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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Syntia Pereira Alves

Teatro de García Lorca:


a arte que se levanta da vida

Doutorado em Ciências Sociais

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Doutor em Ciências Sociais sob
orientação do Prof. Dr. Miguel Wady Chaia.

São Paulo
2011
Banca Examinadora
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A mi abuela Antonia Espinosa
por culpa de la sangre
AGRADECIMENTOS

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo


apoio financeiro ao trabalho no período de pesquisa no Brasil, e à Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CAPES) pelo apoio financiamento no
período de estudo na Espanha.

Agradeço sinceramente,

ao amigo Miguel Chaia pela atenção, carinho, paciência e por acreditar que isso tudo
não era apenas uma ―lorcura‖;

ao prof. José Luis Dader e à Universidad Complutense de Madrid por me acolherem em


terras espanholas com tanta generosidade e liberdade;

à querida Vera Chaia pelo apoio constante, aos companheiros do NEAMP e aos sempre
presentes Rose, Rafael, Cristina, Marcelo (merci!), amigos na arte, vida e política. E
em especial à Fhoutine e ao Telmo, por todos os ―bons drink‖.

aos professores do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-


SP e à Kátia (Programa de pós em Ciências Sociais) pelas incontáveis ajudas no
vasto mundo da burocracia.

à prof. Silvana Tótora, minha primeira mestra de Ciências Políticas;

à professora Ma de Lourdes Ortiz G. Baldan pelas sensíveis e pertinentes contribuições,


tornando a qualificação uma das etapas mais frutíferas do processo;

à prof. Valéria de Marco pela receptividade e colaboração essencial na fase final;

um especial agradecimento ao querido Edson Passetti – você fez a diferença desde o


começo!

à generosidade cúmplice de Ian Gibson – gracias por las charlas, por la experiencia
teatral en La casa de Bernarda Alba y por comprenderme por extranjera lorquiana!

à paciência das arquivistas da Fundação Federico García Lorca de Madri e da Inma do


Centro de Estudios Lorquianos de Fuente Vaquero, chaves importantes das portas
deste trabalho.
Agradeço carinhosamente

aos meus pais, Darci e João, que mais uma vez apoiaram minhas decisões; e aos meus
irmãos Marcelo (‗gracias‘ pelo esforço final!) e Geiza por estarem, cada um a sua
maneira, tão perto e tão longe.

à Mameto Oluanganji — Ivete Previtalli Miranda — pela companhia nas caminhadas


deste e de outros mundos; e aos meus irmãos de santo, doces pedaços da minha outra
―realidade‖.

Agradeço vivamente

às almas flamencas – professores e alunos do Raies e da Espanha – por colocar a


Andaluzia em meu corpo, em especial às maestras Carol Corrales (ES); Deborah
Nefusi, Marilia Cartel e Carol da Mata (Raies).

àqueles que seguiram me amando, mesmo com minhas ausências, crises, choros e
lamúrias, os muito amigos Samira Saleh, Jorge Leite Júnior, Fernanda Levy, Malu
Andrade, Gustavo Gomes, Jayr Pimentel, Joana Marques (amiga e consultora) e
Leandro Siqueira. Obrigada por estarem sempre por perto. Em especial à Ana
Casarin (gracias por la paciencia y por el español) e à Rosana Portela pela dedicação
(como professora) e pela alegria (como amiga);

aos companheiros de domingos no Inrad, fundamentais na (dura) fase final, em especial


Sintia Tasca e Pedro Pan (obrigada pelos 30 dias);

a mis amores de España, amistades que hicieron de mi vida ibérica una de las más bellas
de mi existencia: Larissa Pelucio, Rodrigo Rosa, Jéssica, Rocio, Clara y sus padres.
Qué bien que os conocí y os reconocí!

Agradecimento especial ao onipresente Iago, cigano-shakespeareano.

E agradeço àqueles que, silenciosamente, com uma única palavra sussurrada, lançaram-
me nesse caminho sem volta e sem rumo que é amar Federico – a poesia não quer
adeptos, quer amantes!
O teatro é a poesia que se levanta do livro e se faz humana.
Federico García Lorca
Resumo

Federico García Lorca foi um agente político? Sobre este questionamento se


desenvolve a presente pesquisa. Porém, para responder a essa pergunta, é fundamental
dividi-la em duas, voltando um olhar para quem foi García Lorca — levando em
consideração sua vida e obra — e outro olhar para as diversas possibilidades de atuação
da política. A política não está apenas no âmbito institucional, mas permeia as relações
dos indivíduos e sociedades, se faz presente nos âmbitos público e privado, alcançando
e sendo alcançada pela arte.
Artista trágico, Federico García Lorca é o foco central deste estudo. Para
buscar a política em Lorca, é fundamental entender a relação de sua arte com a
sociedade e a vida do escritor. Para tanto, a investigação parte de uma análise externa e
uma análise interna a obra de Lorca. A análise externa mapeia a Espanha que antecede a
Guerra Civil Espanhola, tendo em vista a importância desta época que se encontra
refletida na obra de Lorca. Para análise interna foram escolhidas as obras teatrais Yerma
e A casa de Bernarda Alba, sobre as quais é feita uma análise das relações das
personagens entre si e os códigos sociais que essas obras expõem. Além disso, são
usadas para dialogar com as obras teatrais algumas conferências e entrevistas do autor,
com a finalidade de entender sua relação com a arte e com a sociedade.
A arte de García Lorca, entoada pelo flamenco, dialogou com sua sociedade
e recebeu resposta desta: seu fuzilamento. Mas Lorca não coube em seu tempo e espaço
e transborda para os dias de hoje, seja por sua arte, profundamente inquietante, seja por
sua morte, até hoje envolta em mistérios.

Palavras-chave: Federico García Lorca; Espanha; Guerra Civil Espanhola; arte; política;
tragédia.
Abstract

Was Federico García Lorca a political agent? This is the question that
frames the research here presented. However, this question must be split in two in order
to be properly answered: first, who was García Lorca, taking into account his life and
work; second, the several possibilities for political action. Politics is not restricted to the
institutional realm, but permeates individual and societal relationships, being present
both in public and private affairs, touching and being touched by art.
A tragic artist, Federico García Lorca constitutes the main focus of this
research. To find the politics in Lorca, it is essential to understand the relationship
between his art and his life and society. With that in mind, the investigation starts from
both external and internal analyses of Lorca's works. The external analysis explores
Spain before its Civil War, given the importance of the period which is mirrored in
Lorca's works. For internal analysis, the theatrical pieces Yerma and The House of
Bernarda Alba were analyzed to investigate both the relationships among characters,
and the social conventions shown in these works. Furthermore, a number of conferences
and interviews with the author are employed in a dialogue with the theatrical works,
with the goal of understanding his relationships with art and society.
García Lorca's art, voiced by flamenco, communicated with his society and
received an answer: death by firing squad. Lorca wasn't limited to his own time and
space, but survives today, be it through his deeply disquieting art, or be it through his
still mystery-shrouded death.

Keywords: Federico García Lorca; Spain; Spanish Civil War; art; politics; tragedy
Resumen

¿Federico García Lorca fue un agente político? Sobre esta cuestión se


desarrolla la presente investigación. Pero para contestar a esa pregunta es fundamental
dividirla en dos partes: una que indague sobre quién fue García Lorca — teniendo en
cuenta su vida y obra — y otra que busque las distintas posibilidades de la actuación de
la política. La política no está solamente en el ámbito institucional, también está en las
relaciones de los individuos y sociedades, se hace presente en los ámbitos públicos y
privados, alcanzando y siendo alcanzada por el arte.
Artista trágico, Federico García Lorca es el foco central de este estudio.
Para buscar la política en Lorca es fundamental entender la relación de su arte con la
sociedad y la vida del autor. Por lo tanto, la investigación parte de un análisis externo y
otro interno de la obra de Lorca. El análisis externo dibuja la España que antecede a la
Guerra Civil Española, poniendo atención en la época por ella estar reflejada en la obra
de Lorca. Para el análisis interno fueron elegidas las obras teatrales Yerma y La casa de
Bernarda Alba, indagando sobre las relaciones de los personajes entre ellos y los
códigos sociales que esas obras exponen. Además, son usadas para dialogar con las
obras teatrales algunas conferencias y entrevistas del autor, con la finalidad de entender
su relación con el arte y con la sociedad.
El arte de García Lorca, entonada por el flamenco, interpeló a su sociedad y
recibió respuesta de ésta: su fusilamiento. Pero Lorca no se quedó sólo en su tiempo y
espacio. Transborda para los días de hoy, sea por su arte, profundamente inquietante,
sea por su muerte, hasta hoy rodeada de misterios.

Palabras clave: Federico García Lorca; España; Guerra Civil Española; arte; política;
tragédia.
F.G. Lorca, anos 20, arquivo Fundação Federico García Lorca
Sumário

Apresentação 12

Capítulo 1 29
Laberintos para llegar a España 35
Reinados e tiranias 42
Geração de 98 49
Múltiplas repúblicas da Espanha 65
A última cruzada do ocidente 75
A guerra sem fim

Capítulo 2
A política na arte e na vida 81
Política e morte 85
Com a palavra F. García Lorca 92
Política e arte crítica 103

Capítulo 3
A tragédia segundo García Lorca 117
Em direção à tragédia 118
La Barraca da Espanha 127
Dos clássicos ao trágico 134
Tríplice encontro trágico: gregos, Shakespeare e Lorca 136
O trágico andaluz 145

Capítulo 4
A fértil Yerma e a esterilidade hispânica 156
Sob os (infinitos) olhos dos outros 159
Ser Yerma 164
Fora de Yerma, dentro dos outros 169
Entre a cruz e o caldeirão 175
A embriaguez do ―Cristo del Paño‖ 180
Yerma, Lorca e Espanha 189

Capítulo 5
O cárcere de Bernarda Alba 199
Aprisionamentos 205
À beira de ataques de nervos 210
A tirania é feminina 230
Espanha: casa de outras Bernardas 244

Considerações Finais: Atualização permanente: Lorca na Espanha 254

Bibliografia 288

Anexo 1 294
Anexo 2 297
Anexo 3 302
Anexo 4 318

11
Apresentação

Teatro e política há muito caminham juntos; já confluíram em outros tempos

e lugares, e a tragédia grega é uma das mais antigas e explícitas manifestações dessa

relação. Em períodos históricos de formações sociais, momentos de valorização

coletiva e individual, ou em contextos de guerras e revoluções, o homem encontrou na

arte uma maneira de manifestação, estética e inquietante, da vida e da política. Sob

diferentes condições, o artista encontra espaço para expressar poeticamente sua

sociedade, permitindo que sua obra manifeste, de maneira mais ou menos explícita, sua

sociedade e as situações encontradas nela. Seja por meio de ações artísticas individuais

ou coletivas, sob a orientação de escolas e tendências ou em movimentos vanguardas, a

arte pode ser uma forma ou uma ferramenta de fazer política; e a política muitas vezes

foi tema para manifestações artísticas.

Azoín questionou: ―com que direito se proclama a arte pela arte quando em

todas as esferas do pensamento se trabalha algo. Com que direito se vive isolado da

grande corrente revolucionária quando a arte é o principal fator da revolução‖1. Política

e arte, ao mesmo tempo em que são áreas que se diferenciam essencialmente, também

se entrecruzam ao atingirem as mais distintas dimensões da atividade humana, suprindo

necessidades, impulsionadas pela invenção do novo. A arte pode se opor à política ou

prestar-se a ela; a política pode inspirar ou dificultar a arte; a arte pode imprimir maior

potencialidade para o indivíduo seguir sua existência. Neste sentido, o teatro, cenário

1
José Augusto Trinidad Martínez Ruiz, mais conhecido como “Azoín”, escritor espanhol, citado por
J. Ruiz Martínez, “Cronica”, El país, 30/12/1986, in Fox, E.I, La crisis intelectual del 98, Madrid, 1976.

12
possível para o encontro de diversas artes, foi escolhido muitas vezes como veículo de

ideias, e assim, de fecundas análises políticas.

O teatro se torna uma manifestação política no momento em que toma

partido, expressa ideologias ou defende, implícita ou explicitamente, alguns interesses.

O teatro é, em si, uma arte social, pois precisa do grupo — do público — para pode se

realizar. Nesse sentido, os textos de dramaturgia podem servir como interessantes

manifestações de épocas e situações sociais, abrindo espaço para análises que

contemplem tanto o sentido estético da obra, quanto ideologias e questionamentos do

artista.

Ninguém te conhece. Não. Porém eu te canto.


Eu canto sem tardança teu perfil e tua graça.
A madureza insigne do teu conhecimento.
A tua apetência de morte e o gosto de sua boca.
A tua tristeza que teve a tua valente alegria. (―Alma ausente‖, in LORCA,
2008, p. 521)

Federico García Lorca é um exemplo de artista que usou a cruel beleza da

arte para falar de sua sociedade e de sua época. Com sua obra, ultrapassou os limites de

seu país, e conheceu o Novo Mundo — Estados Unidos, Cuba e América do Sul — em

vivências das quais não saiu incólume. Federico se impressionou com a beleza e o

sofrimento vivido por diferentes povos e culturas, situações que, de alguma maneira, lhe

eram familiares. O poeta foi escolhido como objeto deste estudo, que pretende

direcionar o olhar para as possibilidades de encontro entre arte, vida e política.

Um poeta. Federico García Lorca falou do humano com suas angústias e

suas belezas; da natureza, sua generosidade e crueldade; da sociedade na qual viveu e

que não o suportou. Andaluzia. Na maré alta de oito séculos, muçulmanos ergueram

cidades aristocráticas com muralhas e fronteiras de sensualidade e opulência, cenário

perfeito para o surgimento de figuras amantes de poesia e música, luz e sombra. Sem

dúvida, Lorca é um poeta andaluz. Andaluzia, império árabe sem par na terra cristã, tem

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em Granada a representante mais viva do espírito meio cristão, meio mouro que está

presente em toda a Espanha. Andaluz e granadino, Federico foi, acima de tudo, uma

personalidade dionisíaca que teve como musa a vida e seu duplo, a morte.

Músico, poeta, dramaturgo e desenhista, Lorca não foi apenas um artista,

mas um homem que lançou seu olhar ao mundo no qual viveu: fortalecimento de

ideologias invioláveis, religiões construindo molduras imóveis de comportamentos, com

o alfanje e a fogueira sempre à mão. Lorca soube ver não apenas a aproximação do

fascismo, chegando por Portugal e Alemanha, mas principalmente soube ver na

Espanha do século XX uma sociedade com características dos séculos passados. A

Espanha na qual Lorca nasceu e morreu presenciou a chegada do franquismo em um rio

de sangue, um sangue derramado em uma inquisição política.

Nascido em 5 de junho de 1898, no vilarejo de Fuente Vaqueros, Província

de Granada, Andaluzia, García Lorca foi o mais velho dos quatro filhos do casal

Federico García Rodriguez — fazendeiro que enriqueceu quando a Andaluzia ocupou o

lugar de Cuba na produção de açúcar da Espanha, e cuja família tinha alguma inserção

na política de Fuente Vaqueros e arredores — e Vicenta Lorca Romero — professora

primária. Foi em 1909 que García Lorca se mudou para Granada com a família. Na

capital da província, Lorca estudou Direito na Universidade de Granada e piano com

Antonio Segura Mesa, mestre de fundamental importância na vida do poeta, e prova

disso é o fato de Lorca haver dedicado a ele seu primeiro livro, publicado ainda em

Granada, no ano de 1918. O livro se chama Impressões e Paisagens (Impresiones y

Paisajes – sem edição brasileira) e é única obra em prosa do escritor. No ano seguinte,

Lorca mudou-se para Madri para morar na Residência dos Estudantes, onde permaneceu

até 1928. Neste período, Lorca teve contato com intelectuais espanhois, como Unamuno

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e Ortega y Gasset, com as vanguardas artísticas europeias, e decidiu se dedicar à

literatura. Foi então que escreveu grande parte de sua obra poética.

Em 1920, Lorca estreou O sortilégio da mariposa, sua primeira e fracassada

obra de teatro; no ano seguinte, publicou seu primeiro livro de poesia, Livro de Poemas.

No período da Residência, Lorca escreveu Suites (poesia); Tragicomédia de Dom

Cristobal e a D. Rosita (teatro) e A sapateira prodigiosa (teatro), obras que só foram

publicadas após a morte do escritor. As publicações de Lorca deste período são Ode a

Salvador Dalí (poesia – 1926); Ode ao Santíssimo Sacramento do Altar

(poesia/exposição – 1926); Canções (poesia, 1927); Romancero Gitano (poesia, 1928),

e Mariana Pineda (teatro, 1928).

Em 1929, Lorca vai para Nova Iorque, acompanhado de seu amigo

granadino Fernando de Los Ríos, e na América do Norte o escritor passou um ano.

Lorca presenciou o Craque da Bolsa de Nova Iorque, acompanhou de perto a depressão

norte-americana, sensibilizou-se com a sociedade que descriminava os negros. Quando

voltou a Espanha, trazia na bagagem os manuscritos de Poeta em Nova Iorque (poesia)

e O público (teatro), que só serão publicados depois da morte do escritor. A escrita

lorquiana sofreu uma importante mudança após sua passagem pela América do Norte —

Estados Unidos e Cuba —, pois o escritor passou a focar sua criação nas obras teatrais e

conferências e a expressar com mais relevância sua preocupação com o papel social da

arte.

Em 1931, foi proclamada a Segunda República da Espanha. No mesmo ano,

criou-se o grupo de teatro universitário La Barraca, sob a direção de Lorca e Eduardo

Ugarte. La Barraca fazia apresentações na cidade de Madri durante o período letivo —

pois todos os atores eram estudantes — e fazia suas viagens no período de férias,

15
momentos nos quais o grupo levou os clássicos teatrais espanhóis pelos povoados da

Espanha. La Barraca só encerrou suas atividades em 1936.

No período republicano, Lorca publicou apenas Poema do Cante Jondo

(poesia - 1931), que foi escrito antes da ida do escritor para Nova Iorque. Apesar de ter

publicado apenas um livro entre os anos de 1931 e 1936, Lorca produziu intensamente,

pois são desses cinco anos as obras Assim que passarem cinco anos (teatro); Yerma

(teatro); Divã do Tamarit (poesia); Bodas de Sangue (teatro); Retábulo de Dom

Cristóbal (teatro), Seis poemas galegos (poesia), Lamento por Ignacio Sánchez Mejías

(poesia); Sonetos de amor obscuro (poesia) e A casa de Bernarda Alba (teatro). Em

1936, às vésperas do levante militar coordenado pelo General Franco, Lorca foi para

Granada, onde seria preso e fuzilado. Até hoje não se sabe as circunstâncias do

assassinato do poeta, nem quem foram todos os envolvidos e menos ainda o que foi

feito de seu corpo.

Lorca foi como uma das primeiras personalidades que o franquismo tentou

apagar durante a Guerra Civil Espanhola. Certamente a direita espanhola estava

incomodada há tempos com a postura subversiva, contestadora, atenta e inventiva de

Lorca. O dionisíaco Federico foi um sujeito perigoso por não se calar diante de forças

autoritárias, usando sua arte para expressar sua visão da sociedade, da moral coletiva

imposta ao individuo, da falta de liberdade que se espalhava pela Europa junto com o

fascismo. No teatro lorquiano, misto de prosa e poesia, musicalidade e personagens

surrealistas são elementos estilísticos que se somam em uma arte inovadora; não

somente por levar à cena espanhola um teatro único, mas também por carregar, de

maneira incisiva, um forte conteúdo crítico.

Federico Garcia Lorca foi um agente político? No caso de Lorca, faz-se

especialmente necessário fazer esta pergunta pelas circunstâncias de sua morte.

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Questionar a relação do escritor com a política serve de guia para este estudo e se faz

importante não pela busca de verdades, nem para traçar o comportamento político-

partidário do poeta, mas por trazer à tona uma questão que a ditadura do General Franco

e a família do poeta tentaram silenciar: a postura que Lorca teve diante da sociedade de

seu tempo e como ele reagiu a essa sociedade. Há quem afirme que Lorca foi apolítico,

que não se interessava por política, como seu amigo dos tempos de Residência, José

Bello, hoje com 103 anos, que afirma nunca ter ouvido Lorca falar sobre política e diz

que o assunto não interessava ao poeta. Não o interessava ―nem a esquerda, nem a

direita‖, diz Bello em depoimento no filme Lorca. El mar deja de moverse.

Além de José Bello, a família do poeta também realça o não envolvimento

de Federico com política, e na tentativa de justificar o apoliticismo de Lorca, seus

sobrinhos lembram o fato de que o artista repudiava enquadramentos políticos, não

queria ser taxado por algum pensamento, nunca quis participar de nenhuma organização

que o obrigasse a ter regras e comportamentos preestabelecidos. Mas, cabe perguntar,

não ser capturado por organizações e partidos é sinônimo de apoliticismo ou, ao

contrário, uma manifestação de posicionamento político? Buscando a resposta para essa

pergunta, podem-se encontrar alguns estudiosos da vida e obra de Lorca que percebem

um posicionamento político no autor, porém, nenhuma das principais análises foi sobre

a preocupação sociopolítica de Federico.

O apoliticismo de Lorca é um discurso que privilegia, especialmente, os

franquistas, pois ao tirar o caráter político da obra e da vida de Lorca, possibilita tirar a

política como casa da morte do poeta, o que livra os franquistas da responsabilidade por

seu assassinato. Ainda no filme Lorca. El mar deja de moverse, o historiador Ian

Gibson chama a atenção para a situação política e social da Espanha naquele momento

que margeava a guerra civil, e diz que era impossível não ter posição política,

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impossível ignorar a Frente Popular ou o biênio negro. De fato, Lorca não ignorou a

conflituosa situação sociopolítica da Espanha, mas é importante buscar de que maneira

Lorca reagiu a isso, como sua obra expressou suas críticas e questionamentos, e não

apenas situar o escritor e sua obra de um ou outro lado da sociedade espanhola. Federico

não fez parte de nenhum grupo ou partido, político ou artístico. O poeta almejava ser

livre, e em suas obras ecoam gritos de liberdade, em poesias e personagens. É a relação

com o mundo, com os seres, o que interessa a Lorca.

Federico García Lorca foi um autor trágico que soube beber nas águas

turvas dos autores gregos; em Shakespeare e sua Inglaterra elizabethana; na Espanha

recém unificada de Miguel de Cervantes, Calderón de La Barca, Lopes de Vega e outros

dramaturgos que usaram a arte para falar de sua sociedade. Porém, a dramaturgia

lorquiana apresenta características que a tornam única. Fazendo fortes referências às

obras da Grécia clássica — como os coros de Bodas de Sangue e Yerma —, suas peças

trágicas também apresentam importantes aspectos do drama moderno, como no caso de

A casa de Bernarda Alba, que, como o próprio autor define no subtítulo da obra, é um

drama das mulheres dos vilarejos da Espanha.

Federico, antes de estrear Yerma, afirmou que era preciso voltar à tragédia.

De fato, o escritor criou obras baseadas na tradição clássica do estilo teatral, tanto com

relação à forma, quanto por seu conteúdo. O dramaturgo soube criar tragédias nas quais

o que importa não é o que acontece às personagens, mas o que acontece por meio delas.

Seguindo o conceito tradicional, Lorca criou suas tragédias de maneira muito particular,

uma maneira andaluza; e assim, nas obras trágicas lorquianas, encontramos mais do que

deuses, encontramos o duende: espírito imprescindível para que seja travado o duelo da

arte trágica. O duende, como o próprio Lorca o define, ―é um poder e não um olhar, é

um lutar e não um pensar‖ (LORCA, 2000: p. 110). A tragédia lorquiana, moderna,

18
enduendada, é uma arte circundada pelo tempo e, simultaneamente, a expressão da

potência estética que tem a capacidade de avançar sobre a sociedade na qual foi

produzida.

Tais colocações remetem à formulação da arte como bloco de percepções,

sensações, como pensamento que sensibiliza, em um viés que entende que a obra de

García Lorca elucida o real significado de política como tragédia, ao constatar que os

conflitos são imanentes à realidade social, em permanentes fluxos, frequentemente

permeados por tensões agônicas. O caráter político da criação de Lorca se revela na

possibilidade de posicionar-se com relação à vida, de reagir ao mundo de maneira

estética, situando sua criação na condição de ―arte crítica‖:

A arte crítica deixa transparecer os caracteres filosófico, intelectual e


analítico da arte e deve ser remetida diretamente à pessoa do artista,
excedendo um papel que o aproxima do estudioso social e, não raras
vezes, do cidadão combativo. Poder-se-ia dizer que o produto arte não
carrega a intenção política, mas sim a ação do artista produtor é que se
aproxima da política. De tais condições nascem obras de reflexão que
carregam o desejo de intervir na sociedade. [...] esse tipo de arte traz
em si o potencial da radicalidade, por oferecer as condições para a
emergência da transgressão e da resistência (CHAIA, 2007, p. 23).

Lorca foi demasiadamente ruidoso, chegando a incomodar inclusive o

mundo artístico espanhol da época. Esse ruído o torna insuportável para a Frente

Nacionalista, formada pelos direitistas, que se espalha pela Espanha e reverbera pelo

mundo e pelos anos. Ainda em vida, García Lorca gozou o êxito de sua arte dentro e

fora da Espanha. Países como Inglaterra, França, EUA, Cuba, Argentina e México

consumiam e aplaudiam as obras dramáticas e poéticas do escritor, e em alguns deles,

Lorca desfrutou desse reconhecimento pessoalmente. A fama de sua obra era a mostra

do poder de suas palavras, de sua arte, e Federico teve consciência disso, usando suas

19
peças e seus poemas como armas contra aquilo que ele queria denunciar em sua

sociedade e os sentimentos que ele queria fazer gritar.

Como escreveu Neruda, Lorca era tão popular como uma guitarra, alegre,

melancólico, profundo e claro como uma criança. E tudo isso carregando uma

importante crítica social, o que tornou sua arte contundente e sua personalidade

perturbadora. Federico, dramaturgo e poeta, retratou sua multifacetária Espanha,

católica e moura, hostil às mulheres e aos homossexuais, nacionalista e pré-franquista.

A poesia e a arte dramática de Lorca, criadas em menos de duas décadas — de 1918,

data de publicação do primeiro livro, até 1936, ano de sua morte — são um belo e cruel

espelho da agressiva política do século XX. Uma arte e uma política escritas com

paixão e sangue. Um povo tão passional como o espanhol não poderia dar à luz espíritos

de temperatura morna, se é quente sua alma. Um país que se caracteriza pelo desejo —

seja de arte, de poder, de vida e de morte! — também se caracterizou por ser o berço de

ardentes artistas e fortes repressões, cenário do mau encontro de Lorca com as forças do

General Franco. Afinal, como poderia o fascismo reagir à arte de Lorca, sua veia

andaluza e sua sede por liberdade? Como responder ao posicionamento do poeta contra

a sociedade enraizada em sistemas de séculos atrás?

Lorca foi ruidoso a ponto de ser exterminado; Federico se fez um agente

político por desestabilizar a ordem. Perceber as relações travadas entre o escritor e sua

sociedade, em movimentos de ação e reação, são algumas propostas deste estudo,

entendendo que a poesia e o teatro de Lorca foram influenciadas por uma cultura oficial

— como os dramaturgos do Século de Ouro espanhol, representantes de uma Espanha

imperial e católica —, mas também pela cultura marginal de muitos cantos do mundo

por onde ele passou — como o flamenco que ecoava pelos becos do granadino bairro de

Albaicin, ou pela música dos negros de Nova Iorque.

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Embora Lorca não tivesse nenhum vínculo com instituições ou partidos

políticos, ele sempre esteve diretamente envolvido com personagens ilustres da política

da Espanha — o que é demonstrado por sua amizade com Fernando de Los Ríos ou seu

apoio a Manuel Azaña. A trajetória política da época em que Lorca vive e o modo como

ele se posiciona em relação a esta são elementos que permitem afirmar que Lorca tinha

mais do que um conhecimento superficial sobre os jogos políticos. Um fator importante

é a relação que a família de Lorca estabeleceu com a política institucional por muitos

anos, antes da Guerra Civil Espanhola. Na geração do escritor, por exemplo, seu

cunhado foi o exemplo mais impactante da participação da família do escritor com a

política. Manuel Fernandez Montesinos foi vereador de Granada, eleito pela última vez

em 1936, e com a sublevação militar no mesmo ano, foi assassinado alguns dias antes

de Lorca. Fora da política institucional, não se pode ignorar a sensibilidade de Lorca e

sua percepção da sociedade e suas relações, e essa capacidade do escritor de se

solidarizar o aproximou de vários grupos de marginalizados, como, por exemplo, os

ciganos da Andaluzia ou os negros de Nova Iorque.

A pesquisa, portanto, tem o intuito de buscar o significado da importância

do artista como crítico de sua sociedade, da significação daquele que não se aquieta

diante de um regime castrador, e que no caso do Lorca chegou a acabar com sua vida.

Esse fato também é importante de ser analisado, pois foi uma amostra de o quanto o

autor incomodava o regime franquista, que cometeu um atentado contra Lorca. Além

disso, tinha influência de outras artes e de outros artistas, o que o tornava parte de uma

rede de artes de vanguarda que fazia reverberar suas ideias transgressoras e sua

oposição à política e a sociedade. Lorca foi um autor voltado para o mundo, e estar

envolvido com a arte e com a vida o fez estar envolvido com a política.

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Lorca, desde seu primeiro livro, adotou uma atitude crítica frente ao que o

incomodava, seja este incômodo algo surgido internamente, seja uma imposição moral

ou manifestações da injustiça social. Para o escritor, a ânsia de liberdade é

imprescindível em todos os homens para que estes possam ser assim chamados

(LORCA, 2008, v. VI, p. 382). Para Lorca, os homens que vivem subordinados, sem

recusar a opressão, são homens mortos.

Na Espanha do início do século XX, na época entre guerras mundiais e sob

a ameaça franquista, Lorca se posicionou a favor da liberdade e esteve ao lado daqueles

que se encontravam à margem da sociedade da época. Em virtude das obscuras

circunstâncias que circundam sua morte, Lorca permanece como um símbolo dos que se

opõem ao fascismo, dos que não se contentam em baixar a cabeça, em tapar olhos e

ouvidos para políticas ditatoriais e daqueles que não se submetem às regras e jogos

impostos pela sociedade. Federico atuou na sociedade por meio de sua arte,

influenciando sua época e reverberando até os dias atuais.

O próprio Lorca — por meio de sua vida e obra — é quem fornece as pistas

necessárias para o desenvolvimento da relação entre arte e política, ou arte crítica, tema

desta pesquisa. Especificamente, o recorte dado em algumas obras de Lorca e

declarações é o norte da busca da dimensão política que está expressa nos trabalhos do

artista, que pontua momentos de sua vida e de seu pensamento. Assim, para a análise da

relação entre a obra de Lorca e seu momento sociopolítico, foram escolhidas duas obras

teatrais (Yerma e A casa de Bernarda Alba) para dialogar com algumas conferências e

entrevistas concedidas pelo autor, na intenção de encontrar tanto nas peças de teatro,

quanto nas falas públicas, pistas que elucidem a presença de elementos políticos na obra

de Lorca.
22
Entendendo política como um conceito polissêmico, é importante buscar as ideias

políticas em García Lorca fora das instituições políticas, mas em sua vida e obra, a partir da

compreensão de que a atitude política do escritor esteve, fundamentalmente, relacionada à arte e

não a participações partidárias ou ideológicas. Assim, como já foi apontado anteriormente, para

responder a questão sobre o posicionamento de Lorca, é necessário buscar as ideias políticas

que estão inscritas nas obras e na vida do autor, entendendo que há várias abordagens políticas

possíveis e que o poeta e dramaturgo faz uso de muitas delas. Há em García Lorca uma

complexa rede de interferências entre aspectos individuais e sociais, ao mesmo tempo em que

não há segmentações, mas uma visão abrangente sobre os eixos que recobrem o indivíduo e

sociedade.

O presente trabalho está ancorado em duas questões teórico-metodológicas:

a dimensão política decantada pela obra de Lorca e os aspectos políticos observáveis no

pensamento e na ação do poeta. De um lado, supondo a arte como uma possível

manifestação política, entende-se que pode haver uma dimensão política, de maneira

implícita, no interior da obra do escritor. Por outro lado, supõe-se que atitudes, opiniões

e ações de García Lorca possam esclarecer e complementar a perspectiva política do

artista. Desta forma, esta pesquisa está fundamentada em uma análise interna e uma

externa à obra de Lorca. A análise interna se debruça sobre algumas obras da

dramaturgia lorquiana, complementando a análise com algumas conferências e

entrevistas concedidas pelo autor. A análise externa apresenta o momento histórico no

qual Lorca nasceu e morreu, sua sociedade e a reação à obra do escritor. A análise

externa teve como base uma bibliografia que contemplou o momento histórico da

Espanha e artigos de jornais e revistas da época de Lorca que, direta ou indiretamente,

dialogaram com sua obra.

Sendo assim, alguns aspectos históricos são fundamentais para o estudo: o

cenário político do início do século XX; os regimes autoritários e a sociedade espanhola

23
no período entre a Primeira e Segunda Guerra Mundial; o avanço do governo franquista

na Espanha; os conflitos gerados na sociedade multifacetária do país onde católicos,

muçulmanos, judeus e ciganos conviviam e divergiam; as personalidades e os

movimentos artísticos que cercaram Lorca, e os ideais nacionalistas, franquistas,

socialistas e republicanos.

A Espanha e as primeiras décadas do século XX foram tempo e espaço

cheios de antagonismos, tão reacionários quanto contestadores, tão católicos quanto

profanos, tão mobilizadores quanto cristalizados. A sociedade espanhola das primeiras

décadas do século passado criou uma fecunda gama de situações que convidam a um

olhar mais atento sobre o entrelaçamento de arte e política. E esse encontro em terras

ibéricas se fez tão único, quanto contundente, espalhando-se pelos tempos por meio da

arte imortal e da história inesquecível de ideais políticos, combates, mortes e uma longa

ditadura.

Mais do que um levantamento histórico, estudar a Espanha do final do século XIX,

início do XX, e o momento da eclosão da Guerra Civil Espanhola se faz fundamental para

compreender elementos que compõem a obra de Lorca e os possíveis motivos de seu

assassinato. A guerra de Espanha conta com diversas análises e não cessa de gerar debates, pois

segue viva na memória, não apenas de espanhóis, mas também daqueles que carregam os ideais

de República e o Fascismo em suas ideologias políticas. Assim, mais do que estudar a Guerra

Civil Espanhola, o foco serão seus antecedentes e sua eclosão, a maneira como estava a

sociedade espanhola na época e as intensas mudanças na Espanha, em sua constituição

sociopolítica, que convulsionaram toda a população e muitos grupos em outros países.

A importância de entender os motivos da Guerra — mais do que a guerra em si —

se dá pelo fato de Lorca ter morrido ainda no primeiro mês da Guerra. Assim, os motivos que

levaram à sua morte podem ser encontrados antes da guerra, e não no desenrolar dela. Além

disso, é importante analisar a situação da Andaluzia nesse período inicial, desde as eleições

24
republicanas, passando pela tomada do poder pelos franquistas e, principalmente, pela atuação

dos exércitos nacionalistas em Granada. Entender o cenário político e a atuação militar nos

fornece elementos para desenhar a situação na qual Lorca foi detido e, em seguida, morto. Esse

levantamento de dados já foi bastante trabalhado por historiadores, tanto na recuperação de

documentos, quanto em entrevistas com sobreviventes da guerra e familiares. É baseado nesse

levantamento histórico que este estudo trabalha, em especial nas pesquisas dos historiadores Ian

Gibson e Miguel Caballero.

Assim, após olhar para o momento histórico, será feita a análise de parte da

produção artística e parte da vida de Federico García Lorca, mais precisamente de duas

de suas peças de teatro: Yerma e A casa de Bernarda Alba. Yerma, peça sobre uma

esposa fiel, homônima, que coloca sua realização no casamento e na maternidade, tudo

exatamente como se esperava de uma mulher honesta na Espanha do início do século

XX. Yerma se casa, o tempo vai passando, mas a protagonista não consegue engravidar,

e na não realização da maternidade reside seu conflito pessoal, que transbordará para o

resto da peça e afogará os outros personagens. Yerma se vê presa a um casamento

infértil, mas ela não aceita tal situação, e ao longo da peça busca meios de realizar seu

desejo, enquanto a sociedade busca o culpado, o estéril do matrimônio. Na busca por

maneiras de realizar seu desejo, Yerma desafia sua sociedade e as ordens de seu marido,

aumentando a vigília e repressão sobre si. O que se inicia como desconsolo se torna

fúria, e Yerma mata o marido.

Yerma tem fundamental importância, pois, como o próprio Lorca definiu em

1934, a peça ―é, acima de tudo, a imagem da fecundidade castigada pela esterilidade.

Uma alma na qual se cevou o Destino a assinalando como vítima do infecundo‖

(LORCA, 2008, v. VI, p. 65). Assim, Lorca coloca, através de Yerma, a tragédia do

indivíduo fértil sendo castigado pela sociedade estéril. Yerma foi uma expressão tão

forte da ala infecunda da Espanha, que a estreia da peça foi muito tumultuada.

25
Falangistas interrompiam os atores gritando que se trata de uma obra ―imoral e

antiespanhola‖ (GIBSON, 2007, p. 42). Com isso, além da análise interna da obra,

foram usados artigos de jornais, declarações tanto da direita quanto da esquerda da

sociedade espanhola, para compreender o impacto que a peça de Lorca causou.

A outra proposta de análise é a peça A Casa de Bernarda Alba, obra que

mostra as exigências da honra e da sociedade que impedem um desabrochar dos

impulsos individuais. A partir da morte do marido, Bernarda Alba assume de forma

despótica o comando da casa e, consequentemente, o destino de quem vive sob seu teto.

Bernarda, de personalidade extremamente autoritária, apresenta-se como um general,

um ditador, e faz de sua casa uma prisão na qual mantém suas cinco filhas, solteiras, e

sua mãe que está louca. Assim, a matriarca cria um sistema no qual os valores

individuais são abruptamente substituídos por rígidas leis comportamentais,

incompatíveis com as necessidades das outras personagens, gerando reações e

conduzindo a peça para um desfecho trágico. A escolha da peça A casa de Bernarda

Alba se deu pelos elementos internos da obra, pois a peça só estreou na Espanha em

1945, nove anos após a morte de Lorca. Temas como repressão, castigo, sexualidade

reprimida, autoridade e desobediências, presentes em A casa de Bernarda Alba, fazem

da peça um importante exemplo da arte crítica de García Lorca.

Para isso, algumas categorias, extraídas de leituras de Yerma e A casa de

Bernarda Alba, foram construídas para nortear o mergulho analítico das obras. Assim,

as relações de poder entre as personagens, constituídas sobre a repressão e controle; a

busca do indivíduo pela liberdade; imposição de regras e morais sociais; relação entre

os espaços dentro/fora agindo sobre as personagens; o embate entre os desejos dos

indivíduos e a negação desses desejos pelas instituições sociais; a loucura; o corpo

como inscrição da repressão e da liberdade e a resistência são as categorias de análise

26
usadas para nortear o estudo sobre as peças lorquianas. Portanto, cabe observar que a

presente pesquisa não tem a intenção de focar o teatro como encenação, mas sim o texto

literário produzido por García Lorca.

O poeta e dramaturgo levou à cena mulheres como protagonistas, dando-

lhes vida, como a mártir republicana Mariana Pineda2 ou a jovem Belisa3, que questiona

a importância de seu casamento. Lorca coloca a cargo das personagens femininas a

função de levar à cena suas críticas à sociedade e aos seus códigos cristalizados, e suas

peças tratam de sociedades opressoras e o peso da moralidade católica, ao mesmo tempo

em que mesclam costumes ciganos com aromas árabes. Assim, ao olhar como as

mulheres de Lorca, representantes de uma parte marginalizada da sociedade, se

relacionam com o mundo, podemos perceber as relações de força expressas pelo autor.

A análise das obras será feita na forma de um mergulho nas narrativas, buscando

sentidos que melhor configurem as questões decorrentes do tema em estudo, ou seja, os

elementos que Lorca coloca nessas duas obras, de maneira explícita e implícita, que

criticam e questionam a ordem social vigente.

O trabalho segue a seguinte estrutura de capítulos: no primeiro, ―Laberintos

para llegar a España‖, é feito um levantamento histórico do período em que viveu

García Lorca (1898 – 1936). Esses trinta e oito anos foram marcados por situações

internas e externas à Espanha que influenciaram na criação do autor e dão pistas para

compreender os caminhos que levaram à tentativa de golpe militar liderada por Franco

— momento no qual Lorca foi assassinado — e à Guerra Civil Espanhola. No segundo

capítulo, ―A política na arte e na vida‖, é feita uma análise da vida a partir da obra de

Lorca tendo como base o conceito de ―arte crítica‖. Assim, foi buscando nos escritos e

conferências do autor elementos que mostrem a existência ou ausência da política na

2
Protagonista de Mariana Pineda.
3
Protagonista de O amor de Dom Perlimplin e Belisa em seu jardim.

27
criação de Federico. Em seguida, o capítulo ―A tragédia segundo García Lorca‖ é

fronteira do estudo entre a análise das conferências e entrevistas com a obra teatral de

Lorca. Neste capítulo, os conceitos de tragédia clássica, a dramaturgia moderna e o

flamenco são as bases que auxiliam na construção do conceito de tragédia lorquiana:

uma tragédia andaluza.

Os capítulos quatro e cinco, ―A fértil Yerma e a esterilidade hispânica‖ e ―O

cárcere de Bernarda Alba‖, respectivamente, são análises das obras teatrais, com base

nas categorias de análise ditas anteriormente. Porém, lembrando que nessas análises não

contemplam o víeis psicanalítico, de encenação ou estritamente literário — por mais

que em alguns momentos haja alguma referência a eles —, mas o foco do trabalho está

nos elementos críticos da obra com relação à sociedade de Lorca. Para estabelecer a

ligação entre a obra de Federico e sua sociedade, além da analise da peça, também serão

usadas as reações dos jornais da época à estreia de Yerma e algumas depoimentos de

amigos sobre A casa de Bernarda Alba.

A conclusão é uma revisão do texto tendo como base o diário de viagem do

período da bolsa sanduiche, concedida pela Capes. As fotos da conclusão e dos anexos

foram todas feitas pela autora, assim como as traduções das citações ao longo do

trabalho, cujo texto, na bibliografia consta em espanhol. Estão anexados ao trabalho

uma entrevista com o historiador Ian Gibson, concedida a autora no mês de setembro de

2009, em Madri, uma imagem e a transcrição do manuscrito do panfleto ―El

patriotismo‖ de Lorca — propriedade da Fundação Federico García Lorca — e a

transcrição da conferência ―Charlas sobre el teatro‖, publicada no volume VI das Obras

Completas (2008) de Lorca.

28
Capítulo 1

Laberintos para llegar a España

29
A caminho da Espanha

García Lorca foi um poeta profundamente espanhol, atingindo ao mesmo

tempo uma alta dimensão universal. Lorca universaliza o ser humano em suas obras, ao

mesmo tempo em que tem na Espanha uma de suas musas mais inspiradoras — presente

em muitos de seus poemas com suas cidades, sua história e seu folclore. ―A Espanha é

o país dos perfis. Não há termos informes pelos quais se possa fugir ao outro mundo.

Tudo se desenha e se limita da maneira mais exata. Um morto está mais morto na

Espanha que em qualquer outra parte do mundo. E quem quer se evadir ao sonho fere os

pés com o fio de navalha do barbeiro‖ (LORCA, 2000, p. 87).

Salvador Dalí dizia que a palavra Espanha, etimologicamente, é uma

variação da palavra espinho, em espanhol espina. Para o pintor, a associação ressaltava

alguns dos caráteres de seu país, fortemente obcecado pela morte e pelo sofrimento; por

isso, nada mais apropriado que seu nome se relacione à laceração (GIBSON, 1992, p.

21). Porém, Espanha é, na verdade, uma variação do nome latino Hispania, cujo

significado é ―abundância de coelhos‖, animais que por muito tempo foram

relacionados àquela região da Europa. Atualmente, a Espanha não é mais relacionada a

esses mamíferos, mas ―abundância‖ foi, e continua sendo, um substantivo que

caracteriza o país.

Abundância de povos que ali chegaram e viveram. Abundância de religiões,

culturas e línguas. Abundância de diferenças geográficas e climáticas. Elide Rugai

Bastos, em seu livro Gilberto Freire e o pensamento hispânico, define a Espanha como

um país que se constitui em uma constante ―redimensão do mundo baseada na

intensificação dos fatos, na mistura de pessoas e tempos diversos e a busca de novas

combinações de relações reais de pessoas com paisagens‖ (BASTOS, 2003, p.174). A


30
mistura de diferentes etnias e culturas sempre esteve presente nos 4.800 quilômetros de

costa, tanto atlântica, quanto mediterrânea; nos campos nevados; nos lagos e nas

florestas de carvalhos dos Pirineus. Por essas paisagens, ao longo de vários séculos,

passaram cartagineses, gregos, romanos — primeiro império cristão a povoar a região

—, celtas e visigodos.

Ainda há as praias tórridas do sul; os pomares e plantações em Murcia e

Valência; as enseadas mediterrâneas; colinas de Málaga e Cádiz, e o fértil e vermelho

solo de Granada: ali, chegaram judeus vindos de muitas partes da Europa, os

muçulmanos mouros construíram o maior império árabe no ocidente, e ciganos,

oriundos de muitas partes da Ásia, deixaram o nomadismo. Já no século XIX, parte da

região de Castela e Andaluzia passou a sofrer um ―repovoamento‖ de ingleses, novos

donos de terras e de inovações agrícolas, enquanto as estepes na Estremadura foram o

cenário da vitória de Wellington sobre Napoleão.

Por todos esses traços, a Espanha foi alvo de estudos, tanto espanhóis

quanto estrangeiros, na tentativa de entender como se formou o país e o povo daquela

parte da península. Bastos continua sua análise sobre a Espanha caracterizando-lhe

como ―um país onde se dá o encontro das culturas oriental e ocidental, um desafio ao

processo de modernização‖ (BASTOS, 2003, p. 106). Mas, além disso, o encontro entre

as culturas trespassa a mescla do ocidente com o oriente, criando algo conhecido como

caráter ibérico. Este, proveniente do encontro com o mediterrâneo, é herdeiro de Creta,

onde ―desemboca a civilização oriental e se inicia outra que não é grega‖ (ORTEGA Y

GASSET, 1946, p. 372). O caráter ibérico do qual fala Gasset é fruto da coexistência de

muitos modos de vida, nômades e sedentários, que se fundem em realidades que vão

além de simples encontros históricos, de modos de governo e cultura.

31
Seria possível dizer que esse modo ibérico espanhol é uma experiência de

corpos que necessitam do mundo como local para sua existência, ou como Gasset

definiu o povo espanhol: ―Somos meros suportes dos órgãos dos sentidos: vemos,

ouvimos, cheiramos, apalpamos, gostamos, sentimos o prazer e a dor orgânicos [...].

Com certo orgulho repetimos a expressão de Gautier: o mundo exterior existe para nós‖

(apud BASTOS, p. 108). Tal definição alia com sagacidade a união de povos de

diversos mundos em uma pequena parte do globo.

―O fato mais essencial sobre a Espanha é sua inacessibilidade. A Espanha é

um castelo. [...] montanhas elevadas em toda a extensão de seu litoral [...] a maior

exceção a essa regra é o litoral atlântico da Andaluzia, que vai da fronteira portuguesa

até o sul de Cádiz‖ [...] ―muralhas de leste para oeste que cortam a Espanha e dividem

seu povo em raças distintas‖, como definiu Madariaga (apud GIBSON, 1992, p. 12).

Não por acaso, Castela é o nome da região central da Península Ibérica, quase como

uma morada natural para reis e rainhas, sejam eles cristãos ou muçulmanos. A

fortificação natural que o território espanhol constitui não é apenas uma curiosidade,

mas um elemento fundamental para as relações dos distintos povos que por lá estiveram

ao longo de séculos.

O castelo natural teve papel determinante na formação histórica e cultural da

Espanha, dificultando a relação e a comunicação entre as diversas regiões da península,

alimentando, assim, o constante espírito regional no qual nasce a tendência ao

separatismo. Um fato que ilustra a importância desses obstáculos naturais na formação

do Estado espanhol é a difícil e custosa construção de estradas férreas. A primeira

ferrovia foi construída apenas em 1848; tardou para que houvesse uma ligação férrea

entre as principais cidades da Espanha. Richard Ford (1796 – 1858), um dos poucos

viajantes que se aventurou a conhecer o território na época, ―chegou à conclusão de que

32
uma das principais características do povo espanhol era a tendência a não se amalgamar,

sua recusa a unir forças por um objetivo comum — em grande parte resultado do

isolamento geográfico das diversas regiões do país [...] o conceito de Espanha como

nação tinha para eles pouco significado‖ (GIBSON, 1992, p.18). Por questões culturais

mas também geográficas, não se pode falar em uma única Espanha, mas sim em uma

região multifacetária que, até os dias atuais, se esforça em ressaltar as diferenças

regionais, ainda vivas e latentes.

A Espanha, tal como a conhecemos hoje, nasceu, na verdade, apenas na

chamada Reconquista4, como é conhecida a unificação dos reis católicos. Entre os anos

de 711 e 1492, a região que hoje é a cidade de Granada foi um império mouro, mas

também era terra de três religiões que conviviam em relativa tranquilidade. As

perseguições católicas tiveram início em 1391, nas regiões de Castela, Catalunha e

Valência, e, embora isoladas, abriram caminho para perseguições posteriores que

dariam fim na paz de quinze séculos de convivência entre judeus, católicos e

muçulmanos. Até o final do século XV, os reis castelhanos não forçavam os judeus a

viver em guetos, como acontecia em outras partes da Europa — até que a política papal

mudou essa postura.

Quando os reis Fernando e Isabel uniram as coroas de Aragão e Castela,

eles estavam dispostos a conquistar a unidade nacional com a benção do papa

Alexandre VI. Este lhes concedeu o título de ―reis católicos‖, em retribuição aos

dissabores encontrados na formação não apenas do Estado-Nação, mas, principalmente,

de um Estado católico. Assim, um reinado de terror contra judeus e muçulmanos foi

iniciado pelos reis católicos. A unificação cristã tardou aproximadamente sete séculos

4
José Ortega y Gasset comentou em 1921 que ―Reconquista‖ é um conceito inventado pela educação
católica da Espanha e que não expressa a realidade: ―Não sei como se pode aplicar o termo Reconquista a
algo que durou oito séculos‖. Além dele, o teatrólogo andaluz Antonio Gala também não concorda com o
termo ―Reconquista‖ para expressar a cominação dos reis católicos sobre Granada, e dizia que ―a
Reconquista é uma falácia e uma grande mentira histórica!‖ (apud GIBSON, 1992; p. 26).

33
para concretizar-se, e a cidade de Granada, por ser o último ponto de resistência do

império árabe no ocidente, se tornou também o maior foco de opressão dos reis e o foco

de uma empreitada de apagar os quase oitocentos anos de história não cristã. Os judeus

de Granada eram banidos se não se convertiam ao catolicismo, e o bairro judaico na

cidade foi completamente arrasado com o novo reinado (GIBSON, 1992, p. 33).

Com relação à população islâmica de Granada, por sete anos os Reis

Católicos respeitaram suas propriedades, religião e modo de vida, mas em 1499, o

cardeal-arcebispo Francisco Jiménez de Cineros, confessor da rainha Isabel, decidiu que

havia chegado a hora de subjugar os infiéis, e deu início à perseguição. Muitas famílias

nobres muçulmanas fugiram para a África, todas as mesquitas foram convertidas em

igrejas, além dos saques e apropriações de terras dos não católicos. Após um ano, o

cardeal escrevia à Rainha Isabel, a católica: ―Não há mais ninguém em Granada que não

seja cristão‖ (GIBSON, 1992, p. 34). Porém, em 1501, os mouros convertidos

realizaram em Granada um violento protesto que deu a Fernando e Isabel a desculpa

perfeita para intensificar a repressão.

O reinado dos Reis Católicos contou com um importante elemento: a

descoberta do Novo Mundo por Colombo, no mesmo ano de 1492, ano do domínio de

Granada. Esse fato não apenas provocou uma profunda mudança na história mundial,

mas também revolucionou a economia espanhola. O ouro e a prata americanos, gastos

como infindáveis, foram o motor da economia espanhola durante cem anos, e somas

astronômicas foram destinadas às guerras europeias, nas quais sempre se pôde contar

com a presença da Espanha. Andrea Navagiero, embaixador de Veneza, em visita a

Granada, em 1526, opinou que ―os espanhóis [...] não sentem prazer em cultivar ou arar

a terra [...] ao contrário, eles preferem guerrear na América‖ (GIBSON, 1992, p. 35).

34
O espírito combativo sempre esteve relacionado aos espanhóis, elemento

importante tanto nas insurreições populares, quanto em sua repressão. Na Contra-

Reforma, por exemplo, a Inquisição torturou e matou quase um milhão de pessoas na

região da Espanha, mantendo a repressão cultural e a atmosfera de terror ao longo dos

séculos XV e XVI. Os cristãos permaneceram obcecados pela ideia de ‖purificar‖ o

sangue espanhol, processo que incidiria sobre uma população formada em séculos de

miscigenação. A ortodoxia católica foi brutalmente imposta ao povo espanhol, e os

artifícios de prender, banir e matar, como forma de dominar os opositores ideológicos,

tornou-se uma endemia. Séculos mais tarde, o nacional-socialismo, em diversas partes,

copiou os meios espanhóis na ideia de instituir ―sangue puro‖, almejando, junto com a

―limpeza das nações‖, pelo aniquilamento de qualquer possibilidade de se manter a

memória histórica5. Na própria Espanha, na década de 1930, os fascistas espanhóis

apropriaram-se dos símbolos de Fernando e Isabel, como o catolicismo e a inspiração

para sua autoproclamada tarefa de restaurar a grandeza da Espanha, usando estes

elementos como uma das mais imponentes armas propagandistas na eclosão e ao longo

da Guerra Civil Espanhola.

Reinados e tiranias

O controle da Igreja no campo intelectual durou muitos séculos na Espanha.

No reinado de Felipe II (1581 - 1598), por exemplo, os espanhóis tinham permissão

para estudar em apenas três faculdades fora da Espanha, sendo essas na Itália e em

5
Memória histórica é um conceito historiográfico de desenvolvimento relativamente recente, tendo como
seu principal formulador o historiador Pierre Nova. Tal conceito busca designar o esforço consciente dos
grupos em entroncar com seu passado, seja este real ou imaginado, valorando-o com importância
histórica. (NORA, Pierre. ―Entre Memória e História: a problemática dos lugares‖, In: Projeto História.
São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993).

35
Portugal — que na época estava anexado à Espanha. Em qualquer outro país, isso era

considerado ideologicamente perigoso, pois havia um grande receio de que os espanhóis

se afastassem das ideias permitidas pelo catolicismo por causa das novidades do

pensamento. Trezentos anos mais tarde, já no reinado de Fernando VII (1808 – 1833),

as autoridades espanholas mantinham a mesma postura em relação às Universidades

estrangeiras, não permitindo que os estudantes saíssem do país para estudar, nem que

novas ideias e intelectuais entrassem na Espanha.

Mas a situação começou a mudar no século XIX, mais especificamente

entre os anos de 1808 e 1814, período que compreende a Guerra de Independência —

conflito iniciado pela invasão de Napoleão e terminado com a expulsão dos franceses da

Espanha. A Guerra de Independência teve grande importância para a Espanha por vários

motivos. O início do século XIX foi um período de abertura intelectual no país por

causa da invasão de Napoleão e pelas novas linhas ideológicas que seu exército levava

consigo. Assim como a entrada das tropas napoleônicas na Espanha teve papel

importante, sua saída também foi marcante, por ter sido fruto de um levante popular,

abrindo a mentalidade da população para uma nova maneira de agir. Esta época da

história da Espanha também foi imortalizada nas artes a partir da produção de Goya,

que retratou em seus quadros a luta do povo contra a opressão do exército napoleônico,

luta imortalizada6 na fase das sombras do artista. Com o fim do conflito, a Igreja e

Exército — instituições que sobreviveram com honra à Guerra de Independência —

passaram a impor sua força à monarquia espanhola, que havia capitulado com a invasão

de Napoleão.

Naquele período, a Igreja e o Exército não eram instituições aliadas, como

vieram a ser no século XX. Ao contrário, a Igreja Católica mantinha sua posição

6
―O Fuzilamento do 3 de maio em 1808‖, uma das obras mais conhecidas de Goya, retrata a resposta dos
soldados franceses à rebelião dos cidadãos de Madri contra o exército de Napoleão, que eclodiu no dia
anterior à data do título do quadro.

36
conservadora como sua principal característica, enquanto o Exército era visto como uma

instituição marcada pelo pensamento liberal e maçônico. Nos anos que finalizavam o

século XIX, a Igreja e o Exército na Espanha não eram instituições que aliavam seus

pensamentos e interesses. O exército, fortalecido na época das Guerras Napoleônicas,

era o refúgio da jovem geração das classes dominantes decadentes que esperam tudo do

Estado — e que obviamente entraram em choque com aqueles que do Estado não

esperavam nada, como os grupos de esquerda formados por camponeses e operários.

A fragilidade da monarquia, o fortalecimento da Igreja e do Exército e a

crescente mobilização popular fizeram da Espanha um dos países mais turbulentos da

Europa dos séculos XIX e XX. O país se tornou um território de constantes lutas entre

os liberais do exército e os conservadores clericais, e depois sofreu uma sucessão de

golpes de estado. Esta etapa durou até o ano de 1868, às vésperas da Primeira República

Espanhola (1873-1874), proclamada em 1873. Porém, a primeira experiência

republicana do país não contava com o apoio do Exército e Igreja, e durou apenas um

ano, tendo fim com outra tomada de poder pelas forças militares, que restituíram o

poder monárquico. O trono foi novamente ocupado pelos Bourbons, e a partir de então,

passou a vigorar uma monarquia constitucional. Neste tipo de regime, a chefia de

Estado é exercida pelo monarca, mas a chefia de Governo fica nas mãos de um

primeiro-ministro e a este cabe o verdadeiro encargo do Poder Executivo. Este tipo de

governo se caracteriza pelo fato de a coroa ter papel moderador nos conflitos políticos;

o rei ou a rainha arbitram nos conflitos do governo, sobre os quais o governante real

escolhe livremente.

Pelo regime de governo, em 1876, foi promulgada uma Constituição que

parecia ser o sinal da Modernidade chegando à Espanha. A Constituição de 1876

consolidou as liberdades fundamentais de expressão e associação; declarava o

37
catolicismo como religião oficial do Estado — com permissão para práticas particulares

de outras crenças —; os partidos políticos e sindicatos tiveram autorização para entrar

em funcionamento e expressar suas opiniões em periódicos locais e nacionais. Além

disso, a Constituição instituía o sufrágio universal masculino, mas as eleições deste

período foram manipuladas em alto nível de nepotismo. Além disso, a elite governante

mantinha importantes relações com as classes econômicas dominantes, as elites

financeiras e fundiárias, enquanto os setores comercial e industrial representavam

parceiros mais recentes.

Com a Restauração na Espanha, o rei era o comandante das Forças

Armadas, mas, além disso, foi criada uma aliança entre altar e trono. Assim, se a Igreja

era a guardiã ideológica da Monarquia, as Forças Armadas eram sua guardiã pretoriana.

A principal função do Exército era defender a nação de seus inimigos internos, e

qualquer agitação social era seguida pela suspensão da Constituição e pela decretação

da lei marcial7, concedendo ao Exército o controle final sobre a manutenção da ordem

pública. Os pactos entre as camadas dirigentes da comunidade espanhola, somados às

constantes fraudes à Constituição, abriam ainda mais espaço para a difusão e o

fortalecimento de ideias revolucionárias entre a classe operária espanhola. Assim, entre

o final do século XX e a época da Primeira Guerra Mundial, dois sindicatos gerais

ganharam importante força política e social na Espanha: CNT (Confederação Nacional

do Trabalho) e UGT (União Geral de Trabalhadores).

O desenvolvimento na Espanha, no final do século XIX e início do XX, era

desigual nas diferentes regiões do país. O norte, de terra fértil e chuva abundante,

contava com pastos verdes e vastas criações de gado; no leste do país, havia um

7
Lei marcial é o sistema de leis que entra em vigor quando uma autoridade militar toma o controle da
administração ordinária da justiça. Quando a Lei marcial entre em vigor, são suspensas as liberdades
fundamentais do cidadão, como os direitos de ir e vir, de se reunir, de manifestar sua opinião e de não ser
aprisionado sem fundamento judicial.

38
dinâmico setor voltado a exportações, além de uma pequena produção de frutas e

legumes. Tais atividades consolidaram, em ambas as regiões, uma classe de pequenos

arrendatários e fazendeiros que não confiavam no Estado central. Já a região central,

onde se situa Castela, era mais pobre, e ali havia um modelo agrário que fazia

coexistirem grandes e pequenos camponeses proprietários de terra. Nessa região, o

catolicismo do campesinato mantinha as atitudes sociais conservadoras e evitava o

conflito social. Nos anos de 1930, estes camponeses castelhanos comporiam os escalões

populares de partidos de direita e as tropas nacionalistas.

O Sul da Espanha — sul de Castela, Estremadura e Andaluzia — até

meados do século XX era uma região marcada pelo grande vácuo econômico entre

proprietários de terra e camponeses sem terra, além de estar territorialmente dividida

entre a aristocracia e as ordens eclesiásticas, mantendo a influência destes na política

nacional. A grande maioria da população continuou como mão-de-obra barata e

mantinha o padrão de vida mais baixo na Espanha. A ausência de classe média rural

sólida exacerbava as divisões de classe, e a Igreja era vista como uma instituição que

legitimava essa opressiva ordem semifeudal.

O Sul se tornou, consequentemente, o centro de um conflito social quase

primitivo, com explosões violentas e frequentes de revoltas populares contra o clero,

sufocadas com uma ferocidade igualmente brutal pela polícia paramilitar, a Guarda

Civil. Em contraposição, uma economia capitalista moderna se desenvolveu em torno

da indústria têxtil da Catalunha, das fábricas de ferro e aço do País Basco e dos

interesses de exploração de minas das Astúrias. O contraste entre o progresso dos

centros urbanos e o atraso do campo era impressionante.

Explorados socialmente e negligenciados politicamente, proletariado e

campesinato constituíam os grupos mais obviamente dissidentes. No entanto, sua

39
organização efetiva só começou a se formar no final do século XIX, e a divisão — tanto

ideológica como geográfica — caracterizou esse desenvolvimento. De fato, uma

tendência libertária floresceu no Sul e no Leste, enquanto o marxismo se tornava

dominante no centro e no Norte. Ambos possuíam a crença de que a emancipação

deveria passar pelo processo de educação. A dura rivalidade entre marxistas e

anarquistas tornou a unidade do proletariado efêmera, mesmo nos momentos cruciais.

Em 1868, a chegada do italiano Giuseppe Fannelli, discípulo do anarquista

russo Mikhail Bakunin, impulsionou na Espanha essa corrente política. Já o socialismo

chegou mais tarde à Espanha, em dezembro de 1871, pelas mãos de Paul Lafargue,

genro de Karl Marx. O socialismo espanhol viveu um estável embora lento

desenvolvimento. Apesar de negligenciar a questão agrária, a estratégia gradualista do

socialismo se mostrou bem sucedida entre a chamada ―aristocracia trabalhista‖

(BROUÉ, 1992). Dureza e paciência na estrutura de organização fizeram com que os

socialistas conseguissem incursões em importantes áreas industriais, como as minas das

Astúrias, e em siderúrgicas e indústrias navais bascas. Entretanto, a ausência de uma

estratégia agrária impedia a expansão para o sul rural. Os esforços dos socialistas

também fracassaram na Catalunha e nas regiões vizinhas de Valência e Aragão. Em

contraste, o movimento libertário desfrutava de períodos de intensa atividade seguidos

por outros de repressão e atividade clandestina. As ideias anarquistas pareciam fornecer

uma coerência ideológica à tradição segundo a qual as classes populares, sem confiança

no Estado e na política, recorriam à ação direta para resolver seus descontentamentos.

Frente a essa organização das camadas populares que ia se formando em

várias regiões da Espanha, o retorno do poder monárquico não significou o

fortalecimento do poder centralizado, e a volta do rei, após a Primeira República

Espanhola, encontrou um importante problema, tanto politicamente quanto no sentido

40
simbólico: a questão catalã. O movimento para a autonomia da Catalunha,

politicamente, era uma mostra da tendência à fragmentação do território espanhol e,

simbolicamente, uma prova da falta de influência da monarquia no país. Além disso, o

desenvolvimento industrial de Barcelona, no final do século XIX, gerou grandes

desentendimentos entre os novos ricos de Barcelona com o governo de Madri,

aproximando cada vez mais esses industriais ao nacionalismo catalão. A ―Liga Catalã‖,

nascida das camadas dirigentes daquela região, era uma formação autonomista de

posicionamento fortemente conservador, mas se mobilizou contra o centralismo de

Castela, levando tanto a pequena burguesia quanto parte do proletariado para o mesmo

lado. O movimento de autonomia da Catalunha, a ideologia anarquista dos

trabalhadores, as altas taxas de analfabetismo e o ambiente criado pelo Partido Radical 8

de Alejandro Lerroux tornaram Barcelona a cidade mais turbulenta da Europa no

começo do século XX, sendo conhecida como ―a cidade das Bombas‖. Assim, ―em

Barcelona, a revolução não se prepara pelo simples fato de que está preparada

sempre‖, como dizia o governador civil Angel Ossorio y Gallardo (THOMAS, 2004, p.

38). Nos anos de 1890, Barcelona presenciou uma espiral de bombardeios e uma

repressão impiedosa. A combinação entre proletariado radical, movimento nacionalista,

classe empregadora intransigente e oficialato revoltado tornou Barcelona, da maior

metrópole industrial da Espanha, no principal centro de conflito político do país.

8
O partido de Lerroux incitava seus seguidores com brutal anticlericalismo, anticatalanismo e promessas
de uma vindoura revolução após o estabelecimento da República (SALVADÓ, 2008, p. 35).

41
Geração de 98

As questões conflituosas também se davam no âmbito externo, marcando a

década de 1890 pela tentativa da Espanha em manter suas colônias — Porto Rico,

Filipinas e Cuba — e os últimos vestígios do que um dia foi o império espanhol. A

guerra colonial em Cuba foi um dos conflitos mais significativos deste período, e se

converteu em uma luta contra os Estados Unidos. O impacto da derrota espanhola

inflamou ainda mais as crises nacionais. O fim do domínio espanhol sobre Cuba, em

1898, acentuou o momento crítico pelo qual passava a Espanha, pois os espanhóis

tinham uma especial ligação com a colônia, enxergando nela outra província andaluza.

Tal perda fez com que o país ibérico movesse todas as suas forças para manter o

domínio sobre o Marrocos. Porém, a campanha no país africano só estendeu os conflitos

internos espanhóis para o início do século XX. Os acontecimentos de 1898 foram muito

significativos na Espanha, não apenas pelo fim do império na América, mas pela

sensação de desmoronamento que se abateu sobre o país. A estabilidade do regime foi

colocada em risco pela frequente intervenção pretoriana na política. Ressentidos e

traumatizados pela derrota colonial, os militares passaram a não tolerar qualquer crítica

civil, começaram a reivindicar o papel de guardiões do que eles consideravam como

―valores sagrados da nação‖: a unidade da pátria e a preservação da ordem social.

O ano de 1898 teve um impacto tão grande que, na Espanha, nasceu uma

geração de intelectuais interessada em pensar a profunda crise econômica, social e do

pensamento nacional. Junto com os muitos conflitos internos e externos, a Espanha

vivia uma época de prosperidade artística e literária, e a união destes ficou conhecida

como ―Geração de 98‖. O grupo de escritores nasceu em um momento de profunda

42
crise, e se uniu, sobretudo, ideológica e politicamente, concentrando suas atenções sobre

os males do país. Sua ação enfraqueceu a legitimidade moral do regime. Os poetas,

romancistas e filósofos da Geração de 98 pensavam soluções para o atraso pelo qual

eles consideravam que a Espanha passava. Pío Baroja e Miguel Unamuno pensavam

que as resoluções dos problemas do país passavam pela crença progressiva na

mobilização popular; José Ortega y Gasset via como necessária a busca de uma elite

moral; Joaquín Costa pensava que era necessária uma personalidade forte, ―um

cirurgião de ferro‖, para erradicar a corrupção da política e realizar uma regeneração

nacional a partir de cima. Essas abordagens constituíram os dois caminhos para a

modernidade, o democrata e o autoritário, cujo confronto final aconteceu abertamente

em 1936. Também pertenciam a esse grupo Azorín, Jacinto Benavente, A. Ganivet,

Ramiro de Maeztu e António Machado.

No mesmo ano de 1898, nasceu Federico García Lorca. A vida de Federico

García Lorca, por si só, poderia ser um capítulo histórico da Espanha. O poeta nasceu

no mesmo momento do fim do império espanhol, e morreu no primeiro mês da Guerra

Civil Espanhola, outro divisor de águas (trêmulas) da história do país. O local de

nascimento e morte do escritor é o mesmo: Granada, na Andaluzia. Apesar de Federico

haver estado em diversos lugares da Espanha e da América, o poeta, que em muitas de

suas obras — poemas, peças, conferências e entrevistas — homenageou, se remeteu e

instigou sua terra, encontrou no mesmo local o céu e o inferno de sua infância e

adolescência, frustrações e paixões, êxitos na vida pública e a exposição da vida

privada, seu berço e sua sepultura. A vida de García Lorca mais parece uma obra

dramática, seguindo o fio condutor da história da Espanha na qual poderíamos inscrever

a vida de Federico como uma tragédia grega, inexorável nos fatores que convergem para

o fim trágico.

