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EROS E VERDADE Lacan, Foucault e a questo da ética Uma das grandes questées da flosofia anti- {ga fol: qual o eros do pensamento, que pal- xo impele alguém a filosofar? Na época, filosofar era considerado um estilo de vida, tum jogo de mestria, rivalidade e liberdade, que tinha de se defender contra falsos pre- tendentes. Nesses antigos e agonisticos *jo- 90s de linguagem”, os filésofos tinham que ser phil, amigos; mas amigos de qué, eem que sentido? Em nossos grandes debates sobre o que & bom @ correto, perdemos o sentimento de que filosofar 6 manter relagdes apaixona- das ou erdticas com nés mesmos € os ou- tros. Hoje, no entanto, talvez sejamos con- frontados justamente por essa pergunta: ‘como se pode ter ainda palxao pela filosofia © pela amizade filosética em nossa civliza- (40, om que a razdo ciontifica rejeita toda cosmologia moral ¢ em que a habilidade ‘sécio-psicol6gica tenta substituir toda sabe- doria carismética? Este livro debruga-se sobre a obra de Jac- ‘ques Lacan @ de Michel Foucault, e pretende demonstrar que cada um deles, de diferen- tes maneiras, tentou levantar novamente a antiga questo do eros @ da verdade; cada qual re-erotizando, & sua maneira, a ativida- de do pensamento filosético ou critico em nossos dias. Juntos, portanto, contribuiram para criar um clima intelectual que estimula- tia a Imaginagao de pelo menos toda uma gerago. Uma das metas deste livro 6 tentar atingir 0 ethos dessa nova paixao pela filo- sofia e polo pensamento critico, que incitou ‘em alguns o temor de um nilismo corrosive @ de uma inatividade cinica, EROS E VERDADE Lacan, Foucault ¢ a questéo da ética ‘Transmissio da Psicandlise (D eietr: Meo Antonio Couto John Rajchman 1 A Excegto Feminina 18 0 Mais Sublime dos Histéticos Gérard Pommnier Slavoj Zizek 2 Gradiva 19 Para que Serve ums Andlise? Wilhelm Jensen Jean-Sacques Moscovitz 3 Lacan 20 Tntrodupio & Obra de Bertrand Ogilvie Frangoise Dolto 4A Crianga Magnifica Michet H. Ledoux da Psicandlise 21 © Coneeito de Renegacdo J-D. Nasio em Freud 5 Famasia Originaia, ‘André Bourguignon EROS E VERDADE Pantasias das Origens, 22 Repressfoe Subversio 2 7 Origens da Fantasia. em Psicessomitica | Lacan, Foucault e a questéo da ética Jean Laplanche J.-B. Pontalis Christophe Dejours | 6 inconscieate Freudiano ¢ 23 0 Paie sua Pungio ‘Transmissio da Psicanlise em Psicanilise Alain Didier Weill ‘08! Dor | 7 Sexo e Discurso 24 A Hiseria x em Freud Lacan J.-D. Nasio | Traduedo: Marco Antonio Coutinho 28 Holdertin © a Questao do Pai | eee 8 © Umbigo do Sonho Jean Laplanche psicanalista Laurence Baraitle 26 Eles no Sabet o que Fazemn | 9 Psicossomitice Slavoj Zizek ‘na Clinica Lacaniana 27 A Orde Sexual | Jean Guir Gérard Pommier | 10 Nobodaddy — 28 A Neurose Infanti A Histeria no Séeulo da Psicanlise Catherine Miter Gérard Pommier | 11 Ligdes sobre os 7 Conceitos 29 Pulsdo e Inconsciente | CCruciats da Psicandlise ‘Noga Wine | J-D. Nasio 30 Cinco Ligdes sobre a Teoria | 12 Da Painto do Ser dc Jacques Lacan 4*Loveura” do Saber “D. Nasio Mua Mannoni 31 Psicossomética 13 Psicandlise e Medicina JD. Nasio Plerre Benolt 32 Fimde wma Andis, Finalidade da 114 A Topologia ue Jacques Lava Paicalise, Jeanne Granan- Lafont Alain Didier-Weit 15 A Psicose 33 Freud ea Mulher Alphonse de Woethens Paul-Laurent Assou | 16 © Desenloce de uma Anslise 34 Conversas com o Homem dos Gérard Pomnier Lobos Jorge Zahar Editor 17 0 Coragdo ea Ruzio Karin Obholger inte Léon Chertoke 38 Eros e Verdade Isabelle Stengers John Rajchman SUMARIO ‘lealo oxigine: ‘Truth ond Eros: Foucault Lacan, and the Question of Eihier Teadugio autrizede da primeira edipio nore-americans,publicnds ems 1991 por Routledge (elo editorial de Roulledge, Chapman and Hell, Ic), {do Nove York, BUA. : Copyright © 1991, Routledge, Chaprua and Hs Ine Copyright © 1994 da edigdo em lingoe porngues Jorge Zaher Bd Lida, Mittrodugio we eee eee i ue México 31 sobreloja 2003-144 Rio de Janez, RY ‘els (021) 240-0226 Fee 021) 262-5123 begnonosgsodcocdnde 39 ‘Todos os diets recervdes. | ‘A cprodusio nfo-autorizade desta pobicagio, 20 todo | ‘ou em parte, consti violgéo do copyright (Lei 5.988) Parte 2: Foucault... ... eee 109) Baitoragio letbiea: TopTenios Eaiges Orica Lid, 2 ee A questio da ética see ee - 165 ISBN: 0-415.90360-7 (ed, oxi ISBN: 85.7110-275.9 (IZE, RD) indice onoméstico ....... 0.02.5 17 CCIP-Basil. Cetlogngte-ae-fonte Sindicato Nacioasl dos Edtors de Livros, BL Rajehmoan, Joho Rise "Eros everdade: Lacan, Foucault e questo da tien | Tokn ajchmanytradugzo, Vern Ribeiro. — Rio de Janeiro: Jorge Zaher Ei, 1993, (Teansmissto da ptcmalise) Tradugio de: Truth and eros: Foucault, Lacan 1 and the question of ehics TOON 95-7110.275.9 1. Lacan, Jacques, 1901-1981 2, Fouewel, Mi- chol, 1026-1981. 3. Pocanlise eflosofia. 4, Etica, U'Tinla. I. Serie cpp ~ 1s0.195 93-1101 Cou — 159,968.26 Para Joel Fineman Em meméria e amizade INTRODUCAO ‘Uma das grandes questies da filosofia antiga foi: qual € 0 eros do pensamento? Qual é o eros do tipo peculiar de verdade da qual a filosofia é a busca? Qual é a paixio que impele alguém a filosofar € 0 que o filosofar requer dele? Como advém ela em alguém, € quando, e com que efeitos sobre ele © sobre sua relagao com os outros? Filosofar era considerado, na época, um estilo de vide, todo um jogo de mestria, rivalidade ¢ liberdade no saber, que tinha que se defender dos falsos pretendentes. Nesses antigos ¢ agonis- licos “jogos de linguagem”, os fildsofos tinham que ser philoi, amigos; mas, amigos de qué, e em que sentido? ‘Nao se pode dizer que essas sejam questdes que desempenhem tum papel muito procminente na filosofia ética contemporanea de ingua inglesa. Em nossos grandes debates sobre o que é bom para nés e © que € correto fazermos, realmente perdemos o sentimento de que filosofar é manter essas relagdes apaixonadas ou erdticas ‘com nés mesmos € com outrem. Hoje, no entanto, talvez sejamos confrontados justamente por essa pergunta: que pode ainda ser a paixio pela filosofia ¢ pela amizade filos6fica em nossa civilizagio, onde a razio cientifica rejeita toda a cosmologia moral e onde a habilidade sécio-psicolégica tenta substituir toda a sabedoria “ca- rismética”? Foi para redescobrir essas questdes que me voltei para a obra de dois pensadores franceses recentes, im psicanalista e um his- toriador, Jacques Lacan e Michel Foucault. E que pretendo tentar demonstrar que cada um deles, de diferentes maneitas, tentou Jevantar novamente a antiga questio da verdade ¢ de eros; caé qual, de diferentes maneiras, reerotizou a atividade do pensamento filos6fico ou eritico em nossos dias. Juntos, portanto, eles contri- buiram para criar um clima intelectual que captaria a imaginago 7 8 eros verdade de uma geragio, © que talvez ainda no tenhamos dado por encerrado, Uma das metas deste livro é tentar atingir 0 ethas dessa nova paixio pela filosofia ou pelo pensamento critico, que incitou em alguns o temor de um niilismo corrosivo ¢ de uma inatividade cinica. Em particular, pretendo afirmar que, pouco a pouco, a questio da verdade ¢ de eros envolveu esses dois pensadores numa longa © complexa reflexio sobre a ética; e que, inversemente, se a questio da ética em sua obra é uma espécie peculiar ou pouco conhecida, isso sc deve & maneira como ela é inseparivel da antiga questéo da paixio do pensar. A guisa de introdugao, comegarei pelo problema da dificuldade de seus estilos de pensamento ou filosofia. ‘Lacan ¢ Foucault foram formados pelas diferentes “geragdes™ dos vinte © poucos anos que os separam. Sustentaram visdes diferentes e amitide opostas. Nao se sabe ao certo se foram amigos 0u inimigos, pois pouco escreveram um sobre 0 outro. E no entanto, logo de saida, podemos observar que suas tentativas de repensar eros, ¢ de reerotizar o pensamento, foram cumuladas de grande dificuldade; © que essa dificuldade csteve no amago de seus esforgos de inventar novos estilos de pensar. Que é uma dificuldade filos6fica, 0 tipo de dificuldade que incita a filosofia ¢ que a filosofia se destina a tratar? E por que, no caso desses dois pensadores, esse tipo de dificuldade torna-se mais insistente ou tangivel, quanto mais nos aproximamos da ‘questo da ética em sua obra? Ou, dito de maneira inversa, por que 0 estilo de cada um deles, como estilo de pensamento ético, € tio dificil? Nenhum desses personagens foi autor do que se poderia considerar como formas éticas tradicionais. Eles nao es- ‘reveram romances, nem proferiram sermées ou fizeram profecias. Nao redigiram Confissdes ou Meditagdes ou Manifestos; nao dei- xaram nenhum “tratado” ético nem propuseram qualquer “funda- mentagao” para a metafisica dos eédigos morais. Por que razio a discussio da ética dispersa-se de tal maneira por toda a sua obra ¢ esté ligada 2 tantas outras preocupagses? Tal como acontece com todas as grandes filosofias, as obras de Lacan ¢ Foucault eram dificcis em termos conceituais, retéricos ¢ teméticos. No entanto, suas dificuldades eram de um tipo bem mais peculiar ¢ especifico. A dificuldade da obra de Lacan, pelo ‘menos, era parcialmente deliberada. Ele se orgulhava de ter escrito introdugdo 9 © que outros deveriam, inicialmente, julger ilegivel. Em 1957, declarou: *Gosto de nio deixar ao leitor nenbuma outta saida seniio a entrada, que prefiro que seja dificil";! e muitos dos que assim encontraram sua via de ingresso jamais sairam. Ele pretendia chocar ou surpreender com as palavras que usava, ¢ sabia ser bastante rude. Ao mesmo tempo, cultivou um estilo singular, que ele mesmo chamava “gong6rico” ¢ “barroco” — hermético, alta- mente letrado, repleto de chistes ¢ trocadilhos sofisticados, de alusées mistetiosas, de neologismos e de férmulas e grificos estranhos, dos quais ele mesmo fornecia interpretagdes diferentes 4 medida que ia avangando. Contudo, a dificuldade de Lacan foi tanto uma necessidade quanto uma afetago: ele julgava nio poder escrever ou falar de nenhum outro modo para dizer © que pensava ter a dizer. Ele foi alguém que escreveu ¢ falou por dificuldade. Esse estilo atraiu, como era inevitvel, acusagées de obscu- rantismo, charlatanismo ¢ intelectualismo. Foucault nao o viu dessa maneira. Disse que as pessoas buscavam Lacan pelo simples prazer de ler ou escutar um discurso sem nenhuma sustentacdo institu- cional vistvel; e, se 0 que elas ouviam ou