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PUC-SP
São Paulo
2011
Banca Examinadora
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A mi abuela Antonia Espinosa
por culpa de la sangre
AGRADECIMENTOS
Agradeço sinceramente,
ao amigo Miguel Chaia pela atenção, carinho, paciência e por acreditar que isso tudo
não era apenas uma ―lorcura‖;
à querida Vera Chaia pelo apoio constante, aos companheiros do NEAMP e aos sempre
presentes Rose, Rafael, Cristina, Marcelo (merci!), amigos na arte, vida e política. E
em especial à Fhoutine e ao Telmo, por todos os ―bons drink‖.
à generosidade cúmplice de Ian Gibson – gracias por las charlas, por la experiencia
teatral en La casa de Bernarda Alba y por comprenderme por extranjera lorquiana!
aos meus pais, Darci e João, que mais uma vez apoiaram minhas decisões; e aos meus
irmãos Marcelo (‗gracias‘ pelo esforço final!) e Geiza por estarem, cada um a sua
maneira, tão perto e tão longe.
Agradeço vivamente
àqueles que seguiram me amando, mesmo com minhas ausências, crises, choros e
lamúrias, os muito amigos Samira Saleh, Jorge Leite Júnior, Fernanda Levy, Malu
Andrade, Gustavo Gomes, Jayr Pimentel, Joana Marques (amiga e consultora) e
Leandro Siqueira. Obrigada por estarem sempre por perto. Em especial à Ana
Casarin (gracias por la paciencia y por el español) e à Rosana Portela pela dedicação
(como professora) e pela alegria (como amiga);
a mis amores de España, amistades que hicieron de mi vida ibérica una de las más bellas
de mi existencia: Larissa Pelucio, Rodrigo Rosa, Jéssica, Rocio, Clara y sus padres.
Qué bien que os conocí y os reconocí!
E agradeço àqueles que, silenciosamente, com uma única palavra sussurrada, lançaram-
me nesse caminho sem volta e sem rumo que é amar Federico – a poesia não quer
adeptos, quer amantes!
O teatro é a poesia que se levanta do livro e se faz humana.
Federico García Lorca
Resumo
Palavras-chave: Federico García Lorca; Espanha; Guerra Civil Espanhola; arte; política;
tragédia.
Abstract
Was Federico García Lorca a political agent? This is the question that
frames the research here presented. However, this question must be split in two in order
to be properly answered: first, who was García Lorca, taking into account his life and
work; second, the several possibilities for political action. Politics is not restricted to the
institutional realm, but permeates individual and societal relationships, being present
both in public and private affairs, touching and being touched by art.
A tragic artist, Federico García Lorca constitutes the main focus of this
research. To find the politics in Lorca, it is essential to understand the relationship
between his art and his life and society. With that in mind, the investigation starts from
both external and internal analyses of Lorca's works. The external analysis explores
Spain before its Civil War, given the importance of the period which is mirrored in
Lorca's works. For internal analysis, the theatrical pieces Yerma and The House of
Bernarda Alba were analyzed to investigate both the relationships among characters,
and the social conventions shown in these works. Furthermore, a number of conferences
and interviews with the author are employed in a dialogue with the theatrical works,
with the goal of understanding his relationships with art and society.
García Lorca's art, voiced by flamenco, communicated with his society and
received an answer: death by firing squad. Lorca wasn't limited to his own time and
space, but survives today, be it through his deeply disquieting art, or be it through his
still mystery-shrouded death.
Keywords: Federico García Lorca; Spain; Spanish Civil War; art; politics; tragedy
Resumen
Palabras clave: Federico García Lorca; España; Guerra Civil Española; arte; política;
tragédia.
F.G. Lorca, anos 20, arquivo Fundação Federico García Lorca
Sumário
Apresentação 12
Capítulo 1 29
Laberintos para llegar a España 35
Reinados e tiranias 42
Geração de 98 49
Múltiplas repúblicas da Espanha 65
A última cruzada do ocidente 75
A guerra sem fim
Capítulo 2
A política na arte e na vida 81
Política e morte 85
Com a palavra F. García Lorca 92
Política e arte crítica 103
Capítulo 3
A tragédia segundo García Lorca 117
Em direção à tragédia 118
La Barraca da Espanha 127
Dos clássicos ao trágico 134
Tríplice encontro trágico: gregos, Shakespeare e Lorca 136
O trágico andaluz 145
Capítulo 4
A fértil Yerma e a esterilidade hispânica 156
Sob os (infinitos) olhos dos outros 159
Ser Yerma 164
Fora de Yerma, dentro dos outros 169
Entre a cruz e o caldeirão 175
A embriaguez do ―Cristo del Paño‖ 180
Yerma, Lorca e Espanha 189
Capítulo 5
O cárcere de Bernarda Alba 199
Aprisionamentos 205
À beira de ataques de nervos 210
A tirania é feminina 230
Espanha: casa de outras Bernardas 244
Bibliografia 288
Anexo 1 294
Anexo 2 297
Anexo 3 302
Anexo 4 318
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Apresentação
e lugares, e a tragédia grega é uma das mais antigas e explícitas manifestações dessa
sociedade, permitindo que sua obra manifeste, de maneira mais ou menos explícita, sua
sociedade e as situações encontradas nela. Seja por meio de ações artísticas individuais
arte pode ser uma forma ou uma ferramenta de fazer política; e a política muitas vezes
Azoín questionou: ―com que direito se proclama a arte pela arte quando em
todas as esferas do pensamento se trabalha algo. Com que direito se vive isolado da
e arte, ao mesmo tempo em que são áreas que se diferenciam essencialmente, também
prestar-se a ela; a política pode inspirar ou dificultar a arte; a arte pode imprimir maior
potencialidade para o indivíduo seguir sua existência. Neste sentido, o teatro, cenário
1
José Augusto Trinidad Martínez Ruiz, mais conhecido como “Azoín”, escritor espanhol, citado por
J. Ruiz Martínez, “Cronica”, El país, 30/12/1986, in Fox, E.I, La crisis intelectual del 98, Madrid, 1976.
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possível para o encontro de diversas artes, foi escolhido muitas vezes como veículo de
O teatro é, em si, uma arte social, pois precisa do grupo — do público — para pode se
artista.
arte para falar de sua sociedade e de sua época. Com sua obra, ultrapassou os limites de
seu país, e conheceu o Novo Mundo — Estados Unidos, Cuba e América do Sul — em
vivências das quais não saiu incólume. Federico se impressionou com a beleza e o
sofrimento vivido por diferentes povos e culturas, situações que, de alguma maneira, lhe
eram familiares. O poeta foi escolhido como objeto deste estudo, que pretende
que não o suportou. Andaluzia. Na maré alta de oito séculos, muçulmanos ergueram
perfeito para o surgimento de figuras amantes de poesia e música, luz e sombra. Sem
dúvida, Lorca é um poeta andaluz. Andaluzia, império árabe sem par na terra cristã, tem
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em Granada a representante mais viva do espírito meio cristão, meio mouro que está
presente em toda a Espanha. Andaluz e granadino, Federico foi, acima de tudo, uma
personalidade dionisíaca que teve como musa a vida e seu duplo, a morte.
mas um homem que lançou seu olhar ao mundo no qual viveu: fortalecimento de
o alfanje e a fogueira sempre à mão. Lorca soube ver não apenas a aproximação do
de Granada, Andaluzia, García Lorca foi o mais velho dos quatro filhos do casal
lugar de Cuba na produção de açúcar da Espanha, e cuja família tinha alguma inserção
primária. Foi em 1909 que García Lorca se mudou para Granada com a família. Na
disso é o fato de Lorca haver dedicado a ele seu primeiro livro, publicado ainda em
Paisajes – sem edição brasileira) e é única obra em prosa do escritor. No ano seguinte,
Lorca mudou-se para Madri para morar na Residência dos Estudantes, onde permaneceu
até 1928. Neste período, Lorca teve contato com intelectuais espanhois, como Unamuno
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e Ortega y Gasset, com as vanguardas artísticas europeias, e decidiu se dedicar à
literatura. Foi então que escreveu grande parte de sua obra poética.
obra de teatro; no ano seguinte, publicou seu primeiro livro de poesia, Livro de Poemas.
publicadas após a morte do escritor. As publicações de Lorca deste período são Ode a
lorquiana sofreu uma importante mudança após sua passagem pela América do Norte —
Estados Unidos e Cuba —, pois o escritor passou a focar sua criação nas obras teatrais e
conferências e a expressar com mais relevância sua preocupação com o papel social da
arte.
pois todos os atores eram estudantes — e fazia suas viagens no período de férias,
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momentos nos quais o grupo levou os clássicos teatrais espanhóis pelos povoados da
(poesia - 1931), que foi escrito antes da ida do escritor para Nova Iorque. Apesar de ter
publicado apenas um livro entre os anos de 1931 e 1936, Lorca produziu intensamente,
pois são desses cinco anos as obras Assim que passarem cinco anos (teatro); Yerma
Cristóbal (teatro), Seis poemas galegos (poesia), Lamento por Ignacio Sánchez Mejías
1936, às vésperas do levante militar coordenado pelo General Franco, Lorca foi para
Granada, onde seria preso e fuzilado. Até hoje não se sabe as circunstâncias do
assassinato do poeta, nem quem foram todos os envolvidos e menos ainda o que foi
Lorca foi como uma das primeiras personalidades que o franquismo tentou
Lorca. O dionisíaco Federico foi um sujeito perigoso por não se calar diante de forças
autoritárias, usando sua arte para expressar sua visão da sociedade, da moral coletiva
imposta ao individuo, da falta de liberdade que se espalhava pela Europa junto com o
surrealistas são elementos estilísticos que se somam em uma arte inovadora; não
somente por levar à cena espanhola um teatro único, mas também por carregar, de
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Questionar a relação do escritor com a política serve de guia para este estudo e se faz
importante não pela busca de verdades, nem para traçar o comportamento político-
partidário do poeta, mas por trazer à tona uma questão que a ditadura do General Franco
e a família do poeta tentaram silenciar: a postura que Lorca teve diante da sociedade de
seu tempo e como ele reagiu a essa sociedade. Há quem afirme que Lorca foi apolítico,
que não se interessava por política, como seu amigo dos tempos de Residência, José
Bello, hoje com 103 anos, que afirma nunca ter ouvido Lorca falar sobre política e diz
que o assunto não interessava ao poeta. Não o interessava ―nem a esquerda, nem a
queria ser taxado por algum pensamento, nunca quis participar de nenhuma organização
pergunta, podem-se encontrar alguns estudiosos da vida e obra de Lorca que percebem
um posicionamento político no autor, porém, nenhuma das principais análises foi sobre
franquistas, pois ao tirar o caráter político da obra e da vida de Lorca, possibilita tirar a
política como casa da morte do poeta, o que livra os franquistas da responsabilidade por
seu assassinato. Ainda no filme Lorca. El mar deja de moverse, o historiador Ian
Gibson chama a atenção para a situação política e social da Espanha naquele momento
que margeava a guerra civil, e diz que era impossível não ter posição política,
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impossível ignorar a Frente Popular ou o biênio negro. De fato, Lorca não ignorou a
Lorca reagiu a isso, como sua obra expressou suas críticas e questionamentos, e não
apenas situar o escritor e sua obra de um ou outro lado da sociedade espanhola. Federico
não fez parte de nenhum grupo ou partido, político ou artístico. O poeta almejava ser
Federico García Lorca foi um autor trágico que soube beber nas águas
dramaturgos que usaram a arte para falar de sua sociedade. Porém, a dramaturgia
obras da Grécia clássica — como os coros de Bodas de Sangue e Yerma —, suas peças
A casa de Bernarda Alba, que, como o próprio autor define no subtítulo da obra, é um
Federico, antes de estrear Yerma, afirmou que era preciso voltar à tragédia.
De fato, o escritor criou obras baseadas na tradição clássica do estilo teatral, tanto com
relação à forma, quanto por seu conteúdo. O dramaturgo soube criar tragédias nas quais
o que importa não é o que acontece às personagens, mas o que acontece por meio delas.
Seguindo o conceito tradicional, Lorca criou suas tragédias de maneira muito particular,
uma maneira andaluza; e assim, nas obras trágicas lorquianas, encontramos mais do que
deuses, encontramos o duende: espírito imprescindível para que seja travado o duelo da
arte trágica. O duende, como o próprio Lorca o define, ―é um poder e não um olhar, é
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enduendada, é uma arte circundada pelo tempo e, simultaneamente, a expressão da
potência estética que tem a capacidade de avançar sobre a sociedade na qual foi
produzida.
sensações, como pensamento que sensibiliza, em um viés que entende que a obra de
García Lorca elucida o real significado de política como tragédia, ao constatar que os
mundo artístico espanhol da época. Esse ruído o torna insuportável para a Frente
Nacionalista, formada pelos direitistas, que se espalha pela Espanha e reverbera pelo
mundo e pelos anos. Ainda em vida, García Lorca gozou o êxito de sua arte dentro e
fora da Espanha. Países como Inglaterra, França, EUA, Cuba, Argentina e México
Lorca desfrutou desse reconhecimento pessoalmente. A fama de sua obra era a mostra
do poder de suas palavras, de sua arte, e Federico teve consciência disso, usando suas
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peças e seus poemas como armas contra aquilo que ele queria denunciar em sua
Como escreveu Neruda, Lorca era tão popular como uma guitarra, alegre,
melancólico, profundo e claro como uma criança. E tudo isso carregando uma
importante crítica social, o que tornou sua arte contundente e sua personalidade
data de publicação do primeiro livro, até 1936, ano de sua morte — são um belo e cruel
espelho da agressiva política do século XX. Uma arte e uma política escritas com
paixão e sangue. Um povo tão passional como o espanhol não poderia dar à luz espíritos
de temperatura morna, se é quente sua alma. Um país que se caracteriza pelo desejo —
seja de arte, de poder, de vida e de morte! — também se caracterizou por ser o berço de
ardentes artistas e fortes repressões, cenário do mau encontro de Lorca com as forças do
General Franco. Afinal, como poderia o fascismo reagir à arte de Lorca, sua veia
andaluza e sua sede por liberdade? Como responder ao posicionamento do poeta contra
político por desestabilizar a ordem. Perceber as relações travadas entre o escritor e sua
entendendo que a poesia e o teatro de Lorca foram influenciadas por uma cultura oficial
imperial e católica —, mas também pela cultura marginal de muitos cantos do mundo
por onde ele passou — como o flamenco que ecoava pelos becos do granadino bairro de
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Embora Lorca não tivesse nenhum vínculo com instituições ou partidos
políticos, ele sempre esteve diretamente envolvido com personagens ilustres da política
da Espanha — o que é demonstrado por sua amizade com Fernando de Los Ríos ou seu
apoio a Manuel Azaña. A trajetória política da época em que Lorca vive e o modo como
ele se posiciona em relação a esta são elementos que permitem afirmar que Lorca tinha
é a relação que a família de Lorca estabeleceu com a política institucional por muitos
anos, antes da Guerra Civil Espanhola. Na geração do escritor, por exemplo, seu
política. Manuel Fernandez Montesinos foi vereador de Granada, eleito pela última vez
em 1936, e com a sublevação militar no mesmo ano, foi assassinado alguns dias antes
do artista como crítico de sua sociedade, da significação daquele que não se aquieta
diante de um regime castrador, e que no caso do Lorca chegou a acabar com sua vida.
Esse fato também é importante de ser analisado, pois foi uma amostra de o quanto o
autor incomodava o regime franquista, que cometeu um atentado contra Lorca. Além
disso, tinha influência de outras artes e de outros artistas, o que o tornava parte de uma
rede de artes de vanguarda que fazia reverberar suas ideias transgressoras e sua
oposição à política e a sociedade. Lorca foi um autor voltado para o mundo, e estar
envolvido com a arte e com a vida o fez estar envolvido com a política.
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Lorca, desde seu primeiro livro, adotou uma atitude crítica frente ao que o
incomodava, seja este incômodo algo surgido internamente, seja uma imposição moral
imprescindível em todos os homens para que estes possam ser assim chamados
(LORCA, 2008, v. VI, p. 382). Para Lorca, os homens que vivem subordinados, sem
circunstâncias que circundam sua morte, Lorca permanece como um símbolo dos que se
opõem ao fascismo, dos que não se contentam em baixar a cabeça, em tapar olhos e
ouvidos para políticas ditatoriais e daqueles que não se submetem às regras e jogos
impostos pela sociedade. Federico atuou na sociedade por meio de sua arte,
O próprio Lorca — por meio de sua vida e obra — é quem fornece as pistas
necessárias para o desenvolvimento da relação entre arte e política, ou arte crítica, tema
declarações é o norte da busca da dimensão política que está expressa nos trabalhos do
artista, que pontua momentos de sua vida e de seu pensamento. Assim, para a análise da
relação entre a obra de Lorca e seu momento sociopolítico, foram escolhidas duas obras
teatrais (Yerma e A casa de Bernarda Alba) para dialogar com algumas conferências e
entrevistas concedidas pelo autor, na intenção de encontrar tanto nas peças de teatro,
quanto nas falas públicas, pistas que elucidem a presença de elementos políticos na obra
de Lorca.
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Entendendo política como um conceito polissêmico, é importante buscar as ideias
políticas em García Lorca fora das instituições políticas, mas em sua vida e obra, a partir da
não a participações partidárias ou ideológicas. Assim, como já foi apontado anteriormente, para
que estão inscritas nas obras e na vida do autor, entendendo que há várias abordagens políticas
possíveis e que o poeta e dramaturgo faz uso de muitas delas. Há em García Lorca uma
complexa rede de interferências entre aspectos individuais e sociais, ao mesmo tempo em que
não há segmentações, mas uma visão abrangente sobre os eixos que recobrem o indivíduo e
sociedade.
manifestação política, entende-se que pode haver uma dimensão política, de maneira
implícita, no interior da obra do escritor. Por outro lado, supõe-se que atitudes, opiniões
artista. Desta forma, esta pesquisa está fundamentada em uma análise interna e uma
qual Lorca nasceu e morreu, sua sociedade e a reação à obra do escritor. A análise
externa teve como base uma bibliografia que contemplou o momento histórico da
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no período entre a Primeira e Segunda Guerra Mundial; o avanço do governo franquista
socialistas e republicanos.
décadas do século passado criou uma fecunda gama de situações que convidam a um
olhar mais atento sobre o entrelaçamento de arte e política. E esse encontro em terras
ibéricas se fez tão único, quanto contundente, espalhando-se pelos tempos por meio da
arte imortal e da história inesquecível de ideais políticos, combates, mortes e uma longa
ditadura.
início do XX, e o momento da eclosão da Guerra Civil Espanhola se faz fundamental para
assassinato. A guerra de Espanha conta com diversas análises e não cessa de gerar debates, pois
segue viva na memória, não apenas de espanhóis, mas também daqueles que carregam os ideais
de República e o Fascismo em suas ideologias políticas. Assim, mais do que estudar a Guerra
Civil Espanhola, o foco serão seus antecedentes e sua eclosão, a maneira como estava a
se dá pelo fato de Lorca ter morrido ainda no primeiro mês da Guerra. Assim, os motivos que
levaram à sua morte podem ser encontrados antes da guerra, e não no desenrolar dela. Além
disso, é importante analisar a situação da Andaluzia nesse período inicial, desde as eleições
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republicanas, passando pela tomada do poder pelos franquistas e, principalmente, pela atuação
dos exércitos nacionalistas em Granada. Entender o cenário político e a atuação militar nos
fornece elementos para desenhar a situação na qual Lorca foi detido e, em seguida, morto. Esse
levantamento histórico que este estudo trabalha, em especial nas pesquisas dos historiadores Ian
Assim, após olhar para o momento histórico, será feita a análise de parte da
produção artística e parte da vida de Federico García Lorca, mais precisamente de duas
de suas peças de teatro: Yerma e A casa de Bernarda Alba. Yerma, peça sobre uma
esposa fiel, homônima, que coloca sua realização no casamento e na maternidade, tudo
XX. Yerma se casa, o tempo vai passando, mas a protagonista não consegue engravidar,
e na não realização da maternidade reside seu conflito pessoal, que transbordará para o
infértil, mas ela não aceita tal situação, e ao longo da peça busca meios de realizar seu
maneiras de realizar seu desejo, Yerma desafia sua sociedade e as ordens de seu marido,
aumentando a vigília e repressão sobre si. O que se inicia como desconsolo se torna
1934, a peça ―é, acima de tudo, a imagem da fecundidade castigada pela esterilidade.
(LORCA, 2008, v. VI, p. 65). Assim, Lorca coloca, através de Yerma, a tragédia do
indivíduo fértil sendo castigado pela sociedade estéril. Yerma foi uma expressão tão
forte da ala infecunda da Espanha, que a estreia da peça foi muito tumultuada.
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Falangistas interrompiam os atores gritando que se trata de uma obra ―imoral e
antiespanhola‖ (GIBSON, 2007, p. 42). Com isso, além da análise interna da obra,
despótica o comando da casa e, consequentemente, o destino de quem vive sob seu teto.
um ditador, e faz de sua casa uma prisão na qual mantém suas cinco filhas, solteiras, e
sua mãe que está louca. Assim, a matriarca cria um sistema no qual os valores
Alba se deu pelos elementos internos da obra, pois a peça só estreou na Espanha em
1945, nove anos após a morte de Lorca. Temas como repressão, castigo, sexualidade
Bernarda Alba, foram construídas para nortear o mergulho analítico das obras. Assim,
busca do indivíduo pela liberdade; imposição de regras e morais sociais; relação entre
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usadas para nortear o estudo sobre as peças lorquianas. Portanto, cabe observar que a
presente pesquisa não tem a intenção de focar o teatro como encenação, mas sim o texto
lhes vida, como a mártir republicana Mariana Pineda2 ou a jovem Belisa3, que questiona
função de levar à cena suas críticas à sociedade e aos seus códigos cristalizados, e suas
em que mesclam costumes ciganos com aromas árabes. Assim, ao olhar como as
relacionam com o mundo, podemos perceber as relações de força expressas pelo autor.
A análise das obras será feita na forma de um mergulho nas narrativas, buscando
elementos que Lorca coloca nessas duas obras, de maneira explícita e implícita, que
García Lorca (1898 – 1936). Esses trinta e oito anos foram marcados por situações
internas e externas à Espanha que influenciaram na criação do autor e dão pistas para
compreender os caminhos que levaram à tentativa de golpe militar liderada por Franco
capítulo, ―A política na arte e na vida‖, é feita uma análise da vida a partir da obra de
Lorca tendo como base o conceito de ―arte crítica‖. Assim, foi buscando nos escritos e
2
Protagonista de Mariana Pineda.
3
Protagonista de O amor de Dom Perlimplin e Belisa em seu jardim.
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criação de Federico. Em seguida, o capítulo ―A tragédia segundo García Lorca‖ é
fronteira do estudo entre a análise das conferências e entrevistas com a obra teatral de
cárcere de Bernarda Alba‖, respectivamente, são análises das obras teatrais, com base
nas categorias de análise ditas anteriormente. Porém, lembrando que nessas análises não
que em alguns momentos haja alguma referência a eles —, mas o foco do trabalho está
nos elementos críticos da obra com relação à sociedade de Lorca. Para estabelecer a
ligação entre a obra de Federico e sua sociedade, além da analise da peça, também serão
período da bolsa sanduiche, concedida pela Capes. As fotos da conclusão e dos anexos
foram todas feitas pela autora, assim como as traduções das citações ao longo do
uma entrevista com o historiador Ian Gibson, concedida a autora no mês de setembro de
28
Capítulo 1
29
A caminho da Espanha
tempo uma alta dimensão universal. Lorca universaliza o ser humano em suas obras, ao
mesmo tempo em que tem na Espanha uma de suas musas mais inspiradoras — presente
em muitos de seus poemas com suas cidades, sua história e seu folclore. ―A Espanha é
o país dos perfis. Não há termos informes pelos quais se possa fugir ao outro mundo.
Tudo se desenha e se limita da maneira mais exata. Um morto está mais morto na
Espanha que em qualquer outra parte do mundo. E quem quer se evadir ao sonho fere os
alguns dos caráteres de seu país, fortemente obcecado pela morte e pelo sofrimento; por
isso, nada mais apropriado que seu nome se relacione à laceração (GIBSON, 1992, p.
21). Porém, Espanha é, na verdade, uma variação do nome latino Hispania, cujo
caracteriza o país.
Bastos, em seu livro Gilberto Freire e o pensamento hispânico, define a Espanha como
costa, tanto atlântica, quanto mediterrânea; nos campos nevados; nos lagos e nas
florestas de carvalhos dos Pirineus. Por essas paisagens, ao longo de vários séculos,
—, celtas e visigodos.
Por todos esses traços, a Espanha foi alvo de estudos, tanto espanhóis
como ―um país onde se dá o encontro das culturas oriental e ocidental, um desafio ao
processo de modernização‖ (BASTOS, 2003, p. 106). Mas, além disso, o encontro entre
as culturas trespassa a mescla do ocidente com o oriente, criando algo conhecido como
onde ―desemboca a civilização oriental e se inicia outra que não é grega‖ (ORTEGA Y
GASSET, 1946, p. 372). O caráter ibérico do qual fala Gasset é fruto da coexistência de
muitos modos de vida, nômades e sedentários, que se fundem em realidades que vão
31
Seria possível dizer que esse modo ibérico espanhol é uma experiência de
corpos que necessitam do mundo como local para sua existência, ou como Gasset
definiu o povo espanhol: ―Somos meros suportes dos órgãos dos sentidos: vemos,
Com certo orgulho repetimos a expressão de Gautier: o mundo exterior existe para nós‖
(apud BASTOS, p. 108). Tal definição alia com sagacidade a união de povos de
um castelo. [...] montanhas elevadas em toda a extensão de seu litoral [...] a maior
exceção a essa regra é o litoral atlântico da Andaluzia, que vai da fronteira portuguesa
até o sul de Cádiz‖ [...] ―muralhas de leste para oeste que cortam a Espanha e dividem
seu povo em raças distintas‖, como definiu Madariaga (apud GIBSON, 1992, p. 12).
Não por acaso, Castela é o nome da região central da Península Ibérica, quase como
uma morada natural para reis e rainhas, sejam eles cristãos ou muçulmanos. A
fortificação natural que o território espanhol constitui não é apenas uma curiosidade,
mas um elemento fundamental para as relações dos distintos povos que por lá estiveram
ao longo de séculos.
ferrovia foi construída apenas em 1848; tardou para que houvesse uma ligação férrea
entre as principais cidades da Espanha. Richard Ford (1796 – 1858), um dos poucos
32
uma das principais características do povo espanhol era a tendência a não se amalgamar,
sua recusa a unir forças por um objetivo comum — em grande parte resultado do
isolamento geográfico das diversas regiões do país [...] o conceito de Espanha como
nação tinha para eles pouco significado‖ (GIBSON, 1992, p.18). Por questões culturais
mas também geográficas, não se pode falar em uma única Espanha, mas sim em uma
chamada Reconquista4, como é conhecida a unificação dos reis católicos. Entre os anos
de 711 e 1492, a região que hoje é a cidade de Granada foi um império mouro, mas
muçulmanos. Até o final do século XV, os reis castelhanos não forçavam os judeus a
viver em guetos, como acontecia em outras partes da Europa — até que a política papal
Alexandre VI. Este lhes concedeu o título de ―reis católicos‖, em retribuição aos
iniciado pelos reis católicos. A unificação cristã tardou aproximadamente sete séculos
4
José Ortega y Gasset comentou em 1921 que ―Reconquista‖ é um conceito inventado pela educação
católica da Espanha e que não expressa a realidade: ―Não sei como se pode aplicar o termo Reconquista a
algo que durou oito séculos‖. Além dele, o teatrólogo andaluz Antonio Gala também não concorda com o
termo ―Reconquista‖ para expressar a cominação dos reis católicos sobre Granada, e dizia que ―a
Reconquista é uma falácia e uma grande mentira histórica!‖ (apud GIBSON, 1992; p. 26).
33
para concretizar-se, e a cidade de Granada, por ser o último ponto de resistência do
império árabe no ocidente, se tornou também o maior foco de opressão dos reis e o foco
de uma empreitada de apagar os quase oitocentos anos de história não cristã. Os judeus
cidade foi completamente arrasado com o novo reinado (GIBSON, 1992, p. 33).
havia chegado a hora de subjugar os infiéis, e deu início à perseguição. Muitas famílias
igrejas, além dos saques e apropriações de terras dos não católicos. Após um ano, o
cardeal escrevia à Rainha Isabel, a católica: ―Não há mais ninguém em Granada que não
descoberta do Novo Mundo por Colombo, no mesmo ano de 1492, ano do domínio de
Granada. Esse fato não apenas provocou uma profunda mudança na história mundial,
como infindáveis, foram o motor da economia espanhola durante cem anos, e somas
astronômicas foram destinadas às guerras europeias, nas quais sempre se pôde contar
Granada, em 1526, opinou que ―os espanhóis [...] não sentem prazer em cultivar ou arar
a terra [...] ao contrário, eles preferem guerrear na América‖ (GIBSON, 1992, p. 35).
34
O espírito combativo sempre esteve relacionado aos espanhóis, elemento
sangue espanhol, processo que incidiria sobre uma população formada em séculos de
copiou os meios espanhóis na ideia de instituir ―sangue puro‖, almejando, junto com a
elementos como uma das mais imponentes armas propagandistas na eclosão e ao longo
Reinados e tiranias
para estudar em apenas três faculdades fora da Espanha, sendo essas na Itália e em
5
Memória histórica é um conceito historiográfico de desenvolvimento relativamente recente, tendo como
seu principal formulador o historiador Pierre Nova. Tal conceito busca designar o esforço consciente dos
grupos em entroncar com seu passado, seja este real ou imaginado, valorando-o com importância
histórica. (NORA, Pierre. ―Entre Memória e História: a problemática dos lugares‖, In: Projeto História.
São Paulo: PUC, n. 10, pp. 07-28, dezembro de 1993).
35
Portugal — que na época estava anexado à Espanha. Em qualquer outro país, isso era
se afastassem das ideias permitidas pelo catolicismo por causa das novidades do
pensamento. Trezentos anos mais tarde, já no reinado de Fernando VII (1808 – 1833),
estrangeiras, não permitindo que os estudantes saíssem do país para estudar, nem que
conflito iniciado pela invasão de Napoleão e terminado com a expulsão dos franceses da
Espanha. A Guerra de Independência teve grande importância para a Espanha por vários
motivos. O início do século XIX foi um período de abertura intelectual no país por
causa da invasão de Napoleão e pelas novas linhas ideológicas que seu exército levava
consigo. Assim como a entrada das tropas napoleônicas na Espanha teve papel
importante, sua saída também foi marcante, por ter sido fruto de um levante popular,
abrindo a mentalidade da população para uma nova maneira de agir. Esta época da
história da Espanha também foi imortalizada nas artes a partir da produção de Goya,
que retratou em seus quadros a luta do povo contra a opressão do exército napoleônico,
luta imortalizada6 na fase das sombras do artista. Com o fim do conflito, a Igreja e
passaram a impor sua força à monarquia espanhola, que havia capitulado com a invasão
de Napoleão.
vieram a ser no século XX. Ao contrário, a Igreja Católica mantinha sua posição
6
―O Fuzilamento do 3 de maio em 1808‖, uma das obras mais conhecidas de Goya, retrata a resposta dos
soldados franceses à rebelião dos cidadãos de Madri contra o exército de Napoleão, que eclodiu no dia
anterior à data do título do quadro.
36
conservadora como sua principal característica, enquanto o Exército era visto como uma
instituição marcada pelo pensamento liberal e maçônico. Nos anos que finalizavam o
século XIX, a Igreja e o Exército na Espanha não eram instituições que aliavam seus
era o refúgio da jovem geração das classes dominantes decadentes que esperam tudo do
Estado — e que obviamente entraram em choque com aqueles que do Estado não
Europa dos séculos XIX e XX. O país se tornou um território de constantes lutas entre
golpes de estado. Esta etapa durou até o ano de 1868, às vésperas da Primeira República
republicana do país não contava com o apoio do Exército e Igreja, e durou apenas um
ano, tendo fim com outra tomada de poder pelas forças militares, que restituíram o
poder monárquico. O trono foi novamente ocupado pelos Bourbons, e a partir de então,
Estado é exercida pelo monarca, mas a chefia de Governo fica nas mãos de um
governo se caracteriza pelo fato de a coroa ter papel moderador nos conflitos políticos;
o rei ou a rainha arbitram nos conflitos do governo, sobre os quais o governante real
escolhe livremente.
37
catolicismo como religião oficial do Estado — com permissão para práticas particulares
período foram manipuladas em alto nível de nepotismo. Além disso, a elite governante
Armadas, mas, além disso, foi criada uma aliança entre altar e trono. Assim, se a Igreja
era a guardiã ideológica da Monarquia, as Forças Armadas eram sua guardiã pretoriana.
qualquer agitação social era seguida pela suspensão da Constituição e pela decretação
desigual nas diferentes regiões do país. O norte, de terra fértil e chuva abundante,
contava com pastos verdes e vastas criações de gado; no leste do país, havia um
7
Lei marcial é o sistema de leis que entra em vigor quando uma autoridade militar toma o controle da
administração ordinária da justiça. Quando a Lei marcial entre em vigor, são suspensas as liberdades
fundamentais do cidadão, como os direitos de ir e vir, de se reunir, de manifestar sua opinião e de não ser
aprisionado sem fundamento judicial.
38
dinâmico setor voltado a exportações, além de uma pequena produção de frutas e
onde se situa Castela, era mais pobre, e ali havia um modelo agrário que fazia
conflito social. Nos anos de 1930, estes camponeses castelhanos comporiam os escalões
meados do século XX era uma região marcada pelo grande vácuo econômico entre
mantinha o padrão de vida mais baixo na Espanha. A ausência de classe média rural
sólida exacerbava as divisões de classe, e a Igreja era vista como uma instituição que
sufocadas com uma ferocidade igualmente brutal pela polícia paramilitar, a Guarda
da indústria têxtil da Catalunha, das fábricas de ferro e aço do País Basco e dos
39
organização efetiva só começou a se formar no final do século XIX, e a divisão — tanto
chegou mais tarde à Espanha, em dezembro de 1871, pelas mãos de Paul Lafargue,
estratégia agrária impedia a expansão para o sul rural. Os esforços dos socialistas
uma coerência ideológica à tradição segundo a qual as classes populares, sem confiança
40
simbólico: a questão catalã. O movimento para a autonomia da Catalunha,
aproximando cada vez mais esses industriais ao nacionalismo catalão. A ―Liga Catalã‖,
nascida das camadas dirigentes daquela região, era uma formação autonomista de
Castela, levando tanto a pequena burguesia quanto parte do proletariado para o mesmo
começo do século XX, sendo conhecida como ―a cidade das Bombas‖. Assim, ―em
Barcelona, a revolução não se prepara pelo simples fato de que está preparada
sempre‖, como dizia o governador civil Angel Ossorio y Gallardo (THOMAS, 2004, p.
38). Nos anos de 1890, Barcelona presenciou uma espiral de bombardeios e uma
8
O partido de Lerroux incitava seus seguidores com brutal anticlericalismo, anticatalanismo e promessas
de uma vindoura revolução após o estabelecimento da República (SALVADÓ, 2008, p. 35).
41
Geração de 98
década de 1890 pela tentativa da Espanha em manter suas colônias — Porto Rico,
guerra colonial em Cuba foi um dos conflitos mais significativos deste período, e se
inflamou ainda mais as crises nacionais. O fim do domínio espanhol sobre Cuba, em
1898, acentuou o momento crítico pelo qual passava a Espanha, pois os espanhóis
tinham uma especial ligação com a colônia, enxergando nela outra província andaluza.
Tal perda fez com que o país ibérico movesse todas as suas forças para manter o
internos espanhóis para o início do século XX. Os acontecimentos de 1898 foram muito
significativos na Espanha, não apenas pelo fim do império na América, mas pela
traumatizados pela derrota colonial, os militares passaram a não tolerar qualquer crítica
O ano de 1898 teve um impacto tão grande que, na Espanha, nasceu uma
vivia uma época de prosperidade artística e literária, e a união destes ficou conhecida
42
crise, e se uniu, sobretudo, ideológica e politicamente, concentrando suas atenções sobre
eles consideravam que a Espanha passava. Pío Baroja e Miguel Unamuno pensavam
mobilização popular; José Ortega y Gasset via como necessária a busca de uma elite
moral; Joaquín Costa pensava que era necessária uma personalidade forte, ―um
García Lorca, por si só, poderia ser um capítulo histórico da Espanha. O poeta nasceu
instigou sua terra, encontrou no mesmo local o céu e o inferno de sua infância e
privada, seu berço e sua sepultura. A vida de García Lorca mais parece uma obra
a vida de Federico como uma tragédia grega, inexorável nos fatores que convergem para
o fim trágico.
43
Como trágicos foram caracterizados alguns acontecimentos da história do
país. Ainda nos resquícios da tentativa de manter a última colônia da Espanha, em 1909,
o governo espanhol convocou 850 reservistas para seguirem para o norte da África, dos
porto de Barcelona, iniciou-se uma greve geral de protesto que ficou conhecida como a
outros edifícios religiosos. Quando o exército retomou o controle, foram registradas 120
mortes, e apesar de terem sido atacados tantos edifícios de ordem religiosa, apenas três
dessas mortes foram de membros da Igreja. Embora não fosse um ataque político contra
mais a destruição, aparentemente sem sentido, causada pelo povo, do que as ideias
tentativa de evitar novas manifestações populares, a classe política evitou tanto quanto
Primeira Guerra Mundial. A Espanha não entrou na Guerra, mas a guerra entrou na
44
problemas enfrentados pelo governo espanhol no início do século passado, o que
tentativa da guarda civil de evitar outra revolução, tendo em vista o exemplo chegado
1918, a rebelião irrompeu por todo o Sul agrário; em 1919, uma greve geral em
grupos paramilitares e Exército selaram uma aliança sem que uma série de importantes
aventura marroquina abalaram o país no verão de 1921. Uma comissão parlamentar foi
formada para discutir a questão das responsabilidades, ecos da crítica ao regime que
latifundiários, que por sua vez fugiram. Mais uma vez o exército dominou os grevistas,
parecia estar por todos os lados, chegando inclusive à CNT e à UGT, e esse foi
dele, encabeçado por General Miguel Primo de Rivera. Quando tomou o poder, Primo
de Rivera proferiu as seguintes palavras ―Nem eu, nem minhas guarnições, nem as de
45
Aragão, das quais acabo de receber notícias nesse sentido, transigimos em nada do que
nos foi pedido. Se os políticos, em defesa de sua classe, formam uma frente única, nós
também o formaremos com o povo, que armazena tanta energia contra eles. E a esta
resolução, hoje moderada, lhe daríamos caráter sangrento‖ (apud THOMAS, 2004, p.
47). O golpe militar contou com o consentimento do rei Alfonso XIII — que sabia de
antemão o que estava sendo planejado —, dando início à ditadura de Primo de Rivera,
deixou claro que sua principal lealdade era a ―seu Exército‖. Uma vez na capital, o Rei
democracia, a ditadura era, acima de tudo, uma solução exigida pelas classes
dominantes, assustadas por mobilizações populares cada vez mais constantes. O novo
governo foi recebido com alegria pela burguesia catalã, que agora contava com o
até 1930, poucos meses antes da chegada da Segunda República. O governo fez
desaparecer partidos políticos e agiu com a opressão esperada de uma ditadura, porém, a
46
de Rivera perseguiu a classe média, e constantemente se envolvia em escândalos de
ordem pessoal, sendo um dos mais conhecidos o caso de uma cortesã que foi presa por
ter sido pega com substâncias ilícitas, e logo foi solta, graças à intervenção do ditador.
começou a se desintegrar.
magnânimo, compreensivo e tolerante. Uma das várias histórias que correm sobre o
ditador conta que este estava em um teatro e começou a fumar, a despeito das placas
que diziam que era proibido. Quando lhe informaram que ele estava quebrando uma
proibição, o ditador se levantou, e com um cigarro na mão, declarou: ―esta noite, todos
podem fumar‖ (THOMAS, 2004, p. 48). Também era conhecido como um general
capaz de trabalhar meses a fio, sem descanso, para depois ser visto em farras,
acompanhado por mulheres e bêbado pelas ruas de Madri, momentos nos quais fazia
tomadas em seu governo, e em 1929, junto com a crise econômica mundial que também
para receber a chuva de críticas que se seguiram. O ditador foi além, e no mesmo ano,
sabendo que sua popularidade estava francamente em baixa, Primo de Rivera decidiu
ditador, fornecendo ao rei a desculpa para exercer pressão sobre Primo de Rivera no
sentido de que se retirasse em silêncio. O Rei Alfonso XIII se apoiava na crença de que
47
seu poder era devido não ao apoio do exército, mas à ordem real, e se viu na
possibilidade de ser, ele mesmo, o salvador da Espanha. E assim foi feito. Primo de
republicanos pelo país. Além disso, muitos oficiais do exército viam o comportamento
do rei como desonroso por aceitar a renúncia do ditador que ele mesmo apoiou.
democrático, parte via mais oportunidades para a instituição com um governo real. No
48
Múltiplas Repúblicas de Espanha
evidentes, em busca de alguma base para o poder do rei. O rei apelou às urnas,
ditadura, certamente acreditando que o êxito que logrou sobre o ditador Primo de Rivera
sobre o reinado de ―caciques‖, assegurariam sua vitória. Um pouco antes das eleições se
caráter de plebiscito.
quando começaram a se desenhar os resultados finais das urnas, já era claro que, em
porém, na zona rural a monarquia conseguiu suficientes cadeiras para assegurar uma
maioria no conjunto do país, apesar de que nessas regiões era evidente que os coronéis
tinham força para impedir a idoneidade da apuração dos votos. Apesar de todas as
multidões, cansadas dos setes anos de ditadura, inundaram as ruas de Madri, festejando
49
O governo, intimidado, sugeriu ao rei que aceitasse o conselho dos lideres
republicanos e que abandonasse a capital ―antes do pôr do Sol‖. O então Rei Alfonso
A Guerra Civil não era uma longínqua ameaça, mas uma situação latente
expressou no âmbito interno, mas sim um amontoado de questões daquele país, daquele
povo, de sua cultura e história, que foi aproveitado pelas relações europeias daquele
Civil Espanhola.
uma economia agrária sobre a qual gravitava a questão da reforma da terra; uma Igreja
poder espiritual, por muitos anos, se confundiu com o poder temporal; um exército que
Estado anacrônico, que por anos foi instrumentos de alguns setores sociais. Tornava-se
postura claramente anticlerical, quando não ateus, com exceção de Miguel Maura,
católico, nomeado ministro do governo. Porém, havia um grupo anticlerical muito mais
50
temível que esses primeiros, os herdeiros da Constituição de Cádiz de 18129. Estes
eram os legatários dos reformadores liberais da Espanha do século XIX, cuja atividade
intelectual havia formado a Instituição de Livre Ensino — escola ilustrada por um grupo
anos tentando limitar o poder das ordens religiosas, dos latifundiários e de outras
ministro de Guerra, Manuel Azaña, eram alguns dos intelectuais republicanos, frutos da
Instituição e da Residência.
princípio de sua formação, adotaram postura apolítica, mas tal postura só seria possível
mais vigorosa que a ditadura de Primo de Rivera enfrentou. Tanto a Instituição, quanto
51
A lua de mel da nova República durou apenas um mês. Os anarquistas
não cessou com a chegada da República. Mas, o primeiro estalo da disputa que
continuaria até a guerra civil foi a pastoral, grave e violenta, do cardeal Segura,
não teremos nenhum direito a nos queixar quando a amarga realidade nos mostrar que
tivemos a vitória em nossas mãos, mas que não soubemos lutar como corajosos
dois terços dos espanhóis eram católicos não praticantes. Na zona rural de Castela,
cidades da Andaluzia, apenas 1% dos homens iam à igreja, mesmo que 90% das pessoas
que as mulheres espanholas são muito mais religiosas que os homens, um símbolo a
A Espanha da Segunda República já não era mais tão católica como o foi a
impulsionado pelo descobrimento da América, seu ouro e sua prata, a Igreja Católica
exercia sua força e influência política por meio da severa e respeitada Inquisição. No
52
que diz respeito à intelectualidade, a soberania da Igreja na Espanha se impôs até o
século XVIII, quando as universidades ainda discutiam sobre qual língua falavam os
anjos, ou de que líquido era feito o reino dos céus. No século XIX, após as guerras
Igreja ficou ainda mais evidente entre os anos de 1909 e 1917, quando o governo
professores fossem quase todos católicos. Com isso, a Igreja Católica manteve sua
oligárquico ao longo de muitas gerações por meio da autoridade das escolas dirigidas
dos espanhóis, criando, na verdade, o padrão de vida no país. Assim, era fácil dizer que
anticlericalismo na Espanha dos anos de 1930 não só era crescente nos setores
intelectuais de esquerda, mas também ganhava força com as ações dos grupos
daqueles que estavam despertando para a vida política, a Igreja Católica espanhola era
um dos ícones mais fortes da tradição reacionária e do servilismo que, ao longo dos
séculos, a população foi obrigada a viver. Poucos dias após o início do novo governo, a
Igreja professava suas desconfianças quanto à República laica, e fazia circular a apostila
53
O que prega o liberalismo? – Que o Estado é independente da
Igreja.