43
Como trágicos foram caracterizados alguns acontecimentos da história do

país. Ainda nos resquícios da tentativa de manter a última colônia da Espanha, em 1909,

o governo espanhol convocou 850 reservistas para seguirem para o norte da África, dos

quais alguns foram convocados à Catalunha. Mas, quando os militares embarcaram no

porto de Barcelona, iniciou-se uma greve geral de protesto que ficou conhecida como a

―Semana Trágica de Barcelona‖. Da greve participaram socialistas e anarquistas, e esse

acontecimento foi imortalizado pela queima de aproximadamente oitenta igrejas e

outros edifícios religiosos. Quando o exército retomou o controle, foram registradas 120

mortes, e apesar de terem sido atacados tantos edifícios de ordem religiosa, apenas três

dessas mortes foram de membros da Igreja. Embora não fosse um ataque político contra

o regime, a Semana Trágica prognosticou, em pequena escala, o que aconteceria durante

os três anos da Guerra Civil, com as rebeliões antimilitares, a violência anticlerical

como expressão da frustração das classes trabalhadoras e a violenta repressão a tais

manifestações. A ―Semana Trágica de Barcelona‖ foi a primeira mostra, no século XX,

do impacto no encontro do amontoado de ―Espanhas‖. Aos governantes, preocupava

mais a destruição, aparentemente sem sentido, causada pelo povo, do que as ideias

revolucionárias dos grupos de esquerda. Assim, apoiando-se no medo das massas e na

tentativa de evitar novas manifestações populares, a classe política evitou tanto quanto

possível as eleições gerais.

Poucos anos depois da ―Semana Trágica de Barcelona‖, deflagrou-se a

Primeira Guerra Mundial. A Espanha não entrou na Guerra, mas a guerra entrou na

Espanha, e com um impacto devastador. Para as forças políticas não-dinásticas e para as

elites culturais, o conflito europeu se tornou uma questão de preocupação obsessiva, e a

guerra era percebida, pelos espanhóis, como um choque ideológico. A inquietação

interna da classe operária, a questão regional e as guerras coloniais eram os principais

44
problemas enfrentados pelo governo espanhol no início do século passado, o que

justificou que o exército voltasse a interferir na política, justificando a brutalidade da

tentativa da guarda civil de evitar outra revolução, tendo em vista o exemplo chegado

do Leste, a Revolução Russa de 1917.

A Espanha tornou-se então em palco de sucessivas agitações populares. No

verão quente de 1917, a deflagração de uma greve de transportes em Valência gerou um

conflito no qual a reação militar foi de uma brutalidade impressionante. A partir de

1918, a rebelião irrompeu por todo o Sul agrário; em 1919, uma greve geral em

Barcelona durou 44 dias, deixando a cidade completamente paralisada. Nesse ano, os

conflitos sociais se transformaram em verdadeiras lutas de classes depois que burguesia,

grupos paramilitares e Exército selaram uma aliança sem que uma série de importantes

governos de Madri tomasse conhecimento. Muitas cidades espanholas se tornaram

campos de batalha. Para agravar a situação, notícias devastadoras da quase esquecida

aventura marroquina abalaram o país no verão de 1921. Uma comissão parlamentar foi

formada para discutir a questão das responsabilidades, ecos da crítica ao regime que

tinha comandado o desastre de 1898.

As agitações chegaram também à Andaluzia, onde comitês anarquistas

ocuparam governos municipais, aumentaram salários, aguçando o temor dos

latifundiários, que por sua vez fugiram. Mais uma vez o exército dominou os grevistas,

e com a mesma agressividade imposta em outras partes da Espanha que se agitavam

contra a ordem instituída. Em 1923, depois de tantos anos de agitação, a exaustão

parecia estar por todos os lados, chegando inclusive à CNT e à UGT, e esse foi

considerado o momento perfeito para um golpe de estado. O exército aproveitou-se

dele, encabeçado por General Miguel Primo de Rivera. Quando tomou o poder, Primo

de Rivera proferiu as seguintes palavras ―Nem eu, nem minhas guarnições, nem as de

45
Aragão, das quais acabo de receber notícias nesse sentido, transigimos em nada do que

nos foi pedido. Se os políticos, em defesa de sua classe, formam uma frente única, nós

também o formaremos com o povo, que armazena tanta energia contra eles. E a esta

resolução, hoje moderada, lhe daríamos caráter sangrento‖ (apud THOMAS, 2004, p.

47). O golpe militar contou com o consentimento do rei Alfonso XIII — que sabia de

antemão o que estava sendo planejado —, dando início à ditadura de Primo de Rivera,

que vigorou por sete anos.

O monarca não manifestou nenhuma medida excepcional contra o golpe, e

deixou claro que sua principal lealdade era a ―seu Exército‖. Uma vez na capital, o Rei

dispensou rapidamente o Ministério, e convidou Primo de Rivera para formar um

governo militar. Em uma sociedade em transição entre a política oligárquica e a

democracia, a ditadura era, acima de tudo, uma solução exigida pelas classes

dominantes, assustadas por mobilizações populares cada vez mais constantes. O novo

governo foi recebido com alegria pela burguesia catalã, que agora contava com o

capitão-general de Barcelona, Primo de Rivera, como o governante do poder central. As

corporações agrária e industrial e as câmaras de comércio da Espanha, assim como a

Igreja Católica, também manifestaram satisfação com o novo regime.

A ditadura de Primo de Rivera teve início, como se disse, em 1923 e seguiu

até 1930, poucos meses antes da chegada da Segunda República. O governo fez

desaparecer partidos políticos e agiu com a opressão esperada de uma ditadura, porém, a

restauração da paz social, a crítica à corrupção do desacreditado regime anterior e a

bem-sucedida pacificação de Marrocos garantiram certa popularidade à ditadura. Além

disso, um ambicioso programa de obras públicas — novas represas, vias férreas,

eletrificação rural, construção de estradas e, em Barcelona, um grande plano de

expansão industrial — deram à ditadura um ar de prosperidade. Por outro lado, Primo

46
de Rivera perseguiu a classe média, e constantemente se envolvia em escândalos de

ordem pessoal, sendo um dos mais conhecidos o caso de uma cortesã que foi presa por

ter sido pega com substâncias ilícitas, e logo foi solta, graças à intervenção do ditador.

Sem qualquer coerência ideológica ou fundações políticas sólidas, o regime logo

começou a se desintegrar.

A imagem que Primo de Rivera passava à população geral era de patriota,

magnânimo, compreensivo e tolerante. Uma das várias histórias que correm sobre o

ditador conta que este estava em um teatro e começou a fumar, a despeito das placas

que diziam que era proibido. Quando lhe informaram que ele estava quebrando uma

proibição, o ditador se levantou, e com um cigarro na mão, declarou: ―esta noite, todos

podem fumar‖ (THOMAS, 2004, p. 48). Também era conhecido como um general

capaz de trabalhar meses a fio, sem descanso, para depois ser visto em farras,

acompanhado por mulheres e bêbado pelas ruas de Madri, momentos nos quais fazia

confidências embaraçosas. E, à proporção que a incerteza política aumentava, a

generalização da censura, as constantes decisões arbitrárias e um claro favoritismo pela

Igreja Católica levaram à oposição intelectuais e estudantes.

As excentricidades do ditador se expressavam especialmente em medidas

tomadas em seu governo, e em 1929, junto com a crise econômica mundial que também

atingiu a Espanha, Primo de Rivera aboliu a censura de imprensa, momento impróprio

para receber a chuva de críticas que se seguiram. O ditador foi além, e no mesmo ano,

sabendo que sua popularidade estava francamente em baixa, Primo de Rivera decidiu

consultar o impacto de sua autoridade sobre os generais mais velhos da Espanha e o

apoio destes. A grande maioria respondeu em lealdade ao rei, e poucos citaram o

ditador, fornecendo ao rei a desculpa para exercer pressão sobre Primo de Rivera no

sentido de que se retirasse em silêncio. O Rei Alfonso XIII se apoiava na crença de que

47
seu poder era devido não ao apoio do exército, mas à ordem real, e se viu na

possibilidade de ser, ele mesmo, o salvador da Espanha. E assim foi feito. Primo de

Rivera, doente e isolado, renunciou em janeiro de 1930, e deixou a Espanha para

morrer, três meses depois, em Paris, aos 70 anos.

Apenas alguns poucos monarquistas reagiram com entusiasmo ao apelo do

soberano para salvar o trono. Em contraposição, a volta do rei aumentou os sentimentos

republicanos pelo país. Além disso, muitos oficiais do exército viam o comportamento

do rei como desonroso por aceitar a renúncia do ditador que ele mesmo apoiou.

Aproveitando a desaprovação militar, outros setores da sociedade espanhola se

manifestavam como republicanos impenitentes. Quanto à Igreja, houve uma postura

ambígua frente à monarquia: parte desejava que se estabelecesse um regime

democrático, parte via mais oportunidades para a instituição com um governo real. No

mesmo ano de 1930, grupos de diferentes tendências políticas e ideológicas — católicos

conservadores, republicanos de direita e de esquerda e defensores do nacionalismo

catalão — assinam o ―Pacto de San Sebastián‖, acordo no qual se pronunciavam

favoráveis à República. Enquanto os monarquistas logo se envolveram em disputas no

âmbito das esferas de poder, os republicanos se caracterizavam pela coerência e

unidade. Os republicanos, além de se colocarem contra a ideia de que um único homem

poderia destituir e nomear a um chefe de governo, este grupo de intelectuais e ativistas

via na ideia da abolição da monarquia um passo para a modernização da Espanha.

48
Múltiplas Repúblicas de Espanha

O regime monárquico, frágil, organizaou eleições, apesar dos riscos

evidentes, em busca de alguma base para o poder do rei. O rei apelou às urnas,

prometendo o restabelecimento das garantias constitucionais suspensas durante a

ditadura, certamente acreditando que o êxito que logrou sobre o ditador Primo de Rivera

se repetiria. Além disso, esperava que as estruturas espanholas tradicionais, construídas

sobre o reinado de ―caciques‖, assegurariam sua vitória. Um pouco antes das eleições se

realizaram, violentos distúrbios estudantis colocaram a guarda civil na defensiva e

anunciavam a atmosfera exuberante que circundaria as eleições; acabaram por adquirir

caráter de plebiscito.

Para surpresa geral, as eleições municipais contaram com quórum

excepcionalmente alto, garantindo a maioria esmagadora de votos para os republicanos

nas grandes cidades, principalmente em Madri e Barcelona. Em 12 de abril de 1930,

quando começaram a se desenhar os resultados finais das urnas, já era claro que, em

todas as cidades grandes da Espanha, os candidatos que apoiavam a monarquia haviam

sido derrotados. A pequena burguesia também votou em massa contra a Monarquia,

porém, na zona rural a monarquia conseguiu suficientes cadeiras para assegurar uma

maioria no conjunto do país, apesar de que nessas regiões era evidente que os coronéis

tinham força para impedir a idoneidade da apuração dos votos. Apesar de todas as

manobras dos setores direitistas, militares e monárquicos, na tarde de 14 de abril as

multidões, cansadas dos setes anos de ditadura, inundaram as ruas de Madri, festejando

a chegada da Segunda República Espanhola e pedindo aos gritos a renúncia do rei.

49
O governo, intimidado, sugeriu ao rei que aceitasse o conselho dos lideres

republicanos e que abandonasse a capital ―antes do pôr do Sol‖. O então Rei Alfonso

fez a seguinte declaração no momento de sua retirada:

As eleições celebradas no domingo me mostram, claramente, que hoje


não tenho o amor do meu povo [...] eu poderia encontrar meios de
sobra para manter minhas prerrogativas regentes, obrigando a ceder,
de maneira eficaz, quem as combatem. Mas, decididamente, quero me
afastar do que possa lançar a um compatriota contra outro, em
fratricida guerra civil [...] (apud GIBSON, 1992, p. 53).

A Guerra Civil não era uma longínqua ameaça, mas uma situação latente

que só esperava o momento oportuno para eclodir. Tampouco era simplesmente a

influência de elementos externos à Espanha, um conflito ideológico internacional que se

expressou no âmbito interno, mas sim um amontoado de questões daquele país, daquele

povo, de sua cultura e história, que foi aproveitado pelas relações europeias daquele

cenário que antecedia a Segunda Guerra Mundial no momento da eclosão da Guerra

Civil Espanhola.

Mas, antes do conflito civil, a Espanha herdada pela República apresentava

uma economia agrária sobre a qual gravitava a questão da reforma da terra; uma Igreja

poderosa, considerada como um dos maiores latifundiários da Espanha da época, e cujo

poder espiritual, por muitos anos, se confundiu com o poder temporal; um exército que

durante o primeiro terço do século XX havia escorregado para o militarismo; algumas

províncias em destaque, como a Galícia e a Catalunha; uma minoria intelectual cuja

preparação contrastava com o atraso cultural da maioria da população, e, por último, um

Estado anacrônico, que por anos foi instrumentos de alguns setores sociais. Tornava-se

urgente a construção de um novo solo para um novo país.

O primeiro governo da Segunda República era formado por membros de

postura claramente anticlerical, quando não ateus, com exceção de Miguel Maura,

católico, nomeado ministro do governo. Porém, havia um grupo anticlerical muito mais
50
temível que esses primeiros, os herdeiros da Constituição de Cádiz de 18129. Estes

homens, pertencentes à classe média espanhola, ou que exerciam profissões liberais,

eram os legatários dos reformadores liberais da Espanha do século XIX, cuja atividade

intelectual havia formado a Instituição de Livre Ensino — escola ilustrada por um grupo

de professores universitários que haviam se negado a prestar juramento de lealdade ―à

igreja, à coroa e à dinastia‖, da qual fazia parte a Residência de Estudantes de Madri

(grupo de estudos para pós-graduados da Instituição de Livre Ensino). Esses estudiosos

tinham forte preocupação com o desenvolvimento da intelectualidade, que levaram cem

anos tentando limitar o poder das ordens religiosas, dos latifundiários e de outras

restrições à liberdade mercantil, agora passavam a integrar o novo governo espanhol. O

ministro da Justiça, Fernando de Los Ríos, professor da Universidade de Granada, e o

ministro de Guerra, Manuel Azaña, eram alguns dos intelectuais republicanos, frutos da

Instituição e da Residência.

A Instituição de Livre Ensino e a Residência de Estudantes de Madri, no

princípio de sua formação, adotaram postura apolítica, mas tal postura só seria possível

se expressar-se favorável a liberdade de pensamento fosse um ato politicamente neutro.

Porém, na Espanha do início do século XX, esses intelectuais se viram obrigados a

adotar atitudes politicamente mais definidas. Antes mesmo da Segunda República, o

espírito da Instituição teve fundamental importância, animando a oposição intelectual

mais vigorosa que a ditadura de Primo de Rivera enfrentou. Tanto a Instituição, quanto

a Residência, foram parcialmente responsáveis pelo renascimento da cultura espanhola

que se seguiu à perda das últimas colônias americanas, em 1898.


9
A Constituição de 1812, aprovada pelas Cortes Gerais Extraordinárias reunidas na cidade de Cádiz, foi o
primeiro documento constitucional aprovado na Península Ibérica, e um dos primeiros no Mundo. A
Constituição contém muitos dos princípios fundamentais que ainda hoje se aplicam, como os princípios
de liberdade individual, liberdade de imprensa e inviolabilidade do lar. O documento foi profundamente
inovador e, no momento dasua proclamação, significou uma verdadeira ruptura com o que existia antes, o
que o tornou fortemente incômodo para o regime da Espanha de 1812.
Fonte: http://www.cadiz2012.es/

51
A lua de mel da nova República durou apenas um mês. Os anarquistas

passaram a aproveitar a postura antiautoritária do novo governo para voltar a se

organizar, em especial em Barcelona. O nível de desemprego na Galícia e Andaluzia

havia aumentado no período posterior à Primeira Guerra Mundial, e a agitação popular

não cessou com a chegada da República. Mas, o primeiro estalo da disputa que

continuaria até a guerra civil foi a pastoral, grave e violenta, do cardeal Segura,

arcebispo de Toledo, publicada no jornal El Sol, em 7 de maio de 1931: ―Se

permanecermos quietos e ociosos e nos deixarmos ir até a apatia e a burrice; se

deixarmos aberto o caminho a todos aqueles que tentem destruir a religião ou se

esperarmos a benevolência de nossos inimigos para assegurar o triunfo de nossos ideais,

não teremos nenhum direito a nos queixar quando a amarga realidade nos mostrar que

tivemos a vitória em nossas mãos, mas que não soubemos lutar como corajosos

guerreiros dispostos a sucumbir gloriosamente‖ (apud BROUÉ, 1992, p. 69).

A preocupação do arcebispo tinha fundamento. Nos anos 30 do século XX,

dois terços dos espanhóis eram católicos não praticantes. Na zona rural de Castela,

apenas 5% da população cumpriu seus deveres pascoais no ano de 1931. Em algumas

cidades da Andaluzia, apenas 1% dos homens iam à igreja, mesmo que 90% das pessoas

alfabetizadas o tivessem sido em escolas religiosas. Nesse cenário, um fato importante é

que as mulheres espanholas são muito mais religiosas que os homens, um símbolo a

mais da posição da feminina dominante na Igreja, expressada pelo papel atribuído na

Espanha à Virgem Maria, tão exagerado que beira à mariolatria.

A Espanha da Segunda República já não era mais tão católica como o foi a

Espanha do século XV. No chamado ―Século de Ouro‖, época do apogeu espanhol,

impulsionado pelo descobrimento da América, seu ouro e sua prata, a Igreja Católica

exercia sua força e influência política por meio da severa e respeitada Inquisição. No

52
que diz respeito à intelectualidade, a soberania da Igreja na Espanha se impôs até o

século XVIII, quando as universidades ainda discutiam sobre qual língua falavam os

anjos, ou de que líquido era feito o reino dos céus. No século XIX, após as guerras

napoleônicas, os filósofos franceses começaram a se popularizar no país, e com isso a

Igreja se tornou o centro de resistência contra as ideias liberais. O enfraquecimento da

Igreja ficou ainda mais evidente entre os anos de 1909 e 1917, quando o governo

decidiu, teoricamente, instituir o ensino estatal primário gratuito, mesmo que os

professores fossem quase todos católicos. Com isso, a Igreja Católica manteve sua

influência sobre a juventude, disseminando um estado de espírito reacionário e pró-

oligárquico ao longo de muitas gerações por meio da autoridade das escolas dirigidas

por ordens religiosas.

Mas, além disso, a Igreja incorporava longas e importantes tradições na vida

dos espanhóis, criando, na verdade, o padrão de vida no país. Assim, era fácil dizer que

o anticlericalismo era um elemento da ―anti-Espanha‖, e muitos o diziam. Porém, o

anticlericalismo na Espanha dos anos de 1930 não só era crescente nos setores

intelectuais de esquerda, mas também ganhava força com as ações dos grupos

anarquistas, socialistas e comunistas, enquanto os liberais se esforçavam na causa de

liberar o ensino e a cultura da opressão sufocante do catolicismo. Aos olhos de muitos

daqueles que estavam despertando para a vida política, a Igreja Católica espanhola era

um dos ícones mais fortes da tradição reacionária e do servilismo que, ao longo dos

séculos, a população foi obrigada a viver. Poucos dias após o início do novo governo, a

Igreja professava suas desconfianças quanto à República laica, e fazia circular a apostila

do catolicismo, da qual constava:

53
O que prega o liberalismo? – Que o Estado é independente da
Igreja.
Que tipo de pecado constitui o liberalismo? – É um gravíssimo
pecado contra fé.
Qual o pecado cometido por aquele que vota num candidato
liberal? – Geralmente, um pecado mortal (apud GIBSON, 1992,
p. 49).
.
Mas uma das maiores batalhas da República seria travada no campo da

educação primária e secundária. O novo governo estava determinado a terminar com o

monopólio da Igreja sobre o ensino e criou um sistema educacional estatal capaz de

enfrentar o grande desafio representado pelo analfabetismo geral. O analfabetismo, em

toda a Espanha, era de 50% ou mais; em Madri, o analfabetismo era de 26%, e apenas

em duas províncias (Barcelona e Álava, no País Basco) a taxa estava abaixo de 25%.

Tendo em conta a alta taxa de analfabetismo que mantinha a população espanhola presa

às instituições e a seus modos de pensar, foi na esfera da educação e cultura que a

Segunda República atuou de maneira mais forte e decidida. O aumento do número de

escolas e do salário dos professores e a fundação de universidades públicas por todo o

país foram importantes medidas tomadas pelo governo, que assim mantinha seu

prestígio entre os intelectuais da época. Mas a República de 1931 foi mais além do que

o ensino formal, obrigatório e das salas de aula. Foram criados e financiados grupo

teatrais, como ―La Barraca‖, dirigido por Federico García Lorca, ou ―El Búho‖, dirigido

por Max Aub, com as quais foi possível a difusão da cultura clássica espanhola entre os

mais diversos setores populares, tanto no campo quanto nas cidades pequenas do

interior do país.

Os integrantes da Geração de 27 foram os que de fato constituíram a

geração literária da República. O mais combativo, junto com García Lorca, foi Rafael

Alberti, membro do Partido Comunista, além de autor de livros de poesia de combate e

fundador e diretor da revista Octubre, de clara orientação revolucionária. Alberti foi um

54
dos mais ativos promotores das lutas de apoio aos intelectuais perseguidos ou presos

pelas ditaduras latino-americanas, como foi o caso do comunista brasileiro Luis Carlos

Prestes, condenado a morte pelo ditador Getúlio Vargas. E, juntamente com Alberti,

estavam Luis Cernuda, María Teresa León, Emilio Prados e Lorca no apoio à liberdade

de Prestes. Mais dedicados à obra poética estavam Vicente Alexandre, Miguel

Hernández, Pedro Salinas e Jorge Guillén. Em prosa, se destacavam Pío Barija, Valle

Inclán, Rosa Chacel e Ramón J. Sender.

Porém, os intelectuais espanhóis se encontravam desligados do povo,

vivendo no etéreo mundo das ideias. A vida intelectual de Madri da época não era

concebível fora do ambiente lírico e festivo de suas ―tertúlias‖ — muito comuns nos

círculos intelectuais da Espanha. Ao passo que os ativistas estavam com as pessoas do

povo, nas ruas, manifestando sua urgente vontade de mudança, seu desejo de assumir o

protagonismo histórico que a abertura democrática, em teoria, lhes devia oferecer. Em

relação aos grupos políticos ativos, as esquerdas estiveram divididas entre socialistas,

que apoiavam o governo, anarquistas e comunistas. Porém, mesmo divididos, estavam

nas ruas, encorajando a insurreição popular. Enquanto isso, as direitas formavam a

―Confederação Espanhola de Direitas Autônomas‖ (Ceda), que também aproveitava a

abertura do governo democrático para se organizar com a clara intenção de vencer o

bloco republicano nas eleições seguintes, em 1933.

A imprensa também estava dividida. De maneira geral, pode-se dizer que à

direita estavam os jornais ABC, Informaciones e El Debate, como os de maior

importância na época, e à esquerda os jornais El Socialista, Mundo Obrero, El Liberal,

La libertad e El Heraldo de Madrid, os quais eram os mais influentes. O jornal El Sol,

outro de grande importância, tentava manter-se ao centro. Com a abertura democrática

da República, os jornais espanhóis ganhavam cada vez mais força na luta política, sendo

55
usados como importante arma na conquista da população que ainda não se via satisfeita

com o novo governo. Era cada vez mais importante ter o maior número de circulações a

favor — ou contra — algum dos lados intelectuais e ativistas.

O século XX contemplou um despertar do espírito espanhol: a volatizada

política dos anos transcorridos entre 1898 – 1936, ainda mais intensa entre 1931 e 1936,

foi a expressão de uma vitalidade que se estendia à maior parte das esferas da vida da

população. A primeira parte do século XX foi mais rica, do ponto de vista artístico, que

qualquer outro momento depois do século XVII. São desta época os famosos nomes de

Picasso, Dalí, Miró, García Lorca, Juan Jamón Jiménez, Antonio Machado, Pío Baroja,

Buñuel, Falla, Unamuno y Ortega. No início do século XX, a Espanha estava nas trevas

mantidas pelo domínio da Igreja Católica, e neste ―renascimento espanhol‖, tanto os

setores de direita quanto os de esquerda eram responsáveis pelo desabrochar no campo

do ensino e da arte. O racionalismo da Instituição de Livre Ensino começava a contar

com o complemento de um catolicismo reavivado.

Com a Segunda República, em 1931, uma nova constituição foi

promulgada, inspirada na Constituição de Weimar, que a proclama como a ―República

democrática dos trabalhadores de todas as classes‖ (BROUÉ, 1992, p. 35). Com esta

constituição, houve a separação entre a Igreja e o Estado, foi eliminado o orçamento de

culto e clero, cortadas as leis especiais às quais as congregações religiosas deveriam se

submeter, a proibição de a Igreja dirigir instituições de ensino e a dissolução das ordens

religiosas que seguissem voto de obediência diferente das leis do Estado. A nova

Constituição espanhola de 1931 foi uma das mais liberais e progressistas da Europa, e

indica uma abertura social inédita — e temida — ao país. A promulgação do novo

código de leis legalizava o divórcio, a prostituição e a distribuição de terras, além de

56
secularizar hospitais e cemitérios (GIBSON, 1992, p. 50). O Vaticano não reconheceu

imediatamente a República.

A Constituição de 31 foi um forte golpe contra os privilégios da Igreja,

instituição que há séculos se constituía como um dos blocos de poder mais fortes do

país. Juntamente com a Igreja, boa parte da classe média foi afastada da República por

causa da nova constituição: os latifundiários foram atingidos pela lei de reforma agrária,

mas o exército foi o maior afetado, tanto pela promulgação do Estatuto Catalão, que

viria em 1932, quanto pelos passos que estavam sendo dados em direção a um Estado

espanhol federal. Desde as guerras napoleônicas, os oficiais do exército haviam se

acostumado a participar da vida política, e se costumava dizer que o exército espanhol

se mantinha, não para combater os inimigos da Espanha no exterior, mas para intervir

nos assuntos internos do país. Mas Azaña acreditou que seria possível um apoliticismo

no exército, e enquanto foi ministro da Guerra, decidiu reduzir o poder da instituição.

Além disso, a nova República abria espaço para as reivindicações operárias e

camponesas que as classes no poder não eram capazes de satisfazer e suportar.

Nos anos de 1930, a economia espanhola se caracterizava por um suave

declínio na produção industrial, um forte declínio na mineral, estabilidade ou leve

aumento da produção agrícola e o aumento da população na taxa de quase 1% ao ano

(THOMAS, 2004, p. 213). Além dessas questões internas, é preciso ter em conta que os

anos de 1929 a 1932 foram um período de depressão mundial, época inoportuna para

qualquer governo que subisse ao poder. Assim, contagiados pela fragilidade do cenário

econômico mundial, os espanhóis ricos e a comunidade financeira internacional eram

hostis à República, em parte porque os ministros eram inexperientes, em parte porque a

política inspirava dúvidas, e ninguém queria colocar em risco seu dinheiro.

57
Junto com a República, uma onda de desemprego chegou à Espanha. Em

dezembro de 1931, o país contava com cerca de 400 mil desempregados, e 600 mil em

dezembro de 1933, aumentando ainda mais as agitações da população. As agitações

operárias reforçavam as agitações camponesas, e viceversa. Porém, essas agitações

foram reprimidas pelas polícias tradicionais, em especial pela Guarda Civil, que já no

primeiro biênio da República iniciou as violentas coibições que seriam sua marca no

biênio posterior. Em 1932, começavam a pipocar greves pela Espanha, sendo as de

Barcelona, Sevilha e Castilblanco as mais significativas, pois foram duramente

reprimidas pela Guarda Civil, deixando dezenas de mortos e centenas de feridos. Tantas

agitações aumentavam ainda mais a resistência das camadas economicamente

dominantes contra a República, a democracia e as aberturas que esta abria para as

manifestações.

Em 1932, elementos revolucionários do Exército conspiravam contra a

República. Para os lideres do Exército — Franco, Queipo de Llano, Varela e Yagüe, que

haviam se unido na dominação do Marrocos —, a Espanha republicana se tornava um

novo problema marroquino, ―infestada de tribos rebeldes camufladas de partidos

políticos e pedindo a gritos uma mão de ferro‖ (THOMAS, 2004, p. 117). A aprovação

do Estado Catalão foi um importante estopim no despertar das paixões em muitos

oficiais do Exército, não apenas porque a criação do Estado Catalão parecia ameaçar a

integridade da Espanha, do poder dos militares, mas a autonomia catalã parecia uma

afronta deliberada ao próprio Exército, que, entre 1917 e 1923, tinha Barcelona sob

controle marcial.

No plano internacional, o fascismo na Europa era um fato incontrolável.

Não apenas por Mussolini na Itália, que em 1932 ajudou financeiramente a falida

58
insurreição de Sanjurjo em Sevilha10, mas principalmente a partir de janeiro de 1933,

quando Hitler se tornou o chanceler da República de Weimar, na Alemanha. A imprensa

espanhola seguiu atentamente os acontecimentos sob o governo de Hitler, e, ―enquanto

os jornais católicos aplaudiam, jornalistas republicanos e de esquerda contemplavam

com ansiedade o crescimento do fascismo na Alemanha e não tinham ilusões sobre o

que estava acontecendo nos bastidores em seu próprio país‖ (GIBSON, 1992, p. 52).

Se para França, Inglaterra e os demais países a situação ficava cada vez mais

preocupante, para a Espanha, que do outro lado de suas fronteiras também suportava a

hostil ditadura de Salazar em Portugal, a situação adquiria tons de cerco, uma asfixia

eminente. Na Espanha, ―os comunistas se tornam os paladinos do antifascismo

concebido como o reagrupamento mais amplo possível de todos os adversários do

fascismo, mesmo externos ao movimento operário‖ (BROUÉ, 1992, p. 62). Talvez por

isso Lorca tenha sido tantas vezes identificado com os comunistas, por sua postura

antifascista, sendo agrupado com esses, mas não exatamente por ter uma ideologia

comunista.

Neste cenário de inúmeras Espanhas alimentando profundos ódios e

rancores entre si, somado à situação europeia que presenciava o fortalecimento do

fascismo por vários países, chegaram as eleições de 1933. O maior dos grupos de direita

a despontar nas eleições foi a Ceda, e com isso, em novembro de 1933, deu-se início ao

―biênio negro‖ — dois anos de governo de direita na República Espanhola. Porém,

poucos dias antes das eleições, a CNT chamou uma insurreição popular que se espalhou

rapidamente por várias zonas do país. À frente da insurreição estavam os lendários

anarquistas espanhóis Buenaventura Derruti e Francisco Ascaso. A insurreição nacional

anarquista foi sufocada, e o novo governo, liderado pela Ceda, aproveitou a

10
Refiro-me aqui à fracassada tentativa de golpe, em agosto de 1932, pelo general monarquista José
SanjurjoSacanell. Pelo intento, Sanjurjo é condenado à morte, mas foi indultado e continuou conspirando
na prisão.

59
oportunidade para declarar ilegais os anarquistas e comunistas, fechando seus locais e

suspendendo sua imprensa. Além disso, devolveu a pensão anual concedida à Igreja e

inabilitou a Reforma Agrária, anistiou os presos políticos do biênio anterior, não

respeitou o salário mínimo e prontamente censurou os jornais e revistas de esquerda.

Como resposta a essa situação de restauração de privilégios às classes

acomodadas e às Igrejas, as greves e levantes trabalhistas pipocaram por todo o país.

Em 6 de outubro de 1934, Luís Companys, presidente da província da Catalunha,

proclamou que o poder da República estava sendo usurpado por fascistas, e oferecia aos

depostos republicanos refugiarem-se na Catalunha, província que conservava as

aspirações populares do governo original, e convidava a resistir a partir de lá. A

resistência catalã foi rapidamente sufocada, para os insurgentes, graças à não resposta

do resto da Espanha, que teria aceitado o novo governo sem reclamar. Porém, a

Catalunha não sabia que, no mesmo período, Astúrias se converteu em um centro de

resistência ao poder central, e a revolta de Astúrias contou com a união de anarquistas,

comunistas e socialistas, dando origem à Frente Popular (BROUÉ, 1992, p. 33). Porém,

a falta de comunicação, por conta da ausência de vias de contato entre os insurgentes,

fez com que os protestos não se fortalecessem, mas que se afogassem em suas próprias

regiões. A repressão em Astúrias fez com que as prisões se abarrotassem de

revolucionários, entre eles o republicano Miguel Azaña e socialista Largo Caballero.

As eleições municipais de 1933 deram vantagem à direita espanhola, e nessa

segunda eleição, lutou-se com uma força até então desconhecida na Espanha. Em

centenas de vilarejos, a questão foi religiosa, e em alguns casos mesclada com a luta de

classes. Ao longo dos dois primeiros anos de república, o clero foi duramente

perseguido por prefeitos e por socialistas envolvidos no governo central, e a reação a

essa perseguição veio nas eleições de 1933. O sistema político favorecia as coalizões.

60
As direitas souberam aproveitar essa abertura da democracia, e somaram a isso uma

massiva propaganda que desfigurou toda a obra positiva da República. Tais artimanhas

deram às direitas espanholas uma vitória inesperada, e teve início o biênio negro.

A vitória das direitas não é uma simples peripécia, mas, para os seus
inspiradores, uma primeira etapa. Pois não se trata, no seu espírito, de um
retorno do pêndulo numa simples alternância no poder, mas do início de um
contra-ataque para o qual serão empregados, se necessário, outros meios além
dos eleitorais, (BROUÉ, 1992, p.47)

Entre o final de 1933 e o início de 1936, a situação mudou na Espanha. O

biênio negro foi um período de governo de extrema-direita, mais autoritária e

corporativista do que simplesmente monarquista. O novo governo, presidido por

Lerroux, sob o comando da Ceda, na época da criação da Falange Espanhola — partido

político de ideologia fascista —, inicia, imediatamente, a demolição das obras dos

primeiros anos da República. José Antonio Primo de Rivera, filho do ditador morto, era

o líder da Falange, e declarou que a ―‗unidade sagrada‘ da Espanha estava ameaçada por

uma sinistra conspiração marxista-judaica organizada em Moscou‖, e baseado nessa

desculpa começou a preparar planos de ação da Falange que, não muito depois, seria

amplamente apoiada por diversos setores da direita espanhola (GIBSON, 1992, p. 55).

Durante o biênio negro, os patrões não passaram por inquietações políticas e

podiam se negar a cumprir as reivindicações salariais. Além disso, contavam com a

polícia, a guarda civil e o exército, e os trabalhadores sabiam disso. Condenados

políticos por ações na época da ditadura de Primo de Rivera foram anistiados; os

falangistas atacam jornais e centrais socialistas e liberais, atiram em universidades, com

a proteção das autoridades. O governo anulou a lei catalã, reduziu pela metade os

direitos dos grandes proprietários da província e rediscutiu a separação entre a Igreja e o

Estado. Esta medida foi o início oficial da aliança entre a instituição religiosa e o

61
Exército, e seria o estopim da Guerra Civil e uma das bases da ditadura do General

Franco.

Para os setores conservadores da sociedade espanhola, o biênio negro foi o

momento oportuno para pôr fim à agitação operária e camponesa. Aproveitando a crise

interna, a alta taxa de desemprego, o descontentamento do clero, a divisão do

movimento operário, foi investido contra as principais conquistas da população para

destruir as liberdades democráticas que permitiam a organização dos operários e dos

camponeses. A classe trabalhadora foi sendo cada vez mais atacada, e a consequência

foi a greve agrícola no início de 1934, seguida da revolução em outubro do mesmo ano.

A partir de então, os ressentimentos políticos intensificaram-se de forma irremediável,

particularmente devido à prisão de dirigentes dos trabalhadores. A tensão atingiu seu

ápice no começo de outubro de 1934, quando três ministros da Ceda passaram a integrar

o governo. A esquerda, convencida de que isso anunciava o início da escalada fascista

nas pegadas de Hitler, conclamou uma greve geral revolucionária, conhecida como

Revolução de Outubro. A Revolução aconteceu na Catalunha, Madri, mas sobretudo em

Astúrias, região de minas de carvão, onde 70 mil mineiros levantaram-se contra o

governo.

A Revolução de Outubro de 1934 teve início em Barcelona, com uma

Aliança Operária — não considerada pela CNT, que se posicionou contra a greve. A

população agitou-se em uma insurreição contra o novo governo. Em Madri, a CNT

também se recusou a ingressar na Aliança Operária, mas passou à ação insurrecional no

momento em que a Ceda anuncia fazer parte do governo. A partir disso, desencadeou-se

uma greve geral destinada a pressionar o Presidente da República. As ruas de Madri se

encheram de trabalhadores dispostos a pegar em armas, mas os dirigentes socialistas

não decidiram pela luta armada. O governo começou a prender dirigentes e militantes,

62
esvaziando o movimento. Porém, em Astúrias as coisas se dariam de outra forma: ali, a

CNT ingressou na Aliança Operária, que também se uniu ao Partido Comunista. A

greve geral ocupou a maioria das localidades e atacou de surpresa a polícia, o que lhe

permitiu ocupar a capital da província. Mesmo com a notícia do fracasso da Revolução

em Barcelona e Madri, os mineiros de Astúrias não se intimidaram. Apoderaram-se dos

arsenais de várias cidades, contando com trinta mil fuzis, outras armass e carros, e

chegaram a usar dinamite quando faltavam munições. O governo local, aconselhado

pelos generais Goded e Franco, iniciou a reconquista da província, contando com o

auxílio de tropas de elite enviadas do Marrocos. A capital, Oviedo, caiu em 12 de

outubro, mas a resistência continuou, e o Exército passou a retomar aldeia por aldeia,

até a rendição dos insurretos.

A Revolução foi sufocada com extrema violência. Foram mais de três mil

mortos, sete mil feridos e mais de quarenta mil presos, muitos destes submetidos à

tortura, provocando grande indignação. O estado de guerra foi mantido por vários

meses, e várias municipalidades foram suspensas, entre elas, Madri, Barcelona e

Valência. A partir daí, tornava-se impossível evitar a guerra civil, pois, com a repressão

a Revolução, todos os partidos e grupos da Espanha passaram a se posicionar

claramente por alguma ideologia revolucionária, fosse à direita ou à esquerda. Em

Astúrias, a Revolução de Outubro fez com que uma onda de horror sacudisse a classe

média espanhola, e lhes parecia que qualquer coisa, inclusive uma ditadura militar, era

preferível à desintegração que as esquerdas representavam.

Em maio de 1935, Gil Robles tornou-se ministro da Guerra, e um dos seus

primeiros atos foi nomear Francisco Franco. Nessa atmosfera, os proprietários de terras,

um dos mais poderosos grupos de pressão política da Espanha na época, perceberam

que podiam tratar os camponeses como bem entendessem. As leis que davam mínimas

63
proteções trabalhistas aos agricultores haviam sido revogadas, os atos de protestos

estouravam em todo o país. Entre os sindicatos socialistas e comunistas rivais, surgiam

sérios atritos ao longo da primavera, enquanto atiradores de extrema direita espalhavam

o terror pelas ruas. A atitude das direitas espanholas nas províncias durante o segundo

semestre de 1935 gerou tanto ódio que bem pode ser considerada uma das primeiras

causas para a eclosão da Guerra Civil (GIBSON, 1992, p. 56).

Em 16 de fevereiro de 1936, houve novas eleições na Espanha. Era domingo

de carnaval. Na votação, 34,3% dos votos destinavam-se à Frente Popular, coalização

republicana de esquerda; 33,2% para a Frente Nacionalista, coalização de direita.

Apesar do quase empate, provavelmente favorecido pelo caciquismo nos distritos rurais,

nas eleições, a esquerda tinha a maioria dos votos, e assim, a maioria das cadeiras. A

vitória da esquerda foi inesperada, mais acima disso, a derrota da direita foi inesperada

– e não suportada. Com o resultado, a Ceda ficou desmoralizada, e aproximadamente 15

mil de seus membros migraram para a Falange, reforçando de maneira inquestionável a

força com a qual o fascismo se espalhava pela Espanha.

Em 1936, o conflito entre tantas novidades e esperanças não coube nas

velhas estruturas, e o verão de 1936 não foi apenas o ―curto verão da Anarquia‖, nem

somente o período no qual Lorca acabava de escrever A casa de Bernarda Alba, mas

principalmente o auge de cento e cinquenta anos de apaixonadas lutas na Espanha.

Depois de dois anos de república e do biênio negro, os antigos donos do poder, dirigidos

pelo exército e apoiados pela Igreja, sentiam-se a encarnação das glórias passadas da

Espanha, e pensavam estar a ponto de reviver a reconquista dos Reis Católicos e a

expulsão dos infiéis. Frente a eles, se encontravam a classe média e praticamente todas

as forças trabalhadoras do país, carregando consigo anos de insultos e todos os tipos de

miséria, inquietadas pelo conhecimento de melhores condições de vida da qual

64
desfrutavam seus camaradas na França e Inglaterra, e pelo poder que supunham ter

conseguido os operários da Rússia. As esquerdas estavam horrorizadas pelo fascismo,

as direitas pelo comunismo. Além disso, as direitas supunham que, se não começassem

a contrarrevolução, seriam esmagadas. Entretanto, os anarquistas levavam toda uma

geração a se opor à sociedade, e a resposta do governo foi uma desesperada

administração de guerra, e não um governo em tempos de paz.

Houve na Espanha três querelas principais: uma, entre a Igreja e os liberais;

outra, entre os latifundiários, e posteriormente, a burguesia de um lado, e a classe

trabalhadora de outro; e outra entre os que reclamavam os direitos regionais —

principalmente na Catalunha e as províncias bascas — e os defensores da direção

central de Castela. A Espanha era um país conservador onde uma estrutura social

estancada havia mantido em atraso a economia, enquanto a educação política avançada

e a pressão da população impediam que o velho sistema pudesse seguir funcionando.

A última cruzada do Ocidente

O levante falangista começou em Melilla, cidade mais oriental do Marrocos

Espanhol, na noite de 16 para 17 de julho de 1936. O coronel Juan Seguí, chefe da

Falange, foi quem comunicou a seus companheiros a hora exata do levante: cinco da

manhã do dia seguinte (THOMAS, 2004, p. 239). No Marrocos, Franco era o General, e

foi o chefe do levante das bases na colônia espanhola. Sob seu comando, foram

ocupados todos os edifícios públicos de Melilla, fechada a casa do povo e os centros de

65
esquerda, e foram detidos os dirigentes dos grupos republicanos e de esquerda. E todos

os detidos que resistiram à rebelião foram fuzilados; qualquer pessoa, pelo simples fato

de ter votado na Frente Popular nas eleições de fevereiro, estava em perigo. E dessa

forma, a insurreição se seguiu pelo Marrocos, partindo da África, cruzando o Estreito de

Gibraltar e chegando ao sul da Espanha.

Às cinco e quinze da manhã de 18 de julho, Franco fez conhecer seu

manifesto, transmitido pelas rádios a partir das emissoras das Ilhas Canárias e do

Marrocos espanhol. Nele, o General fazia especial referência à excepcional relação que

os oficiais espanhóis tinham que ter com a pátria, mais que com qualquer ideologia ou

governo — se referindo ao fato de a Frente Popular haver ganhado as últimas eleições,

em fevereiro de 1936, sendo então os chefes de governo em uma aliança dos grupos de

esquerda, e a quem o Exército, em tese, deveria ter obediência —; denunciava as

influências estrangeiras — referindo-se ao êxito da Revolução Russa, o comunismo e os

movimentos socialistas e anarquistas vindos de outras partes da Europa — e prometia,

em tom emocional, uma nova ordem depois da vitória. Num primeiro momento, o

levante era apenas uma empreitada militar, não se fazia nenhuma menção aos ataques da

República à Igreja; a rebelião ainda não se havia convertido oficialmente em uma

cruzada.

O domínio sobre o Marrocos espanhol foi imediato, e os militares seguiram

para a Espanha. O governo do país, a princípio, tentou conter a revolta por meios

constitucionais, enfurecendo os militares leais à República e esquerdistas pela atitude

não armada do governo, mas Santiago Casares Quiroga, Presidente do Governo e

Ministro da Guerra, reforçou a postura do governo, anunciando que aquele que

fornecesse armas aos trabalhadores seria fuzilado. As ruas e cafés de Madri se encheram

de pessoas inquietas, e ninguém sabia o que de fato estava acontecendo, aumentando a

66
inquietação da população pela ausência de armamento para se defender de uma possível

sublevação, que foi o que de fato aconteceu.

Em quase todas as cidades, em 18 de julho de 1936, os governos civis

seguiram o exemplo do governo de Madri e se negaram a cooperar com as organizações

de trabalhadores, que clamavam pedindo armas. Em muitos casos, isso permitiu que

tivessem êxito as sublevações e assinou a sentença de morte dos próprios governos civis

e os dirigentes trabalhadores locais (THOMAS, 2004, p. 244). No entardecer do dia 18

de julho, sublevaram-se algumas guarnições pela Espanha, apoiadas pela Falange e, na

maioria dos casos, pela guarda civil. Nos lugares onde não havia guarnições, a guarda

civil, a Falange e as próprias pessoas de direita atuaram por si mesmas. O dirigente

designado pelos rebeldes declarava estado de guerra. As milícias socialistas, comunistas

e anarquistas tentavam resistir ao assalto de poder, enquanto os governadores civis

vacilavam em seus escritórios e tentavam se comunicar com Madri.

Foi no mesmo dia 18 de julho que a sublevação tomou conta da Andaluzia.

Em Sevilha, o General Queipo de Llano, chefe do corpo de carabineiros (guardas da

alfândega espanhola), levou a cabo um extraordinário golpe. Os trabalhadores da cidade

tentaram resistir, organizando-se com ajuda da Rádio Sevilha, que fez convocatória para

uma greve geral e pediu aos camponeses dos vilarejos vizinhos que acudissem a cidade

com armamentos, mas o número de armas disponíveis era muito pequeno. Durante a

tarde, os trabalhadores construíram barricadas nos subúrbios, foram incendiadas onze

igrejas e também a fábrica de tecidos, mas logo Queipo se apoderou da rádio, e às oito

da noite transmitiu a primeira de suas famosas locuções. Com sua voz entoada por anos

de beber jerez11, declarou que a Espanha estava a salvo e que os canalhas que

resistissem ao levante morreriam como cães (THOMAS, 2004, p. 247).

11
Jerez é um vinho típico da cidade de Jerez de La Frontera, sul da Espanha.

67
A partir da ação de Queipo, as rádios passaram a fazer parte da guerra,

desempenhando papel essencial no êxito parcial dos rebeldes no levante, apesar das

grandes emissoras permanecessem nas mãos do governo, com exceção da Rádio

Sevilha. Na mesma data o General Varela e o General López Pinto se sublevaram em

Cádiz, apesar de que a vitória não foi imediata na ―Rusia chica‖ — como era conhecida

Cádiz por causa do grande número de socialistas que viviam na cidade (THOMAS,

2004, p. 247) — como o foi em Sevilha. Em Córdoba, o governador era o militar

coronel Ciriaco Cascajo, e este conseguiu, com a artilharia oficial, a rendição do

governo militar da cidade. A rebelião triunfou também em Algeciras e Jerez. Em Jaén,

onde não havia guarnição, os falangistas e os requetés locais esperavam o sinal, mas não

aconteceu nada, porque o coronel Pablo Iglesias se manteve leal à República. Em

Málaga aconteceu o mesmo. Os guardas permaneceram leais à República e lutaram

contra uma companhia de soldados que tentava se apoderar dos edifícios públicos. Os

trabalhadores atacaram os soldados, fazendo com que muitos desertassem, e a

população tomou as armas dos quartéis. O comandante da companhia dos sublevados

foi linchado pela multidão. Mas essa foi a última vitória do governo, e ao entardecer, a

última resistência na África havia caído.

Em Granada, o governador militar era o general Miguel Campins. Ele fez

um pronunciamento para seus oficiais, no qual condenava o ―indigno levante do

Marrocos‖, enquanto nas ruas os seguidores da Frente Popular, junto com os

anarquistas, organizaram manifestações durante todo o dia. Os conspiradores da cidade

se mantiveram na expectativa, enquanto seguiam as transmissões de rádio de Queipo de

Llano. Tanto na cidade de Cádiz quanto em Algesiras, Córdoba e Granada, os

trabalhadores foram apanhados de surpresa e esmagados após uma resistência

improvisada, mas ferrenha, em subúrbios que lutaram até o dia 24 de julho. No caso da

68
Andaluzia, a guerra se reduziu a batalhas menores, porém, os fuzilamentos e a repressão

foram abundantes. O governo de Madri ia se inteirando de suas derrotas pelo telefone

quando, no lugar do governador militar, um oficial rebelde atendia o telefone. Também

era dessa maneira que chegavam notícias aos sindicatos e partidos políticos que

telefonavam aos seus camaradas de outras cidades e descobriam que o inimigo estava

no controle.

Ondas de violências se abateram sobre a Espanha, desaguando as lutas

acumuladas durante gerações inteiras, e cada cidade se encontrou sozinha,

representando seu próprio drama, à mercê das dificuldades geradas em tempos e locais

em conflito. Muito rapidamente não havia duas Espanhas, mas sim mil. Cessou de

existir um poder soberano e, em sua ausência, indivíduos e cidades agiam segundo suas

vontades e possibilidade, como se estivessem fora da sociedade e da história. Houve

bispos assassinados e igrejas profanadas; cristãos ―bem educados‖ passavam noites

assassinando camponeses analfabetos e intelectuais sensíveis. O número de execuções

variava de um lugar para outro, segundo o capricho do chefe militar ou das autoridades

que houvessem tomado o poder, e as maiores atrocidades aconteceram especialmente

em lugares onde a rebelião teve êxito imediato, como em Granada e Córdoba. Os

governadores que foram nomeados pela Frente Popular foram quase todos fuzilados. As

pessoas comuns, os grevistas, sindicalistas, comunistas e anarquistas, não foram

julgados, mas fuzilados diretamente.

As famílias daqueles que foram executados muitas vezes tinham a mesma

sorte. O número reduzido de falangistas, ainda que decididos e bem armados, era uma

preocupação importante para o bando sublevado, por isso era ―necessário propagar a

atmosfera de terror. Temos que criar uma impressão de dominação [...]. Qualquer que

seja aberta ou secretamente defensor da Frente Popular deve ser fuzilado‖ (THOMAS,

69
2004, p. 286). As prisões e fuzilamentos, durante vários meses, aconteciam à noite, e na

manhã seguinte se encontravam os cadáveres pelos cantos e ruas das cidades tomadas,

os cadáveres eram expostos para contemplação pública, e era proibido guardar luto

pelos fuzilados. Frequentemente, esses mortos pertenciam a membros distintos de

partidos de esquerda, ou a oficiais leais à República, mas muito raramente alguém tinha

coragem de identificar os cadáveres, por medo de represálias.

Ainda hoje, passados mais de setenta anos destes primeiros meses de guerra,

ainda é difícil saber o número de pessoas mortas pelos rebeldes ou seus partidários, e

talvez os números e nomes nunca sejam completamente esclarecidos. Isso se deve ao

não reconhecimento dos mortos, ou seja, não havia registro por parte das vítimas, mas

também porque não havia registro de execuções por parte dos rebeldes. As prisões e

fuzilamentos eram escolhidos e executados de maneira quase sempre indistinta, sem

necessidade de motivos ou explicações. Com isso se iniciaram os fuzilamentos em

fossas, momentos nos quais muitos presos eram executados de uma só vez, e enterrados

em uma mesma vala, sem registro dos mortos, nem dos locais onde eram depositados

estes corpos.

O melhor estudo independente e o mais convincente sobre a chacina dos

primeiros meses de guerra é o que foi feito sobre a cidade de Granada. Segundo o

estudo, entre 26 de julho de 1936 e março de 1939, o número ultrapassa quatro mil

fuzilamentos, sendo que, apenas nos muros do cemitério São José, em Granada,

atualmente são estimadas 3.969 mortes12. Apenas no mês de agosto de 1936, teriam sido

fuziladas, aproximadamente, 570 pessoas. Entre esses mortos, estão o diretor do jornal

12
A documentação relativa aos fuzilados foi apresentada em maio de 2010 à Junta de Andaluzia pela
Associação de Recuperação da Memoria Histórica para que se declare o lugar como Sitio Histórico. O
número de fuzilados foi publicado no jornal ―El País‖ de 04/08/2011, disponível em:
http://www.elpais.com/articulo/espana/Documentados/3969/fusilamientos/tapia/Granada/elpepiesp/20100
527elpepinac_22/Tes

70
de esquerda ―El defensor de Granada‖, muitos catedráticos da Universidade de Granada,

o prefeito e 23 vereadores eleitos em 1936, mas a grande maioria eram pessoas comuns,

dificilmente reconhecíveis pelo sobrenome. Segundo os dados recolhidos após o final

da ditadura franquista, aproximadamente 600 dos corpos ainda não estão identificados.

Mas, entre todos esses mortos, sem dúvida o nome mais citado, tanto pela direita quanto

pela esquerda espanhola, é o de García Lorca, morte tão inesquecível quanto

inexplicável, e que não pode ser considerada uma mera coincidência por parte dos

exércitos de Franco, mas sim o entendimento de que o poeta era membro de um grupo

revolucionário e perigoso. O clima de terror que pairava sobre Granada durante toda a

Guerra Civil Espanhola se estendeu pelas três décadas de ditadura franquista, e está

representada não apenas nos muros do cemitério da cidade, como também nas fossas de

Alfacar e Víznar, local onde se supõe que Federico foi fuzilado.

O número de mortos foi alto em outras províncias espanholas. Ao longo dos

três anos de guerra civil, em Navarra foram mortas entre 7 e 8 mil pessoas; em

Zaragoza, 2 mil; em Sevilha, 9 mil, para ter uma ideia de como foram as mortes durante

a Guerra, apenas para citar algumas. O número em toda a Espanha é da ordem de

dezenas de milhares, provavelmente 50 mil nos primeiros seis meses de guerra e, talvez,

mais a metade durante os meses seguintes, levando em conta a repressão exercida nos

lugares conquistados (THOMAS, 2004, p. 291).

A justificativa legal para todas essas execuções sumárias se buscou no

estado de guerra que havia sido proclamado. Os militares sublevados consideravam que

a República era ―o rebelde‖ e que os nacionalistas representavam o poder legítimo. Uma

pessoa fuzilada era uma pessoa julgada. Dos executores, alguns eram simplesmente

jovens que desfrutavam matando. Mas outros, sem dúvida, acreditavam que tinham o

dever de extirpar as turvas heresias do liberalismo, do socialismo, do comunismo, do

71
anarquismo e da maçonaria, e quanto mais durava a guerra, mais graves eram

consideradas estas ideologias e os perigos que elas carregavam em si.

Os meios constitucionais de oposição ao levante fracassaram, dado que

grande parte do exército e da guarda civil estava com os rebeldes. A única força capaz

de resistir aos rebeldes era a dos sindicatos e partidos de esquerda, mas para o governo,

utilizar esta força significava aceitar a revolução e a falta de controle sobre o país. Tanto

no Marrocos, quanto na Andaluzia, nas cidades onde houve o levante, a resistência

partiu dos partidos revolucionários de esquerda, e em nenhum momento houve alguma

reação do governo. Em muitos povoados pequenos, a revolução se antecipou à rebelião

dirigida pelo General Franco. Quando a noticia dos levantes chegou a lugares onde não

havia guarnição militar, a reação das esquerdas, naturalmente, não foi de esperar pelo

ataque.

A guerra civil começava por iniciativa da oligarquia para esmagar uma

provável Revolução, e os planos dos insurretos previam uma vitória rápida em seu

golpe. Decididos a pagar o preço necessário para esmagar o movimento operário e

revolucionário, ―regenerar‖ a Espanha e exorcizar em definitivo o espectro da

Revolução, os generais contra-revolucionários não desconfiavam de que sua iniciativa

ia precisamente libertar os operários e camponeses espanhóis de suas hesitações e de

suas divisões, e desencadear essa revolução que eles buscavam justamente prevenir. O

fato é que, se parte da Andaluzia e das cidades fronteiriças com Portugal foi tomada de

assalto pelo levante militar oriundo do Marrocos, algumas cidades situadas ao norte e ao

centro da Espanha, que tiveram mais tempo de preparar não apenas a defesa, mas em

muitos casos, o primeiro ataque às tropas nacionalistas, deram início à revolução.

A revolução começou da mesma forma que a sublevação: desafiando o

poder do governo republicano, produzindo uma onda de assassinatos, destruições e

72
saques que varreram as cidades onde o levante nacionalista havia sido derrotado ou não

havia sido produzido. Nesta época, a Espanha era, na verdade, um conglomerado de

repúblicas inimigas. Cada cidade agia sob sua própria responsabilidade. As iras se

dirigiram em primeiro lugar contra a Igreja, sobre tudo na Andaluzia, Aragão, Madri e

Catalunha, onde igrejas e conventos foram saqueados e incendiados

indiscriminadamente. Os ataques foram direcionados aos símbolos da antiga sociedade,

mas elementos de uma sociedade mais moderna também foram atingidos. Com isso, as

casas de muitos burgueses foram invadidas e saqueadas. Estes primeiros dias da guerra

civil nas cidades republicanas se caracterizaram pela aparição de um verdadeiro

labirinto de grupos diferentes, todos eles com poder para decidir sobre a vida e a morte.

A Igreja, especificamente, havia sido atacada porque a religião havia se convertido na

questão crítica da política desde 1931, pela geral subordinação dos sacerdotes à classe

alta e pela riqueza provocativa de muitas igrejas e as antigas suspeitas do caráter secreto

das ordens religiosas e os conventos. Estes ataques foram frequentemente

acompanhados por uma matança de religiosos, e em todo o país as pessoas já não

diziam ―adeus‖, mas sempre ―saúde‖. Inclusive um homem chamado Fernández de Dios

escreveu ao ministro da Justiça perguntando se podia mandar seu sobrenome por

Bakunin, porque ―não queria ter nada a ver com Deus‖ (BROÉ, 1992). Em nenhum

momento da história da Europa, e talvez do mundo, manifestou-se um ódio tão

apaixonado contra a religião e todas as suas obras, e um cardeal chegou a manifestar:

―os vermelhos têm destruído nossas igrejas, mas antes nós havíamos destruído a Igreja‖

(THOMAS, 2004, p. 300).

A revolução iniciou uma curta porém importante fase na vida dos espanhóis,

conseguindo aplicar os ideais dos grupos de esquerda. Durante a revolução foram

socializados os meios de produção, e as coletividades operárias e camponesas ensaiaram

73
a rearticulação entre mundo da cultura e mundo da produção. As coletividades se

espalharam e praticamente toda a economia de Barcelona ficou sob a responsabilidade

dos sindicatos anarquistas. Restaurantes públicos, instalados nos hotéis para alimentar

os combatentes durante a resistência ao golpe, eram completamente abertos ao povo. Os

hospitais foram os primeiros a se autogerirem, seguidos das padarias, indústrias

farmacêuticas, campo, indústrias metalúrgicas, companhias marítimas, estradas de ferro,

bondes e ônibus. Milícias revolucionárias foram organizadas para seguir até as

províncias que haviam sucumbido aos ataques dos rebeldes militares, e homens e

mulheres participaram destas milícias, sem distinções de gênero. Durante a revolução,

as mulheres passaram a frequentar lugares públicos, coisa que antes não era possível,

pois muitos lugares eram vedados a elas.

A revolução não se deu de maneira uniforme, e a que se iniciou em

Barcelona em julho de 1936 se diferenciou daquela do centro da Espanha, pois foi

primordialmente anarquista, contando com uma emissora de rádio e o movimento

anarquista apoderando-se verdadeiramente de Barcelona, com um número de 350.000

anarquistas apenas na capital da Catalunha. Quase todas as 58 igrejas de Barcelona

foram queimadas, exceto a catedral, e foram fechadas as escolas religiosas. O domínio

anarquista na Catalunha criou uma situação incomoda com o governo catalão, que

Azaña descrevia como um ―complot para anular o Estado Espanhol‖ (THOMAS, 2004,

p. 326). Os anarquistas se diziam milicianos da liberdade, e no protesto contra o

governo central, coincidiam com o tradicional separatismo catalão.

Contra toda evidência, o governo republicano negou a gravidade da

situação, anunciando no dia 18, às 15 horas, que um ―amplo movimento anti-

republicano foi sufocado‖ e que ele ―não encontrou nenhum auxílio na Península‖. Para

evitar a guerra civil que ameaçava estourar por todas as partes, o governo da Frente

74
Popular atingiu brandamente, de forma alternada, cada um de seus adversários de direita

e de esquerda, para não se entregar sem defesa ao outro. A última tentativa de encontrar

com os líderes insurretos um terreno de entendimento fracassou diante da determinação

de centenas de milhares de trabalhadores que invadiram as ruas de Madri exigindo

armas. Madri se converteu em uma cidade tão bélica quanto revolucionária. Os fuzis

eram usados (e desperdiçados) como símbolo revolucionário.

Ainda que na Espanha rebelde houvesse muitas mortes arbitrarias, a ideia de

limpeza do país para eliminar os males que se haviam apoderado dele era uma política

disciplinada pelas novas autoridades, e formava parte de seu programa de regeneração.

A forma como se levou a rebelião militar e a forma como foi respondida provocaram

uma continuidade desenfreada de acontecimentos que não se havia visto na Europa

desde a Guerra dos Trinta Anos. Em uma zona, professoras de escola eram fuziladas e

casas do povo, queimadas; na outra, sacerdotes eram fuzilados, e igrejas, queimadas. As

partes em litígio se viram dominadas pelo ódio e o medo.

Ódio destilado lentamente durante anos, no coração dos mais


necessitados. Ódio dos soberbos, pouco dispostos a suportar a
‗insolência‘ dos humildes. Ódio das ideologias contrapostas, espécie
de ódio teológico, com a qual pretendem justificar a intolerância e o
fanatismo. Uma parte do país odiava a outra, e a temia (THOMAS,
2004, p. 307).

A guerra sem fim

Depois de 33 meses de guerra — de julho de 1936 a abril de 1939 —,

tiveram início quatro décadas de ditadura do General Francisco Franco, considerado o

vencedor da guerra de Espanha. Com a ditadura franquista, além da volta da censura, da

75
proibição de partidos, de perseguições aos grupos de esquerda e republicanos, as

reformas sociais da República foram abolidas e a Igreja retomou sua importância e força

junto ao Estado, e reforçou sua influência social com a volta da educação e serviços

assistenciais às mãos do clero, que por sua vez voltou a ser financiado pelo governo. No

final da guerra, o discurso da vitória de Franco deu um panorama do que foi o conflito,

segundo ele, e o que se podia esperar dos próximos anos da Espanha sob seu governo:

Eu quis, espanhóis, que a unidade sagrada que anima o seu comum


entusiasmo, e pelo fervor da obra de nossos combatentes, não cairá
jamais; foi a base de nossa Vitória, e nela se apóia o edifício de nova
Espanha. [...] Eu não posso lhes ocultar os perigos que ainda espreita,
nossa Pátria. Terminou o front da guerra, mas continua a luta em outro
campo. A Vitória se malograria se não continuássemos com a tensão e
a inquietude dos dias heróicos, se desejássemos a liberdade de ação
para os eternos dissidentes, para os rancorosos, para os egoístas, para
os defensores de uma economia liberal que facilitava a exploração dos
fracos pelos mais fortes. [...] Muito foi o sangue derramado e muito
custou às mães espanholas nossa Santa Cruzada para que permitamos
que a Vitória possa se frustrar pelos agentes estrangeiros infiltrados
nas Empresas ou pelo lento murmurar das pessoas mesquinhas e sem
horizontes. [...] Para esta grande etapa da reconstrução da Espanha
necessitamos que ninguém pense em voltar a normalidade anterior;
nossa normalidade não são os cassinos, nem os pequenos grupos, nem
os trabalhos parciais. Nossa normalidade é o trabalho abnegado e duro
de cada dia para fazer uma Pátria nova e grande e verdade. [...] Mas,
para coroar nossa grande obra precisamos que a Vitória militar
acompanhe a política; não basta ordenar a unidade sagrada, faz falta
trabalhar-la, levar a doutrina e as novas consignas para todos os
lugares, que vocês sejam os colaboradores da nova empresa, da qual
são forças de choque a juventude heróica13[…].

A vitória da Falange de Franco e o exílio dos vencidos provocaram a

inviabilidade de, pelo menos até 1975, se escrever uma história do conflito que

contemplasse também os pontos de vista dos perdedores. Além da censura, a cultura

saneadora imposta pelo franquismo corresponde ao silêncio dos perdedores, e,

curiosamente, este vazio foi preenchido pela historiografia estrangeira que, em muitos

casos mesmo da esquerda, "desespanholizou" os argumentos. Esse foi o caso da morte

de Lorca. Seu assassinato até hoje é muito mais relacionado a sua homossexualidade ou
13
Fonte: http://sauce.pntic.mec.es/~prul0001/Textos/Texto%203%20tema%20XV.pdf

76
a elementos de sua vida pessoal do que a uma resposta do pensamento franquista à

postura política do escritor.

Em especial nos primeiros anos de ditadura, Franco daria continuidade

rigorosamente à perseguição àqueles que, de qualquer maneira, pudessem se colocar

contra o regime. Muitos presos foram mortos, outros tantos exilados, e muitos dos que

puderam deixaram a Espanha; os bens daqueles que ficaram foram confiscados, e seus

direitos civis, cerceados. Mais adiante, no final da década de 1940 e início de 50, com o

fim da Segunda Guerra Mundial, a Espanha começou a sofrer boicotes internacionais, e

nesse cenário, no ano de 1953, o Estado franquista assinou a Concordata de Santa Sé,

regulamentando as relações Igreja-Estado, como os limites das dioceses, a educação nas

mãos do clero, assuntos relacionados às leis matrimoniais, ajudas financeiras do

governo para a Igreja, entre outros pontos. A ditadura seguiu até a morte de Franco, em

1975, quando foi restaurada a monarquia constitucional, sendo promulgada a nova

constituição em 1978. Ao longo dos 36 anos de regime franquista, sob o silêncio da

ditadura, somente fora da Espanha a guerra espanhola pôde ser olhada desde muitos

pontos de vista, não apenas pela ótica dos falangistas, No entanto, as conclusões viram-

se limitadas pela falta de acesso a fontes primárias, afinal, o ideal de limpeza — da

memória, do passado, dos indesejáveis — imposto pelo regime do General Franco,

pautado no terror, em muitas partes da Espanha vigora até os dias de hoje. Além disso,

os perdedores não puderam levar consigo suas bases documentais. Porém, o fato de a

Guerra Civil Espanhola ter atingido um grande contingente de jornalistas, escritores e

artistas fez com que o movimento ganhasse visibilidade mundial. Além disso, o cinema

e as revistas ensaísticas foram, aos poucos, disseminando uma série de saberes que se

completavam, possibilitando uma interpretação dos vencidos em relação à Guerra Civil

Espanhola.

77
A Guerra Civil Espanhola foi, principalmente, um conflito local, uma

tentativa de resolver, por meios militares, um grande número de questões sociais e

políticas que estiveram presentes entre os espanhóis por várias gerações. Essa guerra

está profundamente enraizada na história do país, no fanatismo religioso, em grande

parte inspirado na legendária Reconquista e nos 800 anos de lutas para expulsar os

mouros da península, no confronto entre o centralismo estatal e os nacionalismos

periféricos, nas guerras civis do século XIX, travadas entre carlistas e liberais. Seria

possível afirmar também que as sementes do conflito foram plantadas durante o meio

século de existência do regime anterior, na Monarquia Bourbon restaurada, de

dezembro de 1874 a abril de 1931 (SALVADÓ, 2008, p. 9). Mais modernamente, temas

como reforma agrária, centralismo versus autonomia regional e papel da Igreja Católica

e das Forças Armadas foram agregando elementos que fizeram eclodir a guerra.

Enquanto os nacionalistas acreditavam que seu dever era a luta em defesa da

civilização cristã contra a barbárie comunista, para os milhões de voluntários que

lutaram pela República, a Espanha representava a última grande causa — a resistência

final contra as forças aparentemente invencíveis do fascismo e da reação política que

arrebatou o continente nos anos entreguerras. Alguns estudiosos explicam a Guerra

Civil Espanhola como uma consequência da Primeira Guerra Mundial — somado a isso

ao agravamento de problemas internos não resolvidos anteriormente — e uma prévia do

que seria a Segunda Guerra Mundial, caracterizando a guerra de Espanha muito mais

como uma ―guerra de intelectuais‖, de pensadores de diversos campos do conhecimento

e de procedência variadas.

De certa forma, a polarização política mundial desde o fim da Primeira

Guerra, a participação de expressivos intelectuais envolvidos no esforço de reflexão

78
pública sobre o papel do conhecimento na construção de um novo ideário social e o

miliciamento de estrangeiros que deram características emblemáticas às tensões da

Guerra Civil, colaboram para que, muitas vezes, se ignorem os fatores ―espanhóis‖ da

Guerra Civil Espanhola, fatores estes que estavam presentes muito antes do

envolvimento de outros países. Há autores que qualificam a Espanha de antes da Guerra

como uma sociedade atrasada, em descompasso com o resto do mundo civilizado,

moderno e progressista. Em contraste, existem aqueles que percebem a Espanha da

década de 30 deste século, como uma sociedade evoluída em termos de relação de

produção e trabalho, particularmente no que toca à questão sindical e à autogestão.

Assim, simplesmente internacionalizar a Guerra Civil a partir do projeto político-

partidário ignora o caráter revolucionário presente no país, fruto de sua história.

Porém, também é questionável o determinismo histórico e a inevitabilidade

do conflito. Francisco Salvadó (2008) é um dos que refuta quaisquer ideias de

determinismo histórico e de inevitabilidade do conflito. Segundo Salvadó, a despeito do

que foi dito pelos oficiais rebeldes, a guerra não foi inevitável, mas sim produto de um

golpe ilegal e de seu posterior fracasso parcial que gerou a revolução. Salvadó ainda

completa que os pretextos dos conspiradores para justificar sua rebelião eram

inaceitáveis. É inquestionável que em 1936 ocorriam tumultos sociais e violência nas

ruas, mas a situação não era pior do que em outras épocas da Monarquia. Além disso,

como na ascensão fascista ao poder na Itália e na Alemanha, o colapso da ordem pública

foi em grande medida causado por sujeitos de direita. Segundo o historiador, ―a maioria

dos espanhóis não queria a guerra. Pelo contrário, foram surpreendidos pelo horror e

pela tragédia diante de seus olhos‖ (SALVADÓ, 2008, p. 10).

