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itando 0 Cabra Marcado para MEDEIROS, Leonice Servolo. “Rey Morrer. In: MEDEIROS, Leonice Servolo e CASTRO, Flavia. Cabra marcado para morrer. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017; p. 09 2 44. O FILME CABRA MARCADO PARA MORRER (1964-84), que consagrou Eduardo Coutinho como documen- tarista, trouxe a ptblico a saga de Elizabeth Teixeira, personagem central do documentério. Muito ja foi escrito sobre ele, bem como sobre as Ligas ‘Camponesas da Paraiba e as de Pernambuco, pano de fundo da narrativa.' No entanto, é estimulante revisita-lo num contexto em que os resultados da Comissio Nacional da Verdade, publicados no final de 2014, € os empreendimentos de pesquisa, motivades quer pela multiplicagao de comissées municipais estaduais da verdade, quer pelas pos- sibilidades de novas fontes documentais sobre a ditadura, abrem novos caminhos para a reflexao.? 1 Sobre o documentirio, ver Schwarz (1985); Menezes (1995); Novaes (0996); Altmann (2004); Ramos (2006). Sobre as ligas na Paraiba, ver Benevides (1985); Aued (1986); Novaes (1997); Rangel (2000), Dantas (2008), além de estudos ja clissicos sobre as ligas em Per rnambuco, como os de Azevedo (1982) ¢ Bastos (1984). Sobre Eliza- beth Teixeira, ver Bandeira: Miele e Godoy (1997). 2 Além da ampla divulgagio dos arquivos do Brasil Nunca Mais, disponiveis no site do projeto, ha que se destacar a plataforma Memérias Reveladas, do Arquivo Nacional. Os estudos recentes sobre os conflitos sociais que antecederam o regime militar relacionados ao que se convencionou chamar de “mundo do tra- balho” e a repressdo sobre os trabalhadores que 0 marcou chamam a atengdo para a importancia de um caminho analitico que busque a voz dos perso- nagens e se volte para a reorganizagao da meméria a partir da possibilidade de retomada de eventos que ou estavam silenciados ou eram relembrados no interior das familias ou de grupos de conhe- cidos, ora como histérias individuais, sem maior significado coletivo, ora como algo que nao deve ser dito para além de circulos restritos. Nossa abordagem do documentario de Cou- tinho esta inserida nessa légica e profundamente influenciada pela nossa propria experiéncia de Pesquisa sobre conflitos no campo e @ repressdo que se seguiu ao golpe militar e sobre os signil cados dos depoimentos colhidos e da ativagio da meméria que eles provocaram. Como aponta 3. Refiro-me a pesquisa Confltos e repressto no campo no Estado do Rio de Janeiro, 1946-1988, financiada pela Faperj, a partir de um ‘edital demandado pela Comissio Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. A opgdo por ouvir os afetados pelas experiéncias repres sivas no regime militar (trabalhadores, liderangas, advogados, religiosos, agentes de pastoral), nos permitiu um olhar sobre os «eventos narrados no filme a partir de uma outra experiéncia his- ‘rica, na qual emergem situagdes semelhantes, que no tiveram a mesma notoriedade, mas que repetem a dramaticidade, Para ‘maiores detalhes, ver Medeiros (coord.), 2015. 10 Michael Pollak (1989), relatos a partir de memo- rias nao envolvem sé narrativas individuais; séo instrumentos de reconstrugao da identidade dos sujeitos, Desse ponto de vista, atuar sobre essa meméria, fazé-la aflorar com todas suas ambigui- dades em um outro contexto é um desafio a ser enfrentado pela Historia e pelas Ciéncias Sociais no Brasil, em especial se considerarmos que, entre © langamento do Cabra marcado para morrer, em 1984, € 0 momento em que este artigo foi escrito (2015), outras historias dramaticas se revelaram, contribuindo para quebrar 0 siléncio a que foram condenados os personagens das lutas no campo.* Eduardo Coutinho projetou nacionalmente as figuras de Joao Pedro e Elizabeth Teixeira num momento bastante particular, de intensas lutas por abertura politica e redemocratizagao, Dessa perspectiva, 0 contexto da produgao e langa- mento do filme foi também parte desse processo, pois jogava luzes sobre fatos ¢ personagens ainda pouco conhecidos e publicizava uma das faces da repressio, até entdo pouco divulgada fora de cir- culos bastante restritos: 0 exilio no proprio pais e a desestruturagao das familias. 4 Ver, entre outros, a nistéria do conflito de Japuara no Cearé, ‘contada pelo filho de sua maior lideranga (BARROS, 2013); a de Joo sem Terra (CAMARANO, 2012), e a trajetoria de Alexina Grespo, primeira esposa de Francisco Julio (AZEVEDO, 2007). n © documentirio revela uma experiéncia fil- mica bastante singular, na qual 0 cineasta se tor- nou protagonista, produtor de novos fatos e nio apenas um mero narrador de uma histéria pré- -construida, a partir de um roteiro delimitado. Cabra marcado nao é apenas um filme sobre as lutas camponesas na Paraiba e a morte de um lider. Consuelo Lins chamou a atengdo para esse fato, afirmando que o niicleo que produz a forca do documentirio “se constitui do reencontro do cineasta com seus personagens e das falas produ- zidas nessas ocasides, especialmente as de Eliza- beth Teixeira e de outros camponeses que partici- param das filmagens de 1964” (LINS, 2004, p. 44). ‘Mais do que isso, Coutinho é também aquele que empreende uma busca para localizar a familia, parte dela ainda em Sapé, parte espalhada entre os suburbios da cidade do Rio de Janeiro e de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Tornou-se assim 0 mediador do reencontro da personagem principal com sua histéria e sua experiéncia poli- tica mas também com a familia, em especial os filhos, que cumpriram destinos distintos. Assim, produz uma determinada leitura dessa histéria, intervém nela, narrando-a a partir de um deter- minado olhar que nao se propée nem neutro, nem distante (SCHWARZ, 1985; MENEZES, 1995). 