liam era dificil, era por hhaver uma intengao de que “se realizassem” ao lé-lo ou ouvi-lo. # significativo que, dentre os que assim teriam chegado Lacan, os fildsofos, aqueles formados em filosofia na Franga, desempenharam um papel de destaque. O estilo de Lacan pode tet sido dificil, mas, através dele, criou-se toda uma alianga da psicandlisc, no apenas com a histéria da filosofia, mas também com a epistemologia, a Iigica a historia da ciéncia, Parte do drama e da dificuldade da obra final de Foucault residiria em sua tentativa de se afastar da importincia singular adquirida pela psicanilise na filosofia francesa contemporinea, basicamente atra- vés da obra de Lacan. A dificuldade da obra de Foucault ¢ de natureza diferente. Ele escreveu num estilo muito mais cldssico, menos extravagante, mais ico © demonstrativo ¢, nesse sentido, argumentativo mais combative, Em contraste com Lacan, tratou-se de um estilo feito para criar livros isolados independentes, dos quais Vigiar e punir seria o exemplo mais consumado — uma obra que, mais tarde, Foucault chamaria “meu primeiro livro"? Todavia, em seus tltimos textos, onde ele procurou afastar-sc da psicanilise e onde a questio da ética é mais insistentemente 10 erose verdade formulada, Foucault tenton abandonar esse estilo, com sua poderosa couraca filoséfica e conceitual. Viu-se, assim, com uma dificuldade fem que tentou repensar o que era um estilo, portanto, qual era ‘seu estilo na filosofia. Em ambos os casos, portanto, podemos dizer que a dificuldade com que sua obra nos confronta corresponde a uma dificuldade que eles vivenciaram ao erif-Ia, uma dificuldade que reaparece na reflexdo de cada um deles sobre o estilo de seu proprio pensamento, seus meios, suas metas ¢ suas relagdes com as instituigdes. A questio de seu estilo foi, portanto, uma questio de quem eles consideravam ser em relagao a sua obra, ¢ foi assim que ela veio a ligar-se A ética e a0 eros de seu pensamento. Por conseguinte, examinarei agora mais de perto as dificulda- des ¢ 05 estilos de ambos, tentando desvendar como passaram a ‘impliear a ética. Nos capitulos subseqiientes, inverterei a diregio ¢, partindo do questionamento da ética na obra de cada um desses, pensadores, mostrarei de que maneira ela levou a uma tentativa de coneeber um novo estilo ou uma nova paixio do pensar nos dias atuais. A autolibertagao de Foucault Em seus tiltimos textos, Foucault procurou “descomprometer-se™ do-estilo de seus livros anteriores ¢ do tipo de “experiéncia filoséfica” em que aquele estilo se enraizara, ov A qual havia servido: ‘Muito abruptamente, em 1975-76, abendonei por completo esse estilo, pois tinha em mente escrever uma histéria do sujeito, que ‘ado é a de um acontecimento que se produza um dia e do qual seja necessério narrar a génese ¢ o resultado? Essa “rejeigdo” abrupta de seu estilo anterior marcou uma mudanga nas quest0es bésicas de sua investigagao historica. A “questéo do sujeito” e, por conseguinte, da “conduta individual”, veio para o primeiro plano. Foucault declarou que essa questio ‘fo podia e, portanto, ndo devia ser separada das questies de stia introdugdo UL obra anterior € “dele mesmo” nessa obra — a saber, das questdes da verdade © do poder. Assim, tentou inventar “outros métodos rel6ricos” que nao evitassem “a questio do sujeito” na abordagem dessas outras duas. ‘Ao mesmo tempo, essa busca de um estilo que nio evitasse “a questo do sujeito” deu a Foucault « oportunidade de levantar, de uma nova maneira, a questio filoséfica central que havia perpassado toda a sua obra: que é © pensamento (pensée)? Qual € sua complicada histéria singular, e quais sio suas possibilidades eriticas no reconhecidas? Em 1975-76, ele comegou a indaga que tem o pensamento a ver com a subjetividade, ou com a “questio do sujeito? Em especial, de que maneira pode-se dizer que o “pensamento” faz. parte de um “estilo de vida"? Que papel desem- penhara ele, e poderia ainda desempenhar, na maneira como alguém Jeva ou conduz sua vida? Foi assim que a busca de um novo estilo, em seus ttimos textos, reconduziu Foucault ao antigo problema da ética filosdfiea ¢, mais especificamente, questio do eros do pensamento na condugo da vida de alguém. E que fol através de uma historia da sexualidade, que remontou aos gregos, que a questiio de seu estilo veio a ser levantada. © perfodo dessa busca e investigagao foi uma fase de dificul- dade, Foi uma época de aliangas e amizades cambiantes, ¢ de muitas viagens. Foucault julgou que poderia fazer uma interrupgio em sua pesquisa documental ¢ experimentar o jornalismo. Passou algum tempo num mosteiro Zen no Japo. Chegou até a considerar fa idéia de fixar residéncia em Berkeley, na Califérnia. Gilles Deleuze diz que Foucault teria “atravessado uma crise de todas as ordens, politica, vital e filoséfica”, ¢ acrescenta que “a Iégica de um pensar (pensée) é 0 conjunto de crises que ele atravessa”.* © modo como Foucault elaborou sew estilo de pensamento parece ter seguido esse principio deleuziano. Primeiro, houve a famosa crise do “Homerh” como entidade fundante basica, através, da qual Foveault afirmou que se tornara possivel voltar # pensar. Assim, 0 anonimato com que essa nova questio vinha-se “colo- ccando” cm nosso pensamento levou Foucault a inventar um estilo que rejeitasse a “face” individualizante da autoria tradicional. Houve entio uma erise dos pressupostos politicos de um “textua- lismo” ambiental ¢ a descoberta do pensamento como uma forma de combate estratégico. Isso levou a um estilo de escrita como 12 erose verdade ato de resisténcia ou revolta. “Todos os meus livros so caixas de ferramentas”, declarou Foucault. Entretanto, alguns anos depois, ele diria que seus livros eram “fragmentos de uma autobiografia”. Houve entéo uma terceira crise, a dificuldade de Foucault consigo mesmo como historiador ¢ militante anénimo. Ela levantow a questio do que significa 4 atividade do pensamento eritico para ‘05 que se comprometem com ele. © problema do estilo na escrita transformou-se num problema de estilo na vida, © estilo, portanto, era uma questo de “Como escrevi alguns de meus livros", e pertencia a uma longa tradigio em que esse ‘ipo de problema fora levantado. Raymond Roussel pode ser considerado 0 exemplo tipico de um eseritor obceeado com a Finguagem, ¢ nio com “o mundo”. Mas, numa entrevista tardia sobre esse escritor, com quem mantinha uma especial afinidade, Foucault declarou que a obra de Rousse! era importante para sua Vida, niio porque ele se expressasse ou se representasse nela, mas por causa da maneira singular pela qual ela fazia parte do modo como Roussel a havia conduzido, © mesmo seria aplicivel a Foucault: escrever livros nao seria um modo de ele se expressar, mas faria parte de um estilo de vida. Em seu caso, pelo menos, cada livro seria uma tentativa de fugir da experiéncia dos anteriores efetuar um novo comeco: “Escrever um livro é, de certa maneira, abolir o que 0 precedeu.”* Ao introduzir seus tiltimos textos de histéria, Foucault afirmon que essa experiéneia subjetiva de produzir livros costuma ser mantida “fora do palco", dans les coulisses,' j& que 0 autor aptesenta seu livro ao piblico como um produto acabado. Poder- se-ia dizer que esse foi um preceito que Foucault adotou em seus textos, na agonia da revolta c no anonimato da questio. Mas, em sua busca de um estilo que nao evitasse a questio do sujeito, cle tentou expor ein que sentido, para ele, escrever um livro era uma experiéncia ¢ um exercfcio de pensamento: Provavelmente, ndo valetia a pena produzir livros, se eles no censinassem ao autor algo que ele nao sabia antes, se nao levassem 8 Iugares imprevistos, se nao dispersassem o sujeito rumo a uma * Nos bastidores, em francés no original. (N.T.) introdugdo 13 ‘stranha nova relagéo consigo mesmo. A dor e o prazer do livro devem ser uma experiéncia.* De 1961 a 1969, Foucault havia publicado seis livros. Em contraste, de 1976 a 1985, durante sua “dificuldade”, no publicou livro algum, exceto os que, no fosse por sua morte, ele prova- velmente nfo teria publicado. Foucault imaginou diversos livros que nunca concluiu ¢ falou das muitas incertezas que cercavam (05 que havia conctufdo. O que resta dos “anos de crise” € uma ‘massa bastante volumosa de cursos, resenhas, entrevistas, palestras € artigos jomalisticos, concernentes a uma ampla varicdade de temas © questdes, apresentados em vérias ocasifes ¢ ligados a diferentes grupos, dentro ¢ fora do mundo acedémico. E dificil apreendé-la como um todo, Sua busca de “outros métodos ret6ri- cos” que nao evitassem a questio do sujeito permaneceu inacabada, © a dificuldade de seu novo estilo, nao resolvida. E, antes, a busca de um estilo que seus tltimos textos exemplificam, algo assim como quando se diz que 0 importante em Sécrates. foi sua busca do bem, ¢ no sua descoberta dele. A dificuldade dos iiltimos textos de Foucault é um qucbra- ‘cabega que sua obra nos lega. Esse “eserever na dificuldade” da liltima década de sua vida persiste, a0 mesmo tempo, como a parte mais intima e mais livre de sua obra — aquela que as pessoas ‘menos souberan como interpretar, ou o que fazer com ela, a parte que € menos classificdvel, a mais disputvel. Naturalmente, ha quem no queira ver a dificuldade de Fou- cault, ou ver Foucault em dificuldade, pessoas que gostariam que ele houvesse guardado sua dificuldade para si, como uma coisa particular, “fora de cena”. Hi pessoas que acreditam que as caixas de ferramentas ndo devem ser confundidas com autobiografias, e que os problemas de Foucault consigo mesmo devem ser distin- guidos de suas contribuigbes como intelectual e historiador eritico. Elas gostariam que Foucault se houvesse atido a cou estilo anterior de filosofia, que evitava a questio do sujeito, ¢ que, ao abordé-la, cle houvesse perdido 0 dircito as realizagdes de’ seu estudado anonimato. Em suma, ha quem julgue 0 “auto-interesse” final de Foucault um interesse autocenttado, individualista e, portanto, associal ou apolitico, Poderfamos imaginar Foucault respondendo 8 tais objecdes da seg 14 erose verdade Em primeiro lugar, ter um “interesse em si mesmo” tem sido uma marca caracteristica ¢ uma dificuldade fundamental do pen- samento critico ou filoséfico desde Sécrates — parte daquilo em que consiste ser filésofo. “Essa fungao critica da filosofia, até certo ponto, emerge