O conflito espanhol foi a batalha mais atroz de uma guerra civil europeia a atingir o

continente, desde a conquista do poder pelos bolcheviques em outubro de 1917, a

79
ascensão do fascismo na Itália, a tomada da Alemanha pelos nazistas e o

estabelecimento de ditaduras monarquistas e militares por toda a Europa central e

oriental. A Guerra Civil devastou o país, execuções em massa de prisioneiros eram

realizadas dos dois lados, com uma ferocidade que parecia confirmar para o mundo a

reputação de fanatismo dos espanhóis. Além disso, as incursões das Brigadas

Internacionais tornaram-se legendárias, levando o conflito para muitos outros países,

que se tornavam palco de batalhas, e não apenas interventores na Guerra de Espanha.

80
Capítulo 2

A política na arte e na vida

81
Arte e política são velhas companheiras –o teatro grego, no século V a.C., é

uma pista importante desta aproximação. O encontro entre elas se deu em diversos

momentos, em várias sociedades e países, mas com semelhantes características, em

função de inúmeros fatores. O surgimento de novas formações sociais, períodos de

valorização do coletivo ou do individual, contextos de guerras e revoluções são alguns

dos momentos nos quais ganham grande importância as ações artísticas de grupos,

vanguardas ou movimentos, domínios de gêneros ou tendências artísticas, por serem

modos de expressões sociais. Política e arte são áreas que se distinguem em suas

essências, mas se entrecruzam ao atingirem as mais diferentes dimensões da vida

humana, suprindo necessidades e impulsionando a invenção do novo. As relações entre

política e arte se dão, necessariamente, em movimentos de conjunção de ideias e

conflitos, assim,

a arte pode se opor à política ou prestar-se a ela. Por sua vez, a política
pode inspirar ou dificultar a manifestação artística impregnando-se no
objeto de arte, ou iluminando o artista. Nesse campo relacional, a arte
pode imprimir maior potencialidade para o indivíduo seguir sua
existência, perante o poder político ou micropoderes difusos e em
meio aos absurdos e alegrias da vida (CHAIA, 2007, p. 14).

O artista pode expressar poeticamente a sua sociedade, em diferentes

condições, fazendo com que sua obra contenha, explicita ou implicitamente, os fatores

sociais circundantes a ela. Complementando esse ponto de cruzamento entre arte e

política, Castellón (1994, p. 24) coloca que o teatro, consciente ou inconscientemente, é

político no momento em que toma partido, expressa ou defende, implícita ou

explicitamente, seus interesses e pontos de vista. F. García Pavón (apud CASTELLÓN,

1994, p. 24) reitera que o teatro é, em si, uma arte social — não se excluindo, porém, as

outras artes como maneiras de expressão social. O teatro é visto por alguns autores,

como Alfonso Sastre, como arte social especialmente quando trata de realidades

82
dramáticas nas quais estão interessados grupos humanos. Mas, o teatro político,

especialmente, denuncia as mazelas humanas, de um lado, podendo também expressar a

esperança em novas estruturas, por outro.

O teatro europeu do início do século XX se caracterizou pela forte

expressão social, colocando nos palcos de diversas partes do mundo retratos e críticas

das novas ordens sociais e econômicas que se presenciavam pelo globo. São

importantes exemplos desta fase Ibsen, Björnson e Strindberg. Na Alemanha,

Sudemann triunfou com A honra e com os tipos cínicos e neuróticos de O fim de

Sodoma; Hauptmann, com Almas solitárias e com o faminto e miserável quadro de

trabalhadores de Os tecelões. Na Itália, Marcos Praga ganhava fama com sua obra A

mulher ideal; na França o drama rondava em torno à mulher sensual, adúltera,

divorciada e prostituída; na Alemanha, o drama ganhava um caráter mais socialista, e na

Noruega, seriam deslocadas as envelhecidas raízes do dever moral, implantando o

individualismo anárquico. ―Em todas as partes o teatro parece que, deixando de ser puro

entretenimento, converte-se em tribuna livre de doutrinas socialistas e um laboratório de

experimentos fisiológicos‖ (CATSELLÓN, 1994, p. 35).

Já o teatro espanhol tardou a tomar consciência das movimentações sociais e

intelectuais que eclodiam pela Europa e por todo o país. Especialmente após a chegada

da Segunda República, em 1931, os escritores teatrais pareciam ignorar a realidade em

mudança e a nova situação política. Ramón J. Sender analisou, em 1926, o teatro da

Espanha, declarando que ―apesar da evidência de sua ruína, da decomposição interior,

do cheiro repugnante e da miséria de algo que agoniza, o teatro industrial, o teatro da

burguesia segue ignorando sua própria situação e reinando, ainda que seja no vazio, na

solidão e na impotência‖ (CASTELLÓN, 1994, p. 218).

83
A sensação de mal-estar na Espanha que precedeu a Guerra Civil Espanhola

foi exposta, inicialmente, pelos intelectuais da Geração de 98. Esta não teve importância

apenas na formação e desenvolvimento de um novo grupo, de uma nova escola, mas

pelo profundo e empreendedor ambiente artístico que ela iniciou, gerando importantes

debates e críticas, e influenciando as gerações artísticas e intelectuais. Havia nos

intelectuais e artistas dessa geração uma ânsia pela busca de novos aparatos ideológicos

e artísticos que pudessem dar conta de representar e questionar o país e a sociedade.

Como foi dito anteriormente, em 1898 uma importante crise abateu a sociedade

espanhola, tendo como pontos fundamentais os debates sobre as autonomias regionais, a

diversidade de pontos de vista entre dirigismo e liberdade econômica, autoritarismo e

democracia, e as distintas ideologias políticas que estavam por toda a Europa —

socialismo, comunismo, anarquismo e fascismo.

Para alguns dos intelectuais da Geração de 98, a convulsionante sociedade

espanhola do final do século XIX e início do XX era resultado de uma Espanha

―inacabada‖ em consequência do rompimento do antigo regime. Havia, por isso, a

necessidade de encontrar novas fórmulas, de criar uma nova Espanha com uma estrutura

moderna e eficaz (CASTELLÓN, 1994, p. 30).

Não coincidentemente, durante a ditadura de Primo de Rivera (1923-1930),

surgiu na Espanha a Geração de 27, vanguarda da intelectualidade e da arte espanhola,

composta por García Lorca junto com Rafael Alberti, Jorge Guillém, Vicente

Aleixandre, Gerardo Diego, Luís Cernuda, Dámaso Alonso, Emilio Prados, Pedro

Salinas e Manuel Altolaguirre, em seu núcleo central, mas contou com muitos

colaboradores e amigos. O grupo de 27 teve origem com o ato cultural em homenagem

ao bicentenário de morte de Don Luís de Góngora. A reunião, realizada no ano de 1927,

84
serviu para unir um grupo de escritores que perdurou e continuou reivindicando

mudanças na arte, literatura e sociedade espanhola.

A Geração de 27, junto a alguns dos autores de 98, tentou uma renovação na

arte — em especial na literatura — conferindo a suas obras uma maior qualidade

literária. Mas, enquanto a Geração de 98, composta por importantes ensaístas, era

representante de uma ―cultura da crise‖ — na medida em que expressava a inquietação

política, identitária e existencial da geração —, a Geração de 27, uma geração de poetas,

se distanciou um pouco da cultura de crise, apresentando obras de caráter mais sensorial

e hedonista. Porém, essas características não esvaziavam o teor político da Geração de

27, composta por escritores de posturas individuais bem definidas, mas unidos por

semelhanças estéticas e ideológicas. O grupo de 27 foi fundamental na função de usar o

conhecimento literário dos membros do grupo para expressar as inquietações dos

indivíduos e grupos sociais na Espanha. Por meio de sua arte, foi possível iniciar o

debate e a reflexão a partir da literatura, entendida como um caminho válido para

abordar uma educação de responsabilidade. Apesar disso, houve muitas tentativas de

esvaziar o caráter político da arte de alguns membros da Geração de 27, em especial, de

García Lorca.

Política e morte

Há um forte interesse em classificar Lorca e sua obra como apolíticos,

interesse que partiu de muitos lados. A família do escritor, amigos, militantes do

movimento homossexual e, principalmente a direita franquista se esforçam, de distintas

85
maneiras, em manter a imagem de Lorca como alguém que se manteve sempre alheio à

política. Alguns estudiosos de sua vida e de sua obra fizeram referência a essa insistente

despolitização de Lorca. Lilia Boscán de Lombardi (2002), no final de seu estudo sobre

o estilo trágico na obra dramática de Lorca, expõe uma interessante observação, que

serve como ponto de partida para a análise da política na vida e na obra de Lorca:

Hão dado muitas explicações sobre a morte de García Lorca. Os


nacionalistas disseram que foi um lamentável erro; outros apontam
como causa a vingança, produto do ressentimento em uma obscura
relação homossexual; o desprezo e recusa a sua homossexualidade
intolerável foi usado como uma desculpa para decretar a morte. E a
razão mais frágil que se tem argumentado é a política porque muitos
de seus críticos asseguram que García Lorca não foi político, que não
pertencia a nenhum partido político e que manteve à margem da
política. (LOMBARDI, 2002: p. 131)

A morte de Lorca, suas circunstâncias e suas motivações têm guiado os

olhares sobre o teor político da obra do escritor. Buscam-se em seus escritos as

motivações para seu assassinato, pelo fato de este, até hoje, permanecer sem conclusivas

explicações. E assim, enquanto a direita espanhola não quer assumir a autoria do

assassinato do poeta, para alguns grupos a morte dele pode servir como importante

bandeira.

O primeiro jornal a fazer menção à morte Lorca foi o Nuestra Lucha, da

Murcia, no dia 29 de agosto de 1936:

Assassinaram García Lorca?‖


Guadix – Rumores procedentes da frente cordobesa, que não foram
até agora desmentidos, revelam o possível fuzilamento do grande
poeta Federico García Lorca, por ordem do coronel Cascajo
(REVERENGA, 1985, p. 9).

Alguns dias depois, em 10 de setembro, o jornal El tiempo, também de

Murcia, faz alusão ao fato ao recolher, entre notícias da imprensa do Ministro da

Guerra, que os fugitivos de Granadas notificaram o fuzilamento de García Lorca (Idem,

86
p.9). Já o jornal El Liberal foi mais explícito, destacando no título da matéria ―alguns

evadidos de Granada confirmam o fuzilamento de Federico García Lorca‖, e entre as

informações chegadas de diferentes fontes, assinala: ―alguns fugitivos de Granada

confirmaram que os facciosos fuzilaram o grande poeta Federico García Lorca, cuja

notícia não havia sido possível até agora, ainda que a maior parte dos jornais houvesse

dado a chamada‖ (Idem, p. 9).

Como colocou Gibson em seu livro Granada em 1936 y el asesinato de

Federico García Lorca, durante meses foram publicadas avalanches de comentários em

jornais sobre a morte do poeta, mas a grande maioria não acrescentava nenhum detalhe

autêntico, limitando-se apenas a expressar horror, indignação e descrença no rumor

(1980, p. 246). Enquanto a região da Murcia, Madri e outros locais que seguiam sob o

regime republicano faziam menção aos rumores do assassinato de Lorca — visto que

não havia nenhuma certeza de que o poeta havia sido morto —, a imprensa dos

territórios que haviam sido tomados pelo golpe militar, ao contrário, tratava de semear

confusões, divulgando que a notícia do assassinato era falsa ou deturpando o ocorrido:

um dia, o cadáver do poeta aparecia em Guadix, no outro, em Córdoba, ou Barcelona,

Granada ou Madri. O jornal La Provincia, de Huelva, em 10 de setembro, chegou a

anunciar uma conferência do poeta andaluz que teria chegado no dia anterior, mas ―não

chegou a se efetuar‖ (PEREIRA, 2003, p. 70).

Em 13 de outubro de 1936, quase dois meses depois do assassinato, H.G.

Wells, o então presidente do Pen Club de Londres, enviou um telegrama às autoridades

militares de Granada, solicitando notícias sobre a sorte de Federico García Lorca. A

resposta, assinada pelo coronel Espinosa, limitava-se a uma única linha: ―ignoro lugar

hállase don Federico García Lorca‖, resposta que foi publicada no jornal El Sol, 14 de

outubro de 1936, (Ibid.: p. 71). A partir de então a imprensa internacional também

87
passou a cobrar da Espanha sobre o paradeiro do poeta, obrigando que os representantes

da Falange se pronunciassem sobre as notícias que circulavam tanto na Espanha quanto

no mundo. Foi o caso de Luis Hurtado Álvarez, que em março de 1937, no jornal

Unidad, de San Sebastián, declarou:

eu afirmo, solenemente, pela nossa amizade de então... que nem a


Falange Espanhola, nem o exército da Espanha, tiveram parte em sua
morte. A Falange perdoa sempre, e esquece. Você teria sido seu
melhor poeta (da Falange), porque sues sentimentos eram os da
Falange: queria Pátria, Pão e justiça para todos [...] (Ibid.:p. 72).

Para se livrar do peso de haver assassinado Lorca, os membros da Falange

passaram a buscar defesas para si e tentavam jogar a responsabilidade pela morte do

escritor para outros âmbitos, tentando esvaziar o teor político dos fatos. Enquanto

alguns membros da Falange asseguravam que Lorca era partidário de uma ditadura

militar — como chegou a afirmar Luis Rosales, em entrevista14 concedida a Ian Gibson

— havia aqueles que, como Jean-Louis Schonberg, aludiam a morte de Lorca não a

razões políticas ou ideológicas, mas a uma ―simples briga entre veados‖

(SCHONBERG, apud. PEREIRA, 2003, p. 72).

A relação entre a morte de Lorca e o ódio aos homossexuais foi muito usada

pelo movimento gay para levantar o tema da homofobia. Aproveitando-se da história

que contou Ángel Saldaña15 a Ian Gibson, na qual o falangista Juan Luis Trescastro teria

dito após o fuzilamento do escritor: ―acabamos de matar Federico García Lorca. Eu meti

dois tiros na bunda por ser veado‖ (GIBSON, 2007, p. 142), muitos militantes afirmam

que essa seria a prova de que o assassinato de Lorca foi por homofobia. Um dos

14
Entrevista publicada no jornal El Ideal de Granada, em 19/07/2010, disponível em:
http://www.ideal.es/granada/v/20100719/granada/lorca-partidario-dictadura-militar-20100719.html
15
Um dos poucos vereadores republicanos granadinos que não foi fuzilado. Ángel Saldaña contou a
Gibson que estava no bar Pasajé, em Granada, quando Juan Luis Trescastro entrou anunciando que
haviam matado Lorca (GIBSON, 2007, p. 142).

88
pesquisadores que defende esse ponto de vista é Amílcar Baiardi, que esvazia a causa

do assassinato de Lorca por motivos políticos, afirmando ainda:

Seu assassinato foi utilizado pela esquerda para, diante da opinião


pública mundial, angariar simpatia de intelectuais para integrarem as
Brigadas Internacionais. Entretanto, àquela época, sempre se tentou
esconder a homossexualidade de Lorca, já que um mártir de esquerda
não podia ser homossexual (BAIARDI, 2008: p. 8)

Mais adiante, em seu texto, Baiardi concorda que a obra de Lorca

incomodava os falangistas, mas que pelo fato de Federico não ser dirigente político nem

militar, ―suas palavras incomodavam menos e não tinham o peso das de Miguel de

Unamuno [...] enfim, a razão política não foi a determinante de última instância no

assassinato de Lorca‖ (Ibidem, p. 9). Se a obra de Lorca não foi tão determinante para

seu assassinato, como explicar a frase de Ruiz Alonso, o homem que executou a prisão

de Lorca, que teria dito que o motivo da detenção do poeta era o fato de ele ―ter causado

mais estrago com sua pluma que outros com suas pistolas‖? (GIBSON, 2007, p. 129).

Além disso, afirmar que o crime contra Lorca foi causado por homofobia e que, por

isso, não teria caráter político é diminuir a importância da mobilização homossexual em

seu sentido político na luta pela liberdade individual. E a liberdade foi um dos grandes

temas da obra de Lorca, tornando-a, apenas por esse motivo, repleta de elementos

políticos, no sentido em que é o artista usa sua obra para expressar sua visão de mundo

e sua crítica à sociedade.

Mas, um ponto que deve ser levado em consideração é que a

homossexualidade do autor não foi tão negada quanto o é sua postura política. Como

conta Gibson, os estudiosos mantinham um acordo tácito sobre não falar da

homossexualidade do poeta, enquanto o pai de Lorca, Dom Federico García Rodriguez,

fosse vivo, pois o assunto era abafado pelo pai, e os estudiosos tinham receio de que a

89
família fechasse os arquivos caso o assunto fosse difundido. Porém, em 1975, morreu o

pai de Lorca. No ano seguinte, morreria o General Franco, iniciando assim a abertura

democrática na Espanha e a possibilidade de tratar mais abertamente de assuntos que

ainda eram obscuros na biografia do poeta. Foi só na década de 1980 que muitas partes

da obra de Lorca foram conhecidas, como por exemplo, a peça O público.

É inegável que a obra de Lorca criou e alimentou desafetos, seja pela

postura liberal na política que sua família apresentava, seja pelo êxito artístico e

internacional do próprio Lorca, seja, ainda, por sua homossexualidade. Porém, se é

verdade que Ruiz Alonso justificou a prisão de Lorca pelo fato de ele ser ―mais perigoso

com uma pena na mão do que muitos com uma pistola‖, então é importante olhar o que

de tão perigoso escreveu sua pena, o que de tão indesejável para a direita espanhola

Lorca expressou por meio de sua arte. Por mais indiscutível que seja a

homossexualidade de Lorca, sua arte se expressou menos como uma bandeira do

movimento do que desejam os ativistas. É claro que se encontram metáforas em muitos

de seus poemas, ou referências diretas à homossexualidade, como nos Sonetos de amor

obscuro, ou na peça de teatro O público. Porém, através de seus discursos, entrevistas e

conferências, é Lorca quem fala de maneira direta, assumindo sua posição, e, por isso é

importante verificar o que o autor diz como Federico, não apenas como Lorca.

Voltando à morte do poeta, o jornal ABC publica o posicionamento do

próprio Franco sobre o fato:

De fato era um grande poeta e o fuzilaram nos primeiros dias nos


quais estourou o Movimento, quando Granada estava quase sitiada e
em situação difícil. Naquele momento não se podia exercer ali
nenhum controle e as autoridades tinham que prever qualquer reação
contra o Movimento por elementos esquerdistas. Por isso fuzilaram os
mais característicos, e entre eles García Lorca. [...] Para provar minha
imparcialidade, mesmo tendo sido muito esquerdista García Lorca,
autorizei que editassem suas obras e que se fizesse o reclamo destas
(apud SÁURA, 1995, p. 166).

90
A fala de Franco, acima, toma fundamental importância, por negar a visão

propagada pelos partidários do regime de que a morte de García Lorca havia sido um

acidente, por ser o autor apolítico. Nela, Franco assume que a morte de Lorca nada teve

de ―ferida causada pela guerra‖, como diz o próprio atestado de óbito concedido para a

família, mas que se trata de um assassinato. Segundo a afirmação de Franco, o escritor

era um dos ―mais característicos‖, o que deixa claro a importância de Lorca como

opositor à ideologia franquista, ideia completada pelo próprio Franco quando este diz

que Lorca era ―muito esquerdista‖. Neste caso, se o poeta era um importante opositor,

sua morte não teria sido um acidente, mas um assassinato, que, por definição, significa

matar alguém por ato voluntário. Se Lorca era um dos mais característicos, muito

esquerdista, e foi retirado da casa dos Rosales, falangistas amigos do poeta, com ordem

de prisão, para, em seguida, ser fuzilado, não se trata de uma morte involuntária, de um

acidente, mas sim, de um assassinato.

Mas, como Lorca nunca foi filiado a nenhum partido político e nunca

panfletou a favor de nenhum posicionamento político institucional, seu esquerdismo

estaria, sem dúvida, em sua arte. Afinal, ―a arte é compreendida como forma de

resistência nucleada no artista e na obra, gerando valores estéticos e políticos para

confrontar poderes centralizadores ou micropoderes. Resistências identificam-se com

resistências políticas‖ (CHAIA, 2007, p. 30). Assim, pode-se afirmar que a arte de

Lorca era um fator perturbador para a sociedade controladora que, com a sublevação de

1936, os franquistas queriam impor na Espanha. A dimensão política que atravessa a

trajetória e a obra de García Lorca é difusa, possível de se detectar na atitude do artista

frente à realidade e na concepção crítica que emerge de sua obra.

91
Com a palavra, F. García Lorca

Garcia Lorca escrevia sobre o que ele via, vivia e sentia. Desde seu primeiro

livro, Impresiones y Paisajes, escrito quando o poeta tinha 20 anos, já era possível notar

uma das mais fortes características de sua obra: tem algo a dizer sobre a sociedade

espanhola que ele fez questão de conhecer de perto. Mas, alguns pontos da vida do

escritor influenciaram sua criação artística, dando a sua arte um caráter social, como no

caso de Impresiones y Paisajes, resultado das visões sobre o território Espanhol que ele

conheceu em viagens universitárias, quando ainda morava e estudava em Granada. O

caráter social está presente nas obras de Lorca desde seu primeiro livro, em que expõe o

profundo interesse pela multifacetária Espanha. Em Impresiones, notamos um Lorca

diferente do autor da fase adulta, mas o tom de denúncia que se expressa em

Impresiones y Paisajes repete-se em muitas de suas obras poéticas e na dramaturgia. Há

mais que ―impressões‖ e ―paisagens‖ neste primeiro livro de Lorca; há uma forte ânsia

de recusar toda a alienação, independentemente de que ordem seja: religiosa, social ou

mesmo estética.

Alguns trechos do livro mostram a preocupação de Lorca com a indiferença

na qual vivia as classes baixas da sociedade espanhola da época. No capítulo ―Méson de

Castilla‖, por exemplo, ao descrever a pousada e as pessoas do local, Lorca transcreve o

seguinte diálogo presenciado por ele:

- Você veio da cidade?...


Não. Venho da casa da minha irmã, que está com essa doença
nova.
- Se ela fosse rica o médico já a haveria curado… mas... Já os
pobres! Mas os pobres!... (LORCA, 2008, v. VI, p. 268)

92
Essas palavras certamente causaram forte impacto no escritor, que sentiu necessidade de

colocá-las em seu livro com a intenção de fazê-las ecoar, mostrando para o resto da

sociedade a situação das pessoas sem recursos, que ficavam doentes e, assim, se viam

sem saída.

Impresiones y Paisajes foi censurado pela ditadura franquista, só podendo

ser publicado na Espanha na década de 1980, após a morte do ditador. Muito

provavelmente o livro foi censurado pelo fato de conter algumas denúncias sociais e

religiosas que certamente o nacional-catolicismo de Franco não tolerava que se

espalhassem. No segundo capítulo, ―La Cartuja‖, Lorca descreve a paisagem que

encontrou em visita a um seminário para padres.

El paisaje muestra toda su intensidad de sufrimiento, de


ausencia de sol, de pobreza pasional [...] El río lleno de agua
da impresión de sequedad […] Este paisaje asceta y callado
tiene el encanto de la religiosidad dolorosa […] amargura y
desolación formidables. La visión de Dios es en este paisaje la
de inmenso temor […] angustia en su hablar […] en su temor al
diablo […] antes los cuales rezan los campesinos con la trágica
fe del temor. ¡Inquietante paisaje de las almas y los campos!...
[...]
Estos hombres sepultan aquí sus cuerpos, pero no sus almas. El
alma está donde ella quiere. Todas nuestras fuerzas son inútiles
para arrancarla donde se clava. Además… ¿Qué sabemos
nosotros lo que desea nuestra alma?
¡Qué angustia tan dolorosa estos sepulcros de hombres que se
mueven como muñecos en un teatro de tormentos! […] Lloran
los ojos, rezan los labios, se retuercen las manos, pero es inútil;
el alma sigue apasionada, y estos hombres buenos, infelices,
que buscan Dios en estos desiertos del dolor, debían
comprender que eran inútiles las torturas de la carne cuando el
espíritu pide otra cosa. […] Ansían vivir cerca de Dios
aislándose… pero yo pregunto ¿qué Dios será el que buscan los
cartujos? No será el Jesús seguramente […] Es verdaderamente
anticristiano una Cartuja. […] Sólo se hablan los domingos un
rato, y sólo están juntos durante los rezos y la comida. No son
no hermanos. Viven solos… (LORCA, 2008, v. VI, p. 94)

A essa imagem que Lorca teve do seminário: local de sofrimento, temor, amargura e a

sensação de uma religiosidade dolorosa e incondicional a Deus e à instituição.

93
A crítica de Lorca refere-se à instituição da Igreja Católica, causando

algum desconforto na sociedade espanhola. Ao criticar a Igreja, Lorca coloca em

questão a criação do homem, e não Deus, e assim separa a visão que o escritor tinha do

catolicismo da relação com Jesus, imprimindo às palavras de Lorca não um

distanciamento do sentimento espiritual, mas uma crítica à instituição. Dessa maneira, o

primeiro livro de Lorca já mostra o quão perigosas podem ser as palavras do escritor. E

certamente essa possibilidade de ler Lorca, sua crítica à Igreja, mas podendo não se

afastar da relação com Jesus é um dos elementos na obra do poeta com que os grupos

católicos da Espanha mais se assustaram. No momento em que o livro foi lançado,

Lorca não foi diretamente alvo de críticas dos setores religiosos ou conservadores da

sociedade, mas isso também se deve à pouca repercussão que o livro teve. É fato que o

primeiro livro de Lorca já traz à tona muitas características do poeta que estarão

presentes em toda a sua obra, como a prosa em estilo poético e o próprio texto

comprometido com o social, mas ainda está bem distante do Lorca que vai para Madri e

que viaja pelas Américas. O livro isoladamente não teve grande impacto na produção

literária da época, mas tornou-se um espinho no momento em que passou a fazer parte

de um grupo de poemas e obras dramáticas que atingiram maior êxito dentro e fora da

Espanha.

Os dois momentos de Impresiones y Paisajes citados acima mostram que

a atenção de Lorca estava voltada para as questões sociais, tanto pela diferença de

classes quanto pelas imposições da sociedade sobre o indivíduo, como na relação do

homem com Deus, sendo intermediada pela Igreja. Mas, antes mesmo de seu primeiro

livro, Lorca escreveu um panfleto na época da I Guerra Mundial, cujo título, ―O

patriotismo‖ (29 de outubro de 1917), já mostrava que o escritor estava atento —

incomodava-se — com as relações sociopolíticas que ele via em sua sociedade e em seu

94
tempo. ―O patriotismo‖ não foi publicado, tem pouca carga poética, mas uma forte

contestação à ideia de pátria, um importante questionamento sobre o que o indivíduo

deve aceitar por causa da ideologia do patriotismo:

Quantas vezes nos falaram do patriotismo…! Sempre entendemos,


desde criança, o patriotismo como um sentimento que tem por espírito
um trapo de cores, a voz de uma corneta desafinada e, por fim,
defender as tumbas, as casas, etc., de nossas famílias. Os encarregados
de dançar frente ao sacro fogo de suas ideias são uns senhores
ordinários com bigodes esticados e vozes ressoantes que fazem a nós,
os jovens, beijar uma cruz infame formada por uma bandeira e uma
espada; ou seja, a cruz da ignorância e da força. Há que pensar para
que serve toda essa multidão de bonecos grotescos que são sacerdotes
do patriotismo e que vão atropelando a doçura e o amor. Não se pode
imaginar porque todo um povo se lança outra outro unicamente por
essa paixão [...]
Há que arrancar as nefastas ideias políticas da juventude, assim como
há que arrancar dos patrioteiros, por honra de nossas mães, o conceito
da pátria mãe.
Nunca pode ser nossa mãe aquela que diz que temos que dar nosso
sangue, até a última gota, por ela. [...]
Ai, infeliz Espanha! País de negruras, de fogo e horror. Apoteose da
imbecilidade dirigida por padres luxuosos, toureiros, cafetões,
prostitutas sem alma, ladrões de fraque e ignorantes de fé.

Como dito acima, o panfleto não foi divulgado na época, e até hoje não

consta nas publicações das obras completas de Lorca, mas é fundamental para mostrar

que o escritor não era indiferente ao que acontecia ao seu redor e no mundo — no caso

de ―O patriotismo‖, trata de questionar o sentimento que move os homens a guerrear

entre si por causa de uma ideologia que parece não ter sentido para o autor. ―O

patriotismo‖ é um forte argumento para a ideia de que Lorca não se envolvia com a

política institucional, mas essa recusa não é sinônimo de apoliticismo. Ao contrário, ao

expressar sua ideia política contrária às instituições, contra o conceito de pátria que

nutre os exércitos, Lorca se torna um opositor à ordem vigente, identificando-o com a

esquerda.

No ano de 1919, Lorca foi a Madri para viver na Residência dos Estudantes,

onde morou até 1928. A vivência do escritor neste local foi fundamental, pelo ambiente

95
que esta proporcionava, pela liberdade que Lorca experimentou estando longe da

família e também pelas relações que ali viveu e que, boas e ruins — como a complicada

relação amorosa que Lorca teve com o escultor Emilio Aladrén —, foram igualmente

fundamentais para Federico. Entre as pessoas importantes nesta fase da vida de Lorca,

estão os artistas da Geração de 27, o cineasta Luis Buñuel e o pintor Salvador Dalí. Na

época em que viveu na República dos Estudantes, Lorca escreveu suas obras poéticas de

maior êxito: Livro de Poemas (1921); Ode a Salvador (1926); Canções (1921-24);

Romancero Gitano (1924-27); Poema do cante jondo (1921-22) e Primeiras canções

(1922), atingindo maturidade em sua produção poética. No mesmo período, escreveu

três de suas primeiras obras teatrais: Mariana Pineda (1925), Amor de Dom Perlimplim

e Belisa em seu jardim (1926) e Dona Rosita, a solteira (1927), que expressam pouca

desenvoltura de Lorca na dramaturgia, porém, já anunciam elementos do estilo de

Federico – obras que carregam críticas sociais em sua temática principal e mulheres

como protagonistas, além do frequente tema da anulação do indivíduo pela sociedade.

Nessa época a política já rondava a arte de Lorca e, pelas cartas que o poeta

enviou à família, nota-se que vincular suas obras com algum posicionamento político

não era de interesse do escritor. Em 1924, quando Lorca estava organizando a estreia de

Mariana Pineda — peça sobre a história real de uma mártir republicana —, de Madri

escreveu a seus pais que moravam em Granada:

As circunstâncias estão complicadas, mas nós vamos fazer os


cenários, figurino, tudo, e estudá-la. Eu acredito, e todos acham o
mesmo, que este ano estará em cartaz, e o êxito da obra, me convenci
de que não é e nem deve, como queria dom Fernando [de Los Ríos]
ser político, pois é uma obra de arte pura, uma tragédia feita por mim,
como sabem, sem interesse político e eu quero que seu êxito seja um
êxito poético (LORCA, 2008, v.VII, p. 844).

A ideia de que Lorca queria ser reconhecido por sua arte, somente, se completa em

outra carta, no ano seguinte, na qual ele diz ―sempre serei um artista puro, que é o

96
máximo que pode aspirar o homem que tem tanto trabalho quanto mocinha em

conservar sua honra‖ (Idem, p. 848).

Essas cartas de Lorca são importantes para compreender a afirmação por

parte da família de que o escritor não se envolvia com a política — ideia defendida pela

família até os dias de hoje. No documentário Lorca, el mar deja de moverse (2006), no

qual o diretor tenta mapear os motivos para o assassinato de Lorca, Emilio Ruiz

Barrachina pergunta ―Foi Lorca, de fato, um homem político?‖. Manuel Fernandéz

Montesinos, sobrinho e presidente da comunidade dos herdeiros do poeta, responde:

politicamente, ele já disse e ficou famoso, ―não quero que me


encarcerem, não quero pertencer a nenhum tipo de organização
política‖ que tivessem uma série de estatutos, que o obrigassem a se
comportar de uma maneira determinada, mas estava no meio de um
grupo importante, que naquele momento tinha muita atividade
política, e ia às vezes, eu acredito, um pouco arrastado. Se o
chamassem pra assinar um manifesto e o parecesse correto, que devia
assinar, ele o fazia, mas na maioria das vezes levado, um pouco, por
seus amigos que estavam muito envolvidos na atividade política,
principalmente, pelo partido comunista.

De fato Lorca assinou alguns manifestos. Em 1936, quando a Espanha se

preparava para novas eleições, depois do período de governo de direita, o Biênio Negro,

Lorca assina o manifesto ―Os intelectuais com o Bloco Popular‖, publicado no jornal

Mundo Obrero, em 15 de fevereiro de 1936, e cujas primeiras palavras eram:

Partido que separa consideráveis divergências de princípios, mas,


defensores, todos, da liberdade e da República, souberam somar seus
esforços em uma ampla Frente Popular. Faltaríamos com nosso dever
se nessa hora de autêntica gravidade política, nós, intelectuais, artistas,
profissionais de carreiras livres, permanecêssemos calados sem dar
publicamente nossa opinião sobre um fato de tal importância. Todos
sentimos a obrigação de unir nossa simpatia e nossa esperança ao que
sem dúvida constitui a aspiração da maioria do povo espanhol: a
necessidade de um regime de liberdade e de democracia, cuja ausência
se deixa sentir lamentavelmente na vida espanhola de todos nós
(GIBSON, 1979,p. 28).

97
A primeira assinatura do manifesto era a de Federico García Lorca, seguido

de Rafael Alberti, Emilio Prados, María Teresa León e mais de trezentas assinaturas. É

claro que o manifesto acima tem intenção eleitoral, visto que mostra à população

espanhola que aqueles que o haviam assinado estavam ao lado da Frente Popular.

Lembrando que 1934 e 1935 foram anos de intensa repressão na Espanha e no início de

1936, antes que eleições tirassem a direita do poder, o próprio Lorca teve uma mostra de

que ele era um dos alvos mais certos da repressão conservadora. Em janeiro de 1936,

chegou uma intimação judicial a Lorca por causa do poema ―Romance da Guarda

Civil‖. O tenente coronel da Benemérita, que não conhecia Federico, o havia

denunciado por considerar seu poema ofensivo. Manuel Iglesias Corral, fiscal geral da

República e chefe do Ministério Fiscal, foi quem contou. Iglesias Corral, informado

pelos fiscais da disposição do processo, e depois de ter verificado o expediente,

conseguiu que fosse anulada qualquer atividade processual ou judicial contra Lorca

(GIBSON, 1998, p. 412). Lorca não deu atenção ao caso, mas ele serve para mostrar até

que sua obra de fato ofendeu a direita e que seus representantes estavam dispostos a

punir o autor por causa do caráter "subversivo" da denúncia da Guarda Civil, por

denunciar a repressão preconceituosa dessa instituição.

Oh! Cidade dos gitanos!


Nas esquinas bandeiras.
Apaga as tuas verdes luzes
Porque vem a benemérita.
Oh! Cidade dos gitanos‖
Quem te viu e não se recorda de ti?
Deixai-a longe do mar
Sem pente para suas riscas.

Avançam de dois no fundo


Para a cidade da festa.
Um rumor de sempre-vivas
Invade as cartucheiras.
Avançam de dois no fundo
Duplo noturno de tela.
O céu parece a eles

98
Uma vitrina de esporas.

A cidade, livre do medo,


Multiplicava as suas portas.
Quarenta guardas-civis
Entram nelas para o saque.
Os relógios pararam,
E o conhaque das garrafas
Se disfarçou de novembro
Para não infundir suspeitas.
Um vôo de gritos longos
Se levantou nos cata-ventos.
[...]
No portal de Belém
Os gitanos se congregam.
São José, cheio de feridas,
Amortalha uma donzela.
Teimosos fuzis agudos
A noite toda soam.
A Virgem cura os meninos,
Com salivinha de estrela.
Mas a Guarda Civil
Avança semeando fogueiras,
Onde jovem e desnuda
A imaginação se queima [...]

(―Romance da Guarda Civil‖, LORCA, 2002, p. 395)

Nessa situação, parece óbvio que Lorca se coloque favorável a um governo

democrático e se manifeste a favor da necessidade de liberdade. Levando em

consideração que a liberdade é um dos grandes temas de toda a obra lorquiana, de

maneira direta ou pela denúncia da opressão, pode-se afirmar que o escritor assinou o

manifesto em favor da Frente Popular muito mais pela ânsia de promover a liberdade do

que pelo ensejo de participar da campanha pela Frente Popular. Mas essa não foi a única

participação de Lorca em manifestações populares políticas.

Em maio do mesmo ano, o grupo espanhol ―Comitê dos Amigos de

Portugal‖ publicou no jornal El Socialista o manifesto que dizia: ―este comitê propõe

popularizar na Espanha os métodos brutais de repressão da ditadura fascista de Salazar

em Portugal, organizando uma campanha de protesto entre as massas populares

espanholas, assim como a ajuda em todas suas formas às vitimas do fascismo

99
português‖ (Ibidem, p. 310). Ainda contra o fascismo, Lorca participou de um ato

organizado na Casa do Povo de Madri em favor de Luís Carlos Prestes, que havia sido

preso e corria o risco de ser fuzilado. O ato recebeu o nome de ―Comício de

solidariedade com os antifascistas do Brasil‖. O nome de Lorca consta como a primeira

assinatura no manifesto espanhol ―um chamado aos amigos da América Latina pela

ocasião da visita da mãe do lutador brasileiro‖, publicado em 21de maio de 1936 no

jornal Heraldo de Madrid (Ibidem: p. 33).

De acordo com o depoimento de Manuel Fernandéz Montesinos, pode-se

pensar que Lorca assinou esses e outros manifestos levado por seus amigos. Mas então,

não se justificariam as palavras de Lorca em entrevista concedida em 1931, poucos

meses antes do inicio das atividades de La Barraca:

Gente alegre e despreocupada em La Barraca, não?


- Alegre, sim, muito alegra. Mas não despreocupada, muito pelo
contrário. Muito preocupada com uma grande ideia política, que é a
que os empurra. Uma ideia de grande política nacional: educar o povo
pondo ao seu alcance o teatro clássico e moderno e o velho. Esse
teatro tão tristemente abandonado pelos espanhóis (LORCA, 2008, v.
VI, p. 510).

Lorca se posicionava politicamente: a favor da liberdade individual e de

uma sociedade espanhola que levasse a educação e a arte para todos os cantos do país.

Era pela arte que Lorca conseguia vislumbrar a melhora social da Espanha, e por isso o

escritor, ao longo de sua vida e de seu trabalho, foi se afastando do conceito de arte pela

arte, como ele mesmo deixou claro em outra entrevista, no ano de 1936, expondo seu

pensamento sobre o papel do artista na sociedade:

Este conceito da arte pela arte é uma coisa que seria cruel se não
fosse, afortunadamente, brega. Nenhum homem de fato ainda acredita
nesta ladainha da arte pura, arte pela arte mesmo. Neste momento
dramático do mundo, o artista deve chorar e rir com seu povo. Há que
deixar o ramo de açucenas e se meter na lama até a cintura para ajudar
aos que procuram açucenas. Mas a dor do homem e a injustiça

100
constante que emana do mundo, e meu próprio corpo e meu próprio
pensamento, evitam que eu transporte minha casa às estrelas
(LORCA, 2008, v. VI, p. 734).

Onze anos se passaram da carta de Lorca para sua família, na qual ele dizia

que ―sempre seria um artista puro‖ para a entrevista acima, afirmando que não era

possível crer na arte pela arte, na arte pura, mas que o artista precisa deixar de estar

longe de seu povo, para estar junto com ele. Pode-se pensar que Lorca tenha mudado

sua visão da importância da arte ao longo dos anos que separam as citações, mas é

fundamental entender que o encontro entre a política e a arte não se dá de maneira

simples e, portanto, não se pode simplificar a arte de Lorca caracterizando-a como

política ou não política, simplesmente.

Em primeiro lugar, deve-se ter em conta que os principais movimentos de

vanguarda artística do século XX, como dadaísmo, surrealismo e construtivismo russo,

apresentavam marcada influência marxista, deixando-se impregnar fortemente pela

dimensão política. Desta maneira, os artistas se engajavam em projetos políticos de

transformação da sociedade e lutavam pela formação de uma nova consciência sensível

da arte (CHAIA, 2007, p. 18). Lorca assumiu a influência de alguns pensadores, como

Karl Marx, sobre seu pensamento em seu ―Discurso ao povo de Fuente Vaqueros‖:

E a alma e o corpo, a saúde e as fazendas se subordinam e dependem


daquelas grandes obras. E eu incluo: tudo vem dos livros. A
Revolução Francesa sai da Enciclopédia e dos livros de Rousseau, e
todos os movimentos atuais societários comunistas e socialistas
arrancam de um grande livro: do Capital, de Karl Marx (LORCA,
2008, v.VI, p. 384).

Ao mesmo tempo em que se pode afirmar que Lorca foi um artista engajado porque

criticou sua sociedade, protestou a favor de seus ideais e agiu publicamente, também se

deve recusar enquadrar a arte de Lorca como engajada no sentido mais comum de seu

termo, pois o escritor sempre fez questão de estar livre de qualquer rotulação, inclusive

101
da rotulação política sobre sua arte. Ser artista, para Lorca era um oficio como outro

qualquer. Ser escritor não colocava Federico em outro patamar, e, ao contrário, ele fez

questão de deixar claro qual era seu posicionamento sobre a função de sua profissão e

posição social:

Mas, neste mundo, eu sou e sempre serei partidário dos pobres. Eu


sempre serei partidário dos que não têm nada e até a tranquilidade do
nada lhes é negada. Nós — refiro-me ao homens de significação
intelectual e educados no ambiente das classes que podemos chamar
acomodadas — somos chamados ao sacrifício. Aceitemos! (LORCA,
2008, v. VI, p. 656).
[...]
Agora estou trabalhando em uma nova comédia. Já não será como as
anteriores. Agora é uma obra na qual não posso escrever nada, nem
uma linha, porque se desataram e andam pelos ares a verdade e a
mentira, a fome e a poesia. [...] Enquanto haja desequilíbrio
econômico, o mundo não pensa. Eu tenho visto. Vão os homens pela
margem do rio. Um é rico, outro é pobre. Um tem a barriga cheia, e o
outro deixa sujo o ar com seus bocejos. E o rico diz ‗Oh, que barca
mais linda se vê na água. Olhe, olhe só o lírio que floresce na
margem‘. E o pobre reza: ‗Tenho fome, não vejo nada. Tenho fome,
muita fome‘. Natural. O dia que a fome desaparecer, vai produzir no
mundo a maior explosão espiritual que jamais conheceu a
Humanidade. Nunca, jamais poderão imaginar os homens a alegria
que estourará no dia da Grande Revolução. Será que estou falando em
socialismo puro? (Idem, p. 731)

Sem pudores, na fala acima Lorca mostra que ele tinha ideia da carga política que

carregava sua atitude crítica, sua arte. Revolução, Socialismo puro, ambos sendo

iniciados quando não houver mais fome de comida, nem a fome de poesia. O artista é

aquele que reage e procura reencontrar energias e potência no interior de uma condição

social na qual não se é livre e o céu pode desabar sobre sua cabeça. Ao aceitar sair da

cômoda situação de ―homem de significação intelectual‖, como ele mesmo disse, e de

se pronunciar partidário daqueles que nada têm, Lorca se torna um agente social e

politico, e se oferece em sacrifício para o pensamento conservador, reacionário e

sanguinário da Espanha.

102
Política e arte crítica

Poeta, dramaturgo, músico, diretor teatral, desenhista, conferencista. Lorca

flanou por diversos tipos de expressão artística ao longo de seus quase dezoito anos de

produção — contando a partir da publicação de seu primeiro livro em 1918, e a sua

morte, em 1936. Lorca foi, ao mesmo tempo, clássico e vanguardista. Criador múltiplo,

Lorca sobrepôs gêneros: musicou o poema, poetizou o drama, trabalhou o teatro com

muitas de suas modalidades, dos fantoches à experimentação surrealista, acrescentando-

lhe música e dança. Foi compositor para as montagens de La Barraca, e artista plástico

em suas pinturas e na criação de cenários.

No ano de 1929, Federico viajou para a América do Norte, onde viveria por

um ano. Em Nova Iorque, cidade onde residiu por seis meses, Federico acompanhou a

quebra da bolsa e a depressão americana, que coincidiu com a mudança dos rumos de

sua obra, que passou a se dedicar, a partir de 1929, quase exclusivamente às artes

dramáticas. O impacto da cidade de Nova Iorque em Lorca deu lugar a seu livro de

poemas mais inquieto socialmente: Poeta em Nueva Iorque, cuja base é a denúncia da

opressão na sociedade norte americana, particularmente da opressão dos negros. O

cinema parece ter sido outra descoberta do período americano de vida de Lorca, que

escreveu Viagem à Lua, um roteiro para cinema mudo, que alguns estudiosos

classificam como uma possível resposta ao filme O cão andaluz16, de Buñuel e Dalí.

16
Ángel del Río teria contado a Buñuel que Lorca, em Nova Iorque, tomou conhecimento do filme feito
por Dalí e Buñuel, e Lorca teria dito: ―Buñuel fez uma merdinha, pequena assim, que se chama Um cão
andaluz, e o cão sou eu‖(GIBSON, 2007, p. 72). Por mais que não haja provas dessa anedota, é fato que
na Residência dos Estudantes de Madri chamavam os estudantes da Andaluzia de ―cães‖. Somado a isso,
o lançamento do filme de Buñuel coincide com o período de mágoa entre os três amigos e, também
coincide com a data de criação do roteiro cinematográfico de Lorca, Viagem a Lua.

103
Há uma parte da vida-obra de García Lorca que é pouco explorada pelos

estudiosos brasileiros, que são suas conferências. A partir de 1922, após já haver

iniciado sua condição de escritor sobre a tríplice base da prosa (Impresiones y Paisajes,

1918), do teatro (O sortilégio da mariposa, 1920) e da poesia (Livro de poemas, 1921),

Lorca deu início ao seu trabalho de conferencista, atividade que não cessará até sua

morte. E aos discursos e conferências de Lorca, soma-se também as entrevista dadas

pelo escritor nas quais ele demonstrou uma grande preocupação pela receptividade de

sua obra artística, e explicitou sua visão da arte, do mundo e da sociedade.

A vida de conferencista de Lorca se tornou mais intensa com a chegada da

Segunda República, provavelmente pela liberdade de expressão proporcionada pela

recém-chegada democracia. No ano de 1932, por exemplo, entre os meses de março e

maio, Lorca deu uma série de conferências em Valladolid, Sevilha, Vigo, Santiago de

Compostela, La Coruña e Salamanca. Segundo Gibson (2006, p. 486), a maioria dessas

conferências se deu sob a direção dos Comitês de Cooperação Intelectual, criação

republicana, e ainda segundo o historiador, as rápidas visitas do poeta seguiam sempre a

mesma pauta: chegada à cidade e primeiros contatos com a intelectualidade local,

refeições com estes, recolhimento no hotel, conferências e jantar, finalizando com as

saídas noturnas lorquianas, famosas pelas conversas do autor nas quais ele comentava

sobre a cidade, declamava poesias, contava anedotas, tocava piano. Para Gibson, essas

viagens e rotinas de conferências e relacionamento de Lorca com as cidades nas quais

ele passava contribuíram muito para o crescimento da fama do escritor.

As apresentações de La Barraca pelos vilarejos da Espanha aumentaram o

ecoar das palavras de Lorca, que, em muitas paradas do grupo mambembe, atuou como

conferencista — além de seu trabalho como diretor do grupo — e muitas vezes recitava

104
algum discurso antes da apresentação dos ―barracos‖17. Mas não foi apenas na Espanha

que Lorca atuou como conferencista. Havana, Buenos Aires, Montevideo e Nova Iorque

foram algumas das cidades fora da Espanha que escutaram as falas de Lorca sobre suas

obras, sobre a arte e sobre seu olhar sobre o mundo. E não se deve pensar que o escritor

declamava suas conferências e discursos impensadamente, pois, como esclarece

Eutimio Martín (1998, p. 280), Lorca nunca falava no vazio, e apesar de sua

reconhecida desenvoltura, não improvisava jamais. Nem sequer nas entrevistas: Lorca

costumava pedir aos jornalistas que o enviassem as perguntas por escrito e da mesma

maneira ele remetia as respostas. Lorca tinha consciência da importância de suas

conferências e discursos, como ele mesmo disse em 1931, por ocasião da inauguração

da biblioteca de seu vilarejo natal, Fuente Vaqueros: ―Sempre, todas as minhas

conferências são lidas, o que indica muito mais trabalho do que falar, mas no final, a

expressão é muito mais duradoura já que pode servir de ensinamento às pessoas que não

escutaram ou não estão presentes aqui‖ (LORCA, 2008, v. VI, p. 380). O escritor sabia

que suas palavras não ressoariam apenas no momento e no local onde ele as

pronunciasse, mas que seus discursos produziriam impacto por muito tempo e em

muitos outros lugares, como de fato aconteceu — e ainda acontece.

Uma conferência de Lorca tem importância especial para o presente estudo:

―Conversa sobre teatro‖18, declamada em 1935, após uma apresentação extraordinária

de Yerma para atores madrilenos que estavam em cartaz na época, mas queriam

conhecer a obra — assim, a representação foi feita durante a madrugada do dia 2 de

fevereiro. No momento desta conferência, um pouco mais de ano antes da morte do

escritor, pode-se dizer que ele já havia desenvolvido sua obra dramática o suficiente

para expor de maneira consciente sua visão sobre a importância dessa arte. Mas, além

17
Maneira como Ian Gibson se refere aos componentes do La Barraca.
18
Título original ―Charla sobre teatro‖, sem publicação no Brasil.

105
disso, a importância desse discurso de Lorca se dá pelo fato de o escritor falar,

diretamente, do aspecto social de sua arte. O teatro não foi apenas a expressão artística

de Lorca que causou mais impacto na sociedade espanhola — visto que algumas

estreias foram censuradas pela ditadura de Primo de Rivera, ou no caso da estreia de

Yerma, que chocou o público e a crítica de direita — e mundial, mas o teatro era,

segundo o autor, sua maior vocação:

O teatro foi sempre minha vocação [...] o teatro é a poesia que se


levanta do livro e se faz humana. E ao se fazer, fala e grita, chora e se
desespera. O teatro necessita que os personagens que apareçam na
cena levem um figurino de poesia e ao mesmo tempo que se possa ver
seus ossos, o sangue. Hão de ser tão humanos, tão horrorosamente
trágicos e ligados à vida e ao dia com tal força que mostrem suas
tradições, que lhes apreciem seus cheiros e que saia pelos lábios toda a
valentia de suas palavras cheias de amor ou de nojo (LORCA, 2008.v.
VI, p. 730).

O teatro, essa expressão demasiada humana da arte, foi usada por Lorca para se

expressar de maneira contundente e é, sem dúvida, a parte mais politizada de sua obra,

no sentido em que fala diretamente da e para a sociedade.

Na conferência ―Conversa sobre o teatro‖, Lorca começa seu discurso

dizendo que, naquela noite, ele não falaria como o autor de Yerma, que acabara de ser

representada, nem como estudante do ―rico panorama do homem, mas como ardente

apaixonado do teatro e sua ação social‖ (Idem, p. 428). Essa paixão do escritor pelo

teatro tinha razão: para ele, as artes dramáticas eram um dos mais expressivos e úteis

instrumentos para a educação de um país e o barômetro que marca sua grandeza e seu

esmorecimento.

Um teatro simples e bem orientado em todas as suas ramas, desde a


tragédia ao valdeville, pode mudar em poucos anos a sensibilidade de
um povo; e um teatro destroçado, onde os cascos substituem as asas,
podem rebaixar e adormecer uma nação inteira. O teatro é uma escola
de choro e riso e uma tribuna livre onde os homens podem colocar em
evidencia morais velhas ou equivocadas e explicar, com exemplos

106
vivos, as normas eternas do coração e sentimento do homem (Idem, p.
428).

Aqui encontramos Mariana Pineda, ânsia republicana da protagonista e a ditadura de

Primo de Rivera que foi acompanhada por uma Espanha que convulsionava no encontro

entre muitas espanhas que não conseguiam coexistir. O teatro de Yerma, de Bodas de

Sangue, de Rosita, a solteira, que questionam a velha moral social sobre a mulher e a

obrigatoriedade do casamento, de prestar contas a sociedade de seus desejos e

comportamentos. As personagens lorquianas são, cada uma a sua maneira, a forma que

o escritor usou para explicar, com exemplos vivos, as normas do coração, que se opõem

às normas sociais.

Lorca assume que sua arte está relacionada a condições externas a ela, ou

seja, encontra-se ligada às condições sociais, carregando características e tensões que de

alguma maneira são advindas de traços sociais. Assim, há muita Andaluzia na obra de

Lorca, da mesma maneira que seus escritos se tornam universais por representarem o

que está além da fronteira geopolítica. E como recusar que há um caráter político no

teatro de Lorca frente à seguinte afirmação, feita pelo próprio autor:

Um povo que não ajuda e não fomenta seu teatro, se não está morto,
está moribundo, como o teatro que não atende ao pulsar social, ao
pulsar histórico, o drama de sua gente e a cor genuína da paisagem e
de seu espírito, com riso e com lágrimas, não tem direito a se chamar
teatro, mas sim sala de jogos ou espaço para fazer essa horrível coisa
que se chama ‗matar o tempo‘. Não me refiro a ninguém, nem quero
ferir ninguém, não falo da atualidade viva, mas do problema exposto
sem solução (Idem, p. 428).

Alguns estudiosos da obra de Lorca definem seu estilo como surrealista,

outros como expressionista, e alguns consideram O público e Assim que passarem cinco

anos como antecipação do teatro do absurdo, como cita Ricardo Doménech (2008, p.

36). Mas, não se pode enquadrar a obra de Lorca — e essa era sua vontade, que sua obra

não fosse rotulada, como conta Jorge Guillén por uma carta recebida por Lorca, na qual
107
ele dizia: ―Não quero que me rotulem. Sinto que me vão colocando correntes‖ (apud

ROJO, 2006, p. 87). O que se pode levar em conta são algumas observações que o

próprio autor fazia sobre a sua obra e a arte em geral. Uma dessas observações, segundo

Rafael Martínez Nadal19, é sobre os dois tipos de teatro em relação à sua intenção, e não

à sua forma. Segundo Nadal, Lorca dizia que há dois tipos de teatro: o teatro ao ar livre

e o teatro de arena (apud DOMÉNECH, 2008, p. 36).

O primeiro é o teatro convencional, que em sua imagem ―ao ar livre‖ remete

ao teatro como entretenimento. Teatro superficial, incapaz de criticar a moral burguesa,

perpetuando a mentira onde esta vive; teatro que ofusca a profundidade e a grandeza do

próprio teatro, de uma obra ou tema. Como exemplo dessa espécie de teatro é uma

montagem de Romeu e Julieta, de Shakespeare, que a coloca, apenas, como uma peça

de amor, e não como uma forma de crítica social. O teatro ao ar livre se preocupa em

criar montagens que não alteram a consciência, nem o estômago do público, e por isso

alcançam grande êxito. Em oposição, há o teatro de arena, talvez fazendo alusão à arena

de gladiadores, pensando na necessidade de impor ao público o conflito necessário para

que o teatro leve à cena a crítica, o incômodo que faz o público questionar aquilo que

ele considera como verdade.

Certamente é o teatro de arena o teatro que chama para o conflito, aquele

feito por Lorca, não se preocupando com o simples entretenimento do público, não

interessado em matar o tempo, mas sim como agente social e histórico, que reconhecia o

pulsar da sociedade por ser algo vivo, como ela. Ou pelo menos o deveria ser. Se estava

morto ou moribundo o teatro, era seu povo que assim o permitia, e com isso Lorca faz a

dupla ponte da arte para a política, no sentido em que questiona as relações sociais, e da

política para a arte, pensando que a sociedade é o que mantém vivas as artes.

19
Rafael Martínez Nadal foi amigo de Lorca e estudioso de sua obra.

108
Eu sei que a verdade não a tem que diz ―hoje, hoje, hoje‖ comendo
seu pão junto ao conforto, mas sim o que serenamente vê de longe a
primeira luz na alvorada do campo. Eu sei que não tem razão o que
diz ―agora mesmo, agora, agora‖, com os olhos presos nas pequenas
aberturas da bilheteria, mas o que diz ―amanhã, amanhã‖ e sente
chegar a nova vida que chuvisca sobre o mundo (Ibidem, p. 430).

No final da conferência, Lorca afirma que sua arte não tem sentido

utilitarista comercial, nem se preocupa com a temporalidade do imediato, mas busca

reverberar mais além do agora, procurando quem a escute, mesmo que em outros

tempos e sociedades. Pois a arte se mostra um lugar possível de resistência e de

mudança na sociedade, e nisso ela se torna política, e não pelos discursos partidários ou

panfletários. Voltando para a recusa de Lorca da arte pela arte, que foi defendida

inicialmente por Baudelaire contra o utilitarismo e a determinação mercadológica, ela

aqui encontra o seu oposto. O teatro de Lorca, que não é mercadológico nem de

entretenimento, tampouco apenas artístico, se aproxima do teatro do povo, ou melhor,

do teatro para o povo, visto que escritor aceita o ofício de dramaturgo, encargo de

alguns, para sensibilizar e educar a sociedade. Essa é a arte de Lorca, que não pertence a

nenhum movimento político, mas que se constitui como algo vivo, que se desloca em

direção ao sujeito, artista ou fruidor. O significado da arte é potencializar a vida.

Sobre o encontro entre arte e política nas obras lorquianas, Guillermo de

Torre colocou que

Federico não teve jamais a menor relação ativa com a política.


Inclusive — podemos afirmar — era perfeitamente alheio à
utilização que seu nome e de sua obra fossem feitas de bandeiras
políticas em certas ocasiões; por exemplo, na ocasião da Estreia de
Yerma. Evitava igualmente participar de atos de sentido político,
mesmo que tivessem matiz literário [...] Além disso, nunca pensou
em se inscrever em um partido político, nem em nenhum programa
político (apud GIBSON, 1979, p. 34).

109
As palavras de Guillermo têm relevância, pois de fato Lorca nunca nem

sequer pensou em se inscrever em partidos políticos; mas não se pode dizer que ele

jamais teve a menor relação com a política. As relações de amizade com Fernando de

Los Ríos e com os muitos parentes envolvidos com a política já são fatores que

mostram que, completamente alheio à política, Lorca não era. O que se pode afirmar,

certamente, é a preocupação do escritor em não ser rotulado, e isso o mantinha longe de

qualquer linha de ativismo político partidário. Evitando ostentar uma posição política

concreta, o escritor se mantinha fiel a sua postura de absoluta independência e

liberdade. Mas isso não anulou a posição de Lorca como um agente político, no sentido

em que ele se relacionava com sua sociedade por meio de sua arte.

É fato que Lorca nunca esteve comprometido politicamente com nenhum

grupo ou partido político. Lorca nunca se comprometeu, de forma oral ou escrita, no

sentido institucional, mas isso não implica em absoluto que o escritor tivesse deixado de

sentir simpatias por uns ou outros, ou de ter suas próprias ideias político-sociais. Há

uma anedota contada por Rafael Martínez Nadal, relatada por Gibson, que mostra que

Lorca tinha, sim, opiniões políticas:

Federico estava sentado com Rafael Martínez Nadal no terraço da


Granja del Henar, na rua de Alcalá, quando viram se aproximar uma
manifestação republicada em direção a [praça] Cibeles. Nadal propôs
que se juntassem aos manifestantes, e Federico se levantou na hora,
surpreendendo, som isso, seu amigo. ―Sim, sim, vamos. Temos que
ir‖. Quando a manifestação entrou no ―paseo" de Recoletos, com Ndal
e Lorca na primeira fila, surge de repente uma vintena de guardas
civis que interrompe a marcha da multidão. Há disparos e os
manifestantes fogem em debandada, Nadal entre eles. Assim, ele se
lembra: ―no meio do paseo deserto, Federico caminhava o mais
depressa que seu defeito físico o permitia. Seu terno claro se tornava
perfeitamente branco. Quando, uma hora mais tarde, nos sentamos de
novo na Granja, ainda estava exaltado e furioso: ‗Este regime tem que
cair! Assassinos de estudantes e poetas!‘‖ (GIBSON, 1998, v.II, p.
139).

110
Não há registros da participação de Lorca na manifestação, mas é fato que

aconteceu a manifestação dos estudantes e a repressão desta pela Guarda Civil, no dia

12 de abril de 1936, quando se iniciava a eleição na qual a população espanhola elegeria

a República como forma de governo. Mas, não há dúvida de que Lorca se aproximava,

por sua postura ideológica, dos grupos de esquerda, mas também contava com muitos

amigos de direita e respeitava suas ideias. O caso mais emblemático é, sem dúvida, a

amizade de Lorca com os Rosales, família de falangistas que deram guarita para Lorca,

em 1936, antes de o poeta ser detido por Ruiz Alonso.

No fato de Lorca não haver se comprometido com nenhum grupo ou

ideologia politica, ao invés de não se comprometer, como podem pensar uns, o escritor

se manteve fiel a sua postura de crítico da sociedade, mantendo-se livre para poder

flanar e questionar pensamentos políticos de direita e de esquerda, instituições como a

Igreja e o Exército, amarras sociais, moralidades e obrigatoriedades que ignoram a

vontade do individuo. Não se comprometer politicamente, ao contrário de ser uma

postura apolítica, manteve Lorca como um artista resistente, aquele que pode estar

sempre atento à sociedade, por não estar comprometido com suas instituições. Assim, a

arte de García Lorca pode ser considerada como uma manifestação política, pois atua

como crítica à sociedade. São obras baseadas na sensibilidade social do escritor, unindo

aspectos formais e questões sociais. Por meio de suas obras, Lorca resiste às amarras

sociais da Espanha de sua época, levantando questionamentos e agindo politicamente no

momento em que aponta intencionalidades voltadas a processos de transformação

interna e externa aos sujeitos. As obras do teatro lorquiano podem ser consideras, desta

forma, como arte crítica, pois por meio delas o escritor usa sua arte como elo com a

sociedade:

111
A arte como forma de investigação e suporte para a ampliação da consciência e do
conhecimento torna-se o elo nuclear para pregar a independência do indivíduo, da
sua expressão e do seu saber [...] Tal atitude do artista, enquanto ato de
representação, afastando-se de uma posição de neutralidade, deverá repercutir
possibilitando uma atitude crítica do usufruidor (CHAIA, 2007, p. 39).

A arte aparece como forma de conhecimento e investigação, modalidade do

saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a realidade. Neste caso, a arte representa

a condição humana, mecanismos do poder e economia ou estrutura social na qual o

artista está envolvido. No caso de Lorca, ele esteve envolvido, de maneira incontestável,

com a estrutura social e com os mecanismos de poder da Espanha do início do século.

Seja pela censura que algumas de suas obras sofreram, tanto com Primo de Rivera

quanto com o general Franco, ou pela liberdade que Lorca experimentou nos primeiros

anos da Segunda República, o escritor esteve envolvido com a política de sua época. E

mesmo que não tenha se referido a ela diretamente, ele apresentou uma postura política

em sua arte no momento em que escreveu sobre as relações de força, de poder, mesmo

que no âmbito particular da vida de suas personagens.

A compreensão da relação entre arte e política deve levar em conta a

identificação da obra com o social, com o coletivo, com o público, chegando até as

abordagens em torno da prática do sujeito, ao se considerarem as recentes formulações

da micropolítica. Se, por um lado, há a política centrada no funcionamento das

instituições, por outro, há a política como prática social, que privilegia as ações dos

sujeitos, dos indivíduos. Esta é a luta da micropolítica, na relação entre arte e política

que permite vislumbrar a liberação individual e a produção de rupturas subjetivas que

permitem avançar no debate com a sociedade, na contestação das relações de poder

institucional.

A política não é apenas aquilo que acontece na esfera institucional, mas

também o que está marcado pela presença de relações de conflito, contendo

112
permanentemente desestabilização e ordem. Política é o espaço onde as ambiguidades

se encontram, é o local onde é possível o entrecruzamento das práticas sociais,

individuais ou coletivas, com as instituições formais. Se a arte de Lorca não esteve

vinculada a nenhum partido, se é possível afirmar, de alguma forma, que suas obras não

carregam a intenção política, não se pode negar a ação do escritor como produtor, e

nesse sentido Federico se aproxima da política — seja na produção de suas peças,

poemas ou como conferencista, fazendo ecoar seus pensamentos por diversas partes da

Espanha e da América.

Das condições sociais nascem as obras que refletem a sociedade e que

carregam o desejo de intervir nela. E, como foi falado, desde seu primeiro livro, Lorca

mostra o quão sensível era às condições sociais que ele presenciou com suas viagens

pela Espanha. É na arte que não se engaja de forma direta com a política, mas que se

relaciona com a sociedade que se pode encontrar um potencial da radicalidade talvez

ainda maior do que nas obras de um artista explicitamente engajado, por oferecer as

condições para a emergência dos questionamentos livres, da transgressão e da

resistência. Mais do que arte engajada, o que se vê nas obras de Lorca é uma arte crítica.

A arte crítica se caracteriza por carregar em si elementos de ordem filosófica, intelectual

e ou analítica, e dessa maneira o artista se aproxima do estudioso social ou do cidadão

combativo. E Lorca, por meio de suas entrevistas e conferências, mostra que nunca

recusou esse papel de artista que estuda sua sociedade, que questiona seus valores e suas

regras ancestrais.

Pode-se falar, assim, de arte crítica pela independência que a obra de

Federico apresenta, não só em relação à sociedade e à política, mas também com relação

aos estilos artísticos de sua época, afinal, Lorca recusou tanto os rótulos de que sua obra

estaria a favor da República, quanto de que ele era um poeta cigano ou surrealista –

113
maneiras como o escritor foi descrito especialmente por sua obra poética. E como artista

independente, Lorca soube resguardar a sua obra da pressão política, não levantando

ideologias por meio delas, mas sim posicionando-se. Há quem relacione Lorca com a

República, seja por sua amizade com Fernando de Los Ríos, seja por seu trabalho em La

Barraca – que era um grupo que representava os interesses do governo republicano – ou

pelo manifesto a favor da Frente Popular, assinado por Lorca. Porém, tampouco se pode

afirmar que Lorca era republicano, mas ele esteve republicano, pois, em uma Espanha

que via a monarquia sucumbir, sendo substituída pelos sete anos de ditadura, e

assistindo o fascismo crescendo e tomando força no mundo, a República, como sistema

de governo, era a única possibilidade de um regime que respeitasse as liberdades dos

indivíduos. Porém, a posição política assumida pelo escritor a não subjuga a obra que

mantém sua liberdade ideológica e estética.

Nestas circunstâncias, pode não se verificar correspondência entre a


posição política do sujeito e conteúdo político de sua obra. A ligação
entre arte e política ocorre de maneiras distintas, através de revelações
ora muito fortes, ora tênues. Assim, também se estabelecem
inesperadas vinculações entre artista e obra, quando se consideram as
mediações vividas (CHAIA, 2007, p. 23).

E essa é a atuação de Lorca no cenário político, na medida em que ele age

de forma independente, porém crítica, colocando seu posicionamento e transgredindo,

tanto no que diz respeito às amarras institucionais, quanto na questão estética. E assim

Lorca vai se posicionando, tornando-se um agente politico, pois usa sua criação para

falar das práticas que se desenrolam em torno do poder – seja da família, da sociedade

em geral ou da religião. A arte se torna um elemento relevante para a ação e o esforço

político pela transformação do homem e da sociedade, na fusão de interesses individuais

e institucionais, no entendimento de que a arte é um meio de transformação da

sociedade.

114
Diferentes sistemas políticos propiciam distintas relações ente arte e

política, pois influenciam e são influenciados tanto pelos fatores internos quanto pelos

aspectos originados na dinâmica local e mundial. Na relação de mão dupla entre arte e

política, as obras artísticas favorecem a redução da consciência humana, fortalecendo

propósitos de dominação, ou podem abrir passagem para rotas de emancipação dos

indivíduos e grupos, ampliando os espaços de liberdade. A política da arte crítica: a

possibilidade de participar do cenário ativo por meio do conflito entre o artista/obra e a

ordem estabelecida. O eixo desse processo pode estar no individual, mas também se

desloca para o institucional; ir do cidadão para o governo; do local para o nacional, pois

sob os olhos das relações sociopolíticas, tanto a crítica quanto a recusa delimitam o

campo da micropolítica, no qual os sujeitos ou grupos realizam uma política no sentido

em que agem à revelia dos canais institucionais.

Lorca assinou manifestos contra o crescimento do fascismo na Europa e na

América do Sul, colocou em suas obras a ânsia dos indivíduos pela liberdade, e dessa

maneira posicionou-se politicamente: contestando o poder vigente de Primo de Rivera

ou denunciando uma outra onda de repressão que rompia em outras partes. O escritor

dialogou, por meio de sua criação, com o mundo e o tempo em que viveu, e assim, pede

um olhar atento para as relações de poder que se estabeleciam nas sociedades por onde

o poeta passou — pensando que Lorca também criou poemas que denunciavam as

relações de poder que ele conheceu na cidade de Nova Iorque. Porém, mesmo que o

poeta tenha travado um diálogo com as sociedades pela qual passou, sua obra é artística,

principalmente, por apresentar autonomia, por não estar datada, nem fixada em alguma

sociedade.

115
Lorca soube unir arte, vida e política — por meio da resistência que esse

impôs às instituições. E nesse entrelaçamento da arte com política realiza a crítica

social.

A obra de arte possui o poder de acertar as consciências, os corpos, e


as vidas dos indivíduos, preparando-os para a percepção de pressões
sociais e para os confrontos [...] ganha a qualidade de um petardo com
potencial para estilhaçar ou colocar em risco a sociedade.
Respondendo às forças humanas potencializadas na arte, a sociedade
contra-ataca com instituições punitivas que cerceiam ou impedem a
arte e a vida (CHAIA, 2007, p. 31).

116
Capítulo 3

A tragédia segundo García Lorca

117
Em direção à tragédia

Federico García Lorca publicou seu primeiro livro em 1918, aos vinte anos

de idade e, em 1928, escreveu Bodas de Sangue, considerada sua primeira peça trágica.