12 Coutinho, como ele mesmo revela em diver- sos depoimentos que fez, quando foi para o Nor- deste, com uma caravana do Centro Popular de Cultura (CPC) da Unido Nacional de Estudantes (UNE), presenciou um comicio em protesto pela morte de Jodo Pedro Teixeira, lideranca assas- sinada em abril de 1962 € do qual nunca ouvira falar’ Sem saber do que se tratava, ficou impres- sionado com o vigor da manifestacao. Quase dois anos mais tarde, voltou 4 Paraiba para fazer um filme de ficgdo a partir dessa morte, mas teve que buscar um outro local para as locagdes. A razo para isso é bastante indicadora do clima de violéncia da época, em especial no Brejo parai- bano: 0 assassinato de um grupo de lavradores acirrou os animos locais o que, na percepgio do _diretor, dificultaria muito a realizagao do tra- balhos O local escolhido para as filmagens foi © Engenho Galileia, onde se desenvolveu uma experiéncia da organizagio camponesa que se 5 Sobre o CPC, ver, entre outros, Garcia (2004). 6 Muito provavelmente, Coutinho refere-se ao episddio que ficou conhecido como “chacina de Mari, municipio préximo a Sapé « Grea de sua influéncia politica. Trata-se de um conilito entre tum administrador de fazenda e camponeses, que resultou em cito mortos, entre as quais o administrador da Usina Sio Joao € presidente da Liga Camponesa de Mari, Ant®nio Galdino. Para iaiores detalhes, ver Zenaide, 2014 13 tornou emblemitica na histéria brasileira: as Ligas Camponesas. Ja entdo havia a proposta de uma experiéncia artistica singular: os préprios camponeses seriam 0s atores, inclusive com Elizabeth Teixeira, vitiva do lider assassinado, recriando sua propria perso- nagem. A filmagem foi interrompida pelo golpe e retomada em 1981, num outro contexto. Iniciava- -se a abertura politica, fora concedida uma anistia parcial e limitada, mas que permitiu a volta dos exilados, inclusive daqueles que, como Elizabeth, viviam clandestinamente em sua propria terra. O movimento camponés voltava a se visibilizar, em diversos pontos do pais, por meio de ocupagées de terras, greves, resisténcias de posseiros. Mas nem por isso o medo ea desconfianga haviam sido vencidos, como fica claro ao longo do filme. Boa parte das filmagens originais foram recu- petadas, pois haviam sido enviadas para um labo- rat6rio no Rio de Janeiro antes do golpe. Mas, nao era mais cabivel retomar o projeto original. Cou- tinho se impés entao a tarefa bastante dificil de localizar os personagens e ver 0 que havia se pas- sado com eles. O processo ¢ os resultados dessa busca sdo 0 corpo do documentario que mostra as diferentes faces da tragédia da repressao sobre 16 os camponeses. Dessa perspectiva, como aponta Dantas, o filme, a partir do trabalho com a meméria, pro- move a integracao das temporalidades ao contra- por as imagens “ficcionais” do primeiro Cabra, com as “documentais” da segunda experiencia. O testemunho se transforma em dentincia, € 0 pas- sado se presentifica. (2008, p. 30). Eatragédia humana que ressalta na busca que Coutinho empreende: & medida em que a familia de Elizabeth Teixeira vai sendo reencontrada (pai, tio e principalmente filhos), vai se explicitando o fio de outros dramas, normalmente pouco abor- dados quando se discute a repressdo. Assim apa- rece a brutalidade da separacao entre criangas ea mie, figura que se torna uma lembranca querida, _ mas também uma estranha? Também ganham peso as angtistias da mulher que, sempre presente ao lado do companheiro quando este era vivo, tornou-se lideranga apés sua morte para dar con- tinuidade aos seus ideais. Por isso, em diversos 7A esse respeto ver os documentirios A familia de Elizabeth Teixeira e Sobreviventes da Galilei, realizados por Coutinho a partir de uma nova visita do cineasta aos filhos de Elizabeth, realizada em 2013 ¢ objeto de anilise por Regina Novaes em outro, volume desta colecio. Foram disponibilizados em video em 2014, juntamente com 0 Cabra marcado para morrer, numa producao do Instituto Moreira Sales. 15 momentos foi ameacada, viu uma filha se sui dar ¢ outro filho de onze anos sofrer um atentado, autoexilou-se como condigao para permanecer viva, sofreu a dor de se separar dos filhos e, ainda marcada pelo medo, oscilava, no inicio dos anos 1980 entre um discurso décil sobre 0 governo militar, e uma fala inflamada a respeito da neces- sidade da luta contra a pobreza e a submissao. Neste artigo, proponho-me a fornecer sub- sidios histéricos e contextuais sobre os trés momentos em que o documentério de Coutinho pode ser dividido: 0 tempo em que a Liga de Sapé se constituiu e se expandiu por varios munici- pios da Paraiba; o periodo do exilio de Elizabeth Teixeira e o momento do reencontro com Couti- nho, que se desdobrou na busca da familia, Para tanto, apoio-me nas cenas do filme, na literatura disponivel em outros relatos feitos pela propria Elizabeth Teixeira, em especial a partir do livro publicado em 1997 por Neide Miele, Lourdes Bandeira e Rosa Godoy e de uma longa entre- vista que fiz com ela em 1984, quando veio ao Rio de Janeiro para o langamento do Cabra marcado para morrer* Tanto 0 dudio como a transcrigo esti disponiveis para consulta, ‘no Niicleo de Pesquisa, Documentacio e Referéncia sobre