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Catarina Laranjeiro
Fevereiro de 2014
Introdução
Este trabalho foi impulsionado pela vontade de concretizar uma análise sobre o
pensamento de Amílcar Cabral, à luz do impacto que teve na emancipação dos
povos africanos. Amílcar foi um engenheiro agrónomo, que após uma análise
detalhada das diferentes peças que compunham a sociedade guineense,
desenvolveu uma estratégia de luta de libertação nacional que tomava a cultura
como recurso fundamental. Proponho-me aprofundar e repensar a vida e obra
daquele que foi um dos mais importantes pensadores africanos do século XX e cuja
morte prematura nos permite problematizar o presente e o passado da Guiné-
Bissau, enquanto projeto nacionalista africano. Assim, vai-se procurar realizar uma
análise crítica dos usos políticos da sua memória.
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Amílcar Cabral foi um dos fundadores do Partido Africano para a Independência da
Guiné-Bissau e Cabo-Verde (PAIGC) e a ele se deve a sua liderança ideológica,
militar e política. O aspecto carismático da liderança de Cabral, reside na sua
capacidade sem precedentes de combinar uma atividade política efetiva e
pragmática, com o respeito pelos direitos humanos e uma ambição de estabelecer
uma estrutura de Estado de carácter socialista (Lopes, 2005:85).
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A morte e a imagem de Amílcar Cabral
Sana N´Hada foi um dos jovens escolhidos por Amílcar Cabral para ir estudar
cinema em Cuba, com o intuito de filmar a luta de libertação do povo da Guiné-
Bissau. Anos mais tarde, graças a uma bolsa sueca, Sana N’Hada decide registar as
cerimónias fúnebres em honra de Amílcar Cabral em Bissau, durante a transladação
do corpo de Conacri, onde tinha sido assassinado a 20 de Janeiro de 1973, em
“condições incompletamente esclarecidas” (Neves, 2005:2). “Morre o Guevara de
África” foi o título do Financial Times no dia seguinte. Algumas mortes possuem uma
importância pública que é evidenciada pela repercussão mediática, principalmente
ao nível das imagens. No caso específico da morte de Amílcar Cabral, esta situação
é muito evidente, razão pela qual Sana N’Hada decidiu imortalizar a transladação do
corpo de Cabral para Bissau:
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filme. Queria dar tempo para que as pessoas pensassem no que
aconteceu.1
Esta é uma das fotografias presentes no filme e uma das mais conhecidas de
Amílcar Cabral. Apesar de não estar sozinho, o barco tem mais oito pessoas,
incluindo duas mulheres, este é claramente o retrato de um líder rebelde. Cabral
está de pé, com as mãos a segurar firmemente a fivela do cinto. Cabral, olha, sem
receio, a objectiva diretamente. Apesar de estar num contexto de guerrilha, não há
armas visíveis. Esta fotografia é assim, um ícone da determinação heroica dos
povos africanos que almejam alcançar a independência e soberania do seu território
(Medeiros, 2002: 99).
1 http://www.berlinda.org/pt/reportagens/filmes/a-luta-nao-acabou-ii/ 15/01/2014
2 https://www.google.pt/search?q=Am%C3%ADlcar+Cabral+num+barco&client=firefox-
a&hs=h1q&rls=org.mozilla:enUS:official&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ei=bKXbUpn8NsmN7Abq2YCYCg&ved=0CAcQ_
AUoAQ&biw=984&bih=465#q=Am%C3%ADlcar+Cabral+&rls=org.mozilla:en-
US:official&tbm=isch&facrc=_&imgdii=_&imgrc=H_tXzRNMZvU8jM%253A%3B_qt5MiSk53hFRM%3Bhttp%253A%252F
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2Fvoiceseducation.org%252Fcontent%252Familar-cabral-poet-revolutionary-politician-and-military-
strategist%3B378%3B253 15/01/2014
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O facto de Cabral nos surgir vivo através de fotografias e morto através da imagem
em movimento, introduz um elemento deveras perturbante: a fotografia, ao
“capturar” um tempo, sugere sempre e irremediavelmente um “passado”. A ilusão do
“presente”, que o cinema concebe tradicionalmente, está totalmente afastada da
génese da fotografia, uma vez que esta é sempre a memória de algo que já
aconteceu: “All photographs are memento mori. To take a photograph is to
participate in another person’s (or thing’s) mortality, vulnerability, mutability (Sontag,
1977:15). Por outro lado, ao eliminar o movimento, a ilusão do imediato, o tempo
presente parece não existir. Alessando Portelli reinventa o conceito de Ucronia
(utilizado na ficção científica), propondo-o para designar a realidade caso um
determinado evento do passado não tivesse acontecido (Portelli, 1991:99-116). É
para a ucronia que esta justaposição de Amílcar morto em movimento e vivo numa
imagem fixa nos remete: o que poderia ter acontecido caso Amílcar Cabral não
tivesse sido assassinado. Porque na memória colectiva do povo da Guiné-Bissau,
permanece o que me disse Xico Bá, dirigente do PAIGC quando o questionei sobre
a instabilidade política da Guiné-Bissau: “Se Cabral não tivesse morrido tudo teria
sido diferente” (2013).
