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9105/2018 © ensaio no documentirio @ @ questo da narracéo em off 25th November 2015 © ensaio no documentario e a questao da narragao em off {http:/4,bp blogspot.com ‘9q6dp2qreVO/VeDM4FPekCIAAAAAAAADAI1237262FLS4/s1600/IMG_4028-22-10-13-edward-olive-locutor-ingles-locutora- inglesat200copyrightjpa] O ensaio no documentério ¢ a questo da narragao em off Consuelo Lins. Professora do Programa de Pés-Graduagio da escola de Comunicagdo da UFRJ. Resumo: A partir da tradigdo do ensaio no cinema documentério, e particularmente das obras dos cineastas franceses Chris Marker ¢ Agnés Varda, esse artigo discute as possibilidades estéticas do uso da narragdo em off nessa forma de cinema. Identifica na produgao documental brasileira das tltimas duas décadas a aboligéio desse recurso em favor de filmes baseados ementrevistas e a retomada recente da narragio em filmes ensaisticos, em que a subjetividade do diretor se faz presente. Trata- sede uma utilizagdo que desloca 0 uso elissico da locugao, ampliando 0 repert6rio estético do documentério brasileiro. ‘Se analisarmos a produgao brasileira de documentérios dos tiltimos anos identifieamos sem muita dificuldade a auséneia de um elemento estético que foi no entanto dominante nos filmes dessa forma de cinema até o final dos anos 80: « narragao em off, recurso inventado nos anos 30 pelo movimento liderado pelo documentarista John Grierson e que marcou definitivamente a trajetéria de filmes documentais. A presenca majoritéria, nas iiltimas duas décadas, de filmes feitos essencialmente de entrevistas ou conversas entre cineastas e personagens, j4 diagnosticada por J. C. Bernardet, decorreu, entre outros fatores, do desejo dos cineastas brasileiros de abolir a “voz de Deus”, a narragdo desencarnada onisciente e onipresente, que tudo vé e tudo sabe a respeito dos personagens,que acompanhou boa parte dos documentarios do Cinema Novo. Considerada uma intervencao excessiva na relagdo entre filme e espectador, dirigindo sentidos, fabricando interpretagées, a produgao documental no Brasil praticou uma recusa desse tipo de locuedo jé experimentada em outros paises nos anos 50 e 60, perfodo crucial néo apenas para 0 documentario mas para 0 cinema em geral. Os pioneiros do cinema direto americano iniciaram no final dos anos 50 umas das grandes mudancas no modo de filmar montar documentérios partindo de uma eritica radical ao que eles consideravam uma estética mareada pela heranga do rédio. Filmes que eram absolutamente compreensiveis sem a imagem e que eram ininteligiveis sem a locucdo. Eles apostaram nas possibilidades narrativas da imagem optando pelo sineronismo entre imagem e som de planos seqiiéncias que capturavam personagens em movimento, acontecimentos em processo. Isso s6 foi possivel porque eles batalharam também para modificar a tecnologia disponivel na época e atingir o que, para eles, era o ideal de uma equipe de filmagem: um cinegrafista e um técnico de som. Assim, puderam abolir 0 off em muitos filmes; em outros reduziram-no a intervencdes eurtas, apenas contextualizadoras, distantes das interpretagdes do documentrio cléssico. J& 0 documentério francés do pés-guerra nao abole a narragao, mas inventa modos distintos de utilizar o off, fazendo indiretamente uma critica 4 tradigao. O Cinema Direto lutou de forma mais consciente por um outro modo de filmar e narrar — havia uma forma dominante e Robert Drew, Richard Leacoch privilegiavam a visio e néo a audigao do espectador,e isso no interior mesmo da televisto. A experiéneia de Jean Rouch na década de 50 na Afriea foi mais intuitiva e feita pouco a pouco, a medida que se deparava com diferentes realidades. Nao havia um desejo de ir contra uma estética instituida; havia, sim, uma vontade furiosa de filmar 0 que via. Fez assim o que achava que tinha de ser feito, e o que era possivel fazer, com um equipamento precdrio e nao sincrénico. Precariedade que acabou contribuindo para 0 cineasta inventar, ao lado dos amigos africanos que encontrow no pereurso, uma obra