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dezembro 2017
INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende ser uma incursão inicial pela metodologia de
investigar em ciências sociais, com um plano de projeto que contemple as fases fulcrais
de apresentação da problemática ou pergunta de partida para depois prosseguir para a
proposição de hipóteses que respondam a esta mesma pergunta que serão estudadas
com exaustividade suficiente para, no final, alcançar uma justificação metodológica para
a tese/hipótese que se apresenta como a aparentemente mais válida.
O tema escolhido incide na politização nas Repúblicas de Coimbra, encarando
politização como a consciencialização da realidade política envolvente e eventuais
ações levadas a cabo em resposta a esta realidade. É uma politização fortemente
associativa (aglomeração de pessoas com uma vivência comum com vista a lograr um
objetivo comum, sem fins lucrativos), mais ou menos organizada, que tenta responder
aos problemas vividos pelos estudantes que habitam nestes espaços, pela restante
comunidade estudantil e académico e, por vezes, ao longo da história, também da
sociedade no geral.
Uma República deve ser entendida, acima de tudo, como uma casa onde
coabitam estudantes com algum grau de vivência comunitária. Traçar uma definição
específica de República apresenta-se como um desafio, sendo divergentes as respostas
que a literatura tem dado. A que se apresenta como mais genérica, quer para o presente,
quer para o passado, mas que, ao mesmo tempo, especifica pontos vitais e centrais é:
1
Carreiro, Teresa (2004). Viver numa República de Estudantes de Coimbra: Real República Palácio da
Loucura, 1960-1970
2
Uma das poucas, se não a única exceção, é a Real República dos Lysos, no Porto, que funciona com
componentes transversais às repúblicas de Coimbra como o regime de autogestão (mais ou menos associado
às instituições do Ensino Superior, mas sempre independente as mesmas) e a celebração anual do
Cláudio Valério Oliveira
subjetivas sobre as quais este trabalho não se pretende debruçar. O que esta pesquisa
pretende realmente tratar são os fenómenos já referidos de politização em
associativismo que se verifica nas Repúblicas de Coimbra, relacionando o passado com
o presente e procurando responder a quão intensos são estes fenómenos nos dias de
hoje, volvidos que estão os seus tempos áureos e que perdurarão na história no papel
tido na luta pela democracia durante a ditadura portuguesa do séc. XX. Ocupam ainda
as repúblicas um espaço de relevo na sociedade académica coimbrã ou estão reduzidos
a pouco mais que uma história cada vez mais moribunda?
DA ORIGEM AO SÉC. XX
O estabelecimento da Universidade de Coimbra (UC) na cidade do rio Mondego
em 1308, após a sua criação dezoito anos antes em Lisboa 3 , resultou na fixação
temporária de uma massa estudantil (e docente) em Coimbra o que, desde logo,
resultou numa problemática em conseguir oferecer um alojamento a esta massa, à
semelhança do que outras cidades universitárias europeias também experienciaram
durante a Idade Média.
O desafio era exponenciado pela oferta reduzida de alojamento na cidade, na
altura bem pequena. Para além disso, os poucos detentores de habitações dispostos a
arrendar, olhavam com desdém a comunidade estudantil e preferiam ter classes
trabalhadores como inquilinas. A resposta deu-se com a criação das primeiras formas
de vivência comunitária4, algo que aconteceu ainda no tempo do rei D. Dinis, o fundador
da instituição.
O rei dedicou fundos e esforços à construção (e reconstrução) de casas para
uso exclusivo de estudantes na Alta de Coimbra. A autogestão ficou também aqui
demarcada, pois, a par da disponibilização de alojamento, foi criada uma comissão,
onde se incluíam estudantes, com poder deliberativo, para controlar o valor das rendas
e evitar o despejo injustificado 5. A estas benesses, somava-se a garantia de recursos
básicos para sobrevivência, nomeadamente na alimentação 6 , algo que tem ainda
paralelismo com um papel assumido pela UC no presente.
Começava a tomar forma o paradigma de Coimbra como cidade de estudantes
com capacidade organizacional e poder perante a sociedade, algo que não se
desvaneceu completamente com o avançar dos séculos e que, durante alguns períodos,
até assumiu proporções bem mais significativas e impactantes em todo o país e o seu
império colonial. A cidade, ainda assim, continuou, em grande parte, a ser um bastião
do conservadorismo, algo que se traduziu à universidade cuja história demonstra a
simultaneidade de formas rígidas de tradição e hierarquia com um espírito insurgente 7,
especialmente demarcado nas Repúblicas que mais tarde surgiram.