Por esse motivo, houve uma tentativa notória, à semelhança de outros líderes
revolucionários da década de 60 e de 70, de imortalizar Amílcar Cabral através da
imagem. Na sua grande maioria (para não dizer exclusivamente) as imagens são de
jornalistas e ativistas estrangeiros, que queriam mostrar ao mundo que aquele
homem não era um terrorista, mas um líder que se movia pela justa emancipação
africana. Como ele próprio escreveu:
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Da questão colonial à luta pela independência
Ainda, a sua militância no movimento anticolonialista ficou marcada pelo facto de ter
fundado um partido que não se definia nacionalmente, uma vez que não lutava pela
independência de um território mas sim de dois (Neves, 2005:5). Assumindo como
argumento o carácter artificial das fronteiras coloniais, Cabral defendeu que unidade
entre os dois países permitiria uma melhor compreensão e análise sobre o sistema
colonial que os dominava e, paralelamente, a elaboração de estratégias coletivas de
luta contra o domínio português.
Mas a certa altura barraram o caminho duma vez, nem mais do que um
certo número de escolas primárias, nem mais do que um liceu, um liceu
apenas, que aliás Vieira Machado, antigo Ministro do Ultramar, queria
transformar em escola de pescadores e carpinteiros na altura em que eu
entrei para o liceu. Estive três meses sem frequentar o liceu, porque o
fecharam. Para eles, já bastava o que tinham feito, não era preciso mais.
A partir de então, só as escolas para pescadores e carpinteiros. A
população é que se levantou, protestou, e o liceu começou a funcionar
de novo (Cabral, 1976:139).
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Quando terminou os seus estudos liceais, Cabral conseguiu uma bolsa de estudo
para ir estudar para Lisboa, no Instituto Superior de Agronomia (ISA), onde se
licenciou em engenharia agrónoma. À semelhança de muitos intelectuais
nacionalistas africanos, é em Lisboa que se dá a descoberta de África por Cabral.
Por exemplo, é na capital portuguesa que Cabral frequenta a Casa dos Estudantes
do Império (CEI), criada pelo Estado Novo enquanto associação capaz de contribuir
para o fortalecimento da mentalidade imperial e do sentimento da portugalidade
entre os estudantes das colónias. Contudo, o convívio entre africanos de diferentes
colónias na metrópole despertou nestes uma consciência crítica sobre as
desigualdades sociais a que o sistema colonial os sujeitava e uma vontade de
descobrir e valorizar as culturas dos povos colonizados (Castelo, 2011:2). Neste
contexto, foi criado o Centro de Estudos Africanos, que tinha por objectivo estudar
as várias facetas da cultura africana, à semelhança do Movimento “Vamos Descobrir
Angola” da “Geração Mensagem”. Este facto é referido por Mário Pinto de Andrade
numa palestra proferida em Conacri, intitulada “A Geração de Cabral”:
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denunciar a situação colonial e de assumirem o compromisso e o engajamento na
luta pela independência.