Quando morreu, em 1936, aos 38 anos, somava dezoito anos de produção literária, sem

contar os anos anteriores, quando estudou música. Lorca foi um artista: poeta,

dramaturgo, músico, desenhista, conferencista, deixava clara, em entrevistas, sua

posição sobre o trabalho do artista. Lorca não apenas produzia a arte, mas também

refletia sobre ela. Nos dezoito anos em que produziu, Lorca escreveu doze livros de

poemas, um livro de prosa, doze obras de teatro completas (deixou várias inacabadas), e

um roteiro de cinema, e foi diretor do grupo de teatro estudantil La Barraca. Uma

produção tão extensa quanto intensa, tendo em conta o pouco tempo no qual foi

concebida.

Das obras dramáticas de Lorca, três contam com maior êxito mundialmente,

a trilogia rural, que assim é conhecida por ser um conjunto de peças que se passam no

meio rural, no qual nasceu o poeta, ao sul da Espanha, na província da Andaluzia. Tal

trilogia lorquiana é composta pelas peças Bodas de Sangue, Yerma e A casa de

Bernarda Alba, e são essas algumas das últimas obras do escritor. Porém, o dramaturgo

García Lorca não pode ser reduzido a apenas três peças, assim como o Lorca poeta

também não pode ser rotulado como o poeta cigano.

Logo após a publicação do primeiro livro de Lorca e sua única obra em

prosa, Impresiones y Paisajes, em 1918, o escritor começou a traçar algumas linhas de

produções dramáticas. Nas peças inéditas Do amor (1919) e Sombras (1920),

encontram-se alguns dos temas que serão presentes em grande parte da obra lorquiana:

118
o religioso (Sombras) e o social (Do amor). Porém, é apenas com O sortilégio da

mariposa que Lorca se lança oficialmente como dramaturgo. A peça estreou em março

de 1920, sem boa recepção do público. Quinze anos mais tarde, já famoso como

dramaturgo, Lorca declara: ―quando eu estreei minha primeira obra, O sortilégio da

mariposa, me deram um pontapé enorme, enorme!‖ (MARTÍN, 1998, p. 82). A

consequência foi, segundo o irmão do poeta, Francisco García Lorca, que O sortilégio

da mariposa não foi representada mais do que duas vezes, quase um recorde, já que o

costume era que as obras reprovadas tivessem um mínimo de três apresentações

(LORCA, 1981, p. 266). O sortilégio da mariposa é uma comédia romântica que fala do

amor impossível entre uma barata e uma mariposa.

Dois anos depois, em 1922, Lorca terminou sua segunda obra dramática, A

Tragicomédia de Dom Cristóvão e D. Rosita, uma obra para marionetes que só seria

estreada em 1937, na Madri da Guerra Civil Espanhola. Em 1931, Lorca escreve uma

variação da peça, O Retábulo de Dom Cristóvão e D. Rosita, peça que ele mesmo

montou em Buenos Aires, em 1934. O Retábulo de Dom Cristóvão e D. Rosita é uma

comédia de costumes que segue o modelo da comédia dell‘arte e trata de alguns dos

grandes temas lorquianos, como os casamentos arranjados por motivos econômicos e a

luta contra a autoridade familiar para conseguir a felicidade amorosa.

Mariana Pineda, escrita em 1923, leva à cena a primeira heroína lorquiana.

A peça se baseia na história real de Mariana Pineda que, em 26 de maio de 1831, foi

executada publicamente em sua cidade natal, Granada, aos vinte e seis anos de idade.

Viúva e com dois filhos, Mariana foi condenada por ter sido pega, em sua casa,

bordando uma bandeira com símbolos republicanos. Na época, recaía a pena de morte

àqueles que fossem responsáveis por atos de rebeldia contra o soberano ou comoção

popular, e foi o que aconteceu com Pineda, que foi considerada ré por exaltada adesão

119
ao sistema constitucional revolucionário e por estar em contato com anarquistas

expatriados em Gibraltar (MARTÍN, 1998, p: 108). Mariana Pineda de Lorca estreou

em junho de 1927, em Barcelona, em outubro do mesmo ano em Madri, e em Buenos

Aires, em 1934.

Dois anos depois de Mariana Pineda, Lorca escreveu sua quarta obra

dramática, A Sapateira Prodigiosa, 1925. Esta peça, que só estreou cinco anos mais

tarde, trata de uma farsa muito espanhola e de linguagem muito pura, como declarou o

autor para o jornal La Razón, de Buenos Aires, em novembro de 1933 (MARTÍN, 1998,

p. 124). A Sapateira prodigiosa mais uma vez traz o tema da mulher jovem, casada por

conveniência com um homem mais velho. O casamento arranjado faz com que a

Sapateira viva sonhando com amores impossíveis, ao mesmo tempo em que trata seu

marido de maneira ríspida, e assim o casal leva uma vida infeliz. No final da peça, a

Sapateira declara seu amor ao marido, conciliando-se com ele, dando um desfecho feliz

à obra. Como o próprio autor definiu, A Sapateira prodigiosa é uma farsa simples, de

tom puramente clássico, e a personagem da Sapateira é um tipo e um arquétipo de uma

só vez; é uma criatura primária e é um mito da ilusão insatisfeita. Ainda sobre o estilo

apresentado em A Sapateira prodigiosa, Lorca completa: ―as cartas inquietas que

recebia de meus amigos de Paris, de formosura e amarga luta com uma arte abstrata, me

levaram a compor, em reação, esta fábula quase vulgar com sua realidade direta, onde

eu quis que fluísse um invisível fio de poesia e onde o grito e o humor se levantam

claros e sem armadilhas‖ (MARTÍN, 1998, p. 124). O estilo da farsa simples,

apresentado na peça, não se repetiria nas obras de Lorca, mas a mescla da prosa com a

poesia no texto dramático voltaria a ser usada, com mais êxito, em Bodas de Sangue.

Na sequência da dramaturgia lorquiana, A Sapateira é o elo perdido que

precede a peça Amor de Dom Perlimplín com Belisa em seu Jardim. Não se sabe

120
exatamente a data de conclusão da produção da obra, mas em 1925, em carta a

Fernández Almagro, Lorca dizia que estava escrevendo a peça. Supõe-se que o autor a

tenha concluído em 1928, pois, em entrevista ao jornal La Gaceta Literaria, de 15 de

dezembro de 1928, Lorca afirmava que preparava um volume de teatro, Amor de Dom

Perlimplín com Belisa em seu jardim. Anos mais tarde, no jornal Heraldo de Madrid,

em 4 de abril de 1933, Lorca descreve o tema de Don Perlimplín como ―o herói, ou o

anti-herói, a quem o tornam corno, é espanhol e calderoniano, mas não quer reagir

calderonianamente, e aí está sua luta, a tragédia grotesca de sua estória‖.

Dom Perlimplín é uma variação sobre o tema da anterior: o matrimônio de

um velho com uma mulher jovem. Porém, nessa obra não é a simples e extrovertida

jovem que assume o protagonismo, mas sim o velho marido, que apresenta a

personalidade complexa de um solteirão quinquagenário que nunca tinha pensado em se

casar, dizendo que estava satisfeito em viver com seus livros. Mas a verdade é que o

velho homem temia as mulheres desde que, quando criança, ficou conhecida a história

de uma mulher que estrangulou o marido. Porém, a empregada do protagonista o faz

mudar de ideia, estimulando-o a casar-se com Belisa. A primeira tentativa de estreia da

peça foi em fevereiro de 1929, mas a estreia foi censurada pela ditadura de Primo de

Rivera, e contou com apenas uma apresentação presenciada pelo autor, em 5 de abril de

1933, em Madri.

Entre os anos de 1929 e 1930, García Lorca viaja a Nova Iorque e Cuba, de

onde volta com um vasto número de poemas, conferências, obras de teatro e, entre elas,

um texto de teatro que o próprio autor classificava como ―irrepresentável‖. Em 24 de

dezembro de 1930, Lorca fala pela primeira vez de uma de suas obras que compõe o

―teatro impossível lorquiano‖, em entrevista ao jornal madrileno La Libertad: ―Não, não

é minha obra (referindo-se a La Zapatera prodigiosa)... já tenho outra... O Público. Essa

121
sim... Dramatismo profundo, profundíssimo‖. Lorca declarou que considerava a obra

irrepresentável porque as personagens principais eram cavalos, e de fato há equinos na

peça, mas não parecem ser as personagens principais. Talvez a verdadeira razão do

caráter irrepresentável não seja a forma da peça, mas seu conteúdo, que trata mais do

sentido psicológico das personagens do que do lado técnico. ―O Público não pretendo

estrear em Buenos Aires, nem em nenhuma outra parte, pois acredito que não haja

companhia que se anime de levá-la a cena, nem público que a tolere sem se indignar [...]

porque é o espelho do público. Quero dizer, fazendo desfilar na cena os dramas próprios

que cada um dos espectadores está pensando, enquanto está assistindo, muitas vezes

sem prestar atenção à representação‖.

A primeira encenação de O Público aconteceu em 1979, por um grupo de

estudantes da Universidade de Ríos Piedras, em Porto Rico. A estreia mundial da peça

se deu apenas em 1986, em Milão, e só no ano seguinte teve sua primeira encenação na

Espanha, em Madri. O Público trata dos sonhos delirantes de um diretor teatral, homem

que ao longo de sua vida escondeu sua homossexualidade e dedicou seu trabalho ao

teatro burguês — considerado por Lorca como o teatro que busca o aplauso fácil e o

apreço social das obras, como no caso de encenações estereotipadas de Romeu e Julieta.

Porém, em seu sonho, o diretor não pode controlar os embates de um público nada

convencional — cavalos —que o obriga a montar um autêntico Romeu e Julieta, com a

condição de que a peça só poderia ser representada por dois atores do sexo masculino. O

Público é a única peça na qual Lorca se refere diretamente ao tema da

homossexualidade. Em geral, o autor preferia tratar desse assunto em poemas, como no

caso dos Sonetos de amor obscuro.

A segunda peça que Lorca produziu após sua passagem pela América foi

Assim que passarem cinco anos. Esta peça também apresenta traços oníricos que

122
remetem ao estilo surrealista, estilo ao qual muitas vezes Lorca é relacionado pelos

críticos de sua obra. Mas, diferentemente da peça O Público, atrás da atmosfera que

envolve a peça, Assim que passarem cinco anos tem uma coerência estrutural e temática

inegável, ao mesmo tempo em que se trata de um complexo conjunto de emoções e

interpretações de acontecimentos. Ou seja, não há enredo, só uma rota de colisão e

buscas sem objeto; não há narrativa, mas, em seu lugar, o escritor situa a trama na fala

que antecede o ato.

O próprio autor percebia que esta peça era mais possível de ser encenada, e

declarou, em 1933, que a peça estava sendo ensaiada, mas a guerra civil interrompeu os

planos do autor até o ano de 1978, quando Assim que passarem cinco anos foi

realmente encenada. A trama trata sobre um jovem que promete a sua namorada que

voltaria para se casar com ela assim que passassem cinco anos. Depois de passado o

prazo, acontece o encontro entre o casal, porém, a personagem que recebe o nome de

Noiva — como em Bodas de Sangue, uma noiva que nunca deixa de sê-lo, uma mulher

que estará sempre na condição de solteira prometida, o futuro que não chega à vida das

personagens — rejeita o Jovem que por cinco anos esperou para reencontrá-la. Agora,

ele tem em sua datilógrafa — a mulher que sempre o amou e da qual ele nunca aceitou o

amor — a última oportunidade de chegar ao noivado e satisfazer o desejo da

paternidade. Mas, para a datilógrafa, o amor do Jovem também chega tarde.

Lorca disse da peça: ―Assim que passarem cinco anos, a lenda do tempo,

cujo tema é esse: o tempo que passa [...] é um mistério, dentro das características do

gênero, um mistério sobre o tempo, escrita em prosa e verso‖ (GIBSON, 1998, p. 146).

Nessa peça, temos uma história de amor e de rejeição, para, afinal, o amor ser sempre

um amor adiado. O tempo, implacável, e a urgência do amor são temas que voltam a

aparecer em outras peças lorquianas, como em Yerma, onde o passar do tempo aumenta

123
a angústia da personagem, ou em A casa de Bernarda Alba, onde Adela não aceita

esperar que seu amado Pepe fique viúvo para, como sugere a governanta Pôncia, enfim,

viver seu amor. Coincidentemente, em seu manuscrito, Lorca datou a peça em 19 de

agosto de 1931, exatamente 5 anos antes da data à qual se atribui a morte do escritor.

Uma das personagens de Assim que passarem cinco anos diz: ―Dentro de quatro ou

cinco anos existe um poço onde cairemos todos‖ (Ato I), e, cinco anos depois, não

apenas o próprio Lorca é lançado em um poço-vala, mas toda a Espanha se depara com

o levante de Franco, dando início à Guerra Civil Espanhola.

No mesmo ano em que terminou Assim que passarem cinco anos, em 1931,

Lorca foi nomeado diretor da companhia de teatro estudantil La Barraca. O grupo era

subsidiado pelo governo e viajou por toda a Espanha, representando obras clássicas da

dramaturgia espanhola nos povoados que nunca tinham visto uma obra de teatro. Foi

nessa época que Lorca escreveu suas obras mais conhecidas: Bodas de Sangue, Yerma e

A casa de Bernarda Alba, a chamada trilogia rural. Lorca escreveu a primeira peça

dessa trilogia, Bodas de Sangue, entre os anos de 1928 e 1933. Nas palavras do autor, a

peça levava à cena ―figuras reais, rigorosamente autêntico o tema... primeiro, anotações,

observações tomadas da vida, mesmo, do jornal às vezes... depois, um pensar em torno

do assunto. Um longo pensar, constante. E, por último, o translado definitivo da cabeça

para a cena‖ (apud MARTÍN, 1998, p: 192). Quando Lorca disse que às vezes

encontrava os temas de suas obras em notícias de jornal, muitos estudiosos passaram a

relacionar a peça a um assassinato ocorrido no ano de 1928, mesmo ano que Lorca

começou a escrever Bodas de Sangue, e que foi amplamente divulgado pela imprensa

espanhola.

No jornal ABC, em 24 de agosto de 1928, circulava a manchete ―Crime

desenrolado em circunstâncias misteriosas‖. O fato referia-se a um casamento em

124
Almería, Andaluzia. O noivo e alguns convidados, mas como iam passando as horas e a

noiva, uma jovem de vinte anos, não chegava, os convidados foram embora,

contrariados. Um deles encontrou, a oito quilômetros dali, o cadáver ensanguentado de

um primo da noiva, Montes Cañada, de trinta anos. Investigando o caso, a polícia

encontrou a noiva, que estava escondida perto do local onde estava o cadáver, com as

roupas ensanguentadas. Presa, a noiva contou que estava fugindo com o primo, a

cavalo, mas na fuga encontraram um homem encapuzado que disparou quatro disparos,

matando Montes Cañada. O noivo também foi preso.

Três dias depois, o mesmo jornal circula a notícia: ―Se esclarece o mistério

do crime da fazenda de Níjar‖, dizendo que a detenta, Francisca Cañada Morales,

submetida a intenso interrogatório, acusou o irmão do noivo, José Pérez Pino, como o

autor do crime. Acareados ambos os irmãos, José acabou confessando o crime,

declarando que havia bebido demais e que encontrou os fugitivos no caminho. José

disse que sentiu tanta vergonha pela ofensa que se inferia ao seu irmão que se lançou

contra Montes Cañada com o revólver que usava e acabou disparando os tiros. Eutimio

Martín (1998) vê no assassinato ocorrido em Almería apenas o detonador para a

formulação artística de Lorca, já que, segundo ele, os temas contidos na peça eram

venerados pelo autor, como o próprio escritor disse:

Amo a terra. Sinto-me ligado a ela em todas as minhas emoções.


Minhas mais antigas recordações de criança têm sabor de terra. A
terra, o campo, fizeram grandes coisas na minha vida. Os bichos da
terra, os animais, as pessoas do campo, têm sugestões que poucos
alcançam. Eu as capto agora com o mesmo espírito de meus anos
infantis. No contrário, não poderia ter escrito Bodas de Sangue (apud
MARTÍN, 1998, p. 193).

Com Bodas de Sangue, Lorca consagrou o estilo que mistura prosa e poesia.

Essa mescla sempre foi rejeitada por crítica e público, mas para o autor ela se faz

125
fundamental, pois ―a prosa livre e dura pode alcançar altas hierarquias expressivas,

permitindo-nos um desembaraço impossível de conseguir dentro do rigor métrico‖, e

sobre a poesia, ―vinda em boa hora a poesia naqueles momentos que a disposição e o

frenesi do tema o exijam. Mas nunca em outro momento‖, disse Lorca (apud MARTÍN,

1998, p. 193).

Após Bodas de Sangue, Lorca escreve sua segunda tragédia, Yerma, da qual

será tratado mais detalhadamente no capítulo ―A fértil Yerma e a esterilidade

hispânica‖. Na época, Lorca anunciava à imprensa qual seria sua próxima obra: ―Agora

termino a trilogia que começou com Bodas de Sangue, segue com Yerma e acabará com

A destruição de Sodoma‖ (MARTÍN, 1988, p. 212). Porém, o escritor interrompeu a

produção de A destruição de Sodoma, que ficou inacabada, e se dedicou a escrever

Dona Rosita, a solteira. O tema da peça é, mais uma vez, a obrigatoriedade do

casamento e a vida das mulheres que ficam solteiras. Nessa obra, Lorca coloca em cena

a vida social espanhola, como ele havia colocado em Yerma, mas em Dona Rosita o

autor usa a comédia como estilo para expressar sua crítica, tendo em mente uma peça

que faça rirem as gerações mais jovens, mas que reflita a classe média, de pensamento

provinciano, como o próprio escritor colocou. Segundo Lorca, ―está aí a vida de minha

Dona Rosita: mansa, sem fruto, sem objeto, brega [....]. É o drama da breguice

espanhola, da pantomimice espanhola, da ânsia de gozar que as mulheres reprimem com

força no mais fundo de sua entranha febril‖ (apud MARTÍN, 1998, p. 229). Dona

Rosita, a solteira, estreou em 1935, e foi a última obra que Lorca viu estrear. Quanto a

sua última peça, A casa de Bernarda Alba, escrita em 1936, — ano da morte de Lorca

—, esta será tratada mais detalhadamente no capítulo ―O cárcere de Bernarda Alba‖.

126
La Barraca da Espanha

Marcelle Auclair conta no livro La Barraca, teatro universitario (1998), de

Luis Saénz Calzada, sobre quando García Lorca chegou à casa de Carlos Morla —

embaixador do Chile em Madri na época da segunda República — em uma noite em

novembro de 1931, e com grande excitação disse que,

Para salvar o teatro espanhol, o primeiro que há que lhe dar é um


publico. Esse público já existe, é o povo, lhes apresentarão obras de
Calderón, de Lope, de Cervantes, etc., mas também novelas que
valham a pena. Chamará La Barraca e será montável e desmontável,
irá pelas vilas e lugares, sobre todos os caminhos do mundo, porque o
público está em qualquer caminho, no final de qualquer jornada de
caminho e se é verdade que se faz o caminho ao andar, nós vamos
fazer o público no caminho; o palco se montará, inclusive, nos
povoados mais humildes e manterá, em certa medida, a tradição dos
velhos comerciantes ambulantes (CALZADA, 1998, p. 56).

Assim, em novembro de 1931, nascia La Barraca, e a definição do grupo foi dada pelo

próprio Lorca, em dezembro de 1931, em uma entrevista dada ao jornal El Sol, na qual

dizia que os estudantes se lançariam por todos os caminhos da Espanha para educar o

povo. ―Sim, para educar o povo com o instrumento feito para o povo, que é o teatro e

que lhe foi roubado descaradamente‖ (LORCA, 2008, v. VI, p.510). La Barraca era,

portanto, um grupo de teatro universitário, dirigido por Lorca e Ugarte. Foi subsidiado

pelo governo, e entrou em atividade em novembro de 1931, antes mesmo de receber a

ajuda financeira do governo.

Fernando de Los Ríos, granadino, professor universitário e amigo de Lorca,

passou a formar a pasta de Instrução Pública e Belas Artes do primeiro biênio da

República. A amizade entre Los Ríos e Lorca vinha desde a época em que Federico era

estudante de direito em Granada, e foi Los Ríos que o levou para a Residência de

Estudantes, em Madri, e depois foi o responsável pela ida do poeta a Nova Iorque, em

127
1929, dois momentos fundamentais na vida do escritor andaluz. Tanto essa amizade,

quanto a postura socialista de Los Ríos, Lorca as reconhece nesses versos:

Viva Fernando, viva Fernando!


Fernando de los Ríos,
Barbas de santo.
Besteiro20 é elegante,
Mas nem tanto.
Viva Fernando, viva Fernando!
Barbas de santo, pai do socialismo
De luvas brancas.

Lorca dizia que Fernando de Los Ríos, pai do socialismo, tinha barbas de santo.

Certamente essa aproximação entre santos e socialismo não agradou a Igreja Católica e

a direita espanhola, e com o passar do tempo, Fernando de los Ríos se converteria no

inimigo número um dos católicos, especialmente em Granada, que lhe professavam um

devotado ódio.

O projeto do grupo de teatro estudantil de La Barraca caiu no gosto e no

entusiasmo de Los Ríos e, por causa da identificação deste com a iniciativa,

rapidamente começou a se falar, em Madri, da ―La Barraca de dom Fernando‖. E foi

graças a esse entusiasmo e identificação de Fernando de Los Ríos que o governo decidiu

apoiar economicamente o projeto (GIBSON, 1998, p. 158). O historiador Ian Gibson

(1998) informa em sua biografia sobre Lorca — Federico García Lorca — que a ideia

de La Barraca não era original de Lorca, ainda que tenha sido apresentada desta forma,

mas que teria nascido quase que por geração espontânea entre um grupo de estudantes

de filosofia, letras e de arquitetura, sob a influência das Missões Pedagógicas que a

República havia fundado no mês de maio de 1931 (GIBSON, 1998, p. 160). Os teatros

ambulantes, como La Barraca e as Missões Pedagógicas, de fato apareceram na Espanha

com significado parecido, mas como seu próprio nome indica, a primeira tinha uma

20
‗Besteiros‘ eram soldados medievais que usavam ‗bestas‘, arma que se assemelha ao arco e flecha,
porém, em forma de espingarda.

128
missão mais voltada à pedagogia. O importante é que ambos os teatros, peregrinos,

ambulantes, representavam florões cênicos do que foi a Instituição Livre de Ensino,

além dos últimos frutos da Instituição.

No início do século XX, o teatro que se fazia na Espanha nos anos que

precederam a República era pobre ou, como dizia Lorca, ‗putrefato‘ 21. Procurava

atender os desejos do espectador e fazê-lo passar horas agradáveis, sem pensar muito.

Nessas condições, chegou o governo da Segunda República, e o tema da renovação do

teatro espanhol ganhou primeiro plano, junto com o ensino; o teatro que se fazia na

Espanha era de baixa qualidade e se reconhecia a necessidade de melhora do teatro

nacional. Segundo Calzada (1998), o teatro espanhol da época contava com alguns

autores renomados e companhias nas quais figurava algum jovem galã, ou daminha, ao

redor dos quais se polarizava o mérito do triunfo das companhias. ―Não havia autores

dramáticos relevantes nem se faziam traduções de escritores teatrais que pudessem ser

relevantes‖ (CALZADA, 1998, p. 47). Pode-se falar também de alguns espíritos

renovadores, como Jardiel Poncela, Eduardo Ugarte e López Rubio, que escreviam em

colaboração, Claudio de la Torre, Eduardo Marquina e Ramón el Valle-Inclán, e, da

Geração de 98, o nome de Azorín se destacava.

O teatro que La Barraca daria ao alcance do povo seria o clássico. Sobre a

escolha do repertório do grupo teatral, Lorca declarou ao jornal El Sol, em 1931:

El Sol: do teatro grego e folclore, você vai montar algo?


Lorca: Tudo o que possamos. E poremos romances. O romance, que é
como um comprimido do teatro grego, com seus coros e tudo. Em
Mérida vamos trabalhar o teatro romano. Além disso, as
representações serão precedidas de explicações, por cima, para que as
pessoas se informem do que vão ver. E utilizaremos tanto o teatro
clássico, como instrumento de cultura, que as vezes até lhes daremos

21
Putrefato foi o adjetivo introduzido na vida cotidiana de La Barraca por Lorca, que ele empregava para
se referira algumas modas, comportamentos, condutas. Federico empregava a palavra condenatória para
diversas ocasiões (CALZADA, 1998, p.55).

129
uma interpretação original para que a eficácia pedagógica não se
perca. Há que dar ao povo o que é seu (LORCA, 2008, v. VI, p. 512).

Luiz Sáez de la Calzada, ator que integrou o La Barraca, elenca as obras

representadas ao longo dos cinco anos de atividade do grupo: de Cervantes, La cueva de

Salamanca, La guarda cuidadosa, Los habladores e El retablo de las maravillas; de

Calderón: auto sacramental de La vida es sueño, do qual às vezes se representava

apenas o primeiro ato; de Tirso de Molina, El burlador de Sevilla; de Lope de Vega,

Fuentevejuna, Las almenas de Toro, e El caballero de Olmedo; de Juan de Encina,

Égloga de Plácida y Victoriano; de Lope de Rueda, Paso de La tierra de Jauja; de

Antonio Machado, La tierra de Alvargonzález; e ―Romancero‖ do Romance del Conde

Alarcos.

Foram treze obras do teatro clássico espanhol, o que mostra uma mudança

de planos dos diretores do La Barraca, Lorca e Ugarte, em relação ao repertório, pois

não houve encenação de nenhuma obra grega. Talvez a escolha de um repertório

espanhol se deva à necessidade da identificação do público com a encenação. A escolha

foi de levar à cena a imagem dos camponeses que, ao longo dos séculos, esperavam o

momento de arar a terra, e quando morriam, eram substituídos por outros camponeses

que também esperavam sua vez. A terra trabalhada seguia a mesma do Século de Ouro

do teatro espanhol; quanto ao povo, não era possível distinguir, através das gerações,

um camponês do outro.

Luiz Calzada afirma que muitos pesquisadores que escrevem sobre a vida e

a obra de Lorca consideram seu trabalho em La Barraca como algo secundário,

inclusive pelo fato de o dramaturgo não usar o grupo como veículo de seus escritos

teatrais e poéticos. Lorca adotou essa postura, como esclarece seu companheiro do La

Barraca, para que ninguém pudesse dizer que aproveitava La Barraca para estrear o que

130
nenhuma outra companhia quis (CALZADA, 1998, p. 142). O escritor pode não ter

encenado suas obras no La Barraca, mas usou o La Barraca para compor suas criações.

Um olhar atento sobre o repertório, a maneira como foram encenadas as obras e as

criações dramáticas de Lorca a partir do momento em que passou a dirigir o grupo,

mostram que a experiência no La Barraca influenciou de forma significativa a produção

do dramaturgo.

O teatro clássico espanhol apresenta pontos obscuros para o público mais

simples, momentos nos quais a atenção do espectador vacila, podendo deteriorar o

interesse pela obra e abrindo a possibilidade de o tédio tomar o lugar do que deveria ser

deleite. A importante mudança das estruturas das peças de Federico García Lorca, após

o ano de 1931, leva a questionar se, antes do La Barraca, o escritor tinha conhecimento

deste jogo entre a obra e o público. Porém, para as apresentações do grupo de teatro

estudantil, Lorca estudava as obras, expurgando delas aqueles pontos escuros nos quais

fracassaria a atenção do público, deixando unicamente aquilo que faria vibrar o

espectador.

Pela maneira como Lorca e Ugarte selecionavam e encenavam as obras,

pode-se pensar que suas preocupações estavam na forma, mas também nos temas das

peças. No caso de Fuentevejuna, de Lope de Vega, por exemplo, mesmo alterando

alguns pontos da peça — como o fato de dar mais importância à cena das bodas na

montagem de La Barraca do que de fato há no texto; ou a supressão de todas as alusões

aos Reis Católicos, assim como as cenas das quais esses fazem parte — eles

mantiveram a universalidade que havia na obra. Se Fuentevejuna era amplamente

aplaudida, como relata Calzada (CALZADA, 1998, p.100), talvez o seja não apenas

pela interpretação, direção ou pelo jogo cênico, mas porque a peça se fazia latente no

público.

131
Alguns temas presentes na obra lorquiana aparecem no repertório de La

Barraca, como o discurso da honra da mulher, remetendo o público para o século XVII,

época na qual foi escrita El burlador de Sevilla, de Tirso de Molina — obra que trata a

lenda do Burlador do século XVII, e a história de quatro mulheres que ficam sem honra

e da figura do homem que antecede a figura de Don Juan. Ou o religioso como um

elemento cênico e matéria teatral do estudo de Lorca presente no Entremeses, de

Cervantes, e no auto sacramental de La vida es sueño, de Calderón de la Barca. Lorca

era consciente de que muita gente estranhava o fato de que La Barraca, criada por uma

República laica, oferecia ao povo uma obra ‗católica‘, e nesse sentido receberam críticas

tanto da direita quanto da esquerda (GIBSON, 1998, p. 170). Assim, Lorca declamava

um discurso antes da apresentação de La vida es sueño que pretendia minimizar o

aspecto exclusivamente católico do auto e dar-lhe um sentido universal. ―(La vida es

sueño) é, a meu ver, o auto de importância deste poeta. É o poema da criação do mundo

e do homem, mas tão elevado e profundo que na verdade passa por cima de todas as

crenças positivas‖ (LORCA, 2008, v. VI, p. 398).

Com relação à forma, desde sua estrutura mambembe, La Barraca impunha

uma simplicidade cênica que exigia mais dos atores. Provavelmente essa maneira de

trabalhar influenciou as criações posteriores de Lorca, que também possuíam estruturas

simples do ponto de vista cênico. Nas encenações de La Barraca quase ―não havia

figurino nem cenário; as personagens saiam como Deus quisesse, com perucas, chapéus,

capas, mas com o macacão de La Barraca...‖ (CALZADA, 1998, p. 129). O macacão,

uniforme do grupo, é um interessante elemento, pois inscrevia um ar de trabalho braçal

na arte que era levada aos povoados.

Em uma entrevista concedida por Lorca em 1932, o entrevistador faz alusão

à aparência do macacão:

132
Salaverría: Que? Um poeta andaluz com o macacão dos proletários?
Bem que diz a Constituição que somos uma República de
trabalhadores. Aqui temos um poeta que quer obedecer aos preceitos
da Constituição. Parece um mecânico, um chofer, um trabalhador de
oficina, com seu uniforme azul escuro, de tecido ordinário, ao qual só
falta o detalhe de um martelo junto com a foice. O cantor dos ciganos
patéticos se transformou em maquinista ou algo assim.
Você se parece um maquinista...
Lorca: mas não sou, por hora, mais do que um diretor de teatro.
Salaverría: Um apaixonado por La Barraca. Bonito nome. La Barraca!
Lorca: Sim, um nome lindo. Uma coisa que se monta e
desmonta, que roda e segue pelos caminhos do mundo...

A ideia e o empenho de La Barraca era popularizar o teatro clássico

espanhol, torná-lo acessível às pessoas que o desconheciam, e em seus dias, foi capaz de

levar um pouco de cultura aos que ignoravam inclusive o que fosse cultura. No geral o

público se mostrava interessado, o que confirmava a ideia de Lorca de que o ―povo‖,

mesmo analfabeto e desprovido de cultura literária, em absoluto se mostrava insensível

a uma peça de teatro bem montada. La Barraca foi fundamental para a expansão cultural

da Espanha entre 1931 e 1936, mas também foi essencial para a criação das obras de

Lorca. A partir de 1931, Lorca passou a se dedicar quase que exclusivamente às artes

dramáticas e conferências, e mostrava em suas entrevistas o quanto se preocupava com

que até o mais simplório público tivesse acesso à cultura.

A obra de Lorca ficou conhecida já na década de 1920, e o escritor gozou de

prestígio por sua arte, e não como mártir por sua morte prematura em 1936, como

muitos dizem — e como será tratado mais adiante. Porém, La Barraca encerrou suas

atividades no momento em que Lorca foi assassinado, no primeiro mês da Guerra Civil

Espanhola. La Barraca era algo vivo e morreu. E como definiu Calzada, como um de

seus participantes,

La Barraca se desmontou, se acabou, morreu precisamente porque


todos éramos imprescindíveis. Não procurem uma tumba nem uma

133
lápide nem um mausoléu. Houve circunstâncias que facilitaram essa
morte? Sim, houve: La Barraca era La Barraca e sua circunstância. E
isso, pelo visto, ocorre a qualquer coisa que flui (CALZADA, 1998, p.
143).

Dos clássicos ao trágico

―Há que voltar à tragédia. Obriga-nos a isso a tradição de nosso teatro

dramático. Haverá tempo de fazer comédias, farsas. Enquanto isso, eu quero dar ao

teatro tragédias‖ (LORCA, 2008, v.VI, p. 646), anunciava Lorca em 1934, quando

escrevia Yerma. Após sua primeira obra trágica — Bodas de Sangue — o escritor

expressa a necessidade de obras trágicas no teatro espanhol. Pode-se imaginar que

Lorca tenha notado a ausência do estilo entre as obras clássicas que ele representou com

o grupo La Barraca, assim, o escritor seguiu com a construção de obras trágicas com o

tema da mulher estéril, sendo esta ―uma tragédia com quatro personagens principais e

coro, como deve ser uma tragédia [...] a parte fundamental reside nos coros. Não há

argumento em Yerma. Eu quis fazer isso: uma tragédia, pura e simplesmente‖ (LORCA,

2008, v.VI, p. 695).

Não há dúvidas de que o dramaturgo voltou às tragédias. Desde seu

primeiro livro, um relato sobre suas viagens pela Espanha, o escritor mostra seu

interesse pelo encontro entre culturas, como escreve em Impresiones y Paisajes: ―Há

que ser religioso e profano [...] unir o misticismo de uma severa catedral gótica com a

maravilha da Grécia pagã. Ver tudo. Sentir tudo‖. (LORCA, v. VI, p. 105). O modo

mediterrâneo de ver o mundo, proveniente do sul da Espanha, pode ter influenciado

Lorca a buscar e a exprimir o encontro entre culturas. Assim, era fundamental que o

134
dramaturgo levasse o público de volta à arte trágica por meio de suas peças, que unisse

a importância da Igreja Católica espanhola com o paganismo presente nos ritos gregos

antigos em suas obras. Depois de Impresiones y Paisajes, Lorca se dedicou aos poemas

nos quais experimentou o trágico retomando temas míticos, a duplicidade entre Apolo e

Dionísio, e a religiosidade.

Mas o sentido trágico precisa do teatro para sua completa expressão, precisa

do corpo como instrumento do herói trágico; e a compreensão de que a tragédia não é o

que acontece às personagens, mas o que acontece por meio delas. Lorca afirmou que era

preciso voltar à tragédia. Nessa afirmação, pode-se encontrar um duplo retorno: a volta

à tragédia no sentido de que era preciso retomar a arte dramática dos gregos antigos, e a

volta à tragédia lorquiana, gênero iniciado com Bodas de Sangue, primeira peça trágica

de Lorca. Na década de 1930, com Yerma, o escritor volta, não apenas à tragédia, mas

também às artes dramáticas, que ele havia trabalhado no início de sua carreira, mas sem

grande êxito.

Lorca, a princípio, se popularizou como ―poeta gitano‖ por conta de seus

primeiros livros, que faziam forte referência à cultura andaluza, da qual a oralidade é

uma das características mais marcantes. Porém, o escritor se interessava tanto pela

cultura popular, transmitida oralmente, quanto pela cultura clássica. Era-lhe familiar a

literatura espanhola de muitas épocas, escritores modernos estrangeiros, e Lorca era

assíduo leitor de traduções dos clássicos gregos, em especial, os trágicos. Luis Sáez de

la Calzada, ator que integrou o grupo La Barraca, conta que Lorca chegava a recitar de

cor obras de Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Platão e Aristóteles (apud ROJO,

2006, p. 89). Os temas desses escritores influenciaram diretamente a obra de Lorca: o

teatro de Ésquilo, que enfrenta o homem-individualidade; Sófocles pelo momento

político e histórico; Eurípides e suas personagens que atuam ante toda sua liberdade. A

135
busca pela individualidade de Yerma e a peça A casa de Bernarda Alba refletem a

Espanha da época, assim como Adela e sua insuportável liberdade, só para citar alguns

dos aspectos dos clássicos gregos que aparecem nas obras de Lorca.

Tríplice encontro trágico: gregos, Shakespeare e Lorca

Lorca tem um conceito de tragédia derivado das concepções dos trágicos

gregos, e esse conceito se expressa formalmente na existência do coro, presente tanto

em Bodas de Sangue quanto em Yerma. Ao mesmo tempo, o dramaturgo renova o

gênero em suas obras. Além disso, Lorca tem como referência outro autor trágico

importante, Shakespeare, a quem faz uma direta homenagem em sua peça O público,

colocando em cena a peça Romeu e Julieta como pano de fundo para a obra lorquiana.

Assim, não há uma tragédia grega, ou um autor trágico, que se possa dizer que tenha

sido especificamente um modelo para Lorca.

Há semelhanças e diferenças entre a dramaturgia lorquiana e as tragédias de

Shakespeare e os gregos clássicos, mas as relações não podem constituir uma

comparação direta, pois o termo trágico em Lorca refere-se ao drama moderno, no qual

Shakespeare é um ponto significativo. Ao buscar uma distinção de Lorca com a tragédia

grega, também é possível notar que alguns elementos da estrutura grega se mantêm,

como no fato de a personagem viver um confronto entre sua vontade e ação, de um lado,

e o destino exercendo sua força, de outro.

Francisco Rodríguez Adrados coloca a tragédia de Ésquilo como a mais

próxima de Lorca, a que mais impacto causou nele, e tal afirmação Adrados faz baseado

136
no fato de serem tragédias levadas a seu ápice, em um desenrolar lógico de uma

situação que vai crescendo ao longo do tempo, na intensificação gradual da angústia, até

explodir. Segundo essa análise, tanto em Lorca quanto em Ésquilo, os coros aderem

intimamente às alegrias e às dores das personagens principais; há os temas da mulher

sem homem e da maternidade frustrada; o tema do sexo estéril que traz o castigo, e de

fato, as heroínas de Lorca ou morrem ou ficam sozinhas (ADRADOS, 2006).

Por outro lado, há estudiosos que encontram nas obras trágicas de Lorca

muito mais referências às obras de Eurípedes do que a qualquer outro autor grego

trágico. É o caso de Antonia Carmona Vázquez, que dedicou seu livro Coincidencias de

lo trágico entre Eurípides y Federico García Lorca (2003) a mapear as relações entre

os dois autores. Segundo a autora, Eurípedes é o primeiro trágico a apresentar aspectos

da natureza que o ideal anterior pretendia manter submetido, e quase oculto — por meio

de normas tradicionais que supunham um freio para o indivíduo —, por ser considerado

perigoso para a estrutura social existente. Porém, Eurípedes pinta os homens não como

deveriam ser, mas como são.

Homens e mulheres. Outro ponto de relação forte entre Lorca e Eurípedes é

a construção de protagonistas femininas em suas tragédias. Assim, pode-se relacionar

Fedra e seu amor que leva Hipólito à morte com a Noiva de Bodas de Sangue, ou se

pode ver algo de Adela e também da Noiva em Medéia que admite — frente à ação

malvada de matar seus filhos — que sua paixão é mais forte que sua reflexão. ―O auge

da dor das mulheres continua a descobrir atrás de Medéia a sua voz‖ (STEINER, 1995,

40). Mas não só o auge da dor, mas da vingança, do grito dos instintos humanos mais

proibidos. Medéia é um exemplo da força transgressora das mulheres e da vontade de

liberdade, transgressão presente também na Noiva, em Yerma e em Adela. Ou ainda,

podemos relacionar o coro de lavadeiras de Yerma, que proclama a angústia da

137
protagonista por ser estéril, e o coro da peça Hipólito, que narra a enfermidade de Fedra.

Segundo Vázquez, ―as heroínas lorquianas são, como as euripídeas, mulheres frustradas

no amor, mulheres que não encontram caminho aberto à paixão irresolúvel‖

(VÁZQUEZ, 2006, p. 325).

Mas, García Lorca volta às tragédias. Em suas peças trágicas, as

personagens não valem por suas características, mas por suas ações. E assim, o

dramaturgo andaluz não pensa o gênero como ―imitação de pessoas e sim de ações, da

vida, da felicidade, da desventura; mas felicidade e desventura estão presentes na ação,

e a finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade‖ (ARISTÓTELES, 1999, p. 32).

Com isso, é importante perceber que um dos pontos centrais na tragédia, tal como Lorca

a pensava, calcado em concepções da Antiguidade, não é a virtude das personagens ou a

falta desta, nem o infortúnio ou a ocorrência de fatos extraordinários na vida, mas que a

tragédia é a própria vida e sua capacidade de dilaceração, as contradições que colocam o

Homem contra si mesmo.

Carmona Vázquez escreve sobre o trágico na obra de García Lorca:

com suas personagens feitas de terra, com sua repetida angustia que se
faz carne em cada uma delas [...] personagens ao final situados sempre
frente um dilema trágico: o de suas próprias paixões de um lado e da
luta e escolhas entre elas de outro. É aqui, outra vez, o homem
enfrentando sua própria imagem, como no teatro de Eurípides
(VÁZQUEZ, 2006, p. 324).

Tanto nas personagens trágicas de Lorca quanto nas gregas há que chegar à última

finalidade vital com todas as consequências, há que cumprir esta finalidade a custa de

qualquer sacrifício, acima do bem e do mal. É apenas dessa maneira que se pode

entender quando a Noiva de Bodas de Sangue foge com Leonardo na tentativa de viver

a vida plenamente, recusando o casamento acordado por seu pai; ou Yerma, que vive o

138
trágico grego no sentido em que se lança ao destino inevitável; e até em A casa de

Bernarda Alba, Adela se apresenta como uma personagem trágica do drama de Lorca,

aquela que quer viver tudo, experimentar tudo, e que, na impossibilidade de fazê-lo,

precipita seu próprio fim.

Na Grécia antiga ou na Espanha do século XX, um ponto de convergência

entre os autores trágicos, em seus distintos séculos e sociedades, é que, em suas

criações, a tragédia se mantém um gênero no qual o indivíduo é mais um membro de

um grupo do que um ser singular, não podendo ser separado ou isolado. Os gregos

criaram as tragédias em suas pólis, e esse fato caracteriza o estilo como um gênero

literário que exige o meio social, sendo este, talvez, uma das personagens mais

importantes da tragédia. Daí a importância do coro nas tragédias gregas, pois o coro,

como personagem coletiva, atua advertindo, tranquilizando ou expondo os elementos de

estabilidade das vidas da cidade. O coro intervém, faz comentários sobre a cena,

aconselha e chama a atenção do público, interessa-se pela sorte das personagens. Em

Sófocles e Eurípedes, o coro dá lições de moral, prudência e moderação; em Ésquilo, o

coro cumpre mais a função de delírio, exagero, expressando os estados dionisíacos na

obra (LOMBARDI, 2002, p. 112).

Bodas de Sangue, a primeira tragédia lorquiana, já contém um coro, mas é

em Yerma que o dramaturgo desenvolve melhor a utilização deste elemento trágico,

mostrando que tinha completa noção do valor e função do coro no teatro grego. De fato,

falou em várias ocasiões da necessidade de seu emprego. O coro de Yerma cumpre as

mesmas funções de uma tragédia grega, apresentando o tema dominante de forma lírica.

Em 1934, em uma entrevista, Lorca afirma, a respeito de Yerma:

Uma tragédia com quatro personagens principais e coros, como há de


serem as tragédias. Há que voltar à tragédia [...] Estes coros, já
iniciados por mim em Bodas de Sangue [...] adquirem em Yerma um

139
desenvolvimento mais intenso [...] recebendo a luz de normas antigas,
mas eternas no teatro trágico (ROJO, 2006, p. 109).

Com o passar dos tempos, a arte trágica deixou de ser semelhante à de

outrora, nem mesmo por imitação. Após a Idade Média, a moral judaico-cristã impõe às

artes em geral, especialmente à dramática, a ideia do livre-arbítrio. Quando o Homem

passou a ter a dádiva da escolha, o conflito das tragédias gregas, que era entre o homem

e o seu destino — tão indomesticável quanto os instintos —, deixou de ser um dos

focos, a chave do conflito recaiu sobre os indivíduos. Com isso, uma das principais

características do conflito trágico, que é o movimento entre ordem e desordem — no

qual uma situação de aparente estabilidade desestabiliza-se para depois se estabilizar —

passa a ser gerada pelos indivíduos, que têm a escolha de entrar ou não na roda da

Fortuna, ao contrário dos gregos, que tinham sobre eles deuses brincalhões e o destino

inexorável. A partir desse novo modelo de conflito no enredo cênico, seria constituído o

drama moderno.

Hamlet, de Shakespeare, em sua dúvida entre o ser e o não ser, é o herói

trágico emblemático desta situação, na qual as personagens estão sempre por agir, em

encruzilhadas e armadilhas, integralmente comprometidas e no limiar de decisões que

elas sabem que, qualquer que seja a escolha, são caminhos sem volta. Lorca aprende em

Shakespeare a possibilidade de a tragédia nascer da ação do homem, independentemente

da vontade divina. Agir, a partir dessa perspectiva, assume um duplo caráter: a

deliberação, que tenta prever a ordem dos acontecimentos, ao mesmo tempo se lança ao

desconhecido que é fruto da ação deliberada. Não há tragédia sem ação; ação sem

indivíduos, e estes, necessariamente, devem ser agentes que estejam no centro das

ações.

140
Ao pensar em personagens femininas trágicas, pode-se voltar às obras de

Shakespeare, que recorre às mulheres como elementos fundamentais em suas peças,

fazendo delas personagens cheias de liberdade de ação, e que carregam em si a

transgressão. As mulheres que Shakespeare cria transitam tanto à margem da sociedade

quanto no centro das relações palacianas, governando e se deixando governar, refletindo

a época elisabetana e a sociedade na qual o dramaturgo viveu. Se Shakespeare viveu em

um país promissor, sendo governado por uma mulher, no século XVI, pode-se imaginar

o quanto esse fato teve influência em suas obras (ALVES, 2005). Da mesma maneira,

alguns estudiosos analisam que as personagens femininas das peças não são construções

vãs do dramaturgo, mas um reflexo da posição da mulher na sociedade da Espanha,

posição enxergada por Lorca.

María Martinez Sierra, em seu livro Una mujer por caminos de España,

afirma que ―em Granada, e sua província, a mulher não existe. Não conta. A ninguém

ocorreu que poderia contar, nem a ela nem a ninguém‖ (apud SAMATAN, 1964, p. 55),

e essa ideia de que a mulher não existe, nem para si mesma, é completada por Marta

Elena Samatan, que diz que ―nesse mundo o homem é o senhor. Ninguém discute seus

poderes. É ele que manda. As mulheres sabem e aceitam‖ (SAMATAN, 1964, p. 63).

Assim, o fato de nascer mulher já impunha a subordinação como condição

inquestionável, e esse fato é o que explica, para Vázquez, a posição de destaque que

Lorca dá às mulheres em suas peças. ―Se a mulher alcança mais destaque que o homem

na obra lorquiana, isso se deve ao fato de que o poeta apostou nos oprimidos e, entre

eles, como grupo, a mulher ocupa uma primazia indiscutível‖ (VÁZQUEZ, 2006, p.

329).

O fato de a mulher ser subordinada ao homem impõe que ela se prive de sua

individualidade e tudo o que isso possa significar, como o poder sobre si e sua própria

141
vida, baseado em escolhas racionais tomadas pela própria mulher. Lorca, assim como

Shakespeare, tematizou em suas obras a imposição social de que as mulheres fossem

dotadas apenas de emoção, tendo, assim, que serem guiadas e cuidadas por seus pais,

como a Noiva de Bodas de Sangue, ou as personagens de Shakespeare Ofélia e Julieta;

por seus maridos, como Yerma e Lady Macbeth; e na ausência de um homem que as

governe, a mulher que estiver incumbida da tarefa passa a apresentar comportamentos

ditos como masculinos, próprios do poder, como Bernarda, de A casa de Bernarda Alba.

Enquanto as tragédias gregas refletem um mundo guiado por deuses, a tragédia

shakespeariana leva à cena as chagas que estão cobertas pelos tecidos nobres da corte

elisabetana, questionando sua sociedade. Lorca faz o mesmo em suas obras, colocando

em cena as fragilidades das instituições da sua Espanha.

É possível encontrar nas personagens de Lorca muitas relações com as

mulheres das tragédias gregas, como foi dito, mas também com as shakespearianas.

Yerma, por exemplo, em seu casamento estéril, remete a Lady Macbeth, que não tinha

filhos com Macbeth, mas já havia sido mãe em outro casamento. Tanto Yerma quanto

Lady Macbeth têm um casamento estéril, e levam à cena questionamentos do que deve

ser uma conduta feminina, pois, enquanto Lady Macbeth é racional e ambiciona o

poder, apresentando uma conduta que não se espera de uma mulher, Yerma tem atitudes

que só são permitidas aos homens, como sair à noite e dar comidas aos bois.

Lady Macbeth: Mas receio a tua natureza, por demais cheia do leite da
natureza humana, para que tomes, resolutamente, o caminho mais
curto. Quererias ser grande. És ambicioso. Mas te falta a malvadez
que deve secundar-te. A grandeza a que aspiras, desejas obtê-la
santamente. Não quiseras trapacear, e entanto gostarias de ganhar
deslealmente [...] (SHAKESPEARE, 1997, Ato I, Cena V).

142
Yerma: vou acabar acreditando que eu sou minha própria filha. Muitas
noites saio para dar comida aos bois, pois antes não fazia, porque
nenhuma mulher sai à noite, e quando passo pela soleira da porta, na
escuridão, meus passos têm o peso dos passos de um homem
(LORCA, 1963, ato II, cena 2).

Ambas almejam um lugar na sociedade, Yerma por meio da maternidade e

Lady Macbeth por ser rainha, e ambas se lançam à ação para tentar alcançar seus

objetivos, desencadeando o trágico em Yerma e Macbeth.

Já Adela, de A casa de Bernarda Alba, se aproxima das personagens

trágicas por carregar o sentido do trágico, e por isso também se aproxima de

personagens de peças trágicas, mesmo que seja personagem de um drama. Adela é tão

apaixonada quanto Julieta, de Romeu e Julieta, e suas demasiadas paixões não cabem

nelas, escapam de controle e fazem com que elas escapem de qualquer controle da

família-sociedade. Julieta e Adela dizem sim às paixões, à vontade de vida, e saem pelo

escuro da noite para viver aquilo que não lhes era permitido. São subversivas, não

acatam as ordens, o poder que suas famílias lhes impõem, desobedecem as regras. E, no

final, ambas se suicidam, pois lhes é insuportável a vida de obediência, sem paixão. É

no âmbito da frustração que se projeta a existência das heroínas eurípideas e lorquianas.

―Mais que a mulher, o eixo do teatro de ambos autores (Eurípides e Lorca) é a

existência contínua e soterrada ao fio argumental de umas forças fatais, cegas, que

dominam e abatem os seres‖ (VÁZQUEZ, 2006, p. 325).

As ações das personagens de Shakespeare não estão ligadas aos deuses, pois

não há deuses nas obras do dramaturgo, assim como também não há nas peças de Lorca.

Porém, nas obras dramáticas do escritor inglês, as tragédias recaem sobre os soberanos,

e nisso o dramaturgo espanhol difere de Shakespeare. Lorca escrevia tendo em vista o

143
caráter social da arte, como ele diz em entrevista22, e a importância da reaproximação

com o povo, pois, segundo ele, ―o teatro, para readquirir sua força, deve voltar ao povo

do qual se afastou‖ (ROJO, 2006, p. 107). Em outra entrevista, Lorca reitera sua postura

em relação à arte dramática. Indica Shakespeare e os gregos como algumas de suas

importantes referências, dizendo que não escreve para o público que ―se deleita com

cenas nas quais o protagonista arruma sua gravata assobiando [...] isso não é teatro, nem

nada [...] no teatro há que dar espaço ao público de alpargatas [...] o público com camisa

de esparto23, frente a Hamlet, frente às obras de Ésquilo, frente aos grandes‖ (ROJO,

2006, p. 107).

―Por próxima que esteja a concepção lorquiana da paixão e da morte dos

gregos, falta nele essa crítica da ação desmedida [...] Lorca não julga, não acusa, não

moraliza, e sua condenação da convenção e a repreensão social é mais corpulenta,

menos matizada que entre os gregos‖ (ADRADOS, 2006, p. 360). Assim, por mais que

as tragédias lorquianas apresentem claros pontos de referências às tragédias gregas, é

fundamental ter em mente que o dramaturgo espanhol desenvolveu uma linguagem

única, tanto por suas diversas influências, quanto por seu tempo e sociedade, como

veremos mais adiante. Porém, muitos estudiosos hão encontrado referências importantes

dos gregos nas obras de Lorca.

Muitas das tragédias gregas inclinavam-se aos planos ético e moral. O

Homem deve prestar contas a algo superior a si, seja no plano celestial ou terreno; as

vontades individuais devem ser anuladas ou, se necessário, aniquiladas. A desordem

não é bem-vinda à sociedade, e o causador desta quebra deve ser punido. Nesta lógica, a

morte é o fim da vida, vem como um castigo. Assim, também cabe lembrar que, para

22
Como coloca Lorca em na entrevista “Diálogos de um caricaturista selvagem”, em 1936
(LORCA, 2008, v.VI: p. 734).
23
Tipo de tecido comum na população pobre da Espanha.

144
Sócrates, a arte trágica desvia o homem do caminho da verdade, certamente por não

obedecer à razão, dando vazão aos instintos.

Em um salto histórico, a abordagem nietzschiana da tragédia apresenta um

saber sobre a unidade da vida e da morte. O aniquilamento e a hostilidade à vida são,

para Nietzsche, a recusa em admitir as condições fundamentais da própria vida, como a

doença, a dor, a tristeza e os instintos. O pensador trágico faz viver o frenesi, não

pacifica os instintos (ALVES, 2005). Assim, podemos citar Adela e a Noiva como as

personagens lorquianas que não pacificam seus instintos, não tentam se defender de

suas paixões e sabem que elas são, ao mesmo tempo, as forças que promovem a

fecundidade da natureza e união de transgressão e morte. E à Adela e à Noiva, junta-se

Yerma no tema da heroína que leva seu desejo até as últimas consequências.

Trágico andaluz

A liberdade, um dos grandes temas das obras de García Lorca, é apresentada

em seu encontro com o excesso de paixão de suas personagens femininas. A paixão

desmensurada, que na maioria das vezes é dedicada a si mesma, à vida e suas

realizações, faz com que Yerma, a Noiva, Adela, ou mesmo a heroína histórica Mariana

Pineda — da obra homônima — se realizem apenas em função de si mesmas, e essa

característica, ao mesmo tempo em que as une, as individualiza e isola nas peças das

quais fazem parte. Sua vontade de ser livre é vista como um defeito pelas outras

personagens, e ser diferente pode ser visto pelos mais conservadores como um erro.

145
Nesse sentido, pode-se dizer que, nas obras de Lorca, ―o motor da tragédia está, na

verdade, no jogo de problemas morais‖ (VÁZQUEZ, 2006, p. 339), seja pelo conflito

de Yerma e seu não-adultério, a fuga da Noiva com outro homem no dia do seu

casamento, ou a relação proibida de Adela com Pepe Romano.

García Lorca cria obras trágicas, porém, em suas criações, o destino dos

homens não é uma peça dos jogos dos deuses, e esse caráter trágico-lorquiano dá ao

espectador a falsa esperança de que o fim trágico pode ser evitado. Porém, o autor é

consciente de que o poeta dramático deve atacar os grandes temas, e, com essa ideia,

Lorca baseia seu teatro no conflito entre autoridade e liberdade, na subversão da norma

estabelecida. Utilizando as vontades e fragilidades do ser humano, o dramaturgo nos

coloca a moralidade defendida pela razão, a ordem imposta pela sociedade às

personagens transgressoras da moral e da racionalidade. Lorca soube utilizar sua arte

como lente de aumento de um período de tensão latente, de conflito entre o velho e o

novo, onde as crenças herdadas estavam cravadas em instituições sólidas e o

questionamento dessas era, de qualquer maneira, perturbador.

Assim, as heroínas das obras de Lorca são perturbadoras para si mesmas,

pois para nenhuma delas a paixão se apresenta como um doce e grato sentimento, ao

contrário, é algo doloroso, inquietante, e todos esses aspectos da paixão são mais do que

coexistentes, são inseparáveis. Nas peças de Lorca, o amor não é a força que se

apresenta como vencedora — e talvez seja possível afirmar que o amor não seja um

tema lorquiano, e sim a paixão —, mas na maioria das obras são sentimentos como o

ódio, o desejo e a vingança as partes da paixão que conduzem as personagens. O próprio

amor morre. Ou, às vezes, o amor se oculta em si mesmo, vigiado pelo ódio ou pelo

desprezo.

146
Para García Lorca a paixão amorosa, a paixão pela vida em geral, se
apresenta e se traduz como algo totalizador que divide seu espírito e a
vida dos homens com irremediável solução, provocando sempre o
destroçado íntimo de quem o sofre ou a impossível solução definitiva
para suas vidas: e nisso consiste precisamente a tragédia do poeta
moderno (VÁZQUEZ, 2006, p. 342).

Lorca é um poeta moderno, e criou personagens destroçadas pela impossível

contemplação de suas vontades. Personagens trágicas não por essa dilaceração, mas pela

não aceitação desta. Assim, apesar de não haver deuses nas tragédias lorquianas, o

significado do trágico do dramaturgo coincide com o grego na manifestação da luta do

homem com as forças que regem sua vida, forças essas que estão na natureza, que o

dominam e o dilaceram. Mesmo sendo um poeta moderno, o mundo que Lorca constrói

em suas obras dramáticas se aproxima das tragédias gregas no sentido de que o homem

não pode controlar seu destino: é uma primitiva e temerosa negação da liberdade, a

mesma liberdade que lhe é tão desejada.

A obra de Lorca, desde seu princípio, mostra uma consciência da natureza e

da cultura antiga do povo andaluz, que José Maria Camacho Rojo denomina como

―cultura de sangue‖, exposta, segundo ele, na conferência ―Teoria e jogo do duende‖

(ROJO, 2006, p. 106). A ―Teoria e jogo do duende‖ é uma conferência pronunciada por

García Lorca em Buenos Aires no ano de 1933, e para muitos estudiosos, nesta

conferência o dramaturgo tornou mais clara a influência de Nietzsche, em especial do

livro O nascimento da Tragédia, em sua obra. Soria Olmedo e Encarna Alonso Valero,

por exemplo, relacionam o duende apresentado por Lorca com os deuses da arte, Apolo

e Dionísio, expostos por Nietzsche. Nessa ocasião, o autor não falou de teatro ou da arte

trágica especificamente, mas da arte e da importância do duende. Em vez de recorrer às

tradicionais polaridades inspiração/ inteligência, Lorca inseriu o fazer artístico na

fatalidade e na finitude da transmutação. E é nessa transmutação que se pode pensar que

147
o duende deriva do espírito trágico da antiga Grécia, das religiões místicas gregas. Ou

seja, se o duende se relaciona com o apolíneo e com o dionisíaco, ele é também um

espírito trágico, independente da arte na qual se manifeste.

Se as tragédias de Lorca não têm deuses, o duende é o espírito trágico

presente para que a tragédia se cumpra. A ideia do duende é uma essência trágica,

derivada dos gregos, que sobreviveu até nosso tempo em especial no sul da Espanha, na

Andaluzia ―enduendada‖ e milenária, análoga à tauromaquia cretense. ―Lorca

universaliza temas de sua Andaluzia natal e para essa universalização recorre tanto ao

teatro dos gregos como às crenças e formas poéticas da Andaluzia como a outros

modelos literários‖ (ADRADOS, 2006, p. 360). A tragédia lorquiana não é apenas

herdeira dos gregos e de Shakespeare, é também fruto de sua terra e cultura, é uma

tragédia andaluza, que baila ao som da guitarra e da castanhola flamenca. Por mais

incontestável que seja a influência dos trágicos gregos, espanhóis e Shakespeare na obra

de García Lorca, é fundamental perceber que o dramaturgo criou seu próprio estilo

trágico, um trágico que aflora do encontro entre o passado e o presente andaluz vivido

pelo autor.

―Isto tem duende!‖. Tal expressão é muito comum na Andaluzia, em

especial para referir-se à arte flamenca. Lorca se refere, em sua conferência a Manuel

Torre, grande artista do povo andaluz, que dizia a alguém que cantava: ‗tua voz é boa,

tens estilo, mas nunca serás famoso porque não tens duende‘‖ (LORCA, 2000, p. 110).

Na Andaluzia, o povo fala constantemente do duende e o encontra quando alguém se

expressa com instinto eficaz. Apesar de o duende encontrar morada no sul da Espanha,

sua existência, como esclarece Lorca, não é exclusivamente espanhola. Lorca afirma

que foi ―Goethe que criou a definição de duende ao falar de Paganini: ‗poder misterioso

148
que todos sentem e que nenhum filósofo explica‘. Dessa maneira, pois, o duende é um

poder e não um olhar, é um lutar e não um pensar‖ (LORCA, 2000, p. 110).

Esse poder misterioso é, em suma, o espírito da terra. Lorca se refere ao

mesmo duende que abraçou o coração de Nietzsche; mas que não se confunda o duende

com o demônio teológico da dúvida, ao qual ―Lutero lançou um frasco de tinta de

Nuremberg, nem com o diabo católico, nem com o macaco falante que leva os

quiromantes de Cervantes à comédia de costumes e matas da Andaluzia‖ (LORCA,

2000, p. 111). O duende ao qual Lorca se refere é descendente, por um lado, daquele

alegre demônio de Sócrates, e por outro, do melancólico demônio de Descartes,

―pequeno como amêndoa verde, que, farto de círculos e linhas, saiu pelos canais para

ouvir cantar os marinheiros bêbados‖ (LORCA, 2000, p. 111).

Para Lorca, ―todo homem, todo artista, segundo Nietzsche, é uma escada

que sobe à torre de sua perfeição às custas da luta que trava com um duende, não com

um anjo, nem com as musas‖ (LORCA, 2000, p. 111), expondo a ideia de Nietzsche

como uma das bases para seu entendimento da diferença entre anjo, musa e duende

como forças presentes no fazer artístico. Segundo Lorca, o anjo deslumbra, mas não voa

sobre a cabeça do homem, está acima; a musa dita, e em algumas ocasiões assopra;

―anjo e musa vêm de fora; o anjo dá luzes e a musa dá formas‖ (LORCA, 2000, p. 112).

A verdadeira luta é contra o duende. Na relação entre a beleza da forma e a dilaceração

da luta, podemos perceber a influência do dionisíaco e do apolíneo nietzschiano; e da

ideia do duende, é fundamental compreender que o fazer artístico só existe em ato, no

conjunto de simultaneidades mediadoras da razão e da sensibilidade. Não há fórmulas,

nem catarse, e assim se apresentam as tragédias lorquianas.

Porém, é importante voltar o olhar para um elemento fundamental no

mundo da criação lorquiana que, muitas vezes, é ignorado pelos estudiosos da obra do

149
escritor: a arte flamenca. O duende — que concede ao poeta a possibilidade de interagir

com o mundo da obra, invertendo a unidirecionalidade da autoria —, considerado por

Lorca como um herdeiro do trágico grego, não só está presente, como é fundamental

para o flamenco. Sem duende não há flamenco. A interação entre o poeta e o mundo da

obra é muito presente na arte flamenca, que não é só música, nem só baile, ou só canto,

mas um encontro entre estes que exige o máximo de interpretação ―enduendada‖. O fato

é que o duende é o espírito que ronda o flamenco, e este é uma ficção que se estrutura

como obra na crueldade do corpo e assim se desdobra em espetáculo. E não houve poeta

que mais profundamente haja captado o mundo e o espírito do flamenco, afirmam

constantemente os flamencólogos.

O flamenco era uma arte marginal na Espanha até a década de 1920. Antes,

houve um longo período de desdém contra o flamenco por parte do mundo de poder

cultural, universidades e conservatórios, pois ele era entendido como uma arte da

cultura marginal, dos pobres, dos ciganos da Andaluzia; havia um movimento de

―antiflamenquismo‖, propriamente, uma moda, quase uma cruzada em muitas camadas

do poder cultural da época que durou do último terço do século XIX até 1922, ano do

Concurso do Cante Jondo, na cidade de Granada. Este concurso foi organizado por

García Lorca junto com Manuel de Falla, um de seus amigos e mestres, e se tornou um

acontecimento que mudou completamente a história e o lugar do flamenco no mundo.

Com o concurso, a hostilidade contra o flamenco começou a ser silenciada — apesar de

que muito silêncio é um sinal de reprovação no flamenco. Junto com o concurso, Lorca,

que na época já contava com prestígio nas rodas de artistas e intelectuais da Espanha, se

dedicou ao esforço de reivindicação de uma arte a que conheceu com amor mais que

erudição. A historiografia do flamenco frequentemente se refere ao quanto a arte deve à

pena andaluza e a desventura cigana — é a história dos sofredores: perseguidos,

150
humilhados e desconsolados (GRANDE, 1992). Assim, é um fato importante para a

cultura flamenca, e andaluza, que em 1922, quando os homens que gozavam de

prestígio na sociedade artística espanhola viravam as costas para o flamenco, Lorca

tenha usado sua posição social para exaltar, e não rebaixar, a arte de sua Andaluzia.

O flamenco, a arte e cultura como conhecemos hoje, apareceu no último

terço do século XVIII, estruturando-se como uma mistura da herança da musical

oriental que se estabeleceu na Andaluzia, com a adoção da liturgia bizantina por parte

da Igreja espanhola, com os sons e dança levados pelos ciganos para a Espanha no

século XV. Em sua origem, o flamenco era considerado como uma criação artística

popular, e tal popularidade era uma referência ao local onde ele se desenvolveu, e não à

sua forma. A música flamenca apresenta grande complexidade estrutural e imperativa

dos cantos e da guitarra andaluza, mas essa complexidade se desenvolveu nas tabernas

do sul da Espanha, locais onde os trabalhadores se encontravam, no final de um longo

dia de trabalho, para expressar sua penúria, solidão, pobreza, raiva, clandestinidade,

frequentemente acompanhados não apenas de outros artistas, mas de jarros de vinho. O

café-cantante, como são conhecidas essas tabernas, era um grande confessionário

profano.

No café-cantante o flamenco insiste na dor e a beleza incomparáveis,


um recado da lástima e da genialidade, um testemunho de uma parte
da história social da Andaluzia e das obsessões essenciais do homem,
e, finalmente, uma épica do sofrimento e da resistência por meio da
criação artística. Ou seja, no café-cantante se desenvolve uma moral
(GRANDE, 1992, p. 30).

Lorca frequentava pouco o mundo flamenco, mas tinha grande olfato

musical, poético e dramático para conhecer o essencial, mesmo sem a informação

―completa‖, e a influência do flamenco nas obras do escritor é muito forte, e em alguns

151
casos aparece de maneira explícita, como em seu livro Poema do Cante Jondo, que em

seu título24 já expressa essa influência, e vai além, dedicando grande parte dos poemas

ao flamenco especificamente, como é o caso dos poemas ―Poema de siguiriya gitana‖ e

―Poema da soleá‖, que são palos flamencos25, ou os poemas ―A guitarra‖, ―Vinhetas

flamencas‖ e ―Café cantante‖. O fato é que a matéria-prima fundamental do flamenco é

o mundo das paixões. O flamenco expressa o que se perde, como uma vingança que a

criação poética transforma em memória, ou como coloca Caballero Bonald: ―o canto

(flamenco) não inventa, recorda‖ (apud GRANDE, 1992, p. 66). Na verdade, o amor e a

morte são os temas centrais do flamenco — e de muitas obras poéticas e dramáticas de

Lorca.

CAFÉ CANTANTE

Lâmpadas de cristal
e espelhos verdes.

Sobre o tablado escuro,


a Parrala mantém
uma conversação
com a morte.
Chama-a,
não vem,
e a torna a chamar.
O povo
aspira os soluços.
E nos espelhos verdes,
longas caudas de seda
se movem (LORCA, 2002, p. 217).

Assim, no próprio poema ―Café Cantante‖ Lorca coloca, de forma poética,

muitos elementos da arte flamenca: no submundo dos tablados, La Parrala — apelido de

Dolores Parrales Moreno (1845 – 1915), importante cantora de flamenco — chama pela

24
Cante jondo é o primitivo canto andaluz, uma das origens do flamenco, e atualmente muitos
estudiosos deste não fazem muita distinção entre os dois estilos por conta de sua grande proximidade.
25
Palos flamencos são as subclassificações do flamenco, que variam desde a composição dos
compassos, até os instrumentos e os movimentos do baile.

152
morte. Para Lorca, no flamenco há uma ausência quase absoluta do ―meio termo‖, ou

seja, nas construções poéticas não predomina a calma e a harmonia. O que predomina é

o sobressalto, o estrago, o patético. A beleza do flamenco não é a que acalma, mas a

beleza que aperta a garganta; não é confortável, mas sim desgarradora; não é nossa

acompanhante, mas nossa cúmplice; não assinala o que há na vida de continuidade,

assinala com o dedo o que no fundo de nós é fratura e catástrofe. Aqui está o duende, e

não a musa ou o anjo.

Inumeráveis ritos de Sexta-Feira Santa, que com a cultíssima festa


dos Touros formam o triunfo popular da morte espanhola. [...]
Quando a musa vê chegar a morte, fecha a porta. [...] Quando o anjo
vê chegar a morte, voa em círculos [...] em troca, o duende não surge
se não vê possibilidade de morte [...] o duende gosta das bordas do
poço em franca luta com o criador. Anjo e musa escapam com
violino ou compasso, e o duende fere, e na cura dessa ferida que
nunca se fecha está o insólito, o inventado da obra de um homem
(LORCA, 2000, p. 120).

