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Hegemonia e confronto na produção da segunda
LDB: o ensino religioso nas escolas públicas
Resumo
Este artigo identifica os posicionamentos de grupos político- * Faculdade de Educação,
-ideológicos sobre a questão do ensino religioso nas escolas Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), Rio
públicas durante o processo de produção da segunda Lei de Di- de Janeiro, Rio de Janeiro,
retrizes e Bases da Educação Nacional promulgada em dezembro Brasil. lacunha@globo.com
de 1996. As fontes foram os Diários do Senado e da Câmara dos
Deputados no período entre 1948 e 1962, arquivos públicos e pri-
vados, bem como a bibliografia geral. Constatou-se que, durante
os oito anos de discussões do projeto no Congresso Nacional,
vários grupos de pressão imprimiram suas marcas: de um lado, a
Igreja Católica, a única organização manifestamente comprome-
tida com sua oferta; de outro lado, uma aliança inorgânica, que,
sem condições políticas de defender um projeto laico, limitou-
-se a resistir ao avanço do confessionalismo. No final das contas,
nenhum dos dois lados foi capaz de fazer valer completamente
suas demandas, de modo que a lei promulgada e sancionada re-
sultou num produto híbrido.
Palavras-chave:
LDB, educação brasileira, política educacional, ensino religioso,
laicidade.
Abstract
This article deals with religious education in public schools, trying
to identify the position of political-ideological groups around
this issue during the process of production of the second Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Law of Directives
and Bases for National Education), which was promulgated
on December 1996. The analysis took as its source the Diários
do Senado e da Câmara dos Deputados (Annals of the Senate
and the House of Representatives) in the period between 1991
and 1996, public and private archives documents, and general
bibliography as well. It was observed that during the eight
years of the discutions inside the Congresso Nacional (National
Congress), various pressure groups left their marks on the LDB:
on the one hand the Catholic Church, the single organization
openly committed to its offer; on the other hand, a wide ranging,
albeit unsystematic, alliance which, lacking the political strength
to defend a secular project for public education, was limited to
try and resist the surge of confessionalism. At last, none of the
sides was able to implement their demands in full, so that the law
promulgated and sanctioned resulted in a hybrid product.
Keywords
LDB, brazilian education, educational policy, religious
education. Laïcity.
Este é o mais longo dos impasses! A questão chegou a criar tamanho emba-
raço nas negociações que decidiu-se destacá-la do roteiro normal dos en-
tendimentos, feitos sempre na sequência dos dispositivos do projeto, para
ir tentando, em paralelo, encontrar uma solução harmonizadora. Tal solu-
ção, porém, somente foi encontrada no último dia de votação na Comissão
de Educação, nos últimos minutos, para ser mais exato. Em substância, a
postura do substitutivo era: 1) garantir, de fato, o caráter facultativo da
matrícula na disciplina ensino religioso, segundo a livre escolha do alu-
no ou dos seus responsáveis, o que não ocorre hoje, na maioria das vezes,
submetendo-se, no mínimo, ao constrangimento da discriminação os alu-
nos que nela não queiram matricular-se; e 2) assegurar a efetiva liberdade
de escolha do credo ou da opção confessional do aluno ou de sua família,
não se impondo a ninguém uma opção, apenas por ser ela a da maioria, em
matéria de foro tão íntimo; em não sendo possível oferecer-se todo o leque
de opções, que se oferecesse um ensino de caráter interconfessional. E isso,
em sua essência, conseguiu-se assegurar na redação afinal aprovada. Antes
de se removerem os obstáculos, entretanto, dezenas de reuniões, conver-
sas e entendimentos tiveram de ser mantidos pelo relator, cabendo regis-
trar aqui que as posições dos setores ligados à CNBB e às igrejas evangélicas
foram extremamente construtivas e facilitadoras do entendimento, situan-
do-se as maiores dificuldades e resistências apenas em alguns setores mais
conservadores da Igreja Católica. Em momento anterior, houvera também
alguma dificuldade, logo superada, com professores de ensino religioso da
rede pública, que sentiram ameaçados os seus empregos, pela formulação
inicial da proposta (Hage, 1990, p. 133).
Tramitação no Senado
Ao dar entrada no Senado, o projeto de LDB recebeu o número 101/93 e foi logo
enviado à Comissão de Constituição e Justiça, onde Darcy Ribeiro (PDT-RJ) foi nomea-
do relator, apesar de ser ele autor de projeto concorrente já em tramitação naquela
Casa. O texto substitutivo elaborado pelo pedetista fluminense resultou da fusão de
seu projeto inicial com o da Câmara. O artigo re-
12. Romeu Tuma ingressou no Congresso Nacional como
ferente ao ensino religioso nas escolas públicas senador eleito pela legenda do PL paulista, em 1995,
transferindo-se posteriormente para o PFL. Delegado da
permaneceu como o dessa casa, sofrendo ape- polícia paulista e dirigente do DOPS, pesa sobre Tuma a
nas algumas mudanças formais. O substitutivo foi acusação de ter participado da ocultação de cadáveres de
militantes políticos mortos sob tortura no período mais
submetido ao plenário do Senado, onde recebeu tenebroso da ditadura. A despeito desses antecedentes,
Tuma obteve respeito dos colegas senadores pela cor-
numerosas emendas. Uma delas, apresentada
reção no trato parlamentar, mesmo entre os que não con-
pelo senador Romeu Tuma (PFL-SP)12, pretendia a cordavam com suas posições ideológicas.
