de ,ll.baurre (1990 b), Tfouni (1994) e de

Marcuschi {1994 b; 1995).

Aba urre, ao referir-se ao "trabalho seminal de ÇllsOn •; destaca a

visibilidade do contínuo que se tornou possível a partir das proposições daquele

autor e afirma o interesse metodológico da dicotomia. No entanto, ao destacar o

interesse metodológico ligado aos "/imiles desse contínuo·: primeiro relativiza a

possibilidade afirmada de vincular esses pólos a modalidades faladas ou escritas

{"[é matéria paro pesquisas de interesse} definir até que ponto se podem vincular

essas duas categorias"). Em seguida, relativiza o emprego da dicotomia em

função da realidade soclocultura!, sugerindo que o grau de vinculação das duas

categorias pode variar em "diferentes culturas" 'idem, ib., destaque nosso).

49
TfounL preocupada com um dos pólos da dicotomia, mais precisamente

preocupada em recusar a identificação entre !etramento e escolaridade, alerta

que "o letramento pode atuar indiretamente, e influenciar até mesmo culturas e

individuas que não dominam a escrita" {op. cit., p, 54). Para a autora, embora o

letramento seja um ''processo mais amplo do que a alfabetização·: ele "está

intimamente relacionado com o existência e influência de um código escrito"

(idem, ib.). Destaquemos, em primeiro lugar, na reflexão da autora, a associação

entre o letrado e o escrito. Notemos também, que, embora o pólo do oral/falado

esteja implícitado, a dicotomia reaparece considerada e novamente apenas

com função operatória, desta feita visando a uma maior precisão das noções -

ideologicamente marcadas- de letramento e de alfabetização.

Ainda de modo operatório - e filiando-se, de certo forma, à proposta de

Biber quanto ao deslocamento do relação entre o falado e o escrito para o

domínio do texto e quanto à consideração de um contínuo-, Marcuschi (1994 b}

defende a idéio da dicotomização metodológica pela postulação de que, no

texto escrito, a contextualização está !ig_ada aos gêneros textuais, os quais, sujeitos

a diversas formos de contextualização, constituem um "confinuum de uma

tipologia de formos textuais" (idem, p. 6, destaque no original). Segundo o autor, a

postulação de um "confinuum" viso localizar as diferenças "num quadro de

relações dinâmicas e evitar a dicotomia estanque" {idem, ib.). Numa outra alusão

à dicotomia, feita em tom mais programático do que metodológico, o autor

defende que a tarefa dos estudiosos não é a de "identificar primazias" entre

oralidade e escrita, mas a de "esclarecer a natureza das práticas sociais que

envolvem o uso da lingua(escnYaeoral}deummodogerol"\1995, p. 1).

50
Nesse trabalho de 1995, o autor volta ainda ao temo para dizer que "tonto

a fala como a escrito se dão num continuo de vadações, surgindo do/

semelhanças e dtferenças ao longo de dois continuas sobrepostos" {op. cit., p.

14)23. E, ao reforçar a idéia da contextuolização ligada a gêneros textuais, opta

por ver as diferenças entre fala e escrita na perspectiva de seu uso e "não do

sistemo"2 4 {idem, p. 15. destaque no original). Conclui dizendo que "centro!" é "o

eliminação da dicotomia estrita e a sugestão de uma diferenciação gradual ou

escalor"{idem. ib.).

Não nos deteremos naquelas perspectivas que optam por ver as

diferenças entre fala e escrita na perspectiva do sistema. Vale mais lembrar, que,

se a perspectiva funcionalista de filiaçãc. estruturalista direta. como a de Vachek.

por exemplo. não dá conta da reloção fala/escrita2s, mesmo em outras

2J É Interessante observar como a Idéio de um contínuo está presente na noção de registro


exposta por Berruto (op. cit.). Segundo esse autor, o registro { votiedode funcional
propriamente contextual ). diferentemente do subcódigo {•/adedade funciona/-contextual,
com um sentido mais referencial). não possui um léxico especial que o identifique. Ainda
contrariamente aos subcódigos. os registros não não enumeráveis, mas. ao contrário, ''se
dispõem em uma espécie de cont/nuo': ao longo de uma escala que vai de uma mínima o
urna máximo atenção poro com o valor formo! da mensagem. caracterizando-se pela
utilizoçôo de certos elementos do código (especialmente variantes em nível fonológico e
mortossintático) mais do que de outros {idem, p. 70-2).
2• No que se refere ao funcionamento da reloção entre o falado e o escrito no âmbito do

sistema. Vachek, em artigo de 1987, defende explicitamente o complementação funcional


entre enunciados falados e escritos (definida segundo a adequação de cada tipo a
diferentes situações). bem como a correspondência estruturaL sem a qual. segundo o autor.
o "usuódo do 1/ngua achado extremamente dii/CII passar de uma norma à outro" (1989 {1987).
p. 199}. Tomando, portanto. fala e escrita como duas normas sistêmicas, Vochek procura
mostrar uma "autonomia relativa'' da "norma escrito" em relação à "norma falada';
sobrevindo entre ambos especialmente uma diferença de funções: à "norma falado"
caberia "responder a um dado est/mulo (... ) de um modo dinâmico, isto é, rapida e
prontamente"; à "norma esctita" caberia "responder a dado est/mulo (... ) de um modo
estático" [1989 (1949), p. 2]. Vale notar qu·s em suo tentativa de legitimar o pesquiso
lingüístico no domínio da escrita. fica por resolver o problema criado pela dicotomia
língua/falo. por meio do qual Soussure deixou em aberto a questOo do uso do língua.
Um esc!orecímento bibliográfico: o obro de Vachek que estamos utilizando reúne dezenove
artigos de vários épocas. o mais antigo dos quois, datado de 1939, aparece com revisOo feita
em 1987, ano dos mais recentes artigos compHodos. No presente trabalho (o exemplo do que
fizemos na p. 30. nota 13). todas as citações obedecerão ao ano da compilação {1989),
seguido do ano do publicação original de cado adigo: [1989 (ano to!)).
25 Preso à relação entre "norma falada" e "norma escrita': Vachek deixo de lodo
determinações importantes ligados ao uso da língua como. por exemplo, aquelas em que o
eficácia do caráter funcional fica à deriva dm representações que o sujeito foz acerco de si
mesmo, de sua atividade. do que tematiza e de seu interlocutor.

51
perspectivas, voltadas para o uso e não para o sistema, a fixação exclusiva de

traços situacionais ou lingüísticos não dá conta de todos os gêneros escritos e

falados (cf, Biber, op. cit., p. 36). Desse modo, segundo Biber (idem, p. 37-42),

diferenças situacionais como:

o) canal físico - por exemplo: auditivo ou visual; subcanais prosódicos e

para!inguísticos ou léxicos e sintáticos;

b) tipo de uso cultural- por exemplo: em casa ou na escola;

c) relação entre os participantes comunicativos - por exemplo: conhecimento

partilhado, negodabi!idade do objeto e do tópico comunicativo,

conhecimento de mundo cultural partilhado;

d) relação dos partici'pantes com o contexto externo- por exemplo: extensão de

espaço e de tempo partilhado;

e} relação dos parlicipantes comunicativos com o texto - por exemplo: grau de

permanência do texto, velocidade da produção e da compreensão;

f} propósito- por exemplo: ideacional ou pessoal, interpessoal ou contextua!;

bem como diferenças funcionais utilizados em pesquisas anteriores a sua, tais

como:

a) elaboração informacional e referência explícito independente da situação.

b) interação, expressão de sentimentos pessoais e referência direta à situação

externa·

c} integração e distanciamento;

d) fragmentação e envolvimento;

não permitem- se tomadas isoladamente- avançar muito em termos da relação

falado/escrito.

52
Para justificar sua posição, Biber, negando diferentes generalizações

lingüísticas globais feitas por outros pesquisadores a partir de traços como os

enumerados acima, insiste em que~ "nenhuma dessas generalizações é

verdadeira para todos os gêneros escritos e falados" e alerta que, se "a moioda

delas são caracterizações da fala e da escrita típicas': algumas sequer à fala e à

escrita típicas se aplicam (idem, p. 47).

Dentre as importantes questões levantadas por Biber, destacamos uma

última recomendação, com a qual concluímos este tópico a respeito da recusa

da dicotomia radical entre falado e escrito. Trata-se da mudança de objeto de

análise- da língua para o texto: "nenhuma decisão a pdori" {queremos entender:

válida para a llngua como um todo) pode ser feita no sentido de determinar

"que todos os textos falados devam ser agrupados juntos como opostos o todos

os textos escn'los" (idem, p. 160). Essa atenção ao texto interessa de modo

especial ao nosso trabalho, uma vez que nos obre a possibilidade de obsetvar o

modo heterogêneo de constituição da e~scrita em tipos de textos particulares (em

nosso caso, nas dissertações). Se, como vimos, fatores situacionals, funcionais e
' .

lingüísticos, tomados isoladamente, não permitem uma amostragem da relação

efetiva entre os diversos gêneros, buscaremos observar esse modo heterogêneo

de constituição da escrita já em sua própria base semiótica.

{4) A heterogeneidade na base semíótica do falado e do escrito

Procuraremos mostrar. neste ponto. que os materiais significantes (fônico-

acústicos e gráfico-visuais) não setvem como critério definitivo para marcar a

diferença entre o falado e o escrito. Montida, uma vez mais, a distinção entre o

falado e o escrito, será questionada, porém. a atuação isolada desses materiais

significantes no processo da escrita. Na falta de uma tal pureza. buscaremos

53
questionar a aparente independência na atuação desses dois materiais

significantes, mostrando o modo heterogêneo de constituição da escrita a partir

de sua base semiótica.

Não trataremos aqui da base semiótíca do ora! e do letrado. Mais do que

a obviedade de os materiais significantes coincidirem tanto no oral e no falado

como no letrado e no escrito, a exclusão dessa abordagem tem a ver com a

percepção, menos óbvia, talvez, de que a base semiótica do letrado pode variar

muito quanto à espécie de grafismo. A economia de palavras e o predomínio de

ícones nos sinais de trânsito- o exemplo, já mencionado aqui, é de Graff, citado

por Street (op. cit., p. 110)- indica que existem diferentes formas de utílização da

matéria gráfico-visual. Como não se pretende, neste trabalho, enfocar outros

tipos de letramento, fica justificada a restrição às convenções da escrita

alfabética e a sua matéria gráfico-visual em confronto com o matéria fônico-

acústico.

(A) A base semíótica vista como coadjuvante

Não são poucas os restrições quanto ao alcance explicativo dado ao

material significante - fônico-acústico ou gráfico-visual - que dó base semiótica

ao falado e ao escrito.

Biber (1988), por exemplo, inclui o canal físico {auditivo ou visual) e o que

chama de subcanois (prosódicos e parolingüísticos ou !exicais e sintáticos) entre

as diferenças situacionais em que outros pesquisadores têm assentado distinções -

discutivels, segundo o autor, mesmo no que se refere às ocorrências mais típicas-

entre o falado e o escrito.

Também Street (1984), mesmo reconhecendo que "o controle social

freqüentemente foi exerCido por meio do controle dos materiais associados {às

54
tecnologias, estas, por sua vez, associadas às diferentes formas de !etramento] ·:

ressalto, porém, que o letramento "é mois que apenas a 'tecnologia' na qual ele

é manifesto". E contrapondo-se à posição de Goody, que fomo o "letromento

como o 'tecnologia do intelecto' ·: sustenta que o letramento extravasa os

limites do material que dá base à tecnologia.

As posições defendidas por esses autores refletem o estado da discussão

das relações entre oral/letrado e falado/escrito. As dicotomias radicais entre

esses pólos careciam de comprovação empírica e, de modo especial, Street e

Biber, embora por caminhos muito diferentes, mostram que elas são uma ficção

ou, como procuramos classificar, dão pistas de que elas podem funcionar apenas

como um recurso metodológico. Ess:a é, talvez, a principal razão para

reclamarem mais cuidado na consideração dos diferenças, especialmente

daquelas diferenças que parecem ser os mais óbvias, como é o caso da base

semiótica.

{B) A base semiófica protagonizando

Apesar dos fortes argumentos desses autores, interessa ao

encaminhamento teórico deste trabalho também a consideração de posições

que reconhecem - de modo afirmativo - o importância da base semiótica do

falado e do escrito. Serão trazidas, em primeiro lugar, contribuições diretamente

ligadas ao modo como a questão pode ser visto da perspectiva da Semiótlca.

Para tanto, será abordado a base semiótica em observações feitas por Cafiizal &

Lopes. Verón, Maingueneau, Vachek, Silva e Rossi-landi.

Em prefácio à obra de Verón (19J30}, no momento em que apresentam o

pensamento do autor sobre a questão do ideológico como "o troço deixado

pelo odgem social dos discursos'; Caf'iizal & Lopes lembram que, paro Verón, o

55
texto "não se restringe à escn'ta, nem a uma matéda significante homogênea". E

prosseguem descrevendo o pensamento de Verón sobre a maior parte dos

textos, afirmando que os textos com que temos contato diariamente apresentam-

se, em geraL como "um 'feixe' de sígnifícantes material e substancialmente

heterogêneos, escnfa-imagem, escnfo-irnagem-som, e assim por diante ... " (op.

cit, p, 4),

Vale ressaltar, novamente no relato de Cafliza! & Lopes, que o "discurso" é

produzido por operações que descrevem um "texto-objeto" como "um feixe de

matérias significantes heterogêneas': os quats, por sua vez, são descritas por

"operações de investimento de sentido" {idem, ib.).

Por sua vez, procurando de!ifnitar a tarefa do semiólogo, Verón a leria de

início:

"Os discursos sociais são objetos semioticamente


heterogêneos ou 'mixtos', nos quais inteJVêm, ao
mesmo tempo, várias matédas significantes e vádos
códigos. O próprio discurso lingü!stíco não é nunca
monocódíco: quer se trate da escrita ou do dis-curso
falado, há sempre regras parolí'ngüísticas que não
podem ser reduzidas apenas ao código da 'língua'.
Isto se aplica aos discursos que circulam no nível dos
'comunicações de mossa', mos também à
comunicação interpessoo/, sempre constí'fuída por
'pacotes' de comportamento-e-fala "{idem, p. 78-9),

Em seguida, o autor recomenda como a primeira tarefa do semlólogo a de

"deslí'ndar esta complexidade, delimitando os códigos e suo maneira diferencial

de trabalharas matérias significontes"{idem, p. 79).

A propósito do trabalho com "motén'as significantes': convém lembrar,

ainda com Verón, que a matéria em si não é um dado pertinente à semiologia,

mas sua perlinência se dá quando ela está svjeita a um investimento semiótico,

56
tornando-se uma "moténO significante" jidem, p. 65-6). O investimento semiótico

de uma matéria é regulado, segundo o autor. por um conjunto de ''regras

constitutivas", que, para o autor. seriam "uma espécie de discurso 'preliminar":

situado no !imite entre "o discursosemió~ico"e o "pré-semiótico". E, também aqui,

a idéia de um "continuum"parece ser produtiva: ao propor "quatro dimensõe$26

poro dor conto do nível de análise habitualmente referido em termos apenas da

dicotomia digital/analógico'; Verón lembra que não se trota de oposições

binários, podendo-se. pois. contar com a presença de "valores intermedián'os"

(idem, p. 66).

De particular interesse para este trabalho. que se ocupa de textos escritos,

é o investimento semiótico da matéria ~1ráfica. O próprio Verón localiza esse tipo

de investimento semiótico o partir dessa::; regras constitutivas. Segundo o autor, os

"sistemas ditos 'gráficos'" seriam consti'tutivamente substitutivos, não-arbitrários,

teriam o traço da similaridade e poderiam se apresentar ora sob o troço da

continuidade (típico dos sistemas gráficos figurativos). ora sob o traço da

descontinuidade (típico dos sistemas gráficos não-figurativos) {idem. p. 74J.


'
Como mostra o traço da continuidade. não se podem identificar. de

maneira genérica. os diferentes possíbilídades fornecidas pelo grofismo. É, pois,

útil observar como, mesmo dentro dos si:stemos gráficos, o material que se investe

de significado pode varior27.

2<- São os seguintes dimensões propostas pelo autor: desconlinvidode/confinuidade, de


acordo com o grau de possibilidade de "se isolar umdodes discretos no motéda significante";
arb!/rónó/nõo-arbitródo, de acordo com o grou de motivação ou não-motivação, tomados
no sentido saussuriano; similoddade/nõo-similaddode. de acordo com o grau de
'semelhança'. no sentido do "cnfério de 'semelhança' do qual habitualmente se falo quando
se troto de códigos analógiCos": e subsfituiçõo/contigüfdode. de acordo com o grau de
"contigüidade empiiico" entre os elementos ligados {idem, p. 66).
27 É o que Glnzburg (1991) permite concluir quando trato dos diferentes graus de abstração
intelectual em três possibilidades de investimento semiólico: as pegados (que "representam
um animal que acabou de passar"). o pictograma {em que a representação indica "um
enorme avanço em direção à abstração íntelectuol" ) e o escrita alfabética lque

57
Desse modo, podemos, a partir da caracterização dos traços genéricos

dos sistemas gráficos dada por Verón, especificar que, dentro dos sistemas

gráficos, há variações dessa matriz globalmente proposta. Esse talvez seja o caso

da escrita alfabética, que parece ser constitutivamente substitutiva, arbitrária e

apresentar o caráter da não-similaridade e da descontinuidade2s.

Contudo, também nesse caso específico, a aplicação de traços genéricos

ao sistema alfabético como um todo, tem suas limitações. Em outras palavras, a

determinação de uma matriz de traços constitutivos aplicada ao sistema de uma

maneira global não dá conta dos modos concretos de sua utilização. Que fique

ressalvado, portanto, que, mesmo que essa mafr!z de traços possa ser tomada

como válida para o sistema alfabético de uma maneira globo!, não pode sêr

aplicada, de modo estático, a todo o processo de utilização da escrita por

sujeitos concretos. Exemplos mais claros dessas variações são a pré-escrita infantil,

que parece, em alguns momentos, apresentar o caráter da simí!aridade2'?, e os

sinais gráficos de pontuação, que, agregados tardiamente ao sistema alfabético

de escrita, revelam também uma preocupação com a representação da

percepção acústica dos enunciados {percepçõo mais analógica do que digital),

tendendo, portanto, a marcar o caráter da similoridade30. A presença do traço da

similaridade em outros casos de escrita adulta será retomada no capítulo 3.

Uma discussão paralela à do investimento semiótico de um material é

aquela feita a respeito do meio. Maingueneou, baseando-se em Regis Debray,

representaria um modo ainda mais sofisticado de exercer a abstração intelectual) [op. cit,
p.l01].
1e. Note-se que, se se pode afirmar que a escrito alfabética é descontínua sob o aspecto da
correspondência fonemo/grofema ou sob o aspecto da segmentaçOo palavra/grupo de
forço e/ou grupo tonaL elo pode ser considerado contínuo quanto a seu papel de consirvir
textos. Chocon {1996), ao associar esses traços com o ritmo da escrita, fala no jogo
continuidade/descontinuidade como característico da escrito.
z9 Vejo-se. a esse respeito, lurio {1988} e Abourre (199\b, sobre o escrito icônica).
w Conferir Abourre (J991a e 199lb) sobre ritmo do escrita e Chacon (1996J, sobre o papel
dos sinais de pontuação na caracterização do ritmo da escrita.

58
afirmo: "a transmissão do texto não vem depois de suo produção, a maneira pela

qual ele se insfftui matedalmente faz pa11e integrante de seu sentido" {op. cit., p.

84, destaque no original). É útil reter, portanto, com Maíngueneau, que "as

mediações materiais3l não se vêm acrescentar ao texto como uma

'circunstância' contingente, elos intervêm no próprio constituiÇão de suo

'mensagem"' {idem. p. 85).

Em seus estudos sobre a escrita, embora defendendo uma autonomia

relativa do que chama "norma escrito" em relação ao que chama "norma

falada'; também Vachek destaca características típicas do material gráfico-

visual que merecem ser lembradas. Interessa comentar aqui a hierarquização

que pode vir registrada no enunciado impresso por seu "aspecto material" .

Segundo o autor, pode-se ter uma "importante significôncio icõnica" pelo

tamanho dos tipos utilizados [1989 {1979), p. 50]. A esse respeito, Vachek faz uma

importante inversão: certos tipos de circunlóquios, de modo geral atribuídos ao

modo escrito de recontextuallzar o falado, podem- ao contrário do que se pensa

- corresponder a recursos gráficos simples na escrita e ser obrigatórios no modo


' .

falado de expressão. A "sígnificôncio icônico" do tamanho dos tipos, por

exemplo, a partir da qual se convenciono que a informação principal vem num

tipo maior, é uma espécie de hierarquização gráfica, que, nos enunciados

31 Podemos pensar em "mediações". no plurol, mesmo numa única modalidade. Pense-se.


por exemplo. no grafismo do falado (pense-se no fala lenta) e na necessário recuperação de
uma audibilldade no escrito {condição para a sua compreensibilidade). De diferentes
maneiras, vóríos autores abordam a questão da oudibilidode na escrita. CL por exemplo,
Quirk et oi. ( 1985. p. 1446). quando esses autorj~s tratam dos sinais de pontuação. Cf. também
Chacon (op. clt., p. 158 e segs.) quando vincula pontuação e enunciação. Destaquem-se,
ainda, as formulações dadas à questão por Câmara Jr. e por Abourre. Câmara Jr., ao trator
da situação do leitor diante do texto escrito, afirmo: " [no leitor] atuo a memódo visual
coordenado com uma audição mental que os s/mbolos gráficos evocam" (1972, p. 73). Essa
audição mental não pode ser confundido, porém, com uma "pronúncia específico"
registrada no texto escrito; "é o ofo de leituro de uma formo escn'to que confere substância
tônica o um conjunto de símbolos". Dess,e modo. "essa pronúncia do palavra escnla
dependerá de uma interpretação do leitor, que terá como referêncío o vadedode de
português do qual é falante nativo" [cf. o forrrulação de Abaurre ( 1990 a. p. 194)].

59
falados, "só pode ser induzida por meios secundádos (por exemplo, através de

frases como 'Por meio de nota de rodapé, poderia ser acrescentado... ', ou 'Em

conexão com o que acabou de ser dito, poucos detalhes podem ser de

inleressse ... 'ele.}" [idem. p. 51].

Um outro recurso ligado ao material gráfico-visual atua, segundo Vachek,

na bidimensionalidade (lateralidade/vertica!idade) do enunciado escrito. Trata-

se do que o autor, ao abordar certos aspectos gráficos redundantes, chama

"zeros gráficos, isto é,. espaços vazios entre palavras escnTos (ou impressos) no

contexto gráfico" [1989 (1987e), p. 152)]. Vochek descreve esse recurso como

um recurso fodlitador3:2 da decifração da mensagem escrita, lembrando que sua

"oCorrência relativamente tardia" é bem conhecida pelos pa!eógrafos, uma vez

que "documentos pré-hisfódcos {... ) em regra carecem desses espaços vazios

entre as palavras" {idem, p. 153).

Uma particularização importante, no que se refere aos espaços em

branco, é dada por Silva {1991), desta feita de um ponto de vista lingüístico.

Tratando da escrita espontânea da criança, marcada, segundo o autor, pela

expressividade própria da linguagem ora!, Silva mostra que. mesmo quando a

criança já sabe "como funciona o sistema alfabético': ela pode desconhecer as

suas "convenções", como é o caso da utilização dos espaços em branco. A

criança pode não dominar, portanto, "que os criténOs para a colocação dos

espaços em bronco entre palavras são baseados nas classses morfológicas, o que

requer uma reflexão metalingüística que ela ainda não está opta a fazer" (op. cít.,

p. 27). Os resultados da análise sobre a escrita da criança obtidos por Silva

J2 Na mesma linha da facilitação. Câmara Jr. {J 972) destaca que "o dislnbuição do texto no
papel concorre poro tomar o leitura moís fácil e mais atraente" e descreve as 'pousas visuais'
dos espaços em branco como fatores de atração do texto. onde os olhos podem "deter-se e
repousor"(op, cit.. 86).

60
mostram que a criança ora representa "unidades e cortes semelhantes aos do

linguagem oral'; ora representa "umdodes do escnfa convencional ou aspectos

que as caracterizam·: movimento mais ou menos compatível com a alternância

entre "hipo-segmenfoções" e "hipersegmentações". Tais resultados estão, na

anólise feita por Silva, diretamente ligados à consideração do material gráfico-

visual trabalhado pelas crianças, ern particular à exploração lingüístico-

enunciativo que a criança faz no preenchimento dos espaços em branco na

escrita. Vale ressaltar, de passagem, que o tipo de alternância de critérios que a

criança utiliza nesse preenchimento - oro valendo-se de sua representação dos

cortes do linguagem oraL ora valendo-se de sua representação das unidades

da escrita convencional -interessam de perto à hipótese que defendemos aqui,

a saber, a de que, mesmo na escrita adulta, é a circulação imaginária que o

escrevente faz por certos eixos de suo representação da escrita que dão a

medida poro uma configuração particu!or do texto.

A título de conclusão dessas discussões, cujos protagonistas reconhecem e

defendem um papel específico para o material significante da escrita, será

trazido a contribuição de Rossi-landí {"1985}. Segundo o autor, "normalmente,

sobe-se quando se está falando", mas f1·eqüentemente "não se percebe que se

está emitindo continuamente mensagens de outro tipo, que pertencem a

sistemas diferentes (op. cit., p. 111 }.

Interessa destacar que o moteria! significante que dá base às

comunicações verbais é ele próprio uma das "mensagens de outro tipo" que

compõem a comunicação verbal e que se emitem sem que sejam percebidas.

O próprio autor afirma: "o corporeidade das mensagens verbais está em seus

61
veículos sígnicos: indispensáveis, mos relevantes apenas na medida em que

veiculam algo" (idem, p. 114).

Não se pode, portanto- adverte Rossi-landi -, assumir o corporeidade das

mensagens verbais como "produção e consumo de objetos': mas apenas à

medida que veiculam algo, isto é, apenas como ''produção e consumo de

mensagens". Ainda segundo o autor, assimilar o material significante a "objeto"

seria "uma forma (... ) de naturalismo: uma porção do social seria considerado

como natural, ou uma porção do apenas-social como socía/-naturo/ {idem, p.

115}. Exemplo de assunção do material significante como obJeto são as rasuras

em textos manuscritos, normalmente desconsideradas pe!o leitor. No entanto, as

mesmas rasuras, se vistos do ângulo do procedimento de retormulação do

discurso, serão produtivamente consideradas como veiculadoras de

mensagens 33.

Levar em conta o material significante no acontecimento discursivo é o

que, em outras palavras, defende Rossi-Landi. Destaquemos, pois, que, desse

ponto de vista, o material gráfico só é relevante no estudo da escrita se

considerado o seu modo de funcionamento. isto é, se considerado na

negocioção34 {em seu "valor de troco" } que a enunciação {no caso, pelo

escrita) pressupõe. Visto dessa perspectiva, seria pertinente considerá-lo como um

elemento fundamental no processar-se da escrita, tanto em sua aquisição como

em seu uso convenciono!. Desse ponto de vista, as posições que desceriam o

material significante por tomá-lo apenas em sua função (como uma

"circunstância contingente", nas palavras de Malngueneau sobre as "mediações

3.3 Conferir, a respeito, Abaurre et ai. (1995).


:u Com a idéio de "negociação", pretendemos dar conta do foto de que. na relação enire
produção e recepção do texto, há sempre aspectos homogêneos (sobre os quais se
estabelece a própria negociação) e variações possíveis {em função dos quais o texto pode
ganhar diferentes efeitos de sentido).

62
motenóis"j seriam, sob esse aspecto, consideradas como insuficientes, à medido

que só o reconheceriam como "objeto" e não como "mensagens" (isto é -

também na formulação de Maingueneau -, não como "med1óções [que]

intervêm na própda constituição [da) 'mensagem'").

(C} A base semió1ica na atividade da escrita: argumento para a recusa da


dicotomia entre o falado e o escrito

Em pelo menos dois momentos da exposição acima a questão da base

semiótica foi abordada em seu modo de ocorrência na atividade da escrita.

Mencionamos, por exemplo, que há ocosiões- como na escrita infantil, com Silva

( 1991 ), ou no uso dos sinais de pontuação, com Chacon ( 1996) - em que a escrita

alfabética tende a apresentar o traço do similaridade, isto é, tende a associar seu

modo digito! de representação a um modo mais analógico, icônico.

Mencionamos também que, no procE~sso de aquisição da escrita, a criança

explora o preenchimento dos espaços €~m branco em suas tentativas de articular

a linguagem oral e as convenções própdas da escrita.

Passaremos, neste ponto, a abordar mais diretamente a importância que

vários autores atribuem à base semiótica da escrita no sentido de que a

consideração do material significante pode aproximar o falado do escrito e levar

à recusa de uma dicotomia radical. Será considerado, em especial, o papel do

gesto na escrita. Para tanto serão citados Householder (apud Vachek}, Vygofsky,

Luria, Abaurre e Chacon.

Householder refere-se à importância da consideração de gestos que se

ligam à grafia em estudos de afasía. O relato dessa recomendação do autor é

feito por Vachek: " ... há pacientes que só são capazes de pronunciar uma palavra

63
depois de terem indicado no ar sua forma gráfica pelo gesto da mão" [1989

(1974), p. 31].

À primeira vista, poder-se-ia alegar que o que interessa nesse processo é a

palavra finalmente pronunciada, uma vez que é ela que vai, definitivamente,

resolver o problema da interação. Encará-lo, porém, como um dos elementos

não-verbais co-atuantes na enunciação pela escrita, portanto como material

significante interveniente no acontecimento discursivo do enunciado escrito, será

seguramente o caminho mais produtivo.

Essa maneira de encarar o gesto no ato de escrever nada tem a ver.

como bem lembra Rossi-Landi (cf. acima), com a "naturalidade" do gesto físico

em sL Como taL ele pÔde ter uma gamo de movimentos tão diversificado que

pode inviobilizar a interpretação. Não imporia, portanto, o gesto em si, mas o

gesto significante. A naturalidade que se pode atribuir a ele é a naturaHdade de

um comporlamento, que é, porém, integralmente social, porque ínterpretável

sistematicamente como uma convenção.

O mesmo investimento semiótico do gesto pode ser visto em algumas

afirmações de Vygotsky {1988). No contexto do "desenvolvimento pré-histórico"

da escrita infantil, esse autor inclui também o gesto como matéria significante a

ser considerada na escrita. Vygotsky estabelece como primeira tarefa da

investigação científica revelar a "pré-história do linguagem escdfa': lembrando

que "essa história começa com o aparecimento do gesto como um signo visual

paro o criança" (op. cit., p. 121 ). A importância dessa primeira tarefa está ligada

ao papel que o autor atribui ao gesto, tido como "o signo visual que contém a

futura escn"fa da criança': de tal modo importante que, freqüentemente, seriam

os "signos escritos{ ... ) simples gestos que foram fixados" {idem, ib.).

64
De nos-sa parte, no pres-ente trabalho, nossa hipótese é que na escrita

adulto - no nosso coso. a dos vestibulandos -, o escrevente constrói dimensões

conversocionais e orgumentotivos, bem como elementos da situação imediata

de enunciação, por meio de gestos que supõe plasmados nas projeções

espaciais, lingüisticamente marcadas, que faz em seu texto. O uso dos

demonstrativos, no chamado remissão exofórica, é exemplo de uma projeção

espacial lingüística mente marcada no texto escrito. Há, em nosso corpus, casos

em que, ao abordar o tema "Violência nos tnbos urbanos modemas·: o

escrevente se refere a "essas gangs"sem as ter mencionado previamente em seu

texto, contando não só com o conhecimento que supõe partilhado com o seu

leitor. mas também com a projeção espacial (no espaço gráfico) do gesto

efetivo dessa partilha (o de apontar para a situação concreto de enunciação).

Esse tipo de recurso está, ainda uma vez, ligado ao que Vygotsky chama

de "desenvolvimento pré-hiStórico" da escrita infantiL Segundo o autor os gestos

se ligam à origem dos signos escritos tanto no domínio dos "rabiscos das crianças"

como na esfera de atividade dos 'Jogos dos cn'anços". Nos rabiscos, os troços

seriam somente "um suplemento" à ·~representação gestual': no sentido de

dramatizar por gestos o que deveria ser mostrado por desenhos. Nos jogos, é "o

utilização de alguns objetos como brinquedos e a possibtlidode de executor,. com

eles, um gesto representativo" que permite atribuir "a função de signo ao objeto"

e lhe dar significado. Vygotsky acrescenta que "todo atividade representativa

simbólica é pleno desses gestos indicativos ... " (idem, p.l21-3].

Também luria, em "trabalho pioneiro" {cf. Vygotsky, idem. p. 11) sobre o

desenvo!vímento da escrita na criança, deixa entrever, em sua conceituação de

escrita, como certos "estirnulos"ou "insinuações porticulares"podem tornar-se um

65
"signo auxiliar': isto é, um signo "cujo percepção leva a cnOnça o recordar o

idéia{ ... ) a qual ele se refere" {1988. p. 144). O tema do material significante volta,

portanto, a ser tocado. Vejamos como o autor desenvolve a conceituação do

processo de escrita: "o escrever pressupõe {... } a habilidade paro usar alguma

insinuação (por exemplo, uma linho, uma mancha, um ponto} como signo

funcional aux!liar (idem, p. 145). Linhas, manchas ou pontos poderiam, portanto,

ser vístos como um investimento mais típico da chamada "escnfa sintética". Em

outras palavras, a criança estaria seguindo o cominho de uma escrita em que

"um sinal ou um grupo de sinais visa sugerir( ... ) toda uma frase': tratando-se,

segundo Martins, de uma "escrita de idéias'' [1957, p. 26). Desse modo, poder-se-

ia pensar na possibilidade de que os traços de similaridade (iconicidodeJ e de

contigüidade empírica (no caso, entre o sinal gráfico e o sentido da frase),

propostos por Verón, estariam atuando nesse investimento semiótico a partir do

plano do conteúdo. A presença do gesto parece, portanto. já suficientemente

clara na idéia de signos auxiliares (linhas, manchas ou pontos} de Luria. Ela se

confirma, porém, na observação acima citada de Vygotsky de que os rabiscos e

os gestos "estão ligados à on'gem dos signos escritos".

Ainda no que se refere à consideração do material significante presente

na escrita {no sentido de mostrar que esse material pode aproximar o falado do

escrito e levar à recusa de uma dicotomia entre essas duas modaHdades), Luria

afirma que a criança apresenta muito cedo uma tendência à "diferenoOção

ritmica·• ao anotar palavras ou frases, fazendo corresponder "linhos curtas" a

palavras ou frases curtas e "linhas longos com um grande número de rabiscos'' a

palavras ou frases longas. A esse tipo de escrita, baseada na diferenciação

rítmico, Luria chamo "escrita ritmicamente reprodutivo". Vemos, desta feita, que,

66
ao contrário da hipótese levantada acerca da "escnfo sintética'; em que o

investimento semlótico parecia partir do plano do conteúdo, a "escdta

dtmicamente reprodutiva" toma como ponto de partida o plano da expressão3s.

Partindo da idéia de Luria de uma "escdto dtmicamente reprodutiva':

Abaurre {l991) propõe o ritmo como urna categoria fundamental da escrita. A

imagem proposto pela autora para corocterizar como o ritmo se imprime na

escrita -já citado neste trabalho (cf. p. 28)- é a do "gesto nlmico"congelado em

signos gráficos. Constatamos, pois, nessa formulação, a referência a três materiais

significantes que atuam na escrita: o gesto, o material fônico-acústico {ritmo) e o

material gráfico.

Esse conceito de ''ritmo da escrito" proposto por Aba urre foi desenvolvido

por Chacon {1996) ao analisar textos de vestibulandos. Para tanto, o autor toma

os sinais de pontuação como ponto de partida de observação do ritmo da

escrita e, baseado na crítica à concepção do ritmo da linguagem como

regularidade, feita por Meschonnic, assume a idéia de uma

descontinuidade/continuidade resultantE~ da alternância que caracteriza o ritmo


'
da linguagem como um dos traços fundamentais do ritmo da escrita. Sobre o

papel do ritmo da escrita, o autor afirma que:

"ao organizar a linguagem num ato enunciativo, o


dtmo, ao mesmo tempo em que a fragmenta em
unidades multidiinensionais, promove sua integração
num fluxo discursivo (visto, este último, num movimento
entre o que é produto e o que é processo no
ativrdode verbal}" (op. cit., p. 257).

3S Sobre a ênfase no plano da expressão. Chacon (1996) mostra que "no escrito ritmicamente
reprodutivo" a criança estaria refletindo ''propríedades da substância do expressão que lhe
começam a ser significativos e que serão incorporados a suo produção gráfico noutro
domínio que não o do dimensão segmento/ do esctito alfabética. Em outros palavras. esse
tipo de escrita caracterizaria "o fentofívo da criança de refletir, em seus rabiscos reflexivos,
tõo somente alguma; propríedodes da configuração iônica das palavras e sentenças que
ouve" {op. cit, p. 77).

67
Essa observação não vai sem que, previamente, o autor destaque a presença do

falado no escrito indiciada pela pontuação. Para Chacon, a pontuação teria

esse papel, uma vez que "revela tentativas de reprodução do língua falada" e

"funciono como um recurso de interpretação paro o texto escdto" (Idem, p. 250).

Podemos observar que o pape! do gesto como um dos elementos não-

verbais co-atuantes na enunciação pela escriia está ligado o outros materiais

significantes, como os sínais gráficos de pontuação e as marcas fônico-acústicos

ligadas aos padrões rítmico-entonacionais. Constatamos, pois, que o feixe de

materiais significantes está perfeitamente integrado no modo pelo qual o escrita

se processo. Por suo vez, o caráter integrador do ritmo da escrita, que, vimos

' o "movimento entre o que


acima, institui o "fluxo discursivo" como é produto e o

que é processo na atividade verbal" !Chacon, op. cit.. p. 257) traz à

consideração a atividade do sujeito que produz linguagem. O ritmo da escrita

não é, pois, uma pura forma, mas o impressão de um gesto de alcance

mult!dimensional - ao mesmo tempo fonológico, sintático, semântico-pragmático

e enunciativo - registrado por parte do sujeito desde o momento de sua

enunciação pela escrita. Ainda nas palavras de Chocon {idem, p. 78) -

retomando Lurio {1988) - "se a escrito se caracteriza por ser rítmico é porque, em

suo gênese, está 'um reflexo do nfmo do frase pronunciada no nlmo do signo

gráfico": Dessa perspectiva, podemos dizer que o "gesto ritmico" fixa, no

produto escrito, a participação do sujeito a partir da manipulação dos materiais

significantes de que dispõe.

Admitir que as atividades comunicativas operam sempre a partir de um

feixe de materiais significantes encontra, portanto, também na idéia de ritmo da

escrita, um argumento forte. Integrar, no atividade enunciativo, as vários

68
dimensões da linguagem corresponderia, no que se refere à base semiótica, a

integrar também várias matérias significontes.

• • •
Procuramos mostrar, neste percurso, que a consideração da base

semiótica como fator de distinção entre o falado e o escrito não pode ser nem

simplesmente admitida, nem simplesmente descartada como óbvia. A maior

parte das formulações trazidas para discussão não foi feita, como pudemos ver,

diretamente para mostrar nem uma coisa nem outra. De qualquer modo,

enfatizamos, a partir delas, a recusa à obviedade da distinção entre o falado e o

escrito. Procuramos mostrar que a complexidade dessa recusa fica evidenciado

pela participação de signos não-verboi:s e de suas bases semióticas na matéria

escrita. Dado que o mo teria! a ser tomado poro análise é o produção escrita de

vestibulandos, enfatizamos apenas a vir,culação de aspectos fõnico-acústicos a

aspectos gráfico-visuais e não a vinculação na direção contrária. Mantida a

distinção entre o falado e o escrito, que$tionamos, porém, a atuação isolada de

seus materiais significantes no processo da escrita, isto é, questionamos a sua


'
pureza. Na falta de uma tal pureza, não se pode admitir uma simples oposição

entre dois materiais significantes independentes, nem, por essa via, a dicotomia

radical entre as duas formas de enundaç:ão.

(5) Algumas percepções do modo heterogêneo de constituição do oral/falado e


do letrado/escrito

Na exposição o ser adotada neste tópico, faremos um apanhado, nos

autores estudados, daquelas suas percepções que nos levam a postular um

modo heterogêneo de constituição da escrita. Para tanto, essas percepções

serão organizadas na seguinte ordem: em primeiro lugar, buscaremos a idéia de

69
uma mixagem entre o ora! e o letrado; em seguida, essa idéia será buscada na

relação entre o falado e o escrito; finalmente, buscaremos captor essa

constítuição heterogêna num fator determinante para o seu aparecimento em

todas as outras circunstâncias, qual seja, a presença do sujeito no processo de sua

produção escrita.

{A) Percepções do modo heterogêneo de constituição do oral e do


letrado

Consideramos que a posição de Tannen (1982) já tenha sido

suficientemente esclarecida. Quando a autora propõe o oral como típico falado

e o letrado como típico escrito, fica clara a percepção que elo tem de outras

possibílldades como não típicas, portanto, heterogêneas.

No que se refere à posição de Chefe (1982, 1985), valeria acrescentar

ainda uma palavra. Quando esse autor trata do que entende como paradoxal

na expressão "literatura oral': torna~se bastante elucidativa sua percepção para

a discussão que ora desenvolvemos sobre a idéia de um modo heterogêneo de

constituição da escrita. A utilização que dela estamos propondo no presente

trabalho é uma tentativa de dar nome a certos encontros entre características da

expressão oral da linguagem e caraderlsticas de sua expressão escrita no

processo da escrita.

Podemos confirmar a pertinência dessa percepção a partir do paralelo

entre os tais usos literários da oralidade comentados por Chafe - o autor destaca

o contradição interna, quanto à etimologia, presente na expressão "literatura

oral"- e certos usos literários da escrita. Ou seja, em termos culturais mais amplos,

essa fala escriturizada (aquela que, rituallzada, permanece no tempo) que Chafe

localiza na literatura oral tem um paralelo interessante na preocupação

70
mostrada por Manuel Rui, escritor e po1~ta angolano contemporâneo, quanto à

passagem das matrizes culturais autóctones ao que se convencionou chamar de

cultura letrada. Diz o escritor:

"E agora o meu texto, se ele frouxe a escn"ta? O meu


texto tem que se manter oroturizado e oraturizonte. Se
eu perco a cosmicidode do rito, perco o luta. (...) e eu
não posso retirar do meu texto o armo principal: o
identidade." {apud Secco, 1993, p. 60).

Tanto na linguagem dita "ritual" da literatura oral comentada por Chefe

como no uso literário da linguagem escrita discutido por Manuel Rui (em que o

autor propõe o registro de processos de oralidade que resgatariam os ritos de

constituição e a identidade - "as matrizes culturais autóctones" - do texto).

observa-se o modo heterogêneo de co-1stituição da oralidade e da escrita.u.

Há autores que identificam esse modo heterogêneo de constituição pelo

uso da palavra "misto" { "mix" J para designar a relação entre práticas orais e

práticas letradas. Como vimos. para Clanchy (apud Street, 1984, cf., aqui mesmo,

p 43) esse misto significa, em especial, o modo pelo qual qs fOrmas escritas foram
'
adaptadas à prática oraL Nessas adoptações das formas escritas às práticas

orais, constatamos uma percepção do modo heterogêneo de constituição da

escrita.

J6 Há, no entanto. no que se refere a esse modo heterogêneo de constituição da escrita. uma
diferença de atitude institucional com relação a modos de expressão como o exemplificado
por Manuel Rui e como o que se pode encontrar em textos escritos de vestibulandos, por
exemplo. No caso de Rui, o espaço do literário parece acomodar sem problemas uma
escrita heterogêneo. Essa diferença de atitudes institucionais coloca, na verdade, um outro
problema: o de se saber em que medido a emergência dessa heterogeneidade é tida como
adequado aos contextos pelos interlocutores. No vestibular, por exemplo, como foi visto no
Introdução deste trabalho, o candidato se confronta com um conjunto de solicitações
institucionais entre os quais se situam os exigências de adequação de seu registro de
linguagem à modalidade escrita do língua padrão, portanto o um imaginário sobre uma
dada região do língua. Já no coso de uma reportagem radiofônico. o exemplo do texto
literário, a emergência de seu modo heterogéneo de constituição parece ser admitida sem
problemas.

71
Com efeito, o propósito do afirmação de Clanchy, Street afirma que as

pessoas que hoje seriam consideradas como não-letradas não podiam ser assim

classificadas na Inglaterra medieval, pois, naquela época, participavam

regularmente da prática letrada seja por "ouvír I 'ler' " seja por "compor 1

'escrever' ". Portanto, lia quem ouvia a leitura e escrevia quem compunha e

ditava, práticas que, ao manterem a persistência dos modos orais ao lado dos

modos escritos e do uso de formas orais nos modos letrados, possibilitaram a

mudança da "memória para o regístro escrito" {op. cit., p. 120).

Esse tipo de letramento ligado à vida prática é melhor exemplificado

pelas falhas que o ensino do !etromento tradicionalmente passado nas escolas

apresenta, tanto quanto à leitura como quanto a Certos tipos de uso da escrita na

vida diária. No que se refere aos tipos de uso da escrita na vida diária, Street

mostra que, em certos casos, a escola não cobre as habilidades letradas que os

práticos sociais requisitam e que, em outros casos, não se reconhecem

habllídades letradas onde elas já existem.

Para ifustrar cada um desses aspectos recorreremos a dols exemplos do

mesmo autor. Ilustrando o primeiro caso, pode-se cítor, com Street, o exemplo de

um folheto de instruções aos professores, feito pelo ALBSU (Adu!t Literacy and

Basic Ski!ls Unit - instituição do Reino Unido), para orientá-los quanto a certas

habilidades não trabalhadas na escola. Há, segundo a ALBSU, uma discrepância

entre o !etramento passado nas escolas {que enfatizam a associação de letras a

sons) e a habilidade de "preencher um formulário': esta envolvendo a

distribuição de informação num quadro e, evidentemente, constituindo-se numa

habilidade socialmente requisitada. Essa discrepância vem destacar que essas

"habilidades sociais( ... ) são freqüentemente mais um aspecto latente do que um

72
aspecto explícito no prático de /etramento" {idem, p. 222-3). Nesse caso, somos

levados não só a estender o conceito de letramento, como também a

problematizar, na escolarização, o já problemático processo de confinamento

dos saberes informais da oralidade, uma vez que, na verdade, a escola trabalha,

inadvertidamente, com letramentos não-explícitos.

Ilustrando o segundo caso, Street cita a noção de "letramenfo oculto':

elaborada por Heath. Segundo o autor, a lingüista americana elaborou essa

noção para dor conta das diferentes atitudes em relação à leitura e ao

letramento de modo geral por parte de crianças provenientes de diferentes

comunidades. Essas atitudes estariam ligodas a práticas de letramento reforçodas

ou desencorajadas { "letramento oculto") nos diferentes tipos de interação com

adultos fora da escola (op. cit., p. 121-5 e p. 157). Neste últlmo caso, somos

levados a reconsiderar o extensão do que se chama tradição oral, uma vez que

certas habilidades letrados são trazidas justamente de fora da escola, ou seja,

justamente do espaço a que, de modo geraL se atribui, indiferenciadamente, o

predomínio da tradição oraL

Já comentados aqui {cf. p. 43-4}. os relatos que Street faz de seu próprio

trabalho e do trabalho de Porry apontam também para a percepção de um

modo heterogêneo de constituição do oral e do letrado. A escrita comercial

estudada por Street na década de 70, no lrã, se enraíza culturalmente num tipo

de !etramento já obtido na escola l"e!igiosa !oca!. Segundo o autor, esse

letramento não se atém diretamente à "decodificação" dos signos gráficos, mas,

principalmente, à leitura da distribuição do texto na página, utilizada essa leitura

do leiaute como recurso para a recitação. Por sua vez, Parry mostra que, além de

se desenvolver no interior de um sistemo ora! de pensamento. grande parte da

73
literatura sagrada da Índia - lugar de sua pesquisa - foi composta de ta! forma

que ficasse facilitada a memorização e a repetição fieL Preocupar-se com a

memorização, com o recitação, com a repetição fiel significa, para Street,

enfatizar, no material escrito, traços da oralidade.

Por outro lado, há conjeturas sobre o fato de que, mesmo em línguas sem

escrita, existe um estilo falado dotado de prestígio que serviria como um tipo de

referencial para o grupo. Um exemplo é a conjetura feita por Householder.

Segundo relato feito por Vachek, esse estllo funciona "em algumas comunidades

lingüísticos (... ) como um tipo de vínculo lingüístico de gi1Jpos étnicos menores,

dialetalmente mais diferenciados; em outros é um meio de culto religioso ou é

usado quando do memodzação de lrocflções histódcas, leis tnbois, mitos etc,': E,

mencionando uma ironia de Householder: "esse esl!lo oro/ em /ais comunidades

lingt)ísficos executa uma função análoga àquela da Acodémie Fronçaise" {1989

(1974), p. 32].

Finalmente, de um ponto de vista inverso, a saber, o de verificar a

presença do letramento na própria oralidade, é também interessante

acompanhar, ainda com Vachek, sua referência ao "estilo exp!icito"de Jakobson

e Halle, ao qual Vachek chama de "estilo lento de fala': tomado como ''padrão

referencial" para interpretar fono!ogicamente os sons. Ao tomá-lo como

referência, o autor justifica, dizendo que os "traços gráfico~sonoros" ( "sonagrophic

troces") permitem um grau de precisão e distintividade na implementação dos

fonemas individuais que é maior no "esftlo lento"do que no "esf1lo allegro"37. A

postulação de um grafismo no f!uxo temporal da fala nada mais é do que uma

:v Trata-se da sensação de movimento que, na fala, é uma percepção do distíntividade do


som variando com o velocidade; que, no soffejo, é gesto e que, pelo menos na escrito
infantiL pode ser um dos elementos da "escdto dtmicomente reprodutivo" de luria {ver, aqui
mesmo, p 66-7).

74
percepção de que, a exemp!o das práticas letradas, as práticas orais apresentam

um modo heterogêneo de constituição.

(B) Percepções do modo heterogêneo de constituição do falado e do


escrito

As percepções do modo heterogêneo de constituição do falado e do

escrito são um tanto diferentes dos percepções anteriores. Ao reconhecerem, nos

"fotos lingüísticos" do falado e do escrito, uma constituição heterogênea. autores

como Biber (1988) e Marcuschi (1995] caracterizam-na pe!a combinação de

traços, ora mais próximos do que opera1oriamente propõem como o falado, ora

mais próximos do que operatoriamente propõem como o escrito, trabalhando,

desse modo, com a idéia de um contínuo. Como adiantamos {cf., aqui mesmo,

p. 38), numa tal perspectiva, a noção de gênero- que não é apenas um recurso

operatório - passa a ser a noção forte. É sempre em relação ao gênero que a

heterogeneidade se agrupa ou se distribui. À heterogeneidade de traços que se

agrupam em cada gênero se acrescenta a heterogeneidade de gêneros que se

distribuem rio continuo.

É notório o maior refinamento alcançado na definição desses gêneros à

medida que levam em consideração, simultaneamente, suas características

língüísticos, situacionaís e funcionais. Por um lado, é contemplada boa parte dos

traços lingüísticos e situacionais que serviram sempre às oposições radicais entre o

falado e o escrito; por outro lado, são contemplados os traços funcionais que

sempre serviram às restrições de uso, inspirados, em certa medida, nos mesmos

traços situadonais e, em certa medida, nos espaços sociais nos quais se

distribuem e/ou se sobrepõem o falado e o escrito. O efeito desse refinamento é

a moderação ao se tratar dessa oposiçôo, de tal modo que afirmações radicais

75
como a que se pode encontrar em Rebou! (1980) referindo-se ao que seria "o

puro escrito e a pura fofa" {op. cit., p. 145) tornam-se difíceis de sustentar.

Ainda a propósito das percepções, nos autores estudados, de um modo

heterogêneo de constituição da escrita, abordaremos o aspecto talvez mais

polêmico das relações entre os práticas orais/faladas e letrados/escritos, a saber,

o equívoco de que o escrito "representaria" o falado.

Uma forma de questionar o papel da escrita como representação é a de

evitar o falso problema que consiste em optar por uma de duas relações possíveis

da escrito: sua relação com o mundo {ou seja, a escrita tomada como símbolo

de primeira ordem) ou sua relação com o falado {ou seja, o escrita como símbolo

de segunda ordem). Evitar esse falso problema é, para nós, tratar a escrito como

um tipo particular de enunciação. Ou seja, é observar as relações que o escrito

mantém com o mundo e com o falado no próprio processo de escrita,

explorando as possíveis flutuações do escrevente quanto ao modo de lidar com

essa ambigüidade. Nossa hipótese é, como adiantamos, a de que o escrevente,

em seu processo de escrita, circulo por um imaginário sobre a língua em suas

diferentes manifestações e variedades, imaginário que se particulariza para as

situações específicas e concretas de uso da escrlta e que se estende aos

diferentes e instáveis modos de conceber a relação escrita/mundo e escrita/fala.

Esse é o sentido de representação que estaremos utilizando neste trabalho.

Pensar a escrita simplesmente como representação do falado é não

considerar que há uma extensa gama de ruídos significativos, mas não

!exicalizados, que são inopreensíveis por uma representação segmentalizada.

Ficariam, portanto, fora dessa suposta "representação" todos os tipos de transição

76
entre as articulações-alvo, isto é, ficariam fora todas aquelas transições presentes

no contínuo dos sons que demarcam acomodações dos gestos artlculatórios.

A pontuação, se admitido como uma tentativa de "representação" dos

contornos rítmico-entonadonais, não passaria também de um recurso imperfeito.

Portanto, os traços prosódicos só podem ser registrados na escrita por meio de

recursos que os articulem a outras dimensões do linguagemJS. Mas, ao buscar a

articulação entre os traços prosódicos e essas outras dimensões da linguagem,

cada escrevente pode variar muito o conformação dada ao falado no escrita.

Esse tipo de apreensão a que todo escrevente está sujeito - e que deve ser

melhor compreendido pelos estudiosos (cf. Abaurre, 1990 b} - deve, portanto,

ganhar contornos bastante idiossincráticos, pois está marcado, entre outras

coisas, no que Tannen (op. cit.} generaliza como sendo a propriedade da

lexicalizaçâo, segundo a autora, básica na escrita39 •

38 Pode-se dlzec com base no aspecto segmenta! da escrita. que ela apanha apenas o que é
"sentido" como divisível na oralidade, incluir.do apenas os padrões ritll')ico-entonacionais
assinalados por pontuaÇão específica, como, por exemplo, as declarações, as interrogações
e m exclamações. Mas. como se sabe, a prosódia de maneiro geral não é passível de
apreensão termo a termo, mesmo porque não pode ser fixada como um segmento. Vale,
pois, o peno insistir nesse problema. que tem provocado, entre os próprios lingüistas,
importantes críticas ao modo pelo qual - segundo o que defendemos, em virtude de uma
visão do escrito como "representação" do falado - os sons do linguagem têm sido
abordados: "Sons do linguagem não são letras do escdto ortográfico (nem do tronscn'çõo
fonético), sons da linguagem não são apencrs os segmentos fonéticos dos itens lexicais, o
correspondente aos fonemas. Os sons do linguagem são todos aqueles elementos fonétícos
presentes no fala e que a moldam poro correo.~ os sigmficodos" {Cagliari, 1992, p. 50).
3~ Ainda sobre a questão do prosódia. pode-se dizer que. se hó uma tendência de
substituição do prosódia pelo léxico no escrita, é ilustrativo observar o movimento em sentido
contrário que acontece nos enunciados falados. Como mostra Cagliari (1992). há, no falado,
a possibilidade de se substituir a lexicalizaçõo pela prosódia. produzindo-se. por meio desta
última. efeitos de adjetivação ou de adverbiolização ou fazendo-o ocupar, por exemplo, o
lugar de certos conjunções. É curloso observar que esse recurso à prosódia é mais comum no
"linguagem oral mais espontânea'' -o autor cita a linguagem das crianças- do que na "fala
mais formal", uma vez que, segundo o autor. "nosso cultura exige [queJ o prosódia [reduza-
se] ao essencialmente indispensável" (op. cit., p. 55). A menor ênfase na prósodio em
ocorrências de "falo mais formal" indica um::J presença - também cultural - do escrito no
falado, presença mais sensível nos registros formais. A propósito, o mesmo autor nos lembra
de que "as pessoas aprendem o ler no escola 'dominando suas emoções', lendo o mais
'neutramente' possível[ ... ) ". E conclui: "o nosso fradiçõo escolar foi tão longe que as pessoas
na nosso cu/furo sentír-se-iom incomodados se alguém lesse como se dissesse, de verdade, o
que o leitura transmite·· (idem, p. 60).

77
Para o que interessa no momento é suficiente destacar que há, tanto no

falado como no escrito, uma realização menos evidente da linguagem, que não

é apreensivel nem pela consideração do aspecto fônico-acústico4o dos

enunciados falados, nem pela consideração do aspecto gráfico-visual da escrita,

nem pela consideração de seus diferentes tipos de elaboração do texto {falado

ou escrito), nem pela consideração de seus recursos tidos como mais típicos

(lexicalização, na escrita; e prosódia, na fala - embora não-exclusivos4l). Essa

realização menos evidente da linguagem tem a ver com a relação que se

estabelece entre o sujeito e a linguagem. Marcada por pistas lingüísticas

específicas, é ela que orienta o grau de convivência entre o oral/falado e o

letrado/escrito, bem como define o modo heterogêneo de constituição de cada

uma dessas modalidades.

A imagem que o escrevente faz da língua atua, portanto, nesse modo de

constituição da escrita e pode ser melhor compreendida a partir do estudo de

Chefe {1982) sobre o fator velocidade, por ele proposto como uma das

diferenças fundamentais no processo do falar e do escrever. Chafe estabelece

propriedades funcionais específicos para o que define como oralidade e como

escrita: o maior rapidez da fala impõe-lhe o traço da fragmentação; o

processamento mais lento da escrita caracteriza-a pelo traço do integração.

Integrar consistiria, pois, em "incorporar elementos adiôonais em uma unidade de

idéia" por melo de uma variedade de instrumentos sintáticos, tais como: o

nominalização, o uso de particípios, o uso de adjetivos atributivos, os sinfagmos

4D Abaurre ( 1990 b) mostra que foi indevido - mesmo com relação à organização do próprio
falado - o abandono da análise dos estruturas lingüísticos em outros níveis que não o
fonológico. privilegiado pelo "evidente vínculo do fónico com o oroltdode" (op. cit.. p. 4).
41 Embora a prosódia só apareça na escrita através da articulação com outros planos, por
exemplo, o próprio léxico, mas também a sintaxe, ela é, em alguma medido, recuperável nos
enunciados escritos e não pode ser visto. portanto. como exclusivo dos enunciados falados.

78
coligados, as sédes (enumerações), os seqüências de sintogmos preposicionois, os

orações comp/efivos e as orações relativas (idem, p. 37-44)42.

Nos textos escritos a serem analisados, ocorrências desse tipo, em

diferentes dimensões da linguagem, serão consideradas como produto das

atitudes dos escreventes em relação ao evento de linguagem particular

caracterizado pelo vestibular. Essas atitudes, enquanto desencadeodoras dos

procedimentos de integração e de fragmentação, serão tomadas como

diferentes maneiras de se recorrer à memória43, as quais determinam as estruturas

escolhidas e resultam em "surpresas" quanto às marcos lingüísticas presentes no

texto (não só no caso estudado dos textos escritos, mas também nos textos

falados).

Parece, portanto, mais fiel ao modo de funcionamento da relação

falado/escrito a hipótese de que - desde sua matéria gráfica, como vimos na

seção 4 - a escrita se realiza por um modo heterogêneo de constituição,

caracterizando, em função das representações do escrevente, sintaxes próprias e

tipos particulares de enunciação. Desse modo, entendemos a especificidade da

enunciação escrita como o processo pelo qual sua constituição heterogêneo

evidencia a relação do sujeito com c1 linguagem. Como última observação.

nossa busca de referências ao qu~~ estamos definindo como o modo

heterogêneo de constituição do falado e do escrito não poderia deixar de

42 t importante ressalvar, porém, que Biber. como foi visto acima {cf. p. 51-3), coloca
problemas quanto às marcas lingüísticas que, com base nos critérios da integração e da
fragmentação, poderiam ser propostas para caracterizar o falado e o escrito. Ao testar a
dimensão da "elaboração informacional on-line •; mostra que vários padrões de
''subordinação que são tipicamente associados com elaboração informociono/" co-ocorrem
com marcas normalmente associadas com "tipos de discurso não-planejados e informais"
(op. ciL p. 113). A despeito das descobertas de Biber, inclinadas o mostrar mais
aproximações do que distanciamentos entre o falado e o escrito, é interessante manter,
porém, os critérios da integração e da fragmentação como referenciais poro tipos de textos
determinados.
4.J Esta sugestão, feita pelo professora Maria Bernadete Marques Abourre em uma das sessões
de orientação, foi particularmente significativo e merece crédito explícito.

79
mencionar como esse modo de constituição é percebido no ens1no de língua

materna. Apenas para exemplificar, selecionamos dois autores: Vanoye (1986) e

Lopes (1993).

A percepção de Vanoye pode ser detectada na crítica que esse autor faz

à ''produção de mensagens mistas ou espúrias" a que são levados os alunos

pelos exercícios escolares. O autor classifica tais "mensagens mistas ou espúrias"

como "orais no emissão e escdtos no estrutura sintática e lexical" (op. dt., p. 43).

Independentemente de sua posição- mais inclinada à dicotomia radical- e dos

critérios utilizados para descrever o problema - voltados, genericamente, à

"estrutura síntótica e lexícol" e não, como vi-mos acima, aos movimentos em

direções opostas da lexica!izoção (no escrito) e' do prosódia (no falado) -, há,

nessa formulação, uma clara percepção de um modo heterogêneo na

produção de enunciados escritos. No que se refere ao julgamento negativo

dirigido, sem maiores precisões, à helerog,eneidade na produção escrita,

podemos dizer que se torna injustificado se admitirmos o modo heterogêneo de

constituição como definidor do falado e do escn'to.

Em Lopes, a existência desse modo het-erogêneo fica sugerida em artigo

sobre o uso do texto !lterórlo e do texto de massa no ensino de língua portuguesa.

O autor chega a oito valiedades44 da língua portuguesa falada no Brasil e, sem

perder de vista a fíxoçOo da "norma culto"e do "registro formal"como ''a língua"

4~ Lopes trabalha com três noções - a de norma (culto ou popular), o de registro de


comunicação (forma! ou informal) e a de modalidade de manifestação {fala ou escrita) -
paro combiná-las em "oito variedades discursivos de base do Português do Brasil.' (l} fofo
culta formal. (2) falo culta informal, (3) falo popular formai_ (4} falo popular informai, (5} escn'fa
culto formal (6} escrita cu/lo informal, (7) escdta popular formo/, (8} escrita popular informai"
{idem, p. 29). A partir da oposição entre norma culta e norma popular. o autor introduz a
noção que interessa mais de perto a este trabalho, a saber, a noção de norma "média'~ Eis,
portanto. no plano das normas, uma percepção do que estamos categorizando como modo
heterogêneo de constituição do escrita: !oco!izável, segundo o autor. "na gromatica!Jdade
da língua que serve de meio de expressão poro o mass media, o jornal, o rádio, o cinema, o
besf se/ler. o livrinho porodidótico, a HQ e, sobretudo, a televisão" (idem. p. 28).

80
ensinada na escola, lembra que, apesar de essas oito variedades coexistirem em

nosso dia-a-dia com uma "extensa série de outros vonBdades de lfnguos-objeto e

de metolfnguas elaboradas para fins especificas" {idem. p. 29}. elas são

normalmente desconsideradas no ensino de língua portuguesa. Lopes salienta,

ainda, que o "texto de massa"- o "português médio"- vem sendo utilizado, nas

aulas de língua. não como objeto de e~;tudo, mas como o substituto do "discurso

cienf/fico"e do "discurso art/slico"{idem, p. 32-3}. Para o que vamos discutir neste

trabalho, interessa reter, em particular, que íá se dispõe de uma "norma médio':

correntemente empregada nas escolas. Seria, portanto, o caso de indagar como

essa norma média se efetiva em textos escritos de vestibulandos. Por ora, a

resposta parece apontar para um modo heterogêneo de constituição da escrita.

(C} Percepções sobre a idéia de um modo heterogêneo de constituição


da escrita pela consideração da atividade do sujeito

Acreditamos poder dizer que o percurso seguido até este ponto mostra a

possibilidade de se propor um modo heterogêneo de constituição do ora!/falado


'
e do letrado/escrito. A própria base semiótica da escrita aponta para a atuação

de um feixe de matérias significantes, envolvendo, pelo menos, a presença

previgorante do gesto e a fossilização do próprio material fônlco-acústico (não

somente segmenta\} ao lado do material gráfico.

Faz-se necessário, porém, introduzir algumas diretrizes sobre o que vamos

entender por esse sujeito que escreve. Como definição provisória, será utilizada a

caracterização do escrevente proposto por Borthes {1970}. Para esse autor, "o

projeto de comunicação"do escrevente é "ingênuo", pois, ele "não admite que

81
sua mensagem se volte e se feche sobre si mesma e que se possa ler nela, de

modo diacrítico, outro coisa além do que elo querdizer"(op. cit., p. 36).

Se, por um lado, será assumido, neste trabalho, que o escrevente não

chega a atingir a dimensão diacrítica de sua escrita, por outro, enquanto objeto

de estudo, seu texto será tomado justamente como sintomático de uma relação

entre oral/letrado e falado/escrito que passa pelo escrevente e o constitui como

taL Ou, para continuar com Barthes, seu texto escrito será tomado como um texto

que fala e que se fala {idem, p. 28}. No entanto, só o faz porque esse trabalho

tem o natureza de uma prática social, cujo exercício se dá por meio de sua

inserção histórica; inalienável, portanto: {a) de sua atividade sempre simbólica (o

"como" diz}; {b} de seu{s} interlocutor(es} ["para quem" diz}; e {c) do processo

histórico em que se insere.

Vale acrescentar que, no que se refere especificamente à noção de texto

e na tentativa de dar conta tanto de seu processo de produção como de seu

processo de recepção, o texto será visto, neste trabalho, como prática de

textualização.o:s. Tencionamos, com a consideração desse processo, que também

o leitor46 seja considerado a partir das condições históricas de sua leitura.

'"Encaramos a prática de textualizaçõo não simplesmente como "produção textual", isto é.


não simplesmente no sentido em que há um produtor de texto que, como fonte e origem do
dizer, se antecipa ao próprio texto. Assumimos que o sujeito~escrevente e seu texto se
constituem no processo de textuol1zoção. processo no qual - acreditamos - é difícil saber
"onde posso o fronteira entre o texto e o 'antes do texto'" (Moingueneou, 1993. p. 47). Do
ponto de vista do efeito prático de uma tal concepção, pode-se dizer que elo evito que o
professor se coloque foro do processo de textua!izoçõo, o que pode contribuir com novos
parâmetros poro a avalíaçõo do próprio texto.
A noção de textualização aqui apresen1oda deve um crédito ao professor Eduardo Calil
que. no mini..curso "Letromenlo e Prático de Textualizoçõo': aplicou-o ao processo de
aquisição da escrita. O mini-curso foi ministrado no I! Encontro sobre Língua Falada e Escrita,
realizado na Universidade Federa! de Alagoas, em Maceió, no período de 20 o 23/1 J /95.
4 ~ O foto de o leitor nem sempre ser o interlocutor concreto origino! de um texto não mudo

em nado a sua relação histórica com o texto, Uma carta criminosamente interceptada. por
exemplo, encontrará, no próprio acontecimento desse crime, alguma razão histórica paro
uma inédito - casual e inesperado, do ponto de visto do missivisto - relação de sentido. A
respeito da relação entre aspectos homogêneos e variações possíveis no leitura do texto,
conferir, aqui mesmo, p. 62, nota 34.

82
Acreditamos que, ass1m concebido, nem o texto poderá ser visto como

totalmente aberto a qualquer tipo de interpretação - recomendação de

Marcuschi (1994, p. 5) -nem poderá ser visto como um produto acabado desde

o suo produção -observação feita por E,eaugrande {apud Marcuschi. idem, p. 4).

Prosseguindo no estabelecimento de diretrizes sobre o que se vai entender

como o sujeito que escreve, será trazidn à discussão a relação entre fala social

primária, fala interior e escrita proposta por Vygotsky ( 1987).

O estudo que Vygotsky faz do que chama "fala inten'or" mostro como, da

exterioridade de uma ''fala social pn'móría ·: o diálogo é introjetado no domínio

do sujeito. Dessa "percepção mútua" própria do diálogo, decorre, segundo o

autor, "uma 'comunicação' praticamente sem palavras, até mesmo no caso dos

pensamentos mais complexos" (idem, p. 124}, constituindo uma "falo abreviada"

ou, numa outra expressão do autor, uma "falo interior".

Seria, pois, o caso de se pensar em que medida os práticos de leframento-

nem sempre explicitas, como se viu com Heath a partir de Street (cL, aqui

mesmo, p. 73)- e o falado e o escrito com que se toma contato numa sociedade

letrada antes do alfabetização partici'pam desse processo de interiorização.

Vygotsky menciona a escrita apenas cl partir da escolarização, portanto num

momento posterior ao desenvolvimento da fala interior:

"A escrita exige um traóalho consciente porque a sua


relação com o fala interior é cf;ferenfe do relação com
a fala oral. Esta último precede o fala interior no
decorrer do desenvolvirnento~ ao posso que o escrita
segue a falo interior e pressupõe a sua existência (o
ato de escrever implica uma tradução o partir da falo
intenor}." [idem, p. 85-6).

83
A própria hipótese de Vygotsky, contudo, dá margem a pensar que, a se

considerar o letramento "oculto" e não apenas a escrita escolarizada, a fala

interior seria precedida, em alguma medida, também pela escrita. Considerada

essa possibilidade, tanto a "tolo oral" quanto "a escnfo" manteriam relação

com uma "fala interior" constltutívamente heterogênea. Mas, como alerta

Vygotsky, "o funcionamento intemo do pensamento e da linguagem está oculto

à observação direta"[idem, p. 131).

Com relação à "fala inferior': ela só é observável, segundo o autor, "por

meio da fala egocêntrica': que é "uma fala vocalizodo e oud!vel iSto é, extema

em seu modo de expressão, mas ao mesmo tempo falo inten'or em função e

estrvfura"{idem, p. 114). Porém, dado que, ainda seguhdo o autor, a fala interior

"funciona como rascunho {menta!] não apenas na escdta, mas também na fala

oral" (idem, p. 124), poder-se-io pensar em mais uma possibllidade de

observação após o declínio da fala egocêntrica. Desta feita. a fala interior,

constitutivamente heterogênea - como se esiá propondo aqui - seria, então,

passfvel de obseNoção nas "traduções" implementadas pelas enunciações

(faladas ou escritas) concreias de sujeitos particulares. Logo se vê que o interesse

se desloca da falo interior paro os enunciados escriios. Não é, pois, a própria fato

interior - inapreensível em si mesma - que se poderia entôo observar, mas, ao

contrário, como o seu modo heterogêneo de constituição pode aparecer- em

retorno- nas produções escritas.

Uma importante percepção sobre a idéia de um modo heterogêneo de

constituição da escrita pela consideração da atividade do sujeifo47, embora não

47 A apreensão lingüística dessa atividade do sujeito é tratada por Abaurre [1992) por meio do
conceito de "saliência", Segundo a autora. na escriia infantil, a criança pode marcar um
fragmento como saliente tomando por referência seu caráter conceitual, fônico ou
conceituo! e Iônico ao mesmo tempo. Em Silvo. a apreensão da atividade do sujeito é feita
especialmente por meío da saliência tônica. O autor mostra que as hipo-segmentações na

84
formulada propriamente nesses termos, vem de Silva a partir do análise de textos

de crianças" O autor propõe que o sistema de escrito da criança se organiza pela

atuação de dois tipos de representação; "poro a estrutura da cartilha, uma

representoçóo convencional úO incorporada}" e ''paro a expressividade da

linguagem oral outro, mais idiossincrótica" (1991, p. 73-4). Eis, portanto, em

pesquisa fartamente documentada, um tipo de emergência do modo

heterogêneo de constituição do oral/letrado e do falado/escrito visto da

perspectiva da atuação de sujeitos particulares.

Uma última palavra sobre essa questão é de ordem metodológica e se

reflete em toda a discussão feita até o momento. Em relatório sobre o projeto

integrado de pesquisa ':A relevância teón"co dos dados singulares na aquisição

da linguagem escn"ta': Aba urre et ai. questionam a postulação de um "cominho

natural do oralidade poro a escrita" (1995, p. 38}. E a respeito do poder

explicativo do própria relação oralidode/escrita, as autoras afirmam que é

preciso:

''deslocar a explicação de um lugar mais ingênuo - o


questão da relação oralidade/escrita, até hoje muito
mal compreendido, aliás... - para o lugar onde pode
efetivamente ser buscada a explicação poro essas
ocorrências: a relaçôo continuamente tensa e
cambiante entre o su;i.'Jifo e a linguagem" (op. cit.,
p. 40).

Na mesma linha da recusa de uma visão da relação oralidade/escrita

como "interferência" de uma modalidade na outra e buscando explicações

também na relação sujeito/linguagem, entendemos, com as autoras, que não

escrita infantil estão ligados à percepção do pronúncia de grupos tonais e de grupos de


força, os quais ''podem atuar como um referencial importante para a cdanço na definição de
suas unidades de escrita': Já as hipersegmentoçôes podem associar dois tipos de saliência: a
do caráter segmentei da escrito e o do própl'io saliência fônica, isto é. a da percepção de
um "componente tônico do fofo" {1991, p. 74}.

85
importa "a direção do movimento (. ..)se da oralidade para a escrita ou de 1das e

vindas do oral para o escrito" (idem, ib.}. O importante é poder constatar que

determinado fato revela um embate significativo do sujeito com a linguagem

para que se possa evidenciar a solução lingüística encontrada pelo escrevente

como um fato discursivo relevante para a análise. No nosso caso, estaremos

buscando fatos relevantes da relação oralidade/escrita a partir da imagem que

o escrevente faz da língua em suas diferentes manifestações e variedades,

imagem que será vista, mais especificamente, em situação de uso da escrita.

Neste ponto, já estamos em condições de propor uma conceituação

sobre o modo heterogêneo de constituição da escrita.

{6) Conceiiuoção

Destacaremos, inicialmente. que a realidade a que se refere a expressão

"modo heterogêneo de constituição da escrita" não tem a ver com avaliações

estereotipados sobre a escrita, especialmente com aquelas avaliações que

tomam como parâmetro um modelo abstrato - literário ou não - de boa escrita.

Não se trota. país, de uma apreciação negativa. Pe!o contrário: a consideração

desse modo heterogêneo pode ser útil como uma contraposição ao preconceito

comum com que se tomam as produções escritas consideradas como menos

integradas a um padrão tido como legítimo. É bom lembrar que mesmo este

último deve também ser concebido, em seu grau próprio, como produto do

mesmo modo heterogêneo de constituição.

Conforme adiantamos, evitaremos apanhar a relação entre o falado e o

escríto como uma questão de interferência - fato que traria, implícita, a

consideração de ambos os modalidades como puras. Buscaremos, ao contrário,

observar o modo heterogêneo de constituição da escrita na relação que o sujeito

86
mantém com a linguagem, ou seja, levcmdo em conta as representações que o

escrevente constrói sobre a (sua} escrita, sobre o interlocutor e sobre si mesmo.

A prática de textualização do vestibulando será vista em função dos três

eixos que propusemos como espaço para observação. Consideramos, portanto,

que essa prática se dó a partir da alternância entre a imagem sobre o modo de

constituição do escrita (representação de sua gênese48), sobre o papel

institucional da escrita {representação do código institucionalizado) e sobre o já

falado/ouvido e escrito/lido {representação das posições enunciativos

assumidas/atribuídas na heterogeneidade que caracteriza toda prática

lingüística~9); e põe em circulação re~giões ma1s ou menos precisas para o

território composto pelo oral/falado e letrado/escrito. Com maior ou menor grau

de consciência, o escrevente opera, portanto, a sua maneira, com uma

delimitação desse território.

Modo heterogêneo de comtituição da escrita é, pois, uma

particularização, para o domínio do escrita, do encontro das práticas

orais/falados e letrados/escritas, consideToda, ao mesmo tempo, o dialogia com

o já falado/ouvido e com o já escrito/lido. Esse encontro, que está presente nas

duas modalidades, embora registrado localmente, é regulado pelas instituições;

tipicamente particular, é, no entanto, historicizado. Desse modo, em

48 Sobre a escolha do palavra "gênese", conferir, aqui mesmo, p. 20, nota 4.


49 A dialogia, vista como um principio presente na linguagem, se distingue do polifonia e
permite observar a prática lingüístico a partir de sua heterogeneidade. Segundo Barros (1994),
"os textos são diolôgicos porque resultam do embate de mudas vozes soôois,· podem, no
entanto, produzir efeitos de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se
escutar, ou de monotonia, quando a diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir"
[(op. cit.. p. 6); conferir também, a respeito, Broit (1994, p. 14-15)]. É, pois. o caráter diológico
da linguagem que permite encarar o texto em sua heterogeneidade, razão pela quo! o
terceiro eixo de circulação imaginário que e:;tamos propondo funciono como o móvel de
todas os alternâncias com os demais eixos, possibilitando a apreensão da leitura feita pelo
vestibulando antes e no momento da prova {le·ituro do tema e da coletânea de textos), bem
como possibilitando. pelo diálogo que o escrevente estabelece com o já falado/escrito,
observar os flutuações de seu texto quanto a sua circulação pelos dois outros eixos de
representação do escrito.

87
determinados momentos do processo de escrita e de acordo com as

circunstâncias em que se pratica a textualização, os escreventes expõem esse

movimento de maneira privilegiada. Portanto, nosso interesse não é observar o

texto em si como mais próximo ou mais distante do oral/falado e do

letrado/escrito. mos, ao contrário. é captar, por meio das marcas desse modo

heterogêneo de constituição da escrita, a representação que o escrevente faz

de si mesmo, da (sua) escrita e de seu interlocutor. Ou seja. mais que o produto

gerado, importam os processos pelos quais o sujeito é levado a assumir uma

prática lingüística e a marcar-se nela de um certo modo.

88
Capítulo 2

COMO APREENDER O IMAGINÁRIO SOBRE A ESCRITA:

TRÊS EIXOS DE REPRESENTAÇÃO

Na Introdução deste trabalho. nos preocupamos basicamente em

caracterizar o evento de linguagem que cerca a produção das redações e o

tipo de texto escolhido para análise.

No Capítulo 1, estabelecemos um corpo de noções a partir do qual

fixamos as oriffntações teóricos básicas do trabalho. Como síntese, chegamos à

conceituação de um modo heterogêneo de constituição da escrita.

Neste ponto, considerando um evento específico de linguagem - o exame

vestibular - e o tipo de texto produzido - a dissertação -, buscaremos situar a

produção dos vestibulandos quanto à apreensão de possíveis marcas lingüísticas

que caracterizem o modo heterogêneo de constituição da escrita como o grau

de convivência do ora!/fa!ado com o letrado/escrito.

Poro tanto, apresentaremos: {1) a descrição da metodologia utilizado na

análise e {2) um exemplo a partir da análise de um texto. Serão deixados poro os

capítulos seguintes o tratamento das implicações teóricas específicos a cada um

dos três eixos apontados no capítulo anterior e a análise detalhada de cada uma

dessas três formas de emergência do modo heterogêneo de constituição da

escrita, os quais, segundo o que pretendemos demonstrar, caracterizam de modo

privHeglado a representação que, em seus textos, os sujeitos fazem sobre o

interlocutor, sobre a escrita e sobre si mesmos no qualidade de escreventes. Por

89
questão de simplificação, salvo em ocasiões em que pretendermos destacar o

jogo de representações envolvendo o escrevente, o interlocutor e a escrita, na

seqüência deste trabalho, esse mesmo jogo será referido apenas como a

imagem que o escrevente faz da (sua) escrita.

1. RASTROS DA INDIVIDUAÇÃO DOS SUJEITOS

A hipótese que orienta as opções metodológicas a serem expostas neste

capítulo é a de que as dissertações produzidas pelos vestibulandos captam a

circulação que o escrevente faz pelo imaginário sobre a constituição da escrita,

evidenciando, por meio de marcas !in~;~üísticas, uma enunciação dividida tanto

no que se refere ao modo de emergência do escrita como no que se refere ao

modo de constituição de seu interlocutor e de sua própria constituição como

escrevente.

Determinados pontos do processo de produção da escrita parecem ser

mais visitados nessa divisão do escrevente. Três deles merecerão destaque

especial e serão trotados como três eixos que orientam a circulação do

escrevente pelo imaginário sobre a escrita.

O primeiro deles, já referido no capítulo anterior, é o do modo de

constituição da escrita em sua suposta ç1ênese. Refere-se aos momentos em que,

ao apropriar-se da escrita, o escrevente tende a tomá-la como representação

termo a termo da oralidade, situação em que tende a igualar esses dois modos

de realízação da linguagem verba!.

Em contraposição a essa tentotiva de representação da escrita, um

segundo eixo privilegiado é o que carocferiza o apropriação da escrita em seu

90
estatuto de código institucionalizado. Inversamente à concepção da escrita em

sua suposta gênese , o escrevente toma, nesse caso, como ponto de partida, o

que Imagina ser um modo já autônomo de representar a oralidade.

O terceiro e último eixo que será destacado quanto à circulação do

escrevente pelo imaginário sobre o modo de constituição da escrita é o da

relação que seu texto mantém com o já falado e com o já ouvido bem como

com o já escrito e com o já lido. Por meio dessa relação, o escrevente põe~se em

contato não só com tudo quanto teve de experiência oralso, como também com

a produção escrita em geral e com uma produção escrita particular - a da

coletânea de textos {ou de fragmentos de textos) que deve ler durante a prova.

Pretendemos demonstrar que esses três aspectos da constituição da escrita

caracterizam, além da divisão enunciativo do escrevente, frês diferentes

momentos de representação dos interlocutores constituídos e do tema abordado

pelo escrevente ao estabelecer este último uma interlocução por meio da

escrita. Esse tipo de preocupação traz de volta a recomendação de Abaurre et

a! (1995) a respeito da necessidade de se deslocar a explicação dessas

ocorrências "de um lugar mais ingênuo" ligado à "questão do relação

oro!fdade/escdda" poro "o lugar onde pode efetivamente ser buscado a

explicação paro essas ocotrêncios: a relação continuamente tenso e cambiante

entre o sujeito e o linguagem" (cf .. aqui mesmo, p. 85).