Movi- ‘mentos Sociis e Poticas Pblicas no Campo do Programa de 16 O CONTEXTO DA EMERGENCIA DE ORGANIZAGOES CAMPONESAS NA DECADA DE 1950 ‘As cenas filmadas por Eduardo Coutinho no inicio de 1964 apresentam os tracos basicos do mundo camponés paraibano ¢ da opressio. que © marcava: trabalhadores vivendo em terras de outros, pagando 0 foro e o cambio’ considerados abusivos; 0 inicio da organizagao por meio da cria- cao de associacdes de lavradores; a circulago de trabalhadores entre o rural e o urbano em busca de sobrevivéncia; 0 aprendizado advindo dessa circu lacdo; a pobreza e, ao mesmo tempo, a dignidade de familias que vivem de seu trabalho. Mostram principalmente a presséo para que os trabalha- dores saissem da terra por meio do aumento do foro, despejos violentos (exemplificado pela cena de derrubada de casa de um trabalhador), revolta, contestagaio e a emergéncia de “cabras marcados Pos-graduagdo de Cigncias Sociais em Desenvolvimento, Agri- cultura ¢ Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (NMSPP/CPDA/UFRR)). Foram quase seis horas de gra- ‘vacio, depois por mim organizadas para publicaglo, o que aca- ou nio ocorrendo, Todas as citagdes de entrevista com Elizabeth ‘Teixeira neste artigo sio provenientes dessa fonte 9 © foro era uma taxa paga a0 proprietitio pelo uso da terra. O cambio consistia em dias de trabalho gratuitos exigidos aos rmoradores foreiros pelo dono da terra 7 Para morrer’, ou seja, aqueles que se contrapu- nham as formas de dominagio vigentes. __ Emboraa Paraiba seja o cenério do filme, situa- §0es muito parecidas ocorriam em diferentes par- tes do Brasil, inclusive naquelas entao consideradas mais industrializadas e “desenvolvidas’, como Rio de Janeiro e Sio Paulo. Com efeito, desde meados dos anos 1940, em diversos pontos do pais, verifi- cavam-se incipientes ages voltadas Para a organi- zagao dos trabalhadores do campo. Se os conflitos em torno da questao fundidria sempre foram recor- rentes em nossa histéria, a novidade desse periodo foi a tentativa de unificar situagdes locais a partir de bandeiras comuns. Na impossibilidade de orga- pe sindicatos, uma vez que sua criagdo ainda pe estava regulamentada, comegaram a surgir associagoes de lavradores’, “irmandades”, “ligas”. Trata-se de um momento em que o Partido Comu. nista procurava dar sentido 4 bandeira da alianga operario-camponesa e em que era necessério dar Corpo ao camponés que aparecia no programa par- tidério, mas que no tinha maior concretude para seus militantes naquele momento. Pouco @ pouco, ele foi identificado, Por intelectuais e militantes comunistas, com moradores de condicio, foreiros, Posseiros, categorias constantemente: ameagadas de deixar a terra em que trabalhavam e viviam. 18 Nesses primeiros anos do p6s-guerra, 0 PCB foi ao campo, se aproximou de situagdes de con- flito e procurou dar voz. aos atingidos pela opres- sao dos proprietarios de terra e/ou grileiros.” ‘Tra- ta-se de um esforco que se prolongou ao longo da década de 1950 e cujo resultado foi a progressiva articulagao em torno de bandeiras como direitos trabalhistas e reforma agréria. O jornal Terra Livre, ctiado em 1949 pelo PCB como instrumento do trabalho educativo no campo, tinha por subtitulo “Terra para quem nela vive e trabalha’, expresso que sintetizava duas situagées recorrentes em dife- rentes pontos do pais, cada uma delas com suas particularidades: a daqueles que viviam e trabalha- vam em terras dos outros, pagando foro, arrenda- mento ou mediante contratos de parceria e a dos que viviam em terras cuja propriedade legal era desconhecida e que passaram, ante a iminéncia de despejo, a se apresentar como posseiros, reivindi- cando o direito a terra pelo trabalho nela investido, contrapondo-se aos que diziam ser donos, mas 10 Na Paraiba, nio conseguimos detectar situagées em que a pro- priedade da terra era questioneda. O que se colocava em causa «era a injustia do aumento do foro ¢ a opressio dos proprietiios. i no Rio de Janeiro, desde logo as disputas opuseram posseiros e grileiros (entendidos como aqueles que se apossivam da terra sem ter titulo ou ampliando ilegalmente seus dominios). Para 0 ‘uso politico do termo grilero, ver Grynzpan (1987) 19 que eram ausentes. Com efeito, posseiros, foreiros, arrendatérios foram os principais personagens da luta por terra nos anos 1950 ¢ inicios da década de 1960. Aos poucos grileiros e proprietdrios mistura- ram-se na figura do latifundidrio, expressdo que se referia nao s6 ao tamanho da terra, mas também as relagdes de dominagao e opressio presentes nas fazendas e engenhos (NOVAES, 1997). A disputa em torno dos valores a serem pagos como foro marcou a organizacao das ligas da Gali- leia e de Sapé. Trata-se de um contexto muito par- ticular em que as éreas de cultivo da cana se expan- diam, frente & melhoria dos precos internacionais do agticar, e em queas relagdes entre dono da terrae 0s foreiros, bem como 0 contrato implicito que elas supunham, eram colocadas em permanente dis- cussdo/negociagao. Nao por acaso Coutinho intro- duziu um desses momentos nas cenas rodadas em 1964; tratava-se de buscar formas de acordo, atitude que nem sempre era bem recebida uma vez que, na légica desse universo, nao cabia ao trabalhador qualquer contraproposta, menos ainda em grupo. Na cena construida a partir de um improviso com 08 préprios atores/lavradores, eles mesmos contive- ram a ira de um de seus companheiros que tentou agredir 0 administrador. Nao hé nenhum