Mas antes de serem locais de contestação, os fatores económicos eram o
determinante máximo para dar início a uma nova casa comunitária 8 . Viver em
comunidade significava repartir despesas, com fatias do bolo tanto mais pequenas
quanto por quantos mais estudantes ele fosse repartido. O afastamento da família era
outro fator que levava os estudantes a procurar constituir um novo grupo social de
partilha, não sendo por isso de estranhar que muitas repúblicas, alguns séculos depois,
aniversário, como “centenário” e ao qual são convidados os antigos moradores e as demais repúblicas
3
Portal da Universidade de Coimbra. Obtido de http://visit.uc.pt/sobre/, consultado a 2017, 25 de
Dezembro
4
Ribeiro, Artur (2004). Republicas de Coimbra, Ed. Diário Coimbra
5
Vinterovà, Jana (2007). Repúblicas de Coimbra
6
Ribeiro, Artur (2004). Op. cit
7
Estanque, Elísio (2008). Jovens estudantes e repúblicos: Culturas estudantis e crises do associativismo em
Coimbra in Revista Crítica de Ciências Sociais #81
8
Vinterovà, Jana (2007). Op. cit
2
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
9
São exemplos as Repúblicas Corsários das Ilhas, Farol das Ilhas e a já extinta Kimbo dos Sobas, fundada
por angolanos
10
Revolução Francesa foi um período de agitação sociopolítica no final do séc. XVIII, na França, e que
resultou na abolição da monarquia e estabelecimento de uma república. Os valores democráticas e liberais
desta revolução repercutiram-se globalmente e marcaram o fim da Idade Moderna e início da Idade
Contemporânea, o período de história da humanidade no qual ainda vivemos hoje em dia
11
Estanque, Elísio (2007). Cultura académica e movimento estudantil em Coimbra
12
Silva, Maria e Madeira, Sérgio (2009). Repúblicas Universitárias de Coimbra
13
Marchi, Riccardo (2015) As Direitas na Democracia Portuguesa
14
Silva, Maria e Madeira, Sérgio (2009). Op. cit
15
Vinterovà, Jana (2007). Repúblicas de Coimbra
16
Silva, Maria e Madeira, Sérgio (2009). Op. cit
17
Vinterovà, Jana (2007). Op. cit
3
Cláudio Valério Oliveira
NO ESTADO NOVO
O Estado Novo corresponde ao período político português que, em
consequência do gole militar de 1926, instituiu uma ditadura (também militar). Levou a
uma mudança na conceção de estado e governação, a partir de 1933, com a entrada
de uma nova Constituição, elaborada pelo Presidente do Conselho de Ministros, António
de Oliveira ealazar, que se tornou, na prática, a figura central de um regime autocrático,
autoritário e corporativista, bebendo muito do fascismo italiano. 18 19 A ditadura militar deu
assim origem ao chamado Estado Novo, regime que se prolongou por mais de quatro
décadas.
ealazar, que deixou a docência de Economia Política, Ciência das Finanças e
Economia eocial na UC 20 para assumir funções governativas, procurava criar uma nova
sociedade, marcadamente tradicional e conservadora. As universidades foram,
naturalmente, instrumentalizadas na construção dos valores salazaristas 21
A Imprensa da Universidade é extinta em 1934, medida que foi de encontro com
a política de censura fortemente veiculada pelo regime. Um ano depois, por decreto,
passa a ser possível demitir ou aposentar funcionários públicos, incluindo professores
universitários, por alegações pouco claras de falta de lealdade para com o Estado 22
Em 1936, a Associação Académica de Coimbra 23 (AAC), vê limitada a sua
autonomia com o regime a impor uma Comissão Administrativa composta de defensores
da ditadura e dos seus valores. As eleições para os órgãos associativos ficam proibidas
até 1947.24
Foi neste contexto de rutura com os ideias de uma república, apoiados no
liberalismo socialmente progressista que as homónimas Repúblicas de Coimbra
constituíram um órgão independente e autónomo que as unificar e passou a representar.
A 11 de Dezembro de 1948 cria-se então o Conselho de Repúblicas (CR), após a
entrada em vigor de um “Pacto de Amizade e Aliança”, assinado nos Kágados por eles
mesmos e cinco outras repúblicas: as já extintas Jástá e Pagode Chinês e as ainda
atuais e significativas Rás-Te-Parta, Baco e Palácio da Loucura25.
O nome do Pacto é provavelmente uma alusão aos vários Tratados com igual
designação que os Reinos de Portugal e Inglaterra foram assinando, sobretudo ao longo
do século XVII 26 . É a ironia mordaz que sempre esteve presente na história das
Repúblicas. O que é certo é que, ao contrário de Portugal e Inglaterra, a aliança e
amizade foram um facto incontestável e que não precisou de um segundo, muito menos
terceiro tratado para rever as suas posições.
Todas as assembleias do CR, vulgarmente chamadas por precisamente CRs,
18
O Estado Novo: 1926-1974. Obtido de https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/OEstadoNovo,
consultado a 2017, 23 de Dezembro
19
Luís Reis Torgal: “Estado Novo teve origem fascista” (2009) in TVI. Obtido de
http://www.tvi24.iol.pt/politica/salazar/estado-novo-teve-origem-fascista, consultado a 2017, 22 de
Dezembro.
20
Corpo Docente da FDUC. Obtido de
https://www.uc.pt/fduc/corpo_docente/galeria_retratos/oliveira_salazar, consultado a 2017, 22 de
Dezembro.
21
Codinha, Miguel (2004). A Politização do Meio Estudantil Coimbrão durante o Marcelismo
22
Decreto Lei nº 25 317 (1935). Obtido de http://app.parlamento.pt/comunicar/Artigo.aspx?ID=562,
consultado a 2017, 22 de Dezembro.
23
A AAC é a mais antiga associação de estudantes do país fundada em 1887. Qualquer estudante
matriculado na UC, (da qual a AAC funciona com estreita relação mas lhe é independente, tal como as
repúblicas), é automaticamente associado e representado pela mesma, cabendo-lhe defender os interesses
estudantis. Alberga vários organismos, secções (de cultura e desporto) e todos os núcleos de estudantes dos
vários cursos.
24
Campos, João (2009). AAC: os rostos do poder
25
Vinterovà, Jana (2007). Repúblicas de Coimbra
26
Gazeta de Lisboa (1826). Edições 152-307
4
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
podiam ser convocados por qualquer casa. Nelas, todas as decisões tinham de ser
tomadas por unanimidade (e não por maioria, como indica alguma literatura). Estes dois
factos são ainda hoje verificados, com o último a resultar em algumas dificuldades para
tomar posições, como seria de esperar numa situação em que basta um não entre vinte
e cinco opiniões para impedir o sim, algo que pode ser um motivo para um eventual
imobilismo associativo que hoje se vive nas Repúblicas e que este texto pretende
averiguar se corresponde ou não a um facto.
O contexto político da ditadura pode, contudo, em nada ter influenciado a criação
do CR. Até meados da década seguinte, não há registo de estudantes, repúblicos ou
não, em formas organizadas de contestação ao regime27. O que é certo é que o CR
lançou as bases para as lutas das duas décadas seguintes, nomeadamente com a
criação do jornal O Badalo, futuramente utilizado como meio de contestação e cujo
primeiro número saiu ainda no ano de assinatura do pacto. No imediato, o CR conseguiu
aumentar o número de estudantes repúblicos, fomentar convívios e tertúlias e repensar
a relação com a AAC, que se viria a revelar fulcral nos movimentos académicos de luta
ao Estado Novo28.