É possível que a emenda restritiva apresentada pelo senador paulista tenha sua
origem na Maçonaria. Ele declarou sua afinidade com essa instituição em aparte ao
seu colega Ney Suassuna, que discursava em homenagem ao “Dia do Maçom”, em
20/08/1997.14 Tuma revelou ter nascido em “meio de maçons”. Seu pai e seus tios
eram filiados e o levavam a “sessões brancas” e a sessões do Tribunal Superior Ma-
çom, abertas aos leigos. No que concerne à proposta de inserção da restrição “sem
ônus para os cofres públicos”, não foi possível saber se ela foi iniciativa do próprio
senador ou se ele foi portador de uma proposta oriunda da Maçonaria, como institui-
ção; ou de algum membro seu, por ação individual. De uma maneira ou de outra, essa
proposta é compatível com a posição maçônica em 1959 e 1960, quando da discussão
da primeira LDB. Naquela ocasião, a exortação do Poder Central do Grande Oriente
do Brasil, em defesa da laicidade do ensino público, na tradição inaugurada por Sal-
danha Marinho e Rui Barbosa, só encontra paralelo, pela veemência, na Convenção
Espírita em Defesa da Escola Pública (Cunha; Fernandes, 2012).
O relator Darcy Ribeiro aceitou a emenda apresentada por Romeu Tuma, inserin-
do-a no texto finalmente aprovado no plenário do Senado, o qual retornou à Câmara,
já que o Senado alterara o que ela havia aprovado.
Nesse momento, a CNBB realizou a 34ª Assembleia Geral. O objetivo principal da
reunião foi a visita do papa que se realizaria em outubro do ano seguinte. A terceira
visita de João Paulo II ao Brasil teria como eixo o
13. Texto avulso, consultado na Fundação Darcy Ribeiro,
no Rio de Janeiro. II Encontro Mundial do Papa com as Famílias. Tra-
14. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/ativi- tava-se de preparar o evento, mas não só isso. A
dade/pronunciamento/detTexto.asp?t=211419> Acesso
em: 2 jan. 2007. LDB constava da pauta, pois os bispos aprovaram
Novamente na Câmara
O deputado José Jorge (PFL-BA) foi nomeado relator do projeto retornado.
Aceitou umas modificações feitas no Senado e recusou outras. Entre as recusa-
das, estava o artigo sobre o ensino religioso, que foi substancialmente alterado.
O impedimento ao uso de recursos públicos foi suprimido, assim como os dois
parágrafos do artigo. Como o relator não apresentou suas justificativas, resta-me
fazer conjecturas. O primeiro parágrafo era obviamente inconstitucional, difícil
imaginar que tivesse passado incólume pelas Comissões de Constituição e Justi-
ça, primeiro da Câmara, depois do Senado. Ele determinava que os sistemas de
ensino se articulassem com as instituições religiosas para efeito da oferta do en-
sino religioso e do credenciamento dos professores ou orientadores. Já as razões
da supressão do parágrafo segundo, que tratava das atividades alternativas para
os alunos fora do ensino religioso, são menos
previsíveis. Sua eliminação visava tornar menos 15. A declaração dos bispos católicos foi transcrita
no Diário da Câmara dos Deputados de 18 dez. 1996,
claro o caráter facultativo do ensino religioso?
nas páginas 33.611 a 33.613, a pedido do deputado Os-
Ou, então, pelo fato de seu conteúdo suscitar mânio Pereira (PSDB-MG).
Conclusão
O período de elaboração da Constituição de 1988 e, mais particularmente, da LDB-
96 foi aquele em que a posição politicamente dominante desfrutada pela Igreja Cató-
lica passou a ser diretamente contestada fora e dentro do campo religioso. Fora dele,
por um amplo, todavia inorgânico, movimento pela laicidade do Estado em matérias
como os direitos sexuais e reprodutivos; e dentro desse campo, pelas Igrejas Evangé-
licas em crescimento, não só em termos do número de fiéis, como, também, da pre-
sença de pastores com mandato parlamentar. Ainda que minoritárias e dispersas em
vários partidos, as “bancadas evangélicas”, nos diversos níveis do Poder Legislativo,
apresentavam coerência de atuação e, com frequência, eram decisivas nas votações.
O ensino religioso nas escolas públicas estava previsto na legislação desde 1931,
mas sua oferta foi sempre muito desigual, não
16. Para uma análise da tramitação do projeto no quin-
sendo descabido afirmar-se que a maioria delas quênio final, ver Pino (1992, 1995, 2008).