sinal de radicalidade na demanda e mostrar isso faz parte de um contexto politico onde o fundamental era 20 apontar a justeza das reivindicagdes dos lavrado- res e a falacia do perigo anunciado pela imprensa como justificativa para a repressao tanto pri- vada como estatal. Se a cena mostrava a revolta dos camponeses, também indicava 0 respeito ao administrador, postado na varanda, enquanto os demandantes ficavam abaixo, no patio, Também ele conciliava, apontando os beneficios concedidos, mas, a0 mesmo tempo, ameagava, apontando Joao Pedro, que julgava estar & frente da agio reivindi- cativa coletiva. Naquele contexto particular, tentar se organizar, tematizar publicamente a opressao era em si mesmo um ato de subversio, pois colocava em questo 0 poder patronal. Ou seja, 0 proceso de provocar a saida dos lavradores da terra se tinha raaBes econdmicas também tinha motivagées poli- ticas. E era em especial sobre os que contestavam quea violencia se abatia, como retratado em alguns momentos do filme. No final dos anos 1950 e inicio da década de 1960, as associagdes se espalharam pelo pais, fize- ram encontros, criaram organizagées estaduais, como € 0 caso das Ligas Camponesas de Pernam- buco e das federagdes de associacées de lavradores, em diversos outros estados, e uma entidade nacio- nal, a Uniao dos Lavradores e Trabalhadores Agri- colas do Brasil (Ultab). Também nesse momento, comegaram a se tornar publicas as disputas em a torno da natureza da “revolucao brasileira’, entre elas a que opunha a linha oficial do PCB e as orga- nizagoes que cresciam em Pernambuco, sob lide- tanga de Francisco Juliao, jovem advogado, depois eleito deputado estadual, que apoiava as Ligas. Vale observar que o préprio termo “liga” ndo emerge naquele momento: suas origens foram as primeiras associagées criadas pelo PCB no entorno de Recife. Foi utilizado inicialmente como termo acusatério pelos que viam nas organizagées emergentes um risco politico, mas depois adotado pelas associ ges que comesaram a surgir em Pernambuco e Paraiba em meados dos anos 1950." A propria chegada de Coutinho, junto com 0 CPC da UNE, indica 0 processo de radicalizacao do debate politico naquele momento, marcado pela discussdo em torno dos rumos do desenvol- viento e a demincia da miséria a que estavam submetidas as populagdes rurais e as das periferias urbanas, como mostram as primeiras cenas. Mas os relatos de Elizabeth também revelam outros personagens, nem sempre devidamente lembrados: os pequenos ¢ médios proprietirios, com algumas posses, como €0 caso de seu proprio 1A organizagéo que surgiu no engenho Galileia, em Pernambuco, considerada bergo das Ligas Camponesas, chamava-se original- mente “Associago de plantadores”. A liga de Sapé também surge ‘com 0 nome de associagio de lavradores. 22 pai, que trabalhava na roca com a ajuda de alguns moradores, tinha uma mercearia e uma banca de jogo do bicho (BANDEIRA; MIELE; GODOY, 1997, p. 27). Também emerge a autoridade masculina sobre a familia: ndo se discutem as ordens dos pais, a mulher e as criangas séo submissas & vontade paterna, os pequenos nao podiam ficar ouvindo conversa dos adultos, o pai decidia quando se ia a escola e quando dela se devia sair, autorizava ou nao os namoros. F bastante eloquente a proibigao que o pai faz do namoro com Joao Pedro: Papai ndo queria 0 namoro. Uma que ele [Jodo Pedro] era moreno e outra que era pobre. Em pri- meiro lugar pobre, ¢ isso era o que papai mais nao queria. (TEIXEIRA, 1984). JOAO PEDRO TEIXEIRA EALIGA CAMPONESA DE SAPE Segundo o depoimento de Elizabeth Tei- xeira, Jodo Pedro veio a Sapé para trabalhar numa pedreira, nas terras de um dos Ribeiro Coutinho, familia tradicional do Brejo Paraibano." Como 0 ‘a Essa familia compunha o chamado “grupo da Varzed!, que controlava 0 poder politico no local. Dele igualmente fazia parte ‘0s Veloso Borges, também bastante conhecidos por sua violéncia contra os trabalhadores. 23 pai dela possufa um pequeno armazém em sua propriedade, Joao Pedro ia lé fazer compras. O namoro que se iniciou entre os dois foi reprimido e Elizabeth acabou fugindo de casa para casar ¢ distanciou-se dos pais. Sua historia, a partir dai, foi marcada por momentos de aproximagao e desentendimentos com a familia. O casal foi morar numa fazenda onde 0 tio de Joao Pedro era gerente e depois em Recife, onde ficaram por nove anos: “E ld em Recife, ele trabalhava em pedra. Aos domingos ia a escola dominical ¢ & noite a Igreja” (TEIXEIRA, 1984). Aos poucos Joao Pedro, embora evangélico, foi se envolvendo em atividades politicas e par- ticipou da criacdo do Sindicato dos Pedreiros. Muitas reunides eram feitas em sua propria casa. Por suas atividades politicas, perdeu 0 emprego, € como nao conseguia outro, 0 casal, agora com muitos filhos, acabou voltando para Sapé, com 0 apoio de um irmao.” Nesse momento, ele se apro- ximou de Joao Alfredo Dias, 0 Nego Fuba, que era presidente do PCB do municipio. Segundo o relato de Elizabeth, frente as condi¢des miserdveis dos trabalhadores da regido, Joao Pedro comesou 13, Um irmio de Elizabeth, conhecedor da situacio dificil em que -viviam (nesse momento jé tinham seis flhos), convenceu o pai a aceité-los. © pai entio hes ofereceu um sitio que havia comprado havia pouco do padrinho de Elizabeth 2h a visitar as propriedades prdximas,-conversar com 0s lavradores e a organizé-los para tentar garantir suas reivindicagées basicas, mas as condigées de repressdo dificultaram a criagdo de uma