A proposição desses três eixos é, pois, um dos recursos metodológicos pelos

quais procuramos deslocar a explicação do modo heterogêneo de constituição

SD Faz porte do Manual do Candidato um questionário no qual o candidato deve indicar suas
fontes de informação. Uma das alternativos que comtom como possibilidade de resposta é
a informação via TV.

91
da escrita do "lugar mais ingênuo" da "relação orolidode/escdto" paro o da

relação "entre o sujeito e o linguagem" {idem, ib.).

Como a atuação conjunta desses três eixos passo necessariamente pela

imagem que o escrevente faz da (sua) escrita, não podemos esperar que haja,

no material analisado e em estado puo, um texto definido por qualquer uma

delas isoladamente. Ou seja, a enunciação pela escrita impõe ao escrevente

várias limitações simultâneas ligadas ós hipóteses que ele faz sobre essa sua

prática, limitações que poderiam ser descritos como um jogo de aceitação e

recusa: (a) o escrevente aceita a escrito como convenção exaustiva, mas ela se

recusa a sê-lo, no sentido em que é freqüentemente atingida, desde o

oral/falado, por novas intervenções em sua individuaçãoSI histórica: {b) o

escrevente a aceita como possibilidade de alçamento do indivíduo aos discursos

estabilizados52 das instituições, mas ela se recusa a sê~lo, no sentido em que joga

com "variedades de registro invoríontes: o formal e o informal" (Lopes, 1993. p. 29)

que caracterizam um aspecto da estabí!idade instável de sua existência sócio-

histórica; e {c) o escrevente tende a aceitá-la como ato inauguraL ma.s eia se
'
recusa a sê-lo, no sentido em que é ligada ao já escrito{falado)/!ido(ouvido) e,

portanto, sujeita à emergência incontrolável da heterogeneidade típica das

práticas sociais. Atuando em diferentes direções e mesmo em direções

contraditórias, essas limitações estão presentes no ato de apropriação da escrita

e exprimem bem o dificuldade de posicionamento do escrevente nesse ato,

determinando o seu modo heterogêneo de constituição.

s1 O conceito é de Veyne ( 1983) e será comentado na seqüência da exposição.


52 Troto~sede discursos "em que existe (... ) uma instituição (científico, jurídico etc.) à qual
podem-se refedr os textos" {Pêcheux. 1990o. p. 68). Conferir também noto de Godet et ol
{idem, p. 153).

92
Dados esses três eixos e as !imitações a eles ligadas, podemos observar o

funcionamento de cada um deles em relação aos restantes. Se se destaca como

definidor de um texto o caráter "genético" das intervenções individuadas, a

atuação desse primeiro eixo em relação aos dois outros, nos atos de apropriação

da escrita por parte do escrevente, pode ser definida como o aparecimento do

modo heterogêneo de constituição da escrita pela determinação, na escrita, de

lugares específicos para o oral/falado.

Por sua vez. quando se destaca o aspecto institucional da escrito.

representado pelo segundo eixo e ligado à expectativa do escrevente de se

alçar aos discursos estabilizados das instituições, suo atuação em relação aos dois

outros eixos orienta o aparecimento do modo heterogêneo de constituição da

escrito, determinando a atribuição, por parte dos escreventes, de lugares

específicos para o letrado/escrito supostos como institucionalmente marcados.

Por fim, quando se toma como definidor o aspecto da heterogeneidade

do ato da escrita, a atuação desse terceiro eixo em relação aos dois outros

orienta o aparecimento do modo heterogêneo de constituição da escrita,

determinando lugares específicos para o próprio escrevente de acordo com o

grau de reconhecimento que manifesta em relação ao fato de estar-se

colocando numa prática social. Ao mesmo tempo, o grau de evidência quanto

ao reconhecimento de que seu ato não é inaugural, move sua apropriação do

escrita na direção do estabelecimento de lugares específicos também para seu

interlocutor e para a escrito (enfatizando ora o ora!/falado, ora o letrado/escrito},

É importante ressaltar, como forma de enfatizar o que procuramos fazer no

capítulo anterior, que a referência a um modo heterogêneo de constituição da

escrita não é uma apreciação negativa nem tem nada a ver com avaliações

93
estereotipadas sobre a escrita, especialmente com aquelas avaliações que

tomam como parâmetro um modelo abstrato de boa escrita. Trata-se, como

melhor evidencia o cruzamento dos três eixos expostos acima, de uma

enunciação dividida, que mostra não uma inadequação a um modelo, mas a

tentativa - em porte não-consciente - de reprodução de vários modelos. Em

outras palavras, marca uma resposta a modos de individuação a que o sujeito

está exposto em sua experiência com a linguagem.

Portanto, a consideração, nos textos analisados, dos "rastros" da

individuação do sujeito está vinculada tanto ao modo como os fatos lingüísticos

senSo apreendidos na análise ("rastros"} como ao modo pelo qual estamos

entendendo o sujeito da linguagem ("individuação"). Isto é, trata-se de apanhar,

em pistas lingüísticas locais, um modo de constituição desse sujeito. Tonto esse

tipo de pista, quanto o sujeito assim concebido estão referidos à hipótese da

circulação dia lógica do escrevente e, portanto, só possuem individualidade em

relação ao conceito de dialogía. Em outras palavras, são fatos individuais porque

são individuados, no mesmo sentido em que, para Veyne {1983}:

':.4 Histón'a pode ser definido como o inventán'o


explicativo não dos homens ou das sociedades,
mos daqwlo que hó de social no homem, ou, mais
precisamente, das difen~~nços manifestadas por este
aspecto social"(op. cít., p. 46).

Desnecessário lembrar tudo quanto os teorias lingüísticas que estudam o

complexidade enunciativo já mostraram sobre a presença do social no sujeito da

linguagem, o começar de Benveniste {1976). No campo do psicologia social, já

foi citada a concepção dia lógica intrínseca do pensamento verbal em Vygostky

{cf., aqui mesmo, p. 83). Ainda no cruzamento com uma psicologia social, seria

dispensável também lembrar a teoria da(s) heterogeneldade{s) enundativo(s),

94
cuja formulação mais pertinente ao que estamos discutindo é a que Authier-

Revuz (1990), ao retomar a teoria de Bakhtin sobre a dia!ogização inferno ao

discurso, propõe acerca da constituição do sujeito como um "centro exterior

constítutívo"(op. cit., p. 27).

Desse modo, os rastros da individuação do sujeito são levados em conta

não por serem essas pistas e esse sujeito singulares, no simples sentido de serem

constatáveis ~ como ju!ga o senso comum -, ou no sentido de serem passíveis de

uma localização individuo! concreta. Sua individualidade é individuação, mais

uma vez no sentido atribuído por Veyne à história:

"... a HisfónO é e~encío das diferenças, dos


individublidodes, mos tal individuação é relativa à
espécie escolhida; pode oscilar entre 'A fenos' e a
'cidade grega', ou mesmo a 'cidade antiga~ em
geral"(idem, p. 47).

Trabalhamos, pois, com a idéia de individuação tanto no tratamento do

sujeito como na abordagem das pistas lingüísticas deixadas por ele.

Particularizemos, por um momento, a discussão em forno do sujeito. Evitamos,

com a idéia de individuação, tanto o idéia de sujeito assujeitado como a idéia de

individuo. Embora não tenhamos a pretensão de criar uma nova concepção de

sujeito, recusamos também uma concepção que pretenda ser uma média das

duas outras. Tanto é verdade que, se rejeitamos integralmente a idéia de sujeito

da linguagem como indivíduo, já que não é a singularidade factua!, circunscrita

a si mesma, que enuncia, mantemos um aspecto, que consideramos

fundamenta!, da concepção do sujeito assujeitado. Trata-se da presença do

outro como constitutiva do sujeito, em nosso estudo marcada pelas idéias de

heterogeneidade e de representação, os quais, no senfido em que as estamos

95
utilizando, dão pistas da divisão enunciativo do sujeito e das formas discursivas

que identificam o sujeito a grupos. Numa outra formulação de Veyne {1971 ),

também voltada aos estudos históricos, o autor afirma que não é a

individualidade dos eventos em si que interessa à história: " [a história] busca

compreendê-los, isto é, busca encontrar neles um tipo de generalidade ou, mais

precisamente, de especificidade". E reafirma: "passa-se da singulondode

individual à especifiCidade, isto é, ao indivíduo como inteligível (é por isso que

"específico" quer dizer ao mesmo tempo "geral" e "particular"} (op. cit., p. 48).

Retomando a citação anterior ern destaque: se a "indivtduaçõo é relativo

à espécie escolhida'; no presente trabalho, a "espécie escolhida" é a divisão

enunciativo do sujeito. É, pois, o aspecto diálógico da constituição do sujeito que

transforma as pistas e o sujeito em individualidades. O estatuto metodológico

atribuído ao conceito a que Veyne chama de "espécie escolhido" pode ser

equiparado ao estatuto metodológico atribuído por Abaurre /1992) ao que a

autora chamo "regulanC/ades subjacentes" aos dados cambiantes de sujeitos

singulares (op. cit., p. 39). Filiando suo reflexão ao PE!nsàmenfo de Ginzburg,

reitera a necessidade de se atentar para o detalhe indidativo, aparentemente

irrelevante, mas que, na verdade, é "o elemento fundamental para se atingir o

grau 1... ) da adequação explicativa" lop. cit., p. 41 ).

Vem de Caprettini {1991)- outro referência de Abaurre sobre esse tema-

uma formulação, também bastante clara, sobre a importância das hipóteses na

"incessante redefiniçõo dos molduras que estruturam e enquadram um evento":

" (... ) o status semiótico de um foto observado é


determinado pelos hipóteses: o valor sintomático
de certo elemento da realidade, seu valor
referencial, dedva do decisão - tomada como
conjectura- de considerá-lo pertinente"(op. cit., p.
152).

96
Já podemos perceber pelo exposto uma certa direção metodológica

adotada neste trabalho. Explicitando-a, ainda mais, podemos dizer que, no que

se refere especificamente às pistas lingüísticas a serem buscadas pela análise, a

metodologia utilizada sustenta-se em dois modos de percepção do material: o

primeiro. atinente ao modo de apreensão da história do texto, baseia-se no que

Ginzburg (1989: 1991) chama de "paradigma indiciórío"; o segundo, sustentado

nesse método, refere-se ao modo de apreensão das marcas lingüísticas dessa

constituição histórica.

Como forma de destacar - ainda mais especificamente - a orientação

teórico em lingüística que dá base à busca dos pistas lingüísticas, o item abaixo

tratará de explicitar - ainda que resumidamente - dois dos enfoques que estarão

mais presentes nesta etapa do trabalho. Em seguida a esse item, será abordado o

modo pelo qual o paradigma indiciário será utilizado.

O enfoque lingüístico

Duas vertentes dos estudos lingüísticos estão fortemente presentes nesta

etapa do trabalho. Por um lado, estudos sobre a língua falada e sobre os

mecanismos de produção do texto em geraL especialmente dos elementos tidos

como responsáveis pela atribuição de textualidade às seqüências lingüísticas. Por

outro lodo, à tentativa de apreensão, no materiaL de traços da interação face a

face e à tentativa de descrição mais formal da organização do texto, será dado

o cunho de uma abordagem enunciativo que dê conta da circulação do

escrevente pelo imaginário sobre o modo de constituição da escrita, sobre o

próprio modo de o escrevente constituir-se como tal na escrita, bem como a seu

interlocutor.

97
Portanto, o tratamento dado ao modo heterogêneo de constituição da

escrita parte de uma descrição empírico dos textos, tomados como produtos da

língua posta em discurso, e busca, ao mesmo tempo, considerar certos

pressupostos ligados a um outro aspecto da discursivízação, qual seja, o modo de

assunção do discurso pelo escrevente, consideradas as representações que ele

faz sobre esse seu papel, sobre a oralidade e sobre a escrita, bem como a

mobilidade que adquire em função de sua divisão enunciativo.

Em termos de referências teóricas de fundo que orientam essa abordagem

dos dados, consideramos, na tomada dos textos, uma visão benvenistiana de

enunciação - língua assumida como exercício pelo indivíduo -, mas, ao mesmo

tempo, adotamos, no exercício desse sujeito constituído como escrevente, a

assunção de sua circulação dialógica pela imagem que faz sobre o seu papel

de escrevente, sobre o região do oral/falado e sobre a região do letrado/escrito-

numa visão de enunciado assumido por Bakhtin {1992), paro quem:

" ... um enunciado é sulcado pela ressonância


longinquo e quase inoud(vel do oltemâncía dos
sujeitos falantes e pelos matizes dialógicos, pelos
fronteiros extremamente tênues entre os
enunciados e tolo/mente permeáveis à
expressividade do auto/' (op. cit., p. 318).

O conhecimento que permite reconhecer a flutuação do escrevente está

também, em parte, relacionado com o:; diferentes modos de planejamento do

texto oral e do texto escrito. Tal conhecimento, porém, freqüentemente deixa de

atuar na produção escrita efetivo, pondo o escrevente em situação de variar o

grau de convivência entre oral/falado e letrado/escrito em função de seu

envolvimento com o assunto abordado ou com o destinatário a que se dirige.

Desse modo, o diálogo que, por meio de uma abordagem temática, o

98
escrevente procura estabelecer com a instituição à qual está se dirigindo termina

por colocá~lo numa posição indefinida, freqüentemente caracterizando-o como

usuário do código escrito- código a que teve acesso especialmente por meio da

escola -,sem, no entanto. deslocá-lo inteiramente de sua posição de usuário da

língua falada, fato que. em parie, também explica o modo heterogêneo de

constituição de sua escrita. Esse trânsito. embora fique bastante evidente para o

analista, é menos diretamente controlável pelo escrevente, e traz novamente à

tona o imaginário acerca dessas modalidades e do papel de escrevente. A esse

respeito, adverte, ainda uma vez, Bakhtin:

"O enunciado do outro e a palavra do outro,


conscientemente percebidos e distingwdos em sua
alterfdode, e introduzidos em nosso enunciado,
incutem-lhe algo que se poderio qualificar de
in-aciona! do ponto de visto do sistema da língua, e
em particular, do ponto de vista da sintaxe. A inter-
relação que se estabelece enlre o discurso do
outro assim inserído e o resto do discurso (pessoal}
não tem analogia com os relações sintáticos
existentes dentro dos limites de um conjunto
sintático simples ou complexo (...) Em
compensação, essas ínfer-reloções têm analogia
(sem serem, é evidente, idênticas} com os relações
existentes entre as réplicas do diálogo" (op. cit., 317-
318, destaques nossos).

Como permite entrever Bakhtin, o fator condicionante do aparecimento

dessas marcas é seu caráter de réplica. Trota-se, pois, de um fator ligado ao

enunciado (gênero utilizado, destinatário constituído, tema abordado) e não

propriamente ao sistema da língua. Esse caráter responsivo do texto põe o

escrevente, uma vez mais, em circulação pelo imaginário sobre o oral/falado e o

letrado/escrito e o constitui como escrevente. É como tal que, dirigindo-se a um

destinatário difuso - embora projetado a partir da instituição que propõe o

99
vestibular - vê sua apropriação da escrita se situar entre o que lhe foi dado

conhecer sobre ela e o que acredita trazer de inédito na intervenção que faz a

partir do seu jeito próprio de falar (mais propriamente, um dado de ineditismo de

sua individuação histórica).

Essa indecisão tem a ver com uma propriedade fundamental. embora

bastante óbvia, da interlocução produzido por meio da escrito. Trata-se da já

citada constituição da figura enunciativo do escrevente, que põe a língua em

exercício, mas sem produção vocal na linearidade do tempo. Esse dizer sem falar

impõe-lhe a busca da escrita em duas direções: (a) nas relações sintático-

semânticas próprias à construção do enunciado, por meio das quais busco

traduzir sua voz para as articulações !ÓJ;Jicas do pensamento, tal como mais ou

menos ensino a prático escolar tradicional; (b) no modo conversacional de

elaboração do discurso, sobre o qual supõe ter domínio metalingüístico, como se

fosse possível reunir todo o modo conversacional de planejamento do discurso-

pausas, preenchimento de pausas, portículas de planejamento etc. - numa

marca gráfica de entonação ou de Pausa especifica, simplificações muito

freqüentes no material sob análise.

Desse modo. o aspecto da reprodutibi!idade de uma prática tanto quanto

o dado de ineditismo de uma individuação histórica aparecem, segundo o que

pretendemos demonstrar, sempre que o escrevente alterna sua representação

da/no escrita como código já institucionalizado, como constituindo sua gênese

e/ou como relação com o já falado/ouvido bem como com o já escrito/lido, A

alternância entre esse tipo de reproduç:ão e de ineditismo, mostrada no modo

heterogêneo de constituição da escrita, pode também ser vista como a

"coexistência e ultrapassagem entre discursos': modo pelo quaL segundo

100
Possenti {1995), "a históda [no presente caso, a história da emergência do modo

heterogêneo de constituição da escrito] freqüentemente se faz de pequenos

fofos, pequenos atos que produzem pequenas alterações do que há, de usos

diversos e eventualmente não previstos dos mesmos coisas" (op. cit., p. 53-4).

O uso do paradigma índiciário na análise de textos de vestibulandos

Entre optar por uma análise que quantificasse as ocorrências das marcas

obtidas ou por buscar propriedades mais gerais que possibilitassem maior

mobilidade no tratamento das freqüentes flutuações do escrevente em relação

ao modo de construção do texto, optamos pela segunda alternativo. A própria

hipótese de partida orienta essa escolha. Trata-se de reunir um conjunto de pistas

lingüísticas em rubricas mais gerais (regularídodes) que dêem conta de captar, no

processo de escrita do escrevente, certos momentos de sua circulação dialógico

pela imagem que ele foz dos relações entre oral/falado e letrado/escrito no

constituição de sua escrito, na de seu interlocutor e na sua própria como

escrevente. A partir desse trabalho de detecção e de classificação das pistas

lingüísticas e de seu funcionamento no processo de escrita do escrevente,

esperamos poder chegar à caracterização lingüística de um modo heterogêneo

de constituição da escrita dos vestibulandos.

Para captar as marcas lingüísticas associadas à variação dessa

representação, impõe-se um tratamento cuja necessária mobilidade permita, ao

mesmo tempo, estabelecer certas propriedades axiais desse fenômeno - para

tanto foram propostos os três eixos de circulação acima expostos - e olhar para

suas ocorrências particulares não como fugas a um padrão único, mas como o

processo incessante de (re-)produção de padrões, ligados aos diferentes gêneros

101
textuais específicos da escrita. No sentido de Foucau!t {1971), essa {re-)produção

pode ser entendida como um "comentário': que, segundo o autor, se constitui

pelo "desacordo entre texto primeiro e texto segundo" e que, se, por um lado,

''permite construir (e indefinidamente) discursos novos·: por outro lado, tem por

função "dizer enfim aquilo que esta'VO articulado silenciosamente I á - em --

baixo", ou, em outra formulação do autor, traz o "novo" não "no que e dito,
mos no acontecimento de seu retomo" {op. cit., p. 27-8). A {re-)produção- como

o "comentórío"- não é, pois, a repetiçôo, mas traz o que é repetível. No caso

estudado, trata-se de um processo de {re-) produção de um padrão ligado -

como ficou sugerido na descrição do evento vestibular {cf. Introdução, p. 3-8) -a

um momento privilegiado de evidenciaç:ão do imaginário que cerca a utilização

de um dado registro {o formal) de linguagem, de uma dada modalidade {a

escrita) e de uma dada norma {a culta) ~;o!icitadas na prova.

Acreditamos poder eliminar, por meio dessa escolha metodológico, tanto

uma abordagem quantitativa, quanto uma preocupação freqüentemente

vinculada a esse tipo de abordagem: o da observação do materiol enquanto


'
produto - lugar do retorno das clá~;sicas oposições entre padrão/desvio,

regra/exceção, acerto/erro. Desse modo, embora o material analisado não

permita uma verticalização da pesquisa, no sentido de tomarmos o processo de

desenvolvimento da escrita de cada indivíduo, a abordagem procura - a partir

da caracterização precisa de um momento e de um espaço social privilegiados

no que se refere à requisição da escrita como canal - determinar, pelo

agrupamento de pistas lingüísticas, olgumas propriedades que permitem

caracterizar, nesse momento do processo, o tipo de representação do escrevente

sobre a {sua) escrita. O tratamento que procuramos dar ao material caracteriza,

102
portanto, um modo particular de estudar o processo da escrita. Partindo de

ocorrências locais de marcas lingüísticas que denunciem a divisão enunciativo

do escrevente, buscamos reunir essas marcas em rubricas mais gerais

(legulandadeSj até chegar a propriedades mais características desses textos,

visando a uma abordagem globa!izada do problema.

Até o momento, foram feitas, portanto, duas intervenções metodológicas:

uma de natureza afirmativa e uma de natureza negativa. O primeiro tipo de

intervenção consistiu em propor três eixos que, no processo de produção do

texto, regulam a apropriação da escrita e, portanto, o próprio aparecimento das

marcos lingüísticas o serem considerados como relevantes na análise. Por sua

vez, na intervenção de natureza negativa, foram excluídas a abordogehl

quantitativa e o tratamento dos textos segundo dicotomias como norma/desvio,

regra/exceção, acerto/erro, evitando, nesse sentido, a consideração dos textos

como produtos finais de um processo.

Cabe, neste ponto, dar mais determinações sobre o tipo de análise

qualitativa que pretendemos adotar. Como já adiantamos, a metodologia, no

que se refere especificamente às pistas lingüísticas a serem buscadas pela

análise, sustenta-se no que Glnzburg chama "paradigma indiciánO ". O autor

procura dar uma configuração mals precisa a esse método milenar ao mostrar a

convergência entre More!li 5 J, Ho1mess4 e Frevdss :

53 Morel!i foi um historiador de arte italiano que utilizou. pelo primeiro vez , o método indiciário
poro a atribuição correto de obras não-assinadas ou repintados. Segundo Wind, os livros de
Morel!i "estão salpicados de ilustrações de dedos e orelhas, cuidadosos registros das minúcias
características que traem o presença de um determinado artista, como um criminoso é traído
pelos suas impressões digitais" (apud Ginzburg. 1989. p. 144-5).
s.< Da dupla Holmes-Wotson, ficçõo de Conan Doyle que "representa o desdobramento de
uma figura real' um dos professores do jovem Conon Doy/e, famoso pelas suas exfraordinónOs
capacidadesdiognóstícas" (Ginzburg, op. cit .. p. 151) .
.s> Segundo Ginzburg, a leitura feita por Freud dos ensaios de Morem, representaram poro o
jovem Freud "a proposta de um método interpretativo centrado sobre os res1duos, sobre os
dados marginais, considerados reveladores" (op. cit.. p. 149). Enfre outros razões. porque
"esses dados marginais, poro More/li. eram reveladores porque constituíam os momentos em

103
"Nos três casos,. pistas talvez infinitesimais permitem
captor uma realidade mais profundo de outro
formo inatingível. Pistas/ mais precisamente. .
sintomas (no coso de Freudj, indícios (no coso de
Sherlock Holmes)r signos pictódcos (no coso de
More!Jij"(l989, p, 150),

''Como se explico essa ldp/o fnfog!o? A resposta, à


pdmeira vista é muito simples. Freud era um
médico; More/1!. formou-se em medicina,· Conan
Doyle havia sido médico antes de dediCar-se à
literatura. Nos três casos, entrevê-se o modelo da
semiótico médico: o disciplino que permite
diagnosticar os doenças inacessíveis à observação
direta na base de sintomas superficiais, às vezes
irrelevantes aos olhos do leigo'' [idem, p. 151 ).

"Mas não se trato simplesmente de coincidências


biográficos. No final do século XIX - mais
precisamente, no década de 1870...80 -, começou a
se afirmar nas ciências humanos um paradigma
indiciádo baseado justamente no sem/ótico. Mas os
suas raízes eram muito antigos" (idem, ib.).

A utilização do método indidório para a análise de textos de vestibulandos

se assenta em passos metodológicos pontuais já dados no decorrer de nossa

exposição, embora não explicitados como tais. Três desses passos, ao mesmo

tempo em que refutam a abordagem quantitativa dos dados - segunda

intervenção metodológica efetuada neste trabalho -, são, de certo modo,

integrantes da primeira grande intervenção metodológica, aquela que propõe

três eixos para obseNação da circulação que o escrevente faz pelo (seu)

imaginário sobre a escrita. Esses três passos metodológicos pontuais serem

retomados, desta feita a fim de serem defrontados com o método indiciário que

estamos propondo. São eles: {a) o tratamento do oral/falado e do letrado/escrito

que o controle do artista, ligado à tradição cultural, distendio-se poro dar lugar a traços
puramente individuais. 'que lhe escapam sem que efe se dê conto' [Morelli]. Ainda mais do
que a alusão, não excepcional naquela époco, o uma atividade inconsciente, impressiono a
identificação do núcleo lntima do individualidade orttstico com os elementos subtroldos ao
controle da consciência" (idem, p.l50).

104
-em sua heterogeneidade- como práticas sociais intimamente ligadas entre si e

inalienáveis da relação sujeito/linguagem; (b) a opção pela consideração da

imagem que o sujeito faz da escrita; {c) a consideração de pistas lingüísticas

(sintomas do processo de escrita) em vez do estabelecimento de categorias

(generalizações tomadas como evidências oferecidas pelo produto da escrita}.

No que se refere ao tratamento do oral/falado e do letrado/escrito como

práticas sociais, adiantamos apenas que a jusiificativa para essa opção estava

ligada ao tipo de material a ser analisado. Consideramos que a abordagem que

trabalha simplesmente com a relação entre fatos lingüísticos, isto é, entre o

falado e o escrito entendidos de maneira estrita, poderia terminar por reduzir a

prática de escrita dos vestibulandos apenas' como mais um fator de

escolarização da língua. Para evitar esse risco, as práticos sociais orais e letrados

foram tomadas como constitutivas dos fatos lingüísticos do falado e do escrito e,

em particular, das práticas de escrita.

Na qualidade de um passo metodológico importante, no entanto, essa

aproximação não significa uma simples sobreposição de dois fatos vistos de

forma dicotômica. Trata-se, na verdade, de uma abertura para a observação do

modo heterogêneo de constituição da escrita, uma vez que as práticas sociais

estarão sendo captadas pelas marcos que elas imprimem no material lingüístico

{no caso em questão, as marcas do letrado no escrito e no falado e as marcas do

oral no falado e no escrito), Dito de outra maneira, defendemos que, nesse modo

heterogêneo de constituição, podem ser reconhecidas as marcas do que Street

(1984) chama um ''processo social" em contraposição à intangibilidade que o

autor atribui ao letramento quando tomado em si mesmo. Segundo esse autor:

"nenhum traço mafenOI serve paro definir o


letromenfo em si mesmo. É um processo social, em

105
que tecnologias particulares, socialmente
construídos, são usados no interior de siStemas
ínsfifucionois porliculares para propósitos sociais
específicos" {op. cit., 97).

A esse respeito, é esclarecedora também a formulação de Verón {'1981)

sobre a apreensão de traços lingüísticos deixados pelas condições de produção

do discurso:

"'Processo de produçôo' é apenas o nome do


conjunto de traços que as condiÇões de produção
deíxaram no textual na forma de operações
discursiYas. {... } um fenômeno extratextual merece
o nome de condição de produção de um discurso
se e somente se deixou traços no di'icurso" {op. cit.,
106, destaque no origino!).

Tai postulação, embora proponha o texto como objeto empírico, não o isola de

sua exterioridade:

"Essa noção de texto não pressupõe qualquer


prínclpio de unidade ou de homogeneidade de tal
obj'eto, muito pelo contrón'o, um 'feixe textual'
qualquer: descoberto no social, é, deste ponto de
vis lo, lugar de manifesfoção de uma multiplicidade
de traços decorrentes de diferentes ordens de
determinação" (idem, p. 107, destaque no original).

Com efeito, é no texto do vestibulando que buscaremos os traços lingüísticos de

sua circulação dialógica pelo imaginário sobre a escrita. Nessas marcas textuais

serão buscadas as impressões que os processos sociais deixam no material

lingüístico. Em outras palavras, buscaremos, nessas marcas, o múltiplo cruzamento

entre o escrito/falado e o letrado/oral, num modo heterogêneo de constituição

que não foz mais do que denunciar a relação entre !ingua e história.

106
A relação desse passo metodológico com a assunção de um paradigma

indidório está no fato de que "o localização histónCa" de um modo heterogêneo

de constituição da escn·ta é - a exemplo do que Verón propõe acerca da

fundação de uma disciplina - "um produto do processo de reconhecimento"

{idem, p. 119). Esse "processo de reconhecimento" pode ser localizado, num uso

declaradamente indiciário, no seguinte "princípio metodológico preliminar e

geral" enunciado por Abaurre et ai (s/d):

"Buscar explicito~; durante os vários passos de cada


investigação, os crifédos que nos levam a selecionar
detalhes e indícios considerados relevantes para as
nossas análises" {op. cit., p. 13, destaque no
original).

Como vemos, as pistas lingüísticas não se oferecem espontaneamente ao desejo

do analista. A exemplo dos caçadores, é preciso, segundo Ginzburg, "dar sentido

e contexto ao troçosutú'"{1991, p. 98).

Quanto ao segundo passo metodológico adiantado, mas não explicitado,

a saber, a opção pela consideração da imagem do sujeito sobre a escrita e sua

relação com o paradigma indicíório, trata-se de uma tentativa de atribuir uma

posição de destaque à questão da representação que o escrevente faz sobre a

escrita. Procuramos, desse modo, tomar como ponto de partida poro a reflexão a

representação do escrevente sobre a escrita em lugar da representação que

Gnerre {1985) caracteriza como "elaborada por minados letradas ligadas ao

poder político e econômico" (op. cit., p. 34).

A influência da escrita é tão sentida no momento atual que já se pode até

mesmo dizer que vivemos hoíe os prenúncios de uma época da comunicação

pós-escrita. Mos, afora essa visão prospectiva e a efetivo exposição das pessoas à

107
escrita que ela denota, bastaria lembrar que a atividade de escrita que resultou

no material analisado neste trabalho pre~ssupõe, por parte dos vestibulandos, um

contato freqüente, durante pelo menos onze anos de escolarização, com a

escrita. Só esse dado já seria impeditivo da atribuição de um caráter genuíno à

representação da escrita pelos escreventes. Ainda mais se atentarmos paro o

Importante fator da "escolarização da Jfngua" apontado por Suassuna ( 1995, p.

43}, processo que a autora critica como permanecendo no "procedimento

dogmático e prescritivo" da "imposição do certo e etrado" (idem, p. 32) e em

que o ''saber escrever a próprio 1/ngua" ainda é tomado por alguns gramáticos

como ''porte dos deveres cívicos" (Almeida, apud Suassuna, idem, ib.) e como

"excelente processo de estimular o civismo" (Cunha. apud Suassuna, idem, p. 33).

Portanto, nada é tão genuíno nessa representação da escrita depois de onze

anos de escolarização. Contudo, como Já foi fartamente discutido no capítulo L

não é apenas o ensino forma! que lida com processos de letramento e a esses

anos de escolarização devem ser somodas as diferentes idades de letromento

com que cada escrevente convive na história de sua experiência com a


'
linguagem. Goody {1979) adverte. por exemplo, para o descompasso vivido

pelas pessoas em função de mudanças iecnológicas:

"... basta constderar as mudanças atuais nos países


em desenvolvimento, f~m que a passagem do
neoktico à ciência moderno se concentra no
espaço de uma vtdo humana Criado como
'bricoleur', a criança tomo-se um engenheiro, Não
sem dificuldades, que, entretanto, não se situam
[no] n/vel de oposição global entre tipos de
pensamento ou de mentali'dades· selvagens e
domésticas, mas em um nível muito mais concreto"
[op. cit.. p. 46).

108
É bastante provável, portanto, que os textos analisados sejam

extremamente ricos no que se refere a essas histórias- não apenas lineares, mas

sobrepostas umas às outros- registradas por escrito. É bastante provável também

que o analista se interesse pelo trabalho de recuperar indícios de representações

dessas experiências históricas com a linguagem - desta feita !inearizadas no texto,

estando a cargo de seu método de reconhecimento reagrupá-las e explicá-las.

Eis, portanto, a relação entre esse segundo passo metodológico e a assunção do

método indiciário.

Quanto ao terceiro e último passo metodológico antecipado, mas não

explicitado, trata-se da consideração de pistas lingüísticas em vez do

estabelecimento de categorias. Caprettini faz, com precisão, a distinção entre o

discurso enigmático dos sintomas e o das evidências:

" {... ) o leitura implica decisões constantes, de


modo a controlar a pressão dos indícios, Sabendo-
se que nem tudo é relevante na apresentação {... )
o problema é separar o discurso discreto e
enigmático dos sintomas daquele da evidência
(freqüentemente, um discurso ruidoso)" (op. cit., p.
151 ).

O autor te matiza, nesse trecho, o risco de se tomar como evidente apenas

o que parece ser mais visíveL E está dito o que "parece ser mais visível" porque,

mesmo em relação a essas evidências, é sempre um tipo de olhar que dirige o

observador para a conclusão bem ou malsucedida. Para continuar com o autor,

é ilustrativo observar a citação de uma falo de Sherlock Holmes dirigida a Watson:

"Você não sabia para onde olhar e, assim, você perdeu o que havia de mais

importonte"(idem, ib.).

109
É saber "paro onde olhar" uma das questões fundamentais quando se

adota o método indiciário também para estudar o processo da escrita dos

escreventes observando a relação sujeito/linguagem. Não bastam, no caso de

um tal estudo, os categorias com que, grosseiramente - imaginariamente, é

preferível!-, se classificam os textos orais ou escritos tomados como produto.

A favor da interpretação de "fragmentos" indiciativos de interação e no

contexto de um questionamento da proíeção pura e simples das descobertas do

Lingüística para a Psicolingüística, de lemos {l986) propõe:

"É através [da] interpretação constante, ou dos


processos diafógicos que a traduzem, que
fragmentos, informes ou restdfos a uma função de
indices de esquemas interacionals, ganham
eficácia cognitivo e comunicatlva"(op. cit., p. 243).

'\ ... )Outra conseqüência teórico-metodológica do


compromisso-travo [a autora refere-se, citando
artigo de Maia (1985), ao compromisso da
Pslco!ingüística com a Lingüística como uma trava
no olho do pesquisador] é a projeção do ordem
dos componentes -pragmática, semântica, sintaxe
- na dimensão temporal do desenvolvimento
lingüístico (... ) Elo é responsável pelo concepção
simplista de que a chamada ' aquisiÇão da
pragmática é mais fácil e antedor à semântica e à
sintaxe.
Com isso se tem perdido de visto o modo como os
papéis sociais, inscdtos em cada fragmento do
discurso, são gradualmente assumidos e
organizados pelo criança e que é desse processo
que emerge a possibilidade dela se conceber o si
e ao outro, como sujeito" (idem, p. 245).

Maia {1985), por sua vez, ao criticar os empréstimos tomados à Lingüística

pela Psico!ingüística, levanta a questão do tratamento da temporalidade pelos

mode!os lingüísticos. A autora afirma que estes, ainda que na época já fossem,

11 o
em sua maioria, de caráter processual, conceptualizam os "processos lingüísticos

stdctu sensu" espacialmente, fato que:

"está longe de garantir o sua tradução automática


em termos temporais: os modelos lingüísticos falam
de níveis, strato, componentes; os modelos
psicolingüístlcos, desavisadamente, traduzem-nos
em termos de penOdos, estágios, fases" (op. dL p.
102).

Na transposição dos conceitos fabricados a partir de uma dimensão espacial

para uma dimensão temporaL a autora detecta, portanto, uma dificuldade em

apreender "os processos temporais do comportamento". Registrando uma

mudança de rumo - então em ação - nos empréstimos e na abordagem do

tema da gênese da linguagem, a autora mostra que o enfoque desse último

tema passa a ser feito não mais a partir da "criança que começo o falar, [mas a

partir doJ infante e até mesmo [a partir do] recém-nascido" (idem, ib.). A

abordagem processual tomada em função da tempora!idade parece dever

contoc portanto - como propõe de lemos ao sugerir a interpretação dos

"fragmentos" indiciativos -, com outros tipos de pisfas lingüísticas que não as

categorias espacialmente concebidas e próprios à dissecação de corpora

projetados e planificados para um alcance processual, Hmitado, em geral, pelas

próprios hipóteses internas dos modelos lingüísticos propostos.

Questionando diretamente o emprego de certos tipos de categorias,

também Abaurre (1989) dá uma contribuição importante a esse respeito:

"Se insistirmos em analisar tais dados [os de


aquisição da linguagem] postulando segmentos,
categodas, constituintes imediatos e conceitos
semelhantes como pnfnitívos com os quais as
crianças operariam, na melhor das hipóteses,
organizaremos e descreveremos alguns dados, ou
mesmo seremos levados pela ilusão de que é

111
possível explicar diferenças e semelhanças entre
produtos lingüísticos orois e escnlos simplesmente
ao comporá-los em lermos de segmentos, unidades
e categorias tomadas como lingüislk:omenle
significantes" (op. cit., p. 28, destaque no original).

É importante destacar as diferentes. mas convergentes, contribuições das

três últimas autoras citadas. Note-se que, em de Lemos, temos a ênfase na

valorização de "fragmentos" informes, indidativos de esquemas interacionais, a

partir dos quais - segundo a autora - os "papéis sociais" são gradualmente

"assumidos e organizados pelo criança" no processo pelo qual ela passa ao se

conceber - e ao outro - como sujeito. Em Maia, a ênfase recai no aspecto da

temporalidade que, segundo a outora, deve ser considerado na

conceptualização do processo de aquisição da linguagem. Em Abaurre, no

contexto de um trabalho sobre aquisição da escrita e voltado a associar o "gesto

orticulofónO" ao "gesto gráfico" -ambos tomados como impressores de ritmo,

respectivamente, na oralidade e na escrita- a ênfase recai na natureza semiótica

particular da constituição do ritmo em cada um dos casos. Esse fato leva a

autora a questionar que as crianças operariam a partir de primitivos lingüísticos

postulados com base nas categorias que o lingüista propõe e utiliza em sua

descrição dos fenômenos lingüísticos orais e escritos. A se proceder dessa forma,

o oral e o escrito, enquanto produtos lingüísticos, ·seriam distinguíveis por meio

dessas categorias do lingüista, tidas como universalmente aplicáveis. Um outro

modo de apreender o processo de oquísição da escrito está, pois, sendo

proposto no momento em que a autoro constata a existência de um ritmo da

escrita que organizaria a produção lingüística escrita. Passa-se a considerar que o

criança opera com múltiplas hipóteses sobre a organização da escrita e não

simplesmente com os tais primitivos !lngüísticos, os quais, embora aparentemente

112
aptos a descrevem os produtos da linguagem, não são explicativos da relação

entre sujeito e linguagem. Ora. "o uso [que as crianças] fazem de suo percepção

dos proeminências rítmlco-entonocionais como princípios organizacionais do

constrvçõo lingüiStico" {Idem, p. 2) -tema do trabalho comentado- propicia que

elas levantem hipóteses e determinem "pontos virtuais de segmentação" (idem,

p. 13). Apreender as pistas lingüísticas que denu~nciam essas hipóteses deve ser o

trabalho do analista. Essa nova atitude quanto à relação entre sujeito e

linguagem é, como podemos constatar, muito diferente daquela da "ilusão

descn'fivo", que leva simplesmente a comparar "produtos escnfos e orais em

feJmos de suas similaridades e diferenças", permanecendo insensível ao foto

de que "os prddutos são opa c os com respedo aos processos que subjozem

a eles"(idem, p. 7. destaque no original}.

Num contexto bastante distinto, em termos cronológicos e de formação

intelectual, Ribeiro (1927}, revelando sensibilidade quanto ao tratamento

diferenciado- então relativamente novo (vinte anos antes da publicação de suo

obra)- proposto por William James para a linguagem, afirmo:

"Toda palavra ou idéa tem o que elle [Willlam


James, 'o creador do pragmatismo'] chamo fringe,
isto é, uma franja, Há sempre alguma causa além
dos suas propn'as fronteiras,· exprime o que exprime,
mas projecta a mais uma zona de expansão
imponderóvef.
Em geral, os technicos rigorfstas, systematicos e
ciosos dos seus methodos desconhecem essa
verdade que devia ser elementar.
Abominam as franjas.
Reduzem tudo ao o + b da suo cartilha, fabricam
leis inquisiforioes e pnhcipios sem fim,.· dos causas e
dos seres não conhecem mais que o anatomia, as
formas e os it!usodas opparencias.
Em linguagem esse erro é commum e mesmo
tdvialissimo. t um excesso de objetividade que
desespero.( ... )

113
Entendemos que o idéa o pensamento paira
acima desses inuteis n'goros dos scientislos" {op. dt ..
p. 8, destaques no original).

As várias reivindicações expostas quanto ao que se buscar na linguagem:

sintomas, para Caprettini; fragmentos indiciativos, para de Lemos;

conceptualização processual em termos da temporalidade, para Maia; pontos

virtuais de segmentação. para Abaurre e franjas, para Ribeiro mostram bem que

o último dos três passos metodológicos pontuais mencionados tem diretamente a

ver com o proposição de um paradigma indiciário. Ou seja, a proposição de

pistas lingüísticas em lugar do estabelecimento de categorias fixas e reaplicáveis

a qualquer contexto é um requisito metodológico básico também quando se

pretende tomar a relação oral/falado e letrado/escrito como uma circulação

dia lógica do escrevente pelo imaginário sobre a {sua) escrita. Na prática, essas

pistas lingüísticas serão vistas como pontos de índividuação do sujeito, expressão

com a qual pretendemos assinalar pontos de ruptura da cadeia discursiva que

denunciam a circulação do escrevent•= pela imagem que ele faz da (sua)

escrita, evidenciando a heterogeneidade que os (a ele e a sua escrita) cons~itui.

Podemos. para concluir, reunir o conjunto de intervenções metodológicas

operadas e que permitirão dar andamento ao trabalho.

Na primeira grande intervenção metodológica, propusemos a

consideração de três eixos como lugare~. reguladores do aparecimento de pistas

lingüísticas que denunciem a imagem que o escrevente faz de si mesrryo e da

(sua) escrita. Dado esse estatuto metodológico, esses três eixos -a escrita como

efeito da representação que o escrevente faz de sua gênese; a escrita tomada

como código institucionalizado; e o escrita enquanto retomada do já

114
fa!odo{ouvido e do já escrito/lido - passam a ser considerados como lugares

privilegiados de observação da circulação dialógica do escrevente.

Em seguido, foi excluído a abordagem quantitativa e o tratamento dos

textos segundo dicotomias como norma/desvio, regra/exceção, acerto/erro,

típicas da consideração dos textos como produtos finais de um processo.

Ligadas à exclusão da abordagem quantitativa, comprometidas com a

utilização de um método indiciárlo no tratamento qualitativo das marcas

lingüísticos e ainda, de certo modo, integrantes da primeira grande intervenção

metodológica acima descrita, três outras intervenções pontuais foram feitas: (a) o

tratamento do oral/falado e do letrado/escrito - em sua heterogeneidade -

como práticas Sociais intrinsecamente ligadas entre sí e inalienáveis da relação

sujeito/linguagem; {b) a opção pela consideração da imagem que o sujeito faz

da {suo) escrita, como modo de recuperar indí-cios das experiências históricas do

escrevente com a llnguagem; (c) a consideração de pistas lingüísticas em vez do

estabe~ecimento de categorias, como modo de determinar o que se buscar no

análise do materiaL

Já pudemos reunir. até este ponto, um conjunto suficiente de informações

para que demos um exemplo do procedimento a ser adotado. É o que faremos

a seguir.

2. O TEXTO E O MÉTODO: PARA ONDE OLHAR

Neste item, serão temati:zados dois momentos cruciais do evento

vestibular: a proposta de redação feita pelo Vestibular e a fextualizaçOo

praticada por um vestibulando. Num terceiro momento, em que trataremos dos

115
três atos de apropriação da escrita e de suas marcas, será proposta a

abordagem dos pistas lingüísticas como regulondades num nível mais geral de

observação.

A proposta de Redação

Com relação à proposta feita pma Redação, é importante considerar o

maior número de itineránOs possíveis que compõem esse acontecimento. A prova

de redação faz parte da / 0 fase do Vestibular, mas, ao mesmo tempo,

caracteriza o fim de um percurso para o candidato. É / 0 de dezembro de 1991.

Abaixo do indicação da fase e do data, o título Redação e Questões indica as

provas que compõem o caderno: além da redação, portanto, uma prova de

conhecimentos gerais. Providências de praxe: nome e número de inscrição.

Ainda na primeira página da proposta, o~; procedimentos a serem seguidos:

INSTRUÇÕES PARA A REALIZAÇÃO DA PROVA

I
Nesta prova, você deverá fazer uma redação e responder a doze
questões sobre Histón'c{ Geografia, Biologia, Química, Flsi'ca e
Matemática.
2
A redação vale 50 pontos e cada uma dos questões, 2,5. Logo, o
prova completo vale 80 pontos.
3
Você receberá dois cadernos de respostas. No caderno azul você
deverá fazer sua redação. As queslões deverão ser respondidas no
caderno vermelho, nos espaços com os números correspondentes.
(ATENÇÃO: não se esqueça de entregar os dois cadernos de
respostas!)
4
A prova deve ser feita com caneta azul ou preto.
5
A duração total da prova é de quatro horas. Ao terminar, você
poderá levar este caderno de questões.

BOM TRABALHO!

ESPERAMOS POR VOCê NA UNICAMP EM 1992.

116
Na página 2 da proposta, aparecem as orientações referentes à

Redação, das quais mais especificamente interessam, para este trabalho, as

referentes ao TEMA A (Violêncía nas tribos urbanas modernas):

REDAÇÃO
ORIENTAÇÀO GERAL

Há três temos sugendos para redação. Você deve escolher um deles e


desenvolvê-to no típo de texto indicado, segundo as instruções que se
encontram na orientação dada poro cada temo. Assinale no alio da página
de resposta o temo escolhido.

Coletânea de textos:

• Os textos foram tirados de fontes diversas e apresentam fotos, dados, opiniões


e argumentos relacionados com o tema. Eles não representam o opinião do
banco examinadora: são textos como aqueles o que você está exposto na
suo vida diário de leitor de jamais, revistos ou livros, e que você deve saber ler
e comentar. Consulte o coletânea e utilize-a segundo os instruções específicos
dados poro o temo. N6o o copie,
• Ao elaborar suo redação, você poderá utilizar-se também de outros
informações que julgar relevonfes poro o desenvolvimento do temo escolhido.

7EI4A A

As sociedades ditos civilizadas vêem o violência, em especial quando


organizada, como uma ameaço o seu sistema de valores. Levando em conta
o coletânea abaixo, escreva uma dissertação sobre o temo: ViOlência nos
tnbos urbanas modernas.

J. {.)o violência é de todos e está em todos. Mesmo q11e o sistema judiciário


contemporâneo acabe por racionalizar todo o sede de '\;ingonço que escorre
pelos poros do sistema social, parece ser impossível não ler que usar a
violência quando se quer fiqVidá~la e é exatamente por isso que elo é
interminável. Tudo leva a crer que os humanos acabam engendrando crises
socnficiois suplementares que exigem novas vítimas expiatórios poro os quais
se dirige todo o copifol de ód10 e desconfiança que uma sociedade
determinado consegue pôr em movimento.
(Renê Girord, A Violência e o Sagrado}

2 Aqui nesta tnbo ninguém quer o suo catequização


Falamos a suo língua mas não entendemos seu sermão
Nós ninas alto, bebemos e falamos palavrão
Mos não sorrimos à toa
Não sorrimos à toa
Aqui neste barco ninguém quer a suo orientação
N6o temos perspectiva mas o vento nos dá a direção
A vida que vai à derivo é o nosso condução
Mos não seguimos à toa
Não seguimos à toa
(Amoldo Antunes, Voffe paro o seu lat}

3. O Guns N'Roses, hoje com certeza a banda mais popular do mundo, entro
em cena ao vivo e o cores no maior esftlo rock-rebelde: polovr6es cabeludos,
sexo. drogas, quebro-quebra atrasos enormes e até interrupções nos shows

117
comprovam que os ''bad boys" continuam fazendo o estilo "inimigos públicos
n" f". Com voz rasgada, eles 'descem o verbo' no disciplina, no pol/tico, nos
amantes, nos vizinhos. nos cn'licos e na imprensa.
(Edição especial de Top Metal Band sobre os Guns N'Rosesj

4.
Policiais e pretos é isso af
Mensagem não-verbal
saiam do meu cominho (. .j
composta por uma
Imigrantes e bichos
caveira com o nome
Não fazem nenhum sentido para mirn (. .. }
Radicais e racistas
do grupo cte roék ao
centro:
não apontem o dedo poro mim
Guns N'Roses
sou um garoto branco, vindo de uma c1dade
pequeno
apenas tentando acertaras pontos
(Guns N'Roses. One in o míllion/

5.
Pergunta.· O tipo de som produzido por bandos como a sua não incita O violência?

Resposta: Acho que sim. Mas é uma violência que não faz mal. É um lance de
rebeldia libero do aí no show_ sem precisar agredir ninguêm.

P: Se é assim, por que então um garoto mon·eu baleado no concerto que os senhores
deram, em maio. no praça Chorles Müller, em São Paulo?

R: Não foi o primeiro vez que morreu alguém em um show de rock. Quando multo
gente se reúne, pode haver alguma confusão, principalmente no Brasil. Fiquei
sabendo que o garoto que mo«eu estava com uma machadinha. Ele, então, não foi
ao show com boas intenções. Ele não estava ali para ouvir música. mos paro
brigar{. .. ). Culpar o rcck por uma morte e
mais lôcil do que achar o verdadeiro
culpado.

P: E quem é o verdadeiro culpado?

R: Acho que é o País inteiro, o estado em que o País se encontra.

/Entrevisto com Max Cavo/era, vocolisfa do grvpo de rock Sepultura. ISTO E


SENHOR, 09/10/91}

6. Hoje é véspera de Noto/ de 1999... Apesar do medo do gue«a nuclear. que


ainda nos assusto, conseguimos sobreviver às freqüentes guerras entre fnbas
surfíslicas antagônicas ( .. .j. Mu!fidões de jOvens hipertensos dedicam-se a
destruir ondas que mereciam ser ocadciodos pela superffcie lisa de suas peles
e pranchas (. .. ). Fiscais uniformizados e armados patrulham os praias poro
controlar as violentos guerras entre os surfistas. Além disso, aplicam
tranqüilizante nos surfistas que freqüentemente pirom com o tensão do
cotidiano ( .. .}. Discussões entre surfistas são decididos em combates n·tvais,
onde o morte está sempre presente.

Nos ruas dos c1dades imundos e pedgosas, marginalizados povos pdmifivos


que habitavam os favelas agora vagam famintos e agressivos.

(llto Rosemberg. Lendas e Tnbos: Revisando o Futuro. FLUIR, OUTUBRO, 1990)

Como podemos observar pela proposta de redação, somam-se, no

vestibular, às exigências típicas de uma prova - presença de examinadores,

tempo !imitado, espaço dividido com dezenas de concorrentes, entre outros

!!8
fatores - aquelas exigências referentes ao modo de apresentação do texto: sua

adequação ao tema, à coletânea de textos e ao tipo de texto solicitado. Estas

últimas, especificamente textuais, arrastam consigo conhecimentos mais

enraizados na história do escrevente, quais sejam: seu contato prévio com o

assunto e as associações que ele terá de escolher como pertinentes à

particularização temática proposta; sua interpretação dos textos da coletânea,

inevitavelmente ligada à prática de leitura anterior: e seu domínio com relação

às peculiaridades do tipo de texto solicitado, incluindo seu maior ou menor grau

de consciência a respeito do sentido que a própria forma textual carrega.

Toda a moldura desse evento constitui um processo de textua!ização

particular que termina por canalízbr um processo mais geral de textuallzação,

ligado à história das experiências que o escrevente já teve com a linguagem. Em

outras palavras, estamos procurando dizer que a escrita do vestibulando começa

antes do produto fina! !evado à avaliação. Trata-se da dificuldade apontada por

Maingueneau {1993) de se saber "onde possa a fronteira entre o texto e o 'antes

do texto'". Nesse sentido, podemos pensar a produção do texto como um

processo% de textva!ização, em que a relação escrevente/texto vem

lingüisticamente marcada por momentos pontuais de individuação (cf. Veyne,

comentado aqui mesmo, p. 94-6).

Com a noção de textualização, como já adiantamos (cf. p, 82, nota 45),

pretendemos reforçar o deslocamento da atenção exclusivamente dirigida ao

56 Numa formulação um tanto diferente, Dah!et \1 994), preocupado com o encadeamento


operatório e o e!obo10çõo didático do produção escrita, trota o textuaHzação como um dos
três níveis de operação dessa produção, a saber, como o nível das operações de
determinação e estrvfuraçõo propríomente lingü/slicos. Interessa destacar, porém. o caráter
processual que o autor descreve ao falar do modo como 58 dá essa esfruiuroçõo lingüística:
"essa e.stnAuraçõo é, fundamentalmente, uma reestruturação, visto que faz com que as idéias
passem de um modo de manifestação coincidente, que caracteriza a plana pré·fingúíStico,
ao modo de monífestoçõo líneor, que caracterizo, por definição, iodo encadeamento
verbal" (op. cit., p. 82).

ll9
texto para a atenção dirigida ao seu produtor ou, em outras palavras, um

deslocamento do produto para o processo de sua produção. É útil explorar, para

tanto, numa rápida digressão, a formulaç:ão de Bruner e Weisser (1995) quando-

em seu trabalho sobre a autobiografia e suas formas e ao tratarem de narrativos

espontâneas e não-escritas- dizem:

"o ato do elaboração do autobiografia, longe de


ser o 'v1da' como está armazenada nas trevas da
memória, constrói o relato de uma vida. A
autobiografia (. .. } transforma a vida em texto, por
mais implícito ou exp!(cito que seja. É só pela
textuolizaçõo que podemos conhecer a v1da de
alguém. O processo de textualízação é complexo,
uma interminável interpretação e reinterprefaçõo.
Seu status textual não é, em senfldo estrito,
determinado exclusivamt:mfe pelo ato da fala e da
escrita, mas depende dos atos da
conceituolização: a cnOçõo de esquemas de
interpretação pelos quais a memória semântico
[aquela que se/Ve "para a cultura dominar o
mente"] dá coerência aos elementos do memória
episódico [aquela que garante o acesso a eventos
particulares]. A esquematização é comandada por
regras de gênero e convenção cultura/, que. por
suo vez, impõe regras de uso lingülstico e
constn.;ção narrativo." (op. cit., p. 149).

Dessa formulação, interessa destacar as fontes dos esquemas de

interpretação, a saber, os regras de gênero e de convenção cultural. Em outras

palavras, interessa perceber que as fontes que impõem ao sujeito "regras de uso

!íngüistico e construção narrativo" atuam desde a exterioridade do sujeito. Nesse

sentido, e aplicando essa reflexão à prática da escrita, podemos, pois, partir da

assunção de que o aprendizado da escrita se dá como um processo. Esta

ponderação traz à discussão a relação que se estabelece entre o produtor do

texto e seu produto. Trata-se- a exemplo do que de Lemos {1986) sugere para a

aquisição da linguagem -de assumír o texto na "históda d10iógica [das] formas"

120
(op. cit., p. 244), isto é, na história da atividade interpretativa que se traduz por

meio do processo dialógico do interação adulto/criança (no caso dos textos dos

vestibulandos, traduzida pela interação entre "convenções culturais" e

escrevente). Desse modo, parece não haver lugar para uma oposição rígida

entre exterior (convenções culturaiS] e interior {escrevente), uma vez que a

mediação típica do diálogo, a exemplo do que acontece na aquisição da

linguagem, interfere também na prática textuaL Podemos, po1s, pensar uma

prática particular de textua!ização {a chamada "produção textual") como o

trânsito entre interior/exterior. Esse trânsito é que constitui o texto e o escrevente

desde sua exterioridade, isto é, a partir de processos de textualização socialmente

vivencíodos- escritos, lidos, falados, ouvidos.

Desse modo, é possível detectar que as conseqüências teóricas de uma

tal postura estão ligadas também a uma concepção de linguagem que toma o

discurso como produto do interdlscurso. A peculiaridade do tipo de tratamento

proposto situa-se, portanto, no fato de encarar a prática de textualização não

simplesmente como "produção textual", isto é, não simplesmente no sentido em

que há um produtor de texto que, como fonte e origem do dizer, se antecipa ao

próprio texto. Com essa digressõo, pretendemos, portanto, firmar a idéia de que

o sujeito-escrevente e seu texto se constituem no processo de textuo!izoção.

No que se refere ao modo como atua no evento Vestibular, podemos dizer

que o processo particular de textualizoção a que o escrevente se atira consiste

numa troca sihlbó!ica também de tipo particular. Ela impõe, como objetos de

decifração, a linguagem verbal como código e a escrita como canaL É, pois, o

conhecimento específico sobre a prática lingüística, tanto em sua soHcitação de

partida (leitura da coletânea} quanto em sua solicitação de chegada

121
{"produção" do texto) que termina por caracterizar a proposta do vestibular.

Naturalmente, não estamos propondo para o escrevente os simples papéis de

codificador e de decodificador ligados a uma noção de código e a um

conhecimento lingüístico estritos. Como sabemos, as expectativas pessoais e

institucionais, ligadas tanto ao núcleo simbólico sintetizado na família quanto às

exigências de adequação, sintetizadas nas normas do vestibular, são requisitos

que impõem muito mais do que uma simples {de-)codificação. Ou seja, esse jogo

de expectativas vem articulado a um imaginário- ele também procedente das

diferentes instituições- sobre a própria prática lingüística.

Mais precisamente, o escrevente atua a partir de um imaginário sobre um

dado registro (o formal) de linguagem, sobre uma especificação da modalidade

(a escrita} e da norma (a culta). Ou seja, cabe ao candidato, no momento da

prova, tanto o atividade metalingüística de adequar seu uso da linguagem

verbal ao que supõe ser o registro de linguagem esperado pela Universidade,

como a injunção fática de tomar a palavra, pela escrita, e de adequá-la ao que

seria o lugar do escrevente: aquele que é capaz, segundo a anunciada

expectativa da Universidade, de compreender e de se fazer compreender

satisfatoriamente por meio da escrita.

Entre outras determinações - mais restritas à história individual dos

escreventes, mas não menos importantes-, é nesse contexto que se dá a prática

textual do vestibulando. Na impossibilidode de uma verticalização da pesquisa

que se ocupasse dessas outras determinações, admitimos que os aspectos mais

gerais destacados são um contorno suficientemente preciso no que se refere à

mobilização da imagem que o escrevente faz de sí mesmo, de seu interlocutor e

da (sua) escrito.

122
Um exemplo de textualização praticada por um vestibulando

O texto abaixo foi escolhido aleatoriamente. Buscamos exemplificar, a

partir dele, o modo heterogêneo de constituição da escrita por meio da

circulação imaginária que o escrevente faz pelos três eixos que estabelecemos

como lugares privilegiados de observação de {sua) escrita.

texto 0-{)5
VIOLÊNCIA
A VIOLÊNCIA NÃO ESTÁ SE INICIANDO, NO PAÍS, NESSES
TEMPOS, JÁ VEM DE MUITO ANTES, DESDE O DESCOBRIMENTO DA
AMÉRICA, ONDE EXTERMINAVAM TRIBOS INTEIRAS PARA LEVAR SEUS
METAIS E PEDRAS PRECIOSAS, COMO O OURO E O RUBI; OU ATÉ
'
MESMO ELES PRÓPRIOS COMO ESCRAVOS.
ELA ESTÁ EM QUALQUER LUGAR, DESDE UM BOM DIA
AGRESSIVO ATÉ AOS CAMPOS DE FUTEBOL. ONDE SEMPRE NO FINAL
DA PARTIDA OCORRE BRIGAS ENTRE AS TORCIDAS. NÃO
PRECISAMOS IR MUITO LONGE PARA OBSERVARMOS MAIS EXEMPLOS
DE VIOLÊNCIA; NAS FAMfLIAS ONDE HÁ IRMÃOS; SEMPRE
ACONTECERÁ BRIGAS, GERALMENTE POR MOTIVOS SEM
IMPORTÂNCIA OU ATÉ MESMO PATÉTICAS COMO O LUGAR NA SALA,
OU QUE UM RECEBA MAIS ATENÇÃO.
POR OUTRO LADO AS PESSOAS NÃO TEM CULPA, POIS DESDE
O GOLPE DE 64, ONDE MUITOS FORAM EXILADOS, OU TORTURADOS. E
ALGUMAS DESAPARECERAM POR SEREM PREJUDICIAIS AO
GOVERNO DITADOR DA ÉPOCA. COM ISSO A VIOLÉNCIA FICAVA
MANTIDA EM CADA UM DE NÓS. ATÉ QUE COM O FIM DA DITADURA,
ELA EXPLODE MAIS FORTE. E EM QUALQUER FORMA, DESDE GRUPOS
DE RUAS, OS FAMOSOS TROMBADINHAS. ATÉ A BANDAS DE ROCK.
ANTES DE MAIS NADA É NECESSÁRIO QUE A POPULAÇÃO
SEJA MAIS AMÁVEL E QUE TOME CONCIÊNCIA DISSO, MAS É MUITO
DIFICIL POIS A VIOLÉNCIA JÁ FAZ PARTE DAS PESSOAS. PORTANTO
SEMPRE A EXISTIRÁ. POIS PARA CONTÉ·LA NECESSITAMOS DELA.

123
Para não reproduzirmos, numCI análise parágrafo a parágrafo, a

segmentação temática feita pelo escrevente, proporemos, inicialmente, o

seguinte "esquema textual" 5 7 como ponto de partida para observação:

P) Panorama geral sobre o estado do violência {Introdução ao tema): 1°

parágrafo;

2"'} Delimitação de um tópico específico(a violência como inerente às pessoas e

os espaços em que aparece): 'Z' parágrafo até a linha 5;

Ressalva que marca o posicionamento do autor a respeito do tópico

abordado (a violência no espaço doméstico]: 'Z' parágrafo a partir da linha

5;

3°) Contraposição ao tópico específico (a violência como efeito sócio-político

dotado): 3° parágrafo;

4°) Reaproximação ao panorama geral exposto inicialmente por meio da

generalização da relação: exisfênc:ia da pessoa ligada à violência: 4° e 5o

parográfos.

Entendemos por esquema textual o estruturação formal do texto. O

conhecimento dessa estruturação faz parte do conhecimento lingüístico do

falante/escrevente, podendo ser esse conhecimento adquirido informalmente ou

em situação formal de ensino. Nos textos analisados, a freqüência com que vem

repetido mostra que é um conteúdo insistentemente trabalhado pelas escolas

secundários e cursos pré-vestibulares.

No caso do vestibular, portanto, o caráter de réplica, típico das situações

em que alguém se submete a um avaliodor, permite levantar a hipótese de que

a {re-)produção do esquema está ligada tanto ao imaginário sobre a instituição à

57 A expressão foi tomada de Koch & Travaglia (1990).

124
qual o vestibulando se dirige, como ao contato prévio com tlpos de textos que

apresentam uma estruturação forma! semelhante à exemplificado. Considerado

o tipo de texto- o dissertativo -,é bastante provável que a própria opção por esse

tema/tipo de texto tenha sido feita em função do que o escrevente supõe como

o tipo de texto mais fáciL Provavelmente. aquele com que teve maior contato

nos anos a que se submeteu à escolarização e, em muitos casos, até mesmo ao

treino. Mas não só por razões escolares. A opção pode ter-se dado também por !
ser a dissertação um tipo de texto com que o escrevente tem contato em textos

jornalísticos, cujo modo de exposição- entre o relato informativo {não-ficcíonal) e

o relato orgumentativo {dissertado} -, freqüentemente é posto pela escola como

fonte necessária de informação e. por essa via-, como modelo de boa escrita.

Se, pelas razões expostos, a réplica se dá na conformação estrutural do

texto- réplica mais direta à instituição58 -, ela está presente também no jogo de

perspectivas posto pelo texto. Nele. há não mais que duas grandes perspectivas,

pouco discordantes, mas contrapostas: a violência na pessoa versus a violência

na sociedade. A presença desse por dialógico vem corroborar a hipótese de

que a percepção do caráter replicador da linguagem é um dado constante

nesse momento da relação entre o escrevente e a linguagem. A utilização

restrita, no texto do exemplo, a um único par dia!ógico, pode ser atribuída, por

exemplo, à pressão do tempo, à relativa dificuldade do tema e à necessidade

de agrupar os posições defendidas nos seis textos da coletânea - às quais se

poderiam acrescentar as inúmeras perspectivas confrontadas em cada um

desses textos. Contudo, mais uma vez, o diálogo com o instituição parece se

<>e Nesse sentido, o escrevente "está devolvendo, por escrito, o que o escola lhe disse, no
forma como a escola lhe disse. Anula-se, pois, o sujeJ!o. Nasce o aluno-função. Efs a redação."
{Geraldi. 1984, p. 123). À "redação" o autor opõe o "texto", aquele tipo de produção escrito
que denota que "o ou for não aprendeu o jogo da escola: insíste em diz-er a sua palavra"
{idem, ib.j.

125
sobrepor a todos esses fatores. Não é exagero supor que o escrevente, ao

escolher aquele par dia lógico, tenha dado por atendida a necessidade de frisar

perspectivas em seu texto. A menção à ditatura militar é sintomático nesse

aspecto. Se não bastasse contradizer a oflrmação de que a violência "está em

qualquer lugar" ~portanto, não necessariamente ligada o fatos políticos locais e

dessa natureza ~, a ligação entre a ditCiduro e o represamento da violência é

muito mais um pretexto para frisar umo perspectivo supostamente crítico em

relação a esse acontecimento político do que uma relação convincente que

realmente suportasse a divisão ~ com o interlocutor ~ desse sentimento de

violência mantido "em cada um de nós".

O esquema textual e o par dia lógico único escolhido pelo escrevente

denunciam que o caráter de réplica é urn aspecto fundamental desse texto e da

relação que o escrevente estabelece com a linguagem.

Numa dimensão menos visíveL mos inteiramente comprometido com esse

caráter replicador enfatizado pelo escrevente, é importante destacar a

circulação d1a!óg1ca que o. escrevente foz pelo três eixos estabelecidos para

observação. A essa circulação corresponde, mais propriamente, a

caracterização de um modo heterogêneo de constituição da escrita. Cabe, pois,

neste ponto, manter a hipótese da constante dialógica como um diferenciador

na relação entre o escrevente e a linguogem e apurar o olhar para a captação

desses três tipos de marcas dialógícas. Se há um processo de produção, nas

palavras de Geraldi {1996), "a questão central é tomar visfve/ este processo" {op.

cit.. p. 147).

Mantemos, na exposição, a ordem já estabelecida anteriormente; primeiro

eixo, referente à escrita vista sob o efeito do imaginário sobre sua gênese;

126
segundo eixo, referente à escrita vista como código institucionalizado; e terceiro

eixo, o das relações propostas entre a escrita e o já falado/escrito e ouvido/lido.

Antes de passarmos para o próximo item, faz-se necessário um parêntese

para uma observação de caráter prático. Nos análises a serem efetuadas nos

Capítulos seguintes, o esquema textual não será tratado isoladamente, mas

intervirá na análise sempre que se mostrar necessário ao esclarecimento de

indícios particulares, a exemplo do que irá ocorrer nos itens seguintes desta

exposição.

O escrevente e a representação da gênese da escrita

Na versão seguinte, o texto tomado para exemplo traz.. destacados, alguns


'
momentos em que o escrevente assume a escrita como uma possibHídade de

representação integral do ora!/fo!ado. Em outras palavras, o ora!/falado é

suposto como plasmado ao escrito. Pensamos, por exemplo, na suposição de

que- pelo fato de o texto estar, obviamente, sendo produzido no "aqui/agora"

do escrevente - aqueles elementos pragmáticos muito eloqüentes para quem

produz o texto sejam supostos pelo escrevente como projetados na escrita sem,

no entanto, receberem uma construção adequada. Ou seja, certos elementos

das condições de produção da escrita são dramatizados no discurso interior do

escrevente (incluindo gestos e entonações), sem que esse "rascunho" seja

reconfigurado em termos lingüísticos.

texto 0.()5

VIOltNCIA

A VIOLÊNCIA NÃO ESTA SE INICIANDO NO PA(S, NESSES


TEMPOS, JA VEM DE MUITO ANTES, DESDE O DESCOBRIMENTO DA
AMÉRICA ONDE EXTERMINAVAM TRIBOS INTEIRAS PARA LEVAR SEUS
METAIS E PEDRAS PRECIOSAS, COMO O OURO E O RUB( OU ATÉ
MESMO ELES PRÓPRIOS COMO ESCRAVOS,

127
ELA ESTÁ EM QUALQUER LUGAR, DESDE UM BOM DIA
AGRESSIVO ATÉ AOS CAMPOS DE FUTEBOL, ONDE SEMPRE NO FINAL
DA PARTIDA OCORRE BRIGAS ENTRE AS TORCIDAS. NÃO
PRECISAMOS IR MUITO LONGE PARA OBSERVARMOS MAIS EXEMPLOS
DE VIOLt'NC/A; NAS FAMfLIAS ONDE HÁ IRMÃ OS; SEMPRE
ACONTECERÁ BRIGAS. GERALMENTE POR MOTIVOS SEM
IMPORTÃNCIA OU ATÉ MESMO PATI'TICAS COMO O LUGAR NA SALA.
OU QUE UM RECEBA MAIS ATENÇÃO.
POR OUTRO LADO AS PESSOAS NÃO TEM CULPA. POIS DESDE
O GOLPE DE 64, ONDE MUITOS FORAM EXILADOS. OU TORTURADOS.
E ALGUMAS DESAPARECERAM POR SEREM PREJUDICIAIS AO
GOVERNO DITADOR DA ÉPOCA. COM ISSO A VIOLt'NCIA FICAVA
MANTIDA EM CADA UM DE N6S, ATÉ QUE COM O FIM DA DITADURA.
ELA EXPLODE MAIS FORTE E EM QUALQUER FORMA. DESDE GRUPOS
DE RUAS. OS FAMOSOS TROMBADINHAS ATÉ A BANDAS DE ROCK.

ANTES DE MAIS NADA É NECESSÁRIO QUE A POPULAÇÃO


SEJA MAIS AMÁVEL E QUE TOME CONCit'NCIA DISSO MAS I' MUITO
DIFIC!L POIS A VIOLt'NCIA JÁ FAZ PARTE DAS PESSOAS.

PORTANTO SEMPRE A EXISTIRÁ. P0!5 PARA CONTt'-LA


NECESSITAMOS DELA.

Ê importante, como um primeiro passo da análise, que se desarme o olhar

do gramático. Para evitar esse recurso sempre muito presente nos leitores

escolarizados, optamos por caracterizar o modo como o escrevente represento a

escrita em sua suposta gênese a partir de pistas da transcodificação de gestos

articuiatórios59 do ora!/falado em gestos l;Jráficos do letrado/escrito.

Ao evitar o olhar do gramático, procuramos escapar também às

categorias preestabelecidas do língüista. Em seu lugar, procuraremos, ao final de

cada eixo analisado, reunir os pistas mais salientes em tipos, ou, como preferimos,

em regularidades lingüísticas mais gerais. No que se refere aos dois primeiros eixos

a serem exemplificados, essas regularidades serão projetadas - num plano de

ainda maior generalidade - em propdedades que possibilitem a busca de

sg Ligados à articulação de segmentos e de troços prosódicm ou à situação em que se dá a


articulação. como é o caso do gesto de apontar_ cujo articulação ê um pocofe de gesto e
voz. ao quo! chamamos traço fõnico-pragmótico da oralidade.

128
características comuns aos escreventes tanto no que se refere a sua imagem

sobre a escrita como no que se refere à caracterização de um modo

heterogêneo de constituição da escrita.

A hipótese que orienta a assina!ação desses pontos de emergência da

gênese da escrita consiste, portanto, no que acreditamos ser, na escrita do

vestibulando, a transcodificação de uma temporalidade gráfico-sonora para

uma espacialídade também ela gráfico-sonora. Entendemos por temporalidade

gráfico-sonora a resolução linear do oral/falado ocorrente em tempo real e

acompanhada de um grafismo típico. Com relação a esse grafismo, trata-se,

mais precisamente, da sensação de movimento que, na fala, pode ser uma

percepção da distintividade do som variando com a velocidade, do

escalonamento de tessituras que ordena a hierarquização de sentidos ou do uso

de pausas que marcam planejamento do discurso. Esse tipo de percepção será

considerado - do ponto de vista da produção do oral/falado - como a

localização de pontos de transição, presentes no contínuo dos sons, que

demarcam acomodações de gestos articu!atórios. Por sua vez, a especialidade

gráfico-sonora será entendida como a resolução bidimensional característica da

escrita acompanhada de uma prosódia típica. Com relação a essa prosódia

típica, trata-se, mais precisamente, do sensação de movimento que, em termos

gráficos, se constitui por meio de uma "escdfa dfmicomenfe reprodutiva" {luria,

aqui mesmo, p. 66-7) ou que é fruto, na formulação de Abaurre {1987), da

possíbi!idade de se conferir uma ''substância tônico a um conjunto de s/mbolos"

pelo "ato de leitura de uma formo escrito" {ver, aquí mesmo, p. 59, nota 31 ).

A hipótese levantada é a de que essa transcodificação conduz o

escrevente a um tipo de representação da gênese da escrita em que o material

129
gráfico é tomado como um instrumento fiel de gravação da memória sonora do

falado. No entanto, como sabemos, o recorte do material sonoro a ser registrado

não obedece unicamente à segmentação dos fonemas. Ao estudar a escrita

infantiL Silva (1991) mostra que "os cn"férios poro o colocação dos espaços em

branco entre palavras são baseados nos classses morfológicas, o que requer uma

reflexão meta/ingüistica... " (cf., aqui mesmo, p. 60-1). Na escrita adulta, porém,

além do uso da pontuação, que marca graficamente propriedades rítmicas que

vão muito além das classes morfológicos 60, há indícios de que esses critérios se

estendem paro outras dimensões. Basto lembrar, como exemplo, do reflexão

metalingüístico ligada à tentativa de representação do planejamento

conversacional e do jogo argumentativo prosodicamente marcado.

Para sintetizar, podemos dizer que o texto sob análise mostra a tentativa de

extensão desses gestos articulatórios para o material escrito, explorando o

contexto pragmático em que o diálogo com a instituição se estabelece. Dois

aspectos comunicativos se destacam nos dois momentos a serem exemp!ificados

a seguir: o assunto e o interlocutor. A ênfase nesses aspectos compõe o

aparecimento do modo heterogêneo de constituição da escrita. Vale a pena

insistir que esses indícios de um modo heterogêneo nada têm a ver com uma

avaliação da qualidade do texto.

w Chacon {1996) dá determinações importantes o respeito do pape! do ritmo na escrita:


"Quando traiamos do papel do ritmo na organização mulfldimensionol do linguagem (... ),
dissemos que o ritmo é o movimento de unidades que poderíom ser definidas temporalmente
como durações e que, no campo da linguagem, se organizam formando sistemas que fazem
entrecruzar-se as mais variadas dimensões lingüísticos." As intuições colhidas nos gramáticos
permitem que o autor tenha corroborada suo tese de que "o ritmo opero na organização
mulfidimensional do linguagem e que no escrito, os Sf"nais de pontuação, ao indiciarem o seu
rítmo próprio, ev,denciam que os unidades que nela se alternam definem-se por seu caráter
!ingü/stico mutfldímensional. "(op. cit., p. 136).

130
A propósito, o próprio escrevente, ao marcar certas saliências por um

efeito "mefadiscursivo 'tíl, auxilia na detecção desses indícios. É preciso - como

lembra Abaurre {1994) ao estudar a escrita infantil - que privilegiemos para a

observação aqueles ''aspectos relativos à modalidade escn'ta do língua que

adquirem saliência( ... ), em diferentes momentos e pelos mais van'ados motivos"

(op. ciL p. 6).

Observemos, por exemplo, os usos de "onde" e "até mesmo". A insistência

em seu uso e o modo particular pelo quo! são empregados no texto, parecem ser

dois bons motivos para que a saliência a eles atribuída pelo escrevente seja

observada. Esses usos podem, nos contextos em que aparecem, ser vistos como

procedimentos de ancoragem. Primeiramente, as ocorrências de "onde":

"... desde o descobrimento da América, onde exterminaram fn'bos


inteiros paro levar seus metais"

"... desde o golpe de 64, onde muitos foram exilados, ou torturados"

Podemos dizer que o emprego de "onde" denuncia um modo heterogêneo de

constituição da escrita, à medida que a tentativa de ancoragem do tema num

~1 O conceito de metadiscurso, !Jgado ao de heterogeneidade enunciativo, evidencia o


movimento que o escrevente faz na direção de marcar os pistas lingüísticas que, em
determinado momento e por diferentes razões, adquirem saliência em sua escrita. O
conceito de saliência, tomado de Abaurre, tem a ver, portanto, com o efeito metadiscursivo
do indidaçõo feita pelo escrevente. Segundo Moingueneau (1989). "o heterogeneidade
enunciativo não está fígado unicamente à presença de sujeitos diversos em um mesmo
enunciado: elo também pode resultar do conslroção pelo locutor de níveis distintos no intenOr
de seu própnO discurso". Eis a concepção do autor sobre o metadiscurso: "em um
enunciado, nem tudo é produzido sobre a mesma freqüência de onda: o dito é
constantemente atravessóvel por um metadiscurso mais ou menos visível que manifesta um
trabalho de ajustamento dos termos o um código de referência. Esta possibilidade de
associar, o todo instante, na seqüência do discurso, os enunciados e seus comentódos remete
evidentemente à propríedade que os línguas naturais possuem de se descrever sem passar
por um outro sistema semiófico. Do ponto de vista da Aü o melodiscurso do locutor
apresento um grande interesse, pois permite descobrir os 'pontos sens/veis' no modo como
uma formação discursivo define sua ;denfidode em relação à língua e ao inlerdiscurso." {op.
dL p. 93, destaques no original).

131
lugar argumentativo - um "onde'' 62 que é tempo e lugar concomitantemente -

indica que o escrevente está às voltas com o domínio ativo de certos operadores

do discurso, ligados a uma prática menos afeita à da língua escolarizada. Esse

emprego de "onde" pode ser tomado. portanto, como indício de um gesto

orticulotório (mais propriamente, indício de uma marco prosódica incidindo no

operador, e que ora pode ser uma pausa, ora um escalonamento de tessitura.

ora uma maior duração na vogal tônica, por exemplo) registrado apenas

lexícolmente no escrita. Segundo o que pensamos, esse uso de "onde", ao

desempenhar o papel de engate das circunstâncias da enunciação com o

desenvolvimento temático e com o movimento argumentativo do texto, pode,

mais do que como um conectar no nível fresai, ser visto como um operarador

discursivo típico dos usos orais menos suscetíveis à escolarização da língua.

Não podemos, porém, a partir da projeção desse gesto articulatório no

gesto gráfico, supor que todos as ocorrências - em outros textos - desse uso de

"onde" sejam imediatamente ligadas a uma "tentativa" de ancoragem. Pode-se,

por exemplo, querer jogar, propositalmente, com um uso de "onde" que explore

ó2 Segundo informaçào verbal que obtivemos do professor Ataliba Teixeira de Castilho. há


noticia de retomadas nõo-espadais com "onde" em textos portugueses do século XV!. Dadas
as heranças históricas do português do Brasil. ligadas diretamente ao português europeu
daquele século, pode-se supor que o emprego de "onde" tenha permanecido como tal até
os dias de hoje, possivelmente com uma diferença: usado em contextos orais ou, pelo
menos, em contextos menos suscetíveis à influência do análise gramatical que o toma como
conectar em nivel frasoL próprio às retomadas espaciais. É curioso que. atualmente, a escdta
culta formal ensinada nas escolas do Brasil insiste no emprego de "onde" para os retomadas
de espaço físico, inclusive com recomendoções normativas explícitas sobre o assunto.
Parece. pois. estar havendo um contra-senso dos gramáticos e, por meio deles, da língua
escolarizada em relação o esse uso. Mantivemos, no presente trabalho, a oposição entre o
uso oral menos adaptado à escolarização e o uso na escrita culta atual sobretudo poro
mostrar que, nos contextos não diretamente >Ubmetidos à escolarlzaçào. fica potente - na
geminaçõo de espaço e tempo - o interpretação de "onde" também como um operador
argumenfatlvo ou. como preferimos. como um ponto de ancoragem do argumentação.
espécie de engate com as circunstâncias de enunciação. Parece-nos que a especificidade
do uso atual de "onde" está no papel de operador que ele vem assumindo. Conferir um
papel semelhante (embora talvez mais sedimentado) atribuído a "agora" no trabalho de
Risso sobre o português culto falado (!993).

132
a geminação das dimensões espaço e tempo. Não parece ser esse o caso no

exemplo dado.

Observemos, porém, que não se trata de classificar esse uso como um erro,

uma inadequação, um desvio ou qualquer coisa semelhante, mas, ao contrário,

como a criação de um lugar, no discurso, para que algum aspecto comunicativo

seja destacado, posição a partir da qual podemos detectar o grau de

envolvimento do escrevente em relação a esses aspectos. Em vez de erro,

portanto, preferimos classificá-lo como um indício de um modo heterogêneo de

constituição da escrita, em que o escrevente procura embutir na Jexicalização o

que na fala constituiria um pacote de gesto articu!atório e engate com a

situação de enunciação, embutidura que é uma tentativa de registro gráfico de

traços fônico-pragmáticos {o que talvez pudéssemos chamar de tentativa de

registro de um gesto conversaciona!). Eis, nessa s-uposição de que o escrito pode

representar tudo do falado, a imagem que o escrevente foz da escrita em sua

suposta gênese.

A projeção gráfica desse gesto orticulotório, exemplificado pelo uso de

"onde", parece indicar, ao mesmo tempo, uma recorrência à memóda

episódiccf:.J do sujeito, momento que se constitui como um ponto de apoio

argumentotivo para que o discurso volte a fluir. É importante observar que essa

ancoragem se dá em dois momentos: quando o escrevente está buscando situar

o assunto num panorama geral e quando está fazendo uma contraposição o um

tópico específico {a violência como efeito sócio-político). Essas localizações

indicam que o tipo de relação com o assunto abordado ora como uma

questão antiga na história do país, ora como decorrência de um período

<13 A memória episódico é aquela que garante o acesso a eventos particulares. Para maiores
determinações, conferir Bruner & Welsser iJ995. p. 149).

133
determinado da política brasileira - parece ser uma das condições de

emergência do modo heterogêneo de constituição da escrita. Por sua vez, o

interlocutor que o escrevente constitui no diálogo que procura estabelecer com

o instituição à qual está se dirigindo- e qlle exige a "escdto culto forrna/"64 - não o

libero da representação que ele faz do modo oral de organização do discurso.