Ao longo dos anos 50, o CR tinha já alargado largamente o número de repúblicas
que representava. Chegado ao ano de 1956, dá-se aquela que é considerada a primeira
das Crises Académicas do Estado Novo. O Governo emite um decreto que visava novas
ingerências na autonomia das instituições de ensino superior que culminariam na total
subordinação centralizada ao Ministério da Educação Nacional 29. A reação não se fez
esperar com os estudantes, representados pela AAC onde o CR mantinha uma forte
presença, a emitir múltiplos comunicados e pareceres 30 de repúdio ao decreto. Há
manifestações em Lisboa e em Coimbra e os próprios reitores das universidades
posicionam-se ao lado dos estudantes. O sucesso é imediato e o decreto não chega a
entrar em vigor. 31
Embora parte das medidas sejam promulgados em decretos subsequentes, que
sempre tiveram a oposição dos estudantes 32, o sucesso de 56-57 prova a capacidade
do associativismo em influenciar decisões políticas, mesmo perante um regime opressor
e autocrático, facto que alavancou as lutas estudantis que se lhe seguiram. As
academias do país começaram a coordenar-se conjuntamente, com a AAC sempre a
assumir um papel de especial relevo, o que deu início a um processo de politização
radicalizada com especial enfoque nas Repúblicas de Coimbra que se tornam o local
ideal para assembleias, debates e trocas de ideias de foro político 33.
1958 marca o ano de mobilização popular à candidatura presidencial do general
Humberto Delgado34 que, na sua visita a Coimbra, conseguiu uma arruada de centenas
de pessoas, maioritariamente estudantes.35
27
Vinterovà, Jana (2007). Repúblicas de Coimbra
28
Silva, Maria e Madeira, Sérgio (2009). Repúblicas Universitárias de Coimbra
29
Decreto-Lei 40.900 (1956). Obtido de https://dre.pt/application/file/299709, consultado a 2017, 23 de
Dezembro
30
Luta contra o Dec.-Lei 40.900. Obtido de http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_7492, consultado a
2017, 23 de Dezembro
31
Cardina, Miguel (2008). Movimentos estudantis na crise do Estado Novo: mitos e realidades
32
Luta contra o Dec.-Lei 40.900. Op. cit
33
Vinterovà, Jana (2007). Op. cit
34
Humberto Delgado foi um general das forças armadas portuguesas que participou no Golpe Militar de
1926 e que ocupou vários cargos públicos relevantes, mas cujos ideiais se modificam depois de cinco anos
a representar o exército português em Washington (Portugal foi um dos doze fundadores da aliança militar
NATO), assumindo-se como candidato à Presidência da República Portuguesa, em 1958, contra o candidato
do regime Américo Tomás e demonstrando o seu interesse em depor Salazar. Cria uma forte mobilização
de apoio popular, mas é esmagado por fraude eleitoral, tendo de se exilar do país, vindo mais tarde a ser
assassinado pela polícia política do regime a PIDE.
35
Tavares, José (2008). Humberto Delgado no Porto e em Coimbra in Revista Rua Larga #22
5
Cláudio Valério Oliveira
36
Vinterovà, Jana (2007). Repúblicas de Coimbra
37
Vinterovà, Jana (2007). Op. cit
38
Relato oral presenciado pelo autor num almoço com antigos repúblicos do final da década de 60 e início
da de 70, na República Ninho dos Matulões, em Outubro de 2017
39
Primavera Marcelista designa o primeiro período de Marcello Caetano como sucessor de Salazar a
Presidente do Conselho, entre 1968 e 1970, marcado pela introdução de uma política com algum condão
de modernidade e liberalismo, sobretudo económico mas também social. Foi introduzido para serenar a
contestação social ao regime
40
Igual à nota de rodapé 38
41
Rosmaninho, Nuno (2006). O poder da arte: o Estado Novo e a cidade universitária de Coimbra
42
Cardina, Miguel (2011). Crises, História e Memória in Revista Vírus #12
43
Assembleia Magna é o órgão máximo de decisão da AAC, onde todos os estudantes podem participar.
6
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
indumentária. O luto é ainda hoje uma divisão fraturante entre polos opostos das lutas
académicas do presente, onde as repúblicas assume uma posição central. Um exemplo
relevante da importância do luto para as repúblicas é a expulsão do Solar dos Symbas
do CR, por não quererem aderir ao luto académico44, algo que não foi revisto até aos
dias de hoje.
O clima de agitação leva o regime a encerrar a UC no início de Maio, mantendo-
se, no entanto, o calendário de exames. A AAC, por seu turno, desconvoca a mais antiga
festa académica do país, que se realizava ininterruptamente desde 191945, a Queima
das Fitas, certame que marca o final do ano letivo e cuja edição de 69 estava prevista
para o mesmo mês de Maio. Para além disto, a associação publica a Carta à Nação,
onde expressa declaradamente o seu desejo num novo sistema académico, social e
político.