organiza- gio. Na mesma €poca se consolidava a associagao da Galileia, em Vitdria de Santo Antio, berco das Ligas Camponesas de Pernambuco. Com dificuldades econdmicas para susten- tar a familia, Joao Pedro foi para o Rio de Janeiro em busca de trabalho, Parecia assim cumprir 0 mesmo destino de milhares de camponeses da época. Retornou oito meses depois, retomando as atividades organizativas em Sapé. Em 1958 final- mente conseguiu fundar a Liga do municipio. Ela se tornou a maior da Paraiba e o embrido de varias outras na regiao: Santa Rita, Rio Tinto, Maman- guape, Mari. Ao longo desses anos, Elizabeth trabalhava em casa e na lavoura: Nesse tempo todo eu somente trabalhava no rogado, ajudava o trabalho, a colher feijao, a colher milho, a colher 0 amendoim, o inhame, as vezes até mesmo na enxada, em volta da casa, no quintal da casa. E cuidava dos filhos. Quando ele fundou a Liga de Sapé, que comecou a Liga crescendo, todo mundo procurando a Liga Cam- ponesa, ele me chamou para nos sdbados eu ir para a Liga e ficar atendendo 0 povo no escritério 25 da Liga. Porque ele ficava na feira, recebendo os camponeses ¢ orientando e falando com os cam. Poneses. (TEIXEIRA, 1984). Anarrativa de Elizabeth é bastante reveladora das condicdes que permitiram que pouco a pouco Tompesse com o lugar social de mulher dedicada aos cuidados da casa, dos filhos e do marido, No entanto, apesar de participar das reuniées, ela ndo fazia parte da direcao até a morte de Joao Pedro. Coutinho retrata com precisdo esse lugar: numa Teunido, na casa de Joao Pedro, Elizabeth esta atenta ao movimento externo, serve café, observa, mas nao se senta & mesa, Parece nao haver lugar Para ela numa reunio politica da qual sé homens participavam, No relato acima, Elizabeth, ndo por acaso, chamaaatencao paras feiras, Esse era o momento €m que os trabalhadores vinham a cidade vender sua produgio e fazer as compras de produtos de que necessitavam. Era a situacao ideal Para a con- versa, conhecimento da situaco dos trabalha- dores ¢ para tentar aproximé-los da Liga. Ainda segundo Elizabeth, durante a semana, Joao Pedro ia para as fazendas: Em toda regio do campo a gente tinha um traba- thador que era mais esclarecido, que orientava os 26 sua casa, (TEIXEIRA, 1984), A Liga de Sapé recebia regularmente 0 jornal Terra Livre, editado pelo PCB. “O jornal chegava na Liga, pediam para euler. Eu lia: como estavam desenvolvendo as lutas.. lia para os camponeses (TEIXEIRA, 1984). A pauta das Ligas envolvia basicamente a luta contra 0 cambdo e contra 0 foro. O cambio era bastante combatido tanto em Pernambuco como na Paraiba. Quanto ao foro, aparecia mais intensamente nos relatos referentes & Paraiba. Ainda segundo Elizabeth, a reivindicagao do foreiro era contra o aumento See € 0 foreiro ficava numa situagio que nio podia agar, Muitos deles, que as vezes possuiam uma vaquinha dentro daquele terreno onde pagavam foro, eram obrigados a vender para pagar 0 foro no final do ano... Havia muitos despejos de forei- 108, (TEIXEIRA, 1984). i ros (1995). Elizabeth fora Sobre o jornal Terra Livre, ver Medei ste alfabetizada, o que Ihe dava uma situagao diferencial em relaca 4 maioria dos camponeses da regido. Segundo seu relato,alfabeti- 204 inclusive Jodo Pedi. ns antigos partcipantes das Ligas Rangel (2000) entrevistou alguns antigos pa ig 0 tema tratado sempre foi o aumento do foro eas possbilidad de seu comportamento frente asso a Se a imagem que se constituiu na memoria social sobre as Ligas foi a de radicalidade, o depoi- mento de Elizabeth também introduz nuances nessa interpretagio. Em diversas passagens de sua entrevista, ela chamou a atengao para o fato de que havia sempre um esforgo de negociagao para que as benfeitorias fossem pagas e para que os forei- ros pudessem colher suas rocas ou fossem inde- nizados por elas. Era bastante comum o recurso & justica, quando nao havia possibilidade de acordo com 0 patrao, Mas o trabalho das Ligas era mais amplo em termos de temas e praticas. Nao se tratava sé de organizar a contraposicéo aos fazendeiros, mas também de apoiar os lavradores em algumas de suas necessidades basicas, em especial satide. Como relata Elizabeth, a Liga de Sapé também Prestava assisténcia aos associados: médicos e dentistas politicamente préximos se dispunham a atender os lavradores a baixo preco, pago com @ mensalidade da Liga. Além disso, “se 0 campo- nés adoecia, precisava de uma passagem para ir a Joao Pessoa, a Liga era quem dava, ida e volta” (TEIXEIRA, 1984). 28 A REPRESSAO E SUAS FACES “Tem gente lé fora’. A cena do filme em que Elizabeth expressa sua preocupacio durante a reu- nido de camponeses em sua casa, e que é ecoada sucessivamente por varias vozes, foi também, emblematicamente, a ultima filmada por Couti- ho, justamente em 31 de margo de 1964. No dia seguinte o trabalho foi interrompido ea equipe de filmagem e Elizabeth Teixeira tiveram que deixar o local as pressas. Iniciava-se um novo periodo na historia brasileira, No entanto, se o pés-golpe foi marcado pela repressdo as organizagdes camponesas, cer. tamente o periodo que o antecedeu nao lhes foi favordvel. O medo do que acontecia no entorno da sua casa era constante. Elizabeth foi enfaitica ao afirmar em sua entrevista que “nossa casa vivia cheia de policias em volta, capangas”. Diversas passagens do filme ou das entrevis- tas com Flizabeth mostram que a repressio jé fez notar nas primeiras tentativas de organizagao. ‘Assim, 0 assassinato de Joao