Foi assim que os intelectuais africanos em Lisboa, nos quais Cabral se enquadrava,
começaram a estabelecer contacto com o ideário pan-africanista e com o movimento
de negritude (fundado em Paris por Aimé Césaire, Léon Damas e Léopold Sédar
Senghor). A partir de então, Cabral vai defender que é um privilégio dos intelectuais
africanos o acesso à literatura nacionalista africana e pan-africanista que estão se
começava a editar. Consequentemente, a luta pela dignidade da vida das massas
africanas devia ser o objectivo primordial de todas as atividades dos intelectuais
africanos, que no quadro colonial ocupavam o lugar dos “civilizados/assimilados” em
oposição aos indígenas. À semelhança da França, Portugal também implementou
uma política de assimilação com o intuito de destruir a tradição cultural das suas
colónias africanas, através da formação de uma elite privilegiada e europeizada que
colaborava com os colonizadores. Contudo, e dada a necessidade sentida por estes
intelectuais de inverter a situação e em virtude da sua situação um tanto ou quanto
privilegiada na sociedade colonial, quando comparada com a da grande maioria das
massas, caberia a estes “intelectuais civilizados” defender os compatriotas
considerados pela legislação portuguesa de “indígenas” (Sousa, 2011:154).
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O Socialista Indisciplinado
Cabral não era um líder nacionalista comum. Desafiando o marxismo em voga nas
décadas de 60 e 70, vai defender, na linha de Fanon, que a contradição
revolucionária principal era a que opunha os povos dominados aos dominadores,
mais do que o proletariado contra a burguesia dos países colonizadores: “O colono
criou o colonizado e é este que está fadado a destruí-lo, libertando-se e libertando-o”
(Fanon citado por Lopes 2005:86). Cabral não se revia na ideia de que a força
motora da História é a luta de classes, uma vez que a considera pouco pertinente e
com escassa validade para o contexto guineense para, por si só, mobilizar energias
revolucionárias (Neves, 2005:7). Assim, não parte da premissa que a História de um
povo apenas se inicia a partir do momento em que se desencadeia o fenômeno de
classe e consequentemente a luta de classes, reivindicando a identidade cultural
africana na História antes da dominação colonial.
De facto, a ideia de que “a luta de classes é a força motriz da História” exclui dela
todas as regiões do mundo e épocas nas quais o desenvolvimento de forças e
relações de produção não se tinham submetido à categoria de classes sociais.
Assim, a sua visão mais globalizante nasce da preocupação de incluir na História os
povos africanos, asiáticos e latino-americanos, que por estarem submetidos à
dominação colonial, o seu nível de produção não constituía um factor para a luta de
classes. Neste sentido, Cabral traz para a luta pela soberania dos povos a
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importante reflexão marxista de que o modo produção é a base e a força motriz do
processo histórico: “Nós não hesitamos em dizer que este factor na História de cada
grupo humano é o modo de produção (o nível de forças produtivas e o sistema de
propriedade) característico desse grupo” (1976:204).
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“A Luta de Libertação Nacional é acima de tudo um ato de cultura” (1974:35)
A cultura transforma-se numa arma privilegiada para a luta de libertação, uma vez
que existe uma relação de dependência e reciprocidade entre a luta de libertação
nacional e a cultura, enquanto ato de construção da História. A cultura é assim tida
simultaneamente como uma expressão e a personificação da História de um povo:
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produção. A cultura mergulha as suas raízes numa realidade física do
húmus ambiental na qual se desenvolve e reflete a natureza orgânica da
sociedade, o que será mais ou menos influenciado por factores externos.
A História permite-nos conhecer a natureza e a extensão dos
desequilíbrios e dos conflitos (económicos, políticos e sociais) que
caracterizam a evolução as sociedade; a cultura permite-nos conhecer
as sínteses dinâmicas que tem sido desenvolvidas e estabelecidas pela
consciência social para resolver esses conflitos em cada estágio da sua
evolução, na procura da sobrevivência e do progresso (1976:224).