Pelo contrário. pressiono-o à busca -no caso, nos traços fônico-pragmóticos- de

saídas argumentativas convincentes, as quais, em seu texto, tomam o caráter de

uma réplica. Embora fique bastante evidente para o analista, tal procedimento é

menos diretamente controlável pelo escrevente, fato que põe em destaque o

papel do imaginário do escrevente acerca da (sua) escrita e de seu próprio lugar

de escrevente. Fica, pois, demonstrado, com o comentório sobre o emprego de

"onde", que, nesses momentos, o imaginário do escrevente atua no sentido de

determinar, pela representação da gênese da escrita, o seu modo heterogêneo

de constituição.

Um segundo ílpo de ancoragem, desta feita mais apoiado no interlocutor

e r:nenos no assunto tratado, indicio tarnbém a circulação do escrevente pelo

que representa como a gênese da escrikl e ocorre com "até mesmo'':

" ... exterminavam tdbos inteiros poro levar seus metais e pedras
preciosos, como o ouro e o rubL· ou até mesmo eles próprios como
escravos"

".. sempre acontecerá brigas, geralmente por motivos sem


importância ou até mesmo patéticas como o lugar na sala, ou que
um recebo maís atenção"

A tentativa de ancoragem do tema, desta feita no limite de uma escola

argumenfativc?S que o escrevente imagina como o ponto-!imife66 do interlocutor,

M Esta dossificoçõo é de Lopes {1993). Conferir, aqui mesmo. p. 80. nofa 44.
&S A noção é de Ducrot {1981).
M Segundo Ducrot (1981), "é essencial a até mesmo que a proposição em que está insendo
seja ufilizado como 'Jm argumento apresentado como forte, e eventualmente, em certos
contextos, como decísivo" {op. ciL p. 180-1).

134
é uma marca da presença do interlocutor no texto do escrevente. Melhor

dizendo, esse recurso opero, no texto do escrevente, como um recurso de

antecipação à fala do interlocutor, portanto como uma réplica antecipada. O

que há de peculiar nessa réplica é que, em ambos os exemplos, ela mostra que

o escrevente representa, em seu texto, o envolvimento entre os interlocutores,

propriedade típica dos textos orais. Em outras palavras, o escrevente fornece

evidências, nesses momentos, de que constrói seu texto a partir da imagem que

faz da gênese da escrita, supondo que pode registrar integralmente o falado em

sua escrita. De todo esse processo de textualização, pode-se, pois, constatar que

há uma fala nessa escrita.

Desse modo, temos bons indícios dê que, marcado na estruturação

argumentativa do texto, o escrevente está às voltas com um modo heterogêneo

de constituição do escrita. O fato de haver, num texto manuscrito de vinte e três

linhas, duas ocorrências do mesmo recurso, é também bastante sintomático de

que o escolha argumentativa esteja ligada à forte presença atribuída ao

interlocutor por parte do escrevente. É relevante observar também que as

ocorrências se dão em diferentes partes do texto: a primeira. no momento em

que o escrevente faz o panorama geral sobre o estado do vlo!ência; e a

segunda, no momento em que ele se posiciono a respeito do tópico abordado (a

violência no espaço doméstico}. A relevância do contexto macroestrutural em

que se dá essa ancoragem no interlocutor deve-se ao fato de que, nos dols

casos, trata-se de momentos do texto em que a generalidade do panorama e a

circunscrição de um espaço que inclui o escrevente (mas também o interlocutor)

são construídas em pontos-limite de uma escala orgumentatíva, foto que reve!a

135
a expectativa de abarcar todo o universo de argumentação possível projetado

no interlocutor pelo próprio escrevente.

Se, nesse caso, a gênese da escrita é buscada pela construção do

universo argumentativo em termos de pontos-limite de uma escala que se supõe

hierarquicamente construída com base no interlocutor, sua verticalidade pode vir

substituída pela horízontalização de possibilldades. Observemos os exemplos

seguintes em que a mesma preocupação com o universo argumentativo ligada

ao interlocutor se repete:

Elo está em qualquer lugar, desde um bom dia agressivo


até aos campos de futebol"

"... desde grupos de ruas, os famosos frombadínhas, até a bandas


derock"

Podemos dizer que, nestes exemplos, como no anterior, o procedimento é o

mesmo e a tentativa do escrevente é, desta feita, projetar um traço não-verbal, o

gesto de apontar - utilizada não propriamente como dêitico, mas como

de!lmitador de um espaço argumentativo comum - na bidimensionalidade da

escrita, explorando, nesses fragmentos, ~;ua projeção horizontal. Eis, pois, no coso

anterior e no presente, duas tentativas diferentes de representar a escrita em sua

suposto gênese pela marcação do envolvimento e do espaço dividido com o

interlocutor. A ocorrência repetida da estrutura desde ... atéu é uma pista de que
H

essa estrutura (a exemplo das marcas anteriores) participa de um recurso de

textualização que está tendo saliência para o escrevente, a saber, o processo de

delimitação do espaço orgumentativo e sua correspondente determinação de

uma posição para o interlocutor.

136
Ainda explorando o contexto pragmático em que o diálogo com a

instituição se estabelece, destaca-se um aspecto ligado à organização formal do

texto. também aparecendo por duas vezes. O uso coesivo do pronome

demonstrativo a ser exemplificado a seguir é típico do que Lopes (op. cit.) chama

de português médfo67 : aquele utilizado pelos meios de comunicação de massa.

Observemos as seqüências:

"... as pessoas não tem culpo, pois desde o golpe de 64, onde muitos
foram exilados, ou torturados, e algumas desapareceram por serem
prejudiciais ao governo ditador do época. Com isso a violência
ficava mantida em cada um de nós, até que com o fim da
ditadura ... "
"Antes de mais nada é necessán'o que o população seja
mais amável e que tome concíência disso. .. "

Na comunicação de massa, a concisão desse recurso coesivo tem, à

primeira vista, a papel de reduzir a tempo de leitura e o espaça da matéria. No

entanto, o fato é que recorrer a paráfrases ou a outros tipos de encadeamento

temático levaria a jogar com classes de equivalência, processo de significação

nem sempre à mão {ao contrário do artifício anafórico), mas, principalmente,

nem sempre desejado em virtude dos efeitos de sentido que uma série

parafrástica pode provocar. ligado à dêlxis, o artifício anofórico atua, no entanto,

no interior do texto. Esse parentesco com os dêiticos mostra que o recurso pode

ser visto não só como próprio do português médío, como também do modo

heterogêneo de constituição da escrita. No texto do vestibulando, não é nem o

caráter da concisão, nem o do redução do espaço do texto, nem o da fuga a

séries parafrásticas que levam ao uso do anafórico. Parece muito mais lógico

supor que essa opção esteja ligado, mais uma vez, a um empréstimo do modo

<.7 Conferir Lopes, aqui mesmo, p. 80~ 1.

137
de organização da conversação ou- paro nos mantermos na formulação inicial-

a uma projeção do gesto de apontar no gesto gráfico. Desnecessário lembrar

que o aspecto dialógico está novamente presente no uso desse recurso. O

sistema dêitico sempre opera, como se sabeJ em função do eixo enunciativo

"eu/tu" e seu valor rnostrativo só se efetiva a partir da "instância de discurso à

qual se refere': isto é, a partir de sua conternporaneidade com a "instância de

discurso que contém o indicador de peJsoo" {Benveniste, 1976, p. 279-80). Desse

modo, o gesto de apontar e o gesto gráfico que o imprime na escrita são, desse

ponto de vísta, representações de uma (1nica instância de discurso. Dito de outro

modo, há uma fala presente na escrita do vestibulando quando ele utiliza esse

recurso de coesão. No entanto, é preci~o que não se entenda essa fala como

interferência da oralidade na escrita. Urna tal posição se afinaria mais com a

consíderação da escrita como produto, bem como com a suposição de uma

pureza do oral/falado e do letrado/escrito e, na hipótese de se aceitá-la,

sobreviriam questões como a da correção, o da inadequação, a do desvio.

Diferentemente dessa posição, ,assumimos que a fala que está nesse escrita

constitui, juntamente com a própria escrita, um tipo de enunciação cujo processo

de construção se dá pela conjunção do oral/falado com o letrado/escrito ou,

como preferimos, pelo modo heterogêneo de constituição da escrita.

Esse indício de um modo heterogé,neo de constituição da escrita encontra

respaldo sempre que assumimos a escrito como um processo. É o caso da escrita

infantil, sobre a qual vale a pena retomar um texto já citado de Vygotsky {1988):

"O própnO movimento do criança seus próprios


gestos, é que otnbuem a função de signo ao objeto
e lhe dão significado. Toda ativ1dade representativa
simbólico é pleno desses gestos indiCativos ... " {op.
cit., p. 121-3).

138
Não surpreende, portanto, que, num estágio avançado de domínio da

escrita, o vestibulando continue imerso no processo de aquisição do

letrado/escrito, fato que o leva a reproduzir, para novas solicitações,

procedimentos que, embora inconscientemente, já utilizou, na apreensão de

outras dimensões da linguagem, em outros momentos desse mesmo processo.

Um último exemplo destacado na versão acima, refere-se também à

organização formal do texto e tem a ver com a relação entre a prosódia, o

léxico e a pontuação. Eis o exemplo:

"Portanto sempre a existirá, pois para contê-la necessitamos


dela."

Cag!iari (1992}, como foi discutido {cf. p. 77}, mostra que há, na oralidade,

a possibilidade de se substituir a lexica!ização pela prosódia. Mostra, ainda, que o

recurso à prosódia é mais comum na "linguagem oral mais espontânea" do que

na "fala mais formal" {op. cif. p. 55}. É importante lembrar também que, embora

a prosódia só apareça na escrita através da articulação com outros planos, por

exemplo, o próprio léxico ou a sintaxe, ela é, em alguma medida, recuperável

nos enunciados escritos e não pode ser vista, portanto, como exclusiva dos

enunciados falados. Também os sinais de pontuação revelam uma preocupação

com a representação da percepção acústica dos enunciados (percepção mais

analógica - icõnica - do que digital}. Há, pois, tanto pela articulação entre os

vários planos lingüísticos (por exemplo, entre prosódia, léxico, sintaxe), como pela

utilização dos sinais gráficos de pontuação, indícios de que, por vezes, a

enunciação pela escrita permite substituir determinados itens lexicais. Conclui-se,

portanto, que esse fato não ocorre, obviamente, como na oralidade. Porém, pelo

menos o condionamento estilístico (variação quanto ao grau de

139
espontaneidade) desse tipo de substituição pode ser pensado como pertinente

também para a escrita, fato que preferimos interpretar como um exemplo de

representação que, ao aproximar a falo da escrita, o escrevente foz da gênese

da escrita.

No exemplo acima, o escreventE~ não se utiliza da iconicidade dos sinais

de pontuação, imprimindo o gesto arlk::ulatório {no caso, a pausa) próprio da

"unidade incluída" (Quirk et oi. 1985) openos no caráter linear da escrito. A

expressão destacada em negrito não recebe, portanto, explicitamente a marca

de uma "unidade incluída". A expectativa de marcação do pausa é frustrado,

portanto, pela simples pressuposição da prosódia adequada.

A propósito, é útil observar o que Chacon conclui o respeito da seguinte

afirmação de Catach: "a ruptura do ordem das palavras{ ... } é mais reveladora,

no orahdade, do carga afetiva e comunicativo do mensagem" {apud Chacon, p.

205). A partir dessa afirmação, o autor conclui que "a pontuação, ao mesmo

tempo em que atuo sobre uma sintaxe típica do escdta, imputo à esctito um

movimento que pode aprox[mÕ-Io do #uxo verbal corocterfstico da oralidade"

{idem, ib.). A conclusão parece verdadeira não só em relação à marcação da

pontuação como também em relação o sua ausência. Portanto, a ausência da

pontuação no trecho em questão não significa que o escrevente esteja mais

longe do fluxo da oralidade, mas parece~ mostrar que o escrevente deixa no ar o

gesto orticulatório do oral/falado, supondo-o como já graficamente impresso. Na

verdade, observando a inconsistência do escrevente quanto à marcação de

unidades incluídas - inconsistência exemplificado já na linha 1 quando o

escrevente pontua uma unidade incluído com função circunsfanciolizadora: "...,

nesses tempos, ... "- chegamos à conclusão de que essa inconsistência apanha

140
um momento do processo de aquisição da pontuação, momento que se

caracteriza como marcando um modo heterogêneo de constituição da escrita.

Sobre esse modo heterogêneo, seria, pois. lícito dizer, que há momentos que sua

constituição permite substituir a pontuação pela prosódia, embora naturalmente

ela só seja recuperada pela possibilidade que, como regra gera!. existe de se

conferir- na formulação de Aba urre- uma "substâncla fôníca" no "ato de !eítura

de uma forma escn'fa" {cL aqui mesmo. p. 59, nota 31, e p. 129). O apagamento

gráfico dessa substância fônica é, no caso, uma evidência a mais de que a

ausência de pontuação indicio uma relação dialógica de alçamento de um

gesto articulatório {desta vez, mais propriamente, de um si!enciamento) na

direção de um interlocutor tomado, por um lapso de segundo, como fisicamente

presente na enunciação escrita.

Procuramos, até este ponto, exemplificar como o modo heterogêneo de

constituição da escrita se marca pela circulação que o escrevente faz pelo

imaginário sobre a escrita em sua suposta gênese . Mantivemos, no decorrer da

análise, a hipótese que orienta a detecção de pistas lingüísticas, a saber, a

hipótese de que essas pistas indiciam sempre uma circulação dia!ógico do

escrevente na relação que ele - no movimento metalíngüístico da escrito - é

levado a fazer entre o oral/falado e o letrado/escrito, relação que é apenas um

aspecto de sua relação com a linguagem.

No item seguinte, será tratado o segundo eixo, referente à representação

que o escrevente faz da escrita enquanto código institucionalizado.

141
O escrevente e a representação da escrita como código institucionalizado

Na versão seguinte, o texto tomado para exemplo traz, destacados,

momentos em que o escrevente assume a escrita como código

institucionalizado.

Novamente estamos falando de imaginário. Mais próxima da escdfo culto

formal, trata-se da escrita socialmente reconhecida como sendo de tal forma

normatizada que as marcas do oral/falado que eventualmente nela se

pudessem reconhecer seriam vistas como desvios do instituído e, nesse sentido,

deveriam ser tomadas como lhe sendo totalmente exteriores. No caso do

escrevente, estamos lidando com o seu imaginário, que é, em grande porte,

determinado pelo escolarização da língua, mas não apenas por ela, uma vez

que estamos considerando não o escrito como produto lingüístico da

alfabetização- em geral realizada na escola-, mas o letrado/escrito enquanto

processo lingüístico e social (não apenas escolar) inseparavelmente ligados.

São os seguintes, no mesmo texto utilizado acima, os destaques relativos

ao imaginário sobre o código institudoncllízado assumidos pelo ,escrevente:

texto 0-05
VIOUNCIA

A VIOLtNCIA NÃO ESTÁ SE INICIANDO, NO PAfs, NESSES


TEMPOS, JÁ VEM DE MUITO ANTEJ~ DESDE O DESCOBRIMENTO DA
AMÉRICA ONDE EXTERMINAVAM ~RISOS INTEIRAS PARA LEVAR SEUS
METAIS E PEDRAS PRECIOSAS, COMO O OURO E O RUB(· OU ATÉ
MESMO ELES PRÓPRIOS COMO ESC.~A VOS.

ELA ESTÁ EM QUALQUER' LUGAR, DESDE UM BOM DIA


AGRESSIVO ATÉ AOS CAMPOS DE RJTEBOL ONDE SEMPRE NO FINAL
DA PARTIDA OCORRE BRIGAS ENTRE AS TORCIDAS. NÃO
PRECISAMOS IR MUITO LONGE PARA OBSERVARMOS MAIS EXEMPLOS
DE VIOltNCIA· NAS FAMfLIAS ONDE HÁ IRMÃOS,· SEMPRE
ACONTECERÁ BRIGAS, GERALMENTE POR MOTIVOS SEM
IMPORTÂNCIA OU ATÉ MESMO PAn'rlCAS COMO O LUGAR NA SALA,
OU QUE UM RECEBA MAIS ATENÇÃO.

142
POR OUTRO lADO AS PESSOAS NÃO TEM CULPA POIS DESDE
O GOLPE DE 64, ONDE MUITOS FORAM EXIlADOS, OU TORTURADOS, E
ALGUMAS DESAPARECERAM POR SEREM PREJUDICIAIS AO
GOVERNO DITADOR DA ÉPOCA. COM ISSO A VIOLÉNCIA FICAVA
MANTIDA EM CADA UM DE NÓS, ATÉ QUE COM O FIM DA DITADURA.
ELA EXPLODE MAIS FORTE, E EM QUALQUER FORMA. DESDE GRUPOS
DE RUAS, OS FAMOSOS TROMBADINHAS, ATÉ A BANDAS DE ROCK.

ANTES DE MAIS NADA É NECESSARIO QUE A POPULAÇÃO


SEJA MAIS AMÁVEL E QUE TOME CONCIE'NCIA DISSO, MAS É MUITO
DIF/CIL POIS A VIOLE'NCIA JA FAZ PARTE DAS PESSOAS.

PORTANTO SEMPRE A EXISllRÁ, POIS PARA CONTE-lA


NECESSITAMOS DELA.

O primeiro exemplo destacado:

"Ela está em qualquer lugar desde um bom dla agressivo


até aos campos de futebol.. "

é um coso típico que o olhar do gramático levaria a considerar simplesmente

como uma incorreção quanto à regência. A percepção do escrevente, porém,

parece ir em outra direção. Sabendo, provavelmente, que, na escrita culto

formal os verbos de movimento são regidos pela preposiçôo "a", o escrevente,

tendo presente a omissão da estrutura "ir de X a Y", omite o verbo e mantém a

regência. Ou seja, ainda que omitindo esse verbo no segundo sintagma verbal

dos dois coordenados {"está em qualquer lugar, [vaij desde um bom dia

agres-sivo até aos campos de futebol") mantém a regência originaL A

reduplicação da preposição "até" e "a" parece dever-se ao uso de uma

segunda estrutura interferente a partir da omissão do verbo: "desde ... até",

redupHcação que resulta na substituição de "ir de X a Y" por "desde X até a Y".

Como podemos observar, é mais a exploração do domínio de uma regência

típica da escdta culto formal (ir de X a Y) e não a falta absoluta de qualquer

noção a esse respe·1to que está levando o escrevente à hipercotTeção, marcada,

143
no caso, pela redup!icação. É interessante destacar, ainda, que o escrevente é

consistente com sua hipótese, pois volta o explorar a mesma reduplicação:

"... ela explode mais forte, e em qualquer forma, desde grupos de


n;as, os famosos trombadinhos, até o bandas de rock. "

Neste exemplo, o escrevente mobiliza (e novamente omite) o verbo "ir",

desta feita como introdutor de uma subordinação com gerúndio: "em qualquer

forma, [indo de x a YJ". Novamente parece estar atuando a estrutura interferente

"desde ... até" sobre a estruturo "indo de x a y", resultando: "desde x até a y''

O fato de, nos dois exemplos. a reduplicaçâo ser redundante indicio que o

escrevente distingue a regência como uma dos marcos do padrão formal ao

qual imagina estar rigorosamente servindo. A saliênôa que a redup!icação da

preposição ganha pode indicar, portanto, que a regência é um ponto nevrálgico

do alçamento (tradução?) que o escrevente busca fazer de suo variedade

lingüística para a escrita culta formal. Pma mais um indício de sua importância,

vejamos o trecho ~baixo, também do mE~smo texto:

"... com o fim da d/todura, elo !JN2Iode mofs forte, e em qua/auer


forma"

em que a opção do escrevente fica entre a recusa de uma formulação mais

simples, como: "explode ... de qualquer forma" (que traz a imprecisão do sentido

de "qualquer": como determinante indefinido ou como adjetivo, sinônimo de

"diferente", isto é, "explode ... de diferentes formas''), e a falta de domínio ativo

de uma formulação talvez mais precisa, como: "explode ... sob qualquer forma".

No contrapasso, o escrevente opta por "em ... qualquer forma". Como podemos

ver. há uma hipótese bastante complexa que pode perfeitamente ter orientado

144
essa escolha do escrevente, embora um olhar mais ligeiro talvez se contentasse

em atribuir não mais que uma inadequação da regência. Trata-se, como vimos,

da hipótese da ambigüidade que o uso da preposição "de" termina por produzir

no determinante/adjetivo "qualquer". Da opção por "em ... qua!quer forma"

interessa destacar o ponto nevrálgico que a regência denuncia, pois nela fica

patente a expectativa do escrevente de se lançar no processo de textualização

a partir da esctita culta formal.

O efeito resultante dessa busca de alçamento mostra claramente o

caráter de prática social que os fatos lingüísticos assumem quando tomados no

seu processo de textua!izoção. O letrado/escrito praticado, ao refletir a tentativa

de alçamento ab padrão mais forma! do língua, revela que o escrevente situa

seu texto num modo heterogêneo de constituição da escrita.

Um outro caso interessante a ser tratado é o da concordância. Observemos

as partes grifadas abaixo:

"... sempre no final da partida ocOffe bJigas entre os torcidas. Não


precisamos ir muito longe para observarmos mais exemplos de
violência; nas fam1lias onde há irmãos; sempre acontecerá bligos, ... "

Podemos dizer que estamos diante de uma seqüência lingüística que

busca marcar~se por um registro mais formal de linguagem. Observemos, por

exemplo, a escolha do verbo "haver" no sentido de "existir", quase que excluído

do falo distensa, em que normalmente é substituído por "ter". Observemos ainda

a escolha do futuro do presente na flexão do verbo "acontecer", também uma

escolha que recusa a locução "ir+ verbo principal" [" ... sempre + IR + acontecer

brigas ... "], típica da fala distensa. Ao lado dessas escolhas mais formais, porém,

temos uma característica típica de um estilo distenso de linguagem, próprio do

145
língua falada: o verbo "ocorrer" e o próprio verbo "acontecer" não concordam6S

com o sujeito "brigas". Para que mantenhamos o critério de tratar localmente

esses pontos salientes da escrita do vestibulando, é interessante notar que a

própria tentativa de conseguir um registro formal {pela impessoalização dos

verbos "ocorrer" e "acontecer") pode estar produzindo um efeito mais ligado à

representação da escrita em sua suposto gênese (a falta de concordância). Em

outras palavras, o caráter impessoal do verbo "haver", pode ter provocado, por

contigüidade, a opção pela não flexão dos verbos, num movimento local de

assimilação. Este exemplo mostra bem como os eixos, operatoriamente

separados na análise, atuam de maneira integrada na prática da escrita.

Enquanto efeito resultante - visto, portanto, como produto -esse trecho parece

denunciar uma representação da constituição da escrita em sua suposta gênese.

No entanto, do ponto de vista do processo69 de textua!ização que o constituiu,

ele parece ter seguido a lógica de um imaginário sobre a escrita

institucionalizado.

68 Segundo Pezatti (1993), "o portugués falado é um s;stemo de ergotividade cindido,


motivado por dois fatores: o natureza semântica do verbo [no caso, verbos existenciais de um
lugar] ... e, conseqüentemente, o natureza do SN [ou seja, grau de animacidade que
caracteriza o sintagma nominal; no caso, um não-animado = "brigas"] que o acompanhd'
(op. clt., p.l69), possibilitando, nessas condições, construções como as do tipo acima
exemplificado, que se caracterizam por te·r "o {mico argumento ["brigas"] do verbo
1'nlransifivo existencial ["ocorre ou acontecerá "] (... ) com os mesmos troços do objeto
transitivo ... (idem, p. 176-7).
69 Supondo. por exemplo, que, nesse caso, o escrevente fizesse a concordância padrão,
teríamos um dado relevante a menos a considerar. mas, ainda assim, se poderia falar da
constituição heterogêna desse texto considerondo outros dados. Desse modo, especulando
sobre esse dado em relação a ele mesmo, podemos dizer que, nesse texto, a falta de
concordância constitui um dado relevante justamente pelo movimento local de assimilação,
ou seja, o próprio processar-se da escrita (no qual hó o encontro com e a assimilação do
impessoalidade do verbo "haver" ) permitE~ destacar esse dado como um ponto de
;ndividuação. É significativo, portanto, que essa individuação atue na direção do código
escrito ínstifucíona!iz:ado. Inversamente, se a concordância padrão tivesse ocorrido, nado de
surpreendente haveria paro ser destacado no processar-se da escrita. É evidente que,
também nesse caso, o modelo do código escrito institucionalizado estaria agindo, mas o
dado não seria um dado relevante, uma vez que o processo de escrita não teria a revelar
nado mais do que o produto da escrita já estaria revelando.

146
Uma outra tentativa de alçamento ao padrão mais formal da língua volta

a acontecer num trecho já comentado por ocasião da circulação do escrevente

pela representação que faz da escrita em sua suposta gênese . Trata-se do

fragmento:

''... até mesmo patéticas... "

Se, no momento de gênese, esse fragmento foi analisado como uma

forma de explorar o universo argumentativo imaginado para o interlocutor por

meio do uso de "até mesmo x", no caso presente, é pertinente a observação do

adjetivo "patéticas". O procedimento que leva a essa escolha !exícal é

novamente perfeitamente adequado, o que podemos constatar ao estendermos

o contexto lingüístico em que ela aparece:

".. .sempre acontecerá brigas, geralmente por motivos sem


importância ou até mesmo patéticas, como ... "

Observemos, em primeiro lugar, que o item lexica! foi trazido depois de

uma reelaboraçõo, marcada pela conjunção "ou". A ree!aboração, que incide

sobre o sintagma adjetivo: "sem importância", tem, nesse caso, o pape! de re-

situar esse sintagma num nível mais alto de uma escalo argumentativa. O

procedimento é, nesse sentido, executado com êxito. No entanto, a escolha

lexica! feita pelo escrevente se constitui mais no indício de uma tentativa de se

alçar à escdta culta formo/ do que num uso propriamente formal desse item

!exical, uma vez que o escrevente recorre a um uso ainda não-dlcionarizado do

adjetivo ''patético", a saber, com o sentido de "ridículo"; ''mesquinho";

147
"obsurdo"7o. Em termos !exicois, este sentido, apreensíve! justamente em virtude

da reelaboração de "sem importância" para um ponto-limite {"até mesmo x") da

escala argumentativa, resulta - por esse mecanismo de construção textual -

numa espécie de superlativo, delineando uma interpretação previsível para o

termo escolhido "patéticos". Como vemos, o recurso utilizado pelo escrevente é

bastante mais sofisticado do que simplesmente o da escolha lexical.

Curiosamente, é a escolha !exical que denuncia a expectativa do escrevente de

se alçar (e a seu texto) ao domínio da escrita culta formal, a respeito da qual

articula, como podemos notar, o que estamos: chamando neste trabalho de um

imaginário sobre o código institucionalizado. É importante destacar que esse

aspecto lingüístico- saliente paro o escrevente- vem sob a moldura da marca

de ree!aboração, fato que vem corroborar a hipótese de Aba urre (1994) de que o

procedimento de ree!aboração parece "constituir-se em espaço prívllegfodo

para a observação dos aspectos relati11os à modalidade escrita da língua que

adqui"remsal/ência"{op. cit., p. 6).

No fragmento abaixo, a circulação dia lógica do escrevente com relação

à imagem que ele faz sobre a posição que ocupa seu interlocutor em relação à

língua - a região mais formal dentre as suas variedades - intertere novamente,

desta feita no escolho do operador textual:

"Por outro lado as pessoas não tem culpa, po/s desde o


golpe de 64, onde muitos foram e:<tlados'" ou torturados, e algumas
desapareceram por serem prejudiôai"s ao governo d/tador da
época. com isso a vio!ênôa ficava mantt"do em cada um de nós, ... "

7° O Dicionário Aurélio Eletrônico {1994) não traz nenhuma deSsas acepções, contemplando
apenas: "que comove a alma, despertando um sentimento de piedade ou tn"steza;
confrangedor; tocante"; ou: "que revela forte emoção; apaixonado'! ou ainda: "trógico,
sinistro, cruel". O Dicionário Escolar das Dificuldades da Lingua Portuguesa {1968) de Cândido
Jucó (filho), também não contempla aquelas acepções. incluindo, porém. outras: "enérgico,
expressivo, tocante, veemente, comovente,· aletuoso, sentimento/".

148
Como ficou dito ao tratarmos do esquema textual (re-)produzido nesse

texto, a uma delimitação de um tópico específico (a violência como inerente às

pessoas e os espaços em que aparece) contrapõe-se um outro tópico (a

violência como efeito sócio-político datado}. O operador textual assinalado

aparece no momento dessa contraposição e tem o papel de estabelecer um

jogo de perspectivas. Reduzido a não mais que duas perspectivas, esse jogo é

típico desse esquema textual e é normalmente reproduzido por uma grande

quantidade de textos. Os meios de comunicação de massa - tomados. em geral,

pela escola e pelos alunos como modelos de boa escrita - são bons exemplos

desse tipo de utilização. Lembremo-nos, por exemplo, da preocupação que a

imprensa procuro aparentar com as versões: a de um lado e o do ouiro lado.

Portanto, esse uso de ''por ouhv lado" parece reproduzir um esquema

textual suposto como próprio para o bom desempenho no vestibular. Como foi

adiantado, a dissertação é provavelmente o tipo de texto com que o escrevente

tem mais contato durante os anos de escolarização por que passa. Não raro,

nesse processo de escolarização, o aluno é defrontado diretamente com

modelos- Impostos para repetição em série- muito mais do que com os também

culturalmente assimilados esquemas textuaiS - frutos, porêm, da aquisição

gradativa de um conhecimento não apenas formal e a partir do contato com os

vários tipos de textos.

Observemos que o escrevente dialoga com a língua escolarizado, fato

que revela aspectos de sua imagem do código institucionalizado. No entanto, o

próprio uso de "por outro lado" fica prejudicado por essa quase auto-emissão do

esquema textual. Não aparecendo, nos termos já citados de Geraldi {cf. aqui

mesmo, p. 125, nota 58}, a palavra do aluno, e{e próprio se desobriga de construir

149
o paralelismo estrutural que esse operador pressupõe. Por essa razão, esse "outro

lado" dialoga difusamente não só com o conteúdo delimitado como tópico

espedfico em seu texto, mas com o próprio esquema que deu origem ao uso

desse operador. Mais do que uma estrui"uroção articulada em seu próprio texto,

"por outro lado" indicio, portanto, o migração de um esquema para o domínio

da textua!lzação do vestibulando. Ou seja, indicio graficamente um aspecto de

seu imaginário sobre o código institucionc!lizado.

A salíência que a {re-)produção do esquema textual tem para o

escrevente é evidenciado também pela repetição do mesmo procedimento no

final do texto. Mesmo a respeito de um tema sobre o qual as conclusões estão

muito longe de ser definitivas, fato comprovado não só pela diversidade de

pontos de vista presentes na coletânea, mas, sobretudo, pela conclusão parcial

do escrevente em relação à discussão desenvolvida em seu próprio texto, a

{re-)produção do esquema textual se impõe ao escrevente:

"Portanto sempre a existirá pois para contê-/a necessitamos


defa."

Esse é mais um exemplo da tese que estamos defendendo. Um último

exemplo tem a ver com o emprego do pronome:

"Portanto sempre a eJdsfirá pois para contê-la necessitamos


dela."

Há, nesse caso, dois traços fundamentais que marcam a imagem que o

escrevente faz da escrita: o próprio uso do clítlco e sua inserção como

complemento de verbo que não exige complemento.

150
No que se refere ao uso do clítico, Duarte {1989) lança e confirma a

hipótese de que, na realização do objeto direto correferente com um SN

mencionado no discurso, o clítico acusativo de 3° pessoa vem sendo substituído,

no português falado do Brasil {a pesquisa se restringe à fala de São Paulo), por

SNs anofóricos (forma plena do SN correferente com outro SN previamente

mencionado) ou por uma categoda vazio (objeto nulo} [op. dL p. 19]. Os

resultados de sua pesquisa mostram que, do ponto de vista do condicionamento

lingüístico de natureza sintática, o uso da categoria vazia, em estruturas simples,

supera sua realização fonológica. Por sua vez, quando se tem em vista o

condicionamento lingüístico de natureza semântica, a preferência pela

categoria vazia recai sobre os objetos com antecedentes f- animado]. No que se


refere aos condicionamentos sociais da escolaridade e da faixa etária, o clítico é

uma variante da realização do SN anafórico com "ausênda absoluta na fala dos

jovens, enquanto para os demais grupos [de 22 a 33 anos, de 34 a 46 anos e

acima de 46 anos] seu uso cresce /ígeiramente com o nível de escoladdode"

{idem, p. 27, destaque nosso). A autora conclui que "a cotegodo vazia objeto se

encontro implementado no sistema lingüístico" e que "sua ocorrência em artigos

de jamais e revistas, no literatura e em traduções, em contextos que não têm a

intenção de reproduzir o 1/nguo falada atesta isso e diStingue o português do

Brasil dos suas finguas irmãs" (idem, p. 32}.

No exemplo acima, temos, do ponto de vista lingüístico, uma estrutura

sintática simples, um "objeto" com antecedente {- animado] - a violência -,

estamos diante de um texto de um jovem que não ultrapassa a cosa dos vinte

anos, com escolaridade de 2° grau. A nos orientarmos pela pesquisa de Duarte,

151
todos esses condicíonamentos mais seu uso corrente também em textos escritos

levariam a esperar a "categonO vaz10 objeto·:

A frustração dessa expectativa, C:lO lado do fato de que o verbo não

exigiria mesmo complemento algum, mostra que o escrevente usa o clítíco em

função da Imagem que faz do código escrito Institucionalizado, cunhando, pela

negação, ao invés da pureza buscc1da, um cruzamento com o falado,

evidencíando uma escrita heterogênea.

Outras observações poderiam ser feitas a respeito desse tipo de

circulação imaginária do escrevente. Tratamos aqui- como já havíamos feito no

caso da circulação do escrevente pelo imaginário sobre o gênese da escrita -

daquelas pistas consideradas mais salientes. Como ficou dito, o próprio processo

de textualização que o escrevente registra em seu texto contribui paro a

determinação dessas saliências. Com rel<Jção à hipótese que permite reunir essas

pistas em um eixo particular de circulação dialógico, ela consiste na postulação

de que essas pistas são - para retomar de lemos {cf., aqui mesmo, p. 11 O} -

sempre "fragmentos" indiciatlvos "de int~:Jração ".

No item seguinte, será tratado o terceiro eixo, referente à relação que o

texto do escrevente mantém com o já falado e com o já ouvido bem como com

o já escrito e com o já lido. Como adiantamos, essa relação põe o escrevente

em contato não só com sua experiência do oral/falado, mas também com a

produção escrita em geral e com uma produção escrita particular - a da

coletânea de textos (ou de fragmentos de textos) que deve ler durante a prova.

Para simplificar a referência a esse eixo, passaremos a chamá-lo de eixo da

dialogia com o já falado/escrito.

!52
O escrevente e a dialogia com o já falado/escrito

Uma objeção quanto ao estudo da relação do texto com o já

falado/escrito poderia se constituir no fato de que todo o texto · e não apenas as

partes destacadas em negrito - pode ser considerado como produto do já-dito.

Uma tal consideração, ligada à vinculação do discurso ao interdiscurso, não está

descartado da abordagem que estamos procurando dar aos textos. No entanto,

ao buscar a relação com o já falado/escrito. a expectativa é buscar pistas que

denunciem - paro usar uma expressão de Authier-Revuz - "uma negociação

com as forças centn'fugas, de desagregação, da heterogeneidade constitutiva"

{op. cit., p. 33), ou seja, é buscar pistas da "heterogeneidade mostrada".

Considerado a circunscrição ;do evento vestibular. a análise dos textos

quanto à relação com o já falado/escrito resulto também do confronto com os

fragmentos da coletânea. Esse procedimento se mostrou necessário dado que a

utBízação da coletânea é uma exigência dessa prova, mos- como ressalvam os

instruções acima transcritas - não deve haver cópia dos textos como um recurso

para o desenvolvimento temático. Em virtude dessa ressalva, muitos estudantes

deixam de dor uma forma mostrada às remissões à coletânea. No sentido de

detectar essas remissões não-mostradas, optamos por anotar. texto por texto, os

empréstimos tomados da coletânea. Na versão seguinte, o mesmo texto utilizado

acima para exe_mplo desta feita traz, destacados, os momentos em que o

escrevente faz remissões à coletânea (ainda que não-mostradas). Como

poderemos observar, o escrevente não marca, explicitamente, em nenhum

momento, sua escrita como relacionada com o já falado/escrito, fato que, por si,

já é revelodor não só de sua relação com a escrita, mos de suo própria relação

com a linguagem.

153
texto 0-05

VIOLÊNCIA

A VIOLÊNCIA NÃO ESTA SE INICIANDO NO PAfs NESSES


TEMPOS, JA VEM DE MUITO ANTES, DESDE O DESCOBRIMENTO DA
AMÉRICA ONDE EXTERMINAVAM TRIBOS INTEIRAS PARA LEVAR SEUS
METAIS E PEDRAS PRECIOSAS, COMO O OURO E O RUBl' OU ATÉ
MESMO ELES PRÓPRIOS COMO ESCRAVOS,

ELA ESTA EM QUALQUER LUGAR, DESDE UM BOM DIA


AGRESSIVO ATÉ AOS CAMPOS DE FUTEBOL ONDE SEMPRE NO FINAL
DA PARTIDA OCORRE BRIGAS ENTRE AS TORCIDAS, NÃO
PRECISAMOS IR MUITO LONGE PARA OBSERVARMOS MAIS EXEMPLOS
DE VIOLÊNCIA; NAS FAM[UAS ONDE HA IRMÃOS,' SEMPRE
ACONTECERA BRIGAS, GERALMENTE POR MOTIVOS SEM
IMPORTÂNCIA OU ATÉ MESMO PATETICAS COMO O LUGAR NA SALA,
OU QUE UM RECEBA MAIS ATENÇÃO

POR OUTRO LADO AS PESSOAS NÃO TEM CULPA, POIS DESDE


O GOLPE DE 64, ONDE MUITOS FORAM EXILADOS, OU TORTURADOS, E
ALGUMAS DESAPARECERAM POR SEREM PREJUDICIAIS AO
GOVERNO DITADOR DA ÉPOCA COM ISSO A VIOLÊNCIA FICAVA
MANTIDA EM CADA UM DE NÓS, ATÉ QUE COM O FIM DA DITADURA
ELA EXPLODE MAIS FORTE_ E EM QUALQUER FORMA DESDE GRUPOS
DE RUAS, OS FAMOSOS TROMBADINHAS, ATÉ A BANDAS DE ROCK.

ANTES DE MAIS NADA É NECESSARIO QUE A POPULAÇÃO


SEJA MAIS AMA VEL E QUE TOME CONCIÉNCIA DISSO, MAS É MUITO
DIFÍCIL POIS A VIOLÉNÇIA JA FAZ PARTE DAS PESSOAS,

PORTANTO SEMPRE A E~ISTIR,( POIS PARA CONTf'-LA


NECESSITAMOS DELA,

Para que tenhamos uma idéia da remissão ao já falado/escrito, é

interessante que retomemos o tema proposto para a Redação:

A5 sociedades ditos civilizadas vêem o violência, em especial quando


organizada, como uma ameaça a seu sistema de valores. Levando em conto
a coletânea abaixo, escreva uma dlsHJrtoção sobre o tema: Violência nas
tribos urbanas modemas.

O título escolhido pelo candidato foi "Violência': Parece haver, já nessa

escolha, a interferência de um dos textos da coletânea - o primeiro - ou, melhor

!54
dizendo, de um fragmento do texto de René Girard. mais propriamente o seu

primeiro enunciado: "A violência é de todos e está em todos': A interferência

desse primeiro texto se faz notar não só no título, mas também nos dois últimos

parágrafos do texto do vestibulando; no penúltimo, com: faz parte das pessoas

{em que o escrevente tenta uma paráfrase do enunciado de Girard acima

citado) e no último com: para contê-la necessitamos dela (em que o escrevente

tenta uma paráfrase de um outro enunciado de Girard: "parece ser impossível

não ter que usar a violência quando se quer liqüidó-la e é exatamente por isso

que ela é interminável"). Essas são as duas tentativas mais claras de parafrasear a

coletânea feitas pelo escrevente.

Ainda a partir do primeiro enunciado do primeiro texto da coletânea ( ')j,

violência é de todos e está em lodos"), podemos observar como o escrevente

delineou sua abordagem do tema. A partir desse enunciado, o escrevente

parece autorizar-se a fazer uma abordagem gera! do tema, omitindo a

informação da proposta temática, que solicitava a abordagem da violência

"quando organizada': mais especificamente nas "tnbos urbanas". Para tratar

apenas do aparecimento da palavra "violência", sem considerar o título e as

retomadas coesivas presentes durante todo o texto, contam-se quatro usos

distribuídos em cada uma das partes do esquema textual. Embora não seja

surpreendente que o vestibulando queira responder ao tema proposto e que por

isso considere necessário retomar essa palavra~chave por todo o texto, a leitura

de outros textos mostra que essa repetição nem sempre corresponde à desejada

adequação ao tema. É, de certo modo, o que se vê no texto em questão, em

que a manutençOo temática fica cumprida como reiteração, mas não

propriamente como desenvolvimento temático, que, pelo próprio fato de sua

155
continuidade, dispensaria a repetição da palavra por meio de colagem da

coletânea.

No entanto, não estamos preocupados em avaliar em que medida o

escrevente desenvolveu o tema proposto. Interessa destacar, ao contrário, o

diálogo mantido com o material proposto para leitura e o modo pelo qual o

escrevente o enquadrou no seu universo de referências sobre o assunto,

enquadramento revelado pelas remissôes que esse processo de textualização

deixa aflorar.

Portanto, no que se refere à coletânea, o quadro de leitura que levou à

busca de fatos, dados, opiniões e argumentos - conforme o recomendado nas

instruções da prova- parece ter-se orientado pelo critério da generalidade. Mas

é pouco reconhecer esse caráter de generalização. As pistas que o texto fornece

são bastante eloqüentes no que se refere ao tipo de apropriação do material

proposto na coletânea. É, na verdade, o universo muito particular da história

pessoal do escrevente que parece estar contando. Esse fato é facilmente

observável pelo tipo de aproveitamento dos textos.

Como podemos notar, todas as assinalações acima (com exceção da

palavra "briga") são produto de colagem lexical da coletânea para o texto. É

interessante, pois, que detectemos a caracterização de uma marca pessoal

nesse texto que, em tudo, parece tratar de generalizações, mesmo no que se

refere a utilizar-se de uma reprodução de um esquema textual. Quanto a este,

em particular, já foi salientado que sua própria estrutura prevê um momento no

qual o escrevente deve fazer uma ressalva que o coloque em relação direta

com o tema. O texto sob análise não foge, como já adiantamos. à regra. Vale,

pois, repetir o trecho em que o escrevente obedece a esse requisito do esquema

156
textual: "Não precisamos ir muito longe poro observarmos mais exemplos de

violência,.· nas fom!lios onde há irmãos: sempre acontecerá brigas, geralmente por

motivos sem importância ou até mesmo patéticas, como o lugar na sala ou que

um receba mais atenção".

Contudo, não parece ser esse o trecho em que podemos detectar, com

mais clareza, uma marca efetiva - não-induzida pelo esquema textual - do

representação que o escrevente faz de si mesmo. Pelo modo que o escrevente

retoma as informações da coletânea, podemos ter uma noção mais precisa

dessa representação pessoal procurada, relacionada especificamente com o já

falado/escrito. É o que acontece na explicação que segue a expressão "grupos

de n;os': retomada da coletânea:

"... desde grupos de ruas, os famosos trombadinhas, até ... "

Como ficou dito, na época desse vestibular, apenas começavam a ser

noticiados em veículos menos especializados - ao contrário da círculação de

fanzines especializados, ligados a diferentes grupos de jovens - a atuação das

"tribos urbanas", foto que parece ter criado uma dificuldade adicional para a

atribuição de um sentido preciso o essa expressão. A interpreioção desliza,

portanto. por uma série parafrástica do universo de representação do escrevente,

levando-o a identificar "grupos de ruas" (ou "tribos urbanas") com "os famosos

trombodinhas': dado de realidade bastante presente nos jornais de maior

circulação, bem como na TV. A ante posição do adjetivo "famosos" mostra o

efeito expressivo buscado: tentativa de dar uma margem de obviedade à

explicação (embora incerta) dada a "grupos de ruas" e, ao mesmo tempo, de

ampará-la no já falado/escrito sobre o assunto.

!57
Recurso semelhante é utilizado pela referência à história do Brasil:

"... onde exterminam tribos inteiras poro levar seus metais e pedras
preciosas, .""

A palavra "tribos", tomada do terna, aparece, nessa parte do panorama

gera! previsto pelo esquema textual, a titulo de uma presentificação de uma

virtuafidade mnemônica ligada à escolarização do escrevente. De fato, o

apanhado histórico previsto pelo esquema leva a atualizar a palavra ''tribo"

desse modo. No entanto, parece estar ocorrendo, mais uma vez. uma nova

busca, por parte do escrevente, de apoio no já falado/escrito, como forma de

situar, no seu universo pessoal. um tema - o das "tribos urbanas" - ainda não

reconhecido como parte dele. Dada o ocasião oportuna de resposta, pode

parecer ao escrevente que a referência histórica traga a vantagem de situar seu

dizer no âmbito do universo de escolarização, aquele mesmo que o escrevente

supõe como favorecedor da mobillzação desse típo de conhecimento.

Uma outra interessante apropriaçôo das referências colhidas nos textos da

prova volta a ocorrer pelo uso da palavra "brigas". Na verdade, essa palavra

não aparece em nenhum dos textos, mas um deles, o de n° 5 (entrevista com

Max Cavolera, do grupo de rock Sepultura). fala em agressão e crítica às pessoas

que vão aos shows para "bdgar·: Também o texto de n° 6 menciona "combates

dtuais" entre gangs de surfistas. O primeiro contexto em que a palavra "brigas"

aparece, no entanto, é o das brigas entre torcidas de futebol, mais uma clara

aproximação das referências da coletânea ao universo do já falado/escrito pelo

escrevente. O segundo contexto em que essa palavra aparece é ainda mais

próximo desse universo pessoa! do já falodo/escrito: "Nas famt7los onde há irmãos;

sempre acontecerá bdgas... ".

!58
A particularização da violência urbana ao Brasil parece ter também uma

remissão ao texto de n° 5 da coletânea, em que o músico Max Cava lera atribui a

violência nos shows de seu grupo de rock ao "País inteiro, o estado em que o País

se encontra". Basta observar o primeiro enunciado do texto do vestibulando para

termos uma réplica quase díreta à fala de Cava!era:

"A violência não está se iniciando, no país, nesses tempos, já


vem de muito antes, desde o descobdmenfo da América... ''

Essa réplica do escrevente parece ser feita para corrigir a direção do imediatismo

atribuído à afirmação de Cavalera no sentido de uma outra réplica - desta feita

dirigida à instituição que o escrevente tem como interlocutora - que consiste em

dar um conteúdo histórico ao que poderia parecer uma fato circunstancial,

demonstrando, já no panorama geral de seu esquema textual. o preocupação

com circunscrever o quanto possível sua abordagem no que acredita ser o

universo de escolarização esperado pelo interlocutor que vai avaliá-lo.

Uma última observação com relação à utilização da coletânea traz de

volta um problema já analisado anteriormente. O uso de "desde ... até" feito pelo

escrevente coloca não só o eixo da gênese da escrita em contato com o eixo da

dialogia com o já falado/escrito. mas também permite o contraste entre duas

utilízações da coletânea, contraste que vem corroborar a interpretação já feita

aqui (cf. p. 143-4}. Detectamos, quando foi tratada a relação entre o escrevente

e a representação que ele faz da gênese da escrita, a tentativa, por parte dele,

de determinar uma posição para seu interlocutor. O recurso utilizado foi a

projeção de um espaço argumentotivo comum na horizonta!idade da escrita. No

grafismo da estrutura "desde ... até" pode estar a razão para a insistência em seu

!59
uso. Observemos, desta feito, os dois pontos-limite por meio dos quais esse espaço

orgumentativo é reconstruído no escrita:

"... desde grupos de ruas, os famosos trombadinhos, até o bandas de


rock."

As palavras "grupos" e "ruas" estão em diferentes textos da coletânea,

respectivamente, no texto de n<) 5: "(Entrevisto com Max Cova/era, vocolisto do

gtvpo de rock Sepultura. ISTO É SENHOR. 09/10/91}" e no texto de n' 6: "Nos ruas

das cidades imundos e pedgosas, marginalizados povos primitivos que habitavam

as favelas agora vogam famintos e agressivos." Por sua vez, a palavra "banda"

aparece também no texto de n° 3: "O Guns N'Roses, hoje com certeza a banda

mais popular do mundo, ... " e o palavra rock aparece também no texto de n° 3 e

mais de uma vez no texto de n° 5.

É certo que a expressão "grupos de ruas" pode ser vista também como

uma paráfrase da expressão "tribos urbanas", presente na proposta temática. A

ocorrência do plural em "ruas'' indica, porém, a possibilidade de uma colagem

direta do texto de n° 6, fato que levaria a pensar numa colagem também da

palavra "grupo". Independentemente do procedimento de apropriação,

podemos ver que o espaço argumentativo criado coloca o seguinte contraste:

"grupos de rua" versus "bandas de rock". Como foi visto, a extensão desse

espaço vai "desde grupos de ruas (... ) oté a bandas de rock", pontos-limite que

parecem corresponder, respectivamente, a uma preocupação mais próxima do

escrevente e a umo posição mais próxima de seu interlocutor. Podemos dizer,

portanto, que, no caso particular dess~:l escrevente, a possível expectativa da

banca de confeccção da prova de propor um tema e uma coletânea de

interesse para o jovem foi frustrada pelo réplica do escrevente, que, ao fazer uso

160
de duas diferentes remissões à coletânea, coloco seu interlocutor justamente na

posição em que este último esperava encontrar o escrevente.

Pudemos observar, nessa investigação sobre a dialogia com o já

falado/escrito, que ~ talvez procurando obedecer às instruções preliminares da

prova que orientam o candidato a não copiar trechos da coletânea - o

escrevente não recorre nem a citações explicitas {embora tome emprestado o

léxico da coletânea}, nem a ten1ativas de paráfrases mais elaboradas (conferir as

duas tentativas do escrevente comentadas no início deste tópico} nem mesmo

ao uso de aspas. No entanto, essa obediência às recomendações não parece ser

propriamente uma preocupação do escrevente, mas uma limitação de sua

escrita. Sua apropriação do já falado/escrito, incluídos os textos da coletânea,

não passa de remissões orientadas por um universo de referências bastante

restrito e excessivamente preso ao imaginário acerca de certos espaços sociais. O

falado na família ou nos meios de comunicação de massa {especialmente na

TV}, o diálogo com o já falado/escrito no processo de escolarização até então

vivido e o diálogo que, nesse momento, estabelece com uma instituição escolar

em particular são os pontos de circulação dialógica mais freqüentados pelo

escrevente nesse texto.

A falta de exploração de recursos um pouco mais sofisticados, como o da

paráfrase, o do descolocamento de pontos de vista pela exploração de seus

pressupostos - este que claramente registraria um procedimento de leitura - ou o

da comparação no estabelecimento de relaçües com o já falado/escrito

denunciam, desta feita no terceiro eixo analisado, que, também no que se refere

às remissões intertextuois, há uma fala nessa escrita. Evidentemente, não se trata

aqui da chamada interferência do oral/falado no letrado/escrito, mas da

161
presença de remissões mais típicas do universo do sujeito (sejam elas

provenientes do oral/falado ou do letrado/escrito} em detrimento de remissões

mais típicas do universo da língua escolarizada (sejam também elas provenientes

do oral/falado ou do letrado/escrito). Desse modo, na falta de maiores recursos

metolingüísticos que a próprio prática da escrita fornece, podemos dizer que a

divisão enunciativo do escrevente o coloca sempre numa reprodução do

imaginário sobre os citados espaços sociais atribuídos ao letrado/escrito. Mais do

que isso, essa posição o coloca em confronto com o lugar do letrado/escrito que

ele imagina para seu interlocutor. Constitui-se, então, também pelo tipo de

apropriação do já falado/escrito, um modo heterogêneo de constituição do

escrita, caracterizado pela alternância entre a aproximação ao universo que o

escrevente se atribui e a aproximação oo universo que ele atribui à escrita e a

seu interlocutor.

* " *
O objetivo deste item foi tematízm os dois momentos cruciais do evento

vestibular:, o da proposta de redação e o da textl!alii:ação praticada pelo

vestibulando. Com esse intuito e partindo dos três eixos estabelecidos como lugar

priví!egiado para a observação, buscamos abordar a relação entre o material

para análise e o método indiciário empregado. No que se refere a marcas

lingüísticas locais dessa circulação dialógica, a expectativa é que tenhamos

chegado a estabelecer uma direção "para onde olhar". O conceito que permitiu

a individuação dessas marcas foi o de dialogia, a partir do qual foram buscados

os fragmentos indiciativos de ínferoçõo. O status semiótico de cada uma dessas

marcas foi definido individualmente pelo levantamento de hipóteses, cuja

162
proposição particularizada teve o papel de redefinir, em cada caso, "os molduras

que estruturam e enquadram um evento" {cf. Caprettini, aqui mesmo, p. 96).

No que se refere, porlanto, à detecção da circulação do escrevente pela

imagem que faz sobre a (sua) escrita , sobre si mesmo e sobre o interlocutor, os

três eixos privHegiados para observação mostraram~se produtivos do ponto de

vista dessa detecção. Pudemos confirmar, então, que, a essa circulação,

corresponde a caracterização de um modo heterogêneo de constituição da

escrita.

No item seguinte, mantendo o trabalho com as pistas locais, procuraremos

reunir essas pistas lingüísticas segundo as várias dimensões da linguagem {sintaxe,

léxico. prosÕdia, organização textual, recursos argumentotivos etc.). Nos

exemplos que daremos de cada uma dessas dimensões não mencionaremos

mais do que uma regularidade quanto ao modo de aparecimento dessas

marcas. Com o tratamento de cada dimensão em termos de um conjunto de

regularidades, v1samos manter o trabalho com o método indióórío,

estendendo-o, ao mesmo tempo, na direção de uma abordagem globalizada

do problema. Esta consiste na captação de pistas comuns nos vários textos de ta!

modo que alcancemos um tratamento dos dados que, sem fugir ao método

proposto, permita estabelecer marcas de individuação comuns aos vários

escreventes.

163
Três atos de apropriação da esaita E> suas marcas

Nota prévia: as pistas lingüísticas em relaç:ão ao conjunto dos textos analisados

Com o exemplo dado na seção acima, procuramos mostrar o trabalho de

captação de pistas lingüísticas feito em cada um dos textos do corpvs. Na seção

seguinte, mantida a referência às várias dimensões da linguagem, estaremos

exemplificando o tratamento dessas pistas como regu/andades lingüísticas. Não

nos preocupamos, porém, em estabelecer essas regularidades segundo sua

re!evôncfa estatística, sequer em termos de repetição de uma mesma marca

lingüística. Preocupamo~nos, sobretudo, em observar, nos textos dos

vestibulandos, o tipo de processamento do discurso segundo as várias dimensões

da linguagem e de acordo com o::; tr~s eixos de circulação propostos,

processamento que pode ser indiciado por mais de um tipo de pista lingüística.

Por exemplo, como veremos no capítulo 3, a falta de lexicalização, o emprego

não convencional da vírgula, a falta e a confusão entre sinais de pontuação,

bem como certos tipos de marca ortográfica são diferentes pistas lingüísticas que

podem indiciar um mesmo tipo de processamento da dimensão prosódica,

característico da circulação do escrevente pela imagem que ele faz da gênese

da (sua) escrita, isto é, são pistas que podem indiciar uma mesma regufan"dade

lingüística. É, pois, através dessas regularidades -ligadas às várias dimensões da

linguagem (sintaxe, organização textuCII, recursos argumentativos ... ) - e das

propn"edodes- definidas para cada um dos eixos- que pretendemos alcançar

não só o conjunto dos textos analisados, mas também estender a aplicação dos

resultados para oufros conjuntos de textos.

164
Desse modo, se a atuação conjunta dos três eixos aqui propostos passo

necessariamente pela Imagem que o escrevente faz da (sua) escrito, não

podemos esperar que haja, no material analisado e em estado puro, um texto

definido por apenas uma das propriedades isoladamente. A carência (ou a

própria ausência) de marcas de um desses eixos de representação seria, a

propósito, uma boa maneira de investigar o seu peso quanto à representação

que o escrevente faz da (sua) escrita. Lidamos, portanto, com o fato de que a

enunciação pela escrita Impõe ao escrevente limitações simultâneas e de

diferentes naturezas ligadas às representações que ele faz sobre essa sua prática.

Essa é a visada voltada para o conjunto dos textos analisados. Os

resultados obtidos através desse método, embora suscetíveis de aplicação para

outros conjuntos de textos, não permitem, porém, generalizações a partir de

categorias reap!lcáveis por si mesmos, isto é, categorias que dispensem a

consideração da relação sujeito/linguagem. Nossa abordagem, caracterizada

por um outro tipo de rigor científico - aquele que se preocupo com a

especificidod&l to caráter "ao mesmo tempo 'gero/' e 'particular' ') dos

fotos tlngüísticos -. busco não só os regulofidodes ligadas às várias dimensões

da linguagem, mas também as propríedodes lingüísticas de cada um dos eixos

propostos, modo pelo qual acreditamos dar conta de tipos diferentes de relação

entre o escrevente e a {sua) escrita. Considerar esse tipo de variação e lidar com

dados pouco relevantes do ponto de vista estatístico é, em nossa opção

metodológico, considerar o rigor do que é específico dos escreventes.

Podemos afirmar, portanto, que os resultados obtidos falam sobre o

conjunto dos textos analisados, embora os regulondades possam ser

71 Conferir Veyne (1971 J e, aqui mesmo, p. 95-6.

165
exemplificadas a partir de pistas lingüísticas muito diferentes entre si. Desse modo,

a escolha das pistas para análise procura reunir tanto as ocorrências mais

freqüentes no corpus analisado, como ocorrências muito particulares, desde que

ambos os tipos guardem em comum a característica de manifestar o mesmo

modo particular de processamento (a mesma regu/andade) em uma dado

dimensão da linguagem e em um dado eixo de circulação, de tal forma que

contribuam para a caracterização da representação que o escrevente faz da

(sua) escrita ou, mais precisamente, para a caracterização de um modo

heterogêneo de constituição da escrita. Nos capítulos 3, 4 e 5, dedicados às

análises, daremos, a título de ilustração, indicações percentuais, na forma de

quadros, sobre a ocorrência de cada urna das regularidades que obtivemos em

cada dimensão analisada em relação ao conjunto de textos analisados, tomado

este último como "naco de rea!idade'72 capaz de revelar as tendências

principais- considerado o tipo de regularidade a que chegamos- a respeito do

modo de constituição da escrita que estornos procurando descrever.

O ato de apropriação da escrita quando representada sua gênese

Procuraremos detectar, quanto o este aspecto, pistas que denunciem a

circulação dialógíca do escrevente, quondo a escrita é vista como recurso para

registrar graficamente (e de maneira ,exaustiva) as marcas da materialidade

fônlco-pragmático do oral/falado. Entendemos por materialidade fônico-

pragmática do oral/falado as características dos eventos comunicativos feitos

n Sobre a possibilidade de se desvelarem as tendências principais dos fenômenos


investigados através do instrumentalização do conceito de "amostra" como "naco de
realidade" (e não enquanto quadro reduzido- e preciso- de um universo de explanação),
ver Berruto (op. dt., p. 136).

166
por meio da língua falada, destacando-se, especialmente, um tipo particular de

integração entre o aspecto tônico e o aspecto situaciona!.

O escrevente, ao atribuir à escrita uma dependência em relação às

marcas fônico-pragmóticas da oralidade - momento em que o necessário

silenciamenfo de marcas prosódicas, por exemplo, faz ressoar (pela falta) a

presença do oral/falado -, termina por caracterizar um modo heterogêneo de

constituição da (sua) escrita.

Essa exploração da escrita nos limites de sua capacidade de

representação da oralidade é, talvez, o fator mais visível pelos professores

quando tratam de corrigir os textos de seus alunos. Tomando os textos como

produto, normalmênte classificam essas produções como repetitivas. ou como

incoerentes, ou mesmo anotando nelas a interferência do que chamam recursos

da oralidade.

Segundo o que estamos defendendo, porém, a tentativa de registrar na

escrita a materialidade fônico-pragmótica da oralidade, apenas evidencia - por

meio de marcas lingüísticas próprias - a produção assim concebida como um

exemplar de um modo heterogêneo de constituição da escrita.

Adotamos como requisito fundamental para definir tais marcas lingüísticas

o fato de guardarem em comum a propriedade de atingir o texto de um modo

globaL A variedade dessas marcas mostra bem que o processo de apropriação

da escrita está regulado por hipóteses acerca da capacidade representativa das

várias dimensões da língua, incluindo marcas de natureza sintático e lexica!, bem

como marcas de organização textual e de recursos argumentativos. Também

marcas orlográficas, ligadas ao caráter analítico da escrita em relação ao

material sonoro, denunciam a tentativa de explorar a representação da escrita

167
em seus limites. A seguir, passaremos a apresentar as marcas dessa atitude do

escrevente frente à escrita nas várias dimensões, incluindo exemplo de apenas

uma regularidade para cada dimensão.

Marcas :;intáticas

Em sua busca de explorar a copacidade representativa da escrita, o

escrevente registra, por meio de certas estruturas sintáticas, suas hipóteses acerca

da relação entre o letrado/escrito e oral/falado. Podemos sintetizar a

característica sintática básica dessas marcas como o falta de integração:

"Nos metros escorrem favelados que habitam o cidade


roubando e mofando poro sobreviver. Começo o fonnaçõo de
organizados quodn'lhas que usam drogas e fazem tráfico,·
aproveitando os eventos realizados para a diversão da juventude e
passar isso a outras pessoas. "{texto 03-173}

A parte grifada não se integra perfeitamente ao enunciado. Posta à parte,

a tentativa de coordenação fica inteiramente dependente da prosódia, a quaL

como se sabe, não fica marcada dado o caráter segmenta! da escrita.

Marcas: lexicais

Das marcas !exicais que denunciom o mesmo tipo de hipótese por parte

do escrevente, destacam-se a lexicalizoção inadequada ou a própria falta de

lexicalização:

"... existe um método, não totalmente eficaz, mos é usado, é a


educação que se aprende em caso, desde o berço, com os pais que
nos ensinam a diferenciar o certo do errado, mos não são todas tP
pessoas que... "(texto 01-031)

Destaca-se, nesse caso, a falta de lexica!ização, denunciando pelo quantificador

sem artigo uma adaptação fonética transposta tal e qual para a escrita. Na

168
análise deste primeiro eixo de circulação a ser realizada no capítulo 3,

reuniremos, numa mesma dimensão da linguagem, as marcas lexicais e

prosódicos, uma vez que interessa obse/Yar a relação entre uma propriedade

típica da escrita {a lexicalização} e uma propriedade típica do oralidade {as

marcas prosódicas).

Marcas da organização textual

São inúmeras os marcos de organização textual que revelam as hipóteses

do escrevente acerca do poder representativo da escrita. É interessante destacar,

a título de exemplo, o freqüente uso de marcas de estruturação do texto oral:

"É aí que começa urna verdadeiro tempestades de dúvidas,


preconceitos, e pdncipalmente de uma busco que as vezes chega-se
em um determinado ponto onde nos obdga praticamente a voltar
para a estaca zero, é aí também que lodos se perguntam, haverá um
fim poro tudo isso? Existe solução?
"É aí também o ponto em {sic) podemos concluir. .. " {texto 03-180}

Esse articulador, freqüentemente utilizado na organização da

conversação, indica a tentativa de plasmar, na escrita. o monitoramento explícito

do andamento do raciocínio só perceptível pela expressão facial ou por gestos.

Marcas quanto a recursos argumentativos

Quanto às marcas referentes aos recursos argumentativos utilízados, as

hipóteses do escrevente sobre a capacidade representativa da escrita registram

também traços da materialidade fônico-pragmática. O exemplo abaixo mostra

a insistência com relação ao recurso da pergunta:

"Mas será que é assiin que temos que viver? 'Armados até os
dentes' paro nos livrar do mal violência? Teremos que no futuro andar
nas roas com carros blindados? Ou então,. metade da população terá
que pertencer ó polícia? E o outro metade.· aos marginais? {Texto 00-
014)

169
A insistência nesse recurso, parece buscar reproduzir um diálogo real com

o interlocutor. Por ser um diálogo sem réplica, constituí-se numa interpelação a

partir de si mesmo, isto é, numa interpelm;ão construída a partir da representação

que o escrevente faz do interlocutor e do que este julgaria como preferíveL

Marcas ortográficas

Quando íoga com o imaginário sobre a escrita em sua suposta gênese , o

escrevente procura tomar os segmentos gráficos como instrumental de análise do

material ora!. Destacam-se, nesse particular, os problemas ortográficos típicos de

uma escrita foneticamente orientada, bem como os problemas ortogrófícos

ligados à proximidade fonética entre as palavras:

"...grupos que só aceitam pessoas com os mesmos ideáis" {Texto 04-


198)
ou
"... valores esses moldados num ciclo vicioso" {Texto 04-197)

No primeiro exemplo, o escrevente lança mão de um recurso gráfico para

sinalizar a sílaba tônica da palavra, generalizando, desse modo, um dos princípios

- a toniddade - que regula a acentuação ortográfica como sendo o único. Essa

generalização denuncia, como vemos, uma perspectiva fônica sobrepondo-se à

pers-pectiva ortográfica. No segundo exemplo, a proximidade fonética entre

"ciclo" e "círculo" leva à homografia. No capítulo 3, dedicado à análise deste

primeiro eixo, os marcas ortográficas serão tratadas na dimensão da linguagem

referente à prosódia, à qual chamamos "Marcas prosódicas e lexicais". Mais

especificamente, serão tratadas como parte da regu/an'dade a que chamamos

"A prosódia e a representação da gênese da escrita", no seu item "A prosódia e

a ortografia".

* * *

170
Como já adiantamos, a variedade de marcas abrange várias dimensões

da língua. Essa pluralidade, além de se organizar em cada dimensão por meio

de certas regu/andades, pode ser sintetizada em poucos propriedades da

oralidade, tais como: o efeito de fragmentação e de envolvimento próprios da

oralidade [Chafe, 1982, 1985) e um tipo de atitude em relação à mensagem que.

nessa escrita, é inseparável da própria atividade do falo [o exemplo do que

Tonnen (1982) diz do tipicamente oral]. Desse modo, o que parece orientar o

escrevente na sua representação da escrita em sua suposta gênese é a

atribuição de um lugar para o oral/falado no letrado/escrito.

A seguir, serão vistas as marcas lingüísticas - distribuídas também em

dimensões da linguagem e:reguloridades - paro a análise da escrita quando

esta é tomada como código institucionalizado.

O ato de apropriação da escrita quando representada como código

institucionalizado

Mantendo o requisito fundamental de os marcos lingüísticas atingirem o

texto como um todo, procuramos detectar, nos textos analisados, aquelas marcas

que denunciassem o a Içamento do escrevente ao que imagino como a escrita

padrão.

A variedade de marcas já observada para o imaginário da escrita em sua

suposta gênese é grande também quando se trata do imaginário sobre a escrita

como código institucionalizado. O processo de apropriação da escrita mostra-se,

também no presente caso, regulado por um imaginário acerca das várias

dimensões da língua, incluindo marcas de natureza sintática e lexica!, bem como

marcas de organização textual e de recursos argumentotivos. Também marcos

171
ortográficas, estritamente ligadas à dimensão escrita da língua, denunciam a

tentativa de a!çamento do escrevente na direção da imagem que faz da escdto

culto formal.

Seguem-se os exemplos de regulandades (apenas uma para cada

dimensão} que marcam essa atitude do escrevente.

Marcos sintáticas

No que se refere às marca:; sintáticas, destaca-se o efeito de

hipercorreção, que aparece sob vários aspectos. Exemplo:

"A sociedade, outrora relegada aos valores culturais_ morais e


educaciOnais, era alvo de vários preconceitos (inveJa~ despolifizoção,
argumentos} de determinadas tnbos urbanas violentos, como
determinados bandas de 'rock'~ ... " (Texto, 04-193)

Observamos, nesse exemplo, a combinação entre escolha lexica! e

torneio sintático representado como forma de a Içamento à escrita culta forma!.

Marcas lexicais

Quanto às marcas -lexicais que indicam o alçamento do escrevente na

direção da imagem que faz do código escrito institucionalizado, destacam-se as

escolhas lexicais que tentam reproduzir um registro formal:

"Criou-se daí necessidades para vónós individues que se amontoaram


perfazendo o chamado tnbo urbana." (Texto 04-209}

Notamos, nesse fragmento, o uso pouco naturaL por parte do escrevente,

do verbo "perfazer", que é mais comumente empregado no contexto de

"perfazer uma quant!a". Ao buscar reproduzir esse contexto, escolhe esse verbo,

que certamente não é de seu vocabulário mais usual. Conta, pois, para essa

escolho a representação que faz do código institucionalizado.

172
Marcas da organização textual

A organização textual também pode denunciar a circulação do

escrevente pela imagem que ele faz do código escrito institucionalizado. Um dos

traços que ocorrem com mais freqüência é o de o escrevente tentar impor, com

marcos Hngüísticas, distanciamento em relação ao assunto e/ou ao interlocutor:

"Hoje os que mais usam violência pelo dinheiro são os


traficantes, que ás vezes indiretamente são políticos.
"Simplesmente o que devemos fazer quando formos sa1i: ou
votar; ou qualquer outro coisa, é rezar poro que conseqüentemente
não trago violência. "{Texto 03-003 j.

No primeiro caso, o exemplo acima mostra bem a tentativa de

distanciamento em relação ao assunto pelo uso de dois r:nodalizadores. No

segundo caso, seu distanciamento se dó pela atribuição de uma relação lógica

entre "sair de cosa" e "trazer violência" , relação marcado pelo operador

"conseqüentemente".

Marcas quanto a recursos argumentativos

No que se refere aos recursos argumentativos, considerado o tipo de texto

produzido, podemos observar a presença de recursos que revelam o modo de

dissertar tido pelo escrevente como adequado ao código institucionalizado. Mais

do que ater-se ao conteúdo da forma díssertativa, ou seja, ao sentido embutido

no próprio tipo de texto produzido, o escrevente busca alçar sua produção para

o âmbito do que supõe ser sua adequação ao código institucionalizado. Nessa

tentativa, deixa, na estruturação argumentativa do texto, uma série de marcas

lingüísticos que revelam essa preocupação:

"De certo formo, precisamos, enquanto grupo social que pretende


manter-sede pé, de alguma... " (TextoOl-001)

173
Esse procedimento é, como se sabe, a tentativa de definição ou de

especialização de uma definição iX enquanto Y}, muito usado em textos de

caráter científico, foto que revelo uma sensibilidade do escrevente em relação

aos modelos de argumentação que tomo como próprios da escn"to culto formal.

Marcas ortográficas

As marcas ortográficas basicamente regfstram a tentativa de transcrever o

oral. São, talvez, os marcas que melhor caracterizam o escrevente como situado

no campo da oralidade, buscando alçar-se para o que imagina ser a escrita

padrão:

"Torcidas se deglodiam na ctdade sem se importarem com nada."


{Texto 01-007)

Esse é um dos problemas ortográficos tipicamente ligados à

superestimação do leitor.

* ,, *

Como podemos constatar, há urna grande variedade de marcas que se

distribui em dimensões e regularidades~ No entanto, essa pluralidade aponta,

uma vez mais, para algumas poucas propriedades da escrita, já descritas por

outros pesquisadores. Tais propriedodes são a contraparte daquelas

mencionadas acima como típicas da oralidade (cf. p. 171) e aplicáveis ao nosso

primeiro eixo.

No caso presente, teríamos, pois, como propriedades gerais que abarcam

essas regulan'dodes, aquelas da integração e distanciamento {Chafe, idem, ib.) e

a de lexicalização com ênfase no conteúdo (Tannen, idem, ib.). Podemos,

portanto, pensar o imaginário sobre o código institucionalizado como a tentativa

de tornar o letrado/escrito um modo autônomo de expressão. Nessa tentativa, o

174
escrevente acredita processar o seu texto baseando-se em modelos que atribui à

escrita culto formal.

Passaremos, a seguir, às marcas lingüísticas, distribuídas, desta feita, não

em termos de pontos de individuação relativos às dimensões da linguagem, mas

em termos de pontos de indívíduação relativos, mais especificamente, a "pontos

de heterogenmdade 'n, vistos aqui como regularidades para a análise da escrita

quando esta é tomada em sua dia!ogia com o já falado/escrito.

O ato de apropriação da escrita quando tomada em sua dialogia com o já

falado/escrito

Vista a produção do escrevente sob o ângulo de sua relação com o já

escrito (falado) e com o já lido (ouvido), procuramos detector, nos textos

analisados, pistas que denunciam a imagem que o escrevente faz da escrita,

desta feita atentando para a ligação que ele procura estabelecer entre o seu

dizer e outros dizeres com que já teve contato via leitura.

No momento em que estabelece essa relação, ora tende a identificar-se

com o que representa como a gênese do escrito, ora tende a identificar-se com

o que imagina ser o código escrito institucionalizado.

O engendramento de seu ato concreto de enunciação no que imagina

ser a escrita em sua suposta gênese , tem a ver com o tipo de remissão aos textos

da coletânea, lidos no momento da produção de seu texto. Mais precisamente,

tem a ver com um tipo imperfeito de remissão, por meio do qual fica pressuposto

não só que o leitor conhece os textos comentados mas também, por essa vía,

fica pressuposto que o leitor participa do mesmo ato empírico de apropriação da

nO conceito de Authier-Revuz {1990, p. 30).

175
escrita executado pelo escrevente. Ou seja, o texto produzido toma o leitor como

participante do referencial de escrita dominado pelo escrevente, assumindo para

a escrita - como pressuposto - o envolvimento do leitor ao invés de construir, por

meio de seu texto, uma partilha {um espaço comum de sentido}.

Um efeito diferente pode ocorrer quando, ao executar seu ato concreto

de apropriação da escrita, o escrevente identifica esse ato com o que supõe ser

o código escrito institucionalizado. Trata-se do caso em que as remissões a textos

lidos/ouvidos {no momento da produçêlo de seu texto ou anteriormente a ele)

funcionam como um alçamento do escrevente na direção do universo amplo do

já escrito. Caracteriza-se, assim, um momento em que o escrevente usufrui desse

universo como um diferencial em relação à autoria de seu próprio texto. Também

nesse caso, o escrevente estabelece uma relação com o leitor, embora, na

maioria das vezes. dificultando a construção de uma partilha (de um espaço

comum de sentido) por meio da escrita.

Há, certamente, casos- especialmente quando as citações dos textos lidos

não pressupõem .o conhecimento do leitor- em que o ato de apropriação da

escrita pode ser considerado íntegra!, uma vez que explora tanto o momento da

recepção como o do produção, co!occmdo o texto {já lido/ouvido} na base do

texto (a produzir). Ou seja, nesses casos, a apresentação. para o leitor, do

referencial de escrita dominado pelo escrevente terá sempre o efeito de criar um

espaço comum de sentido entre escrevente e leitor, trazendo o leitor. mesmo que

não pela via do envolvimento. para uma interlocução partilhada à distância.

Contudo, essas ocorrências não são, em absoluto. a regra geral.

Tomada, pois, sob o ângulo de sua relação com o já escrito (falado) e

com o já lido {ouvido}, podemos observar a circulação do escrevente pela

176
imagem que ele faz dos outros dizeres com que já teve contato via leitura. À

parte esse efeito, um outro não menos importante se evidencia: ao estabelecer a

!lgação de seu texto com outros textos, o escrevente assume o reconhecimento

de seu ato de apropriação da escrita como parte de uma prática social.

Atentando a esse fato, podemos dizer que a interdiscursividade está ligada ao

princípio dia!ógico constitutivo da manifestação verbal em geral(e, portanto, da

escrita), fato que, do ponto de vista lingüístico, resulta em marcas da

heterogeneidade que constitui o texto.

No que se refere ao alcance que estamos atribuindo às várias marcas de

heterogeneidade encontradas, mantivemos - também para este eixo -, na

definição dessas marcas lingüísticos, o requisito de guardarem eni comum a

propriedade de atingir o texto de um modo global. Destacamos como

regvladdodes: explicitações da presença de outro enunciodor no texto do

escrevente; referências à própria língua; referências a um estilo de fala;

referências ao leitor; citações da co!etãnea de textos apresentada para a

produção do texto; remissões ao próprio texto.

Damos, em seguida, uma série de exemplos dos marcas da atitude do

escrevente diante do já escrito (falado) e do já !ido (ouvido).

A presença de outro enunciador no texto do escrevente

São várias as marcas lingüísticas que denotam a presença de outros

enundadores no texto do escrevente. Nesse particular, destacam-se os aspas

como atribuição- nõo-lexicalizada em citação explícita- a outros enunciadores:

"O desfecho do 'espetáculo' pode ter conseqüências fatais ... " (Texto
04-221)

ou, no mesmo texto:

177
"É neste ponto que seus 1do/os adquirem uma importância maior ao
ditar regras de atitude e postura que serão seguidas como uma 'nova
ordem' contra o sistema e o sociedade que combatem." {Texto 04-
221).

Em geraL esse tipo de uso indica uma menção irônica dirigida a um

enundador localizável no contexto. embora não mencionado explicitamente. É

um recurso bastante comum utilizado na tentativa de construir a crítica tida como

o esperada pela instituição. Nesse S!::mtido, trata-se de uma tentativa de

codificação institucionalizado. Evidentemente, há vários usos de aspas com

sentidos bastante diferentes e que serão vistos já nos exemplos seguintes.

As referências ô própria língua

O distanciamento que a linguagem permite em relação a si mesma

possibilita evidenciar claramente a circulação do escrevente pelo imaginário

sobre a escrita. No caso, a língua é, ela própria, tomada como o outro.

Revisitada, é posta ao lado do dizer do escrevente na constituição de seu texto.

Desse modo, a partir do território enunciativo representado como seu e em razão

dessa representação, o escrevente se permite precisar o sentido do que diz em

oposição ao que atribui de sentido guardado no língua, mais especificamente na

língua tomada como código escrito institucionalizado. Exemplo:

"... como determihados bandos a'e 'rock: drogados_. 'metaleiros~ .. "


{Texto 04-193 I

No primeiro uso de aspas desse exemplo, podemos ver o outro marcado

em relação a uma outra língua. No segundo uso, há também uma atribuição,

mas, desta feita, em relação à própria língua, indicando talvez um uso tido como

pouco adequado ou uma palavra aindo não-dicionarizada.

178
As referências a um registro discutsivo

Quanto às referências ao registro discursivo, destacam-se as marcas de

recusa à informalidade:

''Seus sentimentos, esqueCidos, a fn"eza como 'marca maior' na


relação entre os pessoas."

Fica patente, nesse exemplo, o uso de aspas como marca de atribuição a

um registro tido como inadequado ao que o escrevente parece representar

como próprio do código escrito institucionalizado.

Um oufro exemplo que merece destaque é o dos escolhas lexicais

merecedoras de explicação por porte do escrevente:

"Enquanto essa bdga não chega ao final, as pessoas procuram se


!tbertar através da violência corporal (socos e chutes} cuja formo de
expressão está sendo representado pelos conjuntos de músico e ... "
(Texto03-130)

Embora o adjetivo destacado não pareça restringir-se a um uso muito

forma! da língua, é assim que o escrevente parece representá-lo. O próprio

parêntese indica que o adjetivo é merecedor de explicação. O escrevente

provavelmente o considera como de registro formal ou reconhece, nesse seu

emprego, alguma inadequação que exigiria esclarecimentos.

As referências ao leitor

As referências ao leitor têm a ver, basicamente: (a) com as exigências

específicos postas para a produção no vestibular, particularmente com a

não-pressuposição de conhecimento por parte do leitor a respeito do que está

sendo tematizado; e {b) com o tipo de texto solicitado, a dissertação. O exemplo

179
abaixo refere-se à pressuposição de conhecimento da coletânea por parte do

leitor, portanto é um caso de não-cumprimento da exigência {a}:

" Talvez estejamos apenas 'sorrindo e seguindo à toa: contra a letra


dos Tifos. "{Texto oo-oo I )

O escrevente refere-se aos versos de Arnaldo Antunes: "Nós drnos alto,

bebemos e falamos palavrão/Mos não sominos à toa/Não sorrimos à toa': citados

na coletânea. Há, pois, a evidente pressuposição de que o leitor do texto

conheço o coletânea de textos. Em se recusando essa hipótese, a pressuposição

permanece, mas, desta felta, voltada ao conhecimento de mundo do leitor, que

deverá encontrar uma referência poro oJTitãs- grupo dado como conhecido em

função da presença do artigo definido. Além de conhecer o grupo, fica suposto

também, ainda nesta segunda hipótese, que o leitor tenha um conhecimento

mais específico, ou seja, que ele conheça a letra da música que o escrevente

menciona. Essa participação pressuposto -e não construída -do leitor quanto à

partilha de conhecimentos tem muito o ver com a expectativa de elaboração

conjunta do discurso, típica da conversação, fato que indicio - a partir da

dialogia com o já falado/escrito- a ima9em que o escrevente faz da gênese da

{sua) escrita.

Um segundo e último exemplo refere-se às exigências ligadas ao tipo de

texto solicitado:

"Tornemos o individualismo: evidente já desde o renoscímento; este


processo acabou por engendrar, do ponto de vista ideológico, um
sujeito empín"co do ponto de vista ideológico, um sujeito empírico que
toma o si mesmo como unidade moral detinlvel paro além dos
relações que mantém com seus semelhantes, e é tremendamente
receoso de todas os ocasiões em que se vê dissolvido na multidão. {E
também tremendamente afraldo por elas, dado que possuem, de
regra, um caráter reden!Ot; expiatório}. iTexto O1-054).

180
Observamos, nesse exemplo, a colmatagem - típica do texto dissertativo -

do espaço argumentativo do outro {do leitor), inc!ulndo a marca de pontuação:

os parênteses. Nesse momento, o recurso à co!matagem, muito freqüente nas

realizações mais elaboradas desse tipo de texto, antecipa os possíveis objeções

do leitor e conta como um indício da representação que o escrevente faz desse

seu interlocutor. Podemos notar que o tipo de objeção antecipada revela a

circulação do escrevente pelo que representa como o código escrito

institucionalizado.