diretamentc do imperativo soeritico: “Interes- sa-te por ti mesmo, isto é, baseia-te na liberdade, através do dominio do eu." Assim, pensar, critica ou filosoficamente, é importar-se consigo mesmo; a dificuldade esté em saber como. Em termos mais vigorosos, a “subjetividade” ¢ prépria do pensa- mento critico; nio pode ser evitada, Em segundo lugar, a visio de que tal interesse & algo que se deve tentar eliminar ou guardar para si mesmo é uma inovagao recente, cujos pressupostos metecem set examinados. Através de ‘uma longa hist6ria, a antiga preocupacdo com o eu foi transformada numa questio de vaidade, orgulho, egoismo ou narcisismo, 0 posto exato das relagdes “altrufstas” ou caridoses com outrem, ou um obstéculo privado a realizagio de um bem piblico ou coletivo racional. Uma tradigao cristi ensinou que a abnegagao & 0 meio da salvago. Uma tradigao laica tentou fundamentar a moral numa piblica, exterior ao eu. E, por fim, com a descoberta cientifica de que a Natureza era externa ¢ amoral, uma tradigio filoséfica “de Descartes a Huser!” tentou deslocar o interesse eritico pelo ‘eu para o sujeito “cognoscitivo” ou epistemolégico. Tentou “su- perpor as fungGes da espiritualidade a um ideal baseado na cien- lificidade”* Dois resultados interligados decorreriam dessas ino- vag6es profundas “na subjetividade” do pensamento critico. O primeiro & que “nossa moral, uma moral do ascetismo, insiste em. que 0 eu é aquilo que se pode rejeitae”; 0 segundo que “conhecer a si mesmo” obscureceu e substituiu a antiga tarefe de cuidar de si ou interessar-se por si mestno.’ Assim, foi dessas concepgées, que haviam ligado o ascetismo so ideal de uma razio transcendental madelada na lei, na ciéncia ‘ou na teologia, que Foucault procurou afastar-se, em sua tentativa de resgatar 0 principio socrético de que fazer filosofia critica é interessar-se por si mesmo. Sua dificuldade, correspondentemente, consistiu em inventar uma askesis, uma pritica “subjetivante” do pensamento critico, em que a relagio consigo mesmo nao se enraizasse na idéia de que o eu é aquilo que podemos re Inirodugdo 15 em que a meta no fosse a submiss4o a uma lei externa, indepen- dente de nossa experiéneia de nés mesmos. Existe, em seguida, um terceiro aspecto. Hé um sentido dirfamos, um sentido wittgensteiniano — em que a “dificuldade” de Foucault nio poderia ser privada. E que, a0 argumentar que & subjetividade nao pode ser evitada no pensamento critico, Foucault nao estava tentando voltar a experiéncia pré-critica ou pré-filosé- fica de um sujeito fundante, idéntico em toda parte. Ao contrério, ele sustentou que a “subjetividade” se constitui atrives de préticas piblicas variadas e mutéveis. Nossa subjetividade nao é dada por ‘uma natureza intrinscea, teolégica, tedrica ou natural. Nao hé dela uma forma nica, ¢ Foucault julgava que a tentativa de descobric essa forma, aplicavel a todos, tivera resultados desastrosos. Nesse aspecto, Foucault deu continuidade a um preceito de suas investigagdes anteriores; é que nfo hi nada de privado no uso herdado das palavras e das técnicas priticas que Foucault se dispés a analisar em suas histérias da loucura, do crime ou da doenga. Ao contritio, cle procurou expor a astticia ou o ardil da auto-identificagio ou do autoconhecimento em fazer com que nossa experiéncia subjetiva pareca privada, natural ou absoluta. E por {sso que se poderia dizer, como acontece com Wittgenstein, que, para Foucault, a experiéncia “subjetiva” nunca é absolutamente privada. Diferentemente de Wittgenstein, porém, Foucault adotou 1 hipétese de que a questio do sujeito nio pode ser separada das questées do saber ¢ do poder. Sua dificuldade subjetiva consigo ‘mesmo, como historiador e militante, vinculou-se 4 questio da relagdo de seu pensamento eritico com 0s tipos de conhecimento cicntifico que aceitamos a nosso préprio respeito, € com as formas de governo e autocontrole a que eles estio ligados. ‘Assim, 0 interesse de Foucault por si mesmo nao foi uma questo de fuga ascética do poder e do saber terrenos para um outro ambito “mais verdadeiro™. Suscitou, antes, a questio da forma que deve assumir a experiéncia do livre pensamento critica quando confrontado com nossas maneiras de nos conhecermos ¢ nos dirigirmos. A dificuldade de Foucault, portanto, nio foi privada, ‘num sentido adicionel: o problema que ela definiu néo era um problema apenas del Uma das conseqiléncias da concepgio,foucaultiana histériea ¢ piblica da experiéneia subjetiva € que nossa “subjetividade” nao 16 erose verdade € idéntica a nossa “individualidade”; a pessoa nio esté confinada, pela légica ou pela natureza, a suas identificagées dela mesma. E que surgem momentos em que as pessoas deixam de aceitar as préticas que as definem, momentos de “dificuldade” em nossa constituigao histérica de nés mesmos. Era justamente nesses mo- ‘mentos que Foucault julgava que as pessoas tinham um tipo especial de experiéneia do pensamento critico. Por essa razio, ele aptesen- tou sua dificuldade consigo mesmo, na condigio de intelectual € historiador, como parte de uma crise ou dificuldade mais geral da “fungio” do intelectual ¢ do historiador, ligada a experiéncia de uum fracasso dos ideais ut6picos progressistas. Assim, sua dificul- dade seria parte de nossa dificuldade como pensadores criticos ou filésofos. A busea foucaultiana de um estilo que nfo evitasse a questio do sujeito foi, em suma, a busca de uma experiéncia ¢ uma pritica de pensamento critico que nio se separassem das formas de siber © poder que aceitamos, ¢ que nfo se baseassem na suposigao “ascética” de que o sujeito € algo que podemos rejeitar, em nome de um ideal de racionalidade. Que significaria estarmos livremente interessados em nés, quando a questio nao é sactificar a parte de ‘6s que barra 0 caminho para nossa descoberta de uma natuteza superior mais verdadeira? Que significaria falar verdadeira e cri- ticamente sobre nés mesmos, sem a certeza de sermos capazes de conhecer de anteméo os principios ou regras invariantes que se aplicariam a vida de cada um e de todos nés? Pode-se dizer 20 menos isto: 0 eros dessa experiéncia de pensamento critico nfo seria um cros sacrificial ou renunciatério; néo seria perfeccionista, salvacionista ou progressista; ¢ no assumiria a forma de induzir fas pessoas @ aceitarem prineipios ou regras conhecidos indepen- dentemente de sua experiéncia delas mesmas. Nio foi inteiramente por acaso que a busca foucaultiana de uum novo estilo na subjetividade do pensamento critico coincidin com sua investigacdo da histéria do que chamamos nossa “sexua- lidade”. E que a experiéncia sexual, apaixonada, erdtica, constitui tum dominio em que a recusa do ascetismo tem sido particularmente pronuneida. E para esse campo que o dedo da suspeita sobre 0 ascetismo tem apontado especialmente, é af que suas doengas mais tem sido diagnosticadas, ¢ que as conseqliéncias sociais ¢ politicas introdugdo YT que 0 ccrcam sio mais clatas. E em tudo isso, é claro, Freud desempenhow um papel central. Mas Foucault julgou que ndo bastava expor as insatisfagdes, de nosso ascetismo erdtico. Quis, pelo menos, levantar a questio de um outro modo, ndo-ascético, de produzir nossa “subjetividade” erética, outro tipo de askesis filoséfica. Ele indagou que papel deveria desempenhar nessa ascese @ amizade entre os homens, velhos © mogos, uma vex que as definigdes ¢ priticas tradicionais tomnaram-se probleméticas e aquilo que constitui uma “amizade” tomnou-se aberto e indefinido. © ascetismo como rentincia ao prazer tem conotagées ruins. Mas 28 askesis 6 outra coisa. (..) Sera esse 0 nosso problema atual? rramo-nos do ascetismo. Entretanto, cabe a nés avangar em dirego # uma askesis homossexual que nos faga trabalhar sobre nés mesimos ¢ inventar, nfo digo descobrir, uma mancira de see que ainda & improvével.!® Em suma, a dificuldadé de Foucault cm suas relagdes apaixo- nadas ¢ afetivas, assim como em sua experiéncia de produzir livros, foi inventar um novo eros nfo-ascético no exercicio do pensamento critico, Em seu ultimo trabalho © em sua ultima concepgio de sua ‘obra, Foucault formulou essa dificuldade em termos da pergunta: ‘quanto custa A razio dizer a verdade? Com essa pergunta, ele reformulou uma categoria anterior da experiéncia de sua pritica critica: a categoria do intoleravel. L'Intolérable foi o titulo de ‘una publicagéo que Foucault ajudou a fundar, ¢ que pedia para saber ¢ dar a conhecer “o que & a prisio”. Bla dizia que surgem ocasides em que as pessoas nao mais toleram sua situagéo, sem posswirem de antemdo um método ou uma teoria para saberem © que fazer a esse respeito, Assim, elas pedem “informagcs” sobre essa sittaglo, mio apenas das autoridades, mas, nesse caso, de qualquer um “que, numa condigao ou noutra, tenba uma experiéncia da priséo, ou uma relagio com cla”."' © papel do “intelectual especifico” no é suprir as autoridades de uma politica que resolva as dificuldades dessa experiéneia complexa e andnima, mas analisar 08 custos da participago de todos em sua manutengio. O exemplo de tal exereicio “especifico” de pensamento eritico seria Vigiar e punir. 