Que tipo de pecado constitui o liberalismo? – É um gravíssimo
pecado contra fé.
Qual o pecado cometido por aquele que vota num candidato
liberal? – Geralmente, um pecado mortal (apud GIBSON, 1992,
p. 49).
.
Mas uma das maiores batalhas da República seria travada no campo da
toda a Espanha, era de 50% ou mais; em Madri, o analfabetismo era de 26%, e apenas
em duas províncias (Barcelona e Álava, no País Basco) a taxa estava abaixo de 25%.
Tendo em conta a alta taxa de analfabetismo que mantinha a população espanhola presa
país foram importantes medidas tomadas pelo governo, que assim mantinha seu
prestígio entre os intelectuais da época. Mas a República de 1931 foi mais além do que
o ensino formal, obrigatório e das salas de aula. Foram criados e financiados grupo
teatrais, como ―La Barraca‖, dirigido por Federico García Lorca, ou ―El Búho‖, dirigido
por Max Aub, com as quais foi possível a difusão da cultura clássica espanhola entre os
mais diversos setores populares, tanto no campo quanto nas cidades pequenas do
interior do país.
geração literária da República. O mais combativo, junto com García Lorca, foi Rafael
54
dos mais ativos promotores das lutas de apoio aos intelectuais perseguidos ou presos
pelas ditaduras latino-americanas, como foi o caso do comunista brasileiro Luis Carlos
Prestes, condenado a morte pelo ditador Getúlio Vargas. E, juntamente com Alberti,
estavam Luis Cernuda, María Teresa León, Emilio Prados e Lorca no apoio à liberdade
Hernández, Pedro Salinas e Jorge Guillén. Em prosa, se destacavam Pío Barija, Valle
vivendo no etéreo mundo das ideias. A vida intelectual de Madri da época não era
concebível fora do ambiente lírico e festivo de suas ―tertúlias‖ — muito comuns nos
povo, nas ruas, manifestando sua urgente vontade de mudança, seu desejo de assumir o
relação aos grupos políticos ativos, as esquerdas estiveram divididas entre socialistas,
da República, os jornais espanhóis ganhavam cada vez mais força na luta política, sendo
55
usados como importante arma na conquista da população que ainda não se via satisfeita
com o novo governo. Era cada vez mais importante ter o maior número de circulações a
política dos anos transcorridos entre 1898 – 1936, ainda mais intensa entre 1931 e 1936,
foi a expressão de uma vitalidade que se estendia à maior parte das esferas da vida da
população. A primeira parte do século XX foi mais rica, do ponto de vista artístico, que
qualquer outro momento depois do século XVII. São desta época os famosos nomes de
Picasso, Dalí, Miró, García Lorca, Juan Jamón Jiménez, Antonio Machado, Pío Baroja,
Buñuel, Falla, Unamuno y Ortega. No início do século XX, a Espanha estava nas trevas
democrática dos trabalhadores de todas as classes‖ (BROUÉ, 1992, p. 35). Com esta
religiosas que seguissem voto de obediência diferente das leis do Estado. A nova
Constituição espanhola de 1931 foi uma das mais liberais e progressistas da Europa, e
56
secularizar hospitais e cemitérios (GIBSON, 1992, p. 50). O Vaticano não reconheceu
imediatamente a República.
instituição que há séculos se constituía como um dos blocos de poder mais fortes do
país. Juntamente com a Igreja, boa parte da classe média foi afastada da República por
causa da nova constituição: os latifundiários foram atingidos pela lei de reforma agrária,
mas o exército foi o maior afetado, tanto pela promulgação do Estatuto Catalão, que
viria em 1932, quanto pelos passos que estavam sendo dados em direção a um Estado
se mantinha, não para combater os inimigos da Espanha no exterior, mas para intervir
nos assuntos internos do país. Mas Azaña acreditou que seria possível um apoliticismo
(THOMAS, 2004, p. 213). Além dessas questões internas, é preciso ter em conta que os
anos de 1929 a 1932 foram um período de depressão mundial, época inoportuna para
qualquer governo que subisse ao poder. Assim, contagiados pela fragilidade do cenário
57
Junto com a República, uma onda de desemprego chegou à Espanha. Em
dezembro de 1931, o país contava com cerca de 400 mil desempregados, e 600 mil em
foram reprimidas pelas polícias tradicionais, em especial pela Guarda Civil, que já no
primeiro biênio da República iniciou as violentas coibições que seriam sua marca no
reprimidas pela Guarda Civil, deixando dezenas de mortos e centenas de feridos. Tantas
manifestações.
República. Para os lideres do Exército — Franco, Queipo de Llano, Varela e Yagüe, que
políticos e pedindo a gritos uma mão de ferro‖ (THOMAS, 2004, p. 117). A aprovação
oficiais do Exército, não apenas porque a criação do Estado Catalão parecia ameaçar a
integridade da Espanha, do poder dos militares, mas a autonomia catalã parecia uma
afronta deliberada ao próprio Exército, que, entre 1917 e 1923, tinha Barcelona sob
controle marcial.
Não apenas por Mussolini na Itália, que em 1932 ajudou financeiramente a falida
58
insurreição de Sanjurjo em Sevilha10, mas principalmente a partir de janeiro de 1933,
que estava acontecendo nos bastidores em seu próprio país‖ (GIBSON, 1992, p. 52).
Se para França, Inglaterra e os demais países a situação ficava cada vez mais
preocupante, para a Espanha, que do outro lado de suas fronteiras também suportava a
hostil ditadura de Salazar em Portugal, a situação adquiria tons de cerco, uma asfixia
fascismo, mesmo externos ao movimento operário‖ (BROUÉ, 1992, p. 62). Talvez por
isso Lorca tenha sido tantas vezes identificado com os comunistas, por sua postura
antifascista, sendo agrupado com esses, mas não exatamente por ter uma ideologia
comunista.
fascismo por vários países, chegaram as eleições de 1933. O maior dos grupos de direita
a despontar nas eleições foi a Ceda, e com isso, em novembro de 1933, deu-se início ao
poucos dias antes das eleições, a CNT chamou uma insurreição popular que se espalhou
10
Refiro-me aqui à fracassada tentativa de golpe, em agosto de 1932, pelo general monarquista José
SanjurjoSacanell. Pelo intento, Sanjurjo é condenado à morte, mas foi indultado e continuou conspirando
na prisão.
59
oportunidade para declarar ilegais os anarquistas e comunistas, fechando seus locais e
suspendendo sua imprensa. Além disso, devolveu a pensão anual concedida à Igreja e
proclamou que o poder da República estava sendo usurpado por fascistas, e oferecia aos
resistência catalã foi rapidamente sufocada, para os insurgentes, graças à não resposta
do resto da Espanha, que teria aceitado o novo governo sem reclamar. Porém, a
comunistas e socialistas, dando origem à Frente Popular (BROUÉ, 1992, p. 33). Porém,
fez com que os protestos não se fortalecessem, mas que se afogassem em suas próprias
segunda eleição, lutou-se com uma força até então desconhecida na Espanha. Em
centenas de vilarejos, a questão foi religiosa, e em alguns casos mesclada com a luta de
classes. Ao longo dos dois primeiros anos de república, o clero foi duramente
essa perseguição veio nas eleições de 1933. O sistema político favorecia as coalizões.
60
As direitas souberam aproveitar essa abertura da democracia, e somaram a isso uma
massiva propaganda que desfigurou toda a obra positiva da República. Tais artimanhas
deram às direitas espanholas uma vitória inesperada, e teve início o biênio negro.
A vitória das direitas não é uma simples peripécia, mas, para os seus
inspiradores, uma primeira etapa. Pois não se trata, no seu espírito, de um
retorno do pêndulo numa simples alternância no poder, mas do início de um
contra-ataque para o qual serão empregados, se necessário, outros meios além
dos eleitorais, (BROUÉ, 1992, p.47)
primeiros anos da República. José Antonio Primo de Rivera, filho do ditador morto, era
o líder da Falange, e declarou que a ―‗unidade sagrada‘ da Espanha estava ameaçada por
desculpa começou a preparar planos de ação da Falange que, não muito depois, seria
amplamente apoiada por diversos setores da direita espanhola (GIBSON, 1992, p. 55).
a proteção das autoridades. O governo anulou a lei catalã, reduziu pela metade os
Estado. Esta medida foi o início oficial da aliança entre a instituição religiosa e o
61
Exército, e seria o estopim da Guerra Civil e uma das bases da ditadura do General
Franco.
momento oportuno para pôr fim à agitação operária e camponesa. Aproveitando a crise
camponeses. A classe trabalhadora foi sendo cada vez mais atacada, e a consequência
foi a greve agrícola no início de 1934, seguida da revolução em outubro do mesmo ano.
ápice no começo de outubro de 1934, quando três ministros da Ceda passaram a integrar
nas pegadas de Hitler, conclamou uma greve geral revolucionária, conhecida como
governo.
Aliança Operária — não considerada pela CNT, que se posicionou contra a greve. A
momento em que a Ceda anuncia fazer parte do governo. A partir disso, desencadeou-se
não decidiram pela luta armada. O governo começou a prender dirigentes e militantes,
62
esvaziando o movimento. Porém, em Astúrias as coisas se dariam de outra forma: ali, a
greve geral ocupou a maioria das localidades e atacou de surpresa a polícia, o que lhe
arsenais de várias cidades, contando com trinta mil fuzis, outras armass e carros, e
outubro, mas a resistência continuou, e o Exército passou a retomar aldeia por aldeia,
A Revolução foi sufocada com extrema violência. Foram mais de três mil
mortos, sete mil feridos e mais de quarenta mil presos, muitos destes submetidos à
tortura, provocando grande indignação. O estado de guerra foi mantido por vários
Valência. A partir daí, tornava-se impossível evitar a guerra civil, pois, com a repressão
Astúrias, a Revolução de Outubro fez com que uma onda de horror sacudisse a classe
média espanhola, e lhes parecia que qualquer coisa, inclusive uma ditadura militar, era
primeiros atos foi nomear Francisco Franco. Nessa atmosfera, os proprietários de terras,
que podiam tratar os camponeses como bem entendessem. As leis que davam mínimas
63
proteções trabalhistas aos agricultores haviam sido revogadas, os atos de protestos
o terror pelas ruas. A atitude das direitas espanholas nas províncias durante o segundo
semestre de 1935 gerou tanto ódio que bem pode ser considerada uma das primeiras
Apesar do quase empate, provavelmente favorecido pelo caciquismo nos distritos rurais,
nas eleições, a esquerda tinha a maioria dos votos, e assim, a maioria das cadeiras. A
vitória da esquerda foi inesperada, mais acima disso, a derrota da direita foi inesperada
velhas estruturas, e o verão de 1936 não foi apenas o ―curto verão da Anarquia‖, nem
somente o período no qual Lorca acabava de escrever A casa de Bernarda Alba, mas
Depois de dois anos de república e do biênio negro, os antigos donos do poder, dirigidos
pelo exército e apoiados pela Igreja, sentiam-se a encarnação das glórias passadas da
expulsão dos infiéis. Frente a eles, se encontravam a classe média e praticamente todas
64
desfrutavam seus camaradas na França e Inglaterra, e pelo poder que supunham ter
as direitas pelo comunismo. Além disso, as direitas supunham que, se não começassem
central de Castela. A Espanha era um país conservador onde uma estrutura social
Falange, foi quem comunicou a seus companheiros a hora exata do levante: cinco da
manhã do dia seguinte (THOMAS, 2004, p. 239). No Marrocos, Franco era o General, e
foi o chefe do levante das bases na colônia espanhola. Sob seu comando, foram
65
esquerda, e foram detidos os dirigentes dos grupos republicanos e de esquerda. E todos
os detidos que resistiram à rebelião foram fuzilados; qualquer pessoa, pelo simples fato
de ter votado na Frente Popular nas eleições de fevereiro, estava em perigo. E dessa
manifesto, transmitido pelas rádios a partir das emissoras das Ilhas Canárias e do
Marrocos espanhol. Nele, o General fazia especial referência à excepcional relação que
os oficiais espanhóis tinham que ter com a pátria, mais que com qualquer ideologia ou
em fevereiro de 1936, sendo então os chefes de governo em uma aliança dos grupos de
em tom emocional, uma nova ordem depois da vitória. Num primeiro momento, o
levante era apenas uma empreitada militar, não se fazia nenhuma menção aos ataques da
cruzada.
para a Espanha. O governo do país, a princípio, tentou conter a revolta por meios
fornecesse armas aos trabalhadores seria fuzilado. As ruas e cafés de Madri se encheram
66
inquietação da população pela ausência de armamento para se defender de uma possível
de trabalhadores, que clamavam pedindo armas. Em muitos casos, isso permitiu que
tivessem êxito as sublevações e assinou a sentença de morte dos próprios governos civis
maioria dos casos, pela guarda civil. Nos lugares onde não havia guarnições, a guarda
tentaram resistir, organizando-se com ajuda da Rádio Sevilha, que fez convocatória para
uma greve geral e pediu aos camponeses dos vilarejos vizinhos que acudissem a cidade
com armamentos, mas o número de armas disponíveis era muito pequeno. Durante a
igrejas e também a fábrica de tecidos, mas logo Queipo se apoderou da rádio, e às oito
da noite transmitiu a primeira de suas famosas locuções. Com sua voz entoada por anos
de beber jerez11, declarou que a Espanha estava a salvo e que os canalhas que
11
Jerez é um vinho típico da cidade de Jerez de La Frontera, sul da Espanha.
67
A partir da ação de Queipo, as rádios passaram a fazer parte da guerra,
desempenhando papel essencial no êxito parcial dos rebeldes no levante, apesar das
Cádiz, apesar de que a vitória não foi imediata na ―Rusia chica‖ — como era conhecida
Cádiz por causa do grande número de socialistas que viviam na cidade (THOMAS,
onde não havia guarnição, os falangistas e os requetés locais esperavam o sinal, mas não
contra uma companhia de soldados que tentava se apoderar dos edifícios públicos. Os
foi linchado pela multidão. Mas essa foi a última vitória do governo, e ao entardecer, a
improvisada, mas ferrenha, em subúrbios que lutaram até o dia 24 de julho. No caso da
68
Andaluzia, a guerra se reduziu a batalhas menores, porém, os fuzilamentos e a repressão
era dessa maneira que chegavam notícias aos sindicatos e partidos políticos que
telefonavam aos seus camaradas de outras cidades e descobriam que o inimigo estava
no controle.
representando seu próprio drama, à mercê das dificuldades geradas em tempos e locais
em conflito. Muito rapidamente não havia duas Espanhas, mas sim mil. Cessou de
existir um poder soberano e, em sua ausência, indivíduos e cidades agiam segundo suas
variava de um lugar para outro, segundo o capricho do chefe militar ou das autoridades
governadores que foram nomeados pela Frente Popular foram quase todos fuzilados. As
sorte. O número reduzido de falangistas, ainda que decididos e bem armados, era uma
preocupação importante para o bando sublevado, por isso era ―necessário propagar a
atmosfera de terror. Temos que criar uma impressão de dominação [...]. Qualquer que
seja aberta ou secretamente defensor da Frente Popular deve ser fuzilado‖ (THOMAS,
69
2004, p. 286). As prisões e fuzilamentos, durante vários meses, aconteciam à noite, e na
manhã seguinte se encontravam os cadáveres pelos cantos e ruas das cidades tomadas,
os cadáveres eram expostos para contemplação pública, e era proibido guardar luto
partidos de esquerda, ou a oficiais leais à República, mas muito raramente alguém tinha
Ainda hoje, passados mais de setenta anos destes primeiros meses de guerra,
ainda é difícil saber o número de pessoas mortas pelos rebeldes ou seus partidários, e
não reconhecimento dos mortos, ou seja, não havia registro por parte das vítimas, mas
também porque não havia registro de execuções por parte dos rebeldes. As prisões e
fossas, momentos nos quais muitos presos eram executados de uma só vez, e enterrados
em uma mesma vala, sem registro dos mortos, nem dos locais onde eram depositados
estes corpos.
primeiros meses de guerra é o que foi feito sobre a cidade de Granada. Segundo o
estudo, entre 26 de julho de 1936 e março de 1939, o número ultrapassa quatro mil
fuzilamentos, sendo que, apenas nos muros do cemitério São José, em Granada,
atualmente são estimadas 3.969 mortes12. Apenas no mês de agosto de 1936, teriam sido
fuziladas, aproximadamente, 570 pessoas. Entre esses mortos, estão o diretor do jornal
12
A documentação relativa aos fuzilados foi apresentada em maio de 2010 à Junta de Andaluzia pela
Associação de Recuperação da Memoria Histórica para que se declare o lugar como Sitio Histórico. O
número de fuzilados foi publicado no jornal ―El País‖ de 04/08/2011, disponível em:
http://www.elpais.com/articulo/espana/Documentados/3969/fusilamientos/tapia/Granada/elpepiesp/20100
527elpepinac_22/Tes
70
de esquerda ―El defensor de Granada‖, muitos catedráticos da Universidade de Granada,
o prefeito e 23 vereadores eleitos em 1936, mas a grande maioria eram pessoas comuns,
da ditadura franquista, aproximadamente 600 dos corpos ainda não estão identificados.
Mas, entre todos esses mortos, sem dúvida o nome mais citado, tanto pela direita quanto
inexplicável, e que não pode ser considerada uma mera coincidência por parte dos
exércitos de Franco, mas sim o entendimento de que o poeta era membro de um grupo
revolucionário e perigoso. O clima de terror que pairava sobre Granada durante toda a
Guerra Civil Espanhola se estendeu pelas três décadas de ditadura franquista, e está
representada não apenas nos muros do cemitério da cidade, como também nas fossas de
três anos de guerra civil, em Navarra foram mortas entre 7 e 8 mil pessoas; em
Zaragoza, 2 mil; em Sevilha, 9 mil, para ter uma ideia de como foram as mortes durante
dezenas de milhares, provavelmente 50 mil nos primeiros seis meses de guerra e, talvez,
mais a metade durante os meses seguintes, levando em conta a repressão exercida nos
estado de guerra que havia sido proclamado. Os militares sublevados consideravam que
pessoa fuzilada era uma pessoa julgada. Dos executores, alguns eram simplesmente
jovens que desfrutavam matando. Mas outros, sem dúvida, acreditavam que tinham o
71
anarquismo e da maçonaria, e quanto mais durava a guerra, mais graves eram
grande parte do exército e da guarda civil estava com os rebeldes. A única força capaz
de resistir aos rebeldes era a dos sindicatos e partidos de esquerda, mas para o governo,
utilizar esta força significava aceitar a revolução e a falta de controle sobre o país. Tanto
dirigida pelo General Franco. Quando a noticia dos levantes chegou a lugares onde não
havia guarnição militar, a reação das esquerdas, naturalmente, não foi de esperar pelo
ataque.
provável Revolução, e os planos dos insurretos previam uma vitória rápida em seu
suas divisões, e desencadear essa revolução que eles buscavam justamente prevenir. O
fato é que, se parte da Andaluzia e das cidades fronteiriças com Portugal foi tomada de
assalto pelo levante militar oriundo do Marrocos, algumas cidades situadas ao norte e ao
centro da Espanha, que tiveram mais tempo de preparar não apenas a defesa, mas em
72
saques que varreram as cidades onde o levante nacionalista havia sido derrotado ou não
repúblicas inimigas. Cada cidade agia sob sua própria responsabilidade. As iras se
dirigiram em primeiro lugar contra a Igreja, sobre tudo na Andaluzia, Aragão, Madri e
mas elementos de uma sociedade mais moderna também foram atingidos. Com isso, as
casas de muitos burgueses foram invadidas e saqueadas. Estes primeiros dias da guerra
labirinto de grupos diferentes, todos eles com poder para decidir sobre a vida e a morte.
questão crítica da política desde 1931, pela geral subordinação dos sacerdotes à classe
alta e pela riqueza provocativa de muitas igrejas e as antigas suspeitas do caráter secreto
diziam ―adeus‖, mas sempre ―saúde‖. Inclusive um homem chamado Fernández de Dios
Bakunin, porque ―não queria ter nada a ver com Deus‖ (BROÉ, 1992). Em nenhum
―os vermelhos têm destruído nossas igrejas, mas antes nós havíamos destruído a Igreja‖
A revolução iniciou uma curta porém importante fase na vida dos espanhóis,
73
a rearticulação entre mundo da cultura e mundo da produção. As coletividades se
dos sindicatos anarquistas. Restaurantes públicos, instalados nos hotéis para alimentar
províncias que haviam sucumbido aos ataques dos rebeldes militares, e homens e
as mulheres passaram a frequentar lugares públicos, coisa que antes não era possível,
anarquista na Catalunha criou uma situação incomoda com o governo catalão, que
Azaña descrevia como um ―complot para anular o Estado Espanhol‖ (THOMAS, 2004,
republicano foi sufocado‖ e que ele ―não encontrou nenhum auxílio na Península‖. Para
evitar a guerra civil que ameaçava estourar por todas as partes, o governo da Frente
74
Popular atingiu brandamente, de forma alternada, cada um de seus adversários de direita
e de esquerda, para não se entregar sem defesa ao outro. A última tentativa de encontrar
armas. Madri se converteu em uma cidade tão bélica quanto revolucionária. Os fuzis
limpeza do país para eliminar os males que se haviam apoderado dele era uma política
A forma como se levou a rebelião militar e a forma como foi respondida provocaram
desde a Guerra dos Trinta Anos. Em uma zona, professoras de escola eram fuziladas e
75
proibição de partidos, de perseguições aos grupos de esquerda e republicanos, as
reformas sociais da República foram abolidas e a Igreja retomou sua importância e força
junto ao Estado, e reforçou sua influência social com a volta da educação e serviços
assistenciais às mãos do clero, que por sua vez voltou a ser financiado pelo governo. No
final da guerra, o discurso da vitória de Franco deu um panorama do que foi o conflito,
segundo ele, e o que se podia esperar dos próximos anos da Espanha sob seu governo:
inviabilidade de, pelo menos até 1975, se escrever uma história do conflito que
curiosamente, este vazio foi preenchido pela historiografia estrangeira que, em muitos
de Lorca. Seu assassinato até hoje é muito mais relacionado a sua homossexualidade ou
13
Fonte: http://sauce.pntic.mec.es/~prul0001/Textos/Texto%203%20tema%20XV.pdf
76
a elementos de sua vida pessoal do que a uma resposta do pensamento franquista à
contra o regime. Muitos presos foram mortos, outros tantos exilados, e muitos dos que
puderam deixaram a Espanha; os bens daqueles que ficaram foram confiscados, e seus
direitos civis, cerceados. Mais adiante, no final da década de 1940 e início de 50, com o
nesse cenário, no ano de 1953, o Estado franquista assinou a Concordata de Santa Sé,
governo para a Igreja, entre outros pontos. A ditadura seguiu até a morte de Franco, em
ditadura, somente fora da Espanha a guerra espanhola pôde ser olhada desde muitos
pontos de vista, não apenas pela ótica dos falangistas, No entanto, as conclusões viram-
pautado no terror, em muitas partes da Espanha vigora até os dias de hoje. Além disso,
os perdedores não puderam levar consigo suas bases documentais. Porém, o fato de a
artistas fez com que o movimento ganhasse visibilidade mundial. Além disso, o cinema
e as revistas ensaísticas foram, aos poucos, disseminando uma série de saberes que se
Espanhola.
77
A Guerra Civil Espanhola foi, principalmente, um conflito local, uma
políticas que estiveram presentes entre os espanhóis por várias gerações. Essa guerra
parte inspirado na legendária Reconquista e nos 800 anos de lutas para expulsar os
periféricos, nas guerras civis do século XIX, travadas entre carlistas e liberais. Seria
possível afirmar também que as sementes do conflito foram plantadas durante o meio
dezembro de 1874 a abril de 1931 (SALVADÓ, 2008, p. 9). Mais modernamente, temas
como reforma agrária, centralismo versus autonomia regional e papel da Igreja Católica
e das Forças Armadas foram agregando elementos que fizeram eclodir a guerra.
Civil Espanhola como uma consequência da Primeira Guerra Mundial — somado a isso
que seria a Segunda Guerra Mundial, caracterizando a guerra de Espanha muito mais
e de procedência variadas.
78
pública sobre o papel do conhecimento na construção de um novo ideário social e o
Guerra Civil, colaboram para que, muitas vezes, se ignorem os fatores ―espanhóis‖ da
Guerra Civil Espanhola, fatores estes que estavam presentes muito antes do
que foi dito pelos oficiais rebeldes, a guerra não foi inevitável, mas sim produto de um
golpe ilegal e de seu posterior fracasso parcial que gerou a revolução. Salvadó ainda
completa que os pretextos dos conspiradores para justificar sua rebelião eram
ruas, mas a situação não era pior do que em outras épocas da Monarquia. Além disso,
foi em grande medida causado por sujeitos de direita. Segundo o historiador, ―a maioria
dos espanhóis não queria a guerra. Pelo contrário, foram surpreendidos pelo horror e
O conflito espanhol foi a batalha mais atroz de uma guerra civil europeia a atingir o
79
ascensão do fascismo na Itália, a tomada da Alemanha pelos nazistas e o
realizadas dos dois lados, com uma ferocidade que parecia confirmar para o mundo a
80
Capítulo 2
81
Arte e política são velhas companheiras –o teatro grego, no século V a.C., é
uma pista importante desta aproximação. O encontro entre elas se deu em diversos
dos momentos nos quais ganham grande importância as ações artísticas de grupos,
modos de expressões sociais. Política e arte são áreas que se distinguem em suas
conflitos, assim,
a arte pode se opor à política ou prestar-se a ela. Por sua vez, a política
pode inspirar ou dificultar a manifestação artística impregnando-se no
objeto de arte, ou iluminando o artista. Nesse campo relacional, a arte
pode imprimir maior potencialidade para o indivíduo seguir sua
existência, perante o poder político ou micropoderes difusos e em
meio aos absurdos e alegrias da vida (CHAIA, 2007, p. 14).
condições, fazendo com que sua obra contenha, explicita ou implicitamente, os fatores
1994, p. 24) reitera que o teatro é, em si, uma arte social — não se excluindo, porém, as
outras artes como maneiras de expressão social. O teatro é visto por alguns autores,
como Alfonso Sastre, como arte social especialmente quando trata de realidades
82
dramáticas nas quais estão interessados grupos humanos. Mas, o teatro político,
expressão social, colocando nos palcos de diversas partes do mundo retratos e críticas
das novas ordens sociais e econômicas que se presenciavam pelo globo. São
trabalhadores de Os tecelões. Na Itália, Marcos Praga ganhava fama com sua obra A
individualismo anárquico. ―Em todas as partes o teatro parece que, deixando de ser puro
intelectuais que eclodiam pela Europa e por todo o país. Especialmente após a chegada
burguesia segue ignorando sua própria situação e reinando, ainda que seja no vazio, na
83
A sensação de mal-estar na Espanha que precedeu a Guerra Civil Espanhola
foi exposta, inicialmente, pelos intelectuais da Geração de 98. Esta não teve importância
pelo profundo e empreendedor ambiente artístico que ela iniciou, gerando importantes
intelectuais e artistas dessa geração uma ânsia pela busca de novos aparatos ideológicos
Como foi dito anteriormente, em 1898 uma importante crise abateu a sociedade
necessidade de encontrar novas fórmulas, de criar uma nova Espanha com uma estrutura
composta por García Lorca junto com Rafael Alberti, Jorge Guillém, Vicente
Aleixandre, Gerardo Diego, Luís Cernuda, Dámaso Alonso, Emilio Prados, Pedro
Salinas e Manuel Altolaguirre, em seu núcleo central, mas contou com muitos
84
serviu para unir um grupo de escritores que perdurou e continuou reivindicando
A Geração de 27, junto a alguns dos autores de 98, tentou uma renovação na
literária. Mas, enquanto a Geração de 98, composta por importantes ensaístas, era
27, composta por escritores de posturas individuais bem definidas, mas unidos por
indivíduos e grupos sociais na Espanha. Por meio de sua arte, foi possível iniciar o
García Lorca.
Política e morte
85
maneiras, em manter a imagem de Lorca como alguém que se manteve sempre alheio à
política. Alguns estudiosos de sua vida e de sua obra fizeram referência a essa insistente
despolitização de Lorca. Lilia Boscán de Lombardi (2002), no final de seu estudo sobre
o estilo trágico na obra dramática de Lorca, expõe uma interessante observação, que
serve como ponto de partida para a análise da política na vida e na obra de Lorca:
motivações para seu assassinato, pelo fato de este, até hoje, permanecer sem conclusivas
assassinato do poeta, para alguns grupos a morte dele pode servir como importante
bandeira.
86
p.9). Já o jornal El Liberal foi mais explícito, destacando no título da matéria ―alguns
confirmaram que os facciosos fuzilaram o grande poeta Federico García Lorca, cuja
notícia não havia sido possível até agora, ainda que a maior parte dos jornais houvesse
jornais sobre a morte do poeta, mas a grande maioria não acrescentava nenhum detalhe
(1980, p. 246). Enquanto a região da Murcia, Madri e outros locais que seguiam sob o
regime republicano faziam menção aos rumores do assassinato de Lorca — visto que
não havia nenhuma certeza de que o poeta havia sido morto —, a imprensa dos
territórios que haviam sido tomados pelo golpe militar, ao contrário, tratava de semear
anunciar uma conferência do poeta andaluz que teria chegado no dia anterior, mas ―não
resposta, assinada pelo coronel Espinosa, limitava-se a uma única linha: ―ignoro lugar
hállase don Federico García Lorca‖, resposta que foi publicada no jornal El Sol, 14 de
87
passou a cobrar da Espanha sobre o paradeiro do poeta, obrigando que os representantes
no mundo. Foi o caso de Luis Hurtado Álvarez, que em março de 1937, no jornal
escritor para outros âmbitos, tentando esvaziar o teor político dos fatos. Enquanto
alguns membros da Falange asseguravam que Lorca era partidário de uma ditadura
militar — como chegou a afirmar Luis Rosales, em entrevista14 concedida a Ian Gibson
— havia aqueles que, como Jean-Louis Schonberg, aludiam a morte de Lorca não a
A relação entre a morte de Lorca e o ódio aos homossexuais foi muito usada
que contou Ángel Saldaña15 a Ian Gibson, na qual o falangista Juan Luis Trescastro teria
dito após o fuzilamento do escritor: ―acabamos de matar Federico García Lorca. Eu meti
dois tiros na bunda por ser veado‖ (GIBSON, 2007, p. 142), muitos militantes afirmam
que essa seria a prova de que o assassinato de Lorca foi por homofobia. Um dos
14
Entrevista publicada no jornal El Ideal de Granada, em 19/07/2010, disponível em:
http://www.ideal.es/granada/v/20100719/granada/lorca-partidario-dictadura-militar-20100719.html
15
Um dos poucos vereadores republicanos granadinos que não foi fuzilado. Ángel Saldaña contou a
Gibson que estava no bar Pasajé, em Granada, quando Juan Luis Trescastro entrou anunciando que
haviam matado Lorca (GIBSON, 2007, p. 142).
88
pesquisadores que defende esse ponto de vista é Amílcar Baiardi, que esvazia a causa
incomodava os falangistas, mas que pelo fato de Federico não ser dirigente político nem
militar, ―suas palavras incomodavam menos e não tinham o peso das de Miguel de
Unamuno [...] enfim, a razão política não foi a determinante de última instância no
assassinato de Lorca‖ (Ibidem, p. 9). Se a obra de Lorca não foi tão determinante para
seu assassinato, como explicar a frase de Ruiz Alonso, o homem que executou a prisão
de Lorca, que teria dito que o motivo da detenção do poeta era o fato de ele ―ter causado
mais estrago com sua pluma que outros com suas pistolas‖? (GIBSON, 2007, p. 129).
Além disso, afirmar que o crime contra Lorca foi causado por homofobia e que, por
seu sentido político na luta pela liberdade individual. E a liberdade foi um dos grandes
temas da obra de Lorca, tornando-a, apenas por esse motivo, repleta de elementos
políticos, no sentido em que é o artista usa sua obra para expressar sua visão de mundo
homossexualidade do autor não foi tão negada quanto o é sua postura política. Como
fosse vivo, pois o assunto era abafado pelo pai, e os estudiosos tinham receio de que a
89
família fechasse os arquivos caso o assunto fosse difundido. Porém, em 1975, morreu o
pai de Lorca. No ano seguinte, morreria o General Franco, iniciando assim a abertura
ainda eram obscuros na biografia do poeta. Foi só na década de 1980 que muitas partes
postura liberal na política que sua família apresentava, seja pelo êxito artístico e
verdade que Ruiz Alonso justificou a prisão de Lorca pelo fato de ele ser ―mais perigoso
com uma pena na mão do que muitos com uma pistola‖, então é importante olhar o que
de tão perigoso escreveu sua pena, o que de tão indesejável para a direita espanhola
Lorca expressou por meio de sua arte. Por mais indiscutível que seja a
conferências, é Lorca quem fala de maneira direta, assumindo sua posição, e, por isso é
importante verificar o que o autor diz como Federico, não apenas como Lorca.
90
A fala de Franco, acima, toma fundamental importância, por negar a visão
propagada pelos partidários do regime de que a morte de García Lorca havia sido um
acidente, por ser o autor apolítico. Nela, Franco assume que a morte de Lorca nada teve
de ―ferida causada pela guerra‖, como diz o próprio atestado de óbito concedido para a
era um dos ―mais característicos‖, o que deixa claro a importância de Lorca como
opositor à ideologia franquista, ideia completada pelo próprio Franco quando este diz
que Lorca era ―muito esquerdista‖. Neste caso, se o poeta era um importante opositor,
sua morte não teria sido um acidente, mas um assassinato, que, por definição, significa
matar alguém por ato voluntário. Se Lorca era um dos mais característicos, muito
esquerdista, e foi retirado da casa dos Rosales, falangistas amigos do poeta, com ordem
de prisão, para, em seguida, ser fuzilado, não se trata de uma morte involuntária, de um
Mas, como Lorca nunca foi filiado a nenhum partido político e nunca
estaria, sem dúvida, em sua arte. Afinal, ―a arte é compreendida como forma de
resistências políticas‖ (CHAIA, 2007, p. 30). Assim, pode-se afirmar que a arte de
Lorca era um fator perturbador para a sociedade controladora que, com a sublevação de
91
Com a palavra, F. García Lorca
Garcia Lorca escrevia sobre o que ele via, vivia e sentia. Desde seu primeiro
livro, Impresiones y Paisajes, escrito quando o poeta tinha 20 anos, já era possível notar
uma das mais fortes características de sua obra: tem algo a dizer sobre a sociedade
espanhola que ele fez questão de conhecer de perto. Mas, alguns pontos da vida do
escritor influenciaram sua criação artística, dando a sua arte um caráter social, como no
caso de Impresiones y Paisajes, resultado das visões sobre o território Espanhol que ele
caráter social está presente nas obras de Lorca desde seu primeiro livro, em que expõe o
mais que ―impressões‖ e ―paisagens‖ neste primeiro livro de Lorca; há uma forte ânsia
mesmo estética.
92
Essas palavras certamente causaram forte impacto no escritor, que sentiu necessidade de
colocá-las em seu livro com a intenção de fazê-las ecoar, mostrando para o resto da
sociedade a situação das pessoas sem recursos, que ficavam doentes e, assim, se viam
sem saída.
provavelmente o livro foi censurado pelo fato de conter algumas denúncias sociais e
A essa imagem que Lorca teve do seminário: local de sofrimento, temor, amargura e a
93
A crítica de Lorca refere-se à instituição da Igreja Católica, causando
questão a criação do homem, e não Deus, e assim separa a visão que o escritor tinha do
primeiro livro de Lorca já mostra o quão perigosas podem ser as palavras do escritor. E
certamente essa possibilidade de ler Lorca, sua crítica à Igreja, mas podendo não se
afastar da relação com Jesus é um dos elementos na obra do poeta com que os grupos
Lorca não foi diretamente alvo de críticas dos setores religiosos ou conservadores da
sociedade, mas isso também se deve à pouca repercussão que o livro teve. É fato que o
primeiro livro de Lorca já traz à tona muitas características do poeta que estarão
presentes em toda a sua obra, como a prosa em estilo poético e o próprio texto
comprometido com o social, mas ainda está bem distante do Lorca que vai para Madri e
que viaja pelas Américas. O livro isoladamente não teve grande impacto na produção
literária da época, mas tornou-se um espinho no momento em que passou a fazer parte
de um grupo de poemas e obras dramáticas que atingiram maior êxito dentro e fora da
Espanha.
a atenção de Lorca estava voltada para as questões sociais, tanto pela diferença de
homem com Deus, sendo intermediada pela Igreja. Mas, antes mesmo de seu primeiro
incomodava-se — com as relações sociopolíticas que ele via em sua sociedade e em seu
94
tempo. ―O patriotismo‖ não foi publicado, tem pouca carga poética, mas uma forte
Como dito acima, o panfleto não foi divulgado na época, e até hoje não
consta nas publicações das obras completas de Lorca, mas é fundamental para mostrar
que o escritor não era indiferente ao que acontecia ao seu redor e no mundo — no caso
entre si por causa de uma ideologia que parece não ter sentido para o autor. ―O
patriotismo‖ é um forte argumento para a ideia de que Lorca não se envolvia com a
expressar sua ideia política contrária às instituições, contra o conceito de pátria que
esquerda.
No ano de 1919, Lorca foi a Madri para viver na Residência dos Estudantes,
onde morou até 1928. A vivência do escritor neste local foi fundamental, pelo ambiente
95
que esta proporcionava, pela liberdade que Lorca experimentou estando longe da
família e também pelas relações que ali viveu e que, boas e ruins — como a complicada
relação amorosa que Lorca teve com o escultor Emilio Aladrén —, foram igualmente
fundamentais para Federico. Entre as pessoas importantes nesta fase da vida de Lorca,
estão os artistas da Geração de 27, o cineasta Luis Buñuel e o pintor Salvador Dalí. Na
época em que viveu na República dos Estudantes, Lorca escreveu suas obras poéticas de
maior êxito: Livro de Poemas (1921); Ode a Salvador (1926); Canções (1921-24);
três de suas primeiras obras teatrais: Mariana Pineda (1925), Amor de Dom Perlimplim
e Belisa em seu jardim (1926) e Dona Rosita, a solteira (1927), que expressam pouca
Federico – obras que carregam críticas sociais em sua temática principal e mulheres
Nessa época a política já rondava a arte de Lorca e, pelas cartas que o poeta
enviou à família, nota-se que vincular suas obras com algum posicionamento político
não era de interesse do escritor. Em 1924, quando Lorca estava organizando a estreia de
Mariana Pineda — peça sobre a história real de uma mártir republicana —, de Madri
A ideia de que Lorca queria ser reconhecido por sua arte, somente, se completa em
outra carta, no ano seguinte, na qual ele diz ―sempre serei um artista puro, que é o
96
máximo que pode aspirar o homem que tem tanto trabalho quanto mocinha em
parte da família de que o escritor não se envolvia com a política — ideia defendida pela
família até os dias de hoje. No documentário Lorca, el mar deja de moverse (2006), no
qual o diretor tenta mapear os motivos para o assassinato de Lorca, Emilio Ruiz
preparava para novas eleições, depois do período de governo de direita, o Biênio Negro,
Lorca assina o manifesto ―Os intelectuais com o Bloco Popular‖, publicado no jornal
97
A primeira assinatura do manifesto era a de Federico García Lorca, seguido
de Rafael Alberti, Emilio Prados, María Teresa León e mais de trezentas assinaturas. É
claro que o manifesto acima tem intenção eleitoral, visto que mostra à população
espanhola que aqueles que o haviam assinado estavam ao lado da Frente Popular.
Lembrando que 1934 e 1935 foram anos de intensa repressão na Espanha e no início de
1936, antes que eleições tirassem a direita do poder, o próprio Lorca teve uma mostra de
que ele era um dos alvos mais certos da repressão conservadora. Em janeiro de 1936,
chegou uma intimação judicial a Lorca por causa do poema ―Romance da Guarda
denunciado por considerar seu poema ofensivo. Manuel Iglesias Corral, fiscal geral da
República e chefe do Ministério Fiscal, foi quem contou. Iglesias Corral, informado
conseguiu que fosse anulada qualquer atividade processual ou judicial contra Lorca
(GIBSON, 1998, p. 412). Lorca não deu atenção ao caso, mas ele serve para mostrar até
que sua obra de fato ofendeu a direita e que seus representantes estavam dispostos a
punir o autor por causa do caráter "subversivo" da denúncia da Guarda Civil, por
98
Uma vitrina de esporas.
maneira direta ou pela denúncia da opressão, pode-se afirmar que o escritor assinou o
manifesto em favor da Frente Popular muito mais pela ânsia de promover a liberdade do
que pelo ensejo de participar da campanha pela Frente Popular. Mas essa não foi a única
Portugal‖ publicou no jornal El Socialista o manifesto que dizia: ―este comitê propõe
99
português‖ (Ibidem, p. 310). Ainda contra o fascismo, Lorca participou de um ato
organizado na Casa do Povo de Madri em favor de Luís Carlos Prestes, que havia sido
assinatura no manifesto espanhol ―um chamado aos amigos da América Latina pela
pensar que Lorca assinou esses e outros manifestos levado por seus amigos. Mas então,
uma sociedade espanhola que levasse a educação e a arte para todos os cantos do país.
Era pela arte que Lorca conseguia vislumbrar a melhora social da Espanha, e por isso o
escritor, ao longo de sua vida e de seu trabalho, foi se afastando do conceito de arte pela
arte, como ele mesmo deixou claro em outra entrevista, no ano de 1936, expondo seu
Este conceito da arte pela arte é uma coisa que seria cruel se não
fosse, afortunadamente, brega. Nenhum homem de fato ainda acredita
nesta ladainha da arte pura, arte pela arte mesmo. Neste momento
dramático do mundo, o artista deve chorar e rir com seu povo. Há que
deixar o ramo de açucenas e se meter na lama até a cintura para ajudar
aos que procuram açucenas. Mas a dor do homem e a injustiça
100
constante que emana do mundo, e meu próprio corpo e meu próprio
pensamento, evitam que eu transporte minha casa às estrelas
(LORCA, 2008, v. VI, p. 734).