As citações da coletânea apresentada para a produção do texto

As citações da coletânea de textos apresentada para a produção do


'
texto são um tipo particular de localização do outro, ligado especificamente ao

fato de que o escrevente deve, necessariamente, nesse tipo de provo, utilizar-se

dessa coletânea.

Essa caraderística dos textos está, portanto, diretamente ligada a uma

exigência do tipo de escrita em análise. São muito freqüentes os remissões à

coletânea de textos e os vários tipos de remissão funcionam para o escrevente

como formas de balizamento da própria produçã-o em relação aos textos !idos.

Conta, pois, nessas citações da coletânea, a presença do imaginário sobre textos,

temas e autores específicos, com os quais o escrevente toma contato no ato de

sua produção. A relação que então se explicito entre a enunciação do

escrevente e os textos lidos permite observar quais hipóteses sobre a escrita são

reveladas a partir das representações que o escrevente faz em cada momento:

"Estes trazem seus discos marcas de vandalísmo, como lanças


encravadas em caveiras, ou então como no capo do segundo disco
do grupo Guns N'Rose, o 'Apett/te fordestruction', em que traz uma
garota que acabou de ser estuprada". (Texto O1-007).

181
A menção a ';lanças encravad::~s em caveiras" tem relação com a

mensagem não-verbal contida na coletânea. Pode-se detectar, pelo exemplo

acima, que toda essa seqüência foi construída a partir da leitura do não-verbal,

fato que indica um tipo particular de relação que o escrevente está

estabelecendo com o letrado/escrito. Se a referência não chego o comprometer

o entendimento de um leitor que desconheça a coletânea, fica caracterizado,

por parte do escrevente, um diálogo direto com a coletânea, sem, no entanto,

ficar muito doro o construção desse diálogo em seu texto. Mais uma vez,

estamos, portanto. diante de um indício de pressuposição do presença do

interlocutor e da partilha de conhecimento sobre o situação de enunciação, fato

que estamos tomando como indício da circulação do escrevente pela imagem

que faz da gênese da (sua) da sua escrita.

As remissões ao próprio texto

Um último tipo de localização do outro na enunciação do escrevente é o

da remissão ao próprio texto. Podemos constatar, por esse tipo de remissão, que a

relação com o imaginário sobre a escrita inclui até mesmo o material concreto

mais próximo, sobre o qual - na qualidade de um objeto exterior e independente

-o escrevente se volta, sempre que se trclta de atribuir-lhe um papel mediador.

"'Enquanto os homens exercem Sé'US podres poderes, mo«er e matar


de fome, de raiva e de sede são tantas vezes gestos naturais'{ ... )
" (... ) Aquilo que Caetano Veloso foz com versos como os
acima, os grupos bárbaros tentam fazer reconstruindo a realidade, nua
e crua.
"De tudo isso,. pode-se chegar a dois pontos:... " {Texto 01-034)

Nesse exemplo, ao explorar o aspecto gráfico mais específico da escrita-

a localização espacial de um conteúdo já fixado -, o escrevente parece estar

182
pretendendo firmar também uma atitude pessoal sobre a sua escrita, insistindo

numa posição sobre o tema já assumida anteriormente. No uso de como os

acima, o escrevente explora o espaço gráfico à maneira dos modelos que toma

como próprios do código escrito institucionalizado.

Ao contrário dessa exploração do espaço gráfico, que recai no aspecto

material do texto, a segunda remissão em destaque ("de tudo isso") busco

explorar o espaço gráfico, mas recaindo numa remissão formal, de ta! modo que

a extensão abarcada pelo anafórico deve submeter-se às hipóteses, levantadas

pelo leitor, sobre o referente pretendido pelo escrevente. Esse tipo de remissão

forma! permite-nos levantar a hipótese de que, nesse momento, é a relação

concreta com o interlocutor que está contando, indício de sua circulação pela

imagem que faz da gênese da (sua} escrita.

' ' .
Este último eixo organizador dos atos de apropriação da escrita tem, como

podemos observar, uma natureza um tanto diferente dos outros. Dado o caráter

responsivo que o evento vestibular cria para a produção do texto, defendemos

aqui que as marcas lingüísticas a que chegamos podem ser vistas em referência

à questão da réplica do diálogo comentada por Bakhtin. Es-sas remissões ao

outro, reunidas em regularidades lingüísticas-, são, como foi visto, de várias ordens,

envolvendo outros enunciadores, a própria língua, os leitores, o próprio texto, um

registro discursivo e o evento vestibular {representado não só pela imagem do

leitor construída no texto, mas também pelas citações da coletânea).

Destaca-se, pois, dessa conjunção dia!ógica, o fato de que o modo de

representação da escrita em sua suposta gênese e o imaginário do que seja o

código escrito institucionalizado constituem os pontos para os quais pende cada

183
ocorrência dessas réplicas. No movimento entre essas duas representações, o

escrevente vai determinar, em seu texto, lugares específicos para o oral/falado e

paro o letrado/escrito, caracterizando o modo heterogêneo de constituição da

escrita.

Considerado o evento vestibular como um "cruzamento de itinerários

possíveis" marcado pelo jogo de expectativas que o acompanha, podemos,

portanto, afirmar que a constituição do escrevente se define, em grande parte,

em função da predominância de um desses lugares, fato que, também em

grande parte, regula seu sucesso ou seu fracasso. É importante que não nos

esqueçamos de que, embora o produção de seu texto esteja mediada pela

solicitação de um dado registro (o formo!} de linguagem, de uma especificação

da modalidade {a escrita) e de uma dada norma {a culta), essas solicitações,

aparentemente muito obíetivas, nada garantem quanto à atuação do

imaginário de cada escrevente. A atuação desse imaginário é, segundo a

hipótese que defendemos. o que orienta o ato de apropriação da escrita

tomada em sua relação com o já escrito {falado) e com o já !Ido {ouvido),

determinando a atribuição de um lugar não só para a {sua) escrita como para o

próprio escrevente e para seu interlocutor.

* ,, *

No próximo capítulo, serão apresentados algumas implicações teóricas

relativas à consideração do primeiro dos eixos acima descritos, a saber. aquele

que busca captar a circulação dialógica do escrevente pelo imagem que ele

faz da escrita em sua suposta gênese . Após esse breve apanhado teórico, será

apresentada a análise dos textos do ponto de vista desse primeiro eixo.

184
Capítulo3

O ESCREVENTE E A REPRESENTAÇÃO DA GÊNESE DA ESCRITA

Muito já foi adiantado, neste trabalho, sobre esse primeiro eixo de

circulação dia!ógica do escrevente. As referências que fizemos a e!e podem ser

sintetizadas do seguinte modo: (o) pelo tipo de mixagem entre o oral/falado e o

letrado/escrito que o escrevente propõe; (b) pelo modo como o próprio

escrevente se representa em sua escrita; e {c) pelas marcas lingüísticas

ir\diciativas desse tipo de circulação dialógica.

No que se refere ao tipo de mlxagem proposto pelo escrevente, as

referências feitas anteriormente a esse primeiro eixo atêm-se a aspectos como: a

tomada da escrita, por parte do escrevente, como transcodificação, extensão ou

projeção do gesto artlculatório em gesto gráfico; assunção da escrita como

instrumento de gravação fiel da memória sonora do falado; a tentativa, ainda

por parte do escrevente, de representação do planejamento conversaciono! e

do jogo orgumentativo prosodicamente marcado; ou, finalmente, sua tentativa

de registrar graficamente a materia!!dade fônico-progmática do oral/falado.

Todos esses aspectos são, como podemos ver, diferentes referências ao mesmo

processo de mixagem entre o oral/falado e o letrado/escrito, ao qual o

escrevente se entrega em seu texto. O modo heterogêneo de constituição da

escrita tem, pois, na imagem que o escrevente faz do poder representativo da

escrita, isto é, de sua suposta gênese, um dos eixos de sua circulação dialógica.

185
No que diz respeito ao modo como o escrevente se representa na escrita,

as referências feitas anteriormente - ainda em função desse primeiro eixo -

atêm-se a aspectos como: o caráter de novidade de sua intervenção (dado de

ineditismo de sua individuação histórica); as marcas expressivas que denotam

atitude de aproximação e de envolvimento entre os,inter!ócutores; a delimitação

do espaço argumentativo e sua correspondente determinação de uma posição

para o interlocutor por meio da tentativa de projeção de gestos articulatórios

{gestos fônícos, como indício de uma marca prosódica - pausa, escalonamento

de tessitura, duração etc - e/ou gestos Egados à situação pragmática - o gesto

de apontar, por exemplo) no material escrito, explorando - em ausência - o

contexto pragmático em que o diálogo com a instituição se estabeleceu (é o

caso da tentativa de projeção do gesto de apontar para delimitar um espaço

argumentativo comum); a suposição de que o leitor partilha um mesmo

referencial em relação ao já falado/escrito que serve de base ao escrevente; as

indicíações "metadlscursivos"- pistas lingüísticas que denunciam a representação

do gênese da escrita -, por meio das quais o escrevente revela pontos salientes

desse tipo de círculação dialógica.

Um último tipo de referência a esse eixo de circulação dialógica foi feito

por meio de fragmentos lingüísticos indiciativos dQ gên"ese da ê3'01'ita. Mostrados

inicialmente em seu caráter local pelo análise de um texto aleatoriamente

escolhido, procuramos, em seguida, exemplificar pelo menos uma regularidade

para cada dimensão da linguagem Considerada. Essa passagem não significou,

é bom que esclareçamos, o abandono do método indiciário em favor da

consideração de regu!oddodes lingüísticas preestabelecidas, tomadas como

típicas do oral/falado ou do letrado/escrito. Pelo contrário, recorremos à

186
observação de regu/ondodes, que - caracterizando a circulação díalógica do

escrevente pelos frês eixos e atingindo as várias dimensões da língua -,

estabelecem a especificidade do modo heterogêneo de constituição da escrita.

Num momento seguinte, buscamos remeter essas regularídades lingüísticas a um

número reduzido de propriedades consensuais do oral/falado considerado como

mais típico, a saber: o efeito de fragmentação e de envolvimento próprios do

oralidade {Chafe, 1982, 1985) e um tipo de atitude em relação à mensagem que,

também nessa escrita, é inseparável da própria atividade da fala [a exemplo do

que Tannen (1982) caracteriza como o típico oral].

A respeito dessas referências, resta ainda destacar que o representação da

gênese da escrita por parte do escrevente consiste, basicamente. na atribuição

de um lugar para o oral/falado no letrado/escrito. Mais precisamente, essa

representação se dó num processo de texfualização em que o escrevente atribui,

à relação entre o falado/escrito, o trânsito próprio dos práticas sociaif/4 que ele

intuitivamente reconhece entre o ora! e o letrado. Esse processo pode, portanto,

ser visto como um proces,so de mixagem de características gráfico-fônico-

pragmáticas, cujas marcas evidenciam a constituição do texto como uma

réplica. Enquanto tal, tende a atenuar o pape! mediador da escrita, uma vez que

o escrevente, ao projetar um material significante {o fônico} no outro (o gráfico)

tende a identificar as duas moda!ídades pela suposição de uma representação

fiel do oral/falado no letrado/escrito. Como essa projeção gráfica também supõe

como presentes referências pragmático-argumentatívas da situação de

enunciação, por vezes se produz o efeito de um diálogo ao vivo, embora esse

efeito seja produzido pela pressuposição de dados que só a situação imediata e

74 Conferir Marcuschl, oqui mesmo, p. 18.

187
o elaboração conjunta do discurso poderiam fornecer. Nesse contorno simbólico,

tanto o investimento significante dos matérias acústico-visuais como o caráter de

réplica a partir do qual o texto é construído sôo os suportes a partir dos quais o

escrevente atribui um lugar poro si mesmo, para seu interlocutor e para .a própria

escrita.

Essas referências, ainda que distribuídas esparsamente pelos capítulos

precedentes, são um ponto de partida importante para que busquemos

implicações teóricos mais claras a respeito da gênese da escrita. É do que vamos

tratar no item seguinte.

L IMPLICAÇÕES TEÓRICAS DA CONSIDERAÇÃO DO IMAGINÁRIO SOBRE


A GÊNESE DA ESCRITA

No que se refere às implicações teóricas da consideração do imaginário

sobre a gênese da escrita, duas tomados de posição se fazem necessárias: em

primeiro lugar, uma tomado de posição quanto ao que buscamos recusar de

implicação teórica; em segundo lugar, uma tomada de posição quanto ao que

buscamo5i reafirmar como pertinente poro a análise.

Duas recusas teóricas

Para encaminhar uma primeira recusa em relação à concepção do

gênese do escrito, será lembrada a discussão feita por Verón {1980) a respeito da

emergência das práticas científicas na História. Mais do que um possível paralelo

com a mudança operada -a partir do domínio da escrita - nas relações dos

indivíduos uns com os outros e com o mundo, essa retomada viso, em particular,

à aproximação entre o conceito de génese aqui utilizado e o de "fundação"

utilizado pelo autor.

188
No dito contexto da discussão que trata do "prablemáfi'co do ponto de

partido., do emergência dos prátícas científicas no Históda" e, em particular, a da

emergência da lingüística, Verón destaca o fofo de que uma prática de

produção de conhecimento não tem a unidade de um acontecimento - não

pode ser datada - ; nem a unidade de um ato - não pode ser vinculada a um

sujeito em particular - ; nem tem a unidade de um lugar - não pode ser

localizada, por exemplo. num texto preciso. Segundo Verón, a localização de

uma dato, de um texto e, particularmente, de um autor, ou seja, "a idéia do {ou

dos) fundador (es)" é, talvez, uma ''ilusão necessária': produto de um "processo

de reconhecimento":

"O essencial é compreender que a focalização


histón"ca de uma fundação é um produto do processo
de reconhecimento. Uma fundação é inseparável do
reconhecimento retroativo, do qual com efeito ela
decoJTeu. É sempre a postedod que reconhecemos,
numa dado região do passado, o começo ou
recomeço de uma ciência.
"Reencontramos assim a ilusão necessária [da idéia do
fundador]. A formo desse reconhecimento é sempre o
do localização de um certo texto ou conjunto de
textos,. poro reconhecer que é aí que se produziu
alguma coisa." (op. cit., p. 119).

Projetando o pensamento do autor para a questão da gênese da escrita,

podemos dizer que ela é produto de um processo de reconhecimento do

escrevente e que sua emergência não tem a unidade de um acontecimento

datado, nem de um ato isolado, tampouco a unidade de um lugar preciso. Não

tem, pois, a unidade de um acontecimento, se tomado, este, no sentido de um

produto acabado; não tem a unidade de um ato, se tomado, este, como

produto de um indivíduo-fonte (e não como uma relação dia!ógicaj; não tem a

unidade de um lugar (um texto. por exemplo), se tomado, este, como auto-

189
suficiente em suas relações internos. Em outras palavras, dado que a gênese da

escrita não pode ser localizada em uma unidade de origem, podemos dizer que

ela é da natureza do acontecimento apenas se este for tomado como relação

entre temporalidades; do mesmo modo, ela só poderia ser considerada da

natureza do ato se este fosse tomado em seu desenrolar dialógico; e, por fim,

seria da natureza de um texto se este fosse tomado como um lugar privilegiado

para se observar o processo que o constituiu. Portanto, só quando tomado como

o incorpóreo 7S das relações de comunicação é que o acontecimento pode ser

visto em seu funcionamento comunicativo - não reduzido a uma data, nem a

uma pessoa nem a um lugar. É num tal contorno desse acontecimento -

cruzamento de ítinerán"os possíveis- que estamos procurando temotizar a questão

da representação da gênese da escrita neste trabalho.

Vale retomar, ainda a respeito da emergência das práticas científicas,

uma outra recomendação de Verón: "impõe-se, antes de mais nado, distinguir a

questão do que se pode chamar uma fundação do questão do começo (... ) A

noção de fundação não se aplica apenas ao momento de emergência." {Idem,.

p. 118). Do mesmo modo - é o que defendemos -, a questão da gênese da

escrita não está sendo buscada como um ponto de origem, um começo, mas

como sendo sempre "o teatro dos recomeças" {idem, ib.).

Num contexto bastante diferente, mas ainda a respeito do

reconhecimento de práticas de produção de conhecimento, Ginzburg permite

75 Nem a matéria corpórea do emissor, nem o matéria corpórea do destinatário, nem a base
material em si de um sistema semiótico tem -poro usar uma expressão de Rossi-Landi fl 985) -
valor de troco no comunicação. É o acontecimento, o incorpóreo das relações de
comunicação, que ganha esse valor de troco {ou seja - nos termos de Rossi-Londi - é a
"mensagem" que pode ser visto em seu funcionamento comunicativo). O conceito de
acontecimento aqui utilizado deve um crédito ao professor Rogério do Costa, em aulas
ministrados no série Seminários em Marília. em que abordou alguns conceitos de Oeleuze. Os
Seminórios foram realizados no período de maio a novembro de 1995, na Faculdade de
Filosofia e Ciências do UNESP-Câmpus de Marília (SP).

190
ler uma caracterização crítica para a questão da gênese enquanto origem. Essa

referência indireta ocorre quando Ginzburg problematiza as tentativas de registro

daquelas disdplínos conjecturais mais comprometidas com a prática cotidiana,

particularmente quando tematiza o registro da habilidade de predizer {"... o

doença de um cavalo a partir do estado de seus cascos,. uma tempestade

iminente a partir de uma alteração do vento ou intenções hostis a partir de uma

expressão sombrio no rosto de alguém" J:

"De tempos em tempos, foram feitas tentativas de


registrar algo desse saber. enraizado, localmente, mos
sem origem, ou registro ou histón'o conhecidos( ... }, de
modo o encerrá-to no camisa-de-torço do precisão
terminológica(l991, p. I 16).

Destaquemos a coracterização que o autor faz da habilidade de predizer:

"...saber enraizado,( ... ) mos sem origem... ·: No caso da gênese da escrita, como

procuramos mostrar até este ponto, sua detecção também não se dá - como se

poderia pensar - em algum ponto facilmente loca!izável do processo de

alfabetização, nem apenas nesse processo. O enraizamentb desse saber pode se

localizar tanto nas práticas sociais do letramento como nos da oralidade, em

que, como mostra Chafe 76, podemos detectar o letrado no oral {basta que

recordemos as observações do mesmo autor sobre o paradoxo da expressão

"literatura" oral). Esse mesmo enraizamento pode ser visto, ainda, na "pré-hlsfón'o

do linguagem escrita': que, segundo Vygotsky {1988), começa "com o

aparecimento do gesto como um signo visual para o criança" {op. cit., p. 121) 77 •

1~> Conferir discussão, aqui mesmo, p. 42 e 70.


n No mesma díreção. embora trotando do aquisição da linguagem, Maia (1985) destaca
uma mudança que então acontecia no modo de abordar a questão do gênese no processo
de aquisição da linguagem. Segundo o autora, "o ponto de partida dos estudos longitudinais
não é [entãol mais a cn'ança que começo a falar, mas o infante e até mesmo o recém-
nascido {op. cit., p. 102).

!91
Poro dor um tom menos metafórico às formulações relativas a essa

primeira recusa, serão retomadas em termos mais empíricos as referências feitas:

(a) ao incorpóreo das relações de comunicação; (b) à gênese da escrita como

"o teatro dos recomeças"; {c) ao enraizamento {sem origem) do saber sobre o

modo de constituição da escrita.

As três referências estão intimamente ligadas entre si. Particularizando-as

para o interesse específico deste trabalho, temos: (a} tratar do incorpóreo dos

relações de comunicação significa investigar as representações {sobre a escrita,

sobre o interlocutor, sobre o próprio escrevente) que estão postas nos textos; (b)

tratar da gênese da escrito como "o fecrfro dos recomeças" significa acreditar na

possibilidade contínua de observar aspectos da constituição do escrito também

na escrito adulta; e {c) tratar do enraizamento (sem origem) do saber acerca de

seu modo de constituição significa abrir possibilidades de interpretação dos

dados a partir dos encontros entre o oral/falado e o letrado/escrito, estendendo,

portanto, o alcance do estritamente lingüístico na direção das práticas sociais e

da inserção do escrevente nessas práticos.

Uma segunda e última recusa tem mais diretamente a ver com dois dos

três pontos abordados acima. Trata-se, na verdade, de uma especificação da

possibilidade continua de observar aspectos do gênese da escrita [ítem (b)],

considerando-se o caráter de representoção [item (a)] a ser observado. A recuso,

neste caso, recaí sobre o tratamento da questão da gênese tomada em si

mesma e tem conseqüências metodológicas claras.

Abordá-la em si mesma ainda que não localizando-a num

acontecimento datado, num indivíduo-fonte e num texto determinado - seria

comprometermo-nos com um enfoque descritivo das suas marcas e do contexto

192
de seu aparecimenfo7B, bem como, em alguma medida, até mesmo com uma

concepção de escrito tomada como representação da oralidade. Acreditamos,

porém, que, também sem deixar de considerar suas marcas e os elementos que

condicionam seu aparecimento. bem como sem esquivarmo-nos de uma

concepção de escrita que a toma como modo de relação do sujeito com a

linguagem {cf. Abaurre et ai. aqui mesmo, p. 85 e 91}, podemos perfeitamente

encarar a gênese da escrita como a imagem que o escrevente faz do processo

de constituição da (sua) escrita.

Conseqüentemente, a recusa de se tratar a gênese da escrita em si

mesma corresponde, neste trabalho, à busca da representação que o

escrevente faz dela. Paro tanta, admitimos, com Pêcheux {l990b) que "todo

enunciado é (... ) linguisticamente desctitível como uma série (léxico-

sintaticamente detennfnada) de pontos de derivo possíveis': ou seja, todo

enunciado "é inhinsecamenfe suscetível de{ ... ) se deslocar dfscursívamenfe de

seu sentido para derivar para um outro" (op. dL p. 53). A conseqüência

metodológica mais claro da consideração desses "pontos de dedva" é o

assunção do método indidário. A análise que buscamos fazer aqui, portanto, ao

optar pela representação que o escrevente faz do gênese da escrita -

representação que é, em certa medida, uma descrição~. procura pautar-se por

um caráter mais explicativo do que descritivo, uma vez que se trata de explorar a

exposição a que toda descdção está sujeita, a saber, a exposição ao foto de que

ra Luria {l988), em seus estudos sobre o pré-história da escrita infantil, pode ser considerado
um dos autores que têm como preocupação fundomen tal o estudo da gênese da escrito
tomada em si mesmo. Com efeito, ao caracterizar como rabiscos não-diferenciados, rabiscos
ritmicamente diferenciados e rabiscos pictográficos as marcos desse tipo de escrito, o autor
propõe--se "explícor deta/hodamenfe os círcunstóncios que tomaram a escrita posslvel paro o
críanço e os fatores que proporcíonorom os forças motoras desse desenvolvímento': bem
como "descrever os estágios através dos quais passam os técnicos primitivos de escríta do
criança" {op. dt., p. 144}.

193
"lodo enunciado é intdnsecamente suscetivel de tomar-se outro" (Pêcheux, idem,

ib.). Portanto, no coso da presente análise, que poderia ser vista como um

trabalho explicativo o respeito de uma "descrição" feita pelo escrevente sobre

um fenômeno de língua, o tipo de método adotado permite um rigor explicativo

voltado para a relação entre o sujeito e a linguagem e não para uma

preocupação descritiva79 do que chamamos o fenômeno "em si" da gênese da

escrita.

ligada a essa recusa, o olhar dirigido a esse primeiro eixo não se !imitará a

localizar suas marcas em pontos determinados de uma seqüência de estágios.

Trata-se, ao contrário, de captar a representação que o escrevente faz do

processo de constituição da escrita. Mais precisamente, trata-se de localizar e

explicar sua representação retroativa da gênese emergente em sua escrita atuaL

Portanto, a abordagem se sustenta na consideração de que momentos desse

processo de constituição podem ser retomados, em feseeo , em qualquer época,

na escrita de qualquer pessoa, em qualquer texto. É com base nessa suposição

que esses momentos são buscados, neste trabalho, em textos de adolescentesal.

19 A reflexào acima foi baseada em artigo de Scarpa {1995). A autora, ao ligar o fenômeno
do fluência/disfluência -o diferentes relações do sujeito com a língua. reformula sua maneira
de encarar certas marcos de organização do discurso como as hesitações. as pousas. as
inserções ou reduções de fragmentos. as retomadas. as repetições etc. Deixa, então, de vê-
las como "atividades epilingüísticas" (aquelas que o sujeito faz com a linguagem) opostas às
atividades metalingüísticas (aquelas que constroem, pela linguagem. um sistema
representativo~nocional) e às atividades comunicativas e representativas. Baseado no
mesmo texto de Pêcheux (1990b), a autora abandona essa visão tripartite das atividades
lingüísticas e opto por tomar todos os tipos de descrição. mesmo aqueles "em que nos
. prendemos ao foto de que 'não há metalinguagem ": como expostos ao "equívoco do
1/ngua" (opud Scorpo, op, cit., p. 177), isto é, expostos ao foto de que "lodo seqüéncio de
enunciados é (... ) lingüisticamente descritíve/ como uma séde (!éxico-sintoticamente
determinada) de pontos de deriva possfveis.... " (idem, p. 178). Nos palavras da autora, "cada
ponto do enunciado em elaboração (certos oonfos mais previsíveis qve outros, por motivos
lingüísticos. isto é, fatores definidos lingüisficamente) depara-se com a posstbt71dode de
escolha" (idem, 177-8).
ao Embora os resultados aqui obtidos tenham diretamente a ver com a escrita dos
vestibulandos, acreditamos ter aberto a possibilidade de investigação de outros conjuntos de
textos - e de confirmação desses resultados . a partir das hipóteses que estamos buscando
comprovar no corpus analisado.
81
O corpus também inclui textos de vestibulandos com mais de 2! anos.

194
2. A GÊNESE DA ESCRITA NO CONJUNTO DE TEXTOS ANALISADOS

Como adiantamos, procederemos a uma abordagem g!oba!lzado dos

textos. É, pois, a busca de como a gênese da escrita aparece representada nos

vários textos que interessa destacar nesta etapa do trabalho.

Valem, para tanto, as observações já apresentadas no capítulo 2:

mantendo o trabalho com as pistas locais, procuraremos reunir essas pistas

lingüísticas num nível mais geral de observação - o das regularidades - até

chegar a propriedades mais características desses textos. ficam, desse modo,

garantidos tanto o trabalho com o método indíciário como a abordagem

globalizada do problema. Nem quantitativa, nem descritiva, essa abordagem

busca um caráter explicativo por meio da captação de pistas comuns nos vários

textos.

No que se refere aos escreventes, na impossibilidade de tratar

longitudinalmente a escrita individuaL o recurso a essas pistas visa a um

tratamento dos dados que, sem fugir ao método proposto, permita estabelecer

pontos de individuação comuns. Com a noção de individuação, já comentada

no capítulo 2, procuramos evitar, ao mesmo tempo, a idéia de assujeitamento e

a assunção da singularidade biológica do indivíduo como sujeito da linguagem.

É o caráter relacionei do sujeito consigo mesmo, com o outro, com o que diz e

com as tecnologias que ele mescla e acumula {instrumentalizando, mos

sobretudo sendo instrumentalizado por elas) que interessa destacar pela idéia de

individuação. Logo se vê que esse sujeito não se sobrepõe ao outro, ao dito ou às

tecnologias que utiliza. Por isso mesmo, individuo-se - embora longe de uma

homogeneidade natural (biológica) - a partir das relações específicas que

mantém com o heterogêneo que o constitui. É, pois, a partir dessa especificidade

195
(caráter do que é, ao mesmo tempo . "geral" e "oarticu!ar"} do sujeito, que

podemos buscar nos textos o que chamamos pontos de individuação,

lingüísticamente caracterizados como fragmentos indiciatlvos de interação e

suscetíveis de serem tratados em um nível mais alto de generalidade, razão pela

qual estarão sendo agrupados em regulandodes no interior das várias dimensões

do linguagem. Esse agrupamento se orienta pelo definição que Caprettini {1991

dá das regu/an'dades: "elas constituem o termo médio do processo abdutivo, ao

permitir o conexão entre dois fatos particulares" (op. cit., p. 160).

Com esse expediente, serão, pois, reunidos fatos particulares (ligados às

várias dimensões do linguagem) em regulondodes lingüísticas, tomados estas

como o termo médio paro sua conexão com certas propriedades, ou seja, com

outros fatos lingüísticos particulares, desta feita, relativos à caracterização de

cada um dos eixos de circulação propostos. Cuidamos, porém, de definir essas

regularidades (por exemplo, o uso de expressões formulaicas) sem abandonar as

áreas nebulosas, caracterizadas pela súbita mudança (na verdade, o efeito de

um conjunto de condições que precisem ser conhecidas e explicadas para se

chegue a qualquer típo de conclusão global) de uma situação local (o

estranhamente que o uso de uma expressão formulaica, por exemplo, pode

causar) para uma situação globa1e2 (que, se obtida de modo apressado, pode

levar a classificar um tipo de estranhamento que, de fato, está submetido a

condições pouco evidentes - nebulosos, diria Caprettini - como ligado ao

fenômeno verossímil mais à mão: por exemplo, no caso do expressão form'u!alca,

classificá-la, de imediato, como sendo apenas um tipo de interferência do

falado no escn'to}. Para que não Hque no ar a hipótese que defendemos,

a2 Conferir Caprettini {op. cít., p. 160-1 ).

196
lembramos, num parêntese, que ela não é a da interferência entre formas típicas

- dicotômicas - do falado e do escrito. lidamos, ao contrário, com um modo

heterogêneo de constituição da escrita, que pode ser detectado também no

falado, embora não seja este último o objetivo deste trabalho.

Cuidando, portanto, para não abandonar as condições que dão suporte

aos fatos locais e que precisam ser conhecidas e explicadas para que se chegue

a conclusões globais, serão analisadas as ocorrências locais em função de certas

reguladdades ligadas às várias dimensões da linguagem. Vale insistir que essas

regularidades são, pois, agrupamentos de marcas locais: de natureza sintática,

lexical, prosódico, ortográfica, de organização textual ou, ainda, de recursos

argumentativos. Segue, em termos percentuais, o quadro relativo à freqüência

dessas regu!oddadessegundo as dimensões da linguagem analisadas. No quadro

abaixo e nos que se seguirão, o cálculo proporcional foi obtido da seguinte

forma: consideramos a soma total de ocorrências de todas as regu/addades no

conjunto dos textos e, em função dessa soma, chegamos aos percentuais para

cada reguladdode referente ao eixo de representação da gênese da escrito.

QUADRO 1: Porcentagem das ocorrências segundo as dimensões da


linguagem para o eixo de circulação imaginário pela gênese da
escrito no conjunto dos textos

DIMENSÃO DA LINGUAGEM PORCENTAGEM


SINTAXE* 8.6%
MARCAS PROSÓDIA$ E LEXICAIS 38.6%
ORGANIZA CÃO TEXTUAL 22,8%
RECURSOS ARGUMENTATIVOS 30.0%
TOTAL 100.0%
*o baixo índice de ocorrência das regularidades lingüísticas referentes à dimensão sintático
tem a ver com dois fatores: {a} com a separação entre sintaxe, prosódia e léxico, que,
embora artificiaL faz sentido neste trabalho, uma vez que. o título operatório, lidamos com a
lexicolizaçõo e a prosódia como sendo típicas, respectivamente, do texto escrito e do texto
oral; {b) com o tipo de critério privilegiado poro o análise. em que a relevância considerada
não foi a relevância estatística, mas aquela ligada à hipótese central deste trabalho, a saber,
a do circulação imaginária, por parte do escrevente, pelos três eixos de representação da
escrita.

197
Marcas sintáticas da representação do escrevente sobre a gênese da
escrita

Dividiremos a análise dos textos em duas partes maiores que representam

os duas regulondodes lingüísticas a serem destacadas: a primeira será relativa à

[1) sintaxe e o efeito de fragmentação; e a segunda será relativa à (2) sintaxe e a

conexão do heterogêneo da linguagem. Cada uma dessas regulqndodes

maiores reunirá, para facilitação da exposição, duas outras. Desse modo, ·"sintaxe

e o efeito de fragmentação" se subdividirá em: (A) modos fragmentários de

integração; e (B) a reconstrução do fluxo da faia; "sintaxe e conexão do

heterogêneo da linguagem" se subdividirá em: (A) a coordenação e o prosódia;

e (B) a construção correlativa.

Eis o quadro indicativo da freqüência dessas regularidades da dimensão

sintática:

QUADRO 2: Porcentagem de ocorrência segundo regularidades lingüísticas da


DIMENSÃO SINTÁTICA em relação ao total de ocorrências das
regularidades das outras dimensões no conjunto dos textos

REGULARIDADES LINGÜÍSTICAS %

1. SINTAXE E O EFEITO DE fRAGMENTAÇÃO 4,7


(A MODOS FRAGMENTÁRIOS DE INTEGRA ÃO 3.9
(B) A RECONSTRUÇÃO DO FLUXO DA FALA 0.8*
2. SINTAXE E A CONEXÃO DO HETEROGtNEO 3,9
(A} A COORDENA .ÃO E A PROSÓDIA 0,8
B) A CONSTRU,....ÃO CORRELATIVA
-:_ PoiCéntciQeiTI cte:ocorr:~hCkf'fdlriiérisõó Sfótótf-Gal·:
,,,.., "' ''''··· '"
3.1

* Os índices percentuais de 0,8% indicam que o escolha das marcas nõo se oriento por sua
freqüência. De acordo com o metodologia utilizada, procuraremos mostrar, na análise que
faremos a seguir, que essas marcos são indícios importantes '.'do processo geral através do
qual se vai continuamente constituindo e modificando a complexo reloçóo entre o sujeito e a
linguagem" (Abaurre et oL 1995, p. 6). No caso específico dessas marcos,
independentemente de sua maior ou menor freqüência. interesso que sejam evidências
locais do circulação do escrevente pelo imagem que ele foz da gê-nese da (sua) escrito.
Portanto. o espec/fico do representação do escrevente. que atesto a "randode dos
enunciados" !Foucoult, 1971) em termos dos processos de suo constituição pelo escrita. não
implica na reprodução estrito de suas marcas, mas na reprodução do que é repetível da5
propriedades desses processos de constituição.

198
{I) A SINTAXE E O EFEITO DE FRAGMENTAÇÃO

Esta reguladdade lingüística relativa à sintaxe permite observar muito do

que adiantamos sobre o modo heterogêneo de constituição da escrita.

Contrariamente ao que se postula de que a escrita seria o lugar da integração

das unidades, os textos dos vestibulandos (em virtude da relação de acúmulo e

mescla com que os escreventes assumem as práticas do oral/falado e do

letrado/escrito) mostram uma forte presença do fragmentário na sintaxe, embora

esse caráter de desintegração sintática seja compensado pelo que Koch et ai

{1990) chamam de "articulação interativa". Eis como os autores formulam o

problema, ao tratarem do fluxo de informação no discurso oral dialogado:

"O aparente paradoxo de que uma desartlcu/açõo


de construção seja expressão de uma articulação
interativo se explico por um processo de
compensação pragmática que pode atuar em
direção à efetivação do contato, visando assegurar o
sucesso do comunicação." {op. cít., p. 150}

O fato de os autores referirem-se ao discurso oral dialogado não significa

que estejamos buscando, na escrita dos vestibulandos, características do que

seria o típico ora!/fa!ado. É, pois, importante que se destaque, que não se trata de

ver, na presente análise, nenhuma tentativa de provar a interferência de uma

moda !idade {a oral) sobre a outra {a escrita). O olhar que buscamos é o dirigido à

relação entre o sujeito e a linguagem. Portanto, o caráter fragmentário do sintaxe

deve ser melhor observado como uma marca dia!ógica que o escrevente

registra com os elementos {lingüísticos, paralingüísticos ou pragmáticos) que e!e

articula ao se constituir como escrevente.

199
{A) MODOS FRAGMENTÁRIOS DE INTEGRAÇÃO

Em primeiro lugar, gostaríamos de lembrar que as opções de construção

sintática têm, como se sabe, clara repercussão na organização ou, no que já se

convencionou chamar, na construção formal do texto, fato que não será, porém,

objeto de preocupação direta nesta etapa do trabalho. São relativamente

freqüentes, embora com uma configuração formal bastante diversificada, as

ocorrências do efeito de fragmentação na sintaxe:

"A Violência nos concertos de rock não tem jeito como acabar com
ela, irá sempre existir as pessoas que vão aos concertos de rock, ... "
{Texto01~031)

Há, nesse coso, uma clara ruptura no construção da frase, em que o

fopicalizoção fico marcada por uma sobrecarga de expressividade da

seqüência em negrito. O destaque dado para "a violênçia nos concertos de

rock" e a insistência pela retomada no final da primeira parte do enunciado

"acabar com ela" cria, entre esses dois elementos, um contexto lingüístico em

que a topicalização vem enfatizada pelo alto grau de expressividade da

expressão "não tem jeito como", ela própria reduplicada no que se refere a

enfatizar o "modo como". Como lembra Silva (1991) a respeito da "fala escrita"

proposta por Britton para a escrita inicial da criança, a irrupção expressiva de

"não tem jeito como" parece estar ligada à caracterização de um momento

espontâneo na abordagem do tema, espontaneidade que, a exemplo do tipo

de escrita analísado por Silva, favorece uma escrita "essencialmente expressiva':

pois aborda o tema de um modo que parece ser "muito próximo de seu mundo,

no qual verbalizo os seus sentimentos e maneiro de ser" [op. cit., p. 34). No

entanto, podemos dizer que tant? a expressividade, como a espontaneidade

200
são tambêm formas previsíveis nos textos dos vestibulandos, uma vez que o

próprio exame prevê temas e opiniões (expostas na coletânea) que façam o

candidato assumir posições. Exemplos como esse, portanto, em que há

expressividode e espontaneidade, são ótimos exemplos da individuação histórica

do suíeito.

Um outro exemplo de fragmentação tem paralelo com um outro aspecto

do universo do escrevente. A falta de integração explora um estilo de escrita por

manchetes, persisitindo, desta feita, pelo texto inteiro:

"O fim do sensJbl'l1dade humana é muito interessante para os


governantes, o homem fá é desprovido de cultura sem sentimentos
também, será mais fáCJ7 manipulá-lo.
Matam e morrem em vão.
Crianças assassinas e assassinados são páginas de fomo! (... )
Assistem calados jovens aufo-destrutíveis se atropelando pelos roas{ ... )
O mundo aplaude alguém que canto a violência e induz o já solitádo
homem o se tomar mais inotíngível ainda.
A sociedade anestesiado dorme e acorda, maquinalmente, não acho
mais tempo nem significado para lutar contra o violência, que lhes é
imposta todos os dias, e dessa formo se deixa guiar e aceita qualquer
direção, por mais absurdo que seja. "{Texto Ol-040}

A própria construção dos parágrafos denota esse caráter fragmentário do

texto, uma vez que o escrevente os identifica diretamente com frases, as quais,

em geraL vêm construídos por meio de coordenações bastante simples. A

estruturação do sintagma do título "Co!Jdiana Violência': em que o adjetivo

precede o nome, e o uso de algumas relativas explicitam, diferentemente do

exemplo anteriormente citado, a tentativa de criar um efeito de expresslvidade.

Essa tentativa, embora revele já um trabalho com a linguagem, busca, porém,

aquele efeito de um modo direto, evidenciando, na construção dos parágrafos

em manchete, uma sintaxe fragmentária típica dos momentos de maior

envolvimento entre os interlocutores.

201
Um caso particular de ocorrência dessa sintaxe, que ainda poderia ser

chamada de fragmentária, é o que ocorre quando a integração é feita pelo uso

narrativo do conectar "e":

"SupervalonZou um melai amarelo,. acima até do vida. Semeou cobiça


e tensão nos dncões em que passou. E para complementar, povou o
país com vagabundos, degredados e todos os tipos de criminosos.
Mos apesar de tonto violência, conseguiu 'civilizar' o terra recém
descoberta E esta progrediu, emancipou-se, tomou-se uma noção
livre e soberana. Cresceu! Era uma terra fértil dco e Jogo interessou Os
grandes potências, ... " {Texto 04-204).

Nesse caso, a tentativa de integroção é feita com base na relação entre

sintaxe e tipo de texto. Nesse momento narrativo, o escrevente recorre, porém, à

narratividade enquanto princípio enunciativo83_ A esse recurso, muito presente nos

relatos orais, o escrevente busca fazer corresponder o envolvimento de seu

interlocutor. Eis. pois. evidenciada, nessa busca de envolvimento a partir da

narrativídade, o relação sujeito/linguagem por onde o escrevente circula nesse

momento e paro a qual busca trazer a adesão de seu interlocutor.

Um outro exemplo, desta feita ligado à ordem não-integrativa das

palavras, pode ser visto no exemplo seguinte;

"É fácil para os governantes e as classes pdvi/egladas cu/porem os


jovens "irresponsáveis e delinqüentes" dos favelas pelos
acontecimentos, mos será que encontrar os culpados somente resolve
o problema? (Texto 03-140).

Pensamos no diferença enunciativo básica estabelecida por Benveniste (1976) entre


!IJ
comunicação animal e linguagem humana. A necessidade de vivenciar diretamente os
experiências, no coso dos abelhas. e o possibilidade de relatar essas experiências mesmo
sem ter tido contato direto com elas. no caso do homem. são dados que permitem propor o
norratívidode- aqui pensado como independente da memória registrável a porfir do código
genético- como um princípio enunciativo bós;co, ou seja, como possibilidade de lidar com a
memória histórica é partir do experiência doda pelo fazer histórico do linguagem e não
necessariamente o partir da experiência em si.

202
Observamos que, pela ordem das palavras desse exemplo, o foco de

caráter restritivo do operador ''somente" é "resolve o problema". Se

mantivéssemos esse foco, teríamos que admitir a relação de pressuposição que

ele estabelece: "resolver o problema é pouco". Não parece ser essa a

orientação argumentativa do escrevente.

Com boa vontade e operando com o conhecimento intuitivo sobre a

posição que esse tipo de operador ocupa- "a fronteiro dos sínfogmos" {Azeredo,

1990, p. 125} -, o leitor pode recuperar o foco pretendido pelo escrevente para o

operador em questão, obtendo: "mas será que somente encontrar os culpados

resolve o problema'?" . Ocorre que essa segunda possibilidade só pode ser

marcada por meio de uma suposição da prosódia, projetada da oralidade, mas

não marcada na escrita. Desse modo, o escrevente parece claramente orientar

seu registro gráfico por um recurso da enunciação oral. Como se sabe, na

oralidade, a exemplo de se poder substitutir a lexicalização pela prosódiaM, há

também a possibilidade de se marcar, pela prosódia, focos que, na escrita,

seriam melhor indicados pela ordem das palavras. A prosódia gue o escrevente

supõe projetar, em seu texto, sobre o operador "somente" evidencia, portanto,

uma ordem nõo-integrativa das palavras. uma vez que a foco esperada seria

facilmente obtido por meio de uma outra disposição das palavras, desta feita

não exclusivamente dependente da prosódia: "mas será que somente encontrar

os culpados resolve o problema?", Devemos evitar, porém, ver aquela ordem

não-integrativa como uma interferência da oralidade na escrita. Preferimos

assumi-la como uma projeção da situação enunciativo concreta, em que o

interlocutor fisicamente ausente na escrita é de tal modo projetado para o texto

M Conferir Cag!iari, aqui mesmo. p. 77, nota 39,

203
que se impõe uma argumentação que o presentifique, no caso marcada pela

prosódia que o escrevente supõe plasmada na escrita. É, pois, a representação

desse envolvimento quase físico com o interlocutor que leva o escrevente o

optar pela prosódia e não pelo ordem integrativo dos elementos do enunciado.

Até este ponto, exploramos os modos fragmentários de integração por

meio da sintaxe. No item seguinte, serão tratadas aquelas marcas sintáticas que

denunciam a reconstrução do -fluxo da fala.

IBJ A RECONSTRUÇÃO DO FLUXO DA FALA

Um último efeito de fragmentação da sintaxe a ser destacado se refere à

reconstrução do fluxo da fala. Esso reconstrução se apresenta oro por

fragmentação, oro por justaposição. Observemos o exemplo abaixo:

"Muitos artistas que se sentem mobilizados tentam combater o


viol&ncia, mos cdticom com grande violência. Isto incito os jOvens a
serem mais violentos ainda. O que não resolve o problema. (Texto 01-
019)

~m que a seqüência final em negrito seno melhor considerada uma oração

{portanto, uma parte do enunciado anterior} e não propriamente um enunciado

independente, No caso, a reconstn;ção do fluxo da fala é feita por

fragmentação, sendo a pausa o elemento que atua como identificador de um

novo fragmento. Esse fragmento talvez fosse melhor compreendido nos termos

em que Marcuschi (1986), baseado em Rath, define uma "umdode de

comunicação': já comentada de passogem no capítulo 1 (cL, aqui mesmo, p.

35-6): "[uma unidade de comunicação éJ um substituto conversacional poro

frase, ou seja, é o expressão de um conteúdo que pode dar-se, mos não

necessodomente, numa u(!Jdade sinfófica tipo frase" {op. ciL, p. 61-2). Alnda

204
segundo o autor·. as ''unidades de comunicação são, via de regra, marcadas por

pousos, pelo entonação e por certos elementos lexicais ou poralexicais" (idem.

íb.). No modo heterogêneo de constituição da escrita que estamos buscando

detectar, essas marcas típicas das "umdodes de comunicação" estão delimitadas

pela pontuação, indicando a fronteira dos enunciados. Há, pois, nesse exemplo,

novamente a clara tentativa de fazer plasmar-se a prosódia na escrita.

Por suo vez, a reconstrução do fluxo do fala por justaposição vem afetar a

construção do texto de uma outra maneira:

"A violência em sl quando mencionada, nos transmite uma reação


interior muito olarmente, pois só o fato de pensarmos nela, nós temos
temos (sic} instantaneamente o reação, de que para se acabar com a
violência é preciso também usar de violência, esta é uma atitude que
a maiotia das pessoas feém só que nunca pararam para pensar ou
anoliza~ pois se o fizessem feriam consciência de que em vez de estar
acabando com ela, estanOm propagando mals e mals violênCJO. "
(Texto. 03-180)

Desta feita, a construção fica afetada pela justaposição de enunciados

independentes. Parece ocorrer, nesse caso, um outro típo de projeção. Até o

enunciadb imediatamente anterior ao destacado com negrito, o escrevente

dialoga com a coletânea de textos dada na prova e todo o seu trabalho é criar

um contexto possível para a adaptação do seguinte trecho do texto 1, de Renê

Girord: ''Mesmo que o sistema judiciónO contemporâneo acabe por racionalizar

toda a sede de vingança que escorre pelos poros do sistema social parece ser

impossível não ler que usar a violência quando se quer líqüidá-la e é exatamente

por isso que ela é interminável" . Depois de sua tentativa de assimilar-se a essa

voz, assimilação conseguido a duros penas - como podemos constatar pela

construção por ele empregada -, é que realmente fica sinalizado um ponto de

individuação. Ao contexto criado para o outro {o texto da coletânea). parece

205
bastar ao escrevente o simples alternância rítmica&5 com o que se atribui como

sua posição pessoal. Projeta-se, assim, no uso anafórico de "esta'' e na

alternância rítmica marcada pela vírgula, um elemento do situação concreta de

enunciação - o própria coletânea - talvez pela suposição de que o gesto de

apontar esteja contido no anafórico. Nesse sentido, podemos pensar em uma

alternância entre duas "unidades de comunicação''. A aparente

descons-ideração do enunciado sob análise como uma frase independente -

pela omissão do ponto final - parece, portanto, estar ligada a uma outra forma

de indiciação dessa alternância. A falta do ponto final não significa, portanto,

uma não distinção rítmica dos enunciados {das "unidades de comunicação'),

embora a indicioçõo resultante não pertença à convenção gráfica esperada

pelo leitor. Eis, portanto, uma indiciaÇôo que está a meio caminho da real

percepção de uma alternância e de seu registro convencionalizodo.

{2) A SINTAXE E A CONEXÂO DO HETEROGÊNEO DA LINGUAGEM

Esta regulondade lingüística permite lançar um olhar crítico à idéia

bastante comum sobre a escrita co'mo o lugar da homogeneidade. Referências

freqüentes à recusa das sobras no texto escrito, tais como "limpar" ou "enxugar" o

texto, caminham lado a lado com outras não tão higienizodoras mas

preocupadas também em dar uma homogeneidade ao texto escrito, tais como:

"costurar", "amarrar", ''dar um acabamento'' ao texto. Contrariamente ao que se

postula quanto a ser a escrita o lugar da homogeneidade, da "amarração" entre

83Segundo Chocon (1996}, "o olfemõncío entre estruturas a serem enfatizados e outros em
funçOo dos quais se determino essa entese se marca (... } no escrito através do jogo nTmico
que os marcos de pontuação promovem entre os estruturas enfatizados e os outros com as
quais elas devem contrastar". (op. dL p. 128). Conferir também. aqui mesmo, p. 67-8.

206
as suas unidades. os textos dos vestibulandos mostram uma forte presença do

heterogêneo na sintaxe. É o que procuraremos mostrar· a seguir.

A abordagem deste item está subdividida em duas partes: {A)

coordenação e prosódia; e (B) construção correlativa. Segue-se a primeira

dessas subdivisões.

(A) COORDENAÇÃO E PROSÓDIA

Sabe-se que a coordenação se faz, tipicamente, entre unidades formais

de mesma natureza. Pouco tem sido explorado, porém. o papel da

coordenação como um dos recursos sintáticos apropriados para a conexão do

heterogêneo. Imaginemos, por exemplo, a coordenação de noções que nãO

guardam absolutamente nada em comum e, ainda assím, a coordenação

funcionará. Observemos o exemplo seguinte:

"Nos mo!TOS escolTem favelados que habitam a c1dade roubando e


matando para sobreviver. Começa a formação de organizadas
quadnlhos que usam drogas e fazem tráfico: aproveitando os eventos
realizados para a diversão da juventude e passar isso a outras
pessoas:'(Texto 03-173).

A coordenação entre "os eventos realizados para a diversão da

juventude" e "passar isso a outras pessoas" funciona, no caso, não propriamente

como uma coordenação, mas como uma relação de finalidade entre duas

orações: "aproveitando os eventos realizados para a diversão da juventude para

passar Isso a outros pessoas". O fato dessa relação de finalidade estar atualizado

sob a forma da coordenação evidencia a percepção, por parie do escrevente,

do heterogêneo entre os duas seqüências coordenados: é o fato de que

"diversão da juventude'' nada tem em comum com "passar isso a outras

207
pessoas" que parece ser a asseveração do escrevente. Essa conexão do

heterogêneo está sendo efetuada. portanto, entre dois posicionamentos

diferentes quanto à ''diversão.da juventude": faJ os jovens devem se divertir; e {b)

a diversão dos jovens não deve ser confundida com consumo de drogas,

violência e tráfico.

No entanto, essa conexão é merecedora de comentário justamente

porque não seria facilmente aceita pelas convenções da gramática normativa e

porque causa, de fato, estranheza no texto escrito, mesmo quando o escrevente

pode contar com a boa vontade do leitor. A despeito dessas convenções. a

marcação desses diferentes posicionamentos quanto à "diversão da juventude"

pode tornar-se perfeitamente aceitável em circunstâncias de enunciação oral,

uma vez que, nessas circunstâncias, as marcas do heterogêneo transitam no

sentido da prosódia para o léxico. Inversamente, no caso comentado da

enunciação escrita. a direção a ser tomada é do léxico paro a prosódia. Vale

lembrar que a prosódia é ponto de partida na enunciação ora! {chegando ao

léxico}, mas é ponto de chegada na enunciação escrita {cujo ponto de partida é

justamente a segmentalização lexica!). A necessidade da passagem do prosódia

(do falado) para o prosódia (no escrito) leva o escrevente a imprimi-la, em seu

texto escrito, ao mesmo tempo, como ponto de partida (a exemplo da

enunciação oral) e como ponto de chegada (a exemplo da enunciação

escrita}. Por essa razão, o caminho do léxico para a prosódia {o da leitura do texto

escrito) pode não permitir uma recuperação do percurso representado como

genético pelo escrevente - percurso que vai diretamente da prosódia do falado

(tomada como modelo, ainda que nem sempre graficamente assina!óve!) para

o que o escrevente supõe como o registro integra! dessa prosódia no escrito

208
(ainda que nem sempre integralmente recuperável) - em que, freqüentemente,

ele se localiza no momento de sua textuolização.

Um outro exemplo é o que se dá com a coordenação entre

quantificadores universais relativos a coisas e a pessoas:

"Portanto tudo e todos que não seguem as regras que a sociedade


ímpõe são discriminados;... " (Texto 00-012)

O heterogêneo está, pois, bastante claro nesse caso: '·tudo" (todos as

coisas) e "todos" (todas as pessoas). Parece haver, à primeiro v!sta. um

estranhamente quanto a essa coordenação. No entanto, se considerarmos uma

pausa depois da pa!avra "tudo", poderemos obter um enunciado bastante

aceitável. É imporlante lembrar que, como regra geraL a própria gramático

insiste na necessidade de omissão da vírgula antes da conjunção ''e". O

escrevente, obedecendo a essa regra, ao mesmo tempo que coordena o

heterogêneo (coisas e pessoas), produz um enunciado - que acredita

gramaticalmente abonado - novamente a partir do percurso que representa

como genético, isto é, buscando, sem outra mediação, a prosódia de parlida (a

pausa} na prosódia de chegada (a pausa que ele imagina plasmada por si só na

escrita).

(B) CONSTRUÇÃO CORRELATIVA

Tomaremos, inicíalmente, a noção de Perini (1989) sobre as construções

correlativas. Segundo esse autor, "a evidência maior aponta na direç6o de se

analisar os cOJre!atas como coordenados, ou pelo menos como um caso especial

dos coordenados" (op. cit., p. 221). Há, porém - ainda segundo o autor -,

diferenças entre a coordenação e a correlação, como "a possibilidade( ... ) de se

209
separar as coordenadas por ponto final (formando dois penOdosl o que nunca

pode ser feito com os correlatas (embora ocorra às vezes com certas

subordinadas}"(ldem. ib.). Vale lembrar, ainda, a definição de correlação dada

por Camara Jr. (1978}. Para esse autor, correlação é a "construção sintática de

duas partes relaCIOnadas entre s,; de tal sorle que a enunciação de uma (... )

preparo o enunciação de oufra"{op. cit., p. 87}.

Tomemos o exemplo abaixo:

"A violência é um círculo viCioso, pois para extenniná-la é necessón'o o


uso de mais violência, por isso a tendência é que ela cresça cada vez
mais. Pode-se compará-la a uma bola de neve que cresce tanto_,. até
tomar-se incontrolável. "[Texto 04-185)

O exemplo mostra que uma construção correlativa insinua-se entre o

verbo ~~crescer'' e a oração circunstancial a ele ligada: "até tornar-se

incontrolável". A intercalação da correlativa insinua-se com "cresce tanto ...", mas

frustra a expectativa do leitor porque não se cumpre na seqüência. A falta de um

introdutor para a segunda parte da con·elativa termina por produzir um acúmulo

de funções para a preposição "até": (a) a de introduzir a oração drcunstandal

reduzido de infinitivo; e (b) a de introduzir o segundo membro da correlação. Esse

acúmulo de funções da preposição parece dar à construção resultante mais um

caráter de gradação do que estabecer uma relação de causa/conseqüência. A

essa gradação fica, porém, acrescentada a marca expressiva do escrevente

"tonto".

Podemos, pois, constatar, nesse tip:) de cruzamento sintático, a tentativa de

delimitação do universo argumentativo semelhante ao já tematizado no texto

utilizado como exemplo no Capítulo 2 (cf. p. 143-4 e 147-8}. Como vimos, essa

construção pode dar-se na verticalidade de uma escala hierárquica (exemplo

210
de "até mesmo", então comentado) ou na horizonta!idade de pontos-limite de

uma escala (exemplo de "desde ... até ... ", também então comentado). Portanto,

o saliência que o escrevente está atribuindo à construção correlativa como um

recurso de textualização, pode- também no caso presente- estar revelando, por

exemplo, que o recurso da delimitação do espaço qrgumentativo (e sua

correspondente determinação de uma posição para o interlocutor) esteja

passando para o domínio ativo do escrevente. Os fatores condicionantes desse

aparecimento são, entre outros, a necessária interlocução com a instituição que

vai avaliar o vestibulando; o envolvimento que o vestibulando acredita ser

necessário mostrar em relação ao tema da violência; e - consideradas as

Condições de produção de sua escrita -a própria expressividade do escrevente

que sai, comprimida, em marcas lingüísticas (no caso, a própria cons-trução

correlativa insinuada com "tanto") projetadas da situação concreta vivida e que

é, desse modo, representada na escrita pelo vestibulando.

Quanto ao fator condicionante propriamente lingüístico, podemos dizer que

a caracterização típica do correlação, como sendo próxima, mas, ao mesmo

tempo, distante da coordenação - uma vez que se impõe uma dependência

sintática entre os membros correladonados ~ parece caminhar para uma maior

familiaridade do escrevente quando se trata de utilizá-la como um recurso

delimitador do universo argumentativo em que se dá a representação da

situação concreta de enunciação. A independência semântica dos

coordenados {isto é, a necessária conexão do heterogêneo) aliada à

dependência sintática das correlativas {inseparabilidade dos membros da

correlação) permite, de um ponto de vista lingüístico, dizer que, neste caso, as

construções correlativas podem ser melhor vistas como "unidades de

211
comunicação". Como ficou dito, as "umdades de comunicação'; projetadas

desde o falado, podem não se deixar representar pe!a noção de frase, que,

numa reflexão proveniente da língua escrita, teria como um de seus critérios de

determinação o critério gráfico da pontuação.

O mesmo procedimento de delimitação do universo argumenta-tive

parece estar presente em exemplos como:

"Existe violência o qualquer parte, hora, onde menos se espero


acontece um ato de violência.
Como um assalto o mão armada nos Cidades grandes ocoJTendo com
mais frequencia, que pode matar uma família Inteiro e dar casa e
comida paro família de um bandido, ao mesmo tempo. " (Texto 00-
003)

em que a coordenação com "e" aliada ao marcador de simultaneidade "ao

mesmo tempo" resulta numa correlação que poderia ser traduzida como: ".,.que,

se pode matar uma famííia inteira, pode também dar casa e comida para

família de um bandido".

O fato de o escrevente utilizar a marca de coordenação e de

simultaneidade como recursos complementares na composição de uma

correlação indica que, de fato, ele já está lidando com uma concepção

adequada dessa construção. Note-se que ele articula o caráter de

independência {conexão do heterogêneo) por meio da coordenação e o da

dependência sintática {inseparabi!idade dos membros da correlação) por meio

da expressão da simultaneidade {a este respeito, nos termos acima citados de

C amara Jr.: "a enunciação de uma (parte] prepara o enunciação de outra"} ,

Um último exemplo joga com a estrutura de uma coordenação

tipicamente correlativa: "não só ... mas também". Curiosamente, esse jogo é feito

212
no sentido de amenizar a correlação e acentuar a coordenação: "não apenas ...

e sim".

·~ existência de tribos urbanos nos leva a observar que não apenas


uma pessoa age ou penso diferente do que determino a sociedade, e
sim ván"as pessoas reunidas num mesmo grupo ou em grupos
diferentes, porém todos com ideologias contrárias às defendidas pela
sociedade moderna." (Texto 03·167)

O fato de o escrevente estar lidando com a noção de quantidade parece

explicar essa sua opção. Não se trata, portanto, de enfatizar a relação interna ao

par correlato, mas de marcar o heterogêneo de duas quantidades: "uma" versus

"várias". Desse modo, não caberia uma formulação como: "nos leva a observar

que não apenas uma pessoa age {... }, mas também várias pessoas". A

exploração do heterogêneo daquelas duas quantidades mostra, ao contrário,

que se trata de destacar as ações das tribos como coletivas: "não apenas uma

pessoa ... e sim várias". Nota-se que a orientação argumentotiva proposta pelo

escrevente assimila o ponto de visto das "tribos urbanos" em oposição ao da

"sociedade moderna", fato que, uma vez mais, está ligado ao modo como o

escrevente representa seu interlocutor. a saber, como se posicionando ao lado

dos movimentos populares e, nesse coso particular, dos jovens.

• • •
Procuramos abordar, até este ponto, as regularidades sintáticas que

indiciam o modo pelo qual a gênese do escrita aparece representada nos vários

textos. O objetivo foi, portanto, reunir, em regu/ondodes sintáticas mais gerais, as

ocorrências locais de pistas sobre a representação que o escrevente foz da

gênese da escrita.

213
Inicialmente foi tratada a relação entre a sintaxe e o efeito de

fragmentação. Esta regularidade siritática permitiu observar fatores

condicionantes do aparecimento de estruturas sintáticas ligadas ao tipo de

representação da escrita que estamos descrevendo, tais como: a sobrecarga de

expressividade como resposta do escrevente ao tema e à coletânea propostos; o

alto grau de envolvimento representado no que se refere à relação com o

interlocutor; a busca da adesão do interlocutor pelos recursos de delimitação de

um universo argumentativo comum e de atribuição de uma posição específica

para o próprio interlocutor; a projeção representada da situação enunciativo

concreta; e a articulação do texto a partir de "unidades de comunlcoçõo':

graficamente identificadas com os limites da frase.

Em seguida, a representação que o escrevente foz da gênese da escrita

foi tratada a partir da relação entre a sintaxe e a conexão do heferogêno da

linguagem. Este tipo de regularidade sintática permitiu observar os seguintes

principais fatores condicionantes: a tentativa de reconstrução do fluxo da fala por

parte do escrevente, dada a necessidade de trabalf:1ar com referências bastante

heterogêneas {destacamos, por exemplo, a necessidade de lidar com a questão

prática do tempo limitado da prova, confrontada com a necessidade de dar

conta das referências presentes na coletânea - a rapidez na leitura, na seleção e

no organização dos argumentos podem redundar numa elaboração do texto

mais próximo do fluxo imediato da fala); a tentativa, por parte do escrevente, de

projeção do percurso de representação da gênese em que ele situa sua escrita

{percurso que vai diretamente da prosódia do falado - tomada como modelo,

ainda que nem sempre graficamente assinalável - para o que supõe como o

registro integral dessa prosódia no escrito- ainda que nem sempre integralmente

214
recuperável); a tentativa de delimitação do universo argumentativo em que se

dá a representação da situação concreta de enunciação (atribuição de um

lugar para si mesmo e para o interlocutor} por meio do cruzamento de diferentes

tipos de construções sintáticas. Neste caso, essas construções parecem melhor

caracterizadas como "unidades de comunicação': projetadas desde o falado,

do que como frases, dada a premência da movimentação do escrevente no

universo argumentativo que ele constrói e projeta em seu modo heterogêneo de

constituição da escrita.

No tópico seguinte, trataremos das marcas prosódicas e lexicais que

indiciam a representação da escrita em sua suposta gênese .

Marcas prosódicas e lexicais da representação do escrevente sobre a


gênese da escrita

A reunião de marcas prosódicas e marcos lexicois numa mesma parte da

análise justifica-se em virtude da substituição do léxico pela prosódia na

enunciação ora!, por um lado, e da substituição da prosódia pelo léxico na

enunciação escrita,S6 , por outro.

Procuraremos observar, nesta parte do trabalho, a possibilidade de uma

vinculação cruzada, mais precisamente no que se refere à presença da prosódia

na enunciação escrita. A análise dos textos será dividida em duas partes maiores:

(l) a prosódia e a representação da gênese da escrita ; e (I!) o léxico e a

representação do gênese da escrita.

Na seqüência, apresentamos o quadro indicativo da freqüência dessas

regu!andades relativas à dimensão prosódica e lexical.

Bl> Interessante confrontar os posições de Tannen sobre o papel da lexicolizoção na escrito


(cf .. aqui mesmo. p. 39) e de Cogliari sobre o papel da prosódia na oralidade (cf. aqui
mesmo, p. 77, noto 39).

215
QUADRO 3: Porcentagem de ocorrência segundo regu/oddades lingüísticas do
DIMENSÃO PROSÓDICA E LEXICAL em relação ao total de
ocorrências das reguladdades das outras dimensões no conjunto

REGULARIDADES %

{I) A PROSÓDIA E A REPRESENTAÇÃO DA GÊNESE DA ESCRITA

Retomemos, por um momento, o que estamos entendendo por prosódia.

Uma formulação mais gero! do problema associa a prosódia com os sons da

linguagem. É, de certa forma, o que faz Cagliari em citação já apresentada neste

trabalho: "os sons da linguagem são todos aqueles elementos fonéticos presentes

na fala e que o moldam para carrearos significodos"{cf. p. 77, nota 38).

Damos por estabelecido que as outros referências feitos à prosódia neste

trabalho já tenham deixado claro que o termo não está sendo usado para

designar um acréscimoa? aos sons da fala. Constitutiva dos chamados níveis de

análise lingüística, provavelmente não tenha sido melhor estudada em razão de

seu caráter não-linear e, portanto, não-suscetível de representação segmental88.

e; O verbete produzido por Camora Jr. (1978) menciona que a prosódia se refere aos
caracteres da emissão vocal "que se acrescentam á articulação propn'omente dita dos sons
da fala. como em português o acento e a entoação". {op. cit.. p. 202).
sa Uma formulação bastante conciso é dado, em nota de rodapé, por Scarpa {1995):"Com
relação à prosódia, basto que nos refiramos {... ) a parâmetros como duração, ·intensidade
(amplitude)- altura (freqüência). velocidade do falo, pouso e alguns outros que constituem
subsistemas suprossegmentois com vonOdos pofencia/idodes distinHvas ou significativas nas
!lnguos naturais. Combinados, estes parômefros tambérm são responsáveis pelos subsistemas
de dtmo e de entonação. Uma caracterfstica reconhecidamente básico do prosódia é suo
não-lineandade, isto é, domíhios prosódicos sobrepõem-se uns aos outros com regras tonto
modulares quanto com abrangência Nerórquica: o caráter não-linear dos elementos
prosódicos compaltbiliza-se com suo natureza não-discreta: isto é, não são redutíveis o
unidades segmenta;$. Além d1Sso, apesar de hierárquicos, os elementos prosódicos n6o têm
relação isomórfico com constituintes gramati'cois ou com reguladdades semânticos." /op. clt..
p. 169).

216
Como foi observado anteriormente, a prosódia só aparece na escrita

através da articulação com outros planos, por exemplo, o próprio léxico ou,

como foi exemplificado na análise acima, a sintaxe. Vale lembrar que, na maior

parte das vezes, a leitura do texto escrito é feita pela imposição- em voz alfa ou

não- de uma prosódiaB9. Desse modo, podemos- em dois sentidos- trabalhar

com a hipótese de que a prosódia não é exclusiva dos enunciados falados: por

um lado, ela é, em geral, uma exigência do leitura e vem, em parte, assinalada

pela pontuação; por outro, ela é recuperável - como acreditamos ter

demonstrado por ocasião da análise das marcas sintáticas - em diferentes pistas

lingüísticas que os escreventes deixam em seus enunciados escritos. Portanto,

embora não seja passível de uma representação segmenta!, a prosódia é, em

alguma medida, recuperável nos enunciados escritos.

Neste ponto, passaremos à análise propriamente dita dos elementos

prosódicos deixados como pistas na escrita dos vestibulandos.

Como a prosódia está presente em todos os momentos da circulação do

escrevente pela imagem que faz da gênese da escrita, abordaremos, nesta

etapa mais específica, apenas três regularidades quanto à prosódia: {l) a

prosódia e a falta de lexíca!ização na escrita; (2) a prosódia e a pontuação; e {3)

a prosódia e a ortografia.

.. '

li) A PROSÓDIA E A FALTA DE LEXICALIZAÇÀO NA ESCRITA

No que se refere ao modo como o escrevente projeta graficamente a

prosódia, observaremos, inicialmente, a substituição - mencionado por Caglíari

para o discurso oral (cf. aqui mesmo, p, 77} - do léxico pelo prosódia. Vale

e~ Cf. Abaurre, em vários momentos deste trabalho (em especial, p. 59. noto 31. e p. 129).

217
lembrar também o observação feita acima sobre o percurso representado como

genético por parte do escrevente. Como vimos, a tendência do escrevente é

representar a gênese da escrita como um percurso que vai diretamente da

prosódia do falado {tomada como modelo, ainda que nem sempre

graficamente assinalável} para o que o escrevente supõe como o registro

integral da prosódia no escrito (ainda que nem sempre integralmente

recuperável). Nos casos abaixo, os escreventes tomam nitidamente a prosódia

do falado como modelo.

lembramos. a propósito, o caso ele "mas não são todas t) 9o pessoas que

tem acesso a educação, ... (Texto 01-031), que citamos no capítulo 2, p. 168.

Como vimos, há, nesse exemplo, uma odaptação fonética marcada pela falta

de lexicalização (falta da palavra "as"). Parece bastante claro que o escrevente

omitiu o artigo por já senti-lo registrado na sílaba final do quantificador

<-das>.

A omissão pode atingir outras classes gramaticais, como é o caso da

preposiç~w {a} no exemplo seguinte:

''.. .isso é normal, acontece todos os dias, morre muito gente, e as vezes
sem ter nado 1/J ver com o história. "{Texto O1-044}.

Esses exemplos mostram dois momentos em que a velocidade do fala

tomada como base pelo escrevente não lhe permitiu apreender, como seria

possível a partir do grafismo de uma fala lenta, os segmentos ao qual pudesse

fazer corresponder uma atualização gráfica. Esse tipo de omissão pode ser

9o Convencionamos utilizar, doravante, o símbolo+ para indicar a omissão de palavras.

218
chamado de apagamento prosódico. uma vez que é o dado prosódico da

assimilação de um clítico9l que impede a percepção do vocábulo omitido.

Ambos os exemplos aproximam-se também de certos casos de hípo-

segmentação. Como se vê, as ocorrências se dão em momentos em que o

escrevente parece estar operando ou com um registro não--marcado quanto à

formalidade (caso de "todas os pessoas'') ov com um registro mais marcado

como informal (caso de "nada a ver"). Esse fato tem paralelo com o que Silva

{1991) mostra na escrita infantiL Segundo o autor, nesse tipo de escrita, a hipo-

segmentação ocorre, em gera!, quando a criança "tenta representar

graficamente um trecho de um discurso seu, que está elaborando no momento

em que·desenvolve uma atividade particular de escrito" (op. cít., p. 37}. Portanto,

juntamente com os condicionantes estritamente lingüísticos, podemos uma vez

mais situar, na relação sujeito/linguagem {no caso, a representação de um

momento de expressivldade), a circulação do escrevente pela imagem que faz

da gênese da escrita.

Vale a pena destacar, ainda, um último tipo de substituição do léxico pela

prosódia. É o que se dá pela supressão. na escrita, do marcador de foco:

''Apartir dessa falta de instrução cdam-se as 'Gangs' que por suo vez
determinam as normas no base da violência Mas esta por sua vez não
foz parte l/J do jovem, é encontrado (I na infância pelos menores
abandonados que a utilizam com (slc) formo de sobrevivência." (Texto
04-199}.

Nesse caso, o escrevente deixa de incluir dois marcadores de foco, cuja

ausência novamente parece dever-se à projeção da prosódia que o escrevente

?1 Adotamos, nesta passagem, a noção de clítico proposto por Silvo: "lodos os monossJ1obos
átonos que dependem. quanto à ocentuoç6o, dos palavras que os seguem ou os precedem"
(op. cít., p. 36).

219
supõe plasmada em seu texto. A seqOência com os marcadores poderio ser:

"não faz parte só do jovem, é encontrada também na infância", em que, na

primeira parte. se nega o posto ("não ... só do jovem") para que seu pressuposto

("inclusive das crianças, adultos, idosos etc.") seja, na segunda parte, recuperado

e reafirmado o partir da especificação de um novo posto ("também na infância",

isto é. nela, mas não exclusivamente). Em que pese a omissão dos marcadores. é

certo que tenho sido esse o sentido tentado pelo escrevente. Desse modo,

podemos dizer que a 1exica1ização- se9undo Tannen, típica da escrita - está, no

caso analisado, substituída pela prosódio. Essa substituição é, pois, uma marca do

modo pelo qual o escrevente representa a escrita em sua suposta gênese, a

saber, como sendo uma projeção gráfica do gesto articulatório de sua emissão

mentalmente ensaiada.

Abordados como efeito da imagem que o escrevente faz da gênese da

(sua) escrita, são essas as pistas que nos pareceram mais relevantes na

composição da regularidade lingüístico da falta de lexicalização na escrita em

sua relação com a prosódia. Passaremos o abordar a relação entre prosódia e

pontuação.

{2) A PROSÓDIA E A PONTUAÇÃO

Ainda no que se refere ao modo como o escrevente projeta graficamente

a prosódia, observaremos, neste ponto, alguns casos que compõem a

regularidade da relação entre prosódia e pontuação nos textos analisados.

Como se trata de um campo bastante conhecido e explorado, os exemplos

serão limitados ao mínimo.

220
Serão abordados, em primeiro lugar, casos em que (A} a prosódia é

marcada pelo uso da vírgula fora da posição convencionalmente prevista; em

seguida, serão tratados exemplos em que (B) a prosódia é marcada pela falta ou

confusão no emprego de sinais de pontuação.

(A) A PROSÓDIA E O EMPREGO NÃO CONVENCIONAL DA VÍRGULA

Os três trechos abaixo foram extraídos do mesmo texto e servem bem para

observar a tentativa de registro gráfico da prosódia:

"A violência é uma formo negativa de expressar frustoções, traumas,


revoltos contra a sociedade e o sistema capitalista, ou seja, uma
maneira de canaliZar , todos os nossos impulsos negativos. " (... )
"Eles produzem um tipo de som barulhento e rebelde que levam as
pessoas a se manifestarem ~ das mais van'adas e violentos formos
possiveis. "
"L o mais interessante de tudo isso é que... " (Texto 04-200)

No primeiro trecho, temos. assinalado por vírgula, a quebra sintática entre

o verbo e seu complemento. Essa quebra mostra claramente que o escrevente

não está jogando, nesse momento, apenas com propriedades da escrita. Uma

vez mais, podemos detectar a projeção de uma "unidade de comunicaç6o ·:

Mostremos o que permite classificá-la como tal.

Inicialmente, é importante observar que, nessa seqüência, a

argumentação contra a violência tem contornos que podem ser vistos como

muito próximos da imagem que o escrevente faz do interlocutor. Note-se. em

primeiro lugar, a classificação da violência como "uma fonna negativa de

expressar... " ; em seguido, uma enumeração em que o escrevente busca

contemplar o que antecipa como a expectativa do interlocutor com um amplo

leque de problemas que a violência expressaria: "frustações, traumas, revoltas

221
contra a sociedade e o sistema capitalista"; na seqüência, conclui de tudo isso

que a violência seria "uma maneira de canalizar". Podemos dizer, portanto, que,

até este momento, temos uma escrita muito próxima daquela em que de Lemos

( 1988) detecta uma "anulação do estrutura dfa!ógica" pela "ínsfancioçõo de um

bizarro monólogo em que a voz que fala é a do Oufro"(op. cit., p. 75).

Curiosamente, ao ver configurada a reprodução de tal monólogo, o

escrevente registra graficamente (peJa vírgula) o gesto articu!atório (a pausa)

que o identifica para, finalmente, voltar, generalizando, ao mesmo movimento

de assimilação à voz do interlocutor: "todos os nossos impulsos negafivos".

Eis, portanto, demarcada a "unidade de comunicação" que localiza a

posição do escrevente em sua representação da gênese da escrita. É importante

observar que o fato de marcá-la - por meio da vírgula em posição não

convenc'ional - como presa ao gesto articulatório da pausa não corresponde a

marcá-la como "dia!ógi'ca" no sentido dado por de Lemos acima. No entanto,

podemos detectar pelo registro gráfico desse gesto - longe da noção de

criatividade subjetiva - uma marca expressiva que: embora nem um pouco

valorizada do ponto de vista estilístico, evidencia um dado de ineditismo da

individuação histórica do escrevente.

No que se refere ao segundo trecho, o escrevente volta a reproduzir o

mesmo tipo de monólogo, mas desta feita utilizando por meio de colagem a

coletãnea dada na prova. Em primeiro lugar, "tipo de som" e "rebelde" são

produto de colagem da coletânea; além desse procedimento que o coloca

como simples reprodutor, o escrevente marca sua preocupação com a

concordância ao fazer concordar o plural de "pessoas" com a forma verbal

"levam", que tem, porém, como sujeito "um tipo de som". Todos esses elementos

222
demonstram que, novamente, o escrevente está buscando superar-se para dar

voz ao seu interlocutor. É nesse ponto que interfere, uma vez mais, o registro

gráfico (a vírgula} de um gesto articulatório (a pausa): "um tipo de som

barulhento e rebelde que levam as pessoas a se manifestarem , das mais

variadas e violentas. formas possíveis". Como vemos, a vírgula separa o verbo

de seu complemento circunstancializador. As conclusões são as mesmas

tiradas para o exemplo anterior.

O terceiro trecho acima citado localiza-se num outro momento do

desenvolvimento do esquema textual a saber, quando da delimitação de um

tópico específico ao tema desenvolvido. Essa delimitação consiste, nesse texto,

em tematizar o que ocorre atualmen1e com os jovens, fazendo um paralelo com

o panorama geral, dado no início do texto, que consiste, nesse caso, em definir e

localizar a existência da violência na história do homem.

Esse fragmento inicia o parágrafo final dessa delimitação, momento do

esquema textual em que o escrevente geralmente foz uma ressalva marcando o

seu posicionamento a respeito do tópico abordado. Observemos o mesmo

exemplo pela ampliação da seqüência citada:

"E, o mais interessante de tudo isso é que eles alegam que isso é bom,
e que protestam contra socíedade hipócdta e medíocre que anula o
ser humano transformando-o numa mercadoria" (Texto 04-200)

Como se vê, nesse momento em que sobressai a individuação do sujeito

ou em que, parafraseando Geraldiíl2, os palavras do vestibulando parecem estar

vindo à tona, ocorre também a projeção de um gesto articulatórío (uma pausa)

no gesto gráfico da pontuação.

n Conferir. aqui mesmo, p. 125, nota 58.

223
Todos esses exemplos evidenciam a presença da prosódia na pontuação

considerada excessiva. Como pudemos observar. os casos comentados

{indevidamente classificados como "erros") podem ser melhor interpretados

como boas pistas da expressividade do escrevente, pistas que, na qualidade de

pontos de individuação do sujeito, estão sendo tratadas como regu/oddades na

relação entre prosódia e pontuação {não-convencional) quando o escrevente

circula pe!o imaginário sobre a escrita em sua suposta gênese.

(B) A PROSÓDIA E A FALTA OU COCIFUSÃO NO EMPREGO DA PONTUAÇÃO

Os casos de falta e de confusão no emprego de sinais de pontuação

serão tratados conjuntamente, uma vez que a ocorrência de um está

intimamente ligada à ocorrência do outro. Não buscamos, no entanto. a

abordagem do problema da pontuação, mas o da sua relação com a prosódia.

Observemos o exemplo abaixo:

"Sobe aqueles lugares , grandes [] 93 onde pessoas famosas


vão cantar ... " {Texto OJ -044)

Cabe, antes de mais nada, um esclarecimento. Esse texto caracteriza-se

pelo fato de não se adequar ao tipo de texto solicitado. Construído como uma

narração, nele são freqüentes as referências ao narrador em primeira pessoa

("Sou pequeneninha perto de tudo que acontece ... ") e a um possível leitor

{constate-se a interlocução explícita exemplificado no exemplo acima).

No caso acima, houve, como vemos, ao mesmo tempo falta e excesso de

pontuação. Na tentativa de reproduzir o grafismo típico do contorno rítmico-

entonacional da atividade de contar estórias, o escrevente inicia essa seqüência

93 Convencionamos utilizar o símbolo U para indicar a omissão de sinal de pontuação.

224
procurando reproduzir passo a passo essa marcação. No momento seguinte,

porém, provavelmente por reproduzir também a prosódia ensaiada

mentalmente, o escrevente deixa de empregar a pontuação

convencionalmente prevista. Desse exemplo, cabe destacar que, na escrita, não

só a presença, mas também a ausência da pontuação pode marcar blocos

prosódicos que reproduzem o percurso representado como genético pelo

escrevente.

Um caso curioso de confusão de pontuação ocorre com os enunciados

interrogativos. Os exemplos abaixo são, respectivamente, o título e um trecho do

corpo da redação:

"Em vez de violência porque não à pazl!

"Porque fazem guerra, se violentam, entram nesse mundo das


drogas, se é bom viver sem nada disso . (Texto 03-161 )

Os dois exemplos pretendem ser enunciados interrogativos. O recurso às

perguntas é, nesse texto, o que orienta toda a argumentação, estando assinalado

duas vezes, uma delas como encerramento do texto. Estamos diante de um caso

de inconsistência quanto ao emprego do ponto de interrogação. Assim, ao lado

de usos convencionalmente previstos, há outros não-previstos, como os

apresentados acima.

No primeiro trecho sob análise, temos a substituição do ponto de

interrogação pelo ponto de exclamação. Parece haver, nesse caso, uma

tentativa de marcar a pergunta, mas, talvez por se tratar de um título, o

escrevente prefere o ponto reduplicado de exclamação.

No segundo trecho, a substituição é pelo ponto final. Parece que o

pronome interrogativo colocado logo no início do enunciado termina por ficar

225
esquecido depois da coordenação de três sintagmas verbais seguida da

condicional que o encerra.

Vemos que, nesses dois momentos, o escrevente não registra graficamente

(pelo pontuação) o que lexicolmente está marcado. Essa é a reguloodade

quanto à relação entre prosódia e pontuação {ausente ou inadequada). No

primeiro caso, o escrevente efetivamente marca uma relação com o interlocutor

pelo uso do ponto de exclamação. Por ser o título, é possível que tenha

procurado, nesse recurso, uma maior ênfase para se representar como mais

engajado quanto ao tema. No segundo caso, provavelmente, o diálogo

ensaiado mentalmente chega ao texto .iá como um desenrolar argumentativo e

a representação que o escrevente faz desse diálogo parece, pois, deslizar de um

confronto direto paro uma indagação indireta à distância. De qualquer modo,

repete-se, nesses dois casos, a projeção de um gesto arliculatório (tom

exclamativo ou interrogativo) no espaço gráfico do texto (ainda que

confundindo os sinais de pontuação).

* * *

Feita essa breve investigação sobre os dois tipos de regu/addadesquanto à

relação entre a prosódia e a pontuação, analisaremos, a segi.Jir, a relação entre

a prosódia e a ortografia ainda do ponto de vista da imagem que o escrevente

faz da gênese da (sua) escrita.