18 erase verdade Foucault entio concebeu “o intolervel” em termos do tema do custo de nossa prépria autoconstituigao. Em seus tiltimos textos, muitas vezes declarou que sé nos conhecemos, nos dirigimos e fazcmos a nés mesmos por um prego, que muitas vezes pagamos set reconhecer, ou sem nos aperecbermos de que nao ¢ necessirio pagi-lo. Uma tarefa do “pensamento critico”, portanto, é expor esses custos, é analisar 0 que mio nos apercebemos de ter tido que dizer e fazer a nés mesmos para sermos quem somos. Isso, pelo menos, seria o que o proprio Foucault vinha tentando fazer. Como sucede ao sujcito humano fazer de si um objeto de conhecimento possivel, através de que formas de racionalidade, de que necessidades histéricas, e 2 que prego? Minha pergunta 6 esta: quanto cusia ao sujeito ser capaz de dizer a verdade sobre si mesmo? Quanto custa a0 sujeito, como louco, ser capaz de dizee a verdade sobre ele mesmo? -. Uma totalidade complexe ¢ multiestratificada, com uma estrutura institucionalizada, rela- ees de classe, conflitos de classe, modali «6, finalmente, uma histéria inteira ... Foi isso que tentei recons- twit. .. E quero dar continuidade a isso com respeito & sexus- idade. Como pode o sujeito dizer a verdade sobre si mesmo como sujeito de satisfagao sexual, a que prego? A experiéncia do pensamento critico comegatia pela experién- ia desses custos. Assim, antes de perguntarmos, ou, pelo menos, 20 perguntarmos 0 que devemos fazer para nos portarmos racio- nalmente, esse tipo de pensamento indagatia: quais so as “formas de racionalidade” que garantem nossa identidade ¢ delimitam nossas possibilidades? Ele indagaria o que bi de “intolerével” nessas formas da razio; “quanto custa a Razio dizer a verdade?” Esse tipo de experiéneia critica nos confrontaria, entdo, com uum tipo diferente de dificuldade, ¢ com uma relagio com nossas dificuldades diferente da relagio “aseética”, que nos pede que nos rejeitemos pars nos portarmos de maneira apropriada ou racional. Foucault coloca essa diferenga numa passagem referente a Max Weber: E uma questéo da relagao entre o ascetismo ¢ @ verdade, Max Weber formulou uma pergunta: quando se quer portar-se racio- nalmente © reger a pripria aco segundo principios verdadeiros, a que parte do eu deve-se renunciar? Qual é 0 prego ascético da inrodugdo 19 Razio? A que tipo de ascetismo devemos submeter-nos? Formulei fa indagagio oposia. Como foi que alguns tipos de interdigio fam © prego de alguns tipos de conhecimento de si mesmo? Que se deve saber # respeito de si mesmo pera se ter disposigao de renunciar @ alguma coisa?” © ascetismo tentou determinar 0 que devemos sacrificar de rnés mesmos para saber 0 que & bom ou certo; procurou definir a violéncia “legitima”, a dor ¢ os prazeres de nos transformarmos em seres do tipo certo, virtuosos ou conscienciosos. Foucault comegaria, em vez. disso, por um tipo diferente de violéncia — a violéncia de nossa propria autoconstituigéo histérica. Nossa liber- dade estaria em nosso reconhecimento de que essa violéncia no é necesséria, de que esté sujeita a inversdes ¢ transformagses; ‘uma violéncia que podemos identificar, podemos deixar de aceitar, ¢ de cujo funcionamento podemos recusar-nos a participar. Reco- mhecé-la e procurar reverté-la & também uma espécie de violéncia. ‘Mas essa violéncia em nossa capacidade de reflexio e agio eriticas ro € ascétiea em si: nfo supde que saibamos de antemao quem devemos ser; nfo resulta em devermos renunciar a nés mesmos. Ela instiga outro tipo de reflexio critica a respeito de nds e de nossas possibilidades, que pergunta se ainda estamos dispostos a tolerar a violéncia que praticamos contra nés, para conhecer, dirigir produzir a nés mesmos. Talvez a meta atual nio seja descobrir quem somos, mas rejeitar aqueles que somos ... temos de promover novas formas de subjetividade, através da recusa desse tipo de individualidade que nos foi imposta por virios séculos."* Mas essa recusa de nossa “individualidade” nao ¢ uma tentativa de ascender a um outro mundo mais puro, a uma repiiblica filoséfica, e sim experimentar algo que ainda nio foi feito ou pensado neste mundo. E a experiéncia de uma “transcendéncia” critica, sem um ideal “transcendental”, regulatério ou constitutive. Nao se trata de um requisito da Eternidade, mas de um problema concreto da histéria. Por isso é que 0 déprise de soi* de Foucault * Autodesprendimento, em francés no original. (N.T.) 20 - erase verdade nio seria um “desligamento” ascético da vida, mas o inicio de um novo modo de viver. Foucault definiu, pois, um tipo particular de dificuldade do pensamento: a dificuldade dos momentos em que deixamos de tolerar nossas condigées, coligando-nos na agio e na reflexio criticas; os momentos em que nossas auto-identificagSes afiguram- se contingentes e violentas de um modo que nio haviamos perce- ido; os momentos que nos separam de nossas “individualidades”, expondo seus custos ¢ levantando @ questio em aberto de sua rejeigio. A experiéncia subjetivante do pensamento critico emer giria desses momentos, quando jé nio se trata de nos “deseobrir- mos", mas de “cruzar a fronteira” para uma nova e improvével identidade. Sento que a amizade filoséfica transforma-se numa “amizade na dificuldade”. Se 0 eros platénico era uma questio da philia daqueles que voltavam os olhos da alma para a sophia intemporal que haviam esquecido, este seria uma questéo da philia dos que viveneiam a contingéncia de seu ser hist6rico e se expéem a sophia jinexplorada de uma “estranha © nova relagio™ com eles mesmos. ‘A “crise” de Foucault em sua obra final, portanto, nio fot uma crise pessoal de seus ideais. Ele ndo estava indagando: quais foram os valores intrinsecos que infringi e que agora estou disposto a expor e exemplificar, ¢ assim chegar & sabedoria ou 4 orientagio em minhas ages? Seu “exerefcio filoséfico”, sua “ascese”, sua “experimentagio” consigo mesmo nessa obra no assumiriam, & maneira da “autobiografia espiritual” de Agostinho, a forma de ‘uma conversio exemplar. Ao contratio, “se déprendre de soi-méme" € 0 oposto de uma conversio”.!* Diversamente das “confissées” de Rousseau, ndo implicariam a busca de uma identidade ou relagéo consigo mesmo que fosse pré-social ou natural. Ao contririo, estariam baseados na idéia de que “o sujeito nio é dado”. Diver- samente das “meditagdes” de Descartes, nio seriam uma busca da certeza ou “evidéncia” no pensamento ou na agio. Ao contrério, questionariam a evidéncia em que se apdiam nosso pensamento ¢ nossos atos. Diversamente da Interpretacdo dos sonhos de Freud, * Desprender-se de si mesmo, em frances no original. (N.T.) introdugdo 21 no seriam a busca de um desejo constitutive; em contraste com Sartre, no seriam a busca de uma escolha fundamental. Foucault nfo encarou a dificuldade de sua obra final como uma crise espiritual, eética, moral ou psicoldgica. A origem de sua dificuldade ética nfo seria uma falha moral, uma chivida metodoligica, mi fé ou uma neurose. E sua resposta a cla no assumiu a forma de um ato de arrependimento, uma superagao da incerteza, uma autocritica ou uma psicoterapia. Nao teve a forma “ascética” de “como foi que me afastei de Deus ou da Razio (© assim, de mim mesmo), ¢ como posso me arrepender me redes- cobrir?”, ou de “como, ao discernir quais de meus pensamentos sio passiveis de divida, posso chegar a certeza de win método?”, ‘ou ainda, “como posso reencontrar aquele que realmente sou, além de todas as alienagdes sociais a que fui submetido?” Néo foi uma prética de “recordar” onde ele se havia extravindo, mas uma Gnamnese do que ele fora incapaz de ver naquilo que estivera fazendo ¢ pensando. Foucault considerou sua crise como uma crise dos limites da obra de que ele era capaz. (© que Foucault passou a admirar em Lacan foi essa dificuldade que havia encontrado em sua propria busca de um novo estilo. Foi nestes termos que, escrevendo na época de sua morte, prestow esta homenagem ao psicanalista: Parece-me que 0 quc constitui todo 0 interesse © a forga das anilises de Lacan & precisamente sto: o fato de Lacan ter sido 6 primeiro, desde Freud, « querer receatrar a questio da psica- nilise no problema das relagSes entre o sujeito © a verdade. Ele tentou enunciar a questio que &, historicamente, uma questio “espiritual”: a do prego que o sujeito tem que pagar para dizer a verdade, ¢ a do efeito, no sujeito, do fato de ele poder dizer a verdade sobre si mesmo." Na psicanilise, Lacan teria encontrado uma nova mancita de formular a questo “espititual” do dire-vrai* sobre nosso sexo, ou nosso eros. Té-la-ia formulado para uma época dominada pelo ‘mercado, pela burocracia ¢ pela ciéncia, na qual as antigas iden- Uificagées comunitérias holisticas e cosmolégicas haviam-se des- ra verdade, em francés no original. (N.T.) 22 eros verdade gastado ¢ perdido sua influéncia. Fle foi o orador que trouxe esse eros € suas dificuldades para a medicina do sexo e a pritica da *filosofia. Lacan como um self-made man Lacan era um grande oradot. Desdenhava aquilo a que chamava ‘poubellication — o langamento de seu pensar na lixeira editorial.” © que publicou foi, majotitariamente, aquilo que jé tinha dito. Sua tese da década de trinta, publicada nos anos setenta, foi seu Unico verdadeiro livro. Seus chamados écrits compreendem pro- nunciamentos feitos em diferentes ocasides, condensagdes de seu Semindrio, propostas extravagantes, resenhas, documentos institu- nais peculiares e discursos. O vefculo central de seu pensamento no foi, em absoluto, a forma escrita. Foi seu Seminério de trinta anos de duragio, a mais constante instituicio de sua tempestuosa carreira institucional, que, somente no fim de sua carreira, ele se empenhou em fazer com que fosse transcrito © publicado. Mesmo assim, num desses Semindrios, 0 Mais, ainda, de 1972, Lacan confidenciou ter havido um livro que ele gostaria de ter preparado para publicagio. Seu tema seria a ética. E como se ele sonhasse com um grande livro sobre ética, que nunca conseguiu levar-se a publicar, e do qual seu Seminério teria sido uma vasta preparagio c exemplificagdo. Assim, Lacan assemelbou-se a0 mestre de alguma antiga Escola ética, como 0 estoicismo ou o cinismo, que deixa discfpulos, um intrineado Nachlass," e muitos relatos anedéticos de uma histéria. Poderiamos entender a “dificuldade” do estilo de Lacan — a difieuldade que Lacan teve com ele ¢ a dificuldade que tencionou que ele criasse para os outros — nesse contexto de um orador que se torna mesire de uma Escola. Lacan se orgulhava em dizer que * 0 trocaditho em frances faz-se entre poubelle (lata de lixo) e publication (publicagao). (N.T) ae ** Espolio ou heranga, em alemao no original. (NT) introdugdo 23 nfo tinha uma “visio de mundo”, uma Weltanschaung. Em vex disso, teria um estilo. “Le style c'est l'homme méme”,” escteveu, 4 guisa de introduglo de seus Ecrits, publicados em 1966 (0 mesmo ano de As palavras e as coisas, de Foucault), dando a0 lema do século XVH uma nova interpretagdo, num perfodo em que o “Homem” jé nfo constitufa uma referéncia tio segura. Talvez, para “marcar™ as pessoas, esse lema devesse agora, ou no caso de Lacan, ser considerado referente ao “homem” a quem o estilo era dirigido — 20 Outro. E esse estilo, na falta de uma visio de ‘mundo, dirigido a um “homem” agora incerto, vitia a fazer parte do que Lacan passou a chamar de seu “ensino” (mon enseignement) e levaria, alguns anos depois, a fundacio de uma “Escola Freu- diana”, uma école freudienne. Foi através desse estilo de “ensino” que Lacan deu um nove impulso erético a atividade do pensar na Franga. Ele declarou que, a0 