Lorca anuncia, no início de sua conferência ―Teoria e jogo do duende‖, o

que desejava com ela: ―verei se posso dar uma simples lição sobre o espírito oculto da

dolorida Espanha‖ (LORCA, 2000, p.109). Para produzir sua obra, o escritor assume

que partiu de uma cultura popular, tradicional, da fecundidade e da morte e de uma

literatura também popular que não rompeu a comunhão da palavra, a dança e a música.

Essa é a Espanha Andaluza, que se diferencia, em muitos aspectos das outras Espanhas

que Lorca conheceu, mas que em sua maioria conheceu e criou sob o espírito do

duende. Como Lorca definiu,

a Espanha está sempre movida pelo duende, como país de música e


dança milenares, onde o duende revela a ácida essência das coisas,
como país de morte, como país aberto à morte. Em todos os países a
morte é um fim. Chega e se fecham as cortinas. Na Espanha, não. Na
Espanha, abrem-se as cortinas. Muitas pessoas lá vivem entre muros

153
até o dia em que morrem. Daí os levam para fora, ao Sol. Um morto
na Espanha está mais vivo como morto que em qualquer lugar do
mundo; seu perfil fere como fio de uma navalha de barbeiro. A
anedota sobre a morte e sua contemplação silenciosa são familiares
aos espanhóis (LORCA, 2000, p. 117).

Sentimento de morte é elemento fundamental na tragédia, nas touradas —

muito apreciadas pelo dramaturgo —, no flamenco, e também em Lorca. Mas não é a

morte como fim, mas a morte como meio, morte viva que respira atrás da porta. Que

nos serve por nos acompanhar em vida e não por ser um desatino final. Aqui está o

trágico criado por Lorca: um trágico andaluz, trágico que dança o flamenco e que sangra

com touros, com os toureiros ou com as imagens de Cristo crucificado que desfila pelas

cidades espanholas nas procissões das Semanas Santas26. Mas, no baile espanhol e nas

touradas não há diversão; o duende encarrega-se de fazer sofrer em meio ao drama,

sobre formas vivas, e prepara os suportes para uma evasão da realidade circundante.

É fundamental, portanto, deixar de olhar a obra de Lorca em partes,

colocando de um lado o poeta, de outro o dramaturgo, ou diretor de La Barraca, ou o

conferencista que expôs em diversas partes da Espanha e das Américas seus olhares

sobre o mundo. Por isso, para compreender o trágico lorquiano é essencial olhar por

onde o escritor passou antes de voltar à tragédia, como ele mesmo anunciou, e

considerar os muitos elementos que influenciaram sua obra, desde seus estudos sobre os

trágicos, até sua experiência empírica com os clássicos espanhóis em La Barraca. Além

disso, entendendo o flamenco, essa importante expressão andaluza, como sendo trágico

por si só — por sua relação com a morte, com o duende e por ser uma arte que necessita

do corpo e da relação do poeta-artista com o mundo da obra —, é essencial pensar que a

26
Lorca, em diversos momentos, se refere a Cristo e a importância de seu sofrimento, como nos capítulos
―Os Cristos‖ e ―Procissão‖, em Impresiones y Paisajes, ou em sua conferência ―Semana Santa em
Granada‖.

154
tragédia de Lorca é uma tragédia flamenca, ou melhor, uma tragédia andaluza, criada

por um escritor que não cansava de dizer que era um espanhol do Sul27.

Porém, mesmo podendo ser caracterizada como um trágico andaluz, a obra

de Lorca está muito longe do regionalismo, do dialeto popular e do folclore:

universaliza elementos que podem ser locais na origem, mas que são na verdade

simplesmente humanos. Segue e maneja modelos literários, dos gregos aos clássicos

espanhóis (Lope, Calderón) e ingleses (Shakespeare) e os espanhóis modernos (Valle-

Inclán, Benaverte); mas une a eles modelos absolutamente populares, como as

representações de marionetes de sua Andaluzia natal, que ele coloca, justamente, nas

origens do teatro, origem às quais há de voltar. Integra tudo isso com os elementos

cênicos, coreográficos, e com os coros. Esta é a tragédia criada por García Lorca, fruto

do encontro de muitos trágicos, dos gregos até Shakespeare, mas sempre em luta com o

duende.

27
Como Lorca diz em sua conferência “Um poeta em Nova Iorque”: “Ninguém pode ter ideia
da solidão que sente ali (em Nova Iorque) um espanhol e mais ainda se este é um homem do
sul” (LORCA, 2008, v.VI, p. 349).

155
Capítulo 4

A fértil Yerma e a esterilidade hispânica

156
Antes da estreia de Yerma, Lorca já anunciava: ―Agora vou terminar Yerma,

minha segunda tragédia.[...] Yerma será a tragédia da mulher estéril. O tema, como você

sabe, é clássico. Mas eu quero que tenha um desenvolvimento e uma intenção novos‖

(MARTÍN, 1988, p. 212). Yerma acabou dando não apenas desenvolvimento e intenção

novos ao tema, mas também à sua carreira e fama, dentro e fora da Espanha.

Yerma é uma peça de simplicidade trágica, característica que Lorca

aprendeu em obras clássicas de Shakespeare, Cervantes, Calderón, Goethe, entre

outros28. Mas, tanto n


os clássicos espanhóis quanto nas referências estrangeiras que

inspiraram Lorca, o maior recurso não é a construção de uma estória absolutamente

nova, cheia de altos e baixos que pegam o espectador de surpresa, mas a criação de

dramas que sejam atemporais e que afetem diversos tipos de público,

independentemente de nacionalidades, classes socioeconômicas ou ideologias.

Seguindo as tradições do teatro mambembe, que ele conheceu em sua

vivência na trupe ―La Barraca‖, Federico sabia que para se comunicar com o povo há de

ser simples, mas não raso. Segundo Ricardo Doménech, ―o poeta granadino aprendeu

com Lope de Vega o uso estratégico da canção popular ou popularizante‖ (2008, p. 80).

Lorca utilizou em Yerma canções de ninar e falas de tons sentenciosos que soam como

refrões. Pôs em cena um coro de lavadeiras, remetendo ao estilo trágico. Tais elementos

tornam os temas de Yerma acessíveis, e apresentam essa mulher-obra de maneira

sedutora e perigosa.

Lorca levou à cena temas clássicos, que possuem grande abrangência,

tratados com tonalidades hispânicas. As terras áridas do sul da Espanha ambientam suas

tramas com o que ele absorveu em diversas partes do território espanhol, em suas

viagens com ―La Barraca‖. Assim, ao mesmo tempo em que é possível sentir no

28
No livro La Barraca – teatro universitário há uma lista de apresentações da trupe mambembe
da qual podemos notar quais foram as referências de Lorca, e o próprio dramaturgo expressa alguns
desses nomes em discursos declamados por ele e que estão transcritos no mesmo livro.

157
cangote a respiração quente do cristianismo vigiando até as vontades dos personagens,

em Yerma as tradições populares vindas dos povos celtas e ciganos têm lugar

fundamental nas criações de Lorca por serem elementos pulsantes na vida e no

imaginário espanhol. O dramaturgo reinventa um mundo que ele viu de maneira muito

real, e em suas criações García Lorca transpõe imagens e emblemas da tradição e do

folclore que já haviam sido codificados, sacralizados e seguiam vivos na época do

poeta.

Apesar da alta popularidade e aceitação das quais gozava Lorca por suas

obras poéticas, Yerma não teve a acolhida triunfal e sem restrições de Bodas de Sangue.

Ao contrário, a imprensa de direita se colocou furiosamente contra a estreia da obra, em

29 de dezembro de 1934, com ataques violentos à obra e ao autor. O pensamento

conservador da época percebeu que Yerma poderia rivalizar em um jogo de forças,

primeiro por seu estilo simples e de fácil compreensão, e também por ser obra de um

poeta cuja fama aumentava progressivamente em diversos pontos da Espanha. Há

elementos em Bodas de Sangue e Yerma que sugerem que tais obras tratam de

sociedades arcaicas, patriarcais, de valores e normas rígidos, tabus nos quais os códigos

sociais importam mais que as aptidões do indivíduo. A tensão entre sociedade e

indivíduo já havia sido tratada em alguns poemas de Lorca, mas, em suas peças, o

escritor deixa mais evidente sua postura crítica, e mais explícitas, as ideias sobre as

quais ele queria fazer refletir29.

Poeta, Lorca nomeia sua obra com um adjetivo, e por ―yerma‖ já é possível

entender que se trata de uma obra erma, que fala sobre algo despovoado e solitário30.

Mas, Yerma seria erma, ou o era a sociedade da qual fazia parte? Criar essa dúvida é

29
Em A casa de Bernarda Alba, a crítica de Lorca à sociedade será ainda mais forte, porém o
dramaturgo morreu antes de poder encenar a peça, como será dito adiante, no capítulo referente à peça.
30
Yerma, em português ―erma‖, apresenta tais significados, segundo o Dicionário Priberam da
Língua Portuguesa.

158
uma das artimanhas do autor, que escreve sua obra em um impasse entre a moral social

e as vontades pessoais. Yerma é solitária em seu casamento, em sua sociedade e em si

mesma. E a partir de Yerma, Johnston analisa que ―a intenção última do poeta espanhol

seguia sendo muito mais radical: a desconstrução de uma civilização e a redefinição do

direito individual de ser, não por meio da linguagem da ética ou da lei, mas sim em

termos de um imperativo natural‖ (JOHNSTON, 2004, p. 62), e completa mais adiante

que a civilização católica e espanhola, a razão, a lei e o ―eu‖ socializado são os grandes

inimigos do desejo do coração livre.

Sob os (infinitos) olhos dos outros

Em Yerma — a tragédia da mulher estéril — Lorca mantém o estilo

apresentado em suas obras anteriores, Bodas de Sangue e Mariana Pineda, sendo este

estilo o misto de prosa e poesia, junto à pouca informação sobre os personagens.

Quando a peça começa, Yerma está casada com João há dois anos, sem filhos. O

dramaturgo não dá maiores informações sobre essas personagens. Além do casal, são

apresentados outras duas personagens importantes: a Velha Pagã e seu filho Victor, e é

apenas com esses quatro personagens e um coro de lavadeiras que o autor constrói sua

tragédia. No início da peça, por um sonho da protagonista, recebemos a informação de

que Yerma não tem filhos, mas tê-los é seu grande desejo. Na obra, transcorrem-se três

anos da vida do casal Yerma e João, e é sempre ressaltada a ânsia da protagonista em

ser mãe. Na medida em que seu desejo não se realiza, a vontade da personagem vai se

transformando em uma obsessão que impulsiona suas ações. Impossibilitada de realizar

159
sua maternidade, a protagonista se depara com a falta de liberdade imposta pelas regras

sociais, aumentando seu sentimento de insatisfação.

Impossibilidade, consciência desta e sua não aceitação são alguns dos temas

importantes de Yerma. E a angústia na qual Yerma vive não é causada apenas pela não

realização da maternidade, mas principalmente pelo horizonte inesgotável que ela vê,

mas que não pode alcançar. A impossibilidade não está apenas na suposta esterilidade

de Yerma, mas também em sua relação matrimonial com João; em sua atração proibida

por Vitor; no cárcere que se forma em volta de Yerma quando ela é privada de sair de

casa e de poder buscar caminhos para sair, seja de sua esterilidade — em ritos religiosos

e pagãos —, seja de sua solidão — que ela rompe com breves encontros com outras

mulheres e com Vitor.

Apesar de tratar de solidão, interdição etc., o tema que marca a peça Yerma

é o da mulher estéril, que não produz frutos, tema clássico, como Lorca colocou, e que

por isso já deu margem a diversas e distintas análises31. E com isso, muito já foi dito

sobre Yerma: qual o sentido exato da esterilidade na obra; qual dos dois – João ou

Yerma – é de fato infértil ou qual a verdadeira intenção da mulher ao matar o marido.

Defesas e ataques não faltam, tanto a Yerma quanto a seu marido, João, e todas estas

possibilidades de olhar guiam o espectador/leitor para inúmeras leituras sobre criatura e

criador. Há, por exemplo, o trabalho de María del Carmen Bobes (1990), que vê em

Yerma segredos inconscientes de Lorca, chegando a conclusão de que o casal João-

Yerma são o desdobramento de um único personagem homossexual. Talvez, em uma

leitura psicanalítica, seja possível encontrar elementos para essa conclusão, mas não há

31
Entre outras análises que serão tratadas mais adiantes, podemos citar de antemão o trabalho de
Gustavo Correa em La poesía mítica de Federico García Lorca, Madrid, Gredos, 1970, que relaciona às
obras de Lorca com mitologia e teatro grego; ou trabalhos que tratam do papel da mulher mais
especificamente, como de María Teresa Balbín, ―La mujer em la obra de García Lorca‖, La Torre, IX,
34, abril – junho de 1961 ou em Brenda Frazier, La mujer em el teatro de Federico Garcia Lorca,
Madrid, Ed. Plaza Mayor, 1973.

160
elementos específicos na obra que justifiquem tal linha de interpretação. Por mais que

Yerma, por sua infertilidade, remeta a um sentimento de esterilidade exposto em alguns

poemas de Lorca, como, por exemplo, ―Canción del naranjo seco‖32, ainda assim não

parece seguro afirmar que a protagonista seja um alterego do poeta e a expressão de sua

homossexualidade.

Com relação às análises concentradas especificamente na leitura literária de

Yerma, há a possibilidade de ver João como o real infértil. Essa é o olhar de Doménech

(2008), pautando-se pela indiferença do marido em relação à frustração da mulher, além

de fatores físicos e traços psicológicos que justificariam tal interpretação. Lilia Boscán

Lombardi pensa que não há dúvidas, segundo sua análise, de que João é o estéril do

casal, e pauta sua análise especialmente na cena da romaria, na qual João deixaria claro,

segundo a autora, que o sexo para ele é infértil (LOMBARDI, 2002, p. 69). Mas há

também a corrente que faz cair a responsabilidade da esterilidade sobre a própria

Yerma. Nesta linha de análise, encontrada em Irley Machado (2008), é possível

encontrar algumas críticas de viés psicológico e que acabam por interpretar a

esterilidade de Yerma não por questões físicas, mas psíquicas, explicando assim o fato

de Lorca revelar desde o princípio o desejo obsessivo da personagem. As análises de

olhar psicológico algumas vezes chegam a interpretar o comportamento de Yerma no

trecho final da peça como um quadro de histeria que desencadeia na morte de João,

pondo o marido como o verdadeiro herói trágico da peça.

O sentido exato da esterilidade em Yerma já foi debatido por outros estudos,

e suscitar tantas discussões pode ter sido a intenção do autor quando colocou em cena

tal tema. Porém, quando se olha para as relações sociais, o que de fato importa na

descoberta sobre quem é estéril é ver sobre quem cai o peso da infertilidade do casal. A

32
Tal poema faz pode ser relacionado à esterilidade por entoar, mais de uma vez, a seguinte
estrofe: ―Leñador./ Córtame la sombra. / Líbrame del suplicio/ de verme sin toronjas‖.

161
incerteza sobre quem é estéril parece ser um recurso usado na peça para expressar as

relações entre a sociedade e o indivíduo, trazendo à tona outro tema clássico na obra

lorquiana: os outros. O tema dos outros está presente de forma muito clara nas três

principais peças de Lorca33, apesar de chamar mais atenção em A casa de Bernarda

Alba e seu ―jogo das janelas‖, como diz Ricardo Doménech (2008), chegando a ser uma

metáfora na peça O público, em cuja trama, como o próprio nome já diz, há uma

importante participação da ideia de olhos observadores e muitas vezes inquisidores. A

rígida moral da sociedade pautou a construção de conflitos em muitas peças de Lorca, e

em Yerma, esse tema é fundamental, talvez o verdadeiro anti-herói da peça. O olhar dos

outros, em Yerma, é um tema que pode ser entendido desde sua relação matrimonial

com João até a opressão sofrida pela mulher em uma sociedade de códigos rígidos e

arcaicos.

Na sociedade da Espanha lorquiana, as mulheres seguiam com a função de

tornar-se mãe, criar seus filhos e dar continuidade às suas famílias e às famílias de seus

maridos. Desde o ano de 1492, com a conquista da península ibérica pelos Reis

Católicos, toda a região que hoje compreende a Espanha se tornou mais do que um

território unificado sob uma coroa, mas uma população governada pela cruz católica.

Atualmente, apesar de ser um Estado laico34, a Espanha segue permeada por forte

influência do Vaticano, e a moral religiosa ainda é algo que coordena as ações e o modo

de pensar de parte da sociedade. Se a mulher, para a Igreja Católica, tem na Virgem

Maria seu exemplo máximo, e com ela a castidade e a função de ser mãe que zela pelo

lar e perpetua o pensamento católico junto às futuras gerações, o papel social feminino

na época de Lorca ainda era fortemente associado às virgens, figuras imaculadas e

33
Bodas de Sangue, Yerma e Casa de Bernarda Alba.
34
Segundo a Constituição Espanhola de 27/12/1978, ―artículo 16: 1.Se garantiza la libertad ideológica,
religiosa y de culto de los indivíduos y las comunidades sin más limitacion, em sus manifestaciones,
que la necessária para el mantenimiento del orden público protegido por la ley. 2. Nadie podrá ser
obligado a declarar sobre su ideologia, religión o creencias‖.

162
dignas de serem seguidas. Nessa lógica social, embasada na moralidade religiosa, é

possível compreender a importância da mulher como procriadora de rebanho e de

manutenção do pensamento religioso, e nisso se constitui a importância do controle

sobre as mulheres.

Assim, a incerteza de quem é de fato estéril no matrimônio mantém Yerma

estática e sob os olhos da sociedade sedenta pela expiação da culpa, ao mesmo tempo

em que reforça a vigilância sobre a protagonista e cria um cerco que lhe impossibilita

vislumbrar as possibilidades e os caminhos para o fim de sua angústia. A possibilidade

de autorrealização, aos olhos de Yerma, está unicamente em seu cumprimento da função

feminina de mãe, e ela anuncia, desde o início da peça, que suas atitudes sempre foram

guiadas em busca da maternidade dentro do casamento. Yerma é esposa de João, não

por amor a ele, mas mesmo assim, se casou feliz: ―(para João): minha mãe chorou

porque não fiquei triste quando saí de casa. E era verdade! Ninguém se casou com mais

alegria. E no entanto...‖ (I, 1).

Yerma queria se casar, sair de casa, cumprir o papel social que lhe era

imposto. Mesmo acreditando que há poucas alternativas para as mulheres se realizarem

individualmente, ela não se mostra, inicialmente, como uma mulher que não aceita a

moral imposta pela sociedade. Ao contrário, Yerma se casa com alegria, como ela

mesma coloca, pois acreditava que encontraria no casamento a possibilidade de se sentir

produtiva cumprindo sua função feminina: ser mãe. Porém, a realização da personagem

não acontece, e ao longo da busca por sua realização, encontros e desencontros com

outras personagens vão dando a Yerma um estrangeirismo insolente. Ela não faz parte

das mulheres que são mães, mas também não é parte do grupo que aceita a infertilidade,

como as irmãs de João, que dedicam a vida casta a cuidar da igreja da cidade. Yerma

não encontra lugar em sua sociedade, e, consciente disso, ela expõe seu sentimento de

163
ser sempre alguém estranho, e essa insolência a deixa ainda mais deslocada, sem lugar.

Yerma vai se colocando cada vez mais alheia a todos e chega a se pôr alheia a si mesma

em sua condição feminina:

Vítor: não jogue praga! É feio para uma mulher!


Yerma: quem me dera ser uma mulher! (I, 2)

Sem filhos, Yerma não se sente uma mulher, pois não encontra utilidade

para si mesma, e assim ela vai se desconhecendo por não encontrar meios de se realizar.

Com o desenrolar da peça e a estagnação de sua condição, Yerma diz a João: ―não sei

quem sou. Deixe que eu ande e me desafogue‖ (II, 2). Em um primeiro momento,

Yerma não se sente mulher, pois acredita que sua realização virá com um filho; e nessa

frase, ela expressa para o marido a percepção de que lhe falta mais do que ser mãe.

Yerma reconhece que já não sabe quem é, e assume a necessidade de buscar por si

mesma e o desejo de se desafogar por não saber quem ela é.

Ser Yerma

Yerma não se sente uma mulher. Quem lhe dera ser uma, ela diz a Vitor, a

personagem que a faz suspirar, como veremos à frente. Há a possibilidade de interpretar

que essa conversa de Yerma com Vitor seja um pedido para que ele a ―faça sentir-se

uma mulher‖, mas mesmo que seja um desejo dela, o adultério nunca chega a ser uma

hipótese para Yerma. Mesmo reconhecendo suas angústias e a ânsia de buscar um

sentido para si mesma, a protagonista não é capaz de passar por cima da moral instituída

socialmente para realizar seu desejo. O adultério seria uma tentativa de dar fim a um

164
matrimônio infértil, mas Yerma não aceita essa possibilidade, por mais aguda que seja

sua angústia. E aqui se encontra o conflito que encaminhará a peça ao seu ápice trágico,

pois ao mesmo tempo em que a personagem não concebe outras maneiras de se realizar

além de ser mãe de um filho de seu marido, Yerma também não consegue se conformar

com o destino que lhe é imposto por um casamento sem frutos.

O trágico construído pelo autor em Yerma reside na não aceitação da

infertilidade pela protagonista, mas também pelo fato de ela mesma ser uma

representação das normas sociais que a colocavam encarcerada em uma posição de

inútil por não poder ser mãe.

A personagem carrega em si a moral social imposta, ao mesmo tempo em

que não aceita a infelicidade gerada na esterilidade de seu casamento. Yerma deseja ser

mãe, e não aceitar o fato de não o ser. Não aceita se sentir improdutiva, e deixa claro

que a vida doméstica e o papel de esposa não suprem completamente suas vontades.

Yerma não se conforma em seu sentimento de impotência e, por isso, pode ser

considerada uma representação da mulher que deseja. Mas desejar não é permitido às

mulheres, e ela vai tomando consciência disso.

Yerma: Os homens têm outra vida: o gado, as árvores, as conversas; e


a nós, as mulheres, não resta nada além de filhos e o cuidado com os
filhos [...] não vim para esta casa para me resignar. Quando estiver
dentro de um caixão com a boca amordaçada e as mãos bem
amarradas, aí sim vou me resignar [...] quero beber água e não há nem
copo nem água; quero ir ao monte e não tenho pés; quero bordar
minhas anáguas e não acho os fios (II, 2).

A maternidade frustrada, com o decorrer da obra, passa a pesar como a

ameaça da castração de sua vontade ativa, a ameaça de se tornar improdutiva. Yerma

sabe que faz parte de uma sociedade que impõe às mulheres uma vida relacionada à

maternidade, já ―os homens têm outra vida [...] e a nós, as mulheres, não resta nada

165
além de filhos‖. Não lhe restando mais nada, a personagem não encontra maneira de se

sentir viva, mas certamente um dos agravantes da situação de Yerma é o fato de ela ter

consciência dos valores e normas sociais, mas ―não se resignar‖ a isso, não conseguir

aceitar o fato de não poder beber água, de não poder ir ao monte ou tecer suas anáguas.

Um dos pontos interessantes dessa fala de Yerma é que a personagem anseia por uma

liberdade simples e cotidiana, mas ela vai se dando conta de que ser mulher em uma

sociedade machista lhe impede de satisfazer seus desejos mais simples. E na não

aceitação, na não resignação, ela se torna subversiva e a porta-voz da crítica de Yerma

aos moldes sociais impostos. Yerma se torna a voz que grita, que expressa o que lhe é

negado, que expõe a falta de liberdade para satisfazer seus desejos mais simples. Ao

longo da peça, a vontade de Yerma de ser mãe converte-se em obsessão, e essa obsessão

vai se tornando cada vez mais angustiada na medida em que se torna irreversível.

O casal não tem filhos. Para João, isso não é um problema, pois ele

consegue alcançar suas demais ambições. João é um homem do campo, dedicado ao

labor rural e se realiza em seu trabalho, em sua vida fora de casa. Mas a estabilidade da

vida de João passa a ser abalada por Yerma, por ela não se resignar. João vai notando a

rebeldia de sua esposa, e começa a se preocupar com as reverberações de sua vida

doméstica em sua vida pública. O comportamento de Yerma passa a se tornar um

problema para o marido, ao passo em que ela começa a expor a vida doméstica do casal

no âmbito público. Ela passa a buscar a rua, demonstrando que sua vida doméstica não

lhe satisfaz, colocando, assim, a imagem do casal em risco. Yerma não busca uma

igualdade de gênero, como podem pensar alguns, mas busca apenas alguma maneira de

se satisfazer.

João não tem filhos, mas é fértil em seu trabalho com a terra. Na lavoura se

realiza ―como homem‖, ao passo que a esposa não consegue se sentir mulher, como foi

166
dito antes, pois os únicos frutos que Yerma poderia colher seriam aqueles gerados por

seu útero. Enquanto João só não tem filhos, Yerma não tem nada.

Yerma: a mulher do campo que não dá filhos é inútil como um monte


de espinhos, e até pior! [...] Estou farta de ter essas mãos e não poder
usá-las no que quero. Pois estou ofendida, humilhada ao extremo,
vendo que os trigos despontam, que as fontes não cessam de mandar
água em abundância... (II, 2)

Ao longo da peça, Yerma mostra ser ciente de sua situação, da vida das

mulheres do campo, das possibilidades de uma mulher na Andaluzia do início do

século, uma sociedade rural na qual o que importa é o que dá frutos, o que gera vida. A

terra seca não tem utilidade, as árvores importam porque dão frutos, mais do que por

sua beleza. E neste mundo é papel do homem trabalhar a terra, semear o campo, fazer a

colheita para depois reiniciar o ciclo. Além de o dramaturgo contextualizar Yerma em

uma sociedade rural, ele também inscreve nessa terra-peça o cultivo exercido pela Igreja

Católica. Pelos sermões das missas, o rebanho humano recebe a cartilha de como deve

pensar e agir; e dentro das normas sociais regradas segundo as doutrinas da Igreja

Católica, o papel da mulher na sociedade está diretamente ligado ao oficio de ser mãe.

O desejo de Yerma de ser mãe também pode ser relacionado ao anseio de

sua perpetuação no mundo. Se a maternidade é uma necessidade para Yerma, pode-se

pensar que o é também em seu sentido visceral de seguir vivendo, na necessidade de ser

imortal, de se imortalizar nos frutos que produz, nas ações em vida. Mas, além disso,

Yerma busca ser mãe para deixar de ser filha, para sentir que se move adiante, tanto aos

olhos dos outros quanto aos de sua própria natureza.

Yerma: vou acabar acreditando que eu sou minha própria filha. Muitas
noites saio para dar comida aos bois, pois antes não fazia, porque
nenhuma mulher sai à noite, e quando passo pela soleira da porta, na
escuridão, meus passos têm o peso dos passos de um homem. (II, 2)

167
Por Yerma não se sentir mulher, a personagem se permite experimentar, e

atravessa o escuro da noite, o mundo masculino, e com isso expõe o embate entre

feminino e masculino; fora de casa, na rua, Yerma expõe o embate entre o espaço

público e o privado; na romaria é exposta a dicotomia entre o sagrado e o profano, ou

seja, Yerma vai experimentando coisas que são proibidas para mulheres como ela. No

escuro da noite, ela não rompe totalmente com as regras sociais, vive de uma maneira

que não lhe é permitida, e ao raiar do dia, ela volta para a vida que não quer mais, mas

não impunemente, pois não realizar seus desejos vai se tornando cada vez mais

insuportável, aumentando sua angústia.

A insatisfação das vontades é expressa em Yerma na difícil sociabilidade ao

sentir que não se pode ir adiante, tendo que apaziguar o calor da individualidade no

conflituoso encontro com a moral e os olhares dos outros. Na tensa relação de Yerma

consigo mesma, ela busca saídas no espaço público, no mundo fora de sua casa, na rua,

criando uma ambígua relação, pois Yerma procura ar pra respirar exatamente no local

que a sufoca: na sociedade, o espaço onde se cria a repressão social. Em sua busca por

caminhos por onde escapar, o poeta nos mostra uma mulher que oferece resistência,

uma personagem que se rebela por não poder ser aquilo que se espera dela. E com isso o

escritor se posiciona politicamente, pois mostra para os setores conservadores da época

a força e o perigo de sua arte. Ao estrear Yerma, Lorca se torna incômodo, e isso a

imprensa de direita da época deixou claro, como será dito adiante.

Na peça, o autor nos apresenta não uma Yerma, mas várias ―Yermas‖ que

geram vários conflitos. Na impossibilidade de resolver o conflito entre o desejo pessoal

e a regra moral, a personagem passa a viver uma vida dupla, circulando nos espaços

públicos e privados, no dia e na noite, experimentando ser homem e voltando ao seu

papel de mulher.

168
Fora de Yerma, dentro dos outros

Às mulheres retratadas pelo dramaturgo é permitida a vida nos

interiores: das casas ou dos conventos. São vidas cerceadas por muros e por regras. Não

é apenas em Yerma que o escritor nos mostra o cárcere imposto às mulheres. Em A casa

de Bernarda Alba, essa temática também aparece com muita força, pois repete os

conflitos gerados pelas personagens que não podem nem sentir o vento da rua 35. Tanto

A casa de Bernarda Alba quanto Yerma expõem a falta de liberdade que uma sociedade

de valores patriarcais impõe às mulheres.

A falta da liberdade é certamente um dos temas mais importantes na

obra de Lorca, e este escolheu usar as mulheres para dar voz à crítica que fazia à sua

sociedade e aos valores que também tolhiam a liberdade do dramaturgo. A imposição de

que todos seguissem os mesmos moldes de vida era algo que incomodava o escritor,

tanto que ele se orgulhava muito quando era comparado ao tio Baldomero García

Rodríguez, o mais excêntrico, boêmio, artístico e original dos irmãos do pai de Lorca36.

Por meio de suas obras, Lorca expõe o conflito gerado no encontro

dos instintos humanos, paixões e vontades com os valores e normas impostos pela

sociedade aos indivíduos. Uma das normas sociais que Federico critica por meio de

algumas de suas obras é a obrigatoriedade do casamento37. Por meio de suas

35
Como diz Bernarda ―Nos oito anos que durar o luto, não entrará nesta casa a brisa da rua. Faz de conta
que tapamos com tijolos as portas e janelas...‖ (primeiro ato).
36
No libro Vida, pasion y muerte de Federico Garcia Lorca, de Ian Gibson, o autor relata uma anedota
familiar sobre essa comparação: ―La tradición familiar registra una ocasión en que la madre del poeta
exclamó, al oír Federico expresarse de una manera muy exagerada: ―Ya tenemos otro Baldomero!‖ a lo
que su hijo replicaría:‖Seria un honor para mí ser como él!‖.
37
Esse tema se repete de maneira explícita em Yerma, Bernarda Alba, Bodas de Sangue e O amor de
Dom Perlimplín com Belisa em seu jardim.

169
personagens, o autor coloca questões para seu público — e assim, para a sociedade —

sobre as regras que se é obrigado a seguir:

Yerma: por que se casou então?


2ª Jovem: porque me casaram. Todas se casam. Continuando desse
jeito, não vai mais haver solteiras, a não ser as crianças. Bem, na
verdade... a gente se casa muito antes de ir à igreja. As velhas se
empenham em todas essas coisas. Tenho dezenove anos e detesto
cozinhar, detesto lavar. Será que vou passar o dia inteiro fazendo o
que não gosto? E pra quê? Que necessidade tem meu marido de ser
meu marido, se quando éramos noivos fazíamos o mesmo que agora?
[...] Todo mundo está enfiado dentro de casa fazendo aquilo que
odeia. É bem melhor estar no meio da rua! (I, 2)

A 2ª Jovem dá voz ao desejo ser livre, desejo de emancipação de uma

mulher — e de ―todo mundo‖ — que tem consciência de que é obrigada a fazer o que

não quer. A fala dessa personagem expõe questões e reflexões que o dramaturgo queria

colocar à sociedade de sua época, falando à plateia que muitas daquelas mesmas pessoas

ficam em casa fazendo aquilo que odeiam. ―Seria melhor estar no meio da rua!‖. Aqui, a

antinomia casa/rua anuncia, já no primeiro ato, a busca de Yerma pela rua como

alternativa para sua busca pela liberdade de realizar seus desejos, enquanto a casa

simboliza a repressão que ela sofrerá por parte do marido ao longo da peça. ―Eu não

penso no amanhã; só penso no agora. A senhora está velha e vê tudo como um livro já

lido. Eu tenho sede e não tenho liberdade...‖ (Yerma, III, 1).

Em Yerma, Lorca expõe sua crítica ao casamento que, ao invés de se fundar

no desejo de duas pessoas de se unirem, tem como base uma obrigação social. O

casamento expresso em Yerma é uma imagem da instituição que castra os desejos dos

indivíduos, reproduzindo, no âmbito privado, as regras criadas no âmbito público. Na

antinomia dentro/fora criada na distinção do espaço cênico da casa de Yerma e da rua,

se estabelece uma relação conflituosa entre a protagonista e seu marido. Mesmo

havendo a separação entre o espaço de dentro (casa) e o espaço de fora, que caracteriza

170
a separação entre o público e o privado, há um confronto entre o que o indivíduo deseja

e o que a sociedade permite — e a permissão é igual para todos, não admite as

individualidades.

Ao mesmo tempo em que Yerma busca o espaço da rua na busca de sua

liberdade e da realização de seus desejos, a rua também é o espaço ―dos outros‖, dos

olhares alheios, e assim, da moralidade imposta pela sociedade. É interessante então

pensar na inversão que há em Yerma entre a antinomia dentro/fora. A rua, típico

símbolo do espaço público, é, para Yerma, o lugar onde ela pode exercer sua força

ativa, suas vontades individuais, e a casa, que simboliza o espaço privado, na obra é a

representação do espaço público que oprime os indivíduos por meio de suas regras.

No meio da peça, João passa a temer por sua honra, posta em risco pelas

saídas de Yerma de casa. João é um rígido defensor da moral, de maneira soberba e

inflexível. Para ele, é importante aparentar a normalidade exigida pela sociedade e,

acima de tudo, demonstrar ao mundo que sua honra segue intacta. Assim, João coloca

suas irmãs para viver em sua casa a fim de vigiar e evitar as saídas de sua esposa. Ou

seja, a vigilância do olhar dos outros, que João tanto teme, ele a reproduz em sua vida

privada, em sua casa. Além disso, o escritor coloca que as mulheres aceitam uma

posição na sociedade que, ao mesmo tempo em que as vitimiza pelas imposições e

regras, faz delas algozes de outras mulheres. Yerma incorpora essa relação dupla, pois

não consegue abrir mão de sua honra. Yerma mata o marido, mas talvez esse ato não

possa ser visto como algo transgressor, pois Yerma não subverte a ordem imposta

socialmente, conservando sua honra de mulher fiel ao casamento e a honra de seu

marido, como será dito mais adiante.

Com relação às irmãs de João, essas são a expressão da relação entre as

mulheres. Investem suas energias na manutenção da infelicidade de outras mulheres, e

171
essa relação aparece com mais força em A Casa de Bernarda Alba, o que sugere ser

essa uma preocupação constante na obra do autor. Mas, um ponto interessante é a

relação que o autor estabelece entre as irmãs de João, o casal e a Igreja Católica. Além

de elas serem aquelas que cuidavam da Igreja, ou seja, as sentinelas da moralidade

imposta pelo catolicismo, na qual se baseia a sociedade espanhola, pode-se pensar que

João tivesse medo de que Yerma maculasse sua honra, sendo ela herdeira de Eva. Como

tal, carrega consigo o significado demoníaco da serpente e o perigo de sempre estar

prestes a desobedecer.

O ato de controlar Yerma é, para o marido, uma obrigação para manter

imaculada sua honra, pois João, como Adão, temia ser ―expulso do paraíso‖, e sabia que

a esposa, por sua postura, era o que lhe oferecia esse risco.

João (falando com suas irmãs): Minha vida está no campo, mas a
minha honra está aqui (II, 2).
[...]
João: quando vierem conversar contigo, fecha a boca e lembra que é
uma mulher casada [...] e que as famílias têm honra, e a honra é uma
carga que todos devemos carregar [...] tenho que mandar e te prender.
Para isso sou teu marido (II, 2).

Os desejos de Yerma se chocam com a moralidade imposta pela sociedade,

e está a cargo de João fazer com que as repressões externas se reproduzam no espaço

interno de sua casa. Quando inicia a peça, Yerma ainda tem esperanças de engravidar,

mas à medida que a peça vai se desenvolvendo, que a esperança da protagonista vai

morrendo, e ela não encontra mais em sua vida o que sacie suas necessidades, Yerma

começa a buscar fora de casa a água que mate sua sede38. Ou seja, Yerma desobedece às

normas e passa a buscar a saciedade de seus desejos fora do espaço que foi reservado a

ela. O medo de João é de que sua honra seja abalada por alguma atitude de Yerma e do

38
Como já citado acima, Yerma lamenta ―Eu tenho sede e não tenho liberdade...‖ (III, 1).

172
que os outros podem falar do casal. Antes que haja alguma transgressão, são aplicadas

medidas repressivas, e esse é um importante aspecto de Yerma.

Quando Lorca estreou Yerma, a Espanha estava em meio ao que foi

conhecido como ―Biênio Negro‖ (1934 – 1936), período no qual o governo espanhol era

controlado pela direita espanhola, diminuindo as liberdades individuais e anulando as

mudanças sociais desenvolvidas durante os primeiros anos da Segunda República,

proclamada em 1931. A partir de 1934, mesmo ano da estreia de Yerma, iniciou-se uma

forte e violenta repressão exercida pelo Exército espanhol e os setores de direita da

sociedade espanhola. A expressão máxima deste período culminaria na ditadura do

general Franco. Prevendo o perigo da expansão do fascismo na Espanha, o escritor

colocou em sua peça situações de cerceamento de liberdade e medidas repressivas que

antecedem a infração. A ordem social não pode correr riscos, e assim, os indivíduos e

seus desejos devem ser vigiados e controlados.

O espaço de dentro da casa, aos olhos de Yerma, expressa o sentido de

cárcere, fortaleza, espaço fechado, enquanto que fora, na rua, no campo, no rio, o

escritor expressa a liberdade que só seria possível longe das amarras sociais. Em Yerma,

o dramaturgo mostra que percebe haver uma sociedade arcaica no mundo

contemporâneo. Em meio ao século XX, a Espanha seguia reproduzindo valores e

regras criadas na conquista da Rainha Isabel, a católica, e nesse contexto a casa faz o

papel do santuário-cárcere. O santuário-cárcere tem a cruz como símbolo da vigilância,

as doutrinas da Igreja Católica como as algemas e grades que cercearam não apenas os

atos dos indivíduos, mas também seus pensamentos e desejos. Colocar a moral religiosa

como sentinela é uma das maneiras mais eficazes de impor a repressão para evitar que

haja a infração, pois, dentro do santuário, o indivíduo tem vigiadas, por Deus, suas

ideias e intenções, sendo estas castigadas antes mesmo de virarem ações.

173
Uma mulher casada não é dona de seus atos e vontades. Ao sair de casa,

Yerma se expõe a uma liberdade incomum e inapropriada aos olhos dos outros. Porém,

Yerma não aceita o cárcere ao qual é submetida, pois estar submetida a não sair de casa

significa, mais do que sua imobilidade física, a castração de suas vontades. Além disso,

a liberdade que a protagonista experimenta no espaço público não se dá apenas pela

possibilidade de buscar o que deseja, mas também porque ela tem a possibilidade de

falar e ser ouvida. O que está enclausurado não tem cara ou voz, não se conhece. Como

nos coloca Yerma: ―Há coisas fechadas dentro de quatro paredes que não podem mudar

porque ninguém as ouve‖ (II, 2ª). Lorca se torna crítico porque faz justamente o que

Yerma queria fazer: leva para fora o que está preso dentro das casas e das pessoas,

coloca no palco as vozes que não se podem ouvir, atrás dos muros onde estão

enclausuradas.

Na antinomia dentro/fora, o dramaturgo leva ao palco a Espanha de sua

época: cada vez mais fechada em seu espaço interno, cheia de conflitos gerados pelo

encontro de vontades que não se suportam. O encontro dos ideais republicanos,

socialistas, comunistas e anarquistas —presentes em diversas partes do país — com os

nacionalistas, representados pelo Exército, Igreja e setores monarquistas da Espanha —

representantes da antiga ordem social que ansiava por se manter no poder — eclodiria

na Guerra Civil Espanhola, e pela obra de Lorca, é possível notar o quão latente estava

este conflito. A casa de Yerma representa uma Espanha que tardou a chegar ao século

XX, que abriga o peso da coroa e da cruz a todos os indivíduos, de igual maneira, como

em um rebanho.

174
Entre a cruz e o caldeirão

O conflito interno que Yerma expressa, seguramente para abarcar

outros tantos conflitos, é o fato de a personagem não ser mãe, e por um tempo ela

mantém viva a esperança de realizar seu desejo:

Maria: Dizem que se sofre muito com os filhos.


Yerma: Mentira. Isso é o que dizem as mães fracas, queixosas. Para
que os têm? Ter um filho não é ganhar um ramo de rosas. Precisamos
sofrer, para vê-los crescer. Acho que nisso se vai metade do nosso
sangue. Mas isso é bom, sadio, belo. Toda mulher tem sangue para
quatro ou cinco filhos. Quando os filhos não vêm, o sangue torna-se
veneno, que é o que acontece comigo. (I, 1).

Nessa fala de Yerma, podemos ver o que há de moral em seu

pensamento, pois Yerma fala sobre a maternidade sem ser mãe. Às mulheres está

destinado o papel da procriação, ter ―quatro ou cinco filhos‖, diz Yerma, mesmo que

essa experiência não seja alegre e prazerosa como ―ganhar um ramo de rosas‖. A

obrigatoriedade de ser mãe ou de ter uma vida casta são cobranças sociais que Lorca

leva ao palco com tons bíblicos, como a anunciação da gravidez39 no inicio da peça, e

depois na relação com o sangue como aquilo que dá a vida, o sofrimento como

redenção, como maneira de elevação. Certamente, Lorca usa tais símbolos na tentativa

de se aproximar do público, pois ele sabia da importância dos ritos sagrados, tanto os

católicos quanto os não-católicos — esses estarão presentes no final da peça, na

procissão pagã da qual Yerma participa. O autor não ignorava a forte relação, na

Espanha, dos valores morais com os ditos e interditos religiosos, e tanto em Yerma

39
Maria, a interlocutora de Yerma nesta cena, vai à casa da protagonista contar-lhe que está grávida. Essa
visita parece fazer referência à visita de Isabel, que era considerada estéril, à Maria, mãe de Jesus, para
contar-lhe sobre a gravidez milagrosa, passagem do Novo Testamento, Evangelho segundo Lucas.

175
quanto em suas outras peças, o dramaturgo explora essa relação. Entre esses interditos

está o ato sexual, catolicamente permitido apenas no âmbito do casamento para a

procriação, como é colocado no diálogo de Yerma com a Velha Pagã:

Velha: É preciso que os homens agradem. Desfazer as nossas tranças e


nos dar de beber água em sua boca. Assim anda o mundo.
Yerma: O teu: porque o meu não. Eu penso muitas, muitas coisas, e
estou certa de que meu filho realizará as coisas que penso. Por ele,
tenho me entregado a meu marido e continuo assim, para ver se
chegar; mas nunca por prazer.
Velha: Por isso está assim vazia! (I, 2)

Yerma confessa para a Velha que só tem relações sexuais com seu marido

na tentativa de engravidar, nunca por prazer. Enquanto Yerma traz o discurso da

moralidade social – por mais que esses mesmos códigos sociais lhe aprisionem –, a

Velha Pagã é a expressão da mulher que realizava sua vontade sem se preocupar com a

opinião dos outros. E certamente não foi sem motivo que o escritor a identificou como

pagã. ―Deus não. Nunca gostei de Deus. Minha filha, quando vai entender que ele não

existe? Os homens sim é que têm de te ajudar‖ (Velha, II, 1).

A Velha não acredita em Deus no país que deve sua unidade política à

Igreja Católica. Lorca, que nasceu e cresceu na região de maior repressão religiosa da

Espanha, cria esse personagem fortemente carismático, cheio de críticas e que em

diversos momentos questiona a existência de Deus, como citado acima. Na fala acima,

além de pagã, a Velha também mostra sua posição amoral e sugere que, na romaria, as

mulheres vão em busca de homens férteis, com vontade sexual, e sugere a Yerma que

ela vá com o filho dela, Vitor. A resposta de Yerma é tão dura quanto a sociedade que

criou a personagem:

Yerma: Cala a boca, mulher, cala a boca! Não entende que não é isso?
Nunca faria uma coisa dessa. Como pode pensar que posso conhecer

176
outro homem? Onde fica minha honra? As águas não podem voltar
para onde saíram, nem a lua cheia surgir ao meio-dia. (III, 2)

Yerma introjeta a sociedade na qual ela mesma não cabe. A princípio ela

anseia ser mãe, de maneira obsessiva, por haver sido ensinada que assim seria uma

mulher útil. Porém, Yerma não aceita a ideia de tentar resolver seu problema com um

ato que macule sua honra: o adultério — sugestão que é dada pela Velha Pagã como

sendo uma alternativa para Yerma escapar de seu casamento infértil. Mas a imposição

social de como deve ser uma mulher honrada é tão grande que Yerma não consegue

fugir às regras morais, mesmo que isso lhe custe a possibilidade de se sentir produtiva,

sentir-se mulher.

A protagonista, até o final da peça, prefere ceder à sociedade e seguir sendo

uma correta mulher casada, abrindo mão da sua vontade de ser livre, permitindo-se

apenas transitar pelo escuro da noite. Yerma se esforça para se enquadrar em uma

sociedade que, na verdade, não a suporta, pois ela mostra que tem consciência de sua

situação. Mas, Yerma se torna vítima de sua sociedade justamente por tentar se

enquadrar nela, por seguir as normas instituídas e reproduzi-las em mitos, como o do

amor materno, indicado na fala de Yerma para Maria: ―é nesse momento que se tem

mais amor; quando se pode dizer: ―meu filho!‖.

E, assim, Yerma transcorre a peça indo do desejo de ser mãe, para se sentir

útil, à tentação de aceitar meios menos ortodoxos para a solução de seu problema.

Yerma mantém sua honra, não trai seu marido, não foge com Vitor e coloca a sociedade

acima de sua vontade individual, e ao fazer essa escolha, Yerma deixa de ser subversiva

— postura que ela quase assume ao verbalizar que não suporta a infertilidade de seu

casamento — para se colocar em posição de submissão às normas sociais. Talvez, o

maior problema da personagem não seja de fato não conseguir ter um filho, mas sim a

obrigação que ela se impôs de ser mãe e, frente à impossibilidade da maternidade,

177
Yerma não vê outra maneira de se realizar. O fato é que ela mostra que não vê valor em

si mesma, colocando-se na posição de submissão que ela mesma questiona quando fala

da diferença entre o homem e a mulher na sociedade.

Assim, é possível questionar o que significa o ato de dar à luz, o que

socialmente significa ela não ter tido filho enquanto os anos vão se passando. Talvez

Yerma queira ter um filho para se inserir na sociedade, para deixar de ser o contrário,

mas o fato de estar em um casamento infértil coloca sobre Yerma a carga de ser

―antinatural‖, peso que gera na mulher uma pressão social angustiante. Com isso, a

angústia de Yerma tem dupla origem: a pressão de fora, da sociedade, e de si mesma,

por introjetar essa pressão, tornando-a parte de sua visão de mundo.É tão pesada a carga

de Yerma não ter filhos quanto sem saída sua situação e sua fama de seca, de estéril. A

prova do que pode significar não ser mãe aparece na especulação sobre o culpado pela

esterilidade do casal que é feita por Yerma, mas também pelas lavadeiras. As lavadeiras,

em Yerma, formam um coro que, como nas tragédias gregas, tem a função clássica de

comentar a ação e introduzir as críticas do povo sobre as atitudes da protagonista. Elas

discutem a responsabilidade da personagem sobre sua esterilidade:

1ª Lavadeira: Ela não tem filhos, mas a culpa não é dela.


[...]
2ª Lavadeira: Tudo isso são coisas de gente que não se conforma com
seu destino.
[...]
1ª Lavadeira: A culpa é dele; dele mesmo. Quando um homem não é
pai, deve cuidar de sua mulher.
4ª Lavadeira: A culpa é dela, que tem língua dura como pedra. (II, 1)

As lavadeiras fornecem vários elementos, mas não respostas nem explicação

ao espectador, e, na verdade, indicam que, ao mesmo tempo em que Yerma nem João

não são culpados, ambos o são. O casal é atraído para uma vida matrimonial que não

satisfaz a nenhum dos dois, e a infertilidade, que se impõe a eles, mais parece uma

178
brincadeira da natureza. Yerma não se realiza na vida que se dá unicamente no âmbito

privado, e nega as alternativas de ter outra vida, encarando o que lhe acontece como um

destino inexorável. Outros personagens apontam que a protagonista poderia realizar seu

desejo de outras formas, mesmo que menos ortodoxas, como, por exemplo, tentando

engravidar de outro homem que não seja o seu marido, mas Yerma, presa a sua honra,

não aceita tal meio de realizar seu desejo. Enquanto isso, João também vai dando sinais

de insatisfação, na medida em que percebe não ter controle sobre sua esposa.

Como dito antes, o conflito de Yerma não é dado como algo irremediável.

Em alguns momentos da peça, é sugerido que Yerma poderia romper o casamento e

fugir com Victor, como fez a Noiva em Bodas, ou ter encontros adúlteros e tentar

engravidar, como aconteceu com Adela em Bernarda Alba, mas ambas as

possibilidades são rejeitadas por Yerma, que segue fiel ao seu marido e às normas

sociais, enquanto nega dar vazão aos seus instintos e desejos.

Lorca constrói uma obra de áurea telúrica, exaltando a fecundidade. A

personagem tem consciência de que precisa se calar, resignar-se, mas tenta ignorar que

a raiz de sua tristeza é mais do que a infertilidade do casamento, mas os muitos frutos e

flores prontos para serem provados que ela não pode ou não se deixa experimentar. A

natureza é fértil no mundo fora da casa de Yerma, mas também muito fértil na força

ativa que a personagem sente pulsar e que, do meio para o final da peça, Yerma não

pode mais controlar.

179
A embriaguez do “Cristo del Paño”

Yerma, tomada por obsessão e desespero, resolve ir a uma famosa romaria.

A romaria da peça é movida por dois tipos de desejos, como descrevem os próprios

personagens da peça: para pedir filhos, como o caso da protagonista, mas também pelas

coisas ―terríveis‖ que acontecem. As lavadeiras, mais uma vez com a função de dar voz

aos comentários do povo, dizem que a crescente procura da romaria por mulheres que

buscam o milagre de engravidar passou a atrair muitos homens à romaria, e com isso

muitos problemas. ―No ano anterior dois homens se mataram por uma casada‖, diz uma

das lavadeiras. A romaria, que deveria ter função unicamente religiosa e social, passa a

ter um forte apelo sexual, e é por esse motivo que ela passa a ser mais conhecida.

A cena da romaria é o auge da peça, e certamente o mais recriminado pelos

setores conservadores da sociedade, pois uma cena que deveria trazer lições morais

cristãs e a redenção à protagonista, na verdade é carregada de símbolos pagãos,

sensualidade, e termina com um ato de desobediência civil de Yerma. O clima da

romaria é descrito pelas lavadeiras, que contam que uns homens passaram a mão nos

seios da irmã de uma delas, que há tonéis de vinho próximos e que um rio de homens

solteiros desce para perto da romaria, certamente em busca de mulheres ávidas por

engravidar.

A romaria de Yerma é, claramente, uma fusão de uma das romarias mais

tradicionais da Andaluzia, a romaria de ―Cristo delPaño‖, com ritos dionisíacos. Muito

antes da época de Lorca, já acontecia, todo dia 5 de outubro, na cidade de Moclin, a

cerca de 30 quilômetros de Granada, a romaria que certamente foi a que inspirou o

180
autor40, e até hoje segue sendo muito popular na Espanha. No ano de 1979, o jornal ―El

País‖ publicou uma matéria intitulada ―La romería de Moclín, inspiradora del Yerma de

Lorca – um ayuntamiento de izquierdas continúa la tradición‖41, em que podemos

perceber os elementos do ritual que inspiraram o escritor e o fenômeno curioso de,

atualmente, a fama da romaria de ―Cristo delPaño‖ se dever mais por ser parte da obra

de Lorca do que pelos milagres atribuídos a ela. À romaria, que atualmente também é

conhecida como a ―romaria de Yerma‖, são atribuídos milagres realizados pelo ―pano

com a imagem de Jesus com uma cruz nas costas‖, e, em especial, o milagre de curar a

esterilidade feminina.

Porém, junto com a fama milagrosa da romaria, vêm histórias que contam

que, na verdade, as mulheres seriam fecundadas em virtude de razões muito mais

naturais do que espirituais, relacionadas à presença de homens solteiros e aos

acampamentos ao ar livre em volta da romaria. Relata o jornal ―El Pais‖:

―sobre a romaria de Moclín, muito foi escrito, e mais ainda estudado,


tanto a favor quanto contra, se bem que muitos dos argumentos
atualmente usados com maior assiduidade e empenho por seus
difamadores não têm fundamento histórico ou real. Assim, ainda que
ninguém consiga explicar de fato como chegou a transcender a
questão sexual sobre os vários tipos de milagres atribuídos à tradição
do Cristo delPaño, o fato é que seu caráter teórico de panaceia e
remédio sobrenatural para a esterilidade feminina resulta, ainda hoje,
em um dos pontos sobre os quais mais se olha, de forma exagerada,
para o vilarejo e sua romaria outonal‖42.

A questão sexual, como mostra o jornal, é tão popular quanto a própria

romaria, não sendo essa relação uma invenção da dramaturgia lorquiana. Certamente,

um dos pontos que mais irritou os setores conservadores da sociedade com relação à

40
Tal ideia está expressa no livro do irmão Federico y su mundo, de Francisco Garcia Lorca, irmão do
poeta.
41
http://www.elpais.com/articulo/sociedad/GARCiA_LORCA/_FEDERICO/GRANADA/ESPAnA/romer
ia/Moclin/inspiradora/Yerma/Lorca/elpepisoc/19791009elpepisoc_8/Tes/
42
Idem, 1979.

181
cena da romaria era a carga de sensualidade atribuída a este trecho da obra, afinal, a

cena remete a um acontecimento real, ampliando ainda mais a fama que o rito possuía.

O baile final da romaria tem forte semelhança com as danças do norte da

Espanha, mas o caráter erótico da dança foi acentuado pelo dramaturgo. É tão forte a

relação da cena final com os cultos dionisíacos, pelo uso de máscaras, com a presença

do macho e da fêmea e do símbolo fálico e cósmico do chifre de touro, que é impossível

não relacionar a cena com a obra As Bacantes. O Deus invocado é o Deus (homem) da

fecundidade, mas o chamado é feito por mulheres e tonéis de vinho. O cristianismo

presente na romaria real, no final da cena, dá espaço para o rito grego, pois só dessa

maneira seria possível chegar ao ápice da tragédia, outro ritual grego. Os ritos católicos

certamente são ricos de dramaticidade, e foram as primeiras experiências teatrais de

Lorca43, mas o trágico não encontra espaço na Igreja Católica, pois só há um destino —

escrito pela crença na vontade de um Deus único, que não se relaciona com o homem ou

com outros deuses para jogar.

É em meio ao ar turvo, impregnado pelo som das orações e pelo sabor dos

vinhos, que Yerma se encontra pela última vez com João. Yerma vai à romaria, sem a

permissão do marido, para buscar o milagre de engravidar, pois para ela, suas rezas não

estavam sendo ouvidas; mas João a segue e eles se encontram, ambos embriagados; ele

pela bebida, e ela pelo ódio que ao longo da peça foi sendo alimentado pela frustração e

pela fama de estéril recebida pela protagonista. No diálogo que o casal trava na cena

final, quanto mais o marido fala, mais Yerma se enche de fúria, pois João expõe, pela

última vez, que quer que sua esposa se resigne a não ter filhos. Talvez, o que mais

enfureça Yerma seja o fato de o marido não se importar com a ausência de filhos.

43
Refiro-me aos relatos das brincadeiras de criança de Lorca. No livro Mujeres de García Lorca, as
empregadas e primas do escritor contam que Federico brincava de teatro nos quais encenava missas
onde ele era o padre.

182
João diz a Yerma, sobre sua postura com relação aos filhos: ―não me

interessam. Já não era sem tempo que eu dissesse isso. Só me interessa o que tenho nas

mãos. O que vejo com meus olhos‖. João representa um homem da Espanha rural, que

vê o mundo como aquilo que ele pode cultivar e trabalhar com suas próprias mãos, na

terra onde ele pode plantar e ver crescer para colher.

Lorca tem a intenção de criticar o matrimônio em sua obra. Para Yerma, o

casamento era uma condição para a maternidade. Quando ela se depara com o fato de

não poder ser mãe, tanto o casamento quanto o marido perdem o sentido. Para João, o

casamento era parte natural da vida de um homem honrado, uma obrigação social, não

importando se o matrimônio geraria ou não filhos. Assim, para ambos o casamento era

um meio para atingir um fim, mas este não era a felicidade do cônjuge.

Essa é a crítica final de Lorca sobre os matrimônios, a submissão da vontade

de um em prol dos desejos do outro, uma relação onde a força é exercida por apenas um

dos lados, numa batalha que busca a morte da vontade de um, e não um jogo onde os

desejos se intercalam.

Yerma (excitada): Ah, é por isso? Queria a casa, a tranquilidade e uma


mulher. Nada mais.
Não é verdade?
João: É verdade. Como todos.
Yerma: e o resto? E um filho? [...] e não há esperança que um dia a gente
possa ter um filho?
João: não.
Yerma: de jeito nenhum?
João: de jeito nenhum. Aceita e esquece
Yerma: O que quer?
João: A ti, Yerma. Olha, a lua está linda demais. (III, 2)

Yerma vai se excitando, na medida em que percebe que o motivo de sua

angustia, na verdade, não importa a João. Para ele, não ter filhos não é um problema,

pois ele segue sua vida da mesma maneira, sendo o senhor da casa e o dono de seu

183
trabalho no campo, ou seja, João já tem sua vida completa, tanto para si, quanto para a

sociedade. E ele acrescenta: não lhe falta nada.

A morte de João, assassinado por Yerma, foi interpretada pelos estudiosos

de maneiras distintas. Como dito antes, algumas análises pensam o assassinato do

marido como um momento de histeria44 de Yerma; outras análises, seguindo na busca

de elementos cristãos na obra, consideram a morte de João como sendo a morte do

salvador. Doménech diz que, segundo esta vertente, ―morre o varão, morre sobretudo

para a mulher, se trata de mulheres que estão sentidas — como a sexualidade, como o

sangue — a partir da mulher, a partir da mãe, da esposa ou da amante. Morre o

salvador. Mas o salvador sempre é o varão‖ (2008, p. 132).

Porém, ambas as leituras ignoram Yerma como indivíduo que tem desejos e

vontades. Uma interpretação psicanalítica coloca a morte de João como decorrência de

um desvio na personalidade da esposa, e não como um ato escolhido e cometido no

desenrolar de seus sentimentos. Dizer que Yerma mata o marido por um ataque de

histeria é simplificar todo conflito da trama — tirando a possibilidade de escolha de

Yerma e ignorando que há, além de um embate interno de suas vontades, uma relação

social que a reprime e que também participa da morte de João.

Por outro lado, se uma leitura psicanalítica ignora o entorno de Yerma, a

leitura da morte como uma metáfora de um rito católico ignora o conflito da

protagonista, um conflito feminino, pois Yerma diversas vezes coloca as distinções

entre ser homem e mulher, e nega as imposições sociais como um fator importante para

o ato cometido pela protagonista. Ao matar João, Yerma não executa a morte de seu

salvador, mas ao contrário, mata seu marido para poder se salvar do peso que ela sente

por não ser mãe.

44
Leitura de AngelaBacaicoa, ―Lectura psicanalítica de Yerma, de García Lorca‖, Cuaderno de
Psicoanálisis, IV, 10, 1987, p. 32-39.

184
Yerma: Isso nunca. Nunca. (Yerma dá um grito e aperta a garganta
do marido. Ele vai para trás. Yerma aperta a garganta do marido até
matá-lo. Começa o coro da romaria.) Murcha, murcha, mas segura.
Agora, sim, o sei com certeza. E sozinha! Vou descansar sem ter que
despertar sobressaltada para ver se o sangue me anuncia outro sangue
novo. Com o corpo seco para sempre. Não se aproximem porque
matei meu filho, eu mesma matei meu filho! (Um grupo se aproxima,
ficando ao fundo. Ouve-se o coro da romaria). (III, 2)

Essa é a última fala de Yerma, e não relaciona a morte do marido à perda do

salvador, mas na verdade aceita seu destino trágico depositado na esterilidade de seu

casamento; junto com seu marido, mata seu filho. Agora viúva, Yerma não tem mais

que carregar o peso de um casamento sem filhos. Mas, além disso, sem João, Yerma

também se torna livre da casa, das restrições sociais que João trazia para o âmbito

privado, das normas morais que cerceavam a liberdade. O entendimento do fato de

Yerma matar seu marido pode ir além de uma leitura psicanalítica, que entende o ato

como um ataque de histeria, mas como a expressão máxima do quanto o marido

significava de peso, de opressão para ela. Sem João, Yerma pode descansar, pois, aos

olhos dos outros, ela deixa de ser a seca e passa a ser a viúva, sendo essa única maneira

que ela conseguiu vislumbrar de mudar sua vida.

Durante a peça, há um desenrolar da personalidade de Yerma que sai da

angustiada esperança ao desolamento. Nesse meio tempo, Yerma vai azedando sua

personalidade, lutando contra si mesma, enche-se de ódio na busca de um culpado por

sua esterilidade. Porém, quando João diz a Yerma que não deseja ter filhos, ela não

pode mais ignorar que o marido, que ela via como sua única salvação, não irá lhe salvar.

O marido não era seu salvador, mas um de seus algozes. Se é estéril Yerma ou se o é

João, o que importa é que um não pode dar o que o outro deseja, então, como ser feliz

frente à impossibilidade do outro? Enquanto Yerma quer ser mãe, João quer sua honra,

e um não se interessa pelas vontades do outro. Como acrescenta Doménech, ―Yerma e

185
João se buscam sem chegar a se encontrar, como quem se move na escuridão. E talvez

não se encontrem porque o que cada um busca no outro é algo que o outro não tem, ou

que o outro não é‖ (2008, p. 89).

O fato de Yerma não se entregar a outro homem pode significar a

representação de uma mulher infecunda por não ser fecundada, semeada. Yerma é a

terra que é estéril por não haver quem trabalhe nela. Essa ideia ressalta o constante

paradoxo que vivem João e Yerma, pois um homem de vida rural, que trabalha na terra,

não é capaz de semear sua esposa.

Em entrevista, Lorca diz que ―Yerma não tem argumento. Em muitos

momentos parecerá ao público que há, mas é um pequeno engano‖ (GIBSON, 1987, t.

II, p. 1060). O escritor cuida de detalhes da evolução trágica de Yerma nessa aparente

falta de argumento, direcionando-a para o ápice da tragédia: da ternura inicial ao

encontrar Maria grávida para a amargura e desolação. Yerma é consciente do que lhe

acontece — que seu sangue poderia virar veneno, caso não dê vida aos seus filhos —,

que está se enchendo de ódio, se vê inútil, se sente ofendida e rebaixada, como ela

mesma diz (II, 2).

No final, Yerma se rende à breve esperança da romaria, o que de fato

desafia a mentalidade arraigada em valores católicos, mas João vai até Yerma, que ao

ser descoberta, inundada por seus sentimentos, mata o marido e com ele os valores

morais e a falta de liberdade que ele representa. Yerma prefere matar seu marido a se

resignar ou a ter uma postura adúltera, ou seja, acaba escolhendo expor tudo aquilo que

antes estava trancado dentro de sua casa e de si: sua insatisfação com o casamento e a

vida doméstica que lhe eram impostos, a sede de liberdade, a descrença em Deus e a

vontade de ser o que quer e não o que os outros dizem que ela é. Yerma escolheu a

certeza de ser viúva ao invés da especulação social de que é estéril.

186
Quando João aparece na romaria, já um pouco bêbado de vinho e de desejo

por Yerma, ele procura sua esposa para realizar suas vontades. João, nesse momento,

despe-se completamente dos valores católicos e deseja Yerma por prazer, não para

procriação. Porém, a protagonista não deseja a João, não o vê como uma fonte de

prazer, mas antes como um reprodutor e agora que ele mostra não se importar em ter

filhos, o casamento e o marido perdem a função para Yerma.

João vê a Lua e vê Yerma, mas ela, neste momento, não consegue ver nada

que não suas vontades, e recusa seu marido tanto quanto continuar abrindo mão de sua

liberdade e escolhas por um casamento que não a satisfaz. Ao recusar João, Yerma

assume mais uma vez a moralidade cristã de aceitar o sexo para fins reprodutivos, e ao

matar o marido, livra-se do peso que representava um sexo infecundo, pois parece que

para ela, o sexo não gera prazer nem ―fruto‖. Nesse momento, Yerma é a expressão de

toda a moralidade social cristã que controla a vida privada dos indivíduos, como

expressa Lombardi: ―a sacralização da sexualidade e da fecundidade se perdeu na

tradição religiosa do cristianismo que condena o prazer sexual e o considera

pecaminoso‖ (LOMBARDI, 2002, p. 67).

O trágico de Yerma está expresso em vários elementos, como o coro das

lavadeiras, que é criado com forte aproximação aos coros das peças gregas, mas

também na ideia de imutabilidade do destino. Assim, quando Yerma crê que pode

mudar a ordem e mudar seu destino, ela acaba cumprindo seu próprio destino, assim

como fez Édipo, ao tentar fugir de sua tragédia de se casar com a mãe e matar o pai.

Quando Yerma vai à romaria para tentar engravidar, ela acaba matando o marido, assim

concretizando sua tragédia, e sua esterilidade se cumpre inexoravelmente. Assim como

nas tragédias gregas, em Yerma o destino se impõe à vontade humana com força

187
poderosa e imbatível. Mas, se o povo grego estava nas mãos dos deuses, o povo

espanhol retratado na peça de Lorca estava nas mãos da sociedade e da Igreja Católica.

Além disso, a própria cena da romaria de Yerma remete à peça As Bacantes,

na qual o ápice da tragédia se dá em uma romaria de mulheres, regada a vinho. A

personagem de Yerma se aproxima de heróis e heroínas gregas, em especial de Medeia,

que mata seus filhos para se vingar de Jason. E movida pela vingança, assim como a

heroína grega, talvez Yerma mate o marido para se vingar da sociedade, e como coloca

Lilia Lombardi, ―esse ato desmensurado de vingança e morte dá a medida da ofensa e

da humilhação sofrida‖ (LOMBARDI, 2002, p. 55), o que também expressa o

ressentimento de Yerma com a sociedade e consigo mesma, por aceitar fazer parte da

situação que lhe oprime.

Honra e vingança são temas frequentes da literatura e dramaturgia da

Espanha, e estão fortemente presentes nas obras de teatro ao longo do período do Século

de Ouro espanhol. As obras de teatro de García Lorca recuperam esses temas

tradicionais da dramaturgia da Espanha, tradição essa que havia sido interrompida no

século XVIII, época de forte influência francesa, e que apresentou ligeiro renascimento

no século XIX. Antes de Yerma, a honra e a vingança já haviam sido apresentadas ao

público das peças de Lorca em Bodas de Sangue, quando a honra do Noivo é maculada

e exige a limpeza com a vingança.

Ao matar o marido, Yerma assume seu destino de esterilidade, pois ao matar

João mata toda a possibilidade de ser mãe, afinal, acaba seu casamento — a única

maneira pela qual Yerma acreditava ser possível a conquista da maternidade. Assim, a

própria Yerma diz que ―matou seu filho‖, e nesse ato ela se aproxima da personagem da

Mãe de Bodas de Sangue que afirma que, junto com a morte do seu filho, o Noivo, terá

outro tipo de tranquilidade: ―Agora todos estão mortos. À meia-noite vou dormir,

188
dormir sem que me aterrem mais a espingarda ou a faca‖ (Mãe, Bodas de Sangue,

último quadro), agora ambas podem dormir sem o medo, sem a ameaça dos outros. Ao

se tornar viúva, Yerma deixa de ser a infecunda, a seca, e passa a ser um símbolo das

exigências que são feitas à terra para que esta cumpra seu ciclo. Mas Yerma também se

torna o reflexo da mulher oprimida e da negação dessa opressão.

Yerma, Lorca e Espanha:

Federico e seus irmãos são filhos do segundo casamento de Federico García

Rodriguez, don Federico, como era conhecido em Granada e vilarejos próximos. Antes

de se casar com a mãe de Lorca e de seus três irmãos, Don Federico foi casado com

Matilde Palacios, que morreu muito jovem. O que se imagina é que Matilde era estéril,

pois o casal não teve nenhum filho, enquanto que em seu segundo casamento com

Vicenta Lorca Romero, don Federico teve quatro filhos. Lorca sabia que seu pai teve

um primeiro casamento infecundo e, segundo as empregadas que cuidavam de Federico,

o poeta imaginava como seria se ele fosse filho de Matilde e não de Vicenta

(JOHNSTON, 2004, p. 39).

Não se pode dizer que Lorca tenha escrito a peça baseado na história de

Matilde, mas é fato que a esterilidade foi um tema abordado não apenas na peça, mas

em alguns poemas do escritor. Um dos primeiros livros do poeta, o Canciones —

escrito entre os anos de 1921 e 1924 —, antecipa alguns dos temas que permearão a

obra de Lorca até o fim: dúvida, angustia, autoquestionamento e a sensação de

impotência em concretizar o amor e gerar frutos. O poema ―Canção da laranjeira seca‖

189
já em seu título compartilha com Yerma o sentimento de infecundidade, da terra seca,

sem gerar novas vidas. No fragmento abaixo, o poeta expõe o suplício ―de se ver sem

toranjas‖, o suplício de ser improdutivo, seco, o mesmo suplício que, dez anos mais

tarde, estará presente em Yerma (1934).