(3) A PROSÓDIA E A ORTOGRAFIA

Ainda no que se refere ao modo como o escrevente projeta graficamente

a prosódia, abordaremos, neste ponto, os casos que nos pareceram mais

relevantes quanto à relação entre prosódia e ortografia. Uma vez que buscamos

226
analisar a imagem que o escrevente faz da gênese da {sua) escrita, a ênfase

recairá sobre aquele tipo de escrita que leva a orientação fonética da escrita

alfabética a uma aplicação estritamente {não fonológica, nem etimológíca)

orientada pela fonética. A hipo-segmentação, que é um caso particular desse

tipo de esc~ta e que está preferencialmente ligada ao aspecto da

representação de sua suposta gênese, será também objeto de análise nesta

mesma etapa.

A escrita foneticamente orientada pode atuar, por exemplo, nos limites da

palavra. como é o caso de:

"alícerci" {Texto 01-010); "dísperto" (Texto 03-134); "foucofruas" e


"písícológíco" {Texto O1-003)

A regulondode lingüística, nesses exemplos e nos outros que vão se seguir.

consiste em orientar foneticamente a escrita das palavras. Se essa é uma regra

que vale para os exemplos aqui citados e para muitos outros, pode não ser,

porém, aplicada consistentemente por um mesmo escrevente, uma vez que ele

pode, em certos casos, flutuar. num mesmo texto. entre a escrita convencional e

a escrita não~convendonal.

A correta percepção que o escrevente tem da realização fonética dessas

palavras é o que determina, pois, a opção por essa escrita não-convencional.

Portanto, também no que se refere a unidades menores do comunicação, como

as palavras, podemos observar indícios da projeção do gesto orticulatório {da

produção dos segmentos) no registro gráfico. Logo se vê que a opção do analísta

por um ponto de vista ortográfico (convencional, portanto) ou por um ponto de

vista da representação que o escrevente faz da gênese da {sua) escrita vai

determinar diferentes julgamentos a respeito da relação que o escrevente

227
mantém com a linguagem. No pnme1ro caso, observado o produto de sua

escrita, provavelmente o escrevente será classificado como inapto ou, pelo

menos, como apenas parcialmente capacitado em termos do instituído para a

ortografia. No segundo caso, observado o processo em que se situa essa escrita,

cada escrevente pode ser visto no diálogo que estabelece com o que julga ser o

modo de constituição da escrita. A orientação fonética que o escrevente dá a

sua escrita. em certos momentos, nada mais seria, portanto, do que um modo de

operar uma tendência como um principio, que, aplicado indistintamente aos

vários casos, resulta na ortografia não-convencional exemplificado.

Um outro caso de escrita foneticamente orientada é o caso de:

"impredona" (Texto 00-D 15); "anolizar" {Texto 03-180)

em que o escrevente joga com o conhecimento que tem a respeito da relação

entre som e letra. Em "impreciona", o uso da letra <c> em lugar de <ss> deve-se

à percepção do escrevente de que o fonema /s/ pode ser representado

graficamente por vários letras ou combinações de letras. fato semelhante ocorre

com o fonema /z/, representado pela letra <z> e não pela letra <s>, resultando a

ortografia não-convencional "analizar". Nos dois casos, é a correspondência

entre som e letra percebida pelo escrevente e não a falta de percepção dessa

correspondência que leva o escrevente o empregar a ortografia não-

convencionaL Chega-se, desse modo, a uma projeção estrita do critério de

paralelismo entre som e letra. O escrevente, provavelmente na dúvida quanto a

que tipo de letra utilizar, joga com o fato genérico de que som e letra se

correspondem, determinando uma convenção local em seus textos, a saber. os

letras <c> e <z> como representantes, respectivamente, dos fonemas /s/ e /z/.

228
Nem seria necessário acrescentar que a assunção dessa representação termo a

termo tem a ver com a expectativa do escrevente de que a prosódia seja

integralmente linearizado no escrito, expectativa ligada a sua circulação

dialógica com o que imagina ser a gênese da escrita.

Um último caso de orientação fonética da escrita refere-se à hipo-

segmentação. No caso dos vestibulandos, fica difícil provar, ao contrário do que

faz Silva94 para a escrita infantiL que a hipo-segmentação ocorre em momentos

de maior expressividade da escrita. Observemos os casos de hípo-segmentação

abaixo:

"Os jovens por não terem formação intelectual por


desinterece de ambos os /andas (sic) tanto de si própdo, quanto por
parte de seus governantes no caso do Brast?.-
"Nõo conseguem expressar sua revolta de forma criativa,
convincente e global.
"Apartir dessa falta de instrução criam-se as 'Gongs' que por
suo vez determinam as normas na base da violência. "{Texto 04-199)

"... as drogas, sejam elas de qualquer tipo, são alucinogenos, uns mais
fortes e outros moís fracos, mas todos deixam as pessoas fora de sl e
essa pessoa drogada não sobe oque está fazendo, podendo ficar
quieta em um canto, num lugar, ou esta pessoa pode vir o agredir
outros pessoos... {Texto 01-009)

''Os países do 3e1 mundo são os maiores exemplos do inanição


de governantes que estimulam o analfabetismo, afim de impedir que o
povo usufrua de seus direitos." [Texto 03-147)

A orientação fonética é, nesses três casos, uma reprodução gráfica de

grupos compostos pela junção de c!íticos9s. que dependem, quanto à

acentuação, das palavras que os seguem. De um ponto de vista lingüístico, é

esse critério fonético que determina a hipo-segmentação e, por meio dela, a

lndiciação de um momento de circulação do escrevente pelo que imagina ser a

9• Conferir, aqui mesmo, p. 60~1 e 84-5.


95 Ainda no sentido de Silvo (cf., aqui mesmo, p. 219. nofa 91).

229
gênese da escrita. No que se refere à expressividade, poderíamos apenas supor

que tenha havido uma fossilização desses momentos de expressividade da

escrita infantil, os quais, sem uma oportuna atenção que fizesse o escrevente

caminhar no seu processo de aquisição da escrita, podem ter resultado _ numa

escrita adulta inconsistente em termos da convenção ortográfica.

Passamos, neste ponto, a abordar as marcas lexicais da representação da

gênese da escrita por parte do escrevenle.

(li) O LÉXICO E A REPRESENTAÇÃO DA GÊNESE DA ESCRITA

Antes de dar prosseguimento à análise, porém, é importante lembrar que

as marcas prosódicas e as marcas lexicais foram reunidas numa mesma parte da

análise em virtude da vinculação cruzada que buscamos neste trabalho. Ou seja,

em lugar de associar prosódia e enunciação oral, por um lado, e lexicalização e

enunciação escrita, por outro, buscamos constatar, dado o material escrito com

que estamos lidando96, a presença da prosódia na escrita.

No que se refere à relação entre léxico e escrita, buscaremos definir como

uma reguloddode lingüística o foto de o escrevente marcar sua expressividade

pelo léxico. Observemos o caso abaixo:

"Com o passar dos anos, o ser humano foi perdendo o amor ao


próximo e o coleguismo. Dessa maneiro, aprendeu a cultivar os
desigualdades sociais e, de cedo forma, o evitá-/os através do
violência." (Texto O1-Q 12)

96 Por não ser objeto deste trabalho, será deixado de lado a presença do processo de
lexicalização no enunciado oral. No entanto, o caso da reportagem radiofônica ao vivo
citado acima {cf. p. 26) parece ser um bom exemplo de que procedimentos tidos como mais
típicos da escrito {como a lexicalização} são também empregados no enunciado oral.
Pense-se. por exemplo, na necessidade de se estabelecerem os contornos da situação
concreto to chamado lide) sem o recurso dos gestos ou do câmera de TV. Conferir também
Vochek (1989 {1979). p. 511 e aqui mesmo, p.59-60.

230
Parece claro que o emprego da palavra "coleguismo" tem diretamente a

ver com o universo de realidade do escrevente. Note-se que os relações entre

seres humanos só poderiam ser abarcadas por um tipo de vínculo muito mais

genérico. O próprio escrevente exemplifico com "amor ao próximo", mensagem

cristã dirigida ao homem em ger~!. Com "coleguismo", porém, o escrevente

demarca um espaço expressivo que, na seqüência acima, falta antes e depois

de sua ocorrêncla. Nesse sentido, esse espaço expressivo é justamente o

heterogêneo que destoa da homogeneidade -do modelo escolar, criando uma

aparente fissura no texto.

O funcionamento dessa escolha lexical lembra o papel de marcas

gráficas. como o itálico97, freqüentemente utilizadas para assinalar as citações.

No caso de "coleguismo", não há nenhuma marca gráfica "superimposta": o

escrevente não usa aspas, nem letras maiúsculos, nem grifo. De qualquer modo,

a escolha lexica! denuncia uma retomada de relações sociais tipicamente

informais do escrevente, que, no entanto, lhe parecem as mais adequadas ao

estabelecimento de relações com seu interlocutor representado no texto. Essa

identificação expressiva, sem nenhum caráter gráfico marcado, está ligada à

caracterização de um momento espontâneo na abordagem do tema e

favorece - como Silva mostra para a escrita infantil espontânea - um modo de

abordar o tema que parece ser "muito próximo de seu mundo'98.

É interessante, no entanto, não perder de vista que o evento em que se

insere a produção desse texto prevê - na própria formulação da proposta de

redação -, temas que contribuam para o posicionamento do escrevente. Vistas

~7 Segundo Vachek [1989 (1979)], o itálico. ao assinalar o esfatufo de estrangeiro da palavra


ou frase impressa, constitui 'llhos"gráficos {op. cit.. p. 46).
va Conferir. aqui mesmo. p. 200.

231
sob esse ángu!o, expressfvidade e espontaneidade estão regradas por uma

disciplinarização do desenvolvimento temático. Não é, pois, a expressividade em

sí que configura a representação da gênese da escrita, mas a expressividade

dlsciplinarizada, ou seja, a intervenção pessoal tomada como ponto de

individuação do sujeito. Dada a relevância desse tipo de marca, ela se constitui,

como dissemos, numa reguloddode lingüística.

Um outro modo do escrevente se marcar pelo léxico é o seguinte:

"Aqueles ocupantes das cadeiras mais influentes do mundo é que


deveriam responder. Eles que pedem o retirada de tropas camufladas
com seus armamentos e a diminuição de seus m/sseis bélicos, é, os
'Scuds' e 'Pofriofs' da vida São eles que moi$ nos cutvcam com suas
vadnhas de condão. Seus filmes sujos de ódio são um veneno poro
nosso moral. "(Texto 01-022)

Podemos notar que todo esse trecho caracteriza~se pela presença de

recursos conversacionais de organização do discurso, em que a expressividade

tende, nas suas rea!!zações mais informais, a ser bastante marcada. Interessa,

porém, destacar o uso da expressão "da vida" e do verbo "cutucam". Desta

feita, como se pode constatar, a tentativa do escrevente é de situar toda sua

argumentação num alto grau de informalidade. Portanto, os itens !exicais

destacados não correspondem em nada à "ilha" detectada no exemplo

anterior. Pelo contrário, todo o seu trabalho é construir o texto a partir da projeção

de uma situação de informalidade que ele provavelmente julga mais apropriada

para convencer seu interlocutor. Por outro caminho, chegamos, portanto, ao fato

de que a escolha lexical pode estar ligada à expectativa do escrevente de

reconstituir integralmente a situação real de interação ou, em outras palavras,

pode estar ligada à representação que o escrevente faz da escrita em sua

suposta gênese.

232
O mesmo acontece no caso de escolhas de operadores cujo uso é mais

comum no conversação:

"Com esses sentimentos presos em nós procuramos maneiras para


extravasá-los. Vamos pegar como exemplo disso o 'heavy metal'... "
fTexto03-174).

É sabido que o uso de "pegar", nesse contexto, marca não só o

envolvimento do escrevente com o monitoramento da argumentação, mas

também seu envolvimento com o controle do interlocutor e sua proximidade

com o que representa como a situação concreta de interação. A projeção da

situação de interação fica, pois, registrada graficamente por meio dessa escolha

!exica!.

Um último caso de assino!ação da gênese da escrita pelo léxico ocorre

em função de uma interessante relação sinonímica. Obse!Vemos o seguinte

exemplo:

''Atualmente a sociedade vê com grande repúdio os famosas


tnbos utbanas que procuram transmitir uma mensagem que não aceita
o preconceito, a lei mais ferrenha que ela própda cdou para que
certas idéias não sejam escutadas: 'colocadas em prática'. Enquanto
essa bd'ga não chega ao final, as pessoas procuram se libertar através
da violência corporal {socos e chutes} cuja fonna de expressão está
sendo representada pelos conjuntos de música e pelos esportes
radicais. "fTexto. 03-1 30).

Parece bastante evidente que a necessidade de explicitação do

significado do adjetivo "corporal" divide o fragmento em destaque em dois

momentos quanto à escolha !exica!. Num primeiro momento, sua escolha recai

no domínio do que representa como sendo o repertório de seu interlocutor; em

seguida, a explicação, que aparentemente seria desnecessária dada a maior

mobilidade que parece atribuir ao interlocutor, vem denunciar uma dúvida

233
quanto à adequação da primeiro escolha. Uma hipótese possível para explicar

essa dúvida é que o escrevente tenha sentido alguma ambigüidade na

expressão "violência corporal". Dada a orientação argumentativa dominante do

texto, isto é, dado que o escrevente assimila o ponto de vista das tribos urbanas

contra o que seria o ponto de vista da sociedade, evidencia-se a necessidade

daquela explicitação. A "violência corporal" das tais tribos não passaria, desse

modo, de "chutes e socos" -domínio de agressividade aparentemente admitido

como aceitável pelo escrevente. Essa violência não chega, portanto, à agressão

por estupro, por exemplo, uma vez que não se trataria desse tipo de "violência

corporal" a que seria praticada pelas ditas tribos urbanas. Esse segundo domínio

do "violência corporal" - fora do aceitável pelo escrevente - é que parece ter

merecido a exclusão. Esse sentido, porém, parece ser recuperável na relação

que essa expressão mantém com o parêntese que pretende esclarecer o

significado desejado.

O fragmento em destaque revela, portanto, uma flutuação quanto à

relação que o escrevente propõe com seu interlocutor. Localizando-se, num

primeiro momento, no domínio do repertório que atribui ao interlocutor, retoma,

em seguida, para o que representa como seu domínio próprio. Esse retorno, dada

a imposição da argumentação escolhida, termina por mostrar a posição pessoa!

do escrevente em relação à violência, isto é, aquilo que ele admite como dentro

dos limites aceitáveis e aquilo que exclui desses limites. Portanto, a explicação

feita pelo escrevente - e que muito provavelmente seria objeto de censuro por

parte de um professor descuidado- é justamente um daqueles pontos em que o

escrevente se posiciono com relação ao tema. Ser contra ou a favor das tribos

234
urbanas é o que o esquema textual já prevê como o confronto dicotômico

caracterizado como um lado e o outro lado.

O posicionamento que aparece no fragmento analisado coloca

efetivamente o escrevente em relação com o próprio tema. Esse é um dos

importantes aspectos que a percepção de uma representação da gênese da

escrita por parte do escrevente permite evidenciar. Raramente a reprodução do

modelo esco!ar é tão radical a ponto de não se poder vislumbrar um traço de

ineditismo nas formas de individuação do escrevente. Nesse particular, a solução

parece, mais provavelmente, a de se buscar uma mudança na maneira de olhar

para os textos.

Um exemplo muito semélhante ocorre no seguinte trecho:

"Num país em que a raça branco é predominante, indivíduos


negros, apesar de lívres, muitos vezes não conseguem expor-se diante
da sociedade de brancos, quer por razões emocionais, ou
discnininativas. Na sociedade, todos os não brancos, pdncípalmente os
menos favoreetdos financeiramente são vistos apenas como trabalho,
geradores de dinheiro. "{Texto 03-133)

Podemos observar. nesse coso, a relação sinonímica entre "indivíduos

negros" e "não brancos". A escolha da negação para compor o sentido

desejado em "não branco" responde, como se sabe, a um interlocutor que

afirma o branco como referência. como ponto de partida. A escolha poderia ter

sido melhor sucedida se a expressão "não brancos" incluísse ~ como parece

pretender o escrevente- também os "menos favorecidos" não negros. A escolha

lexicol e o uso da negação como prefixo99 denotam que, embora a tentativa

..,.., É Importante notar que, embora não empregue o hífen, o uso de "não-" como prefixo foi
adequadamente requisitado pelo escrevente, dado que, segundo Alves (1992}, o recurso da
prefixação com "não-" "nega o sentido expresso pela base de maneira imparcial e neutra"
(op. cit.. p. 106). O que se vê no exemplo, porém, é que o funcionamento discursivo revela
mais do que um recurso adequado de prefixação. Nesse uso, explicito-se a tentativa de

235
seja criticar uma posição da sociedade com relação aos negros e aos

desfavorecidos não negros, o escrevente joga com a categorização criticada.

Esse é, portanto, mais um momento em que o escrevente se marca pelo escolha

!exicaL A formulação traz um claro diálogo~ pela marca de negação- com um

interlocutor de uma certa cor (a branca). Desta feita, é seu envolvimento com o

assunto que permite mostrar que a discriminação feita pela sociedade é,

inconscientemente, partilhada pelo próprio escrevente. Esse é um aspecto da

representação da gênese da escrita um tonto mais sutil, pois, em seu

envolvimento com o assunto, o escrevente está articulando um sistema nacional

a partir de recursos meta lingüísticos. Segundo Reboul (1980), quando se trata de

metalinguagem, não se leva mais em conta a possibilidade ou não de dizer algo,

mas a possibilidade de dizê-lo de um certo modo. É, pois, buscando esse modo

tido como adequado que o escrevente escolhe "não brancos". Portanto, seu

envolvimento não fica marcado apenas com o assunto, mas também com o

interlocutor. Ao pretender alçar-se para o modo "adequado" de dizer, que

provavelmente localiza em seu interlocut'?r, o escrevente termina por revelar o

imagem que ele faz da gênese da (sua) escrita, neste caso evidenciada pelo

cruzamento de representações {as suas e as atribuídas ao interlocutor) na

caracterização de uma unidade temática.

Esse mesmo a Içamento pode ser observado no último dos exemplos sobre

escolha lexical:

"A sociedade apresenta~se como um quadro de violências de todos


os aspectos C.. ). A mais simples de agressão mútuo é a tecnológiCa
onde a televisão é o príncipal veneno a que todos ingerem. Por ser um
meio comunicativo visual atrai pessoas de todas as idades e forma

alçomento, por parte do escrevente, a esse modo neutro de expressão que ele localizo em
seu interlocutor.

236
uma ideologia muito fixa nas pessoas. Isto gera a não opimãa para
críticas e uma vidaacqmododa. {Texto 01-015)

A busca de um item lexical que fosse adequado ao contexto leva o

escrevente à circun!ocução acima. Buscando, talvez, uma palavra como

"alienação" e atribuindo a ela um conteúdo indispensável ao contexto, o

escrevente busca, no eixo da substituição por contigüidade, a solução da

questão metalingüística que o assunto lhe coloca. Dá-se, pois, um possível

deslizamento metonímico de "alienação" para "não opinião" e para "não

opinião para críticas", Ainda que a palavra desejada não fosse alienação,

parece patente nessa substituição por contigüidade a circulação do escrevente

pelo imaginário sobre o gênese da escrita. Na verdade, essé exemplo parece

evidenciar que o domfnio passivo do léxico está sendo deslocado por um

processo de constituição de um item substitutivo.

Portanto, nessa ocasião, o escrevente se mostra em sua relação com a

linguagem no que se refere ao processo de construção lexical. Na mudança de

um domínio passivo para um domínio ativo do léxico, parece estar-se

apresentando um deslizamento metonímico como o modo de constituir um item

lexical.

É importante lembrar- ainda a respeito d-esse exemplo- que o processo de

construção lexica! se dá por meio de uma relação dialógica e que é desse modo

que estamos entendendo a oposição entre domínio ativo e domínio passivo de

um item lexical. Numa associação com o que Jakobson {1975) propõe para os

afásicos com deficiência de seleção, podemos pensar que a escrita do

vestibulando, considerado o evento enunciativo em que se dá, apresenta um

alto grau de dependência do contexto, de ta! modo que "quanto mais seus

237
[Jakobson se refere ao afásico] enunciados dependam do contexto, melhor se

haverá ele em suo tarefa verbal" (op. cit., p. 42). Esse paralelismo entre a

dependência do contexto na escrita e a deficiência de seleção dos afásicos

nada tem a ver com qualquer tipo de avaliação quanto à deficiência do

escrevente. Interessa, porém, destacar o caráter de réplica que esse tipo de

construção lexical reparte com a deficiência de seleção. Dada o situação

essencialmente responsiva em que se situa o escrevente, é compreensível que, a

exemplo dos deficientes de seleção, ele sinta dificuldade, em certos momentos,

em "emitir uma frase que não respondo ou a uma réplica do interlocutor ou a

uma situação efetivamente presente" (idem, ib.).

Pelo que acabamos de expor, podemos concluir que várias são as formos

pelas quais o léxico pode mostrar a imagem que o escrevente faz da gênese da

(sua) escrita . Esse fato vem dar uma outra dimensão à idéia de lexicalização

como uma característica do texto escrito.

Mais do que apenas em relação ao texto escrito, a lexlcalização é

também um lugar de observação da relação entre o sujeito e a linguagem.

Segundo Pêcheux & Fuchs (1990), ao tratarem das determinações sucessivas

pelas quais o enunciado se constituti pouco a pouco, "o léxico não pode ser

considerado como 'estoque de unidades lexlcals', simples lista de morfemos sem

conexão com a sintaxe, mas {... } como um conjunto estruturado de elementos

arfículados sobre a sintaxe (op. cit., p. 176). No que se refere especificamente à

articulação léxico/sintaxe nos textoS analisados, a relação sujeito/linguagem fico

mais evidente quando o escrevente rompe uma seqüência em que tipicamente

vinha assimilando a voz do interlocutor ou do senso comum para marcar-se pela

escolha lexica!. Revela~se, assim. uma interessante defasagem entre duas vozes,

238
por me·lo da qual o escrevente faz irromper no discurso que, de fato, é do outro

um registro que o assinala como s'eu, ainda que esse procedimento não passe de

uma apropriação, que, embora de direito, é validada apenas por uma espécie

de direito costumeiro (isto é, por uma forma rotineira de se instituir a autoria como

lugar da responsabilidade jurídica). Quanto a essa marca ser ou não consciente

ou propositaL a questão não se coloca, uma vez que a relação que o sujeito

mantém com a linguagem sempre está sujeita a representações não

inteiramente conscientes, mesmo quando se trata da formulação !ingüísticaloo

dada ao enunciado.

• • •
Como foi adiantado no início deste tópico, a prosódia só· aparece na

escrita através da articulação com outros planos. Num primeiro momento, as

marcas dessas articulações foram buscados quando a escrita se ressentia da falta

de lexicallzaçõo. Em seguido, elas foram abordadas na indiclaçõo feita pela

pontuação, pela ortografia e, finalmente, pela própria escolha !exical.

As regu/andodes obtidas a partir da relação entre prosódia e falta de

lexicalização na escrita; prosódia e pontuação e prosódia e ortografia podem ser

sintetizadas na projeção da prosódia do falado no escrito.

1oo Ainda ao tratar das determinações sucessivas pelas quais o enuncíado se constituiu,
Pêcheux & Fuchs (1990) - cujo texto original foi publicado em 1975 - propõem a distinção
entre o que chamam "esquecimento n" I" e "esquecimento n" 2". Para os autores. além do
esquecimento n" /, caracterizado como o esquecimento ideológico inacessível ao sujeito e.
portanto, inconsciente: os deferminações relativos à formulação lingüística estão também
presentes no enunciado por intermédio do esquecimento no 2 A respeito desfe último, em
reformu!ação posterior- originalmente publicada em 1977 -, Pêcheux. ao reafirmar que ele
se dá no nível pré-consciente, caracteriza-o como "o retomada de uma representação
verbal (conscienfej [uma "palavra': uma "expressão'; um "enunciado'] pelo processo
pn'rnádo (inconscienfej, chegando à formação de uma novo representação, que aparece
conscientemente ligada à pn'rneira, embora suo articulação real com ela seja inconsciente"
(cf. Pêcheux, 1988, p. 175). Segundo o que se defende aqui. esse vínculo entre as duas
representações se refere à defasagem introduzido entre os vozes que participam de um
texto.

239
Merece, pois, destaque a tendência, freqüentemente reafirmada pelo

escrevente, em representar a gênese do escrita como um percurso que supõe o

passagem direta da prosódia do falado (tomada como modelo, ainda que nem

sempre graficamente assfnalável) para o que o escrevente toma como o registro

integral dessa prosódia no escrito {ainda que nem sempre integralmente

recuperável). Desta feita. este fenômeno se repete tanto nos momentos em que

fica evidente a falta de lexica!ização na escrita quanto nos momentos em que -

em virtude da pontuação que o escrevente utiliza ou deixa de utilizar - há

projeção de "unidades de comunicação" na qualidade de unidades da escrita.

No que se refere especificamente à relação entre ortografia e prosódia, merece

destaque a escrita orientada foneticamente. da qual a hipo-segmentação é um

caso particular.

Com relação ao pape! do léxico no imagem que o escrevente faz da

gênese da (sua) escrita. adiantamos que é muito forte a tentativa de reprodução

do modelo escolar e que, no caso desse vestibular, há uma tendência

acentuada, por parte dos vestibulandos, de reprodução do léxico presente nos

textos da coletânea. No entanto, a constatação mais importante a respeito da

reguladdade lingüística quanto à relação léxico/representação da gênese da

escrita tem justamente a ver com a recusa de uma reprodução estrita. Mesmo

considerando a tendência de uso do léxico da coletânea, podemos detectar um

traço de ineditismo nas formas de individuação do escrevente. É nesse sentido

que sugerimos a possibilidade {talvez a necessidade] de o analista, e mesmo o

educador, lançar um novo olhar para o texto, de tal modo que se possam

reavaliar as ocorrências do que normalmente se descreve apenas como uma

inconsistência de registro ou de estilo.

240
No item seguinte, a questão da imagem que o escrevente faz da gênese

da (sua) escrita será vista a partir das marcas de organização textual.

Marcas organizacionais do texto referentes à representação do


escrevente sobre a gênese da esaita

Em primeiro lugar, por organização do texto, estamos entend~ndo a

configuração forma! do texto dos vestibulandos considerada a partir de seu

processo de constituição. Embora não tenhamos a preocupação de tratar

particu!arizodamente os chamados fatores que dão ao texto a propriedade da

textua!idade, tais como os fatores formais (como a coesão), semânticos (como a

coerência) e pragmáticos (como, por exemplo, a intendonalidade, a

aceitabilidode; a informotívidade, a situacionalidade), todos eles estão

contemplados {respectivamente, na relação do texto com o próprio escrevente,

com o interlocutor, com o assunto e com os faiores pragmáticos da situação de

enunciação) no que estamos buscando caracterizar como a representação que

o escrevente faz da (sua) escrita.

No caso específico da representação da gênese da escrito. os chamados

fatores pragmáticos são particularmente importantes, mas pretendemos que,

também eles. sejam vistos segundo a representação que o escrevente faz das

condições de produção de seu discurso. Contribui, para tonto, o fato de

contarmos com uma perfeita drcumcrlção do evento vestibular a partir da qual

podemos observar o cruzamento de expectativas em que o escrevente se situa

em sua prática textuaL A tentativa, porém, não é a de expor cada um dos

detalhes desse evento em sua relação com o texto do vestibulando. Pelo

contrário. o caminho que seguimos parte da busca, nos textos, dos detalhes

241
salientes da representação, em termos lingüísticos, que o escrevente faz desse

evento, tomado como "cn;zomento de itineránOs possíveis" {cf. p. 7, nota 2).

Na exposição que se segue, enfatizaremos a presença de fatores de

fextualidade na construção do texto ligados à situação concreta de enunciação

e reunidos no único item desta parte, a saber, a regu/oddade lingüística que inclui

o uso de articuladores indiciativos: da participação direta do interlocutor, do

monitoramento explícito do discurso ou do uso de expressões formulaicas.

Na seqüência, apresentamos o quadro indicativo da freqüência dessa

reguloddade da dimensão da organização textual.

QUADRO 4: Porcentagem de ocorrência segundo regularidades lingüísticas da


DIMENSÃO DA ORGANIZAÇÃO TEXTUAL em relação ao total de
ocorrências das regu!oddades das outras dimensões no conjunto
dos textos

{A) ART!CULADORES QUE INDICAM A PARTICIPAÇÃO DIRETA DO INTERLOCUTOR


MONITORAMENTO EXPLICITO DO DISCURSO
I

{l) O USO DE ARTICULADORES QUE INDICAM A PARTICIPAÇÃO DIRETA DO


INTERLOCUTOR, O MONITORAMENTO EXPLÍCITO DO DISCURSO OU O USO DE
EXPRESSÕES FORMULAICAS

Um primeiro exemplo de articulador textual que indica a particípação

direta do interlocutor ocorre em seqüências como a seguinte:

" ... mas poro que tudo isso se acabe, a única solução mais palpável
t
seda usar de vio/enda poro acabar com ela mesma. aí que começa
uma verdadeiro tempestades de dúvidas, preconceitos, e
pdncípo/mente de uma busca que os vezes chego-se em um
determinado ponto onde nos obn[;a praticamente a voltar paro a
estoca zero, é aí também que todos se perguntam, haverá um fim
para tudo isso? Existe solução?
"É aí também o ponto em {sic) podemos concluir- se para
conseguir o solução desejado há um.cominho muito longo e cheio de

242
obstáculos, dúvidas preconceitos, politicagem etc... e nos deixa um
lembrete um tanto que assustador." (Texto 03-180)

Parece bastante claro que o uso repetido de "aí" deve-se a uma tentativa

de aproveitamento do texto 1 da coletânea {cf. p. 205), parafraseado pelo

escrevente da seguinte forma: "a única solução mais palpável seria usar de

violência para acabar com ela mesma". É notório, pelos referências que o

escrevente faz, que o trabalho com essa contradição é bastante diffcH para ele.

Uma vez parafraseada, a contradição é localizada no tempo da argumentação

do escrevente: "é ai que começa uma verdadeira tempestades de dúvidas...".

Sem saída, volta à "estaca zero''. Retomo, então, a discussão a partir do ponto

zero para incluir seu auditório imaginado: "é aí também que todos se perguntam.

haverá um fim para tudo isso?" No fina! dessa seqüência, após a qual aparece

um pequeno parágrafo de encerramento do texto, o escrevente retoma a

dúvida já supostamente compartilhada com o interlocutor para, novamente,

partindo da própria dúvida, indu ir questões que provavelmente localiza como de

interesse do interlocutor: "ai também {... J podemos concluir ... há um caminho

muito longo e cheio de obstáculos e dúvidas preconceitos, politicagem etc ... ".

Esse uso de "aí" como articulador é reconhecidamente uma marca dos

gêneros narrativos mais informais, cujo traço de coloquialidade busca reproduzir,

mesmo quando utilizado em situação de uso mais formaL o andamento do

desenvolvimento temático na situação imediata de comunicação em que o

escrevente supõe a participação direta de seu interlocutor. O envolvimento

pressuposto entre os interlocutores parece, pois, ser o fator condicionante da

saliência que o uso do ariiculador tem para esse escrevente. A localização

espada! feita pelo uso de "aí" não é, na verdade, apenas uma localização

243
voltada para o espaço argumentativo. É também uma marca anafórica de um

lugar no texto, de tal modo que cada um desses lugares fica reservado para

ancorar a progressão temporal -graficamente indicada - do desejado percurso

de adesão do interlocutor. Lembramos, num parêntese, que um exemplo

semelhante a esse tipo de organização textual foi comentado no capítulo 2 (cf.

p. 137} a propósito do uso do demonstrativo "isso" como marca coesiva.

A referênda à situação imediata e à participação direta do interlocutor

está presente também no dêitico destacado abaixo:

''Nesse país, o violência em st: é a coisa mais normal tudo que


se faz, onde se vai a violência está presente.
''Este mundõo aí foro, está uma anarquia, todo mundo
pensando em guerra, violência, ... "(Texto 03-161)

Mais que o registro da enunciação presente no uso do demonstrativo

"este" ["Este mundõo"], que pode ser interpretado como anafórico, o uso de "aí"

evoca claramente o gesto indicativo de lugar próximo à situação de produção

do texto. É bom lembrar que não se está julgando o efeito estilístico resultante,

uma vez que a necessidade de envolver o leitor deve, sem dúvida, ter.levado.a

esse tipo de uso. No entanto, o baixo grau de formalidade proposto funciona

mais como tentativa de recriar "a" situação concreta do que como uma

tentativa de recriar "uma" situação concreta.

O forte vínculo emocional com o evento vestibular parece favorecer esse

tipo de remissão à situação concreta de enunciação:

"Eu estou aqui tentando fazer uma boa prova depois de


meses de estudo, mas estou com medo de que alguem roube o meu
carro que está sozinho lá foro. "(Texto 03-127}

244
Note-se, nesse caso, que a vinculação do tema ao momento de enunciação é

explícita e se realiza como uma tentativa de dramatização, como uma atuação

ao vivo, em que o interlocutor não é espectador, mas participante.

Há casos, ainda, em que a insistência na participação direta do

interlocutor produz o que uma leitura desatenta poderia julgar como uma

desarticulação formal e semântica do texto. Observe-se que a suposição de um

gesto, poderia resolver o problema de articulação do seguinte trecho:

"Porque fazem guerras, se violentam, entram nesse mundo dos


drogas, se é bom viver sem nada disso.
'~ violência acontece através de uma coisa só, a falto de
união entre cada um. "(Texto 03-161)

Se o -escrevente efetivamente quis representar um gesto em sua escrita não é a

questão importante. O importante é perceber como esse texto poderia resolver-

se a contento numa situação concreta de fala.

Ressaltemos que o texto não traz referência anterior a "um" e a "outro",

fato que dirige a leitura para alguma coisa como "união das pessoas entre si". A

expectativa de que um gesto como o acima descrito esteja plasmado em seu

texto evidencia, portanto, a imagem que o escrevente faz da gênese da {sua)

escrita.

Na seqüência abaixo, observamos o fom quase conversacional obtido em


função do monitoramento explícito utilizado para conduzJr o encadeamento
femátíco:

"É fácil esmwror um travesseiro, mas, na sociedade, quem será o tal


'travesseiro'? Nado mais elementar do que c dor um 'bode expiatónO'
em tal caso. Pega-se um punhado de jovens, juntamente com
qualquer ponto de inveja que tenhamos de seus potenciais e dizemo~
lhes que são 'maus elementos'. Pronto, eis a violência cdado." {Texto
0.01)

245
Como se sobe, os marcadores propriamente conversacionais, são, na oralidade,

prosodicamente assinalados. Contudo, os que aqui poderiam ser chamados seus

correspondentes quase conversaclonais vêm, por sua vez, submetidos ao

si!enciamento tônico-acústico próprio da escrita. Esse esvaziamento formaL sem

outro recurso lexical, sintático ou textual que reintegre, na escrita, o sentido

desejado, deixa necessariamente em aberto um espaço para que o leitor o

preencha. Esse espaço de interlocução resulta, porém, num efeito de

pressuposição de um ouvinte, mais do que na construção da figura de um leitor.

Esse efeito é também típico de um imaginário sobre o gênese da escrita, uma vez

que, por meio dele, o escrevente supõe projetar direta e integralmente uma

situação de fala numa situação de escrita.

Uma outra marca de organização textual em que o monitoramento

explicito revelo uma articulação de tipo quase conversadonal é a seguinte:

"Tnbo pode ser jsic) definir como um gn.;po de pessoas que executa
uma mesma função estão sob mesmas ordens. Por ser de mesma
ldeologla, os partidos polítícos, cada qual com as suas idéias, formam
uma tnbo.
"Agora o que gera a violência entre essas tnbos? O que levo
um político o agredir sua colega de trabalho? Um metalúrgico a
destruir seu local de serviço? A policia a bater em estudantes de direito
do largo São Francisco porque real/zavom a famosa 'Peruada'?"
{Texto 03-172) _

Para observar como esse uso tem a ver com a imagem que o escrevente

faz da gênese da {sua) escrita, é interessante observar como Risse {1993), em

estudo sobre ''um aspecto da articulação do discurso': vê seu funcionÇlmento no

português culto falado. Baseada na noção de "tempo de referência': proposta

por Schiffrin e parafraseada pela autora como a "relação dêifica entre o período

de tempo configurado por uma proposição lingüística e o tempo de suo

246
elocução ('speaking time'}" , Risse afirma que "o tempo de referêncía

estabelecido por 'agora' firma um parâmetro sifuacíonal que engata o

enunciado (proposição) com as circunstônc/as do enundação" {op. cit, p. 38,

destaque no origina!). Esse engate com as circunstâncias da enunciação, se já é

digno de nota na enunciação ora!, é ainda mais notável quando considerado na

enunciação escrita. Portanto, a se concluir com Risse que os usos de "agora",

"enquanto marcador de estruturação discursiva, não configuram uma perda tola!

de elos com a significação de seu homônimo adverbíal': mantendo, pelo

cOntrário, "a ressonância do dêixís no plano do discurso" e revelando que "muito

mais do que um advérbio vazio, é um instanclador pragmático da enunciação,

atuante na organização do fluxo de informação e no estabelecimento da

coesão textual" {op. dt., p. 56}, podemos dizer que seu uso na escrita traz as

marcas da situação concreta de enunciação. A projeção do falado {e da cena

de seu acontecimento} no escrito vo!ta, desta feita, a mostrar-.se como sendo o

modo pelo qual o escrevente representa a gênese da {sua) escrita nesse

momento.

Todos esses exemplos relativos à organização textual, ao lado dos já

analisados relativos à sintaxe, à prosódia e ao léxico, mostram o que Street,

baseado em Parry, afirma estar presente nos usos culturais do letramento: "o

desenvolvimento da escrita fomo lugar dentro de um sistema oral de pensamento

e isto pode continuar a dominar os usos de lefromento" {cf., aqui mesmo, p. 43).

Nos casos analisados, a relação entre o ora!/fo!ado e o letrado/escrito evidencia

que o escrevente faz uma representação da gênese da {sua) escrita como uma

transcrição fiel do oral/falado, incluindo as referências pragmáticas à situação

imediata de enunciação.

247
Um último caso relativo à organização textual é o uso de expressões

formulaicaslol que, já fossilizadas na falo popular informaL passam a aparecer na

escrita dos vestibulandos. Os doís primeiros exemplos referem-se a expressões fixas

utilizadas na condução do desenvolvimento temático na falo popular informal:

"Atualmente, época violenta em "que pensamos querer a Paz,


é duro aceitarmos o fofo de que talvez não exista aquele 'bom
selvagem' do Rousseou." (Texto 00-üOl)

"Nós, paro combater isso usamos violência,. e já ficou mais do


que provado pelo homem que violência gera violência, não adianta
por exemplo pegar um assaltante, prendê-/o, bater nele e depois soltá-
lo que ele não vai parar de roubar o que precisa ser feito é resolver o
problema desde o raiz, descobrir porque que é que ele está roubando
e dar uma educação descente a ele... "(Texto 01-()3 J)

Esses exemplos mostram que as expressões destacadas aparecem em

seqüências que procuram atender ao requisito - bastante ensinado nos cursos

preparatórios para o vestibular- da objetividade na dissertação. O próprio uso da

primeira pessoa do plural é um uso que identifica uma comunidade. Na primeira

seqüência, a expressão "é duro" vem - podemos dizer que com exclusividade -

marcar a irrupção de um ponto de individuação do sujeito, já comentada em

exemplos anteriores. É um momento de expressividade numa seqüência em que

se apresenta uma defasagem entre duas vozes: a que pretendia reproduzir o

discurso escolar sobre a violência e a que pretendia assimilar-se à comunidade -

talvez o senso comum - por onde o escrevente faz uma espécie de contorno

para retornar em seguida à reprodução do discurso escolar. Na segunda

seqüência, embora outras marcas pareçam também constituir pontos de

101 Preti (1991), ao tratar do linguagem dos idosos, diz: que os idosos "e, particularmente, os
'idosos velhos' têm fact7idode em conservar em suo memón"o, com absoluta perfeição, frases-
feitas, provérbios, refrões, expressões que, muitos vezes, remontam à suo infância". E continua:
':A melodia e a n"mo que, não raro, as acompanham, favorecem a permanência no
memón"o" (op. cit., p. 65-6). A essas expressões fixas o autor chama "expressões formuloicos':

248
índivíduoção do sujeito (observe-se, por exemplo "bater nele"), a indagação por

meio de "porque que é que" dá a essa índívíduação do sujeito um grau de

expressívídade tão vivo quanto numa discussão acalorada sobre qualquer

assunto. A tentativa de conseguir um argumento írrefutável diante de uma

possível objeção, coloca - como era a expectativa da instituição na elaboração

do exame- o escrevente numa forte relação com o assunto, razão pela qual sua

expressividade vem à tona, caracterizando-se como mais um ponto de

índív/duaçõo do sujeito.

Os três casos abaixo referem-se a expressões formu!aicasT02 utilizadas não

propriamente na condução do desenvolvimento temático, mas na busca do

envolvimento - até emocional - do interlocutor, supostamente atingível a partir

de formos de grande expresslvidade quando usadas na fala popular informal. É

interessante notar que o expressivo e o repetfvel não se excluem como se

poderia à primeira vista pensar. Talvez porque a força de expressividade dessas

formas, a exemplo do que Maingueneau (1989) afirma sobre os provérbios, esteja

ligada ao fato de que o indivíduo que as profere "toma sua asserção como o

eco, a retomada de um número tlimítado de enunciações onten"ores ... "{op. dt.,

p. 101). Observemos os exemplos:

"Trabalhadores sulgados por um sistema de semi-escravidão


abandonam o trabalho por falta de um solán"o justo e possam a
integrar quadnlhas de assaltantes e traficantes, pois passar fome nem
pró cachorro. "!Texto 01-025)

"Ir a um campo de futebot não é mais uma formo de diversão, o que


se vê é uma tremenda de uma cachoJTada, cachorrada mesmo, por
parte dos torcedores e também dos jogadores. "{Texto 00-Q 15)

--------
102 As expressões formulaicas poderiam ter um tratamento interessante também do ponto de
vista que toma o papel das marcas sin1átícas na organização textuaL Essas expressões
poderiam ser vistas, por esse ângulo. como o que Cosiilho e Castilho {1992) chamam
modalizodores afetivos do tipo subjetivo (op. cit.. p. 223).

249
"Mas nem sempre essa violência moral gero sangue. Estamos com um
exemplo agora. Estamos totalmente amarrados e sendo estuprados
pelo ensino nacional. Uma violêncio que não mata mas nos aleíja aos
poucos, nos seco mentalmenfe. "{Texto 01...022)

No primeiro dos três trechos acima, "nem prá cachorro" retoma a

expressão idiomática "ter vida de cachorro" que correspoFJde a ter vida difícil; no

segundo desses trechos, "cachorrada" simplifica a expressão "fazer uma

cachorrada" que vem associada à reunião de pessoas consideradas como de

má índole, significando, como se sabe, "fazer um'a canalhice"; e, finalmente, no

terceiro trecho, "não mata, mas aleija" quase que reproduz expressão idiomática

"o que não mata. aleija".

Como esses três casos retomam fórmulas fixas, é importante lembrar o que

diz Reboul (s.d.} a respeito dos provérbios. das polavras~choque e do slogan.

Segundo esse autor, "os provérbios são muito numerosos nas culturas de

transmissão oral; constítuem aí a escola sem escola" {op. cit., p. 141). Num outro

momento, RebouJ, ao definir palavras-choque, como "Natureza no século XVIII"

ou "Progresso no século XIX'~ pe!a "reação afetiVa provocado no destinatádo ·:

diz que a palavra-choque "dá mais informações a respeito do destinodor do que

a respeito do referente" (idem, p. 20). Finalmente, ao falar do slogan, diz que,

pela sua forma, o slogan escapa "às dicotomias que cqraç::(et?.Zam a língua

moderno" como, por exemplo, à "dicotomia entre língua falada e língua escdto"

(Idem, p. 24). E acrescenta:

"o slogan abole-os [tais dicotomias] como que por


encanto e nos reconduz a um estágio bastante antigo
da linguagem, ao estágio dos provérbios, dos adágios,
dos refrões, onde o d1Zer e o escrever{ ... ) formam um
todo único.
"Dal o correspondência entre dois procedimentos
expressivos por excelêncla.: o entonação e o
l:pogrofia (.. .)" (idem, p. 25).

:?,50
Embora os exemplos citados não se enquadrem perfeitamente nem como

palavras-chave, nem como s!ogans, nem mesmo exatamente como provérbios,

parecem ser bastante pertinentes as observações feitas por Reboul. Podemos,

pois, dizer que os fragmentos indiciativos da representação da gênese da escrita

afetam a organização textual, uma vez que {a) procuram provocar uma reação

afetiva no destinatário; (b) dão mais informações sobre o destinador do que sobre

o referente; e [c} reconduzem o interlocutor a um estágio bastante antigo de

linguagem onde o dizer e o escrever formam um todo úníco103. Evitando, quanto

a este último item, fazer ressurgir, como resíduo, a dicotomia "dizer versus

escrever'' num estágio atua! da linguagem {oposto a um estágio antigo em que

os modalidades, por direito, formariam um todo único), podemos efetivamente

pensar, a partir do exposto, que o escrevente pratica em seu texto (portanto,

também no estágio atual) um modo heterogêneo de constituição da escrita,

evidenclado, nesse momento, pela circulação dialógica que ele faz em relação

à representação da gênese da {sua} escrita.

• • •
Conforme antecipamos, a regularidade lingüística no que se refere ao uso

de marcas conversacionais referentes a este primeiro eixo, consiste no uso de

articuladores que indicam: a participação direta do interlocutor, o

monitoramento explícito do discurso ou o uso de expressões formulaicas.

~-------

103 Fica, pois. descartada, pelo menos no caso desse uso das expressões formulaicas. a
distinção proposta por Olson {1977) entre enunciados e textos. Segundo o autor, as
diferenças entre as declarações da língua oral. mais informais {os enunciados ) e os
declarações da prosa escrita explícita {os textos), poderiam ser referidas: (a) às próprias
modalidades lingüísticos {língua escrito vs. língua oral); (b) a suas utilizações mais comuns (o
conversação vs. os ensaios}; {c) às tradições culturais construídas em torno dessas
modalidades {uma tradição oro! vs. uma tradição letrada}; ou, finalmente - e é o que
interessa destacar -, (dj o "suas formos sumadzodos" (provérbios e aforismos para a
modalidade oral vs. premissas para o modo escrito) [op. dt.. p. 257-8]. Pelo que foi exposto
a partir de Reboul e também pelo aspecto da "permanência na memódo" levantado por
Preti (cf., aqui mesmo, p. 248, nota 101), observa-se, portanto, ao contrário do que propõe
Olson, o caráter escriturai dessas formos sumarizadas já presente no própria oralidade.

251
Da análise feita quanto à organização textuaL podemos concluir,

portanto, que a imagem que o escrevente faz da gênese da (sua} escrita vem

marcada: (a} por certos tipos de articuladores textuais; (b) por um tipo de

dramatização presente no enunciado de modo a produzir o efeito de uma

atuação ao vivo, de que se supõe que o inter!oçutor participe; {c) pela insistência

no participação direta do interlocutor, o que acarreta certas desarticulações

formais e semânticos no texto, só resolvidas se instanciadas numa situação

concreta de enunciaçãO ou se for suposto, talvez, um gesto que oriente a

articulação; {d) pelos referências pragmáticas à situação imediata de

enunciação; e {e) pelo uso de expressões formulaicas.

No item seguinte, o questão da imagem que o escrevente faz da gênese

da {sua} escrita será vista a partir de alguns recursos argumentativos

empregados.

Recursos orgumentativos que marcam a representação do escrevente


sobre a gênese da escrita

É preciso esclarecer, inicialmente, que todos os tópicos tratados até o

momento atuam como portes do mecanismo argumentativo dos textos

analisados.

O interesse em se tratar de recursos argumentativos tomados

separadamente justifica-se apenas pelo fato de que a relação com o

interlocutor, nos casos a serem abordados, é argumenfativa num sentido

particular. Trata-se do uso de recursos que estão ligados à escolha imperativa de

"fotos, dados, opiniões e argumentos relacionados com o temd' {Cadernos de

Questões da 1° fase do vestibular/l992, realizada em 1°/12/91, p. 2) necessários

ao desenvolvimento temático. Ora, a seleção e a discussão desses fatos, dados,

252
opiniões e argumentos só pode ter como ponto de referência o interlocutor

representado que o escrevente constitui ao escrever. razão pela qual a

formulação lingüística dessa discussão é feita como um jogo argumentativo {de

vida ou morte) por meio do qual o escrevente se defronta com seu interlocutor.

Na análise, abordaremos os recursos argumentativos mais freqüentes no

textos, a saber, {l) o recurso à enumeração e (2} o recurso às perguntas. Eis. o

quadro da freqüência dessas regularidades da dimensão argumentativa:

QUADRO 5: Porcentagem de ocorrência segundo regulan'dades lingüísticas da


DIMENSÃO ARGUMENTATIVA em relação ao total de ocorrências
das regularidades das outras dimensões no conjunto dos textos

(I) O RECURSO À ENUMERAÇÃO

Por se trator de exame vestibular de uma instituição que procura definir o

perfil de seu candidato e que explicito essa definição no "Manual do candidato",

acreditamos que uma das razões do uso freqüente de enumeraçõeslo4 talvez seja

a necessidade que o candidato vê de satisfazer o perfil exigido. Ou seja, como é

comum nessas situações-limite do processo de ensino-aprendizagem, o

vestibulando, ao antecipar a imagem que a instituição faz do candidato ideal,

lO~ A discussão feita. neste ponto, a respeito da enumeração é uma relomada muilo próxima
de uma pesquisa anterior, também sobre redações de vestibulandos, levada o efeito como
uma dos qualificações exigidas pelo programa de pós-graduação (doutorado) do Instituto
de Estudos da Linguagem {UNICAMP). sob a orientação da professora doutora Maria
Bernadete Marques Abaurre. Os resultados dessa pesquisa estão em: CORR~A. M.l.G.
Pontuação: sobre seu ensino e concepção. Leitura: teon"a e prática (Revista semestral da
Associação de Leitura do Brasll- Faculdade de Educação da UNICAMPJ, n° 24 (ano 13), p. 52-
65. 1994.

253
constrói para si uma imagem acerca da própria avaliação a que vai ser

submetido. Entre os instrumentos lingüísticos disponíveis poro o construção textual

conhecidos pelo candidato, é possível que a enumeração seja uma escolha

freqüente dada a economia sintática e a aparente produtividade desse- tipo de

construçõo no que se refere a levantar conteúdos temáticos e pô-los em

aparente relação de interdependência no interior do enunciado.

Apareceriam. então, as justaposições de temas e/ou avaliações ligadas

ao quesito: "capacidade de relacionar fatos e informações", presente no Manual

do Candidato. Ligada a esse quesito, uma outra exigência, na prova de

redação, estaria também contribuindo para o emprego de enumeração. É a do

uso da coletânea de textos ou de fragmentos de textos sobre o tema proposto.

Segundo o Manual, a não-obediência a E:sso exigência leva à anulação da

redação.

Nosso hipótese é, pois, a de que, pressionado por esses requisitos, o

candidato tenderia a selecionar dos textos da coletânea termos que julgasse

sintetizar ou remeter aos assuntos tratados e, uma vez os tendo selecionado,

buscaria o recurso da justaposição, como uma forma de obter a tematização

exigida. Essa hipótese tem o respaldo de um número significativo de ocorrências

de enumeração nos textos, havendo alguns textos -que se caracterizam

especificamente pela salíêncía desse recurso.

Como se sabe, a enumeração se dá entre estruturas sintáticas de mesma

natureza. É sabido também que, na enunciação ora!, a cada nova estrutura, há o

acompanhamento de uma certa entonação, de um certo gesto e/ou de um

certo n·cto faciaL Portanto, traços prosódicos e/ou gestuais marcam os matizes de

254
sentido na passagem de um a outro de cada item enumerado, o que garante,

na enunciação ora!, a eficácia do recurso o enumerações.

No entanto, ao produzir essas enumerações na escrita, o escrevente opera

apenas com o recurso gráfico da pontuação, utilizando-se insistentemente de

enumerações talvez por sentir-se seguro da transparência desses traços

prosódicos e gestuais que supõe imprimirem-se tais e quais no pape! sob a forma

de pontuação enumerativa. Curiosamente, temos, então, como freqüente

resultado, uma pontuação correta para uma enumeração nem sempre

facilmente justificável e que, em certos casos, se reduz apenas a um elenco em

seqüência. Esse tipo de ocorrência constitui-se, pois, na primeira regularidade

lingüística quanto aos recursos argumentativos utilizados pelo escrevente.

Obsetvemos o exemplo abaixo:

'1 ... ) onde menos se espero acontece um ato de violência.


"Como um assalto a môo armada, nas cidades grandes
oco/Tendo com mais frequencia, que pode matar uma tam1lia inteira e
dor cosa e comido poro família de um bandidO, ao mesmo tempo.
"A violência para alguns é benéfico e poro outros nem
sempre. Mos ela está presente, nas ruas~ nos interesses políticos, e em
muitos outros lugares.
"Nínguem deixa de usar a violência poro defender algum
interesse própnO, principalmente quando o interesse envolve dinheiro."
(Texto 00-003)

Na enumeração em destaque. pode-se questionar, quanto às ~egras

gramaticais do pontuação, apenas o uso da vírgula antes da conjunção "e". No

entanto, a indicação gráfico-visual, apesar de registrada, falha em seu

propósito de estabelecer relações entre "fatos e informações", pois estas não

dependem apenas de uma relação com o que é exterior ao texto {a coletânea,

por exemplo}, mas estão vinculadas à relação proposta com os outros

enunciados do texto, a começar pelo que a antecede. A julgarmos apenas as

255
pistas lexicais que o escrevente efetivamente deixou no texto, podemos dizer

que a enumeração proposta é um desses casos de difícil justificação, Cabe,

porém, procurar justificá-la.

Num primeiro momento, o escrevente tematiza a imprevisibllidade dos

ates de violência nas grandes cidades e o paradoxo._entre.mQJar uma famí!Ja~-'­

para que outra {a do assassino) tenha casa e comida. Em seguida a esse

momento em que ainda se podia ler uma justificativa na ação do assassino, lê-se

uma tendência a arrefecer essa justificativa, ou seja, lê-se que a violência é

benéfica para alguns, mas que nem sempre o é para outros. Do relação entre:

imprevisibllidade desses atos; paradoxo no confronto entre duas atitudes para

com duas famílias e exclusividade de benefício da violência, é que surge a

contrajunçãol05 que vai introduzir a enumeração.

Logo se vê que não fica clara a relação pretendida pelo escrevente com

a escolha da controjunçôo introduzida por "mas". Aparentemente, trata-se de

opor, ao fato de que os benefícios da violência não sôo gerais, um outro fato,

que é a ocorrência generalizada da violência (representada pela enumeração:

presente, nas ruas, nos interesses políticos~ e em muitos outros lugareS;. No

entanto, o relação estabelecida é muito mais uma ressalva (uma concessão) do

que uma contrajunção. O sentido pretendido parece ter si0o algo como: {Apesar

de a violência ocorrer de forma generalizada, ela só é benéfica para alguns). É

importante lembrar, porém, que este uso de "mas" não apresentará nenhum

problema se os aspectos prosódicos que orientaram essa escolha forem

recuperados. A concessão -como, de resto, as outras relações semânticas entre

1o5 O termo foi tomado de Koch {1988).

256
os enunciados- não é, como se sabe, exclusividade das chamadas conjunçõesl06

ou locuções conjuntivas, uma vez que a presença de certos elementos

prosódicos podem desempenhar a mesma função desse tipo de palavra, ainda

que, de uma perspectiva iso!acionista do léxico no que se refere à prosódia, a

relação indicada pelo item lexical empregado seja outra.

A construção sintática econômica (se considerada nos limites do

enunciado) das estruturas enumerativas pode perder, portanto, sua eficácia

quando a enumera_ç_ã? é empregada no texto escrito. Parece óbvio, que, como

parte de unidades textuais maiores e sem os recursos da enunciação oraL o

emprego da enumeração, no texto escrito, deve ter em vista não apenas a

relação de interdependência que os conteúdos temáticos parecem manter entre

si no interior do enunciado, mas, sobretudo, as relações textuais mais amplas, nas

quais cada estrutura enumerada funcione como elemento de articulação formal

e semântica do texto.

Podemos, pois, constatar, que, se o recurso à enumeração não é de todo

bem sucedido, é justamente pela tentativa de projeçOo do falado no escrito,

desta feita pelo fato de o escrevente identificar a relação - possível na

enunciação ora! - entre os. itens enumerados com o que fica efetivamente

registrado no texto escrito. Mais uma evidência. portanto, da representação que

o escrevente faz da gênese da (sua} escrita.

Há casos em que o escrevente, no afã de atender ao requisito da prova,

acredita estar trazendo os vários aspectos da questão tematizada

lOó Cag!iari {1992). diz que "no linguagem popular ocorrem muitos exemplos onde se nota que
o falante não diz conjunções e pronomes relativos. onde. num discurso escdfo deven'am
aparecer necessanomente. Mos isso não o impede de se fazer entender e de expressar essas
relações, porque e/as, em vez de aparecerem /exicolizadas, vêm realizadas através de
elementos prosôdicos." {op. ciL p. 58). O autor exemplifico com uma função conjuntiva da
tessituro. mos lembw que outros elementos prosódicos podem estar msociodos o essa e a
outras funções.

257
especialmente os aspectos comentados na coletânea - por meio do emprego

de "etc." ou de reticências no final dos enumerações. O exemplo abaixo

acumula "etc." e reticências:

"/!aí também o ponto em {sic) podemos concluir, se PC!ra conseguir o


salvação desejado há um caminho muito lOngo e cheio de
obsfáculos, dúvidas, preconceHos, politicagem etc. .. : e nos deixa um
lembrete um tonto que assustador." (Texto 03-180}

Fica bastante nítida, neste caso, a tentativa do escrevente de se alçar à

posição que atribui a seu interlocutor. Por se tratar de um caso muito semelhante

ao anterior, não o abordaremos em detalhe.

{2) O RECURSO ÀS PERGUNTAS

Também ligado à escolha imperativo de "fofos, dados, opiniões e

argumentos relacionados com o tema" necessários ao desenvolvimento

temático, este recurso tem diretamente a ver com a relação com o interlocutor.

Novamente o interlocutor é o centro po!arizador nesta outra circulação pela

imagem que o escrevente faz da gênese da (sua) escrita. Desta feita, essa

circulação é indiciada pelas escolhas de fatos e argumentos ligados à situação

imediata em que é feita a discussão sobre o tema.

As perguntas que o escrevente lança e que··constituem a segunda

regularidade lingüística quanto aos recursos argumentativos utilizados pelo

escrevente visam sempre interpelar o interlocutor representado em seu texto.

Difuso, ainda que projetado a partir da instituição que propõe o vestibular, esse

interlocutor é uma espécie de compilação de traços relacionados com o

imaginário sobre as instituições reconhecidas pelo escrevente como modelares

da escrita. Desse modo, o leitor projetado nas dissertações responde pela

258
regulação- instifudona!mente amparada- do irabalho lingüístico do escrevente

e, nesse sentido, pode ser identificado a uma instiiuição.

As perguntas lançadas a esse interlocutor parecem marcar, portanto, as

dúvidas do escrevente a respeito do que, de fato, estaria sendo avaliado em sua

abordagem do tema. Mas essas dúvidas, além de revelarE)Im essa preocupação

do escrevente, revelam muito do que seria efetivamente perguntado numa

situação de comunicação oral. Dito de outro modo, ao lidar com o aparente da

função de avaliação pfépria da instituição que ele projeta no texto, o escrevente

formula questões sobre o não-localizóve! de seu funcionamento implícito 107 : de

que lado estaria ela a respeito de tal ou tal aspecto da vida social? como

avaliaria tal ou tal fato?

Nessa posição indefinida, o escrevente localiza seu dizer no espaço

imaginário da opinião pública, ocasião em que tende a fazer confluir para seu

texto os vários tipos de formadores de opinião, misturando opinião pública e

senso comum.

Observemos o exemplo abaixo:

"Como é possível ter ínerente a capacidade de agressão verbal ou


visual tão propagandeada pelos 'megastars', se~ ao nascer. uma
ctiança mal sobe distingüir palavras e imagens?
"E os criminosos? Até quando é possível deixar alguém nascer.
viver e morrer sem rumo? Todos tem sentimentos. Amam, choram e
sofrem como muitos. [... } Pior ainda é acreditar que conseguir/amos
acabar com todos eles condenando-os à morte. Seda necessánO usar
violência contra a violência?
'14 única resposta para todas os perguntas seda cultivar o
amor em função do amor. É evidente que também havenO de se
programar um sistema capaz de salvar todos as crianças que ficam
jogados pelos quatro cantos do mundo paro que, mais tarde, não se
tomem marginais." (Texto O1-()12)

lDl Conferir Pêcheux {1990a, p. 76).

259
Ao final da série de questões postas pelo escrevente, noto-se a tentativa

de encontrar uma resposta. Sintetiza-o em dois pontos: "cultivar o amor em

função do amor" e, como acréscimo {"é evidente que também"), "programar

um sistema capaz de salvar todas os crianças que ficam jogadas pelos quatro

cantos do mundo". No primeiro ponto, a projeção da Instituição confunde-se

com um certo tipo de discurso religioso de cunho mais conseNador e pouco

pragmático quanto à intervenção na situação descrita; no segundo ponto, essa

intervenção se insinua, mas não recai no "aqui e agora" de uma atuação

política efetiva, ganhando uma forma globalizada ("sistema capaz de salvar ...

as crianças ... pelos quatro cantos do mundo").

Esse exemplo mostra o que parece ser uma tendência no caso do recurso

a perguntas vir acompanhando de respostas. Nesses casos, o escrevente marca,

em geral, uma posição quanto ao que está tematizando, e as perguntas

funcionam mais como monitoramento do raciocínio. Esse monitoramento revela,

nas perguntas e respostas que vão construindo a argumentação, a imagem que

o escrevente faz do gênese da (sua) escrita. No caso, a relação do escrevente

com a gênese da escrita se mostra especificamente no que se refere ao processo

de constituição de seu interlocutor simultaneamente ao processo de constituição

de sua escrita.

Um outro caso de perguntas é o que procura dar ao texto um tom de

denúncia mais do que apresentar uma resposta. Eis um exemplo:

Ataque ao !ndt'o

"Comemorando quase 500 séculos de existência, o que restou


do roça indígena vem sendo exterminada juntamente com a cdse que
abafo e destrói esse país.( ... )
"JamaiS e revistas publicam a viofêncio do governo pelo posse
dos terras dos índios ionomam1: (... } Na sociedade de hoje o índio
ainda é tratado como escravo e extraído de seu temfón'o como se

260
fosse animal selvagem. Para onde irão e como viverão na sociedade
de preconceitos e violência? E como serqo reutilizadas suas fenos? o
Brastl até hoje só opta pelo massacre para conseguir e dispor dos
recursos que necessita( ... )
"Em suma, os pdmitivos colonizadores brasileiros estão sofrendo
ameaças a seus sistemas de valores. Conseqüentemente, a sua própnO
vida está sendo exterminada e não permítirá seu acesso ao ano 2000.
O Brasil terá que 'importar indígenas' novamente!?" (Texto O1-050)

É preciso notar, em primeiro lugar, que a questão fundamental que

organiza esse texto fundamenta-se na dúvida quanto à proposta temática da

redação. Ao associ<:Jr "tribos urbanas" com "tribos" em geral e, por aí, com

"índios", o escrevente opta por abordar a questão indígena no Brasil.

As questões que introduz, então, em seu texto, referem-se ao tema

indevidamente escolhido. Tanto as questões colocadas no desenvolvimento,

quanto aquela colocada no encerramento do texto são tentativas de

provocações à reflexão dirigidas ao interlocutor. Como o escrevente não busca

responder às indagações que ele mesmo vai fazendo, ele sente-se desobrigado

de julgá-las quanto a sua pertinência. Sua expectativa parece ser

exclusivamente a de conseguir o envolvimento do interlocutor, mesmo que, para

tanto, se perpetrem perguntas insustentáveis, como é, especialmente. o caso da

última.

A abertura do texto para o preenchimento por parte do leitor é, como

parece ter ficado cloro, um típico funcionamento das perguntas nos textos dos

vestibulandos. O exemplo abaixo é um modo bastante comum de encerramento

dos textos e reafirma esse mesmo funcionamento:

"Aonde está a paz que é tão desejada portados nós?" (Texto 03-161)

261
Também, nesse caso, portanto. a expectativa do escrevente é contar com

o interlocutor na elaboração conjunta de seu texto. Na falta da intervenção

verba! efetiva ou das manifestações não-verbais de acompanhamento e

elaboração conjunta do texto, o escrevente se utiliza das perguntas. No exemplo

acima, além de encerrar o texto, a pergunta termina. com uma inclusão do

interlocutor no desejo manifestado pelo escrevente: "tão desejada por todos

nós?". Esse artifício aposta na união dos pólos do remetente {o "eu" que

compartilha o desejo de paz com ''todos"}, do destinatário (o "você" que

compartilha o desejo de paz com "todos"} e do referente (a "paz .:::: não-

violência"} como o clímax e o recurso final da argumentação.

' ' '


A . partir da análise feita quanto aos recursos argumentativos da

enumeração e das perguntas, podemos observar como o escrevente joga com o

caráter par da conversação que supõe reproduzida em seu texto.

No caso da enumeração, a participação do interlocutor na construção do

texto do escrevente vem marcada pelo cruzam~nto entre assunto e interlocutor.

Como ficou dito, a necessidade de selecionar fatos e argumentos e de emitir

opiniões está ligada ao imaginário que o escrevente faz de seu interlocutor e a

esse foto se deve grande porte das escolhas. que faz.

A enumeração aparece, portanto, ao mesmo tempo, como uma

construção sintática econômica - pois facilita a justaposição linear de aspectos

temáticos julgados relevantes pelo escrevente - e como um espaço de

interpelação do interlocutor - já que, na !inearização de vários aspectos sobre o

tema, aumentam as chances de o interlocutor ter contemplada uma opinião

pessoal sobre o tema.

262
No entanto, se esse é o funcionamento argumentativo da enumeração,

cabe ressaltar que ele está ligado, no tipo de texto estudado, ao modo

particlpatlvo de construção do discurso. O escrevente constrói essa participação

no tempo da constituição de seu texto e a projeta no texto escrito, sem, no

entanto, considerar a falta dos matizes entonacionais e paralingüísticos -

necessários à justaposição de aspectos às vezes díspares - que supõe nele

plasmados. Esse é, pois, um recurso argumentativo que denuncia a circulação do

escrevente pela representação da gênese da {sua) escrita.

No caso das perguntas, a participação do interlocutor, tomado como o

segundo membro do caráter par da conversação que o escrevente supõe

construir em seu texto, vem marcadO pela dúvida do escrevente. Essa dúvida

pode vir assinalada tanto nas perguntas com respostas, em que, em geral. se

evidencia a indecisão do escrevente, como nas perguntas sem respostas, em que

a expectativa é provocar a reflexão e incitar o interlocutor à réplica. Como se

trota, em todo o coso, de uma incitação em ausência, a tentativa do escrevente

joga com a obtenção não tanto de uma resposta positiva quanto ao que busca

evocar do tema no interlocutor, mas, sobretudo, com a obtenção de uma atitude

pos\tiva do leitor quanto à capacidade crítica e ao desempenho verbal escrito

demonstrados.

Esse diálogo que, de certo modo, coloca o escrevente à máxima distância

de seu interlocutor, caracterizando uma interação com alto grau de assimetria,

serve também. paradoxalmente, a uma intenso aproximação entre os

interlocutores. Submetido à injunção de dizer, o escrevente se obriga também a

interpelar seu interlocutor e o foz a partir de seu modo de se relacionar cem a

linguagem. Assim, os perguntas conduzem-no a partir de sua maneira de

263
conceber a polêmica, tida como a relação entre interlocutores que se realizo em

presença e à maneiro de um desafio.

Estabelecida na conversa cotidiana, a polêmica seno, portanto, mais

propriamente, o desafio entre os participantes a respeito dos modos de

relacionamento dos homens com as coisas que os of~tam. Na reprodução dessa

cena. o escrevente busca, no recurso argumentativo das perguntas, uma forma

de registrar esse confronto. Marcada regularmente por pontuação específica

sempre que empregado em sua forma direta, não percebemos, desta feita. a

falta da assinalação gráfica da prosódia. Projetadas e assinaladas, não se trata

mais de supor as marcas fônico/acústicas como plasmadas no escrito, mas de

supor, reconstruída, o própria cena em que a polêmica se estabelece,

caracteristicamente marcada pelo caráter par da conversação.

' ..
Considerações finais

Neste capítulo, procuramos mostrar o funcionamento dq primeiro de três

modos pelos quais a escrita do vestibulando pode ser observada do ponto de

vista da relação que o escrevente mantém com a linguagem,

Merece destaque o fato de que os fragme_nfos indk:iativos desse eixo são

normalmente vistos como marcas da interferência do oral/falado no escrito.

Vistos desse modo, porém, e na medida em que, por essa via, se pressupõe a

pureZa do falado e do escrito, restringem-se as considerações sobre a escrita dos

vestibulandos a tentativas de preenchimento de modelos, ou, na terminologia

que estamos utilizando, apenas à circulação pela imagem que fazem sobre o

código escrito institucionalizado, ou seja, pela imagem normalmente !ígada ao

264
processo de escolarização forma! da língua {e da prática textual) e do próprio

escrevente.

A forma pela qual tratamos esse fenômeno da circulação dia!ógica do

escrevente propõe, como enfatizamos desde o primeiro capítulo deste trabalho,

um modo heterogêneo de constituição da escrita. Considerado esse modo

heterogêneo, a questão da interferência da ora !idade na escrita não se coloca,

uma vez que oral/falado e letrado/escrito estão presentes nesse modo

heterogêneo co"rrio práticas sociais, em que os limites rigorosos não se sustentam.

Se perdemos uma distinção, cujo papel parece freqüentemente ter servido às

imposições nem sempre justificáveis do ensino formal da língua, ganhamos em

novas perspectivas de estudo, como a da abordagem dos gêneros textuais a

partir não da dicofomização metodológica entre oral e letrado, por um lado, e

falado e escrito. por outro, mas a partir do reconhecimento de encontros entre

essas práticas, mesmo naqueles gêneros que se tem classificado como típicos do

oral e do escrito. Defendemos que a manutenção dessa oposição - ainda que

em termos metodológicos - pode abrir espaço para a consideração da

autonomia da escrita e da manutenção de uma série de preconceitos

lingüísticos. Vale lembrar que, embora considerando a influência da Lingüística

no ensino de Língua Portuguesa, tais preconceitos têm-se mantido ou tomado

outras formas.

A proposição de um modo heterogêneo de constituição entre o

oral/falado e o letrado/escrito busca levar adiante, portanto, o que os teóricos

que propuseram a dícotomização metodológica começaram. Eles já negam,

como foi exaustivamente discutido, a existência de uma autonomia da escrita. A

proposição de um modo heterogêneo de constituição da escrita ataca, portanto,

265
um dos flancos abertos por essa perspectiva. Embora este trabalho se fixe no

material escrito, nele buscamos observar o modo heterogêneo de constituição

da escrito e não sua autonomia em relação ao oral/falado. O outro flanco

aberto por essa perspectiva é buscar desenvolver as intuições de vários

pesquisadores quanto a esses encontros no material falado, ou seja, buscar

observar o modo heterogêneo de constituição da oralidade.

Há, pois, um amplo campo de pesquisa quanto aos vários modos de

aparecimento do heterogêneo na linguagem. O tratamento do problema em

termos de gêneros textuais, apresentado aqui basicamente pelos propostas de

Biber (1989] e de Marcuschi (1994, 1995), é, por exemplo, um grande passo.

Quanto a nós, ainda que mantendo a atenção apenas na escrita, o interesse é

investigar mais detidamente o processo da escrita _o pt:Jrfír da relação que o

escrevente mantém com a ling vagem.

A proposição do eixo da representação da gênese da escrita visa

justamente atender a uma exigência qualitativa na abordagem dos textos.

Fugindo às maneiras clássicos de se avaliarem os chqmados textos

desarticulados, o proposição da circulação imaginário pelo gênese da escrito

abre espaço para ver a fragmentação- a exemplo do que foz Scarpa {1995)

com a questão da fluência/disfluênciaJOa - como umg. marco lingüística de

pontos de indivíduoçõo do sujeito.

1oa Scarpa {1995) afirma que "de modo geral (... ) trechos fluentes são os já ajeitados,
conhecidos, analisados ou - na grande maionO dos casos, congelados, vêm em bloco. Os
disf!uentes são aqueles em constroção, instáveis, com tentativas infrutíferas de segmentação
em blocos prosódicos,· supõem passos mais complexos tonto poradigmótica quanto
s/ntagmaticamente no elaboração do enunciado. Autoria vs. não-autoria, discurso próprio vs.
discurso do outro parecem ser também traços que vale a pena levantar enquanto hipótese
de elaboração formal dos enunciados nesta faixa elán"o [sujeitos que abarcam a faixa etária
de aproximadamente 22 meses a 2 anos]" (op. dt., p. 171).

266
O estudo desses pontos de individuação permite, como foi visto no

decorrer deste capítulo, partir da captação de indícios (fragmentos indiciativos

de interação) do circulação imaginária do escrevente, passar por um processo

de generalização em regu/ondodes lingüísticas e chegar a uma propriedade

como a da fragmentação.

O sentido que essa propriedade ganha está rigorosamente assodado ao

jogo de expectativas colocado no evento vestibular e se canaliza especialmente

para a busca dCl- envoJvimento do/com o interlocutor. O envolver-se e o

individuar-se são intimamente relacionados, e o "cruzamento de ifinerádos

possíveis"do evento de linguagem em questão, bem como o imaginário que lhe

corresponde, são também elementos bastante propícios ao aparecimento desses

pontos de indiViduação do sujeito.

Constatamos, pois, que os condições de produção dessa escrita, por

exemplo no que se refere ao tema proposto e à coletânea de textos, são, por

vezes, impeditivas da continuidade do fluxo regular da escrita. Isto é, em pontos

por exemplo em que deve aflorar o conhecimento sobre como ler o tema e a

coletânea, pode dar-se a emergência da gênese da escrita sob a forma de uma

cooperação com o interlocutor - à maneira de uma representação dramática -

ensaiada mentalmente e registrada graficamente por meio dessas rupturas do

fluxo da escrita. A exemplo do que Vygotsky (1987, p. 17) propõe para a fala

interior, essa cooperação mentalmente ensaiada serve tanto ao pensamento

autistíco {no coso, monolog"1zação que, rompendo a cadeia, impede ou dif1culta

sua compreensibilidade) quanto ao pensamento lógico (no caso, entendido

como o procedimento regular de antecipação e articulação dos vozes no texto).

Como vimos, os exemplos aqui classificados como de ruptura causada pela

267
circulação que o escrevente faz pela gênese da {sua) escrita incluem-se naquele

tipo que impede ou dificulta a compreensibilidade do fluxo da escrita.

Ainda seguindo o raciocínio de Vygotsky para a fala inten"or, o afloramento

da gênese pode ser visto como uma forma de resolver problemas. Sob esse

ponto de vista. a representação da gênese nunca está, fora do processo dà

escrita. Assim, se a gênese não emerge como ruptura. é porque estão

predominando processos interiores de antecipação e si!enciamento do diálogo

co'm o interlocutor representado. No entanto, frente a certas dificuldades- como

nos casos estudados-, o escrevente reativa recursos de elaboração cooperativa

do discurso como alavanca para a solução desses problemas, produzindo

marcas lingüísticas da circulação pelo seu imaginário sobre a gênese da escn'ta

nas várias dimensões da !lnguagt;m.

Como pudemos observar, no que se refere às regulondodes lingüísticas

obtidas, o caráter fragmentário dessa escrita pode ser visto tanto na sintaxe,

como na prosódia, no tipo de articulação léxico/sintaxe, na organização do texto

e nos récursos argumentativos. Em todos esses aspectos, a dimensão pragmático-

discursiva {fatores situacionais imediatos, rituais enunciativos e marcas históricos

da relação que o sujeito mantém com a linguagem) está presente, ao mesmo

tempo produzindo efeitos de fragmentação e sendo produzida por eles. É no

movimento de circulação entre a reprodutibilidade de uma prática {na presente

discussão, deixada em segundo plano) e os dados de ineditismo de uma

individuação histórica {aqui ressaltados) que o escrevente constitui. sua

representação do gênese do {sua) escrita.

Desconsiderar esse dado de ineditismo da individuação do sujeito seria,

pois, desconsiderar o caráter local do dado lingüístico a fim de transferi-lo para

268
alguma instância em que o escrevente não teria outro papel a não ser o de

reproduzir modelos. Por outro lado, considerar o dado local foro da dimensão

histórica do sujeito, isto é, estritamente definido apenas como um dado lingüístico,

seria desconsiderar o caráter discursivo que permite observar os processos de

individuação.

• • •
No capitulo seguinte, será tratado o segundo tipo de circulação diológica

do escrevente. Abordaremos a maneira como o escrevente circula pelo

imaginário que faz sobre a representação da (sua} escrita como código

institucionalizado.

269
Capítulo 4

O ESCREVENTE E A REPRESENTAÇÃO DO CÓDIGO ESCRITO


INSTITUCIONALIZADO

Antes de prosseguirmos, é importante ressaltar que os três eixos reguladores

do aparecimento da imagem do escrevente sobre a {sua) escrita atuam de

maneira integrada. No capitulo 2, procuramos mostrar essa atuação simultânea.

Com a exposição que fizemos no capífu!o 3 e com a que seró efetuada no

presente capitulo e no seguinte, bUscamos dar contornQS:~àís C!~ros sobre como

esse imaginário aparece em cada eixo. visto isoladamente.

Abordado o primeiro eixo, nosso segundo lugar privilegiado para

observação do circulação dialógíca do escrevente é o do papel de código

institucionalizado. Mais precisamente, esse lugar se constitui pelo papel de

código institucionaHzado atribuído à escrita por parte do escrevente.

Várias foram as considerações feitas, neste trabalho, sobre essa

representação que o escrevente faz da escrita. As referências a esse segundo

eixo de circulação dialógica serão organizadas do seguinte modo: {a} pelo tipo

de encontro entre o oral/falado e o letrado/escrito que o escrevente propõe; (b)

pelo modo como o próprio escrevente se representa em sua escrita; e (c) pelas

marcas lingüísticas indidatívas desse tipo de circulação dia!ógica.

No que se ~efere ao tipo de encontro que o escrevente propõe entre o

ora!!falado e o letrado/escrito, a representação da escrita como código

lnstitucionaHzado reproduz. de certo modo, a visão da língua escolarizada. Nesta

visão, a escrita é considerada autônoma, de foi forma que as marcas do

270
oral/falado que eventualmente nela se pudessem reconhecer seriam vistas

corno desvios do instituído e, nesse sentido, deveriam ser tomadas como lhe

sendo totalmente exteriores. Podemos dizer que, nesse tipo de encontro, o

escrevente lida, basicamente, com o que supõe ser - a partir não só do que

aprendeu na escola, mas, em grande parte, do que assimilou fora dela.- o .visão·

escolarizada do código institucionalmente reconhecido. Definidor de um produto

inteiramente refratário a seu modo de constituição, o ora!/falado seria, portanto,

integralmente representado a partir do caráter integrativo da escrita a ponto de

não mals ser justifícável reconhecê-lo nesse novo produto.

O tipo de mi.xogem qve o e$crevente propõe a partir do código

institucionalizado tem, pois, como pano de fundo, a visão do letrado/escrito

çomo u;n modo autônomo de expressõo, em cujo processamento, tomado

como pertencente à escrita cu/la formal, o escrevente se espelho. Na prática,

porém, tal autonomia, por não ter um modelo puro, nem, de resto, um

correspondente empírico, reduz-se à suposição de que se pode transformar a

oralídade em escrita unicamente pelo fato de esta última poder dar à primeira

vm9 formo grQfiçQ. Fr~qO?ntªm?nt?, ~sso Qv;;çç çi'$ vm mod?!Q l?vQ o

escrevente a exceder-se numa caracterização do texto baseada em

propriedades que ele supõe serem exclusivas da escrita. Nessas ocasiões,

evidencia-se privilegiadamente sua representação do código institucionalizado,

imagem que lhe serve de base no que se refere ao modo como represento a

(sua) escrita, seu interlocutor e a si mesmo.

Portanto, os encontros entre o oral/falado e o letrado/escrito se

evidenciam sempre que o escrevente leva a extremos uma tal imagem sobre o

çQdigo ?scrito. Ou s~jo, ness? ?ixo çl~ çirçvloçõo diológiçQ, ess~s encontros se

271
mostram pelo excesso, pois esse procedimento pode dar um cunho formal

inconsistente em relação ao próprio tipo de organização textual proposta. Para

citar um exemplo, basta lembrar do assim chamado "estilo cartorial", muito

presente nos expedientes das repartições públicas, mas emergente também em

certas passagens de muitos dos textos de vestibulandos.

Quanto às referências já feitas aqui sobre o modo pelo qual o próprio

escrevente se representa em sua escrita, foram mencionados aspectos como: o

caráter de reprodutor de uma prática instituído; a tentativa de alçamento à

escrita evita formal e aos discursos estabilizados da instituição escolar; a auto-

otribviçõo de vmo posiçõo, relativamente à suposição de Jvgores específicos

para o letrado/escrito tidos como institucionalmente definidos; a auto-atribuição

de uma posição, relativamente à posição específica atribuída ao interlocutor -

este numa região mais formal -, em relação à língua; e as indiciaçôes

metadiscursivas, por meio das quais o escrevente revela - em sua busca de

a Içamento, por tentativa de repetição ou por superação de um modelo- pontos

salientes desse tipo de circulação dia lógica.

No que se refere às marcas lingüísticos que são objeto das indidoções

mefadlscurslvas, mencionamos aquelas pistas utilizados como fragmentos de

interação. Entre elas, as relativas ao esquema textual, mas também as que

se referem a várias outras dimensões: estruturas sintáticas, escolhas !exicais, ..


outros recursos de organização textual e recursos argumentatívos. Essas marcas

foram reunidas no que chamamos regularidades lingüísticas, maneira de nos

referirmos a um nível mais geral de observação dentro de cada dimensão

estvdodo. A es;;os regulonOades lingüísticos propusemos a ossociaçõo com

propriedades ligados ao que -preocupados em eoraderi:wr 0 eserita típica-

272
Chefe {19$2, 196-5) chama de integração e distanciamento e Tannen (1982} de

lexicalização com ênfase no conteúdo.

