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PARADOXOS DO LIBERALISMO NO BRASIL ESCRAVISTA • 481

Paradoxos do liberalismo
no Brasil escravista

Maurício Oliveira

GRINBERG, Keila. O fiador dos mais respeitados advogados do Im-


brasileiros – Cidadania, escravidão e pério, tudo isso em plena vigência
direito civil no tempo de Antonio Pe- do regime de escravidão no país.
reira Rebouças. Rio de Janeiro: Edi- Essa peculiar trajetória foi recupe-
tora Civilização Brasileira, 2002 rada e analisada pela historiadora
carioca Keila Grinberg em O fiador
Nos últimos anos de vida, dos brasileiros – Cidadania, escravi-
quando já se encontrava cego, An- dão e direito civil no tempo de Anto-
tônio Pereira Rebouças (1798- nio Pereira Rebouças (Editora Civi-
1880) ditou passagens autobiográ- lização Brasileira), livro originado de
ficas a um dos filhos. Julgava-se sua tese de doutorado em História
esquecido pelos contemporâneos e Social pela Universidade Federal
pretendia ao menos assegurar algum Fluminense (UFF).
reconhecimento na posteridade. Como se percebe facilmente
Tinha, de fato, muito a contar. pela sucinta descrição acima, o per-
Mulato, nascido em Maragogipe, sonagem seria, por si só, interessante
no Recôncavo Baiano, caçula entre o suficiente para justificar uma bio-
os nove filhos de um alfaiate portu- grafia. O livro vai muito além, no
guês e de uma negra liberta, Rebou- entanto: a história de Rebouças e as
ças ocupou relevantes cargos políti- atitudes que tomou ao longo da vida
cos – foi várias vezes deputado sintetizam as contradições do Bra-
provincial nas décadas de 1830 e sil oitocentista. Ao mesmo tempo
1840 – e transformou-se em um dos em que assegurava não tolerar qual-

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quer tipo de racismo e pregava aos Rebouças era um rábula, ad-


quatro ventos a igualdade entre as vogado autodidata com permissão
etnias, evocando freqüentemente o para exercer a profissão em reconhe-
próprio exemplo como o de um cimento ao saber que demonstrava.
mulato que subiu na vida por méri- Claro que tal deferência dependia
tos próprios, Rebouças não se colo- de influência política, algo que ele
cava claramente contra o escra- construiu cuidadosamente desde
vismo. Ao contrário, dizia-se um muito cedo – a ponto de Leo Spitzer
defensor incondicional da ordem es- tê-lo retratado no livro Vidas de en-
tabelecida e do direito de proprie- tremeio como um oportunista cuja
dade, alinhando-se à interpretação principal habilidade seria apenas
de que os escravos, comprados e estar no local certo, na hora certa,
vendidos como qualquer outro para galgar posições que lhe permi-
bem, pertenciam legitimamente a tissem ascender socialmente. O cui-
seus senhores. dadoso trabalho de Keila Grinberg
Essa mesma contradição atin- demonstra, no entanto, que a des-
giu toda a sociedade brasileira – que crição de Spitzer é um tanto sim-
se viu pressionada pelas idéias de plista: as escolhas de Rebouças e os
igualdade e liberdade que vinham caminhos que percorreu são muito
da Europa – e ainda mais particu- mais complexos do que uma análi-
larmente o universo jurídico do qual se superficial faz supor.
Rebouças fazia parte. Havia uma in- De origem humilde, Rebouças
compatibilidade evidente entre os não tinha como bancar seus estu-
ideais que ganhavam força com a dos em Coimbra, destino dos bra-
modernidade e a permanência da es- sileiros de famílias abastadas que
cravidão; uma enorme distância en- pretendiam se transformar em ad-
tre teoria e prática. Enquanto se co- vogados naquele início de século
meçava a discutir a criação de um XIX, época em que o país ainda não
Código Civil no Brasil, o que sus- tinha faculdades de Direito. Seu pri-
citava um inevitável debate sobre ci- meiro contato com as entranhas da
profissão ocorreu aos 16 anos, quan-
dadania, continuava-se privando
do deixou a cidade natal para con-
uma parte da população do mais
tinuar os estudos em Salvador e pas-
fundamental de todos os direitos: a
sou a trabalhar em um cartório,
liberdade de ir e vir.
como assistente de escreventes. Foi