oferecer as pessoas a possibilidade de falarem de si de uma certa mancira, havia criado uma grande demanda (a0 contrério do mecanismo de mercado, onde é a demanda que cria a oferta, ou offre). Assim, embora no tenha escrito um tinico relato clinico, ele ofereceu a mais de uma geragao uma imagem inédita e conereta do que é conduzir uma andlise. Ajudou a inventar uma vanguarda filoséfico-literiria, uma “cultura da letra”, que floresceu nos anos sessenta e viria a tornar-se importante, mais tarde, na universidade norte-americana. Introduziu a psicandlise na questo do que uma ciéncia ¢ e pode set. Lacan foi slguém que trouxe para a psicanilise uma maior cultura filosofica, ¢ talvez também um desejo filoséfico mais insistente do que 0 encontrado em Freud. ‘A histéria do Seminério de Lacan € a histéria de seu deslo- camento pelas instituigSes clinicas, académicas e pablicas de Paris. Em toro dele cristalizou-se um tipo de piblico novo ¢ cada vez mais diversificado: 0 piblico basicamente clinico do Hospital Sainte Anne, o jovem piiblico althusseriano da Escola Normal Superior, e 0 grande piblico variado do Pantefo. Mas a “escola” gue assim veio a se formar em torno desse orador nio fazia parte da universidade ou da associagio médica profissional ¢ nem se modelava nelas. Néo concedia diplomes, ndo exigia nenhuma tese + “O estilo € 0 proprio homem”, em frances no original. (N-T)) 24° eros e verdade ou mestrado, ndo nha curriculo ou “einone” ¢ nao se definia‘em relagio a outras “faculdades". Ao contririo, Lacan reivindicou para ela um status “extraterritorial”; nela prevaleceria um tipo de “mestria” diferente da do discurso universitétio ou da qualificago tecnoeritica. © semindrio de Lacan retomou o risco ¢ o drama de um discurso piblico em que o falante é reconhecido ou autorizado por sua propria relagio com a verdade, sua prépria atividade de andlise. que o Semindrio de Lacan foi nfo apenas um lugar pare formagio de analistas, mas também o lugar de sua propria auto- formagio. Foi o luger de seus sonhos; Lacan investiu-se nele, viveu ¢ morreu nele ¢ através dele. Esse foi o espago publico de seu ethos singular, da exigéncia que o compelia a continuar, mais, ainda. O Seminitio foi “aquilo gragas 20 qual 0 que cnsino io € 2 auto-andlise”, declarou ele numa apresentagéo aa tclevisio, em que disse, usando a expresso inglesa, que era um “self-made © prine(pio subjacente a “dificuldade” de Lacan nio consistiu em separar esse eros pedagégico, formador e autoformador daquilo que este ensinava, mas em reintroduzir a questio do que ele ensinava no modo como isso era transmitido. A dificuldade de seu estilo, nesse sentido, seria a dificuldade do que é adquirir & tansmitir um saber do inconsciente. Em sua histéria da psicandlise francesa, Elisabeth Roudinesco explica que o Seminirio de Lacan teve um modelo ou precursor filoséfico: 0 Seminétio de Alexandre Kojéve, que teria ido uma influéncia variada ¢ fecunda na filosofia francesa do pés-guerra. E, € claro, Kojéve também foi alguém que teve dificuldade em escrever, mas que influenciou muitos que néo a tinham. Entretanto, também poderiamos mencionar outro mestre filoséfico mais antigo, que tinha dificuldades notérias com a escrita — aquele cujo lema era “impiedade & ignorincia’. E que, tal como sucedera a Séerates, a dificuldade do ensino de Lacan foi a dificuldade dayuilo ‘em que consiste falar verdadeiramente de si mesmo; foi a dificul- dade de uma ética. Mas, se o estilo de Lacan, nesses aspectos, foi como 0 estilo oratério de um antigo mestre da ética, ele se destinow a uma época moderna, muito modificada em seus pressupostos basicos — uma época em que o “homem” a quem ele se ditigia jé néo era uma inrodugdo 25 referéncia tio segura,ou que negava a possibilidade de uma visio de mundo, O que hé de *modemno” na dificuldade de Lacan, ou © que distinguitia o ensino do inconsciente dos ensinamentos da antiga sabedoria, estaria em sua rejeigao, por prineipio, de qualquer suposigao de um conhecimento do Bem, ou de qualquer Ideal que pudéssemos imitar virtuosamente. Sua ética seria, antes, uma ética ‘ou ensinamento das dificuldades que temos com 0 que ¢ ideal em ‘ns ¢ com 0 que supomos ser nosso Bem, ¢ portanto, com nossas relagdes apaixonadas com nés mesmos ¢ uns com os outros. por isso que ela requer uma paixio diferente da que decorre da suposigao de umn Bem ou de um Ideal, e das relagées de rivalidade, mestria ¢ identificagdo que tal suposi¢ao traria em si. Ela requer lum outro eros ¢ uma outra coneepedo de eros, para uma época marcada pelas ideologias da Ciéncia e da Livre Iniciativa, que nos rnegam a possibilidade de encontrar nosso eros no bem geral do mundo. A dificuldade estaria em como sermos “amigos” neste mundo modemo. Era opinigo de Lacan que Freud nos havia mostrado como. A inovagdo de Freud estaria em ele ter fomecido © posto em agio um novo tipo de eros em nosso verdadeiro conhecer a nés mesmos ou dizer verdadeiramente de nés: “Ora, 4 0 discurso analitico faz uma promessa: introduzir 0 novo. Iss0, chose énorme, no campo em que se produz 0 inconsciente, por- quanto scus impasses, entre outros, é claro, mas antes de mais nada, revelam-se no amor.""* Trata-se do tipo de eros que vivenciariamos em Ingar de ‘querermos conhecer a nés mesmos, 0 eros da dificuldade que vivenciamos em relagéo ao bem ou a0 ideal. Ao introduzir esse eros em seu ensino, a escola de Lacan seria, pois, uma “Escola Freudiana”. “A psicandlise nfo & um idealismo™, Lacan nunca se cansaria de dizer; ndo & uma ética do bem. “Meu objetivo”, declararia cle, “é extrair a ética do Biendire™.* Lacan parece ter elaborado esse quadro de uma nova ética freudiana nos anos trinta, quando 0 fascismo estava cm ascensio na Europa. Entre sua obra inicial de jovem psiquiatra, nos anos trina, antes que seu estilo assumisse suas dificeis formas “barro- * Ibid, p. 65. [Bem-dizer, ou também bendizer, em francés no original. (NT) 26 erase verdade cas”, 6 a instituigdo de seu Seminério na década de 1950, sobreveio a Guerra. A Guerra foi uma espécie de “evento traumético” em mais de um aspecto. Seus efeitos na psicandlise foram dramaticos; ela serviu para deslocar Freud ¢ centro da psicandlise da Europa central para a Inglaterra ¢ os Estados Unidos. Em particular, trouxe consigo a breve anflise de Lacan, durante a guerra, com Loewens- tein, este a caminho da América, onde contribuiu para dar inicio 4 “psicologia do ego” que Lacan veria como uma traigéo a psicandlise. Mas também se pode afirmar que @ guerra teve outro efeito: confirmar em Lacan seu ddio ou horror inveterado a0 “idealismo”, e portanto, » uma ética do bem. Os primeiros eseritos de Lacan concentraram-se no tema da agressividade, dos crimes passionais ¢ das peculiaridades do eto- tismo das loucas. Retrospectivamente, pelo menos, podemos ob- servar como eles forneceram sustentagao tedrica a esse horror a0 idealismo. Em sua andlise da “erotomania” da mulher a quem chamou Aimée, e mais tarde, em seu famoso artigo sobre a fase do espelho, Lacan formulou a viséo de que nossas relagdes com o que hé de “ideal” em nés, com nossos eus ideais e nossos ideais de eu, derivam de uma violéncia ou “alienagio” fundamental, evidenciada na imagem clinica de le corps morcelé.* No fundo, 0 ego é uma “idealizagio” de si, requerida para 0 ingresso na ordem social; € & por isso que nossa identidade ¢ intrinsecamente violenta, envol- vendo-nos na “paixio imagindria”. Se a psicanslise nao é um idealismo, é por haver proposto um tratamento cujo principio ¢ recusar-se a entrar nessa paixdo ima- ginsria. Pois, 0 que hé de novo ou caracteristico na psicandlise € que ela bascia seu tratamento numa concepgao do ser do médico € do paciente que difere daquilo que € ideal num ou noutto, e na paixio que decorre disso. A psicanslise seria um tratamento que néo propde um “ideal” para o eu, mas se interessa pela agressi- Vidade inerente de nossa relag3o com essas auto-imagens. Assim, ela introduz uma singular dificuldade ética: j4 nfo pode fundamentar-se na visio idealizadora do amor ou da amizade, tal como tradicionalmente entendidos. A paixio que liga o médico * O corpo despedagado, em francts no original. (N.T.) introdugdo 27 0 paciente no dificil trabalho da anélise € diferente da dos antigos hiloi Gloséficos, ¢ diferente da dos vizinhos cristios. A andlise ndo é nem eros nem agape; nao é sabedoria nem altru(smo, e 0 analista ndo é um “bom samaritano”. Lacan encerra seu attigo sobre a fase do espelho dizendo que € somente ao nos afastarmos dessas formas tradicionais ou idea. lizadoras de amizade ou de amor que a verdadeira viagem se inicia. Os softimentos da neurose ¢ da psicose sio, para nés, a escola das paixdes da alma. ... [Slomente a psicanilise reconhece esse 16 de servidio imaginéria que o amor sempre tem que redesfazer ou cortar Para tal tarefa, o sentimento altuista & desprovido de promessa para nés, que trazemos a luz a agressividade subjacente a agio do filantropo, do idealista, do pedagogo, e até do refor- mador. .. [A] psicndlise pode scompanhar o paciente até o limite extasiado do “Vocé ¢ isto” em que Ihe é revelada a cifta secreta de seu destino mortal, mas nio esté unicamente em nosso poder de clinicos levé-lo a’ esse momento em que comega a verdadcita vingem.” Podemos tomar essas frases de 1936 como anunciadoras do comego da viagem de Lacan, 0 inicio do destino de seu estilo e ‘sua dificuldade: esse comego fomeceu 0 Angulo a partir do qual cle iria empreender sua longa ¢ trabalhosa releitura de Freud. A atividade central, especialmente nos primeiros anos do ‘Seminério, foi exegética. Lacan partiu para uma nova e intrincada leitura das obras de Freud. O objetivo era retornar a0 sens, a0 sentido ou diregao da psicanélise, antes de ela assumir a forma ortopédica “idealizante” que havia assumido na América. A meta de Lacan, portanto, nio era 0 objetivo “progressista” de estabelecer ou consolidar os “avangos” da disciplina; tatava-se, antes, de retomar aos textos que a haviam fundado. Ainda assim, esse “retorno a Freud” nao foi a preservagio conservadora de uma doutrina, e no resultou numa defesa da ortodoxia freudiana. © movimento psicanalitico ter-se-ia dissipado por completo, declarou Lacan, néo fosse pelo évenement-Freud — 0 evento Freud. E esse evento ndo se encontra em nenhum outro lugar senio nos escritos de Freud. “Os eseritos sao o evento; cles participam da tempors- lidade inerente ao discurso.”