―Lenhador.
Corta a minha sombra.
Livra-me do suplício
De ver-me sem toranjas.‖

Em Yerma, o dramaturgo expõe o conflito de uma mulher que é levada a

questionar as normas impostas, pois segui-las não a torna feliz. Assim, ao contrapor os

desejos individuais às normas da sociedade, o escritor coloca em cena questionamentos

que são indesejados pelos setores conservadores do poder e da sociedade e por isso

despertou a reação a favor, dos setores da esquerda, e contra os setores da direita da

Espanha.

Em dezembro de 1934, Yerma estreia em Madrid, e em setembro do ano

seguinte, em Barcelona. A repercussão da peça foi estrondosa, e as reações de público e

crítica estão registradas nos jornais da época. É a partir das matérias e comentários

publicados nos anos de 1934 e 1935 que se pode afirmar que a sociedade espanhola se

deu conta do caráter político e subversivo da obra de Lorca. Yerma gerou reações de

muitos setores da sociedade e colocou o nome de seu autor na lista dos ―inimigos da

Espanha nacionalista e católica‖, como eram considerados os grupos de esquerda pelos

nacionalistas e direitistas daquela época.

Sobre Yerma, Eutímio Martín (1985) escreveu um breve artigo, mas que

traz elementos importantes para se entender o impacto da obra. Em ―Yerma o la

imperfecta casada‖, Martín nos chama atenção para o fato de que ―a estreia de Yerma

190
[...] suscitou uma reação de feroz violência na imprensa direitista que o conteúdo da

obra escassamente justifica‖ (1985, p. 93). O fato é que a heroína, como a chama o

autor, não falha em sua ortodoxa moral católica, pois não satisfaz seu desejo de ser mãe

fora dos limites de um casamento legal, civil e religioso 45. E o articulista completa a

defesa da moral de Yerma na comparação com a peça Bodas de Sangue: ―Bodas de

sangue, estreada um ano antes não produziu sequer o mesmo efeito e, entretanto, seu

conteúdo era francamente explosivo‖ (Martín, 1985, p. 95).

Para Martín, a explicação para o impacto causado por Yerma vai além do

conteúdo da obra e está impresso na situação política da Espanha da época: ―O fato é

que entre março de 33 e dezembro de 34, a tensão política havia cavado ainda mais o fosso que

separava direitas e esquerdas, mas é possível que os motivos não fossem determinantes‖

(Martín, 1985, p. 93). O autor afirma que uma análise externa à obra não é capaz de nos mostrar

o que tornou Yerma uma peça tão explosiva, e nos chama atenção para o fato de que a

insubmissão assumida pela personagem e a forte presença da sexualidade na obra são alguns dos

traços literários que explicam o perigo que Yerma representava para os setores conservadores da

época.

Yerma é mais do que uma peça sobre uma mulher estéril, mas uma obra que

discute a falta de liberdade, a repressão dos instintos e desejos, o peso da sociedade e da

moral católica. Todos esses fatores com um agravante: são vistos e discutidos por uma

mulher. Yerma pode ter uma atitude menos rebelde do que a Noiva de Bodas de

Sangue, pois esta cede aos seus instintos e foge com Leonardo no dia do casamento,

mas Yerma também apresenta um caráter subversivo por não se resignar e por assumir

que não vai se resignar. E por não se resignar, por expor sua insatisfação na vida

privada, no casamento, Yerma se torna um exemplo certamente indesejável para parte

45
Certamente Eutímio Martín se refere às insinuações e propostas da Velha Pagã para que Yerma traia
seu marido com a finalidade de engravidar ou mesmo de sair do casamento que não a faz feliz. Mesmo
que o adultério fosse uma possível solução para seus problemas, Yerma não chega a cogitar trair o
marido.

191
da Espanha, onde, cada dia mais, o fascismo disputava espaço e ganhava adeptos em

muitos setores da sociedade.

As diversas faces espanholas estão expressas na obra de Lorca, mas em

Yerma podemos encontrar duas Espanhas em particular: a Espanha repressora, católica,

nacionalista, que pretendia manter a sociedade coesa sob a repressão dos indivíduos, e

uma Espanha de indivíduos que sabiam ser possíveis outras formas de vida e que

estavam sedentos de liberdade. Vivendo na primeira Espanha, Lorca, por meio de sua

obra, de sua participação no grupo La Barraca, de suas conferências e outras

participações em grupos de artistas engajados da época, lutava para a construção da

segunda Espanha. E com relação a essas distintas Espanhas, a casa de Yerma representa

a Espanha seca, castradora,na qual uma forte moral que impunha o silêncio e a

infelicidade de ter que viver a vida de uma maneira que nem sempre era a desejada.

Yerma é uma lente de aumento sobre a sociedade que tolhe as liberdades individuais,

que recruta outras mulheres, como as irmãs de João, por exemplo, que antes cuidavam

da Igreja e passavam a vigiar Yerma, para participarem do exército que vigia mais do

que as pessoas, mas seus desejos e pensamentos. As irmãs beatas de João são a

representação da vigilância exercida pela Igreja Católica, que obriga os indivíduos a

aceitarem uma vida infeliz. O autor também coloca, pela imagem da romaria pagã, que

há, quase que na clandestinidade, espaços e vivências que convidam a buscar a

felicidade e experimentar o proibido — mas o próprio final trágico de Yerma é o sinal

que o escritor fornece dos riscos que corriam aqueles que tentavam burlar as normas

sociais, em busca de algum prazer ou felicidade.

―Os ensaios foram realizados em momentos de extrema tensão em todo o

país [...] e elementos ultradireitistas, inteirados do conteúdo explosivo de Yerma,

esperavam a estreia para causar um alvoroço‖ (GIBSON, 1987, TII, p. 333). O

192
historiador Ian Gibson coloca, em sua biografia sobre Lorca, que era inevitável que a

estreia de Yerma tivesse conotações políticas e que tanto elementos dos setores da

direita espanhola quanto elementos da esquerda usassem a plateia como ―campo de

batalha‖ tendo a obra como justificativa de ambos os lados para o confronto. A

percepção de que Yerma exacerbou discursos e ânimos políticos indica que a obra

discute a sociedade e a política e que Lorca era visto como um agente político, na

medida em que suas obras desestabilizaram a ordem, mesmo que o poeta nunca tenha se

filiado a nenhum partido.

Mas, além dos elementos considerados subversivos contidos na obra e das

relações que Lorca mantinha com o governo republicano e grupos de esquerda na

Espanha, outros fatores contribuíram para a ruidosa estreia de Yerma. O jornal de

esquerda ―El Pueblo‖, de Madri, publicou, em 31 de dezembro de 1934, uma fala sobre

a estreia: ―As direitas espanholas não querem perdoar Margarita Xirgu que representara

Fermín Galán (de Rafael Alberti)46. E, por outro lado, com relação à noite de estreia,

mortificou muito os reacionários a consciência da liberdade de Manuel Azaña‖. A

escolha para o papel de Yerma da atriz catalã Margarita Xirgu, que nunca escondeu sua

relação com o movimento republicano, foi considerada tanto pela esquerda quanto pela

direita como um dos elementos políticos da estreia da peça.

O diplomata chileno Carlos Morla Lynch, que viveu em Madri durante a

Segunda República e a Guerra Civil Espanhola, foi amigo de Lorca, e fornece pistas

sobre a reação da direita espanhola à dupla formada pelo escritor e a atriz Margarita

Xirgu, escrevendo sobre a estreia: ―a manifestação hostil é direcionada, especialmente,

46
Nos anos que antecederam a Guerra Civil Espanhola, o teatro teve importante papel propagandista,
sendo usado tanto pelo bando republicano quanto pelos nacionalistas. Rafael Alberti foi um dos
escritores que se posicionaram mais claramente a favor da República e sua peça Fermín Galán (1931),
que conta a vida do militar republicano que dá título à obra, é a peça símbolo do teatro propagandista da
Espanha republicana dos anos de 1930.

193
contra a insigne atriz pela hospitalidade brindada ao ex-chefe do Governo47 [...]. Guerra

contra ela, pelos motivos expressados, e guerra contra Federico porque é jovem e

triunfante‖ (apud GIBSON, 1987, t. II, p. 335). Carlos completa a descrição contando

que o alvoroço na platéia, causado pelos representantes da direita espanhola, foi

tamanho que gerou protestos daqueles que estavam de acordo com os ideais

republicanos, e tal situação obrigou Xirgu a interromper a peça. A apresentação foi

retomada só depois da entrada da força pública, que expulsou aqueles que

importunavam a estreia.

Os dias que se seguiram ao fato foram cheios de comentários, tanto à peça

quanto ao incidente. As Espanhas divergiam sobre a estreia e os jornais da época

retrataram o fato. Tanto os periódicos de direita, quanto os de esquerda, não ignoraram

o impacto de Yerma e ressaltaram, com suas notícias e comentários, a importância cada

vez maior da arte propagandista, que foi uma das armas de ambos os bandos antes e

durante a Guerra Civil. El Debate, diário católico mais lido na Espanha pré-guerra,

protestou ante ―a odiosidade da obra‖, sua ―imoralidade‖, suas ―blasfêmias‖48. Outro

jornal direitista da época, o Informaciones, escreve que ―a comédia é francamente

ruim‖, e completa que ―alguns espectadores sentiram afetados seu bom gosto e

exteriorizaram seu protesto‖49. Já ―La Nacion‖, periódico também de postura

nacionalista, dirige sua crítica diretamente ao autor, dizendo aos leitores que ―García

Lorca desvirtua toda crença quando paganiza a força de uma convicção hispana, que

induz a preces a Deus e que acarreta funestas consequências terrenas‖50.

O jornal conservador ABC nos mostra a preocupação da sociedade

espanhola que a obra de Lorca representa, principalmente no que diz respeito aos

47
Morla Lynch se refere a Manuel Azaña, citado na nota do jornal El Pueblo.
48
El Debate, Madri, em 3 de Janeiro de 1935.
49
Informaciones, Madrid, 31 de dezembro de 1934.
50
La Nacion, Madrid, 31 de dezembro de 1934.

194
51
―muitos momentos de sensualidade franca e descarada‖ que a obra leva ao palco,

momentos da obra que certamente foram recriminadas pela moral católica e

nacionalista. La Confraría delApio, revista da época, em poucas frases nos descreve

como foi a estreia de Yerma — e provavelmente tais palavras refletem a opinião de

vários setores da sociedade espanhola da época: ―Era uma cena repugnante. Tão

repugnante quanto as frases e cenas da obra, repulsivas, vulgares, contrárias à dignidade

humana e, consequentemente, à própria arte. Nenhuma mulher decente pode assistir a

obra, que se enquadra no Código Penal, porque com ela é cometido o delito de atentado

ao pudor‖52.

Estes fragmentos de notícia são apenas alguns dos exemplos de como os

setores conservadores da Espanha receberam Yerma, e dão pistas muito claras do modo

de pensar desta parte da sociedade. Os jornais cumpriram sua função de não apenas

difundir a notícia da estreia da peça, mas de formar opinião sobre o que deveria ser

recusado não só em Yerma, mas em diver sas manifestações artísticas que trabalhavam a

favor dos ideais republicanos. O perigo que tais obras de arte representavam era muito

claro e devia ser combatido com severidade, com o ―Código Penal‖, como diz a revista

La Confraría delApio, por ser a obra ―repugnante‖, ―contraria a dignidade humana‖ e à

arte em si. A sensualidade ―franca e descarada‖, segundo o jornal ABC, que a obra leva

à cena, ou as ―imoralidades‖, ―paganismos‖ e ―blasfêmia‖, como descrevem El Debate

e La Nacion desafiavam o catolicismo espanhol, o que acarretaria ―funestas

consequências terrenas‖. Ou seja, os noticiários sinalizam claramente porque a obra de

Lorca causou tanto ruído e sublinham os elementos contidos na obra que deveriam ser

combatidos tanto na arte quanto nos indivíduos. A maneira com a qual a ala

conservadora da Espanha recebia a arte que ela considerava propagandista está bem

51
―Informaciones y noticias teatrales. En Madrid. Español: Yerma‖ emABC, Madri, 30/12/1934.
52
Do arquivo do ―Centro de Estudios Lorquianos‖, transcrito em GIBSON, 1987; p 338.

195
expressa nos exemplos acima, indicando o clima de ameaça tanto social, religiosa e

jurídica (via Código Penal) no qual vivia o país nos anos que antecederam a guerra.

Enquanto os jornais de direita condenavam Yerma, seu autor e atriz, os

jornais de esquerda se posicionaram a favor da obra, divulgando notas elogiosas àqueles

que, mesmo que indiretamente, usavam sua arte como agente político. Dentre o que foi

publicado pela imprensa esquerdista, uma notícia merece destaque, não por ser a favor

de obra, mas pela leitura que fez dela. A revista Tiempo Presente escreve, em março de

1935: ―esta obra de saudável realismo, de linda simplicidade, sinceridade e de

revaloração de nobres funções do corpo humano, representa um passo decisivo para

nossa liberação do atraso medieval que segue nos oprimindo"53. O relato do jornal

expressa os elementos mais atraentes — e perigosos! — da peça, e em poucas palavras

expõe o choque entre a busca de uma nova Espanha, que quer sair do ―atraso medieval‖,

como foi dito, mas que ainda se encontrava sob a criação e governo da coroa e da cruz.

Aqueles que afirmam que Federico Garcia Lorca não se interessava por

política (tema que será tratado em outro capítulo) ignoram, além de aspectos de sua vida

pessoal, todo o conteúdo direto e metafórico contido em sua obra, e em especial Yerma.

Uma leitura da peça que ignore o contexto sócio-político da Espanha de 1930 pode levar

a um olhar de viés exclusivamente psicanalítico ou que priorize o tema do conflito da

mulher que não pode satisfazer sua vontade de ser mãe. Assim, é importante perceber

que há espaço para uma análise que leve em conta o fato de a sociedade espanhola da

época estar cada vez mais polarizada — polarização que desencadearia na Guerra Civil

Espanhola — e que tenha em conta a importância social que Lorca via na arte.

―Putrefatos‖. Era esse o termo usado por Lorca, junto com Dalí e Buñuel,

para se referir àqueles que criticavam sua obra, referindo-se à putrefação moral e

53
―Yerma, de García Lorca, en el Español‖, Tiempo Presente, março de 1935.

196
espiritual da sociedade espanhola (JOHNSTON, 2004). O poeta, ao longo de sua obra,

fez críticas ao apodrecimento da civilização, resultante da tensão criada pela ideia de

pecado e as advertências dos códigos morais. No caso de Yerma, a putrefação da

sociedade espanhola está representada no matrimônio reduzido à simples aceitação do

intercâmbio contratual da sexualidade feminina por alguns direitos de família e nome. É

assim que se dá a relação entre João e Yerma. E, mais do que a crítica aos casamentos e

o que eles representam dentro das normas sociais, o autor cria em Yerma um espelho da

Espanha de 1930: um país dividido em muitos, Espanhas que se mostravam cada vez

mais distantes umas das outras, enfrentando-se com forças ideológicas e bélicas cada

vez mais violentas, uma sociedade que se construiu sobre relações de dominação.

Yerma é um dos personagens que levam à cena a luta pela liberdade que o autor

também travou em sua vida, que o poeta via necessária em sua Andaluzia que expulsou

árabes no século XV, que massacrava ciganos e que seguia uma vida de costumes

medievais.

Das relações de poder do dia a dia, Lorca extraiu elementos para compor em

suas obras as críticas à sociedade. A liberdade é, sem dúvida, um dos grandes temas das

obras do autor que encontrou, na Espanha do início do século XX, um cenário político

de totalitarismos servindo de palco para os confrontos entre o controle da vida e da

sociedade e a luta pela liberdade. Alguns de seus familiares e amigos afirmam que o

poeta não se interessava pela política, não era sensível ao franquismo que se instaurava

na Espanha, e entendem o fato de Lorca não se filiar ao bando republicano como uma

tomada de postura apolítica. Mas é importante ver que nas obras do autor há a expressão

da luta por uma liberdade em choque com a sociedade castradora. E essa liberdade era o

que fazia com o que o autor não se ligasse oficialmente a nenhum dos grupos, aos

republicanos, aos socialistas, comunistas, anarquistas, aos artistas surrealistas e, muito

197
menos, ao bando franquista — no qual Lorca tinha amigos poetas. A postura do poeta

foi muito clara: a de não ignorar os rumos da Espanha e expressar o conflito que se

anunciava. Conflito civil que eclodiu na guerra da qual Lorca foi uma das primeiras

vítimas.

198
Capítulo 5

O cárcere de Bernarda Alba

199
O manuscrito de A casa de Bernarda Alba foi finalizado em 19 de junho de

193654, dois meses antes da possível55 data da morte de García Lorca. O autor não

chegou a ver a peça montada. Bernarda Alba foi pela primeira vez encenada em março

de 1945, no ―Teatro Avenida‖ de Buenos Aires, pela companhia de Margarita Xirgu. Na

Espanha, a montagem da peça só foi liberada pela censura franquista em 1964, e mesmo

assim com pequeno número de apresentações56. Para muitos críticos, essa obra completa

a trilogia rural espanhola de García Lorca. Tal trilogia foi anunciada pelo próprio autor,

em entrevista dada ao jornalista Jose Serna, do Heraldo de Madrid:

Bodas de Sangue é a primeira parte de uma trilogia dramática da terra


espanhola. Estes dias estou, precisamente, trabalhando na segunda,
ainda sem título, que entregarei a Xirgu. Tema? A mulher estéril. A
terceira está amadurecendo agora dentro do meu coração. O título será
La destrucción de Sodoma (LORCA, 2008, V. VI: p. 542).

A trilogia seria constituída pelas obras Bodas de Sangue, Yerma e La destrucción de

Sodoma (ou Las hijas de Lot), porém esta última ficou inacabada, e A casa de Bernarda

Alba passou a ocupar o terceiro lugar da trilogia anunciada por Lorca.

Pode-se pensar que A casa de Bernarda Alba, ou o drama das mulheres dos

povos da Espanha complete o conjunto dramático lorquiano principalmente pela crítica

que faz à sociedade espanhola, abarcando o drama de mulheres em várias aldeias da

Espanha, como denota o subtítulo da obra. Uma mulher, Bernarda Alba, é a

protagonista do enredo, como anuncia o título, da mesma maneira como em Yerma, mas

em Bernarda Alba há nove personagens femininas em cena, nenhum homem em ação, e

toda a sociedade espanhola da época sendo discutida. Em sua ultima obra, o escritor usa

54
Data escrita por Lorca junto a sua assinatura, sendo então considerada a data de finalização da peça.
55
Supõe-se que Lorca foi morto em 18 de agosto de 1936, segundo documentos da época referente às
prisões e fuzilamentos do período da Guerra Civil Espanhola. Porém, como até hoje não foi encontrado
o corpo do poeta, não é possível afirmar com plena certeza o que lhe aconteceu, muito menos a exata
data de seu falecimento.
56
Não passando de 150 apresentações, quando o normal era uma média de 500 apresentações, como nos
informa Eutímio Martin em ―Antologia Comentada‖.

200
diálogos muito mais secos e cortantes do que nas peças anteriores e, além disso, em

Bernarda Alba não há o uso de poesia, o que rompe com o estilo do autor de mesclar

elementos poéticos em meio à sua obra dramática.

Mãe, cinco filhas, governanta, criada e avó. Nove mulheres e uma casa com

paredes que, de tão brancas, têm tom azulado, brancor que contrasta com o negro do

luto que marca a obra desde o início. Toda a peça acontece no interior da casa de

Bernarda Alba, a matriarca de 60 anos que vive com suas cinco filhas solteiras

(Angústia, Madalena, Amélia, Martírio e Adela), sua mãe (Maria Josefa) e as duas

empregadas (a Criada e Pôncia, a governanta). Devido à morte de seu marido, Bernarda

impõe às filhas um severo luto que lhes impede de saírem de casa por oito anos,

segundo reza a tradição familiar. A peça se desenrola em diálogos que expressam a

profunda infelicidade e o descontentamento das personagens que procuram, cada uma à

sua maneira, uma forma de sobreviver à vida imposta pela mãe. Bernarda se coloca não

só como a dona da casa, mas também como dona da vida, anseios e desejos de todas as

pessoas que nela habitam. Assim, cada personagem responde de maneira distinta à

tirania da matriarca, mostrando ao espectador diferentes modos de reagir à repressão.

Na peça, é desenvolvido um forte cenário de opressão similar ao que

experimentava a sociedade espanhola pré-Guerra Civil. Por outro lado, Federico

também buscou em situações familiares elementos que dão, de diferentes maneiras,

formas e vida ao drama. O historiador Ian Gibson, em seu livro Federico García Lorca,

conta que os pais de Lorca tinham uma casa e alguns parentes na aldeia de Asquerosa

— vilarejo que hoje leva o nome de Valderrubio — local no qual, além de viver três

anos de sua infância (1906 – 1909), o poeta passou numerosos verões. Em Asquerosa,

alguns parentes de Lorca eram vizinhos e dividiam um poço com uma mulher chamada

Frasquita Alba Sierra, que, segundo relatos, era uma mulher de forte personalidade. Na

201
área de uso comum, onde ficava o poço dividido por Frasquita Alba e os parentes de

Lorca, era possível ouvir — sem ser visto — tudo o que era dito em alguns pontos das

casas, e era nesta situação em que os parentes e o próprio Federico se inteiravam do

império que Frasquita Alba exercia sobre sua família — apesar de os relatos também

dizerem que tal império foi consideravelmente exagerado na obra.

Andrés Sorel (1998) transcreve uma declaração feita por Lorca, em 1936,

que se refere à vizinhança de Asquerosa e a criação de sua última obra teatral:

na casa vizinha e colimitada a nossa, vivia a ‗dona Bernarda‘, uma


viúva de muitos anos que exercia uma inexorável e tirânica vigilância
sobre suas filhas solteiras. Prisioneiras privadas de todo arbítrio,
nunca falei com elas; mas as via passar como sombras, sempre
silenciosas e sempre vestidas de negro... havia no confim do pátio um
poço meeiro, sem água, e a ele descendia para espiar essa família
estranha cujas atitudes enigmáticas me intrigavam. E pude observá-la.
Era um inferno mudo e frio nesse Sol africano, sepultava as pessoas
vivas sob a férula inflexível do carcereiro escuro (LORCA apud
SOREL, 1998, p 145).

Também havia no povoado uma governanta chamada Pôncia, porém não era

empregada de Frasquita; já Maria Josefa, a mãe louca de Bernarda, pode ser uma

referência do poeta a uma parenta afastada, de mesmo nome, cuja casa o poeta

frequentava quando era criança. Conta o irmão de Federico, Francisco García Lorca:

A velha era vitima de uma loucura erótica que aflorava em um


congruente e contínuo discurso de ritmo acelerado, cheio de
reiterações e expressado em uma voz pequena, preciosamente
timbrada [...] o automatismo de sua conversa está guardado e
poetizado na obra, e não seria aventurado pensar que alguma frase de
María Josefa verdadeira tenha passado à obra [...] (LORCA, 1981: p.
377).

Já uma das primas mais próximas de Federico, Clotilde García Picossi,

contou a Ramos Espejo que, quando era jovem, frustrada em seu desejo de mostrar o

bonito vestido que havia acabado de ganhar, devido à morte da avó, vestiu a roupa e a

202
exibiu às galinhas, para que pelo menos elas pudessem apreciar a beleza da prenda

(GIBSON, 1998, p. 441). Essa anedota familiar remete ao trecho de Bernarda Alba que

apresenta a frustração de Adela pela obrigação de guardar o luto do pai:

Martírio: E Adela?
Madalena: Ah, vestiu a roupa verde feita para seu aniversário e foi ao
curral, falando baixinho: ―galinhas, galinhas, olhem para mim!‖. Tive
que rir. (ato I)

Pode-se pensar que Lorca buscou em Asquerosa, e em sua própria família,

ideias para suas obras, mas também se pode imaginar que o poeta cria detalhes e

aumenta alguns pontos, mesmo que tenha dito que eram reais, como o fez para alguns

amigos para os quais leu A casa de Bernarda Alba. A viuvez de Frasquita, por exemplo,

é uma invenção do escritor, pois esta morreu antes de seu marido, mas Lorca mantinha a

versão de que Frasquita Alba era viúva e que tiranizava suas filhas quando contava a

estória para seus amigos de Madrid (GIBSON, 1987: p. 440).

O ambiente exclusivamente feminino na casa dos Alba de Asquerosa é outro

fruto da imaginação do poeta, pois Frasquita e seu marido tiveram filhas e filhos. Um

fato curioso da casa de Frasquita foi o casamento da filha mais velha, Amélia, com José

Benavides Peña, conhecido como Pepicoel de Roma, pois era do vilarejo vizinho,

Romilla ou Roma la Chica. Porém, Amélia morre, e José se casa com outra das filhas de

Frasquita, Consuelo, e esse fato talvez seja a referência do dramaturgo para a criação do

triângulo amoroso entre Angústia, Pepe Romano — cujo nome lembra demasiadamente

a Pepicoel de Roma — e Adela, em Bernarda Alba. As coincidências entre a obra e a

vida em Asquerosa daqueles tempos são tão gritantes que a mãe de Lorca lhe pedia

insistentemente que mudasse o sobrenome da família de Bernarda (GIBSON, 1987: p.

441) na tentativa de evitar a clara relação entre as Alba da peça e os Alba de Asquerosa.

Outra prima de Lorca, Mercedes Delgado García, que vivia em Asquerosa, conta que os

203
Alba, descontentes com a obra A casa de Bernarda Alba, deixaram de cumprimentar a

família de Federico (ROJAS, 1980, p. 187).

Lorca não mudou o sobrenome da família que serviu de inspiração para

criar a da peça, e muito provavelmente pelas convenientes conotações simbólicas do

sobrenome, utilizadas em muitos momentos, como o intenso branco dos grossos muros

da casa que habita Bernarda, que expõem a honra imaculada que a matriarca queria

aparentar, ou sua fixação pela limpeza e pureza impostas a casa e às pessoas que nela

vivem. A busca de Bernarda pelo branco é quase obsessiva, tanto de maneira concreta

— na exigência da casa sempre muito limpa — quanto de maneira simbólica, exigindo

uma conduta moral imaculada de todas as suas filhas. O branco está na cor das paredes

da casa, dos muros, do solo, das anáguas (ato III), na cor do cavalo e na juventude de

Adela ("não quero perder minha brancura nesses cômodos", ato I). Se A casa de

Bernarda Alba é um ―documentário fotográfico‖, como o próprio autor define em suas

orientações no início do texto dramático, a imagem dos povos brancos — como são

conhecidas as pequenas cidades do mediterrâneo — se forma de maneira contundente

na descrição da casa de Bernarda. As casas mediterrâneas, acaloradas pelo Sol quase

africano da Espanha, se caracterizam por ostentarem o branco, cor que reflete todos os

raios luminosos, não absorvendo nenhum, espelhando tanta claridade que chega a cegar

nos dias mais iluminados. O branco, que é todas as cores presas, sem absorver os raios

luminosos, é a própria casa de Bernarda, que contém tantos sentimentos aprisionados,

mas não absorve o que vem de fora. E assim a peça é toda alva, alba, não só pela cor ou

pela virgindade, mas também no jogo criado na relação branco-vida/preto-morte, sendo

a cor preta diretamente ligada à morte pelo luto da morte do marido de Bernarda. Como

em outras peças de Lorca, as cores não têm função simplesmente plástica, mas

caracterizam situações e personagens.

204
Aprisionamentos

A casa das Alba não é apenas o cenário da peça, mas na verdade se converte

em uma das personagens, disputando com Bernarda — inclusive no título — o papel de

personagem central. A casa acumula especial importância, ora impondo condições e

situações às mulheres que nela vivem, ora sendo uma metáfora do sentimento destas.

Um exemplo disso é a fala de Pôncia para a matriarca: ―Vê este silêncio? Há uma

tormenta em cada quarto‖ (ato III). A governanta se refere às filhas de Bernarda, mas

para tal, usa a casa como a portadora das tormentas, ao invés de falar diretamente das

personagens. Outro exemplo do caráter antropomorfo da casa é quando Adela fala da

tirania de sua mãe, mas não o faz de maneira direta e sim relacionando sua vida com a

casa: "eu não quero ficar trancada. Não quero que minhas carnes fiquem como as de

vocês. Não quero perder minha cor nestes quartos‖ (ato I). Os estados da casa

expressam sentimentos e caracterizam o que acontece na obra, assim como as outras

personagens.

As filhas e a mãe de Bernarda vivem como prisioneiras em um cárcere,

isoladas de um mundo com o qual seu único contato é através de frestas de janelas,

sempre submetidas à vigilância ―canina‖ da matriarca. A identificação simbólica da casa

com o cárcere pode ser vista como uma referência também à Espanha às vésperas da

guerra civil, que eclodiu no mesmo ano em que o dramaturgo escreve a peça. Nesse

contexto, o encarceramento ao qual são submetidas as moradoras da casa se refere à

situação política espanhola que se configuraria na guerra que matou Lorca e que

resultou na ditadura do General Franco. A relação entre casa e cárcere é reafirmada com

a postura ditatorial de Bernarda, como veremos adiante, e o que deveria ser um espaço

205
de liberdade para os indivíduos torna-se um lugar de reprodução da coerção social, de

sufocamento das vontades pessoais pela sociedade e suas normas de conduta.

A casa não é apenas o local de um confinamento físico, como coloca Adela,

mas também pode ser caracterizada como um convento. O aprisionamento dos

sentimentos e a relação entre casa e convento é enunciada pela personagem da Pôncia:

―O destino confinou-me a este convento‖ (Pôncia, ato II). O convento aparece em outras

obras de Lorca, como em seu primeiro livro, Impresiones y Paisajes57, no qual o escritor

coloca suas primeiras impressões sobre a vida reclusa dedicada à religião, e as paisagens

descritas também poderiam servir para descrever a casa e os sentimentos que nela

habitam. Em um subcapítulo de Impresiones chamado ―Clausura‖, Lorca descreve o que

vê: ―Há solenidade humilde, austeridade angustiosa, e silencio de inquietude nestas

estâncias. Tudo calado à força. [...] Nada se ouve‖ (LORCA, 2008 , VI, p. 94).

Austeridade, angústia, inquietude... Tudo calado à força. Apesar de o escritor estar se

referindo a um mosteiro, tal descrição serve para a casa de Bernarda Alba. Do relato de

Lorca de que ―nada se ouve‖, poderíamos ouvir os gritos de Bernarda impondo silêncio

às suas filhas.

A relação entre casa e convento traz em si símbolos presentes no segundo

que são exigidos pela primeira. A cor branca dos muros grossos da casa pode aludir a

um sentimento religioso, mas além disso, o branco refere-se à pureza e à castidade

imposta pela mãe às suas filhas com importância obsessiva, como fica claro na última

fala de Bernarda, frente ao suicídio de Adela58. Seja como forma de prisão, seja como

um convento, o confinamento das filhas e da mãe de Alba cria a relação dentro/fora de

57
Impresiones y Paisajes é um relato das impressões que Lorca teve de sua Espanha em uma viagem por
grande parte do território do seu país, ainda na época em que vivia em Granada. Impresiones y Paisajes
foi escrito entre os anos de 1916-1917.
58
Ao ver a filha morta e frente aos prantos das outras filhas, Bernarda diz: “e eu não quero choro. É
preciso encarar a morte de frente. Silêncio!... Adela, a filha mais nova de Bernarda, morreu virgem”.
(ato III).

206
forma análoga à de Yerma, mostrando que tal dicotomia é de fato um elemento

importante em sua obra. Em ambas as peças, a casa serve como espaço de confinamento

para mulheres que acabam vendo o mundo exterior como espaço de liberdade, enquanto

os ―carcereiros‖ (João, marido de Yerma, e Bernarda) veem, de diferentes pontos de

vista, o espaço público como um perigo ao qual tanto Yerma quanto as personagens de

Bernarda Alba não podem ser expostas.

Como já foi dito anteriormente, Lorca comete alguns exageros em Bernarda

Alba, e a relação dentro/fora, anunciada desde o título da peça, é um desses exageros,

tirando toda a caracterização da casa como um lar, aproximando-a quase que

completamente de um confinamento. As filhas de Bernarda no início da obra são

condenadas a um luto de oito anos, no qual não podem sair para o mundo, nem o mundo

pode ter acesso ao espaço interno da casa, como anuncia Bernarda em uma de suas

primeiras falas: ―Nos oito anos que durar o luto, não entrará nesta casa a brisa da rua.

Faz de conta que tapamos com tijolos as portas e janelas. Foi assim na casa do meu pai

e na casa de meu avô‖ (ato I). A matriarca mantém a tradição, sem reflexão e sem

crítica, e cobra a mesma postura de suas filhas, e para a falta de reflexão, o isolamento

se faz fundamental.

Em nenhum momento da peça as personagens têm acesso ao mundo exterior

a casa, e mesmo a vista da rua pela janela só é permitida às empregadas. Bernarda não

quer que as filhas saiam para o espaço público, e também não quer que o mundo externo

saiba o que acontece em seus domínios59. O cerceamento que Bernarda impõe às filhas

remete à sensação de sufocamento que se sentia na Espanha entre 1934 e 1936, anos que

antecederam a Guerra Civil Espanhola. Desconhecendo as possibilidades múltiplas que

outros mundos oferecem, é de se esperar que a diversidade de pensamentos e atitudes

59
Referência à relação com Frasquita, a vizinha de Asquerosa, que era percebida pelo pátio do poço,
como foi dito anteriormente.

207
seja diminuída ou aniquilada. Como diz a personagem Adela, ―há coisas fechadas atrás

dos muros que não se pode mudar porque ninguém as ouve‖ (II, 2ª).

O isolamento manteria a vida das moradoras seguindo apenas o curso ditado

por Bernarda, e Adela mostra com essa fala que percebe que não apenas ela e suas irmãs

ficam dominadas pela prisão imposta pela mãe, mas as influências externas também,

pois se ignora o que acontece atrás dos muros de Bernarda. Assim, é constituído um

confinamento eficaz e sólido: cortando o conhecimento não apenas daqueles que estão

cerceados, mas mantendo na ignorância os que estão fora. Em Bernarda Alba, assim

como em Yerma, a casa é o espaço do aprisionamento, da vida não vivida, enquanto o

espaço público se constrói como o lugar que reluz a esperança da busca pela liberdade.

Mas, ao contrário de Yerma e Bodas de Sangue, nas quais a morte espera as

personagens na rua, em Bernarda Alba a morte invade a casa de forma tão avassaladora

quanto a paixão que Adela sente por Pepe.

Em Bernarda Alba, a dicotomia dentro/fora traz em si a dicotomia que se

repete em muitas obras de Lorca: a separação do espaço sagrado e do espaço profano.

Nessa relação entre sagrado e profano, na qual os muros da casa fazem a fronteira entre

os dois mundos, vemos que, se o espaço privado mata as filhas e a mãe de Bernarda por

lhes tolher vontades, forças e instintos, é ao mesmo tempo para a matriarca o espaço da

salvação, enquanto o mundo fora da casa é a perdição. Seguindo o exemplo dos

santuários, Bernarda consagra sua casa como um espaço de pureza religiosa, e aqui

encontramos mais um elemento que explica a obsessão da matriarca pelo branco em sua

casa, certamente igualando-a a um templo imaculado. A construção da casa como um

santuário implica necessariamente a transposição da rua como um espaço sujo, de

pecado, tão atraente quanto este. As filhas de Bernarda em nenhum momento saem à

208
rua, mas durante toda a peça a buscam, mesmo que em tentativas de ouvir o que se

passa fora da casa ou quando espiam o mundo por frestas.

O conflito de Bernarda Alba se estabelece no espaço doméstico e familiar,

um espaço de mulheres que se odeiam e que se vigiam para que nenhuma escape da

infelicidade que também é vivida pela outra. Na casa-cárcere-convento, as ações vão

mostrando ao espectador que esse espaço privado não é tão protegido, tão hermético e

sacro quanto Bernarda pensa. No papel da matriarca, o escritor coloca sua visão do

poder ditatorial, mostra a cegueira que toma conta de Bernarda que, com os olhos

apenas em seu poder, não percebe outras forças silenciosas tão poderosas quanto seus

punhos fortes e fechados da matriarca, as quais vão tomando conta das mulheres

dominadas.

As janelas têm especial função na peça, pois são o elo entre as mulheres da

casa e o mundo externo, e por isso mesmo um elemento que preocupa a matriarca.

Bernarda sabe que pelas janelas chegam inúmeros sinais que ecoam com timbre ainda

mais grave do que as badaladas dos sinos das igrejas, que ressonam dentro das paredes

dos quartos e das cabeças de suas prisioneiras, afrontando o poder da matriarca. Ao

longo da obra, as personagens não escondem que trocariam a vida alba por outra cheia

de cores, e na impossibilidade de sair, tentam atrair o mundo para dentro de casa através

das janelas. Um exemplo disso é o relato de Martírio, que esperou por Enrique na

janela, de camisola (ato I), ou quando Adela se coloca, seminua, com a luz do quarto

acesa e a janela aberta quando Pepe passava pela rua (ato III). Desobedecendo as ordens

da mãe, as duas filhas de Bernarda lutavam com o que tinham para atrair o mundo que

as atraía fortemente.

Assim, os espaços de dentro e de fora se impõem não pela constituição

física da casa, mas por ser quase intransponível o asfixiante ―dentro‖, e inalcançável a

209
liberdade do ―fora‖. Enquanto a casa se constitui como um cárcere, Bernarda se coloca

como um guarda, mas ignora — ou finge ignorar — que não pode controlar o que

acontece ―dentro dos quartos de sua casa‖, ou seja, dentro de suas filhas. E, como

sentencia Lorca em análise de outros corpos aprisionados em um mosteiro:

estes homens sepultam aqui seus corpos, mas não suas almas. A alma
está onde ela quer. Todas as nossas forças são inúteis para arrancar-lhe
de onde se crava. Além disso... O que nós sabemos dos desejos de
nossa alma? […] Choram os olhos, rezam os lábios, se contorcem as
mãos, mas é inútil; a alma segue aprisionada, e estes homens [...]
deviam compreender que eram inúteis as torturas da carne quando o
espírito pede outra coisa (LORCA, 2008, VI, p. 94).

À beira de ataques de nervos

Apenas mulheres. Em A casa de Bernarda Alba não há nenhum homem em

cena, mas a ―ameaça masculina‖ é tão latente e constante quanto a força que Bernarda

faz para que sua casa se converta em um convento. Certamente, quanto mais a matriarca

tenta afastar os homens e os ―perigos‖ que eles representam, mais eles se aproximam de

sua casa, seja pela curiosidade que a casa desperta nas vizinhanças, seja pela vontade

que suas moradoras expressam de ter contato com o mundo externo. A peça começa

com a morte do único homem que morava na casa, o segundo marido de Bernarda e pai

de quatro de suas cinco filhas. Junto com o luto, a matriarca inicia a ditadura à qual

submeterá todas as moradoras da casa, ressaltando o desespero das filhas e da mãe de

Bernarda em busca da liberdade.

210
Mesmo não aparecendo em cena, os diálogos da peça tornam a presença

masculina constante: falam sobre o patriarca recém-falecido, sobre os homens que

conversam na rua, sobre o cavalo ―garanhão‖, e com grande frequência, sobre os

pretendentes das filhas, como é o caso de Enrique e principalmente de Pepe Romano.

Esse último, que será o pivô de todos os desentendimentos entre as filhas de Bernarda,

em nenhum momento aparece em cena, mas está presente durante quase toda a obra nos

diálogos das mulheres, convertendo-se num espectro-vivo tão poderoso quanto o foi o

pai de Hamlet60. Pepe, noivo de Angústia, tem Adela como amante e é a paixão de

Martírio. Mesmo que a entrada de Pepe na casa seja proibida, ele está mais dentro dela

do que a própria Bernarda, pois povoa não com o corpo, mas com sua força masculina,

com o que representa para três das cinco filhas da matriarca.

As filhas de Bernarda apresentam fortes diferenças de personalidade e de

conduta. Suas vozes compõem um discurso coletivo que oscila entre opressão e desejo

de liberdade. Cada personagem leva à cena uma maneira de agir face à imposição do

cativeiro por Bernarda; cada mulher reage de um modo ao conflito gerado no encontro

dos desejos com a moral imposta pela sociedade. A figura da mãe, despótica e católica,

na peça representa este aspecto da sociedade, e o mesmo vale para a vigilância que as

irmãs exercem umas sobre as outras. Com as mulheres de A casa de Bernarda Alba, o

escritor mostra algumas das muitas mulheres possíveis, expondo relações e sentimentos

que podem se dar no âmbito doméstico e familiar, como na peça, mas que também se

aproximam à situação política da Espanha.

O historiador Ian Gibson chama atenção para a exacerbação do ambiente

doméstico e o caráter absolutamente feminino da obra de Lorca. Gibson aponta, por

60
Se o fantasma do pai de Hamlet lhe apareceu semeando a dúvida sobre a verdade que desencadeou na
tragédia de ―Hamlet‖, Pepe Romano em nenhum momento aparece, mas é visto por todas as
personagens e também é o causador não só dos conflitos, mas também do final trágico de Adela e da
peça.

211
exemplo, o fato de o poeta não haver nomeado a peça simplesmente de Bernarda Alba,

mas ao colocar ―a casa‖ no título, para Gibson, Lorca enfatiza a importância do fato de a

tirania ser exercida no ambiente doméstico. Além disso, o subtítulo da peça, Um drama

de mulheres nas aldeias de Espanha, relaciona diretamente a casa com o país de

Federico, indicando que pode haver intenção de falar da Espanha, enquanto a peça se

passa integralmente dentro de uma casa. O dramaturgo define a peça como um

―documentário fotográfico‖, e Gibson entende essa definição como um sinal de que a

obra serve como uma espécie de reportagem que ilustra a Espanha de sua época:

intolerante, sempre pronta apara esmagar os impulsos e desejos das pessoas, assim

como Bernarda faz com suas filhas, suas criadas e como suas filhas fazem entre si

(GIBSON, 1987).

Como dito acima, Pepe Romano, mesmo não aparecendo em cena em

nenhum momento, desperta a paixão de Adela e Martírio, e representa a possibilidade

de viver uma vida diferente para Angústia. Cada uma das filhas tem um anseio diferente

relacionado a Pepe, mas para todas ele é a porta de saída do convento-cárcere. Angústia,

única filha do primeiro casamento de Bernarda, é a mais velha (39 anos, segundo

Bernarda em diálogo com Pôncia), e herdou o dinheiro do pai. Por isso, é a filha com

melhor dote. No começo da peça, é revelado que Pepe está noivo de Angústia, revelação

que dá início ao conflito entre as filhas de Bernarda. As irmãs reagem de modo

negativo, cada uma a sua maneira, ao noivado de Angústia, expressando sentimentos

individuais e expondo costumes e normas sociais que o escritor tinha interesse em trazer

à tona.

Bernarda: não pergunte mais nada. E quando casar, menos ainda. Fala
se ele falar e olha para ele quando ele olhar. Assim a infelicidade será
menor.
Angústia: mãe, acho que Pepe me oculta muitas coisas.

212
Bernarda: não procure descobrir, não pergunte e, claro, que ele nunca
veja você chorando.
Angústia: devia estar alegre e não estou.
Bernarda: isso não importa (ato III).

Na fala acima, está contido o pensamento de Bernarda. A mãe ensina a filha

Angústia a se relacionar com o marido, e na verdade o comportamento que Bernarda diz

para a filha ter com o marido é o mesmo que ela é obrigada a ter com a mãe. Submeter-

se ao marido sem nenhum questionamento, aceitar que o marido lhe esconda ―coisas‖,

não demonstrando descontentamento; assim a infelicidade seria menor. Esse é o modelo

de vida de esposa em uma sociedade arcaica, patriarcal, mas também é a postura

esperada de uma população submetida a um governo ditatorial, ou a postura de alguém

que vive uma vida sem liberdade. A matriarca não espera um casamento feliz para a

filha — e talvez ela também não tenha tido casamentos felizes —, e o seu conselho na

verdade é uma ordem, pois ao se casar, a filha apenas mudará de senhor. Deixando de

obedecer à mãe para obedecer ao marido, a posição de subordinação das filhas

continuará sendo a mesma, e ao longo da vida elas seguirão tendo um senhor,

continuarão se comportando como servas à vontade do amo.

À Angústia não é dado o direito de ter gostos ou vontades, menos ainda

sentimentos, e ela deve ter consciência de que ao sair de casa deixa de obedecer a

Bernarda e passará a obedecer a Pepe. Ao ouvir a filha dizer que não está alegre com o

casamento, Bernarda responde: ―isso não importa‖. Não importa que Angústia não

esteja feliz, pois a felicidade não era a finalidade do matrimônio. Mais uma vez, o

dramaturgo coloca sua crítica à obrigatoriedade do casamento, assim como fez em

Yerma, mas em Bernarda Alba o autor não coloca nenhuma gota de esperança ou de

amor na realização do casamento. O matrimônio nada mais é do que um pacto social,

uma maneira de perpetuar o domínio de uns sobre os outros, mantendo a sociedade

dividida entre senhores e servos, e o amor em nenhum momento está relacionado ao

213
casamento. Mesmo assim, o casamento seria a única esperança das filhas de se livrarem

da despótica Bernarda, talvez na ilusão de que o novo senhor seja melhor, mas apenas

Angústia experimenta um pouco da esperança de se casar e mudar de vida.

Angústia: felizmente, logo vou embora deste inferno.


Madalena: talvez não!
Angústia: acima de tudo, mais vale dinheiro na arca que negros olhos
no rosto! (ato II)

Angústia não ignora que seu casamento é um acordo de interesses de sua mãe, e não um

desejo dela e de seu futuro marido. Mas Angústia aceita o acordo, afinal, ela também

tem seus interesses nele — sair daquele inferno e deixar de ser taxada como solteirona

—, ou seja, o casamento, por mais que não seja uma fonte de felicidade, era algo

desejado por Angústia.

Madalena é a filha que mais claramente vive na desesperança. Sem

nenhuma ilusão de mudar sua situação, ela relembra com saudosismo o passado, e ao

longo da peça faz críticas sobre o papel da mulher na sociedade: ―[...] quando crianças.

Aquela era uma época mais alegre. Um casamento durava dez dias e não havia

maledicência...‖ (Madalena, ato I). Madalena vive olhando para o passado. Na

impossibilidade de uma felicidade real, certamente ela idealiza o que passou como o

tempo e o lugar onde houve alguma felicidade. Talvez essa seja a maneira desta filha de

Bernarda sentir alguma satisfação na vida. Em outras falas, a personagem expressa que

ela não se contenta com o presente, mas também se sente infeliz por ser mulher, pela

vida que é obrigada a levar.

Madalena: Sei que não vou me casar. Prefiro levar sacos ao moinho. Tudo
menos ficar sentada dias e dias dentro desta sala escura.
Bernarda: nem parece uma mulher.
Madalena: malditas sejam as mulheres. (ato I)

214
Bernarda diz à filha que esta ―nem parece uma mulher‖, afinal, preferir

trabalhos braçais a ficar em casa não era próprio de mulher. O lugar de uma mulher era

em casa, no âmbito doméstico, e qualquer outra vida não seria adequada ao sexo

feminino. Ao ouvir que não parecia ser uma mulher, Madalena responde: ―malditas

sejam as mulheres‖, e deixa clara sua repulsa por si mesma, sua angústia por estar

encarcerada em uma vida infeliz, atada pelos papeis sociais impostos às mulheres. Ao

longo de toda a obra, podem ser identificadas suas visões sobre as pessoas, as relações

sociais, mas em algumas falas suas críticas ficam ainda mais explícitas, como no

diálogo abaixo entre Madalena e suas irmãs, onde o dramaturgo expõe a falta de

liberdade imposta pela sociedade às mulheres:

Pôncia: Os homens necessitam dessas coisas.


Adela: tudo é perdoado para eles.
Amélia: nascer mulher é o maior castigo.
Madalena: e nem nossos olhos nos pertencem (ato II)

Na fala acima, Amélia é quem mostra a infelicidade que recai como um

castigo às mulheres. Madalena completa: ―nem nossos olhos nos pertencem‖, nenhuma

liberdade ou gozo lhes é concedido. A repressão se estende para todos os âmbitos da

vida e partes do corpo das filhas de Bernarda, a elas não é dada nem a oportunidade de

contemplar o mundo ou de chorar. Seus olhos não lhes pertencem, seus corpos são

cerceados.

―Se Pepe viesse pelo aspecto de Angústia, por Angústia como mulher, eu

me alegraria; mas vem pelo dinheiro...‖ (Madalena, ato I). Madalena começa a julgar o

casamento de Angústia, afirmando que Pepe é noivo da irmã por interesse no dinheiro

do dote da filha mais velha de Bernarda, e não por Angústia de fato. Mas esse

comentário não é feito apenas por Madalena, as outras irmãs são da mesma opinião, e

essa é uma das críticas que Lorca coloca em sua peça: aos casamentos realizados como

215
negócios. O mesmo tema é tratado de forma também explícita em Bodas de Sangue,

mostrando que a obrigatoriedade do matrimônio imposta pela sociedade e seu caráter

mercantil incomodava muito o poeta. Madalena não tem esperanças de mudar sua vida e

também não demonstra ter força ativa para mudar, ela mesma, sua condição, mas em

lugar disso é composta por forças reativas que só lhe permitem queixar-se.

Martírio e Amélia são as filhas que parecem estar mais conformadas com

suas situações, não desacatam as ordens da mãe, nem expressam esperanças de que algo

em suas vidas mude. Mas isso não quer dizer que elas não tenham consciência do que se

lhes passa ou que não tenham desejos para além de suas realidades. Logo no primeiro

ato, um diálogo entre Amélia e Martírio mostra que elas não só não têm esperanças de

sair dessa situação, mas também sabem como funcionam as normas sociais:

Amélia: não sei se é melhor ter um noivo ou não.


Martírio: dá no mesmo.
Amélia: a culpa toda é desta crítica que não nos deixa viver... (ato I)

Neste diálogo as irmãs comentam sobre uma vizinha que parece ter perdido

a alegria depois que ficou noiva, e frente a isso, Amélia fica em dúvida se é melhor ter

noivo — e a possibilidade de sair daquela vida que era cheia de desesperança — ou se

ter noivo seria ainda pior, e Martírio responde: não há diferença. Ela sabe que, a elas,

sempre será permitida apenas a submissão a algo ou alguém, seja a submissão à mãe,

como no caso delas, seja ao marido. Amélia completa com lucidez que ―a culpa é da

crítica‖ que não as deixa viver, crítica imposta tanto dentro da casa quanto fora, ou seja,

a culpa é dos olhos, bocas e ouvidos alheios, que sempre estarão a postos para julgar

ações e sentimentos. Martírio e Amélia recebem o mundo com, para usar palavras de

Nietzsche, ―o olhar pessimista enfastiado, a desconfiança diante do enigma da vida, o

gélido Não do nojo da vida‖ (NIETZSCHE, 2001, p. 56). Se nem seus olhos lhes

216
pertencem, não é de se estranhar que essa tenha sido a maneira que ‘a educação dada

por Bernarda às suas filhas leve-as a ver o mundo dessa forma.

Martírio, assim como Amélia, não tem esperanças de ter uma vida diferente,

de ser feliz, e além disso, mostra ter uma personalidade seca e ressentida, características

fundadas na não-realização de seus desejos.

Martírio: é preferível não ver nunca um homem. Desde criança, tive


medo deles. Eu os via no curral jungir os bois e levantar os fardos de
trigo entre gritos e pontapés e sempre tive medo de crescer e
encontrar-me de repente abraçada por eles. Deus me fez frágil e feia,
apartando-os definitivamente de mim.
Amélia: Não fale assim. Enrique Humanes esteve atrás de você. Não
gostava dele?
Martírio: invenção das pessoas! Uma noite fiquei de camisola na
janela até de manhã porque me avisou pela filha de seu peão, que viria
e não veio. Foi tudo boato. Logo se casou com outra que era mais rica.
Amélia: feia como um demônio!
Martírio: que importa a feiura. Para eles, importam a terra, as juntas e
uma cadela submissa que lhes dê de comer. (ato I)

Há uma carga erótica na fala de Martírio, no ―medo‖ que ela sempre sentiu

dos homens, ao imaginar-se abraçada por eles. Os instintos que não se descarregam para

fora, inevitavelmente se descarregam para dentro, como pensou Nietzsche (2001), pois

os instintos são forças vivas, dinâmicas, que sempre buscam se expandir para além dos

corpos. Quando descreve seu medo dos homens, Martírio expressa sentir muito mais

atração do que repulsa, o que faz duvidar um pouco do tal medo que ela diz que sempre

sentiu. Mais parece que Martírio diz temer os homens para mascarar a frustração de não

ter sua atração satisfeita. Na impossibilidade de realizar suas vontades, Martírio joga nas

mãos de Deus a culpa pelo afastamento dos homens, pois Deus a fez feia, frágil, sem

dote, e por isso rejeitada e infeliz. Martírio diz ter se interessado por Enrique, no diálogo

acima, e adiante revela que deseja Pepe, o que reafirma a ideia de que na verdade ela

217
não tem medo, mas sim muita atração pelos homens, mas não assume seus desejos e sua

frustração.

Segundo Martírio, Enrique se casou com a feia que tem mais terras, e ela

mesma sentencia: o que importa não é a noiva, mas o que ela possui em bens materiais e

a submissão da dona do dote. E tanto Martírio quanto as irmãs estão prestes a ver se

realizar, mas agora em sua casa, o casamento da mais feia, porém a mais rica das filhas

de Bernarda. Martírio se conforma com sua situação, não esboçando nenhuma atitude de

mudança, mas ao longo da peça ela vai mostrando ter força reativa, desde chamar de

medo a atração que sempre sentiu pelos homens, passando pelo ato de roubar o retrato

de Pepe, já noivo de Angústia, até o final da peça, quando entrega para a mãe o caso de

Adela com Pepe.

Martírio: aqui não é lugar para uma mulher honrada.


Adela: está louca para tomar meu lugar (ato III)

Martírio personifica o olhar dos outros, o julgamento da sociedade que

obriga todos a manter os instintos sob controle, negligenciando as vontades,

escravizando o corpo e a mente às imposições sociais. Martírio é a filha de Bernarda

que mais claramente mostra que não apenas aceita se subordinar às regras sociais, como

faz parte do jogo, estando ao lado da mãe castradora, do ditador, da cruz e da fogueira

da Igreja Católica. Em sua força reativa, Martírio sabe que não será feliz, e sua pouca

satisfação está na certeza de que, assim como ela, ninguém será feliz.

Martírio: não me abrace! Não tente abrandar minha ira. Meu sangue já
não é mais o teu. Ainda que quisesse te ver como irmã, vejo somente
como mulher (empurra Adela).
Adela: não há mais remédio. Quem quiser se afogar que se afogue.
Pepe Romano é meu. Ele me leva para junto do mar.
Martírio: ele não vai ser teu! (ato III)

218
Martírio vê que Adela aceitava e, a partir disso, satisfazia seus desejos, mas

não permitia essa experimentação para si. E enquanto Martírio tentava se conformar

com as regras impostas, com a falta de liberdade, com a frustração de não realizar seus

desejos, Adela expunha a força que a impulsionava a ir contra as ordens de sua mãe e da

sociedade, a força da paixão proibida — e vivida — por Pepe.

Adela é a filha mais nova de Bernarda, e é comparada à Yerma e à Noiva de

Bodas de Sangue pela semelhança de postura e temperamento. A personagem se coloca

contra as imposições vindas de fora, seja esse fora o espaço público representado pelas

regras morais da sociedade, seja as normas de Bernarda e suas filhas. Adela é sem

dúvida a personagem que faz mais contrapontos na peça: na relação com Martírio, por

exemplo, Adela representa o lado oposto de um mesmo desejo, afinal, enquanto

Martírio vive a frustração do desejo não realizado, Adela não aceita a imposição de não

viver a realização de sua paixão por Pepe. Enquanto Martírio atua de maneira reativa,

roubando a foto de Pepe, noivo de Angústia, Adela tem postura ativa, e rouba a

satisfação de ter o corpo de Pepe, pois encontra às escondidas com ele. Por ter

esperança e força ativa, Adela personifica o desespero de Martírio:

Adela (aproximando-se): ele me quer. Ele me quer.


Martírio: crava um punhal em mim, se assim deseja, mas não me diga
mais nada.
Adela: por isso não quer que eu vá com ele. Não se importa que ele
abrace aquela que não quer; para mim, tanto faz. Pode estar cem anos
com Angústia, mas, se me abraça, parece terrível, pois, Martírio, você
quer Pepe também, quer sim!
Martírio (dramática): sim, eu quero! Deixa que eu diga com a cabeça
fora da máscara. Como eu quero [...]
Adela (num ímpeto, abraçando-a): Martírio, Martírio, a culpa não é
minha. (ato III)

Seguir os mandos dos desejos, em detrimento das normas sociais, é um

conflito constante na obra de Lorca. No final do trecho transcrito acima, Adela diz a

219
Martírio que não tem culpa por sua atração por Pepe. O escritor já havia perguntado em

seu poema ―Se minhas mãos pudessem desfolhar‖ (1919): ―Que culpa tem meu

coração?”, e em Bodas de Sangue a Noiva, ao falar de sua fuga com Leonardo, diz à

Mãe do Noivo: ―Eu corria com seu filho, que era como um menino de água fria, e o

outro me mandava centenas de pássaros que me impediam de andar e derramavam

geada nas minhas feridas de pobre mulher consumida, de menina acariciada pelo fogo.

Eu não queria, está ouvindo? Eu não queria‖, e essa fala da Noiva é o sentimento da

própria Adela, ou do próprio Lorca em ―Se minhas mãos pudessem desfolhar‖: corações

acariciados pelo fogo, corpos ardentes que nenhuma água fria seria capaz de abrandar.

São as paixões latejantes que não podem ser controladas nem pela sociedade, nem pelos

próprios indivíduos que têm dentro de si a pulsão da vida que não cessa. E as irmãs de

Adela são aquelas que cedem às razões externas, em detrimento das razões irracionais

de si; já estão meio mortas.

Adela é também o contraponto de Angústia. Enquanto a caçula representa o

frescor da juventude, os ímpetos da paixão e os instintos ativos, a filha mais velha de

Bernarda, beirando os 40 anos — em uma sociedade que de tão arcaica parece estar na

Idade Média — já não apresenta entusiasmos com a vida, alegria, apenas seguindo as

normas preestabelecidas. É Adela quem dá vazão aos impulsos que são reprimidos por

todas as outras mulheres da casa.

Amélia: [...] Angústia tem o dinheiro de seu pai, é a única rica desta
casa.
Madalena: [...] a parte mais obscura desta casa (ato I)

Se Angústia é a parte mais obscura da casa, como diz Madalena, Adela é a

pouca cor que ainda há na casa de Bernarda, e por isso é quem mais desestabiliza a

ordem que a matriarca impõe, é o poder de Adela contra o poder instituído pela mãe.

220
Adela é a resistência necessária para a existência do poder, brotando das camadas mais

baixas da relação de poder, surgindo silenciosamente, mas tomando conta dos espaços,

e irrompendo, como a água que entra pelas frestas, mas afoga.

Adela e Angústia, a filha mais nova e a mais velha de Bernarda,

representam antagonicamente os instintos e as vontades individuais em oposição à

dimensão social. Enquanto Angústia se prepara para o casamento arranjado graças à

herança deixada pelo pai, Adela, que não dispõe de dote, se encontra com Pepe às

escondidas, desobedecendo todas as regras sociais e familiares, não desejando ser uma

mulher casada, como ditam as normas, mas satisfazendo seus desejos, obedecendo só a

si mesma.

Adela: esse luto não poderia ter surgido em pior momento!


Madalena: logo te acostumarás.
Adela (irrompendo a chorar com ira): não vou me acostumar. Eu não
quero ficar trancada. Não quero que minhas carnes fiquem como as de
vocês. Não quero perder minha cor nestes quartos; amanhã colocarei
meu vestido verde e me largarei a passear pela rua! Eu quero sair! (ato
I)

Adela conserva o frescor da fruta madura, diferentemente de suas irmãs, que

se deixaram apodrecer antes mesmo de serem colhidas. A caçula tem consciência do

quanto destoa de suas irmãs e, desrespeitando as regras, respeita a si mesma. Não quer

que ―suas carnes‖ fiquem como as das demais. Adela não quer se conformar com a sina

de suas irmãs, não aceita a condição que lhe é imposta por Bernarda, e é quem expressa

sua ânsia de sair para a rua, na busca pela liberdade, e não cogita em nenhum momento

o casamento com Pepe, mas sim a realização da paixão por ele. Adela é a

insubordinação e a busca pela liberdade que o autor propõe em sua obra e o grito dela,

no trecho transcrito acima, que diz: ―eu quero sair‖, é o grito daqueles que não queriam

221
mais estar subordinados às amarras sociais, aos olhos e julgamentos dos outros, e em

especial, sair de uma Espanha que estava à beira do fascismo.

A ditadura, que Lorca viveu no governo de Primo de Rivera, que era uma

ameaça próxima vinda de Portugal sob o comando de Salazar, nos anos de 1930, ficava

ainda mais forte nos governos fascistas da Europa. Para o controle da sociedade, no

controle dos indivíduos, é fundamental cercear o corpo, a maneira como este se

manifesta, como este reage ao que lhe é imposto. E esse controle do corpo do outro

como meio de controlar os desejos e vontades está expresso na obra:

Adela (forte): Me deixa em paz! Dormindo ou velando, não há razão


para se intrometer! Eu faço com meu corpo o que eu quero!
[...]
Pôncia: [sobre Martírio] ela é tua irmã e a que mais te quer!
Adela: ... É sempre: ―que lástima de rosto!‖, ―que tristeza de corpo
que não vai ser de ninguém!‖ Isso não! Meu corpo será de quem eu
quiser (ato II).

O domínio sobre o corpo. Essa é uma das medidas mais importantes para a

subordinação de alguém, seja pela restrição física, seja pela mutilação simbólica que

começa pela afetação do corpo. Angústia e Martírio expressam a relação do corpo

dilacerado com suas forças dilaceradas. São mulheres infelizes que em nenhum

momento dizem vontades ou buscam a liberdade e a felicidade. A mais velha aceita o

casamento arranjado de acordo com os interesses de Bernarda e, assim, a deixar de

servir à mãe para servir ao marido, anulando-se completamente. A segunda, Martírio,

coloca seus desejos não realizados, suas frustrações, como consequência de sua

aparência não atraente.

Em oposição a ambas, Adela não aceita que lhe ditem ordens e toma para si

o governo de seu corpo, satisfaz seus desejos e não aceita os jogos sociais, afirmando

que seu corpo será de quem ela quiser. Adela é, sem dúvida, a personagem mais

222
revolucionária da peça, e de todo o teatro lorquiano, e pode ser considerada como a

continuação ou exacerbação da Noiva de Bodas de Sangue ou Yerma. A caçula de

Bernarda não fala em casamento, inclusive recusa a ideia de Pôncia de se conformar

com o casamento de Angústia com Pepe, afinal a irmã, considerada velha, não resistiria

ao primeiro parto, e assim, ―Pepe fará o que fazem todos os viúvos desta terra: casa com

a mais jovem, a mais bela‖61, como aconteceu na casa de Frasquita, fato relatado no

início do capítulo. Adela é movida pela satisfação de seus desejos e tem consciência de

que a liberdade que experimenta é um incômodo não apenas para sua mãe, a quem tem

de obedecer, mas também incomoda suas irmãs, que não conseguem, ou não querem,

deixar livres seus corpos.

Adela: [...] Não é por cima de você, que é uma criada, mas por cima
de minha mãe que saltaria para apagar esse fogo que tenho aceso entre
as pernas e a boca. O que quer que eu faça? Que me feche no quarto e
não abra a porta? Que não durma? Sou mais esperta, Pôncia! Vem ver
se pode agarrar a lebre com as mãos.
Pôncia: não me desafie, Adela, não me desafie. Porque eu posso
gritar, acender luzes e fazer com que os sinos toquem.
Adela: Traz quatro mil foguetes e acende todos em cima do estábulo.
Ninguém pode evitar que aconteça o que tem que acontecer (ato II).

Adela assume que saltaria sobre a mãe e sobre toda a sociedade que ela

representa para saciar seus desejos. Enquanto suas irmãs obedecem às normas externas,

a filha mais nova de Bernarda obedece apenas suas paixões, as irmãs trancam em seus

quartos seus desejos e suas vontades, que lhes tiram o sono, e se confundem não apenas

com suas naturezas individuais, mas com toda a natureza62. Pôncia, quando se vê

desafiada, e desafiadas, as normas sociais que ela mesma obedece, ameaça tornar

público o caso de Adela e Pepe, fazer com que os sinos toquem para que se saiba que
61
Fala de Pôncia. LORCA, 2000, p. 51.
62
Martírio: Noite passada, não pude dormir com tanto calor.
Amélia: Eu também.
Madalena: Levantei para me refrescar. [...]
Pôncia: era de madrugada e subia fogo da terra (segundo ato).

223
Adela é diferente, é uma estrangeira dentro da casa, do vilarejo, da sociedade que

mantém a todos sob severa vigilância, enquanto Adela tem a audácia de desobedecer.

―Ninguém pode evitar que aconteça o que tem que acontecer‖, diz Adela a Pôncia, não

importa que a família ou a sociedade se voltem contra ela, Adela assume seus desejos, a

força arrebatadora dos instintos, e com eles, se lança em direção ao destino trágico,

inexorável.

Adela: não aguento mais esta casa depois de haver provado o sabor da
boca de Pepe. Serei o que ele quiser que eu seja. Todo o povo contra
mim, queimando-me com seus dedos de fogo, perseguida pelas que se
dizem decentes, coroada de espinhos como fazem com as amantes de
homens casados (ato III).

Essa fala de Adela no final da peça é a entrega da personagem a tudo o que

ela anseia e que sua sociedade recrimina, proíbe, julga. Havendo provado o sabor da

boca de Pepe, Adela diz que não pode mais viver na casa de Bernarda, e isso quer dizer

mais do que a satisfação dos desejos da jovem, mas a experimentação da liberdade de

saciar suas vontades. Ao sentir o gosto da liberdade, junto com o gosto de Pepe, Adela

sabe que não pode mais ser prisioneira dos muros e das ordens da sua mãe, e que sua

insubordinação a torna alvo de toda a sociedade, que lhe julgará com regras morais, com

fogueiras simbólicas e crucifixações quase que reais. A filha mais nova de Bernarda não

apenas desobedece às ordens, mas faz o caminho, ela mesma, da luz para a escuridão,

do branco para o preto, do sagrado expresso na casa para o profano nos encontros

escondidos com Pepe, ou pensando de outra forma, uma brincadeira com o mito de

Eurídice, que tenta sair do inferno para ir para o mundo dos vivos.

Mas, assim como Eurídice não consegue sair do inferno, Adela também não

chega a sair dos domínios de Bernarda e se lança a um fim trágico: se suicida ao pensar

que Pepe havia sido morto por sua mãe. Adela se engana, Pepe havia fugido, e com

224
nesse equivoco e morte Adela se torna a Julieta da obra de Lorca, uma mulher que não

aceita viver sem sua paixão, nem sob os comandos de Bernarda. Porém, o escritor não

escreve uma tragédia baseada no amor a cria uma Julieta sem Romeu, nem há duas

famílias rivais, mas o drama das Espanhas em conflito, prestes a entrar em guerra e em

quase trinta anos de ditadura franquista.

Entre as mulheres prisioneiras na casa-cárcere, há também a mãe de

Bernarda, Maria Josefa. A anciã também vive subordinada à tirania de sua filha, que

impõe à Maria Josefa a mesma vida que impõe às filhas: vigilância severa,

aprisionamento e opressão; e tem com a mãe a mesma preocupação que tem com suas

filhas: as relações com o mundo externo a casa, os olhos, ouvidos e boca dos outros. Se

as filhas têm sua liberdade alienada por ainda serem solteiras, o caso de Maria Josefa é

outro: a mãe de Bernarda é tida como louca e assim a matriarca das mulheres também

detém poder sobre o corpo e os bens da mãe, considerada incapaz.

Angústia: Mãe, me deixe sair.


Bernarda: Sair? Só depois de tirar esse pó do rosto. Assanhada!
Espelho das tias! (Tira-lhe a maquiagem violentamente com um
lenço). Agora sai!
Pôncia: Bernarda, não seja tão inquisitiva!
Bernarda: mesmo que minha mãe esteja louca, eu estou com meus
cinco sentidos e sei perfeitamente o que faço (ato I).

O dramaturgo leva à cena a loucura como importante elemento da peça,

assim como muitos outros dramaturgos já haviam usado a loucura como recurso cênico

em tragédias e comédias desde o século XV63. Lorca teve como inspiração Shakespeare

— e como ele mesmo diz, cria a última Julieta romântica em O público — e Cervantes,

que Lorca montou com a companhia mambembe La Barraca, mas a loucura que

Federico cria difere da loucura de seus antecessores. ―Na literatura do começo do século

63
Como esclarece Foucault em História da Loucura na Idade Clássica.

225
XVII ela ocupa, de preferência, um lugar intermediário [...] ela autoriza a manifestação

da verdade e o retorno apaziguado da razão‖ (Foucault, 2005, p. 40), e é a partir desse

lugar que a loucura ocupa, que Lorca cria sua Maria Josefa.

Maria Josefa é louca desde o início da peça, faz poucas aparições, mas

estrategicamente colocadas mais no final da peça, quando o ar tenso já sufoca e exala o

cheiro de tragédia. E assim como a loucura da mãe de Bernarda não é explicada, como

se não importasse seu ponto de partida, tampouco importa seu ponto de chegada. O que

importa é o papel que a loucura de Maria Josefa tem em relação à razão imposta por

Bernarda e acatada por suas filhas. Dessa forma, a loucura da mãe de Bernarda não é

aquela que vem como castigo supremo, como última felicidade ou como meio de

salvação do mundo, mas toma a cena como crítica e detentora da verdade que ninguém

quer ver, ou não se atreve a falar. Com rápidas aparições e falas que mesclam a

realidade da casa com o imaginário da personagem, Maria Josefa anuncia os desejos que

pulsam nas filhas de Bernarda, afronta o poder da razão da matriarca com o poder de

sua loucura que, na insana coragem do louco, expressa o precioso saber que pouco tem

a audácia de ter.