Onze anos se passaram da carta de Lorca para sua família, na qual ele dizia
que ―sempre seria um artista puro‖ para a entrevista acima, afirmando que não era
possível crer na arte pela arte, na arte pura, mas que o artista precisa deixar de estar
longe de seu povo, para estar junto com ele. Pode-se pensar que Lorca tenha mudado
sua visão da importância da arte ao longo dos anos que separam as citações, mas é
da arte (CHAIA, 2007, p. 18). Lorca assumiu a influência de alguns pensadores, como
Karl Marx, sobre seu pensamento em seu ―Discurso ao povo de Fuente Vaqueros‖:
Ao mesmo tempo em que se pode afirmar que Lorca foi um artista engajado porque
criticou sua sociedade, protestou a favor de seus ideais e agiu publicamente, também se
deve recusar enquadrar a arte de Lorca como engajada no sentido mais comum de seu
termo, pois o escritor sempre fez questão de estar livre de qualquer rotulação, inclusive
101
da rotulação política sobre sua arte. Ser artista, para Lorca era um oficio como outro
qualquer. Ser escritor não colocava Federico em outro patamar, e, ao contrário, ele fez
questão de deixar claro qual era seu posicionamento sobre a função de sua profissão e
posição social:
Sem pudores, na fala acima Lorca mostra que ele tinha ideia da carga política que
carregava sua atitude crítica, sua arte. Revolução, Socialismo puro, ambos sendo
iniciados quando não houver mais fome de comida, nem a fome de poesia. O artista é
aquele que reage e procura reencontrar energias e potência no interior de uma condição
social na qual não se é livre e o céu pode desabar sobre sua cabeça. Ao aceitar sair da
se pronunciar partidário daqueles que nada têm, Lorca se torna um agente social e
sanguinário da Espanha.
102
Política e arte crítica
flanou por diversos tipos de expressão artística ao longo de seus quase dezoito anos de
morte, em 1936. Lorca foi, ao mesmo tempo, clássico e vanguardista. Criador múltiplo,
Lorca sobrepôs gêneros: musicou o poema, poetizou o drama, trabalhou o teatro com
lhe música e dança. Foi compositor para as montagens de La Barraca, e artista plástico
No ano de 1929, Federico viajou para a América do Norte, onde viveria por
um ano. Em Nova Iorque, cidade onde residiu por seis meses, Federico acompanhou a
quebra da bolsa e a depressão americana, que coincidiu com a mudança dos rumos de
sua obra, que passou a se dedicar, a partir de 1929, quase exclusivamente às artes
dramáticas. O impacto da cidade de Nova Iorque em Lorca deu lugar a seu livro de
poemas mais inquieto socialmente: Poeta em Nueva Iorque, cuja base é a denúncia da
cinema parece ter sido outra descoberta do período americano de vida de Lorca, que
escreveu Viagem à Lua, um roteiro para cinema mudo, que alguns estudiosos
classificam como uma possível resposta ao filme O cão andaluz16, de Buñuel e Dalí.
16
Ángel del Río teria contado a Buñuel que Lorca, em Nova Iorque, tomou conhecimento do filme feito
por Dalí e Buñuel, e Lorca teria dito: ―Buñuel fez uma merdinha, pequena assim, que se chama Um cão
andaluz, e o cão sou eu‖(GIBSON, 2007, p. 72). Por mais que não haja provas dessa anedota, é fato que
na Residência dos Estudantes de Madri chamavam os estudantes da Andaluzia de ―cães‖. Somado a isso,
o lançamento do filme de Buñuel coincide com o período de mágoa entre os três amigos e, também
coincide com a data de criação do roteiro cinematográfico de Lorca, Viagem a Lua.
103
Há uma parte da vida-obra de García Lorca que é pouco explorada pelos
estudiosos brasileiros, que são suas conferências. A partir de 1922, após já haver
iniciado sua condição de escritor sobre a tríplice base da prosa (Impresiones y Paisajes,
Lorca deu início ao seu trabalho de conferencista, atividade que não cessará até sua
pelo escritor nas quais ele demonstrou uma grande preocupação pela receptividade de
maio, Lorca deu uma série de conferências em Valladolid, Sevilha, Vigo, Santiago de
saídas noturnas lorquianas, famosas pelas conversas do autor nas quais ele comentava
sobre a cidade, declamava poesias, contava anedotas, tocava piano. Para Gibson, essas
ecoar das palavras de Lorca, que, em muitas paradas do grupo mambembe, atuou como
conferencista — além de seu trabalho como diretor do grupo — e muitas vezes recitava
104
algum discurso antes da apresentação dos ―barracos‖17. Mas não foi apenas na Espanha
que Lorca atuou como conferencista. Havana, Buenos Aires, Montevideo e Nova Iorque
foram algumas das cidades fora da Espanha que escutaram as falas de Lorca sobre suas
obras, sobre a arte e sobre seu olhar sobre o mundo. E não se deve pensar que o escritor
Eutimio Martín (1998, p. 280), Lorca nunca falava no vazio, e apesar de sua
reconhecida desenvoltura, não improvisava jamais. Nem sequer nas entrevistas: Lorca
costumava pedir aos jornalistas que o enviassem as perguntas por escrito e da mesma
conferências e discursos, como ele mesmo disse em 1931, por ocasião da inauguração
conferências são lidas, o que indica muito mais trabalho do que falar, mas no final, a
expressão é muito mais duradoura já que pode servir de ensinamento às pessoas que não
escutaram ou não estão presentes aqui‖ (LORCA, 2008, v. VI, p. 380). O escritor sabia
que suas palavras não ressoariam apenas no momento e no local onde ele as
pronunciasse, mas que seus discursos produziriam impacto por muito tempo e em
de Yerma para atores madrilenos que estavam em cartaz na época, mas queriam
escritor, pode-se dizer que ele já havia desenvolvido sua obra dramática o suficiente
para expor de maneira consciente sua visão sobre a importância dessa arte. Mas, além
17
Maneira como Ian Gibson se refere aos componentes do La Barraca.
18
Título original ―Charla sobre teatro‖, sem publicação no Brasil.
105
disso, a importância desse discurso de Lorca se dá pelo fato de o escritor falar,
diretamente, do aspecto social de sua arte. O teatro não foi apenas a expressão artística
de Lorca que causou mais impacto na sociedade espanhola — visto que algumas
Yerma, que chocou o público e a crítica de direita — e mundial, mas o teatro era,
O teatro, essa expressão demasiada humana da arte, foi usada por Lorca para se
expressar de maneira contundente e é, sem dúvida, a parte mais politizada de sua obra,
dizendo que, naquela noite, ele não falaria como o autor de Yerma, que acabara de ser
representada, nem como estudante do ―rico panorama do homem, mas como ardente
apaixonado do teatro e sua ação social‖ (Idem, p. 428). Essa paixão do escritor pelo
teatro tinha razão: para ele, as artes dramáticas eram um dos mais expressivos e úteis
instrumentos para a educação de um país e o barômetro que marca sua grandeza e seu
esmorecimento.
106
vivos, as normas eternas do coração e sentimento do homem (Idem, p.
428).
Primo de Rivera que foi acompanhada por uma Espanha que convulsionava no encontro
entre muitas espanhas que não conseguiam coexistir. O teatro de Yerma, de Bodas de
Sangue, de Rosita, a solteira, que questionam a velha moral social sobre a mulher e a
comportamentos. As personagens lorquianas são, cada uma a sua maneira, a forma que
o escritor usou para explicar, com exemplos vivos, as normas do coração, que se opõem
às normas sociais.
Lorca assume que sua arte está relacionada a condições externas a ela, ou
alguma maneira são advindas de traços sociais. Assim, há muita Andaluzia na obra de
Lorca, da mesma maneira que seus escritos se tornam universais por representarem o
que está além da fronteira geopolítica. E como recusar que há um caráter político no
Um povo que não ajuda e não fomenta seu teatro, se não está morto,
está moribundo, como o teatro que não atende ao pulsar social, ao
pulsar histórico, o drama de sua gente e a cor genuína da paisagem e
de seu espírito, com riso e com lágrimas, não tem direito a se chamar
teatro, mas sim sala de jogos ou espaço para fazer essa horrível coisa
que se chama ‗matar o tempo‘. Não me refiro a ninguém, nem quero
ferir ninguém, não falo da atualidade viva, mas do problema exposto
sem solução (Idem, p. 428).
outros como expressionista, e alguns consideram O público e Assim que passarem cinco
anos como antecipação do teatro do absurdo, como cita Ricardo Doménech (2008, p.
36). Mas, não se pode enquadrar a obra de Lorca — e essa era sua vontade, que sua obra
não fosse rotulada, como conta Jorge Guillén por uma carta recebida por Lorca, na qual
107
ele dizia: ―Não quero que me rotulem. Sinto que me vão colocando correntes‖ (apud
ROJO, 2006, p. 87). O que se pode levar em conta são algumas observações que o
próprio autor fazia sobre a sua obra e a arte em geral. Uma dessas observações, segundo
Rafael Martínez Nadal19, é sobre os dois tipos de teatro em relação à sua intenção, e não
à sua forma. Segundo Nadal, Lorca dizia que há dois tipos de teatro: o teatro ao ar livre
perpetuando a mentira onde esta vive; teatro que ofusca a profundidade e a grandeza do
próprio teatro, de uma obra ou tema. Como exemplo dessa espécie de teatro é uma
montagem de Romeu e Julieta, de Shakespeare, que a coloca, apenas, como uma peça
de amor, e não como uma forma de crítica social. O teatro ao ar livre se preocupa em
criar montagens que não alteram a consciência, nem o estômago do público, e por isso
alcançam grande êxito. Em oposição, há o teatro de arena, talvez fazendo alusão à arena
que o teatro leve à cena a crítica, o incômodo que faz o público questionar aquilo que
feito por Lorca, não se preocupando com o simples entretenimento do público, não
interessado em matar o tempo, mas sim como agente social e histórico, que reconhecia o
pulsar da sociedade por ser algo vivo, como ela. Ou pelo menos o deveria ser. Se estava
morto ou moribundo o teatro, era seu povo que assim o permitia, e com isso Lorca faz a
dupla ponte da arte para a política, no sentido em que questiona as relações sociais, e da
política para a arte, pensando que a sociedade é o que mantém vivas as artes.
19
Rafael Martínez Nadal foi amigo de Lorca e estudioso de sua obra.
108
Eu sei que a verdade não a tem que diz ―hoje, hoje, hoje‖ comendo
seu pão junto ao conforto, mas sim o que serenamente vê de longe a
primeira luz na alvorada do campo. Eu sei que não tem razão o que
diz ―agora mesmo, agora, agora‖, com os olhos presos nas pequenas
aberturas da bilheteria, mas o que diz ―amanhã, amanhã‖ e sente
chegar a nova vida que chuvisca sobre o mundo (Ibidem, p. 430).
No final da conferência, Lorca afirma que sua arte não tem sentido
reverberar mais além do agora, procurando quem a escute, mesmo que em outros
mudança na sociedade, e nisso ela se torna política, e não pelos discursos partidários ou
panfletários. Voltando para a recusa de Lorca da arte pela arte, que foi defendida
aqui encontra o seu oposto. O teatro de Lorca, que não é mercadológico nem de
do teatro para o povo, visto que escritor aceita o ofício de dramaturgo, encargo de
alguns, para sensibilizar e educar a sociedade. Essa é a arte de Lorca, que não pertence a
nenhum movimento político, mas que se constitui como algo vivo, que se desloca em
109
As palavras de Guillermo têm relevância, pois de fato Lorca nunca nem
sequer pensou em se inscrever em partidos políticos; mas não se pode dizer que ele
jamais teve a menor relação com a política. As relações de amizade com Fernando de
Los Ríos e com os muitos parentes envolvidos com a política já são fatores que
mostram que, completamente alheio à política, Lorca não era. O que se pode afirmar,
qualquer linha de ativismo político partidário. Evitando ostentar uma posição política
liberdade. Mas isso não anulou a posição de Lorca como um agente político, no sentido
em que ele se relacionava com sua sociedade por meio de sua arte.
sentido institucional, mas isso não implica em absoluto que o escritor tivesse deixado de
sentir simpatias por uns ou outros, ou de ter suas próprias ideias político-sociais. Há
uma anedota contada por Rafael Martínez Nadal, relatada por Gibson, que mostra que
110
Não há registros da participação de Lorca na manifestação, mas é fato que
aconteceu a manifestação dos estudantes e a repressão desta pela Guarda Civil, no dia
a República como forma de governo. Mas, não há dúvida de que Lorca se aproximava,
por sua postura ideológica, dos grupos de esquerda, mas também contava com muitos
amigos de direita e respeitava suas ideias. O caso mais emblemático é, sem dúvida, a
amizade de Lorca com os Rosales, família de falangistas que deram guarita para Lorca,
ideologia politica, ao invés de não se comprometer, como podem pensar uns, o escritor
se manteve fiel a sua postura de crítico da sociedade, mantendo-se livre para poder
postura apolítica, manteve Lorca como um artista resistente, aquele que pode estar
sempre atento à sociedade, por não estar comprometido com suas instituições. Assim, a
arte de García Lorca pode ser considerada como uma manifestação política, pois atua
como crítica à sociedade. São obras baseadas na sensibilidade social do escritor, unindo
aspectos formais e questões sociais. Por meio de suas obras, Lorca resiste às amarras
interna e externa aos sujeitos. As obras do teatro lorquiano podem ser consideras, desta
forma, como arte crítica, pois por meio delas o escritor usa sua arte como elo com a
sociedade:
111
A arte como forma de investigação e suporte para a ampliação da consciência e do
conhecimento torna-se o elo nuclear para pregar a independência do indivíduo, da
sua expressão e do seu saber [...] Tal atitude do artista, enquanto ato de
representação, afastando-se de uma posição de neutralidade, deverá repercutir
possibilitando uma atitude crítica do usufruidor (CHAIA, 2007, p. 39).
saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a realidade. Neste caso, a arte representa
artista está envolvido. No caso de Lorca, ele esteve envolvido, de maneira incontestável,
Seja pela censura que algumas de suas obras sofreram, tanto com Primo de Rivera
quanto com o general Franco, ou pela liberdade que Lorca experimentou nos primeiros
anos da Segunda República, o escritor esteve envolvido com a política de sua época. E
mesmo que não tenha se referido a ela diretamente, ele apresentou uma postura política
em sua arte no momento em que escreveu sobre as relações de força, de poder, mesmo
identificação da obra com o social, com o coletivo, com o público, chegando até as
instituições, por outro, há a política como prática social, que privilegia as ações dos
sujeitos, dos indivíduos. Esta é a luta da micropolítica, na relação entre arte e política
institucional.
112
permanentemente desestabilização e ordem. Política é o espaço onde as ambiguidades
vinculada a nenhum partido, se é possível afirmar, de alguma forma, que suas obras não
carregam a intenção política, não se pode negar a ação do escritor como produtor, e
poemas ou como conferencista, fazendo ecoar seus pensamentos por diversas partes da
Espanha e da América.
carregam o desejo de intervir nela. E, como foi falado, desde seu primeiro livro, Lorca
mostra o quão sensível era às condições sociais que ele presenciou com suas viagens
pela Espanha. É na arte que não se engaja de forma direta com a política, mas que se
ainda maior do que nas obras de um artista explicitamente engajado, por oferecer as
resistência. Mais do que arte engajada, o que se vê nas obras de Lorca é uma arte crítica.
combativo. E Lorca, por meio de suas entrevistas e conferências, mostra que nunca
recusou esse papel de artista que estuda sua sociedade, que questiona seus valores e suas
regras ancestrais.
Federico apresenta, não só em relação à sociedade e à política, mas também com relação
aos estilos artísticos de sua época, afinal, Lorca recusou tanto os rótulos de que sua obra
estaria a favor da República, quanto de que ele era um poeta cigano ou surrealista –
113
maneiras como o escritor foi descrito especialmente por sua obra poética. E como artista
independente, Lorca soube resguardar a sua obra da pressão política, não levantando
ideologias por meio delas, mas sim posicionando-se. Há quem relacione Lorca com a
República, seja por sua amizade com Fernando de Los Ríos, seja por seu trabalho em La
pelo manifesto a favor da Frente Popular, assinado por Lorca. Porém, tampouco se pode
afirmar que Lorca era republicano, mas ele esteve republicano, pois, em uma Espanha
que via a monarquia sucumbir, sendo substituída pelos sete anos de ditadura, e
indivíduos. Porém, a posição política assumida pelo escritor a não subjuga a obra que
tanto no que diz respeito às amarras institucionais, quanto na questão estética. E assim
Lorca vai se posicionando, tornando-se um agente politico, pois usa sua criação para
falar das práticas que se desenrolam em torno do poder – seja da família, da sociedade
sociedade.
114
Diferentes sistemas políticos propiciam distintas relações ente arte e
política, pois influenciam e são influenciados tanto pelos fatores internos quanto pelos
aspectos originados na dinâmica local e mundial. Na relação de mão dupla entre arte e
ordem estabelecida. O eixo desse processo pode estar no individual, mas também se
desloca para o institucional; ir do cidadão para o governo; do local para o nacional, pois
sob os olhos das relações sociopolíticas, tanto a crítica quanto a recusa delimitam o
América do Sul, colocou em suas obras a ânsia dos indivíduos pela liberdade, e dessa
ou denunciando uma outra onda de repressão que rompia em outras partes. O escritor
dialogou, por meio de sua criação, com o mundo e o tempo em que viveu, e assim, pede
um olhar atento para as relações de poder que se estabeleciam nas sociedades por onde
o poeta passou — pensando que Lorca também criou poemas que denunciavam as
relações de poder que ele conheceu na cidade de Nova Iorque. Porém, mesmo que o
poeta tenha travado um diálogo com as sociedades pela qual passou, sua obra é artística,
principalmente, por apresentar autonomia, por não estar datada, nem fixada em alguma
sociedade.
115
Lorca soube unir arte, vida e política — por meio da resistência que esse
social.
116
Capítulo 3
117
Em direção à tragédia
Federico García Lorca publicou seu primeiro livro em 1918, aos vinte anos
de idade e, em 1928, escreveu Bodas de Sangue, considerada sua primeira peça trágica.
Quando morreu, em 1936, aos 38 anos, somava dezoito anos de produção literária, sem
contar os anos anteriores, quando estudou música. Lorca foi um artista: poeta,
posição sobre o trabalho do artista. Lorca não apenas produzia a arte, mas também
refletia sobre ela. Nos dezoito anos em que produziu, Lorca escreveu doze livros de
poemas, um livro de prosa, doze obras de teatro completas (deixou várias inacabadas), e
produção tão extensa quanto intensa, tendo em conta o pouco tempo no qual foi
concebida.
Das obras dramáticas de Lorca, três contam com maior êxito mundialmente,
a trilogia rural, que assim é conhecida por ser um conjunto de peças que se passam no
meio rural, no qual nasceu o poeta, ao sul da Espanha, na província da Andaluzia. Tal
Bernarda Alba, e são essas algumas das últimas obras do escritor. Porém, o dramaturgo
García Lorca não pode ser reduzido a apenas três peças, assim como o Lorca poeta
encontram-se alguns dos temas que serão presentes em grande parte da obra lorquiana:
118
o religioso (Sombras) e o social (Do amor). Porém, é apenas com O sortilégio da
mariposa que Lorca se lança oficialmente como dramaturgo. A peça estreou em março
de 1920, sem boa recepção do público. Quinze anos mais tarde, já famoso como
consequência foi, segundo o irmão do poeta, Francisco García Lorca, que O sortilégio
da mariposa não foi representada mais do que duas vezes, quase um recorde, já que o
(LORCA, 1981, p. 266). O sortilégio da mariposa é uma comédia romântica que fala do
Dois anos depois, em 1922, Lorca terminou sua segunda obra dramática, A
Tragicomédia de Dom Cristóvão e D. Rosita, uma obra para marionetes que só seria
estreada em 1937, na Madri da Guerra Civil Espanhola. Em 1931, Lorca escreve uma
variação da peça, O Retábulo de Dom Cristóvão e D. Rosita, peça que ele mesmo
comédia de costumes que segue o modelo da comédia dell‘arte e trata de alguns dos
A peça se baseia na história real de Mariana Pineda que, em 26 de maio de 1831, foi
executada publicamente em sua cidade natal, Granada, aos vinte e seis anos de idade.
Viúva e com dois filhos, Mariana foi condenada por ter sido pega, em sua casa,
bordando uma bandeira com símbolos republicanos. Na época, recaía a pena de morte
àqueles que fossem responsáveis por atos de rebeldia contra o soberano ou comoção
popular, e foi o que aconteceu com Pineda, que foi considerada ré por exaltada adesão
119
ao sistema constitucional revolucionário e por estar em contato com anarquistas
Aires, em 1934.
Dois anos depois de Mariana Pineda, Lorca escreveu sua quarta obra
dramática, A Sapateira Prodigiosa, 1925. Esta peça, que só estreou cinco anos mais
tarde, trata de uma farsa muito espanhola e de linguagem muito pura, como declarou o
autor para o jornal La Razón, de Buenos Aires, em novembro de 1933 (MARTÍN, 1998,
p. 124). A Sapateira prodigiosa mais uma vez traz o tema da mulher jovem, casada por
conveniência com um homem mais velho. O casamento arranjado faz com que a
Sapateira viva sonhando com amores impossíveis, ao mesmo tempo em que trata seu
marido de maneira ríspida, e assim o casal leva uma vida infeliz. No final da peça, a
Sapateira declara seu amor ao marido, conciliando-se com ele, dando um desfecho feliz
à obra. Como o próprio autor definiu, A Sapateira prodigiosa é uma farsa simples, de
só vez; é uma criatura primária e é um mito da ilusão insatisfeita. Ainda sobre o estilo
recebia de meus amigos de Paris, de formosura e amarga luta com uma arte abstrata, me
levaram a compor, em reação, esta fábula quase vulgar com sua realidade direta, onde
eu quis que fluísse um invisível fio de poesia e onde o grito e o humor se levantam
apresentado na peça, não se repetiria nas obras de Lorca, mas a mescla da prosa com a
poesia no texto dramático voltaria a ser usada, com mais êxito, em Bodas de Sangue.
precede a peça Amor de Dom Perlimplín com Belisa em seu Jardim. Não se sabe
120
exatamente a data de conclusão da produção da obra, mas em 1925, em carta a
Fernández Almagro, Lorca dizia que estava escrevendo a peça. Supõe-se que o autor a
dezembro de 1928, Lorca afirmava que preparava um volume de teatro, Amor de Dom
Perlimplín com Belisa em seu jardim. Anos mais tarde, no jornal Heraldo de Madrid,
anti-herói, a quem o tornam corno, é espanhol e calderoniano, mas não quer reagir
um velho com uma mulher jovem. Porém, nessa obra não é a simples e extrovertida
jovem que assume o protagonismo, mas sim o velho marido, que apresenta a
casar, dizendo que estava satisfeito em viver com seus livros. Mas a verdade é que o
velho homem temia as mulheres desde que, quando criança, ficou conhecida a história
peça foi em fevereiro de 1929, mas a estreia foi censurada pela ditadura de Primo de
Rivera, e contou com apenas uma apresentação presenciada pelo autor, em 5 de abril de
1933, em Madri.
Entre os anos de 1929 e 1930, García Lorca viaja a Nova Iorque e Cuba, de
onde volta com um vasto número de poemas, conferências, obras de teatro e, entre elas,
dezembro de 1930, Lorca fala pela primeira vez de uma de suas obras que compõe o
121
sim... Dramatismo profundo, profundíssimo‖. Lorca declarou que considerava a obra
peça, mas não parecem ser as personagens principais. Talvez a verdadeira razão do
caráter irrepresentável não seja a forma da peça, mas seu conteúdo, que trata mais do
sentido psicológico das personagens do que do lado técnico. ―O Público não pretendo
estrear em Buenos Aires, nem em nenhuma outra parte, pois acredito que não haja
companhia que se anime de levá-la a cena, nem público que a tolere sem se indignar [...]
porque é o espelho do público. Quero dizer, fazendo desfilar na cena os dramas próprios
que cada um dos espectadores está pensando, enquanto está assistindo, muitas vezes
se deu apenas em 1986, em Milão, e só no ano seguinte teve sua primeira encenação na
Espanha, em Madri. O Público trata dos sonhos delirantes de um diretor teatral, homem
que ao longo de sua vida escondeu sua homossexualidade e dedicou seu trabalho ao
teatro burguês — considerado por Lorca como o teatro que busca o aplauso fácil e o
apreço social das obras, como no caso de encenações estereotipadas de Romeu e Julieta.
Porém, em seu sonho, o diretor não pode controlar os embates de um público nada
condição de que a peça só poderia ser representada por dois atores do sexo masculino. O
A segunda peça que Lorca produziu após sua passagem pela América foi
Assim que passarem cinco anos. Esta peça também apresenta traços oníricos que
122
remetem ao estilo surrealista, estilo ao qual muitas vezes Lorca é relacionado pelos
críticos de sua obra. Mas, diferentemente da peça O Público, atrás da atmosfera que
envolve a peça, Assim que passarem cinco anos tem uma coerência estrutural e temática
buscas sem objeto; não há narrativa, mas, em seu lugar, o escritor situa a trama na fala
O próprio autor percebia que esta peça era mais possível de ser encenada, e
declarou, em 1933, que a peça estava sendo ensaiada, mas a guerra civil interrompeu os
planos do autor até o ano de 1978, quando Assim que passarem cinco anos foi
realmente encenada. A trama trata sobre um jovem que promete a sua namorada que
voltaria para se casar com ela assim que passassem cinco anos. Depois de passado o
prazo, acontece o encontro entre o casal, porém, a personagem que recebe o nome de
Noiva — como em Bodas de Sangue, uma noiva que nunca deixa de sê-lo, uma mulher
que estará sempre na condição de solteira prometida, o futuro que não chega à vida das
personagens — rejeita o Jovem que por cinco anos esperou para reencontrá-la. Agora,
ele tem em sua datilógrafa — a mulher que sempre o amou e da qual ele nunca aceitou o
Lorca disse da peça: ―Assim que passarem cinco anos, a lenda do tempo,
cujo tema é esse: o tempo que passa [...] é um mistério, dentro das características do
gênero, um mistério sobre o tempo, escrita em prosa e verso‖ (GIBSON, 1998, p. 146).
Nessa peça, temos uma história de amor e de rejeição, para, afinal, o amor ser sempre
um amor adiado. O tempo, implacável, e a urgência do amor são temas que voltam a
aparecer em outras peças lorquianas, como em Yerma, onde o passar do tempo aumenta
123
a angústia da personagem, ou em A casa de Bernarda Alba, onde Adela não aceita
esperar que seu amado Pepe fique viúvo para, como sugere a governanta Pôncia, enfim,
agosto de 1931, exatamente 5 anos antes da data à qual se atribui a morte do escritor.
Uma das personagens de Assim que passarem cinco anos diz: ―Dentro de quatro ou
cinco anos existe um poço onde cairemos todos‖ (Ato I), e, cinco anos depois, não
apenas o próprio Lorca é lançado em um poço-vala, mas toda a Espanha se depara com
No mesmo ano em que terminou Assim que passarem cinco anos, em 1931,
Lorca foi nomeado diretor da companhia de teatro estudantil La Barraca. O grupo era
subsidiado pelo governo e viajou por toda a Espanha, representando obras clássicas da
dramaturgia espanhola nos povoados que nunca tinham visto uma obra de teatro. Foi
nessa época que Lorca escreveu suas obras mais conhecidas: Bodas de Sangue, Yerma e
A casa de Bernarda Alba, a chamada trilogia rural. Lorca escreveu a primeira peça
dessa trilogia, Bodas de Sangue, entre os anos de 1928 e 1933. Nas palavras do autor, a
peça levava à cena ―figuras reais, rigorosamente autêntico o tema... primeiro, anotações,
para a cena‖ (apud MARTÍN, 1998, p: 192). Quando Lorca disse que às vezes
relacionar a peça a um assassinato ocorrido no ano de 1928, mesmo ano que Lorca
começou a escrever Bodas de Sangue, e que foi amplamente divulgado pela imprensa
espanhola.
124
Almería, Andaluzia. O noivo e alguns convidados, mas como iam passando as horas e a
noiva, uma jovem de vinte anos, não chegava, os convidados foram embora,
encontrou a noiva, que estava escondida perto do local onde estava o cadáver, com as
roupas ensanguentadas. Presa, a noiva contou que estava fugindo com o primo, a
cavalo, mas na fuga encontraram um homem encapuzado que disparou quatro disparos,
Três dias depois, o mesmo jornal circula a notícia: ―Se esclarece o mistério
submetida a intenso interrogatório, acusou o irmão do noivo, José Pérez Pino, como o
declarando que havia bebido demais e que encontrou os fugitivos no caminho. José
disse que sentiu tanta vergonha pela ofensa que se inferia ao seu irmão que se lançou
contra Montes Cañada com o revólver que usava e acabou disparando os tiros. Eutimio
formulação artística de Lorca, já que, segundo ele, os temas contidos na peça eram
Com Bodas de Sangue, Lorca consagrou o estilo que mistura prosa e poesia.
Essa mescla sempre foi rejeitada por crítica e público, mas para o autor ela se faz
125
fundamental, pois ―a prosa livre e dura pode alcançar altas hierarquias expressivas,
sobre a poesia, ―vinda em boa hora a poesia naqueles momentos que a disposição e o
frenesi do tema o exijam. Mas nunca em outro momento‖, disse Lorca (apud MARTÍN,
1998, p. 193).
Após Bodas de Sangue, Lorca escreve sua segunda tragédia, Yerma, da qual
hispânica‖. Na época, Lorca anunciava à imprensa qual seria sua próxima obra: ―Agora
termino a trilogia que começou com Bodas de Sangue, segue com Yerma e acabará com
casamento e a vida das mulheres que ficam solteiras. Nessa obra, Lorca coloca em cena
a vida social espanhola, como ele havia colocado em Yerma, mas em Dona Rosita o
autor usa a comédia como estilo para expressar sua crítica, tendo em mente uma peça
que faça rirem as gerações mais jovens, mas que reflita a classe média, de pensamento
provinciano, como o próprio escritor colocou. Segundo Lorca, ―está aí a vida de minha
Dona Rosita: mansa, sem fruto, sem objeto, brega [....]. É o drama da breguice
força no mais fundo de sua entranha febril‖ (apud MARTÍN, 1998, p. 229). Dona
Rosita, a solteira, estreou em 1935, e foi a última obra que Lorca viu estrear. Quanto a
sua última peça, A casa de Bernarda Alba, escrita em 1936, — ano da morte de Lorca
126
La Barraca da Espanha
Luis Saénz Calzada, sobre quando García Lorca chegou à casa de Carlos Morla —
Assim, em novembro de 1931, nascia La Barraca, e a definição do grupo foi dada pelo
próprio Lorca, em dezembro de 1931, em uma entrevista dada ao jornal El Sol, na qual
dizia que os estudantes se lançariam por todos os caminhos da Espanha para educar o
povo. ―Sim, para educar o povo com o instrumento feito para o povo, que é o teatro e
que lhe foi roubado descaradamente‖ (LORCA, 2008, v. VI, p.510). La Barraca era,
portanto, um grupo de teatro universitário, dirigido por Lorca e Ugarte. Foi subsidiado
República. A amizade entre Los Ríos e Lorca vinha desde a época em que Federico era
estudante de direito em Granada, e foi Los Ríos que o levou para a Residência de
Estudantes, em Madri, e depois foi o responsável pela ida do poeta a Nova Iorque, em
127
1929, dois momentos fundamentais na vida do escritor andaluz. Tanto essa amizade,
Lorca dizia que Fernando de Los Ríos, pai do socialismo, tinha barbas de santo.
Certamente essa aproximação entre santos e socialismo não agradou a Igreja Católica e
devotado ódio.
graças a esse entusiasmo e identificação de Fernando de Los Ríos que o governo decidiu
(1998) informa em sua biografia sobre Lorca — Federico García Lorca — que a ideia
de La Barraca não era original de Lorca, ainda que tenha sido apresentada desta forma,
mas que teria nascido quase que por geração espontânea entre um grupo de estudantes
República havia fundado no mês de maio de 1931 (GIBSON, 1998, p. 160). Os teatros
com significado parecido, mas como seu próprio nome indica, a primeira tinha uma
20
‗Besteiros‘ eram soldados medievais que usavam ‗bestas‘, arma que se assemelha ao arco e flecha,
porém, em forma de espingarda.
128
missão mais voltada à pedagogia. O importante é que ambos os teatros, peregrinos,
No início do século XX, o teatro que se fazia na Espanha nos anos que
precederam a República era pobre ou, como dizia Lorca, ‗putrefato‘ 21. Procurava
atender os desejos do espectador e fazê-lo passar horas agradáveis, sem pensar muito.
teatro espanhol ganhou primeiro plano, junto com o ensino; o teatro que se fazia na
nacional. Segundo Calzada (1998), o teatro espanhol da época contava com alguns
autores renomados e companhias nas quais figurava algum jovem galã, ou daminha, ao
redor dos quais se polarizava o mérito do triunfo das companhias. ―Não havia autores
dramáticos relevantes nem se faziam traduções de escritores teatrais que pudessem ser
renovadores, como Jardiel Poncela, Eduardo Ugarte e López Rubio, que escreviam em
21
Putrefato foi o adjetivo introduzido na vida cotidiana de La Barraca por Lorca, que ele empregava para
se referira algumas modas, comportamentos, condutas. Federico empregava a palavra condenatória para
diversas ocasiões (CALZADA, 1998, p.55).
129
uma interpretação original para que a eficácia pedagógica não se
perca. Há que dar ao povo o que é seu (LORCA, 2008, v. VI, p. 512).
Alarcos.
Foram treze obras do teatro clássico espanhol, o que mostra uma mudança
foi de levar à cena a imagem dos camponeses que, ao longo dos séculos, esperavam o
momento de arar a terra, e quando morriam, eram substituídos por outros camponeses
que também esperavam sua vez. A terra trabalhada seguia a mesma do Século de Ouro
do teatro espanhol; quanto ao povo, não era possível distinguir, através das gerações,
um camponês do outro.
Luiz Calzada afirma que muitos pesquisadores que escrevem sobre a vida e
inclusive pelo fato de o dramaturgo não usar o grupo como veículo de seus escritos
teatrais e poéticos. Lorca adotou essa postura, como esclarece seu companheiro do La
Barraca, para que ninguém pudesse dizer que aproveitava La Barraca para estrear o que
130
nenhuma outra companhia quis (CALZADA, 1998, p. 142). O escritor pode não ter
encenado suas obras no La Barraca, mas usou o La Barraca para compor suas criações.
do dramaturgo.
interesse pela obra e abrindo a possibilidade de o tédio tomar o lugar do que deveria ser
deleite. A importante mudança das estruturas das peças de Federico García Lorca, após
o ano de 1931, leva a questionar se, antes do La Barraca, o escritor tinha conhecimento
deste jogo entre a obra e o público. Porém, para as apresentações do grupo de teatro
estudantil, Lorca estudava as obras, expurgando delas aqueles pontos escuros nos quais
espectador.
pode-se pensar que suas preocupações estavam na forma, mas também nos temas das
alguns pontos da peça — como o fato de dar mais importância à cena das bodas na
aos Reis Católicos, assim como as cenas das quais esses fazem parte — eles
aplaudida, como relata Calzada (CALZADA, 1998, p.100), talvez o seja não apenas
pela interpretação, direção ou pelo jogo cênico, mas porque a peça se fazia latente no
público.
131
Alguns temas presentes na obra lorquiana aparecem no repertório de La
Barraca, como o discurso da honra da mulher, remetendo o público para o século XVII,
época na qual foi escrita El burlador de Sevilla, de Tirso de Molina — obra que trata a
lenda do Burlador do século XVII, e a história de quatro mulheres que ficam sem honra
era consciente de que muita gente estranhava o fato de que La Barraca, criada por uma
República laica, oferecia ao povo uma obra ‗católica‘, e nesse sentido receberam críticas
tanto da direita quanto da esquerda (GIBSON, 1998, p. 170). Assim, Lorca declamava
sueño) é, a meu ver, o auto de importância deste poeta. É o poema da criação do mundo
e do homem, mas tão elevado e profundo que na verdade passa por cima de todas as
uma simplicidade cênica que exigia mais dos atores. Provavelmente essa maneira de
simples do ponto de vista cênico. Nas encenações de La Barraca quase ―não havia
figurino nem cenário; as personagens saiam como Deus quisesse, com perucas, chapéus,
à aparência do macacão:
132
Salaverría: Que? Um poeta andaluz com o macacão dos proletários?
Bem que diz a Constituição que somos uma República de
trabalhadores. Aqui temos um poeta que quer obedecer aos preceitos
da Constituição. Parece um mecânico, um chofer, um trabalhador de
oficina, com seu uniforme azul escuro, de tecido ordinário, ao qual só
falta o detalhe de um martelo junto com a foice. O cantor dos ciganos
patéticos se transformou em maquinista ou algo assim.
Você se parece um maquinista...
Lorca: mas não sou, por hora, mais do que um diretor de teatro.
Salaverría: Um apaixonado por La Barraca. Bonito nome. La Barraca!
Lorca: Sim, um nome lindo. Uma coisa que se monta e
desmonta, que roda e segue pelos caminhos do mundo...
espanhol, torná-lo acessível às pessoas que o desconheciam, e em seus dias, foi capaz de
levar um pouco de cultura aos que ignoravam inclusive o que fosse cultura. No geral o
a uma peça de teatro bem montada. La Barraca foi fundamental para a expansão cultural
da Espanha entre 1931 e 1936, mas também foi essencial para a criação das obras de
Lorca. A partir de 1931, Lorca passou a se dedicar quase que exclusivamente às artes
prestígio por sua arte, e não como mártir por sua morte prematura em 1936, como
muitos dizem — e como será tratado mais adiante. Porém, La Barraca encerrou suas
atividades no momento em que Lorca foi assassinado, no primeiro mês da Guerra Civil
Espanhola. La Barraca era algo vivo e morreu. E como definiu Calzada, como um de
seus participantes,
133
lápide nem um mausoléu. Houve circunstâncias que facilitaram essa
morte? Sim, houve: La Barraca era La Barraca e sua circunstância. E
isso, pelo visto, ocorre a qualquer coisa que flui (CALZADA, 1998, p.
143).
dramático. Haverá tempo de fazer comédias, farsas. Enquanto isso, eu quero dar ao
teatro tragédias‖ (LORCA, 2008, v.VI, p. 646), anunciava Lorca em 1934, quando
escrevia Yerma. Após sua primeira obra trágica — Bodas de Sangue — o escritor
Lorca tenha notado a ausência do estilo entre as obras clássicas que ele representou com
o grupo La Barraca, assim, o escritor seguiu com a construção de obras trágicas com o
tema da mulher estéril, sendo esta ―uma tragédia com quatro personagens principais e
coro, como deve ser uma tragédia [...] a parte fundamental reside nos coros. Não há
argumento em Yerma. Eu quis fazer isso: uma tragédia, pura e simplesmente‖ (LORCA,
primeiro livro, um relato sobre suas viagens pela Espanha, o escritor mostra seu
interesse pelo encontro entre culturas, como escreve em Impresiones y Paisajes: ―Há
que ser religioso e profano [...] unir o misticismo de uma severa catedral gótica com a
maravilha da Grécia pagã. Ver tudo. Sentir tudo‖. (LORCA, v. VI, p. 105). O modo
Lorca a buscar e a exprimir o encontro entre culturas. Assim, era fundamental que o
134
dramaturgo levasse o público de volta à arte trágica por meio de suas peças, que unisse
a importância da Igreja Católica espanhola com o paganismo presente nos ritos gregos
antigos em suas obras. Depois de Impresiones y Paisajes, Lorca se dedicou aos poemas
nos quais experimentou o trágico retomando temas míticos, a duplicidade entre Apolo e
Dionísio, e a religiosidade.
Mas o sentido trágico precisa do teatro para sua completa expressão, precisa
que acontece às personagens, mas o que acontece por meio delas. Lorca afirmou que era
preciso voltar à tragédia. Nessa afirmação, pode-se encontrar um duplo retorno: a volta
à tragédia no sentido de que era preciso retomar a arte dramática dos gregos antigos, e a
volta à tragédia lorquiana, gênero iniciado com Bodas de Sangue, primeira peça trágica
de Lorca. Na década de 1930, com Yerma, o escritor volta, não apenas à tragédia, mas
também às artes dramáticas, que ele havia trabalhado no início de sua carreira, mas sem
grande êxito.
primeiros livros, que faziam forte referência à cultura andaluza, da qual a oralidade é
uma das características mais marcantes. Porém, o escritor se interessava tanto pela
cultura popular, transmitida oralmente, quanto pela cultura clássica. Era-lhe familiar a
assíduo leitor de traduções dos clássicos gregos, em especial, os trágicos. Luis Sáez de
la Calzada, ator que integrou o grupo La Barraca, conta que Lorca chegava a recitar de
cor obras de Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Platão e Aristóteles (apud ROJO,
político e histórico; Eurípides e suas personagens que atuam ante toda sua liberdade. A
135
busca pela individualidade de Yerma e a peça A casa de Bernarda Alba refletem a
Espanha da época, assim como Adela e sua insuportável liberdade, só para citar alguns
dos aspectos dos clássicos gregos que aparecem nas obras de Lorca.
gênero em suas obras. Além disso, Lorca tem como referência outro autor trágico
importante, Shakespeare, a quem faz uma direta homenagem em sua peça O público,
colocando em cena a peça Romeu e Julieta como pano de fundo para a obra lorquiana.
Assim, não há uma tragédia grega, ou um autor trágico, que se possa dizer que tenha
comparação direta, pois o termo trágico em Lorca refere-se ao drama moderno, no qual
grega, também é possível notar que alguns elementos da estrutura grega se mantêm,
como no fato de a personagem viver um confronto entre sua vontade e ação, de um lado,
próxima de Lorca, a que mais impacto causou nele, e tal afirmação Adrados faz baseado
136
no fato de serem tragédias levadas a seu ápice, em um desenrolar lógico de uma
situação que vai crescendo ao longo do tempo, na intensificação gradual da angústia, até
explodir. Segundo essa análise, tanto em Lorca quanto em Ésquilo, os coros aderem
sem homem e da maternidade frustrada; o tema do sexo estéril que traz o castigo, e de
Por outro lado, há estudiosos que encontram nas obras trágicas de Lorca
muito mais referências às obras de Eurípedes do que a qualquer outro autor grego
trágico. É o caso de Antonia Carmona Vázquez, que dedicou seu livro Coincidencias de
lo trágico entre Eurípides y Federico García Lorca (2003) a mapear as relações entre
da natureza que o ideal anterior pretendia manter submetido, e quase oculto — por meio
de normas tradicionais que supunham um freio para o indivíduo —, por ser considerado
perigoso para a estrutura social existente. Porém, Eurípedes pinta os homens não como
Fedra e seu amor que leva Hipólito à morte com a Noiva de Bodas de Sangue, ou se
pode ver algo de Adela e também da Noiva em Medéia que admite — frente à ação
malvada de matar seus filhos — que sua paixão é mais forte que sua reflexão. ―O auge
da dor das mulheres continua a descobrir atrás de Medéia a sua voz‖ (STEINER, 1995,
40). Mas não só o auge da dor, mas da vingança, do grito dos instintos humanos mais
137
protagonista por ser estéril, e o coro da peça Hipólito, que narra a enfermidade de Fedra.
Segundo Vázquez, ―as heroínas lorquianas são, como as euripídeas, mulheres frustradas
personagens não valem por suas características, mas por suas ações. E assim, o
dramaturgo andaluz não pensa o gênero como ―imitação de pessoas e sim de ações, da
e a finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade‖ (ARISTÓTELES, 1999, p. 32).
Com isso, é importante perceber que um dos pontos centrais na tragédia, tal como Lorca
falta desta, nem o infortúnio ou a ocorrência de fatos extraordinários na vida, mas que a
com suas personagens feitas de terra, com sua repetida angustia que se
faz carne em cada uma delas [...] personagens ao final situados sempre
frente um dilema trágico: o de suas próprias paixões de um lado e da
luta e escolhas entre elas de outro. É aqui, outra vez, o homem
enfrentando sua própria imagem, como no teatro de Eurípides
(VÁZQUEZ, 2006, p. 324).