radicalmente original, fazendo, entre outras coisas, um uso inédito da pés- sincronizagao, aproveitando a tradigdo oral dos africanos. Montou_ 0 filme sem som e sonorizou-o mais tarde com comentérios e didlogos improvisados pelos préprios personagens ao assistir as imagens, transformando um espaco sonore normaimente utilzado pela dublagem de um texto previamente escrito em um espago vivo, cheio de tensdes, nao programado, em que diferentes registros de fala interagem repletos de ironias, auto-criticas, D. A, Pennebaker ¢ Al Maysles queriam fazer filmes que _nipsufmontagemcinema.logspal.com.bri2012/07io-ensaio-no-documentario-e-questao-da.himl 15 9105/2018 © ensaio no documentirio @ @ questo da narracéo em off humor. A recusa “atrasada” da locugéio cldssica pelo documentirio brasileiro espanta diante de toda a circulagéo, contaminagio e trocas entre metodologias, estéticas e éticas de cinematografias de diferentes paises no periodo moderno do cinema. Os documentérios que surgem com o Cinema Novo so marcados, em muitos aspectos, por esses novos movimentos: deixam de lado o tripé, utilizam som direto, realizam filmagens sinerénicas e registros sem intervengo da equipe. Um filme como Opinio Piiliea (Arnaldo Jabor/1965), por exemplo, é repleto de seqiiéncias em que a camera acompanka as conversas dos personagens sem intervir; imagens e sons que estabeleceriam, em principio, uma relagao mais aberta com o espectador ndo fosse a narragiio que irrompe em muitos momentos para imprimir uma diregdio ao que vemos e owvimos no filme. Creio que a permanéneia desse tipo de locugiio deve-se d dimensao politica dos filmes, que deveriam ser claros em relagéo & mensagem que queriam transmitir, Os filmes documentais do Cinema Novo recusavam a ambigiiidade que as segiiéneias sinerénicas em plano-seqiiéncia podiam conter, favorecendo a manutengio do off elassico. Praticamente nao hé, no cinema brasileiro desse perfodo, usos diferenciados da narragao. 0 filme Cancer, de Glauber Rocha, filmado em 1968, é uma das poucas excegdes da década de 60, mas ele é, na verdade, montado em 1972. A intervengdo da voz contundente do diretor no inicio de Cancer inicia uma forma de manifestacao artistica que serd trabalhada nas obras posteriores de Glauber e especialmente em Di/Glauber (1977). Ensaio filmico e a retomada de imagens jé existentes: 0 cinema de Chris Marker Um outro caminko fabrieado pelo cinema francés dos anos 50 que nos interessa especialmente aqui é aquele que o erftico francés André Bazin define, ja em 1958, como ensatstico, ao falar especialmente do filme Lettre de Sibérie (1957), de Chris Marker. “Eu vas eserevo de um pats distante” diz Marker no inicio do filme, abrindo um campo de possibilidades para 0 documentério, que até entdo desconhecia, ou conkecia mal, inflexdes subjetivas, autobiogréficas, epistolares. “Estive em Cuba, € trowxe essas imagens desordenadas. Para classificé-las fiz esse filme-homenagem” diz Agnés Varda poucos anos depois em Saudagées Cubanos (1963), uma espécie de filme-carta enderecada aos eubanos e ao mundo por uma viajante seduzida por tudo que viu. Se hoje essas dimensées esto cada vez mais presentes na produgéio documental contempordnea, nos parece importante rever filmes que, as margens do cinema dominante, retiraram 0 documentério da paralisia em que ele se encontrava nos anos 50. 0 que diferencia Chris Marker e Agnés Varda, ambos atuantes desde os anos 50, dos diretores do Cinema Direto e do chamado Cinema Verdade de Jean Rouch é 0 fato deles manterem a narragdo em off, utitizando-a porém de modo ensaistico, essa forma hibrida filiada d literatura, sem regras nem definigdo possivel, mas com o trago especifico de misturar experiéneia de mundo, da vida e de si Lettre de Sibérie contém a primeira grande critica explicita aos poderes e limites da locugéo eldssica do documentério através de um comentario em que a subjetividade do cineasta esté absolutamente presente. Marker simula trés textos diferentes para a mesma seqiiéncia de imagens registradas na cidade de Irkutsk, na Sibéria. Um