Pedro foi apenas um capitulo dela: Em 56 ele [Joao Pedro] fez a primeira reuniéo com varios camponeses para formar a diregao da Liga Camponesa. Nao deu certo, porque ai se deu uma 29 repressio grande... Os camponeses que estavam ligados a ele ficaram com medo, se afastaram um pouco, Até um creditozinho, um emprestimozi- nho quea cooperativa tinha dado a ele para traba- Ihar la no sitio em que nés morévamos cortaram, (TEIXEIRA, 1984). Alfredo Nascimento, dirigente da Liga de Sapé, foi morto por capangas meses antes de Joao Pedro: 0 proprietério o havia expulsado da fazenda em que era foreiro e ele disse que s6 sairia quando colhesse o que havia plantado. A rebeldia foi vigorosamente punida. Joao Pedro foi preso varias vezes. Numa das ‘ocasides, como conta Elizabeth, foram muitos policiais. Tinha dado uma chuva, ¢ da minha casa para a estrada tinha um rio, o rio Gurinhem. Eles pegaram Joio Pedro, levaram reso, Até chegar ao rio, cada um dava uma bor- rachada maior, batendo nele. (TEIXEIRA, 1984). As ameagas a casa e familia eram constantes: Ele mandava que as criangas se deitassem no chao, eles ficavam todos juntinhos, deitados no chao, “porque se vier bala voces esto no chao”, Eu e ele ficivamos de guarda na porta, de foice na mio, Porque 0 camponés no tem arma, aguardando que eles botassem a porta abaixo [.... Esses meni- ‘nos, os meus filhos, eles so uns frustrados de nao 30 poder dormir de noite, com medo das pancadas nas portas, com medo dos capangas que davam comida envenenada aos cachorros (BANDEIRA; MIELE; GODOY, p. 47). ‘A cena do filme em que ela canta um coco com as criangas em torno de uma mesa, com 0 tom de voz cada vez mais alto também indica uma forma recorrente de afastar 0 medo das pedras jogadas na porta da casa, dos chamamentos feitos. As atividades de Joao Pedro desagradavam © pai de Elizabeth que acabou por vender o sitio onde o casal morava. Com isso, a familia deveria deixar a terra. No dia em que Joao Pedro foi a Joao Pessoa negociar com o advogado do novo proprie- tario, foi assassinado na volta para casa. Sua morte era uma forma de atemorizar os camponeses € _afasta-los da organizaco. Segundo Elizabeth, Joao Pedro foi assassinado porque os proprietérios ligados ao governo, eles nao querem que o homem do campo tenha direito a nada. E dado isso, eles coprimem o homem do campo e quando o homem do campo vé um pouquinho, que acha que deve se libertar de umas tantas misérias que eles fazem, ai eles comegam a assassinar. (TEIXEIRA, 1984). Apés a morte de Jodo Pedro, no entanto, a Liga de Sapé cresceu e chegou a ter, segundo Eliza- beth Teixeira, 16 mil associados. Os atos publicos a em protesto pelo assassinato contaram com a pre- senga de milhares de pessoas. O efeito foi o oposto a0 desejado. Elizabeth acabou assumindo o lugar do ma- rido, Segundo ela: Os camponeses me aceitavam ¢, na realidade, eles davam mais apoio, mais fraternidade ainda. [...] Eles iam diretamente na minha casa, eles traba- Ihavam na roga para mim, faziam tudo por mim, Eles me viam assim como a segunda pessoa de Joao Pedro, como se fosse a segunda pessoa com a minha atualidade, E eles entendiam, eles sen- tiam-se até orgulhosos em me ver na direcdo da Liga, como vitiva de Joao Pedro Teixeira. (re1- XEIRA, 1984). Esse era um comportamento excepcional, na medida em que as mulheres, via de regra, tinham Participagao politica limitada. Segundo Elizabeth, elas iam as Ligas quando os maridos nao podiam, iam as concentrages, mas, por exemplo, nao iam nas casas dos camponeses, nos momentos de idas massivas as fazendas. Mas ela jé vinha partici- pando havia algum tempo das atividades e assim foi ganhando legitimidade nao s6 como esposa, mas como militante. Esse foi o tempo da trans- mutacao da esposa em lider. Uma lideranca que rompia com o que era o costumeiro para a mulher, 32 Como narra Elizabeth, toda Vez que aconte- cia algo com um camponés, ela saia seguida de 300, 400 camponeses e ia chamando os outros pelo caminho. Se alguém se recusasse, entravam em agéo mecanismos punitivos morais do grupo, como botar chocalho: Quando um deles estava com medo, os outros faziam repressio de botar chocalho, Eu era contra botar chocalho nas pessoas. Ninguém quer andar chocalhado, ninguém é boi. (TEIXEIRA, 1984).* Segundo ela, o chocalho apareceu depois da morte de Joao Pedro: Com 0 assassinato dele, a massa ficou em deses- pero, a massa queria partir para coisas mais difi- ceis, a massa do campo nado se conformava. Entio partiu-se pra muitas coisas, pro chocalho, pro desespero, houve fogo nas palhas das canas. (BAN DEIRA; MIELE; GODOY, p. 99). A tragédia da familia nao terminou com a morte do lider. As presses continuaram e, em junho de 1962, 0 filho, de 11 anos, sofreu um aten- tado que quase o matou. Segundo Elizabeth, o responsdvel foi um morador, colocado pelo novo proprietario no sitio em que viviam. Logo depois 16 Novaes (1997) também fala do uso do chocalho como forma de discriminar os que no aderiam as agbes das Ligas. 