A variedade de dimensões lingüísticas que a circulação dialógica pelo

código institucionalizado recobre é caracterizada pelo fato de tratar-se de uma

representação do escrevente e mostra que, mesmo que e.ssa representação·, em

determinados momentos, possa privilegiar certas dimensões da linguagem em

detrimento de outras, não é exclusiva de nenhuma delas. De qualquer modo, o

fator condicionante básico de seu aparecimento é sempre o caráter de réplica -

tentativa de adequar o texto ao que recomenda a prática escolar tradicional -,

ligado à relação que o escrevente mantém com a linguagem através do modo

de enunciação utilizado {gênero, destinatário constituído, tema abordado, dados

esses que participam das condições de produção e do jogo de expectativas

associado a essas condições) e não a sua relação com características tidas

çomo obsolvfos do escrito em gero!.

Essas referências. que fizemos nos capítulos precedentes e que acabamos

de retomar sumariamente neste ponto serão aprofundadas, a seguir, nas

implicações teóricas a respeito do segundo eixo de circulação dio!ógica do

escrevente, o do código institucionalizado.

1. IMPUCAÇ0ES TEÓRICAS DA CONSIDERAÇÃO DO IMAGINÁRIO SOBRE


O CÓDIGO ESCRITO INSTITUCIONALIZADO

Do que discutimos no capítulo 3, a despeito de termos insistido em suo

comtituiyõo como apenas um dos eixos de cireu\ayõo imogin6rio do escrevente,

poderíamos talvez ser levados a condu ir que o escrevente invariavelmente toma

ç ~sçrito ççmç vmo repr~~entoçõo Qe ~nvnçioçiQ$ oroi.s. Poro ~vitor vmo tal

273
genera!izaçâo, vale destacar o que Aba urre { 1987) lembra, em nota, ao tratar das

escritos idiossincráticas de crianças:

''Seda ingênuo pensar que o aprendiz de escdta,


indivíduo que vive em uma sociedade que escreve,
representa a escrita, esse objeto que procuro
conhecer. como uma simples transcrição da fala.
Existem bons motivos para supor que a representação
de escrita que o individuo já traz para a escola seja
mais complexa, por mais limitado que tenha sido o seu
contato com a escn'fa e seus usos. (... ) embora em
graus diversos, o aprendiz do escrita já diferencia
escrita de fala, no senhdo de que nunca a produção
?;;çrito, ?m vrn prirn?íro rnorru~nto, se r?dvz o vrno
mera tentativç de transçtiçõç da fala. Por mçis
próxima que ela esteja disso, é sempre possível
identificar o presença de elementos que pressupõem
já a incorporação de aspectos convencionais, de
escolhos de estruturas típicos do escrita, de modelos
escritos... " (op. cít., p. 193, destaque no origina!}.

Essa obse!Vação preliminar estabelece os bases da discussão que faremos,

a seguir, a respeito das quatro principais implicações teóricas da considéração do

código !nstitudonalizado como um segundo e!xo da clrcu!ação !maglnárla do

escrevente em relação a sua constituição como ta!, à constituição de seu

interlocutor e à própria constituição da {sua) escrita.

A primeira imPlicação teórica a ser tratada refere-se à constatação da

identificação corrente entre escrita e língua.

Bazin e Bensa, na apresentação da tradução francesa da já citada obra

de Goody (1979), mencionam a existência, nas sociedades que conhecem o

escrita, de dois tipos de enunciados: "os que são produzidos espontaneamente


,,.,

em virtude de um hábitO lingüístico (que difere segundo a posíçQo social dos

locutores) e os que são produzidos expressamente por referência o uma norma ou

274
modelo (o mais freqüentemente defimdos pelo grupo dominante) transmit;do

pela escn'fa por meio do siStema escolar"{op. ciL p. 12).

No que se refere aos chamados enunciados produzidos

espontaneamente, é importante ressalvar que, na escola, mesmo a língua falada

-mais propensa a realçar as diferenças segundo a posição -sOcial dos locutores-

toma freqüentemente como modelo a escrita. Como afirma Vanoye {1986), "a

língua falada é geralmente ensinada, corrigida retificado, com base na escrito"

(op. cit. p, 43}. Um exemplo diferente da retomada de um modelo, ainda no

domínio do falado, está na eleição de certos pronúncias em detrimento de

outras nos meios de comunicação de mossa. Vachek atribui a ênfase nos

problemas de ortoépla aos "métodos modernos de reprodução de enunciados

falados". Mais do que isso - é o que defendemos aqui - parece haver, nesse

caso, uma prática de uniformização muito semelhante à da "língua literária" -

aquela que Saussure definia como se sobrepondo aos dialetos para tornar-se a

língua oficia! e comum de um povo. O registro feito por Vachek a propósito da

escolha de uma pronúncia modelo mostra que essa prática não é tão recente

quanto pode parecer: "isto foi claramente visto no Grã-Bretanha onde umo séde

de Manuais de 'Inglês de radiodifusão' discutindo problemas de orloépio, foi

publicado no período entre as duas guerras" [1989 (1979), p. 14[.

A fixação de modelos para o falado reproduz uma prática comum no

tratamento da escrita e contribui para evidenciar a indevida identificação do

tratamento da língua em geral com uma escn"talO?. Essa identificação é

1oç Essa identificação da língua em geral com uma escrita é trotado por Castilho {1988), sob

o viés da variação lingüística. Depois de definir norma como um "fator de coesão sociol''
(em sentido amplo) e como correspondente "aos usos e aspirações do classe social de
prestígio" {em sentido estrito), o autor aponta alguns preconceitos sobre a norma. Entre eles.
aponta aquele que confunde o português culto: com o português escrito, preconceito que
faz esquecer que há também um português culto falado (cf. op. cit., p. 53-55).

275
mostrada por Bazín e Bensa ao citarem a afirmação de Bourdieu sobre a imagem

que normalmente se faz sobre a língua:

"sempre que alguém fala da língua sem outra


precisão, retere-se tacítamente à língua oficial de
uma umdode política, isto é~ à llngua tal como é
fixada pelos 'agentes autorízados' e especializados
(gramáticos, professores etc./ portanto à 'língua
escrita ou quase escnla ou digna de ser escrita' {apud
Benza e Bensa, idem, ib.).

A identificação entre escrita e língua, que constatamos aqui, fica,

portanto, muito evidente quando, até mesmo para o falado, a fixação de

modelos se vincula a partir do que é uma prática aceita para o escrito.

Da relação entre enunciados e referência o urna norma ou modelo

transmitido pela- escrita, podemos extrair uma segunda implicação teórica da

consideração do eixo relativo ao código institucionalizado. Trata-se da relação

entre esaito e planificação, modo pelo qual a escrita termina por torna-se o lugar

da anulação do escrevente, como teremos ocasião de mostrar ao tratarmos da

terceira implicação teórica.

O tipo de valor atribuído à escrita que comentamos acima mostra-se

também pela oposição de dois tipos de visões de língua- a de dentro e a de fora

da Lingüística. Para Biber {1988), a primazia da fala não é aceita fora da

Lingüística: "embora a falo sejO defendida como tendo primazia lingüística à

escrita é dada prioridade social pela maioria dos adultos em culturas octdentois"

(op. ciL p. 6).

Nesse contexto, podemos ler prioridade socía! como planificação. Para

fazê-lo, vale retomar a reflexão de Rossi-landi { 1985) a respeito da "economia

como estudo das mensagens-mercadorias" em seu estudo "Sobre o linguagem

276
verbal e não-verbal': Segundo o autor, "a economia é o estudo de algo que

acontece entre a produção e o consumo, isto é, da troco e de seus

desenvofvírnentos': É nesse sentido que, ainda para o autor, "a economia não

conceme produção e consumo enquanto tais" {op. cit., p. 115, destaque no

original).

A associação entre o que acontece na economia e o que acontece na

escrita vem, pois, a propósito da anulação do troca, isto é, do anulação do

caráter de mercadoria:

''se eu produzo algo e o consumo logo em segu1da ou


deixo que outrem o faça, isto é,, se não tÚisie sequer o
embrião de uma troco, o momento econômico está
simplesmente ausente. Houve apenas a produção de
um bem, de um valor de uso; o produto não leve
tempo de adquirir um valor de troca, isto é, de tornar-
se uma mercadoda" {op. cit., p. 116, destaque no
original).

A utilização, na escrita, de um modelo ditado pelo consumo {daí a

prioridade social a ela atribuída) e não pela necessidade {daí o apagamento da

relação entre sujeitos) corresponde, no reflexão do autor, à coincidência integral

entre produção e consumo. Nesse caso, fica eliminado o valor de troca em favor

da planificação, o que, por sua vez, corresponderia, na reflexão de Rossi-Londi. a

substituir a economia "pelo estudo científico dos consumos [enquanto tais] e, em

função deles, do produção [também enquanto tal] (idem, ib.).

Apesar de também ser troca, o escrita, quando tomada como produto

exclusivo do código institucionalizado, é visto, no entanto, em sua planificação,

enfatizando indiferentemente o pólo da produção ou o do consumo, mas nunca

a relação entre eles. Desse modo, podemos dizer que, do maneira pela qual é

normalmente vista e praticada, a enunciação pelo escrito traduz-se em

277
planificação, uniformização e homogeneização. Esses três diferentes

procedimentos atuam em sinfonia com o poder de certas forças socialmente ·

constituídas, produzindo, respectivamente, a projeção de um modelo a ser

repetido (projeção de um poder burocrático), o efeito de uma partilha simbólica

iguali~ária (simulacro de um poder mais propriamente político) e o apagamento

dos diferenças no p!ano da constituição do sujeito (poder de repressão à

emergência do caráter relaciona! dos sujeitos, poder que, ao negar essa relação,

prevê, como únicas ·possibilidades de emergência do sujeito, a identidade

homogeneizadora do indivíduo - lugar da criatividade ou do desvio da norma -

ou sua identificação pela assunção do que se toma como coletivo no- a própria

norma}. O ensino formal tem, a esse respeito, um papel fundamenta!, uma vez

que as escolhas de modelos de escrita - adequadas ao tipo de consumo

recomendado- são intimamente ligadas a certas minorias. É o que mostra Gnerre

ao trator da alfabetização:

''Se (... ) operamos com grandes abstrações histórica e


ideologicamente constitwdos, tais como 'língua' e
'escnla', ficamos simplesmen-te internos ao nosso
universo de referência conceitual e não nos
relativizomos, mos nos assumimos como medida, ou
ponto de chegado do processo de alfabetização.
Esse processo seria então uma espécie de dto de
passagem que reduziria a d;ferença entre os 'outros',
sejam [os altabetizandos.] crianças ou adultos, e nós,
construindo um indivíduo ó nossa imagem e
semelhonço".(l985, p. 33).

Constatações semelhantes vêm de Marcuschi:

no Na medida em que assumimos que a constituição do sujeito é relaciona! e, portanto,


heterogênea, nõo se constituindo nem em identidade, nem em identificação, destacamos.
com Authier-Revuz {1990), que, na negociação com a heterogeneidade constílutivo do
sujeito e do seu discurso, a heterogeneidade mostrado é o recurso pelo qual o sujeito se
representa como fonte do discurso, ao marcar zonas de contato (op. cit.. p. 31] entre o que
assume como seu e o que atribui ao outro. Em nosso trabalho, essa negociação é o que
permite observar os fragmentosindiciativos de interação.

278
"não deixa de ser um tipo de 'dominação' o situação
o que a criança é submeftdo quando entra no escola
e deve adaptar-se ao saber institucional manifestado
no domínio das formas simbólicas" {1994b, p. 7).

'~ escrita é tanto uma forma de domínio do realidade


no sentido da apreensão do saber e da cultura, como
é também uma forma de dominação social enquanto
propriedade de poucos e imposição de um saber
oficía/ subordinodor" (op. cit., p. 13, clestóque no
original).

Mas não é apenas o aspecto da escolha do modelo que está presente na

tradição plonifícadora da escrita "elaborada por minonOs letrados ligadas ao

poderpol!'fico e econômk:·o"(Gnerre, idem, p. 34). Também o aspecto ligado à

própria tecnologia empregada deve ser lembrado. Goody (1979), ao mostrar a

convivência e inteHe!ação entre escrita e oralidade, afirma:

"A essa situação de controle do escrito por um grupo


especializado correspondem não somente formos
escritos particulares,. mas também formas orais. Quero
dizer com isso que o domínio da expressão oral pode
ser influenciado por toda uma série de maneiras por
essa dimensão suplementar que é a próhCa da
escrita." (op. cit., p. 254-5).

Desse modo, a existência da escrita, mesmo num domínio restrito, como por

exemplo, no domínio administrativo, pode, segundo o autor, ter efeito tanto sobre

"o conteúdo da comunicação oral': como sobre a "estrutura das produções orais

na forma padronizada". Ainda segundo Goody, além da influência do conteúdo

da comunicação {evidente tanto nos escritos religiosos como numa peça de

Shakespeore), também os "esquemas classilicafódos" do "tradição oral" podem

ser modificados de maneira importante. A título de exemplo, o autor cita o

quadro de descrição dos tipos humanos da Europa e suas diferentes

279
caracterisficaslll , destacando que "cada lugar do quadro deve ser preenchido,·

o esquema não tolera nenhuma cada branca, a matriz tem hoJTor do vazio"

(idem, p. 258, destaque no original}.

O caráter de planificação da escrita fica, pois, evidente. Com esse

exemplo, Goody mostra que um quadro para preenchimento como o citado.

"ao formalizar( ... } uma classificação bastante flexível


do falar cotidiano, deixa de ser um simples registro de
um sistema de classificação para tomar-se uma
espécie de texto de referência_, memento acabado
\ ... ) que não é só o produto de julgamentos antigos,
mas um aparelho paro produz/f novos"(idem, íb.).

Toda essa reflexão do. autor, voltada à apreensão da interferência da

escrita na oralidade, pode, no contexto das discussões aqui levadas a efeito, ser

vista quanto à presença do produto escrito no próprio processo de escrever.

Trata-se. mais propriamente, de uma terceira implicação teórica da

consideração do eixo de circulação imaginária que estamos analisando.

Deslocada para o campo da presença do produto escrito sobre o

processo de escrever, a reflexão de Goody se assemelha àque!a feita por de

lemos (1988) quando a autora afirma que os resultados de sua análise de textos

de vestibulandos parecem explicitar:

"um estereótipo formal ou o modelo de discurso


escrito (possivelmente e!Vdito) que o aluno, ou nesse
caso, o vestibulando, tento manipular em face das
dificuldades da tarefa que lhe é exigida. Sendo esse
modelo, por definição, dado ou prévio à reflexão
sobre o temo proposto parece-me claro que ele atua
no sentido de bloquear essa reflexão que é, então,
substituída por um preenchimento aleatório do
modelo, com o que se podenO chamar de estereótipo
deconteúdo"{l988, p. 73).

n1 Quadro, contendo dez nações e dezessete critérios, que figuro numa pintura do início do
século XVII! do austríaco Steiermark {cf. Goody, idem, 155-8).

280
A prática do preenchimento - muito próxima do mecanismo descrito por

Goody sobre o "o calculador de memória" ou "memento acabado"- vai se

caracterizando cada vez mais nitidamente à medida que a autora argumenta.

Um momento importante de sua argumentação é aquele que tematiza a

complexidade do discurso escrito. Segundo de lemos, nesse tipo de produção:

"a participação do interlocutor representado é algo


que o locutor ou produtor que o represento deve
manipular sozinho e é, possivelmente, nessa
duplicidode de papéis, nessa duplo tarefa e, mais
ainda no determinação de uma sobre o outro que se
define a especificidade e a maior complexidade do
discurso escrito"(idem, p. 74).

O quadro em que o escrevente se situa no seu processo de escrever fica

ainda mais restrito, quando a autora mostra a associação entre esse tipo de

antecipação do interlocutor, o modelo de escrita institucionalmente estabelecido

e a conseqüente anulação do próprio escrevente:

"Parece, de alguma forma, p!aus/ve/ afirmar que, em


face da complexidade no duplo tarefa envolvida no
produção do discurso escrito em geral e agravada em
um contexto escolar pela superposição de
interlocutores - interlocutor representado, professor
representado como interlocutor e como examinador-
o aluno lanço mão da estratégia reporatôda
[estratégia de preenchimento]. O recurso a um
esquema formal aparente de discurso escrito e seu
preenchimento com elementos que ele supõe
pertencerem ao universo de conhecimentos e
crenças de seus interlocutores superpostos parece,
pelo menos em parte, derivado dessa situação. Tal
estratégia, porém, não resulta senão no anulação da
estrutura ·dialógica e no instanciação de um bizano
monólogo em que o voz que falo é apenas a do
Outro. "(idem, p. 75).112

112 Em artigo posterior, o autora rediscute a idéia de mono!ogizoção {conferir: de Lemos.


1994). Ainda sobre a relação '' 'palavra pessoal-palavra do outro'", Brait /1994) afirma que
"os gradações quase infinitos existentes entre o conceito de palavra alheio ou opropn"ado se
estabelecem nos relações diológicos do enuncioção"{op. ciL p. 25).

281
Essa discussão é retomada por Pécora {1989), ao anallsar texios de

vestibulandos e de universitários, ocasião em que o autor contribuí também com

outras determinações a essa questão. Pécora procura, por exemplo, evidenciar o

caráter mecânico_ que a escr!fa adquire na escola ao dizer que "tudo se passa

como se a escrito não tivesse outra função que não o de ocupar. o duros penas,

o espaço que lhe foi reservado, como se a sua única vocação fosse ser mancha

de, aproximadamente, vinte linhas de extensão'' (op. dt., p. 68). Ao mencionar a

imagem da escrita que é consagrada pela escola, conclui que, na escola,

escrever significa reproduzir uma atividade que existe exclusivamente em função

do própnO ambiente escola~: cujo valor é exclusivamente escolar. e cujo destino é

reproduzir a sua instituição" (idem, ib.).

ligado a essa visão de escrita, apresentamos o que vamos chamar a

quarta e última implicação teórica da consideração do eixo de

representação do código escrito institucionalizado. Constatamos, desta feita,

a não-percepção - como veremos, só aparentemente paradoxal -, por parte

do escrevente, da relevândasociai(Abaurre, 1987, p. 191) da escrita, portanto a

não-percepção do caráter participativo do escrevente no contínuo processo de

aquisição da escrita.

A fim de definirmos melhor o âmbito dessa última implicação teórica,

traremos a reflexão de Goody acerca das receitas {culinárias e médicas) e sua

relação com o ensino. É importante ressalvar que não estamos pretendendo, a

partir da idéia de receita, retomar a crítica, já te matizada acima, aos modelos de

escrita. Para o que nos interessa no momento, a posição de Goody quanto à

receita escrita, embora pela contramão, aprofundo a questão - que

282
consideramos como básica - de encarar a escrita ou como produto ou como

processo. Observemos, em primeiro lugar. como o autor define uma receita:

·~ 'receita' é( ... ) uma fórmula escdta que indica uma


mistura de ingredientes para fins culinódos, médicos ou
mágicos,· elo enumero os elementos, que entram, nas
preparações ' destinados
.. o ser ·consumidas pelo.
homem"{idem, p. 233).

Segundo Goody, o advento jpor volta de 1500) dos livros que ensinam a

fabricar boas receitas é suficiente para modificar as condições e a natureza do

ensino: "o receito adquiriu, a partir de então, uma total independência em

relação óquele que o ensino, ela se tomou impessoal,. ganhou em generalidade,

em universalidade" (idem, p. 232).

Goody aponta como fatores positivos do introdução da receita no saber

culinário: a possibilidade de sua "extensão e diversificação"; a eliminação do

caráter, em certo sentido, conservador dos conhecimentos culinóríos adquiridos

por simples participação" e a recusa de uma posição de "subordinado" em

relação a quem ensina. Os argumentos uti!izados pelo autor mostram, porém,

claramente. o que fica excluído em cada um desses fatores presentes no

processo formal de aprendizagem: o caráter loca! da receita da cozinha

camponesa; o modo participativo do aprendizodo (segundo' Cf próprio aut~r,

nesse tipo de cozinha se coloca "muito menor ênfase no necessidade de

obedecer estdfamente o uma séde de ordens escritas"} e a possibilidade de

troca com o mestre, ainda mais intensa se considerarmos que esse saber se

adquiria "no contexto da v1da familiar" {idem, p. 238-40).

No caso do processo participa tive do tradição ora!. no quo! os atores estão

engajados na mesma tarefa, além da abertura de possibilidade de

283
transformação do próprio objeto de ensino, podemos detectar também a

presença da padronização {aspecto da escriturização do ora!}, mas em processo.

Esse fato parece indicar que as vantagens apontadas por Goody para a

padronização da receita escrita está, na verdade, para o autor, em outro lugar,

íst9 é, não na padronização propriamente dita, mas na uniformização de um

produto, aspecto que, na reflexão de Rossi-Landi acima comentada, estaria

!!gado a seu valor de uso {seu modo de consumo} e não a seu valor de troca.

Só aparentemente, pois, há um paradoxo na não-percepção, por parte do

esc.revente, da relevância social da escrita. Do fato de as convenções - não

apenas ortográficas - da escrita serem determinadas pela sociedade, pareceria

decorrer imediatamente o reconhecimento de- sua relevância social. No entanto,

ao buscar alçar-se para o domínio do que está institucionalmente fixado, o

escrevente apenas cumpre uma tarefa (burocrática, poderíamos dizer}, da qual

sobra como resíduo sua isenção no que tange ao exercício da troca. Em outras

palavras, pratica uma escrita sem relevância social. O escrevente participa,

desse modo, de um processo de identificação (onde localiza o acerto),

afírmando - pela negação -suo identidade com o que considera como erro. Em

suma, só se apresenta como sujeito pelo excedente de sua escrita, ou seja, pela

superação do que toma como modelar. É esse excesso e essa superação

indiclados que tomamos como produto da imagem que o escrevente fQZ do

código institucionalizado.

Para irmos direto ao ponto abordado, a não-percepção, por parte do

escrevente, da relevância social da escrita está ligada ao pouco espaço de

participação que ele tem no desenvolvimento de sua escrita, escassez que

começa na alfabef1Zação e que segue até a escrita adulta.

284
No que se refere à escrita infantil, podemos detectar, com Abaurre, a

preocupação com o necessário caráter participativo da criança no processo de

aquisição da escrita. Segundo a autora:

·~ escola costumo trabalhar com um conceito


equivocado de prontidão para a escrita e leitura. Seria
muito mais interessante definir prontidão em termos de
uso do escrita do que prontidão poro 'aprender o
desenhar letras' (o que é muito mais uma decorrência
do uso}. Algumas crianças estão muito mais 'prontas'
do que outros poro usar os atividades no seu
ambiente familiar e no contexto social em que vivem."
(op. cit., p. 191)

Vale destacar a ênfase posta pela autora na relação entre prontidão e

uso da escrita. Aínda segundo Abaurre, no caso de crianças com bom

desempenho no chamado "período preparatório" e que continuam a se debater

com a escrita e leitura, pode estar faltando exatamente "aquele contato com a

escrita e leitura que permitiiia o interferência de suo relevância social" (idem, ib.).

Também para Vygotsky (1988}, "o aprendizado humano pressupõe uma natureza

social específica e um processo através do qual os crianças penetram na vida

intelectual daqueles que os cercam"{op. dt., p. 99). É nesse mesmo sentido que o

autor afirma ser necessário "fazer com que a escn'ta seja desenvolvimento

O[ganizodp,,_mois do que aprendizado" {idem, p. 134).

No que diz respeito à escrito adulta, já adiantamosnJ que a composição

do texto escrito é freqüentemente apresentada aos alunos como uma operação

(em cadeia} de recursos tipicamente gráficos, em relação aos quais a

participação do escrevente se reduz ao mínimo, dado que freqüentemente esses

recursos sequer são apresentados e reconhecidos por ele como gráficos.

1 1.:! Conferir, aqui mesmo, p. 29, nota 11.

285
Longe, portanto, de compreender e participar do processo de escrever, o

aluno tende a lidar com os efeitos que supõe atingir a partir de rituais

enunciativos, de lugares-comuns e esquemas textuais. Trazidos sempre como

produtos acabados, fator fundamental da homogeneização da produção,

terminam por resultar num subproduto uniformizado e sem valor de troca.

Em síntese, em termos teóricos, as implicações da consideração do código

institucionalizado, permitem observar: {a} a identificação entre escrita e língua e

a conseqüente uniformização da língua; (b) a relação entre escrita e

planificação; {c) a presença do produto escrito no próprio processo de escrever

e a conseqüente homogeneização do suíeito; e (d) a não-percepção, por parte

do escrevente, do re/evôncía socío/ da escrita como efeito do restrito espaço de

participação que o escrevente tem no desenvolvimento de sua escrita.

Interpretadas de outro modo, os implicações teóricas da consideração

desse eixo permitem entrever: {o) a identificação de um poder político

(envolvendo representações de classes, de segmentos de formadores de opinião,

de segmentos da elite cultura! e da e!ite propriamente polítíca etc.); {b) a

identificação de um poder burocrático {envolvendo representações sobre a

estrita regulamentação da atividade lingüística, ligada à expectativa de

adequação do dizer a certos tipos de saber, a certas esferas de atividade etc.};

{c} a identificação de um poder de recalque [envolvendo a "instoncíoção de um

bizarro monólogo em que a voz que fala é apenas a do Outro" (de Lemos, idem,

p. 75)]; {d) a identificação de ym pod~r pedagógico (envolvendo a reprodução

da imagem que a própria escola passa da escrita como produto autônomo,

isento, portanto, da necessidade de participação do escrevente].

286
A exemplo da abordagem feita sobre representação que o escrevente faz

da gênese da {suo) escrita, trata~se, mais uma vez, de captor o representação

que o escrevente faz da escrita, desta feita enquanto código institucionalizado.

Mais precisamente, trata-se de localizar e explicar suas representações

antecipatórias do código institucionalizado e do interlocutor, emergentes em sua

escrita atual. O enfoque a ser dado ao segundo eixo de circulação dialógica se

apóia, portanto, na mesma hipótese sustentada quando da abordagem do

primeiro eixo, a saber, a de que momentos desse segundo tipo de circulação

podem ser retomados, em tese114, em qualquer época, na escrita de qualquer

pessoa, em qualquer texto.

2. O CÓDIGO INSTITUCIONALIZADO NO CONJUNTO DE TEXTOS


ANALISADOS

Quanto ao procedimento metodológico, manteremos, também em

relação a este segundo eixo de circulação imaginária, a abordagem globalizada

dos textos. É, pois, a busca de como o código institucionalizado aparece

representado nos vários textos que interessa destacar nesta etapa do trabalho.

Em outras palavras, trata-se de apreender o que a imagem dos escreventes

aponta como a escrita padrão, tomada como um modo autônomo de

representação do oral/falado.

No que se refere aos escreventes, portanto, buscamos estabelecer pontos

de individuação comuns. Desse modo, aquilo que poderia parecer o seu mais

alto grau de assuíeitamento, a saber, sua recusa de uma identidade {recusa do

que concede como "o errado") pela afirmação de uma identificação {tentativa

de alçamento ao que imagina como o código escrito institucionalizado), será

11 4 Conferir, aqui mesmo, p. 194. nota 31.

287
visto como um processo de individuação, em que o caráter relaciona! da

constituição do sujeito determino sua existência histórica, isto é, determina suo

especificidade, portanto longe, também, da centra!idade do indíviduo tomado

como fonte de seu dizer. Essa especificidade- caráter ao mesmo tempo ''geral"

e "particular" do sujeito - é o que permite que busquemos. nos textos. pontos de

individuação {no caso deste trabalho, por meio da captação de pistas lingüísticas

locais com caráter de réplica}.

Esses pontos dé individuação, que denunciam a tentativa de alçamento

do escrevente ao {ou seja, afirmação de suo identificação com o) que imagina

como código escrito institucionalizado, serão reunidos em um nível mais alto de

generO!idade, o das regu!addodes lingüísticas atinentes às várias dimensões da

linguagem: marcas de natureza sintática e lexical, de organização textual, de

recursos argumentativos e de natureza ortográfica. Mantemos, desse modo,

como objetivo, garantir, por meio da captação de pístos comuns nos vários

textos, tanto o trabalho com o método indiciádo, como a abordagem

global1zada e de caráter explicativo do problema.

Segue, em termos perce;ntuais, o quadro relativo à freqüência dessas

regu!addades de acordo com as dimensões da linguagem analisadas. A

exemplo do eixo anteriormente analisado, o cálculo proporcional foi obtido da

seguinte forma: consideramos a soma total de ocorrências de todas as •

regu!ondades no conjunto dos textos e, em função dessa soma, chegamos aos

percentuais par9 cada--(.{Jgulandade referente ao eixo de representação do

código escrito institucionalizado. Vale insistir na ressalva de que as pistas

priv!!egiadas para análise não tiveram sua relevância avaliada simplesmente

pela freqüência. Levamos em consideração, sobretudo, o fato de guardarem em

288
comum a característica de manifestar o mesmo modo particular de

processamento (o mesma regu!addade) em uma dada dimensão da linguagem,

de tal forma que pudessem contribuir ~ no caso deste segundo eixo - para a

caracterização da imagem que o escrevente faz do código escrito

institvciona!izado, um dos tipos de c!rcv!ação imaginária que, segundo o que •...

estamos defendendo, leva à caracterização de um modo heterogêneo de

constituição da escrita.

QUADRO 1: Porcentagem das ocorrências segundo as dimensões da linguagem


para o eixo de circulação imaginária pelo código escrito
institucionalizado no conjunto dos textos

DIMENSÃO DA LINGUAGEM PORCENTAGEM


SINTAXE* 20,1
MARCAS LEXICAIS 20,1
ORGANIZACÃO TEXTUAL 33,3
RECURSOS ARGUMENTATIVOS 20,7
MARCAS ORTOGRÁFICAS 5,8
TnTAL 100,0
* MantiVemos a separação entre Sintaxe e Léxico apenas para preservar o paroieiismo
quanto ao tratamento dado a essas dimensões da linguagem no capítulo 3.

Marcas sintáticas da representação do escrevente sobre a (sua) escrita


como código institucionalizado

As regulanOades sintáticas que se mostraram mais salientes nos textos

ana!lsados foram: (1) quanto à construção do sintagmc nominal: (a) a posição do

adjetivo no sintagma nomínai; e {b) a construção do sintagma por meio de

nominalização; (2) quanto à estruturação intrincada da frase: {o) a construção

complexa e de difícil compreensão; e (b) o fenômeno da hipercorreção.

Embora, evidentemente, do ponto de visto sintático, ambos os tipos de

marcas participem da construção do frase, a separação se justifica por ser o

sintagma um !ugar privilegiado para se observar o articulação entre léxico e

289
sintaxe. O aspecto que nos interessa mais de perto é a passagem das

denominações que pertencem ao domínio ativol 15 do escrevente para as

denominações que ele atribui a seu interlocutor {a cujo padrão de linguagem o

escrevente busca se alçar). Nossa hipótese é que, ao focalizarmos, no momento

dessa passagem, a articulação entre léxico e sintaxe no sintagma, teremos

acesso a uma das maneiras pelas quais o enunciado caminha por ''pontos de

derivo" e se torna suscetível de "se deslocar discursivomenfe de seu sentido para

derivar paro um oufro'~ 1 6 • Mais precisamente, na discrepância entre os dois

momentos desse deslocamento, teremos acesso à representação do escrevente

sobre si mesmo, sobre o interlocutor e sobre a própria escrita.

Eis o quadro indicativo da freqüêrida dessas regularidades da dimensão

sintática:

QUADRO 2: Porcentagem de ocorrência segundo regularidades lingüísticas da


DIMENSÃO SINTÁTICA em relação ao total de ocorrências das
regularidades das outras dimensões no conjunto dos textos

* Conferir sobre a relevância das marcas não ser dada por sua freqüência, aqui mesmo.
capítulo 3, quadro 2, p. 198.

115 A relação entre domínio ativo e domínio passivo tem a ver com a heterogeneidade das
variedades lingüísticas dominadas pelo falante. Berruto (op. cit) fala de "competência
compósda'' poro dar conta não só do domínio de certas variedades da língua ou de setores
diversos de uma variedade, mos também dos aspectos pelos quais essa compelêncla se
apreSento: "competência ativa" (capacidade de produzir mensagens) e "competência
passivo'' (copocidode de identificar e Ji?terpretar mensagens ). Acrescenta. ainda, que,
presumivelmente. a "competência passivo" é mais amplo do que o "competência ativo':
uma vez que podemos identificar e interpretar mensagens que não estamos em condições
de produzir (idem. p. 33-4).
116 Conferir Pêcheux (1990 b) e aqui mesmo, p. 193-4.

290
(1) A POSIÇÃO DO ADJETIVO E A NOMINALIZAÇÃO COMO MARCAS DA
REPRESENTAÇÃO DO CÓDIGO ESCRITO INSTITUCIONALIZADO

Duas regu/oddades lingüísticas se destacam quanto à construção do

sintagma. A primeira delas loca!iza-se na escolha e na posição do adjetivo; a

segunda, no procedimento de nominolização~

Os textos são pródigos em exemplos de sintagmas em que a escolho e a

posição do adjetivo indiciam a tentativa de alçamento do escrevente à escrita

culto forma! É esse o constituinte do sintagma em que se localiza

preferencialmente o ponto mais saliente da indidação que o escrevente faz da

sua representação sobre o código institucionalizado. Essa saliência é marcada

tanto pela escolha do adjetivo, como pela sua posição no sintagma, a saber,

DETERMINANTE+ ADJETIVO + NOME.

No que se refere à indiciaçõo da circulação do escrevente pelo que

representa como código institucionalizado, essa posição do adjetivo ganha maior

saliência quando vem associada a uma escolha de adjetivo que não é

totalmente adequado:

"CnOnças assassinos e assassinadas são páginas de jornal que


a concreta sociedade vira diadamenle, sem nenhum sinal de
comoção ou indignação. {Texto Ol-D40).

Essa ocorrência acontece no terceiro parágrafo do texto, cujo título e os

dois parágrafos antecedentes são os seguintes:

Cotidiana Violência

"O fim da senstbtlidade humano é muito interessante paro os


governantes, o homem já é desprovido de cu/furo, sem sentimentos
também, será mais fácil manipulá-lo.
"Matam e morrem em vão." {Texto Ol-040)

291
A análise estilística mais tradicional diria que tanto em concreta sociedade

como em cotidiana violência há um acento da subjetividade, fofo que poderia,

no caso, ser verificado também no início do primeiro parágrafo do texto em que

o escrevente exprime a queixa quanto ao fim da sensibilidade humana. Interessa

destacar, porém, um outro aspecto levant?do por esse mesmo tipo de estilística,

a saber, o de que:

"Estas postçoes sentimentais não são favoráveis


gerolmt:tnle à nitidez das ideias. Por iSso, o grupo do
adjectivo antes do substantivo tende a constituir sédes
usuais de intensidade e clichés. {... } Donde se pode
tirar esta conclusão: o adjectívo anteposto serve de
expnfnír as qualidades pdmitivos ou geralmente
consagrados." [lapa. s.d .. p. 155-6)

Observemos que a busca de usos consagrados vem aliada, nos exemplos

citados, a combinações lexicais questionáveis. No exemplo dado, aplicar o

adíetlvo !!concreta" à "sociedade" não corresponde propriamente o supor o

existência de uma "sociedade abstrata", mos parece marcar a busca de uma

adequação que efetivamente não se dá. Defendemos que essa busca, embora

marcada pela inadequação, é a pista que o escrevente deixa de sua percepção

da "dialogizoçõo fiifeino'~l7 da palavra, ou melhor, da tentativa de ser

reconhecido, por meio desse uso, como um interlocutor possível diante do

interlocutor que ele próprio representa para si. Portanto, o deslocamento de

sentido que a escolha do adjetivo acarreta mostra que, nesses casos, essa

escolha é muito elogüen~e em razão da discrepância entre o enunciado

atribuído ao interlocutor e o deslocamento de sentido presente no enunciado

efetivamente produzido. Parece, pois, ser a tentativa de alçamento ao que

111 Cf. Authier-Revuz, 1990, p. 26.

292
representa como o modo de dizer próprio de seu interlocutor que leva o

escrevente ao tipo de escolha dos dois casos citados e também dos casos

abaixo, que serão mencionados apenas a título de ilustração:

"A atenção desviado para atingir metas [... ), provoca um vazio no


espírito do moderno ser humano, ... " (Texto 03-155). _

"Nos morros escorrem favelados que habitam a cidade roubando e


matando para sobrevive!: Começa a formação de organizados
quodnlhos --"{Texto 03-173)-

Cabe acrescentar que a representação do código institucionalizado, em

todos esses casos, pode ter como modelo um dos textos do coletânea, o de n" 6:

"Fiscais uniformizados e armados pat!VIham os praias para controlar os violentas

guerras entre os surfistas (... ) Nas !VOS das cidades imundos e perigosas,

marginalizados povos pdmitívos que habitavam os favelas agora vagam famintos

e agressivos." {cf., aqui mesmo, p. 118). Ressalvemos, porém, que o fato de

estarmos, neste ponto, mobilizando o que chamamos neste trabalho o terceiro

eixo da circulação dialógica do escrevente - aquele que está ligado ao já

falado/ouvido e já escrito/lido - não significa admitir uma relação de inclusão

entre o segundo e o terceiro eixo, mas, ao contrário, mostra que a articulação

entre os três eixos é possível e empiricamente constatável.. O último exemplo

acima citado parece ser o caso mais flagrante de tomada da coletânea como

modelo do código institucionalizado, momento em que o escrevente localiza,

nesse empréstimo, uma "zona de 'contato'" com o interlocutor representado em

seu texto.

A segunda regu!ondade lingüística, ainda no âmbito do sintagma nominal,

é a da tentativa de integração de informação por meio de nominalizoção.

Observemos o exemplo:

293
"É lógico que a educação tombem interfere no estado
nervoso de uma pessoa, quanto maiOr sua capacidade de ser
paciente, menor o nervosismo será gerado.
''A solução de uma possível diminuição na violência senO a
estabilização da economia... " (Texto 01-021)

Em "a solução de uma possível diminuição na violência", o escrevente

busca integrar duas afirmações "a solução para {o problema da) violência" ·e "a

possível diminuição da violência". Dessa tentativa parece resultar o uso da

preposição "de": "a solução de uma (... ) diminuição". É interessante observar

que o que está em jógo nessas duas afirmações são duas questões motivadores:

a de como solucionar e a de como diminuir a violência. A abordagem a essas

duas questões é, portanto, tomada pelo escrevente como o tópico de uma

réplica ao que ele atribui ser a expectativa de abordagem de seu interlocutor.

Desse modo, a supostas questões como "é possível solucionar o problema

da violência?" e "é possível diminuir a violência?", o escrevente responde,

procurando - ao construir o tópico sobre o já-dito supostamente compartilhado

com o interlocutor representado - integrá-las num único enunciado: "a solução

de uma possível diminuição na violência". Desta feita, sua tentativa de se alçar

ao que dá como questionado pelo interlocutor fica registrado na nominalização

ou, mais propriamente, na história enunciativo que ela carrega. Novamente, esse

fragmento indiciatlvo de interação concorre para marcar a circulação do

escrevente pelo registro discursivo em que localiza essa interação. Ao fazê~lo, o

escrevente se most:a a meio caminho da formulação desejada, evidenciando o

processo em que se encontra e, especialmente, a imagem que faz sobre o

código escrito institucionalizado.

Ainda no mesmo exemplo, a resposta propriamente dita às questões

topicolizadas no nominalizaçâo vem curiosamente sob a forma de uma outra

294
nominalização. Ou seja, a solução para o problema da violência: "seria a

estabilização da economia". Ao contrário da nominalização anteriormente

comentada, não podemos afirmar, apenas com base na construção dessa

estrutura, que o escrevente esteja marcando alguma saliência quanto a sua

circulação pelo que representa como código escrito institucionalizado.

No entanto, a insistência no uso desse recurso é mais um dado que marca

essa sa!!ência. O escrevente parece caminhar na aquisição do que Benveniste

( 1989) classifica como uma "atividade metamórfica" e "talvez o trabalho [sobre o

aparelho formal] mais singular da língua': que consiste em transformar "certas

orações fipícas, simples ou complexas, em signos nominais': segundo o autor,

constituindo "compostos descdtivos, instrumentos de c/assífícaçõo e de

nomenclatura, aptos a se tomarem denominações científicas... "·(op. cit., p. 163-4).

Dado que uma das esferas de atividade que recorrem a esse tipo de enunciado

é a científica (em alguns casos, como no do exemplo, freqüentemente presente

na mídia}, podemos supor que a motivação do escrevente para a nominalizoção

advém da tentativa de produzir um texto apropriado ao interlocutor. projetado

como pertencente ao campo do conhecimento formaL lugar onde localiza o

código institucionalizado.

2. REPRESENTAÇÃO DO CÓDIGO ESCRITO INSTITUCIONALIZADO NA ESTRUTURAÇÃO

INTRINCADA DA FRASE E NA HIPERCORREÇÃO

No que denominamos "estruturação intrincada da frase", destacam-se

duas regu/addodes lingüísticas: as construções complexas e de difícil

compreensão, elaboradas para reproduzirem uma crítica; e o fenômeno da

hipercorreçõo em geral (quanto à regência; quanto ao uso do pronome oblíquo

295
como um caso particular de regência; quanto à concordância - nominal ou

verbal-; e quanto ao uso de tempo verba!}.

O exemplo abaixo mostra um tipo de consfrução complexa elaborada

para reproduzir uma critica:

"Ideais novos (ou velhos?) estão se impregnando no sistema de valores


das sociedades, especialmente nos mais jovens, devido, talvez à sua
maior vulnerabilidade diante das 'novidades', e seus preceitos, da sua
confemporaneidade. "(Texto 03-150)

Observemos que o escrevente investe numa formulação mais formaL é

consistente em seu investimento, mas, a partir de um certo momento {a partir de:

"e seus preceitos ... "}, dá indícios de que esse investimento é uma tentativa de

alçamento, o que caracteriza um modo heterogêneo de constituição da escrita.

Note~se que esse modo heterogêneo se marca novamente pela tentativa

de alçamento e não pela alternância entre eixos de circulação diferentes. No

mesmo eixo aqui considerado, o do código institucionalizado, essa escrita

evidencia, portanto, o processo em que o escrevente se encontra em sua

relação com a linguagem.

No caso acima, o reçurso de "empacotamento" de informação que se

mostrou possível no início da frase termina por levar o escrevente a um torneio

sintático basfonte complexo e sem outro sentido senão o de direcionar a

informação para a especificação das justificativas que levariam o jovem a ser

mais vulnerável às novidades. Apreende-se, porém, essa díreção, mas não a

especificação pretendida.

No caso abaixo, a complexidade da consfrução se mostra numa

seqüência descrifiva e não propriamente na elaboração de uma crítica:

296
"Não encontramos violência apenas no Rock, porém, há um enfoque
maíor neste pelo foto de que este não consegue acobertar seus
problemas como fazem siStemas políticos e uma classe elitízada A
reunião de milhares de pessoas num mesmo local leva a um
infercambio magnético de ondas cerebrais que se atraem e se
confrontam com os mesmos problemas. A tensão vai aumentando e os
ondas chocam-se cada vez mais até que a situação fíca insuportável
provocando mortes, brigas, conflitos, tumultos." (Texto 04-214)

Como vemos, a tentativa foi a de descrever um show de rock. Podemos

até admitir que o escrevente conseguiu fazê-lo, mas o mesmo "intercâmbio

magnético" que poderia produzir uma evocação adequada da troca que

acontece nas grandes multidões, termina por provocar um descompasso com o

domínio de saber ao qual está ligada a metáfora e5colhida. Buscando dar uma

continuidade a seu dizer a partir do encadeamento temóticons entre

"intercâmbio magnético", "ondas cerebrais", "se atraem" e "se confrontam", o

escrevente parece pretender f111ar seu enunciado ao saber formal sobre os efeitos

físicos do magnetismo, especialmente à propriedade de atração e repulsão dos

corpos. Note-se que o que começa como troca (''intercâmbio"), em seguida

torna-se um movimento de "ondas" que "se atraem", porém que também "se

confrontam", embora, curiosamente, "com os mesmos problemas". Vale, pois,

destacar que atrair-se ou confrontar-se com os mesmos problemas são coisas

compatíveis, mas o atrair e o repelir do magnetismo físico se dãO em situações

em que os corpos dividem propriedades, a cada fenômeno (no da atração ou

no da repulsão), diferentes. A escolha da metáfora e do encadeamento

temático a e!a ligado têm claramente a ver com o aprendizado formal de Física.

Utilizar uma metáfora ligada a esse campo de conhecimento pode parecer ao

escrevente um recurso adequado à expectativa que ele antecipa para seu

118 Mecanismo de coesão textual tratado por Koch (1988).

297
interlocutor. Evidencia-se, uma vez mais, a forte presença do interlocutor

representado na cohstrução do texto do escrevente. É nessa direção do saber

ínstituclonalizado {incluindo-se nele a representação que o escrevente faz do

código escrito} que parece ir esse tipo de construção.

São muitos os modos pelos quais pode aparecer o que estamos

chamando genericamente de construções complexas. Os exemplos citados,

porém, dão já uma idéia de como o escrevente, ao perceber a necessidade da

substituição df! prosódia pelo léxico e pelas construções sintáticas, pode

enveredar por construções excessivamente complexas e típicas de uma busca

de superação de limites. Exemplos como os comentados mostram que o

escrevente, embora se aventure no alçamento a um. registro formal, coloca-se

fortemente no campo do que representa como sendo a oralidade. Portanto, no

momento em que o escrevente representa para mais a necessidade de

construções complexos em seu texto - ocasião em que se distancia dos recursos

que, em outros pontos do texto, ele mesmo pode atribuir à gênese da escrita -,

evidencia, em sua relação com o que representa como código escrito

institucionalizado, um modo heterogêneo de constituição da escrita.

O segundo tipo de regularidade quanto ao aspecto da "estruturação

intrincada da frase" é a hipercorreção {quanto à regênda; quanto ao uso do

pronome oblí9uo como um caso particular de regência; quanto à concordância

-nominal ou verbal-; e quanto ao uso de tempo verba!}. Esse tipo de indicíação

parece ser condicionado pel~ respeito ao distanciamento que_ essa. escrita -

circunscrita a um tipo de evento muito particular - impõe ao escrevente em

relação ao que ele diz. Nessas condições, o processo de textua!ização levado a

efeito pelo escrevente caracteriza-se por uma reprodução em simulacro -

298
evidenciando a distância relativa do escrevente, por um lado, e do que ele

diz/para quem diz, de outro - de recursos sintáticos que sejam passíveis de

atribuição ao próprio interlocutor que ele representa em seu texto. Nesse sentido,

podemos dizer que, do ponto de vista do vestibulando, o crédito que ele atribui

ao leitor por meio da hipercorreção constitui sua escrita como o ponto de ..


mediação- mas também o lugar de legitimar a alienação (ou o distanciamento}

do escrevente em relação ao que diz - entre seu texto e o interlocutor nele

representado,

Observemos os casos de regência abaixo:

"... a tele visão é o pdncipal veneno a que todos ingerem" (Texto O1-ü 15)

"O número de mulheres em decadência é elevado, e os que


morrem por práh"ca ao aborto por uma gravidez indesejada é
irreversível': (Texto 01-ül5)

No primeiro caso, o escrevente procura mostrar o domínio da regência do

verbo "ingerir" ao utilizar uma formulação sofisticada, em que a regência se

antecipa 09 verbo ao compor uma relativa. No segundo caso, o escrevente

parece optar por um emprego anteriormente feito em seu texto: "não se

encontro respeito aos direitos do ser humano". Ao transferir esse emprego da

preposição "a" para a expressão "prática ao aborto", suo .expectàtiva 'POde ter

sido a de reproduzir a estrutura de uma expressão {que já se tornou quase um

bordão) para uma outra menos conhecida. Em ambos os casos, no entanto,

como também no caso que será apresentado a seguir configura-se o fenômeno

da hipercorreção, claramente vinculado a uma representação que o escrevente

faz do interlocutor e do código escrito institucionalizado, bem como de um lugar

para si mesmo. Este último - contra o que indicam suas próprias expectativas -

299
evidencia-se como sendo o lugar do erro {talvez das estratégias que ele atribui à

oralidade), de onde parece projetar o lugar da correção {o das estratégias de

que tem notícia pela escolarização da língua e que ele representa como as do

código institucionalizado).

Quanto ao uso do pronome oblíquo como um caso particular de

regência, observemos o exemplo abaixo:

"Podemos perceber então que a v!Oiência não deve ser


combalida isoladamente, e devemos levar em conta vários outros
problemas que a sobrepõem. "(Texto 03-124)

O pronome "a" ocupo o casa de um sintagma preposicionado que

deveria estar ligado ·ao uso pronominal do verbo "sobrepor", também omitido no

exemplo. A forma desejada parece ter sido, portanto, "que se sobrepõem a ela".

Nesse caso, o escrevente busca o alçamento paro o código institucionalizado ao

usar um verbo do qual não tem domínio ativo e ao combinar esse uso com o

que imagina ser a sintaxe da escrita culta formal. Talvez por localizar na

estruturação perifrástica (preposição mais pronome: "a ela") um uso mais

informa!, prefere o preenchimento da casa do sintagma preposicionado com o

pronome "a". A essa opção, e provavelmente baseado no que aprendeu ser a

regra adequada para o caso, acrescenta a colocação do pronome "a" em

próclise119.

No que se refere à concordância - nominal ou verba! - é comum o

escrevente indiciar sua represenk.ição do código escrito institucionalizado ao

empregar regras de concordância inadequados ou em excesso.

119 Se tomarmos por base a tendência de desaparecimento do clítico acusativo de 3a


pessoa (Duarte, 1989). já comentada no capítulo 2 (cf.. aqui mesmo. p. 151), o emprego
inadequado do c!ítico acusativo no exemplo acima evidencia claramente a hipercorreção
e, por conseguinte, a imagem que o escrevente foz do código escrito institucionalizado.

300
É o coso da flexão inadequada do nome no exemplo abaixo:

"Através dos séculos o violência se manifestou dos mais macabras


formas, como em Roma,· onde os cristões eram atirados aos leões poro
o de/ido de uma inflamado platéia ... " (Texto 03~ 125)

em que parece ter havido uma assimiiOção da•.flexâo de "cristão" à flexão de

"leão", resultando na formulação acima, nitidamente ligada à correção

gramatical atribuída à escrito culta formal.

O caso abaixo exemplifico a hipercorreção quanto à concordância

nominal:

"Caso contrário o que restará é um paiS miserável cheiO de gentes


famintos e agressivos". (Texto, 01-019)
.
Esse é o enunciado de encerramento do texto do escrevente e se baseia

nitidamente no texto n° ·6 da coletânea: "nos ruas dos cídades imundos e

perigosas, marginalizados povos pninitivos que habitavam as favelas agora

vagam famintos e agressivos." (cf., aqui mesmo, p. 118). Podemos dizer que a

expressão "cheio de gente" cabe bem num registro informal da fala popUlar. O

modelo de escrita culta formal que o escrevente reconhece na coletânea de

textos impõe-lhe, porém, uma interessante alteração. Em vez de cortar o plural

dos adjetivos ("famintos e agressivos") que toma de empréstimo da coletânea,

prefere trazê-los intactos para seu texto e promover a concordância a partir

deles, colocando no plural também o nome "gente" da expressão ucheio de

gente". Com esse procedimento -embora mais uma vez contra o que indicam

suas próprias expectativas- fica evidenciado que o lugar que o escrevente atribui

a si mesmo é o !ugar do erro (novamente o lugar das estratégias que ele atribui à

to.Ja popular informal) e que, a partir desse lugar, procura alcançar o lugar da

301
correção (no caso, o do modelo que a própria coletânea representa para ele).

O efeito resultante, portanto, é a indlciação do alçamento pretendido pelo

escrevente.

Um último caso de hipercorreção que será destacado é o do uso do

. tempo verba!:

''Uma juventude como essa, que se acha tão marcante


devenO agir com um pouco mais de humanismo e perceber ou talvez
encarar de frente, que nõd está fazendo nada mais que as outras
gerações passadas. Tentondosolvaromundo. {... )
"O mais a!Ormonte é que nada tem sido fedo até hoje para o
conscientização de que a violêncla só levará à contnbuiçõo de uma
civJ7izaçõo ainda mais fdo e calculista.
"Com jovens tão donos de si agindo desta forma, o passado
sem dúvida fora bem melhor ou pelo menos não foi tão amargo,
como promete o futuro. Que com toda essa violência talvez nem
chegue, "[Texto 3~169)

Como vemos, o escrevente, ao retomar as "gerações passadas" e ao

constatar que "nada tem sido feito até hoje" no que tange à conscientização

sobre os prejuízos da violência, termina por escolher a forma do pretérito mais-

que-pelfeito simples para ocupar o lugar de um pretérito perfeito. A tentativa

parece ter sido, portanto, indicar um estado que: se produziu em algum momento

do passado: "Com jovens tão donos de si, agindo desta forma [atualmente], o

passado sem dúvida foi bem melhor". A ocorrência do pretérito-mais-que-

perfeito se dá, como podemos constatar, depois de uma referência à atualidade

da enunciação do escrevente - observe-se a coesão estabelecida pela

expressão "desta forma" . Parece Ser essa referência à enunciação que leva o

escrevente a procurar uma forma de recusa da incompatibilidade entre essa

afirmação sobre uma situação presente e o comentário seguinte sobre uma

situação passada.

302
E importante destacar, porém, que o escrevente busca, então, dissipar

essa possível ambigüidade não pela representação que poderia fazer da gênese

do escrita - meio pelo qual, ao optar pelo pretérito perfeito, simplesmente

assumiria que uma certa prosódia ficaria plasmada no escrito- mas, ao contrário,

por meio de um recurso que ele atribui à escdtd culta formal: "éom jovens tão

donos de si, agindo desta forma, o passado sem dúvida fora bem melhor".

Observamos, portanto, nessa busco de a Içamento, a imagem que o escrevente

faz do código escrito institucionalizado, ao mesmo tempo em que mostra o modo

heterogêneo de constituição da escrita.

• • •
Procuramos abordar, até este ponto, as marcas sintáticas que indiciam o

modo pelo qual o código escrito institucionalizado aparece representado rios..... -,

vários textos.

Tratamos, inicialmente, das reguladdades sintáticas: (1) nos limites do

sintagma, em que duas delas foram destacados: a posição do adjetivo em

relação ao nome e o processo de nominolízoçâo; {2} no estruturação intrincada

da frase, em que duas outras se mostraram relevantes: o caso das construções

complexas e de difícil compreensão, elaboradas para reproduzirem uma crítica,

e o caso da hipercorreção [de vários tipos}. Todas esSas regutandadesconfirmam

a tentativa do escrevente de utilizar recursos para a integração de informação.

Confirmam, portanto, o modo pelo qual os escreventes representam essa

característica que, segundo Chofe120, é própria da escrita típico.

Dessa análise das marcas sintáticas que indiciam a imagem que o

escrevente faz do código escrito institudonali:zado foi possível observar alguns

120 Conferir Chafe (1982. 1985} e. aqui mesrno. p. 78.

303
fatores condicionantes do aparecimento de certos tipos de estruturas sintáticas,

tais como: a busca de construções tidas pelo escrevente como consagradas,

aliada a combinações lexicois questionáveis; a passagem das denominações

que pertencem ao domínio ativo do escrevente para as denominações que ele

atribui a seu interlocutor (e a discrepância que caracteriza o intervalo entre os

dois momentos desse deslocamento); o alto grau de influência do interlocutor

representado na textualizaçõo levada a efeito pelo escrevente; o distanciamento

que o escrevente toma, pelo mediação da escdta culta formal que atribuí ao

interlocutor, em relação ao que diz.

Todos esses fatores condicionantes estão ligados naturalmente ao

processo de escolarização da língua. O modo pelo qual essa escoralização vem

marcada revela uma representação do código institucionalizado, seja {a) pelo

mecanismo do preenchimento de modelos, comentado por de lemos (1988), ou

de um esquema textual (cf., aqui mesmo, p. 124), seja {b) pelo alçamento a uma

meta!inguagem, procedimento que tende a ser, segundo Pécora {1989}, um

"aborrecido exercido de cristalização de formas"{op. cit., p. 72).

Porém, mais do que simplesmente evidenciar o processo de escolarização

a que estão submetidos os alunos, as marcas acima tratadas delimitam um lugar

para o próprio escrevente em relação à linguagem, fato que se verifica pela sua

circulação também por outros pontos da imagem que faz da escrita, revelando,

por contraste. momentos de representação de outros aspectos de constituição

da escrita, como o de sua g~nese e o de sua relação com o já falado/ouvido e o

já escrito/lido.

304
Marcas lexicais da representação do escrevente sobre a (sua) escrita
como código institucionalizado

Nitidamente ligadas às marcas sintáticas, a separaçõo que fazemos aqui

tem em vista apenas manter o paralelismo quanto ao tratamento dado a essa

dimensão da linguagem no capítulo 3. Dois tipos d~ escolha !exical são

representativos da circulação pela imagem que o escrevente faz do código

institucionalizado e caracterizam as duas regularidades a serem tratadas aqui; (1)

escolhas inadequadas ao registro assumido no restante do texto ou até mesmo

ao registro tomado como modelo; e {2) escolhas cuja inadequação ultrapassa a

questão do registro, dificultando a interpretação.

Na seqüência, apresentamos o quadro indicativo da freqüência dessas

regularidades relativas à dimensão lexico!.

QUADRO 3: Porcentagem de ocorrência segundo regularidades lingüísticas da


DIMENSÃO LEXICAL em relação ao total de ocorrências das
regularidades das outras dimensões no conjunto dos textos

DO TEXTO

Exemplificam o primeiro caso de escolha lexical os seguintes casos:

"A violência como forma de defesa como índice revelodordo


baixo padrão cultural e educacional de um povo tomou-se atávica e
indifereneiável contemporoneamente. São flores que afloram depois
de um longo período de donnência ... "
{... )
"O problema deve ser tratado pela raíz de um modo humanamente
racional e diplomático entre oprimidos e opressores, governantes e o
povo poro que o seiva circule para o restante da planta. A partir daí,
se obdró uma porto poro um grande entendimento e o ser humano
atingirá a capacidade de refletir sobre o vida e a suo efemeridode."
{Texto OHJ49)

305
Nos dois casos, a integração ao texto das escolhas lexicals (do adjetivo, no

primeiro; e do substantivo, no segundo} destacadas não é feita senão com o que

normalmente se chama um certo grau de inconsistência de registro. Trata-se,

mais propriamente, de um indício sobre o processo de aquisição da escrita do

escrevente. ~ pois, sua relação com a linguagem que está contando. Esse indício

revela, segundo o que defendemos, a representação que o escrevente faz sobre

as palavras pelas quais imagina transitar o diálogo que busca com seu

interlocutor. Mais do que a adequação de sentido ao contexto lingüístico, o

escrevente parece contar com a história que "ocupa'~ as palavras [cf. Authier-

Revuz {1990, p. 27), ao retomar Bakhtín).

Uma \l.ariação dessa tipo de escolha lexical aparece em textos mais

enquadrados ao que normalmente se toma como a escrita padrão. É o que

ocorre no texto que, dentre os de nosso corpus, recebeu nota máxima nessa

prova. Vejamos a explicação para "ideologia tradicional", em nota de rodapé:

"[Nota] 1. Que está nas antípodas da ideologia individualista." (Texto


Q]-()54).

Tendo anteriormente mostrado como a violência está ligada ao

individualismo, o escrevente defende, no momento em que faz o nota, que deve

ser buscada a razão de o aumento da violência se localizar freqüentemente em

grupos, mais especificamente, em "grupos( ... ) de 'ideologia tradicional' ", Uma

hipótese para a escolha do item lexical "antípodas" é a de ela ter recaído no

sentido corrente, por exemplo, em Filosofia, em contextos como "tese antípoda",

significando "tese simétrica". Outra hipótese é que a expressão destacada seja

empréstimo do francês "être à I' anfipode de/aux antipodes de"l21. Essa

expressão não aparece exemplificado no Novo Dicionário Aurélio nem no Caldas

121 Fonte: lorousse de poche: précis de grommaire. Paris : Lorousse, 1979.

306
Aulete, mas o Aurélio registra que a palavra "antípoda", em português, pode ser

utilizada em sentido figurado122, significando "o contrário", "o oposto", podendo

também como adjetivo, significar "contrário", "oposto" e assumir os dois gêneros.

Seja ou não verdadeira o segunda hipótese (e esteja o escrevente consciente ou

não do empréstimo), a expressão portuguesa correspondente traz um campo de

saber letrado especifico paro esse texto. Essa escolha é, pois, em qualquer das

hipóteses, uma marca significativa da imagem que o escrevente faz do código

escrito institucionalizado. Sem ser inadequada, ela mostra que a superação no

que se refere ao domínio do código escrito institucionalizado não é privilégio

daqueles escreventes com pouco trato com a escrita.

Vale observar, num parêntese, que a seleção dos exemplos citados neste

trabalho corre sempre o risco - especialmente em relação aos textos menos

integrados ao padrOo tido como adequado - de ridicularizar a escâta do

vestibulando, prática comum na publicação das chamadas "pérolas" que os

jornais gostam de fazer a cada ano. Nosso objetivo, ao contrário, é localizar a

especificidade da escrita do vestibulando, razão pela qual estamos lidando com

a representação que ele faz da escrita, ou seja, com algo que, localizado em

escritas particulares, não pode ser visto como uma extravagâncla individual, mas

como uma atitude- em diferentes graus- socialmente compartilhada.

Os exemplos abaixo confirmam a mesma busca de alçamento, ainda

que, desta feita, indo além da inadequação ao registro e dificultando a

interpretação;

122O Aurélio traz como sentido próprio: "5. m. !. Habitante que. em relação o outro do globo,
se encontro em lugar diametralmente oposto; antíctone." /Us. quase só no p/. ...}. Uma outra
acepção é a utilizada em Botânica, em que o substantivo feminino mantém o traço çle
"oposto" . Como vimos no exemplo analisado, essa escolha nõo só se filio a um campo de
saber específico, como busca sustentar o texto por meio da autoridade do especialista.

307
''... o governo envolveu a população de tal forma, que em plena
ditadura, !Qdo o povo saiu as ruas comemorando uma vitória e
deixando de lado as faucatrvas governamentais.
':4s manifestações populacionais deveriam ser combatidas
através de melhores condições de vida ... " {Texto 01-003}

''Assistem calados jovens au!o-des/rulfveis se atropelando pelas ruas


das favelas nas brigas de gangs ... " (Texto OHJ40)

"Mos o pior de tudo não é perder bens e sim a integridade, ou a


própria vida! Num pais onde a perspectiva de vida é baixa ... " {Texto
00{)14)

No primeiro desses exemplos, temos uma evidente escolha inadequada

do adjetivo "populacionais" em vez de "populares". Com essa opção, o

escrevente revela a recusa de uma formulação perifrástica "manifestações do

povo" que, provavelmente, atribui à fala popular informa/, em favor do adjetivo

inadequadamente escolhido, por meio do qual o escrevente julga criar o

espaço dialógico que procura.

No segundo exemplo. temos mais uma vez uma evidente escolha

inadequado do adjetivo "auto-destrutíveis" em vez de "aufodesfrutivos". Desta

feita, como mostra a seqüência acima citada, a opção está ligada a um dos

textos mais mobi!izodores da coletânea,_ o texto de n° 6: "Fiscais uniformizados e

armados potrulhÓm as praias para controlar os violentas guerras entre os surfistas.

Além disso, aplicam tranqi);fizante nos surfistas que freqüentemente piram com a

tensão do cotidiano (... }. Nas ruas das cidades imundos e perigosas,

marginalizados povos primitivos que habitavam as favelas agora vagam famintos

e agressivos". Parece ser o modelo do já~escrito na coletânea que ativa a

escolha de "auto-destrutívels" pelo escrevente. De qualquer modo, repete-se, a

partir desse modelo, o mesmo procedimento já descrito de tentativa de

olçamento do escrevente.

308
Finalmente, no terceiro desses exemplos, temos uma escolha enviesado

do substantivo "perspectiva" na expressão "perspectiva de vida " em vez da

formo consagrado pelo uso "expectativa de vida". Freqüentemente presente em

pesquisas sobre a qualidade de vida das populações, é muito provável que o

escrevente estivesse buscando realmente a expressão consagrada. A

proximidade quase paronímico e de sentido justifico essa ocorrência, porém ela é

melhor explicada pela reprodução de um discurso crítico sobre a qualidade de

vida, o quo! o escrevente acredita marcado na expressão consagrada pelo uso.

• • •
Foram trotados neste tópico dois tipos básicos de escolha !exical: o da

escolha adequada, mas que indica ultrapassagem em relação ao registro

tomado como modelo e o da escolha inadequada. • .,,_.


""·-
._.,

A respeito do primeiro caso de escolha lexica!, merece destaque o

imagem que o escrevente faz do código escrito institucionalizado como

pertencendo ao domínio de seu interlocutor. É importante destacar, ainda uma

vez, que o papel do léxico no representação que o escrevente faz do código

escrito institudona!izado é muito forte. Por essa razão, há uma tentativa de

reprodução do modelo escolar e, no caso dos textos analisados, também uma

tendência de reprodução do léxico presente nos textos da coletânea.

É, pois, acentuada a caracterização da escrita do vestibulando como

reprodutibilidade de uma prática escolar. Não surpreende, portanto, que ele

traga guardados seus trunfos !exicais- freqüentemente indicando ultrapassagem

em relação ao registro do restante do texto e, às vezes, até mesmo em relação

ao próprio registro tomado como modelo - para marcar seu domínio do que

representa como código institucionalizado. Essa pressão de um modelo que ele

309
projeta como o esperado por seu interlocutor. explica também o segundo caso

de escolha lexicaL Trato-se da situação em que o escrevente não tem domínio

ativo de um item e o utiliza em função desse desejo de atender a expectativas.

Na seção seguinte, a questão da imagem que o escrevente faz do código

escrito institucionalizado será vista a partir das marcas de organização textual.

Marcas organizacionais do texto referentes à representação do


escrevente sobre o código escrito institucionalizado

Três reguloddadescongregam as marcas referentes à organização textual:

(l) a das marcas do caráter estritamente gráfico do texto escrito: (2) a das marcas

que indicam uma tendência à circunstancialização; e (3} a das marcas que·

registram a explicitação do racíodn1o ou que indicam modalizaçãom, em

especial o caso dos delimitadores. Na seqüência, apresentamos o quadro

indicativo da freqüência dessas regulandades.

QUADRO 4: Porcentagem de ocorrência segundo regularidades lingüísticas da


DIMENSÃO DA ORGANIZAÇÃO TEXTUAL em relação ao total de
ocorrências das regularidades das outras dimensões no conjunto
dos textos

REGULARIDADES %

w A noção de rnodalizaçõo utilizada é a de Castilho e Caslilho (1992) e será explicitado na


seqüência.

310
No que se refere à regularidade que têm a ver com o caráter gráfico do

texto escrito, podemos citar: o uso de nota de rodapé, o uso de epígrafe e a

referência à chamada bidimensionalidade do espaço gráfico. Eis os exemplos:

"Não se trata de lamentar a existência do violência já que ela está


sempre presente e tem funções de_ monufenção do sistema social.·
nem tampouco de negar o seu aumento quando em épocas de
desorganizoçOo econômica (e suas concomitantes} ou de tensões
culturais. Trata-se de procurar a razão de ela se localízar com muito
freqüência em grupos (em sub-grupos sociais} de "ideologia
lradicionaf" (!} como os facções nacionalistas, os comumdades
estrangeiras... ( .. } Nota: (/) Que está nas antípodas da ideologia
individualista." (Texto 01-054)

"Violência- consequência c_laro_!


"A policia apresenta suas onnas, escudos transparentes, caceteies, capacetes
reluzentes e a defennlnação de manter tudo em seu lugar" (HERBERT VIANNA)

"Violência nas tnbos urbanas. Deve-se pnineiro definir o que sôo tnbos
e qual as suas funções no contexto urbano moderno." (Texto 03-1 72)

"'Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer e


motor de fome, de raiva e de sede sôo tantas vezes gestos naturais'
(...}
"(. ..} Daí o adesão dos jovens aos movtinentos metaleiro,
'punk', etc, e a sensação de impotêncía do tradicionalismo em
relação aos no vos costumes. Com propriedade, querem exibir
explícitomente o violência de nossos dias, nOo estimulá-/a. Aquilo que
Caetano Veloso faz com versos como os acima, os grupos bárbaros
tentam fazerreconstroindo a rea!tdade, nua e crua." (Texto 01-034)

Os três recursos acima são, como já adiantamos, tipicamente gráficos e

sua utilização revela que o escrevente tem mah contato com certos gêneros

textuais escritos do que com outros.

No caso da nota de rodapé, já comentada acima em relação ao !éxico, a

imagem que o escrevente faz do código escrito institucinalizado parece já tomar

como modelos gêneros bem específicos, como o ensaio ou o artigo científico.

Diferentemente do pós-escrito, que -mais freqüente nas cartas- não tem a ver

com o assunto principal desenvolvido ou que tem a ver com ele, mas deve, por

311
alguma razão, permanecer isolado; a nofa de rodapé, embora separada do

corpo do texto e muitos vezes contendo apenas uma informação marginaL é, em

geraL parte integrante do assunto principal desenvolvido. No exemplo dado, o

uso desse recurso denota que o escrevente não só sentiu necessidade de dar um

esciaredmento ao q~e vinha desenvolvendo, mas também fez questão de

mostrar seu domínio sobre esse recurso tipicamente gráfico. O próprio uso desse

recurso, raro entre os vestibulandos, se mostra, pois, saliente para o escrevente em

questão. É um modo de alçamento por melo do qual o escrevente não se atém

'aP~nas a projetar-se para a posição do interlocutor, mas, mais do que isso, busca

mostrar-se à vontade nela, ocupá-la e interpelar o interlocutor a partir do lugar

que atribui a este último. Ao mesmo tempo em que se evidencia uma busca de

simetria entre ·essas posições, podemos constatar a representação que o

escrevente faz do código institucionalizado, inclusive localizando-o numa esfera

específica de atividade verbal escrita- a científica.

No caso da epígrafe, os gêneros tomados como modelo podem ser

muitos, cabendo, país, detectá-lo a partir da esfera de atividade a que o texto

busca fazer referência. No exemplo dado, o escrevente traz para seu texto a

citação de uma letra de niúsica. Desta feita, a utilização do recurso gráfico da

epígrafe caracteriza um a!çamento relacionado ao modo de desenvolver o

tema. É, pois, bastante provável que a relação do escrevente com o tema o

tenha feito destacar, de seu campo de conhecímento, uma voz que sustentasse

a argumentqção çt,LL~ iriO se seguir. Vale lembrar iambém que a referência a um

grupo de rock está inteiramente avalizado pela coletânea de textos, que está

repleta desse tipo de fonte. Vale destacar que a própria coletânea pode ser

312
fonte para a escolha de epígrafes. Este fato acontece, por exemplo, numa quase

epígrafe proposta por um outro vestibulando a partir do texto 1 de René Girard:

"ViCtO inconciente

"'.. parece ser impossível não ter que usar a violência quando se quer
liqüidá-la... '
"Esse penOdo mostra bem a situação que vi~emos." {... ) "
(Texto 03-173)

Em ambos os casos, as epígrafes mostram que o alçamento do escrevente

se dá em relação ao assunto abordado. O fato de tomar fonte semelhante ou da

própria coletânea indicio que o escrevente se preocupa em como abordar o

tema. Há, pois, para ele. um modelo exterior que lhe pode auxiliar nessa tarefa.

Esse modelo, como sabemos, é o que ele representa como a expectativa da

instituição à qual ele se apresenta como candidato ao ingresso. O fato de buscar

um recurso tipicamente gráfico é, uma vez mais, um modo de se mostrar

competente no {de se alçar ao) que imagina ser a exigênCia da instituição. A

escolarização da língua se mostra, pois, com toda a força.

Finalmente, no caso da referência à bidímensionalidade do espaço

gráfico do texto, é preciso lembrar que esse é também um recurso muito presente

em diferentes gêneros. No entanto, o uso da localização espacial é

particularmente difundido nos gêneros ligados às atividades -burocráticas e

jurídicas, não deixando, porém, de ser muito freqüente tãrl-tbém em trabalhos

científicos. No exemplo dado, o uso de "como os acima" sinaliza a percepção

do espaço gráfico em que circulam os sentidos do textó e pode mostrar, ao

mesmo tempo, uma investida, por parte do escrevente, na sensibilização de seu

interlocutor quanto ao domínio desse conhecimento e dos gêneros que dele

mais se utilizam, provavelmente representados pelo escrevente como os mais

313
prestigiados. Como vemos, o fato de se evidenciar a referência ao espaço

gráfico pode ser também indício de a Içamento, por parte do escrevente, ao que

representa como código institucionalizado. Desta feita, não há a pretensão de

ocupar o lugar do interlocutor (como no primeiro caso exemplificado), nem a

tentativa de ancorar o desenvolvimento temático (como no segundo caso

exemplificado). Trata-se de marcar o domínio da linguagem gráfica, base de

toda a produção escrita. Sabe lidar com o espaço gráfico quem tem algum

domínio da leitura do texto graficamente registrado. Lidar com ele, como ficou

dito, é também lidar com os sentidos que se distribuem e ocupam esse espaço.

Eis, portanto, um aspecto do código institucionalizado que se marca desde a

base semiótica do registro gráfico, explorando a sua verticalidade. Do ponto de

vista do processo de aquisição da escrita, mesmo em se tratando de um

vestibulando, é um aspecto nada desprezível quanto ao modo pelo quo! o

escrevente se situa em relação oo código escrito institucionalizado: e!e busca o

lugar de quem é sensível à base semiótica do código e a suas propriedades.

No que se refere à regularidade que congrega as marcas de organização

textual indiciativas de uma tendência à circunstancialização temporal, voltamos

à questão de. a escrita ser ou não contextualizada. Como já foi suficientemente

discutido, assumimos aqui que a contextualização é uma propriedade da

linguagem em geral, de tal modo que não podemos admitir utilização da

linguagem sem contextualizaçõol24.

Com os exemplos giJe serão trazidos não pretendemos, portanto, provar


.'
que há uma necessidade de contextualização da escrita em virtude de um

princípio de descontextualização que a definiria em suas bases. Também não

124 Conferir, sobre o assunto, a posição de Marcuschl (1994 a) e aqui mesmo, p. 40.

314
temos em vista, neste momento, a relação da escrita com a situação imediata.

Buscamos apenas evidenciar- em função dos interesses deste trabalho - como

certos modos de circunstanciafização podem caracterizar o alçamento do

escrevente para o que representa como o código institucionalizado. O destaque

ficará para a circunstancialização temporaL freqüentemente tomada como

índice de produção escrita por parte dos escreventes.

Observemos os doís casos abaixo:

"A violência veio através do históda perseguindo o homem, desde que


esse se entende como tal Através dos .séculos o violência se
manifestou dos mais macabras formos" .. " (Texto 03-125)

"O lemo violência está insendo na histónO da humanidade de formo


indiscut/vel: desde os primórdios da ciVIlização.... " (Texto 04-201}

Os exemplos acima são os tipos mais freqüentes de circunstancialização

encontrados nos textos. Na verdqde, não é propriamente a determinação de

uma circunstância de tempo que está em jogo. Trata-se de encontrar um modo

de começar o texto e de desenvolver um tema. Utilizado para esse fim, o

apanhado histórico constitui-se num artifício tão freqüente que, mesmo

considerada a preocupação efetiva em contextualizar historicamente o tema,


.
pode-se reconhecer a reprodução de uma estrutura formal mais ou menos fixa.

Além desse aspecto, é importante notar que o tipo de contextualização é

bastante genérico, pouco contribuindo para situar o tema. É provável, portanto,

que, não reconhecendo essa deficiência; o escrevente acredite estar

obedecendo a um requisito indispensável da escrita esperada pela instituição.

Finalmente, trataremos da regu!andade que congrega as marcas de

organização textual explicitadoras do andamento do raciocínio e os que

315
funcionam como delimitadores, Começaremos pelas marcas que explicitam o

andamento do raciocínio. Os exemplos abaixo obedecem à seguinte ordem:

explicffação para marcar início do desenvolvimento temótico; explicitação de

continuidade de um desenvolvimento temático; e explicitação de conclusão de

um desenvolvimento temático. São eles:

(A) Explicitação para marcar início do desenvolvimento temático:

"Violência nas tribos urbanos. Deve-se primeiro definir o que


são fnbos e qual os suas funções no contexto urbano moderno." (Texto
03-172)

(Bj Explicitação de continuidade de um desenvolvimento temático

"( ... ) Ela [a violência] existe desde a antigüidade[ ... )


"Fazendo um pequeno paralelo, atualmente os coisas não são
muito diferentes... " (Texto 04-200)

(C) Explicitação de conclusão de um desenvolvimento temático (presente no


último parágrafo do texto)

"Das sociedades primitivos, o violência individual ou tribal


garantia vantagens de moradia e alimentação. Com o surgimento da
civilização, impulsos antes benéficos agora são censurados, ...
" (.. ,) Historicamente, vemos que as diversas sociedades
desenvolveram válvulas de escape paro as tensões do dia-a-dio...
" {... ) Apesar de extbirem comportamentos bem diferentes,
todas as tnbos têm em comum o rebeldia.{ ... )
"Como vimos, o agressividode parece ser uma característico
do homem que os sociedades civr7iz00as rhodemas procuram reprimir. "
(Texto 04-182)

ou
"Deus cdou o homem e o homem cdou o violência e esta só
vai acabar quando o homem se for, esta é a conclusão que
chegamos." (Texto OH! lO)

Todos os exemplos de explicitação do andamento temático mostram a

reprodução da estrutura textual canônica: Introdução, desenvolvimento e

conclusão. O foto de o escrevente julgar necessário explicitar esses momentos

{ou pelo menos um deles) poderia ser visto simplesmente como um mecanismo

316
de edição explícita, por meio do qual o sujeito iria revelando os passos do

processamento de seu texto. No entanto, o que defendemos é que não se trata

de um aufocomando, mas de um comando que, de fora, vem atuar nessa

emissão. Uma vez mais, é a necessidade de alçamento ao que o escrevente

imagina como o código institucionalizado que o leva o_marcar- e;><plicitamente-

os partes que julga necessárias ao cumprimento de sua tarefa de reprodução de

um modelo. Vale observar que os exemplos citados a este respeito têm íntima

ligação com a circunstancialização temporal exemplificado anteriormente. Basta

atentar para os circunstancia!izadores para se detectar a articulação desses dois

recursos em função de um mesmo objetivo:' a reprO~:li:JÇ.ão de um modelo como

forma de alçamento ao código escrito institucionalizado.

Com respeito às marcas de organização textual que ·funcionam como

modalizadores, cabe uma observação. Em primeiro lugar, é importante lembrar

que estamos tomando o funci_Qnamento de certas marcas sintáticas como

diretamente ligado à organização textual. Ao mesmo tempo, assumimos, com

Castilho e Castilho {1992}. que modalização ou modalidade revelam,

indiferentemente, a avaliação do falante sobre o conteúdo de uma proposição:

"há sempre uma avaliação prévio do falante sobre o


conteúdo da proposição que ele vai veicular,
decorrendo daqui suas decis6es sobre afirmar; negar,
interrogar_ ordenar_ permitir; expressar o certeza ou o
dúvida sobre esse conteúdo etc. "(op. ciL p. 217).

A modalização de que trataremos é, na classificação dos mesmos autores,

a modalização epistêmica, que "expresso[m] uma avaliação sobre o valor de

verdade e as condições de verdade da proposição" (idem, p. 222}. O caso

específico a ser comentado é o dos delimitadores, que são os moda!izadores

3!7
epistêmicos que "estabelecem os limites dentro dos quais se deve encarar o

conteúdo de P [da proposição]'' {idem, ib.). A particularização do tratamento aos

delimitadores deve-se, porém, ao critério que adotamos para a busca, nos textos

analisados, de pistas lingüísticas sobre o modo heterogêneo de constituição da

escrita nos fragmentos indiciadores de interação. O tratamento particularizado

aos delimitadores deve-se, portanto, ao aspecto dialógico que os caracterizo.

Segundo Castilho e Castilho, os delimitadores "implicítam uma negocíoção entre

os interlocutores, ne,cessáda à manutenção do diálogo" (idem, ib.). Eis os

exemplos:

"Todo vez que uma pessoa é agredido de certa forma elo


geralmente tomo-se mais violenta. Isso começa dentro de cosa
ptincfpa/mente durante a infância e a odolecêncío. .. "(Texto 01-025)

O caráter de negociação das partes destacadas é bastante evidente,

ainda mais se lembrarmos que esses enunciados estão na abertura do texto,

propondo, portanto, os termos do diálogo. Embora Chafe (1985) lembre que "a

llngua falado faz uso freqüente"desses delimitadores (op. cit., p. 121) e ainda que

o trabalho de Castilho e Castifho seja também voltado à norma falada culta, a

saliência de_ certos delimitadores nos textos dos vestibulandos parece ser fruto de

um certo tipo de recomendação dos professores de redação. No ensino de

redação, são comuns, como sabemos, recomendações quanto ao problema das

generalizações, por um lado, e o das afirmações categóricas. por outro. Como

diz o próprio Chafe, "a 1/ngua escrita {... ) mostra mais consciência de que a

verdade não é categórico, mas uma questão de grau" (idem, ib.). No exemplo

acima citado, o escrevente parece ter levado à risca a recomendação quanto a

evitar as afirmações categóricos, buscando. por três vezes seguidas. tomar uma

318
certa distância em relação ao que afirmava. Esse distanciamento não se

sustenta, porém, no decorrer do texto, uma vez que, comprometido com o

trabalho de convencer seu interlocutor, busca, na seqüência da argumentação,

envolvê-lo com modalizoções fortemente afetivas (como: "passar fome nem pró
..·
cachonv'J já tratadas aqui como expressões formulaicas12S:

A ocorrência dos delimitadores mostra, portanto, que o escrevente está

em vias de se apropriar de mecanismos de negociação com o interlocutor

representado na escrita. No caso exemplificado, a própria repetição mostra que

os delimitadores são marcas salientes da representação que o escrevente faz do

código institucionalizado.

• • •
Foram destacadas neste tópico três regularidades lingüísticas que

congregam marcas da organização textual: { 1) aquelas que apontam paro o

caráter estritamente gráfico do texto escrito; {2) os que indicam uma tendência à

circunstancialização; e {3) as que registram: (a) o explicitação do raciocínio; e {b}

as que indicam moda!ização, em especial o caso dos delimitadores.