texto erftico ao comunismo, um favorével ao regime soviético e um terceiro mais descritivo, em tom mais neutro. Todos aderem sem problemas ao que vemos. Marker mostra, assim, ao espectador de que forma o que é dito no off orienta a percepedo do espectador. Sugere que é possivel “provar” intimeros aspectos da realidade utilizando essa metodologia € estética. Nessa seqiiéncia, 0 espectador experimenta de fato 0 quanto um certo tipo de narragio pode ser autoritério, obrigando a imagem a exprimir coisas que ela jamais exprimiria caso do houvesse a locucio. Portanto, é também por meio da palavra, da narragdo em off, que se dé 0 questionamento da relagao entre imagem e locugdo, diferindo da forma como essa problemat zacéio se deu no Cinema Direto e no Cinema Verdade. Além disso, a narragao é também fundamental em uma outra operagdo que Marker pratica desde cedo na sua trajet6ria, Trata- se da retomada e manipulagdo de imagens alheias, realizadas por outros, mas também de imagens de arquivos, misturadas Aquelas que ele mesmo captou. A trilha sonora imprime a esse material impuro uma distancia, desnaturalizando o que estamos vendo e revelando a “natureza” imagética da imagem. 0 filme transforma-se assim no lugar de conexdo entre todas elas e de ressondncia com os acontecimentos do mundo. Apropriar-se eriticamente de um material pré-existente como faz Marker é uma caracteristica essencial do ensaio tal como definiu Lukés: um género literdrio que reorganiza o que jé existe, pois o que importa do sao as coisas, mas a relagdo entre elas2. Ao mesmo tempo, converge com um movimento no campo das artes plisticas dos anos 70 que é 0 da emergéncia da apropriagio das imagens, “o fato de um artista retomar por conta propria imagens jé possuindo significagao e identidade estabelecidas, e dotd-las de uma significagao e identidade novas."3 Em Sans Solei (1982), um dos filmes mais embleméiticos de Chris Marker, a distancia que o comentério mantém em relagao as imagens é reflexiva, nostélgica, iranica. A vor tensiona a diferenga temporal entre a imagem no momento da captura e depois na montagem, entre presente, passado e futuro, entre visdo atual do espectador e comentério retrospective. F 0 filme onde Marker vai mais longe no questionamento das imagens pois a prépria presenca do filme diante do olhar do espectador é colocado em questao pela voz off, jd nos primeiros momentos: “A primeira imagem da qual ele me falou é a das trés eriangas em uma estrada na Islandia em 1965. Ble me dizia que era para ele a imagem da feticidade e também que ele havia tentado vérias _nipsufmontagemcinema.logspal.com.bri2012/07/o-ensaio-no-documentario-e-questao-da.himl 25 9105/2018 © ensaio no documentirio @ @ questo da narracéo em off vezes associa-la a outras imagens mas que ndo tinha dado certo.” Ora, é essa imagem que estamos vendo; que filme é esse entdo? E a narragdo continua: “Seré necessério que eu a coloque um dia sozinha no infeio de um filme, seguindo de uma tela negra. Se as pessoas nao virem a felicidade na imagem, ao menos verdo 0 negro." Portanto, a projecto desse filme futuro, impossivel, acaba de comecar. Mais a frente ele dird: “Na Islandia, coloquei a primeira peca de um filme imagindrio. Naquele verdo encontrei trés eriangas na estrada e um vuledo saiu do mar’. E ainda; “Claro que eu néo farei jamais esse filme. No entanto, eu coleciono cendrios, invento desvios, disponho minhas eriaturas favoritas, e dou a ele até um titulo, o de uma das ‘melodias de Moussorski justament: Sans soleil.” Assim, a voz compartilka da visto do espectador expressando uma presenga que recusa ds imagens, mas também como artificio porque ela também é passado, Em Sans soleil, a comunicagio em rede substitu a causalidade linear, criando pontes entre a disténcia geogréfica e a distancia temporal do que vemos na imagem. Uma concordéncia de tempos que reiine as imagens do Cabo Verde e da Guinée Bissau, do Japao e da Islandia. Na verdade, ndo se trata nem de tempo nem de espago mas de uma meméria onde tudo comunica, onde um othar africano pode