Tanto nas personagens trágicas de Lorca quanto nas gregas há que chegar à última
finalidade vital com todas as consequências, há que cumprir esta finalidade a custa de
qualquer sacrifício, acima do bem e do mal. É apenas dessa maneira que se pode
entender quando a Noiva de Bodas de Sangue foge com Leonardo na tentativa de viver
a vida plenamente, recusando o casamento acordado por seu pai; ou Yerma, que vive o
138
trágico grego no sentido em que se lança ao destino inevitável; e até em A casa de
Bernarda Alba, Adela se apresenta como uma personagem trágica do drama de Lorca,
aquela que quer viver tudo, experimentar tudo, e que, na impossibilidade de fazê-lo,
um grupo do que um ser singular, não podendo ser separado ou isolado. Os gregos
criaram as tragédias em suas pólis, e esse fato caracteriza o estilo como um gênero
literário que exige o meio social, sendo este, talvez, uma das personagens mais
importantes da tragédia. Daí a importância do coro nas tragédias gregas, pois o coro,
estabilidade das vidas da cidade. O coro intervém, faz comentários sobre a cena,
mostrando que tinha completa noção do valor e função do coro no teatro grego. De fato,
mesmas funções de uma tragédia grega, apresentando o tema dominante de forma lírica.
139
desenvolvimento mais intenso [...] recebendo a luz de normas antigas,
mas eternas no teatro trágico (ROJO, 2006, p. 109).
outrora, nem mesmo por imitação. Após a Idade Média, a moral judaico-cristã impõe às
passou a ter a dádiva da escolha, o conflito das tragédias gregas, que era entre o homem
focos, a chave do conflito recaiu sobre os indivíduos. Com isso, uma das principais
passa a ser gerada pelos indivíduos, que têm a escolha de entrar ou não na roda da
Fortuna, ao contrário dos gregos, que tinham sobre eles deuses brincalhões e o destino
inexorável. A partir desse novo modelo de conflito no enredo cênico, seria constituído o
drama moderno.
trágico emblemático desta situação, na qual as personagens estão sempre por agir, em
elas sabem que, qualquer que seja a escolha, são caminhos sem volta. Lorca aprende em
deliberação, que tenta prever a ordem dos acontecimentos, ao mesmo tempo se lança ao
desconhecido que é fruto da ação deliberada. Não há tragédia sem ação; ação sem
indivíduos, e estes, necessariamente, devem ser agentes que estejam no centro das
ações.
140
Ao pensar em personagens femininas trágicas, pode-se voltar às obras de
um país promissor, sendo governado por uma mulher, no século XVI, pode-se imaginar
o quanto esse fato teve influência em suas obras (ALVES, 2005). Da mesma maneira,
alguns estudiosos analisam que as personagens femininas das peças não são construções
María Martinez Sierra, em seu livro Una mujer por caminos de España,
afirma que ―em Granada, e sua província, a mulher não existe. Não conta. A ninguém
ocorreu que poderia contar, nem a ela nem a ninguém‖ (apud SAMATAN, 1964, p. 55),
e essa ideia de que a mulher não existe, nem para si mesma, é completada por Marta
Elena Samatan, que diz que ―nesse mundo o homem é o senhor. Ninguém discute seus
poderes. É ele que manda. As mulheres sabem e aceitam‖ (SAMATAN, 1964, p. 63).
inquestionável, e esse fato é o que explica, para Vázquez, a posição de destaque que
Lorca dá às mulheres em suas peças. ―Se a mulher alcança mais destaque que o homem
na obra lorquiana, isso se deve ao fato de que o poeta apostou nos oprimidos e, entre
eles, como grupo, a mulher ocupa uma primazia indiscutível‖ (VÁZQUEZ, 2006, p.
329).
O fato de a mulher ser subordinada ao homem impõe que ela se prive de sua
individualidade e tudo o que isso possa significar, como o poder sobre si e sua própria
141
vida, baseado em escolhas racionais tomadas pela própria mulher. Lorca, assim como
dotadas apenas de emoção, tendo, assim, que serem guiadas e cuidadas por seus pais,
por seus maridos, como Yerma e Lady Macbeth; e na ausência de um homem que as
ditos como masculinos, próprios do poder, como Bernarda, de A casa de Bernarda Alba.
shakespeariana leva à cena as chagas que estão cobertas pelos tecidos nobres da corte
elisabetana, questionando sua sociedade. Lorca faz o mesmo em suas obras, colocando
mulheres das tragédias gregas, como foi dito, mas também com as shakespearianas.
Yerma, por exemplo, em seu casamento estéril, remete a Lady Macbeth, que não tinha
filhos com Macbeth, mas já havia sido mãe em outro casamento. Tanto Yerma quanto
Lady Macbeth têm um casamento estéril, e levam à cena questionamentos do que deve
ser uma conduta feminina, pois, enquanto Lady Macbeth é racional e ambiciona o
poder, apresentando uma conduta que não se espera de uma mulher, Yerma tem atitudes
que só são permitidas aos homens, como sair à noite e dar comidas aos bois.
Lady Macbeth: Mas receio a tua natureza, por demais cheia do leite da
natureza humana, para que tomes, resolutamente, o caminho mais
curto. Quererias ser grande. És ambicioso. Mas te falta a malvadez
que deve secundar-te. A grandeza a que aspiras, desejas obtê-la
santamente. Não quiseras trapacear, e entanto gostarias de ganhar
deslealmente [...] (SHAKESPEARE, 1997, Ato I, Cena V).
142
Yerma: vou acabar acreditando que eu sou minha própria filha. Muitas
noites saio para dar comida aos bois, pois antes não fazia, porque
nenhuma mulher sai à noite, e quando passo pela soleira da porta, na
escuridão, meus passos têm o peso dos passos de um homem
(LORCA, 1963, ato II, cena 2).
Lady Macbeth por ser rainha, e ambas se lançam à ação para tentar alcançar seus
personagens de peças trágicas, mesmo que seja personagem de um drama. Adela é tão
apaixonada quanto Julieta, de Romeu e Julieta, e suas demasiadas paixões não cabem
nelas, escapam de controle e fazem com que elas escapem de qualquer controle da
família-sociedade. Julieta e Adela dizem sim às paixões, à vontade de vida, e saem pelo
escuro da noite para viver aquilo que não lhes era permitido. São subversivas, não
acatam as ordens, o poder que suas famílias lhes impõem, desobedecem as regras. E, no
final, ambas se suicidam, pois lhes é insuportável a vida de obediência, sem paixão. É
existência contínua e soterrada ao fio argumental de umas forças fatais, cegas, que
As ações das personagens de Shakespeare não estão ligadas aos deuses, pois
não há deuses nas obras do dramaturgo, assim como também não há nas peças de Lorca.
Porém, nas obras dramáticas do escritor inglês, as tragédias recaem sobre os soberanos,
143
caráter social da arte, como ele diz em entrevista22, e a importância da reaproximação
com o povo, pois, segundo ele, ―o teatro, para readquirir sua força, deve voltar ao povo
do qual se afastou‖ (ROJO, 2006, p. 107). Em outra entrevista, Lorca reitera sua postura
importantes referências, dizendo que não escreve para o público que ―se deleita com
cenas nas quais o protagonista arruma sua gravata assobiando [...] isso não é teatro, nem
nada [...] no teatro há que dar espaço ao público de alpargatas [...] o público com camisa
de esparto23, frente a Hamlet, frente às obras de Ésquilo, frente aos grandes‖ (ROJO,
2006, p. 107).
gregos, falta nele essa crítica da ação desmedida [...] Lorca não julga, não acusa, não
menos matizada que entre os gregos‖ (ADRADOS, 2006, p. 360). Assim, por mais que
única, tanto por suas diversas influências, quanto por seu tempo e sociedade, como
veremos mais adiante. Porém, muitos estudiosos hão encontrado referências importantes
Homem deve prestar contas a algo superior a si, seja no plano celestial ou terreno; as
não é bem-vinda à sociedade, e o causador desta quebra deve ser punido. Nesta lógica, a
morte é o fim da vida, vem como um castigo. Assim, também cabe lembrar que, para
22
Como coloca Lorca em na entrevista “Diálogos de um caricaturista selvagem”, em 1936
(LORCA, 2008, v.VI: p. 734).
23
Tipo de tecido comum na população pobre da Espanha.
144
Sócrates, a arte trágica desvia o homem do caminho da verdade, certamente por não
doença, a dor, a tristeza e os instintos. O pensador trágico faz viver o frenesi, não
pacifica os instintos (ALVES, 2005). Assim, podemos citar Adela e a Noiva como as
personagens lorquianas que não pacificam seus instintos, não tentam se defender de
suas paixões e sabem que elas são, ao mesmo tempo, as forças que promovem a
Yerma no tema da heroína que leva seu desejo até as últimas consequências.
Trágico andaluz
realizações, faz com que Yerma, a Noiva, Adela, ou mesmo a heroína histórica Mariana
característica, ao mesmo tempo em que as une, as individualiza e isola nas peças das
quais fazem parte. Sua vontade de ser livre é vista como um defeito pelas outras
personagens, e ser diferente pode ser visto pelos mais conservadores como um erro.
145
Nesse sentido, pode-se dizer que, nas obras de Lorca, ―o motor da tragédia está, na
verdade, no jogo de problemas morais‖ (VÁZQUEZ, 2006, p. 339), seja pelo conflito
de Yerma e seu não-adultério, a fuga da Noiva com outro homem no dia do seu
García Lorca cria obras trágicas, porém, em suas criações, o destino dos
homens não é uma peça dos jogos dos deuses, e esse caráter trágico-lorquiano dá ao
espectador a falsa esperança de que o fim trágico pode ser evitado. Porém, o autor é
consciente de que o poeta dramático deve atacar os grandes temas, e, com essa ideia,
Lorca baseia seu teatro no conflito entre autoridade e liberdade, na subversão da norma
pois para nenhuma delas a paixão se apresenta como um doce e grato sentimento, ao
contrário, é algo doloroso, inquietante, e todos esses aspectos da paixão são mais do que
coexistentes, são inseparáveis. Nas peças de Lorca, o amor não é a força que se
apresenta como vencedora — e talvez seja possível afirmar que o amor não seja um
tema lorquiano, e sim a paixão —, mas na maioria das obras são sentimentos como o
amor morre. Ou, às vezes, o amor se oculta em si mesmo, vigiado pelo ódio ou pelo
desprezo.
146
Para García Lorca a paixão amorosa, a paixão pela vida em geral, se
apresenta e se traduz como algo totalizador que divide seu espírito e a
vida dos homens com irremediável solução, provocando sempre o
destroçado íntimo de quem o sofre ou a impossível solução definitiva
para suas vidas: e nisso consiste precisamente a tragédia do poeta
moderno (VÁZQUEZ, 2006, p. 342).
contemplação de suas vontades. Personagens trágicas não por essa dilaceração, mas pela
não aceitação desta. Assim, apesar de não haver deuses nas tragédias lorquianas, o
homem com as forças que regem sua vida, forças essas que estão na natureza, que o
dominam e o dilaceram. Mesmo sendo um poeta moderno, o mundo que Lorca constrói
em suas obras dramáticas se aproxima das tragédias gregas no sentido de que o homem
não pode controlar seu destino: é uma primitiva e temerosa negação da liberdade, a
da cultura antiga do povo andaluz, que José Maria Camacho Rojo denomina como
(ROJO, 2006, p. 106). A ―Teoria e jogo do duende‖ é uma conferência pronunciada por
García Lorca em Buenos Aires no ano de 1933, e para muitos estudiosos, nesta
livro O nascimento da Tragédia, em sua obra. Soria Olmedo e Encarna Alonso Valero,
por exemplo, relacionam o duende apresentado por Lorca com os deuses da arte, Apolo
e Dionísio, expostos por Nietzsche. Nessa ocasião, o autor não falou de teatro ou da arte
147
o duende deriva do espírito trágico da antiga Grécia, das religiões místicas gregas. Ou
presente para que a tragédia se cumpra. A ideia do duende é uma essência trágica,
derivada dos gregos, que sobreviveu até nosso tempo em especial no sul da Espanha, na
universaliza temas de sua Andaluzia natal e para essa universalização recorre tanto ao
teatro dos gregos como às crenças e formas poéticas da Andaluzia como a outros
herdeira dos gregos e de Shakespeare, é também fruto de sua terra e cultura, é uma
tragédia andaluza, que baila ao som da guitarra e da castanhola flamenca. Por mais
incontestável que seja a influência dos trágicos gregos, espanhóis e Shakespeare na obra
de García Lorca, é fundamental perceber que o dramaturgo criou seu próprio estilo
trágico, um trágico que aflora do encontro entre o passado e o presente andaluz vivido
pelo autor.
especial para referir-se à arte flamenca. Lorca se refere, em sua conferência a Manuel
Torre, grande artista do povo andaluz, que dizia a alguém que cantava: ‗tua voz é boa,
tens estilo, mas nunca serás famoso porque não tens duende‘‖ (LORCA, 2000, p. 110).
expressa com instinto eficaz. Apesar de o duende encontrar morada no sul da Espanha,
sua existência, como esclarece Lorca, não é exclusivamente espanhola. Lorca afirma
que foi ―Goethe que criou a definição de duende ao falar de Paganini: ‗poder misterioso
148
que todos sentem e que nenhum filósofo explica‘. Dessa maneira, pois, o duende é um
mesmo duende que abraçou o coração de Nietzsche; mas que não se confunda o duende
Nuremberg, nem com o diabo católico, nem com o macaco falante que leva os
2000, p. 111). O duende ao qual Lorca se refere é descendente, por um lado, daquele
―pequeno como amêndoa verde, que, farto de círculos e linhas, saiu pelos canais para
Para Lorca, ―todo homem, todo artista, segundo Nietzsche, é uma escada
que sobe à torre de sua perfeição às custas da luta que trava com um duende, não com
um anjo, nem com as musas‖ (LORCA, 2000, p. 111), expondo a ideia de Nietzsche
como uma das bases para seu entendimento da diferença entre anjo, musa e duende
como forças presentes no fazer artístico. Segundo Lorca, o anjo deslumbra, mas não voa
sobre a cabeça do homem, está acima; a musa dita, e em algumas ocasiões assopra;
―anjo e musa vêm de fora; o anjo dá luzes e a musa dá formas‖ (LORCA, 2000, p. 112).
mundo da criação lorquiana que, muitas vezes, é ignorado pelos estudiosos da obra do
149
escritor: a arte flamenca. O duende — que concede ao poeta a possibilidade de interagir
Lorca como um herdeiro do trágico grego, não só está presente, como é fundamental
para o flamenco. Sem duende não há flamenco. A interação entre o poeta e o mundo da
obra é muito presente na arte flamenca, que não é só música, nem só baile, ou só canto,
mas um encontro entre estes que exige o máximo de interpretação ―enduendada‖. O fato
é que o duende é o espírito que ronda o flamenco, e este é uma ficção que se estrutura
como obra na crueldade do corpo e assim se desdobra em espetáculo. E não houve poeta
constantemente os flamencólogos.
O flamenco era uma arte marginal na Espanha até a década de 1920. Antes,
houve um longo período de desdém contra o flamenco por parte do mundo de poder
cultural, universidades e conservatórios, pois ele era entendido como uma arte da
do poder cultural da época que durou do último terço do século XIX até 1922, ano do
Concurso do Cante Jondo, na cidade de Granada. Este concurso foi organizado por
García Lorca junto com Manuel de Falla, um de seus amigos e mestres, e se tornou um
que muito silêncio é um sinal de reprovação no flamenco. Junto com o concurso, Lorca,
que na época já contava com prestígio nas rodas de artistas e intelectuais da Espanha, se
dedicou ao esforço de reivindicação de uma arte a que conheceu com amor mais que
150
humilhados e desconsolados (GRANDE, 1992). Assim, é um fato importante para a
tenha usado sua posição social para exaltar, e não rebaixar, a arte de sua Andaluzia.
oriental que se estabeleceu na Andaluzia, com a adoção da liturgia bizantina por parte
da Igreja espanhola, com os sons e dança levados pelos ciganos para a Espanha no
século XV. Em sua origem, o flamenco era considerado como uma criação artística
popular, e tal popularidade era uma referência ao local onde ele se desenvolveu, e não à
dos cantos e da guitarra andaluza, mas essa complexidade se desenvolveu nas tabernas
dia de trabalho, para expressar sua penúria, solidão, pobreza, raiva, clandestinidade,
profano.
151
casos aparece de maneira explícita, como em seu livro Poema do Cante Jondo, que em
seu título24 já expressa essa influência, e vai além, dedicando grande parte dos poemas
o mundo das paixões. O flamenco expressa o que se perde, como uma vingança que a
(flamenco) não inventa, recorda‖ (apud GRANDE, 1992, p. 66). Na verdade, o amor e a
Lorca.
CAFÉ CANTANTE
Lâmpadas de cristal
e espelhos verdes.
Dolores Parrales Moreno (1845 – 1915), importante cantora de flamenco — chama pela
24
Cante jondo é o primitivo canto andaluz, uma das origens do flamenco, e atualmente muitos
estudiosos deste não fazem muita distinção entre os dois estilos por conta de sua grande proximidade.
25
Palos flamencos são as subclassificações do flamenco, que variam desde a composição dos
compassos, até os instrumentos e os movimentos do baile.
152
morte. Para Lorca, no flamenco há uma ausência quase absoluta do ―meio termo‖, ou
seja, nas construções poéticas não predomina a calma e a harmonia. O que predomina é
beleza que aperta a garganta; não é confortável, mas sim desgarradora; não é nossa
assinala com o dedo o que no fundo de nós é fratura e catástrofe. Aqui está o duende, e
que desejava com ela: ―verei se posso dar uma simples lição sobre o espírito oculto da
dolorida Espanha‖ (LORCA, 2000, p.109). Para produzir sua obra, o escritor assume
literatura também popular que não rompeu a comunhão da palavra, a dança e a música.
Essa é a Espanha Andaluza, que se diferencia, em muitos aspectos das outras Espanhas
que Lorca conheceu, mas que em sua maioria conheceu e criou sob o espírito do
153
até o dia em que morrem. Daí os levam para fora, ao Sol. Um morto
na Espanha está mais vivo como morto que em qualquer lugar do
mundo; seu perfil fere como fio de uma navalha de barbeiro. A
anedota sobre a morte e sua contemplação silenciosa são familiares
aos espanhóis (LORCA, 2000, p. 117).
morte como fim, mas a morte como meio, morte viva que respira atrás da porta. Que
nos serve por nos acompanhar em vida e não por ser um desatino final. Aqui está o
trágico criado por Lorca: um trágico andaluz, trágico que dança o flamenco e que sangra
com touros, com os toureiros ou com as imagens de Cristo crucificado que desfila pelas
cidades espanholas nas procissões das Semanas Santas26. Mas, no baile espanhol e nas
sobre formas vivas, e prepara os suportes para uma evasão da realidade circundante.
conferencista que expôs em diversas partes da Espanha e das Américas seus olhares
sobre o mundo. Por isso, para compreender o trágico lorquiano é essencial olhar por
onde o escritor passou antes de voltar à tragédia, como ele mesmo anunciou, e
considerar os muitos elementos que influenciaram sua obra, desde seus estudos sobre os
trágicos, até sua experiência empírica com os clássicos espanhóis em La Barraca. Além
disso, entendendo o flamenco, essa importante expressão andaluza, como sendo trágico
por si só — por sua relação com a morte, com o duende e por ser uma arte que necessita
26
Lorca, em diversos momentos, se refere a Cristo e a importância de seu sofrimento, como nos capítulos
―Os Cristos‖ e ―Procissão‖, em Impresiones y Paisajes, ou em sua conferência ―Semana Santa em
Granada‖.
154
tragédia de Lorca é uma tragédia flamenca, ou melhor, uma tragédia andaluza, criada
por um escritor que não cansava de dizer que era um espanhol do Sul27.
universaliza elementos que podem ser locais na origem, mas que são na verdade
simplesmente humanos. Segue e maneja modelos literários, dos gregos aos clássicos
representações de marionetes de sua Andaluzia natal, que ele coloca, justamente, nas
origens do teatro, origem às quais há de voltar. Integra tudo isso com os elementos
cênicos, coreográficos, e com os coros. Esta é a tragédia criada por García Lorca, fruto
do encontro de muitos trágicos, dos gregos até Shakespeare, mas sempre em luta com o
duende.
27
Como Lorca diz em sua conferência “Um poeta em Nova Iorque”: “Ninguém pode ter ideia
da solidão que sente ali (em Nova Iorque) um espanhol e mais ainda se este é um homem do
sul” (LORCA, 2008, v.VI, p. 349).
155
Capítulo 4
156
Antes da estreia de Yerma, Lorca já anunciava: ―Agora vou terminar Yerma,
minha segunda tragédia.[...] Yerma será a tragédia da mulher estéril. O tema, como você
sabe, é clássico. Mas eu quero que tenha um desenvolvimento e uma intenção novos‖
(MARTÍN, 1988, p. 212). Yerma acabou dando não apenas desenvolvimento e intenção
novos ao tema, mas também à sua carreira e fama, dentro e fora da Espanha.
nova, cheia de altos e baixos que pegam o espectador de surpresa, mas a criação de
vivência na trupe ―La Barraca‖, Federico sabia que para se comunicar com o povo há de
ser simples, mas não raso. Segundo Ricardo Doménech, ―o poeta granadino aprendeu
com Lope de Vega o uso estratégico da canção popular ou popularizante‖ (2008, p. 80).
Lorca utilizou em Yerma canções de ninar e falas de tons sentenciosos que soam como
refrões. Pôs em cena um coro de lavadeiras, remetendo ao estilo trágico. Tais elementos
sedutora e perigosa.
tratados com tonalidades hispânicas. As terras áridas do sul da Espanha ambientam suas
tramas com o que ele absorveu em diversas partes do território espanhol, em suas
viagens com ―La Barraca‖. Assim, ao mesmo tempo em que é possível sentir no
28
No livro La Barraca – teatro universitário há uma lista de apresentações da trupe mambembe
da qual podemos notar quais foram as referências de Lorca, e o próprio dramaturgo expressa alguns
desses nomes em discursos declamados por ele e que estão transcritos no mesmo livro.
157
cangote a respiração quente do cristianismo vigiando até as vontades dos personagens,
em Yerma as tradições populares vindas dos povos celtas e ciganos têm lugar
imaginário espanhol. O dramaturgo reinventa um mundo que ele viu de maneira muito
poeta.
Apesar da alta popularidade e aceitação das quais gozava Lorca por suas
obras poéticas, Yerma não teve a acolhida triunfal e sem restrições de Bodas de Sangue.
primeiro por seu estilo simples e de fácil compreensão, e também por ser obra de um
elementos em Bodas de Sangue e Yerma que sugerem que tais obras tratam de
sociedades arcaicas, patriarcais, de valores e normas rígidos, tabus nos quais os códigos
indivíduo já havia sido tratada em alguns poemas de Lorca, mas, em suas peças, o
escritor deixa mais evidente sua postura crítica, e mais explícitas, as ideias sobre as
Poeta, Lorca nomeia sua obra com um adjetivo, e por ―yerma‖ já é possível
entender que se trata de uma obra erma, que fala sobre algo despovoado e solitário30.
Mas, Yerma seria erma, ou o era a sociedade da qual fazia parte? Criar essa dúvida é
29
Em A casa de Bernarda Alba, a crítica de Lorca à sociedade será ainda mais forte, porém o
dramaturgo morreu antes de poder encenar a peça, como será dito adiante, no capítulo referente à peça.
30
Yerma, em português ―erma‖, apresenta tais significados, segundo o Dicionário Priberam da
Língua Portuguesa.
158
uma das artimanhas do autor, que escreve sua obra em um impasse entre a moral social
mesma. E a partir de Yerma, Johnston analisa que ―a intenção última do poeta espanhol
direito individual de ser, não por meio da linguagem da ética ou da lei, mas sim em
que a civilização católica e espanhola, a razão, a lei e o ―eu‖ socializado são os grandes
apresentado em suas obras anteriores, Bodas de Sangue e Mariana Pineda, sendo este
Quando a peça começa, Yerma está casada com João há dois anos, sem filhos. O
dramaturgo não dá maiores informações sobre essas personagens. Além do casal, são
apresentados outras duas personagens importantes: a Velha Pagã e seu filho Victor, e é
apenas com esses quatro personagens e um coro de lavadeiras que o autor constrói sua
que Yerma não tem filhos, mas tê-los é seu grande desejo. Na obra, transcorrem-se três
ser mãe. Na medida em que seu desejo não se realiza, a vontade da personagem vai se
159
sua maternidade, a protagonista se depara com a falta de liberdade imposta pelas regras
Impossibilidade, consciência desta e sua não aceitação são alguns dos temas
importantes de Yerma. E a angústia na qual Yerma vive não é causada apenas pela não
realização da maternidade, mas principalmente pelo horizonte inesgotável que ela vê,
mas que não pode alcançar. A impossibilidade não está apenas na suposta esterilidade
de Yerma, mas também em sua relação matrimonial com João; em sua atração proibida
por Vitor; no cárcere que se forma em volta de Yerma quando ela é privada de sair de
casa e de poder buscar caminhos para sair, seja de sua esterilidade — em ritos religiosos
e pagãos —, seja de sua solidão — que ela rompe com breves encontros com outras
Apesar de tratar de solidão, interdição etc., o tema que marca a peça Yerma
é o da mulher estéril, que não produz frutos, tema clássico, como Lorca colocou, e que
por isso já deu margem a diversas e distintas análises31. E com isso, muito já foi dito
sobre Yerma: qual o sentido exato da esterilidade na obra; qual dos dois – João ou
Defesas e ataques não faltam, tanto a Yerma quanto a seu marido, João, e todas estas
criador. Há, por exemplo, o trabalho de María del Carmen Bobes (1990), que vê em
leitura psicanalítica, seja possível encontrar elementos para essa conclusão, mas não há
31
Entre outras análises que serão tratadas mais adiantes, podemos citar de antemão o trabalho de
Gustavo Correa em La poesía mítica de Federico García Lorca, Madrid, Gredos, 1970, que relaciona às
obras de Lorca com mitologia e teatro grego; ou trabalhos que tratam do papel da mulher mais
especificamente, como de María Teresa Balbín, ―La mujer em la obra de García Lorca‖, La Torre, IX,
34, abril – junho de 1961 ou em Brenda Frazier, La mujer em el teatro de Federico Garcia Lorca,
Madrid, Ed. Plaza Mayor, 1973.
160
elementos específicos na obra que justifiquem tal linha de interpretação. Por mais que
poemas de Lorca, como, por exemplo, ―Canción del naranjo seco‖32, ainda assim não
parece seguro afirmar que a protagonista seja um alterego do poeta e a expressão de sua
homossexualidade.
Yerma, há a possibilidade de ver João como o real infértil. Essa é o olhar de Doménech
de fatores físicos e traços psicológicos que justificariam tal interpretação. Lilia Boscán
Lombardi pensa que não há dúvidas, segundo sua análise, de que João é o estéril do
casal, e pauta sua análise especialmente na cena da romaria, na qual João deixaria claro,
segundo a autora, que o sexo para ele é infértil (LOMBARDI, 2002, p. 69). Mas há
esterilidade de Yerma não por questões físicas, mas psíquicas, explicando assim o fato
trecho final da peça como um quadro de histeria que desencadeia na morte de João,
e suscitar tantas discussões pode ter sido a intenção do autor quando colocou em cena
tal tema. Porém, quando se olha para as relações sociais, o que de fato importa na
descoberta sobre quem é estéril é ver sobre quem cai o peso da infertilidade do casal. A
32
Tal poema faz pode ser relacionado à esterilidade por entoar, mais de uma vez, a seguinte
estrofe: ―Leñador./ Córtame la sombra. / Líbrame del suplicio/ de verme sin toronjas‖.
161
incerteza sobre quem é estéril parece ser um recurso usado na peça para expressar as
relações entre a sociedade e o indivíduo, trazendo à tona outro tema clássico na obra
lorquiana: os outros. O tema dos outros está presente de forma muito clara nas três
Alba e seu ―jogo das janelas‖, como diz Ricardo Doménech (2008), chegando a ser uma
metáfora na peça O público, em cuja trama, como o próprio nome já diz, há uma
em Yerma, esse tema é fundamental, talvez o verdadeiro anti-herói da peça. O olhar dos
outros, em Yerma, é um tema que pode ser entendido desde sua relação matrimonial
com João até a opressão sofrida pela mulher em uma sociedade de códigos rígidos e
arcaicos.
tornar-se mãe, criar seus filhos e dar continuidade às suas famílias e às famílias de seus
maridos. Desde o ano de 1492, com a conquista da península ibérica pelos Reis
Católicos, toda a região que hoje compreende a Espanha se tornou mais do que um
território unificado sob uma coroa, mas uma população governada pela cruz católica.
Atualmente, apesar de ser um Estado laico34, a Espanha segue permeada por forte
influência do Vaticano, e a moral religiosa ainda é algo que coordena as ações e o modo
Maria seu exemplo máximo, e com ela a castidade e a função de ser mãe que zela pelo
lar e perpetua o pensamento católico junto às futuras gerações, o papel social feminino
33
Bodas de Sangue, Yerma e Casa de Bernarda Alba.
34
Segundo a Constituição Espanhola de 27/12/1978, ―artículo 16: 1.Se garantiza la libertad ideológica,
religiosa y de culto de los indivíduos y las comunidades sin más limitacion, em sus manifestaciones,
que la necessária para el mantenimiento del orden público protegido por la ley. 2. Nadie podrá ser
obligado a declarar sobre su ideologia, religión o creencias‖.
162
dignas de serem seguidas. Nessa lógica social, embasada na moralidade religiosa, é
sobre as mulheres.
estática e sob os olhos da sociedade sedenta pela expiação da culpa, ao mesmo tempo
em que reforça a vigilância sobre a protagonista e cria um cerco que lhe impossibilita
feminina de mãe, e ela anuncia, desde o início da peça, que suas atitudes sempre foram
por amor a ele, mas mesmo assim, se casou feliz: ―(para João): minha mãe chorou
porque não fiquei triste quando saí de casa. E era verdade! Ninguém se casou com mais
Yerma queria se casar, sair de casa, cumprir o papel social que lhe era
individualmente, ela não se mostra, inicialmente, como uma mulher que não aceita a
moral imposta pela sociedade. Ao contrário, Yerma se casa com alegria, como ela
produtiva cumprindo sua função feminina: ser mãe. Porém, a realização da personagem
não acontece, e ao longo da busca por sua realização, encontros e desencontros com
outras personagens vão dando a Yerma um estrangeirismo insolente. Ela não faz parte
das mulheres que são mães, mas também não é parte do grupo que aceita a infertilidade,
como as irmãs de João, que dedicam a vida casta a cuidar da igreja da cidade. Yerma
não encontra lugar em sua sociedade, e, consciente disso, ela expõe seu sentimento de
163
ser sempre alguém estranho, e essa insolência a deixa ainda mais deslocada, sem lugar.
Yerma vai se colocando cada vez mais alheia a todos e chega a se pôr alheia a si mesma
Sem filhos, Yerma não se sente uma mulher, pois não encontra utilidade
para si mesma, e assim ela vai se desconhecendo por não encontrar meios de se realizar.
Com o desenrolar da peça e a estagnação de sua condição, Yerma diz a João: ―não sei
quem sou. Deixe que eu ande e me desafogue‖ (II, 2). Em um primeiro momento,
Yerma não se sente mulher, pois acredita que sua realização virá com um filho; e nessa
frase, ela expressa para o marido a percepção de que lhe falta mais do que ser mãe.
Yerma reconhece que já não sabe quem é, e assume a necessidade de buscar por si
Ser Yerma
Yerma não se sente uma mulher. Quem lhe dera ser uma, ela diz a Vitor, a
que essa conversa de Yerma com Vitor seja um pedido para que ele a ―faça sentir-se
uma mulher‖, mas mesmo que seja um desejo dela, o adultério nunca chega a ser uma
sentido para si mesma, a protagonista não é capaz de passar por cima da moral instituída
socialmente para realizar seu desejo. O adultério seria uma tentativa de dar fim a um
164
matrimônio infértil, mas Yerma não aceita essa possibilidade, por mais aguda que seja
sua angústia. E aqui se encontra o conflito que encaminhará a peça ao seu ápice trágico,
pois ao mesmo tempo em que a personagem não concebe outras maneiras de se realizar
além de ser mãe de um filho de seu marido, Yerma também não consegue se conformar
infertilidade pela protagonista, mas também pelo fato de ela mesma ser uma
que não aceita a infelicidade gerada na esterilidade de seu casamento. Yerma deseja ser
mãe, e não aceitar o fato de não o ser. Não aceita se sentir improdutiva, e deixa claro
que a vida doméstica e o papel de esposa não suprem completamente suas vontades.
Yerma não se conforma em seu sentimento de impotência e, por isso, pode ser
considerada uma representação da mulher que deseja. Mas desejar não é permitido às
sabe que faz parte de uma sociedade que impõe às mulheres uma vida relacionada à
maternidade, já ―os homens têm outra vida [...] e a nós, as mulheres, não resta nada
165
além de filhos‖. Não lhe restando mais nada, a personagem não encontra maneira de se
sentir viva, mas certamente um dos agravantes da situação de Yerma é o fato de ela ter
consciência dos valores e normas sociais, mas ―não se resignar‖ a isso, não conseguir
aceitar o fato de não poder beber água, de não poder ir ao monte ou tecer suas anáguas.
Um dos pontos interessantes dessa fala de Yerma é que a personagem anseia por uma
liberdade simples e cotidiana, mas ela vai se dando conta de que ser mulher em uma
sociedade machista lhe impede de satisfazer seus desejos mais simples. E na não
aos moldes sociais impostos. Yerma se torna a voz que grita, que expressa o que lhe é
negado, que expõe a falta de liberdade para satisfazer seus desejos mais simples. Ao
longo da peça, a vontade de Yerma de ser mãe converte-se em obsessão, e essa obsessão
vai se tornando cada vez mais angustiada na medida em que se torna irreversível.
O casal não tem filhos. Para João, isso não é um problema, pois ele
labor rural e se realiza em seu trabalho, em sua vida fora de casa. Mas a estabilidade da
vida de João passa a ser abalada por Yerma, por ela não se resignar. João vai notando a
problema para o marido, ao passo em que ela começa a expor a vida doméstica do casal
no âmbito público. Ela passa a buscar a rua, demonstrando que sua vida doméstica não
lhe satisfaz, colocando, assim, a imagem do casal em risco. Yerma não busca uma
igualdade de gênero, como podem pensar alguns, mas busca apenas alguma maneira de
se satisfazer.
João não tem filhos, mas é fértil em seu trabalho com a terra. Na lavoura se
realiza ―como homem‖, ao passo que a esposa não consegue se sentir mulher, como foi
166
dito antes, pois os únicos frutos que Yerma poderia colher seriam aqueles gerados por
seu útero. Enquanto João só não tem filhos, Yerma não tem nada.
Ao longo da peça, Yerma mostra ser ciente de sua situação, da vida das
século, uma sociedade rural na qual o que importa é o que dá frutos, o que gera vida. A
terra seca não tem utilidade, as árvores importam porque dão frutos, mais do que por
sua beleza. E neste mundo é papel do homem trabalhar a terra, semear o campo, fazer a
uma sociedade rural, ele também inscreve nessa terra-peça o cultivo exercido pela Igreja
Católica. Pelos sermões das missas, o rebanho humano recebe a cartilha de como deve
pensar e agir; e dentro das normas sociais regradas segundo as doutrinas da Igreja
Católica, o papel da mulher na sociedade está diretamente ligado ao oficio de ser mãe.
pensar que o é também em seu sentido visceral de seguir vivendo, na necessidade de ser
imortal, de se imortalizar nos frutos que produz, nas ações em vida. Mas, além disso,
Yerma busca ser mãe para deixar de ser filha, para sentir que se move adiante, tanto aos
Yerma: vou acabar acreditando que eu sou minha própria filha. Muitas
noites saio para dar comida aos bois, pois antes não fazia, porque
nenhuma mulher sai à noite, e quando passo pela soleira da porta, na
escuridão, meus passos têm o peso dos passos de um homem. (II, 2)
167
Por Yerma não se sentir mulher, a personagem se permite experimentar, e
atravessa o escuro da noite, o mundo masculino, e com isso expõe o embate entre
feminino e masculino; fora de casa, na rua, Yerma expõe o embate entre o espaço
seja, Yerma vai experimentando coisas que são proibidas para mulheres como ela. No
escuro da noite, ela não rompe totalmente com as regras sociais, vive de uma maneira
que não lhe é permitida, e ao raiar do dia, ela volta para a vida que não quer mais, mas
não impunemente, pois não realizar seus desejos vai se tornando cada vez mais
sentir que não se pode ir adiante, tendo que apaziguar o calor da individualidade no
conflituoso encontro com a moral e os olhares dos outros. Na tensa relação de Yerma
consigo mesma, ela busca saídas no espaço público, no mundo fora de sua casa, na rua,
criando uma ambígua relação, pois Yerma procura ar pra respirar exatamente no local
que a sufoca: na sociedade, o espaço onde se cria a repressão social. Em sua busca por
caminhos por onde escapar, o poeta nos mostra uma mulher que oferece resistência,
uma personagem que se rebela por não poder ser aquilo que se espera dela. E com isso o
a força e o perigo de sua arte. Ao estrear Yerma, Lorca se torna incômodo, e isso a
Na peça, o autor nos apresenta não uma Yerma, mas várias ―Yermas‖ que
e a regra moral, a personagem passa a viver uma vida dupla, circulando nos espaços
papel de mulher.
168
Fora de Yerma, dentro dos outros
interiores: das casas ou dos conventos. São vidas cerceadas por muros e por regras. Não
é apenas em Yerma que o escritor nos mostra o cárcere imposto às mulheres. Em A casa
de Bernarda Alba, essa temática também aparece com muita força, pois repete os
conflitos gerados pelas personagens que não podem nem sentir o vento da rua 35. Tanto
A casa de Bernarda Alba quanto Yerma expõem a falta de liberdade que uma sociedade
obra de Lorca, e este escolheu usar as mulheres para dar voz à crítica que fazia à sua
que todos seguissem os mesmos moldes de vida era algo que incomodava o escritor,
tanto que ele se orgulhava muito quando era comparado ao tio Baldomero García
Rodríguez, o mais excêntrico, boêmio, artístico e original dos irmãos do pai de Lorca36.
dos instintos humanos, paixões e vontades com os valores e normas impostos pela
sociedade aos indivíduos. Uma das normas sociais que Federico critica por meio de
35
Como diz Bernarda ―Nos oito anos que durar o luto, não entrará nesta casa a brisa da rua. Faz de conta
que tapamos com tijolos as portas e janelas...‖ (primeiro ato).
36
No libro Vida, pasion y muerte de Federico Garcia Lorca, de Ian Gibson, o autor relata uma anedota
familiar sobre essa comparação: ―La tradición familiar registra una ocasión en que la madre del poeta
exclamó, al oír Federico expresarse de una manera muy exagerada: ―Ya tenemos otro Baldomero!‖ a lo
que su hijo replicaría:‖Seria un honor para mí ser como él!‖.
37
Esse tema se repete de maneira explícita em Yerma, Bernarda Alba, Bodas de Sangue e O amor de
Dom Perlimplín com Belisa em seu jardim.
169
personagens, o autor coloca questões para seu público — e assim, para a sociedade —
mulher — e de ―todo mundo‖ — que tem consciência de que é obrigada a fazer o que
não quer. A fala dessa personagem expõe questões e reflexões que o dramaturgo queria
colocar à sociedade de sua época, falando à plateia que muitas daquelas mesmas pessoas
ficam em casa fazendo aquilo que odeiam. ―Seria melhor estar no meio da rua!‖. Aqui, a
antinomia casa/rua anuncia, já no primeiro ato, a busca de Yerma pela rua como
alternativa para sua busca pela liberdade de realizar seus desejos, enquanto a casa
simboliza a repressão que ela sofrerá por parte do marido ao longo da peça. ―Eu não
penso no amanhã; só penso no agora. A senhora está velha e vê tudo como um livro já
no desejo de duas pessoas de se unirem, tem como base uma obrigação social. O
casamento expresso em Yerma é uma imagem da instituição que castra os desejos dos
havendo a separação entre o espaço de dentro (casa) e o espaço de fora, que caracteriza
170
a separação entre o público e o privado, há um confronto entre o que o indivíduo deseja
individualidades.
liberdade e da realização de seus desejos, a rua também é o espaço ―dos outros‖, dos
símbolo do espaço público, é, para Yerma, o lugar onde ela pode exercer sua força
ativa, suas vontades individuais, e a casa, que simboliza o espaço privado, na obra é a
representação do espaço público que oprime os indivíduos por meio de suas regras.
No meio da peça, João passa a temer por sua honra, posta em risco pelas
acima de tudo, demonstrar ao mundo que sua honra segue intacta. Assim, João coloca
suas irmãs para viver em sua casa a fim de vigiar e evitar as saídas de sua esposa. Ou
seja, a vigilância do olhar dos outros, que João tanto teme, ele a reproduz em sua vida
privada, em sua casa. Além disso, o escritor coloca que as mulheres aceitam uma
regras, faz delas algozes de outras mulheres. Yerma incorpora essa relação dupla, pois
não consegue abrir mão de sua honra. Yerma mata o marido, mas talvez esse ato não
possa ser visto como algo transgressor, pois Yerma não subverte a ordem imposta
171
essa relação aparece com mais força em A Casa de Bernarda Alba, o que sugere ser
relação que o autor estabelece entre as irmãs de João, o casal e a Igreja Católica. Além
imposta pelo catolicismo, na qual se baseia a sociedade espanhola, pode-se pensar que
João tivesse medo de que Yerma maculasse sua honra, sendo ela herdeira de Eva. Como
prestes a desobedecer.
imaculada sua honra, pois João, como Adão, temia ser ―expulso do paraíso‖, e sabia que
a esposa, por sua postura, era o que lhe oferecia esse risco.
João (falando com suas irmãs): Minha vida está no campo, mas a
minha honra está aqui (II, 2).
[...]
João: quando vierem conversar contigo, fecha a boca e lembra que é
uma mulher casada [...] e que as famílias têm honra, e a honra é uma
carga que todos devemos carregar [...] tenho que mandar e te prender.
Para isso sou teu marido (II, 2).
e está a cargo de João fazer com que as repressões externas se reproduzam no espaço
interno de sua casa. Quando inicia a peça, Yerma ainda tem esperanças de engravidar,
mas à medida que a peça vai se desenvolvendo, que a esperança da protagonista vai
morrendo, e ela não encontra mais em sua vida o que sacie suas necessidades, Yerma
começa a buscar fora de casa a água que mate sua sede38. Ou seja, Yerma desobedece às
normas e passa a buscar a saciedade de seus desejos fora do espaço que foi reservado a
ela. O medo de João é de que sua honra seja abalada por alguma atitude de Yerma e do
38
Como já citado acima, Yerma lamenta ―Eu tenho sede e não tenho liberdade...‖ (III, 1).
172
que os outros podem falar do casal. Antes que haja alguma transgressão, são aplicadas
conhecido como ―Biênio Negro‖ (1934 – 1936), período no qual o governo espanhol era
proclamada em 1931. A partir de 1934, mesmo ano da estreia de Yerma, iniciou-se uma
antecedem a infração. A ordem social não pode correr riscos, e assim, os indivíduos e
cárcere, fortaleza, espaço fechado, enquanto que fora, na rua, no campo, no rio, o
escritor expressa a liberdade que só seria possível longe das amarras sociais. Em Yerma,
regras criadas na conquista da Rainha Isabel, a católica, e nesse contexto a casa faz o
as doutrinas da Igreja Católica como as algemas e grades que cercearam não apenas os
atos dos indivíduos, mas também seus pensamentos e desejos. Colocar a moral religiosa
como sentinela é uma das maneiras mais eficazes de impor a repressão para evitar que
haja a infração, pois, dentro do santuário, o indivíduo tem vigiadas, por Deus, suas
173
Uma mulher casada não é dona de seus atos e vontades. Ao sair de casa,
Yerma se expõe a uma liberdade incomum e inapropriada aos olhos dos outros. Porém,
Yerma não aceita o cárcere ao qual é submetida, pois estar submetida a não sair de casa
significa, mais do que sua imobilidade física, a castração de suas vontades. Além disso,
possibilidade de buscar o que deseja, mas também porque ela tem a possibilidade de
falar e ser ouvida. O que está enclausurado não tem cara ou voz, não se conhece. Como
nos coloca Yerma: ―Há coisas fechadas dentro de quatro paredes que não podem mudar
porque ninguém as ouve‖ (II, 2ª). Lorca se torna crítico porque faz justamente o que
Yerma queria fazer: leva para fora o que está preso dentro das casas e das pessoas,
coloca no palco as vozes que não se podem ouvir, atrás dos muros onde estão
enclausuradas.