44
Frias, Aníbal (2003). Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógica das tradições e
dinâmicas identitárias
45
Queima das Fitas: é urgente repensar (2017) in Jornal O Tornado. Obtido de
http://www.jornaltornado.pt/queima-das-fitas-coimbra-urgente-repensar, consultado a 2017, 25 de
Dezembro
46
Cardina, Miguel (2011). Crises, História e Memória in Revista Vírus #12
47
Cardina, Miguel (2011). Op. cit
48
Guerra Colonial ou do Ultramar engloba os conflitos armados encabeçadas pelo estado português contra
movimentos independentistas nas colónias de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau que decorreram entre
1961 e 1974
49
Cordeiro, José (2011). Radicalismo político e ativismo estudantil nos últimos anos do fascismo (1969-
1974) in Revista Vírus #12
50
Cardina, Miguel (2011). Op. cit
51
A crise de 1962 teve especial enfoque em Lisboa, na sequência da prisão de manifestantes contra a Guerra
Colonial e foi a primeira grande demonstração de associativismo estudantil extremada
52
Cardina, Miguel (2011). Op. cit
53
Vinterovà, Jana (2007). Repúblicas de Coimbra
54
Comissão Pró-reabertura da A.A.C. (1971). Obtido de https://www.amigoscoimbra70.pt/ download/
Documentos%20de%201973/1973_04_17_A_Com_Constitui%C3%A7%C3%A3o_CPRAAC.pdf,
7
Cláudio Valério Oliveira
existência de direção, só seria mudado após a Revolução de 1974 55. Em 1973, é criada
uma força de vigilância para controlar os estudantes, os chamados ‘gorilas’. Assim,
enquanto a contestação aumentava em Lisboa, ia sendo reprimida no meio mais
pequeno e mais afastado do poder central que era Coimbra, onde difícil era ser um
ativista que passava despercebido às autoridades. 56
Prosseguem contudo os debates e colóquios, com especial incidência no seio
repúblico que se mantinha como centro onde confluía a troca de ideias 57. A cultura de
rutura com os ditames da censura 58 era pródiga nas casas, nomeadamente com
literatura de ideologias socialista ou anarquista. A maior parte das repúblicas mantém,
até hoje, uma extensa biblioteca 59 onde se encontram volumes bastantes raros.
Foi neste clima já menos politizado, face ao triénio 68-70, que Coimbra viria a
abraçar a restituição da democracia, com a Revolução de 25 de Abril de 1974. Um dos
motivos para o abrandar da contestação foi também as divergências ideológicas entre
o pensamento sindical-associativo, dominante numa AAC (fantasma a nível de direção)
e o pensamento revolucionário e radicalizado, comum nos grupos que frequentavam as
repúblicas. Estas divergências viria a marcar definitivamente os anos seguintes. 60
O Conselho de Repúblicas, que tinha perdido algum fulgor com a forte opressão
do Marcelismo pós-Primavera, em resposta aos eventos de 1969, acaba mesmo por ser
desativado aquando da retoma da Liberdade e fim do Estado novo, em 197461, sendo
restabelecido apenas doze anos depois 62.
Afirma-se que “as repúblicas jamais conseguiram recuperar a sua importância
dos anos 60 assim como ser centro de atividades académicas 63 e que, em todo o
associativismo académico “se perdeu a dimensão criativa e espontânea dos órgãos
associativos estudantis, assistindo-se a uma simples reprodução dos esquemas
políticos e culturais dominantes 64 . Perceber até que ponto são verdade estas teses,
sobretudo a nível das repúblicas, é o objetivo final deste trabalho.
Ao longo das década de 80, as repúblicas estavam numa situação que em pouco
difere do que se passa agora, trinta anos depois. A procura por parte dos estudantes
das repúblicas como espaços a habitar decresceu. Isto deve-se em parte ao avançado
estado de degradação físico de muitas das casas65, ao mesmo tempo que a cidade e a
oferta de alojamento cresciam.
A UC deixa também de ter a quase total exclusividade de captação de estudantes
por parte de outras instituições de ensino superior de Coimbra que não a UC 66, longe
8
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
9
Cláudio Valério Oliveira
74
Resultados de acesso ao Ensino Superior na Faculdade de Ciências da UC. Obtido de
http://www.dges.mctes.pt/guias/indest.asp?estab=0501, consultado a 2017, 25 de Dezembro
75
Juntou-se à República Rosa Luxemburgo, fundada em 1972 e que foi exclusivamente feminina até 2015,
mas mantém o cunho fortemente feminista e antissexista, coimo é exemplo a organização do Festival
TransFeminista Coimbra na casa neste mês de dezembro
76
Frias, Aníbal (2003). Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógica das tradições e
dinâmicas identitárias
77
Estanque, Elísio (2008). Jovens estudantes e repúblicos: Culturas estudantis e crises do associativismo
em Coimbra in Revista Crítica de Ciências Sociais #81
78
Estanque, Elísio (2008). Op. cit
79
Frias, Aníbal (2003). Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógica das tradições e
dinâmicas identitárias
80
Silva, Alexandra (2009). Movimento Estudantil e Resistência Cultural em Coimbra na Década de 1980
81
Maló de Abreu: “O meu sonho foi o de restaurar as tradições” (2011) in Diário As Beiras. Obtido de
www.asbeiras.pt/2011/05/malo-de-abreu-o-meu-sonho-foi-o-de-restaurar-as-tradicoes/, consultado a 2017,
26 de Dezembro
10
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
AAC82, primeiro com a JeD (jota do PeD) e, desde aí, com a Je (jota do Pe, Partido
eocialista) a ser praticamente hegemónica 83. O associativismo menos revolucionário e
mais revisionista e de consensos, lado a lado com o capital, tradicional da social-
democracia, tornava-se a ideologia dominante, até com a gradual deslocação política
do Pe para o centro (e até centro-direita), à medida que se assumia como partido a
tutelar governos de democracia parlamentar no Portugal pós-revolução, em alternância
com o PeD.
A praxe e as festas académicas (surge, entretanto, também a Festa das Latas
inspirada nos certames festivos de início de ano letivo de outras cidades), apoiadas no
fado e no uso de capa e batina, tornaram-se assim o foco central de agregação
estudantil, cavando uma profunda cisão ideológica com o espírito revolucionário das
Repúblicas que perdura até hoje, e que a retoma do CR não resolveu.
A contestação ao fim do luto, foi imediata e, durante o cortejo da Queima das
Fitas de 1980, ocorrem tumultos que, alegadamente, chegaram a agressões a
estudantes que aderiam à festa e cuja responsabilidade é imputada às Repúblicas,
nomeadamente a uma fundadora do CR, a Prá-Kys-Tão, embora vários organismos
autónomos e seções culturais da AAC, independentes da Direção-Geral, tenham
também manifestado o seu desacordo com o fim do luto.84 O que é certo é que, ainda
hoje, praxar nas imediações da Prá e de algumas outras repúblicas, não resulta em
trajes académicos secos e limpos.