lembrar um othar japonés. O filme leva o espectador a voltar do seu presente atual ao presente passado das imagens, e também ir em diregdo ao futuro, de onde ele as vé e de onde ele vai se lembrar. Nesse movimento, se tramam uma visdo compartilhada, uma meméria comum e se prolonga o devir das imagens. Ensaio filmico e humor: o cinema de Agnes Varda Se Chris Marker é 0 primeiro cineasta a fazer uma fiogdo quase inteiramente de fotografias - La Jetée (1962) - , Agnes Varda é quem, um ano depois, retoma esse mesmo dispositive formal deslocando-o para 0 campo do documentario. Convidada pelo Instituto Cubano da Arte e da Indiistria Cinematogréficas (ICAIC) para passar alguns meses em Cuba, Varda leva consigo duas méquinas fotogréficas ¢ 0 projeto de fazer um filme a partir das imagens eapturadas na ilhag. Das trés mil fotos obtidas, 1500 se transformam em Salut les cubains (1963). De imediato o que surpreende nessa pequena obra prima do documentario moderno é 0 modo como Varda extrai “cinema” de imagens paradas através de uma montagem que nos faz “ver” 0 movimento, ‘mastrando jé no inicio dos anos 60 0 quanto o cinema tinka a ganhar associando-se a outros procedimentos técnicos. Nas duas mais belas seqiiéncias do filme, o ritmo da trilha sonora e pequenas fusdes nas imagens restituem ao filme o que a imagem parada poderia Ihe tirar. Na primeira, Beni Moré danga e canta uma miisiea inspirada nos eantos camponeses. Na segunda, a cineasta Sarita Gomes e outros téenivos do ICAIC dangam o cha-cha-cha, £ como se essas seqiténcias tao cheias de graca contivessem, ainda intocados por tudo 0 que aconteceu depois, 0 potencial de transformagdo trazido pela revolucio cubana no inicio dos anos 60, a possibilidade de outras formas de vida e politica, a fabrieagdo de “um socatismo afro-cubano” (Varda) inédito, distante de todos os modelos corroidos da esquerda de entdo. Contudo, 0 que mais chama a atengio em Salut les cubains sao as intervengdes sonoras da propria Varda, as primeiras da sua trajet6ria filmica. Ela divide os comentarios em off nada convencionais do filme com Mickel Piccoli e pontua com certas frases a narragdio do ator. “Satido os revoluciondrios que enjoaram'” diz, quando Piccoli conta a travessia dos guerrilheiros do México & Cuba em um bareo que enfrentou todo tipo de riscos; mais a frente, retoma a palavra: “satido os revoluciondrios liricos”, € ainda: “satido os revolucionérios roménticos”. Nos eurtas iniciais da diretora - O saisons 6 chateaux (1957) e Du cété de la céte (1958) -, 0 comentério é realizado por outras pessoas e mantém caracteristicas bastante cldssieas, embora os textos ndo sejam didaticos e jé tenham um certo humor. L’Opéra-Mouffe (1958) é um pequeno musical sobre a rua Mouffetard sem narragao. Trata-se, segundo a diretora, do seu primeiro documentério subjetivo, mas o filme é bem mais sobre as pessoas que cireulam por essa rua de Paris do que sobre Varda propriamente. 0 filme tem como sub-titulo “caderno de anotagdes de uma mulher gravida em 1958”. Se hoje a narragio em off feita por uma mulher pode parecer opsdo banal, é fundamental lembrar que esse procedimento inexistia na tradigdio do cinema documental. Desde que 0 documentario tornou-se falado no final dos anos 20, desde que as imagens tornaram-se ilustragdes de um comentario, que a voz que narra é uma voz masculina. Em Salut les cubains Varda no apenas ousa falar mas expressa no que diz engajamento, afetividade e humor. Reivindica para si o filme, distanciando-se de qualquer objetividade, deixando claro que se trata de uma certa maneira de olhar 0 mundo em um determinado momento da histéria, Agnés Varda é quem, ao lado de Jean Rouch, traz para o documentério humor e leveza; ¢ ao lado de Rouch e Marker, paradoxos e contradigées, caracteristicas desprezadas por essa forma de cinema séria e com uma fungdo social a cumprir. Esteticamente, Varda estéi mais préxima do cinema de Marker na forma de realizar ensaios cinematogréficos. O ponto de partida pode ser uma ais em proceso revolucionério, um tio distante (Uncle Yanco - 1967), os comereiantes da sua rua, uma foto antiga (Ulysse -1982), as fotos de outros (Ydessa, les ours et ete ~ 2004), a atividade de catar (Les glaneurs et la glaneuse- 2000). Ao final de Daguerréotypes (1975), em que filma a lentidéo e a paciéncia do trabalho diério dos arteséios, comerciantes ¢ vendedores _npsifmontagemcinema.logspal.com.bri2012/07/o-ensaio-no-documentaro-e-questao-da.himl 35 9105/2018 © ensaio no documentirio @ @ questo da narracéo em off vizinhos a sua casa, a cineasta se pergunta se as imagens que realizou sto “uma reportagem, uma homenagem, um ensaio...".E conelui: “Em todo o caso é um filme que eu assino Agnés..”. Assim 6 0 tipo de articulagdo que Varda estabelece entre a sua subjetividade e as coisas e pessoas que filma. Ela constréi dispositives de filmagem para se liberar de suas histérias pessoas, dos seus dramas, dos seus segredos, e capturar o que surge do seu encontro com 0 mundo. Nao sio poucas as vezes que Varda insiste na idéia de que o que tke interessa sao os outros, e quando ela esté em questdo, quando vemos seus flhos, sua casa, suas méos, seu corpo, é sempre em rela¢do ao que ela ndo é, a um “fora” que the seduz e com condigdes de modifica-la por ser justamente exterior a ela. Essa é a forma que ela inventou para se desprender de si, transformando a si e sua maneira de ver 0 mundo, ‘Mesmo quando parte de algo que lhe é muito caro, como é 0 caso da foto tirada por ela em 1954, transformada em dispositive de filmagem para a realizagdo de Ulysse, em 1982. Ao invés de extrair “cinema” de muitas imagens fixas, como no filme de Cuba, Varda trabalha agora com apenas uma fotografia, investigando os elementos que compdem essa imagem imével: un homem nu de costas olhando o mar, uma crianga nua sentada na areia e uma cabra morta. Tal como uma arquedtoga, ela quer decifrar os diferentes mundos que essa foto abriga: “Serd que eu sei o que me passava pela cabeca hd 28 anos ao fazer essa foto?” Do que nos lembramos precisamente ao ver uma imagem do pasado Trata-se de um filme em que assistimos “a agio de tentar alguma coisa” e ao mesmo tempo “os resultados da tentativa propriamente dita’s. O homem, um egipcio, diretor de arte da revista Elle em 1982, recorda-se de pouca coisa. Nao da foto em questéo, mas da timider de posar nu, da desenvoltura de Varda na diresdio da cena, da erianga, que ndo andava, “Nao me lembro dessa pessoa” diz, ao ver sua prépria imagem. O garoto, Ulysses, livreiro em Paris, nao se lembra de nada, mesmo tendo feito na época um desenho a partir da fotografia. Para ele, a imagem éfiegdo. “E.a minha versdio dos fatos’ diz Varda, e ndo a dele. A cabra morta virou pé. “E 0 que era real nesse 9 de maio de 1954?", pergunta a cineasta: a derrota da Franca em Dien Bien Phu nas atualidades cinematogréficas, as novidades culturais, artsticas, da moda... Mas tudo o que diz, Varda adverte, “néo é de meméria’, foi obrigada a vasculhar nas atualidades cinematogréfiease nos jornats desse dia” Em outras palavras, nada do que vimos no filme (anedotas, interpretagées e histérias) aparece na imagem fotogrdfica. “A imagem esté ai, e isso é tudo”, constata Varda. O que ndo significa uma descrenga nostélgica da cineasta nas imagens como um todo, mas uma aceitagdo da natureza precdria, lacunar e enigmética de uma imagem. A imagem ndo é tudo mas esté longe de ser nada. O filme nos mostra com vigor essa verdade simples, que, apesar de todas as insuficiéncias, é possivel arrancar dela aprendizado, associando-a com outras imagens, outros depoimentos, outras pereepeses le mundo, em suma, trabalhando-a na montagem. Por isso Ulysse néo é, em absoluto, uma busca do tempo perdido, mas um filme voltado para o presente da foto fornada cinema e para o futuro de Varda cineasta. & menos a exploragio da meméria e do passado, que interuém como dispositivo de base, e mais a narrativa de um aprendizado do trabalho do tempo e das singularidades da imagem. O essencial portanto no é lembrar, mas aprender. “Aprender ~ nos diz Deleuze - é considerar uma matéria, um objeto, um ser como