época: cada vez mais fechada em seu espaço interno, cheia de conflitos gerados pelo
representantes da antiga ordem social que ansiava por se manter no poder — eclodiria
na Guerra Civil Espanhola, e pela obra de Lorca, é possível notar o quão latente estava
este conflito. A casa de Yerma representa uma Espanha que tardou a chegar ao século
XX, que abriga o peso da coroa e da cruz a todos os indivíduos, de igual maneira, como
em um rebanho.
174
Entre a cruz e o caldeirão
outros tantos conflitos, é o fato de a personagem não ser mãe, e por um tempo ela
pensamento, pois Yerma fala sobre a maternidade sem ser mãe. Às mulheres está
destinado o papel da procriação, ter ―quatro ou cinco filhos‖, diz Yerma, mesmo que
essa experiência não seja alegre e prazerosa como ―ganhar um ramo de rosas‖. A
obrigatoriedade de ser mãe ou de ter uma vida casta são cobranças sociais que Lorca
leva ao palco com tons bíblicos, como a anunciação da gravidez39 no inicio da peça, e
depois na relação com o sangue como aquilo que dá a vida, o sofrimento como
redenção, como maneira de elevação. Certamente, Lorca usa tais símbolos na tentativa
de se aproximar do público, pois ele sabia da importância dos ritos sagrados, tanto os
procissão pagã da qual Yerma participa. O autor não ignorava a forte relação, na
Espanha, dos valores morais com os ditos e interditos religiosos, e tanto em Yerma
39
Maria, a interlocutora de Yerma nesta cena, vai à casa da protagonista contar-lhe que está grávida. Essa
visita parece fazer referência à visita de Isabel, que era considerada estéril, à Maria, mãe de Jesus, para
contar-lhe sobre a gravidez milagrosa, passagem do Novo Testamento, Evangelho segundo Lucas.
175
quanto em suas outras peças, o dramaturgo explora essa relação. Entre esses interditos
Yerma confessa para a Velha que só tem relações sexuais com seu marido
moralidade social – por mais que esses mesmos códigos sociais lhe aprisionem –, a
Velha Pagã é a expressão da mulher que realizava sua vontade sem se preocupar com a
opinião dos outros. E certamente não foi sem motivo que o escritor a identificou como
pagã. ―Deus não. Nunca gostei de Deus. Minha filha, quando vai entender que ele não
A Velha não acredita em Deus no país que deve sua unidade política à
Igreja Católica. Lorca, que nasceu e cresceu na região de maior repressão religiosa da
diversos momentos questiona a existência de Deus, como citado acima. Na fala acima,
além de pagã, a Velha também mostra sua posição amoral e sugere que, na romaria, as
mulheres vão em busca de homens férteis, com vontade sexual, e sugere a Yerma que
ela vá com o filho dela, Vitor. A resposta de Yerma é tão dura quanto a sociedade que
criou a personagem:
Yerma: Cala a boca, mulher, cala a boca! Não entende que não é isso?
Nunca faria uma coisa dessa. Como pode pensar que posso conhecer
176
outro homem? Onde fica minha honra? As águas não podem voltar
para onde saíram, nem a lua cheia surgir ao meio-dia. (III, 2)
Yerma introjeta a sociedade na qual ela mesma não cabe. A princípio ela
anseia ser mãe, de maneira obsessiva, por haver sido ensinada que assim seria uma
mulher útil. Porém, Yerma não aceita a ideia de tentar resolver seu problema com um
ato que macule sua honra: o adultério — sugestão que é dada pela Velha Pagã como
sendo uma alternativa para Yerma escapar de seu casamento infértil. Mas a imposição
social de como deve ser uma mulher honrada é tão grande que Yerma não consegue
fugir às regras morais, mesmo que isso lhe custe a possibilidade de se sentir produtiva,
sentir-se mulher.
uma correta mulher casada, abrindo mão da sua vontade de ser livre, permitindo-se
apenas transitar pelo escuro da noite. Yerma se esforça para se enquadrar em uma
sociedade que, na verdade, não a suporta, pois ela mostra que tem consciência de sua
situação. Mas, Yerma se torna vítima de sua sociedade justamente por tentar se
amor materno, indicado na fala de Yerma para Maria: ―é nesse momento que se tem
E, assim, Yerma transcorre a peça indo do desejo de ser mãe, para se sentir
útil, à tentação de aceitar meios menos ortodoxos para a solução de seu problema.
Yerma mantém sua honra, não trai seu marido, não foge com Vitor e coloca a sociedade
acima de sua vontade individual, e ao fazer essa escolha, Yerma deixa de ser subversiva
— postura que ela quase assume ao verbalizar que não suporta a infertilidade de seu
maior problema da personagem não seja de fato não conseguir ter um filho, mas sim a
177
Yerma não vê outra maneira de se realizar. O fato é que ela mostra que não vê valor em
si mesma, colocando-se na posição de submissão que ela mesma questiona quando fala
socialmente significa ela não ter tido filho enquanto os anos vão se passando. Talvez
Yerma queira ter um filho para se inserir na sociedade, para deixar de ser o contrário,
mas o fato de estar em um casamento infértil coloca sobre Yerma a carga de ser
―antinatural‖, peso que gera na mulher uma pressão social angustiante. Com isso, a
por introjetar essa pressão, tornando-a parte de sua visão de mundo.É tão pesada a carga
de Yerma não ter filhos quanto sem saída sua situação e sua fama de seca, de estéril. A
prova do que pode significar não ser mãe aparece na especulação sobre o culpado pela
esterilidade do casal que é feita por Yerma, mas também pelas lavadeiras. As lavadeiras,
em Yerma, formam um coro que, como nas tragédias gregas, tem a função clássica de
ao espectador, e, na verdade, indicam que, ao mesmo tempo em que Yerma nem João
não são culpados, ambos o são. O casal é atraído para uma vida matrimonial que não
satisfaz a nenhum dos dois, e a infertilidade, que se impõe a eles, mais parece uma
178
brincadeira da natureza. Yerma não se realiza na vida que se dá unicamente no âmbito
privado, e nega as alternativas de ter outra vida, encarando o que lhe acontece como um
destino inexorável. Outros personagens apontam que a protagonista poderia realizar seu
desejo de outras formas, mesmo que menos ortodoxas, como, por exemplo, tentando
engravidar de outro homem que não seja o seu marido, mas Yerma, presa a sua honra,
não aceita tal meio de realizar seu desejo. Enquanto isso, João também vai dando sinais
de insatisfação, na medida em que percebe não ter controle sobre sua esposa.
Como dito antes, o conflito de Yerma não é dado como algo irremediável.
fugir com Victor, como fez a Noiva em Bodas, ou ter encontros adúlteros e tentar
possibilidades são rejeitadas por Yerma, que segue fiel ao seu marido e às normas
personagem tem consciência de que precisa se calar, resignar-se, mas tenta ignorar que
a raiz de sua tristeza é mais do que a infertilidade do casamento, mas os muitos frutos e
flores prontos para serem provados que ela não pode ou não se deixa experimentar. A
natureza é fértil no mundo fora da casa de Yerma, mas também muito fértil na força
ativa que a personagem sente pulsar e que, do meio para o final da peça, Yerma não
179
A embriaguez do “Cristo del Paño”
A romaria da peça é movida por dois tipos de desejos, como descrevem os próprios
personagens da peça: para pedir filhos, como o caso da protagonista, mas também pelas
coisas ―terríveis‖ que acontecem. As lavadeiras, mais uma vez com a função de dar voz
aos comentários do povo, dizem que a crescente procura da romaria por mulheres que
buscam o milagre de engravidar passou a atrair muitos homens à romaria, e com isso
muitos problemas. ―No ano anterior dois homens se mataram por uma casada‖, diz uma
das lavadeiras. A romaria, que deveria ter função unicamente religiosa e social, passa a
ter um forte apelo sexual, e é por esse motivo que ela passa a ser mais conhecida.
setores conservadores da sociedade, pois uma cena que deveria trazer lições morais
romaria é descrito pelas lavadeiras, que contam que uns homens passaram a mão nos
seios da irmã de uma delas, que há tonéis de vinho próximos e que um rio de homens
solteiros desce para perto da romaria, certamente em busca de mulheres ávidas por
engravidar.
180
autor40, e até hoje segue sendo muito popular na Espanha. No ano de 1979, o jornal ―El
País‖ publicou uma matéria intitulada ―La romería de Moclín, inspiradora del Yerma de
atualmente, a fama da romaria de ―Cristo delPaño‖ se dever mais por ser parte da obra
de Lorca do que pelos milagres atribuídos a ela. À romaria, que atualmente também é
conhecida como a ―romaria de Yerma‖, são atribuídos milagres realizados pelo ―pano
com a imagem de Jesus com uma cruz nas costas‖, e, em especial, o milagre de curar a
esterilidade feminina.
Porém, junto com a fama milagrosa da romaria, vêm histórias que contam
romaria, não sendo essa relação uma invenção da dramaturgia lorquiana. Certamente,
um dos pontos que mais irritou os setores conservadores da sociedade com relação à
40
Tal ideia está expressa no livro do irmão Federico y su mundo, de Francisco Garcia Lorca, irmão do
poeta.
41
http://www.elpais.com/articulo/sociedad/GARCiA_LORCA/_FEDERICO/GRANADA/ESPAnA/romer
ia/Moclin/inspiradora/Yerma/Lorca/elpepisoc/19791009elpepisoc_8/Tes/
42
Idem, 1979.
181
cena da romaria era a carga de sensualidade atribuída a este trecho da obra, afinal, a
cena remete a um acontecimento real, ampliando ainda mais a fama que o rito possuía.
Espanha, mas o caráter erótico da dança foi acentuado pelo dramaturgo. É tão forte a
relação da cena final com os cultos dionisíacos, pelo uso de máscaras, com a presença
não relacionar a cena com a obra As Bacantes. O Deus invocado é o Deus (homem) da
presente na romaria real, no final da cena, dá espaço para o rito grego, pois só dessa
maneira seria possível chegar ao ápice da tragédia, outro ritual grego. Os ritos católicos
Lorca43, mas o trágico não encontra espaço na Igreja Católica, pois só há um destino —
escrito pela crença na vontade de um Deus único, que não se relaciona com o homem ou
É em meio ao ar turvo, impregnado pelo som das orações e pelo sabor dos
vinhos, que Yerma se encontra pela última vez com João. Yerma vai à romaria, sem a
permissão do marido, para buscar o milagre de engravidar, pois para ela, suas rezas não
estavam sendo ouvidas; mas João a segue e eles se encontram, ambos embriagados; ele
pela bebida, e ela pelo ódio que ao longo da peça foi sendo alimentado pela frustração e
pela fama de estéril recebida pela protagonista. No diálogo que o casal trava na cena
final, quanto mais o marido fala, mais Yerma se enche de fúria, pois João expõe, pela
última vez, que quer que sua esposa se resigne a não ter filhos. Talvez, o que mais
enfureça Yerma seja o fato de o marido não se importar com a ausência de filhos.
43
Refiro-me aos relatos das brincadeiras de criança de Lorca. No livro Mujeres de García Lorca, as
empregadas e primas do escritor contam que Federico brincava de teatro nos quais encenava missas
onde ele era o padre.
182
João diz a Yerma, sobre sua postura com relação aos filhos: ―não me
interessam. Já não era sem tempo que eu dissesse isso. Só me interessa o que tenho nas
mãos. O que vejo com meus olhos‖. João representa um homem da Espanha rural, que
vê o mundo como aquilo que ele pode cultivar e trabalhar com suas próprias mãos, na
casamento era uma condição para a maternidade. Quando ela se depara com o fato de
não poder ser mãe, tanto o casamento quanto o marido perdem o sentido. Para João, o
casamento era parte natural da vida de um homem honrado, uma obrigação social, não
importando se o matrimônio geraria ou não filhos. Assim, para ambos o casamento era
um meio para atingir um fim, mas este não era a felicidade do cônjuge.
de um em prol dos desejos do outro, uma relação onde a força é exercida por apenas um
dos lados, numa batalha que busca a morte da vontade de um, e não um jogo onde os
desejos se intercalam.
angustia, na verdade, não importa a João. Para ele, não ter filhos não é um problema,
pois ele segue sua vida da mesma maneira, sendo o senhor da casa e o dono de seu
183
trabalho no campo, ou seja, João já tem sua vida completa, tanto para si, quanto para a
salvador. Doménech diz que, segundo esta vertente, ―morre o varão, morre sobretudo
para a mulher, se trata de mulheres que estão sentidas — como a sexualidade, como o
Porém, ambas as leituras ignoram Yerma como indivíduo que tem desejos e
desenrolar de seus sentimentos. Dizer que Yerma mata o marido por um ataque de
Yerma e ignorando que há, além de um embate interno de suas vontades, uma relação
entre ser homem e mulher, e nega as imposições sociais como um fator importante para
o ato cometido pela protagonista. Ao matar João, Yerma não executa a morte de seu
salvador, mas ao contrário, mata seu marido para poder se salvar do peso que ela sente
44
Leitura de AngelaBacaicoa, ―Lectura psicanalítica de Yerma, de García Lorca‖, Cuaderno de
Psicoanálisis, IV, 10, 1987, p. 32-39.
184
Yerma: Isso nunca. Nunca. (Yerma dá um grito e aperta a garganta
do marido. Ele vai para trás. Yerma aperta a garganta do marido até
matá-lo. Começa o coro da romaria.) Murcha, murcha, mas segura.
Agora, sim, o sei com certeza. E sozinha! Vou descansar sem ter que
despertar sobressaltada para ver se o sangue me anuncia outro sangue
novo. Com o corpo seco para sempre. Não se aproximem porque
matei meu filho, eu mesma matei meu filho! (Um grupo se aproxima,
ficando ao fundo. Ouve-se o coro da romaria). (III, 2)
salvador, mas na verdade aceita seu destino trágico depositado na esterilidade de seu
casamento; junto com seu marido, mata seu filho. Agora viúva, Yerma não tem mais
que carregar o peso de um casamento sem filhos. Mas, além disso, sem João, Yerma
também se torna livre da casa, das restrições sociais que João trazia para o âmbito
Yerma matar seu marido pode ir além de uma leitura psicanalítica, que entende o ato
significava de peso, de opressão para ela. Sem João, Yerma pode descansar, pois, aos
olhos dos outros, ela deixa de ser a seca e passa a ser a viúva, sendo essa única maneira
angustiada esperança ao desolamento. Nesse meio tempo, Yerma vai azedando sua
sua esterilidade. Porém, quando João diz a Yerma que não deseja ter filhos, ela não
pode mais ignorar que o marido, que ela via como sua única salvação, não irá lhe salvar.
O marido não era seu salvador, mas um de seus algozes. Se é estéril Yerma ou se o é
João, o que importa é que um não pode dar o que o outro deseja, então, como ser feliz
frente à impossibilidade do outro? Enquanto Yerma quer ser mãe, João quer sua honra,
185
João se buscam sem chegar a se encontrar, como quem se move na escuridão. E talvez
não se encontrem porque o que cada um busca no outro é algo que o outro não tem, ou
representação de uma mulher infecunda por não ser fecundada, semeada. Yerma é a
terra que é estéril por não haver quem trabalhe nela. Essa ideia ressalta o constante
paradoxo que vivem João e Yerma, pois um homem de vida rural, que trabalha na terra,
momentos parecerá ao público que há, mas é um pequeno engano‖ (GIBSON, 1987, t.
II, p. 1060). O escritor cuida de detalhes da evolução trágica de Yerma nessa aparente
encontrar Maria grávida para a amargura e desolação. Yerma é consciente do que lhe
acontece — que seu sangue poderia virar veneno, caso não dê vida aos seus filhos —,
que está se enchendo de ódio, se vê inútil, se sente ofendida e rebaixada, como ela
desafia a mentalidade arraigada em valores católicos, mas João vai até Yerma, que ao
ser descoberta, inundada por seus sentimentos, mata o marido e com ele os valores
morais e a falta de liberdade que ele representa. Yerma prefere matar seu marido a se
resignar ou a ter uma postura adúltera, ou seja, acaba escolhendo expor tudo aquilo que
antes estava trancado dentro de sua casa e de si: sua insatisfação com o casamento e a
vida doméstica que lhe eram impostos, a sede de liberdade, a descrença em Deus e a
vontade de ser o que quer e não o que os outros dizem que ela é. Yerma escolheu a
186
Quando João aparece na romaria, já um pouco bêbado de vinho e de desejo
por Yerma, ele procura sua esposa para realizar suas vontades. João, nesse momento,
despe-se completamente dos valores católicos e deseja Yerma por prazer, não para
procriação. Porém, a protagonista não deseja a João, não o vê como uma fonte de
prazer, mas antes como um reprodutor e agora que ele mostra não se importar em ter
João vê a Lua e vê Yerma, mas ela, neste momento, não consegue ver nada
que não suas vontades, e recusa seu marido tanto quanto continuar abrindo mão de sua
liberdade e escolhas por um casamento que não a satisfaz. Ao recusar João, Yerma
assume mais uma vez a moralidade cristã de aceitar o sexo para fins reprodutivos, e ao
matar o marido, livra-se do peso que representava um sexo infecundo, pois parece que
para ela, o sexo não gera prazer nem ―fruto‖. Nesse momento, Yerma é a expressão de
toda a moralidade social cristã que controla a vida privada dos indivíduos, como
lavadeiras, que é criado com forte aproximação aos coros das peças gregas, mas
também na ideia de imutabilidade do destino. Assim, quando Yerma crê que pode
mudar a ordem e mudar seu destino, ela acaba cumprindo seu próprio destino, assim
como fez Édipo, ao tentar fugir de sua tragédia de se casar com a mãe e matar o pai.
Quando Yerma vai à romaria para tentar engravidar, ela acaba matando o marido, assim
nas tragédias gregas, em Yerma o destino se impõe à vontade humana com força
187
poderosa e imbatível. Mas, se o povo grego estava nas mãos dos deuses, o povo
espanhol retratado na peça de Lorca estava nas mãos da sociedade e da Igreja Católica.
que mata seus filhos para se vingar de Jason. E movida pela vingança, assim como a
heroína grega, talvez Yerma mate o marido para se vingar da sociedade, e como coloca
ressentimento de Yerma com a sociedade e consigo mesma, por aceitar fazer parte da
Espanha, e estão fortemente presentes nas obras de teatro ao longo do período do Século
século XVIII, época de forte influência francesa, e que apresentou ligeiro renascimento
público das peças de Lorca em Bodas de Sangue, quando a honra do Noivo é maculada
João mata toda a possibilidade de ser mãe, afinal, acaba seu casamento — a única
maneira pela qual Yerma acreditava ser possível a conquista da maternidade. Assim, a
própria Yerma diz que ―matou seu filho‖, e nesse ato ela se aproxima da personagem da
Mãe de Bodas de Sangue que afirma que, junto com a morte do seu filho, o Noivo, terá
outro tipo de tranquilidade: ―Agora todos estão mortos. À meia-noite vou dormir,
188
dormir sem que me aterrem mais a espingarda ou a faca‖ (Mãe, Bodas de Sangue,
último quadro), agora ambas podem dormir sem o medo, sem a ameaça dos outros. Ao
se tornar viúva, Yerma deixa de ser a infecunda, a seca, e passa a ser um símbolo das
exigências que são feitas à terra para que esta cumpra seu ciclo. Mas Yerma também se
Rodriguez, don Federico, como era conhecido em Granada e vilarejos próximos. Antes
de se casar com a mãe de Lorca e de seus três irmãos, Don Federico foi casado com
Matilde Palacios, que morreu muito jovem. O que se imagina é que Matilde era estéril,
pois o casal não teve nenhum filho, enquanto que em seu segundo casamento com
Vicenta Lorca Romero, don Federico teve quatro filhos. Lorca sabia que seu pai teve
o poeta imaginava como seria se ele fosse filho de Matilde e não de Vicenta
Não se pode dizer que Lorca tenha escrito a peça baseado na história de
Matilde, mas é fato que a esterilidade foi um tema abordado não apenas na peça, mas
escrito entre os anos de 1921 e 1924 —, antecipa alguns dos temas que permearão a
189
já em seu título compartilha com Yerma o sentimento de infecundidade, da terra seca,
sem gerar novas vidas. No fragmento abaixo, o poeta expõe o suplício ―de se ver sem
toranjas‖, o suplício de ser improdutivo, seco, o mesmo suplício que, dez anos mais
―Lenhador.
Corta a minha sombra.
Livra-me do suplício
De ver-me sem toranjas.‖
questionar as normas impostas, pois segui-las não a torna feliz. Assim, ao contrapor os
que são indesejados pelos setores conservadores do poder e da sociedade e por isso
Espanha.
crítica estão registradas nos jornais da época. É a partir das matérias e comentários
publicados nos anos de 1934 e 1935 que se pode afirmar que a sociedade espanhola se
deu conta do caráter político e subversivo da obra de Lorca. Yerma gerou reações de
muitos setores da sociedade e colocou o nome de seu autor na lista dos ―inimigos da
Sobre Yerma, Eutímio Martín (1985) escreveu um breve artigo, mas que
imperfecta casada‖, Martín nos chama atenção para o fato de que ―a estreia de Yerma
190
[...] suscitou uma reação de feroz violência na imprensa direitista que o conteúdo da
obra escassamente justifica‖ (1985, p. 93). O fato é que a heroína, como a chama o
autor, não falha em sua ortodoxa moral católica, pois não satisfaz seu desejo de ser mãe
fora dos limites de um casamento legal, civil e religioso 45. E o articulista completa a
sangue, estreada um ano antes não produziu sequer o mesmo efeito e, entretanto, seu
Para Martín, a explicação para o impacto causado por Yerma vai além do
que entre março de 33 e dezembro de 34, a tensão política havia cavado ainda mais o fosso que
separava direitas e esquerdas, mas é possível que os motivos não fossem determinantes‖
(Martín, 1985, p. 93). O autor afirma que uma análise externa à obra não é capaz de nos mostrar
o que tornou Yerma uma peça tão explosiva, e nos chama atenção para o fato de que a
insubmissão assumida pela personagem e a forte presença da sexualidade na obra são alguns dos
traços literários que explicam o perigo que Yerma representava para os setores conservadores da
época.
Yerma é mais do que uma peça sobre uma mulher estéril, mas uma obra que
moral católica. Todos esses fatores com um agravante: são vistos e discutidos por uma
mulher. Yerma pode ter uma atitude menos rebelde do que a Noiva de Bodas de
Sangue, pois esta cede aos seus instintos e foge com Leonardo no dia do casamento,
mas Yerma também apresenta um caráter subversivo por não se resignar e por assumir
que não vai se resignar. E por não se resignar, por expor sua insatisfação na vida
45
Certamente Eutímio Martín se refere às insinuações e propostas da Velha Pagã para que Yerma traia
seu marido com a finalidade de engravidar ou mesmo de sair do casamento que não a faz feliz. Mesmo
que o adultério fosse uma possível solução para seus problemas, Yerma não chega a cogitar trair o
marido.
191
da Espanha, onde, cada dia mais, o fascismo disputava espaço e ganhava adeptos em
nacionalista, que pretendia manter a sociedade coesa sob a repressão dos indivíduos, e
uma Espanha de indivíduos que sabiam ser possíveis outras formas de vida e que
estavam sedentos de liberdade. Vivendo na primeira Espanha, Lorca, por meio de sua
segunda Espanha. E com relação a essas distintas Espanhas, a casa de Yerma representa
a Espanha seca, castradora,na qual uma forte moral que impunha o silêncio e a
infelicidade de ter que viver a vida de uma maneira que nem sempre era a desejada.
Yerma é uma lente de aumento sobre a sociedade que tolhe as liberdades individuais,
que recruta outras mulheres, como as irmãs de João, por exemplo, que antes cuidavam
da Igreja e passavam a vigiar Yerma, para participarem do exército que vigia mais do
que as pessoas, mas seus desejos e pensamentos. As irmãs beatas de João são a
aceitarem uma vida infeliz. O autor também coloca, pela imagem da romaria pagã, que
que o escritor fornece dos riscos que corriam aqueles que tentavam burlar as normas
192
historiador Ian Gibson coloca, em sua biografia sobre Lorca, que era inevitável que a
estreia de Yerma tivesse conotações políticas e que tanto elementos dos setores da
percepção de que Yerma exacerbou discursos e ânimos políticos indica que a obra
discute a sociedade e a política e que Lorca era visto como um agente político, na
medida em que suas obras desestabilizaram a ordem, mesmo que o poeta nunca tenha se
esquerda ―El Pueblo‖, de Madri, publicou, em 31 de dezembro de 1934, uma fala sobre
a estreia: ―As direitas espanholas não querem perdoar Margarita Xirgu que representara
Fermín Galán (de Rafael Alberti)46. E, por outro lado, com relação à noite de estreia,
escolha para o papel de Yerma da atriz catalã Margarita Xirgu, que nunca escondeu sua
relação com o movimento republicano, foi considerada tanto pela esquerda quanto pela
Segunda República e a Guerra Civil Espanhola, foi amigo de Lorca, e fornece pistas
sobre a reação da direita espanhola à dupla formada pelo escritor e a atriz Margarita
46
Nos anos que antecederam a Guerra Civil Espanhola, o teatro teve importante papel propagandista,
sendo usado tanto pelo bando republicano quanto pelos nacionalistas. Rafael Alberti foi um dos
escritores que se posicionaram mais claramente a favor da República e sua peça Fermín Galán (1931),
que conta a vida do militar republicano que dá título à obra, é a peça símbolo do teatro propagandista da
Espanha republicana dos anos de 1930.
193
contra a insigne atriz pela hospitalidade brindada ao ex-chefe do Governo47 [...]. Guerra
contra ela, pelos motivos expressados, e guerra contra Federico porque é jovem e
triunfante‖ (apud GIBSON, 1987, t. II, p. 335). Carlos completa a descrição contando
tamanho que gerou protestos daqueles que estavam de acordo com os ideais
importunavam a estreia.
vez maior da arte propagandista, que foi uma das armas de ambos os bandos antes e
durante a Guerra Civil. El Debate, diário católico mais lido na Espanha pré-guerra,
ruim‖, e completa que ―alguns espectadores sentiram afetados seu bom gosto e
nacionalista, dirige sua crítica diretamente ao autor, dizendo aos leitores que ―García
Lorca desvirtua toda crença quando paganiza a força de uma convicção hispana, que
espanhola que a obra de Lorca representa, principalmente no que diz respeito aos
47
Morla Lynch se refere a Manuel Azaña, citado na nota do jornal El Pueblo.
48
El Debate, Madri, em 3 de Janeiro de 1935.
49
Informaciones, Madrid, 31 de dezembro de 1934.
50
La Nacion, Madrid, 31 de dezembro de 1934.
194
51
―muitos momentos de sensualidade franca e descarada‖ que a obra leva ao palco,
vários setores da sociedade espanhola da época: ―Era uma cena repugnante. Tão
obra, que se enquadra no Código Penal, porque com ela é cometido o delito de atentado
ao pudor‖52.
setores conservadores da Espanha receberam Yerma, e dão pistas muito claras do modo
de pensar desta parte da sociedade. Os jornais cumpriram sua função de não apenas
difundir a notícia da estreia da peça, mas de formar opinião sobre o que deveria ser
recusado não só em Yerma, mas em diver sas manifestações artísticas que trabalhavam a
favor dos ideais republicanos. O perigo que tais obras de arte representavam era muito
claro e devia ser combatido com severidade, com o ―Código Penal‖, como diz a revista
arte em si. A sensualidade ―franca e descarada‖, segundo o jornal ABC, que a obra leva
Lorca causou tanto ruído e sublinham os elementos contidos na obra que deveriam ser
combatidos tanto na arte quanto nos indivíduos. A maneira com a qual a ala
conservadora da Espanha recebia a arte que ela considerava propagandista está bem
51
―Informaciones y noticias teatrales. En Madrid. Español: Yerma‖ emABC, Madri, 30/12/1934.
52
Do arquivo do ―Centro de Estudios Lorquianos‖, transcrito em GIBSON, 1987; p 338.
195
expressa nos exemplos acima, indicando o clima de ameaça tanto social, religiosa e
jurídica (via Código Penal) no qual vivia o país nos anos que antecederam a guerra.
que, mesmo que indiretamente, usavam sua arte como agente político. Dentre o que foi
publicado pela imprensa esquerdista, uma notícia merece destaque, não por ser a favor
de obra, mas pela leitura que fez dela. A revista Tiempo Presente escreve, em março de
nossa liberação do atraso medieval que segue nos oprimindo"53. O relato do jornal
expõe o choque entre a busca de uma nova Espanha, que quer sair do ―atraso medieval‖,
como foi dito, mas que ainda se encontrava sob a criação e governo da coroa e da cruz.
Aqueles que afirmam que Federico Garcia Lorca não se interessava por
política (tema que será tratado em outro capítulo) ignoram, além de aspectos de sua vida
pessoal, todo o conteúdo direto e metafórico contido em sua obra, e em especial Yerma.
Uma leitura da peça que ignore o contexto sócio-político da Espanha de 1930 pode levar
mulher que não pode satisfazer sua vontade de ser mãe. Assim, é importante perceber
que há espaço para uma análise que leve em conta o fato de a sociedade espanhola da
época estar cada vez mais polarizada — polarização que desencadearia na Guerra Civil
Espanhola — e que tenha em conta a importância social que Lorca via na arte.
―Putrefatos‖. Era esse o termo usado por Lorca, junto com Dalí e Buñuel,
para se referir àqueles que criticavam sua obra, referindo-se à putrefação moral e
53
―Yerma, de García Lorca, en el Español‖, Tiempo Presente, março de 1935.
196
espiritual da sociedade espanhola (JOHNSTON, 2004). O poeta, ao longo de sua obra,
assim que se dá a relação entre João e Yerma. E, mais do que a crítica aos casamentos e
o que eles representam dentro das normas sociais, o autor cria em Yerma um espelho da
Espanha de 1930: um país dividido em muitos, Espanhas que se mostravam cada vez
mais distantes umas das outras, enfrentando-se com forças ideológicas e bélicas cada
vez mais violentas, uma sociedade que se construiu sobre relações de dominação.
Yerma é um dos personagens que levam à cena a luta pela liberdade que o autor
também travou em sua vida, que o poeta via necessária em sua Andaluzia que expulsou
árabes no século XV, que massacrava ciganos e que seguia uma vida de costumes
medievais.
Das relações de poder do dia a dia, Lorca extraiu elementos para compor em
suas obras as críticas à sociedade. A liberdade é, sem dúvida, um dos grandes temas das
obras do autor que encontrou, na Espanha do início do século XX, um cenário político
sociedade e a luta pela liberdade. Alguns de seus familiares e amigos afirmam que o
poeta não se interessava pela política, não era sensível ao franquismo que se instaurava
na Espanha, e entendem o fato de Lorca não se filiar ao bando republicano como uma
tomada de postura apolítica. Mas é importante ver que nas obras do autor há a expressão
da luta por uma liberdade em choque com a sociedade castradora. E essa liberdade era o
que fazia com o que o autor não se ligasse oficialmente a nenhum dos grupos, aos
197
menos, ao bando franquista — no qual Lorca tinha amigos poetas. A postura do poeta
foi muito clara: a de não ignorar os rumos da Espanha e expressar o conflito que se
anunciava. Conflito civil que eclodiu na guerra da qual Lorca foi uma das primeiras
vítimas.
198
Capítulo 5
199
O manuscrito de A casa de Bernarda Alba foi finalizado em 19 de junho de
193654, dois meses antes da possível55 data da morte de García Lorca. O autor não
chegou a ver a peça montada. Bernarda Alba foi pela primeira vez encenada em março
Espanha, a montagem da peça só foi liberada pela censura franquista em 1964, e mesmo
assim com pequeno número de apresentações56. Para muitos críticos, essa obra completa
a trilogia rural espanhola de García Lorca. Tal trilogia foi anunciada pelo próprio autor,
Sodoma (ou Las hijas de Lot), porém esta última ficou inacabada, e A casa de Bernarda
Pode-se pensar que A casa de Bernarda Alba, ou o drama das mulheres dos
protagonista do enredo, como anuncia o título, da mesma maneira como em Yerma, mas
toda a sociedade espanhola da época sendo discutida. Em sua ultima obra, o escritor usa
54
Data escrita por Lorca junto a sua assinatura, sendo então considerada a data de finalização da peça.
55
Supõe-se que Lorca foi morto em 18 de agosto de 1936, segundo documentos da época referente às
prisões e fuzilamentos do período da Guerra Civil Espanhola. Porém, como até hoje não foi encontrado
o corpo do poeta, não é possível afirmar com plena certeza o que lhe aconteceu, muito menos a exata
data de seu falecimento.
56
Não passando de 150 apresentações, quando o normal era uma média de 500 apresentações, como nos
informa Eutímio Martin em ―Antologia Comentada‖.
200
diálogos muito mais secos e cortantes do que nas peças anteriores e, além disso, em
Bernarda Alba não há o uso de poesia, o que rompe com o estilo do autor de mesclar
Mãe, cinco filhas, governanta, criada e avó. Nove mulheres e uma casa com
paredes que, de tão brancas, têm tom azulado, brancor que contrasta com o negro do
luto que marca a obra desde o início. Toda a peça acontece no interior da casa de
Bernarda Alba, a matriarca de 60 anos que vive com suas cinco filhas solteiras
(Angústia, Madalena, Amélia, Martírio e Adela), sua mãe (Maria Josefa) e as duas
impõe às filhas um severo luto que lhes impede de saírem de casa por oito anos,
sua maneira, uma forma de sobreviver à vida imposta pela mãe. Bernarda se coloca não
só como a dona da casa, mas também como dona da vida, anseios e desejos de todas as
pessoas que nela habitam. Assim, cada personagem responde de maneira distinta à
formas e vida ao drama. O historiador Ian Gibson, em seu livro Federico García Lorca,
conta que os pais de Lorca tinham uma casa e alguns parentes na aldeia de Asquerosa
— vilarejo que hoje leva o nome de Valderrubio — local no qual, além de viver três
anos de sua infância (1906 – 1909), o poeta passou numerosos verões. Em Asquerosa,
alguns parentes de Lorca eram vizinhos e dividiam um poço com uma mulher chamada
Frasquita Alba Sierra, que, segundo relatos, era uma mulher de forte personalidade. Na
201
área de uso comum, onde ficava o poço dividido por Frasquita Alba e os parentes de
Lorca, era possível ouvir — sem ser visto — tudo o que era dito em alguns pontos das
império que Frasquita Alba exercia sobre sua família — apesar de os relatos também
Andrés Sorel (1998) transcreve uma declaração feita por Lorca, em 1936,
Também havia no povoado uma governanta chamada Pôncia, porém não era
empregada de Frasquita; já Maria Josefa, a mãe louca de Bernarda, pode ser uma
referência do poeta a uma parenta afastada, de mesmo nome, cuja casa o poeta
frequentava quando era criança. Conta o irmão de Federico, Francisco García Lorca:
contou a Ramos Espejo que, quando era jovem, frustrada em seu desejo de mostrar o
bonito vestido que havia acabado de ganhar, devido à morte da avó, vestiu a roupa e a
202
exibiu às galinhas, para que pelo menos elas pudessem apreciar a beleza da prenda
(GIBSON, 1998, p. 441). Essa anedota familiar remete ao trecho de Bernarda Alba que
Martírio: E Adela?
Madalena: Ah, vestiu a roupa verde feita para seu aniversário e foi ao
curral, falando baixinho: ―galinhas, galinhas, olhem para mim!‖. Tive
que rir. (ato I)
ideias para suas obras, mas também se pode imaginar que o poeta cria detalhes e
aumenta alguns pontos, mesmo que tenha dito que eram reais, como o fez para alguns
amigos para os quais leu A casa de Bernarda Alba. A viuvez de Frasquita, por exemplo,
é uma invenção do escritor, pois esta morreu antes de seu marido, mas Lorca mantinha a
versão de que Frasquita Alba era viúva e que tiranizava suas filhas quando contava a
fruto da imaginação do poeta, pois Frasquita e seu marido tiveram filhas e filhos. Um
fato curioso da casa de Frasquita foi o casamento da filha mais velha, Amélia, com José
Benavides Peña, conhecido como Pepicoel de Roma, pois era do vilarejo vizinho,
Romilla ou Roma la Chica. Porém, Amélia morre, e José se casa com outra das filhas de
Frasquita, Consuelo, e esse fato talvez seja a referência do dramaturgo para a criação do
triângulo amoroso entre Angústia, Pepe Romano — cujo nome lembra demasiadamente
vida em Asquerosa daqueles tempos são tão gritantes que a mãe de Lorca lhe pedia
441) na tentativa de evitar a clara relação entre as Alba da peça e os Alba de Asquerosa.
Outra prima de Lorca, Mercedes Delgado García, que vivia em Asquerosa, conta que os
203
Alba, descontentes com a obra A casa de Bernarda Alba, deixaram de cumprimentar a
sobrenome, utilizadas em muitos momentos, como o intenso branco dos grossos muros
da casa que habita Bernarda, que expõem a honra imaculada que a matriarca queria
aparentar, ou sua fixação pela limpeza e pureza impostas a casa e às pessoas que nela
vivem. A busca de Bernarda pelo branco é quase obsessiva, tanto de maneira concreta
uma conduta moral imaculada de todas as suas filhas. O branco está na cor das paredes
da casa, dos muros, do solo, das anáguas (ato III), na cor do cavalo e na juventude de
Adela ("não quero perder minha brancura nesses cômodos", ato I). Se A casa de
orientações no início do texto dramático, a imagem dos povos brancos — como são
africano da Espanha, se caracterizam por ostentarem o branco, cor que reflete todos os
raios luminosos, não absorvendo nenhum, espelhando tanta claridade que chega a cegar
nos dias mais iluminados. O branco, que é todas as cores presas, sem absorver os raios
mas não absorve o que vem de fora. E assim a peça é toda alva, alba, não só pela cor ou
a cor preta diretamente ligada à morte pelo luto da morte do marido de Bernarda. Como
em outras peças de Lorca, as cores não têm função simplesmente plástica, mas
204
Aprisionamentos
A casa das Alba não é apenas o cenário da peça, mas na verdade se converte
situações às mulheres que nela vivem, ora sendo uma metáfora do sentimento destas.
Um exemplo disso é a fala de Pôncia para a matriarca: ―Vê este silêncio? Há uma
tormenta em cada quarto‖ (ato III). A governanta se refere às filhas de Bernarda, mas
para tal, usa a casa como a portadora das tormentas, ao invés de falar diretamente das
tirania de sua mãe, mas não o faz de maneira direta e sim relacionando sua vida com a
casa: "eu não quero ficar trancada. Não quero que minhas carnes fiquem como as de
vocês. Não quero perder minha cor nestes quartos‖ (ato I). Os estados da casa
personagens.
isoladas de um mundo com o qual seu único contato é através de frestas de janelas,
com o cárcere pode ser vista como uma referência também à Espanha às vésperas da
guerra civil, que eclodiu no mesmo ano em que o dramaturgo escreve a peça. Nesse
situação política espanhola que se configuraria na guerra que matou Lorca e que
resultou na ditadura do General Franco. A relação entre casa e cárcere é reafirmada com
a postura ditatorial de Bernarda, como veremos adiante, e o que deveria ser um espaço
205
de liberdade para os indivíduos torna-se um lugar de reprodução da coerção social, de
―O destino confinou-me a este convento‖ (Pôncia, ato II). O convento aparece em outras
obras de Lorca, como em seu primeiro livro, Impresiones y Paisajes57, no qual o escritor
coloca suas primeiras impressões sobre a vida reclusa dedicada à religião, e as paisagens
descritas também poderiam servir para descrever a casa e os sentimentos que nela
estâncias. Tudo calado à força. [...] Nada se ouve‖ (LORCA, 2008 , VI, p. 94).
referindo a um mosteiro, tal descrição serve para a casa de Bernarda Alba. Do relato de
Lorca de que ―nada se ouve‖, poderíamos ouvir os gritos de Bernarda impondo silêncio
às suas filhas.
que são exigidos pela primeira. A cor branca dos muros grossos da casa pode aludir a
imposta pela mãe às suas filhas com importância obsessiva, como fica claro na última
fala de Bernarda, frente ao suicídio de Adela58. Seja como forma de prisão, seja como
57
Impresiones y Paisajes é um relato das impressões que Lorca teve de sua Espanha em uma viagem por
grande parte do território do seu país, ainda na época em que vivia em Granada. Impresiones y Paisajes
foi escrito entre os anos de 1916-1917.
58
Ao ver a filha morta e frente aos prantos das outras filhas, Bernarda diz: “e eu não quero choro. É
preciso encarar a morte de frente. Silêncio!... Adela, a filha mais nova de Bernarda, morreu virgem”.
(ato III).
206
forma análoga à de Yerma, mostrando que tal dicotomia é de fato um elemento
importante em sua obra. Em ambas as peças, a casa serve como espaço de confinamento
para mulheres que acabam vendo o mundo exterior como espaço de liberdade, enquanto
vista, o espaço público como um perigo ao qual tanto Yerma quanto as personagens de
condenadas a um luto de oito anos, no qual não podem sair para o mundo, nem o mundo
pode ter acesso ao espaço interno da casa, como anuncia Bernarda em uma de suas
primeiras falas: ―Nos oito anos que durar o luto, não entrará nesta casa a brisa da rua.
Faz de conta que tapamos com tijolos as portas e janelas. Foi assim na casa do meu pai
e na casa de meu avô‖ (ato I). A matriarca mantém a tradição, sem reflexão e sem
crítica, e cobra a mesma postura de suas filhas, e para a falta de reflexão, o isolamento
se faz fundamental.
a casa, e mesmo a vista da rua pela janela só é permitida às empregadas. Bernarda não
quer que as filhas saiam para o espaço público, e também não quer que o mundo externo
saiba o que acontece em seus domínios59. O cerceamento que Bernarda impõe às filhas
remete à sensação de sufocamento que se sentia na Espanha entre 1934 e 1936, anos que
59
Referência à relação com Frasquita, a vizinha de Asquerosa, que era percebida pelo pátio do poço,
como foi dito anteriormente.
207
seja diminuída ou aniquilada. Como diz a personagem Adela, ―há coisas fechadas atrás
dos muros que não se pode mudar porque ninguém as ouve‖ (II, 2ª).
por Bernarda, e Adela mostra com essa fala que percebe que não apenas ela e suas irmãs
ficam dominadas pela prisão imposta pela mãe, mas as influências externas também,
pois se ignora o que acontece atrás dos muros de Bernarda. Assim, é constituído um
confinamento eficaz e sólido: cortando o conhecimento não apenas daqueles que estão
cerceados, mas mantendo na ignorância os que estão fora. Em Bernarda Alba, assim
espaço público se constrói como o lugar que reluz a esperança da busca pela liberdade.
personagens na rua, em Bernarda Alba a morte invade a casa de forma tão avassaladora
Nessa relação entre sagrado e profano, na qual os muros da casa fazem a fronteira entre
os dois mundos, vemos que, se o espaço privado mata as filhas e a mãe de Bernarda por
lhes tolher vontades, forças e instintos, é ao mesmo tempo para a matriarca o espaço da
santuários, Bernarda consagra sua casa como um espaço de pureza religiosa, e aqui
encontramos mais um elemento que explica a obsessão da matriarca pelo branco em sua
pecado, tão atraente quanto este. As filhas de Bernarda em nenhum momento saem à
208
rua, mas durante toda a peça a buscam, mesmo que em tentativas de ouvir o que se
um espaço de mulheres que se odeiam e que se vigiam para que nenhuma escape da
mostrando ao espectador que esse espaço privado não é tão protegido, tão hermético e
sacro quanto Bernarda pensa. No papel da matriarca, o escritor coloca sua visão do
poder ditatorial, mostra a cegueira que toma conta de Bernarda que, com os olhos
apenas em seu poder, não percebe outras forças silenciosas tão poderosas quanto seus
punhos fortes e fechados da matriarca, as quais vão tomando conta das mulheres
dominadas.