Se, para Bernarda, era perigoso que o mundo fora da casa exercesse alguma

influência sobre suas filhas, com relação a sua mãe, o medo era que ela revelasse a casa

ao mundo além dos domínios da matriarca. Sob esse domínio também está a

personagem de Maria Josefa, em constante delírio sexual. Faz-se muito interessante o

recurso do escritor em colocar em cena uma mulher mais velha tomada pela loucura, e

assim, os olhos de Maria Josefa, que detêm a sabedoria dos mais velhos, que têm

elementos para ver e denunciar o que está sufocado nos quartos da casa, são os olhos do

louco que tem coragem de dizer o que pensa e vê.

226
Saber e proibição são as principais características da loucura de Maria

Josefa, e é justamente por isso que Bernarda se empenha muito para que a voz da mãe

não seja ouvida pelos vizinhos:

Bernarda: fica com ela e cuida para que não se aproxime do poço.
Criada: não tem medo que se atire?
Bernarda: não é por isso... lá as vizinhas podem vê-las de suas janelas
(ato I).

Bernarda quer ocultar o que acontece em seu domínio, com os corpos que

julga serem sua propriedade, assim como os bens da família, mas ―por um estranho

paradoxo, aquilo que nasce do mais singular delírio já estava oculto, como um segredo,

como uma inacessível verdade, nas entranhas da terra‖ (Foucault, 2005, p. 22). Nos

delírios de Maria Josefa, são entregues os segredos da casa de Bernarda, como loucura a

verdade é dita para quem puder ouvir, e a comunicação dessa verdade é uma ameaça

para a matriarca, pois é como a abertura das janelas e portas que ela zela por manter

fechadas.

O papel de Maria Josefa é importante não apenas por afrontar Bernarda, mas

por dar voz aos sentimentos das filhas da matriarca, além de dizer a verdade percebida

por Pôncia, mas ignorada por Bernarda: ―Porque nenhuma vai se casar. Nenhuma!‖

(Maria Josefa, ato I). Maria Josefa, embriagada em sua loucura, vê que nenhuma mulher

da casa vai se casar, vai sair da masmorra em que são encarceradas, vai gozar de algum

prazer ou liberdade. A velha louca sabe a prisão à qual está submetida junto com as

outras que não se casarão nunca, mas o que é considerado como loucura em Maria

Josefa também se manifesta nas filhas de Bernarda. Essas ―mulheres sãs‖ agem de outra

maneira, reprimindo suas paixões, dando vazão aos sentimentos com ações sorrateiras,

frases com segundas intenções e declarando uma guerra muda umas contra as outras.

227
Criada: é que são más.
Pôncia: são mulheres sem homem, somente isso. Nestas questões se
esquece até o sangue (ato III).

Se Maria Josefa é vista como louca por não reprimir o que pensa e o que

deseja, e no momento em que as filhas de Bernarda também demonstram o que pensam

e o que querem estas são consideradas más, afinal, é preciso encontrar uma razão para

as ações e palavras que fogem das normas sociais. Os pensamentos e desejos são vistos

como loucura ou má índole — e esta em muitas obras teatrais também deságua na

loucura. A Criada, que tem acesso superficial às relações das Alba, vê as filhas como

más, mas Pôncia, que serve Bernarda há trinta anos, percebe que são apenas mulheres

com desejos reprimidos, paixões amputadas, corpos e mentes encarcerados, mas não

domesticados.

Maria Josefa sabe que é uma das mulheres sem homens da casa de Bernarda

e, assim como as outras, tem sede de liberdade e prazer. Em diversas falas, a velha louca

expressa não apenas as suas vontades, mas as de todas as prisioneiras da matriarca. ―A

atitude das filhas frente às chamadas vindas de fora evidencia o modo angustioso como

esse dentro de casa é vivido por elas, como acontece a Maria Josefa. O verbo sair, com

esperança ou com desespero, repete-se frequentemente, obsessivamente‖ (Doménech,

2008, p. 153).

Maria Josefa: fugi porque quero me casar, porque quero me casar com
um homem maravilhoso da orla do mar, pois os homens daqui fogem
das mulheres.
[...]
Maria Josefa: não, não me calo. Não quero ver estas mulheres
solteiras, impacientes por casar, fazendo em pó o coração, e eu quero
a rua. Bernarda, eu quero um homem para me casar e ter alegria (ato
I).

228
Fugir para a orla do mar. Sair do agreste que é a vida nas secas terras do

vilarejo e da seca vida na casa de Bernarda. Maria Josefa deseja o que as outras

mulheres da casa e das vizinhanças desejam, mas ao contrário dessas, se recusa a se

calar, não aceita calar seus desejos nem seu saber. A velha vê as mulheres ―fazendo em

pó o coração‖, pois apenas com os olhos de louca pode ver o vazio da existência das

netas. Sendo esse vazio, parcial ou totalmente criado por Bernarda, essa percepção de

Maria Josefa passa a ser uma ameaça para a soberania da matriarca, pois a avó diz o que

as netas não conseguem assumir: que o que elas querem é a paixão, a vida, a água que

mata a sede insaciável da vida. A loucura não revela apenas o que há de secreto na casa

de Bernarda, mas vai além: coloca em questão os valores morais impostos pela

sociedade e pela matriarca, dilacerando suas filhas.

Mª Josefa: Eu não quero o campo. Quero as casas, mas casas abertas e


as vizinhas deitadas em suas camas com suas pequenas crianças, e os
homens fora, sentados nas cadeiras. Pepe Romano é um gigante.
Todas o querem. Mas ele vai devorar todas vocês porque são grãos de
trigo. Grãos de trigo não. Rãs sem língua! (ato III)

Maria Josefa diz o que quer e o que sabe, anunciando final sangrento e Pepe

devorando a todas, inclusive Bernarda, que é obrigada a ver que não é tão onipotente

quanto crê, que não controla absolutamente a vida de suas filhas — e a vida de Adela

escapa das mãos da Bernarda. ―Tal é a pior loucura do homem: não reconhece a miséria

em que está encerrado [...] não saber que parte da loucura é sua. [...] Pois se existe

razão, é justamente na aceitação desse círculo contínuo da sabedoria e da loucura‖

(Foucault, 2005, p. 33), e assim cabe perguntar: quem de fato perdeu a razão? Maria

Josefa ou aquelas que não reconhecem sua miséria, condenando-se eternamente à

infelicidade ou à morte? ―Aproximem-se um pouco, filhas de Júpiter! Vou demonstrar

que o único acesso a essa sabedoria perfeita, a que chamamos a cidadela da felicidade, é

229
através da loucura‖ (Erasmo apud Foucault, 2005, p. 33), essa poderia ser uma das falas

de Maria Josefa às filhas de Bernarda.

Quando Lorca escreve A casa de Bernarda Alba, a Espanha já vivia sob a

ameaça da ditadura de Franco, prestes a estourar a Guerra Civil Espanhola. Assim,

pode-se relacionar uma peça de caráter tão opressor com a opressão do momento vivido

pelo escritor, entendendo que ele se referia ao seu tempo, à sua sociedade, à falta de

liberdade vivida naqueles tempos. Dessa maneira, Lorca se coloca no papel do louco,

dos poucos que enxergam a verdade e que têm coragem e força de não se calar. Para os

que se orgulham de sua sanidade, perder a liberdade é apenas um dos males possíveis, e

se submeter à opressão, uma forma de sobrevivência. Mas para o louco não há a

possibilidade de sobreviver, pois ele reivindica para si estar próximo da felicidade e

para ele a morte é apenas um gracejo da vida. O louco ri do riso da morte64.

A tirania é feminina

Bernarda Alba não é apenas a mãe, mas o poder centralizador da peça, e

acredita controlar tudo que acontece embaixo de seu teto. A personalidade que o

dramaturgo confere a Bernarda não apenas determina todas as ações da peça, como

também traz em si uma forte carga de símbolos sociais que certamente são os alvos da

crítica do poeta. Bernarda é mãe, mas não apresenta traços maternais em nenhum

momento da obra. Muito pelo contrário: assim como sua casa em nada se parece com

um lar, oscilando entre uma prisão e um convento, Bernarda se comporta como um

64
Ideia extraída de História da Loucura, onde Foucault relaciona a substituição do tema da morte pelo
tema da loucura na literatura até o século XV.

230
general, dando ordens e aplicando penas àqueles que não as cumprem exatamente a seu

gosto; um cão feroz prestes a atacar caso algo saia do lugar. Em eterna vigilância,

Bernarda é a personificação da tortura, isso graças à sua obsessão pela honra e pela

imagem que ela quer que tenha sua família. Para que nada saia de seu controle, a

matriarca assume postura despótica, autoritária, bruta e com neurótico controle sobre os

corpos de suas filhas e de sua mãe para não pôr em risco a castidade e a moralidade de

seu rebanho feminino.

―Não pense que pode comigo. Até que saia desta casa com seus pés,

mandarei no que é meu e no que é seu‖ (Bernarda, ato I). Nesta fala, Bernarda diz a

Angústia, filha mais velha e a única que tem dote, que tanto a filha quanto o que é dela

estão submetidos ao controle da matriarca. A situação de Angústia apenas mudará

quando ela sair da casa de sua mãe com seus ―próprios pés‖, ou seja, quando Angústia

se casar — essa seria a única maneira de qualquer filha de Bernarda sair com os

próprios pés de sua casa. Filhas são bens, moeda de troca para Bernarda. Isso se explica

os casamentos negociados e principalmente os matrimônios rejeitados pela matriarca,

como será visto adiante.

Ricardo Domenech define Bernarda como o arquétipo da mãe espanhola e a

base da instituição familiar, em especial nas famílias da Espanha do início do século

XX. Segundo Domenech,

Lorca descobre o que há, de fato, atrás daquela doce imagem. E chega
até o final, pondo em destaque como essas mães, que tão ferozmente
defendem e perpetuam a família patriarcal, são também, ainda que não
saibam, suas primeiras vitimas [...] a perpetuação da instituição
familiar assim entendida, responde, em último caso, à perpetuação da
sociedade em sua estrutura classista (2008, p. 116).

A maneira com a qual Bernarda trata as criadas e fala dos pobres é uma das

bases para que Domenech e outros críticos vejam a matriarca como uma representante

231
da estrutura classista vigente na sociedade que o escritor quer criticar. Na maneira com

a qual Bernarda conduz a vida de suas filhas, também aparecem traços importantes da

estratificação social que a matriarca faz questão de manter — colocando-se, talvez

indevidamente, em situação de destaque da sociedade.

Pôncia: [...] Martírio está apaixonada,... Por que não deixou que se
casasse com Enrique Humanas? Por que no mesmo dia em que ela
viria até a janela mandou um recado para que não aparecesse?
Bernarda: E faria tudo de novo mil vezes. Meu sangue não se junta
com o dos Humanas enquanto eu for viva. Seu pai foi um homem do
campo, inculto.
Pôncia: para que esse orgulho?
Bernarda: tenho porque posso... (ato II)

Na fala acima, Bernarda mostra que o amor de Martírio por Enrique

Humanas foi frustrado por causa da intervenção da matriarca, que trata a vida de suas

filhas como se fosse um joguete de suas vontades. Neste joguete, Bernarda diz a Pôncia

que seu ―sangue não se junta com o dos Humanas‖, enquanto ela for viva, pela origem

humilde da família. A matriarca julga que pode ser orgulhosa e não aceitar que sua

família se junte a uma família mais humilde; coloca-se em posição de superioridade

tanto dentro de casa, quanto na sociedade. Mas talvez esse orgulho de Bernarda não

tenha tanto fundamento, como indica a conversa das empregadas, logo no começo da

peça:

Pôncia: Claro que não lhe invejo a vida. Dela são cinco mulheres,
cinco filhas feias, tirando Angústia, a maior, que é filha do primeiro
marido e tem seu quinhão. As demais, muita renda bordada, muitas
camisolas de linho, mas pão e uvas por herança.
Criada: quem me dera ter o que elas têm.
Pôncia: ... cova na terra.
Criada: é a única terra que deixam para os que não têm nada (ato I).

232
Pôncia diz que a única das filhas de Bernarda que tem algum bem é Angústia, quanto às

outras só lhes resta o orgulho da matriarca como bem, orgulho trajado de renda e linho,

mas que na verdade é alimentado por pão e uva. Pôncia não inveja Bernarda, pois sabe

que o que de fato Bernarda tem não significa tanto e que seu poder não é tão forte

quanto ela pensa. Mas para a Criada, o pão e as uvas são bens invejáveis para quem

possui apenas a cova na terra, a parte que cabe aos pobres no grande latifúndio espanhol

do início do século XX.

Esse breve diálogo expõe uma questão muito forte em seu país. A Espanha

da década de 1930 era um país majoritariamente rural, com grande parte da população

ativa e da economia na agricultura. Nessa situação, a elite da sociedade espanhola se

encontrava fortemente temerosa de uma possível reforma agrária defendida pela Frente

Popular65. Tal temor foi importante para que o setor mais conservador da sociedade se

decidisse a apoiar o exército nacionalista, ao mesmo tempo em que a Reforma Agrária

era um dos elementos determinantes para o apoio da burguesia ao exército republicano

— lembrando que o próprio pai de Lorca era um importante latifundiário. Lorca não

ficou indiferente a tal situação social e econômica da Espanha, e Gibson comenta que

não pode ser por acaso que, no momento em que a guerra civil está no
ar, Lorca leve à cena o tema da mulher despótica, com traços de
inquisidora, profundamente hipócrita, cuja única razão de ser descansa
na supressão — em nome de um falso e ultrapassado conceito de
honra, baseado mais que nada no medo do que dirão — das liberdades
pessoais, assim como na dogmática imposição da mentira, da ―versão
oficial‖, frente às verdades (GIBSON, 1987, p. 442).

De fato, como disse Gibson, não foi por acaso que o autor criou uma

personagem despótica, com ares inquisidores, justamente nos tempos em que o país já

se via fortemente dividido entre republicanos e franquistas. Assim como em Yerma, em

65
Coligação partidária formada entre os partidos republicanos de esquerda, socialistas e comunistas.

233
A casa de Bernarda Alba o escritor coloca críticas à sociedade e seus padrões

cristalizados. Mas em Bernarda Alba, o escritor é mais direto nos diálogos e na

construção de personagens que tornam os pontos a serem criticados mais explícitos.

Assim, são nítidas as críticas que o autor leva à cena: o despotismo que vigorava no

Biênio Negro, aos ares inquisidores que saiam das igrejas inundando todo o país e que

resultaram na ―última cruzada‖ — maneira pela qual a Igreja Católica da Espanha se

referia à Guerra Civil Espanhola e seu posicionamento contra o exército republicano —,

e principalmente a supressão das liberdades individuais, tema principal da obra de

Lorca.

A ideia de Gibson de que a ―dogmática imposição da mentira, como a

‗versão oficial‘, frente às verdades‖, se refere à Espanha, e o dramaturgo retratou esse

jogo de mentiras e ―versões oficiais‖ em Bernarda Alba. Bernarda vive de aparências,

mentiras construídas e expostas a qualquer preço. Foi para manter as aparências que a

matriarca não aceitou que Martírio se casasse com Enrique Humana. O suicídio de

Adela, como será dito adiante, é outra verdade que Bernarda quer esconder, escondendo

também o fato de que sua filha não era mais virgem, mantendo a ―versão oficial‖, para a

sociedade, de que sim, que Adela morreu casta. Para que ninguém saiba a verdade, a

matriarca impede que suas filhas e sua mãe tenham contato com o mundo fora de casa.

―Cada um sabe o que se passa dentro de si. Não me intrometo nos corações,

mas quero boa fachada e harmonia familiar. Entende?‖ (Bernarda, ato III). Para manter

as aparências da família, Bernarda ignora os anseios de suas filhas, e a experiência da

individualidade destas está apenas em saber o que se passa dentro de si. Mas, para além

dos sentimentos, estava o domínio de Bernarda e sua preocupação em manter a boa

fachada familiar, que fica ainda mais clara com a morte de Adela. E para manter as

234
aparências, a própria matriarca se submetia silenciosamente a um casamento de traições

pelos cantos da casa:

Pôncia: Tirana de todos os que a rodeiam....


[...] Ela, a mais asseada; ela, a mais decente; ela, a mais altiva. Feliz
descanso ganhou seu pobre marido!
[...] Desde que morreu o pai de Bernarda, ninguém mais entrou nessa
casa. Bernarda não quer que vejam seu domínio.
[...]
Criada: Venha o caixão... Cansou de tudo! Já não voltará a erguer
minhas anáguas atrás da porta de teu curral! ... (ato I).

Pôncia deixa claro: Bernarda é tirana com todos os que lhe rodeiam. Desde

que o pai da matriarca morreu, Bernarda passou a dominar as vidas de suas filhas e

marido e a impor a eles sua maneira de viver: passando sempre a imagem de que são os

mais asseados, os mais decentes, e ela, a mais altiva. Bernarda gosta de ser vista como

quem detém o controle, o centro do poder de sua casa, de sua família, ressaltando a

ideia de que o ambiente doméstico é o espaço de atuação das mulheres, característica de

uma sociedade baseada em valores machistas. Ainda indicando um modelo de sociedade

onde o homem tem mais liberdade do que a mulher, a Criada fala sobre o marido recém-

falecido de Bernarda: ―não voltará a erguer minhas anáguas‖. A tirania da matriarca não

alcança os desejos, e ela sabe disso, mas sua obsessão pela aparência da família passa a

não permitir que ela veja situações que não só desafiam seu poder, mas também

maculam a imagem social que Bernarda criou. Seu marido bolinava a Criada, suas filhas

travam um duelo entre si, e tudo isso sob os olhos que julgam ver tudo.

Bernarda: ... minha vigilância pode com tudo.


[...]
Pôncia: quando não se pode com o mar, o mais fácil é dar as costas
para as águas.
Criada: é tão orgulhosa que põe uma venda nos próprios olhos (ato
III).

235
Pôncia, a governanta, faz contraponto com Bernarda. As criadas das obras

de Lorca apresentam características que se repetem em Pôncia: servidão por longos anos

à mesma casa, o que lhes concede entrada nos espaços mais privados da família;

mulheres astutas, apesar de serem sempre de origem humilde; tom de alcoviteiras que

tentam solucionar ou aconselhar as personagens a fim de evitar o fim trágico. Assim é

Pôncia, serva de Bernarda há trinta anos, como ela mesma diz66, e dessa maneira é quem

percebe a ―tormenta em cada quarto‖ da casa, como ela mesma alerta a matriarca67. E a

governanta quem de alguma forma estabelece um diálogo com a matriarca e diz o que

vê e pensa — apesar de que, no final das conversas, Pôncia sempre tenha de se submeter

à patroa, muitas vezes sendo humilhada por ela.

Na história pessoal de García Lorca, há muitas criadas. O fato de Federico

ser o mais velhos de quatro filhos de uma família rica contribuiu para que os cuidados

dedicados a ele viessem, na maioria das vezes, de suas primas e das criadas. A

proximidade de Lorca com as criadas de sua família era inquestionável, e ele mesmo

assumia a importância destas em sua formação pessoal: ―O que seria das crianças ricas

se não fossem as empregadas, que os colocam em contato com a verdade e a emoção da

cidade‖ (LORCA, 1974, p. 1011). E, neste mesmo sentido, é Pôncia quem dá às filhas

de Bernarda um pouco da ―verdade e da emoção‖ da vida fora do confinamento:

Amélia (curiosa): E como disse?


Angústia: ―Sabes que ando atrás de ti. Preciso de uma boa mulher,
educada, e essa mulher és tu, Angústia, se me permites‖.
[...]
Pôncia: Essas coisas somente se dão desse modo entre pessoas mais
instruídas que falam e dizem e movem as mãos... A primeira vez que
meu marido Evaristo Colorín veio à minha janela...
Amélia: que aconteceu?

66
―Trinta anos lavando seus lençóis; trinta anos comendo suas sobras‖ (ato I).
67
―Vê este silêncio? Há uma tormenta em cada quarto‖ (ato III).

236
Pôncia: Era muito escuro. Vi aproxima-se e chegando disse: ―Boa
noite‖. ―Boa noite‖, eu respondi, e ficamos calados por mais de meia
hora. Eu suava por todo o corpo. Então Evaristo se achegou, se
achegou até quase atravessar as grandes da janela e disse em voz
baixa: ―vem, deixa eu te tocar!‖ (Todas riem).
[...]
Pôncia: Em seguida, comportou-se. Em vez de outra coisa, criou
pintassilgos até morrer. Convém, solteiras, saber que os homens, após
quinze dias do casamento, trocam a cama pela mesa e logo a mesa
pelo bar, e quem não se conforma apodrece chorando pelos cantos.
Amélia: você se conformou?
Pôncia: Eu pude com ele!
Martírio: é verdade que bateu nele algumas vezes?
Pôncia: sim, e por pouco não o entortava (ato II).

Pôncia conta às filhas de Bernarda como se dão as relações fora do grupo

social do qual elas fazem parte. Esta diferenciação entre pessoas ―mais instruídas que

falam e dizem e movem as mãos‖, como coloca Pôncia, é, sutilmente, uma maneira que

o escritor usa para mostrar em um primeiro momento que Pôncia não deixa de

reproduzir alguns dos alicerces da sociedade, como a submissão da mulher ao seu

marido. A governanta diz, de maneira ainda mais direta, o que Bernarda já havia dito à

Angústia, que não há felicidade no casamento e que quando se casa, a mulher deve se

submeter e se conformar com as maneiras que o marido escolher para levar o

casamento. Àquela que não se conforma, não lhe resta outra alternativa a não ser chorar

pelos cantos; como disse Bernarda, conformando-se a infelicidade será menor. Porém,

em seguida, Pôncia conta que ela não se conformou, respondendo com agressividade a

uma situação que provavelmente lhe agredia. De maneiras indiretas, Pôncia sinaliza às

filhas de Bernarda que há maneiras de escapar às imposições sociais, como quando ela

aconselha Adela a esperar pela morte de Angústia para então se casar com Pepe, ou na

fala acima, na qual assume que reagiu ao marido, que pode com ele, ou seja, não se

sujeitou a uma relação de submissão. Ela pode com o marido. E assim ela dá às filhas de

Bernarda uma segunda alternativa que não se conformar.

237
A governanta desenha o perfil de sua ama, o que nos mostra que Pôncia

pode ser a verdade sobre sua ama e sobre o que acontece nos domínios da casa, em seus

cômodos e suas moradoras. Ao perceber as paixões que preenchem o vazio da

existência das filhas de Bernarda, Pôncia se junta à personagem de Maria Josefa, sendo

capaz de ver a verdade, com a coragem de dizê-la.

Pôncia: eu não acuso, Bernarda. Eu digo: abre os olhos e vê.


Bernarda: o quê?
Pôncia: sempre foi sagaz. Teus olhos vêem a maldade das pessoas a
cem léguas de distância; muitas vezes acreditei que adivinhava os
pensamentos. Mas filhos são filhos. Agora está cega, Bernarda.
Bernarda: é a respeito de Martírio?
Pôncia: bem, a Martírio... (com curiosidade) Por que será que
escondeu o retrato?
Bernarda: (querendo proteger sua filha) ela disse que foi uma
brincadeira. Que outra coisa poderia ser? Pôncia: (com ironia)
Acredita nisso?
Bernarda (enérgica): Não acredito. É!
Pôncia: basta. Não tenho nada a ver com isso. Mas se fosse a vizinha
da frente, o que seria?
Bernarda: já começa a tirar a ponta do punhal.
Pôncia (sempre com crueldade): Bernarda: algo muito grave está
acontecendo por aqui. Não quero te culpar, mas tuas filhas foram
criadas sem liberdade alguma. Martírio está apaixonada... (ato II).

A governanta nos mostra Bernarda é sagaz para dirigir aos outros olhares

inquisidores, mas não para ver o que acontece dentro de seus domínios. A matriarca não

quer ver o porquê de Martírio ter roubado o retrato de Pepe Romano, noivo de sua irmã

mais velha; afinal, não ver o problema lhe poupa ter de resolver o conflito existente

entre suas filhas. Bernarda não se intromete nos corações, o que lhe importa é manter a

boa fachada familiar68.

Pôncia: (com ódio envolto em suavidade): Martírio vai esquecer de tudo o que houve.

68
Como ela mesma diz: “cada um sabe o que se passa dentro de si. Não me intrometo nos corações,
mas quero boa fachada e harmonia familiar. Entende?” (ato III).

238
Bernarda: Se não esquecer, pior pra ela. Não acredito que ―algo muito
grave‖ esteja acontecendo aqui. Não está acontecendo nada (olha para
Pôncia). Isso é o que queria! E se acontecer algum dia, fique segura de
que não irá além das paredes (ato II).

Bernarda se recusa a ver que ―algo muito grave‖ esteja acontecendo em sua

casa, se recusa a ver o conflito silencioso que estava se formando dentro de sua casa e

que, como uma tormenta, desaguará inevitavelmente no momento de maior calor. No

final da fala acima, a matriarca confirma que sua preocupação é a imagem que a família

apresenta para a sociedade, assim, mesmo que algo aconteça, ficará fechado, como

acontece com todas as mulheres da casa. Com isso, Bernarda nos mostra que as normas

sociais se impõem às vontades individuais de maneira extrema, e que ela será sempre

uma guardiã da imagem de sua família, não importando o quão totalitária pode ser sua

postura.

Pôncia: ninguém pode saber qual é seu destino.


Bernarda: eu sim sei de meu destino! E o de minhas filhas![...]
[...]
Bernarda: felizmente minhas filhas me respeitam e jamais foram
contra minha vontade.
Pôncia: é verdade. Mas quando soltar as rédeas, elas subirão ao
telhado.
Bernarda: então as baixarei, arrancando pedaço por pedaço delas.
Pôncia: sempre foi a mais valente, Bernarda!
Bernarda: sempre usei pimenta de primeira! (ato II)

Um tom de tragédia é explicitado quando Pôncia alerta Bernarda de que ela

não pode dominar o destino, mas a ama, em seu sentimento de onipotência, acredita que

pode ser mais forte do que o destino de mulheres de sentimentos aprisionados. É

inexorável a arrebentação. Mas Bernarda mede forças com o destino, e quando é

alertada de que suas filhas ―subirão ao telhado‖ quando tiverem um sopro de liberdade,

acredita que sua valentia, como diz Pôncia, pode controlar a situação.

239
Pôncia: já não posso fazer nada. Quis deter as coisas, mas estão me
assustando muito. Vê este silêncio? Há uma tormenta em cada quarto.
No dia que estourar, arrastará todas nós. Disse o que tinha que dizer.
Criada: Bernarda acredita que ninguém pode com ela. Não sabe a
força que tem um homem entre mulheres sozinhas (ato III).

O silêncio que assombra Pôncia, sinal da tormenta que se aproxima, é o

mesmo silêncio imposto por Bernarda, prova da obediência de suas filhas e da soberania

da matriarca. Mesmo com sua postura inquisitiva, a mãe não percebe o mal-estar que

toma conta de suas filhas, negando-se a ver a disputa travada entre elas pela figura de

Pepe. No interior da casa há uma tormenta prestes a eclodir e que acaba sendo sufocada

pelo poder instituído, ocupado pela matriarca. Porém, por não querer perceber (como

coloca Pôncia) a tempestade que está se formando frente aos seus olhos, Bernarda

permite que o conflito se instaure de fato. Talvez Bernarda relute em assumir que as

coisas não seguem o rumo que ela impõe, pois isso significaria assumir que ela não tem

total controle, como diz ter. Bernarda prefere sufocar as filhas e até mesmo vê-las

morrer a mudar sua maneira de conduzir a família; para a mãe, manter as aparências é

mais importante do que a felicidade das filhas e a própria felicidade.

Mesmo sendo tirana e algoz com sua família, Bernarda também é um

joguete da sociedade à qual quer, insistentemente, prestar contas. Da mesma maneira

que encarcera suas filhas e sua mãe, Bernarda está presa a convenções e tradições que

sequer se permite questionar. O fato é que a matriarca não impõe simplesmente a sua

vontade às filhas, mas impõe as regras sociais, de maneira cega, visando apenas ao

reconhecimento de seu domínio sobre as filhas. Esse é todo o seu poder. Dessa maneira,

o conflito que se instala no ambiente doméstico é prontamente sufocado por Bernarda:

Bernarda: E não quero choro. A morte deve ser encarada frente a frente. Silêncio!
(Para outra filha) Mandei calar!Lágrimas, quando estiverem sozinhas. Nos
afundaremos todas em um mar de luto! Ela, a filha mais nova de Bernarda Alba,
morreu virgem. Ouviram? Silêncio, já disse! Silêncio! (ato III)

240
O contexto da fala acima é que, tentando dissuadir Adela do propósito de

manter seu romance com Pepe, Bernarda finge tê-lo matado. Desesperada, Adela

comete suicídio, e o silêncio é imposto pela mãe às filhas. ―Silêncio‖ é a primeira e,

também, a última palavra pronunciada por Bernarda na peça, certamente não por acaso.

A imposição do silêncio é quase que uma denúncia de Lorca da ditadura de sua

sociedade. As verdades não podem ser ditas, os sentimentos, as vontades, tudo deve ser

silenciado para que as aparências se mantenham. No começo da peça, Bernarda ordena

que haja silêncio para que não haja observação dos outros, daqueles que

excepcionalmente entraram na casa de Alba por ocasião do luto de seu marido; no final

da peça, a mãe ordena que o silêncio se instaure entre suas filhas para imprimir uma

mentira, para que os outros não saibam o que de fato aconteceu dentro de sua casa.

A extrema vigilância no comando da casa e da família e a preocupação com

as tradições e a propriedade fazem de Bernarda uma representação da elite rural

espanhola, um dos alvos do teatro lorquiano. A intolerância é, talvez, um dos traços

mais marcantes da matriarca, que justifica suas ações, uma vez mais, pela honra e a

imagem da família perante a sociedade em que está inserida. Por isso o luto, por isso o

silêncio.

Bernarda tem mentalidade da elite que não quer se misturar com as camadas

populares, mentalidade que, na vida real de Asquerosa, Lorca conhecia pessoalmente,

pois o próprio pai do poeta, que era um poderoso fazendeiro de ideias liberais, teve

vários conflitos na cidade com os fazendeiros de direita. Assim, é muito provável que

Lorca tenha criado Bernarda como um retrato de seu tempo e de sua sociedade: Espanha

no início do século XX, lugar e época não apenas classistas, mas baseada em

estereótipos, uma sociedade que Lorca certamente queria ver terminar, afinal sobre ele

também recaíram consequências de estar fora das normas estabelecidas. Com Bernarda,

241
Lorca leva ao palco, de maneira escancarada, a mentalidade reacionária da velha direita

espanhola.

Lorca faz de A casa de Bernarda Alba a obra dramática que, de maneira

mais clara, refere-se à realidade da Espanha dividida em muitas, como são muitas as

mulheres na casa da peça. E as falas agressivas de Bernarda referem-se ao clima de

violência e repressão que estava a todo o momento pairando o país.

Bernarda: Silêncio, repito! Estava vendo a tormenta chegar, mas não


acreditava que arrebentaria tão rápido. Ai, que pedra de ódio lançam
sobre meu coração! Contudo, não sou velha. Tenho cinco algemas
para todas vocês e esta casa erguida por meu pai para que nem as
ervas se interem de minha desolação! Fora daqui! (Saem. Bernarda
reage, bate com a bengala bem forte no chão e diz): Terei que sentar a
mão nelas! Ah, Bernarda, não esqueça seu dever (ato II).
[...]
Bernarda: uma filha que desobedece deixa de ser filha para se
converter em inimiga (ato III).

As falas acima mostram como Bernarda vive em constante atenção às

condutas de suas filhas, pois aquela que fosse contra a vontade da mãe seria sua

inimiga. Ao longo da peça, Bernarda se comporta menos como mãe, e muito mais como

carcereira, como dona de um rebanho, tendo cuidado para que nenhuma de suas crias

saísse do caminho pré-estabelecido. Quem não está com ela, está contra ela, e isso inclui

suas filhas. Para a matriarca, que é o centro do poder da casa, não há espaço para

divergências, suas ordens são soberanas e ―uma filha que desobedece‖ se converte em

inimiga, como ela mesma disse.

Como um general, Bernarda ordena que as filhas façam silêncio, ocultem

suas ideias e sentimentos. Algemas e ódio são as respostas que a matriarca tem para

suas filhas quando suas vontades vêm a tona, não podendo mais ser represadas. A

matriarca não acreditava que a tormenta arrebentaria, certamente porque não acreditava

na força que as vontades e a liberdade reprimidas podiam tomar, porque acreditava que

242
podia com tudo, até com aquilo que se passa dentro de suas prisioneiras. Quando eclode

a disputa por Pepe, que envolve três das cinco filhas, a matriarca é obrigada a aceitar

que seu domínio não atinge todas as esferas da vida das mulheres da casa, que há muita

coisa que acontece em seus domínios que está fora de seu controle. Ter que assumir a

fragilidade de seu poder gera ódio em Bernarda, e é com violência e mais opressão que

ela responde à insubordinação de suas filhas.

―Terei que sentar a mão nelas! Ah, Bernarda, não esqueça seu dever‖. A

opressão é tanto um direito quanto um dever de um poder totalitário para a manutenção

da ordem. O escritor explicita o uso da violência, do silêncio e da força física como

meio de castrar a liberdade e os sentimentos. A violência passa a ser empregada quando

a situação sai do controle de Bernarda e, sem dúvida, essa era a realidade que o escritor

presenciou em sua Espanha, desde a Monarquia do início do século XX, passando pela

ditadura de Primo de Rivera até chegar à conturbada II República da década de 1930.

Em cenários de relações conflituosas, Lorca muitas vezes se posicionou, em

conferências, entrevistas e obras, ao lado daqueles que eram massacrados pelo poder e

ordem vigentes. Assim, em Romancero Gitano, o poeta expõe a violência da guarda

civil contra os ciganos, que foram o primeiro símbolo usado pelo autor para tratar

daqueles que tinham sua liberdade cerceada por valores sociais, chegando ao embate

físico. Já em Poeta em Nova York, em muitos poemas o escritor se coloca solidário aos

negros, vítimas do racismo norte americano, enquanto que em Sonetos del amor Oscuro

são os homossexuais que ganham, mais claramente, espaço na obra de Lorca. Em suas

obras dramáticas, o escritor privilegia a mulher como eixo central, não apenas na

trilogia rural, mas também em peças como Mariana Pineda; Doña Rosita, la Soltera ou

La Zapatera Prodigiosa, que contam com protagonistas femininas, personagens que se

relacionam aos ciganos, negros e homossexuais das obras poéticas por estarem

243
circundadas por papeis sociais marcados pela obediência, imposição da submissão,

silêncio e falta de liberdade, vivendo sob a vigília constante dos olhos da sociedade.

Espanha: casa de outras Bernardas

Segundo Doménech, são possíveis pelo menos duas leituras de A casa de

Bernarda Alba: uma leitura ―dupla‖ sobre os códigos simbolistas, e uma segunda

leitura, que é o foco aqui, sobre o estilo da obra e a leitura do conflito social e humano

que a peça leva à cena. Pelos vários aspectos da obra já analisados, não resta dúvida de

que Bernarda Alba seja um retrato crítico da sociedade que Lorca observou de perto, e

esse retrato age como uma lente de aumento sobre a opressão que a sociedade gera nos

indivíduos, infelicidades e sofrimentos. Na grande maioria de suas obras, o dramaturgo

colocou em suas personagens femininas tanto os valores morais introjetados no

indivíduo quanto as vozes críticas à sociedade patriarcal e conservadora vigente em sua

Espanha. O dramaturgo ausenta personagens masculinos da cena justamente para tratar

de uma sociedade onde eles criam as regras em todas as esferas da vida dos indivíduos,

e mesmo sem nenhum homem no palco, a presença masculina está constantemente em

cena por meio de diálogos e referências feitas pelas personagens. Mesmo criando uma

peça com fortes referências andaluzas, é certo que ao autor interessa levar à tona

sentimentos universais como desejo e frustração, a imposição da sociedade sobre o

indivíduo e discutir a família constituída por casamentos que se realizam como

negócios, ―à margem da inclinação‖ dos indivíduos. Este último será uma relação-chave

nas obras lorquianas.

244
Na repetição dos casamentos acordados a despeito do sentimento do casal,

Lorca certamente discute o caráter social e institucional que tomam as relações pessoais.

Assim como o casamento em Bodas de Sangue é um acordo entre os pais dos noivos

ignorando o incontrolável sentimento da noiva por Leonardo, o casamento de Angústia

e Pepe em Bernarda Alba acontecerá por dinheiro, e a esse fato há referências a todo

momento. Não há nenhuma expectativa de que a vida conjugal seja a realização do

amor romântico, ou uma simples convivência amorosa. Nas obras de Lorca, a paixão

não se realiza no âmbito da sociedade, mas ao contrário, sempre contra os valores e

normas impostos por ela, e o casamento nada mais é do que o acatamento de uma

função social.

Carlos Morla Lynch considera A casa de Bernarda Alba uma obra que é

―uma imagem austera e tétrica da dramática Castela, em um tom uniforme, que não

varia‖ (LYNCH, 1958, p. 439), graças à forte presença de características sociais dos

vilarejos da Espanha na obra, além da clara referência que o próprio Lorca coloca no

subtítulo da peça69. Porém, não é apenas aos vilarejos espanhóis que Federico faz

referência em sua última obra, e Bernarda Alba, na verdade, reflete a Espanha sob a

ameaça do franquismo. Lorca sempre se mostrou atento ao seu entorno, sensível aos

acontecimentos sociais e interessado no momento sociopolítico europeu — em especial

na proximidade de Portugal de Salazar, que já vinha anunciando a eclosão de governos

totalitários no velho continente.

Há alguns fatos que comprovam a preferência de Lorca pela República

como meio de governo, como sua proximidade com o primeiro ministro Fernando de

los Ríos e o aceite de ser um dos diretores de La Barraca, programa cultural

republicano. A II República era vista como um sopro de esperança por liberdade após

69
―Drama das mulheres em aldeias da Espanha‖

245
anos de uma Monarquia Constitucional acostumada a fraudar a Constituição, seguida de

sete anos de ditadura de Primo de Rivera. Mas, além disso, a Espanha, assim como a

Europa, assistia ao fortalecimento de ideias nacionalistas, que se aliavam ao

catolicismo, culminando no poder de Franco, confirmando os ares repressores e

conservadores que há muito eram sentidos. Nesse contexto, Bernarda se torna a

personificação do Estado e da Igreja: no cerceamento da liberdade de suas filhas, o

escritor faz referência à população espanhola reprimida, incapaz de enfrentar o sistema

que a sufoca, embora desejoso de mudanças e liberdade. Bernarda poderia ser uma

agente da Guarda Civil, em prol da manutenção da imagem social e dos valores castos,

não importando os meios para atingi-los.

Em A casa de Bernarda Alba, Lorca faz referências às relações entre

empregados e amos de maneira crítica. Tais passagens são interpretadas por alguns

críticos como críticas classistas, expondo as relações de opressão que se davam entre

patrões e empregados. Porém, ao mesmo tempo em que o escritor acusa os maus tratos

dos patrões, as más condições de vida dos empregados, o autor também coloca a relação

da repetição da supressão existente entre os pobres.

Pôncia: Trinta anos lavando seus lençóis; trinta anos comendo suas
sobras... maldita seja!
[…]
Mendiga: Venho atrás das sobras.
Criada: A porta dá na rua. As sobras de hoje são minhas.
[...]
Criada: Fora daqui. Quem disse que podiam entrar? (ato I)

É fato que nenhuma obra de Lorca se refere tão amargamente, quanto

Bernarda Alba, às relações trabalhistas que vigoravam na Espanha dos anos de 1930,

mas o escritor vai mais além, e o que ele denuncia em sua obra é a relação de

dominação que se repete em distintas relações de poder, independentemente do jogo de

246
classes. Na fala acima, por exemplo, Pôncia diz que há trinta anos come as sobras de

Bernarda, o que indica a maneira como a patroa trata seus criados; em seguida, a Criada

que pede as sobras — retratando o salário de fome que recebiam — repete com a

Mendiga a relação de opressão, mas aqui na posição de opressor.

Lorca tinha mais uma visão social do que classista da situação que vivia

grande parte da população da Espanha, ponto de vista que ele mesmo afirmou em uma

entrevista: ―eu sempre serei partidário dos que não têm nada e até a tranquilidade do

nada lhes é negada‖ (dez. 1934). Lorca não se filia a nenhum partido político, nem se

declara favorável a qualquer ideologia, porém isso não o aliena da situação política. O

escritor sempre fez questão de expor sua preocupação com a realidade sociopolítica em

entrevistas, mas também destila suas ideias em suas obras:

Bernarda: ... Os pobres são como os animais; parece que foram feitos
de outras substâncias.
1ª mulher: Os pobres também têm suas penas.
Bernarda: Mas esquecem delas diante de um prato de grão-de-bico.
Uma jovem (com timidez): Comer é necessário para viver.
Bernarda: Na tua idade não se fala diante dos mais velhos (ato I).

A fala acima pode ser vista como respostas do dramaturgo à sua sociedade e

suas estratificações. Bernarda representa não apenas a classe alta de uma sociedade

classista, mas o pensamento de uma elite preconceituosa que se vê como soberana e

engessada em suas regras arcaicas. A discussão que o escritor levanta não é apenas a da

relação entre classes, mas é sobre valores mais antigos, oriundos talvez de sociedades

escravocratas igualando pessoas a animais em necessidades e serventia; sociedades de

hierarquias e costumes fechados e inquestionáveis.

Nessa articulação, a sociedade tem poder de dominar as individualidades,

em nome da tradição que a sustenta, e Bernarda é a representação desse domínio que a

sociedade exerce sobre os indivíduos. Assim, a casa de Bernarda é um mundo fechado


247
no interior de outro mundo fechado, ou seja, os domínios da matriarca são uma

miniatura da sociedade da qual se esforça para fazer parte, e por isso a reproduz. A falta

de liberdade imposta pela sociedade se estende ao âmbito privado pela constante vigília

de Bernarda sobre suas filhas. As mulheres da casa não poderiam apresentar qualquer

tipo de comportamento que expusesse a honra familiar, e na tentativa de controlar

comentários maledicentes sobre sua casa, Bernarda confinava suas filhas e sua mãe.

Bernarda faz de sua casa um misto de convento e cárcere e, nessa quase

transposição, no âmbito privado, o que se encontra é a fiel reprodução das instituições

espanholas mais opressoras, como a Igreja Católica. O teatro lorquiano tem como alvo

preferencial o maior inimigo das liberdades individuais: as instituições. Assim, o

dramaturgo cria a casa de Bernarda no exagero da falta de liberdade e da opressão,

reproduzindo o discurso e a moral da sociedade e do controle institucional que, na

década de 1930 na Espanha, encontrava uma oposição tão forte quanto a imposição das

normas. Mas é importante observar a importância do núcleo familiar no processo de

aniquilação dos indivíduos, constituindo-se como uma poderosa instituição que reitera o

sistema sociopolítico autoritário e repressor; e na cooperação entre o âmbito público e

privado, não há maneira pacífica de escapar do domínio fascista, tanto na ficção de

Lorca, quanto na Espanha na qual viveu o poeta.

No caso da ficção, em A casa de Bernarda Alba as irmãs se confrontam

umas contra as outras, assim reproduzem as amarras morais que a sociedade lhes impõe

e se colocam contra essas mesmas amarras. A obra de Lorca traz uma família de rivais:

Bernarda está contra as filhas, tolhendo suas liberdades e vontades, certamente como

também foi feito com ela; as filhas são rivais entre si por desejarem o mesmo homem ou

por desejarem algo que uma das irmãs tenha — seja o dinheiro de Angústia ou a

juventude e beleza de Adela — e no enfrentamento entre as irmãs fica evidente que o

248
desejo de realização pessoal é a condição que ao mesmo tempo as distancia e as

aproxima.

Frente aos transgressores de qualquer espécie, uma sociedade tão repressora

quanto a Espanha da época reage com violência, com castigo, exclusão e morte. E

assim, antes que se cometa alguma transgressão, são tomadas medidas repressivas. Para

as filhas de Bernarda, o castigo às transgressoras de fora da casa é uma ameaça para

Adela, que é quem viola as normas da sociedade e da casa, e também um gozo para as

irmãs, que vivem em suas forças reativas. No segundo ato da peça, Bernarda e suas

filhas são surpreendidas por gritos que chegam da rua. Era a cidade que queria linchar

uma mulher, solteira, que havia tido um filho e, para ocultar a vergonha, matou a

criança:

Pôncia: [...] Vão arrastando a mulher rua abaixo. Pelos atalhos e pelo
olival, os homens vêm correndo, gritando até estremecer os campos.
Bernarda: sim, que venham todos com varas de oliveira e cabos de
enxada, que venham todos para matá-la.
Adela: não, não. Para matar não.
Martírio: sim, vamos atrás dela também.
Bernarda: E que pague a que pisoteia sua decência.
Adela: deixem que escape! Fiquem aqui, irmãs!
Martírio (olhando para Adela): que pague o que deve!
Bernarda (sob o arco): acabem com ela antes que cheguem os
guardas! Queime no inferno por seu pecado!
Adela (com as mãos no ventre): Não! Não!
Bernarda: matem a mulher! Matem a mulher! (ato II)

Frente ao código de honra, baseado em submissão do indivíduo ante ao

critério dos demais, Adela é a única mulher da casa que grita seu protesto quando o

povo quer matar a ―devedora‖, pois a filha mais nova de Bernarda, quando dá vazão a

sua ânsia por liberdade, torna-se um alvo da punição que ela vê cair sobre outra mulher.

Mas o castigo não coíbe Adela, pois ela é de fato possuidora de uma vontade de

potência que não lhe dá alternativa que não seja a de viver suas pulsões.

249
A cena acima anuncia ao desfecho trágico do drama das mulheres dos

povoados espanhóis. O envolvimento de Adela com Pepe, que já tinha sido anunciado

antes, agora insinua a possibilidade de ter gerado frutos, mas se, de fato, Adela estava

grávida, isso não é esclarecido. O que de fato importa nesta cena é mostrar a posição de

Adela como a transgressora e da mãe e das irmãs como inquisidoras; e assim o

dramaturgo põe em cena as duas possibilidades de se viver em uma sociedade

opressora: obediência e desobediência, ambas nascendo na mesma família, o que

valoriza ainda mais as vontades e forças individuais.

Na ficção, a maioria das mulheres não encontra saída para o confinamento

físico e emocional ao qual são submetidas, cada mulher à sua maneira e situação.

Apenas Adela e Maria Josefa enfrentam a tirania, mas são punidas por isso — a

primeira, com o afastamento do amado seguido de sua morte; a segunda, pela

marginalidade de sua loucura. Ambos os casos são linhas de fuga daqueles que se

arriscam a ultrapassar os limites impostos pela sociedade, mas a personagem de Adela é

a mais forte nesse sentido, pois a filha mais nova de Bernarda comete suicídio, dando o

tom trágico ao drama lorquiano.

Martírio (apontando Adela): estava com ele! Vê essas anáguas cheias


de palha de trigo!
Bernarda: essa é a cama das malnascidas! (Dirige-se furiosa para
Adela).
Adela (enfrentando-a): aqui se acabam as vozes do presídio! (Adela
toma abengala de sua mãe e a parte em duas). É o que eu faço com a
vara da dominadora. Nem mais um passo. Ninguém manda em mim
além de Pepe. [...] Ele dominará esta casa toda. Está lá fora,
respirando como se fosse um leão.
Angústia: Meu Deus!
Bernarda: a escopeta! Onde está a escopeta! (sai correndo)
Adela: Niguém poderá comigo! (vai saindo)
Angústia (segurando-a): não vai sair daqui com o corpo triunfante.
Ladra! Desonra de nossa casa!
Madalena: deixa que se vá para onde nunca mais possamos ver!
(Ouve-se um disparo)

250
Bernarda (entrando): vamos ver se pode ir atrás dele agora!
Martírio (entrando): é o fim de Pepe Romano.
Adela: Pepe! Meus Deus! Pepe! (Sai correndo)
[...]
Bernarda: (ouve-se um golpe). Adela, Adela!
Pôncia (perto da porta): abre!
Bernarda: Abre. Os muros não defendem a vergonha.
Criada (entrando): os vizinhos estão de pé!
Bernarda (em voz baixa como um rugido): abre ou ponho a porta
abaixo! (Pausa. Tudo fica em silêncio.) Adela! (Retira-se da porta.)
Tragam um machado! (Pôncia dá um empurrão e entra. Ao entrar, dá
um grito e sai. Para Pôncia: o que houve?
Pôncia (leva as mãos ao pescoço): nunca tenhamos este fim!
(As irmãs lançam para trás. A criada se benze. Bernarda dá um grito e
avança)
Pôncia: não entre!
Bernarda: Não! Não! Pepe, hoje pode correr, fugindo pela escuridão
das alamedas, mas algum dia vai cair! Despenduram Adela! Minha
filha morreu virgem! Levem para seu quarto, vistam seu corpo como o
de uma donzela. Não digam nada a ninguém! Ela morreu virgem.
Avisem que ao amanhecer os sinos baterão duas vezes.
Martírio: feliz dela que o teve.
Bernarda: e eu não quero choro. É preciso encarar a morte de frente.
Silêncio! (À outra filha). Eu disse para calar a boca! (À outra filha).
Lágrimas somente quando estiver só! Nos fundiremos todas em um
mar de luto. Adela, a filha mais nova de Bernarda, morreu virgem.
Escutaram? Silêncio, silêncio eu disse! Silêncio! (ato III) [Desce o
pano].

Adela, pela última vez, enfrenta a moralidade e as amarras que

dominam a casa e suas moradoras. Contra todas, mãe e irmãs, a caçula anuncia que

―acabou o presídio‖, reage com violência física quebrando a bengala de Bernarda e

expõe a todas que seguiu suas paixões, a despeito do que lhe era imposto, realizou seus

desejos que era o que de fato guiava sua vida. Direcionando sua vida à sua maneira,

Adela se suicida, pensando que sua mãe havia matado Pepe, e um segundo luto cai

sobre a casa de Bernarda. Martírio ainda diz o que pensa: feliz da Adela que teve Pepe,

que realizou sua paixão, diferentemente de suas irmãs. E mais uma vez, a matriarca se

mostra mais interessada na honra que aparenta ter sua família do que no que acontece

em seus domínios. Bernarda finaliza a obra impondo o mesmo silêncio que impunha no

251
início, dando a exata ideia de que nem mesmo o suicídio de sua filha pode alterar seu

modo de pensar. ―Adela, a filha mais nova de Bernarda, morreu virgem. Escutaram?

Silêncio!‖. A matriarca impõe a mentira para manter as aparências e o silêncio para

manter seu domínio.

De maneira análoga ao que ocorre em A casa de Bernarda Alba, a

sociedade espanhola desde o final do século XIX mostrava que estava muito próxima de

um conflito. E assim como na peça o embate vem à tona e a Espanha vivencia três anos

de guerra civil que, ao final, leva o país a silenciar os indivíduos graças à instalação da

ditadura franquista. O poder político que o Estado e a Igreja demandam na Espanha,

retratado de maneira muito próxima ao real, dá a Bernarda a credencial necessária para

reproduzir em âmbito privado o despotismo observado no âmbito público.

Lorca captou o espírito do sul da Espanha expresso na mentalidade

arcaica da população, nos longos lutos que se cumpriam na época, os olhos espiando a

rua por trás das janelas, forte curiosidade e sede de inquisição com relação a vida alheia,

o sentimento de superioridade baseado em valores passados e estratificação social.

Tanto em A casa de Bernarda Alba, quanto em Yerma e em Bodas de Sangue, a

curiosidade e o julgamento da sociedade passa especialmente pela vida sexual dos

indivíduos, como é imposto pelas sociedades de moralidade cristã. Certamente há uma

importância econômica e religiosa no cerceamento de mulheres, impedindo uma vida de

sexualidade livre, mas, tanto em Bernarda Alba quanto em Yerma, o autor coloca não

apenas a questão da experimentação sexual ser reprimida pela sociedade, mas a

necessidade de liberdade em muitas esferas da vida.

Lorca não chegou a ver sua última obra encenada, mas pela reação

que Yerma provocou no público espanhol já se pode imaginar o que as vozes mais

conservadoras gritariam ao ver nos palcos mulheres ardendo de desejo tanto quanto os

252
solos quentes da Andaluzia no verão. Ou as respostas que seriam dadas às falas de

Adela, que se diz escrava apenas de sua paixão, assumindo a posse de seu corpo, a

despeito das ordens de suas irmãs, sua mãe e de toda a sociedade. Mas a Guerra Civil

Espanhola eclodiu antes, e com ela, a violência tomou lugar dos gritos da direita na

plateia dos teatros e respondeu ao próprio corpo de Lorca. E como fez Bernarda Alba,

os fuzis da direita espanhola gritaram ―Silêncio!‖ para autor.

253
Considerações finais:
Atualização permanente: Lorca na Espanha de hoje

Entre os meses de março e setembro de 2009, desenvolvi minha pesquisa na

Espanha com financiamento da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior) e apoio da Universidad Complutense de Madrid, na qual fui recebida

pelo prof. José Luis Dader. Os sete meses de pesquisa no exterior foram fundamentais e

modificaram os rumos deste trabalho, por isso merecem uma descrição específica.

A proposta inicial deste trabalho consistia em uma análise interna de

algumas obras dramáticas — em especial a trilogia rural Bodas de Sangue, Yerma e A

casa de Bernarda Alba — de García Lorca, e a análise externa estaria focada no período

histórico no qual o escritor viveu, dando especial enfoque para a Guerra Civil

Espanhola. Porém, o contato com os arquivos da Fundação Federico García Lorca me

mostrou como o mundo se inquietou não apenas com a obra, mas com a vida e com a

morte de Lorca. Além disso, percebi que não poderiam ser ignorados a influência dos

elementos culturais da Espanha na obra do escritor e o quanto seu assassinato ainda

divide as opiniões dos espanhóis. Com isso, o presente trabalho passou a contemplar a

vida e a morte de Lorca não só como importantes para a análise de sua obra — afinal,

ele mesmo recusou o conceito de arte pela arte, como foi tratado no capítulo ―A política

na arte e na vida‖ — mas para entender as possíveis relações entre arte e política em

criação, especialmente, na dramaturgia lorquiana.

No período em que estive na Espanha, morei na cidade de Madri para ter

maior facilidade de trabalho nos arquivos localizados na cidade, que foram as minhas

fontes de pesquisa mais importantes: a Hemeroteca de Madrid e a Fundação Federico

García Lorca. O contato com estes arquivos foi fundamental para compreender o quanto

254
ainda se ignora, no Brasil, sobre a vida e a obra de Lorca. Além disso, realizei viagens

periódicas à província de Granada, onde se encontra o Centro de Estudos Lorquianos,

pontos importantes da vida e, supostamente, da morte de Lorca. Algumas das minhas

passagens por Granada são descritas a seguir.

A Fundação Federico García Lorca é uma instituição privada criada pela

irmã do escritor, Isabel García Lorca, e atualmente mantida pelos herdeiros de Lorca:

seus seis sobrinhos. O arquivo da Fundação reúne muitos dos manuscritos da obra de

Lorca, desde seus primeiros escritos — datados entre 1917 e 1919 — até sua última

obra, A casa de Bernarda Alba; contém cerca de 280 exemplares das primeiras edições

da Obra de Lorca publicadas na Espanha — alguns com dedicatória do autor — e em

outros países; mais de cinco mil publicações da obra de Lorca em espanhol e traduções,

bibliografias, estudos críticos e artísticos; arquivos da imprensa relacionados à vida e

obra de García Lorca; arquivo fotográfico; partituras dos estudos e criações musicais de

Federico; e um importante material audiovisual e artístico que contém desde pinturas a

óleo e desenhos de Manuel Ángeles Ortiz, Salvador Dalí e Benjamín Palencia, até CDs

e DVDs atuais com representações da obra de Lorca, em teatro, filme e documentários

sobre o escritor70.

Aos arquivos da Fundação Federico García Lorca dediquei maior tempo da

minha pesquisa, analisando os catálogos, levantando a bibliografia do autor e os estudos

que foram feitos sobre ele em muitas partes do mundo. Estudiosos do mundo todo

mandam seus trabalhos para o arquivo da Fundação, o que a torna um grande ponto de

encontro entre aqueles que olharam e querem olhar para a obra de Lorca. A Hemeroteca

de Madrid teve papel fundamental para a análise externa. Neste arquivo encontrei uma

importante bibliografia sobre a história da Espanha, os anos que antecederam a Guerra

70
Mais informações http://www.garcia-lorca.org

255
Civil Espanhola, e trabalhos que analisam pontos de influência indireta sobre este

trabalho, como estudos sobre a Igreja Católica na Espanha e trabalhos a partir do viés

sociopolítico e econômico do governo do General Franco. E, além da Fundação García

Lorca e da Hemeroteca de Madri, também dediquei parte da minha investigação ao

Centro de Estudos Lorquianos, em Fuente Vaqueros. No Centro de Estudos Lorquianos,

além de perceber a relação do vilarejo com o escritor, também encontrei pesquisas e

artigos de jornal importantes para compreender e mapear a obra de Lorca.

Entendendo o impacto que as viagens de La Barraca pela Espanha causaram

em Lorca, também viajei por algumas regiões do país a fim de conhecer a Espanha

multifacetária que não está nos livros, e no intuito de compreender as diferenças

geográficas e sociais me perdi pelos ―Laberintos para llegar a España‖. Passei por

Barcelona, Santander, Valência, Toledo, Segóvia, Alcalá, Sevilha, Cádiz, Córdoba, e,

com maior atenção, procurei por Lorca nas cidades onde ele viveu: Madri, Fuente

Vaqueros, Valderrubio e Granada.

Fuente Vaqueros foi a cidade onde Lorca nasceu e pela qual o autor nutria

especial afeição, como ele mesmo declara em ―Discurso ao povo de Fuente Vaqueros‖:

―Tenho um dívida de gratidão com este formoso vilarejo onde nasci e onde transcorreu

minha feliz infância...‖ (LORCA, 2008, v.Vi, p. 380). Quando Lorca tinha onze anos,

sua família se mudou para Granada, mas o escritor continuou com a ligação a Fuente

Vaqueros e a Valderrubio, vilarejo a vinte e dois quilômetros da cidade de Granada.

Valderrubio, que na época de Lorca se chamava Asquerosa, também fez parte da vida

do poeta — que visitava alguns de seus parentes que moravam no vilarejo — e na obra

de Lorca, pois foi nele que o escritor se inspirou para escrever algumas de suas obras

mais importantes, como A casa de Bernarda Alba, A sapateira prodigiosa e Dona

Rosita, a solteira. Em Valderrubio está a terceira e menos conhecida casa dos García

256
Lorca, A Casa Museu de Valderrubio, que mescla passado e presente, mantendo o

aspecto rústico original ao mesmo tempo em que apresenta atividades interativas para os

visitantes.

Além disso, em Madri, busquei três experiências que, a princípio, podem

parecer não ter relação com minha investigação, mas que foram essenciais para a

imersão no mundo lorquiano: aulas de dança flamenca, as procissões religiosas das

Semanas Santas e as Touradas, experiências que fizeram com que minha pesquisa

deixasse de ser um estudo teórico e se tornasse uma experiência de vida.

Flamenco: A princípio, procurei as aulas de dança por uma necessidade exclusivamente

física. Mas, já na primeira aula, fui surpreendida por uma música que era um poema de

Lorca musicado. A partir disso fui investigar a relação entre Lorca e o flamenco, pois há

muitos temas flamencos baseados na obra de Lorca. Ao entrar no mundo flamenco pude

perceber o quanto há de flamenco nas criações lorquianas, seja pelo tom trágico que há

em ambos, ou pelo duende, espírito essencial para que haja flamenco e tragédia. Na

importante escola de flamenco ―Amor de Dios‖ tive a oportunidade de conversar com

seu diretor, Joaquín San Juan, que me deu algumas pistas sobre essa relação, afirmando

que, no flamenco, as letras das músicas são elementos importantes, pois resgatam a

tradição oral, meio pelo qual se contam as histórias e se compreende a vida. O

flamenco, segundo Joaquín San Juan, é contra-cultura, e ser gitano é um fato mais

cultural do que étnico, se dá pelo modo de vida, não pela descendência. Essa relação é

expressa, neste trabalho, no capítulo ―A tragédia segundo García Lorca‖.

257
Cartaz do espetáculo de flamenco ―Poema do Cante Jondo‖, no qual poemas do livro homônimo de Lorca
são musicados e dançados.

Procissões da Semana Santa de Madri: Acompanhei a cobertura dos meios de

comunicação espanhola das procissões da Andaluzia e presenciei quatro procissões na

cidade de Madri. Como Lorca, em muitos momentos de sua obra, fez referência direta

ou indireta à Igreja Católica, e especificamente sobre a Semana Santa, Lorca dedica um

capítulo do livro Impresiones y Paisajes e alguns poemas.

Pepín: nesse instante em Sevilha


Estão vestindo a Macarena
(―Tardezinha de quinta-feira santa‖, in LORCA, 2002: p. 613)

258
Assim, imaginei que seria fundamental participar de alguns ritos do catolicismo

espanhol, e, de fato, foram nesses momentos que eu tive a verdadeira dimensão da

importância social e política da Igreja Católica para o país. As procissões da capital

espanhola não têm a mesma tradição que as procissões do sul, mas estão ganhando

grande força como um meio de propaganda da Igreja.

Atualmente a Igreja Católica tem buscado recuperar sua força social e

política e tem focado grande parte de seus esforços em Madri. E, além das campanhas

promovidas pelas pastorais, as procissões de Semana Santa são momentos nos quais a

Igreja Católica reafirma com mais fervor seus dogmas e tenta reaproximar os fiéis das

irmandades. É uma das estratégias em resposta ao perigo do anticlericalismo que tomou

força na Espanha no final do século XIX. Atualmente a Espanha conta com uma

Constituição, promulgada em 1978, que institui o Estado laico, tirando o ensino da mão

da Igreja e, assim, minando o até então monopólio da Igreja na formação moral da

sociedade espanhola. Outras medidas do governo espanhol da redemocratização, como a

legalização da união civil de pessoas do mesmo sexo e do aborto, são reprovados pela

instituição, o que aumenta sua política propagandista. Com relação às procissões da

Semana Santa, o ritual religioso apresenta signos fortes e tradicionais e é acompanhado

por pessoas que querem expor sua fé por meio de manifestações de compaixão e

expressões de sofrimento frente ao calvário de Cristo. É a Espanha representada pela

monarquia, que na Guerra Civil Espanhola foi partidária de Franco, que encontrei nas

procissões.

Dor e sofrimento, como deve ser um rito católico. Mesmo com o frio de 8°C,

em plena Madri — cidade moderna, cosmopolita — as procissões têm espaço e público.

Horas antes, as pessoas se colocam na rota de passagem do cortejo em posições

259
estratégicas para ver a procissão passar. Fiéis e curiosos esperam pra ver uma das

poucas vezes em que as imagens sagradas saem das igrejas, de suas paróquias. São

Virgens e Cristos que circulam de maneira imponente pela cidade — para alguns, com a

finalidade de abençoar e purificar das ruas da cidade, para outros, para serem vistas,

misto de propaganda, imposição do poder da Igreja e representação da onisciência do

Deus cristão. Muitos dos que assistem choram. O sofrimento e a emoção têm que ser

expresso. Pessoas caminham descalças para pagar promessas e em sinal de devoção, são

os encapuzados nazarenos.

Aonde a procissão chega, a multidão se cala. ―Silêncio!‖ (LORCA, 2002,

ato III), como ordenou Bernarda a suas filhas na morte de Adela; silêncio que simboliza

repressão e submissão exigida pela matriarca. Abrindo passagem para as Virgens e

Cristos, apenas passam os nazarenos e os coroinhas. Ser nazareno é um status

importante no ritual da procissão e, mesmo não se podendo ver seus rostos, nota-se que

muitos são reconhecidos pelos que estão assistindo. Parece que tapar rosto, ao contrário

de esconder a identidade, unificando os fiéis, sublinha a devoção daqueles que abrem a

procissão. É importante que os outros vejam a devoção dos fiéis; é o tema lorquiano dos

―outros‖ que a sociedade espanhola expressa nas procissões e ritos católicos públicos.

Em seguida, passa a imagem com seu alto peso sendo carregado por braços humanos —

que a fazem como aquele que carregou sua grande cruz. Depois da imagem sacra

passam pela multidão as pessoas que mantém e fazem parte da irmandade, todos bem

vestidos, as mulheres de preto, é quase um desfile da nobreza.

As procissões atraem muitas pessoas. Assim, para se aproximar das imagens

sagradas é fundamental se colocar em algum ponto de passagem com antecedência.

Como eu me posicionava mais ou menos uma hora antes da procissão, era comum que

eu conversasse com os fiéis que também esperavam, na maioria, pessoas de mais idade.

260
Em uma das procissões conheci a D. Aurora e nela encontrei a manifestação da Espanha

de direita franquista. Iniciamos a conversa comentando o atraso da procissão e ela

começou a se queixar que os jovens não são mais católicos, que o catolicismo da

Espanha não é mais o mesmo, e ela então ela diz ―na época do Franco não era assim‖.

D. Aurora começou a me falar do quanto o General Franco era católico e o quão

grandes e bonitas eram as procissões na época dele. Ela tinha onze anos quando Franco

morreu e falou da desordem, do desapego dos jovens de hoje, os republicanos.

Perguntei se ela era republicana e ela disse que não; perguntei se ela era monarquista,

ela pensou um pouco e disse que sim.

D. Aurora também falou que a mãe dela tinha sete anos quando estourou a

Guerra Civil, e começou a me contar os relatos das memórias da mãe, ainda viva. Falou

do horror generalizado que tomou conta de Madri, e que tinham que se esconder no

metrô. Ela comentou que a família dela saiu de Madri porque tinham terras onde

podiam cultivar alguma plantação e animais para não morrer de fome. E ela completou

que muitos que não podiam sair de Madri passaram fome, pois a cidade estava isolada,

sem mantimentos. Esse era o relato do outro lado da Guerra Civil Espanhola, o lado de

fora dos livros, mas que fala da mesma história de conflitos do capítulo ―Laberintos

para llegar a España‖.

261
A imagem da direita espanhola: à frente a cruz da Igreja Católica, ao fundo a bandeira da Espanha
monarquista.

262
263
264
Estaria Bernarda Alba ao fundo?

265
266
Procissão de Santa Sara Kali: a procissão relatada em Yerma, a procissão ―Cristo del

Paño‖ acontece no mês de outubro, fora do período da minha bolsa de estudos na

Espanha, por isso não pude presenciá-la. Mas, ao longo da pesquisa, acabei entendendo

a importância da fertilidade feminina para o povo cigano, tanto que um dos poucos

ícones que une ciganos de diferentes etnias é a devoção a Santa Sara Kali, a santa da

fertilidade. Independentemente do grupo étnico, a família é fundamental para os povos

ciganos, e, assim, quanto mais filhos uma mulher tiver, melhor. Uma das piores pragas

para uma mulher cigana é desejar que ela não tenha filhos, pois, tradicionalmente, suas

vidas não têm sentidos sem eles, assim como expressou a personagem Yerma.

A tradição de devoção a Santa Sara Kali faz com que, no dia 24 de maio,

ciganos de muitas partes da Europa sigam até Saints Maries de la Mer (SMLM), sul da

França, para a procissão em homenagem à Santa. Reza a lenda que Sara, uma discípulas

de Jesus, chegou em SMLM no ano II d. C, em fuga da África. Assim, todos os anos os

ciganos levam a imagem da Santa Sara até o mar. As entradas da cidade de SMLM,

local de turismo de alto custo, se enchem de acampamentos ciganos. Ao longo do dia

eles fazem festa nas ruas com rodas de música e dança em frente à Igreja. A Santa Sara

não é reconhecida pela Igreja Católica. Na nave principal da Igreja de SMLM ficam

duas Marias e a imagem da Santa Sara fica no porão, e grande parte dos moradores da

cidade considera a festa cigana como um rito pagão.

Os fiéis à Santa Sara a tratam com grande intimidade. Muita gente a beija e

abraça, dizendo que isso traz sorte; mulheres tocam a santa na altura do ventre. É em

busca de fertilidade que tantas mulheres vão até a Santa Sara. Antes da procissão, as

mulheres ciganas trocam a roupa da Santa — que todo ano ganha roupas novas — e os

homens ciganos levam a santa a cavalo até o mar. Após a procissão e durante a

madrugada de 24 para 25 de maio, os acampamentos ciganos festejam por toda a

267
madrugada, em volta de fogueiras, com mais rodas de dança e vinho. No dia seguinte,

tudo se desfaz e acontece a procissão das duas Marias, aquelas que ficam na nave

central da Igreja de SMLM, como em uma tragédia, na qual a ordem se refaz depois do

ápice trágico.

268
A busca pela fertilidade feminina

269
Touradas em Madri: Lorca declarou que acreditava que ―os touros é a festa mais culta

que há hoje no mundo; é o drama puro, no qual o espanhol derrama suas melhores

lágrimas e suas melhores bílis. É o único lugar onde se vai com a certeza de ver a morte

rodeada da mais deslumbrante beleza‖ (LORCA, 2008, v.VI: p.739). A afirmação faz

parte de uma entrevista concedida pelo escritor em 1936, mas antes disso Lorca já tinha

expressado sua admiração pela arte do toureio e uma de suas maiores expressões foi o

poema ―Pranto para Inácio Sánchez Mejías‖.

Que grande toureiro na praça!


Que grande serrano na serra!
Quão brando com as espigas!
Quão duro com as esporas!
Quão terno com o rocio!
Quão deslumbrante na feira!
Quão tremendo com as últimas
bandarilhas tenebrosas
(―O sangue derramado‖, in LORCA, 2002:p. 517)

270
Em maio, mês de São Isidro, padroeiro de Madri, a cidade é tomada pela

festa taurina e a Praça de Touros de ―Las ventas‖ apresenta touradas de quinta a

domingo, e os valores das entradas variam de cinco a cento e trinta e cinco euros71. As

touradas continuam atraindo muito público, turistas e espanhóis de todas as classes

sociais Os turistas se aglomeram mais comumente nos setores mais caros, próximos à

arena. Escolhi um setor popular e pude contar com a companhia de apreciadores que me

mostraram sua visão sobre o ―rito‖ e suas etapas. Sem isso, em meio a minha

ignorância, teria desistido de assistir à tourada do segundo touro — a competição conta

com três toureiros e cada um toureia com dois touros, somando seis duelos por tourada.

