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Introdução
O objetivo deste texto é apresentar algumas das questões que as práticas associadas
à chamada Digital History colocam aos historiadores no momento atual. Tais
questões, espera-se, podem talvez contribuir para a formulação de uma pauta de
discussões a ser considerada nos cursos de formação de historiadores, em ambos
os níveis de graduação e pós-graduação, no que diz respeito à (re)elaboração dos
programas de disciplinas obrigatórias, na reformulação de currículos, e/ou na
oferta de disciplinas opcionais.
O problema
Trata-se de um fato de difícil contestação que nas últimas décadas a grande maioria
dos historiadores de todas as subáreas disciplinares, tanto no ensino quanto na
pesquisa, do mesmo modo que quaisquer outros profissionais de nível superior,
tornaram-se não só usuários como, em maior ou menor grau, utilizadores
dependentes das tecnologias da informação e comunicação. Tal dependência varia
de acordo com fatores que incluem desde as competências individuais, ou o
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interesse e oportunidade para aquisição de competências para utilização das
inúmeras ferramentas disponíveis, até a necessidade posta por problemas de
pesquisa ou situações de ensino-aprendizagem, condicionadas pelos contextos nos
quais atuam.
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Também Robert Darnton, à mesma época, exprimiu num tom mais pessoal seus
receios, resistências e fascinação com a internet. Cito:
Como muitos acadêmicos, estou prestes a dar o salto para ciberespaço, e eu estou
com medo. O que vou encontrar lá fora? O que eu vou perder? Será que vou me
perder?
Quanto mais me aproximo da fronteira da World Wide Web, mais me apego com
carinho às mídias do passado: a palestra e o livro. Não é notável que ambos ainda
sejam tão fortes em nossos campi, depois de séculos de uso, apesar do advento da
chamada Era da Informação?
Por mais que admire meus colegas mais jovens, que encaixam música e imagens
computadorizada sem suas palestras, eu prefiro falar diretamente aos meus alunos,
armado com nada além de giz e um quadro-negro. Sou um historiador, e quando
trabalho nos arquivos preencho fichas com anotações que organizo em caixas de
sapato, enquanto isso, ao meu redor, a geração mais nova tecla em PCs portáteis.
Eu amo livros, livros à moda antiga, quanto mais antigos melhor. A meu ver, a
cultura do livro alcançou o seu pico mais alto quando Gutenberg modernizou o
códice; e o códice é, em muitos aspectos,superior que o computador. [...]
Quer eu aterre ou não com segurança sobre ele [o ciberespaço], estou convencido
de que a Internet vai transformar o mundo da aprendizagem. A transformação já
começou. Nossa tarefa, eu acho, é procurar controlá-lo, para que possamos manter
os mais altos padrões de práticas do passado enquanto desenvolvemos outras para
o futuro. Que lugar melhor para começar do que junto aos alunos que agora
produzem suas dissertações? Tendo passado a sua infância com os computadores,
eles saberão para onde vão quando mergulharem no ciberespaço. [Darnton, “A
Historian of Books, Lost and Found in Cyberspace.”]
Subscrevo esta opinião, pois o tempo deu razão a Pierre Levy quando afirmou,
ainda na mesma década de 1990, que a cibercultura era o veneno e o remédio para
a experiência de cada um no mundo digital:
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[…] nos casos em que processos de inteligência coletiva desenvolvem-se de forma
eficaz graças ao ciberespaço, um de seus principais efeitos é o de acelerar cada vez
mais o ritmo da alteração tecno-social, o que torna ainda mais necessária a
participação ativa na cibercultura, se não quisermos ficar para trás, e tende a excluir
de maneira mais radical ainda aqueles que não entraram no ciclo positivo da
alteração, de sua compreensão e apropriação. Devido a seu aspecto participativo,
socializante, descompartimentalizante, emancipador, a inteligência coletiva
proposta pela cibercultura constitui um dos melhores remédios para o ritmo
desestabilizante, por vezes excludente, da mutação técnica. Mas, neste mesmo
movimento, a inteligência coletiva trabalha ativamente para a aceleração dessa
mutação. Em grego arcaico, a palavra "pharmakon" […] significa ao mesmo tempo
veneno e remédio. Novo pharmakon, a inteligência coletiva que favorece a
cibercultura é ao mesmo tempo um veneno para aqueles que dela não participam
(e ninguém pode participar completamente dela, de tão vasta e multiforme que é)
e um remédio para aqueles que mergulham em seus turbilhões e conseguem
controlar a própria deriva no meio de suas correntes.[Levy, Cibercultura]
A metáfora da “deriva” é forte, porém representa um risco real para muitos futuros
historiadores que não tenham oportunidade de lidar com essas questões durante os
seus anos de formação profissional. Mais ainda, implica em grandes chances de
que se crie, num futuro próximo, um abismo intransponível em relação à qualidade
do conhecimento histórico produzido em países que investem na formação dos
historiadores para o uso de novas tecnologias e para a reflexão sobre as implicações
que têm sobre o seu ofício,e aqueles que ignoram esta realidade. Sem querer
assumir um tom alarmista, a inércia no enfrentamento do assunto poderá,
efetivamente, potencializar a criação de dois cenários distintos, não
necessariamente excludentes: a nível internacional, o de um novo “roubo da
história”, onde nações ou povos com mais recursos passam a monopolizar as
narrativas históricas numa dimensão global, sobre suas próprias sociedades e de
outras, seja por terem o domínio sobre as tecnologias da informação e
comunicação, seja por estabelecerem as categorias pelas quais a história é pensada
em todo lado;a nível nacional, o risco é o da elitização de profissionais de história
com recursos particulares e individuais para superar tais desafios.