As janelas têm especial função na peça, pois são o elo entre as mulheres da
casa e o mundo externo, e por isso mesmo um elemento que preocupa a matriarca.
Bernarda sabe que pelas janelas chegam inúmeros sinais que ecoam com timbre ainda
mais grave do que as badaladas dos sinos das igrejas, que ressonam dentro das paredes
longo da obra, as personagens não escondem que trocariam a vida alba por outra cheia
de cores, e na impossibilidade de sair, tentam atrair o mundo para dentro de casa através
das janelas. Um exemplo disso é o relato de Martírio, que esperou por Enrique na
janela, de camisola (ato I), ou quando Adela se coloca, seminua, com a luz do quarto
acesa e a janela aberta quando Pepe passava pela rua (ato III). Desobedecendo as ordens
da mãe, as duas filhas de Bernarda lutavam com o que tinham para atrair o mundo que
as atraía fortemente.
física da casa, mas por ser quase intransponível o asfixiante ―dentro‖, e inalcançável a
209
liberdade do ―fora‖. Enquanto a casa se constitui como um cárcere, Bernarda se coloca
como um guarda, mas ignora — ou finge ignorar — que não pode controlar o que
acontece ―dentro dos quartos de sua casa‖, ou seja, dentro de suas filhas. E, como
estes homens sepultam aqui seus corpos, mas não suas almas. A alma
está onde ela quer. Todas as nossas forças são inúteis para arrancar-lhe
de onde se crava. Além disso... O que nós sabemos dos desejos de
nossa alma? […] Choram os olhos, rezam os lábios, se contorcem as
mãos, mas é inútil; a alma segue aprisionada, e estes homens [...]
deviam compreender que eram inúteis as torturas da carne quando o
espírito pede outra coisa (LORCA, 2008, VI, p. 94).
cena, mas a ―ameaça masculina‖ é tão latente e constante quanto a força que Bernarda
faz para que sua casa se converta em um convento. Certamente, quanto mais a matriarca
tenta afastar os homens e os ―perigos‖ que eles representam, mais eles se aproximam de
sua casa, seja pela curiosidade que a casa desperta nas vizinhanças, seja pela vontade
que suas moradoras expressam de ter contato com o mundo externo. A peça começa
com a morte do único homem que morava na casa, o segundo marido de Bernarda e pai
de quatro de suas cinco filhas. Junto com o luto, a matriarca inicia a ditadura à qual
210
Mesmo não aparecendo em cena, os diálogos da peça tornam a presença
Esse último, que será o pivô de todos os desentendimentos entre as filhas de Bernarda,
em nenhum momento aparece em cena, mas está presente durante quase toda a obra nos
diálogos das mulheres, convertendo-se num espectro-vivo tão poderoso quanto o foi o
pai de Hamlet60. Pepe, noivo de Angústia, tem Adela como amante e é a paixão de
Martírio. Mesmo que a entrada de Pepe na casa seja proibida, ele está mais dentro dela
do que a própria Bernarda, pois povoa não com o corpo, mas com sua força masculina,
conduta. Suas vozes compõem um discurso coletivo que oscila entre opressão e desejo
de liberdade. Cada personagem leva à cena uma maneira de agir face à imposição do
cativeiro por Bernarda; cada mulher reage de um modo ao conflito gerado no encontro
dos desejos com a moral imposta pela sociedade. A figura da mãe, despótica e católica,
na peça representa este aspecto da sociedade, e o mesmo vale para a vigilância que as
irmãs exercem umas sobre as outras. Com as mulheres de A casa de Bernarda Alba, o
escritor mostra algumas das muitas mulheres possíveis, expondo relações e sentimentos
que podem se dar no âmbito doméstico e familiar, como na peça, mas que também se
60
Se o fantasma do pai de Hamlet lhe apareceu semeando a dúvida sobre a verdade que desencadeou na
tragédia de ―Hamlet‖, Pepe Romano em nenhum momento aparece, mas é visto por todas as
personagens e também é o causador não só dos conflitos, mas também do final trágico de Adela e da
peça.
211
exemplo, o fato de o poeta não haver nomeado a peça simplesmente de Bernarda Alba,
mas ao colocar ―a casa‖ no título, para Gibson, Lorca enfatiza a importância do fato de a
tirania ser exercida no ambiente doméstico. Além disso, o subtítulo da peça, Um drama
Federico, indicando que pode haver intenção de falar da Espanha, enquanto a peça se
obra serve como uma espécie de reportagem que ilustra a Espanha de sua época:
intolerante, sempre pronta apara esmagar os impulsos e desejos das pessoas, assim
como Bernarda faz com suas filhas, suas criadas e como suas filhas fazem entre si
(GIBSON, 1987).
de viver uma vida diferente para Angústia. Cada uma das filhas tem um anseio diferente
relacionado a Pepe, mas para todas ele é a porta de saída do convento-cárcere. Angústia,
única filha do primeiro casamento de Bernarda, é a mais velha (39 anos, segundo
Bernarda em diálogo com Pôncia), e herdou o dinheiro do pai. Por isso, é a filha com
melhor dote. No começo da peça, é revelado que Pepe está noivo de Angústia, revelação
individuais e expondo costumes e normas sociais que o escritor tinha interesse em trazer
à tona.
Bernarda: não pergunte mais nada. E quando casar, menos ainda. Fala
se ele falar e olha para ele quando ele olhar. Assim a infelicidade será
menor.
Angústia: mãe, acho que Pepe me oculta muitas coisas.
212
Bernarda: não procure descobrir, não pergunte e, claro, que ele nunca
veja você chorando.
Angústia: devia estar alegre e não estou.
Bernarda: isso não importa (ato III).
para a filha ter com o marido é o mesmo que ela é obrigada a ter com a mãe. Submeter-
se ao marido sem nenhum questionamento, aceitar que o marido lhe esconda ―coisas‖,
que vive uma vida sem liberdade. A matriarca não espera um casamento feliz para a
filha — e talvez ela também não tenha tido casamentos felizes —, e o seu conselho na
verdade é uma ordem, pois ao se casar, a filha apenas mudará de senhor. Deixando de
sentimentos, e ela deve ter consciência de que ao sair de casa deixa de obedecer a
Bernarda e passará a obedecer a Pepe. Ao ouvir a filha dizer que não está alegre com o
casamento, Bernarda responde: ―isso não importa‖. Não importa que Angústia não
esteja feliz, pois a felicidade não era a finalidade do matrimônio. Mais uma vez, o
Yerma, mas em Bernarda Alba o autor não coloca nenhuma gota de esperança ou de
213
casamento. Mesmo assim, o casamento seria a única esperança das filhas de se livrarem
da despótica Bernarda, talvez na ilusão de que o novo senhor seja melhor, mas apenas
Angústia não ignora que seu casamento é um acordo de interesses de sua mãe, e não um
desejo dela e de seu futuro marido. Mas Angústia aceita o acordo, afinal, ela também
tem seus interesses nele — sair daquele inferno e deixar de ser taxada como solteirona
—, ou seja, o casamento, por mais que não seja uma fonte de felicidade, era algo
nenhuma ilusão de mudar sua situação, ela relembra com saudosismo o passado, e ao
longo da peça faz críticas sobre o papel da mulher na sociedade: ―[...] quando crianças.
Aquela era uma época mais alegre. Um casamento durava dez dias e não havia
impossibilidade de uma felicidade real, certamente ela idealiza o que passou como o
tempo e o lugar onde houve alguma felicidade. Talvez essa seja a maneira desta filha de
Bernarda sentir alguma satisfação na vida. Em outras falas, a personagem expressa que
ela não se contenta com o presente, mas também se sente infeliz por ser mulher, pela
Madalena: Sei que não vou me casar. Prefiro levar sacos ao moinho. Tudo
menos ficar sentada dias e dias dentro desta sala escura.
Bernarda: nem parece uma mulher.
Madalena: malditas sejam as mulheres. (ato I)
214
Bernarda diz à filha que esta ―nem parece uma mulher‖, afinal, preferir
trabalhos braçais a ficar em casa não era próprio de mulher. O lugar de uma mulher era
em casa, no âmbito doméstico, e qualquer outra vida não seria adequada ao sexo
feminino. Ao ouvir que não parecia ser uma mulher, Madalena responde: ―malditas
sejam as mulheres‖, e deixa clara sua repulsa por si mesma, sua angústia por estar
encarcerada em uma vida infeliz, atada pelos papeis sociais impostos às mulheres. Ao
longo de toda a obra, podem ser identificadas suas visões sobre as pessoas, as relações
sociais, mas em algumas falas suas críticas ficam ainda mais explícitas, como no
diálogo abaixo entre Madalena e suas irmãs, onde o dramaturgo expõe a falta de
castigo às mulheres. Madalena completa: ―nem nossos olhos nos pertencem‖, nenhuma
vida e partes do corpo das filhas de Bernarda, a elas não é dada nem a oportunidade de
contemplar o mundo ou de chorar. Seus olhos não lhes pertencem, seus corpos são
cerceados.
―Se Pepe viesse pelo aspecto de Angústia, por Angústia como mulher, eu
me alegraria; mas vem pelo dinheiro...‖ (Madalena, ato I). Madalena começa a julgar o
casamento de Angústia, afirmando que Pepe é noivo da irmã por interesse no dinheiro
do dote da filha mais velha de Bernarda, e não por Angústia de fato. Mas esse
comentário não é feito apenas por Madalena, as outras irmãs são da mesma opinião, e
essa é uma das críticas que Lorca coloca em sua peça: aos casamentos realizados como
215
negócios. O mesmo tema é tratado de forma também explícita em Bodas de Sangue,
mercantil incomodava muito o poeta. Madalena não tem esperanças de mudar sua vida e
também não demonstra ter força ativa para mudar, ela mesma, sua condição, mas em
lugar disso é composta por forças reativas que só lhe permitem queixar-se.
Martírio e Amélia são as filhas que parecem estar mais conformadas com
suas situações, não desacatam as ordens da mãe, nem expressam esperanças de que algo
em suas vidas mude. Mas isso não quer dizer que elas não tenham consciência do que se
lhes passa ou que não tenham desejos para além de suas realidades. Logo no primeiro
ato, um diálogo entre Amélia e Martírio mostra que elas não só não têm esperanças de
sair dessa situação, mas também sabem como funcionam as normas sociais:
Neste diálogo as irmãs comentam sobre uma vizinha que parece ter perdido
a alegria depois que ficou noiva, e frente a isso, Amélia fica em dúvida se é melhor ter
ter noivo seria ainda pior, e Martírio responde: não há diferença. Ela sabe que, a elas,
sempre será permitida apenas a submissão a algo ou alguém, seja a submissão à mãe,
como no caso delas, seja ao marido. Amélia completa com lucidez que ―a culpa é da
crítica‖ que não as deixa viver, crítica imposta tanto dentro da casa quanto fora, ou seja,
a culpa é dos olhos, bocas e ouvidos alheios, que sempre estarão a postos para julgar
ações e sentimentos. Martírio e Amélia recebem o mundo com, para usar palavras de
gélido Não do nojo da vida‖ (NIETZSCHE, 2001, p. 56). Se nem seus olhos lhes
216
pertencem, não é de se estranhar que essa tenha sido a maneira que ‘a educação dada
Martírio, assim como Amélia, não tem esperanças de ter uma vida diferente,
de ser feliz, e além disso, mostra ter uma personalidade seca e ressentida, características
Há uma carga erótica na fala de Martírio, no ―medo‖ que ela sempre sentiu
dos homens, ao imaginar-se abraçada por eles. Os instintos que não se descarregam para
fora, inevitavelmente se descarregam para dentro, como pensou Nietzsche (2001), pois
os instintos são forças vivas, dinâmicas, que sempre buscam se expandir para além dos
corpos. Quando descreve seu medo dos homens, Martírio expressa sentir muito mais
atração do que repulsa, o que faz duvidar um pouco do tal medo que ela diz que sempre
sentiu. Mais parece que Martírio diz temer os homens para mascarar a frustração de não
ter sua atração satisfeita. Na impossibilidade de realizar suas vontades, Martírio joga nas
mãos de Deus a culpa pelo afastamento dos homens, pois Deus a fez feia, frágil, sem
dote, e por isso rejeitada e infeliz. Martírio diz ter se interessado por Enrique, no diálogo
acima, e adiante revela que deseja Pepe, o que reafirma a ideia de que na verdade ela
217
não tem medo, mas sim muita atração pelos homens, mas não assume seus desejos e sua
frustração.
Segundo Martírio, Enrique se casou com a feia que tem mais terras, e ela
mesma sentencia: o que importa não é a noiva, mas o que ela possui em bens materiais e
a submissão da dona do dote. E tanto Martírio quanto as irmãs estão prestes a ver se
realizar, mas agora em sua casa, o casamento da mais feia, porém a mais rica das filhas
de Bernarda. Martírio se conforma com sua situação, não esboçando nenhuma atitude de
mudança, mas ao longo da peça ela vai mostrando ter força reativa, desde chamar de
medo a atração que sempre sentiu pelos homens, passando pelo ato de roubar o retrato
de Pepe, já noivo de Angústia, até o final da peça, quando entrega para a mãe o caso de
que mais claramente mostra que não apenas aceita se subordinar às regras sociais, como
faz parte do jogo, estando ao lado da mãe castradora, do ditador, da cruz e da fogueira
da Igreja Católica. Em sua força reativa, Martírio sabe que não será feliz, e sua pouca
satisfação está na certeza de que, assim como ela, ninguém será feliz.
Martírio: não me abrace! Não tente abrandar minha ira. Meu sangue já
não é mais o teu. Ainda que quisesse te ver como irmã, vejo somente
como mulher (empurra Adela).
Adela: não há mais remédio. Quem quiser se afogar que se afogue.
Pepe Romano é meu. Ele me leva para junto do mar.
Martírio: ele não vai ser teu! (ato III)
218
Martírio vê que Adela aceitava e, a partir disso, satisfazia seus desejos, mas
não permitia essa experimentação para si. E enquanto Martírio tentava se conformar
com as regras impostas, com a falta de liberdade, com a frustração de não realizar seus
desejos, Adela expunha a força que a impulsionava a ir contra as ordens de sua mãe e da
contra as imposições vindas de fora, seja esse fora o espaço público representado pelas
regras morais da sociedade, seja as normas de Bernarda e suas filhas. Adela é sem
dúvida a personagem que faz mais contrapontos na peça: na relação com Martírio, por
Martírio vive a frustração do desejo não realizado, Adela não aceita a imposição de não
viver a realização de sua paixão por Pepe. Enquanto Martírio atua de maneira reativa,
roubando a foto de Pepe, noivo de Angústia, Adela tem postura ativa, e rouba a
satisfação de ter o corpo de Pepe, pois encontra às escondidas com ele. Por ter
conflito constante na obra de Lorca. No final do trecho transcrito acima, Adela diz a
219
Martírio que não tem culpa por sua atração por Pepe. O escritor já havia perguntado em
seu poema ―Se minhas mãos pudessem desfolhar‖ (1919): ―Que culpa tem meu
coração?”, e em Bodas de Sangue a Noiva, ao falar de sua fuga com Leonardo, diz à
Mãe do Noivo: ―Eu corria com seu filho, que era como um menino de água fria, e o
geada nas minhas feridas de pobre mulher consumida, de menina acariciada pelo fogo.
Eu não queria, está ouvindo? Eu não queria‖, e essa fala da Noiva é o sentimento da
própria Adela, ou do próprio Lorca em ―Se minhas mãos pudessem desfolhar‖: corações
acariciados pelo fogo, corpos ardentes que nenhuma água fria seria capaz de abrandar.
São as paixões latejantes que não podem ser controladas nem pela sociedade, nem pelos
próprios indivíduos que têm dentro de si a pulsão da vida que não cessa. E as irmãs de
Adela são aquelas que cedem às razões externas, em detrimento das razões irracionais
Bernarda, beirando os 40 anos — em uma sociedade que de tão arcaica parece estar na
Idade Média — já não apresenta entusiasmos com a vida, alegria, apenas seguindo as
normas preestabelecidas. É Adela quem dá vazão aos impulsos que são reprimidos por
Amélia: [...] Angústia tem o dinheiro de seu pai, é a única rica desta
casa.
Madalena: [...] a parte mais obscura desta casa (ato I)
pouca cor que ainda há na casa de Bernarda, e por isso é quem mais desestabiliza a
ordem que a matriarca impõe, é o poder de Adela contra o poder instituído pela mãe.
220
Adela é a resistência necessária para a existência do poder, brotando das camadas mais
baixas da relação de poder, surgindo silenciosamente, mas tomando conta dos espaços,
herança deixada pelo pai, Adela, que não dispõe de dote, se encontra com Pepe às
escondidas, desobedecendo todas as regras sociais e familiares, não desejando ser uma
mulher casada, como ditam as normas, mas satisfazendo seus desejos, obedecendo só a
si mesma.
quanto destoa de suas irmãs e, desrespeitando as regras, respeita a si mesma. Não quer
que ―suas carnes‖ fiquem como as das demais. Adela não quer se conformar com a sina
de suas irmãs, não aceita a condição que lhe é imposta por Bernarda, e é quem expressa
sua ânsia de sair para a rua, na busca pela liberdade, e não cogita em nenhum momento
o casamento com Pepe, mas sim a realização da paixão por ele. Adela é a
insubordinação e a busca pela liberdade que o autor propõe em sua obra e o grito dela,
no trecho transcrito acima, que diz: ―eu quero sair‖, é o grito daqueles que não queriam
221
mais estar subordinados às amarras sociais, aos olhos e julgamentos dos outros, e em
A ditadura, que Lorca viveu no governo de Primo de Rivera, que era uma
ameaça próxima vinda de Portugal sob o comando de Salazar, nos anos de 1930, ficava
ainda mais forte nos governos fascistas da Europa. Para o controle da sociedade, no
manifesta, como este reage ao que lhe é imposto. E esse controle do corpo do outro
O domínio sobre o corpo. Essa é uma das medidas mais importantes para a
subordinação de alguém, seja pela restrição física, seja pela mutilação simbólica que
dilacerado com suas forças dilaceradas. São mulheres infelizes que em nenhum
coloca seus desejos não realizados, suas frustrações, como consequência de sua
Em oposição a ambas, Adela não aceita que lhe ditem ordens e toma para si
o governo de seu corpo, satisfaz seus desejos e não aceita os jogos sociais, afirmando
que seu corpo será de quem ela quiser. Adela é, sem dúvida, a personagem mais
222
revolucionária da peça, e de todo o teatro lorquiano, e pode ser considerada como a
com o casamento de Angústia com Pepe, afinal a irmã, considerada velha, não resistiria
ao primeiro parto, e assim, ―Pepe fará o que fazem todos os viúvos desta terra: casa com
a mais jovem, a mais bela‖61, como aconteceu na casa de Frasquita, fato relatado no
início do capítulo. Adela é movida pela satisfação de seus desejos e tem consciência de
que a liberdade que experimenta é um incômodo não apenas para sua mãe, a quem tem
de obedecer, mas também incomoda suas irmãs, que não conseguem, ou não querem,
Adela: [...] Não é por cima de você, que é uma criada, mas por cima
de minha mãe que saltaria para apagar esse fogo que tenho aceso entre
as pernas e a boca. O que quer que eu faça? Que me feche no quarto e
não abra a porta? Que não durma? Sou mais esperta, Pôncia! Vem ver
se pode agarrar a lebre com as mãos.
Pôncia: não me desafie, Adela, não me desafie. Porque eu posso
gritar, acender luzes e fazer com que os sinos toquem.
Adela: Traz quatro mil foguetes e acende todos em cima do estábulo.
Ninguém pode evitar que aconteça o que tem que acontecer (ato II).
Adela assume que saltaria sobre a mãe e sobre toda a sociedade que ela
representa para saciar seus desejos. Enquanto suas irmãs obedecem às normas externas,
a filha mais nova de Bernarda obedece apenas suas paixões, as irmãs trancam em seus
quartos seus desejos e suas vontades, que lhes tiram o sono, e se confundem não apenas
com suas naturezas individuais, mas com toda a natureza62. Pôncia, quando se vê
desafiada, e desafiadas, as normas sociais que ela mesma obedece, ameaça tornar
público o caso de Adela e Pepe, fazer com que os sinos toquem para que se saiba que
61
Fala de Pôncia. LORCA, 2000, p. 51.
62
Martírio: Noite passada, não pude dormir com tanto calor.
Amélia: Eu também.
Madalena: Levantei para me refrescar. [...]
Pôncia: era de madrugada e subia fogo da terra (segundo ato).
223
Adela é diferente, é uma estrangeira dentro da casa, do vilarejo, da sociedade que
mantém a todos sob severa vigilância, enquanto Adela tem a audácia de desobedecer.
―Ninguém pode evitar que aconteça o que tem que acontecer‖, diz Adela a Pôncia, não
importa que a família ou a sociedade se voltem contra ela, Adela assume seus desejos, a
força arrebatadora dos instintos, e com eles, se lança em direção ao destino trágico,
inexorável.
Adela: não aguento mais esta casa depois de haver provado o sabor da
boca de Pepe. Serei o que ele quiser que eu seja. Todo o povo contra
mim, queimando-me com seus dedos de fogo, perseguida pelas que se
dizem decentes, coroada de espinhos como fazem com as amantes de
homens casados (ato III).
ela anseia e que sua sociedade recrimina, proíbe, julga. Havendo provado o sabor da
boca de Pepe, Adela diz que não pode mais viver na casa de Bernarda, e isso quer dizer
saciar suas vontades. Ao sentir o gosto da liberdade, junto com o gosto de Pepe, Adela
sabe que não pode mais ser prisioneira dos muros e das ordens da sua mãe, e que sua
insubordinação a torna alvo de toda a sociedade, que lhe julgará com regras morais, com
fogueiras simbólicas e crucifixações quase que reais. A filha mais nova de Bernarda não
apenas desobedece às ordens, mas faz o caminho, ela mesma, da luz para a escuridão,
do branco para o preto, do sagrado expresso na casa para o profano nos encontros
escondidos com Pepe, ou pensando de outra forma, uma brincadeira com o mito de
Eurídice, que tenta sair do inferno para ir para o mundo dos vivos.
Mas, assim como Eurídice não consegue sair do inferno, Adela também não
chega a sair dos domínios de Bernarda e se lança a um fim trágico: se suicida ao pensar
que Pepe havia sido morto por sua mãe. Adela se engana, Pepe havia fugido, e com
224
nesse equivoco e morte Adela se torna a Julieta da obra de Lorca, uma mulher que não
aceita viver sem sua paixão, nem sob os comandos de Bernarda. Porém, o escritor não
escreve uma tragédia baseada no amor a cria uma Julieta sem Romeu, nem há duas
famílias rivais, mas o drama das Espanhas em conflito, prestes a entrar em guerra e em
Bernarda, Maria Josefa. A anciã também vive subordinada à tirania de sua filha, que
impõe à Maria Josefa a mesma vida que impõe às filhas: vigilância severa,
aprisionamento e opressão; e tem com a mãe a mesma preocupação que tem com suas
filhas: as relações com o mundo externo a casa, os olhos, ouvidos e boca dos outros. Se
as filhas têm sua liberdade alienada por ainda serem solteiras, o caso de Maria Josefa é
outro: a mãe de Bernarda é tida como louca e assim a matriarca das mulheres também
assim como muitos outros dramaturgos já haviam usado a loucura como recurso cênico
em tragédias e comédias desde o século XV63. Lorca teve como inspiração Shakespeare
— e como ele mesmo diz, cria a última Julieta romântica em O público — e Cervantes,
que Lorca montou com a companhia mambembe La Barraca, mas a loucura que
Federico cria difere da loucura de seus antecessores. ―Na literatura do começo do século
63
Como esclarece Foucault em História da Loucura na Idade Clássica.
225
XVII ela ocupa, de preferência, um lugar intermediário [...] ela autoriza a manifestação
lugar que a loucura ocupa, que Lorca cria sua Maria Josefa.
Maria Josefa é louca desde o início da peça, faz poucas aparições, mas
cheiro de tragédia. E assim como a loucura da mãe de Bernarda não é explicada, como
se não importasse seu ponto de partida, tampouco importa seu ponto de chegada. O que
importa é o papel que a loucura de Maria Josefa tem em relação à razão imposta por
Bernarda e acatada por suas filhas. Dessa forma, a loucura da mãe de Bernarda não é
aquela que vem como castigo supremo, como última felicidade ou como meio de
salvação do mundo, mas toma a cena como crítica e detentora da verdade que ninguém
quer ver, ou não se atreve a falar. Com rápidas aparições e falas que mesclam a
realidade da casa com o imaginário da personagem, Maria Josefa anuncia os desejos que
pulsam nas filhas de Bernarda, afronta o poder da razão da matriarca com o poder de
sua loucura que, na insana coragem do louco, expressa o precioso saber que pouco tem
a audácia de ter.
Se, para Bernarda, era perigoso que o mundo fora da casa exercesse alguma
influência sobre suas filhas, com relação a sua mãe, o medo era que ela revelasse a casa
ao mundo além dos domínios da matriarca. Sob esse domínio também está a
recurso do escritor em colocar em cena uma mulher mais velha tomada pela loucura, e
assim, os olhos de Maria Josefa, que detêm a sabedoria dos mais velhos, que têm
elementos para ver e denunciar o que está sufocado nos quartos da casa, são os olhos do
226
Saber e proibição são as principais características da loucura de Maria
Josefa, e é justamente por isso que Bernarda se empenha muito para que a voz da mãe
Bernarda: fica com ela e cuida para que não se aproxime do poço.
Criada: não tem medo que se atire?
Bernarda: não é por isso... lá as vizinhas podem vê-las de suas janelas
(ato I).
Bernarda quer ocultar o que acontece em seu domínio, com os corpos que
julga serem sua propriedade, assim como os bens da família, mas ―por um estranho
paradoxo, aquilo que nasce do mais singular delírio já estava oculto, como um segredo,
como uma inacessível verdade, nas entranhas da terra‖ (Foucault, 2005, p. 22). Nos
delírios de Maria Josefa, são entregues os segredos da casa de Bernarda, como loucura a
verdade é dita para quem puder ouvir, e a comunicação dessa verdade é uma ameaça
para a matriarca, pois é como a abertura das janelas e portas que ela zela por manter
fechadas.
O papel de Maria Josefa é importante não apenas por afrontar Bernarda, mas
por dar voz aos sentimentos das filhas da matriarca, além de dizer a verdade percebida
por Pôncia, mas ignorada por Bernarda: ―Porque nenhuma vai se casar. Nenhuma!‖
(Maria Josefa, ato I). Maria Josefa, embriagada em sua loucura, vê que nenhuma mulher
da casa vai se casar, vai sair da masmorra em que são encarceradas, vai gozar de algum
prazer ou liberdade. A velha louca sabe a prisão à qual está submetida junto com as
outras que não se casarão nunca, mas o que é considerado como loucura em Maria
Josefa também se manifesta nas filhas de Bernarda. Essas ―mulheres sãs‖ agem de outra
maneira, reprimindo suas paixões, dando vazão aos sentimentos com ações sorrateiras,
frases com segundas intenções e declarando uma guerra muda umas contra as outras.
227
Criada: é que são más.
Pôncia: são mulheres sem homem, somente isso. Nestas questões se
esquece até o sangue (ato III).
Se Maria Josefa é vista como louca por não reprimir o que pensa e o que
e o que querem estas são consideradas más, afinal, é preciso encontrar uma razão para
as ações e palavras que fogem das normas sociais. Os pensamentos e desejos são vistos
loucura. A Criada, que tem acesso superficial às relações das Alba, vê as filhas como
más, mas Pôncia, que serve Bernarda há trinta anos, percebe que são apenas mulheres
com desejos reprimidos, paixões amputadas, corpos e mentes encarcerados, mas não
domesticados.
Maria Josefa sabe que é uma das mulheres sem homens da casa de Bernarda
e, assim como as outras, tem sede de liberdade e prazer. Em diversas falas, a velha louca
atitude das filhas frente às chamadas vindas de fora evidencia o modo angustioso como
esse dentro de casa é vivido por elas, como acontece a Maria Josefa. O verbo sair, com
2008, p. 153).
Maria Josefa: fugi porque quero me casar, porque quero me casar com
um homem maravilhoso da orla do mar, pois os homens daqui fogem
das mulheres.
[...]
Maria Josefa: não, não me calo. Não quero ver estas mulheres
solteiras, impacientes por casar, fazendo em pó o coração, e eu quero
a rua. Bernarda, eu quero um homem para me casar e ter alegria (ato
I).
228
Fugir para a orla do mar. Sair do agreste que é a vida nas secas terras do
vilarejo e da seca vida na casa de Bernarda. Maria Josefa deseja o que as outras
calar, não aceita calar seus desejos nem seu saber. A velha vê as mulheres ―fazendo em
pó o coração‖, pois apenas com os olhos de louca pode ver o vazio da existência das
netas. Sendo esse vazio, parcial ou totalmente criado por Bernarda, essa percepção de
Maria Josefa passa a ser uma ameaça para a soberania da matriarca, pois a avó diz o que
as netas não conseguem assumir: que o que elas querem é a paixão, a vida, a água que
mata a sede insaciável da vida. A loucura não revela apenas o que há de secreto na casa
de Bernarda, mas vai além: coloca em questão os valores morais impostos pela
Maria Josefa diz o que quer e o que sabe, anunciando final sangrento e Pepe
devorando a todas, inclusive Bernarda, que é obrigada a ver que não é tão onipotente
quanto crê, que não controla absolutamente a vida de suas filhas — e a vida de Adela
escapa das mãos da Bernarda. ―Tal é a pior loucura do homem: não reconhece a miséria
em que está encerrado [...] não saber que parte da loucura é sua. [...] Pois se existe
(Foucault, 2005, p. 33), e assim cabe perguntar: quem de fato perdeu a razão? Maria
que o único acesso a essa sabedoria perfeita, a que chamamos a cidadela da felicidade, é
229
através da loucura‖ (Erasmo apud Foucault, 2005, p. 33), essa poderia ser uma das falas
pode-se relacionar uma peça de caráter tão opressor com a opressão do momento vivido
pelo escritor, entendendo que ele se referia ao seu tempo, à sua sociedade, à falta de
liberdade vivida naqueles tempos. Dessa maneira, Lorca se coloca no papel do louco,
dos poucos que enxergam a verdade e que têm coragem e força de não se calar. Para os
que se orgulham de sua sanidade, perder a liberdade é apenas um dos males possíveis, e
A tirania é feminina
acredita controlar tudo que acontece embaixo de seu teto. A personalidade que o
dramaturgo confere a Bernarda não apenas determina todas as ações da peça, como
também traz em si uma forte carga de símbolos sociais que certamente são os alvos da
crítica do poeta. Bernarda é mãe, mas não apresenta traços maternais em nenhum
momento da obra. Muito pelo contrário: assim como sua casa em nada se parece com
64
Ideia extraída de História da Loucura, onde Foucault relaciona a substituição do tema da morte pelo
tema da loucura na literatura até o século XV.
230
general, dando ordens e aplicando penas àqueles que não as cumprem exatamente a seu
gosto; um cão feroz prestes a atacar caso algo saia do lugar. Em eterna vigilância,
Bernarda é a personificação da tortura, isso graças à sua obsessão pela honra e pela
imagem que ela quer que tenha sua família. Para que nada saia de seu controle, a
matriarca assume postura despótica, autoritária, bruta e com neurótico controle sobre os
corpos de suas filhas e de sua mãe para não pôr em risco a castidade e a moralidade de
―Não pense que pode comigo. Até que saia desta casa com seus pés,
mandarei no que é meu e no que é seu‖ (Bernarda, ato I). Nesta fala, Bernarda diz a
Angústia, filha mais velha e a única que tem dote, que tanto a filha quanto o que é dela
quando ela sair da casa de sua mãe com seus ―próprios pés‖, ou seja, quando Angústia
se casar — essa seria a única maneira de qualquer filha de Bernarda sair com os
próprios pés de sua casa. Filhas são bens, moeda de troca para Bernarda. Isso se explica
Lorca descobre o que há, de fato, atrás daquela doce imagem. E chega
até o final, pondo em destaque como essas mães, que tão ferozmente
defendem e perpetuam a família patriarcal, são também, ainda que não
saibam, suas primeiras vitimas [...] a perpetuação da instituição
familiar assim entendida, responde, em último caso, à perpetuação da
sociedade em sua estrutura classista (2008, p. 116).
A maneira com a qual Bernarda trata as criadas e fala dos pobres é uma das
bases para que Domenech e outros críticos vejam a matriarca como uma representante
231
da estrutura classista vigente na sociedade que o escritor quer criticar. Na maneira com
a qual Bernarda conduz a vida de suas filhas, também aparecem traços importantes da
Pôncia: [...] Martírio está apaixonada,... Por que não deixou que se
casasse com Enrique Humanas? Por que no mesmo dia em que ela
viria até a janela mandou um recado para que não aparecesse?
Bernarda: E faria tudo de novo mil vezes. Meu sangue não se junta
com o dos Humanas enquanto eu for viva. Seu pai foi um homem do
campo, inculto.
Pôncia: para que esse orgulho?
Bernarda: tenho porque posso... (ato II)
Humanas foi frustrado por causa da intervenção da matriarca, que trata a vida de suas
filhas como se fosse um joguete de suas vontades. Neste joguete, Bernarda diz a Pôncia
que seu ―sangue não se junta com o dos Humanas‖, enquanto ela for viva, pela origem
humilde da família. A matriarca julga que pode ser orgulhosa e não aceitar que sua
tanto dentro de casa, quanto na sociedade. Mas talvez esse orgulho de Bernarda não
tenha tanto fundamento, como indica a conversa das empregadas, logo no começo da
peça:
Pôncia: Claro que não lhe invejo a vida. Dela são cinco mulheres,
cinco filhas feias, tirando Angústia, a maior, que é filha do primeiro
marido e tem seu quinhão. As demais, muita renda bordada, muitas
camisolas de linho, mas pão e uvas por herança.
Criada: quem me dera ter o que elas têm.
Pôncia: ... cova na terra.
Criada: é a única terra que deixam para os que não têm nada (ato I).
232
Pôncia diz que a única das filhas de Bernarda que tem algum bem é Angústia, quanto às
outras só lhes resta o orgulho da matriarca como bem, orgulho trajado de renda e linho,
mas que na verdade é alimentado por pão e uva. Pôncia não inveja Bernarda, pois sabe
que o que de fato Bernarda tem não significa tanto e que seu poder não é tão forte
quanto ela pensa. Mas para a Criada, o pão e as uvas são bens invejáveis para quem
possui apenas a cova na terra, a parte que cabe aos pobres no grande latifúndio espanhol
Esse breve diálogo expõe uma questão muito forte em seu país. A Espanha
da década de 1930 era um país majoritariamente rural, com grande parte da população
encontrava fortemente temerosa de uma possível reforma agrária defendida pela Frente
Popular65. Tal temor foi importante para que o setor mais conservador da sociedade se
— lembrando que o próprio pai de Lorca era um importante latifundiário. Lorca não
ficou indiferente a tal situação social e econômica da Espanha, e Gibson comenta que
não pode ser por acaso que, no momento em que a guerra civil está no
ar, Lorca leve à cena o tema da mulher despótica, com traços de
inquisidora, profundamente hipócrita, cuja única razão de ser descansa
na supressão — em nome de um falso e ultrapassado conceito de
honra, baseado mais que nada no medo do que dirão — das liberdades
pessoais, assim como na dogmática imposição da mentira, da ―versão
oficial‖, frente às verdades (GIBSON, 1987, p. 442).
De fato, como disse Gibson, não foi por acaso que o autor criou uma
personagem despótica, com ares inquisidores, justamente nos tempos em que o país já
65
Coligação partidária formada entre os partidos republicanos de esquerda, socialistas e comunistas.
233
A casa de Bernarda Alba o escritor coloca críticas à sociedade e seus padrões
Assim, são nítidas as críticas que o autor leva à cena: o despotismo que vigorava no
Biênio Negro, aos ares inquisidores que saiam das igrejas inundando todo o país e que
Lorca.
mentiras construídas e expostas a qualquer preço. Foi para manter as aparências que a
matriarca não aceitou que Martírio se casasse com Enrique Humana. O suicídio de
Adela, como será dito adiante, é outra verdade que Bernarda quer esconder, escondendo
também o fato de que sua filha não era mais virgem, mantendo a ―versão oficial‖, para a
sociedade, de que sim, que Adela morreu casta. Para que ninguém saiba a verdade, a
matriarca impede que suas filhas e sua mãe tenham contato com o mundo fora de casa.
―Cada um sabe o que se passa dentro de si. Não me intrometo nos corações,
mas quero boa fachada e harmonia familiar. Entende?‖ (Bernarda, ato III). Para manter
individualidade destas está apenas em saber o que se passa dentro de si. Mas, para além
fachada familiar, que fica ainda mais clara com a morte de Adela. E para manter as
234
aparências, a própria matriarca se submetia silenciosamente a um casamento de traições
Pôncia deixa claro: Bernarda é tirana com todos os que lhe rodeiam. Desde
que o pai da matriarca morreu, Bernarda passou a dominar as vidas de suas filhas e
marido e a impor a eles sua maneira de viver: passando sempre a imagem de que são os
mais asseados, os mais decentes, e ela, a mais altiva. Bernarda gosta de ser vista como
quem detém o controle, o centro do poder de sua casa, de sua família, ressaltando a
onde o homem tem mais liberdade do que a mulher, a Criada fala sobre o marido recém-
falecido de Bernarda: ―não voltará a erguer minhas anáguas‖. A tirania da matriarca não
alcança os desejos, e ela sabe disso, mas sua obsessão pela aparência da família passa a
não permitir que ela veja situações que não só desafiam seu poder, mas também
maculam a imagem social que Bernarda criou. Seu marido bolinava a Criada, suas filhas
travam um duelo entre si, e tudo isso sob os olhos que julgam ver tudo.
235
Pôncia, a governanta, faz contraponto com Bernarda. As criadas das obras
de Lorca apresentam características que se repetem em Pôncia: servidão por longos anos
à mesma casa, o que lhes concede entrada nos espaços mais privados da família;
mulheres astutas, apesar de serem sempre de origem humilde; tom de alcoviteiras que
Pôncia, serva de Bernarda há trinta anos, como ela mesma diz66, e dessa maneira é quem
percebe a ―tormenta em cada quarto‖ da casa, como ela mesma alerta a matriarca67. E a
governanta quem de alguma forma estabelece um diálogo com a matriarca e diz o que
vê e pensa — apesar de que, no final das conversas, Pôncia sempre tenha de se submeter
ser o mais velhos de quatro filhos de uma família rica contribuiu para que os cuidados
dedicados a ele viessem, na maioria das vezes, de suas primas e das criadas. A
proximidade de Lorca com as criadas de sua família era inquestionável, e ele mesmo
assumia a importância destas em sua formação pessoal: ―O que seria das crianças ricas
cidade‖ (LORCA, 1974, p. 1011). E, neste mesmo sentido, é Pôncia quem dá às filhas
66
―Trinta anos lavando seus lençóis; trinta anos comendo suas sobras‖ (ato I).
67
―Vê este silêncio? Há uma tormenta em cada quarto‖ (ato III).
236
Pôncia: Era muito escuro. Vi aproxima-se e chegando disse: ―Boa
noite‖. ―Boa noite‖, eu respondi, e ficamos calados por mais de meia
hora. Eu suava por todo o corpo. Então Evaristo se achegou, se
achegou até quase atravessar as grandes da janela e disse em voz
baixa: ―vem, deixa eu te tocar!‖ (Todas riem).
[...]
Pôncia: Em seguida, comportou-se. Em vez de outra coisa, criou
pintassilgos até morrer. Convém, solteiras, saber que os homens, após
quinze dias do casamento, trocam a cama pela mesa e logo a mesa
pelo bar, e quem não se conforma apodrece chorando pelos cantos.
Amélia: você se conformou?
Pôncia: Eu pude com ele!
Martírio: é verdade que bateu nele algumas vezes?
Pôncia: sim, e por pouco não o entortava (ato II).
social do qual elas fazem parte. Esta diferenciação entre pessoas ―mais instruídas que
falam e dizem e movem as mãos‖, como coloca Pôncia, é, sutilmente, uma maneira que
o escritor usa para mostrar em um primeiro momento que Pôncia não deixa de
marido. A governanta diz, de maneira ainda mais direta, o que Bernarda já havia dito à
Angústia, que não há felicidade no casamento e que quando se casa, a mulher deve se
casamento. Àquela que não se conforma, não lhe resta outra alternativa a não ser chorar
pelos cantos; como disse Bernarda, conformando-se a infelicidade será menor. Porém,
em seguida, Pôncia conta que ela não se conformou, respondendo com agressividade a
uma situação que provavelmente lhe agredia. De maneiras indiretas, Pôncia sinaliza às
filhas de Bernarda que há maneiras de escapar às imposições sociais, como quando ela
aconselha Adela a esperar pela morte de Angústia para então se casar com Pepe, ou na
fala acima, na qual assume que reagiu ao marido, que pode com ele, ou seja, não se
sujeitou a uma relação de submissão. Ela pode com o marido. E assim ela dá às filhas de
237
A governanta desenha o perfil de sua ama, o que nos mostra que Pôncia
pode ser a verdade sobre sua ama e sobre o que acontece nos domínios da casa, em seus
existência das filhas de Bernarda, Pôncia se junta à personagem de Maria Josefa, sendo
A governanta nos mostra Bernarda é sagaz para dirigir aos outros olhares
inquisidores, mas não para ver o que acontece dentro de seus domínios. A matriarca não
quer ver o porquê de Martírio ter roubado o retrato de Pepe Romano, noivo de sua irmã
mais velha; afinal, não ver o problema lhe poupa ter de resolver o conflito existente
entre suas filhas. Bernarda não se intromete nos corações, o que lhe importa é manter a
Pôncia: (com ódio envolto em suavidade): Martírio vai esquecer de tudo o que houve.
68
Como ela mesma diz: “cada um sabe o que se passa dentro de si. Não me intrometo nos corações,
mas quero boa fachada e harmonia familiar. Entende?” (ato III).
238
Bernarda: Se não esquecer, pior pra ela. Não acredito que ―algo muito
grave‖ esteja acontecendo aqui. Não está acontecendo nada (olha para
Pôncia). Isso é o que queria! E se acontecer algum dia, fique segura de
que não irá além das paredes (ato II).
Bernarda se recusa a ver que ―algo muito grave‖ esteja acontecendo em sua
casa, se recusa a ver o conflito silencioso que estava se formando dentro de sua casa e
final da fala acima, a matriarca confirma que sua preocupação é a imagem que a família
apresenta para a sociedade, assim, mesmo que algo aconteça, ficará fechado, como
acontece com todas as mulheres da casa. Com isso, Bernarda nos mostra que as normas
sociais se impõem às vontades individuais de maneira extrema, e que ela será sempre
uma guardiã da imagem de sua família, não importando o quão totalitária pode ser sua
postura.
não pode dominar o destino, mas a ama, em seu sentimento de onipotência, acredita que
alertada de que suas filhas ―subirão ao telhado‖ quando tiverem um sopro de liberdade,
acredita que sua valentia, como diz Pôncia, pode controlar a situação.
239
Pôncia: já não posso fazer nada. Quis deter as coisas, mas estão me
assustando muito. Vê este silêncio? Há uma tormenta em cada quarto.
No dia que estourar, arrastará todas nós. Disse o que tinha que dizer.