Muito baseado no “retorno às fontes” propagado pela negritude, está no texto acima
citado muito presente a mística da "re-africanização dos espíritos" (Cabral,
1971:238). Contudo, Cabral salienta que é importante não subestimar a importância
dos contributos positivos do opressor e de outras culturas, ao mesmo tempo que
não se deve proceder a uma excessiva valorização de todos os elementos da
cultura ancestral africana, alertando para a necessidade de proceder a uma análise
crítica:
É importante estar consciente do valor das culturas africanas no quadro
da civilização universal, mas também comparar este valor com o das
outras culturas, não tendo em vista decidir a sua superioridade ou a sua
inferioridade, mas para determinar no quadro geral da luta pelo
progresso, qual o contributo que a cultura africana já deu e pode dar e
quais as contribuições que pode ou deve receber de outras partes
(1976:330).
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Cabral e a agricultura como metáfora
Quer a sociedade tradicional, quer a sociedade colonial foram estudados por Cabral,
peça a peça de forma a considerar como seriam usados na construção de uma
máquina inteiramente diferente e pronta a servir uma sociedade justa e igualitária
(Davidson,1975:11). Para este pensamento analítico em muito contribuiu a formação
em engenharia agrónoma de Cabral.
No início da década de 50, Cabral foi contratado enquanto funcionário colonial para
realizar um recenseamento rural na Guiné-Bissau. Através deste trabalho, teve a
possibilidade de contactar com agricultores, líderes comunitários, jovens e mulheres,
apercebendo-se das diferentes lógicas de pensamento e de ação de cada grupo
étnico, das suas potencialidades e fraquezas, face à dominação colonial. Por este
motivo, este recenseamento viria a servir muito mais aos interesses do PAIGC do
que aos do governo colonial, uma vez que este contacto foi decisivo para o
planeamento da atuação da guerrilha. O historiador José Neves chamou este
período “um tempo de aprendizagem, conhecimento e ação a partir de baixo” no
qual Cabral ultrapassa os critérios exigidos pelo inquérito e leva a cabo uma
“etnografia espontânea” “que vai implicar em todos os seus escritos daí em diante,
analisando a estrutura social da Guiné, a sua organização económica e social, os
universos religiosos, as variedades étnicas e as hierarquias de poder” (Neves,
2005:5). Não deixa de ser paradoxal que a partir de um quadro ultramarino imperial
foram internamente observadas e identificadas as peças que compõem a Guiné-
Bissau, permitindo a produção de uma obra que viria a ser fundamental para
desenhar a luta armada.
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agricultura. Tomando a monocultura como uma metáfora da ditadura em Portugal,
Cabral argumenta que à semelhança do amendoim, o regime colonial não permite a
cultura de outras culturas, ao enfatizar que o amendoim não é fascista, mas quem
determina a sua cultura talvez o seja. Consequentemente, preconiza a melhoria das
condições de vida das populações através da melhoria consensual da agricultura, na
base da diversificação das culturas e aumento do rendimento.
Aqui não se pode deixar de observar que a práxis de Cabral, na área rural e na
cidade, estava em sintonia com o papel do intelectual colonizado, preconizado por
Franz Fanon, para quem o “intelectual colonizado que quer fazer uma obra autêntica
deve saber que a verdade nacional é, primeiramente, a realidade nacional”
(2005:239).
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Fig. 4- Reunião com a população.
Fotografia do espólio pessoal de Teodora Gomes.
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O Programa Maior e o Programa Menor do PAIGC
Ao longo das entrevistas que fiz no âmbito da minha tese de mestrado, uma das
perguntas que fazia parte do meu guião de entrevista era: “Aonde estava na
Proclamação da Independência?” E logo os meus entrevistados me corrigiam: “Você
quer dizer, na Proclamação do Estado?” De facto, são duas perguntas que
aparentemente podem ser iguais, mas apontam para caminhos diferentes, como me
explicou Manecas dos Santos:
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Os dois programas encontravam-se extremamente interligados, pois a organização
das zonas libertadas era a condição necessária para garantir o sucesso da luta
armada, razão pela qual Cabral defendia que as características fundamentais para a
libertação são:
Argumentava assim, que os combatentes não eram militares, mas sim “militantes
armados”, considerando que o recurso às armas era apenas um momento
circunstancial e que o mais importante era o desenvolvimento integral do país.
Salienta-se que Cabral sempre se propôs a negociar com o governo colonial
português e só apelou o uso à violência quando se apercebeu que não poderia
deixar que a violência da ditadura colonial e dos seus exércitos governasse os seus
próprios projetos. Como ele próprio repetiu e foi citado inúmeras vezes:
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quarto era responsável pelo armamento e pelo alojamento dos guerrilheiros nas
tabancas; finalmente, o quinto membro era responsável pelos registos e pela
contabilidade (Chabal, 2002: 105).