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em 1821, quando tinha apenas 23 apelidado de “miserável preto da


anos, que ele se viu pela primeira Rainha Ginga” e acusado pelos sergi-
vez “no local certo, na hora certa”. panos de participar, ao que tudo in-
Depois de ter uma participação im- dica sem fundamento, de uma so-
portante – mas certamente longe de ciedade secreta que almejava tirar os
ser decisiva – na organização da luta brancos do poder. Não foi certa-
pela Independência no Recôncavo, mente a única manifestação de pre-
Rebouças tratou de enaltecer a si conceito racial enfrentada por Re-
próprio como um herói. Em um bouças ao longo de sua carreira
relato escrito em tom épico e na ter- política e como advogado. Por con-
ceira pessoa, colocou-se como líder veniência, no entanto, ele fazia ques-
da resistência aos portugueses na re- tão de “esquecer” episódios do gênero.
gião. Modéstia, aliás, não era o seu Rebouças permaneceu até o
forte: o título escolhido por Keila fim fiel ao entendimento de que a
Grinberg para o livro é uma refe- liberdade não era um direito natu-
rência à forma como ele próprio se ral, mas uma conquista reservada a
definiria mais tarde em uma sessão quem fizesse por merecê-la. No fi-
da Assembléia Provincial da Bahia. nal da vida, consagrado como ad-
Como muitas vezes a versão vogado, ele mantinha sete escravos
vale mais do que o fato, o jovem em casa e só concedia liberdade
passou a contar com a imediata sim- àqueles que fossem capazes de com-
patia do grupo que ascendia ao po- prar a própria alforria. “Seu intuito
der. Os dividendos não tardaram. real era estabelecer a renda como
No ano seguinte, Rebouças foi critério eficaz de qualificação dos
membro da Junta Provisória do go- cidadãos”, define Keila Grinberg.
verno, trunfo para que aumentasse Para a autora, foi a dificuldade de
o prestígio em sua província. Logo Rebouças em perceber e acompa-
receberia permissão para advogar nhar as mudanças em curso que o
em toda a Bahia. Em 1824, foi no- isolou politicamente, até o momen-
meado secretário da província do to em que ele já não se alinhava a
Sergipe, cargo do qual seria desti- qualquer grupo com o qual pudes-
tuído um ano depois, junto com o se compartilhar seus ideais.
presidente da província, Manoel Ao lidar com a questão da pro-
Fernandes de Oliveira. Homem de priedade de seres humanos da mes-
confiança de Oliveira, Rebouças foi ma forma que lidava com outro tipo

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qualquer de propriedade, Rebouças trado desses processos, Rebouças