Criada: Bernarda acredita que ninguém pode com ela. Não sabe a
força que tem um homem entre mulheres sozinhas (ato III).
mesmo silêncio imposto por Bernarda, prova da obediência de suas filhas e da soberania
da matriarca. Mesmo com sua postura inquisitiva, a mãe não percebe o mal-estar que
toma conta de suas filhas, negando-se a ver a disputa travada entre elas pela figura de
Pepe. No interior da casa há uma tormenta prestes a eclodir e que acaba sendo sufocada
pelo poder instituído, ocupado pela matriarca. Porém, por não querer perceber (como
coloca Pôncia) a tempestade que está se formando frente aos seus olhos, Bernarda
permite que o conflito se instaure de fato. Talvez Bernarda relute em assumir que as
coisas não seguem o rumo que ela impõe, pois isso significaria assumir que ela não tem
total controle, como diz ter. Bernarda prefere sufocar as filhas e até mesmo vê-las
morrer a mudar sua maneira de conduzir a família; para a mãe, manter as aparências é
que encarcera suas filhas e sua mãe, Bernarda está presa a convenções e tradições que
sequer se permite questionar. O fato é que a matriarca não impõe simplesmente a sua
vontade às filhas, mas impõe as regras sociais, de maneira cega, visando apenas ao
reconhecimento de seu domínio sobre as filhas. Esse é todo o seu poder. Dessa maneira,
Bernarda: E não quero choro. A morte deve ser encarada frente a frente. Silêncio!
(Para outra filha) Mandei calar!Lágrimas, quando estiverem sozinhas. Nos
afundaremos todas em um mar de luto! Ela, a filha mais nova de Bernarda Alba,
morreu virgem. Ouviram? Silêncio, já disse! Silêncio! (ato III)
240
O contexto da fala acima é que, tentando dissuadir Adela do propósito de
manter seu romance com Pepe, Bernarda finge tê-lo matado. Desesperada, Adela
também, a última palavra pronunciada por Bernarda na peça, certamente não por acaso.
sociedade. As verdades não podem ser ditas, os sentimentos, as vontades, tudo deve ser
que haja silêncio para que não haja observação dos outros, daqueles que
excepcionalmente entraram na casa de Alba por ocasião do luto de seu marido; no final
da peça, a mãe ordena que o silêncio se instaure entre suas filhas para imprimir uma
mentira, para que os outros não saibam o que de fato aconteceu dentro de sua casa.
mais marcantes da matriarca, que justifica suas ações, uma vez mais, pela honra e a
imagem da família perante a sociedade em que está inserida. Por isso o luto, por isso o
silêncio.
Bernarda tem mentalidade da elite que não quer se misturar com as camadas
pois o próprio pai do poeta, que era um poderoso fazendeiro de ideias liberais, teve
vários conflitos na cidade com os fazendeiros de direita. Assim, é muito provável que
Lorca tenha criado Bernarda como um retrato de seu tempo e de sua sociedade: Espanha
no início do século XX, lugar e época não apenas classistas, mas baseada em
estereótipos, uma sociedade que Lorca certamente queria ver terminar, afinal sobre ele
também recaíram consequências de estar fora das normas estabelecidas. Com Bernarda,
241
Lorca leva ao palco, de maneira escancarada, a mentalidade reacionária da velha direita
espanhola.
mais clara, refere-se à realidade da Espanha dividida em muitas, como são muitas as
condutas de suas filhas, pois aquela que fosse contra a vontade da mãe seria sua
inimiga. Ao longo da peça, Bernarda se comporta menos como mãe, e muito mais como
carcereira, como dona de um rebanho, tendo cuidado para que nenhuma de suas crias
saísse do caminho pré-estabelecido. Quem não está com ela, está contra ela, e isso inclui
suas filhas. Para a matriarca, que é o centro do poder da casa, não há espaço para
divergências, suas ordens são soberanas e ―uma filha que desobedece‖ se converte em
suas ideias e sentimentos. Algemas e ódio são as respostas que a matriarca tem para
suas filhas quando suas vontades vêm a tona, não podendo mais ser represadas. A
matriarca não acreditava que a tormenta arrebentaria, certamente porque não acreditava
na força que as vontades e a liberdade reprimidas podiam tomar, porque acreditava que
242
podia com tudo, até com aquilo que se passa dentro de suas prisioneiras. Quando eclode
a disputa por Pepe, que envolve três das cinco filhas, a matriarca é obrigada a aceitar
que seu domínio não atinge todas as esferas da vida das mulheres da casa, que há muita
coisa que acontece em seus domínios que está fora de seu controle. Ter que assumir a
fragilidade de seu poder gera ódio em Bernarda, e é com violência e mais opressão que
―Terei que sentar a mão nelas! Ah, Bernarda, não esqueça seu dever‖. A
a situação sai do controle de Bernarda e, sem dúvida, essa era a realidade que o escritor
presenciou em sua Espanha, desde a Monarquia do início do século XX, passando pela
conferências, entrevistas e obras, ao lado daqueles que eram massacrados pelo poder e
civil contra os ciganos, que foram o primeiro símbolo usado pelo autor para tratar
daqueles que tinham sua liberdade cerceada por valores sociais, chegando ao embate
físico. Já em Poeta em Nova York, em muitos poemas o escritor se coloca solidário aos
negros, vítimas do racismo norte americano, enquanto que em Sonetos del amor Oscuro
são os homossexuais que ganham, mais claramente, espaço na obra de Lorca. Em suas
obras dramáticas, o escritor privilegia a mulher como eixo central, não apenas na
trilogia rural, mas também em peças como Mariana Pineda; Doña Rosita, la Soltera ou
relacionam aos ciganos, negros e homossexuais das obras poéticas por estarem
243
circundadas por papeis sociais marcados pela obediência, imposição da submissão,
silêncio e falta de liberdade, vivendo sob a vigília constante dos olhos da sociedade.
Bernarda Alba: uma leitura ―dupla‖ sobre os códigos simbolistas, e uma segunda
leitura, que é o foco aqui, sobre o estilo da obra e a leitura do conflito social e humano
que a peça leva à cena. Pelos vários aspectos da obra já analisados, não resta dúvida de
que Bernarda Alba seja um retrato crítico da sociedade que Lorca observou de perto, e
esse retrato age como uma lente de aumento sobre a opressão que a sociedade gera nos
de uma sociedade onde eles criam as regras em todas as esferas da vida dos indivíduos,
cena por meio de diálogos e referências feitas pelas personagens. Mesmo criando uma
peça com fortes referências andaluzas, é certo que ao autor interessa levar à tona
negócios, ―à margem da inclinação‖ dos indivíduos. Este último será uma relação-chave
244
Na repetição dos casamentos acordados a despeito do sentimento do casal,
Lorca certamente discute o caráter social e institucional que tomam as relações pessoais.
Assim como o casamento em Bodas de Sangue é um acordo entre os pais dos noivos
e Pepe em Bernarda Alba acontecerá por dinheiro, e a esse fato há referências a todo
amor romântico, ou uma simples convivência amorosa. Nas obras de Lorca, a paixão
normas impostos por ela, e o casamento nada mais é do que o acatamento de uma
função social.
Carlos Morla Lynch considera A casa de Bernarda Alba uma obra que é
―uma imagem austera e tétrica da dramática Castela, em um tom uniforme, que não
varia‖ (LYNCH, 1958, p. 439), graças à forte presença de características sociais dos
vilarejos da Espanha na obra, além da clara referência que o próprio Lorca coloca no
subtítulo da peça69. Porém, não é apenas aos vilarejos espanhóis que Federico faz
referência em sua última obra, e Bernarda Alba, na verdade, reflete a Espanha sob a
ameaça do franquismo. Lorca sempre se mostrou atento ao seu entorno, sensível aos
como meio de governo, como sua proximidade com o primeiro ministro Fernando de
republicano. A II República era vista como um sopro de esperança por liberdade após
69
―Drama das mulheres em aldeias da Espanha‖
245
anos de uma Monarquia Constitucional acostumada a fraudar a Constituição, seguida de
sete anos de ditadura de Primo de Rivera. Mas, além disso, a Espanha, assim como a
que a sufoca, embora desejoso de mudanças e liberdade. Bernarda poderia ser uma
agente da Guarda Civil, em prol da manutenção da imagem social e dos valores castos,
empregados e amos de maneira crítica. Tais passagens são interpretadas por alguns
críticos como críticas classistas, expondo as relações de opressão que se davam entre
patrões e empregados. Porém, ao mesmo tempo em que o escritor acusa os maus tratos
dos patrões, as más condições de vida dos empregados, o autor também coloca a relação
Pôncia: Trinta anos lavando seus lençóis; trinta anos comendo suas
sobras... maldita seja!
[…]
Mendiga: Venho atrás das sobras.
Criada: A porta dá na rua. As sobras de hoje são minhas.
[...]
Criada: Fora daqui. Quem disse que podiam entrar? (ato I)
Bernarda Alba, às relações trabalhistas que vigoravam na Espanha dos anos de 1930,
mas o escritor vai mais além, e o que ele denuncia em sua obra é a relação de
246
classes. Na fala acima, por exemplo, Pôncia diz que há trinta anos come as sobras de
Bernarda, o que indica a maneira como a patroa trata seus criados; em seguida, a Criada
que pede as sobras — retratando o salário de fome que recebiam — repete com a
Lorca tinha mais uma visão social do que classista da situação que vivia
grande parte da população da Espanha, ponto de vista que ele mesmo afirmou em uma
entrevista: ―eu sempre serei partidário dos que não têm nada e até a tranquilidade do
nada lhes é negada‖ (dez. 1934). Lorca não se filia a nenhum partido político, nem se
declara favorável a qualquer ideologia, porém isso não o aliena da situação política. O
escritor sempre fez questão de expor sua preocupação com a realidade sociopolítica em
Bernarda: ... Os pobres são como os animais; parece que foram feitos
de outras substâncias.
1ª mulher: Os pobres também têm suas penas.
Bernarda: Mas esquecem delas diante de um prato de grão-de-bico.
Uma jovem (com timidez): Comer é necessário para viver.
Bernarda: Na tua idade não se fala diante dos mais velhos (ato I).
A fala acima pode ser vista como respostas do dramaturgo à sua sociedade e
suas estratificações. Bernarda representa não apenas a classe alta de uma sociedade
engessada em suas regras arcaicas. A discussão que o escritor levanta não é apenas a da
relação entre classes, mas é sobre valores mais antigos, oriundos talvez de sociedades
miniatura da sociedade da qual se esforça para fazer parte, e por isso a reproduz. A falta
de liberdade imposta pela sociedade se estende ao âmbito privado pela constante vigília
de Bernarda sobre suas filhas. As mulheres da casa não poderiam apresentar qualquer
comentários maledicentes sobre sua casa, Bernarda confinava suas filhas e sua mãe.
espanholas mais opressoras, como a Igreja Católica. O teatro lorquiano tem como alvo
década de 1930 na Espanha, encontrava uma oposição tão forte quanto a imposição das
aniquilação dos indivíduos, constituindo-se como uma poderosa instituição que reitera o
umas contra as outras, assim reproduzem as amarras morais que a sociedade lhes impõe
e se colocam contra essas mesmas amarras. A obra de Lorca traz uma família de rivais:
Bernarda está contra as filhas, tolhendo suas liberdades e vontades, certamente como
também foi feito com ela; as filhas são rivais entre si por desejarem o mesmo homem ou
por desejarem algo que uma das irmãs tenha — seja o dinheiro de Angústia ou a
248
desejo de realização pessoal é a condição que ao mesmo tempo as distancia e as
aproxima.
quanto a Espanha da época reage com violência, com castigo, exclusão e morte. E
assim, antes que se cometa alguma transgressão, são tomadas medidas repressivas. Para
Adela, que é quem viola as normas da sociedade e da casa, e também um gozo para as
irmãs, que vivem em suas forças reativas. No segundo ato da peça, Bernarda e suas
filhas são surpreendidas por gritos que chegam da rua. Era a cidade que queria linchar
uma mulher, solteira, que havia tido um filho e, para ocultar a vergonha, matou a
criança:
Pôncia: [...] Vão arrastando a mulher rua abaixo. Pelos atalhos e pelo
olival, os homens vêm correndo, gritando até estremecer os campos.
Bernarda: sim, que venham todos com varas de oliveira e cabos de
enxada, que venham todos para matá-la.
Adela: não, não. Para matar não.
Martírio: sim, vamos atrás dela também.
Bernarda: E que pague a que pisoteia sua decência.
Adela: deixem que escape! Fiquem aqui, irmãs!
Martírio (olhando para Adela): que pague o que deve!
Bernarda (sob o arco): acabem com ela antes que cheguem os
guardas! Queime no inferno por seu pecado!
Adela (com as mãos no ventre): Não! Não!
Bernarda: matem a mulher! Matem a mulher! (ato II)
critério dos demais, Adela é a única mulher da casa que grita seu protesto quando o
povo quer matar a ―devedora‖, pois a filha mais nova de Bernarda, quando dá vazão a
sua ânsia por liberdade, torna-se um alvo da punição que ela vê cair sobre outra mulher.
Mas o castigo não coíbe Adela, pois ela é de fato possuidora de uma vontade de
potência que não lhe dá alternativa que não seja a de viver suas pulsões.
249
A cena acima anuncia ao desfecho trágico do drama das mulheres dos
povoados espanhóis. O envolvimento de Adela com Pepe, que já tinha sido anunciado
antes, agora insinua a possibilidade de ter gerado frutos, mas se, de fato, Adela estava
grávida, isso não é esclarecido. O que de fato importa nesta cena é mostrar a posição de
físico e emocional ao qual são submetidas, cada mulher à sua maneira e situação.
Apenas Adela e Maria Josefa enfrentam a tirania, mas são punidas por isso — a
marginalidade de sua loucura. Ambos os casos são linhas de fuga daqueles que se
a mais forte nesse sentido, pois a filha mais nova de Bernarda comete suicídio, dando o
250
Bernarda (entrando): vamos ver se pode ir atrás dele agora!
Martírio (entrando): é o fim de Pepe Romano.
Adela: Pepe! Meus Deus! Pepe! (Sai correndo)
[...]
Bernarda: (ouve-se um golpe). Adela, Adela!
Pôncia (perto da porta): abre!
Bernarda: Abre. Os muros não defendem a vergonha.
Criada (entrando): os vizinhos estão de pé!
Bernarda (em voz baixa como um rugido): abre ou ponho a porta
abaixo! (Pausa. Tudo fica em silêncio.) Adela! (Retira-se da porta.)
Tragam um machado! (Pôncia dá um empurrão e entra. Ao entrar, dá
um grito e sai. Para Pôncia: o que houve?
Pôncia (leva as mãos ao pescoço): nunca tenhamos este fim!
(As irmãs lançam para trás. A criada se benze. Bernarda dá um grito e
avança)
Pôncia: não entre!
Bernarda: Não! Não! Pepe, hoje pode correr, fugindo pela escuridão
das alamedas, mas algum dia vai cair! Despenduram Adela! Minha
filha morreu virgem! Levem para seu quarto, vistam seu corpo como o
de uma donzela. Não digam nada a ninguém! Ela morreu virgem.
Avisem que ao amanhecer os sinos baterão duas vezes.
Martírio: feliz dela que o teve.
Bernarda: e eu não quero choro. É preciso encarar a morte de frente.
Silêncio! (À outra filha). Eu disse para calar a boca! (À outra filha).
Lágrimas somente quando estiver só! Nos fundiremos todas em um
mar de luto. Adela, a filha mais nova de Bernarda, morreu virgem.
Escutaram? Silêncio, silêncio eu disse! Silêncio! (ato III) [Desce o
pano].
dominam a casa e suas moradoras. Contra todas, mãe e irmãs, a caçula anuncia que
expõe a todas que seguiu suas paixões, a despeito do que lhe era imposto, realizou seus
desejos que era o que de fato guiava sua vida. Direcionando sua vida à sua maneira,
Adela se suicida, pensando que sua mãe havia matado Pepe, e um segundo luto cai
sobre a casa de Bernarda. Martírio ainda diz o que pensa: feliz da Adela que teve Pepe,
que realizou sua paixão, diferentemente de suas irmãs. E mais uma vez, a matriarca se
mostra mais interessada na honra que aparenta ter sua família do que no que acontece
em seus domínios. Bernarda finaliza a obra impondo o mesmo silêncio que impunha no
251
início, dando a exata ideia de que nem mesmo o suicídio de sua filha pode alterar seu
modo de pensar. ―Adela, a filha mais nova de Bernarda, morreu virgem. Escutaram?
sociedade espanhola desde o final do século XIX mostrava que estava muito próxima de
um conflito. E assim como na peça o embate vem à tona e a Espanha vivencia três anos
de guerra civil que, ao final, leva o país a silenciar os indivíduos graças à instalação da
arcaica da população, nos longos lutos que se cumpriam na época, os olhos espiando a
rua por trás das janelas, forte curiosidade e sede de inquisição com relação a vida alheia,
sexualidade livre, mas, tanto em Bernarda Alba quanto em Yerma, o autor coloca não
Lorca não chegou a ver sua última obra encenada, mas pela reação
que Yerma provocou no público espanhol já se pode imaginar o que as vozes mais
conservadoras gritariam ao ver nos palcos mulheres ardendo de desejo tanto quanto os
252
solos quentes da Andaluzia no verão. Ou as respostas que seriam dadas às falas de
Adela, que se diz escrava apenas de sua paixão, assumindo a posse de seu corpo, a
despeito das ordens de suas irmãs, sua mãe e de toda a sociedade. Mas a Guerra Civil
Espanhola eclodiu antes, e com ela, a violência tomou lugar dos gritos da direita na
plateia dos teatros e respondeu ao próprio corpo de Lorca. E como fez Bernarda Alba,
253
Considerações finais:
Atualização permanente: Lorca na Espanha de hoje
pelo prof. José Luis Dader. Os sete meses de pesquisa no exterior foram fundamentais e
modificaram os rumos deste trabalho, por isso merecem uma descrição específica.
casa de Bernarda Alba — de García Lorca, e a análise externa estaria focada no período
histórico no qual o escritor viveu, dando especial enfoque para a Guerra Civil
mostrou como o mundo se inquietou não apenas com a obra, mas com a vida e com a
morte de Lorca. Além disso, percebi que não poderiam ser ignorados a influência dos
divide as opiniões dos espanhóis. Com isso, o presente trabalho passou a contemplar a
vida e a morte de Lorca não só como importantes para a análise de sua obra — afinal,
ele mesmo recusou o conceito de arte pela arte, como foi tratado no capítulo ―A política
na arte e na vida‖ — mas para entender as possíveis relações entre arte e política em
maior facilidade de trabalho nos arquivos localizados na cidade, que foram as minhas
García Lorca. O contato com estes arquivos foi fundamental para compreender o quanto
254
ainda se ignora, no Brasil, sobre a vida e a obra de Lorca. Além disso, realizei viagens
irmã do escritor, Isabel García Lorca, e atualmente mantida pelos herdeiros de Lorca:
seus seis sobrinhos. O arquivo da Fundação reúne muitos dos manuscritos da obra de
Lorca, desde seus primeiros escritos — datados entre 1917 e 1919 — até sua última
obra, A casa de Bernarda Alba; contém cerca de 280 exemplares das primeiras edições
outros países; mais de cinco mil publicações da obra de Lorca em espanhol e traduções,
obra de García Lorca; arquivo fotográfico; partituras dos estudos e criações musicais de
óleo e desenhos de Manuel Ángeles Ortiz, Salvador Dalí e Benjamín Palencia, até CDs
sobre o escritor70.
que foram feitos sobre ele em muitas partes do mundo. Estudiosos do mundo todo
mandam seus trabalhos para o arquivo da Fundação, o que a torna um grande ponto de
encontro entre aqueles que olharam e querem olhar para a obra de Lorca. A Hemeroteca
de Madrid teve papel fundamental para a análise externa. Neste arquivo encontrei uma
70
Mais informações http://www.garcia-lorca.org
255
Civil Espanhola, e trabalhos que analisam pontos de influência indireta sobre este
trabalho, como estudos sobre a Igreja Católica na Espanha e trabalhos a partir do viés
em Lorca, também viajei por algumas regiões do país a fim de conhecer a Espanha
geográficas e sociais me perdi pelos ―Laberintos para llegar a España‖. Passei por
com maior atenção, procurei por Lorca nas cidades onde ele viveu: Madri, Fuente
Fuente Vaqueros foi a cidade onde Lorca nasceu e pela qual o autor nutria
especial afeição, como ele mesmo declara em ―Discurso ao povo de Fuente Vaqueros‖:
―Tenho um dívida de gratidão com este formoso vilarejo onde nasci e onde transcorreu
minha feliz infância...‖ (LORCA, 2008, v.Vi, p. 380). Quando Lorca tinha onze anos,
sua família se mudou para Granada, mas o escritor continuou com a ligação a Fuente
Valderrubio, que na época de Lorca se chamava Asquerosa, também fez parte da vida
do poeta — que visitava alguns de seus parentes que moravam no vilarejo — e na obra
de Lorca, pois foi nele que o escritor se inspirou para escrever algumas de suas obras
Rosita, a solteira. Em Valderrubio está a terceira e menos conhecida casa dos García
256
Lorca, A Casa Museu de Valderrubio, que mescla passado e presente, mantendo o
aspecto rústico original ao mesmo tempo em que apresenta atividades interativas para os
visitantes.
parecer não ter relação com minha investigação, mas que foram essenciais para a
Semanas Santas e as Touradas, experiências que fizeram com que minha pesquisa
física. Mas, já na primeira aula, fui surpreendida por uma música que era um poema de
Lorca musicado. A partir disso fui investigar a relação entre Lorca e o flamenco, pois há
muitos temas flamencos baseados na obra de Lorca. Ao entrar no mundo flamenco pude
perceber o quanto há de flamenco nas criações lorquianas, seja pelo tom trágico que há
em ambos, ou pelo duende, espírito essencial para que haja flamenco e tragédia. Na
seu diretor, Joaquín San Juan, que me deu algumas pistas sobre essa relação, afirmando
que, no flamenco, as letras das músicas são elementos importantes, pois resgatam a
flamenco, segundo Joaquín San Juan, é contra-cultura, e ser gitano é um fato mais
cultural do que étnico, se dá pelo modo de vida, não pela descendência. Essa relação é
257
Cartaz do espetáculo de flamenco ―Poema do Cante Jondo‖, no qual poemas do livro homônimo de Lorca
são musicados e dançados.
cidade de Madri. Como Lorca, em muitos momentos de sua obra, fez referência direta
258
Assim, imaginei que seria fundamental participar de alguns ritos do catolicismo
espanhola não têm a mesma tradição que as procissões do sul, mas estão ganhando
política e tem focado grande parte de seus esforços em Madri. E, além das campanhas
promovidas pelas pastorais, as procissões de Semana Santa são momentos nos quais a
Igreja Católica reafirma com mais fervor seus dogmas e tenta reaproximar os fiéis das
força na Espanha no final do século XIX. Atualmente a Espanha conta com uma
Constituição, promulgada em 1978, que institui o Estado laico, tirando o ensino da mão
legalização da união civil de pessoas do mesmo sexo e do aborto, são reprovados pela
por pessoas que querem expor sua fé por meio de manifestações de compaixão e
monarquia, que na Guerra Civil Espanhola foi partidária de Franco, que encontrei nas
procissões.
Dor e sofrimento, como deve ser um rito católico. Mesmo com o frio de 8°C,
259
estratégicas para ver a procissão passar. Fiéis e curiosos esperam pra ver uma das
poucas vezes em que as imagens sagradas saem das igrejas, de suas paróquias. São
Virgens e Cristos que circulam de maneira imponente pela cidade — para alguns, com a
finalidade de abençoar e purificar das ruas da cidade, para outros, para serem vistas,
Deus cristão. Muitos dos que assistem choram. O sofrimento e a emoção têm que ser
expresso. Pessoas caminham descalças para pagar promessas e em sinal de devoção, são
os encapuzados nazarenos.
ato III), como ordenou Bernarda a suas filhas na morte de Adela; silêncio que simboliza
importante no ritual da procissão e, mesmo não se podendo ver seus rostos, nota-se que
muitos são reconhecidos pelos que estão assistindo. Parece que tapar rosto, ao contrário
procissão. É importante que os outros vejam a devoção dos fiéis; é o tema lorquiano dos
―outros‖ que a sociedade espanhola expressa nas procissões e ritos católicos públicos.
Em seguida, passa a imagem com seu alto peso sendo carregado por braços humanos —
que a fazem como aquele que carregou sua grande cruz. Depois da imagem sacra
passam pela multidão as pessoas que mantém e fazem parte da irmandade, todos bem
Como eu me posicionava mais ou menos uma hora antes da procissão, era comum que
eu conversasse com os fiéis que também esperavam, na maioria, pessoas de mais idade.
260
Em uma das procissões conheci a D. Aurora e nela encontrei a manifestação da Espanha
começou a se queixar que os jovens não são mais católicos, que o catolicismo da
Espanha não é mais o mesmo, e ela então ela diz ―na época do Franco não era assim‖.
grandes e bonitas eram as procissões na época dele. Ela tinha onze anos quando Franco
Perguntei se ela era republicana e ela disse que não; perguntei se ela era monarquista,
D. Aurora também falou que a mãe dela tinha sete anos quando estourou a
Guerra Civil, e começou a me contar os relatos das memórias da mãe, ainda viva. Falou
do horror generalizado que tomou conta de Madri, e que tinham que se esconder no
metrô. Ela comentou que a família dela saiu de Madri porque tinham terras onde
podiam cultivar alguma plantação e animais para não morrer de fome. E ela completou
que muitos que não podiam sair de Madri passaram fome, pois a cidade estava isolada,
sem mantimentos. Esse era o relato do outro lado da Guerra Civil Espanhola, o lado de
fora dos livros, mas que fala da mesma história de conflitos do capítulo ―Laberintos
261
A imagem da direita espanhola: à frente a cruz da Igreja Católica, ao fundo a bandeira da Espanha
monarquista.
262
263
264
Estaria Bernarda Alba ao fundo?
265
266
Procissão de Santa Sara Kali: a procissão relatada em Yerma, a procissão ―Cristo del
Espanha, por isso não pude presenciá-la. Mas, ao longo da pesquisa, acabei entendendo
a importância da fertilidade feminina para o povo cigano, tanto que um dos poucos
ícones que une ciganos de diferentes etnias é a devoção a Santa Sara Kali, a santa da
ciganos, e, assim, quanto mais filhos uma mulher tiver, melhor. Uma das piores pragas
para uma mulher cigana é desejar que ela não tenha filhos, pois, tradicionalmente, suas
vidas não têm sentidos sem eles, assim como expressou a personagem Yerma.
A tradição de devoção a Santa Sara Kali faz com que, no dia 24 de maio,
ciganos de muitas partes da Europa sigam até Saints Maries de la Mer (SMLM), sul da
França, para a procissão em homenagem à Santa. Reza a lenda que Sara, uma discípulas
ciganos levam a imagem da Santa Sara até o mar. As entradas da cidade de SMLM,
eles fazem festa nas ruas com rodas de música e dança em frente à Igreja. A Santa Sara
não é reconhecida pela Igreja Católica. Na nave principal da Igreja de SMLM ficam
duas Marias e a imagem da Santa Sara fica no porão, e grande parte dos moradores da
Os fiéis à Santa Sara a tratam com grande intimidade. Muita gente a beija e
abraça, dizendo que isso traz sorte; mulheres tocam a santa na altura do ventre. É em
busca de fertilidade que tantas mulheres vão até a Santa Sara. Antes da procissão, as
mulheres ciganas trocam a roupa da Santa — que todo ano ganha roupas novas — e os
homens ciganos levam a santa a cavalo até o mar. Após a procissão e durante a
267
madrugada, em volta de fogueiras, com mais rodas de dança e vinho. No dia seguinte,
tudo se desfaz e acontece a procissão das duas Marias, aquelas que ficam na nave
central da Igreja de SMLM, como em uma tragédia, na qual a ordem se refaz depois do
ápice trágico.
268
A busca pela fertilidade feminina
269
Touradas em Madri: Lorca declarou que acreditava que ―os touros é a festa mais culta
que há hoje no mundo; é o drama puro, no qual o espanhol derrama suas melhores
lágrimas e suas melhores bílis. É o único lugar onde se vai com a certeza de ver a morte
rodeada da mais deslumbrante beleza‖ (LORCA, 2008, v.VI: p.739). A afirmação faz
parte de uma entrevista concedida pelo escritor em 1936, mas antes disso Lorca já tinha
expressado sua admiração pela arte do toureio e uma de suas maiores expressões foi o
270
Em maio, mês de São Isidro, padroeiro de Madri, a cidade é tomada pela
domingo, e os valores das entradas variam de cinco a cento e trinta e cinco euros71. As
sociais Os turistas se aglomeram mais comumente nos setores mais caros, próximos à
arena. Escolhi um setor popular e pude contar com a companhia de apreciadores que me
mostraram sua visão sobre o ―rito‖ e suas etapas. Sem isso, em meio a minha
com três toureiros e cada um toureia com dois touros, somando seis duelos por tourada.
Mas o mais importante foi aprender os códigos que eu, como plateia, deveria expressar
As touradas são uma encenação trágica, onde o que importa não é o que
acontece ao touro, mas sim o que acontece por meio dele. É um rito que flerta com a
morte, que necessita dela para existir. Além disso, as touradas seguem mantendo, de
expressa pelas obras de Lorca. O silêncio, assim como nas procissões, é fundamental,
toureiro, que ele não se afaste do touro e do sangue me permitiram escolher o meu
toureiro preferido naquela noite e até apostar em qual seria o vencedor e poder gritar, a
71
http://asp.las-ventas.com/fotos10/precios_corrida.pdf
271
272
273
274
Entre Víznar e Alfacar – suposta localização da fossa de Lorca.
O local onde, supostamente, está a fossa de Lorca foi o local de mais difícil acesso entre
os lugares lorquianos que busquei. A dificuldade do acesso não se deu exatamente por
uma estrada intermunicipal — mas por não haver informações de como chegar até o
local. O local não consta como um ponto de interesse nos centros de informação
turística de Granada — talvez pela incerteza sobre se o lugar é, de fato, onde Lorca foi
morto, talvez para não converter o local em um centro de visitas e romarias, pois, até
a suposta fossa na busca dos que ali estão. O fato é que as fossas ainda são um problema
275
Próximo ao local onde está um monólito em homenagem a Lorca há um
parque, o ―Parque García Lorca‖. Este, mantido pela prefeitura local, é o espaço tido
como ―oficial‖ para a família do escritor na representação da fossa de Lorca. Porém, não
muito longe do ―Parque García Lorca‖ está o local que as investigações de Agostín
Penón levaram a crer que está o corpo de Lorca. A intensa busca de Penón pela
explicação da morte do poeta e o paradeiro de seu corpo está registrada no livro Miedo,
Olvido y Fantasía, (OSÓRIO, 2009), leitura obrigatória para entender o silêncio que,
ônibus não passam perto do local, sendo obrigatória a caminhada e a ajuda dos que
conhecem a região para indicar, por dentro do bosque, o caminho até o monólito onde
se pode ler: ―Lorca eran todos‖. Os todos aos quais se refere o monólito talvez sejam
aqueles que morreram por usar a arte como meio de expressar o desejo por liberdade,
aqueles que de alguma maneira morreram por fazer da arte uma maneira de expressar
A fossa fica em uma estrada que, ainda hoje, está afastada de qualquer uma
das cidades que por ela fazem fronteira, e a partir disso se pode imaginar o quão
Penón sabia que Franco não saberia justificar o assassinato de Lorca, e que o autor
continuaria sendo incômodo para a direita espanhola, assim como seguiu sendo
admirado em muitas partes do mundo. No final de 2009 foram abertas alguns espaços
276
na fronteira entre Víznar e Alfacar, como resposta ao pedido de abertura das fossas de
Lorca, mas nada foi encontrado72. Talvez a previsão de Penón tenha se cumprido.
72
Fonte:
http://www.elpais.com/articulo/cultura/restos/Lorca/estan/fosa/Alfacar/elpepicul/20091218elpepicul_9/Te
s
277
278
Granada: Ao chegar a Granada, é impossível não notar que a cidade está, inclusive
arquitetonicamente, dividia em três áreas, que representam três Granadas: uma parte
muçulmana, com becos que rodeiam Alhambra. E a parte da cidade que a define como
um ―pueblo blanco‖ — vilarejo composto por casas brancas que reluzem a luz do Sol
O que mais me marcou em minhas visitas à Granada foi ver como segue
vivo, no presente, seu passado muçulmano e o fato da cidade ter enriquecido graças à
pois ele era fazendeiro e passou a ser também dono de importantes engenhos da região.
Granada, por ter sido a cidade que por mais tempo esteve sob o governo muçulmano, e
promovida pelos reis católicos, Isabel e Fernando, que estão sepultados na catedral da
cidade. Sobre o fim do império muçulmano em Granada, Lorca disse em uma entrevista,
em 1936:
Tu crês que foi um ato acertado devolver as chaves de tua terra granadina
(aos reis católicos)?
Lorca: Foi um ato malíssimo, mesmo que digam o contrário nas escolas.
Perdeu-se uma civilização admirável, uma poesia, uma astronomia, uma
arquitetura e uma delicadeza únicas no mundo, para dar passagem à uma
cidade pobre, acovardada, a uma ―terra tão religiosa‖, onde se agita
atualmente a pior burguesia da Espanha. (LORCA, 2008. V.VI: p. 737)
Essa burguesia a qual Lorca se refere é a que construiu a parte moderna de Granada,
tomando posse da parte moura e tornando o bairro de Albaicin um gueto dos ciganos de
Granada.
279
Em Granada está a Huerta de San Vicente, a casa mais famosa da família
García Lorca. A Huerta de San Vicente era a casa de verão da familia, dada à mãe de
Federico pelo pai, por isso o nome ―Vicente‖ (em homenagem à mãe, Vicenta). Na
Huerta, minha visitação é conduzida pela Pepa, que conta que foi nesta casa que Lorca
escreveu a maior parte de sua obra, com exceção dos poemas de Poeta em Nova Iorque
e a A Casa de Bernarda Alba, que ele começou em Madri, mas terminou na Huerta. Por
estava a 2km da cidade, e na década de 1930 já contava com luz elétrica e telefone, o
Espanha em 1970.
Na Huerta está o diploma de direito de Lorca, que, segundo Pepa, ele levou
10 anos para conseguir, tendo média 5,0, sendo que a máxima era 10,0. A guia completa
informando que Lorca não era um bom aluno e essa era uma das maiores razões de
brigas com seu pai — fato que se pode notar pelas cartas trocadas entre Federico e seu
pai. A casa é mantida com os aspectos da época de Lorca e o piano que está na Huerta
de San Vicente é um dos pianos da família, foi usado por Lorca, e atualmente é tocado
conservação.
duas casas — bem menos populares —da família García Lorca: Fuente Vaqueros e
quando todo mundo ainda tinha medo de falar de Federico. E ainda o tem‖.
280
Bairro de Albaicin: um típico ―pueblo blanco‖
281
Huerta de San Vicente
73
Fonte: http://www.fuente-vaqueros.com/
282
Em Fuente Vaqueros está a Casa Museu Natal de Federico García Lorca —
que é mantida como na época de Lorca, assim como a Huerta, com móveis da época e
Fuente Vaqueros gira em torno da figura de Lorca. Há fotos dele por toda a cidade, e a
ele a população se refere apenas por Federico, com grande intimidade. ―Você veio para
283
O símbolo de La Barraca no chão da praça de Fuente Vaqueros
284
Casa Museu Natal
feriado em Fuente Vaqueros. A Casa Museu, neste dia, deixa a entrada livre para
cidade inteira se mobilizava para isso, separavam um momento do dia para participar da
―dia do Federico‖, também fui pega para ler um poema. Havia um empenho em mostrar
285
leitora —, entre a população da cidade, ou entre os turistas que vão ao vilarejo em busca
Na praça de Fuente Vaqueros era notório que, de fato, aquele era um dia de
festa. O vilarejo estava animado, as pessoas tomando a praça durante todo o dia. Outro
elemento que me chamou atenção foi o grupo formado pelas crianças da cidade, que
Lorca às crianças, e aquelas que recitavam os poemas de cabeça eram aplaudidas. Mas
até que ponto Federico é apresentado às crianças? Conversei com algumas crianças que
estavam na leitura dos 111 poemas, e lhes perguntei porque aquele dia era feriado. A
criança só me respondeu: ―é ele!‖, dito por uma menina, enquanto apontava para cartaz
com a foto de Lorca, espalhada por toda a cidade. Também perguntei a elas porque
Lorca foi importante. Alguns responderam porque ele foi escritor, outros disseram que
não sabiam, mas a maioria relacionou Lorca à Guerra Civil Espanhola. Eu finalizava
perguntando o que aconteceu para o Lorca morrer na Guerra Civil. A maioria das
crianças não sabia me responder, algumas me disseram que era porque ele lutou na
286
F.G. Lorca, 1934, arquivo Fundação Federico García Lorca
287
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Sin Limites (Little Ashes). Inglaterra/ Espanha, Dir.: Paul Morrison, 2008.
Um cão andaluz (Un chien andalou). França, Dir.: Luis Buñuel e Salvador Dalí, 1928
293
Anexo 1
Queridos amigos: Hace tiempo hice firme promesa de rechazar toda clase de
homenajes, banquetes o fiestas que se hicieran a mi modesta persona; primero, por
entender que cada uno de ellos pone un ladrillo sobre nuestra tumba literaria, y segundo,
porque he visto que no hay cosa más desolada que el discurso frío en nuestro honor, ni
momento más triste que el aplauso organizado, aunque sea de buena fe.
Además, esto es secreto, creo que banquetes y pergaminos traen el mal
fario, la mala suerte, sobre el hombre que los recibe; mal fario y mala suerte nacidos de
la actitud descansada de los amigos que piensan: "Ya hemos cumplido con él". Un
banquete es una reunión de gente profesional que come con nosotros y donde están,
pares o nones, las gentes que nos quieren menos en la vida.
Para los poetas y dramaturgos, en vez de homenajes yo organizaría ataques
y desafíos en los cuales se nos dijera gallardamente y con verdadera saña: "¿A que no
tienes valor de hacer esto?" "¿A que no eres capaz de expresar la angustia del mar en un
personaje ?" "¿A que no te atreves a contar la desesperación de los soldados enemigos
de la guerra?". Exigencia y lucha, con un fondo de amor severo, templan el alma del
artista, que se afemina y destroza con el fácil halago. Los teatros están llenos de
engañosas sirenas coronadas con rosas de invernadero, y el público está satisfecho y
aplaude viendo corazones de serrín y diálogos a flor de dientes; pero el poeta dramático
no debe olvidar, si quiere salvarse del olvido, los campos de rosas, mojados por el
amanecer, donde sufren los labradores, y ese palomo, herido por un cazador misterioso,
que agoniza entre los juncos sin que nadie escuche su gemido.
Huyendo de sirenas, felicitaciones y voces falsas, no he aceptado ningún
homenaje con motivo del estreno de Yerma; pero he tenido la mayor alegría de mi corta
vida de autor al enterarme de que la familia teatral madrileña pedía a la gran Margarita
Xirgu, actriz de inmaculada historia artística, lumbrera del teatro español y admirable
creadora del papel, con la compañía que tan brillantemente la secunda, una
representación especial para verla.
294
Por lo que esto significa de curiosidad y atención para un esfuerzo notable
de teatro. doy ahora que estamos reunidos, las más rendidas, las más verdaderas gracias
a todos. Yo no hablo esta noche como autor ni como poeta, ni como estudiante sencillo
del rico panorama de la vida del hombre, sino como ardiente apasionado del teatro de
acción social. El teatro es uno de los más expresivos y útiles instrumentos para la
edificación de un país y el barómetro que marca su grandeza o su descenso. Un teatro
sensible y bien orientado en todas sus ramas, desde la tragedia al vodevil, puede
cambiar en pocos años la sensibilidad del pueblo; y un teatro destrozado, donde las
pezuñas sustituyen a las alas, puede achabacanar y adormecer a una nación entera. El
teatro es una escuela de llanto y de risa y una tribuna libre donde los hombres pueden
poner en evidencia morales viejas o equívocas y explicar con ejemplos vivos normas
eternas del corazón y del sentimiento del hombre.
Un pueblo que no ayuda y no fomenta su teatro, si no está muerto, está
moribundo; como el teatro que no recoge el latido social, el latido, histórico, el drama
de sus gentes y el color genuino de su paisaje y de su espíritu, con risa o con lágrimas,
no tiene derecho a llamarse teatro, sino sala de juego o sitio para hacer esa horrible cosa
que se llama "matar el tiempo". No me refiero a nadie ni quiero herir a nadie; no hablo
de la realidad viva, sino del problema planteado sin solución.
Yo oigo todos los días, queridos amigos, hablar de la crisis del teatro, y
siempre pienso que el mal no está delante de nuestros ojos, sino en lo más oscuro de su
esencia; no es un mal de flor actual, o sea de obra, sino de profunda raíz, que es, en
suma, un mal de organización. Mientras que actores y autores estén en manos de
empresas absolutamente comerciales, libres y sin control literario ni estatal de ninguna
especie, empresas ayunas de todo criterio y sin garantía de ninguna clase, actores,
autores y el teatro entero se hundirá cada día más, sin salvación posible.
El delicioso teatro ligero de revistas, vodevil y comedia bufa, géneros de los
que soy aficionado espectador, podría defenderse y aun salvarse; pero el teatro en verso,
el género histórico y la llamada zarzuela hispánica sufrirán cada día más reveses, porque
son géneros que exigen mucho y donde caben las innovaciones verdaderas, y no hay
autoridad ni espíritu de sacrificio para imponerlas a un público al que hay que domar
con altura y contradecirlo y atacarlo en muchas ocasiones. El teatro se debe imponer al
público y no el público al teatro. Para eso, autores y actores deben revestirse, a costa de
sangre, de gran autoridad, porque el público de teatro es como los niños en las escuelas:
295
adora al maestro grave y austero que exige y hace justicia, y llena de crueles agujas las
sillas donde se sientan los maestros tímidos y adulones, que ni enseñan ni dejan enseñar.
Al público se le puede enseñar, conste que digo público, no pueblo; se le
puede enseñar, porque yo he visto patear a Debussy y a Ravel hace años, y he asistido
después a las clamorosas ovaciones que un público popular hacía a las obras antes
rechazadas. Estos autores fueron impuestos por un alto criterio de autoridad superior al
del público corriente, como Wedekind en Alemania y Pirandello en Italia, y tantos
otros.
Hay necesidad de hacer esto para bien del teatro y para gloria y jerarquía de
los intérpretes. Hay que mantener actitudes dignas, en la seguridad de que serán
recompensadas con creces. Lo contrario es temblar de miedo detrás de las bambalinas y
matar las fantasías, la imaginación y la gracia del teatro, que es siempre, siempre, un
arte, y será siempre un arte excelso, aunque haya habido una época en que se llamaba
arte a todo lo que nos gustaba, para rebajar la atmósfera, para destruir la poesía y hacer
de la escena un puerto de arrebatacapas.
Arte por encima de todo. Arte nobilísimo. y vosotros, queridos actores,
artistas por encima de todo. Artistas de pies a cabeza, puesto que por amor y vocación
habéis subido al mundo fingido y doloroso de las tablas. Artistas por ocupación y
preocupación. Desde el teatro más modesto al más encumbrado se debe escribir la
palabra "Arte" en salas y camerinos, porque si no vamos a tener que poner la palabra
"Comercio" o alguna otra que no me atrevo a decir. Y jerarquía, disciplina y sacrificio y
amor.
No quiero daros una lección, porque me encuentro en condiciones de
recibirlas. Mis palabras las dicta el entusiasmo y la seguridad. No soy un iluso. He
pensado mucho, y con frialdad, lo que pienso, y, como buen andaluz, poseo el secreto
de la frialdad porque tengo sangre antigua. Yo sé que la verdad no la tiene el que dice
"hoy, hoy, hoy" comiendo su pan junto a la lumbre, sino el que serenamente mira a lo
lejos la primera luz en la alborada del campo.