se emitissem signos a serem decifrados... Nao existe aprendiz que ndo seja “egipt6logo" de alguma coisa” 6. Os ensaios filmicos de Marker ¢ Varda nos ajudam a pensar e estender as possibilidades estéticas do documentério contempordneo e particularmente vislumbrar novos usos da narragio. Se 0 ensaio 6, como afirma Adorno, uma forma literdria que se revolta contra a obra maior e resiste d idéia de “obra-prima” que implica acabamento e totalidade, podemos pensar que é contra a maneira eléssica de se fazer documentério que os filmes ensaisticos se constituem. Sao filmes em que essa “forma” surge como méquina de pensamento, como lugar e meio de uma reflexiio sobre a imagem ¢ o cinema, que imprime rupturas, resgata continuidades, traduz experiéncias. Se olharmos a hist6ria do documentério moderno brasileiro desse ponto de vista, veremos que alguns filmes & margem da produgdo mais corrente do inicio dos anos 70 para eé so mareados por essa forma expressiva: Congo, de Arthur Omar, Di/Glauber, de Glauber Rocka, Itha das Flores, de Jorge Furtado, Mato Eles, de Sérgio Bianchi, Sdo obras em que a intervenodo dos eineastas na relagdo com os objetos é central e explicita; filmes realizados a partir de um material imagético heterogéneo, ¢ nas quais 0 que importa no sao as “coisas” propriamente, mas a relagdo entre elas. Mais recentemente, sdo os filmes ligados & chamada produgao subjetiva ou performética que adquirem mais claramente caracteristicas ensaisticas recuperam a narragdo em off para o documentirio, fabricando associagées inauditas do espaco sonoro do cinema com o espago visual. Seams (1997), de Karin Ainous e Santiago (2007), de Jodo Salles, so exemplares dessa forma de cinema no Brasil. Ainouz realiza nesse curta- metragem uma reflexdo sobre a cultura mackista brasileira através da prépria experiéneia de ter sido educado apenas por mulheres nordestinas, suas tias e a avé. Jodo Salles faz de um filme inicialmente sobre 0 mordomo de sua familia um exereicio de pensamento sobre sua pratica de filmar e sobre as relagdes entre cineasta personagem de uma maneira mais geral. Obras que complexificam a relagao entre a imagem eo som e ampliam o repert6rio estético do campo do documentério. Nao, a _nipsufmontagemcinema.logspal.com.bri2012/07/o-ensaio-no-documentario-e-questao-da.himl as 9105/2018 © ensaio na dacumentiro. ‘questa da narragdo em off narragdo em off ndo é, “em si", algo a ser evitado; na verdade, 0 que os ensaios filmicos nos mostram é que ndo hé normas, regras, elementos estéticos a serem evitados; ou para retomar, subvertendo, uma formula célebre de André Bazin: nao hé filmagens nem montagens proibidas. Apropriacdo, citagdo, deslocamentos de imagens pré-existentes, decupagem de materiais pré-formados, conversas, entrevistas, especialistas, personagens, animagdo, reconstituigdo, fiegtio: a “pertinéneia” desses recursos se verifica pela maneira como eles sao articulados nos filmes, pelos efeitos que as imagens e sons produzem, enfim, pela qualidade das obras. 2 Citado por Adorno em “O ensaio como forma’, in Notas de Literatura 1. Sao Paulo: Duas Cidades/Editora 34, p. 16. 3Arthur Danto, fart contemporain et la eldture de Uhistoire, in ¥. Ishagpour, Orson Welles. Paris: Pol, p. 757. 4 Varda jé era conhecida pela realizagdo do longa-metragem Cléo de 5 «7 ¢ foi recomendada ao ICATC por Chris Marker, que realizou Cuba si em 1960. 45 Dois aspectos seménticos do termo ensaio entre varios outros, como lembra Alain Ménil ,“Entre Utopie et Herésie: quelques remarques @ propos de la notion d'essai", in Liandrat-Guigues, Suzanne (dir.), in Liessai et le cinema. Champ Vallon, 2004, p. 95. 6G. Deleuze, Proust e os signos, Sao Paulo: Forense Universitéria, 2003, p. 4 Palavras-chave: ensaio filmieo, documentério, subjetividade. Postado ha 25th November 2015 por Regina Dias Visualizar comentarios Nenhum comentario ainda 6 Adicione um comentério como Jule de Oliveira _nipsufmontagemcinema.logspal.com.bri2012/07/o-ensaio-no-documentario-e-questao-da.himl 55

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