Mas o mais importante foi aprender os códigos que eu, como plateia, deveria expressar

de acordo com minha aprovação ou reprovação ao toureiro.

As touradas são uma encenação trágica, onde o que importa não é o que

acontece ao touro, mas sim o que acontece por meio dele. É um rito que flerta com a

morte, que necessita dela para existir. Além disso, as touradas seguem mantendo, de

maneira inquestionável, as tradições espanholas, assim como parte da sociedade

expressa pelas obras de Lorca. O silêncio, assim como nas procissões, é fundamental,

sinal de respeito e admiração. Entender que o público espera suavidade e força do

toureiro, que ele não se afaste do touro e do sangue me permitiram escolher o meu

toureiro preferido naquela noite e até apostar em qual seria o vencedor e poder gritar, a

plenos pulmões, ―olé!‖.

71
http://asp.las-ventas.com/fotos10/precios_corrida.pdf

271
272
273
274
Entre Víznar e Alfacar – suposta localização da fossa de Lorca.

O local onde, supostamente, está a fossa de Lorca foi o local de mais difícil acesso entre

os lugares lorquianos que busquei. A dificuldade do acesso não se deu exatamente por

sua localização — na fronteira entre Víznar e Alfacar, em um bosque, cujo acesso é

uma estrada intermunicipal — mas por não haver informações de como chegar até o

local. O local não consta como um ponto de interesse nos centros de informação

turística de Granada — talvez pela incerteza sobre se o lugar é, de fato, onde Lorca foi

morto, talvez para não converter o local em um centro de visitas e romarias, pois, até

hoje, os governos da província de Granada não manifestaram grandes esforços em abrir

a suposta fossa na busca dos que ali estão. O fato é que as fossas ainda são um problema

para a Espanha atual, na qual as feridas da Guerra Civil ainda sangram.

275
Próximo ao local onde está um monólito em homenagem a Lorca há um

parque, o ―Parque García Lorca‖. Este, mantido pela prefeitura local, é o espaço tido

como ―oficial‖ para a família do escritor na representação da fossa de Lorca. Porém, não

muito longe do ―Parque García Lorca‖ está o local que as investigações de Agostín

Penón levaram a crer que está o corpo de Lorca. A intensa busca de Penón pela

explicação da morte do poeta e o paradeiro de seu corpo está registrada no livro Miedo,

Olvido y Fantasía, (OSÓRIO, 2009), leitura obrigatória para entender o silêncio que,

ainda hoje, circunda a morte de Lorca.

Chegar ao local assinalado por Penón exige esforço e um pouco de sorte. Os

ônibus não passam perto do local, sendo obrigatória a caminhada e a ajuda dos que

conhecem a região para indicar, por dentro do bosque, o caminho até o monólito onde

se pode ler: ―Lorca eran todos‖. Os todos aos quais se refere o monólito talvez sejam

aqueles que morreram por usar a arte como meio de expressar o desejo por liberdade,

aqueles que de alguma maneira morreram por fazer da arte uma maneira de expressar

sua visão da sociedade e da política.

A fossa fica em uma estrada que, ainda hoje, está afastada de qualquer uma

das cidades que por ela fazem fronteira, e a partir disso se pode imaginar o quão

inóspito era o local setenta anos atrás. Penón escreveu, em 1955:

Em todos os terrenos cercados que há ao redor deste caminho foram


plantados e continuam plantando pinhos. Sobre muitas tumbas já há
um pinho pequeno. Quando eles crescerem se tornarão um bosque que
entrelaçará suas raízes aos corpos enterrados, fazendo com que eles
desapareçam... e as pessoas se esquecerão.... (OSÓRIO, 2008: p. 347).

Penón sabia que Franco não saberia justificar o assassinato de Lorca, e que o autor

continuaria sendo incômodo para a direita espanhola, assim como seguiu sendo

admirado em muitas partes do mundo. No final de 2009 foram abertas alguns espaços

276
na fronteira entre Víznar e Alfacar, como resposta ao pedido de abertura das fossas de

Lorca, mas nada foi encontrado72. Talvez a previsão de Penón tenha se cumprido.

Estrada que dá acesso ao monólito. Ao longe, Granada.

72
Fonte:
http://www.elpais.com/articulo/cultura/restos/Lorca/estan/fosa/Alfacar/elpepicul/20091218elpepicul_9/Te
s

277
278
Granada: Ao chegar a Granada, é impossível não notar que a cidade está, inclusive

arquitetonicamente, dividia em três áreas, que representam três Granadas: uma parte

moderna e rica, margeando a avenida ―Gran Via‖. Outra parte da Granada é

muçulmana, com becos que rodeiam Alhambra. E a parte da cidade que a define como

um ―pueblo blanco‖ — vilarejo composto por casas brancas que reluzem a luz do Sol

forte, mais próximo da África do que de qualquer parte da Europa.

O que mais me marcou em minhas visitas à Granada foi ver como segue

vivo, no presente, seu passado muçulmano e o fato da cidade ter enriquecido graças à

expansão açucareira do século XX, — momento do qual o pai de Lorca se beneficiou,

pois ele era fazendeiro e passou a ser também dono de importantes engenhos da região.

Granada, por ter sido a cidade que por mais tempo esteve sob o governo muçulmano, e

de mais difícil domínio, tornou-se tornasse a cidade símbolo da unificação espanhola

promovida pelos reis católicos, Isabel e Fernando, que estão sepultados na catedral da

cidade. Sobre o fim do império muçulmano em Granada, Lorca disse em uma entrevista,

em 1936:

Tu crês que foi um ato acertado devolver as chaves de tua terra granadina
(aos reis católicos)?
Lorca: Foi um ato malíssimo, mesmo que digam o contrário nas escolas.
Perdeu-se uma civilização admirável, uma poesia, uma astronomia, uma
arquitetura e uma delicadeza únicas no mundo, para dar passagem à uma
cidade pobre, acovardada, a uma ―terra tão religiosa‖, onde se agita
atualmente a pior burguesia da Espanha. (LORCA, 2008. V.VI: p. 737)

Essa burguesia a qual Lorca se refere é a que construiu a parte moderna de Granada,

tomando posse da parte moura e tornando o bairro de Albaicin um gueto dos ciganos de

Granada.

279
Em Granada está a Huerta de San Vicente, a casa mais famosa da família

García Lorca. A Huerta de San Vicente era a casa de verão da familia, dada à mãe de

Federico pelo pai, por isso o nome ―Vicente‖ (em homenagem à mãe, Vicenta). Na

Huerta, minha visitação é conduzida pela Pepa, que conta que foi nesta casa que Lorca

escreveu a maior parte de sua obra, com exceção dos poemas de Poeta em Nova Iorque

e a A Casa de Bernarda Alba, que ele começou em Madri, mas terminou na Huerta. Por

isso Federico chamava a Huerta de ―fábrica de versos‖. Na década de 1920, a casa

estava a 2km da cidade, e na década de 1930 já contava com luz elétrica e telefone, o

que dá indícios do poder econômico da família, pois o telefone só se popularizou na

Espanha em 1970.

Na Huerta está o diploma de direito de Lorca, que, segundo Pepa, ele levou

10 anos para conseguir, tendo média 5,0, sendo que a máxima era 10,0. A guia completa

informando que Lorca não era um bom aluno e essa era uma das maiores razões de

brigas com seu pai — fato que se pode notar pelas cartas trocadas entre Federico e seu

pai. A casa é mantida com os aspectos da época de Lorca e o piano que está na Huerta

de San Vicente é um dos pianos da família, foi usado por Lorca, e atualmente é tocado

quando há eventos importantes na Huerta, o que atesta seu perfeito estado de

conservação.

E Pepa encerra a visita me passando as maneiras para eu chegar às outras

duas casas — bem menos populares —da família García Lorca: Fuente Vaqueros e

Valderrubio. Como se aproximava o mês de nascimento de Lorca, junho, perguntei à

guia onde possivelmente haveria alguma comemoração, e ela me respondeu: ―Fuente

Vaqueros sempre faz atos em memória de Federico. Lembro-me do primeiro, em 1976,

quando todo mundo ainda tinha medo de falar de Federico. E ainda o tem‖.

280
Bairro de Albaicin: um típico ―pueblo blanco‖

Granada de antes da Reconquista Católica

281
Huerta de San Vicente

Fuente Vaqueros: onde Lorca nasceu, é um vilarejo de dezesseis quilômetros

quadrados, localizado a dezessete quilômetros da capital da província, Granada73. Em

Fuente Vaqueros é onde mais se nota a presença de Federico,

como em resposta à gratidão que o escritor declarava ao vilarejo onde nasceu:

e que eu, quando estou em Madri ou em outro lugar, perguntam-me o lugar


do meu nascimento, em entrevistas jornalísticas ou em qualquer parte, eu
digo que nasci em Fuente Vaqueros para que a glória ou a fama que tenha
que cair em mim caia também sobre este simpatiquíssimo, sobre este
suculento e liberal vilarejo da Fuente (LORCA, 2008, v.VI, p. 380).

É em Fuente Vaqueros, no ―vilarejo liberal‖ que Lorca lê o discurso referido no capítulo

―A política na arte e na vida‖.

73
Fonte: http://www.fuente-vaqueros.com/

282
Em Fuente Vaqueros está a Casa Museu Natal de Federico García Lorca —

que é mantida como na época de Lorca, assim como a Huerta, com móveis da época e

fotos da família e de Lorca ainda quando criança — e o Centro de Estudos Lorquianos.

Fuente Vaqueros gira em torno da figura de Lorca. Há fotos dele por toda a cidade, e a

ele a população se refere apenas por Federico, com grande intimidade. ―Você veio para

a festa do Federico?‖, me perguntava a população fazendo alusão ao feriado de 5 de

junho, data do nascimento de Lorca, e o dia mais importante para a cidade.

283
O símbolo de La Barraca no chão da praça de Fuente Vaqueros

Entrada do Centro de Estudos Lorquianos

284
Casa Museu Natal

“La fiesta de Federico” – 5 de junho, Fuente Vaqueros

―A festa de Federico!‖. É assim que todos se referem à data de nascimento de Lorca,

feriado em Fuente Vaqueros. A Casa Museu, neste dia, deixa a entrada livre para

visitação, a rede de TV da Andaluzia acompanha as festividades e, a cada ano, algo é

preparado para comemorar o nascimento de Federico. No ano de 2009, houve a leitura

de 111 poemas lorquianos, em comemoração aos 111 anos do nascimento do poeta. A

cidade inteira se mobilizava para isso, separavam um momento do dia para participar da

―festa‖, tudo sendo registrado e televisionado para a região da Andaluzia. Quando

cheguei à Casa Museu, para assistir ao movimento da população que comemorava o

―dia do Federico‖, também fui pega para ler um poema. Havia um empenho em mostrar

a popularidade do poeta, seja entre as crianças — que foram as primeiras a participar da

285
leitora —, entre a população da cidade, ou entre os turistas que vão ao vilarejo em busca

do poeta. No dia de ―La fiesta de Federico‖, a participação era exclusivamente de

pessoas anônimas, não havia o apelo da presença de celebridades.

Na praça de Fuente Vaqueros era notório que, de fato, aquele era um dia de

festa. O vilarejo estava animado, as pessoas tomando a praça durante todo o dia. Outro

elemento que me chamou atenção foi o grupo formado pelas crianças da cidade, que

foram as que abriram as leituras dos 111 poemas. Há um empenho em ―apresentar‖

Lorca às crianças, e aquelas que recitavam os poemas de cabeça eram aplaudidas. Mas

até que ponto Federico é apresentado às crianças? Conversei com algumas crianças que

estavam na leitura dos 111 poemas, e lhes perguntei porque aquele dia era feriado. A

resposta era, frequentemente, ―porque hoje é o dia de Federico!‖. ―E quem é Federico?‖,

eu perguntava; ―era um poeta‖, ―era um escritor‖ foram as respostas dadas, e uma

criança só me respondeu: ―é ele!‖, dito por uma menina, enquanto apontava para cartaz

com a foto de Lorca, espalhada por toda a cidade. Também perguntei a elas porque

Lorca foi importante. Alguns responderam porque ele foi escritor, outros disseram que

não sabiam, mas a maioria relacionou Lorca à Guerra Civil Espanhola. Eu finalizava

perguntando o que aconteceu para o Lorca morrer na Guerra Civil. A maioria das

crianças não sabia me responder, algumas me disseram que era porque ele lutou na

guerra, e a melhor resposta foi: ―Porque o Franco não gostava dele‖.

286
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287
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Morir en Madrid (Morir en Madrid). França, Dir.:Frédéric Rossif, 1962.

Morte em Granada (The Disappearance Of Garcia Lorca). Espanha/ França/ EUA/ Porto Rico,
Dir.: Marcos Zurinaga, 1996.

O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno). Espanha/EUA/México, Dir: Guilherme del
Toro , 2006.

Por quem os sinos dobram (For Whom the Bells Tolls). EUA, Dir.: Sam Wood, 1943.

Raza (Raza). Espanha, Dir: José Luis Sáenz de Heredia, 1942.

Rojo y Negro. Espanha, Dir.: Carlos Arévalo, 1942.

Sin Limites (Little Ashes). Inglaterra/ Espanha, Dir.: Paul Morrison, 2008.

Terra e Liberdade (Land and Freedom). Inglaterra/Alemanha/Espanha/Itália, Dir. Ken Loach,


1995.

Um cão andaluz (Un chien andalou). França, Dir.: Luis Buñuel e Salvador Dalí, 1928

293
Anexo 1

Charla sobre teatro


(Obras completas, 2008, v. VI: p. 427-430)

Queridos amigos: Hace tiempo hice firme promesa de rechazar toda clase de
homenajes, banquetes o fiestas que se hicieran a mi modesta persona; primero, por
entender que cada uno de ellos pone un ladrillo sobre nuestra tumba literaria, y segundo,
porque he visto que no hay cosa más desolada que el discurso frío en nuestro honor, ni
momento más triste que el aplauso organizado, aunque sea de buena fe.
Además, esto es secreto, creo que banquetes y pergaminos traen el mal
fario, la mala suerte, sobre el hombre que los recibe; mal fario y mala suerte nacidos de
la actitud descansada de los amigos que piensan: "Ya hemos cumplido con él". Un
banquete es una reunión de gente profesional que come con nosotros y donde están,
pares o nones, las gentes que nos quieren menos en la vida.
Para los poetas y dramaturgos, en vez de homenajes yo organizaría ataques
y desafíos en los cuales se nos dijera gallardamente y con verdadera saña: "¿A que no
tienes valor de hacer esto?" "¿A que no eres capaz de expresar la angustia del mar en un
personaje ?" "¿A que no te atreves a contar la desesperación de los soldados enemigos
de la guerra?". Exigencia y lucha, con un fondo de amor severo, templan el alma del
artista, que se afemina y destroza con el fácil halago. Los teatros están llenos de
engañosas sirenas coronadas con rosas de invernadero, y el público está satisfecho y
aplaude viendo corazones de serrín y diálogos a flor de dientes; pero el poeta dramático
no debe olvidar, si quiere salvarse del olvido, los campos de rosas, mojados por el
amanecer, donde sufren los labradores, y ese palomo, herido por un cazador misterioso,
que agoniza entre los juncos sin que nadie escuche su gemido.
Huyendo de sirenas, felicitaciones y voces falsas, no he aceptado ningún
homenaje con motivo del estreno de Yerma; pero he tenido la mayor alegría de mi corta
vida de autor al enterarme de que la familia teatral madrileña pedía a la gran Margarita
Xirgu, actriz de inmaculada historia artística, lumbrera del teatro español y admirable
creadora del papel, con la compañía que tan brillantemente la secunda, una
representación especial para verla.

294
Por lo que esto significa de curiosidad y atención para un esfuerzo notable
de teatro. doy ahora que estamos reunidos, las más rendidas, las más verdaderas gracias
a todos. Yo no hablo esta noche como autor ni como poeta, ni como estudiante sencillo
del rico panorama de la vida del hombre, sino como ardiente apasionado del teatro de
acción social. El teatro es uno de los más expresivos y útiles instrumentos para la
edificación de un país y el barómetro que marca su grandeza o su descenso. Un teatro
sensible y bien orientado en todas sus ramas, desde la tragedia al vodevil, puede
cambiar en pocos años la sensibilidad del pueblo; y un teatro destrozado, donde las
pezuñas sustituyen a las alas, puede achabacanar y adormecer a una nación entera. El
teatro es una escuela de llanto y de risa y una tribuna libre donde los hombres pueden
poner en evidencia morales viejas o equívocas y explicar con ejemplos vivos normas
eternas del corazón y del sentimiento del hombre.
Un pueblo que no ayuda y no fomenta su teatro, si no está muerto, está
moribundo; como el teatro que no recoge el latido social, el latido, histórico, el drama
de sus gentes y el color genuino de su paisaje y de su espíritu, con risa o con lágrimas,
no tiene derecho a llamarse teatro, sino sala de juego o sitio para hacer esa horrible cosa
que se llama "matar el tiempo". No me refiero a nadie ni quiero herir a nadie; no hablo
de la realidad viva, sino del problema planteado sin solución.
Yo oigo todos los días, queridos amigos, hablar de la crisis del teatro, y
siempre pienso que el mal no está delante de nuestros ojos, sino en lo más oscuro de su
esencia; no es un mal de flor actual, o sea de obra, sino de profunda raíz, que es, en
suma, un mal de organización. Mientras que actores y autores estén en manos de
empresas absolutamente comerciales, libres y sin control literario ni estatal de ninguna
especie, empresas ayunas de todo criterio y sin garantía de ninguna clase, actores,
autores y el teatro entero se hundirá cada día más, sin salvación posible.
El delicioso teatro ligero de revistas, vodevil y comedia bufa, géneros de los
que soy aficionado espectador, podría defenderse y aun salvarse; pero el teatro en verso,
el género histórico y la llamada zarzuela hispánica sufrirán cada día más reveses, porque
son géneros que exigen mucho y donde caben las innovaciones verdaderas, y no hay
autoridad ni espíritu de sacrificio para imponerlas a un público al que hay que domar
con altura y contradecirlo y atacarlo en muchas ocasiones. El teatro se debe imponer al
público y no el público al teatro. Para eso, autores y actores deben revestirse, a costa de
sangre, de gran autoridad, porque el público de teatro es como los niños en las escuelas:

295
adora al maestro grave y austero que exige y hace justicia, y llena de crueles agujas las
sillas donde se sientan los maestros tímidos y adulones, que ni enseñan ni dejan enseñar.
Al público se le puede enseñar, conste que digo público, no pueblo; se le
puede enseñar, porque yo he visto patear a Debussy y a Ravel hace años, y he asistido
después a las clamorosas ovaciones que un público popular hacía a las obras antes
rechazadas. Estos autores fueron impuestos por un alto criterio de autoridad superior al
del público corriente, como Wedekind en Alemania y Pirandello en Italia, y tantos
otros.
Hay necesidad de hacer esto para bien del teatro y para gloria y jerarquía de
los intérpretes. Hay que mantener actitudes dignas, en la seguridad de que serán
recompensadas con creces. Lo contrario es temblar de miedo detrás de las bambalinas y
matar las fantasías, la imaginación y la gracia del teatro, que es siempre, siempre, un
arte, y será siempre un arte excelso, aunque haya habido una época en que se llamaba
arte a todo lo que nos gustaba, para rebajar la atmósfera, para destruir la poesía y hacer
de la escena un puerto de arrebatacapas.
Arte por encima de todo. Arte nobilísimo. y vosotros, queridos actores,
artistas por encima de todo. Artistas de pies a cabeza, puesto que por amor y vocación
habéis subido al mundo fingido y doloroso de las tablas. Artistas por ocupación y
preocupación. Desde el teatro más modesto al más encumbrado se debe escribir la
palabra "Arte" en salas y camerinos, porque si no vamos a tener que poner la palabra
"Comercio" o alguna otra que no me atrevo a decir. Y jerarquía, disciplina y sacrificio y
amor.
No quiero daros una lección, porque me encuentro en condiciones de
recibirlas. Mis palabras las dicta el entusiasmo y la seguridad. No soy un iluso. He
pensado mucho, y con frialdad, lo que pienso, y, como buen andaluz, poseo el secreto
de la frialdad porque tengo sangre antigua. Yo sé que la verdad no la tiene el que dice
"hoy, hoy, hoy" comiendo su pan junto a la lumbre, sino el que serenamente mira a lo
lejos la primera luz en la alborada del campo.
Yo sé que no tiene razón el que dice: "Ahora mismo, ahora, ahora" con los
ojos puestos en las pequeñas fauces de la taquilla, sino el que dice "Mañana, mañana,
mañana" y siente llegar la nueva vida que se cierne sobre el mundo.

296
Anexo 2
El Patriotismo - Federico García Lorca (1917)
Arquivo Fundação Federico García Lorca

¡Cuántas veces nos han hablado del patriotismo…! Siempre hemos entendido desde
niños al patriotismo por un sentimiento que tiene por espíritu a un trapo de colores, por
voz una corneta desafinada y por fin defender las tumbas, las casas etc., de nuestras
familias. Los encargados de danzar ante el sacro fuego de sus ideas son unos señores
muy ordinarios con bigotes tiesos y voces campanudas que nos hacen a los jóvenes
besar una cruz infame formada por la bandera y una espada; es decir la cruz de las
tinieblas y de la fuerza. Hay que pensar para que sirve toda esa multitud de muñecos
grotescos que son sacerdotes del patriotismo y que van arrollando a la dulzura y al
amor. No se puede concebir por qué todo un pueblo se lanza contra otro únicamente por
esta pasión… En España nos la damos de muy patriotas. En la escuela nos dicen:
―España es nuestra segunda madre y el Rey su representante‖, es decir, su maniquí… y
nosotros mirábamos al maestro que, encendido el pecho de entusiasmo, nos decía :‖Es
nuestra segunda madre. Vosotros como buenos hijos debéis dar hasta la última gota de
vuestra sangre‖ (ésta es la frase de cajón…). Paseábamos por la calle y al fondo de ella
aparecía el ejército brioso, marcial, marchando elegante al son de una sinfonía bélica…
y nos daban escalofríos, autosugestionados por el medio ambiente y nos descubríamos
ante la bandera con un no sé qué. Indudablemente los tramoyistas de la vida nacional
preparan admirablemente los efectos. Producen emociones involuntarias valiéndose del
aparato y de la música. Hay que confesar que la fastuosidad y la etiqueta mezclada con
sones apabullantes de músicas produce en las muchedumbres el vértigo. Primero el gran
aparato de las armas les produce el miedo y el asombro y luego las músicas les sugieren
los sentimientos amables… porque nada como la música comprendida por muchas
almas al a vez para formar una sola en una sola voluntad. Es el efecto que recibe la
multitud sin darse cuenta. Hay que ir contra esas exhibiciones llenas de lástima y con
los oídos del alma tapados como Ulises se tapó los suyos para no caer en la tentación de
las hadas del mar… ¿De qué se valen las congregaciones religiosas sino de la
fastuosidad y de la riqueza para atraer a la multitud?. Saben muy bien que la masa es
muy impresionable y le hacen postrarse ante el brillo del oro. Y se da el caso raro de

297
gentes que comprendiendo lo ridículo e imbécil de dichos actos asisten a ellos para
recrearse en su solemnidad y teatralidad. En la idea de patriotismo se supeditan las
pasiones, el amor, la caridad y la dulzura a la flor áspera y punzante del deber… Es la
idea fin del patriotismo convertir muchas almas en cuerpos… Las creencias
individuales, sus apasionamientos, sus amores quedan supeditados a la voz de un
hombre que grita muy grave: ―Ordeno y mando‖, y lanza los cuerpos unos contra otros
porque las almas volaron al comenzar la tragedia. Es necesario, preciso que las
multitudes se despierten llenas de amor y caridad. Es preciso acabar con lo inútil de las
ideas patrióticas. El patriotismo es uno de los grandes crímenes de la humanidad porque
de sus senos podridos por el mal surgen los monstruos de la guerra. Por patriotismo los
hombres han caído en las negruras de la muerte. Por patriotismo la verdadera patria fue
deshecha y escarnecida. Por patriotismo nacieron los males de la tierra. Por patriotismo
fueron los hombres odiosos y crueles… Las banderas son los símbolos de la oscuridad y
la negación de Dios… Al hallarse los hombres divididos pusieron el ideal de su
bienestar [¿] sobre esos trapos de colores que flotan como orgullos con forma sobre
todo el mundo. Desde la escuela, en vez de enseñarnos a amarnos y ayudarnos en
nuestras miserias, nos enseñan la deplorable historia de nuestros países salpicados de
sangres, de odios, y nos dicen: ―Aprended a matar a vuestros enemigos. Mirad. ¿Véis
este retrato? Pues es Felipe II, que quemó 8.000 herejes. ¡Admirad este otro! Es el Cid
Campeador, que luchó contra la cruel morisma y que en Valencia asesinó a muchos
hombres… Y éste es Santiago, patrón de España, que luchó contra los moros y los
exterminó.‖. Las almas de los niños se educan en ese ambiente de fuerza y de crueldad y
llegan a considerar muy afligidos, aunque sin darse cuenta, al Dios de las batallas… ―ya
lo sabéis, niños – exclama el maestro -. Dios crió a los hombres para amparar
exclusivamente a nosotros, a los cristianos…‖. Y todos los niños se acostumbran a ver
en las demás razas una humanidad inferior y digna de ser exterminada. En las escuelas
en vez de enseñar el triunfo de la verdad sobre la fuerza enseñan la apoteosis de la
crueldad y la razón espantosa de la fuerza… Todas las historias de los pueblos tan llenas
de horrores sirven de guía a la juventud en vez de ampararse en la inefable luminosidad
del Evangelio de Jesús. Desde nuestros primeros años nos predican la guerra como cosa
necesaria para la gloria de la patria. El patriotismo borró de la historia a los espíritus
débiles pero llenos de amor… Cuando en la historia nos quieren hablar de Dios, aparece
la espantosa Inquisición. Cuando de formas de pedir misericordia, aparece aquel
formidable espíritu del mal llamado Domingo de Guzmán. Cuando nos hablan de la fe

298
en el más allá, nos enseñan la execrable figura del rey Carlos, el encantado por
Barrabás. El maestro se levanta y dice: ―¡Amar a España! En sus dominios no se ponía
nunca el sol‖. ¡Ay, nuestras gloriosas tradiciones!. Todas incubadas en la maldad y
amparadas cobardemente a la sombra augusta de la cruz… España tomó para encubrir
sus maldades a Cristo crucificado. Por eso aún vemos su ultrajada imagen por todos los
rincones. Con el nombre de Jesús se tostaban hombres. En el nombre de Jesús se echó a
la ciencia de nuestro suelo. Con el nombre de Jesús ampararon infamias de la guerra.
Con el nombre de Jesús inventaron la leyenda de Santiago guerrero. Toman la luz y la
hacen oscuridad. Toman la paz y la hacen luchas. Toman la gloria del amor eterno y
crean la fuerza para amordazar conciencias. Éstos son crímenes de lo que llaman
patriotismo. Éstas son aureolas de la bandera española. Todas las banderas de todas las
naciones están nimbadas de sangre mártir que no dio la fuerza que según los reyes debió
dar. ¡Ay, Dios mío! ¿Hasta cuándo hemos de invocar a nuestras tradiciones…? Porque
aquí en España pocas veces se nombran en las escuelas aquellos hombres suaves y
plácidos que predicaron la paz por las mesetas castellanas y no los mientan por
considerarlos malos españoles indignos de pertenecer a este desventurado país. Nuestra
tradición guerrera no significa nada, puesto que el presente no dio su utilidad. ¿Qué
oscurecer la conciencia con los recuerdos de sangre? Debemos de formar en las escuelas
ciudadanos amantes de la paz y conocedores del Evangelio. Debemos de crear hombres
que no sepa que existió el desdichado de Fernando el santo ni Isabel la fanática ni
Carlos el inflexible ni Pedros ni Felipes ni Alfonsos ni Ramiros. Debemos de resucitar
las almas niñas contándoles que España fue la cuna de Teresa la admirable, de Juan el
maravilloso, de don quijote divino y de todos nuestros poetas y cantores. Ocultar a los
niños que tuvimos reyes fraticidas y sanguinarios. Borrar de las conciencias el admirado
gran capitán y echar el velo del olvido sobre el pasado. Que en las escuelas en vez de
decir cantando ―a Felipe I sucedió Felipe II‖, que griten los niños ―Y nació Cervantes y
Fray Luis‖. Inculcar el amor a toda la humanidad en los niños y el odio a las espadas y a
los escudos.. y que una mañana , mañana con arreboles de sol glorioso y perfumes de
verdad y justicia, vayan todos los niños en procesión a los campos con las manos llenas
de rosa y claveles y que se detengan frente a un gran monte de libros de nuestra historia
que esté ardiendo con gran furia… y los niños cantarán el amor de la humanidad. Luego
que sea el monte ceniza, que arrojen sobre él las flores y de ellas surgirá el milagro. Un
evangelio gigante se abrirá y los niños leerán el consuelo para la vida… y del horizonte
brotará la aurora de una paz infinita. Hay que arrancar las nefastas ideas patrióticas de la

299
juventud como hay que arrancar a los patrioteros por honor a nuestras madres el
concepto de la patria madre. ¡Nunca puede ser madre nuestra la que según decís
tenemos que dar hasta la última gota de nuestra sangre por ella ¡ Ella nos lo manda y eso
no lo ordena ninguna madre. Vosotros los que empuñáis eternamente las armas en vez
de empuñar el arado o alguna cosa santa y útil no sabéis lo que es una madre. Las
vuestras al permitir que fuerais fratricidas ya dieron prueba de que no os sintieron en sus
entrañas. ¡No, señores luchadores de oficio! ¡No! ¡No! Y ¡No! Las madre que poseemos
son la que nos dio el ser y la de todos los hombres. La humanidad. ¡No, caballeros de
bufido y la espuela ¡ La madre es el amor gigante, la piedad, el sacrificio. El único amor
verdadero que posemos en la vida. La madre es la compasión, la luz, el beso de Dios. La
madre es el cuerpo del cual somos alma y corazón. ¡No, patriotas oscuros, la patria no
es nuestra segunda madre! En todo caso una madrastra como la de Cenicienta. Lo que
nos envía a matar hombres contra la razón no puede ser madre. Hay que ser hijos de la
verdadera patria. La patria de amor y de la igualdad…

INVOCACIÓN

¡Ay, desdichada España! País de negruras, de fuego y horror. Apoteosis de la


imbecilidad dirigida por curas lujuriosos, toreros, chulos, prostitutas sin alma, ladrones
de frac e ignorantes de fe. ¡Ay, divino país de colores, de apasionamientos, de sonidos y
religiosidad campestre! ¡Ay! ¡Ay, tierra mártir de unos cuantos espectros del mal que
manan en tus ricos senos tu pureza y tu hermosura! ¡Ay, pueblo débil y durmiente que
has asesinado a Alonso Quijano el Buelo! ¡Ay, multitud fría y sin alma que abandonas a
los Cristos que salen salen a redimirte…! ¡Ay, moribunda España! Hombres sin sangre
y sin bríos amordazados or los vampiros de la noche de la razón.. Desdichado país
cubierto de cipreses de muerte… Estabas hundido en los ponzoñosos lagos de los
crímenes políticos y unos caballeros andantes del bien te quisieron salvar … ¡Ay, y no
pudieron porque tu corazón no se despertó del todo y volcaron sobre él la fuerza
eternamente injusta! ¡Ay, mártires de las ideas de la fraternidad calumniados por los
eternos comediantes del mal! Nubes de apasionamiento y romanticismo que os
disolvieron antes de que escanciarais vuestros perfumes. Hombres de todo corazón que
pasasteis un calvario de dolor entre los que se llaman patriotas. Espíritus de amistad y
de bienestar, que os cortaron las alas en el primer vuelo gigante. Caballeros pregones
del humilde que quisisteis escribir la salvación sobre el cadáver de España…

300
Amaneceres de juventud que cubrió con su manto ignomioso la vejez desastrosa.
Sacrificados de vuestros sentimientos que abandonasteis vuestro bienestar del hogar por
amor a vuestro pueblo. ¡Admirables valientes de la verdad! Ya lo veis, los que ordenan
las cosas de vuestro país os arrojan tonsurados y disfrazados con el traje afrentoso sobre
un lago de horror para toda vuestra vida. ¡No! ¡No! ¡Mártires! ¡Cristo! ¡Quijotes!
Imposible. Vuestro pueblo rugirá: aún es león. ¿Dónde están los poetas para que lloren?
¿Por qué senda se perdieron los ecos del español todo pasión? ¡Admirables caballeros
de la igualdad, el divino poeta Hugo está llorando por vosotros en la eternidad!

29 de octubre de 1977

301
Anexo 3

Entrevista com Ian Gibson

Madri, setembro de 2009.

S: - Hasta la década de los 80 la obra de Lorca estaba prohibida, casi prohibida en


España, hasta los 70, no sé.

I:- No, es que realmente empezó un poco antes, empezó con la salida de la primera
edición, Aguilar de las obras completas, entre comillas digo yo, porque no eran obras
del todo completas, había algo de sensura todavía. Pero el mismo Franco, el mismo
General Franco dió su permiso en el año 54 para que saliera aquel libro. Claro que tuvo
un gran éxito aunque era un libro muy caro para los alumnos y todo eso, pero él dió su
permiso porque Lorca ya suponía un problema para el régimen. Llegaba mucho turismo
ya para España y no podían seguir negando la existencia de un poeta llamado García
Lorca, porque hasta aquel año no se publicaba aquí, pero claro, el régimen vió, o los
asesores de Franco entendieron que creaban una muy mala imagen del país en el
extranjero.

Lorca... su fama crecía, crecía crecía, en el estranjero y aquí no se publicaba de modo


que tenían que hacer algo y yo creo llegaron a un acuerdo con la familia del poeta sobre
el tema de los restos pero esto fue a mediados de la década de los 50. Es cuando empezó
un poco el deshielo.

S:- Y toda la obra que conocemos hoy...

I:- Bueno es un mundo, pero yo... me gusta un pequeño capítulo al inicio del libro. Pero
son así, son tremendos, cada día, cada noche, él está en lo mismo: el compromiso con
los demás, con el prójimo, con los débiles, con las mujeres. Claro, porque es un tipo que
se da cuenta que le van a excluir y no quiere ser excluído. De modo que yo creo que su
compromiso es muy fuerte. Lo que pasa, él no es militante de un partido político, es
incapaz Lorca. Te imaginas a Lorca con un carnet del partido comunista, llendo a
reuniones, votando, por favor. Él está entregado a su obra pero su obra es revolucionaria
y si eso no lo ven es que están ciegos o malévolos o ambas cosas a la vez.

302
S:- Y tu ibas a decir de la derecha y el tema de Lorca

I:- Bueno, Lorca es un gran problema para la derecha de este país. primero por su
homosexualidad y la temática de Lorca y luego por el tema de su asesinato. No quieren
que se encuentre a Lorca porque eso iba a ser una noticia mundial. Eso iba a enfocar la
tención del mundo sobre un hecho no reconocido que es que este país tiene mas
desaparecidos que toda la América junta ¿comprendes? porque la cifra ya ronda por
160.000 desaparecidos. Y la verguenza de este país es lo que pasó debajo de la
dictadura, cuando Franco siguó matando sin que la iglesia dijera nada. Continuó
matando a decenas de miles de inocentes, y eso no quieren que se sepa. Por eso dicen
"no, no, hay que olvidar al pasado y construir el futuro". Pero no se puede construir
nada sin saber lo que pasó. Ahía está la lucha. Y desde luego será gravísimo si este
partido vuleve al poder en algunos años, yo ya estoy preparando mi salida
¿comprendes? porque si los españoles son capaces de devolverles la llave a esta gentuza
van a cerrar todas las puertas a la investigación. Y la mitad de este país como no lee
nada, o si lee algo es la prensa de derecha y escuchan la radio de derecha.

S:- Y creen en lo que le dicen...

I:- Sí, por supuesto. Porque habría que enseñar a los chicos a no ver la prensa. Es el
"pan y circo" del Imperio Romano, pues para que el pueblo esté contento, dale circo
¿comprendes? La gente adulta no, no... en fín. Y bueno, pues es un momento muy
preocupante, de modo que Lorca es un gran problema para la derecha. No lo dicen
abiertamente porque eso sería incorrecto. No pueden decir "es una mierda de maricón",
maricón rojo, pero eso es lo que piensan.

S:- ¿Piensas que la España intenta ser políticamente correcta? Intenta... ¿intenta ser
democrática con sus discursos?

I:- Pero es que lleva muy poco tiempo, este país jamas ha tenido democracia. 5 años de
república, 5 años muy difíciles con elecciones a la mitad del camino que ganan las
derechas, la coalición y todo se vuelve atrás. Los primeros 2 años fueron brillantes,
con crisis económica, crearon 11.000 escuelas en dos años. Mas de lo que se había
hecho en 50 años anteriores, pero luego perdieron las elecciones porque la izquierda
como siempre es incapaz de unirse, siempre hay discrepancias obviamente en la
izquierda, es natural. Pero las derechas formaron una coalición y ganaron las elecciones
2 años luego del (nombre de un partido) y luego viene el Frente Popular cuando ya

303
había una crispación tremeneda en todo el país. De modo que bueno, tu me has
preguntado, políticamente correcto, es que no tiene mucha experiencia. Yo creo que el
país ha hecho muchos avances en poco tiempo pese a la derecha que hay ¿no?. Pero eso
no se aprende de la noche a la mañana, la noción de lo que podría ser una democracia,
de mantener limpia la acera de tu puerta ¿ya has visto basura como aquí? es como
Londres, el gran fuego en Londres en el siglo XVII, Londres se quemó porque la gente
hechaba la basura a la calle.

[...]

I:- Es que no se puede ser de derecha, no se puede. En fín, estamos en esta lucha y
Lorca es el gran símbolo. Es el desaparecido mas famoso de la guerra civil española, y
su propia familia no quiere ocultarlo.

S:- Yo no puedo comprender. Yo pienso que hay algún motivo, alguna cosa.

I:- Lo que no es normal es que son 6. 6 herederos y todos de acuerdo. Yo lo he dicho, y


cuando yo lo digo ellos me llaman de cinico.

I:- Si encuentran los restos se podría saber, según el estadosde los restos ¿no? primero si
está o no está, es muy importante.

S:- Si

I:- Si lo encuentran se podría saber cómo murió ¿no? Es una cuestión de dignidad,
estamos hablando del español mas famosos del mundo, después de Cervantes. Y todavía
está allí, como un perro y su propia familia en contra. Y dispuestos a no ayudar nada. Si
se encuentra, han dicho que no le harán ADN.

[...]

S:- ¿Y el tema del dinero?, nadie dice que es un problema.

I:- Mira, cuesta mucho abrir, pero en una nación como esta, es una cuestión de
dignindad, buscar a los muertos. Ellos buscaron todos ,los suyos. A lo largo de estos 40
años ellos desenterraron todos sus fusilados. Y nosotros no vamos a tener, digo
nosotros, el mismo derecho, cuando es un crimen, es un genocidio. Estamos hablando
de un genocidio, no se atreven a decirlo los socialistas porque saben que van a perder,
que pueden perder las elecciones y si insisten puede haber una reacción en contra y todo
eso. El hecho es que estamos hablando de un genocidio. La guerra civil misma, la
sublevación. Habían decidido ya matar a la mitad del país si hacía falta, lo sabes ¿no?.

304
Existen los documentos, se levantaron ya sabiendo que iban a matar a mansalva y lo
hicieron a rajatabla. Y lo peor es que continuaron después de la guerra. ¿Porqué
continuaron? porque creyeron que iban a ganar la guerra mundial, iban a ser una
potencia mundial, y no tenían miedo porque creían que iban a ganar. Sólo pararon las
ejecuciones cuando el régimen se dió cuenta de que los Aliados Iban a ganar. Pero ellos
creyeron que los Aliados habiendo ganado iban a derrocar a Franco y no lo hicieron
tampoco. Es terrible. Eso es lo que hay aquí. Debajo de la superficie todavía hay guerra
civil. Y cuando una persona como Esperanza vive, de vez en cuando, y dice que
Zapatero es un "rojo", como hablan del Primer Ministro Zapatero, quitan el "Rodriguez"
y es Zapatero. Es tremendo... y es un "rojo" claro, para ellos sólo es un rojo. Y hay
mucha hipocresía, muchísima hipocresía.

S:- Y bien, volviendo a Yerma, porque he visto que muchas críticas dijeron que Yerma
es una obra antiespañola. ¿Y cuáles otras obras de Lorca podrían ser vistas como
peligrosas para las ideas tradicionales de España?

I:- Bueno, obviamente El Público, pero nadie conocía el texto de El Público entonces. A
demás El Público tiene un lenguaje surrealista que hace difícil su comprensión, de
modo que sobretodo Yerma. A demás Yerma se estrenó aquí el año 34 cuando estaban
las derechas en el poder. Y claro, ellos vieron la obra como un ataque a los valores
tradicionales católicos de este país. Porque hay una vieja que sale... Yerma dice
masomenos "que me ayude Dios" y la vieja sale y le dice: "Mira, cuándo te daras
cuenta de que Dios no existe". ¡Imagina! En el año 34. Y hubo protestas en el teatro, y
los fascistas trataron de romper el estreno com Margarita Xirgu en el papel de Yerma.
De modo que eso es muy importante, es un país muy pequeño ¿no? Madrid tenía medio
millón de habitantes y todo del mundo conocía a todo el mundo. De modo que Lorca a
partir de aquel momento es considerado como un enemigo de la España tradicional y
sólo hace falta leer las reseñas. Hombre, yo en mi capítulo ahí hago un poco un análisis
de las reseñas, pero feroces... feroces, ahí se ve el odio que él suscitaba con su... y era su
intención, remover las conciencias, hacer que la gente tenga que pensar. Eso, es un
revolucionario.

S:- Ahora que estás diciendo me estoy acordando de una carta que envía su familia,
pienso que en el estreno de La zapatera, no me acuerdo. Un estreno. Y dice para su
familia en su carta que no tiene nada de política la obra.

I:- Ah, Mariana Pineda


305
S:- Ella. Y pero que no hay nada de político, que es una obra de arte, que queria que ella
sea vista como eso. Pero después parece que se cambia la idea.

I:- Pero él dice esto para que no estén preocupados. Hombre, están en pleno régimen de
Primo de Riveras, creía que iba a haber problemas.

S:- Es para la madre, "no madre, no, estoy andando con buena gente"...

I:- Tal vez, tal vez. Claro que en aquel momento, es obvio que el tema de politica tiene
que ver algo ¿no?, pero tampoco Primo de Rivera es Franco ¿no? Es que es uma
ditadura blanda como decía. Primo de Riveras era un hombre cálido y le gustaban las
mujeres y salía por la noche y todo eso, tampoco era exactamente el régimen franquista,
aunque Lorca claro estaba en contra de la dictadura de Primo de Rivera. Pero yo lo
veo...

S:- No ves aquella contestación como... es que después no sé, su familia siempre usa.
No se que... que no era político...

I:- Su familia, hombre, se fue radicalizando

S:- Se fue a reducir como homosexual y de izquierda su obra, no se qué...

I:- Eso es una tontería. Sólo hace falta leer el corpus juvenil para ver como es el pobre
¿no?. Absolutamente al lado de la gente. Luego hay una identificación con Cristo muy
importante. Lorca es cristiano sin dioses, es decir, él admira profundamente la persona
de Cristo, el mensaje de Cristo, se identifica con Cristo, la identificación es clarísima.
Eso lo vio prmero un amigo mío Eutimio Martín que hizo un libro sobre Lorca. La
identificación es clarísima. Y Adela, cuando habla de la corona de espinas al final de
Bernarda Alba también, porque Adela es una proyección de Lorca hasta cierto punto.
Si, si, lorca admira, ama profundamente a Cristo. Hombre, y sin creer en el más alla, en
la aparición. Y es explícito en la obra. Cristo le parece el aquetipo del hombre que
piensa en el otro. Hay algo de misionero en Lorca. Quiere cambiar el mundo, pues no
entrando en el partido comunista, ¿no? Porque él no puede ser militante de un partido,
entrando en una célula diciendo... pero desde luego la obra es revolucionaria, yo la veo
así.

S:- Sí, yo también. De los temas recurrentes de Lorca, la libertad y la muerte son temas
de su obra que son recurrentes. ¿Esto se puede deber a la situación social existente en
España, antes de la guerra? ¿O una posible capacidad profética de Lorca?

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I:- Hombre, una posible capacidad profética, yo no sé hasta que punto. Aunque han
dicho que él tenía como un sexto sentido en relación... hay algo de escalofrío. Hay algo
de sentir la presencia de la muerte en todo. Yo supongo que eso le viene del pueblo, de
las campanas, un poco como en el caso Luis Buñuel. Toda la infancia, la madre es
católica y los hombres no tanto en el pueblo ¿no? Pero él tiene todo eso de la liturgia, de
las campanadas, de los muertos en el pueblo, de ver los ataúdes. Él tiene una obsesión
con la muerte para mí profunda, un temor a su propia muerte, es casi una obsesión. Eso
se ve también en Rubén de Rio y Ruben de Rio es su maestro en poesía, no sé si tú
conoces la obra de Rubén pero... ¡hombre! Sin Rubén de Rio el Lorca que tenemos no
es el mismo. Él se inicia en la poesía bajo la influencia, invadido por la obra de Rubén
de Rio. Y yo lo entiendo, porque yo entré también en este idioma un poco leyéndolo a
Rubén, fué mi primera lectura y cuando luego yo ví que había una relación de Rubén
con Lorca fue importante en mi vida. De modo que, un espanto.

I:- Mariana Pineda, hay allí toda una identificación con ella ¿no? Todo el tema de la
bandera de la libertad y Fernando VII. Todo eso lo tiene ya muy interiorizado. La
libertad, claro.

S:- ¿Pero porqué piensa que él tiene esta...? Porque, estoy pensando aquí. Porque
Mariana Pineda fué importante en Granada, había incluso procesiones por ella en su
tumba. O sea, una imagen popular fuerte, pero al mismo tiempo que hay esa imagen
fuerte de la mujer que busca la libertad, y no sé qué, hay una represión tremenda en
Granada...

I:- Bueno, pues sí, hay todo eso. Pero Granada es una ciudad en constante guerra civil,
sabes, allí hay todo eso.

S:- Antes aún de la guerra civil

I:- Si, si, claro. Porque es una zona re poblada y tu sabes la última entrevista de Lorca
con Ballaría que la toma de Granada fué un desastre. Eso es importante, por eso están
contestaciones escritas, él no estaba improvisando. Él escribió las contestaciones, de
modo que cuando él dice que es la peor burguesía de España, es porque es una ciudad
tomada y re poblada por gente de fuera. De modo que hay esto también. Y luego
Mariana Pineda que la matan, en Granada, en su Granada, como van a hacer con él
¿no?. Entonces hay esto también, tu lo has dicho, premonición. Tal vez hay algo de eso,
tal vez él se siente ya víctima. Tal vez es posible que él tuviese ya la convicción de que

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iba a ser sacrificado, mas que nada por la misma libertad, eso no lo sé. Pero no sería
sorprendente. Él era un hombre que sentía ¿no? Hay una anécdtota de él que van a un
pueblo en las afueras de Madrid, fue a un acto en un pueblo. Y estaban ahí sentados
todos comiendo, y de repente él se pone pálido. Creo que esto lo cuento en La biografía
en 2 tomos. Y de repente se pone pálido y se levanta de la mesa y se va al huerto
¿recuerdas esto? Y alguien le dice: "¿qué te pasa hombre?" "Me siento rodeado de
muertos". Luego empiezan a indagar y había un cementerio debajo, porque es un
antigüo convento, y él siente algo. Pues yo no sé si eso es verdad o no, eso lo cuenta
Jorge Salamea, un colombiano. Él estuvo, él presenció esto. Y después de comer no
quiso volver a la mesa, se niega a volver. Y fueron al ayuntamiento, no se qué, hicieron
una investigación y resultó que allí debajo había antes un cementerio de monjas, bueno
y él sintió algo. Hombre, yo no sé si fue así o no. Tampoco sé si fué a Granada sabiendo
lo que le iba a ocurrir o no, pero es posible una intuición ¿no? Telepatía, lo que tú
quieras llamarlo ¿sabes?

S:- Para la gente de Brasil esta idea intuición y de sentir los muertos es muy fuerte,
asique...

I:- Se capta enseguida ¿no? Por eso si él se va a México en vez de estar en Granada para
que le maten, habría sido su segunda patria ¿no? Seguro. Yo no lo dudo

S:- Yo tampoco. O tal vez Cuba, no se...

I:- Bueno él dijo, si yo me pierdo, ¿sabes lo que dijo? ¿la frase? "Si yo me pierdo, que
me busquen en Cuba o en Andalucía" pero no había estado en México. Yo por mí creo,
él en México habría estado en su casa.

S:- Sí, y la religiosiadad de Cuba es muy fuerte con esta cosa de...

I:- Si, y la mezcla de lo negro y lo blanco y todo eso. Él fué en Cuba a una casa de
Boodo, con Livia Cabrera, su amiga cubana, era experta en todo el tema de folcklore
cubano y todo el tema de los ñáñigos, de los ñáñigos. Ella le llevó a una ceremonia de
los ñáñigos que es un grupo de boodo y se puso palidísimo, vale.

S:- En tu opinión ¿cuáles fueron las causas principales que desencadenaron su


asesinato?

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I:- (Risas) Me preguntas poco, no. ¡por Dios! Bueno, primero es un hombre muy
conocido ¿no? Es decir que no estamos hablando de un poeta que está empezando,
estamos hablando de un hombre famosísimo.

S:- Pero crees que la gente aún piensa que Lorca no tuvo éxito.

I:- Ah ¿si? Bueno, no saben lo que dicen. Yo sí se, porque yo conozco la prensa de la
época.

S:- He visto otro día que en Argentina ha sacado dinero para comprar 3 coches nuevos
de la época, sólo con 12 o 20 días en Argentina ¡joder!

I:- Bueno pero yo he estado en el Teatro Avenida, yo he estado personalmente, se


incendió ¿no?. Pero es el teatro mas enorme de Buenos Aires. ¿Has estado dentro?

S:- Si

I:- Bueno sabes del aforo, caben 3000 personas o no se... bueno él llenó no sé cuántos
meses con Bodas de Sangre ¿no? Pero a teatro lleno ¿no? Y mandó a su padre un talón
gastronómico. Bueno, esto creó envidia. De modo que primero él tiene una... es muy
conocido, de los jóvenes es el más conocido. Ya está teniendo... a demás empezando su
fama internacional. En América del Sur, pero también en Nueva York están preparando
Bodas de Sangre en inglés, bueno está en auge y la gente lo sabe ¿no?. Luego está
totalmente identificado con la república, con la república progresista, no con la otra
¿no? Y bajo el Frente Popular hizo muchas delcaraciones, firmó manifiestos
antifascistas, leyó el romance a la guardia civil en público, que era un acto político, y
está totalmente identificado con el Frente Popular. Y luego la fama, la identificación y
la envidia. Y el hecho homosexual que aparece en la prensa, en la prensa de derecha...
alusiones, eso lo sabes ¿no? Que en la prensa... bueno eso está en mi libro. De modo
que hay todos esos factores. Luego la envidia hacia la familia. Su padre ha tenido un
pasado político, su padre por el Partido Liberal. Es un terrateniente en Granada pero está
con la República y todo eso se sabe. En Granada, sobre todo se sabe en Granada y en
sus críticas. Todo esto junto en un momento dado fué mas que suficiente para que lo
matasen porque mataron a muchos mas del bando republicano. Pero él claro, él es una
persona muy conocida con una obra que ellos consideran revolucionaria y roja ¿no?

S:- peligrosa...

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I:- Claro, es peligrosa. Y eso no olvides que yo he conocido personalemente a Ramón
Ruiz Alonso, le he hablado a esta distancia, a esta distancia...

S:- Ya le iba a hablar de eso yo... no, es que yo utulizo muchísimo ese libro de El
hombre que detubo a García Lorca.

I:- Sí, pero luego allí no reproduzco la entrevista, pero la entrevista está en mi libro
sobre la muerte. De modo que yo he oído a ese hombre hablar, y yo he visto cómo era.
Años después, de modo que imagínate cómo era cuando tenía 25 años. Y es diputado.
Ahora estoy tratando de localizar su tumba en este momento.

S:- Pero se murió en Estados Unidos

I:- En Las Vegas. Se fué con una hija, otra hija, no la famosa, claro.

S:- ¿La famosa no habla de tema?

I:- No, se niega.

S:- Entonces entrando en el señor Ruiz Alonso. No es de conocimiento general la


victoria de la denuncia

I:- Bueno, no sabemos todavía, lo de la denuncia, yo tengo la declaración oral, no se si


tengo la grabación, yo creo que no, del hermano Rosales, de Jose Rosales. " días antes
de su muerte él me dijo lo de la denuncia, pero claro esto procede de un par de décadas
después que obviamente tendría interés en poner a... ahora yo creo que no mentía, yo
creo la denuncia salió del partido del de Lacera. Yo creo que sí, que él era su diputado,
uno de ellos, aunque ya ex diputado amargado de todo eso y prácticamente fascista.

S:- Y oficialmente ¿Cuáles eran los motivos de la denuncia? ¿Qué decian ellos en la
época, de hecho...?

I:- Que Lorca tenía una obra subversiva, peligrosa, que era amigo de Fernando de
Rodriguez que era el Ministro socialista, que era homosexual y que tenía una radio
clandestina y todo eso. Claro es en un momento en que se cree todo. Tú decías eso y al
paredón. Bastaba que alguien pusiera una denuncia. En aquél momento, hay que
imaginar aquel momento. Ellos se han sublevado y pueden perden en cualquier
momento. Y bueno ya vienen con un plan de matar a gente ¿no? Y Lorca es un enemigo
¿no? No cabe la menor duda de eso. Es un enemigo principal y encima rojo, principal y
famoso, hay envidia también en todo eso.

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S:- Rojo, maricón y con éxito, osea...

I:- Si, si ,si. Y en un sitio como Granada, conocido como sitio peligroso. Ahi la gente
que triunfa alli fuera y vuelven, siempre es difícil. Yo conozco otros casos, un caso
actual, el del novelista Antonio Muñoz Molina auque él es de Jaén pero estuvo en
Granada. Y tu vas a Granada y todo el mundo dice que es una mierda, que no sabe
escribir, y es uno de los mejores novelistas del país, sin lugar a dudas. Es lo mismo en
todos los sitios pequeños, pero Granada tiene eso de ser un sitio re poblado con odio
hacia lo moro, lo árabe y todo eso. Y cada año celebran la toma de la ciudad en la
Catedral, y entraron los militares en la Caterdal para recordar la caída de Granada. Y lo
ha dicho miles de veces. Tiene todo en contra, absolutamente todo, en aquel momento.
Hombre y unos meses después tal vez alguien habría visto el peligro de matarlo, sabes
pero en los primero momentos cuando hay una especie de régimen de terror y nadie
sabe qué va a pasar y mucha inseguridad.

S:- Pero bien, pienso... pieso que tú también. Si él no saliese de España, no se quedaría
vivo. Una hora u otra iban a... Si no fuera un mes después, como ha pasado...

I:- Bueno sólo 1 mes después Franco todavía no es jefe. Unos meses después cuando se
ve que es una guerra civil que va a durar y todo eso. Entra el facto internacional y
alguien habría dicho "mira no podemos hacer eso porque sólo van a utilizar contra
nosotros".

S:- La gente está mirando, sí.

I:- Sabes yo creo que algo de eso.

S:- Pero, ¿piensas que si Lorca no fuera muerto muy pronto él podría seguir vivo o no,
seguiría siendo un...?

I:- Pues eso es lo que no sabemos, yo no lo sé. Cómo habría podido vivir en aquellas
circunstancias, es impensable. Casi diría mejor muerto ¿no?

S:- A veces sí.

I:- A veces pienso que sí.

S:- A demás de Ruiz Alonso ¿quienes son los otros hombres directamente relacionados
con la muerte de Lorca?

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I:- Bueno, está... es el gobierno civil claro. Porque ahí ha habido una uzurpación del
poder, cuando viene un señor, quitan el gobernador civil y meten otro, ese otro se llama
poder no civil, bueno pero es una uzurpación, es un uzurpador. Pero es quien dirige, a
demás Valdez este José Valdéz Guzmás era también camisa vieja, como decían no era
de los antiguos, pero él es militar, quienes mandan allí sobre todo son los militares, y
bueno él es quien decide. Probablemente consultando con en Sevilla porque su jefe
inmediato. Porque Granada no es capitanía general, es comandancia. No tiene la fuerza
que tiene Sevilla en aquellos momento quien dirige allí es Queipo de Llano cada noche
por la radio, es un asesino atroz.

[...]

I:- Hay muchísimo mas que no sabremos nunca. ¡Muchísimo! Porque no sabemos cómo
fué. Hombre nadie contó ni contará nada. Nunca. Hay mucha gente que sabía pero no lo
han contado. Y yo no les perdono esto, el silencio. Como en la nada ¡silencio! mi hija
ha muerto bueno, tamibén es una premonición. Silecnio sobre la tumba, silencio sobre
la verdad, silencio.

S:- Que nadie llore

I:- Y seguimos todavía sin saber dónde está el muerto. O si robaron el cuerpo como a
Cristo, si desapareció el cuerpo. Yo estoy enfermo con esto.

S:- Sí, para mí lo peor es ver que a la gente no le importa, y cuando yo digo, que ¡Por
Dios! TieneN que saber dónde está el cuerpo. Dicen "no, es que tal vez, la familia..."
Así, todo tan pacífico, no puedo comprender. Y gente, asi, de la Universidad. Poca
gente dice "no, es un absurdo, no se puede".

I:- Hay mucha gente que sí lo dice, pero en fín, ya sabemos cómo es. Esta semana creo
que habrá algo sobre la familia Lorca, porque la prórroga se acaba. Es que la junta de
Anadalucía, que va a hacer esto, les dió 15 días para hacer alegaciones, eso fué hace 15
días. Y la familia Lorca pidió una prorroga de 10 días para poder saber un poco mas
sobre algo nuevo. Pero tiene que... esta semana se acaba. Tú te vas justo cuando...
bueno, lo verás en Internet ¿no?

S:- Voy a tener que pedir para volver (risas)

I:- Sí, si tienes que pedir para volver, si.

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S:- A ver... Ruiz Alonso te dijo en la entrevista que estaba solo en el momento que
detuvo a Lorca. Pero se sabe que es mentira.

I:- Claro, todo lo que él ha dicho no hay que darle mucha credibilidad. Él tiene su
versión preparada y me dice su versión preparada.

S:- Sí, pero mi pregunta es ¿porqué piensa que él quiso dar esta imagen de que estaba
solo?

I:- ¡Ah! Porque él es un hombre muy orgulloso de su virilidad. El señor Ruiz Alonso no
necesita nadie...

S:- Pero llama al otro para preguntar si puede dar café... ¿comprende?

I:- Bueno, pero es un hombre absolutamente...

S:- Entonces, por la fama piensa...

I:- Bueno, primero nada se habla de todo lo que dice, él no va a decir... no, yo fuí bajo
mi único nombre, bajo mi única responsabilidad. Es su carácter, él es un energúmeno,
es un tío muy pagado de sí mismo, mucho rojo, muy macho ¿no? Cómo iba a ir él con
gente con fusiles ¡no, en absoluto! Y luego estaba rodeada toda la casa. De modo que
miente, miente, miente.

S:- Y después dicen, todos saben que Lorca no era un tipo muy valiente ¡Ah no!
Entonces porqué tanta gente, porqué tantos guardias. Si él no era valiente, ¿entonces
porqué tanta protección?

I:- Él niega que hubiera eso, él lo niega. Él dice, no hubo nada. Pero claro, cuando
murió Franco, se fué a Estados Unidos, ¿lo sabes? ¿tu ya has leído todo eso? Claro
porque él sabe lo que le aguardaba aquí sin protección del régimen.

S:- Muy bien, y él se fué porque era valiente, y el otro que se quedó no era valiente.

I:- Bueno, muy bien, tú a eso lo escribes. Tiene toda la razón del mundo

S:- Fíjate que la gente no pone atención a eso... bueno cambiando un poco por cuenta de
las cosas allá que tengo que decir. En tu libro tú dices que Lorca tiene una deuda con
Shakespeare.

I:- Con Shakespeare, claro, muy grande.

S:- ¿Cuál es la deuda tan grande?

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I:- Bueno es que él cuando es jóven, cuando es adolescente, lee a Shakespeare, sobre
todo Sueño de una noche de San Juan, de verano, es la noche de San Juan. Yo creo que
le impacta profundamente leer a Shakespeare. La humanidad, la mezcla de tragedia, de
comedia, todos los registros que toca shakespeare, el amor, bueno aquella obra influyo
mucho, hay un poema juvenil que yo creo que menciono donde habla de la obra. Y es
un tema recurrente el amor que puede ocurrir en cualquier momento, que no se puede
elegir, que es algo que ocurre, todo eso es parte de su manera de ver el mundo y la vida
y él... Shakespeare le llega sin saber inglés y tampoco le hacía falta, Lorca es un genio
poético y capta enseguida los matices.

S:- La homosexualidad de Lorca fué un tema tabú hasta hace poco tiempo en España.

I:- Bueno, todavía es un tema tabú, pero menos que antes.

S:- Si, es que como ha dicho el chico en el teatro "no, porque ahora ha cambiado todo",
yo no aguantaba. "Ahora españa tiene matrimonios homosexuales, no sé qué"...

I:- Bueno, pero todavía el debate aquí es inmaduro. Todavía no se habla de


"homosexualidades". En el mundo anglosajón ya se habla de "homosexualidades". No
es todo igual ¿comprendes? Aquí se habla ya de ser gay, pero eso tampoco nos dice
mucho, es algo mucho mas complicado, con muchos matices, pero eso todavía no se
debate aquí. Pero está empezando ¿no? ¡hombre! En 30 años no se puede pedir peras al
olmo... llevan 30 años de democracia, en 30 años no se puede cambiar un país, aunque
el país ha avanzado ¿no? Tenemos una legislación en relación con los gays muy
avanzada, y eso es admirable, eso es gracias a los socialistas, pero desde luego la
derecha, nada. De modo que el país ha avanzado pero en 30 años tampoco se puede
cambiar una mentalidad. Y bueno, hacen falta muchos libros y muchos estudios y
mucho aprendizaje ¿no? Porque no sabemos. Decir que Lorca es gay es un paso en
adelante, pero tampoco sabemos mucho acerca de su vida íntima ¿no?

S:- Bueno, tampoco podría ser distinto porque en aquella época exponer las cosas así...

I:- Ah es muy fuerte lo que él hacía. Tienes que conocer muy bien la obra El Público ,
es fundamental. Porque Lorca se quiere liberar de su familia y tiene que ganar dinero,
aunque su padre tiene pero él no. De modo que El Público se puede poner y es el año
30, es increíble, es anterior a Bodas de Sangre, es anterior. Él vuelve al tema andaluz
porque ve la posibilidad de ganar dinero también. Porque él no puede imponer su teatro
de verdad. Y él dice, eso no es mi teatro de verdad, mi teatro de verdad es El público. Y

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asi que pasa en 5 años, que no ve ni uno ni otro. Y son del año 30 y 31, anteriores a
Yerma y a Bodas de Sangre, de modo que estamos hablando de alguien que tiene una
obra hecha que no ha podido estrenar. Es importante, y él escribe Yerma habiendo
escrito ya El Público. Y tú sabes que volvió de Cuba diciendo "vengo con esta obra"
que es la cosa mas homosexual, francamente homosexual. Es la única vez que menciona
el tema, en la documentación que tenemos. En la documentación que tenemos, es la
única vez que él dice "vengo con una obra francamente homosexual". Fíjate, es
tremendo. Eso ya calla todas las voces, sí él mismo lo dice... a mí me acusaban de todo.

S:- Sí, por eso mismo he dicho de la carta para su madre, que él dice que no tiene nada
de político. Eso es como...

I:- Bueno, era aquel momento, sabes, están muy descontentos con él porque no está
ganando nada. La madre de él se queja, la madre es terrible, es terrible. Dice "Fderico,
tu padre te paga y no produces nada"

S:- Incluso las fotos de familia que veo, ella nunca mira a la cámara

I:- Nunca sonrie

S:- Siempre está así, "no quiero". Nunca está junto, él está de su lado y ella no mira... no
quiere, no sé. Rechaza

I:- Allí también todo el tema de la Bernarda Alba, no sabemos nada la relación de ella
con el viejo. Tiene que haber algo de la madre en la obra ¿no? No digo que ella fuera
como Bernarda Alba, obviamente, pero...

S:- (…) la vida de García Lorca, no me acuerdo en cuál entrevista, alguien dice que el
padre de Federico tiene predilección a Francisco.

I:- Ah bueno, porque Francisco, entre los muchos problemas que tiene Lorca tiene su
hermano. Porque es brillante, es un alumno fantástico, es una de las primeras notas en
todo, va a tener carrera de diplomático. A demás es guapo y las mujeres lo adoran. Y
Lorca va a tener ese problema. El otro ya tiene la carrera encaminada y va a ganar
dinero y va a ser un éxito, y el otro es un unútil que no... y a demás es maricón. Porque
yo me imagino que en el casino los socios del padre siempre iban al casino, siempre
habría alguien diciendo ¡oiga, los poetas, lo maricones que son!, sabes, es terrible. Y
luego, no está ganando nada.

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S:- Tal vez por eso volver a hacer una obra andaluza para ganar dinero, tal vez por
cuenta de esa cosa...

I:- Sí, necesita liberarse económicamente. No es que Lola sea una obra inferior, no. Él
puede poner allí todo su conocimiento musical, recurrir un poco al tema del folcklore de
la Andalucía y tiene el éxito garantizado.

S:- Por eso también la mujer, para poder llegar a la gente.

I:- Claro, claro, él necesita. Necesita comunicarse con la gente para sobrevivir
psíquicamente, emocionalmente ¿no?

S:- ¿Y piensas que el tema de Lorca con relación a política, como agente político, no
como partidario pero por ser un revolucionario, también es un tema tabú?

I:- Tal vez hay gente que no lo quiere, que no entiende eso es posible. Yo no puedo
hablar de la gente de hoy.

S:- Pero piensas que es un tabú

I:- No creo, yo creo que sólo sería falta de conocimiento, no veo allí ningún tabú, es que
todo el mundo sabe que Loca era republicano identificado con Fernando Rio, con el
socialismo liberal, era socialdemócrata, mas o menos en la línea de zapatero hoy ¿no?.
Y no creo que haya allí ningún tabú, no.

S:- Tal vez mas ignorancia.

I:- Si, bueno es lo que pasa. La gente no sabe nada de la guerra, los jóvenes no saben lo
que fue la república porque no se enseña bien en los colegios. Hay una ignorancia de
cómo fue la república y esa es la base del problema. Una especie de amnesia. Bueno, ni
es amnesia, es que no les han dicho, o han recibido una visión parcial de sus padres, de
la guerra, todo el tema de la guerra ha sido tan duro que no han hablado con sus hijos.
Es terrible. Los hijos de los fusilados no han hablado mucho con sus hijos, porque era
demasiado terrible pensar en lo ocurrido, sólo ahora los nietos. Los nietos que quieren
saber, porque sus padres no les explicaron nada. Eso es ahora lo que estamos viendo.

S:- Ahora entonces sobre el cuerpo de Lorca que hasta hoy no fue exhumado. ¿cuándo
piensas que eso puede cambiar, cuándo piensas que pueden exhumar el cuerpo, y cuál es
la importancia de exhumar el cuerpo?

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I:- Bueno yo creo que vamos a ver algo muy pronto. Estamos hablando en septiembre
de 2009, la junta de Andalucía dijo que van a empezar esto en noviembre. Y desde
luego lo van a hacer, porque hay otros en la fosa y ademas un nuevo candidato, no se,
no se cuántos son, yo creía que eran 4 pero ahora dicen que son 5. Y la nueva familia
quiere buscar.

S:- ¿Y quién es este quinto que tampoco lo conozco?

I:- Bueno es un inspector de finanzas o algo así. Parece que hay dos. De repente
aparecen dos familias que nunca habían dicho nada, y ahora dicen que hay dos mas. Yo
no lo sé, porque no he visto el material ni sé nada. Pero lo que si creo es que esto se va a
producir muy pronto. En cualquier momento se va a producir. Han dicho en noviembre,
y han dicho que lo van hacer, pero ya hay 2 familias pidiendo que se haga porque hay
problemas con la familia (…) porque es muy complicado. Pero vamos a conocer esta
semana por lo visto, la opinión, la posición de la familia, eso importantísimo. Eso por
un lado, de la familia han dicho que no quieren que se quiten los restos de Lorca, pero
luego también se ha dicho que ahora ya no se oponen, pero es posible que esta vez digan
que sí se oponen, no lo sé. Pero yo creo que digan lo que quieran, la Junta va a hacerlo,
porque la Junta queda fatal delante de la opinión mundial, quedan en el ridículo ¿no?
Pero ahora es muy complicado porque la familia ha dicho que no ayudará nada, para
nada la identificación de los restos de Lorca. Es lo que han dicho. Que no ayudarán con
el DNA, que no … Pero no se puede, cómo se va a proceder a la identificación de los
restos sin tener en cuenta el tema Lorca, es imposible, es grotesco, es una farza. Y todo
esto se va a ver ahora. Y yo desde luego voy a decir todo lo que quiero. Estas hablando
con un hombre que esta dispuesta a todo casi y estoy esperando.

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Anexo 4
Fotos da “Fiesta de Federico”
Fuente Vaqueros, 4 Junho de 2009.

Pessoas leem poemas de Lorca no pátio da Casa Museu Natal, abaixo, foto da autora lendo um
dos 111 poemas na página do Patronato Federico García Lorca

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