Assim, no processo pela luta de libertação nacional foi dado um especial enfoque à
educação, organizando-se escolas nas zonas libertadas. Cabia às escolas ensinar a
população a ler, a escrever, num processo paralelo com a incorporação dos valores
da luta do PAIGC. Segundo Mário Pinto de Andrade:
A educação era assim concebida como uma arma política de primordial importância.
Para tal, em 1960, o PAIGC criou em Conacri a Escola-Piloto, que apostava na
formação de quadros políticos e que, simultaneamente, dava cursos elementares de
instrução primária. Em 1965, é fundado o Instituto Amizade, cuja finalidade era dar
acolhimento, proteção e educação às crianças vítimas da guerra. Os objectivos
destas duas escolas era a formação de quadros, capazes de construir um país de
paz e progresso. Paralelamente, e graças à solidariedade internacional dos países
não-alinhados, foram muitos os quadros que se formaram em Cuba, ex-Jugoslávia e
ex-União Soviética. Na fotografia abaixo podemos ver alunos de uma escola de
formação para enfermeiros em Kiev, URSS.
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Fig. 6- Alunas de Enfermagem em Kiev. Fotografia do espólio pessoal de Teodora Gomes.
Ainda, foi dado uma especial importância à justiça, através da criação de tribunais
do povo, compostos por três moradores e onde o professor tinha a função de
funcionário administrativo do tribunal; e à saúde, através da criação de nove
hospitais (cinco no sul, dois no norte e dois no leste) e de postos sanitários (que
passaram de 28 em 1968 para 117 em 1971). De igual relevância, foi a criação de
armazéns do povo, que tinha por objectivo a comercialização de produtos de uma
forma justa e livre de taxas coloniais. Esta nova forma de comércio firmava a certeza
de Cabral de que uma “guerra económica” com Portugal seria um determinante
estratégico da luta (Chabal, 2002: 114-124).
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no âmbito das relações internacionais, dentro e fora do continente africano, sendo
as suas capacidades diplomáticas reconhecidas como um dos grandes
catalisadores da luta pela emancipação dos povos que representava. Ele garantiu a
ligação entre diferentes lideranças políticas africanas, sendo muito atuante ao nível
da ONU, das Conferências Afro-Asiáticas, de Belgrado e na Tricontinental de
Havana. Destaca-se ainda que Cabral, juntamente com Eduardo Mondlane
(Moçambique) e Agostinho Neto (Angola), foi recebido pelo Papa Paulo VI, o que
fracturou a imagem de Portugal no mundo e em muito contribuiu para o
reconhecimento do direitos dos povos africanos das então colónias portuguesas à
sua emancipação.
A ONU fez uma visita porque quando PAIGC dizia que controlava 2/3 do
território o mundo não queria acreditar, mas depois dessa visita do
PAIGC, em loco...a ONU constatou efetivamente que o PAIGC
controlava boa parte do território nacional. Foi uma vitória para o PAIGC
(Joseph Turpin, 2013).
Fig. 7 - Reunião com o comité de descolonização da ONU. Fotografia gentilmente cedida por Aurora
Almada.
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Conclusão: Cabral Ka Murí
Você não pode ter o apoio da população, se não tiver hospitais, escolas,
abastecimentos...essas coisas todas...se não tiver o apoio da população,
não pode fazer a guerra porque não tem homens...as forças armadas do
PAIGC eram constituídas a 100% por voluntários...não havia gente que
estava lá obrigada, nem podia ser...sem uma diplomacia forte que foi
conseguida, sobretudo por Cabral, nós não íamos conseguir os meios
necessários para a luta, meios financeiros, meios logísticos, etc...não se
pode dissociar uma coisa da outra. E eu penso que a eficiência da luta
deveu-se a todas essas coisas bem feitas (Manecas dos Santos, 2013).