33 a filha mais velha se suicidou, acometida de severa depressio, De acordo com a narrativa de Elizabeth Tei- xeira, sua pritica deu sequéncia ao que Joao Pedro fazia diante de conflito: negociar, tentar fazer acor- dos nos casos de expulsio. E também foi presa por isso: Houve um problema Ié na fazenda e eu entrei Li ‘com os camponeses para resolver, O problema era a casa de um camponés que tinha descoberto 0 telhado e a mulher do camponés na madrugada, com a casa sem 0 telhado, ela teve neném. Eles estavam querendo despejar ¢ ele nio saia, [..] Eles pediram a casa, ele tinha uma lavoura e nao Queria deixar a lavoura dele. © que tinha para Se manter era aquela lavoura, Entao eles pensa- ram que a melhor maneira era descobrir a casa, Ele foi se valer da Liga. Eu fui e chamei os com. Panheiros ¢ disse assim: “Vamos cobrir a casa do camponés porque nao ¢ possivel. Vamos cobrir € ver se entra em entendimento com o patrio, vamos ver o que vai dar!” (TEIXEIRA, 1984). Quando o dono da terra viu a casa novamente coberta, chamou a policia. Da forma como Eliza- beth relata, a prisao era acompanhada de muita humilhagao. Foram 18 policiais, que a ameacaram, dando tiros para o chao, préximos dos pés; depois © convite para entrar no carro da Policia e sentar 34 na perna de um soldado, Na chegada a Sapé, 0 carro que a levava circulou por toda a cidade, para todos verem que ela estava presa. Nesse perfodo, Elizabeth ganhou grande visi- bilidade. Passou a participar de comicios e na sua casa vinham muitos jornalistas. E se isso certa- mente funcionava como uma forma de protecao, 40 mesmo tempo provocava desconfianga e édio. 0 POS-GOLPE No dia seguinte ao golpe, a repressio se impés com mais intensidade. A equipe de filmagem teve que sair de Pernambuco, Elizabeth se refugiou na casa de um conhecido. O Exército chegou nas regides de conflito em busca de armas, revirando as casas. As cenas de violéncia narradas no filme * pelos membros da Liga da Galileia reencontrados por Coutinho nao foram peculiares as regides onde as Ligas frutificavam, mas repetiram-se em varios lugares e correspondem a uma determi- nada visdo que se construia sobre os camponeses e suas demandas: eles eram manipulados, mas nem por isso menos perigosos. O interrogatério narrado por um dos moradores da Galileia sobre as perguntas a respeito dos “barbudos cubanos” ¢ bem demonstrativo da preocupagéo com agentes 35 externos que, segundo os militares, se aproxima- vam dos camponeses para se aproveitar de sua situacao de pobreza.” Lideres locais foram presos e torturados, como é 0 caso de Antonio Virginio. Seu depoi- mento ao filme é ilustrativo e forte: pequeno pro- dutor no Engenho Galileia, era aquilo que se con- siderava na época um agricultor exemplar: produ- zia e “tirava meio caminhao de mercadoria toda semana” para vender nas feiras locais. Pergunta, Perplexo: o que a nagao ganhou com ele nas grades da cadeia? Alguns outros foram ameacados e aca- baram abandonando seus sitios e migrando para outras regides, em especial o sudeste. Um deles teve que sair da Igreja Batista da qual era fiel. Ou seja, as formas de violéncia foram muiltiplas e nao Se restringiram as prises e torturas. Tiraram as pessoas de seu convivio social eas estigmatizaram. A policia também foi procurar Elizabeth em seu sitio, em Sapé. ¥7 0 1PM 709, que investigou as ages do PCB, é bem eloquente sobre essa concepgio de que os camponeses eram incapazes © frente & situacdo de miséria, presa ficil dos agitadores. Este IPM, bem como os quatro livros que o sintetizam e que foram Publicados pela Biblioteca do Exército, encontra-se disponivel para consulta na pagina do projeto Brasil Nunca Mais: . Acesso em: 16 ut. 2016 36 Como eu nao estava, eles botaramn fogo em tudo. Prenderam Zé Odilon, um preto bem alto, que antes de morar ld em casa, vivia no sul. Juliao trouxe ele para morar 1d em casa [..). Ele cui- dava do rogado e também servia de seguranga. A mulher dele me ajudava a tomar conta dos meni- nos quando eu tinha que sair ou viajar. Assim que aconteceu o golpe e que a policia foi a minha pro- cura, prenderam Zé Odilon. Na delegacia de Sapé ele foi torturado, quebraram os seus bragos, ele foi muito torturado (BANDEIRA: MIELE; GODOY, p. 105). No entanto, o ponto alto do filme ¢ a maneira como sto mostradas formas de violéncia que nao ocuparam as paginas dos jornais, que sao silen- ciosas, mas nem por isso menos destruidoras que so sintetizadas na trajetoria de Elizabeth Tei- xeira: a mulher que perdeu 0 marido, dois filhos e, depois do golpe, teve que fugir, deixando os outros filhos, a familia e sua histéria, para mergulhar na clandestinidade em sua prdpria terra, Quase 20 anos depois, morando na pequena cidade de So Rafael, no Rio Grande do Norte, relativamente proxima a Sapé, ela ndo sabia ainda onde todos estavam, nem mesmo se estavam vivos. Elizabeth permaneceu escondida por cerca de dois meses na casa de um conhecido, mas aca- bou por se apresentar ao Exército. Ficou quase trés meses detida, foi solta, voltou para a casa 37 do pai e novamente foi procurada por um coro- nel para ser levada presa. Segundo sua narrativa, quando 0s proprietarios de terra locais souberam que ela estava la, se uniram e foram armados para maté-la, A policia cercou a casa. Como estivesse muito doente, o pai prometeu que ela se entregaria no dia seguinte. E ela acabou fugindo com ajuda do filho mais velho que, nesse momento, estava estudando em Recife, com uma bolsa de estu- dos que também foi cortada. De Recife foi para o interior do Rio Grande do Norte, onde trabalhou na colheita de feijéo. Em Sao Rafael, no mesmo estado, foi agricultora em terra dos outros e lava- deira, com nome falso (Marta), sempre ao lado de um dos filhos, enjeitado pela familia dela por ser parecido com o pai. Comecou a frequentar 0 sindicato, para ter assisténcia médica, como era comum nas regides rurais quando da criacao do Funrural.