A cidade, por seu turno, agradeceu o dinheiro que isto permitiu injetar no
comércio local, enquanto os pais de estudantes vão ficando muito mais orgulhosos em
ver os seus filhos a envergar o traje do que a pertencer a uma casa que tem imagem,
a priori, de ser um elemento puramente boémio85 e radicalizador.
O que é certo é que foi claro o divórcio entre as repúblicas e a AAC, a grande
aliada durante o Estado Novo, mas que, ao contrário das repúblicas teve um
renascimento associativo impactante com Abril. A República Ninho dos Matulões, ainda
hoje, exibe orgulhosamente a bandeira da AAC roubada durante a presidência de Maló
de Abreu. O Solar dos Kapangas espalha os recortes de notícias do início de século
quando encheram as urnas de votações para a AAC com sacos de lixo acumulados
durante semanas. O CR não mais esteve representado nos órgãos da associação, e as
listas significativamente originárias a partir da moldura humana república têm logrado
votações vestigiais86, embora muitas das casas se afastem, de todo, deste processo
como a investigação de Estanque 87 bem demonstra, com a baixa percentagem de
repúblicas que integram listas candidatas.
Mas terão as repúblicas mesmo deixado de ser um centro politizado? Ou,
simplesmente, o seu impacto tornou-se menos óbvio nas menos óbvias lutas estudantis
pós-ditadura? Para tentar responder à hipótese que se assume como mais válida,
importa primeiro analisar em concreto estas lutas.
Recordando a contextualização temporal, estamos agora na década de 80, que
foi então pautada pelo crescimento exponencial de estudantes na cidade, cada vez
menos politizados e interessados em frequentar as mal vistas repúblicas, e mais em se
envolverem nas tradições praxísticas. As repúblicas entram assim num "efeito bola de
neve” em que o contexto sociopolítico não favorece o seu impacto e a adesão à
82
Bebiano, Rui (2011). Estudantes em movimento: uma tipologia localizada da reivindicação in Revista
Vírus #12
83
Silva, Alexandra (2009). Movimento Estudantil e Resistência Cultural em Coimbra na Década de 1980
84
Silva, Alexandra (2009). Op. cit
85
Criando-se o paradoxo de se entender as festas académicas como o único momento boémio que é vivido
pelos estudantes da praxe ao longo do ano.
86
São exemplos os 2,91% em Novembro de 2017 da Lista E. Obtido de
http://www.ruc.pt/2017/11/22/alexandre-amado-vence-a-primeira-volta-eleicoes-para-a-dg-aac/,
consultado a 2017, 26 de Dezembro
87
Estanque, Elísio (2008). Jovens estudantes e repúblicos: Culturas estudantis e crises do associativismo
em Coimbra in Revista Crítica de Ciências Sociais #81
11
Cláudio Valério Oliveira
habitação ou frequentação das mesmas o que, por seu turno, diminui a sua capacidade
em influenciar o contexto e garantir novas entradas. As repúblicas e o seu espírito
revolucionário passam a sentir-se desenquadrados da extensa moldura universitária, tal
como, no país, a morte do PREC 88 e a ausência de um governo de ideologia
declaradamente de esquerda, desenquadra o marxismo e apaga quase completamente
o anarquismo. As lutas académicas globais são quase nulas nesta década, sobretudo
na ponta final, em que a saída da intervenção do FMI em Portugal, aliada à entrada da
nação na União Europeia, em 1985 (ainda CEE, na altura), parecia gritar prosperidade
(e falta de necessidade de contestação ou revolução) por todo o lado. As casas passam
a ter como maior foco a sua própria sobrevivência, ameaçada quer pelo já referido
estado de degradação dos seus edifícios (quase inalterados desde antes da fundação
das mesmas, somando-se assim múltiplas décadas de intenso uso sem intervenções
de base) , quer pela preservação da sua história, cultura e “benesses” que daí advinham
e se assumiam como garantidas. É exemplo um episódio de Outubro de 1983, em que
a Rádio Livre Internacional, rádio pirata a funcionar na República Trunfé-Kopos, é
invadida pelas autoridades, o que motiva cerca de 50 estudantes a manifestarem-se na
Reitoria da UC contra a violação da tradição, legalmente pouco bem definida, das
instalações das repúblicas (consideradas parauniversitárias) não poderem ser violadas
sem expressa autorização da Reitoria (o que quase nunca acontecia, numa espécie de
mútuo pacto de não-agressão, vigente já antes do 25 de Abril). 89 A Rádio Livre
Internacional regressa e perdura como última rádio pirata da cidade por algum tempo
mais, sendo este episódio catalisador da nova lei que define legalmente as rádios, um
projeto de dois deputados de Coimbra de diferentes partidos (Pe e PeD). Mesmo com
capacidade reduzida de politização, as repúblicas continuarem a conseguir impactar a
política nacional, é um ponto curioso.
A maior vitória da década para as repúblicas acaba mesmo por ser ver o Estado
reconhecer o seu valor histórico e patrimonial, financiando obras de restauro e
introduzindo proteção legal 90 mesmo mediante a sua ausência de personalidade jurídica.
Isto acontece com a Lei nº 2/82 de 1982 91 que garantiu alguma segurança imobiliária,
pelo menos até 2012 e a nova lei do arrendamento.