perdeu a oportunidade de aderir a não demonstrava qualquer preocu-
uma vertente do Direito, já em voga pação com a inserção dos escravos
na época, que colocava em xeque o na sociedade ou com outras ques-
arcabouço jurídico que dava supos- tões coletivas, mas apenas com o
ta legitimidade à escravidão e defen- veredicto dos casos que envolviam
dia a primazia da liberdade sobre o seus clientes.
direito de propriedade. Irredutível Para ter condições de avaliar se
ao longo dos anos, Rebouças che- a postura profissional de Rebouças
gou à década de 1860 enfrentando em relação às disputas judiciais en-
a questão exatamente como fazia 30 tre senhores e escravos destoava da
anos antes. média, a autora dedicou-se a um
Decepcionado por não ter cuidadoso levantamento do desem-
conseguido a reeleição como depu- penho de outros advogados nas
tado, decidiu abandonar a carreira ações de liberdade. A comparação
política em 1848. A partir dali se tornou possível constatar que o fato
dedicaria exclusivamente à advoca- de atuar em ambos os lados não di-
cia. Seus contatos foram suficientes ferenciava Rebouças dos colegas. A
para que assegurasse o direito de autora lembra que os advogados
exercer a profissão em todo o país, eram muitas vezes obrigados a acei-
e não mais apenas na Bahia. Assim, tar a causa, diante do direito das
decidiu permanecer no Rio de Ja- pessoas classificadas como “miserá-
neiro, com a mulher e os oito fi- veis” de obter curador gratuito.
lhos. Entre as muitas causas em que “Defensores por excelência de se-
atuou estavam as chamadas ações de nhores ou de escravos, portanto,
liberdade, aquelas em que escravos esses advogados não eram. Atuavam
pleiteavam, pela via legal, a alforria. em causas de liberdade como atuari-
Entre 1847 e 1864, participou de am em quaisquer outras, seguindo,
oito processos do gênero. Represen- aliás, a profissionalização do campo
tou quatro senhores e quatro escra- jurídico que começou a ocorrer em
vos, obtendo três vitórias e quatro larga escala a partir de 1832, com a
derrotas (em um dos processos, foi formação das primeiras turmas das
impossível para a autora descobrir Faculdades de Direito de São Paulo e
o resultado). Pelo que ficou regis- Olinda”, descreve.

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A análise de 620 processos de para o qual ele ditou a autobiografia


liberdade em primeira instância na velhice, foi o primeiro negro a
transcorridos entre 1806 e 1888 de- se formar em engenharia no Brasil,
monstrou que não havia grandes es- em 1860. Viria a se tornar um res-
pecialistas no tema – apenas cinco peitado engenheiro, responsável, ao
advogados haviam participado de lado do irmão Antonio Pereira Re-
quatro causas ou mais, e o recordis- bouças Filho, pelo plano de abaste-
ta não passava de sete participações. cimento de água do Rio de Janeiro
Na segunda instância, havia mais es- e pela construção das docas da Al-
pecialização. Dez advogados tive- fândega.
ram dez ou mais participações entre Mais do que sua vitoriosa tra-
as 279 ações de liberdade registradas, jetória profissional como engenhei-
e o recordista estava envolvido em ro, contudo, André Rebouças en-
27 casos. trou para a história da forma como
Por tudo isso, O fiador dos bra- o pai poderia ter entrado: como um
sileiros não é uma simples biogra- dos líderes do abolicionismo no
fia. A trajetória do protagonista é o Brasil, tão destacado quanto Joa-
fio condutor da ampla temática quim Nabuco e José do Patrocínio.
abordada no livro: a luta pela cida- Lutou não apenas pelo fim da es-
dania, o fim da escravidão e a cons- cravidão, mas pelo direito de aces-
tituição de direitos civis para os afri- so a terras por parte dos libertos e
canos e seus descendentes. A autora seus descendentes. Monarquista fer-
também considera o livro, com ra- renho, André deixou o país depois
zão, “uma porta de entrada para en- da proclamação da República. Mu-
tender o mundo dos advogados no dou-se primeiro para a Europa e
século XIX, seu universo jurídico e depois para a Ilha da Madeira. Foi
político, suas ligações com a políti- encontrado morto aos 60 anos, à
ca e, principalmente, com os gran- beira de um penhasco. Desconfia-
des debates de seu tempo”. se de suicídio, embora não se possa
De todas as obras de Rebouças, afirmar que ele tenha dado fim à
talvez a mais importante tenha sido própria vida. Esse último e dramá-
dar condições para que seus filhos tico capítulo foi o epílogo da fan-
estudassem e, assim, prosseguissem tástica aventura dos Rebouças atra-
com a ascensão social da família. vés do século XIX.
André, nascido em 1838, o filho

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