Esses três tipos de marcas, ao indiciar a representação que o escrevente

faz da escrita, evidenciam também um modo heterogêneo de constituição da

escrita. No primeiro tipo, o escrevente procura mostrar- eis um modo de dialogia-

seu domínio sobre o código escrito no que se refere à exploração de seu caráter

gráfico; no segundo, o escrevente procura mostrar - eis um outro modo de

dialogia - seu domínio de um certo modo de abordar o tema, recorrendo com

freqüência à drcunstanda!ização temporaL marca que ele reconhece nos

modelos de escrita a que recorre e com os quais também dialoga; e, finalmente,

125 Conferir, aqui mesmo. p. 248-250.

319
no terceiro tipo, o escrevente procura estabelecer o diálogo com seu interlocutor

por meio de uma negociação engendrada pela modalização que faz ao

desenvolver o fema. Esta negociação não deixa de ser também um diálogo com

o que o escrevente representa como código escrito institucionalizado a partir do

que assimila da língua escolarizada. Esse aspecto da escolarizpção fica

especialmente claro se levarmos em conta as recomendações dos professores

de redação quanto à necessidade de amenizar as afirmações mais categóricas.

Também qutmto· à organização textual, podemos dizer que é bastante

forte o aspecto da reprodutibilidade da prática escolar de redação. Mais do que

um domínio efetivo dessa organização, o escrevente denuncia suas tentativas de

a Içamento 'ao código institucionalizado ao aplicar no texto o que ainda são as

dicas do professor de redação, dicas que, a exemplo dos ·trunfos lexicais já

comentados, indicam uma ultrapassagem em relação ao registro assumido no

restante de seu próprio texto e, em certas ocasiões, em relação ao próprio registro

tomado como modelo, Eis, pois, quanto à organização te~tuçt, o m()do

heterogêneo de constituição dessa escrita.

Um outro item referente à análise da representação que o escrevente foz

do código escrito institucionalizado será abordado a seguir e tomará como

objeto os recursos argumentativos utilizados pelo escrevente.

Recursos argumentativos do texto referentes à representação do


escrevente sobre o código escrito institucionalizado

Como já foi adiontadol26, é preciso que tenhamos presente que tódos os

tópicos tratados até o momento atuam também como partes do mecanismo

argumenfativo dos textos analisados, Neste ponto, abordaremos apenas alguns

12 6 Conferir, aqui mesmo, p. 252-3.

320
recursos mais específicos que acreditamos pertinentes à caracterização da

representação que o escrevente faz do código escrito institucionalizado.

No que se refere à definição do modo heterogêneo de constituição da

escrita, interessa destacar a alternância entre os recursos definidos no primeiro

eixo de circulaçào e os que serão definidos· neste segur)do. Ao contrário dos

recursos argumentativos ligados à representação que o escrevente faz da

gênese da (sua) escrita - em que há a preocupação de acumular dados,

argumentos e fatos em estruturas que os justapõem (como as enumerações) ou

que interpelam diretamente o interlocutor {como as perguntas) -, a busca de

recursos argumentativos ligados à representa~ão que o escrevente faz do código

escrito institucionalizado se caracteriza pela tentativa de tratamento analítico

desses dados, fatos e argumentos. Desta feita, o escrevente ~nsaia - podemos

dizer, lembrando a escrita típica de Tannenl27 uma maior atenção ao

conteúdo.

No entanto, a especificidade dos recursos argumentativos aqui tratados

tem a ver com a saliência do caráter polífônico que, em determinados

momentos, os textos dos vestibulandos apresentam. Vale a pena lembrar que,

segundo Barros (1994), há uma diferença entre "textos dialógicos" e "efeitos de

• polifonia" ou "de monotonia': Como ficou difo12a, o caráter dia lógico dO.têxto é

o que permite encará-lo em sua heterogeneidade -"os textos são dialógicos

porque resultam do embote de muitos vozes sociais" {op. clt., p. 6). O tipo de

efeito produzido por esse embate pode ser, porém, o da polifonia - "quando

essas vozes ou algumas delas deixam·-se escutar"- ou o da monofonia ~ "quando

o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir" {idem, ib.}. Os recursos

12 7 Conferir Tonnen (1982) e. aqui mesmo. p. 39-40.


l~a Conferir. aqui mesmo, p. 87, Nota 49.

321
mgumentativos: que vamos comentar caracterizam-se, portanto, por

apresentarem o efeito de pollfonial29.

As pistas lingüísticas desse tipo de fretamento dado ao texto foram

reunidas numa única regularidade: a da tentativa de construção de um caráter

analítico para o texto, incluindo um caso de argumento estatístico. Nesses

recursos argumentativos, é bastante presente a questão do distanciamento ao

abordar o tema. O quadro abaixo mostra a freqüência dessa regularidade da

dimensão argumentativa:

QUADRO 5: Porcentagem de ocorrência segundo a regularidade lingüística da


DIMENSÃO ARGUMENTATIVA em relação ao total de ocorrências
das regularidades das outras dimensões no conjunto dos textos

REGULARIDADE

Observemos os seguintes textos:

"A modernízaçõo e o desenvolvimento de uma cidade levam,


a 'Classe Massacrado' a cometer assaltos, sequestres; e até mesmo a
matar sem um motivo. Como não bastasse, os jovens ditos rebeldes (na
verdade, um bando de tolos que querem aparecer; provocam a
destruiçào cometem atos de vandalismo e aterrorizam os pessoas.
"Analisando o assunto, vemos que o violência se inicio com os
policiais que ao suspeitarem de uma determinada pessoa, vão logo
dando porrada... "(Texto 03-162)

''Aspectos gerais do violência

"A ampla definição de violência traduz um significado mudo


complexo, onde, no Mundo Moderno se destina a todos os lugares.''
(Texto OHJI5)

m Esse efeito de polifonia também poderia ser descrito a partir da teoria pollfônico da
enunciação de Oucrot {1987) em termos dos conceitos de locutor (L) e de enunciodor (E).

322
"Dentre os mumeras faces da violência, uma tem deixado
perplexas mtlhares de pessoas... (... )
"Argumentam alguns que isso se deve a fatores SOCIOIS, à
condição de miséria e fome a que são submetidos os menos
prívtlegiados. Por outro todo, tem-se constatado o presença cada vez
maior de elementos dos classes mais abastadas nessas bdgas - o que
evklencía que podem haver outros motivos paro tais confrontos."
(Texto 04-201)

Todos os exemplos têm em comum o fato de construírem um caráter

analítico para o texto. No primeiro exemplo, o próprio verbo "analisar" explicito

essa preocupação. No segundo exemplo, o título da redação simula títulos de

artigos e ensaios científicos: "Aspectos gerais da violência". Por sua vez, o

enunciado que dá abertura ao corpo do texto, típico, nessa posição, em um

grande número de textos, preocupa-se em definir, bem ou mal, o que será

tematizado. No terceiro exemplo, uma seqüêl']cia de indícios mostra a saliência

que podem ter essas marcas. Após reconhecer a existência de "várias faces da

violência", sinaliza na direção de uma contraposição de vozes que marca, de

um lado, como "argumentam alguns ... " e explicito, por meio da própria

expressão, o "outro lado", no qual- mais uma vez sinaliza o escrevente- "tem-se

constatado ... " . Ao final, conclui, a partir dessa contraposição, com um outro

indício de sua preocupação analítica: "o que evidencia ... ".

Como vemos, a argumentação cerrada que caracteriza o texto

dissertativo impõe aos escreventes um conjunto de marcas de uma abordagem

analítica do tema. É verdade que nem sempre o escrevente é consistente com

esse tipo de abordagem durante todo o texto - conferir, a esse respeito, em

especial o primeiro e o segundo exemplos acima citados -; podemos mesmo

dizer que é raro que essa consistência seja integralmente mantida. No entanto,

importa detectar não a realização consistente de uma abordagem analítica,

323
mos o descompasso entre o que o escrevente teria efetivamente a dizer (nem

sempre muito claramente recuperável) e o que ele adapta ao modo analítico

de escrito que atribui à instituição que o avalia. Dito de outro modo, esse

descompasso é o que permite que essas vozes deixem-se escutar.

Acreditamos que esse "efeito de po!ifonla" revela, no caso, a rnesma

expectativa de alçamento por parte do escrevente já comentado para outros

aspectos do texto. É a imagem da instituição na qual ele se candidata a ingressar

e a do interlocutor que, para esse mesmo fim, ele representa em seu texto, que se

sobrepõem à voz do escrevente para denunciar o modo particular que ele

represento o código escrito institucionalizado. Ao mesmo tempo, a inconsistência

em relação ao áspecto analítico almejado revela que o escrevente enuncia a

partir de um modo heterogêneo (no caso, sob um efeito polifônico específico) de

constituição da escrita. A maneira mais clara de checarmos essa inconsistência é

a oposição, no próprio enunciado do escrevente, entre o que já é mais ou menos

previsível ou estereotipado {e que, por isso, vem para o texto por melo de um

simples jogo mnemotécnico) e o que deve ser construído pelo escrevente (e que,

portanto, depende de um outro tipo de recorrénda à memória}.

Exemplo de um recurso semelhante, o texto abaixo também trabalha com

certas expressões estereotipadas de argumentação:

"A violêncla nos dias atuols, tornou-se algo comum em nossos


socledodes urbanos. Como conseqüência desse fato temos muitos
cidadãos vivendo encarcerados em suas própnOs resldêncías,
enquanto que a vlolêncla toma conta das ruas.( ... )
"Portanto tudo e todos que não seguem as regras que a
socledode lrnpõe são discnininados; mas nem sempre esta parcela
ace/ta posslvomente este fato e, a partir do momento que a ameaça
ressurge, a sociedade os exterrnlna, pela própda lei da sobrevlvêncio.
'~ sociedade julga e pune os conseqüênclas do ato vlo!ento
através de vlolênc/o, corno melo de amenizá-la, enquanto que se
tentássemos julgar as causas deste ato... " (Texto 00-012}

324
Vemos, nessa seqüência, a relação de causa e efeito marcada por "como

conseqüência desse fato". Em seguida, há a contraposição de vozes com

"enquanto que", retomada também no último parágrafo.

Por fim, a forma mais marcada de todas "a partir do momento que"

sugere. pela simulação temporal, a projeção de um luQar para o argumento que

é encadeado na seqüência. Normalmente, trata-se de um lugar que

compromete o interlocutor com a circunstância da afirmação de algo. Do ponto

de vista do escrevente, trata-se, pois. de um lugar que situa o ponto a ·partir do

qual se dá a possibilidade de resolução da questão abordada. É interessante

notar que o texto ganha em f!uênciâ30 quando o escrevente emprega a

expressão "a partir do momento que a violência ressurge", mas sofre do que

poderíamos chamar uma recaída de dis-f/uêncio quorydo tem que explicitar a

resolução do argumento: ''a sociedade os extermina", em que o pronome não

pode retomar o antecedente que lhe corresponderia: "esta parcela". Portanto.

uma estrutura argumentativa que é construída para colocar o interlocutor em

posição de adesão, ganha em fluência quando se ancora numa expressão

estereotipada, ou, por outra, no momento em que o escrevente busca reproduzir

a expressão que atribui ao uso habitual do fnterlocutor. E!a se torna, porém,

disfluenfe no momento da reso!uçôo, que é marcada a partir do que o

escrevente representa como de sua alçada pessoal. Tanto Scarpa {1995). ao

tratar da fluêncio/dísfluência na aquisição da linguagem, quanto Silva {1991}, ao

tratar da aquisição da escrita, mostram que, também nesses dois domínios, a

discrepância entre o que o escrevente representa como sendo do outro e o que

representa como sendo seu pode determinar seu desempenho. No caso acima,

lJo Conferir Scarpa (1995) e aqui mesmo {p. 194. Nota 79. e p. 266, Nota 108).

325
a forma estereotipada - atribuída ao outro - é um momento em que a

argumentação flui normalmente. Já no caso da marca que representa como sua

- momento da resolução do argumento - a argumentação tropeça num

problema de coesão, o que inviabiliza o resultado esperado. Essas vozes que se

fazem escutar no texto do vestibulando revelam, no descompasso que se cria

entre elas, o mesmo efeito po!ifônico de que falávamos no caso anteriormente

citado.

O a!çamento na direção do código escrito institucionalizado que é

buscado por meio de formas estereotipadas - incluímos também o caso de

"enquanto que", comentado acima - é um forte indício de que os recursos

argumentativos utilizados· denotam a circulação que o escrevente faz pelo

imaginário que tem sobre o código escrito institucionalizado.

Para encerrar 'este tópico, será citado o caso, único (mas não menos

relevante) em nosso corpus, do argumento estatístico:

"( ... ) a violência aumenta assustadoramente. Gongues de jovens que


se diglodiom, gtVpos de exterm/nio de menores abandonados, são
comuns nos noticiários. E um mecanismo de defeso dessa neurose
urbana nos condiciono a um estado de anestesia.
"No Brasil onde mais de 40% da população vive na miséria
absoluta, onde somente 10% dos habitantes abocanham 51% da
rendo nacional e onde existe uma absurda concentração de terras
nas mãos de latifundiários, a violência é quase incontrolável. No PaíS
do 'jeitinho' falta de ético e misélia se confundem nos levando ao
limite do suportável, "(Texto O1-036)

Vale dizer que, em nenhum momento de seu texto, o escrevente

esclarece as fontes dessas estatísticas. A ausênda das fontes não é, no entanto, o

aspecto que pretendemos ressaltar. Preferimos destacar, nesse exemplo, o

decalque de textos jornalísticos, de propaganda política e/ou de dados

econômico-administrativos, por sua vez, inspirados na ciência estatística. Não

326
parece, portanto, ter sido apenas a sensibilidade quanto à forço de um

argumento como esse o ter levado o escrevente a jogar com ele. Foi. preferimos

acreditar, a visibilidade de seu contato com o código escrito institucionalizado e

a antecipação da expectativa do interlocutor em relação a ela que impôs esse

tipo de argumerifo. Desse modo, pod.ení;s observar uma vez mais os vozes que

se fazem escutar nesse fragmento. A referência estatística representada como a

voz oficial sobre as causas da violência se sobrepõem à voz que o escrevente

representa como sua. No entanto, na falta da fonte que daria legitimidade a

esses números, o descompasso entre um argumento de autoridade e a ausência

da autoridade legitimadora permite que uma outra voz se taça ouvir, a saber, a

do senso comum. O alça menta desejado pelo escrevente- caracterizando esse

momento de circulação pelo imaginário sobre o código eScrito institucionalizado

~ novamente fica a meio caminho e indicio, assim, o modo heterogêneo

(também, neste caso, com um efeito polifônico específico) de constituição da

escrita.

• • •

A análise dos recursos argumentativos como marcas da representação

que o escrevente faz do código escrito institucionalizado mostrou, entre outras

coisas, que o tratamento analítico do tema que o escrêvEmte.procura apresentar

em seu texto faz eco com o recomendação escolar de distanciamento ao

abordar o tema. Destacamos como regulorídode lingüística esse caráter analítico

dado ao texto, incluindo um caso de utilização de argumento estatístico.

No que se refere ao caráter analítico, cabe ainda destacar que, ao

construí-lo, o escrevente se utiliza freqüentemente de expressões mais ou menos

previsíveis ou estereotipadas. que vêm. em geraL do discurso científico. É

327
freqüente, nesse tipo de decalque, que o escrevente não permaneça

consistente, no decorrer do texto, com o caráter analítico proposto. O

aparecimento dessa inconsistência denuncia, em geral, os pontos de passagem

de uma forma estereotipada para uma forma representada como sendo do

próprio escrevente. Em outros termos, podemos dizer que se evidenciam nesses

pontos de passagem os pontos de individuação do sujeito. Sendo essas formas

resultantes de dois diferentes tipos de recorrência à memória, elas revelam dois

momentos da dialogia registrada no texto: o primeiro é voltado para a

representação que o escrevente faz do código escrito institucionalizado

(momento em que utiliza formas estereotipadas) e o segundo é voltado para o

modo como o próprio escrevente se representa diante desse código e do

interlocutor (momento em que assume como sendo da alçada pessoal a

formulação de seu texto).

Constatamos, portanto, que o aspecto da reprodutibilidade da prática

escolar de redação co~tinua presente também no que se refere à utilização, por



porte do escrevente, de recursos argumentativos. O caso da utilização de

estatísticas ~ sem fonte que as comprove - num. tipo de argumentação pela

quantidade é, a esse respeito, exemplar e mostra como o escrevente paga na

mesma moeda o que recebe como a imagem da escolarização.

Não é demais insistirmos que, também quanto à argumentação, se trata

novamente da utilização de recursos que o escrevente busco para se alçar à

região do código que imqgin9 éomo sendo a do código escrito institucionalizado

e ao lugar que atribui ao interlocutor representado em seu texto, Nesse trabalho

de atribuíção de lugares a coisas e pessoas, o escrevente não fica sem delimitar

o seu próprio, mostrando, no intervalo produzido pera descompasso dessas

328
representações, efeitos polifônicos específicos (que resultam, em geral, num

enunciador inconsistente do ponto de vista da orientação argumentativa que o

próprio escrevente parece eleger corno dominante - a da assimilação do dizer à

voz da instituição) do modo heterogêneo de constituição da escrita.

O derradeiro item referente à análise da represe~tação que o escrevente.

faz do código escrito institucionalizado será abordado a seguir e tomará como

objeto as marcas ortográficas dessa representação deixadas pelo escrevente.

Marcas ortográficas da representação do escrevente sobre a (sua)


escrita como código escrito institucionalizado

O quadro abaixo dá a freqüência da reguladdade lingüística que

encontramos no que se refere às marcas ortográficas da representação que o

escrevente faz do código escrito institucionalizado.

QUADRO 6: Porcentagem de ocorrência segundo a regulon'dade lingüística da


dimensão ORTOGRÁFICA em relação- ao total de ocorrências das
regulandades das outras dimensões no conjunto dos textos

REGULARIDADE LINGÜÍSTICA %

l.PROCED!MENTOS E CONVENÇÕES ORTOGRÁfiCAS TOMADOS AO PÉ DA 5,8


LETRA

.
Ao contrário do que acontece quando da circulação do ~screvente pela
'

imagem que faz da gênese da (sua) escrita, neste caso, a regulandade que se

apresenta constitui-se na tomada de procedimentos e convenções ortográficas

ao pé da letra. Por exemplo: o escrevente revela alguma sofisticação ao

perceber o não necessária identificação entre som e letra, mas atualiza essa

percepção em situações em que a coincidência existe [utilizo, por exemplo,

"deglodior" (Texto Ol-ü07) em vez de "digladiar" J. Optamos por privilegiar,

porém, os casos da hipo e da hipersegmentação, uma vez que contrastam COr:fl

329
a tendência apresentada no primeiro eixo analisado. Observemos, no caso

abaixo, a hipersegmentação pela separação de uma sílaba de um vocábulo:

"'Dará tempo, para acharmos uma saída para acabar de vez


com a violência, aí será tarde de mais, pois o estágio em que se
encontro na atualidade é Alarmante?... " (Tendo 03·180)

Embora não se trate de escrita espontânea, nem de escrita infantil,

podemos dizer que ocorrências como o destacada ac1ma parecem mostrar o

que Silva /1991} descreve como "uma convivência entre a percepção da escrita

e um componente tônico da fofa como marcadores de possíveis pontos de corte

para a criança" (op. cit., p. 75). Ainda baseados em Silva, podemos dizer que

fatos como esse. mostram ·como podem ficar preservadas as marcas do contato

com a escrita e os critérios intuitivos incorporados para a segmentação de um

enunciado escrito.

O exemplo abaixo exploro, ao contrário, a hipo-segmentação:

"Bem que o mundo onde vivemos, podeda ser melhor sem


violências: mortes, drogas, e tudo de rujm que existe nessa vida, eu
cresci no meio de muita violência, drogas, mas não tenho nada haver
com isso, prefiro levar a minha vidinha tranqüila, vendendo balas nos
faróis e catando papel na rua... " (Texto O1-044)

Como vemos, nesse caso, ocorre a junção de um c!íticot3t a uma palavra.

Entretanto, essa ocorrência de hipo-segmentação destoa do que comumente se

espera, a saber, que o escrevente esteja, como a criança na escrita espontânea,

tentando ''repres~~~aç[JrC!ficamente um trecho de um discurso seu" (idem, p. 37).

Parece ser, ao contrário, o contato com a escrita e com as recomendações

passadas durante anos de escolarização que está sendo determinante na

JJJ No sentido dado por Silva (cL aqui mesmo, p. 218. noto 91 }.

330
segmentação do escrevente. Vachek {1989 (l987d)], ao criticar o caráter purista

da reforma o.rtográf!ca de 1947, mostra que, no sistema grafêrn.ico do Português

moderno, o <h> é "um sinal diacrítico que informo o leitor sobre o implementação

Iônico palatal do fonema geralmente denotado pelo grofema precedente" (op.

cit, p. 145). Como sabemos, o!ém desse uso no interior Po. vocábulo, um outro

emprego do <h> acontece no princípio de certas palavras como <haver>, em

uso ligado à etimologia e à tradição escrita do português. Parece ser justamente

essa tradição que está sendo buscada nesse caso especial de hipo-

segmentação levado a efeito pelo escrevente. forma de atender às insistentes

recomendações das tarefas escolares. É. pois, a imagem que o escrevente faz do

côdigo escrito institucionalizado e a superestimaçào do interlocutor representado

que atuam nesse momento de sua escrita.

• • •
O estudo da reguladdade que congrega as marcas ortográficas da

representação que o escrevente faz sobre o código escrito institucionalizado

mostra que os anos de escolarização, pelos quais o vestibulando já passou,

interferem no seu modo de segmentar o enunciado escrito. Essa representação

do ortografia institucionalizado pode ocorrer, portanto, sempre que o escrevente

busca seguir o que imagina ser as convenções ortográficas. Privilegiamos aqui as

ocorrências da hipersegmentaçõo - procedimento mais esperado quando se

toma como modelo o procedimento da segmentalização aprendido a partir da

escrita- e do caso espedal de h1po-segmentaçâo- mais comum no primeiro eixo

analisado, mas que, como vimos, se faz presente também quando o escrevente

circula pela imagem do código escrito institucionalizado. Embora o critério

fundamental do escmvente seja seguir o modelo da escrita, vimos que segui-lo

331
significa apenas seguir a representação que o escrevente faz desse modelo,
.
produzindo, assim, um modo heterogêneo de constituiçôo da escrita.

• • •

Considerações finais

Neste capítulo, estudamos o segundo dos três modos pelos quais a escrita

do vestíbulando pode ser observada do ponto de vista da relação que o

escrevente mantém com a linguagem.

Tido, a exemplo do primeiro eixo, como um lugar privilegiado para

observarmos esse retcção, cabe destacar que esse segundo eixo é norma! mente

visto como aquele em que os fragmentos indiciativos de interação apontam

para o preenchimento de modelos ligado à escolarização formal da !íngua.

Levando em consideração o objetivo deste trabalho, que é a

caracterização de um modo h.e.terogêneo de constituição da escrita, buscamos -

mais do que a detecção dos modelos preenchidos pelo escrevente- captar as

marcas da flutuação do escrevente em sua relação com esses modelos, fato que
.. · ..
nos. tem permitido apreender a relação que o escrevente mantém com a

linguagem e, portanto, com as mediações que o colocam diante de si mesmo,

diante do seu interlocutor e diante do código que representa como

instltucionalmente adequado à ocasião,

Vale ressaltar que os momentos que estamos chamando de flutuoçõo otJ

de inconsistência no que se refere à representação proposta quanto ao código

escrito institucionalizado, ao interlocutor e ao próprio escrevente. não devem ser

traduzidos como momentos de interferência do oral/falado no letrado/escrito.

332
Como parece ter ficado claro, são variações na representação que o escrevente

faz, mas não necessariamente inconsistências em relação a formas típicas do

letrado/escrito pela ingerência de formas típicas do oral/falado, Essas variações,

se são possíveis de marcação no que se refere às modalidades, são mais

claramente marcadas quanto às ·'ti<'rmas e aos registros dentro da própria


..
modalidade escrita. Ademais, essas mesmas variações estão, sobretudo, sujeitas

às representações que o escrevente faz dessas variedades a partir da relação

que ele estabelece com a linguagem. Não bastasse esse fato, vale lembrar que

as modalidades do oral/falado e do letrado/escrito estão sendo vistas aqui como

práticas sociais e, por essa razão, como pouco suscetíveis à delimitação de

fronteiras muito bem marcadas.

· A' obord"~m que propomos é, portanto, a do- erlcontro e não a da -..

dicotomizaçâo, e o viés que estamos dando a essa abordagem é o da relação

do sujeito com a linguagem, relação que é denunciada nos pontos de

individuação do sujeito, indiciados nos momentos de flutuação, de

ultrapassagem e de a!çamento praticados pe!p escrevente.

A exemplo do que o método adotado permitiu fazer com o estudo da

representação que o escrevente faz da gênese da {sua) escrita, o estudo de tais

pontos de individuação do texto permitiu partir d~ 'cOptOÇão ãe indícios da

circulação imaginária do escrevente pelo que supõe como o código escrito

institucionalizado, passar por um processo de generalização em regu/andades

lingüísticas e chegar a duas propriedades particulares deste segundo eixo: a da

íntegração e a do distanciamento.

O sentido que essas propriedades ganham está associado ao papel

desempenhado pela escolarização formal da língua. É a representação de um

333
código escrito institucionalizado que orienta as formas de integração presentes na

construção sintática e textuaL bem como as formas de distanciamento (até

mesmo- num sentido extremo- de alienação quanto ao que diz) em relação ao

tema comentado. Evidentemente, a mobilização dessa representação sobre o

código escrito esfá ligada ao tipo de evento - "cruzamento de itinerários

possíveis',32- em que, considerado o jogo de expectativas nele envolvido, se dá

o processo de textua!ização levado pelo e~crevente.

Vale ressaltar que essa mobilização não favoreêe exatamente os recursos

sintático-semânticos da integração e do distanciamento, mas um modo de

utilização desses recursos. São favorecidos, portanto, consideradas as condições

de produção dessa escrita. Ou seja, essas condições contribuem para a flutuação

do escrevente no que se refere ao registro que dá ao fluxo regular da

informação, inclusive na maneira pela quo! recorrem aos recursos da integração

e do distanciamento. Nos pontos a que estamos chamando de pontos de

individuação, podem ocorrer tanto essas flutuações de registro quanto as

.ientativas de alçamento ou mesmo as ultrapassagens em relação a um registro

imaginado pelo escrevente como adequado à ocasião. É, poi~, no hiato

produzido por esse salto em direção à representação do código escrito

instítudonalizado que as propriedades de integração e de distanciamento se

definem como tais no que se refere a esse eixo de circulação imaginária do

escrevente.

Flutuações de registro, alçamentos e ultrapassagens também podem ser

vistos como formas de resolução de problemas. Por fazer uma representação

exacerbada do que seria o padrão lingüístico próprio a quem escreve {padrão

m Conferir Veyne (1971) e, aqui mesmo (p. 7, Nota 2).

334
que o escrevente prevê por meto de processos interiores de antecipar ~ sem

verbalizar oralmente - o diálogo com o leitor), sua escrita freqüentemente se

estabelece sob a forma estereotipada atribuída à instituição escolar. Desse

modo, é o que colou interiormente no escrevente- e aqui "calou" também no

sentido daquilo q\Je "!re"' depositou e q"Ve, uma vez instq!ado, nele permanece em

estado de latência- que passa a aflorar no momento de responder ao complexo

jogo de expectativas que cerca o evento de escrita do vestibulanda. Nesse casa,

contrariamente aos momentos em que afloro a representação da gênese da

(sua) escrita, não há propriamente emergência de índices lingüísticos, mas

extravasamento, sobras resultantes das tentativas de alçamento a partir de

padrões introjetados pelo escrevente e que são reproduzidos como estereotipias

dia lógicas. Barros {1985], também ao analisar a escrita de vestibulandos, mostra

que, na falta de tomarem "consciência dos variações de modalidades': os

escreventes tendem a alargar, "com o fantasia do desconheCido, o distância

que separa a escdto do falo". Segundo a autora, por não saber onde estão

realmente as diferenças, o escrevente "imagina ainda mais difícil o tarefa de

escrever e preenche a redação com os elementos lingüísticos que acredito

caracfenZarem a escdto"!op. cít., p. 475).

É importante notar também que a integração de informação e o

distanciamento em relação ao que é tematizado nesses textos não são

propriedades que definem o produto final escrito, mas o próprio processo de

textualizaçâo. Ou seja, ao buscar integração sintática ou textual e distancíamento

em relação ao que diz, o vestibulando - como, de resto, em diferentes graus,

qualquer escrevente freqüentemente denuncia esse seu fazer pelo

deslizamento que o jogo de representações e de expectativas não cessa de

335
provocar. Não se trota, pois, naturalmente, de uma representação unívoco e de
-
uma expectativa única, mas do jogo entre representações e expectativas que

vai sendo alterado no decorrer do próprio desenrolar do texto, freqüentemente

variando de acordo com o fragmento temático abordado.

Como pudemos observar, no que se refere às marcas lingüísticas, o caráter

de integração e de distanciamento ligado à representação que o escrevente faz

do código escrito institucionalizado pode ser visto na sintaxe, no léxico, na

...
organização do texto e nos recursos orgumentativos. Pudemos verificar, ainda,

que a individuação histórica do sujeito se dá pelo movimento entre a

reprodutibilidade estrita de uma prática {busca de estereótipos formais e/ou de

conteúdo) e o modo pelo qual o escrevente se representa nessa prática

(momento em que o escrevente assume como sendo da alçada pessoal a

formulação de seu texto), flutuação a partir da qual o escrevente constitui sua

representaçõo do código escrito institucionalizado.

A consideração desse movimento do escrevente só pôde ser feita em

virtude da consideração do papel do sujeito no processo de escrita. Uma vez

mais, não se trata de investigar um procedimento técnico, mas de determinar a

representação do escrevente sobre uma forma de participação sociaL É nesse

sentido que entendemos a afirmação de Street {1984): "o aquisição do

Jetromento é, na verdade, um processo de soc/afizoção mais do que um processo

técnico" (op. cit., p. 180). Por outro lado, como ficou dito, a consideração do

"
papel do sujeito está intimamente ligada à consideração metodológica do

caráter local - e dialógico - dos dados lingüísticos, uma vez que só faz sentido

considerar os dados lingüísticos locais no interior da dimensão histórica do

336
sujeito. Esses pontos de J!7dividuação permitem observar o modo heterogêneo de

constituição da escrita do vestibulando.

' ' .
No capítulo seguinte, será tratado o terceiro tipo de circulação dialógica

do escrevente. Nele, abordaremos o modo pelo qual o escrevente circula pe)o

imaginário sobre o já falado/ouvido e o jó escrito/lido.

337
CapítuloS

O ESCREVENTE E A DIALOGIA COM O JÁ FALADO/ESCRITO

Insistindo na ressalva que fizemos no capítulo anterior quanto à atuação

simultânea dos três eixos reguladores do aparecimento do imaginário do

escrevente sobre a (sua) escrito, no presente capítulo buscaremos maiores

determinações sobre como esse imaginário aparece no eixo que estamos

chamando da dia!ogia com o já falado/escríto.

Nos capítulos anteriores, abordamos o modo como se dá a circulação

dialógica do escrevente relativamente ao eixo do imaginário sobre a gênese da

escrita e ao eixo do imaginário sobre o código escrito institucionalizado. Seguindo

na abordagem particularizada de cada eixo, tomamos, portanto, como lugar

privilegiado de observação o terceiro deles, aquele que se define basicamente

por sua propriedade dia lógica.

Também a respeito deste eixo, foram adiantadas, no decorrer deste

trabalho, várias considerações. Neste ponto, procuraremos organizar essas

referências esparsas de acordo com os seguintes tópicos: {a) o caráter

fundamental do dialogismo na utilização da linguagem em geral; {b) o caráter

dia!ógico como modo de constituição da escrita; e (c) as conseqüências do

díalogismo na abordagem metodológica levada a efeito neste trabalho.

No que se refere ao caráter fundamental do dialogismo na utilização da

linguagem em geral. adiantamos que o tratamento adotado toma como dado o

fato de que a circulação pela imagem que o escrevente foz da (suo) escrita se

338
caracteriza como uma extensão da necessária dialogia estabelecida com outros

textos, dialogla que regula qualquer utilização da linguagem.

Acreditamos, desse modo, que, o ato particular de apropriação do escrita,

ao estabelecer-se na ligação de um discurso com outro{s} discurso{s), mostra sua

articulação com uma prática social. Portanto, a partir da consideração de que o

o sujeito e seu discurso se constituem pela relação com outros sujeitos e discursos,

constata-se a possibilidade de observar o aspecto dialógico constitutivo da

manifestação verbal em geral - a interdiscursividade - como um aspecto

constitutivo também de sua prática de escrita, ainda que nela atuando de um

modo particular,

Portanto, a consideração do eixo da dialogia com o já falado/escrito na

circulação imaginária que constitui os textos ona!isadqs vem justamente fazer

ecoar o fato de que os textos em geral - e não apenas partes destacadas de

textos escritos particulares- podem ser considerados como produto do já-ditem.


""'- -

Uma tal consideração está, pois, intimamente ligada a uma visão "do discurJo

como produto do interdíscurso" {Authier-Revuz, op. cit., p. 27). É no interior de uma

ta! concepção que são buscadas- no diálogo que o escrevente mantém com o

133 Esse foto pode ser exemplicodo tambêm do ponto de vista do história do aparecimento
da escrito e de sua relação com o "tradição oral". Hovelock (1996), ao defender que "a
verdadeiro pai da hi'sfónO não foi' um 'escritor' como Heródoto, mas o própdo alfabeto", liga
a historiografia de Heródoto e de Tucídides, mostrando que a "concepção da história como
gesta militar e heróica" desses pioneiros "foi herdado de Homero': primeira transcrição
alfabética a produzir~se. Hovelock destaco os estilos característicos de um e de outro:
Heródoto (cerca de 480 a.C.} "mais próximo da forma de composição oral" - segundo o
autor, "por trás da prosa de Heródofo, de sua descrição do conflito épico entre gregos e
persas no continente, ouve~se os hexômetros épicos, tal como eram recitados (quer
dizer, ele os estava a recordar)"-; Tucídides {471 a.C.) "mais próximo (e quiçá consciente
dessa proximidade}, da formo letrada"~ ern quem, segundo Hovelock, "vemos um leitor de
Homero numa perquirição cuidadosa de pormenores, a fim de com'gi-lo". Conclui. então,
que esse fato é decorrente "de suas posições relativos no transição cultural" que o autor
caracteriza "como a revolução do escn"-ta'; ou seja, de "sua posição infermedión"a num ponto
de transição da cambiante tecnologia da comunicação" (op. cit., p. 30~32). Interessa
destacar dessas observações o foto de que, apesar de Havelock dar um grande peso à
tecnologia do sistema alfabético ("o verdadeiro pai da Nstón'a'), a escrita não se mostra
como um dado absoluto, uma vez que o uso que se pode fazei- dela é sempre função de
uma posição relativa quanto ao jâ falado/ouvido e o já escrito/lido.

339
que representa como sua exterioridade - as pistas134 destacadas pela

heterogeneidade mostrado, por meio das quais o próprio escreven-te negocia

com a heterogeneidade que lhe é const!lutiva.

No que se refere ao caráter dialógico como modo de constituição da

escrita, as considerações já adiantadas nos capítulos anteriores têm a ver com a

própria hipótese organizadora deste trabalho. Ou seja, a proposição de três eixos

que denunciam a circulação do escrevente por seu imaginário sobre a escrita é,

em si mesma, uma hipótese de constituição dia lógica da própria escrita.

Esse modo dialógico de constituição é, de certo modo, percebido pelos

autores que pensam a escrita como representação e a vêem a partir de uma

' o falado. Alguns deles


dupla possibilidade de relação: com o mundo e com

definem essas relações, respectivamente, como uma representação de primeira

ordem {caso da escrita socialmente bem estabelecida e de escreventes/leitores

com alto domínio técnico que fazem uma relação direta: escrita ----t mundo) e

como uma representação de segunda ordem (escrita incipiente ou

escreventes/leitores com domínio precário que fazem uma relação indireta:

escrita ----t fa!ado ~ mundo}. É certo que esses autores, ao fazerem ta! hipótese,

não levam em conta recomendações como a de Abaurre de que existiriam

"bons motívos paro supor que a representação de escríta que o individuo já traz

para a escola sej'a mais complexa, por mais limitado que tenha sido o seu contato

com a escnlo e seus usos ,,ss. Vale lembrar, no que toca às opções teóricas de

t3~ As pistas que marcam a relação do escrevente com o já falado/ouvido e já escrito/lido


são o que normalmente se chama de relações intertextuais. É interessante observar que um
discurso mantém sempre relação com o interdiscurso mesmo que essas relações não se
efetivem em (pistas) relações infertextuois. Na formulação de Fiorin (1994), "o
interdiscursivídade não implica a intertextualidade, embora o contrónO seja verdadeiro, pois,
ao se referir o um texto, o enunciador se refere, também, ao discurso que ele manifesta': E
conclui: "a ínterfexfuo!tdade não é um fenómeno necessán'o para a constituição de um texto.
A inferdiscursividade, ao confrón'o, é inerente O constituição do discurso" {op. cit .. p. 35).
135 Conferir Abourre {1987, p. 193) e. aqui mesmo, p. 274.

340
nosso trabalhol36, que não reconhecemos nenhuma dessas duas opções como

um caminho teórico justificáveL Trabalhamos, ao contrário, com a idéia de que a

escrita é um tipo particular de enunciação em que relações com o mundo e

com o falado se dão no próprio processo de escrever, caracterizando não a

representação escrito do mundo e do falado, mas a representação que o

escrevente faz da relação escrita/mundo e escrita/falado.

Desse modo, embora a concepção de escrita que adotamos não seja a

da escrito enquanto representação, concepção que implicaria pensá-lo como o

produto acabado resultante da relação que mantém com outros produtos {o do

vivido e o do falado - este último, apenas didaticamente, separado do vivido),

parece não ser inútil investigar como, no processo de textua!ização escrita, o

escrevente pode localizá-la mais como uma relação com o processo do vivido

{com o mundo} ou mais como uma relação com o processo de elaboração

verbal {com o falado).

lembrando Bakhtin {1979}, podemos dizer que, na relação com esses dois

tipos de processos, há atividade mental e se há atividade mentaL há expressão

semiótico (op, cit., p. 98). Mas lembra ainda o mesmo autor que "o centro

organiZador e formador não se situo no intedor;. mas no exfen"or': Portanto, "não é

a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão

que organiza a atividade mental que o modela e determino suo orientação':

Desse modo, a expressão escrita, que é o assunto que interessa a este trabalho,

como qualquer outro tipo de ·"expressão-enunciação': está determinada "pelas

condições reais do enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação

social mais imediata". Ou seja, "a enunciação é o produto da interação de dois

136 Conferir. aqui mesmo {Capítulo L p. 22 e 76).

341
individuas socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real,

este pode ser substituído pelo representante médio do grvpo social ao qual

pertence o locutor" (idem, ib., destaques no origina!).

Portanfo, no processo de texfualização pela escrita, o escrevente pode

localizar sua escrita mais como uma relação com o processo do vivido {o

mundo) ou mais como uma relação com o processo de elaboração verba! (o

falado}. de acordo com o papel que atribui a seu ínter!ocutor. É preciso recorrer

ainda uma vez a Bakhtin para que possamos compreender esse papel do

interlocutor quanto ao mecanismo a que o escrevente se submete no movimento

flutuante entre esses dois processos. Segundo Bakhtin, "o mundo interior e a

reflexão de cada individuo têm um auditório socíal próprio bem estabeleCJdo, em

cuja atmosfera se constroem suas deduções !nten'ores, suas motivações,

apreciações, etc.". Mas ressa1va: "quanto mais acu/turodo for o indivíduo, mais o

auditório em questão se aproximará do auditório médio da cnOção ideológica, ... "

{idem, p. 98-9, destaque no original}. O lugar que o escrevente atribui a seu

interlocutor - variando entre o médio de seu "auditório soctOI" e o "médio da

criação ideológica" (este último, responsável pelo que se tem chamado, neste

trabalho, de tentativa de a!çamento) - interfere, portanto, na relação que o

escrevente, em seu processo de textualiz:ação, estabelece com o processo do

vivido {relação com o mundo} e com o processo de elaboração verbal (relação

com o falado).

Nessa relação entre a textualização, o vivido e o falado, sujeita à

mediação do interlocutor representado, podemos facilmente detectar a

dimensão dialógica da linguagem atuando na constituição da escrita. Um outro

modo de abordar essa circulação dialóglca é o que estamos propondo neste

342
trabalho. Evitando a concepção do escrito como produto de uma representação

do mundo e do falado, a proposição dos três eixos de circulação dialógica aqui

apresentados procura atender a .um certo tipo de representação do escrevente

ao mesmo tempo em que busca a apreensão do processo de escrita do

escrevente. Em outras palavras, a proposição desses eixO~. procura captar o

movimento flutuante do escrevente em termos de suas representações

imaginárias no processo de sua expressão semiófica através da escrita.

Sendo a dimensão dialógica o móvel das representações do escrevente,

podemos observar o terceiro eixo de circulação dialógíca alternando sua

aproximação ora para o imaginário sobre a gênese da escrita, ora paro o

imaginário sobre o código escrito institucionalizado. Um caso particular dessa

alternância diz respeito ao aproveitamento, por parte dos vestibulandos, da

coletânea de textos dada no momento da prova. Defendemos aqui que o grau

de percepção do escrevente quanto ao reconhecimento de que seu ato não é

inaugural - isto é, reconhecimento de que esse ato faz parte de uma prática

social-, move seu aproveitamento da coletânea e sua apropriação da escrita na

direção do que representa como sua gênese ou do que representa como o

código institucionalizado, ocasiões em que estabelece lugares específicos

também para seu interlocutor. Podemos dizer que, no mesmo movimento, as

várias formas pelas quais o escrevente aproveita a coletânea têm a ver também

com o modo pelo qual ele procura enquadrar o material dado para leitura no

seu universo de referência sobre o assunto tratado, ocasiões em que reafirma

lugares específicos para si mesmo.

Efeitos de generalização, colagem, réplicas em tom crítico, réplicas

simplesmente responslvas, aproveitamento sem citação ou paráfrase, bem como

343
pressuposição de que o leitor conhece os textos da coletânea são muito comuns

na dia!ogla que o escrevente explora em sua leitura da coletânea. Destaca-se,

em qualquer desses casos, o fato de que a solicitação de um dado registro (o

formal) de linguagem e de uma especificação da modalidade [a escrita) e da

norma [a culta) é atendida de acordo com o imaginário de cada escrevente a

respeito de uma tal região do código e de como recortá-la. É, pois, pela

mediação desse imaginário que se dá o ato de apropriação da escrita,

evidenciando a dimensão dialógica de sua constituição como escrita.

No que se refere ao terceiro ponto que organiza as referências já feitas

neste trabalho ao eixo da dialogia com o já falado/escrito, serão trazidas,

resumidamente, ·as referências ao dialogismo quanto à abordagem

metodológica que estamos adotando.

Como vimos, o evento vestibular caracterizo-se, por si só, num evento

tipicamente mobilizodor de expectativas. Esse fato impõe à produção do texto

um caráter responsivo ta! que se tornam muífo evidentes as marcas lingüísticos

que buscam atender o esse jogo de expectativas, mais até do que aquelas que

denotam a tentativa de atender propriamente ao tema proposto para redação.

A esse tipo de apreensão de marcas lingüística-s está, pois, associado o caráter de

réplica do diálogo, ao qual estão referidas todas as marcas até aqui detectadas

em nossa análise. Daí, em todo o percurso deste trabalho. estarmos nomeando

esse comportamento como a circulaçãol37 dia!ógica do escrevente pelos três

eixos aqui propostos.

l37 Essa clrcu!açõo tem paralelo nas mudanças de "modos de falar" durante um "evento
lingüístico". Segundo Berruto, um dos crítérios paro segmentação de um "evento lingü/stico"
nos "atos lingülsficos" que o compõem consiste em operar a segmentação quando advém -
no interior dos segmentos individuados pela tomada de palavra (intervenções sucessivas dos
interlocutores) -, uma mudança significativa: do variedade de língua empregada pelo
falante, de temo do discurso, de destinatário (quando foz seu discurso voltar-se para alguém
que não é o seu ouvinte) ou do própria situação comunicativa !op. cit.. p. 90).

344
No que diz respeito ao eixo da dialogia com o já falado/escrito, esse

caráter de réplica atinge várias ordens de remissão, as quais reunimos em

regu/andodes lingüísticas que apontam: para outros enundadores, para a própria

língua, para os leitores, para o próprio texto, para um registro discursivo e para o

evento vestibular {representado não só pelos leitores, m<;~s também pelas

citações do coletânea). É, pois, também o partir da consideração do caráter

dialógico intrínseco à utilização da linguagem que a abordagem metodológica

escolhida permite observar essas remissões como fragmentos indiciativos de

interação no que se refere à própria dialogia com o já falado/escrito.

Embora mencionadas de maneira dispersa nos capítulos precedentes,

essas referências servirão como ponto de partida paro que implicações teóricas

mais precisas sejam trazidas à discussão sobre o eixo da dia!ogia com o já

falado/escrito.

1. IMPLICAÇÕES TEÓRICAS DA CONSIDERAÇÃO DO IMAGINÁRIO SOBRE


A DIALOGIA COM O JÁ FALADO/ESCRITO

Antes de tratarmos diretamente das implicações teóric?s da consideração

do imaginário sobre a dialogía com o já falado/escrito, procederemos a alguns

esclarecimentos relativos à postulação desse eixo de circulação dialógica do

escrevente ao lado dos dois outros já comentados nos capítulos 3 e 4.

Do que foi discutido no capítulo 4, poderíamos talvez ser levados a

concluir que o eixo da dialogia com o já falado/escrito não se distingue do eixo

da· representação do código escrito institucionalizado. AfinaL este último

pertence ao já escrito e "a incorporação de aspectos convencionais, de escolhas

345
de estruturas típicos da escrito, de modelos escritos'138 poderia ser vista como

parte da díalogia com o já falado/escrito.

Do mesmo modo, a partir do que discutimos no capítulo 3, poderíamos

também ser levados a concluir que o eixo da dialogia com o já falado/escrito

recobre o e~o da representação da gênese da escrita. Afinal. este último tem

diretamente a ver com a representação acerca do modo de constituição da

escrita e, como terminamos de mostrar, esta se dá pela mobilização de

representações a partir da dimensão dia lógica constitutiva de toda a linguagem.

Nenhuma das duas objeções procede. Do ponto de vista metodológico,

pouco poderíamos ganhar reunindo, num único eixo, os remissões ao código

institucionalizado e à gênese da escrita. Muito poderíamos perder, porém. Se não

pela desconsideração da diferença entre aqueles eixos e o da dialogia com o já

falado/escrito, pela própria desconsideração da diferença daqueles dois eixos

entre si, ou seja, pela desconsideração das diferentes representações invocadas

na circulação dia!ógica pelo código institucionalizado e pe!os representações

invocadas na circulação pela suposta gênese da escrita.

A serem aceitas essas objeções, dois riscos sobressaem: o de ver o modo


" "

heterogêneo de constituição da escrita como simples interferência da oralidade

na escrita (momento de emergência da representação do escrevente sobre a

gênese da escrita), ou o de ver esse modo de constituição como simples

reprodução de modelos da língua escolarizada {momento de emergência da

representação do escrevente sobre o código institucionalizado). Tanto na

hipótese da interferência como na da reprodução vemos imediatamente

renascer a concepção da escrita como produto, e como produto de sua própria

1:m Confe1i1 Abaurre (1987. p. 193) e, aqui mesmo, p. 274.

346
autonomia. Parece claro que o que é "interferente" está fora do que seria o

domínio próprio da escrita e o que é "reprodução" projeta, também de fora, o

que seria uma convenção fixa para ela. Em ambos os casos, portanto, a

autonomia da escrita é tomada como um dado de referência, sendo o produto

escrito assumido como objeto de avaliação a partir de seu grau de aproximação

com o modelo autônomo.

Para evitar esses riscos, reservamos um terceiro etxo às remissões ao já

falado/escrito. A especificidade desse eixo em relação aos demais é a de estar

ligado a uma dimensão constitutiva da linguagem em geral, portanto ligada

também a uma dimensão de constituição da escrito: a da dialogia, enquanto os

dois outros eixos se definem como parâmetros mais ou menos difusos,

alternadamente fixados pelo escrevente, no processo dinâmico da textua!ização

pela escrita. No que se refere a sua especificidade em relação à escrita, além de

estar na sua constituição pela necessária relação do discurso com outros

discursos, define-se também pelo tipo de circulação dia!ógica que permite ao

escrevente marcar zonas de contato com o que representa como sua

exterioridade. Este terceiro eixo está, pois, no base do processo de constituição da

escrita e do sujeito escrevente, na medida mesma em que coloca o escrevente

em relação com o outro.

Mas há ainda um último aspecto do especificidade do eixo da dialogia

com o já falado/escrito que tem a ver diretamente com o modo como estamos

definindo a escrita neste trabalho e, portanto, que tem a ver ainda com sua·

relação com a escrita. Trata-se do fato de que, em sua composição com os

outros dois eixos propostos, ele desempenha um duplo papel: o de guardar a

dimensão diológica que permite o movimento entre os eixos, marcando zonas de

347
contato {ou se se preferir, fronteiras entre eles) e o de ser ele mesmo um pólo de

circulação.

Nos textos analisados, são muito freqüentes as ocasiões em que podemos

localizar esse eixo como sendo ele mesmo um pólo de circulação díalógica.

Trata-se tanto dos casos de colagem da coletânea (específico dos textos

anallsados), como de casos (muito mais raros nesses textos) em que as remissões

beiram a erudição. A forma como o escrevente demarca o terreno da {sua)

escrita e o grau de negociação com o que representa como sendo o seu exterior

revela nitidamente sua relação não só com a leitura de textos de natureza vária,

mas com tipos de leitura {da simples colagem até as demonstrações de

erudição), fator que - ao buscar, em tese, a valorização do conhecimento do

vestibulando- está na base da concepção do próprio vestibular em questão.

Exposto este último aspecto da especificidade do terceiro eixo de

circulação diológíca, podemos, neste ponto, dar uma última determinação

quanto a não considerarmos sua atuação isolada como reccbridoro dos demais

eixos. Do mesmo modo que se mostrou ser útil a distinção dos dois outros eixos

entre si no sentido de evitar definir o modo heterogêneo de constituição da

escrita como uma questão exclusiva de interferência da oralidade na escrita ou

de reprodução de modelos vindos da língua escolarizada, o último aspecto da

especificidade do terceiro eixo, isto é, seu caráter de registro de uma leitura,

permite localizar uma outra posição discutível, mos muito corrente, sobre a

escrita: a da atribuição dos chamados "problemas de escrita" à falta de leitura -

genericamente referida ao contato com textos escritos - dos escreventes, forma

fácíl e direta de definir leitura como a leitura escolarizada.

348
Seria recomendável, ao contrário, começar o questionamento dessa

concepção a partir do questionamento da própria noção de alfabetização

como domínio de uma tecnologia destinada a estabelecer correspondências

unívocos entre som e letra, mas talvez fosse recomendável também questionar

os próprios métodos de leitura de texto trabalhados em sala de aul_a para

chegarmos, finalmente, a questionar a concepção de leitura como sendo restrita

a textos escritos, especialmente- e para utilizar um argumento que não se justifica

apenas pela sua atualidade -se considerarmos a enorme gama de linguagens

que convivem na sociedade. Interferência da oralidade, reprodução de modelos

e falta de leitura podem, pois, ao invés de categorias de análise, ser vistos como

sintomas da falta de reconhecimento e de compreensão da efetiva relação que

o sujeito mantém com a linguagem no processo de sua constituição


.- como
...
escrevente.

Esses esclarecimentos preliminares estabelecem as bases da discussão que

faremos, a seguir, a respeito das implicações teóricas da consideração do

imaginário sobre a dialogia com o já falado/escrito. Com esta exposição,

pretendemos: (a) aprofundar a questão da dialogia como uma dimensão do

utilização da linguagem a partir da noção de língua materna; {b} aprofundar a

questão da dialogia como uma dimensão constitutiva da escrita a partir da

noção de "díalogismo mostrado" (Maingueneau, 1989, p. 123); e {c) aprofundar o

questão da dialogio como uma dimensão básica na utilização do método

indicíário a partir da consideração do "material semíófíco do psíquismo" (Bakhtin,

1979, p. 38).

Pensar a dialogia como uma dimensão constitutiva da utilização da

linguagem já é quase um lugar-comum. São também bastante conhecidos os

349
estudos que tomam como objeto a materialização lingüística desse princípio da

linguagem, a saber, o estudo, no âmbito da língua, de sua heterogeneidade139.

Vem, como se sabe, de Bakhtin a consideração da dimensão dia!ógica

da linguagem, fato que leva Stam ( 1992) a constatar naquele autor a preferência

pela "multiplicldode à uniCidade'' . Segundo Stam, essa preferência vem

"indicada verbalmente em suas oposíções sístemóticas entre heferoglossia e

monog!ossia, polifonia e monofon!a, dialogismo e monolog!smo, discurso b!vocal e

discurso monovocal" {op. cit., p. 41, destaques no origina!).

Para os interesses do presente trabalho, é importante observar como o

princípio do dia!ogismo está presente na noção de língua pela consideração da

heterogeneidade como uma das propriedades lingüísticas que dão a dinâmica

de suas variações e de suas mudanças.

Já chamamos a atenção140 para a divisão proposta por Lopes !1993) de

"oito van'edades discursivas de base do Português do Brasil': Como foi visto, ao-

propor essas variedades, o autor recorre a uma certa noção de língua que ele

próprio caracteriza como "vaga e parcial", isto é, língua como "meio de

expressão da cultura de todos os falantes pertencentes à comunidade de língua

portuguesa" (op. cit., p 27). Ao mesmo tempo- e esta consideração é a que mais

interessa aqui - o autor destaca que a distintividade dessas oito variedades

discursivas de base só se sustenta por meio de fronteiras fluidas e pelo seu caráter

de coexistência (não só entre si, mas também em relação a uma extensa série de

outros variedades). Podemos, pois, compreender em que sentido a noção de

língua como "expressão da cultura de todos os falantes" é caracterizada

1s~ Vale o registro de que, em soclolingüística, "heterogeneidade é um conceito sincrõnico':


oposto à mudança lingüística, que é um conceito diacrônico (Berruto, op. cit., p. 54,
destaque nosso).
14o Conferir. aqui mesmo, p. 80, Nota 44.

350
como "vago e parcial" pelo próprio autor. Trata-se da unicidade embutida nessa

noção ("expressão da cultura") que não permite contemplar a multiplicidade de

variedades, o falta de fronteiras e a dispusto entre elas. No que se refere,

portanto, à presença do dialogismo - enquanto ''princípio constitutivo da

linguagem e de todo o discurso" (Barros, 1994, p. 6} - na noção de língua,

podemos dizer que esse princípio se materializa, na formulação de Lopes, na

detecção de variedades discursivas. Essas von"edades podem, pois, ser vistas

como a manifestação do princípio dialógico da linguagem em regiões mais ou

menos definidas no interior da língua. Dito de outro modo, para não ficarmos na

relação entre marcas lingüísticas e um princípio da linguagem, essas variedades

caracterizam-se como formas que, ao competirem entre si, permitem observar a

dinâmica da língua (variações e direções de mudança detectáveis numa

sincronia) pela heterogeneidade que a constitui. Heterogeneidade, neste sentido,

é, portanto, a propriedade descritiva reconhecível nas marcas lingüísticas das

variedades localizáveis no material lingüístico concreto.

Também Co macho j1988), em texto que compõe coletânea dedicada a

dar Subsídios à proposta curricular de llngua portuguesa para o / 0 e 2° graus,

mostra, ao tratar da variação lingüística, o caráter heterogêneo da língua,

afirmando haver "no seio de um mesmo instn;mento cJ.e comunícoção quatro

modaltdades específicas de variação lingüística, respectivamente, histórica ou

diacrônica, geográfico ou espacial social e esfjfístiCa" (op. cit., p. 30}.

No mesmo volume de Subsídios..., uma outra reflexão sobre o ensino de

língua portuguesa é feita por Castilho (1988). Segundo esse autor, com a

expansão do espectro social atendido pelo l 0 grau, foram incorporados

contingentes de alunos que "trazem paro a escola as variedades desprestigiados

351
do português" {op. cit., p. 57). Diante da insensibilidade para essas mudanças de

clientela demonstrada na elaboração de livros didáticos e na preparação dos

professores, o autor propõe como solução a consideração de "pelo menos duas

questões: o estudo da vadação lingüística e o ensino da norma culto" (idem, ib.).

A propósito, lembra que "a pesquisa sociológica e antropológica

confempbrânea vem 'redescobn"ndo' o Brasil como uma nação complexa,

formada por um fobuleiro de comunidades dtferenciadas, compondo um quadro

bem diverso do da histon"ogrofio oficial" {idem, ib.). Desse modo, continua

Castilho, "a di'spaddade lingüíStico entre a classe baixo e o classe média e alta

configuram um verdadeiro coso de diglossia, figura a que os educadores

brasileiros não estão afeitos, dadas as mudanças de clientela já aludidas" {idem,

ib.). Por fim, e é o que se deseja sobretudo destacar aqui o autor específica o

que entende por diglossia:

"trata-se de duas van"edodes da mesmo língua que


escolhemos olternativomente, fendo em viSta o
situação em que nos encontramos. Difere portanto do
bt!ingüismo, hipótese em que duas línguas são
disponíveis e a escolha de cada qual depende do
que é falado pelo interlocutor"{idem, p. 57-58).

As contribuições dadas por Lopes, Camacho e Castilho indicam, para o

caso da língua portuguesa falada no Bras!!, aspectos da heterogeneidade que a

constitui. Essas contribuições exemplificam, de certo modo, o que Weinreich et ai.

(1968) indicam como solução poro o pesquisa preocupada com a questão da

mudança lingüística. Segundo esses autores, essa pesquisa se dá ao quebrar-se a

identificação entre estruturação e homogeneidade. Recuperando uma reflexão

lingüística que se enraíza nos anos 20 e 30, lembram a abordagem dos camadas

sobrepostos ("mu!fí!ayer approoch') que Mathesius e outros Hngülsfas de Praga,

352
como Jakobson, utilizam ''paro caroctenZor siStemas que coexistem no mesma

comumdade" {op. cit., p. 160). Lembram os autores que Jakobson declarou que

"o alternância de esfllo é um fato permanente que não compromete o

sistemoticidode de cada esftlo como um objeto da descn"ção lingüística" (idem,

ib.). Lembram ainda que a abordagem das "camadas sobrepostas" { "multilayer


.. .. ~

opproach") foi desenvolvida por Fries e Pike nos Estados Unidos e que, nos anos

60, era aplicada "mais sistematicamente aos estudos sociolingüisticos por

Gumperz'~4 1 {idem, p. 164). A desidentificação entre estruturação e

homogeneidade vem romper com a simples atribuição da heterogeneidade à

diversidade dos indivíduos, idéia presente, embora de diferentes maneíras, em

Paul (no domínio da lingüística histórica) e em Saussure {no domínio da lingüística

sincrônica}. À abordagem das camadas sobrepostos ( "mulflloyer approoch'),

Weinreich et a!. acrescentam a idéia de uma "distintivJdade funcional" que

consiste no fato de que "as camadas { "loyers") devem estar em competição,

não em complementon'dode': em conseqüência do que "é necessário prover

uma descrição n"gorosa dos condições que governam o oltemâncío dos dois

sistemas [caso de dois dialetos regionais, por exemplo] {idem, p. 162} ': Dos

fundamentos empfnCos paro uma teoria da mudança estabelecidos pelos

autores, interessa aqui destacar dois deles:

• "A associação entre estrutura e homogeneidade é


uma tlusõo. A estrutura lingüística inclui a
diferenciação ordenada de falantes e estilos
através de regras que govemam a variação no

1 1
~ Cadiot (1989) cita Gumperz como um dos lingüistas que, ao tratar do code-swftching,
rompeu com a "lingüística estruturalista do contato" e construiu seu objeto opondo-o ao
dessa lingüística: " assim JJ.Gumperz disf{ngue o code-switching conversacional do code-
swifching que ele chama de sifuacional: no sifuacional, a a!temáncia é regulada pelos tipos
de atividade, meio social dos falantes... No conversaciona!, ao contrádo, a a/temância não é
nem regida nem regulada pela sociedade ou organização social; (... ) o allemôncia, apenas
suscetível de aflorar 6 consciência, é simplesmente uma das formas concretas das trocas
verbais, um regime - um modo - do falo" (op. cit., p. 1 44).

353
comunidade de falo; o dom!nio nativo da
linguagem_ inclui o controle de tais estruturas
heterogêneos:

• "Nem todo tipo de vanOb!lidade e


heterogeneidade da estrvtura lingüiStico envolve
mudança; mos toda mudança envolve
variabilidade e heterogeneidade" [idem, p. 187-8).

Para o caso específico da escrita dos vestibulandos, o presente trabalho

sustenta-se principalmente no segundo desses fundamentos empíricos

determinado pelos autores. Não é, pois, a ligação da variabilidade e da

heterogeneidade com a mudança lingüística que está sendo buscada, mas

estamos procurando, na variabilidade e na heterogeneidade, formas de

identificação (do escrevente em relação à língua, aos vários registros discursivos,

ao interlocutor ... ) detectáveis nos textos.

Vale destacar ainda, nesses dois fundamentos empíricos, a forte presença

da multiplicidade - poderíamos, se pensássemos a heterogeneidade como

constitutiva das variedades tomados isoladamente, traduzi-los por helerog/ossio,

polifonia, dia!oglsmo, blvocalidode- mesmo quando a idéia de estrutura é ainda

central.

Mos não é apenas quanto à definição de língua como objeto de estudo

da Língüística que a questão da heterogeneidade é central. Ao identificarmos

língua com "expressão da cultura de lodos os falantes': como vimos acima na

formulação crítica de Lopes, podemos trazer também à discussão as noções de

língua mofemo e 1/nguo ,nacional. A esse respeito, é interessante lembrar a

observação de Vermes e Boutet {1989): "os !inguos não são{ ... ) somente objetos

clentificos, estudados cienflficomente pelos llngOistas, elas são também objeto de

práticos socials e, como tais, estão ligados a Estados particulares, a po/lticos

354
lingüísticos e a tenitórios distintos." (op. cit., p. 9). Nesse contexto de reflexão, as

autoras se perguntam, ainda, sobre em que proporção a noção de "língua

materna pode funcionar como conceito descnfivo ou explicativo" {idem, p. 11).

Procuram, então, responder, ampliando ainda mais a abrangência de tal

noção: "estas questões se colocam em todos os níveis do organização social do

nível 'macro' do Estado ao 'micro' do psiquismo dos individuas, passando pela

região, a comunidade, o grupo local a famtlia. "{idem, ib.}. E concluem:

"A noção de lingua materna ponto de partido e de


ancoragem da identidade~ ao mesmo tempo
indivtdual e coletiva se bem que ufllizoda
constantemente como valor referencial permanece
um conceito vago, senão ambíguo'' (idem, ib.).

Essas reflexões trazem à tona as discussões já desenvolvidas neste trabalho

sobre a natureza heterogênea das práticas sociais do ora!/fa!ado e do

letrado/escrito (discussões localizadas no "nivel 'mocro'"da organização social).

Contemplam também o que discutimos sobre o modo de individuação do

sujeito, uma vez que permitem a visão particularizada de como o escrevente se

representa em relação à língua { "lingua matemo" como "ponto de part1do e de

ancoragem da identidade" ) e, portanto, em relação a sua escrita e ao

interlocutor que constrói em seu texto {discussões localizadas no "nível 'micro'" da

organização social).

Na mesma linha de raciocínio, Decrosse {1989} localiza "no primeiro

milênio de nossa era" a instauração da idéia de que, "ao lodo dos línguas de

cultura, existem usos diferentes, mas importantes, odquindos naturalmente em um

dado espaço geográfico" (op. cit., p. 19): trata-se da função de "língua

materno". Segundo a autora, "esta noção é uma função, ou ainda um mito,

355
necessóda à constituição de fronteiras" (idem, p. 20}. Desse modo, Oecrosse

resume, em duas vertentes, a atuação da noção de língua materna: a de sua

oposição às línguas de cultura e a de sua delfmftação de um territón'o nacional

{"uma língua para um povo, em um temfório nacional" ). esta última instalada

''sob .a forma de discurso de legitimidade (Charfes, Trai/é, Chroniques), mos

também de técnicos (entre os quais a escnfo e o alfabeto}" {idem, p. 21). A

autora termina por mostrar como uma política lingüística nacional estabelecida

na França no século XIV terminou por levar o francês "a um lugar cada vez mais

centrar: ao ponto de, no século XV!I, o "poder real" atingir "o ideal monolíngue ·:

ocasião em que "as línguas maternas só terão de combater a língua de cultura"

(idem, p. 27).

Por sua vez, Achord {1989}, ao afirmar que o ideal monolíngue não é

óbvio, uma vez que "muitos impérios existiram e se perpetuaram sem querer impor

o seus súditos o uso de uma !Jí?gua portlcular" {op. cit., p. 32), mostra que "o

situação contemporânea não suprimiu nem o mulftlingüismo social funcional nem

o multi!ingüismo1ndividua/" (Idem, ib.)l 42. Mostra também que, desde o início do

século XX, pode-se constatar, "o despeito do contradição aparente, que os

reivindicações das 1/nguas minodfórias retomam, no essencial, os 1deais

mono!ingüístos do estado central, e os desloco" (idem, p. 54). E acrescenta: "tudo

se passa como se a voriaç6o local e a tradição oral fossem de valor lnossumíveis

no espaço do pol/fico, tal como é atualmente estruturado" (idem, ib.). Por fim,

conclui: "para ser legitimo, o particular deve proceder do gera! não o contrário"

142 Berruto, atento à variação dialeto! no !tótio, defende que a manutenção, em uma
comunidade, de grupos cultura! e !1ngüisticamente diversos, que desenvolvem valores e
conteúdos próprios, é freqüentemente a único garantio de que se realize naquela
comunidade "uma 'verdadeiro' comunicação e um real progresso sociocultural" {op, clt., p.
102).

356
(idem, ib.). Vemos, pois, a promoção da língua a um "cdfério de tdentidade';

como "almadasnações"(idem, ib).

Agrupados. as postulações sobre o multi!ingüismo de Vermes e Boutef. de

Decrosse e de Achard tratam, pois, do aparecimento da noção de língua

materna, de sua associação a um poder político (''língua nacional"), dos gêneros

de produção lingüística {cartas, tratados, crônicas) que a legitimaram, de sua

associaçõo com a escrita e o alfabeto, da contradição aparente das línguas

minoritárias ao defenderem, também para si, o ideal mono!íngüe.

Finalmente. no que se refere à heterogeneidade como constitutiva da

noção de língua materna e ainda no campo de estudo das "misturas de 1/nguas'~

situações em que os falantes se especializam em certos registros ("língua nacional

na escola, 1/ngua regional ou dialeto em caso"), Cadiot (1989) afirma que "uma

reflexão satisfatória [sobre essa alternância de código] devenO permitir:

a) indicar e dor o devido lugar à heterogeneidade do


enunciativo [de forma a especificar esta
heterogeneidade como "ligado a um
deslocamento dos posições enunciativos"];
b} indicar os efeitos desta 'estratégia enunciativo':
notamos que elo pode operar em detninento da
integndade sintático definida em termos
estn'tomente gramaticais{ ... );
c) constatar enfim, e sobretudo, que· o noçQo de
integridade sintático, assim definida (ligado a um
julgamento de aceitobilidade fixa), torna-se um
impasse ao nivel da produtividade discursiva { ..)Se
é verdade [que em certos enunciados] não existe
integridade sintólica, poderfomos dizer que existe
p/ausibflidade discutsiva" (op. cit., p. 150, destaque
no original].

As recomendações de Cadiot, embora voltadas para as situações de

línguas em contato, são importantes não só do ponto de vista da constatação do

357
que e!e próprio chama "heterogeneídade constitutiva da língua': mas também

do ponto de vista da abordagem metodológica que ele propõe. Num paralelo

com a abordagem metodológica assumida neste trabalho, o caráter de réplica

que orienta o recorte dos pistas lingüísticos feito na análise aqui empreendida
'
tem correspondente no que o autor chama de "controle por ajustamento'; que,

segundo Cadiot, "traduz {... } o íncorporação dos efeítos do presença real ou

ímogínán'a do oufro"(idem, ib.).

Com essas menções aos estudos sobre variação lingüística e

multilingüismo, procuramos mostrar a abrangência da questão da

heterogeneidade no âmbito do língua. Para encerrarmos esta reflexão ligada à

primeira implicação teórica da conslderoçõo do eixo da dialogia com o já

falado/escrito, vejamos o que diz Bakhtín sobre a atuação do princípio dia!ógico

na linguagem: "os relações diológicas (... ) são um fenômeno quase universal, que

penetra toda a linguagem humana e todas as relações e manífesfaçõers da vída

humano, em suma, tudo o que temsentído eimportâncio"{l981, p. 34}.

Passamos, neste ponto, à segunda implicação teórica da consideração do

eíxo da dlalogia quanto ao já falado/escrito.

No que se refere a aprofundar a questão da díalogia como uma

dimensão constitutiva da escrita a partir da noção de "díalogismo mostrado': é

interessante lembrar que Maingueneau { 1989) afirma que o díologísmo mostrado

"diz respeito à interdiscursivídode manifestada" (op. dt., p. 123}.

Quanto à interdiscursividade, pode-se destacar em Bakhtin ( 1979) o papel

determinante por ele atribuído ao centro exterior de toda enunciação:

"O centro organizador de toda enunciação, de todo


expressão, não é interior; mas exterior: está situado no
meío social que envolve o indivíduo.{ ... } A enuncíoçOo
enquanto tal é um puro produto da interação social,

358
quer se trate de um ato de fala determinado pelo
sítuoção imediata ou pelo contexto mais amplo que
consi!Jui o conjunto das condições de vida de uma
determinado comunidade lingüística" (op. dt., p. 107,
destaque no original).

Pensando na escrita. em cuja enunciação conta a determinação imposta


' ....
pelo interlocutor nela representado, podemos dizer- ainda com Bakhtin (1992) -

que "o enunciado está voltado não só paro o seu objeto, mos também para o

discurso do outro acerco desse objeto" (op. cit., p. 320). E completa: "o mais leve

alusão ao enunciado do outro confere à falo um aspecto dlalógico que nenhum

tema constdUJdo puramente pelo objeto poderia confedr-lhe" {idem. lb.).

O dialogismo mostrado é detectável também na escrita infantiL Silva

! 1991) afirma que a criança, paro resolver os diversos problemas que o escn"to lhe
..
apresenta, ''se utilizo de cdtén'os próprios que lhe porece'm móis adequados para

aquele dado momento e que resultam, na maion'o dos vezes, da intermediação

de tudo aqUJ7o que percebe do fala e do que já percebeu e infen'u acerco da

escrita... "(op. dt., p. 62).

Vai {1991), estudando textos escritos de vestibulandos, retoma Beaugrande

e Dressler sobre o caráter constitutivo das relações interiextuais: 'fnúmeros textos

só fazem sentido quando entendidos em relação a outros textos, que funcionam

como seu contexto". E em seguida, acrescenta sua própria contribuição,

dizendo: "o mais freqüente interlocutor de todos os textos. invocado e respondido

consciente ou inconscientemente, é o discurso anônimo do senso comum:--" {op.

cit., p. 15).

A questão do dialogismo aparece ainda na relação do sujeito com a

linguagem, relação que aparece sempre mediada por um outro. É o que afirma

Abaurre {1992) ao dizer que essa" relação tem no ''interlocutor fisicamente

359
presente ou representado [um] ponto de referência necessódo para esse sujeito

em constituição"(op. clt., p. 9).

Todos esses autores mostram, por vias diferentes, a importância da

consíderação do díalogismo mostrado. Para o que nos interessa, a

particularização desse can~ter constitutivo da dialogia para o enunciado escrito

visa dar conta, como adiantamos1 4 3, das regu!an'dades lingüísticas que marcam

remissões feitas pelos escreventes: à coletânea de textos dada na proposta de

prova, a outros textos escritos, a textos já falados/escritos, mas também a uma

outra língua, a uma outra palavra, ao interlocutor, a outros registros discursivos

etc.

A opção teóríca que essa consideração implica tem a ver, portanto, com

a assunção do discurso como produto do inferdiscurso, com o qual, segundo

Authier-Revuz (1990), os pontos de heterogeneidade mostrado se relacionam

para marcar "um lugar para um fragmento de estatuto diferente na líneandade

da cadeia" e "uma alferidode a que o fragmento remete" (op. dt., p. 30).

Dando por assentada a questão da dialogia como constitutiva da escrita,

passamos à terceira das implicações teórica acima anunciadas.

Pretendemos, como ú!tima implicação teórica da consideração do eixo

da dialogia com o já falado/escrito, aprofundar a questão da dialogia como

uma dimensão básica na utilização do método indiciário a partir da

consideração do "material semiólico do psiquismo" (Bakhtin, 1979, p. 38}.

A respeito do que chama o "mafedol semiófico do psiquismo': Bakhtin

{1979) afirma:

"lodo gesto ou processo do organismo: o respiração,


a circulação do sangue, os movimentos do corpo, a

14-'l Conferir. aqui mesmo, p. 345.

360
articulação, o discurso inferior, a mímico, o reação aos
est/mu/os exteriores (por exemplo, o luz} (... ) tudo que
ocorre no organismo pode tomar-se matelial paro a
expressão da atividade psíquica, posto que tudo pode
adquirir um valor semióh"co, tudo pode tomar-se
expressívo"(op. cit., p. 38, destaque no on'ginal).

Ainda segundo o autor, há que se eliminar a distinção q~alitativa, típica do

pensamento subjetivista individualista, entre o conteúdo interior e a expressão

exteriorl 44: "não existe atividade mental sem expressão semiótica" {idem, p. 98).

Essas afirmações de Bakhtin trazem à discussão a heterogeneidade do

caráter semiótico da escritaHs_ Para recordar a posição de apenas um dos

autores aqui citados, RossHandi diz que "muitas vezes {... ) não se percebe que

estamos emitindo continuamente mensagens de outro tipo" (op. cit., p. 111).

Como dissemos, o material significante que dá base às comunicações verbais é

ele próprio uma dessas "mensagens de outro tipo" que compõem a

comunicação verbal.

O gesto como signo antecipatório da escrita, o gesto rítmico presente no

próprio processo de escrita, bem como o ritmo da escrita resultante de sua

impressão gráfica são fatores (entre outros) que, já discutidos aquJ146, marcam a

diversidade presente na constituição da base semiótica da escrita.

Para estabelecer a relação do "maten'a! semióHco do psiquismo'; proposto

por Bakhtin, com o método indiciário, buscaremos a seguinte formulação de Eco

(1991):

144 É interessante observar também que, segundo Brait {1994) -retomando a análise de
Bokhtin sobre o discurso verbal flagrado num momento de conversação cotidiano - "a
situação extroverbal não é meramente a causa mecânico do enunciado, mas se integro ao
enunciado como uma parte const/tutivo essencial à esfmturo de sua significação': E a autora
continua: "poro Bokhtin o enunciado concreto, como um todo significativo, compreende
duas portes: o parte percebido e realízocio em palavras e a parte presumida" (op. cit.. p. 19-
20).
H~ Conferir, aqui mesmo. p. 55-63.
146 Conferir, aqui mesmo, p. 63-69.

361
"Quando um fato singular é tomado como hipótese
exp/onatória de outro fato singular, o primeiro
funciona (em um dado universo textual} como o lei
geral que explica o segundo, {... ) Atualmente, um
médico busca tanto leis gerais quanto causas
específicos e idiossincróficas, e um historiador frobalho
para identificar tanto leis hlstódcas quanto causas
particulares de eventos particulares.{ ...) histonOdores e
médicos estão conjecturando acerca da quo!Jdade
textual de uma série de elementos aparentemente
desconexos. Eles estão operando um reductio ad
unum de uma pluralidade" {op. cit. p. 227, destaque
no original).

Parece ser útil testar a adequação desse método de médicos e

historiadores também no reconhecimento do "ma fenO/ semíótico do psiquismo".

Por certo, o ensino de língua matemo ganharia muito com ele. É possível que

uma leitura que respeite a complexidade s~miótica de textos de vestibulandos e-

sabemos - de muitos outros textos produzidos em situação escolar consiga

reverter um preconceito comum em relação a esse tipo de prática textual: o da

inaptidão do escrevente.

As evidências de fragmentação, a reprodução de modelos, os vácuos

deixados pela falta de !exicaJizaçôo ou pela lexicallzação inadequada, a

construção da alternância rítmica por meio de pontuação que rompe a

integridade sintática dos enunciados; as tentativas de plasmar a prosódia na

escrita são, entre outros, indícios que, sob a aparência de simplicidade do

produto textual final e sob rótulos que os classificam apenas em relação a certas

dimensões da linguagem (sintaxe, esquema textuaL escolha vocabular,

pontuação etc.), compõem a complexa heterogeneidade do feixe de material

semiótíco (gestos. som- pela prosódia-, grafia e espaços em branco, complexos

empregos da dêixis) que o escrevente articula em seu processo de escrita.

362
Seria recomendável substituir o preconceito em gera! apegado à

imputação de falta de "integddade sintática (ligada a um julgamento de

oceitobilidade fixa)" pela busca do que Cadlot chama a "p/austbil!dade

discursiva'1 4 1 dessa escrita. Essa nova atitude consiste apenas em fazer valer para

a escrita aquilo que normalmente fazt:::mos na fala ínforma!. Segundo \terGn

( 1981 ), "os sujeitos falantes não fazem avaliações acerca da normalidade ou

anormalidade de frases isoladas; avaliam sempre discursos"(op. cit., p. 37).

Damos por concluída a abordagem dos implicações teóricas da

consideração do eixo da dialogia com o já falado/escríto. Foram feitas, neste

tópico, observações o respeito da especificidade deste eixo em relação aos

outros apresentados e de seu duplo papel: o de guardar a dimensão dia!ógica

que permite o movimento entre os três eixos, marcando fronteiras entre eles,
. . e o

de ser ele mesmo um pólo de circulação.

Buscamos, ainda, reafirmar a dimensão dialógica constitutiva da

linguagem: recorrendo a estudos que propõem a heterogeneidade já na noção

de língua [enquanto conceito teórico e enquanto unidade política}.; observando

a dialogia como uma dimensão constitutiva da escrita; e, finalmente, observando

a questão da dialogia como uma dimensão básica na utilização do método

indidário a partir da consideração do heterogeneidade do material semiótlco da

escrita.

A exemplo do que buscamos apreender em relação aos dois outros eixos,

pretendemos, com a postulação deste terceiro eixo, captar o imagem que o

escrevente faz da díalogia com o já falado/escrito. Mais precisamente, trata-se

de localizar e explicar as representações do escrevente acerca de outros textos,

147 Conferir. aqui mesmo, p. 357.

363
outros interlocutores, outros registros discursivos, outras modalidades de sentido,

todos eles, fatores relacionados com a imagem que o escrevente faz de si

mesmo, de seu interlocutor e da própria escrita. Partimos, uma vez mais, da

hipótese de que momentos dessa circulação imaginária podem ser retomados,

em tesel4B, em qualquer época, na escrita de qualquer pessoa, .em qualquer

texto.

2. A DIALOGIA COM O JÁ FALADO/ESCRITO NO CONJUNTO DE TEXTOS


ANALISADOS

Quanto ao procedimento metodológico, será mantida, também em

relação ao 1erceiro eixo de clrculaçôo, a abordagem globalizada dos textos. Ou

seja, não· se analísará texto por texto, mas buscaremos exemplificar os pontos de

heterogeneidade (Authier-Revuz.. op. dL p. 30) - regulan'dades quanto aos tipos

de remissão - que, de um modo gera!, os escreventes marcam em seus textos.

Trata-se, portanto, não da comprovação óbvia de que o escrevente lida, em seu

texto, com a heterogeneidade mostrada, mas da busca de como a dia!ogia com

o já falado/escrito aparece representado nos vários textos no que se refere ao

que estamos chamando um modo heterogêneo de consf!tuição da escrita.

Pretendemos ainda mostrar, por meio das pistas locais deixadas pelo

escrevente, não só sua circulaçôo na direçôo do que ele representa como a

gênese da (sua} escrita e como o código escrito institucionalizado, mos também

na direção da representação que o escrevente faz do já falado/escrito.

Vale ressaltar que nosso objetivo é captar, nos "'ários textos, pístds comuns

quanto aos pontos de heterogeneidade marcada. Trabalhando, pois, com o

método indiciárío, buscamos uma abordagem globo!izada e de caráter

148 Conferir, aqui mesmo, p. 194, nota 80.

364
explicativo a respeito desse tipo de circulação dia lógica. A exemplo do que foi

feito nos capítulos 3 e 4, buscamos marcas de individuação dos escreventes a

partir do método proposto e segundo o critério do caráter dialógico das pistas

lingüísticas deixadas pelos escreventes. As várias ordens de remissão foram

reunidas em regularidades lingüísticas, no caso deste>-eixo, entendidas como

diferentes pontos de heterogeneidade. Antecipamos, abaixo, o quadro das

ocorrências das regularidades que denunciam a imagem que o escrevente faz

da (sua} escrita a partir da dialogia que estabelece com o já falado/escrito.

QUADRO 1: Porcentagem das ocorrências segundo as regulandades lingüísticas


que congregam pontos de heterogeneJdade

REGULARIDADES LINGÜÍSTICAS PORCENTAGEM


QUANTO AO ENUNCIADOR• 17.8
QUANTO À LÍNGUA (um outro discurso, uma outra modalidade 11,2
de sentido, uma outrap()lavra, uma outra lfnaual
QUANTO AO REGISTRO DISCURSIVO 4.7
QUANTO AO LEITOR 3,3
QUANTO ÀS CITA( ÕES DA COLETÂNEA 60.4
QUANTO ÀS REMISSÕES AO PRÓPRIO TEXTO 2.6
TOTAl 100,0

A presença de oulro enunciador no texto do escrevente

Elaborada para medir, entre outras capacidades do vestibulando, a de

estabelecer relações e de interpretar dados e fatos, o tipo de prova aplicado é,

como afirmamos há pouco, o registro de uma leitura: no sentido amplo da

palavra (leitura do mundo em que se situa o estudante) e no seu sentido restrito

(leitura de textos e, ainda mais particularmente, leitura de textos dados pela

coletânea no momento da prova).

O modo pelo qual escolhemos lidar com essa leitura é o da captação das

formas pelas quais o heterogêneo se manifesta na escrita do vestibulando,

denunciando, entre outras coisas: uma expectativa de alçamento à posição que

365
atribui ao interlocutor, uma leitura pouco convincente, uma percepção de que

as citações podem valorizar e sustentar seu texto.