Por outro lado, o associativismo promovido pelas direções da AAC torna-se
definitivamente na senda das festas académicas, que entretanto voltara a organizar,
sendo também um parceiro das políticas educacionais governamentativas, fomentada
pela sua índole de viveiro das jotas. Já o associativismo cultural (e também desportivo)
da AAC, nas secções, alarga-se e chega a muitos mais estudantes (e população, no
geral) com o teatro, o cinema, a fotografia, a música, o folclore e tantos outros meios de
expressão 92 . Muito do espírito revolucionário é canalizado para aqui, tornando-se o
associativismo pouco politizado. A contestação e a resistência, que a sociedade via
agora como desnecessária, perde assim o seu condão de intervenção direta, com a
ideologia a transacionar mais para a componente intelectual 93
Começa também um clima de desunião, sobretudo entre as repúblicas,
alavancada pela ausência de uma causa comum externa como tinha sido a luta contra
a ditadura. O associativismo e a politização, quer nas repúblicas quer nas outras
instâncias estudantis, para os estudantes sem cargos em direções, parecia definhar
88
PREC ou Processo Revolucionário em Curso designa o conjunto de atividades revolucionárias radicais
de esquerda que decorreram no país após a Revolução de Abril. Termina com um golpe militar fracassado
em Novembro de 1975 que vê o contragolpe instituir a política de democracia parlamentar constitucional
numa economia de mercado típica da social-democracia e do liberalismo.
89
Silva, Alexandra (2009). Movimento Estudantil e Resistência Cultural em Coimbra na Década de 1980
90
Frias, Aníbal (2003). Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógica das tradições e
dinâmicas identitárias
91
Silva, Maria e Madeira, Sérgio (2009). Repúblicas Universitárias de Coimbra
92
Silva, Alexandra (2009). Op. cit
93
Silva, Alexndra (2011). Do biénio revolucionário à luta “anti-propinas” – movimentos estudantis em
Portugal (1976-1992) in Revista Vírus #12
12
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
cada vez mais, sendo mesmo o feminismo, especialmente intenso nas repúblicas, uma
das poucas exceções. Era tempo de recolher os louros dos triunfos da década anterior,
de valorizar a cultura e a generalização do acesso ao ensino superior para todos os
estratos económicos, não de radicalizações e utopias comunistas às quais se se
associavam as repúblicas. O associativismo da comunidade decresce largamento. No
entanto, ele navega sempre a onda dos desafios comuns da sociedade e, com mais ou
menos impacto, ressurge sempre quando há uma óbvia necessidade para tal, uma nova
causa comum de (quase) todos os estudantes (como a opinião quanto à praxe não era).
Ora, o idealismo de prosperidade sem limites depara-se com a realidade de um país
ainda muito subdesenvolvido e pouco modernizado, que a simples saída de ditadura e
entrada na CEE não resolve, agravando-se até em alguns pontos sobretudo pela
abertura ao mercado estrangeiro mais eficiente. O final da década e início dos anos 90
é marcado por significativos constrangimentos financeiros94.
Neste contexto, um governo que queira equilibrar as suas contas, sobretudo um
de direita mais ligado à liberalização económica e desinvestimento público, vai,
naturalmente, tentar diminuir as despesas públicas que veja que a generalidade da
sociedade mais facilmente considera como descartáveis (e que não atingem toda a
população). A gratuitidade do ensino superior, entretanto tão massificado que se tinha
tornado, é então atacada pelo governo PeD de Cavaco eilva, em 1992 95, ele que se
tornou o primeiro chefe de executivo legislativo no pós-ditadura a governar por mais de
dois anos consecutivos (e fê-lo durante uma década, alicerçando uma nova política que
matou o espírito revolucionário de Abril em definitivo). Após 50 anos de uma propina
meramente simbólica de 1200 escudos anuais 96 (6,5 euros). Inicialmente, anunciado
como uma pequena contribuição, a realidade depara-se com a subida gigante a poder
chegar, para o valor máximo se as universidades assim desejassem optar, a 150 mil
escudos (750 euros), quando o salário mínimo nacional pouco passava dos 40 mil 97.
Ajustando aos descontos de impostos, a propina podia assim chegar a 4 salários
mínimos para pagar um ano de propinas, o que era só uma das várias despesas de um
estudante universitário, sobretudo para o mais deslocado. Famílias de rendimentos
baixos, sobretudo as monoparentais e/ou com mais que um filho na universidade
monoparentais foram especialmente atacadas. O impacto foi enorme, embora as
instituições se tenham decidido preferencialmente pelo valor mínimo, situado a cerca de
metade deste valor, até porque os estudantes se mobilizaram ativamente, quer em
manifestações, quer em greves, quer em ações políticas específicas como, por exemplo,
a promover a ausência de quórum para impedir a subida do valor mínimo (situação que
foi recorrente no eenado da UC98).
Em 2003, e com novo governo de direita, na coligação PeD/CDe (embora o
governo do Pe que aconteceu no meio, de António Guterres tenha validado a fixação
da propina), a propina é aumentada em 30%; o que motiva novas greves e
manifestações. Em 2004, acontece uma carga policial (e detenções) sobre estudantes
manifestantes no Pólo II da UC, momento que se tornou icónico, e cujas fotografias
marcam a memória coletiva das paredes de muitas repúblicas, por ter sido a primeira
vez, após o Estado Novo, em que aconteceu uma repressão direta das autoridades aos
estudantes. A política de propina, contrária ao princípio constitucional de escolaridade
gratuita, mantém-se, no entanto, inalterada, ultrapassando agora já os 1000 euros, aos
quais se somam taxas e emolumentos, sem limites definidos por lei (ao contrário da
94
Silva, Alexndra (2011). Do biénio revolucionário à luta “anti-propinas” – movimentos estudantis em
Portugal (1976-1992) in Revista Vírus #12
95
Ferreira, Hugo (2011). A contra-revolução no Ensino Superior in Revista Vírus #12
96
Vaz, António (2009). Acção Social Escolar na Universidade de Coimbra: evolução histórica e princípios
orientadores: 1980-2009
97
Salário Mínimo Nacional. Obtido de https://www.pordata.pt/Subtema/Portugal/Salários-11, consultado
a 2017, 27 de Dezembro
98
Ferreira, Hugo (2011). Op. cit
13
Cláudio Valério Oliveira
propina).