* Mas passou a ir as reunides e, quando foi anunciada a construcao de uma barragem, aju- dou a organizar manifestacdes. Nesse momento, 38 O Funrural foi criado em 1971. Por meio dee os trabalhadores rurais passaram a ter direito & aposentadoria (meio salério ‘minimo) e foi transferida para 0s sindicatos a asssténcia & satide do trabalhador, na medida em que supunha recursos para estabelecimento de consultérios médicos e dentirios nos sindicatos. Para maioresinformagies ver Barbosa (2010). 38 apesar de viver clandestina, com outro nome, atualizou sua experiéncia politica: és fizemos varias concentragdes em protesto. Ai foi bispo, foi padre, padres de varias cidades do Rio Grande do Norte. Foi 0 bispo de Mossoré e fizeram uma grande concentracéo dentro de Sio Rafael, em protesto a barragem. Foi gente de varios estados, da Paraiba, do Recife, tudo parti- cipar das concentragées, varios énibus de outros estados, de outros sindicatos, tudo protestando contra, (TEIXEIRA, 1984). Em todo esse tempo, nao tinha contato com os filhos, que estavam espalhados nas casas de familiares. $6 buscou o mais velho, Abraao, quando Carlos, o filho que ficara com ela, se aci- dentou e precisou ser operado, Nesse interim, che- gou Coutinho, que, buscando reatar os caminhos “de sua propria histéria, atuou decisivamente na mudanga de rumos da vida da familia Teixeira. AVOLTA Localizada por meio do filho mais velho, que fez o contato entre ela e Coutinho, Elizabeth tam- bém teve sua palavra contida. O cineasta trabalha com 0 contraste entre a fala disciplinada, orien- tada pelo filho, de agradecimento ao Presidente Jodo Figueiredo e a fala solta, na presenga s6 de 39 Coutinho, onde renasce a Elizabeth e morre a Marta, mas que, logo a seguir, faz de novo o agra- decimento a Figueiredo. Elizabeth é a lideranga na sua integridade e ambiguidades. Nesses 20 anos, a familia se dispersou, cada membro cumpriuum destino, espalhando-seentre Paraiba ¢ Rio de Janeiro.” Também os campone- ses da Galileia se espalharam ou calaram sobre seu passado. Alguns mudaram de vida, outros continuaram como agricultores, guardando 0 pas- sado na meméria. O reencontro de pessoas que ‘ha muito nao se viam é outra cena importante do filme: uma alegria quase infantil, de se ver na fil- magem, pontuada pelo préprio Coutinho em suas intervengdes no filme. A vida de todos mudou, as lutas foram um momento do passado, as trajeté- rias se diferenciaram, O Cabra marcado é finalizado com a fala de Elizabeth apés a despedida de Coutinho. E a fala critica, da lideranga que renasce. Mas reflete tam- bem a esperanca do cineasta, que na cena final 19 Eu mesma testemunhei essa saga, quando fui com Ana Maria Galano numa casa elegante da Barra da Tijuca, na tentativa de falar com uma das filhas, que era empregada doméstica e, como rade se esperar, nto pde nos receber hs ‘os receber pois estava em seu horirio a me Apesar da enorme repercussio da histéria de sua familia, ela continuava como empregada e ndo pudemos sequer cruzar 0 portdo da casa onde trabalhava. 7 40 abre uma porta para que a plateia’ possa respirar a esperanga de mudanca que emerge do discurso vigoroso da protagonista. Desde entao, Elizabeth se tornou um icone da resisténcia. Ja em 1985, participou do IV Con- gresso Nacional dos Trabalhadores Rurais que foi marcado pela apresentacao da Proposta de I Plano Nacional de Reforma Agraria. Tem participado de diversos eventos de trabalhadores rurais, consti- tuindo-se numa guardia viva da meméria de um momento extremamente significativo das lutas camponesas. Foi uma presenca marcante nas mar- chas das margaridas, evento que reine mulheres do Brasil todo em torno de uma pauta de deman- das relacionadas aos direitos das mulheres. No entanto, no momento em que o Cabra _marcado para morrer estava sendo finalizado, pas- sados pouco mais de trinta anos do assassinato de Joao Pedro Teixeira, aquele que foi acusado como mandante nao havia sofrido punigao ¢ situagdes semelhantes se repetiam, como a execugéo de Margarida Maria Alves, lideranga sindical de Ala- goa Grande, municipio vizinho a Sapé, ocorrido em 1983. O chamado “grupo da Varzea’, articula- a0 politica dos usineiros do Brejo paraibano, con- tinuava ativo. Situagdes como essas sio as expres- sées das miltiplas virtualidades, contradigées € 4a ambiguidades das experiéncias das Ligas aponta- das por Regina Novaes (NOVAES, 1996, p. 191). ‘Mas o filme de Coutinho permanece vigo- oso, capaz de emocionar e presentificar uma meméria que de outra forma ficaria submersa. Sem duivida, lido trinta anos depois, ele é uma metafora dos muitos cabras que, por muito tempo, ficaram esquecidos e que pouco a pouco comegam a ter suas histdrias retomadas. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALTMANN, Eliska. “Memérias de um cabra mar- cado pelo cinema: representagdes de um Brasil rural’, Campos ~ Revista de Antropologia Social, v. 2, n. 5, pp. 87-105, 2004. AUED, Bernadeth Wrublevski. A vitéria dos vencidos (Partido Comunista Brasileiro Ligas Camponesas ~ 195-1964). Floriandpolis: Editora da UFSC, 1986. AZEVEDO, Fernando, As Ligas Camponesas, Rio d Janeiro: Paz e Terra, 1982. : AZEVEDO, Maria Thereza. As Ligas Camponesas ~ memrias clandestinas. Recife: Sépia Cinemas e Video, 2007. BANDEIRA, Lourdes; MIELE, Neide; GODOY, Rosa. Eu marcharei na tua luta! A vida de Elizabeth Teixeira, Joo Pessoa: Editora Universitéria/Manufatura, 1997. BARBOSA, Romulo Soares. Entre igualdade e dife- renga. 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