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nacional, e que agrava o risco para o qual chamei atenção acima, de uma maior
elitização entre historiadores.
Digital History
Digital History é uma designação que engloba práticas e produtos bastante
variados e seus objetos costumam ser tratados a partir de uma e/ou outra das
seguintes perspectivas: como uma forma de História Pública; ou como parte do
grande campo transdisciplinar tem sido chamado de Digital Humanities. São
termos recentes no léxico acadêmico e não há consenso, entre os que se declaram
praticantes, que permita uma definição fixa dos seus significados. Há
concordância, entretanto, de que algumas das práticas que hoje são classificadas
sob estes rótulos já existiam anteriormente, ou existem em países onde ainda não
se pensa nas relações entre as humanidades em geral, ou a história em particular,
e a informática, as mídias digitais e a internet, sob os vieses destes conceitos.
De acordo com Willian G. Thomas III, o termo digital history nasceu com a
fundação doVirginia Center for Digital History, entre 1997-1998, sendo em
seguida disseminado em outras atividades acadêmicas como seminários e projetos
de pesquisa.[ JAH - Journal of American History, “The Promise of Digital
History.”] Seu uso tem consequências para a prática e para o próprio conceito de
história, do mesmo modo que o de outros conceitos muito presentes no léxico da
historiografia atual, ainda que não tão novos, como os de “história pública”,
“consciência histórica” e “cultura histórica”. Trata-se,como bem observa Anita
Lucchesi, de um problema que diz respeito à uma história da historiografia no
“tempo presente”[Lucchesi, “Digital History e Storiografia Digitale: Estudo
Comparado sobre a Escrita da História no Tempo Presente (2001-2011).”]. A
autora, aliás, dá uma importante contribuição aos estudos sobre a Digital
History ao abordar, da perspectiva de uma análise dos conceitos, semelhanças,
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diferenças e conexões entre a Digital History,tal como praticada nos Estados
Unidos, e a Storiografia Digitale, praticada na Itália.
Willian Turkel, por sua vez, sublinha que a Digital History “faz uso de
fontes digitais” e que isso impacta o trabalho dos historiadores, pois estas fontes:
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Sobre a questão das fontes, Daniel Cohen lembra um artigo de Roy Rosenzweig,
um dos pioneiros da Digital History, que analisa dois “futuros possíveis”: a
escassez ou a abundância das fontes. “Escassez, na medida em que os materiais
digitais são muito frágeis e podem desaparecer com um simples toque
no delete oupor uma pane magnética, e abundância pois o armazenamento digital
torna virtualmente possível salvar e tornar globalmente acessível, pela rede, toda
e qualquer expressão humana.” [ibid.]
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profissional e as formas inalteradas de promoção na carreira”; “modos de crítica
das fontes na era da informática”; e o “deslocamento [de foco] dos “produtos” para
os “processos””.
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O segundo ponto, complementar ao anterior, é que muito do que é preciso refletir
junto aos estudantes em relação à digital history não exige conhecimentos
técnicos, mas sim experiência e competência profissional em aspectos teóricos e
metodológicos. Formar historiadores críticos e capazes de refletir sobre a própria
prática sempre foi o objetivo dos cursos de história. Grande parte das questões
colocadas pelo uso da internet, - por exemplo em relação à pesquisa de documentos
digitalizados -, não altera os procedimentos básicos de crítica das fontes e
problematização dos arquivos, como a interrogação sobre os critérios de seleção
de documentos, origem, etc. Mais ainda, uma boa parte do problema pode ser
colocado como sendo de caráter ético: como formar profissionais capazes de
praticar uma “história responsável”, nos termos de Antoon De Baets, e não uma
“história negligente” ou “irresponsável” no contexto atual?[ De Baets, “Uma
Teoria do Abuso da História.”] Ou, de uma outra perspectiva, que “virtudes
epistêmicas” são necessárias aos historiadores do presente e do futuro?[ Paul,
“Performing History.”]
Isso conduz ao terceiro ponto, o qual diz respeito a dois problemas correlatos.
Primeiro, o do investimento na empregabilidade dos futuros historiadores. Esse
problema foi enfrentado, primeiro nos EUA e depois no Reino Unido, pela criação
de cursos de Public History que visam formar profissionais aptos a se inserir em
outros mercados de trabalho que não a academia ou instituições escolares, tais
como a indústria de entretenimento, museus, turismo, etc.[ Sobre os argumentos
que conduziram a esta inflexão no panorama dos cursos universitários de história
nos EUA ver Grafton and Grossman, “No More Plan B: A Very Modest Proposal
for Graduate Programs in History.”] O debate sobre a aquisição de competências
técnicas a fim de ampliar as opções de atuação profissional dos historiadores não
deve ignorar esta questão. O segundo problema é o da concorrência com
profissionais de outras áreas ou amadores no que diz respeito às representações do
passado. É certo que os historiadores nunca tiveram o monopólio das narrativas ou
representações do passado, mas, por outro lado, nunca tiveram tanta concorrência.
Preparar futuros historiadores para o uso de outras mídias, que não as
convencionalmente usadas, significa equipá-los com ferramentas que permitam
explorar criativamente diferentes formas de apresentação do conhecimento
histórico, e também avaliar criticamente produções e recursos disponíveis.
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do presente e do futuro estaria melhor representado pela figura do designer. É que
mais que a lógica de programação, são as exigências dos motores de busca(leia-
se Google), e a interface do usuário (que lhe sugere uma rota de navegação tal
como os “protocolos de leitura” contidos nos textos e inscritos em seus suportes),
que hoje se impõe como determinantes na produção e comunicação do
conhecimento.
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