Inicialmente, serão tratadas as várias formas de emergência de outro

enundador no texto do escrevente: (a) assimilação da voz da instituição como

tentativa de adequação ao perfil do aluno por ela desejado; {b) remissão a

outros enundadores com pretensão de ironia, de atribuição negativa ou de

simulação de um outro; {c) remissão, por meio de discurso direto, a autor citado

na coletânea ou a outro qualquer, {d) indecisão quanto à identificação ou não

da fala do locutor com a do discurso citado; (e) sustentação do dizer a partir do

que se estabelece como a voz do senso comum. Todas essas formas de

emergência de outro enunciador coracterizam~se como efeitos de polifomQH9 no

texto do escrevente.

Eis, a título de ilustração, como se distribuem, em termos de freqüência, as

várias formas de emergência de outro enunciador.

QUADRO 2: Porcentagem de ocorrência de aspectos particulares da


regularidade lingüística OUTRO ENUNC!ADOR em relação ao
total de ocorrências das outras reguladdades no conjunto dos
textos

ASPECTOS PARTICULARES DAS A OUTRO ENUNCIADOR

1 I como lentotivo ao

com pretensão de íronlo, de ,O

direto, a autor citado na 4,5

do locutor com a do discurso

* Conferir sobre a relevância das marcas não ser dada por sua freqüência, aqui mesmo,
capítulo 3, quadro 2, p. 198.

1 4~ Conferir Barros (1994) e, aqui mesmo (p. 87. Nota 49).

366
A primeira forma de emergência de outro enunciador consiste na

assimilação da voz da instituição como tentativa de adequação ao perfil do

aluno e se marca no próprio esquema textual adotado. Como ficou ditolso, há

sempre, nesse esquema, um espaço para o posicionamento do escrevente a

respeito do tópico específico abordado:

'14 víolência é só mais um reflexo do caos social, pai/fico e


econômico em que vivemos e deve ser combatida na sua raiz. O
resgate de nossa condição de civilizados depende de cada um de
nós.
"E, conscientes desta responsabilidade, quem sobe um dia a
violência dos filmes futuristas não ultrapassem os telas de cinema"
{Texto 01-036).

Como vemos, não há, nesse exemplo, uma remissão explícita, marcada, a

outro enunclador. No entanto, as con~ições de produção dessa escrita permitem

dizer que o escrevente procura, nos dois momentos em destaque, reafirmar-se

como participante do que ele próprio representa como o perfil de aluno

esperado pela instituição: sensível aos problemas sociais e pronto a assumir sua

responsabilidade pessoaL Fala. portanto, uma voz assimilada polífonicamente à

voz atribuída à instituição, indiciando um momento em que o escrevente circula

pelo que imagina como código escrito institucionalizado.

A segunda forma de emergência de outro enunciador marca-se pela

remissão a outros enunciadores com pretensão de ironia, de atribuição negativa

ou de simulação de um outro. O exemplo abaixo é um caso de ironia indicada

por meio do uso de aspas:

"Cometemos um grande cnine ao chamar de índio uma


pessoa que comete a violência. Nossos índios viviam em perfeita
harmonia. Vieram os colonizadores e trouxeram o 'civilização'" {Texto
Ol-Ql9).

1so Conferir, aqui mesmo. p. 124.

367.
Essa é uma forma de ironia por meio da qual um outro enunciador (o

colonizador, o homem branco ... ) é localizado como porta-voz do discurso

corrente que separa o primitivo do civilizado. Ao buscar alçar-se para uma

posição crítica em relação à estigmatização dos índios a partir dessa dicotomia,

o escrevente denuncia, porém, a leitura equivo~ada que faz do tema. Vê. no

tema Hviolência nas tribos urbanas modernas", uma referência à dicotomia

primitivo (tribos) I civilizado (tribos urbanas modernas}. Essa leitura denota a

expectativa do escrevente de se alçar ao patamar crítico que imagina ser o

desejado pela instituição, mais uma vez indici_(J.Ildo sua circulação pelo que

imagina como o código escrito insfituciona!izado. Um exemplo semelhante é o

seguinte:

'~
chave para a paz esta cada dia menor para entrar na
enorme fechadura que separa os 'índios de esquinas' dos
'moderninhos de sanfona 2.CKXJ"' {Texto O1-055}.

em que o escrevente também parte da associação entre "tribos" e "índios",

questionando, por meio de uma ironia, a oposição entre "índios de esquinas" e

"moderninhos de sanfona 2.000". Neste caso. parece que o escrevente está a

caminho de desenvolver a sensibilidade para o fato de que as remissões a outros

enunciodores podem valorizar e sustentar seu texto. O exemplo é claramente o

de uma atribuição negativa, fato que parece ser um outro aspecto que está

sendo desenvolvido, desta feita quanto ao modo de fazer as remissões. O

movimento que o escrevente faz nessa direção retoma, portanto, a tentativa, já

mencionada no exemplo anterior, de alcançar o patamar que atribui a seu

interlocutor representado.

368
Essa tentativa de alçamento fica ainda mais clara quando o escrevente

uso aspas para simular uma outra voz:

"Em qualquer sistema social existe um 'grau de violência'. Esta


se mamfesta devido não somente por influência de alguns fatores, mas
de uma rede complexo de valores sociais adiquirídos" (Texto 04-197).

É possível que a tentativa tenha sido a de amenizar a afírmação

categórica que se anunciava. O escrevente emprega, então, as aspas para

marcar uma especificação de sentido por meio da simulação de uma outra voz,

modo de sustentar suo argumentação.

A terceira forma de emergência de outro enunciador marca-se pela

remissão explícita ou não, por meio de discurso direto, a um enunciador presente

na coletânea ou a outro qualquer:

"Ninguém é o 'Batmon' ou o 'Robocop' que lutam


contra tal caos, pelo conlródo, eles nos agridem com suo
violência hemOJrógico e nós, tolos sangrentos sugamos todo esse
néctar vermelho e fúnebre. 'Ó Deus porque nos abandonastes?'
Essa situação não é atual é pré-histónCo e pós~modema" (Texto
01-022).

O texto bíblico aparece numa ordem crescente de preferência em

relação à experimentação e o descarte que o escrevente faz dos justiceiros de

massa Batman e Robocop. Podemos notar, nesse exercício de experimentação,

posições sucessivas que o escrevente testa poro seu interlocutor. O texto bíblico,

que não é citado explicitamente, constitui o outro em quem o escrevente

sustenta toda sua argumentação, ou seja, é com a moral religiosa que o

escrevente identifica a expectativa da instituição onde busca uma vaga.

Portanto. embora não se possa dizer que a citação do texto bíblico seja produto

da leitura efetiva do esc:revente, com essa citação o escrevente desloca a

369
discussão do tema para o domínio do discurso religioso. cujo tipo de

reGulamentação parece ser tomado pelo escrevente como adequado à

linguagem exigida pelo vestibular, Vemos. nessa suposição de adequação, um

recurso argumentativo operando num terreno cujo princípio básico é a

regulamentação de comportamento, regulamentação que atinge, a um só

tempo, o tratamento moral da questão da violência e a própria linguagem. Eis,

portanto, um indício do campo de interlocução representado como próprio pelo

escrevente para as trocas lingüísticas a partir do código escrito institucionalizado.

Outro exemplo de discurso direto, desta feita com atribuição explícita, mas

imperfeita, é o seguinte:

"Corno diz Gilberto (escritor da Folha de São Paulo}, 'Quem não


investe na inteligêncla paga o preço do atraso" (Texto O1...050).

A referência, no caso, parece ter sido a Gilberto Dimenstein, então

jornalista da Folha de São Paulo. Podemos observar que a emergência desse

enunclador é também uma forma de a Içamento, voltada não para a moral

religiosa, mas para o qve o escrevente lmagína ser a voz de uma autoridade

intelectual, sobre cujo respaldo procura se alçar para onde supõe estar seu

interlocutor. Vale notar que, nesse vestibular, é freqüente o uso de fragmentos de

jornais e revistas de grande circulação para compor a coletânea de textos da

prova. Além disso, na própria proposto de redação os candidatos são orientados

da seguinte maneira quanto à composição da coletânea: "são textos como

aqueles o que você está exposto na sua vida diária de leitor de jOmais, revistas ou

livros, e que você deve saber ler e comentar". Fica patente, portanto, a tentativa

de a Içamento para o lugar do interlocutor, a partir do qual representa, no caso, a

adequação de seu texto ao código escrito institucionalizado.

370
A quarta forma de emergência de outro enunciador consiste na indecisão

quanto à identificação ou não da fala do locutor com a do discurso citado:

"O maior problema é dos pessoas que não têm uma vida
digna, quanto maiores as preocupações e problemas, como por
exemplo: 'o que dar de comer a sua famt7ia', maior o seu desânimo
com o vida e rebeldia com todO[, se tornando cada vez mais
agressivo" (Texto O1-021 ) .

O fragmento em destaque é uma estrutura intercalada que mistura

características de um discurso direto (notem-se os dois pontos e o uso das aspas),

de um discurso indireto (notem-se o emprego do determinante possessivo de

terceiro pessoa, o uso de dois pontos como introdutor não de uma fala, mas de

um exemplo que iria se seguir e, finalmente, o próprio contexto do exemplo em

que a seqüência aparece) e de um discurso indireto livre (efeito çosual, mas que

seria integralmente obtido se fosse omitido o determinante possessivo}. Podemos

dizer, com quase absoluta segurança, que o escrevente usa uma pontuação que

estava servindo para introduzir um exemplo (usa dois pontos} para, em seguida,

associá-la com um outro uso possíveL o do introdução do diálogo, ocasião em

que se resolve pelo uso também das aspas. Essa indecisão em relação à estrutura

do enunciado \incluindo a falta de pontuação da interrogação marcada por "o

que ... 'j revela que a alusão ao outro enuncia dor vem marcada também pela

suposição de que marcas prosódicas estejam plasmadas no registro gráfico, fato

que, como vimos. indicio a imagem que o escrevente faz da gênese da {sua)

escrita.

A quinta forma de emergência de outro enunciador consiste na

sustentação do dizer o partir do que se estabelece como a voz do senso comum.

371
"Como o povo diz.. 'O exemplo vem de cima'. Mos o que vêm
de cima sõc: policiais mofando a torto e a direito, são deputados
brigando... "(Texto 03-127).

Ocorrências como essa exemplificam o que Pécora (1989) diz a respeito

dos lugares-comuns. Segundo o autor, "seria ingenuidade atribuir a um

intertocutor particular a responsabilidade por esse tipo de imagem fixa que

redundo na atividade reprodutiva" {op. cit., p. 85). E continua: "a fonte dessa

anti-imagem, na ve1dade, não se localiza em qualquer um dos possíveis leitores a

quem essas ocorrências-clichê se destinam em uma situação isolada'' {idem, ib.}.

Portanto, não podemos dizer, nesse caso, que é o peso da instituição que está

contando para essa escolha. Parece, ao contrário, ser o peso das trocas

cotidianas que está determinando a reprodução de "uma linguagem

consagrada, codificada, imune à diversidade dos situações de uso" (idem, lb.}.

Poder-se-ia alegar que mesmo a escnfa cu/la freqüentemente se utiliza desse tipo

de remissC::o como um recurso argumentativo. No entanto, a seqüência do texto

não deixa dúvidas quanto ao fato de o escrevente estar, nesse momento,

efetivamente mergulhado na representação que faz da gênese da (sua) escrita,

momento em que as formas codificadas e consagradas do oral/falado estão

falando nessa escrita. São muito freqüentes essas ocorrências, mas é importante

observar também uma gradação quanto ao já estabelecido pelo senso comum.

Observemos os três exemplos abaixo:

"Agora o que gero a vjolência entre essas tribos? O que levo


um político a agredir sua colega de frabalho? Um metalúrgico a
destro/r seu local de serviço? A polícia a bater em estudantes de direito
do largo São Francisco porque realizavam a famosa 'Peroada'?" (Texto
03-172).

"O livro de 'Genesis ', em seu capítulo seis, conta-nos que o Senhor
todo-Poderoso prvmetera não mais destro/r o homem, porque 'a
imaginação' deste 'é má desde a sua meninice'. Siin o Deus

372
onisciente sabia que o maldade é infn'nseca à roça humano, sabia
que o homem já nasce com um germe de perversidade dentro de si.
'A Lei MosaiCa, sabidamente um código penal escrito por
Moisés sob inspiração divina, procurava coibir a violência com severas
penas,.." (Texto 03-138)

"É reconhecida o ocorrência de fatos desagradáveis, como o


morte de um rapaz durante um show da Bando Sepultura. Portanto
não podemos isentar esta de qualquer culpa, mos flá de se analisar
que ela pode' apenas ter estimulado o /Jberoção de desejos
reprimidos" (Texto 03-147).

No primeiro exemplo, a expressão em destaque recorre não propriamente

à sustentação do dizer a partir do que se estabelece como a voz do senso

comum, mas ao que é de domínio público ou, pelo menos, de domínio de um

certo público - aquele que acompanha as clássicas notícias ligadas a certos

eventos que já pertencem ao calendário rotineiro da grande imprensa. É já o

desdobramento do foi! diversque está presente nesse texto.

No segundo exemplo, a expressão em destaque recorre a um discurso

• supostamente dominado sobre a história do homem, vista sob um ângulo

religioso. O escrevente aposta, portanto, em trazer para a memória do leitor um

domínio de saber particular- embora mais ou ·menos informal -, a partir do qual

acredita estabelecer um contato de espídfo 15 1 com seu interlocutor.

No terceiro exemplo, a expressão em destaque, ao recorrer ao mesmo

princípio de sustentação do dizer, não busca esse apoio diretamente no senso

comum, nem no que provém dos desdobramentos do foit divers, tampouco no

domínio do religioso. A tentativa parece ser a de se alçar às formas típicas de

argumentação da comunidade científica. Corrobora a definição desse indício o

fato de o escrevente estar procurando dar o seu dizer um tom analítico {"não

1s1 A expressão é de Perelman (1977).

373
podemos isentar esta de qualquer culpo, mos há de se analisar que... " ),

provavelmente inspirado no que representa como o discurso da academia.

Eis, portanto, nos quatro exemplos comentados, a gradação quanto à

sustentação polífônica do dizer no senso comum: ora diretamente apoiada no

lugar-c?mum, ora apoiada no seu redlmensionamento como fait divers, ora

recorrendo ao domínio mais ou menos informal do religioso, ora, finalmente,

como tentativa de alçamento ao lugar em que imagina estar o conhecimento

valorizado por seu interlocutor: o do domínio científico. Nessas quatro

possibilidades, podemos notar uma gradação quanto às diferentes

representações dos escreventes sobre a escrita: mais próxima do que o

escrevente toma como a gênese da escrita no primeiro caso, parece aproximar-

Se ao imaginário sobre o código escrito institucionalizado nos três últimos.

' ..
Procuramos observar, quanto à primeira regularidade atinente às remissões

do escrevente, as formas mais comuns de emergência de outro enundodor.

Foram privilegiadas: a assimilação da voz da instituição; a remissão irônica, a

atribuição negativa ou a simulação de um outro enunciador; a remissão, por

meio de discurso direto, a autor citado na coletânea ou a outro qualquer; a

indecisão quanto à identificação ou não da fala do locutor com o do discurso

citado; e, finalmente, o sustentação do dizer a partir do que se estabelece como

a voz do senso comum.

Em todos esses tipo de remissão polifônica, regisfrarn-.se tipos de leitura. É

importante destacar que não se pretende aqui recair na critica fácil da fa!ta de

leitura do vestibulando ou na crítica da qualidade dessa leitura. Os exemplos

citados mostram que os escreventes variam muito as formas de remissão, fato

374
que evidencia o processo em que estão na sua relação dialógica com o já

falado/escrito. Podemos acrescentar que, num mesmo texto, formas mais

sofisticadas podem aparecer ao lado de outras menos sofisticadas. A clareza

quanto ao tipo de referência que o próprio escrevente está fazendo e quanto à

pertinência da relação que ele está propondo, bem col"tlo o grau desejável de

consciência do escrevente de que as zonas de contato escolhidas determinam,

ao mesmo tempo, o território de seu próprio dizer e o valor relativo a ele atribuído

por parte do interlocutor são fatores que não aparecem todos de uma só vez no

processo de escrita. Eles têm a ver com a discrepância entre dispor de um saber

por meio do que foi lido/ouvido e ainda não dispor de seu domínio ativo no

momento da textuolizoção. Nesse descompasso, fica evidenciada a flutuação

do escrevente quanto à imagem que faz da (sua) escrita, ora vinculando-? ao

que representa como o gênese da escrita, ora vinculando-a ao que toma como

o código escrito institucionalizado. Nesse movimento, evidencia-se o modo

heterogêneo de constituição da escrita.

Dando continuidade à captação do modo como o escrevente representa

seu texto quanto à dialogia com o já falado/escrito, passamos a localizar esse

tipo de representação do escrevente quando ele fomo como ponto de

referência a própria língua.

As referências à próprio língua

Reunimos como parte desta regu/addade lingüística os seguintes "pontos

de heterogeneidade mostrado'~ um "outro discurso'; uma "outra modalidade de

sentido': uma "outra palavra': uma "outra língua': propostos por Authier-Revuz

{1990, p. 30). Essa simplificação mantém, porém- a exemplo do que faz a própria

375
autora -, a preocupação em observar o modo como - nas palavras de Barthes

{s.d.)- "a li'ngua aflui no discurso" e "o discurso reflui na língua': uma vez que

ambos {língua e discurso) "persistem um sob o oufro"{op. cit., p. 30).

Apresentamos, abaixo, o quadro indicativo da freqüência dessa

regularidade relativa às referências à própria língua.

QUADRO 3: Porcentagem de ocorrência de aspectos particulares da


regularidade REMISSÃO À PRÓPRIA LÍNGUA em relação ao total
de ocorrências das outras regulandodes no conjunto dos textos

ASPECTOS PARTICULARES DAS %

Observemos o exemplo abaixo, em que o escrevente busca ganhar a

adesão de seu interlocutor pelo tipo de especialização do argumento:

''A atenção desviada para atingir melas di/as materiais inéditas_


provoca um vazio no espídto do modemo ser humano ... " {Texto 03-155)

A parte destacada revela que o escrevente está recorrendo a "outro

discurso" como traço evidente de uma argumentação que procura apresentar-

se como adequada a um certo tipo de interlocutor. No caso, a forma pela qual o

escrevente lê esse discurso é a da rejeição. Rejeitando, portanto, o discurso que

propõe a obtenção de metas ditas materiais inéditas, o escrevente esboça o

território de seu discurso, tomando-so como o espaço comum que divide com o

interlocutor, modo pe!o quo! acredita alçar-se ao que toma como código escrito

institucionalizado. Nos exemplos abaixo, o escrevente marco sua reservo em

relação ao uso de certas palavras:

376
"Grandes empresónOs são os alvos pretendas de gente (se
assim podemos chamar) que quer trocar vida por dinheiro. Os
sequestradores estão sempre bem equipados... "(Texto 00-014)

"Os sindicatos tem espodemosr; pois com o uso de violência, ou não,


lutam por uma nova ordem social e econômica, visando melhon'as
poro a população assalan'ada. Essa é uma violênda saudável se assim
é permíhâo chomá-/a"[Texto 04-185) .
..

Nos dois casos, os escreventes procuram ler o modo pelo qual as palavras

estão "ocupados", "atravessadas pelos discursos nos quaiS 1viveram] sua

existência socialmente sustentada"' {Authier-Revuz op. cit., p. 27). Permanece em

aberto, porém. a questão de sua adequação. restando ao interlocutor a

possibilidade de recusá-las. Esse mesmo tipo de referência às palavras pode,

porém, marcar uma confirmação de sentido:

"... com um sistema educacional coerente, os tribos utbanas


considerados muito agressivas à ordem e paz da socíedade,
conseguiiiam manter essa agressivJdade o niveis toleráveis. mos estas,
como o próprio nome diz, são excluldas da sociedade, são isoladas... "
(Texto 04-214).

Neste caso. o escrevente necessita da confirmação do sentido ("tribo

urbana"= "grupo isolado") como forma de opor o que sociedade faz (lugar da

confirmação daquele sentido) e o que ela deveria fazer em relação às tribos

urbanas (o sentido resultante da desconstrução que o escrevente acredita

compartilhar com seu interlocutor). Em todos esses casos. o mesmo tipo de

alçamento já comentado se repete.

Esse procedimento volta a acontecer no caso abaixo, em que a

indiciação dialógica por meío de outras palavras se dá pela retificação:

"Concluindo, se, for posslvel uma conscientização geral


através de campanhas, e maior segurança (digo policiamento
adequado sem pancadaria} poderemos viver sem medo de sair ós
ruas... "'(Texto 03-162).

377
A saliência dada à palavra "segurança" indica que o escrevente busca

fugir de um sentido concretamente vivido de segurança (com pancadaria) para

um sentido desejado [sem pancadaria). É na direção desta última leitura de

"segurança" que propõe a retificação, posição em que espera encontrar seu

interlocutor.

Tomando, aínda, como ponto de heterogenidade mostrada a referência a

outra palavra, pode-se detectar um último caso. Trata-se do reconhecimento da

polissem ia:

"Se nas sociedades tradicionais são o mtctação, os dtos de


passagem, os momentos em que o sujeito empídco se vê só, e por isso
pedgosomenle despído de regras, é a quase perfeita recíproca que se
dá nas sociedades modemas: 'movímentos' como o hippie, o rock a
ecologia (para ficarmos com os de maior alcance), convidam-nos a
um mergulho na consoladoro expenêncla de pertencer não a uma
tnbo {a palavra feria aqui conotações indesejóveisl mos a um grupo
onde o valor moral é depositado nas relações entre os seus membros"
(Texfo 01-054, sublinha no original}.

Nota-se que o escrevente, apresenta-ndo um domínio de linguagem

pouco comum nos textos pertencentes ao corpus estudado, recorre à "llngua

como lugar da poltSsemkJ" {Authier-Revuz, idem, p. 30). Esse reconhecimento lhe

serve para recusar a palavra "tribo" e propor uma leitura para a palavra "grupo".

Assim procedendo, contorna um dos efeitos de sentido com o qual a maioria dos

vestibulandos se debate a partir da poHssemia da palavra "tribo", a saber: o da já

comentada dicotomia entre primitivo e civilizado (note-se que o texto ora

analisado se refere a sociedades "tradicionais" e "modernas"}. Vale notar que o

fragmento como um todo é um exemplo particularmente interessante porque

sua representação do código escrito institucionalizado vem mais sob a forma da

satisfação das expectativas da instituição do que sob a forma do descompasso

378
entre o representação que o escrevente atribui à instituição e aquela que ele se

auto-atribui. O interesse desse fragmento está, portanto, no fato de que a

adequação à instituição é tão nítida que fica difícil não pensar numa auto-

projeção do escrevente para a posição do interlocutor representado em seu

texto. Basta obserVar a semelhança desse fragmento com textos provenientes

dos chamadas Ciências Sociais para que se detecte o grau de simetria proposto

por essa interlocução.

Não fossem os critérios que utílizo para a correção dos textos, o agente

autorizado {a banca de correção dos textos dos vestibulandos) seria certamente

levado a mobiiizar a sua representação sobre os textos dessas disciplinas no

momento de avaliá-lo. No entanto. para além da questão da avaliação, é

preciso estar atento para o fato de que essa representação ligada a uma área

específica de conhecimento é apenas uma dentre as várias possibilidades de se

forjarem representações sobre o código escrito institucionalizado.

Já nos exemplos seguintes, é uma outra llngua o ponto de

heterogeneidade destacado:

"Como é possível ter ínerente a capacídade de agressão verbal ou


viSual, tão propogandeada pelos 'megasfars: se, ao nascer, uma
criança mal sobe distínguír palavras e imagens?" (Texto O1..0 12}.

"No entanto a violência mostro-se como vm meio de manutenção do


'status quo~ o estado das coisas" {Texto 03-125).

Na composição a partir do prefixo grego e do substantivo inglês ou na

expressão latina, observa-se a indiciação dialógica do escrevente em relação o

outras línguas. A ilha gráficaJ52 que ele constrói com as aspas marca o

estranhamente, que. do ponto de vista argumentativo, pode significar que o

152 A expressão é de Vochek [!989 (1979). p. 46) ao referir-·se ao uso do itólico no texto
impresso. Conferlr também, aqui mesmo, p. 231.

379
escrevente reconhece outras línguas- fator considerado de prestígio por falantes

que não questionam a heterogeneidade de seu monolingüismo. Constatamos,

portanto, também nesse caso. uma tentativa de a!çamento do escrevente ao

que imagina como o código escrito institucionalizado.

• • •
Não é preciso lembrar que esses tipos de remissão também registram tipos

de leitura. Além disso, remeter a outro discurso, a outra modalidade de sentido, a

outra palavra ou a outra língua pode ter um papel argumentativo diferente a

cada ocorrência particular. No entanto, todas essas remissões marcam, no

processo de sua relação dia!ógica com o já falado/escrito, uma região para a

constituição do sujeito escrevente, região que evidencia a sUa relação com a

Hnguagem, de modo geral, com a escrita, de modo particular e com o

interlocutor que representa em seu texto.

A próxima regu/an'dode lingüislica a :ser tratada é a que denuncia a

dialogia com o já falado/escrito pelas referências a um registro discursivo.

As referências a um registro discursivo

Ainda a título de ilustração, uma vez que não é a relevância estatística

que orienta a definição das regu/oddades lingüfsticas. apresentamos o quadro

indicativo da freqüência dessa regu!addadeatinente ao registro discursivo.

QUADRO 4: Porcentagem de ocorrência de aspectos particulares da


regularidade OUTRO REGISTRO DISCURSIVO em relação ao total
de ocorrências das outras reguloddades no conjunto dos textos
ASPECTOS PARTICULARES A OUTRO REGISTRO DISCURSIVO %

* Conferir sobre a relevância das marcos não ser dada por sua freqüência. aqui mesmo,
capítulo 3, quadro 2, p. 198.

380
A ocorrência mais comum deste ponto de heterogeneidade mostrada,

como mostra o quadro 4, é a da recusa à informalidade. Em geral, os

escreventes se utilizam das aspas para marcar essa recusa:

"Analisando o assunto, vemos que a víolêncía se ínícía com os policiais


que ao suspeitarem de uma "determinada pesSoa,.~ vão logo dando
'porrada', sem saberem o que realmente aconteceu (se é que
aconteceu}. "{Tex!o 03·162).

Como já pudemos constatar, a coletânea de textos proposta nesse

vestibular é, a esse respeito, bastante acessível. O registro discursivo caracteriza-se

pela informalidade, cabendo expressões do tipo: "acertar as pontas", "palavrões

cabeludos", "descem o verbo", "um lance de rebeldia". Dessas expressões,

apenas ''descem o verbo" aparece entre aspas.

Mesmo assim, a sensibilidade ao requisito da escrita culta formal leva,

com freqüência, o escrevente a marcar como exterior a seu dizer a informalidade

que a própria coletânea apresenta. É o coso do exemplo acima. Cria-se, uma

vez mais, um interessante jogo entre as expectativas da banca de confecção das

provas jque busca, na informalidade da coletânea, um diálogo com o

escrevente) e do vestibulando {que busca, no leitura que faz da informalidade -

recusando-a-, um dialógo com a instituição proponente, via o que imagina ser o

código escrito institucíonalizodo). Mas a sensibf!ldade ao registro adotado pode

acontecer também na direção oposta:

"Atualmente costuma~se falar em tdbos urbanas por realmente


lembrarem os troços tdbois, como um líder- a 'xenofobia', o
preconceito, aversão as idéias que não os próprios, e o mais
importante, a crença religioso, seja num grupo de rock, no neonazismo
ou mesmo nenhuma" (Texto 03-125).

381
Notamos que o escrevente aspeia a palavra "xenofobia" provavelmente

por considerá-la estranha ao registro àdotado na seqüência. A fronteira que o

escrevente delimita, neste caso, tem a ver com a sua sensibilidade em relação

ao registro que atribui ao interlocutor. Esse registro assinalado como estranho a

seu discurso indicio, no entanto, a tentativa do escrevente de mostrar sua

capacidade de lidar com contextos de fala menos informais, forma de


1;.

representar sua capacidade de leitura e seu domínio ativo do que toma como o

código escrito institucionalizado.

' ' '


A remissão aos diferentes registros discursivos revela, entre outras coisas, a

representação que o escrevente faz acerca da situação de discurso construída

no seu processo de escrita. Mais uma vez, estamos diante de uma forma de

leitura. Distanciar-se do registro formal ou do informal revela, portanto, passagens

do discurso em que o relação com o assunto e com o interlocutor terminam por

levar a diferentes configurações da cena representada, a partir da dialogia com

o já falado/escrito.

Na seqüência, abordaremos as referências (implícitas ou não} ao leitor,

tomado como um co-enunciador.

As referências ao leitor

Antes de mais nada, é preciso esclarecer que a separação entre as

referêncías a outro enunciador e as referências ao leitor foi feita fendo em vista a

situação específica em que se dá a prática textual do vestibulando.

Consideramos como referências ao leitor aquelas relacionadas mais

diretamente com a situação de avaliação que o evento vestibular constitui.

Nesse sentido, podemos dizer que, quanto ao ponto de heferogenetdade

382
mostrado em que o outro é o leitor, destacam-se a co!matagem do espaço

argumentativo {contra-argumentativo) do outro e o entrecruzamento da leitura

da coletânea e da situação imediata de enunciação pela pressuposição de

conhecimento sobre os textos da coletânea {ou outros) por parte do leitor. O

quadro abaixo dá uma idéia da freqüência desses aspectoS-da remissão ao leitor:

QUADRO 5: Porcentagem de ocorrência de aspectos particulares da


regulondode lingüística REMISSÕES AO LEITOR em relação ao
total de ocorrências das outras regularidades no conjunto dos
textos

ASPECTOS DAS LEITOR

* Conferir sobre a relevância dos marcos não ser dada por suo freqüência, aqui mesmo.
capítulo 3, quadro 2. p. 198.

Exemplificamos, a seguir. o aspecto da colmatagem do espaço

argumentativo do outro:

"A violência, ao meu ver, vem da má administração que


levam a sérias desigualdades que por sua vez geram insatisfação e
violência.
"Mas olguem poderia argumentar que em certos lugares onde
não há tanta desigualdade, também existe violência mos então eu
diria que existe a violência ideológica que ao inibir e reprimir livros
ideológicos. geram barris de polvoro... "{Texto 03- '127).

Esse recurso, típico do forte caráter orgumentafivo dos textos dissertativos,

evidencia que o escrevente já mostra domínio sobre esse aspecto desse tipo de

texto. A indusão de um possível contra-argumento do lelfor mostra ainda a

constituição de fronteiras para o próprio desenvolvimento temático de modo a

delinear uma abordagem pessoal. Essa clara construção dialógica revela, por

seu pertencimento a um tipo de texto particular, ·a preocupação do escrevente

383
em mostrar seu conhecimento sobre o modo de construção desse tipo de texto.

Todo o requinte desta representação do interlocutor está no fato de que a

co!mafagem efetuada não atua como uma referência direta ao leitor concreto

que vai corrigir o texto. Mais sofisticado, esse recurso argumentativo faz parte,

como ficou dito, do tipo de texto, cuja estruturação se encarrega de prever

lugares para o leitor, que, por sua vez, pode aceitar instanciá-los ou não.

Desnecessário dizer que o escrevente - ao propor uma leitura e antecipar uma

outra que atribui ao interlocutor - toma por base a representação que faz do

código escrito institucionalizado.

Os exemplos abaixo ilustram um procedimento semelhante do escrevente:

"Em um show de rock, pdncipa/mente heavy-mefal é mais


freqüente uma manifestação violenta, não porque a música incite à
violência em st: mos porque esta ajUda a liberar aquela energia
negativa acumulada e talvez até pelo som ser mais pesado provocada
atitudes mais agressivas nos ouvintes. É certo que deve ser levado em
consideração o posicionamento dos 'ídolos de rock', pois um metaleiro
que presencia um 'Axl Rose da vida' quebrando uma garrafa na
cabeça da vizinha ou atirando objetos em seu público projetará em si
essa postwa f# provavelmente no show vai querer mostrar ao seu ídolo
que assimilou a sua 'ideologia'"{Texto 03-171 ).

"Por detrás da violência


"É verdade que a violência existe em todos, mos quando se
tomo cotidiana e presente a cada momento é porque algo está por
detrás ... " (Texto 03-137).

Os dois fragmentos grifados são, do ponto de vista de seu caráter

lndiciotivo de interação, uma concessão a um ponto de vista. No primeiro coso, o

escrevente, por meio da colmatagem do espaço argumentativo do leitor,

efetivamente concede a anuência ao ponto de vista atribuído a este último. No

segundo caso, a co!motagem tem como efeito uma concessão que, em

seguida, é recusada. Importa notar, porém, que em ambos os exemplos pelo

384
menos duas leituras, sob a forma de lugares previstos para o leitor, se sobrepõem

para marcar o caráter de réplica que está presente no procedimento de

colmafagem.

É digno de nota o caso de pressuposição de conhecimento da coletânea

ou de outros tex~os, por parte do leitor. Trata-se de uma relação com a coletânea

em que se entrecruzam a leitura dos textos e a leitura da situação imediata de

enunciação do escrevente. Como veremos, este é um caso de circulação

dia lógica do escrevente pela imagem que ele faz da gênese da {sua) escrita:

"Atualmente,. época viOlenta em que pensamos querer a Paz,


é duro oceitamors o fato de que talvez não existo aquele 'bom
selvagem' do Rousseou {... }
"Apenas contradições, isto aparenta ser o violência. Talvez
estejamos apenas 'som'ndo e seguindo à foo ', contra o letra dos Tífãs"
(Texto 00-001 ).

Nesses casos, a presença do co-enunciador não só pressupõe o

conhecimento de textos não mencionados na coletânea (caso de Rousseau),

como também a participação do interlocutor no contexto imediato de

comunicação (mais preCisamente, pressupõe seu conhecimento sobre a

coletânea dada na prova: "a letra dos Titãs"). O escrevente mostra-se, portanto,

ao recorrer à aceitabt7tdade1SJ do leitor pelo reconhecimento de elementos da

situação concreta, num momento de representação da gênese da {suo) escrita.

A propósito, Vai {1991) afirma que, em certas situações, "o contexto e a imagem

do interlocutor podem auton'zar lacunas no configuração textual não possíveis

noutros circunstâncias" {op. cit., p. 29). No caso analisado, temos um exemplo de

153 O termo é de Beougrande e Dressler {apud VaL 1991) Baseada nesses autores. Vai
trabalho com dois tipos de fatores responsóvels pela textualtdade: os que tem a ver com o
motedal conceitual e lingüíStico do texto (coesão e coerência) e os. que sõo propriamente
fatores pragmáticos (intencionolidade. aceitabllidode, sítuaciona!idade, informatividade e
intedextualidade) envolvidos no processo sociocomunicotivo" (op. cit., p. 5 e segs.).

385
circunstância em que as lacunas causam problemas locais de textualidade

ligados ao fator pragmático da aceitabilidade. O escrevente constrói um texto

dependente da elaboração conjunta com o !eítor, a exemplo do que fazemos

numa conversação. Eis, portanto, um exemplo do eixo da dialogia com o

falado/escrito nitidamente ligado à circulação do escrevente pela imagem que

ele faz da gênese da (sua) escrita.

' ' '


Quando o ponto de heterogeneidade mostrada é o leitor, os textos dos

vestibulandos registram, como vimos, dois modos mais freqüentes de integração

do leitor em seus textos.

O primeiro refere-se à colmatagem do espaço argumentativo, ligado a

uma característica do tipo de texto desenvolvido -o dissertativo -que consiste na

sobreposição de pelo menos duas possibilidades de leitura (ou seja, de lugares

previstos para o leitor já na estruturação do texto). Neste caso, não se trata

apenas de uma circulação pelo que o escrevente representa como o código

escrito institucionalizado, uma vez que esse tipo de recurso argumentativo pode

esÍ~r presente também em textos falados. Mais propriamente, podemos dizer que

o escrevente está lidando com o aspecto "genén'cd' {ligado a essa esfera

específica de atividade humana) do texto, evidenciando como o escrevente

representa o tipo de texto requisitado. Esse fato não significa, porém, que o

vestibulando, ao empregar esse tipo de co!matagem, não esteja indiciando um

momento de seu processo de escrita. Essa indiciação está ocorrendo justamente

por meio do grau de adequação que o escrevente consegue em relação ao

tipo de texto.

386
O segundo modo ma1s freqüente de integração do leitor como

participante dos textos analisados é a pressuposição de seu conhecimento sobre

textos dados na coletânea presente na proposta de redação ou sobre outros

textos trazidos por conta própria pelo escrevente. Neste caso, localizamos a

articulação entre a imagem que o escrevente faz da gênese da (sua) escrita e a

dialogia que propõe com o já falado/escrito, articulação que permite observar o

entrecruzamento entre a leitura da situação imediata de enunciação do

escrevente e a leitura propriamente dita dos textos da coletânea.

Trotaremos, a seguir, das remissões à coletânea de textos. Procuraremos

contemplar, portanto, separadamente, as referências a esse elemento das

circunstâncias imediatas de comunicação do escrevente, dado que esta não é

uma característica da escrita em geraL mos uma exigência do tipo de escrita sob

análise.

As citações da coletânea apresentada paro a produção do texto

Pretendemos destacar, neste ponto, os tipos de leitura da coletânea

levados a efeito pelo escrevente. Serão analisados, para tanto, os seguintes

modos de referência aos textos da coletânea: {a) no título; (b) colagem- com ou

sem aspas- de fragmentos de textos; (c) remissão à coletânea por tentativa de

paráfrase com adaptação ao conhecimento do escrevente ou por discurso

direto; e (d) remissão crítica- explicitada ou não como tal- ao conteúdo de um

dos fragmentos da coletânea. O quadro abaixo não sô ilustra, como também

revela aspectos importantes da utilização da coletânea relativos à freqüência

com que aparecem alguns tipos de remissão:

387
QUADRO 6: Porcentagem de ocorrência de aspectos particulares da
regularidade lingüística REMISSÕES À COLETÂNEA em relação ae>
total de ocorrências das outras regulandodes no conjunto dos
textos

ASPECTOS PARTICULARES DAS %

{a) por 1entatlva de paráfrase com adaptação ao conhecimento do escrevente

* Conferir sobre a relevância das marcas não ser dada por sua freqüência, aqui mesmo,
capítulo 3, quadro 2, p. 198.

· É relativamente comum o escrevente tomar como filulo de seu texto o

próprio tema proposto: "Violência nas tnbos urbanas modernos". Quando esse

empréstimo não acontece, a elaboração de títulos pode ser derivada do tema

ou da coletânea:

"Violência~ conseqüência, cloro!" {Texto 03-172)

" Vício ínconcíenfe" (Texto 03-173)

"Violência: natureza humana?" (Texto 04-189)

Em "Violência - conseqüência, claro!", o escrevente toma emprestada

parte do tema e marca, desde o início, sua posição, assumida esta última a partir

da coletânea, mais precisamente, a partir de um fragmento da entrevista com

Max Cava!ero, líder do grupo de rock Sepultura, em que o músico afirma que o

verdadeiro culpado pela violência é "o estado que o país se


- encontra".
..
É interessante observar. neste ponto, como essas soliêncíos, marcados

desta feito no leitura da coletânea, podem revelar com mais clareza o processo

de leitura do escrevente. tendo em vista: seu conhecimento sobre o assunto, suas

388
leituras prévias e as condições históricas particulares determinantes dos

possibilidades também particulares de associação.

O título "VICio inconciente" aparece seguido de uma epígrafe composta

a partir do texto de René Girard: "'...parece ser imposslve/ não ter que usar a

vio/éncio quando se quer 1/quidó-Ja: .. ": O restante.do texto também mostro que

o título é uma inferência o partir desse fragmento escolhido paro epígrafe. A

idéia de "vício", no entanto, não capta, do texto de Girard, o caráter constitutivo

da violência no ser humano, foto que evidencia, pela presença da palavra

"vício", que a questão das "drogas", não tematizado por Girard, foi mobilizada

(talvez por influência de outros fragmentos da coletânea) e parece ter saliência

no processo de leitura desse vestíbulando.

O mesmo fragmento de autoria de Girard- um dos textos mais salientes na

leitura dos vestibulandos - tem, no titulo "Violência: natureza humano?" uma

outra referência. É, pois, um título que, escolhido a partir de um texto da

coletânea, tem o caráter de rép!lco a esse texto.

Esses títulos dôo uma idéia da leitura e d? modo pelo qual o escrevente se

posiciono em relação ao textos lidos no momento da prova. As réplicas a temas

(o da situação social como conseqüência da violência, por exemplo), a questões

polêmicas (como a das drogas) ou a textos {como o questionamento da

violência como um traço da natureza humana) são também réplicas ao

interlocutor representado. O interessante, porém, é que dificilmente o escrevente

consegue manter seu texto numa 11nha argumentativa muito clara. Isto é, a

imagem que foz de seu interlocutor por vezes flutua de acordo com o que lhe

parece mais saliente dos textos da coletânea, ocasião em que, por falta de uma

leitura que determine uma hierarquização mais clara de pontos de vista, fica

389
evidenciado um aspecto dialógico importante do modo heterogêneo de

constituição da escrita.

Dois fragmentos da coletânea são dignos de nota no que se refere ao

aproveitamento feito pelos vestibulandos por meio de colagem. Trata-se dos

textos de Girard e da entrevista com Cavalera, ambos já referidos acima.

Observemos os exemplos de colagem:

"E como construir um futuro melhor, se os jovens atuais são


movidos pela violência e não sobem encontrar outro forma de
enfrentar os problemas? Se a violência é ínlennínável viveremos
sempre assustados num mundo violento onde todos utilizam o violência
{pdncípo!menfe os pertencentes ós sociedades 'civtlizadas') como
uma expressão de medo de tentar mudar a situação clitíca em que o
mundo vive"(Texto 04-184).

"O culpado dessa violência não é o rock e sim a situação em que o


país se encontra" (Texto OHl60).

Nos dois casos, a referência é por colagem sem nenhum recurso gráfico

ou lexica! para marcar a alteridade. No primeiro caso, ainda que num

movimento orgumentativo hesitante, esse empréstimo é quase objeto de uma

rejeição explícita. Embora possamos ler nesse trecho um confronto de

perspectivas, não fica claro, porém, a quem se deve atribuir a perspectiva

criticada, uma vez que há, nesse coso, a pressuposição de conhecimento da

coletânea por parte do leitor. No segundo caso, a natureza do empréstimo- na

origem, um lugar-comum- atua para que ele venha para o texto como simples

repetição de um bordão popularmente consagrado. O processo de leitura em

que se situam esses dois escreventes parece, pois, pouco aberto à explicitação

do confronto de perspectivas, uma vez que seus textos simplesmente se

apropriam de uma voz sem distanciamento enunciativo marcado. Cria-se, então,

390
um curioso efetfo de monofonia15 4 pelo empréstimo da palavra de outrem, fato

que tem paralelo com o que de Lemos mostra, também em textos de

vestibulandos, a respeito do monólogo a partir da palavra do Outro 155. Parece,

pois, que estar dito por escrito {e na coletânea) é o critério, que, para o

escrevente. justificaria a utilização (e a adequação) ao código escrito

institucionalizado.

Outros casos de colagem, extremamente freqüentes, têm o ver com o

léxico. A exemplo de todas as outras marcas já discutidas, assinalamos um a um,

nos textos analisados, os itens lexicais que os escreventes tomaram emprestados

da coletânea. O resultado obtido a partir dessa assinalação foi a constatação de

que a maior parte das referências à coletânea se dá no sentido de atender a

duas exigências da prova: a da obediência ao tema e a do aproveitamento dos

textos da coletânea.

A reprodução fiel de itens !exicais da coletânea parece buscar, portanto, a

garantia do atendimento, ao mesmo tempo, desses dois requisitos. No que se

refere ao tema, o encadeamento que o escrevente estabelece a partir do léxico

tende a garantir um desenvolvimento com menos riscos quanto 6 adequação

temática. Por seu turno, o aproveitamento da coletânea- nesses casos, não indo

muito além da índiciação de uma leitura - pode ficar garantido, do ponto de

visto do escrevente, com menor esforço, se, ao lado da colagem lexical, o

escrevente buscar uma paráfrase ainda que um tanto distante de um dos

fragmentos da coletânea.

Essas observações, no entanto, não visam aqui a uma avaliação negativa

do aproveitamento da coletànea feito pelos vestibulandos. Embora esse

154 Conferir Barros (1994) e, aqui mesmo {p. 87. Nota 49).
155 Conferir de lemos ( 1988) e, aqui mesmo, p. 281.

391
aproveitamento nem sempre se dê a contento, mais importante do que esse fato

é captar o processo de leitura que o escrevente registra ao fazer esse tipo de

colagem !exical a partir da coletânea. Se nas citações que não apresentam

recurso gráfico nem !exica! para explicitar a alteridade o distanciamento

enunciativo é mínimo: nos casos de colagem de itens lexicais, esse

distanciamento tende a zero. Observemos, abaixo, os itens em destaque:

''Ttibos urbanas: rock e violência


'~juventude de hoje vive um momento InSte, o era dos fribos.
Jovens que se organizam em grupos e que adoram escutar rock
pesado, consumir drogas e praticar todo e qualquer ato contra as
normas sociais. A juventude do 'paz e amor' tornou-se o juventude da
'violência'. (... )
'í:\s tnbos que adoram esse som, extravasam toda a sua
rebeldia nos shom onde sempre ocorrem mortes devido à brígos entre
tribos" (Texto 03-141).

Esse fato revela o relação que o escrevente mantém com o eixo da

dialogia com o já falado/escrito, mostrando que, na tarefa escolar da redação, o

escrevente tende a m~no!ogi~ar as vozes que constituem seu discurso. Estar díto

por escrito {e na coletânea) parece ser novamente o critério, que, para o

escrevente, justifica as colagens feitas. Nesse caso, pode estar contando um

curioso encontro no que se fefere à imagem que o escrevente faz do já falado e

do já escrito. Ao mesmo tempo que toma o já escrito (na coletânea} como

adequado à representação que faz do código escrito institucionalizado, pode

estar fazendo suas escolhas a partir do que já viu utilizado (e provavelmente já

utilizou) no âmbito do fçllodo, ocasfão em que tende a se aproximar à imagem

que faz da gênese da {sua} escrita. Justificar no testemunho de uma escrita (a de

um Outro presente na coletânea) o que, de fato, faz na fala, eis uma forma de

emergência do modo heterogêneo de constituição da escrita.

392
Uma outra utilização da coletânea se dá por tentativa de paráfrase,

freqüentemente adaptada ao conhecimento do escrevente. ou por discurso

direto. Observemos os exemplos:

"A sociedade íulga e pune as conseqüências do ato violento


através de violência~ como meio de amenizá-la enquanto que se
tentássemos julgar as causas deste ato, estariomos dando o pdmeiro
passo poro uma resolução real do problema... " {Texto 00-012).

"A violência não é encontrada só nos jovens ela está em todas


as pessoas. O governo, !entanto acabar com o violência, acaba
gerando mais ainda bosta anolizor a atuação dos polliciois em um
jogo, em uma greve ou em qualquer outro tipo de manifestação ... ''
(Texto04-195).

':4 distrvição ideológica e humana significa uma ameaça ao


nosso futuro e a nosso própdo vida, por apresentar um presente
tenebroso e sem perspectivas de melhoras.: não havendo sociedades
civ1'lizadas. ·
'"A violência é de todos e está em todos', conforme disse
René Girard Uma violência onde sua causa muitas vezes é
desconhecido, sendo utilizada em qualquer situação e por qualquer
pessoa
':.4 violência não como agressão física, mos também como
uma forma grotesco de se refen"r aos outros, perdendo sua di"gnidode,
compostura e utiliZando a palavra como um i"nstrumento de se chegar
a víolêncía corporal" (Texto 04-184).

Os dois primeiros exemplos voltam-se para a reprodução de um

enunciado que, nos textos analisados, se tornou quase um slogan: "violência gera

violência". A remissão por paráfrase tentada nesses exemplos vem adaptada ao

conhecimento do escrevente, simplificando ou, pelo menos, desviando a

caracterização da violência como um problema do ser humano em geral para

sua caracterização como um problema conjuntural de sociedades particulares {a

sociedade brasileira, no caso). Privilegiar a leitura da crítica social parece, no

caso, uma tentativa de corresponder ao que imagina como expectativa da

393
instituição. Desse modo, podemos dizer que o próprio tema da crítica social

parece estar se impondo ao escrevente como necessário à adequação ao que

imagina como código escrito institucionalizado.

No terceiro exemplo, o mesmo texto da coletânea volta a ser citado, mas

desta feita em discurso direto, marcado por aspas. Após a citação, temos uma

tentativa do escrevente de dar sentido à seqüência do texto de Girard: "Mesmo

que o sistema judiCJ6do contemporâneo acabe por raciona!/zar toda a sede de

vingança qve escon-e pelos poros do sistema socioí parece ser impossível não ter

que usar a violêncío quando se quer liqüidó-la e é exatamente por isso que ela é

interminável': Como vemos, o recorte feito pelo escrevente parece ter sido o que

ele melhor compreendeu do texto lido. Feita essa citação em discurso direto,

sente provavelmente como cumprido a tarefa de utilizar esse fragmento da

coletânea, liberando a formulação da seqüência de seu texto a partir de

assocíações mais pessoais em relação ao fragmento utilizado. Cria-se então uma

discrepância entre essas vozes, fato que permite flagrar o modo heterogêneo de

constituição da escrita.

Um último tipo de leitura da coletânea é aquele em que o escrevente

procura dor um tom critico em relação à retomada que faz:

"O própdo falo de se viver em sociedade gera aln'tos que


muítos vezes acabam em violência. Não que a violência é de todos e
está em todos como condui René Girardí mas que ela simplesmente é
o consequência mais radical da vida em relação o comunidade."
(Texto 03~ 172).

"Durkheim, o pai da sociologia funciono/isto, foi talvez o


pnfneiro a demonstrar - sem o auXJ7io de pressupostos psicológicos
discutíveis ou qualquer metafísica teologizante - o caráter normal do
violência nas sociedades humano. "{Texto 01-054, su b!inho no origino!).

394
Nos dois casos, uma vez mais, o texto objeto de citação e, no caso, de

crítica, é o de Girard. No primeiro exemplo, o escrevente registra sua discordância

a partir do que pode articular de seu conhecimento sobre o assunto, marcando a

constituição heterogênea de suo escrita pelo desnivelamento das vozes. No

segundo exemplo (texto já comentado anteriormente). o conhecimento ~obre o

assunto vem sob a forma de um discurso crítico em que as categorias utilizadas

são, também elas, remissões ao já escrito/lído, marcando a constituição

heterogênea de sua escrita pe!a recorrência a um "fora" de seu discurso, mais

precisamente, a fontes de procedência escrito utilizados como argumento de

autoridade.

• • •
Destacamos, neste item, os tipos de utilização da coletânea levados a

efeito pelo escrevente. Vale lembrar que, quando o escrevente toma a

coletânea como ponto de heterogeneidade mostrado, ele cumpre, em primeiro

lugar, uma exigência do próprio vestibular. Temos, por essa razão, um momento

privilegiado para a avaliação da leitura do vestibulando.

Um dos pontos salientes dessa leitura é, justamente, o da escolha dos

textos da coletânea. A grande maioria dos textos analisados mostra que os

escreventes detiveram-se no primeiro texto da coletânea {o de Girard). Merecem

destaque também a saliência que receberam o texto de número cinco

(entrevista com o músico Max Cavalera) e o de número seis {texto de Tito

Rosemberg). Os demais foram· mencionados mais pela via da colagem, uma vez

que estavam mais próximos do vocabulário do vestibulando: o texto de número

dois, que era uma letra de música de Arnaldo Antunes; o de número três, que era

uma nota da edição especial da revista Top Metal Bond sobre o grupo Guns

395
N'Roses; e o de número quatro, que era a tradução de uma letra de música do

mesmo grupo.

Como pudemos deriionsfrar, essa leitura vem mais freqüenfeménte sob a

forma de colagem, mas pode também aparecer em adaptações já no título da

redação, bem como em . tentativas mais sofisticadas como a da paráfrase

{ernbora freqüentemente venha sob o efeito de simp!ifieaçõesj e a da rer11issao

crítico.

Ligado ao aspecto da !eitura, pudemos ainda observar que,

freqüentemente, há um descompasso nas zonas de contato que o escrevente

e-ria entre os empréstimos feitos à coletânea e o que represento como seu. Nesse

descompasso, pudemos detectar várias formas de emergência do modo

he-terogêneo de const!tviçõo Oo escrito,

tv1esmo nos casos em que esse descompasso não se defxa marcar, a

heterogeneidade vem registrada ora pela-s fontes orais (o já falado}, ora pelas

fontes escritas (o já escrito} trazidas e pe!o tipo de discurso (em geraL o científico)

projeto dos no texto,

Como último tópíco a ser abordado, serão tratadas, na seqüência, as

remissões internas ao próprio texto do escrevente.

As remissões ao próprio texto

Essa remissão ocorre quando o escrevente explora o tipo de edição

própria da escrita, em que planejamento e elaboração podem ser momentos

bem definidos e isolados. Por serem próprios do caráter gráfico da escrita, os

casos que comentaremos a seguir já foram discutidos quanto a sua ligação com

o imagem que o escrevente foz sobre o código institudonoiizado.

396
Em termos da freqüência com que ocorrem essas remissões, retomamos,

no quadro abaixo. o informação já presente no quadro 1 {cf. p. 365}:

QUADRO 7: Porcentagem de ocorrência de aspectos particulares do


regularidade REMISSÕES AO PRÓPRIO TEXTO em relação ao total
de ocorrências das ovtros regu!andades no conjunto dos textos

REGULARIDADE

Cabe ainda destacar que essas remissões ao próprio texto ficam

marcadas pe!o que Goody chama o aspecto da b1dimensiona!idade do registro

gráfico ou, ainda, pelas referências à situação específica de sua prática textuaL

Eis alguns. exemplos:

·~ longo prazo o expectativa parece o mesmo_ como foi dito


no con"JfJÇO, o homem cafíega com sigo a violência, ... "{Texto 03~ 125}.

"Um dos falos de maior destaque, baseado no que foi


mencionado acima, é a adoção da violência como Ideal de vida".
ITexto 03-150).

"Se, nas fnbos urbanas modernos, todos os grupos sociais


fivessem o bom semso de acampanhar as mudanças do mundo
negando a ordem social vigente de formo consciente, como o gn.;po
demonstrado no letra do música, e não de formo eminentemente
instintiva como o grupo de jovens comentado mais atrás, o
descompasso do ritmo do homem-mundo atuo/ com o ritmo do
homem-essência seria menos intenso, ... " (Texto 04-421 ).

''Eu estou aqui tentando fazer uma boa provo depois de


m?sr;Js de ?sfudo, mos ?stov çom medo 0? gv? olgv?m rovóe o mev
cetro que está sozü;ho lá fora" (Texto 03~127).

No primeiro exemplo, o escrevente explora o aspecto da verticalidade do

espaço gráfico po;o referir-se a uma parte j"o começo"} da estruturação do

397
texto. No segundo exemplo, refere-se a essa verlica!idade ("acima"} enquanto

parte, e!a própria, da natureza (escrita) de seu texto. Fato semelhante ocorre no

terceiro exemplo, em que o escrevente explora, porém, o aspecto da

horizontalidade do espaço gráfico ("atrás") para referir-se a ele enquanto parte

da natureza de texto escrito de sua prático lingüística. No quarto e último

exemplo, na referência feita à "prova". o escrevente qualifica sua prática textual

pelo próprio evento que a circunda, fato que evidencia o modo pelo qual ele se

posiciono em seu processo de textua!ização.

Hó, oinda, no corpus, pe!o menos um texto com a presença de nota de

rodopé1.% , presença que mestra também uma formo de dí61ogo com o que o

escrevente vinha dizendo.

Reste acrescentar que todos os exemplos acima são modos da diologia

do escrevente em relação ao já falado/escrito. A imediatez que estamos

buscando dar a essa remissão dialógica - ao próprio texto - não exclui.

evidentemente, que ta! exploração do espaço gráfico, que recai no aspecto

rnoterio! do te.x:to, indiqve tombém o diológo com modelos: qve tomo como

próprios do código escrito institucionalizado.

• • •

Considerações finais

Neste capítulo, procuramos mostrar o funcionamento do terceiro dos três

eixos pe!os quais a escrita do vestibulando pode ser observada do ponto de vlsta

da relação que o escrevente mantém com o iinguagem.

Consíderado seu duplo papel na composição com os dois outros eixos

propostos, o eixo da dia!ogia com o já falado/escrito caracteriza-se, ao mesmo

156 Conferir comentário ~Ob!e es$e texto, aqui mesmo (p. 306-7: p. 378-9 e p. 394-5).

398
tempo, por guardar a dimensão dia!ógica que permite o movimento entre os três

eixos - marcando fronteiras entre eles - e por ser ele mesmo um pólo de

circulação.

Tomando-o como um dos pólos de circulação dialógica do escrevente,

podem<3s ilustrar comparativamente (em termos percentuais), o resultado da·

circulação dos escreventes pelos três eixos analisados. Eis, portanto, o quadro do

freqüência de circulação em relação a cada um dos três eixos, considerado o

conjunto dos textos:

QUADRO 8: Porcentagem de ocorrência do conjunto das regulandodes


lingüísticas próprias a cada um dos eixos de circulação imaginária
analisados no conjunto dos textos

EIXOS DE CIRCULAÇÃO IMAGINÁRIA %

REPRESENTA ÃO QUE O ESCREVENTE FAZ DA GtNESE DA ESCR!TÀ- 29,1


REPRESENTA ÃO QUE O ESCREVENTE FAZ DO CÓDIGO ESCRITO !NST!TUC!ONALIZADO 28.5
REPRESENTA ÃO QUE O ESCREVENTE FAZ DA OIALOG!A COM O JÁ FALADO/ESCR!TO 42.7

Tomado ele próprio como um pólo de circulação, esse eixo é também -

inclusive pela freqüência, como se pode ver no quadro acima - um lugar

privilegiado paro observamos a relação do sujeito com a linguagem e, em

particular, com a escrita. Merece destaque o fato de que os fragmentos

indiciativos da circulação do escrevente por esse eixo devem ser vistos como

marcas do processo de leitura em que se situa o escrevente.

Considerá-las em relação ao processo de leitura significa evitar que essas

marcas sirvam como simples argumento para denunciar a falta de leitura dos

escreventes ou para denunciá-los como maus leitores. Por rudimentares que

sejam, por exemplo, os remissões à coletânea de textos, podemos sempre pensar

que elas têm o ver com a exigência, feita pela instituição, de ad?quação ao

399
tema e de uso da coletânea, sob pena de anulação da prova. Mas, mesmo

que não considerássemos o caso especial das exigências ligadas ao evento

vestibular, não é tão simples a atribuição de um caráter rudimentar à leitura feita

pelos escreventes. Atribuir esse caráter à falta de leitura do escrevente revela,

acima de tudo, a que tipo de leitura - exclu~ivamente aquela obtida na escola -

se refere o avaliador.

Dizer, portanto, que os fragmentos índiciativos da circulação do

escrevente por esse eixo são marcas do processo de leitura em que esse

escrevente se situa significa mais do que simplesmente considerar a atividade

concreta de ler livros e jornais, por exemplo. Significa sobretudo que, por meio

desses pontos de individuação, o sujeito negocia com o que marca como a sua

exterioridade. Esse território instável do sujeito e de seu discurso é, pois, o resultado

de como o escrevente lida com o que lê- no sentido mais amplo da palavra -,

ou seja, é resultado do confronto de perspectivas que ele vai construindo em seu

texto. Dito ainda de outro modo, esses pontos de índív1duação marcam o

acontecimento da escrita do vestibulando como a confl uênda mais ou menos

previsível. mais ou menos aleatório dos ecos de suas práticos do oral/falado e do

letrado/escrito.

Levando em consideração o objeto deste trabalho, que é a

caracterização de um modo heterogêneo de constituição da escrita,

buscamos - mais do que a detecção de leituras previsíveis ou inéditas feitas pelo

escrevente- captar: na leitu·ra -do escrevente, marcas de sua flutuação quanto

a aspectos de reprodutibi!idade estrita e quanto o aspectos próprios de uma

leitura partícu!ar, considerada a especificidade histórica do sujeito.

400
Nos capítulos 3 e 4, os pistas lingüísticas que indiciam a circulação do

escrevente pela imagem que ele faz do gênese da {sua) escrita e aquelas que

indiciam a circulação pelo que ele representa como o código escrito

institucionalizado puderam ser agrupadas em propriedades mais gerais,

respectivamente. de fragmentação e de integração e disfariciamento.

No caso presente, os fragmentos indiciativos da dialogia com o já

falado/escrito, caracterizados por explicitação lexicalmente marcada, por aspas,

por dois pontos, por ironia, por discurso direto ou por simples colagem foram

reunidos em regulondodes lingüísticas tomadas como marcas de remissões que

apontam: para outro enundador, para a língua, para um registro discursivo, para

o leitor, para a coletânea ou para o próprio texto. No que se refere à propriedade

mais geral em que poderíamos reunir todas essas remissões, podemos. dizer que o

escrita dos vestibulandos, a exemplo da escrita em geral, caracteriza-se pela

heterogeneidade, fato que, por estar ligado ao princípio dia lógico da linguagem,

torna mais clara a possibilidade de, em certas ocasiões, várias vozes se fazerem

escutar. Esses efeitos específicos de polifonia podem ser assim tratados, uma vez

que se dão no hiato entre uma voz representada como de fora e outra

representada como a do próprio escrevente, hiato que evidencia a discrepância

entre essas duas representações. Heterogeneidade com efeitos de

monologízação (por exemplo, na colagem da coletânea) ou com efeitos

específicos de polifonia {por exemplo, nas referências a outros enunciadores) é,

pois, a propriedade fundamental que caracteriza este eixo de circulação

dialógica e dá nome ao modo de constituição da escrita que estamos

estudando.

401
Vejamos, a propósito, como a propriedade da heterogeneidade, que

sintetiza este terceiro eixo, pode ser também a propriedade organizadora da

própria escrita. Retomando as outras propriedades cada uma ligada a um dos

dois eixos de circulação dia!ógica já estudados, podemos dizer que a

heterogeneidade, enquanto móvel de todos as relações, faz alternar, nos textos

dos vestibulandos, o caráter fragmentário-integrotivo em função da circulação

do escrevente pela imagem que ele faz da (sua) escrita, de seu interlocutor e de

si mesmo. Essa alternância se produz quando o escrevente passa pelas

representações que faz da gênese da escrita, do código escrito institucionalizado

e da dialogia com o já falado/escrito.

"Fragmentário-integrativo", portanto, não se refere apenas aos· dois

primeiros eixos estudados. Se lá, essas propriedades têm mais a ver com o arranjo

do texto e das estrutufOs que o sustentam, aqui, têm o ver com o modo pelo qual

o texto evidencia a constituição do sujeito e de seu discurso. Neste último sentido,

fragmentação e integração são propriedades inseparáveis, que materializadas

no texto, são, na verdade, dois movimentos de um mesmo processo de

lndividuação do sujeito, em cuja constituição (e de seu discurso) se interpõem as

determinações de sua inserção particular nas práticas sociais do oral/falado e do

!eirado/escrito.

Vale sintetizar, neste ponto, os principais efeitos da circulação do

escrevente pelo eixo da dialogia com o já falado/escrito. Já foram comentados

os aspectos da remissão à co!etâhea de textos, ligados às exigências da prova.

Merecem, ainda, destaque os seguintes efeitos que a circulação do escrevente

por esse eixo produz: determinação do território de seu próprio dizer em relação a

outros enunciadores; determinação de sua relação particular com a escrita (e

402
com a linguagem) ao delimitar espaços para outros discursos, outras

modalidades de sentido, outras palavras ou outras línguas; determinação de sua

relação com a situação de discurso ao propor-i h e diferentes configurações, feitas

por meio de remissões ora ao registro formal, ora ao registro informal;

determinação do grau de familiaridade com o gênero textual solicitado, de

acordo com o tipo de antecipação- colmatogem própria do texto díssertativo-

de contra-argumentações possíveis por parte do leitor; determinação de sua

relação com o contexto imediato de sua prática textual pelo pressuposição de

conhecimento de dados dessa situação por parle do leitor.

Todos esses efeitos podem estar ligados a mais de um dos três eixos de

circu'lação dialógica do escrevente. Para este eixo especificamente, mas

tamOém para os outros intimamente a ele li9ados, essa indeterminação -

possivelmente constrangedora para uma análise de cunho quantitativisto - é a

próprio força do método adotado neste trabalho. O percurso de associação de

um fragmento indlciativo de interação a regulandades lingüísticas específicas e

a propriedades gerais típicas de cada eixo proposto não se fa-z, portanto,

independentemente do seguinte requisito: é preciso observar em cada texto de

cada escrevente a ocorrência local de cada fragmento e sua relação com

outras ocorrências de mesma ou de outra natureza para que se possa, então,

detectar, com o rigor do conhecimento histórico que individuo {que dá acesso ao

específico de um fato, ou seja, o que dele é, ao mesmo tempo, geral e

portículars 7 ), o tipo de circulação dialógica do escrevente.

No capítulo seguinte, será feito um apanhando dos resultados obtidos, dos

objetivos alcançados e das perspectivas abertas por este trabalho.

157 Conferir Veyne (1981) e, aqui mesmo (p. 96).

403
CONCLUSÃO

Para finalizar, gostaríamos de destacar os resultados que consideramos

mais significativos deste trabalho.

Chegar à definição de um modo heterogêneo de constituição da escrita

foi a nossa principal meta. Não retomaremos aqui o longo percurso que fizemos.

Gostaríamos de sallentar apenas que, à conceituação desse modo heterogêneo,

obtida num primeiro momento a partir de referências teóricas, pudemos,

utilizando metodologia amplamente comentada, constatar empiricamente sua

ocorrência em textos de vestibulandos.

Do ponto de vista teórico, esse modo heterogêneo baseb-se na existência

sócio-histórica da linguagem, a partir da qual pode-se pensar o cruzamento das

práticas orais/faladas e letradas/escritos. Esse postulado foi, neste trabalho,

verificado apenas no âmbito do texto escrito, portanto da escrita adquirida via

alfabetização formaL Desse modo, nos textos analisados, o cruzamento entre as

práticas orais e letradas foi um pressuposto teórico necessário para que

pudéssemos supor e mostrar o encontro entre o escrito e o falado no modo

heterogêneo de constituição da escrita com o qual estávamos lidando.

Dito dessa forma, porém, pode-se ter uma falsa idéia sobre esses

encontros. As mediações sócio-históricas que os regulam são as mesmas pelas

quais simultaneamente se constituem o sujeito (e sua relação específica com a

linguagem) e seu discurso. Observar o encontro entre o falado e o escrito,

portanto, não é tomar essas práticas como dados autonomamente observáveis,

404
mas apreendê-las pelas marcas que o sujeito assim constituído imprime em seu

texto.

A heterogeneidade que constitui o sujeito e seu discurso, bem como a

representação imaginária que orienta sua enunciação são os pontos

fundamentais pelos quais a textuallzação levada a efeito pelo escrevente deixa

aberta a possibilidade de investigação de como se dá sua inserção particular

naquelas práticas, revelando encontros surpreendentes entre elas. Há, pois, um

dado teórico importante a se constatar: o caráter heterogêneo da linguagem e o

caráter de réplica das práticos lingüísticas constituem o eixo a partir do qual se dá

a possibilidade de flutuação (e também de observação} das marcas do

representação do sujeito sobre a (sua) escrita. Além desse aspecto dia!ógico, que

inclui sua relação com o já falado/ouvido e já escrito/lido {seu modo de leitura),

dois outros movimentos do escrevente podem ser destacados: um movimento na

direção de certos dados de ineditismo emergentes de sua individuação histórica

{a partir de sua relação com o que imagina ser a gênese da escrita -

supostamente a capacidade da escrita de representação integral do falado) e

outro na direção da reprodutibílidade de uma prática {sua relação com o que

imagina ser o código escrito institucionalizado). Estes dois últimos movimentos

são, portanto, modos pelos quais o escrevente representa a escrita: ora como

participante de um mesmo e único processo de enunciação, indiferenciado,

portanto, do falado {encontro com o que imagina ser sua gênese), ora

projetando sua enunciação sobre um produto acabado {encontro com o que

imagina ser o códígo instituciona!lzado).

Os três movimentos em torno do imaginário sobre a escrita, descritos como

três eixos de circulação imaginária do escrevente e eleitos como lugares para

405
observação da relação sujeito/linguagem, mostraram que o modo heterogêneo

de constituição da escrita é a materialização textual do processo de escrita, visto

do àngulo da relação sujeito/linguagem.

No que se refere às pistas lingüísticas que permitem detectar a circulação

do escrevente pelo imaginário sobre a escrita, constatamos que elas são tão

variadas quanto imprevisíveis. Essa imprevisibilidade, embora se marque como tal

pelo dado de ineditismo de que foda prática se potencializa, não está exposta,

porém, ao caos. Utilizando o método indiciáriol58, foi-nos possível estabelecer

regularidades de acordo com pontos de individuação, definidos ora em função

de várias dimensões da linguagem {no caso dos eixos de representação da

gênese da escrita e do código escrito institucionalizado), ora em funçãp de

pontos de heterogeneidade (no caso do eixo da dblogía com o já

falado/ouvido e escrito/lido).

Dessas regularidades obtidas, pudemos determinar, num primeiro

momento, duas propriedades definidoras do modo heterogêneo de constituição

da escrita: a propriedade da fragmentação (nos momentos de representação da

gênese da escrita) e a propriedade da integração/distanciamento (nos

momentos de representação do código escrito institucionalizado). A essa

determinação corresponde, no terceiro eixo, uma tendência a se acentuar uma

dessas duas propriedades na leitura do já falado/escrito, Para ficarmos num

exemplo de retomada do já escrito, basta lembrar, por um lado, a tendência à

fragmentação quando o escrevente se vale, por exemplo, da pressuposição de

elementos retomados em seu texto, exacerbando quanto à expectativa de

cooperação por parte do leitor no que se refere a sua textualidade (mais

1sa Sobre a utllização de um paradigma indlcfário na análise de textos escritos, conferir


Abourre et ai (1995),

406
especificamente, ao julgamento de seu texto segundo o critério pragmático de

textualldade referente à aceitabilidade); e, por outro, a tendência à integração,

não só quando as retomadas permitem um ponto de equilíbrio entre o que é

pressuposto como conhecido e o que é trazido como novo, mas também

quando caractéfizam uma tentativa de a!çamento em relação ao que o

escrevente imagina como mais erudito.

O aspecto fragmenfário-integrativo caraderiz.a, portanto, a atuação do

eixo da dialogia com o já falado/esc1ito em relação aos demais. Marcado nos

textos, esse aspecto é, mais propriamente, o produto de dois movimentos de um

mesmo , processo de individuação do sujeito, em cuja heterogeneidade

constitutiva contam as determinações de sua inserção particular nas práticas

sociais do oral/falado e do letrado/escrito. Podenios dizer, portanto, que esses

doís movimentos, associados a uma prática específica - a da leitura -,

evidenciam a propriedade fundamental deste terceiío eixo, a saber, a da

heterogeneidade. Ao definir-se como o móvel de toda circulação dia lógica do

escrevente, essa possibilidade de lidar com o heterogêneo justifico também o

fato de que, neste trabalho, essa sua propriedade fundamental dê nome ao

próprio modo de constituição da escn·ta que estudamos.

Constatar um modo heterogêneo de constituição da escrita pela via da

relação sujeito/linguagem resulta em vários tipos de contribuição. Contribui, em

primeiro lugar, para que não nos espantemos tanto com a heterogeneidade

presente nos vários textos com que nos deparamos cotidianamente. Se, por

exemplo, em determinado momento do texto, o escrevente explora escolhas

lexicaís mais formais e, em seguida, pressupõe a presença de traços prosódicos,

deixando faltar a pontuação adequada, já não temos o direito, do ponto de vista

407
analítico, de julgar este último fofo como uma interferência do falado no escrito,

uma vez que já não podemos pressupor uma ta! pureza do escrito em relação ao

falado.

A respeito dessa maneira de encarar o processo de textualízação,

podemos incluir também um importante objetivo alcançado. Tínhamos como

preocupação desvincular o encontro do falado com o escrito das avaliações

estereotipadas que tomam como parâmetro um modelo abstrato de boa escrita.

A desvinculação que alcançamos não só recusa o preconceito comum com que

se tomam as produções escritas consideradas como menos integrados a esse

modelo, como dá indicações de que mesmo o padrão de escrita tido como

legíiimo pode ser concebido, em seu gfau próprio, como produto do mesmo

modo heterogêneo de constituição. Uma tal desvinculação pode ter grandes

conseqüências pedagógicas.

Vale lembrar, a propósito, que a preocupação pedagógica,

especialmente no ensino de 1o e 2° graus, com reconhecer a heterogeneidade

da língua não tem ido muito além de noções multo gerais sobre as variedades

lingüísticas. Tem sido enfatizado, com mais força para a escrita, o argumento

incontestável {mos também, freqüentemente, á!íbi) de que o aluno deve ter

contato com a norma culta da língua. No entanto, a partír desse álibi, parece

que vivemos mesmo uma fase de recrudescimento normativo, seja nos manuais

da redação dos grandes jornais, seja nos programas educativos sobre língua

portuguesa difundidos pela mídia. Tudo se passa como se a lingüística não

tivesse fôlego para interferir no uso institucional da língua, especialmente no que

se refere à escrita.

408
Reintroduzir, no ensino de língua portuguesa, uma visão lingüística sobre a

escrita significo trazer de volta a questão das variações e da heterogeneidade

que constitui a língua. Mas não apenas isso. Em termos da prática pedagógica,

talvez signifique reintroduzir também um outro discurso sobre a escrita, trazendo à

tona práticas lingüísticas que, presentes no amplo espectro dos usos "da escrita,

rarefazem-se, no entanto, no modelo abstrato que se institucionalizou para ela,

não restando senão meia dúzia de regras a partir dos quais supostamente se

poderio produzir um bom texto. Evidenciar essas práticos corresponderia, na

verdade, a explorar a reflexão do aluno sobre a escrita e sobre a sua própria

constituição como escrevente.

Em termos de perspectivas teóricas abertos, a constatação de um modo

heterogêneo de constituição da escrita em textos dissertativos de vestibulandos é

um primeiro posso no sentido de estender essa heterogeneidade para outros

gêneros e para outras situações de uso da língua. Isso, naturalmente. sem contar

com a possibilidade - apenas apontada neste trabalho - de definir esse modo

heterogêneo também para textos falados.

Fiquemos, quanto às perspectivas abertas pela caracterização de um

modo heterogêneo de constituição da escrita, com os textos escritos provenientes

da literatura e da burocracia. Que a oralidade tem, no literatura, uma existência

medíatizada é assunto que Maingueneau já comenta (cL aqui mesmo, p. 45). A

atividade epi!lngüistlca praticada pelos escritores- e reclamada por Koch {1996,

p. 4) para o ensino - indica também, no jogo por eles proposto com a

heterogeneidade e com o imaginário sobre a língua, suo percepção do

encontro entre as práticas do oral/falado e do letrado/escrito. Por sua vez, a

próprio dominância de traços do código escrito institucionalizado em textos de

409
circulação burocrática pode ser vista como um aparente silenc1omento de uma

falo que, embora não participe propriamente do processo de textualização, se

imprime em geral num gesto gráfico - freqüentemente pleno de rabiscos

ídiossincráticos - de alcance jurídico: a assinatura. Dada a presença do sujeito,

que como tal é indissociável das práticas em que se constitui - incluindo as do

oral/falado e as do letrado/escrito-, pode-se supor que nenhum texto escrito se

caracteriza por uma representação da escrita fixada apenas num dos três eixos

propostos. A ausência de pistas sobre a circulação por um deles é ela própria

uma pista sobre a representação que o escrevente faz da escrita tanto no que

tange ao eixo excluído como no que tange aos eixos privilegiados. Além desse

aspecto, hó um outro relativo à qualidade do texto. Um texto, por exemplo, em

que as marcas da imagem que o escrevente faz da gênese da escrita tendesse a

zero não seria, por isso, necessariamente melhor ou pior que qualquer outro. É

bastante conhecido, por exemplo, o chamado "estilo cartorial", em que a atitude

afirmativa em relação ao código escrito institucionalizado não garante um bom

texto, em geral garantindo, no entanto, bons exemplos de tentativa de

alçamento ao saber instituído e à autoridade dele decorrente.

Parece, portanto, bastante possível am-pliar o alcance do modo

heterogêneo de constituição da escrita. Uma pergunta sugestiva ao texto escrito

pode ser a seguinte: há uma fala nessa escrita? Uma ta! pergunta pressupõe,

naturalmente, uma perspectiva sobre os taís encontros entre o oral/falado e

letrado/escrito, perspectiva que vem muito claramente formulada por Abaurre;

"como lingüista, interessa-me compreender a relação sujeito/linguagem, já que

me parece parcial reducionista e inadequada qualquer teoria da !ingu'agem que

a toma como objeto pronto e acabado, foro dos sujeitos" {1996, p. 123}. No

410
presente trabalho, procuramos, por meio dessa perspectiva, evitar não só a

consideração de tais encontros como problemas de interferência da oralidade

na escrita (fato que levaria a pressupor a pureza de cada uma dessas práticas),

mas também evitar conceber o sujeito/escrevente como o indivíduo que produz

sua escrita a partir de si mesmo. Neste particular, trabalhamos com a idéia de um

sujeito individuado {Veyne, 1971, 1983), que marca lingüisticamente, segundo

tipos de ruptura que seu texto pode apresentar {pontos de individuação), o

especificidade de sua identificação a grupos. Essa perspectiva defende a

presença do outro como constitutiva do sujeito e de seu discurso, fato que, em

nosso estudo, foi marcado pelas idéias de heterogeneidade e de representação.

Essas idéias, por sua vez, deram as pistas lingüísticos do divisão enunciativo do

sujeito, P.ermJtindo, assim, definir o modo heter<;>gêr;~o de constituição da escrita

dos vestibulandos.

A possibilidade de ampliar o alcance desse modo heterogêneo abre uma

perspectiva para um novo tratamento do texto também para áreas como a da

chamada Comunicação Social, em que as contribuições podem multiplicar~se.

Atribuir um estatuto heterogêneo ao texto radiofônico, por exemplo, parece ser

um caminho para atender a exigência do próprio veículo, que pede, numa

formulação pouco clara, mos sugestiva, um texto escrito para ser falado. Esse '

novo tratamento do texto escrito, que inclui uma atenção especial às marcas do

processo de sua produção, pode ser útil também para as mais diversas áreas

científicas em que seja relevante explorar a relação sujeito/linguagem a partir da

consideração do texto escrito.

Como última palavra, gostaríamos de destacar o relação entre o modo

heterogêneo de constituição da escrita e as grandes transformações

411
tecnológicas que estão ocorrendo no campo da comunicação, caracterizadas

pe!o heterogeneidade de materiais significantes. Se, de uma perspectiva

autonomista, pode-se discutir o declínio da escrita em favor de outros modos de

com1..micação, seria o caso de se perguntar se - encarada como um tipo

particular de enunciação {portanto como constitutivamente heterogênea)- o seu

modo heterogêneo de constituição não estaria apto a compor, com esses

recursos tecnológicos, novos e inusitados encontros. Os "bilhetes" que recebemos

via INTERNET não deixam dúvidas quanto o fala que há naquela escrita estar

compondo, com essas novas tecno!ogiasls9, novos modos também heterogêneos

de constituição da escrita.

1 >~ A multiplicação das possibHidodes tecnológicos de combinação é descrita por lévy


quando o autor troto do noção de "interface': Segundo o autor, o próprio vocabulário do
ínformótica indicava. tempos atrás, a colocação em lados opostos o "entrado" e o "soldo"
de informação, tendo ao centro a máquina central. Lévy mostra que esta época terminou e
que "através de uma verdadeiro dobradura lógico. os duas extremidades juntaram-se e.
virados para o mesmo lodo, compõem hoje o 'interface'. O computador passa a ser um
encaixe, uma rede de interfaces sucessivas. Associando as redes de interfaces às tecnologias
intelectuais, Lévy define o "própnO pn'ncfpio da escdta"como "o interface visual do língua ou
do pensamento·: A essa interface vem acrescentar-se a de "uma embalagem porliculor" ,
que é "a interface romana, e não o grego ou a árabe': E a esta, sucessivos alterações até
chegar ao Hvro. Seria este, pergunto o autor_ "uma sociedade_ de palavras''? E responde:
"Certamente, mos estas palavras encontram-se moterio/izodas, conectados, apresentados e
valorizadas junto ao leitor por uma rede de interfaces acumulada e polida pelos séculos. Coso
se acrescente ou se svprimo vma único interface à rede técnico da escrito em um dado
momento, toda a relação com o texto se transforma". E conclui: "o sentido remete sempre
aos numerosos filamentos de uma rede, é negoc[pdo nas fronteiros (... ), ao acaso dos
encontros" (1993, p. 177-80, destaque nosso).

412
ABSTRACT

The proposal of this study is to point out the features of a heterogeneous

woy of writing organization. Taken the imaginary about .~riting which circu!ates

among society info account, the question approached is the one whích concerns

the image performance which the "writer" makes of the writing in the text

construction. The characterization of these features is bosed, on one hand, in the

perception of severa! authors that there are texts produced ín the mean points

between the typica!ly considered peles of spoken and written !anguages and, on

the other_ in the performance of the dialogistic principie of the language as

condition of its heterogeneity combination. At first, this characterization is made by

estabtlshing of a concept of the heterogeneous way of the writíng organization

from two bosic polnt of view discussion about writing: the autonomist view which

dea!s with the radical dichotomy betvveen spoken and written !anguage and the

view that makes this autonomy re!ative by proposing a continu'um between these

peles. The second step of it is the estab!ishment of a work methodo!ogy from the

creation of an observatíon space that postu!ates the dia!ogistíc circu!ation of the

"writer" through three axís of writing representation: the one of the image whích

the "writer" mokes of the genesis of his writing. the one thot the "writer" mokes of

instituted written code and the one o f the representation which the "writer" makes

of the writing in its {and in his) dialogy with what has been already spoken/written.

Yet, at this establishing methodology moment, it is adopted a particular way of

analyzing the texts; namely the due paradigm, taken as basis for investigations of

!1nguistic cues. regulorities and properties of the anolyzed texts. Approaching

413
seporately each of the three axis for observotion, in o third step, the analysis of a

set of eighiy-three dissertations of an admisslon exam for college of 1992 is made.

How this heterogeneous way of writing organization works shows the specific

feature {at the some time, general and particular) of the re!ation

"writer"/language, allowing the questioning of either the view which considers this

heterogeneous way as an interference of the oral into the written language or the

one whlch considers only the product of the reproduction of the instituted writing

models.

KEYWORDS: I. Writing. 2. lmaginary.

414
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