Embora esta realidade tenha feito ressurgir o associativismo académico em
questões da condição de estudante levando à queda de ministros e divergências no
poder político entre governo e presidência da república99 tenham sido vitórias, assim
como o estabelecimento da propina mínima durante alguns anos, nomeadamente na
UC, a inconstitucionalidade da propina não foi reconhecida judicialmente e ela tornou-
se uma realidade incontornável e, com o tempo passou a ser tabelada quase sempre
ao valor máximo, que, para algumas associações ultrapassa até o permitido por lei. 100
A questão está certamente ainda no discurso de praticamente todas as
associações académicas em 2017, sobretudo na AAC101, mas pouca luta efetiva tem
ocorrido nos últimos anos, com a repressão física de 2004 a marcar a irredutibilidade
das instâncias de poder na questão. A anormalidade torna-se normal com o avançar
tempo e já lá vão 25 anos da lei de um Cavaco eilva, na altura jovial. Em todo este
tempo, as repúblicas multiplicaram-se em manifestações, mais ou menos ligadas à AAC,
mas a própria incapacidade de gerar um plano de luta unido, em seio de CR, tal como
a diminuição global de repúblicas e repúblicos, não consegue levar a sucessos similares
aos das décadas de 1960 e 1970. A falta de solidariedade do resto da sociedade, por
seu turno, contribui também decisivamente para que esta luta seja facilmente engolida
pelos ditames de uma política capitalista. A massificação da condição de estuante, que
deixa de ser visto como um futuro senhor doutor para passar a ser um futuro precário,
contribui-lhe decisivamente.
As repúblicas não deixaram, contudo, de desenvolver ações de manifestação
contra a propina, como é exemplo o caso de encerramento da Porta Férrea na UC em
2011, a entrada para a mais antiga secção da velha universidade, ainda hoje o local
onde se situa a Reitoria e a Faculdade de Direito 102 . No entanto, à medida que se
massifica a perceção de que o ensino superior é algo necessário, até pelo crescente
entupir do mercado de trabalho, nem que o endividamento se torne a solução 103 104 , o
número de entradas na universidade não teve nenhum abaixamento significativo, pelo
que o problemas se torna menos óbvio. Já o abandono dos estudos é que aumentou105,
aliado também ao contexto atual financeiro na sequência da crise mundial de 2008, da
qual ainda se recupera. O abandono aumentou sobretudo depois da diminuição dos
apoios por bolsa de estudos que se fizeram sentir e que nem a inversão da austeridade
levada a cabo pelo atual governo de esquerda reverteu 106
De um modo geral, o tratamento governativo às universidades continuou, até
hoje, a pautar-se pelo ataque declarado à instituição pública, como é exemplo o Regime
99
Quatro leis e muita polémica entre os 1200 escudos e a propina actual (2003) in Jornal Público. Obtido
de https://www.publico.pt/2003/10/21/jornal/quatro-leis-e-muita-polemica-entre-os-1200-escudos-e-a-
propina-actual-206720, consultado a 2017, 27 de Dezembro.
100
Propinas estão a ser mal calculadas há 14 anos, queixam-se estudantes do Porto in Jornal Público (2017).
Obtido de https://www.publico.pt/2017/03/10/sociedade/noticia/propinas-estao-a-ser-mal-calculadas-ha-
14-anos-queixamse-estudantes-do-porto-1764680, consultado a 2017, 27 de Dezembro.
101
Alexandre Amado reflete sobre o que já foi feito e traça o que se propõe a fazer (2017) in Jornal A Cabra.
Obtido de http://www.acabra.pt/index.php/2017/10/27/alexandre-amado-reflete-ja-feito-traca-propoe,
consultado a 2017, 26 de Dezembro
102
Coimbra. Estudantes em protesto fecham porta férrea (2011) in TVI. Obtido de
http://www.tvi24.iol.pt/sociedade/conselho-das-republicas/coimbra-estudantes-em-protesto-fecham-
porta-ferrea, consultado a 2017, 27 de Dezembro.
103
Orghlan, Diana (2011). “Ou tens pais ricos ou vais ao banco” - Financiar consumos presentes com
rendimentos futuros
104
Roquette, Inês et al. (2014) Conhecimento financeiro de estudantes universitários na vertente do crédito
105
Álvares, Maria e Estêvão, Pedro (2013). A medição e intervenção do abandono escolar precoce. Desafios
na investigação de um objeto esquivo
106
Mais dinheiro para as universidades, menos dinheiro para bolsas (2017) in TVI. Obtido de
http://www.tvi24.iol.pt/economia/oe2018/mais-dinheiro-para-as-universidades-menos-dinheiro-para-
bolsas, consultado a 2017, 27 de Dezembro.
14
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
Jurídico das Instituições de Ensino euperior (RJIEe), diploma que entra na lei em
2007 107 e que prevê alterações fulcrais na organização das universidades como 108 a
introdução de “personalidades de reconhecido mérito externas à instituição” que
revertem a colegialidade para um Conselho Geral (CG), até aqui exclusivamente
composto por alunos, investigadores, docentes e não-docentes. O CG passa também a
ser o responsável único pela nomeação do Reitor. O diploma introduz ainda a
possibilidade da transformação do Ensino euperior Público em Fundação, onde as
decisões de gestão passam a ser decididas por um Conselho de Curadores, puramente
externo e nomeado pelo governo.
Este regime passa a ser o vigente na Universidade do Porto, logo em 2009,
seguido da Universidade de Aveiro e do IeCTE. Em 2015, soma-se a Universidade do
Minho e, no ano seguinte, pela da Nova de Lisboa. 109
As críticas ao RJIEe passam pela constatação de que introduz lógica
vocacionada puramente para o lucro e crescente influência do setor privado, algo
acentuado particularmente no regime fundacional que elimina a colegialidade e obriga
as universidades a obter 50% de financiamento por si mesma, o que se verifica já em
na UC, ainda não fundação. Esta lógica do lucro sente-se já há alguns anos em Coimbra,
quer pelos grandes protocolos com instituições bancárias que levam à existência de
balcões do eantander Totta nas instalações da universidade, quer pela pequena venda
de gelados feita por estudantes apoiados pelos eerviços de Ação eocial como
complemento à bolsa, onde a Universidade nem tem contrapartidas financeira,
compensando com redução no valor das propinas ou senhas de cantinas que o
estudante pode depois transacionar.