* Os textos de Freud sio como o “abrigo” de seu pensamento ou sua filosofia, como brasas ardendo 28 eros e verdade Libiamente num convento, Voltar a Freud era voltar a essas brasas no convento da psicanilise. Era dizer novamente o que a psicandlise & deve ser € nunca deixou de ser, apesar de suas concepgdes equivocadas a seu préprio respeito: uma nova ética, Duas afirmagées gerais subjazem a essa concepgio da psica- nélise. Em primeiro lugar, Lacan frisou a singularidade do conceito freudiano do inconsciente como “conccito fundamental”, O incons. ciente nao é uma caracteristica acrescentada @ nossos pensainentos Ou nossa mente; é uma visio completamente inédita do que si0 Rossos pensamentos ¢ mentes, e de suas relagdes com nosso corpo. Nao podemos sequer identificd-lo dentro de nossos vocabul u priticas aceitos, posto que neles constitu um “evento” As interpretagGes filosoficas de Freud, na época, haviam ten- ado formular seu pensamento num vocabuldtio filosdtic mais conhecido; Ricoeur € Sartre, cada qual a seu turno, leram Freud em termos das linguagens © pressupostos filoséficos que thes forneciam seus pontos de partida, Lacan moveu-se na diregio Oposta, a de desfamiliatizar as concepgies de que pudéssemos pattir. Enfatizou a mancira como a concepgdo freudiana do in. consciente ndo se encaixava em nenhuma terminologia filossfiea ou médica aceita; tentou mostrar como a linguagem de Freud nao se superpunba a nenbuma das que jé conhecfamos. E sugeriu que era uma deficiéncia sintomatica desses paradigmas ou vocabuldrios que niio fosse possivel expor o sentido exato do inconseiente dentro deles. Ler Freud era ver quio inéditas © singulares eram suas descobertas, redescobrit 0 que ninguém havie conecbido antes Era comegar a ver exatamente de que maneira as intrincadas inracionalidades de nossas palavras © nosso corpo sio mais impor. {antes para quem somos do que nossas “personalidades vagamente policiadas”, Em segundo lugar, Lacan sustentou que essa novidade ou ingularidade do conceito freudiano do inconsciente era de natureza ties. “O estatuto do inconsciente & ético."*! © “evento” do pea. mento de Freud era um evento da ética, Segundo o conceito freudiano de inconsciente, “o sujeito” nao era 9 que Aristételes havia chamado uma “psique”, um principio funcional da vide no corpo, pois introduzia um principio libidinal nfo-funcional do corpo na maneira como cada um leva sua vida. Nao era o que Descartes havia chamado um “cogito” ou substincis introdugdo 29 mental, jd que “isso pensa onde nao sou” ¢, em particular, ‘nos eatnes deen corp, onde “wt mio eau Néo ales que Se eee icular a cada sujeito. Pan co evento wo polclogaGloséfiu fo tumbém un evato na finalidade ética. A psicanilise nio ¢ uma ¢tica das intengdes ou da vontade (0 inconsciente nfo € uma fraqueza ou falha da vontade). Nao ¢ uma ética dos atos e de suas conseqiléncias previsiveis (os sintomas inconscientes sao tos sobre cujas descr gdes © conseqiléncias ninguém quer saber coisa alguma). Nio é ética das necessidades bésicas ¢ da adaptagio dos arranjos is de modo a satisfazé-las (ndo ha arranjo social capaz de iminar a realidade do inconsciente), A psicandlise substitui a psicologia das intengdes, dos atos ¢ das necessidades por uma “teoria do inconsciente” — de nossos destinos corporais ae wmnicos, nossos atos sintomiticos e, de uma maneira singular & centr das diffeutdades de noses plavras,O tipo de dieuldade gor cit inrodur no penameto fc, pertanoy no & algo ue jon tunveraitvée de manciar ‘ai suede sing razées das causas, o “é” do “deve ser", a paixdo da razio. E que tun mn nfo coke em os tefomat em clade was See er ee Wate de gauns ue asson aie onto ert © eur de todo, de determina quis cs principios de que nlo podemos racionalmente discordar. Nao é uma meta que se possa realizar fava acces a pone et aifialade to ensino” sobre o fnconcente fol, dla Exit a felis da sngularidade do concede Incostente easements Sees ecco a tos termos Jase conti, tcamon om nas vida a dfeldade Sgullo de que 0 inconcene € ravens uma © evento oad tr Insta 0 gut, na neacen, 4 Ym do sujeito: a saber, que esse avew nio é outta coisa senio 0 furo pelo qual todo Outro esté separado do gozo: entendendo-se por isso tudo 0 que nio pode aceder a ele sem sua admissio. * Aconfissao,0 reconhecimento, a admissio,em francés no original. (N.T.) 30 eros e verdade Assim, a “autorizagio” de Lacan a si mesmo veio através de sua relagio — pod. iamos dizer, de sua “transferéneia” — com Freud, autor. A incrivel importincia que Lacan atribuia a estrita atengio para com a “letra” de Freud esté vinculada a esse fato, Ela parece mais decisiva do que a relagio que Lacan mantivera ‘com Freud através de sua andlise com Loewenstein. Como fundador de uma “Escola” de psicanilise (apesar de néo-oficial), Lacan distinguiu-se por nio seguir o padrio de filiagio, mediante a andlise diditica, que caracterizou o restante da psicanélise, pelo menos na primeira geragao. Ao romper com esse tipo de filiagio, Lacan ficou livre para tentar transformar a instituiglo, nela transformando © lugar dos escritos de Freud. Talver esse fato esteja ligado a outro: Lacan rompeu com a composi¢ao predominantemente ju- daico-protestante da comunidade analitica, com suas raizes ‘na ‘cultura alema; introduziu os textos de Freud numa Franga mais catélica romans. No tumultuado ano de 1969, depois dos acontecimentos da primavera anterior, Foucault ajudou a estabelecer uma base para © ensino de Lacan no novo campus da Universidade de Paris, no Castelo de Vincennes. Existe uma transcrigéo da apresontagio al feita por Lacan. Num debate acalorado, ele declarou a sua platéia de estudantes radicais que ‘a aspiragio a revolugao tem apenas uma saida concebivel, sempre, © discurso do Mestre. Isso é 0 que a experiéncia tem provado, Aquilo a que vocés aspiram, como revolucionétios, é um Mestre. Teréo um. Assim foi o momento do casamento da psicinlise lacaniana com a politica radical, ¢ 0 inicio do que se tansformaria no “feminismo francés”. No mesmo ano de 1969, num artigo intitulado “Que é um autor?”, Foucault apresentou uma visio da peculiaridade episte- molégica da leitura lacaniana de Freud, ou da relagio de Lacan com Freud, 0 autor. Foucault sugeriu que poderiamos considerar Marx e Freud como autores de um tipo especial que emergira na Europa do século XIX. O tipo de “discursividade” que eles intro duziram seria caracterizado apenas pela mancira como podia ser altcrado através de um novo comentétio de seus textos paradig- miticos ou fundantes. No caso dos cientistas originais, como i | | | | | i | | | imroducdo 31 Galileu, Cuvier ou Saussure, era apenas a “ciéncia normal” pos- terior que corrigia ¢ determinava 0 que era importante nos textos fundantes ou paradigméticos. “[O] ato fundador de uma ciéncia sempre pode ser reintroduzido na mecinica das transformagoes que dela derivam."™ 8 por isso que uma leitura minuciosa dos textos originais ndo é central para as investigagdes a que eles dio origem. “O reexame dos textos de Galilew pode perfeitamente modificar nosso conhecimento da histéria da mecanica, mas jamais conseguiré modificar a mecénica em si.”** Em contraste, Freud ¢ Marx teriam escrito coisas importantes nio apenas para a histéria da disciplina, mas para a propria disciplina. ~O trabalho dos iniciadores da discursividade nao se situa no espago definido pela ciéneia; antes, € a ciéncia, ou a discursividade, que volta a se referir a sua obra como coordenadas primordiais."* Por isso € que “reexaminar 0s textos de Freud modifica a prépria psicandlisc, assim como um reexame dos de Marx modificaria o marxismo”.7 Contudo, na “modificagao” da psicandlise por Lacan, através de seu reexame dos textos de Freud, hi uma maneira ainda mais complexa de pensar em Freud “como autor”. E que Lacan se perguntou como, antes que Freud se tomasse o fundador de uma instituigo e de um “movimento”, tomara-se “autor” — como viera a “se” colocar em sua obra ¢ em sua concepgao de sua obra, como introduzira nela sua “auto-andlise”, epistolarmente conduzida atra- vés de sua transferéncia para Wilhelm Fliess, 0 curioso médico otorrino de Berlim. Isso porque, como frisou Lacan, ela fora, afinal, seu préprio sonho, ¢ seu sonho de si mesmo como analista, com cuja interpretagio Freud inaugurou sua Interpretacao dos sonhos. De fato, Lacan afirmou que o “evento” central mediante 0 qual Freud transformou-se no autor dos textos a que agora cha- mamos “psicanaliticos” foi seu encontro com a histeria. “O cami- nho do inconsciente propriamente freudiano, foram as histéricas que o ensinaram 2 Frend™™ © tomar-ce-autor de Frend teria comegado na Franga, na elfnica de Charcot. Essa teria sido a sede do evento que levou Freud a romper com sua formagio médica antivitalists vienense, ou pelo menos @ questioné-la. No sonho de Freud de levar Irma a aceitar a injegfo de sua “solugio” para as dificuldades dela, ¢ no tenso drama que ele reencenou no Caso Dora, vemos Freud empenhado num grande 32 erase verdade combate em tomo da confissio da histérica, no qual suas préprias Preocupagées com a garantia de aceitagio de sua obra’ como “ciéneia” pareciam-the estar em jogo. E que essas histéricas obri- garam Freud a climinar o préprio conecito de “sintoma” de uma medicina da localizagao anatomica, transformando-o, em vez disso, ‘numa propriedade das manciras idiossincrasieas como a histérica, 0 mesmo tempo, mascarava e satisfazia scu desejo, com seu corpo € suas palavras. Assim, clas 0 obrigaram a indagar 0 que deveria ser “o sujeito” para que esse tipo de formagio de sintomas fosse possivel. E, com essa mudanga na concepeao do sintoma e de scu to, veio uma nova concepcio das metas de scu tratamento: “andlise” era qualquer coisa diferente de um diagnéstico e uma ta, Tormou-se waa questio de responder 20 “desejo" do outro, de adotar uma espécie de suspensao ou epoche diante desse desejo, que facultasse um modo de escuta “flutuante” ¢ neutra — uma neutralidade ¢ uma escuta que criariam o espago da “transferéncia”, que estruturarie o trabalho de rearticular esse desejo no “discurso conereto”. © encontro de Freud com a histetia, portanto, foi um evento epistemolégico, uma vez que o levou @ abandonar ou a fazer restrig6es ao que sua formagao médica havia ensinado, Foi também um evento “auto-analitico”, j€ que o levou ® reexaminat seus préprios desejos ¢ 0 papel deles em sua nova pritica, a ponto de ele reconheccr 0 problema de sua “contratransferéncia™. Foi tam- bém uma espécie de evento “titerdrio”, jé que o levou a inventar novas maneiras de redigir 0s relatos de casos clinicos (eujo inte- resse “Iibrico” ele temia), ¢ de compor sobre os sonhos wm tratado cientifico que inclufsse uma anilise, segundo essa ciéncia, que como ela fora deseoberta. Mas Lacan frisou que 0 encontro com a histeria fora, exatamente dessa maneira e a0 mesmo tempo, um evento érico. Como disse ele incisivamente, no fosse 0 encontto com a histeria, Freud teria continuado a ser um idealista: “Diremos que Freud teria sido seguramente um admirivel idealista apaixo- nado, se no se tivesse consagrado ao outro na forma da histérica."2? E que seu encontro com a histeria obrigou Freud a ver que, nos “sintomas”, desejava-se algo diferente do proprio bem, € que essa “outra satisfagao” era algo intrinsecamente rebelde as normas miédicas da satide. Em sua sexualidade, a histérica era um desafio 4 “mestria” da medicina, a sua afirmagio de saber 0 que era bom introdugdo 33 para cla. H que a outra satisfagao que a histérica ostentava com seus “sintomas” era uma satisfagio para a qual nio podia haver ‘uma manifestagio “normal” generalizada e ideal. Em certo sentido, 4 questio da histérica era a questio de encerrar o desejo sexual dentro das normas de uma satisfagio “sadia” adequada. Os “sin- tomas” da histérica ndo podiam ser definidos em referéncia a um ideal de sexualidade saudavel; 20 contririo, eram os ideais de satide que tinham que ser repensados para se condunar com o tipo de “desejo” que Freud veio a considerar que aqueles sintomas satisfaziam. A indagagdo tedrica de Freud — Que deve ser 0 sujeito, para que essa satisfagio sintomatica seja possivel? — era também uma questdo ética: que fazer com esse desejo para o qual no havia “cura”? Hi, pois, um sentido ético nessa nova relagio com a medicina. Nas antigas Escolas de Ftica, a medicina ¢ a filosofia andavam juntas, pois se julgava que 0 que era bom ou virtuoso fazer estava sempre ligado a0 que, falando em termos médicos, era bom para fa pessoa. Mens sana in corpore sano. Algo dessa tradigéo se reserva em nossas preocupagdes contemporineas com o “bem- estar” holfstico prometido pela “medicina alternativa” de uma “nova era” — que Lacan disse deixar nosso gozo indiferente. Em suma, através de sua auto-anilise (com a qual ele relata haver sonhado como uma dissecagdo médica de seu corpo), Freud ter-se-ia afastado da tradiggo da medicina moderna que Foucault analisou em 1962, em O nascimento da clfnica. Mas, embora tenha rompido com essa medicina que identificava a saiide com a auséncia de patologia no organismo individual, Freud se recusou a voltar @ medicina holistica anterior, revivida na hipnose, no espiritismo, na colocagio das mios e, eventualmente, nos arqu tipos do inconsciente coletivo. Lacan apresenta os modelos “homeostsicos” ou “hidréulicos” das especulagdes de Freud como algo que, na verdade, recorre a0 cariter anterior da medicina, onde 0 que é bom é bom para nés “Pois essa famosa tensio minima com que Freud articula o prazcr, que mais € ela senio a ética de Aristételes?™ Inversamente, ele toma as especulagdes freudianas sobre a existéncia de algo “além do prinefpio do prazer”, ligado a uma agressividade intrinseca, como afastando-se dessa ética. Isso porque, se a agressividade faz parte de nossa identidade, nossa relagao com nds mesmos pressupée 34 erase verdade nossas relagdes com 0s outros, ¢ no pode ser concebida como tum “aparelho” perceptivo isolado. Lacan enfatiza aquilo que, no relato ‘ireudiano de nossas pulsdes, insere-nos nessa paixdo ima- gindria fatal para a qual nao existe cura. Para Lacan, portanto, se Freud foi um “biélogo da mente”, ele 0 foi no sentido de haver descoberto, no corpo, algo que perturbava a mente de maneira ininterrupta, algo que ia “além” do que a mente concebe ou imagine ser seu bem, A ética da medicina de Freud foi a ética dessa dificuldade interminavel. E é a essa dificuldade que Freud teria aludido ao declarar que’a psicandlise era uma “tarefa impossivel” A dificuldade do ensino ou do estilo de Lacan foi fornecer a “escola” dessa ética, ou dessa “tarefa impossivel”. Nao se trataria de uma escola cujo mestte ensinasse a superar a ignorancia de ‘ada um sobre 0 que € bom para todos. Seria, antes, a escola de lum mestte que no apenas rejeitasse o conhecimento de tal Bem ‘ou Ideal, mas que fizesse do eros de nosso nio-saber 0 principio de um novo tipo de medicina, um novo tipo de filosofia. Lacan foi 0 orador que ensinou sobre a dificuldade ¢ a violéncia de nossa relagio com nossos ideais, € sobre a paixdo € o onus de dizer a verdade sobre nés mesmos. Foi o orador que introduziu essa dificuldade e essa paixio na propria concepgao da atividade filoséfiea contemporines. Nao escreveu nenhum livro; no deixou rnenhuma doutrina ou principio de conduta fixos. Deixou a cargo dos que se formaram através de seu ensino o estabelecimento, se pudessem, do “livro” da étien desse estranho novo “mestre do pensar”. Que constitu, pois, a dificuldade filoséfica? O Wittgenstein dos iltimos textos falou sobre as dificuldades que surgem quando a linguagem tira férias de seus usos corriqueitos, enraizados na pritica, emaranbando-se de um modo que seria necessétia toda uma “terapia” do pensamento para desenredar. O Heidegger final julgou-se confrontado com outro tipo de dificuldade, a de libertar ‘© pensamento filoséfico de uma preocupagio “metafisica” que teria dominado seu destino no Ocidente, redescobrindo uma “poc- sia" primordial. Talvez a dificuldade da filosofia nem sempre seja a mesma. 0 fildsofo tem que descobrir “sua” dificuldade, ¢ essa dificuldade transforma-se no que ha de mais caracteristico em sua filosofia. introdugdo 38 Por isso é que a dificuldade filoséfica é mais do que uma difieul- dade conceitual ou retérica; ela ¢ também “subjetiva”. Comegar a pensar talvez seja descobrir-se numa dificuldade peculiar que ainda no se sabe como definir. E 0 problema do “estilo” na filosofia é 0 problema de descobrit as palavras ¢ atos, apropriados a dificuldade que assim se descobre ou traz a luz. Seja como for, os estilos de Foucault e Lacan sio dificeis, néo apenas conceitual ou retoricamente, mas também nesse sentido filoséfico “subjetivo”: uma dificuldade com “eles mesmos” no exercicio de seu pensamento. E isso que faz de cada um deles, nio apenas um historiador brilhante ou um terapeuta original, mas um fildsofo. O que hé de caracteristico em suas filosofias, porém, visto por essa perspectiva, é que ambos vinculam 2 dificuldade que descobrem antiga pergunta representada pela enigmética imagem de Sécrates: qual € 0 eros do filosofar? De fato, é justamente por ligarem a paixio filoséfica pela verdade a suas peculiares “dificuldades com cles mesmos” que eles oferecem uma imagem caracteristica da filosofia ¢ um novo tipo de philia. A philia dos filésofos nao estaria no amor comum pela [déia, mas no enfrentamento apaixonado de suas dificuldades — com eles mesmos ¢ entre si. Assim, examina, discutir, ques- tionar ou “interpretar™ 0 pensamento de outro filésofo, “filosofi camente”, nfo seria reconstruir sua doutrina ou sua Idéia, mas isolar ¢ repensar sua dificuldade. A amizade filosofica seria a paixéo de compreender as dificuldades do outro em termos das proprias dificuldades e da relagio que se mantém com os outros. E nesse sentido que Foucault ¢ Lacan teriam sido amigos. Ambos se abstiveram de se pronunciar sobre # obra um do outro, prefe- indo, ém vez disso, reinterpretar ou reintroduzir a dificuldade do outro em termos da sua. ‘Assim, seria possivel dizer que a dificuldade deles, para nds, reside menos em suas doutrinas do que em suas paixdes: no tipo de “experiéneia de pensamento™ que eles tentaram definir. E por isso que podemos relé-los hoje, no como autores de implacéveis, sistemas monoliticos de pensamento, mas como exercicios ¢ ex- perigneias abertos ou inacabados de pensamento, Lé-los dessa mancira redescobrir algo da paixfo de seu pensar, e levantar novamente a antiga questio da paixio da filosofia 36 arose verdade Assim, ao reler os dois em termos de suas dificuldades, Procurei, neste livro, isolar e definir uma dificuldade ou uma 4questio que a obra de ambos nos lege: a questo do que a ética é, foi e pode vir a ser para nés nos dias atuais. NOTAS 1. Jacques Lacan, Berits, Norton, 1977, p. 146. 2. Michel Foucault, Foucault Live, org. de Sylvére Lottinger (Semio- text(e, 1989), p. 303. 5. Ibid, 317. 4 Gilles Deleuze, Pourparlers, Minit, 1990, p. 116, 5. Fovemut, Foucault Live, p. 303. 6. Michel Foucault, The Foucault Reader, org. de Paul Rabinow, Pantheon, 1984, p. 339 7. Michel Fovcault, “The Ethic ofthe Care forthe Self asa Practice of Freedom", in Philosophy and Social Criticism, vols. 2-3, verio de 1987, p. 131. 8. Michel Foucault, Technologies ofthe Self org de Luther H. Martin, Houck Gutman e Patrick H. Hutton, Universidade de Massachustis, 1988, p22. 9. bid. 10, Foucault, Foucault Live, p. 206. UL, Citado in Didier Bribon, Micket Foucault, Flammarion, 1989, p. 238, 12, Foucault, Foucault Live, pp. 245-46. 13. Foucault, Technologies af the Sel. p- 17. 14, Michel Foucault, "Afterword", in, Dreyfus P, Rabinow, Michel Foucauit: Beyond Structuralism and Hermeneutics, Chicago, 1982, p. 216. 13. Foucault, Foucault Live, p. 303. 16, Citado in Jacques Lagrange, “Versions de Ia psychanalyse dans Ie texte de Foucault”, in Prychanalyse @ Vaniversté, abril de 1987, p. 279. 17, Jacques Lacan, Télévision, Sell, 1974, pp. 47-48. introdugdo 37 18. Ibid, p. 49, 19. Lacan, Eerits, I, p. 7 (tradugdo modificada). 20. Jacques Lacan, “Compte rendu avee interpolations du Seminaire de I'Ethique”, Ornicar?, vol. 28, primavera de 1984, p. 13. 21, Jacques Lacan, ‘The Four Fundamental Concepts of Psychoana- lysis, Norton, 1981, p. 33 [0 Semindrio, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicandlise, Rio, Jorge Zahar, 1979) 22. Lacan, “Compte rendu”, p. 15. 23, Jacques Lacan, “Impromptu at Vincennes”, October, vol. 40, primavera de 1987, p. 126. 24, Michel Foucault, P. Language, Counter-Memory, Practice, org. de D. Bouchard, Cornell, 1977, p. 133, 25. Ibid, p. 134. 26. Ibid., p. 136. 