Yo sé que no tiene razón el que dice: "Ahora mismo, ahora, ahora" con los
ojos puestos en las pequeñas fauces de la taquilla, sino el que dice "Mañana, mañana,
mañana" y siente llegar la nueva vida que se cierne sobre el mundo.
296
Anexo 2
El Patriotismo - Federico García Lorca (1917)
Arquivo Fundação Federico García Lorca
¡Cuántas veces nos han hablado del patriotismo…! Siempre hemos entendido desde
niños al patriotismo por un sentimiento que tiene por espíritu a un trapo de colores, por
voz una corneta desafinada y por fin defender las tumbas, las casas etc., de nuestras
familias. Los encargados de danzar ante el sacro fuego de sus ideas son unos señores
muy ordinarios con bigotes tiesos y voces campanudas que nos hacen a los jóvenes
besar una cruz infame formada por la bandera y una espada; es decir la cruz de las
tinieblas y de la fuerza. Hay que pensar para que sirve toda esa multitud de muñecos
grotescos que son sacerdotes del patriotismo y que van arrollando a la dulzura y al
amor. No se puede concebir por qué todo un pueblo se lanza contra otro únicamente por
esta pasión… En España nos la damos de muy patriotas. En la escuela nos dicen:
―España es nuestra segunda madre y el Rey su representante‖, es decir, su maniquí… y
nosotros mirábamos al maestro que, encendido el pecho de entusiasmo, nos decía :‖Es
nuestra segunda madre. Vosotros como buenos hijos debéis dar hasta la última gota de
vuestra sangre‖ (ésta es la frase de cajón…). Paseábamos por la calle y al fondo de ella
aparecía el ejército brioso, marcial, marchando elegante al son de una sinfonía bélica…
y nos daban escalofríos, autosugestionados por el medio ambiente y nos descubríamos
ante la bandera con un no sé qué. Indudablemente los tramoyistas de la vida nacional
preparan admirablemente los efectos. Producen emociones involuntarias valiéndose del
aparato y de la música. Hay que confesar que la fastuosidad y la etiqueta mezclada con
sones apabullantes de músicas produce en las muchedumbres el vértigo. Primero el gran
aparato de las armas les produce el miedo y el asombro y luego las músicas les sugieren
los sentimientos amables… porque nada como la música comprendida por muchas
almas al a vez para formar una sola en una sola voluntad. Es el efecto que recibe la
multitud sin darse cuenta. Hay que ir contra esas exhibiciones llenas de lástima y con
los oídos del alma tapados como Ulises se tapó los suyos para no caer en la tentación de
las hadas del mar… ¿De qué se valen las congregaciones religiosas sino de la
fastuosidad y de la riqueza para atraer a la multitud?. Saben muy bien que la masa es
muy impresionable y le hacen postrarse ante el brillo del oro. Y se da el caso raro de
297
gentes que comprendiendo lo ridículo e imbécil de dichos actos asisten a ellos para
recrearse en su solemnidad y teatralidad. En la idea de patriotismo se supeditan las
pasiones, el amor, la caridad y la dulzura a la flor áspera y punzante del deber… Es la
idea fin del patriotismo convertir muchas almas en cuerpos… Las creencias
individuales, sus apasionamientos, sus amores quedan supeditados a la voz de un
hombre que grita muy grave: ―Ordeno y mando‖, y lanza los cuerpos unos contra otros
porque las almas volaron al comenzar la tragedia. Es necesario, preciso que las
multitudes se despierten llenas de amor y caridad. Es preciso acabar con lo inútil de las
ideas patrióticas. El patriotismo es uno de los grandes crímenes de la humanidad porque
de sus senos podridos por el mal surgen los monstruos de la guerra. Por patriotismo los
hombres han caído en las negruras de la muerte. Por patriotismo la verdadera patria fue
deshecha y escarnecida. Por patriotismo nacieron los males de la tierra. Por patriotismo
fueron los hombres odiosos y crueles… Las banderas son los símbolos de la oscuridad y
la negación de Dios… Al hallarse los hombres divididos pusieron el ideal de su
bienestar [¿] sobre esos trapos de colores que flotan como orgullos con forma sobre
todo el mundo. Desde la escuela, en vez de enseñarnos a amarnos y ayudarnos en
nuestras miserias, nos enseñan la deplorable historia de nuestros países salpicados de
sangres, de odios, y nos dicen: ―Aprended a matar a vuestros enemigos. Mirad. ¿Véis
este retrato? Pues es Felipe II, que quemó 8.000 herejes. ¡Admirad este otro! Es el Cid
Campeador, que luchó contra la cruel morisma y que en Valencia asesinó a muchos
hombres… Y éste es Santiago, patrón de España, que luchó contra los moros y los
exterminó.‖. Las almas de los niños se educan en ese ambiente de fuerza y de crueldad y
llegan a considerar muy afligidos, aunque sin darse cuenta, al Dios de las batallas… ―ya
lo sabéis, niños – exclama el maestro -. Dios crió a los hombres para amparar
exclusivamente a nosotros, a los cristianos…‖. Y todos los niños se acostumbran a ver
en las demás razas una humanidad inferior y digna de ser exterminada. En las escuelas
en vez de enseñar el triunfo de la verdad sobre la fuerza enseñan la apoteosis de la
crueldad y la razón espantosa de la fuerza… Todas las historias de los pueblos tan llenas
de horrores sirven de guía a la juventud en vez de ampararse en la inefable luminosidad
del Evangelio de Jesús. Desde nuestros primeros años nos predican la guerra como cosa
necesaria para la gloria de la patria. El patriotismo borró de la historia a los espíritus
débiles pero llenos de amor… Cuando en la historia nos quieren hablar de Dios, aparece
la espantosa Inquisición. Cuando de formas de pedir misericordia, aparece aquel
formidable espíritu del mal llamado Domingo de Guzmán. Cuando nos hablan de la fe
298
en el más allá, nos enseñan la execrable figura del rey Carlos, el encantado por
Barrabás. El maestro se levanta y dice: ―¡Amar a España! En sus dominios no se ponía
nunca el sol‖. ¡Ay, nuestras gloriosas tradiciones!. Todas incubadas en la maldad y
amparadas cobardemente a la sombra augusta de la cruz… España tomó para encubrir
sus maldades a Cristo crucificado. Por eso aún vemos su ultrajada imagen por todos los
rincones. Con el nombre de Jesús se tostaban hombres. En el nombre de Jesús se echó a
la ciencia de nuestro suelo. Con el nombre de Jesús ampararon infamias de la guerra.
Con el nombre de Jesús inventaron la leyenda de Santiago guerrero. Toman la luz y la
hacen oscuridad. Toman la paz y la hacen luchas. Toman la gloria del amor eterno y
crean la fuerza para amordazar conciencias. Éstos son crímenes de lo que llaman
patriotismo. Éstas son aureolas de la bandera española. Todas las banderas de todas las
naciones están nimbadas de sangre mártir que no dio la fuerza que según los reyes debió
dar. ¡Ay, Dios mío! ¿Hasta cuándo hemos de invocar a nuestras tradiciones…? Porque
aquí en España pocas veces se nombran en las escuelas aquellos hombres suaves y
plácidos que predicaron la paz por las mesetas castellanas y no los mientan por
considerarlos malos españoles indignos de pertenecer a este desventurado país. Nuestra
tradición guerrera no significa nada, puesto que el presente no dio su utilidad. ¿Qué
oscurecer la conciencia con los recuerdos de sangre? Debemos de formar en las escuelas
ciudadanos amantes de la paz y conocedores del Evangelio. Debemos de crear hombres
que no sepa que existió el desdichado de Fernando el santo ni Isabel la fanática ni
Carlos el inflexible ni Pedros ni Felipes ni Alfonsos ni Ramiros. Debemos de resucitar
las almas niñas contándoles que España fue la cuna de Teresa la admirable, de Juan el
maravilloso, de don quijote divino y de todos nuestros poetas y cantores. Ocultar a los
niños que tuvimos reyes fraticidas y sanguinarios. Borrar de las conciencias el admirado
gran capitán y echar el velo del olvido sobre el pasado. Que en las escuelas en vez de
decir cantando ―a Felipe I sucedió Felipe II‖, que griten los niños ―Y nació Cervantes y
Fray Luis‖. Inculcar el amor a toda la humanidad en los niños y el odio a las espadas y a
los escudos.. y que una mañana , mañana con arreboles de sol glorioso y perfumes de
verdad y justicia, vayan todos los niños en procesión a los campos con las manos llenas
de rosa y claveles y que se detengan frente a un gran monte de libros de nuestra historia
que esté ardiendo con gran furia… y los niños cantarán el amor de la humanidad. Luego
que sea el monte ceniza, que arrojen sobre él las flores y de ellas surgirá el milagro. Un
evangelio gigante se abrirá y los niños leerán el consuelo para la vida… y del horizonte
brotará la aurora de una paz infinita. Hay que arrancar las nefastas ideas patrióticas de la
299
juventud como hay que arrancar a los patrioteros por honor a nuestras madres el
concepto de la patria madre. ¡Nunca puede ser madre nuestra la que según decís
tenemos que dar hasta la última gota de nuestra sangre por ella ¡ Ella nos lo manda y eso
no lo ordena ninguna madre. Vosotros los que empuñáis eternamente las armas en vez
de empuñar el arado o alguna cosa santa y útil no sabéis lo que es una madre. Las
vuestras al permitir que fuerais fratricidas ya dieron prueba de que no os sintieron en sus
entrañas. ¡No, señores luchadores de oficio! ¡No! ¡No! Y ¡No! Las madre que poseemos
son la que nos dio el ser y la de todos los hombres. La humanidad. ¡No, caballeros de
bufido y la espuela ¡ La madre es el amor gigante, la piedad, el sacrificio. El único amor
verdadero que posemos en la vida. La madre es la compasión, la luz, el beso de Dios. La
madre es el cuerpo del cual somos alma y corazón. ¡No, patriotas oscuros, la patria no
es nuestra segunda madre! En todo caso una madrastra como la de Cenicienta. Lo que
nos envía a matar hombres contra la razón no puede ser madre. Hay que ser hijos de la
verdadera patria. La patria de amor y de la igualdad…
INVOCACIÓN
300
Amaneceres de juventud que cubrió con su manto ignomioso la vejez desastrosa.
Sacrificados de vuestros sentimientos que abandonasteis vuestro bienestar del hogar por
amor a vuestro pueblo. ¡Admirables valientes de la verdad! Ya lo veis, los que ordenan
las cosas de vuestro país os arrojan tonsurados y disfrazados con el traje afrentoso sobre
un lago de horror para toda vuestra vida. ¡No! ¡No! ¡Mártires! ¡Cristo! ¡Quijotes!
Imposible. Vuestro pueblo rugirá: aún es león. ¿Dónde están los poetas para que lloren?
¿Por qué senda se perdieron los ecos del español todo pasión? ¡Admirables caballeros
de la igualdad, el divino poeta Hugo está llorando por vosotros en la eternidad!
29 de octubre de 1977
301
Anexo 3
I:- No, es que realmente empezó un poco antes, empezó con la salida de la primera
edición, Aguilar de las obras completas, entre comillas digo yo, porque no eran obras
del todo completas, había algo de sensura todavía. Pero el mismo Franco, el mismo
General Franco dió su permiso en el año 54 para que saliera aquel libro. Claro que tuvo
un gran éxito aunque era un libro muy caro para los alumnos y todo eso, pero él dió su
permiso porque Lorca ya suponía un problema para el régimen. Llegaba mucho turismo
ya para España y no podían seguir negando la existencia de un poeta llamado García
Lorca, porque hasta aquel año no se publicaba aquí, pero claro, el régimen vió, o los
asesores de Franco entendieron que creaban una muy mala imagen del país en el
extranjero.
I:- Bueno es un mundo, pero yo... me gusta un pequeño capítulo al inicio del libro. Pero
son así, son tremendos, cada día, cada noche, él está en lo mismo: el compromiso con
los demás, con el prójimo, con los débiles, con las mujeres. Claro, porque es un tipo que
se da cuenta que le van a excluir y no quiere ser excluído. De modo que yo creo que su
compromiso es muy fuerte. Lo que pasa, él no es militante de un partido político, es
incapaz Lorca. Te imaginas a Lorca con un carnet del partido comunista, llendo a
reuniones, votando, por favor. Él está entregado a su obra pero su obra es revolucionaria
y si eso no lo ven es que están ciegos o malévolos o ambas cosas a la vez.
302
S:- Y tu ibas a decir de la derecha y el tema de Lorca
I:- Bueno, Lorca es un gran problema para la derecha de este país. primero por su
homosexualidad y la temática de Lorca y luego por el tema de su asesinato. No quieren
que se encuentre a Lorca porque eso iba a ser una noticia mundial. Eso iba a enfocar la
tención del mundo sobre un hecho no reconocido que es que este país tiene mas
desaparecidos que toda la América junta ¿comprendes? porque la cifra ya ronda por
160.000 desaparecidos. Y la verguenza de este país es lo que pasó debajo de la
dictadura, cuando Franco siguó matando sin que la iglesia dijera nada. Continuó
matando a decenas de miles de inocentes, y eso no quieren que se sepa. Por eso dicen
"no, no, hay que olvidar al pasado y construir el futuro". Pero no se puede construir
nada sin saber lo que pasó. Ahía está la lucha. Y desde luego será gravísimo si este
partido vuleve al poder en algunos años, yo ya estoy preparando mi salida
¿comprendes? porque si los españoles son capaces de devolverles la llave a esta gentuza
van a cerrar todas las puertas a la investigación. Y la mitad de este país como no lee
nada, o si lee algo es la prensa de derecha y escuchan la radio de derecha.
I:- Sí, por supuesto. Porque habría que enseñar a los chicos a no ver la prensa. Es el
"pan y circo" del Imperio Romano, pues para que el pueblo esté contento, dale circo
¿comprendes? La gente adulta no, no... en fín. Y bueno, pues es un momento muy
preocupante, de modo que Lorca es un gran problema para la derecha. No lo dicen
abiertamente porque eso sería incorrecto. No pueden decir "es una mierda de maricón",
maricón rojo, pero eso es lo que piensan.
S:- ¿Piensas que la España intenta ser políticamente correcta? Intenta... ¿intenta ser
democrática con sus discursos?
I:- Pero es que lleva muy poco tiempo, este país jamas ha tenido democracia. 5 años de
república, 5 años muy difíciles con elecciones a la mitad del camino que ganan las
derechas, la coalición y todo se vuelve atrás. Los primeros 2 años fueron brillantes,
con crisis económica, crearon 11.000 escuelas en dos años. Mas de lo que se había
hecho en 50 años anteriores, pero luego perdieron las elecciones porque la izquierda
como siempre es incapaz de unirse, siempre hay discrepancias obviamente en la
izquierda, es natural. Pero las derechas formaron una coalición y ganaron las elecciones
2 años luego del (nombre de un partido) y luego viene el Frente Popular cuando ya
303
había una crispación tremeneda en todo el país. De modo que bueno, tu me has
preguntado, políticamente correcto, es que no tiene mucha experiencia. Yo creo que el
país ha hecho muchos avances en poco tiempo pese a la derecha que hay ¿no?. Pero eso
no se aprende de la noche a la mañana, la noción de lo que podría ser una democracia,
de mantener limpia la acera de tu puerta ¿ya has visto basura como aquí? es como
Londres, el gran fuego en Londres en el siglo XVII, Londres se quemó porque la gente
hechaba la basura a la calle.
[...]
I:- Es que no se puede ser de derecha, no se puede. En fín, estamos en esta lucha y
Lorca es el gran símbolo. Es el desaparecido mas famoso de la guerra civil española, y
su propia familia no quiere ocultarlo.
S:- Yo no puedo comprender. Yo pienso que hay algún motivo, alguna cosa.
I:- Si encuentran los restos se podría saber, según el estadosde los restos ¿no? primero si
está o no está, es muy importante.
S:- Si
I:- Si lo encuentran se podría saber cómo murió ¿no? Es una cuestión de dignidad,
estamos hablando del español mas famosos del mundo, después de Cervantes. Y todavía
está allí, como un perro y su propia familia en contra. Y dispuestos a no ayudar nada. Si
se encuentra, han dicho que no le harán ADN.
[...]
I:- Mira, cuesta mucho abrir, pero en una nación como esta, es una cuestión de
dignindad, buscar a los muertos. Ellos buscaron todos ,los suyos. A lo largo de estos 40
años ellos desenterraron todos sus fusilados. Y nosotros no vamos a tener, digo
nosotros, el mismo derecho, cuando es un crimen, es un genocidio. Estamos hablando
de un genocidio, no se atreven a decirlo los socialistas porque saben que van a perder,
que pueden perder las elecciones y si insisten puede haber una reacción en contra y todo
eso. El hecho es que estamos hablando de un genocidio. La guerra civil misma, la
sublevación. Habían decidido ya matar a la mitad del país si hacía falta, lo sabes ¿no?.
304
Existen los documentos, se levantaron ya sabiendo que iban a matar a mansalva y lo
hicieron a rajatabla. Y lo peor es que continuaron después de la guerra. ¿Porqué
continuaron? porque creyeron que iban a ganar la guerra mundial, iban a ser una
potencia mundial, y no tenían miedo porque creían que iban a ganar. Sólo pararon las
ejecuciones cuando el régimen se dió cuenta de que los Aliados Iban a ganar. Pero ellos
creyeron que los Aliados habiendo ganado iban a derrocar a Franco y no lo hicieron
tampoco. Es terrible. Eso es lo que hay aquí. Debajo de la superficie todavía hay guerra
civil. Y cuando una persona como Esperanza vive, de vez en cuando, y dice que
Zapatero es un "rojo", como hablan del Primer Ministro Zapatero, quitan el "Rodriguez"
y es Zapatero. Es tremendo... y es un "rojo" claro, para ellos sólo es un rojo. Y hay
mucha hipocresía, muchísima hipocresía.
S:- Y bien, volviendo a Yerma, porque he visto que muchas críticas dijeron que Yerma
es una obra antiespañola. ¿Y cuáles otras obras de Lorca podrían ser vistas como
peligrosas para las ideas tradicionales de España?
I:- Bueno, obviamente El Público, pero nadie conocía el texto de El Público entonces. A
demás El Público tiene un lenguaje surrealista que hace difícil su comprensión, de
modo que sobretodo Yerma. A demás Yerma se estrenó aquí el año 34 cuando estaban
las derechas en el poder. Y claro, ellos vieron la obra como un ataque a los valores
tradicionales católicos de este país. Porque hay una vieja que sale... Yerma dice
masomenos "que me ayude Dios" y la vieja sale y le dice: "Mira, cuándo te daras
cuenta de que Dios no existe". ¡Imagina! En el año 34. Y hubo protestas en el teatro, y
los fascistas trataron de romper el estreno com Margarita Xirgu en el papel de Yerma.
De modo que eso es muy importante, es un país muy pequeño ¿no? Madrid tenía medio
millón de habitantes y todo del mundo conocía a todo el mundo. De modo que Lorca a
partir de aquel momento es considerado como un enemigo de la España tradicional y
sólo hace falta leer las reseñas. Hombre, yo en mi capítulo ahí hago un poco un análisis
de las reseñas, pero feroces... feroces, ahí se ve el odio que él suscitaba con su... y era su
intención, remover las conciencias, hacer que la gente tenga que pensar. Eso, es un
revolucionario.
S:- Ahora que estás diciendo me estoy acordando de una carta que envía su familia,
pienso que en el estreno de La zapatera, no me acuerdo. Un estreno. Y dice para su
familia en su carta que no tiene nada de política la obra.
I:- Pero él dice esto para que no estén preocupados. Hombre, están en pleno régimen de
Primo de Riveras, creía que iba a haber problemas.
S:- Es para la madre, "no madre, no, estoy andando con buena gente"...
I:- Tal vez, tal vez. Claro que en aquel momento, es obvio que el tema de politica tiene
que ver algo ¿no?, pero tampoco Primo de Rivera es Franco ¿no? Es que es uma
ditadura blanda como decía. Primo de Riveras era un hombre cálido y le gustaban las
mujeres y salía por la noche y todo eso, tampoco era exactamente el régimen franquista,
aunque Lorca claro estaba en contra de la dictadura de Primo de Rivera. Pero yo lo
veo...
S:- No ves aquella contestación como... es que después no sé, su familia siempre usa.
No se que... que no era político...
I:- Eso es una tontería. Sólo hace falta leer el corpus juvenil para ver como es el pobre
¿no?. Absolutamente al lado de la gente. Luego hay una identificación con Cristo muy
importante. Lorca es cristiano sin dioses, es decir, él admira profundamente la persona
de Cristo, el mensaje de Cristo, se identifica con Cristo, la identificación es clarísima.
Eso lo vio prmero un amigo mío Eutimio Martín que hizo un libro sobre Lorca. La
identificación es clarísima. Y Adela, cuando habla de la corona de espinas al final de
Bernarda Alba también, porque Adela es una proyección de Lorca hasta cierto punto.
Si, si, lorca admira, ama profundamente a Cristo. Hombre, y sin creer en el más alla, en
la aparición. Y es explícito en la obra. Cristo le parece el aquetipo del hombre que
piensa en el otro. Hay algo de misionero en Lorca. Quiere cambiar el mundo, pues no
entrando en el partido comunista, ¿no? Porque él no puede ser militante de un partido,
entrando en una célula diciendo... pero desde luego la obra es revolucionaria, yo la veo
así.
S:- Sí, yo también. De los temas recurrentes de Lorca, la libertad y la muerte son temas
de su obra que son recurrentes. ¿Esto se puede deber a la situación social existente en
España, antes de la guerra? ¿O una posible capacidad profética de Lorca?
306
I:- Hombre, una posible capacidad profética, yo no sé hasta que punto. Aunque han
dicho que él tenía como un sexto sentido en relación... hay algo de escalofrío. Hay algo
de sentir la presencia de la muerte en todo. Yo supongo que eso le viene del pueblo, de
las campanas, un poco como en el caso Luis Buñuel. Toda la infancia, la madre es
católica y los hombres no tanto en el pueblo ¿no? Pero él tiene todo eso de la liturgia, de
las campanadas, de los muertos en el pueblo, de ver los ataúdes. Él tiene una obsesión
con la muerte para mí profunda, un temor a su propia muerte, es casi una obsesión. Eso
se ve también en Rubén de Rio y Ruben de Rio es su maestro en poesía, no sé si tú
conoces la obra de Rubén pero... ¡hombre! Sin Rubén de Rio el Lorca que tenemos no
es el mismo. Él se inicia en la poesía bajo la influencia, invadido por la obra de Rubén
de Rio. Y yo lo entiendo, porque yo entré también en este idioma un poco leyéndolo a
Rubén, fué mi primera lectura y cuando luego yo ví que había una relación de Rubén
con Lorca fue importante en mi vida. De modo que, un espanto.
I:- Mariana Pineda, hay allí toda una identificación con ella ¿no? Todo el tema de la
bandera de la libertad y Fernando VII. Todo eso lo tiene ya muy interiorizado. La
libertad, claro.
S:- ¿Pero porqué piensa que él tiene esta...? Porque, estoy pensando aquí. Porque
Mariana Pineda fué importante en Granada, había incluso procesiones por ella en su
tumba. O sea, una imagen popular fuerte, pero al mismo tiempo que hay esa imagen
fuerte de la mujer que busca la libertad, y no sé qué, hay una represión tremenda en
Granada...
I:- Bueno, pues sí, hay todo eso. Pero Granada es una ciudad en constante guerra civil,
sabes, allí hay todo eso.
I:- Si, si, claro. Porque es una zona re poblada y tu sabes la última entrevista de Lorca
con Ballaría que la toma de Granada fué un desastre. Eso es importante, por eso están
contestaciones escritas, él no estaba improvisando. Él escribió las contestaciones, de
modo que cuando él dice que es la peor burguesía de España, es porque es una ciudad
tomada y re poblada por gente de fuera. De modo que hay esto también. Y luego
Mariana Pineda que la matan, en Granada, en su Granada, como van a hacer con él
¿no?. Entonces hay esto también, tu lo has dicho, premonición. Tal vez hay algo de eso,
tal vez él se siente ya víctima. Tal vez es posible que él tuviese ya la convicción de que
307
iba a ser sacrificado, mas que nada por la misma libertad, eso no lo sé. Pero no sería
sorprendente. Él era un hombre que sentía ¿no? Hay una anécdtota de él que van a un
pueblo en las afueras de Madrid, fue a un acto en un pueblo. Y estaban ahí sentados
todos comiendo, y de repente él se pone pálido. Creo que esto lo cuento en La biografía
en 2 tomos. Y de repente se pone pálido y se levanta de la mesa y se va al huerto
¿recuerdas esto? Y alguien le dice: "¿qué te pasa hombre?" "Me siento rodeado de
muertos". Luego empiezan a indagar y había un cementerio debajo, porque es un
antigüo convento, y él siente algo. Pues yo no sé si eso es verdad o no, eso lo cuenta
Jorge Salamea, un colombiano. Él estuvo, él presenció esto. Y después de comer no
quiso volver a la mesa, se niega a volver. Y fueron al ayuntamiento, no se qué, hicieron
una investigación y resultó que allí debajo había antes un cementerio de monjas, bueno
y él sintió algo. Hombre, yo no sé si fue así o no. Tampoco sé si fué a Granada sabiendo
lo que le iba a ocurrir o no, pero es posible una intuición ¿no? Telepatía, lo que tú
quieras llamarlo ¿sabes?
S:- Para la gente de Brasil esta idea intuición y de sentir los muertos es muy fuerte,
asique...
I:- Se capta enseguida ¿no? Por eso si él se va a México en vez de estar en Granada para
que le maten, habría sido su segunda patria ¿no? Seguro. Yo no lo dudo
I:- Bueno él dijo, si yo me pierdo, ¿sabes lo que dijo? ¿la frase? "Si yo me pierdo, que
me busquen en Cuba o en Andalucía" pero no había estado en México. Yo por mí creo,
él en México habría estado en su casa.
S:- Sí, y la religiosiadad de Cuba es muy fuerte con esta cosa de...
I:- Si, y la mezcla de lo negro y lo blanco y todo eso. Él fué en Cuba a una casa de
Boodo, con Livia Cabrera, su amiga cubana, era experta en todo el tema de folcklore
cubano y todo el tema de los ñáñigos, de los ñáñigos. Ella le llevó a una ceremonia de
los ñáñigos que es un grupo de boodo y se puso palidísimo, vale.
308
I:- (Risas) Me preguntas poco, no. ¡por Dios! Bueno, primero es un hombre muy
conocido ¿no? Es decir que no estamos hablando de un poeta que está empezando,
estamos hablando de un hombre famosísimo.
S:- Pero crees que la gente aún piensa que Lorca no tuvo éxito.
I:- Ah ¿si? Bueno, no saben lo que dicen. Yo sí se, porque yo conozco la prensa de la
época.
S:- He visto otro día que en Argentina ha sacado dinero para comprar 3 coches nuevos
de la época, sólo con 12 o 20 días en Argentina ¡joder!
S:- Si
I:- Bueno sabes del aforo, caben 3000 personas o no se... bueno él llenó no sé cuántos
meses con Bodas de Sangre ¿no? Pero a teatro lleno ¿no? Y mandó a su padre un talón
gastronómico. Bueno, esto creó envidia. De modo que primero él tiene una... es muy
conocido, de los jóvenes es el más conocido. Ya está teniendo... a demás empezando su
fama internacional. En América del Sur, pero también en Nueva York están preparando
Bodas de Sangre en inglés, bueno está en auge y la gente lo sabe ¿no?. Luego está
totalmente identificado con la república, con la república progresista, no con la otra
¿no? Y bajo el Frente Popular hizo muchas delcaraciones, firmó manifiestos
antifascistas, leyó el romance a la guardia civil en público, que era un acto político, y
está totalmente identificado con el Frente Popular. Y luego la fama, la identificación y
la envidia. Y el hecho homosexual que aparece en la prensa, en la prensa de derecha...
alusiones, eso lo sabes ¿no? Que en la prensa... bueno eso está en mi libro. De modo
que hay todos esos factores. Luego la envidia hacia la familia. Su padre ha tenido un
pasado político, su padre por el Partido Liberal. Es un terrateniente en Granada pero está
con la República y todo eso se sabe. En Granada, sobre todo se sabe en Granada y en
sus críticas. Todo esto junto en un momento dado fué mas que suficiente para que lo
matasen porque mataron a muchos mas del bando republicano. Pero él claro, él es una
persona muy conocida con una obra que ellos consideran revolucionaria y roja ¿no?
S:- peligrosa...
309
I:- Claro, es peligrosa. Y eso no olvides que yo he conocido personalemente a Ramón
Ruiz Alonso, le he hablado a esta distancia, a esta distancia...
S:- Ya le iba a hablar de eso yo... no, es que yo utulizo muchísimo ese libro de El
hombre que detubo a García Lorca.
I:- Sí, pero luego allí no reproduzco la entrevista, pero la entrevista está en mi libro
sobre la muerte. De modo que yo he oído a ese hombre hablar, y yo he visto cómo era.
Años después, de modo que imagínate cómo era cuando tenía 25 años. Y es diputado.
Ahora estoy tratando de localizar su tumba en este momento.
I:- En Las Vegas. Se fué con una hija, otra hija, no la famosa, claro.
S:- Y oficialmente ¿Cuáles eran los motivos de la denuncia? ¿Qué decian ellos en la
época, de hecho...?
I:- Que Lorca tenía una obra subversiva, peligrosa, que era amigo de Fernando de
Rodriguez que era el Ministro socialista, que era homosexual y que tenía una radio
clandestina y todo eso. Claro es en un momento en que se cree todo. Tú decías eso y al
paredón. Bastaba que alguien pusiera una denuncia. En aquél momento, hay que
imaginar aquel momento. Ellos se han sublevado y pueden perden en cualquier
momento. Y bueno ya vienen con un plan de matar a gente ¿no? Y Lorca es un enemigo
¿no? No cabe la menor duda de eso. Es un enemigo principal y encima rojo, principal y
famoso, hay envidia también en todo eso.
310
S:- Rojo, maricón y con éxito, osea...
I:- Si, si ,si. Y en un sitio como Granada, conocido como sitio peligroso. Ahi la gente
que triunfa alli fuera y vuelven, siempre es difícil. Yo conozco otros casos, un caso
actual, el del novelista Antonio Muñoz Molina auque él es de Jaén pero estuvo en
Granada. Y tu vas a Granada y todo el mundo dice que es una mierda, que no sabe
escribir, y es uno de los mejores novelistas del país, sin lugar a dudas. Es lo mismo en
todos los sitios pequeños, pero Granada tiene eso de ser un sitio re poblado con odio
hacia lo moro, lo árabe y todo eso. Y cada año celebran la toma de la ciudad en la
Catedral, y entraron los militares en la Caterdal para recordar la caída de Granada. Y lo
ha dicho miles de veces. Tiene todo en contra, absolutamente todo, en aquel momento.
Hombre y unos meses después tal vez alguien habría visto el peligro de matarlo, sabes
pero en los primero momentos cuando hay una especie de régimen de terror y nadie
sabe qué va a pasar y mucha inseguridad.
S:- Pero bien, pienso... pieso que tú también. Si él no saliese de España, no se quedaría
vivo. Una hora u otra iban a... Si no fuera un mes después, como ha pasado...
I:- Bueno sólo 1 mes después Franco todavía no es jefe. Unos meses después cuando se
ve que es una guerra civil que va a durar y todo eso. Entra el facto internacional y
alguien habría dicho "mira no podemos hacer eso porque sólo van a utilizar contra
nosotros".
S:- Pero, ¿piensas que si Lorca no fuera muerto muy pronto él podría seguir vivo o no,
seguiría siendo un...?
I:- Pues eso es lo que no sabemos, yo no lo sé. Cómo habría podido vivir en aquellas
circunstancias, es impensable. Casi diría mejor muerto ¿no?
S:- A demás de Ruiz Alonso ¿quienes son los otros hombres directamente relacionados
con la muerte de Lorca?
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I:- Bueno, está... es el gobierno civil claro. Porque ahí ha habido una uzurpación del
poder, cuando viene un señor, quitan el gobernador civil y meten otro, ese otro se llama
poder no civil, bueno pero es una uzurpación, es un uzurpador. Pero es quien dirige, a
demás Valdez este José Valdéz Guzmás era también camisa vieja, como decían no era
de los antiguos, pero él es militar, quienes mandan allí sobre todo son los militares, y
bueno él es quien decide. Probablemente consultando con en Sevilla porque su jefe
inmediato. Porque Granada no es capitanía general, es comandancia. No tiene la fuerza
que tiene Sevilla en aquellos momento quien dirige allí es Queipo de Llano cada noche
por la radio, es un asesino atroz.
[...]
I:- Hay muchísimo mas que no sabremos nunca. ¡Muchísimo! Porque no sabemos cómo
fué. Hombre nadie contó ni contará nada. Nunca. Hay mucha gente que sabía pero no lo
han contado. Y yo no les perdono esto, el silencio. Como en la nada ¡silencio! mi hija
ha muerto bueno, tamibén es una premonición. Silecnio sobre la tumba, silencio sobre
la verdad, silencio.
I:- Y seguimos todavía sin saber dónde está el muerto. O si robaron el cuerpo como a
Cristo, si desapareció el cuerpo. Yo estoy enfermo con esto.
S:- Sí, para mí lo peor es ver que a la gente no le importa, y cuando yo digo, que ¡Por
Dios! TieneN que saber dónde está el cuerpo. Dicen "no, es que tal vez, la familia..."
Así, todo tan pacífico, no puedo comprender. Y gente, asi, de la Universidad. Poca
gente dice "no, es un absurdo, no se puede".
I:- Hay mucha gente que sí lo dice, pero en fín, ya sabemos cómo es. Esta semana creo
que habrá algo sobre la familia Lorca, porque la prórroga se acaba. Es que la junta de
Anadalucía, que va a hacer esto, les dió 15 días para hacer alegaciones, eso fué hace 15
días. Y la familia Lorca pidió una prorroga de 10 días para poder saber un poco mas
sobre algo nuevo. Pero tiene que... esta semana se acaba. Tú te vas justo cuando...
bueno, lo verás en Internet ¿no?
312
S:- A ver... Ruiz Alonso te dijo en la entrevista que estaba solo en el momento que
detuvo a Lorca. Pero se sabe que es mentira.
I:- Claro, todo lo que él ha dicho no hay que darle mucha credibilidad. Él tiene su
versión preparada y me dice su versión preparada.
S:- Sí, pero mi pregunta es ¿porqué piensa que él quiso dar esta imagen de que estaba
solo?
I:- ¡Ah! Porque él es un hombre muy orgulloso de su virilidad. El señor Ruiz Alonso no
necesita nadie...
S:- Pero llama al otro para preguntar si puede dar café... ¿comprende?
I:- Bueno, primero nada se habla de todo lo que dice, él no va a decir... no, yo fuí bajo
mi único nombre, bajo mi única responsabilidad. Es su carácter, él es un energúmeno,
es un tío muy pagado de sí mismo, mucho rojo, muy macho ¿no? Cómo iba a ir él con
gente con fusiles ¡no, en absoluto! Y luego estaba rodeada toda la casa. De modo que
miente, miente, miente.
S:- Y después dicen, todos saben que Lorca no era un tipo muy valiente ¡Ah no!
Entonces porqué tanta gente, porqué tantos guardias. Si él no era valiente, ¿entonces
porqué tanta protección?
I:- Él niega que hubiera eso, él lo niega. Él dice, no hubo nada. Pero claro, cuando
murió Franco, se fué a Estados Unidos, ¿lo sabes? ¿tu ya has leído todo eso? Claro
porque él sabe lo que le aguardaba aquí sin protección del régimen.
S:- Muy bien, y él se fué porque era valiente, y el otro que se quedó no era valiente.
I:- Bueno, muy bien, tú a eso lo escribes. Tiene toda la razón del mundo
S:- Fíjate que la gente no pone atención a eso... bueno cambiando un poco por cuenta de
las cosas allá que tengo que decir. En tu libro tú dices que Lorca tiene una deuda con
Shakespeare.
313
I:- Bueno es que él cuando es jóven, cuando es adolescente, lee a Shakespeare, sobre
todo Sueño de una noche de San Juan, de verano, es la noche de San Juan. Yo creo que
le impacta profundamente leer a Shakespeare. La humanidad, la mezcla de tragedia, de
comedia, todos los registros que toca shakespeare, el amor, bueno aquella obra influyo
mucho, hay un poema juvenil que yo creo que menciono donde habla de la obra. Y es
un tema recurrente el amor que puede ocurrir en cualquier momento, que no se puede
elegir, que es algo que ocurre, todo eso es parte de su manera de ver el mundo y la vida
y él... Shakespeare le llega sin saber inglés y tampoco le hacía falta, Lorca es un genio
poético y capta enseguida los matices.
S:- La homosexualidad de Lorca fué un tema tabú hasta hace poco tiempo en España.
S:- Si, es que como ha dicho el chico en el teatro "no, porque ahora ha cambiado todo",
yo no aguantaba. "Ahora españa tiene matrimonios homosexuales, no sé qué"...
S:- Bueno, tampoco podría ser distinto porque en aquella época exponer las cosas así...
I:- Ah es muy fuerte lo que él hacía. Tienes que conocer muy bien la obra El Público ,
es fundamental. Porque Lorca se quiere liberar de su familia y tiene que ganar dinero,
aunque su padre tiene pero él no. De modo que El Público se puede poner y es el año
30, es increíble, es anterior a Bodas de Sangre, es anterior. Él vuelve al tema andaluz
porque ve la posibilidad de ganar dinero también. Porque él no puede imponer su teatro
de verdad. Y él dice, eso no es mi teatro de verdad, mi teatro de verdad es El público. Y
314
asi que pasa en 5 años, que no ve ni uno ni otro. Y son del año 30 y 31, anteriores a
Yerma y a Bodas de Sangre, de modo que estamos hablando de alguien que tiene una
obra hecha que no ha podido estrenar. Es importante, y él escribe Yerma habiendo
escrito ya El Público. Y tú sabes que volvió de Cuba diciendo "vengo con esta obra"
que es la cosa mas homosexual, francamente homosexual. Es la única vez que menciona
el tema, en la documentación que tenemos. En la documentación que tenemos, es la
única vez que él dice "vengo con una obra francamente homosexual". Fíjate, es
tremendo. Eso ya calla todas las voces, sí él mismo lo dice... a mí me acusaban de todo.
S:- Sí, por eso mismo he dicho de la carta para su madre, que él dice que no tiene nada
de político. Eso es como...
I:- Bueno, era aquel momento, sabes, están muy descontentos con él porque no está
ganando nada. La madre de él se queja, la madre es terrible, es terrible. Dice "Fderico,
tu padre te paga y no produces nada"
S:- Incluso las fotos de familia que veo, ella nunca mira a la cámara
S:- Siempre está así, "no quiero". Nunca está junto, él está de su lado y ella no mira... no
quiere, no sé. Rechaza
I:- Allí también todo el tema de la Bernarda Alba, no sabemos nada la relación de ella
con el viejo. Tiene que haber algo de la madre en la obra ¿no? No digo que ella fuera
como Bernarda Alba, obviamente, pero...
S:- (…) la vida de García Lorca, no me acuerdo en cuál entrevista, alguien dice que el
padre de Federico tiene predilección a Francisco.
I:- Ah bueno, porque Francisco, entre los muchos problemas que tiene Lorca tiene su
hermano. Porque es brillante, es un alumno fantástico, es una de las primeras notas en
todo, va a tener carrera de diplomático. A demás es guapo y las mujeres lo adoran. Y
Lorca va a tener ese problema. El otro ya tiene la carrera encaminada y va a ganar
dinero y va a ser un éxito, y el otro es un unútil que no... y a demás es maricón. Porque
yo me imagino que en el casino los socios del padre siempre iban al casino, siempre
habría alguien diciendo ¡oiga, los poetas, lo maricones que son!, sabes, es terrible. Y
luego, no está ganando nada.
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S:- Tal vez por eso volver a hacer una obra andaluza para ganar dinero, tal vez por
cuenta de esa cosa...
I:- Sí, necesita liberarse económicamente. No es que Lola sea una obra inferior, no. Él
puede poner allí todo su conocimiento musical, recurrir un poco al tema del folcklore de
la Andalucía y tiene el éxito garantizado.
I:- Claro, claro, él necesita. Necesita comunicarse con la gente para sobrevivir
psíquicamente, emocionalmente ¿no?
S:- ¿Y piensas que el tema de Lorca con relación a política, como agente político, no
como partidario pero por ser un revolucionario, también es un tema tabú?
I:- Tal vez hay gente que no lo quiere, que no entiende eso es posible. Yo no puedo
hablar de la gente de hoy.
I:- No creo, yo creo que sólo sería falta de conocimiento, no veo allí ningún tabú, es que
todo el mundo sabe que Loca era republicano identificado con Fernando Rio, con el
socialismo liberal, era socialdemócrata, mas o menos en la línea de zapatero hoy ¿no?.
Y no creo que haya allí ningún tabú, no.
I:- Si, bueno es lo que pasa. La gente no sabe nada de la guerra, los jóvenes no saben lo
que fue la república porque no se enseña bien en los colegios. Hay una ignorancia de
cómo fue la república y esa es la base del problema. Una especie de amnesia. Bueno, ni
es amnesia, es que no les han dicho, o han recibido una visión parcial de sus padres, de
la guerra, todo el tema de la guerra ha sido tan duro que no han hablado con sus hijos.
Es terrible. Los hijos de los fusilados no han hablado mucho con sus hijos, porque era
demasiado terrible pensar en lo ocurrido, sólo ahora los nietos. Los nietos que quieren
saber, porque sus padres no les explicaron nada. Eso es ahora lo que estamos viendo.
S:- Ahora entonces sobre el cuerpo de Lorca que hasta hoy no fue exhumado. ¿cuándo
piensas que eso puede cambiar, cuándo piensas que pueden exhumar el cuerpo, y cuál es
la importancia de exhumar el cuerpo?
316
I:- Bueno yo creo que vamos a ver algo muy pronto. Estamos hablando en septiembre
de 2009, la junta de Andalucía dijo que van a empezar esto en noviembre. Y desde
luego lo van a hacer, porque hay otros en la fosa y ademas un nuevo candidato, no se,
no se cuántos son, yo creía que eran 4 pero ahora dicen que son 5. Y la nueva familia
quiere buscar.
I:- Bueno es un inspector de finanzas o algo así. Parece que hay dos. De repente
aparecen dos familias que nunca habían dicho nada, y ahora dicen que hay dos mas. Yo
no lo sé, porque no he visto el material ni sé nada. Pero lo que si creo es que esto se va a
producir muy pronto. En cualquier momento se va a producir. Han dicho en noviembre,
y han dicho que lo van hacer, pero ya hay 2 familias pidiendo que se haga porque hay
problemas con la familia (…) porque es muy complicado. Pero vamos a conocer esta
semana por lo visto, la opinión, la posición de la familia, eso importantísimo. Eso por
un lado, de la familia han dicho que no quieren que se quiten los restos de Lorca, pero
luego también se ha dicho que ahora ya no se oponen, pero es posible que esta vez digan
que sí se oponen, no lo sé. Pero yo creo que digan lo que quieran, la Junta va a hacerlo,
porque la Junta queda fatal delante de la opinión mundial, quedan en el ridículo ¿no?
Pero ahora es muy complicado porque la familia ha dicho que no ayudará nada, para
nada la identificación de los restos de Lorca. Es lo que han dicho. Que no ayudarán con
el DNA, que no … Pero no se puede, cómo se va a proceder a la identificación de los
restos sin tener en cuenta el tema Lorca, es imposible, es grotesco, es una farza. Y todo
esto se va a ver ahora. Y yo desde luego voy a decir todo lo que quiero. Estas hablando
con un hombre que esta dispuesta a todo casi y estoy esperando.
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Anexo 4
Fotos da “Fiesta de Federico”
Fuente Vaqueros, 4 Junho de 2009.
Pessoas leem poemas de Lorca no pátio da Casa Museu Natal, abaixo, foto da autora lendo um
dos 111 poemas na página do Patronato Federico García Lorca
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