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facções e partidos, social-democratas, marxistas, neocolonialistas, reclamam a
memória de Amílcar Cabral, sendo esta luta pela memória uma forma de luta política
que frequentemente se transforma em fonte de abusos. Como me disse um antigo
combatente que encontrei num antigo aquartelamento do PAIGC no norte da Guiné-
Bissau:
Males que fizeram aqui, nenhum dia nos vão esclarecer dos males que
fizeram aqui...falam só no nome de Cabral...Cabral, Cabral, Cabral, mas
Cabral já morreu, mataram-no, porque é que o mataram...se é verdade
que todos o queriam, porque é que o mataram? E agora enganam-nos
com o nome de Cabral (Mota, 2013).
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difíceis de resolver, que remeteram para segundo plano os discursos defendidos
pelos movimentos pan-africanistas. Coube à elite intelectual e assimilada tomar os
destino da nova nação, e Aquino Ribeiro descreve-a deste modo:
Esta elite foi formada na sua maioria pela necessidade do colonialismo criar quadros
africanos para melhorar a eficácia da atividade exploradora e embora tenha no
decorrer do seu percurso tomado para si a necessidade e a responsabilidade de
representar e defender as aspirações emancipatórias das massas africanas
subjugadas ao imperialismo, após a independência levaram a cabo o único objectivo
que lhes restou: criar um Estado-Nação e governá-lo, replicando o que já existia
(Gomes, 2013:135). Confrontados com a tensão criada entre a “utopia revolucionária
em que haviam fundado as suas justificações para a luta” e “realidade da herança
colonial”, aceitaram “reescrever a história das colónias que queriam promover as
nações de acordo com as fronteiras definidas pelos Europeus na conferência de
Berlim, o ato fundador do colonialismo (...)” (ibidem).
Cabral Ka muri (que significa Cabral não morreu) é hoje um ditado popular na
Guiné-Bissau, ao qual se recorre quando se pretende invocar o espírito da luta de
libertação e o sacrífico e unidade que esta memória faz ressurgir. Apesar da
instabilidade política da Guiné-Bissau (há uma média de um golpe de Estado por
ano desde 1980) e da memória da guerra civil de 1998-1999, Cabral representa
ainda hoje a imagem e a esperança de uma possível estabilidade (Mendy,
2005:759). Contudo, todos escritos de Cabral foram catalogados e remetidos para a
época dos “utópicos” das décadas de sessenta e setenta. E aí permanecem. Como
nos sugere Boaventura de Sousa Santos:
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Enzo Traverso (2012) distingue entre “memórias fortes” e “memórias fracas”, sendo
as primeiras as memórias celebradas e validadas pelo Estado e as segundas as
memórias subalternas e sem visibilidade no espaço público. Se por um lado, a figura
de Cabral continua hoje a ser muito celebrada, dado que são inúmeras as
publicações, teses, biografias, simpósios, etc. que sobre ele se têm realizado; a
reinterpretação do que ele escreveu à luz da África contemporânea está
completamente afastada do debate público. Arriscaria a dizer que a celebração da
sua memória contribui para o seu esquecimento, uma vez que não promove e até
invisibiliza a controvérsia que existe entre o que Cabral defendeu que eram os
princípios orientadores da luta e o que o que se concretizou no pós-independência.
Mais especificamente, celebrar os contributos teóricos e práticos que Cabral trouxe
à luta de libertação nacional na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, assim como à luta
dos povos africanos em geral, permite-nos esquecer que os seus ideais não foram
cumpridos, veiculando a ideia de que a construção de um Estado-Nação que tomou
como referencia o Norte desenvolvido era o único projeto possível de se concretizar.
Tudo isto nos remete para a Ucronia (Portelli): como seria a Guiné se a ideologia de
Cabral se tivesse cumprido? E por esse motivo, a reinterpretação da sua obra, mais
do que um debate sobre o passado da luta de libertação nacional, possibilitaria um
debate sobre as relações pós-coloniais hoje; isto é, não seria tanto “sobre o passado
como foi, mas sobre o passado como é (significa/importa) para o presente”
(Meneses e Gomes: 2011:5).
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Referências Bibliográficas
Cabral, Amílcar (1977). “Unidade e Luta”. Vol. II. Lisboa: Seara Nova.
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Italia.
Fontes Orais:
Espólios Fotográficos:
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