21. Ibid. 28, Lacan, The Four Fundamental Concepts, p. 12 {Os quatro con- ceitos fundamentais da psicandlise), 29. Ibid., p. 28. 30. Lacan, Télévision, p. 36 Parte 1 LACAN Na psicandlise, nada é verdade, exceto os exageros. — Theodor Adorno Me aconteceu no publicar A ética da psicandlise, .. Com 0 tempo, aprendi que podia dizer sobre isto um pouco mais. E depois, percebi {que o que constituia meu caminhar (mon cheminement) era da ordem do je n’en veux rien savoir (nfo quero saber de nada disso). E sem diivida isto que, com o tempo, faz. com que ainda (encore) cu esteja ai, ¢ que vocés também, vocés ainda (encore) estejam ai! Foi isso que Lacan disse a seu Seminario em 1972; sio essas as primeiras palavras de seu Mais, ainda, Elas sugerem que 0 Seminario sobre a Btica, o nico que cle queria escrever como ivro, gozava de um lugar especial em sua obra; ele teria prosse- ‘guido por esse caminho singular, seu cheminement, simplesmente por munca ter conseguido terminé-lo. © Seminario sobre a Etica foi apresentado cm 1959-60. Era 1 época da Guerra da Argélia ¢ do idealismo politico que cla trazia ¢ Lacan providenciou para que as partes de seu Seminério dedicadas a Antigona fossem enviadas a sua enteada, Laurence Bataille, entio no presidio por sua participago na juta pela independéncia argelina. Foi também um momento dramético para Lacan, € para a psicandlise na Franga, depois do famoso Discurso por ele proferido em Roma seis anos antes, que se transformara numa espécie de manifesto de uma cisfo na instituiggo analitica Lacan foi o herdi dessa decisiva batalha institucional. E, no ‘Semindrio, apresentou Freud como uma espécie de heréi: 0 herdi de uma “revolugdo” no pensamento ético, que ensinara sobre um “mal-estar™ da civilizagéo para o qual ndo existia salvagéo nem 39 40 eros e verdade reconciliagio; 0 herdi de um novo tipo de pritica ética que poderia responder a “tragédia” de nossa modema cultura progressista, cientifica e “esclarecida”. Falou-se em tragédia depois das inominaveis brutalidades da Guerra, Sartre disse que, em scu entusiasmo acritico pelo consumo © pela livre iniciativa, faltava aos norte-americanos 0 “senso tigico™. Lacan pensava o mesmo da “psicologia do ego” da Escola de Nova York, através da qual a psicandlise se havia “adaptado a realidad” da América, Ao ligar esse “senso trigico” 4 descoberta freudiana de um “mal-estar™ inerente a nosso desejo, Lacan procurou introduzi-lo de um novo modo no campo da ética. Filoséfica ou intelectual- mente, “tragédia” da Guerra Mundial na Europa fora compreen- dida através do marxismo © da fenomenologia. Esses dois tipos de pensar haviam, por assim dizer, tomado o lugar da ética. Mas era a ética que preocupeva Lacan. Era toda a concepgao do que era nossa ética que, afirmava ele, precisivamos repensar, © que havia de novo ou original em Freud era ele ter reconceituado © reorientado nosso sentimento de nés mesmos como seres éticos, Prometendo algo novo, algo diferente em que ainda nos poderiamos transformar. Assim, nesses anos da Franga gaullista, Lacan declaron seu Seminirio que essa promessa da “revolugéo freudiana ainda estava diante de nds: a promessa de algo novo na ética de nosso desejo, nosso amor, nosso eros, a estranba beleza de uma “erdtica™ moderna original. Uma revolugao no pensamento “A revolugio de pensamento (pensée) [comportada pelo] efeito da experiéncia freudiana, no que diz respeito ao dominio ético", era ois, para Lacan, uma revolugdo de nossa prépria concepgao desse dominio. Um dos campos da ética havia consistido nas finalidades da virmde, outro, nas regras do dever. Cada qual inventara um modo de levantar a questio do conhecimento moral, ou do que é Para nds possuir ou adquirir um verdadeiro logos sobre nossas Vidas. Por que me é racional ou sébio perseguir uma meta ou um Lacan 4 bem, e néo outro? Como posso saber que normas ou principios me & racional seguir? Se, na antiga ética, as regras do dever giravam em tomo das Ginalidades da virtude, para Kant foi o inverso: 0 bem girava em torno do principio supremo da obrigaglo. Freud teria entio intro- duzido uma terceira “revolugdo”, retragando o mapa do terreno da ética. Kant tomara o dever abstrato, separando-o de qualquer “patologia”, de tudo 0 que nos acontece como seres sensuais. O problema, para Freud, estaria em redescobrir a ligagio entre a Gtica © “patos” ou experiéncia, sem retomar, como na antiga sabedotia, a um suposto conbecimento do bem. Nessa revolugio, Freud religaria a ética ¢ eros de uma nova maneira: tanto 0 ‘conhecimento da boa vida quanto a racionalidade abstrata da lei moral girariam em tomo do “desejo” de que cada um de nds dé testemunho em seu inconsciente. [Freud] partiu, ou tornou a partir, do antigo passo da filosofia: ‘ou seja, que 2 ética néo pode derivar da obrigagio pura, O homem tende, em seus atos, para um bem. A andlise volta « privilegiar 0 desejo como principio da ética. Até # censura, a Principio a nica coisa do desejo a figurar como moral, extrai © “passo” dado na ética pela antiga filosofia consistiu em levantar a questo da melhor maneira de viver a vida, Mas o que a “vida” é, © © que significa levé-la, ou conduzi-la, ou vivé-la, ‘nem sempre foram concebidos do mesmo modo. Viver a vida tem significado descobrir uma natureza ou pureza essenciais, reagir 20 proprio fado ou destino, adquirir auto-suficiéneia ou autonomia, maximizar os préprios prazeres, ¢ assim por diante. A questio da melhor mancira de viver tem variado de acordo com as concepgdes sob cuja influéncia as pessoas colocam sua vida ¢ seu viver. Ao postular a existéncia do inconsciente, na verdade, Freud ofereceu ‘uma nova imagem do que é alguém viver sua vida, habitar seu mundo manter relagdes consigo mesmo € com os outros: esse mundo unkeimlich’ em que o ego niio é senhor de sua casa, ou em que “o sujeito esti chez lui" no inconsciente”. * Insolito, estranho, em alemao no original. (N:T) “+ Em casa, a vontade, em francés no original, (NT) 42 erose verdade Se Freud, assim, tormou a partir do antigo passo da ética, foi pela reintrodugio do problema do eros em nossa vida: a questio do saber ético, a questio de fornecer um verdadeiro logos ou ‘explicagdo de nossa vida, tornou-se um problema erético. E que © inconsciente ¢,um tipo estranho ¢ trabalhoso de saber sobre nossa vida, que recaleamos ou esquecemos; ¢ a transferéncia que estrutura 0 *vinculo” erético de uma andlise provém do lugar que esse desejo ocupa em nossa vida, do qual o inconsciente é o saber. Como disse Lacan em 1959: Por que & anélise, que forneceu uma mudanca de perspectiva tio importante sobre 0 amor, colocando-o no centro da experiencia ética, que forneceu uma denotagio tio original, certamente di tints do modo como o amor até entio fora situado pelos moralistas e pelos fildsofos na economia da relagdo inter-humana, por que 1 anilise no foi mais longe no sentido da investigacéo daquilo que deveremos chamar, propriamente falando, de uma erética? Isto € coisa que merece reflexio Essa observagio ocorre em meio a imagem da anilise com que se inaugura o Seminério sobre a Etica: a anilise € um démasquage, wm “desmascaramento” da relagio que um sujeito ‘mantém com a “verdade” de seu desejo; cla é possibilitada por um vinculo amoroso, 0 vinculo da transferéncia; ¢ visa a uma certa “nio-dependéncia” ou liberdade. No entanto, esse desmas- caramento, esse vinculo amoroso € essa espécie de liberdade no Pressupdem ou prescrevem nenhuma norma para a vida. Pois 0 que se “desmascara” nio é um bem generalizével para todos; a forma de amor que estrutura 0 desmascaramento no é um altruis- ‘mo, ou uma simpatia que presuma o conhecimento desse bem; 0 que incite alguém a se engajar nela ndo é um dever abstrato, independente de qualquer experiéncia de si mesmo; ¢ a liberdade que ela oferece néo é uma auto-suficiéncia ou um autodominio. Assim, desmascarer a verdade, na andlise, no se enraiza numa teorie normativa geral sobre quem devemos ser ou o que devemos fazer. A psicanélise nio é uma sagesse, uma sabedoria geral sobre fo que & bom ser; nfo é uma morale, uma teoria de um principio ow regra geral do que € certo fazer. Ao contrério, ela suscita novas indagacdes sobre o lugar do desejo na deimanda do Saber © na natureza da obediéncia a Lei do Dever, ¢ assim, introduz uma Lacan 43 nova tarefa. Ao imaginar as Cidades do Bem ou as Repiiblicas do Dever, a filosofia buscou racionalizar o que é bom para nés, ou as regtas morais que devemos observar. Freud levantou 2 questo do lugar do “desejo” em nossas cidades éticas e nossas republicas morais, ¢ do lugar do “mal-estar” de nossa “civilizago”. Que podemos fazer de nés mesmos, em virtude desse “mal-estar™ que © efeito da experiéncia analitica revela? Portanto, 0 quadro que Freud ofereceu do que significa viver, para nés, foi um quadro “tragico”. Trata-se da imagem de uma necessidade libidinal traumetica que nos expe a0 acaso de nossos destinos ¢, desse modo, separa-nos de nés mesmos ¢ uns dos outros. F a imagem de uma “morbide2” bisica, que nio pode ser evitada por nada que possamos saber ou premeditar como nosso bem. As histérias que contamos de nossas vidas, ¢ que jamais conseguimos parar de inscrever nelas, traitiam essa “verdade™ sobre nds, essa admissfo do que € que amamos sem saber. A vida do corpo Um principio fundamental da psicanslise ¢ que nossa vida, mesmo ¢ sobretudo “a vida psiquiea”, € uma vide corporificada. Mas essa corporificagio é de uma natureza especial. Nosso corpo tem em nossa vida uma participagio que no haviamos reconhecido. Pen- ‘Samos com 0 corpo, por meios de que nio nos haviamos aperecbido. Os filésofos analiticos conduziram experiéncins de pensamento para determinar se pensamos ou nfo precisar de nossos corpos para nos individualizarmos © nos identifiearmos: poderia Jone comegar’ a viver no corpo de Smith? Mas, nesses experimentos conceimais, o corpo Figura cama 0 organisma fisien, ot, ma tarde, como 0 “computador” que nossas mentes “programariam”, © corpo freudiano ov libidinal nos individualizaria em nossa vida de uma outta maneira, uma mancira ndo-fisioldgica: subme- teria cada um de nés a um destino particular, que nos confronta como uma compulsio enigmética com a qual nfo sabemos 0 que fazer. E que nossa “corporificagao” freudiana é fundamentalmente traumética, ¢ 0 inconsciente € 2 mancira como esse trauma é

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