. Alavancado nos exemplos do resto do país e nos saudáveis resultados
financeiros da UC desde o crescimento do turismo com a atribuição de selo de
Património Mundial pela UNEeCO em 2013110 (assim como o aumento da propina de
estudantes estrangeiros fora de programas de mobilidade, não protegida por lei, para
sete vezes o valor da propina normal), a equipa do atual reitor João Gabriel eilva
começou a estudar, no ano passado, a passagem da Universidade de Coimbra ao
regime fundacional previsto pelo RJIEe. Ao longo do presente ano civil, o tema esteve
constantemente na ordem do dia, esforço que foi sobretudo conseguido pelo Conselho
de Repúblicas que, desde o primeiro momento 111 , se mostrou contra esta opção. A
unanimidade dentro do CR (embora nem todas as casas tenham participado ativamente
na luta) e as suas diversas ideologias políticas foi conseguida, provando mais uma vez
que, o associativismo politizado emerge nestas casas sempre que surge um assunto
que afeta não apenas a sua existência, mas também toda a comunidade académica. As
repúblicas reuniram em CRs a uma frequência que não se via há alguns anos, dos quais
nasceram múltiplos comunicados112, demonstrações nas fachadas 113 e manifestações,
com especial incidência na semana de 13 a 20 de Fevereiro114. Criou-se a Plataforma
107
Lei nº 62/2007 in Diário da República nº174(2007). Obtido de https://dre.pt/pesquisa/-
/search/640339/details/maximized, consultado a 2017, 27 de Dezembro
108
Ferreira, Hugo (2011). A contra-revolução no Ensino Superior in Revista Vírus #12
109
Mais quatro instituições de ensino devem passar a fundação (2017) in Jornal Público. Obtido de
http://www.ubi.pt/Ficheiros/Eventos/2017/10/7794/Regime%20fundacional%20Univ%20e%20Polit_Publ
ico-20171027.pdf, consultado a 2017, 27 de Dezembro
110
Universidade de Coimbra é património da humanidade (2013) in Jornal de Notícias. Obtido de
https://www.jn.pt/artes/interior/universidade-de-coimbra-e-patrimonio-da-humanidade-3284914.html,
consultado a 2017, 27 de Dezembro
111
Repúblicas de Coimbra contestam e debatem passagem da Universidade a fundação (2007) in RTP.
Obtido de https://www.rtp.pt/noticias/pais/republicas-de-coimbra-contestam-e-debatem-passagem-da-
universidade-a-fundacao_n979919, consultado a 2017, 27 de Dezembro
112
Consultar https://www.facebook.com/realrepublica.dobotaabaixo/posts/1742634669095896
113
Consultar https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/2017/01/23/universidade-de-coimbra-
republicas-contra-fundacao/
114
Coimbra: luta anti-fundação (2017) in Jornal O Mapa. Obtido de
15
Cláudio Valério Oliveira
CONCLUSÃO
16
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
120
Estanque, Elísio (2008). Jovens estudantes e repúblicos: Culturas estudantis e crises do associativismo
em Coimbra in Revista Crítica de Ciências Sociais #81
121
Aumento da renda leva ao encerramento da República 5 de Outubro em Coimbra (2013) in RTP. Obtido
de https://www.rtp.pt/noticias/pais/aumento-de-rendas-leva-ao-encerramento-da-republica-5-de-outubro-
em-coimbra_v689919, consultado a 2017, 28 de Dezembro
122
Estanque, Elísio (2008). Op. cit
17
Cláudio Valério Oliveira
até antes que este número desça, e fazê-lo para além de um mero questionário, de
forma a averiguar o grau atual de politização e associativismo nestas casas comunitárias
in loco. Não desprezo, claro, o valor estatístico de investigação sociológica com base
em questionários e que Estanque desempenhou com mestria. Os questionário poderiam
ser um complemento a esta sugestão de projeto. No entanto, as repúblicas continuam
a ser um local de fortes vivências cuja transposição para um quadro de sins/nãos ou de
muito/pouco relevante não consegue ir ao fundo de toda a realidade. O espírito livre e
comunitário, com autogestão diária fruto também da herança histórica de várias décadas,
ultrapassa estas fronteiras, e cria um panorama heterogéneo que apenas uma análise
com profundo cunho de experiência pessoal não consegue explicar.
A hipótese que confirmo, mediante a minha pesquisa quase só meramente
bibliográfica e com um pouco de conhecimento de causa, é mesmo a de que as
repúblicas continuam a ser local politizado e associativo. O resto da sociedade, é que
se tornou muito menos politizado.
18
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
Referências
19
Cláudio Valério Oliveira
#12
Orghlan, Diana (2011). “Ou tens pais ricos ou vais ao banco” - Financiar
consumos presentes com rendimentos futuros
Luís Reis Torgal: “Estado Novo teve origem fascista” (2009) in TVI. Obtido de
http://www.tvi24.iol.pt/politica/salazar/estado-novo-teve-origem-fascista, consultado a
2017, 22 de Dezembro.
20
Repúblicas de Coimbra e as Lutas Estudantis - do passado ao presente
Quatro leis e muita polémica entre os 1200 escudos e a propina actual (2003)
in Jornal Público. Obtido de https://www.publico.pt/2003/10/21/jornal/quatro-leis-e-
muita-polemica-entre-os-1200-escudos-e-a-propina-actual-206720, consultado a 2017,
27 de Dezembro.
Alexandre Amado reflete sobre o que já foi feito e traça o que se propõe a
fazer (2017) in Jornal A Cabra. Obtido de
http://www.acabra.pt/index.php/2017/10/27/alexandre-amado-reflete-ja-feito-traca-
propoe, consultado a 2017, 26 de Dezembro
21
Cláudio Valério Oliveira
22