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ANDRÉ PROUS:

Museu de História
Natural da
Universidade Federal
de Minas Gerais.
O povoamento da
SURGIMENTO
DO HOMEM NA AMÉRICA
América
visto do Brasil:
uma perspectiva
crítica

A N D R É P R O U S
INTRODUÇÃO sobre o povoamento das Américas.
De fato, são quase sempre os mesmos

D
esde o século XIX, exis- achados que são rediscutidos periodicamen-
te um debate entre os pré- te, sendo os mesmos argumentos debatidos
historiadores que acredi- até a exaustão pelos mesmos pesquisado-
tam numa entrada muito res. Desde o início do século, parece haver
remota do homem nas uma fixação da opinião pública sobre o
Américas (interpretando problema do primeiro povoamento do con-
neste sentido vestígios tinente – muito relevante para se tratar vá-
por vezes pouco convincentes) e os que per- rios problemas teóricos relacionados ao
manecem céticos e criticam de maneira sis- primitivo Homo sapiens – combinado com
temática os indícios apresentados como pro- uma incapacidade de se avançar neste de-
va. As raízes desse debate freqüentemente bate apesar das técnicas cada vez mais apu-
passional remontam ao paleontólogo argen- radas de que dispõem os pesquisadores.
tino Ameghino. Querendo demonstrar que O debate envolve biólogos, lingüistas e
o homem tinha surgido nas Américas, su- arqueólogos, entre outros, num esforço
perestimou sistematicamente a idade das pluridisciplinar de se reconstituir o passa-
formações geológicas que estudava e in- do do homem nas Américas. Este artigo
terpretou os fósseis de primatas de maneira tratará essencialmente dos aspectos arqueo-
tendenciosa. Nos primeiros anos do século lógicos das pesquisas, embora não deixe
XX, o norte-americano Hrdlicka demons- de aludir às disciplinas conexas.
trou que todas as pretensas provas de gran- Apresentaremos sucessivamente as di-
de antigüidade do homem nas Américas ficuldades enfrentadas pelos pesquisado-
eram falhas e estimou a entrada dos indíge- res ao encontrar e interpretar os possíveis
nas em cerca de 6.000 anos; desde então, vestígios mais antigos da presença huma-
firmou-se nos EUA uma tradição na, as teorias propostas para interpretar os
hipercrítica em relação a qualquer achado dados disponíveis e os sítios brasileiros que
que confirmasse uma longa presença hu- alimentam as controvérsias.
mana no chamado Novo Mundo. Em mea-
dos do século, no entanto, descobriram-se
nos EUA locais de matança de grandes 1 – A BUSCA PELOS PRIMEIROS
animais desaparecidos, como bisontes fós- IMIGRANTES: DIFICULDADES
seis e mamutes, sendo encontrados nos es- PRÁTICAS
queletos instrumentos inquestionáveis
(pontas de pedra lascada ditas “de Clóvis”, As dificuldades para se verificar uma
com uma técnica original e sofisticada de presença humana no Pleistoceno (período
acanelura destinada a facilitar o geológico anterior a 10.000 anos, ao qual
encabamento). As análises radiocarbônicas se segue o atual período, o Holoceno) são
permitiram datar esta “cultura Clóvis” en- de ordem climática, metodológica e até
tre 10.500 e 11.000 anos atrás. Aceitou-se psicológica.
então 11.500 anos como o novo limite para
a presença do homem no continente. Desde
então, vários arqueólogos encontraram in- Razões climáticas
dícios de uma possível presença humana
anterior em dezenas de sítios, mas nenhum Os primeiros habitantes do continente
conseguiu um reconhecimento unânime por entraram na América do Norte provavel-
parte da comunidade científica. mente por terra no Pleistoceno durante
Por isso, aparecem freqüentemente na períodos frios. Com efeito, a retenção de
imprensa notícias sobre descobertas –mui- grandes massas de água na forma de gelo
tas vezes feitas em território brasileiro – em regiões polares durante os avanços
que estariam revolucionando as hipóteses glaciares provocou um rebaixamento de

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mais de 100 m no nível dos oceanos. Dessa servado e encontrado pelos arqueólogos
forma, os sítios de passagem estão agora depois de milênios de abandono são sem-
sob as águas geladas da Beríngia. Nas zo- pre reduzidíssimas. As primevas ondas de
nas ainda emersas, as massas de gelo do imigrantes devem ter sido formadas por
fim do Pleistoceno provocaram uma ero- populações muito esparsas, as probabili-
são intensa, deixando poucos sítios poten- dades de seus sítios serem encontrados são
cialmente intactos. A probabilidade de en- estatisticamente ainda menores. Outrossim,
contrar-se algum dos sítios mais antigos é os vestígios ósseos (restos alimentares ou
portanto particularmente remota. Outros- de sepultamentos) conservam-se particu-
sim, até poucos anos atrás, os arqueólogos larmente mal em regiões quentes onde a
não tinham acesso às regiões militarmente atividade bacteriana ou a ação das raízes é
sensíveis que separam a Sibéria do Alaska. intensa e as terras geralmente ácidas. Além
As datações mais antigas conseguidas do que, em regiões tropicais onde havia
em sítios do Canadá e dos Estados Unidos abundância de madeira, a maioria dos ins-
não marcam, portanto, a entrada do homem trumentos deve ter sido feita com esse tipo
no continente, mas apenas a data mínima de matéria-prima, a qual é rapidamente
em que chegaram aos locais meridionais destruída. Os primeiros indígenas podem
que não foram afetados pelo último máxi- até ter dispensado instrumentos de pedra,
mo glacial. praticamente indestrutíveis e que formam
Mesmo em regiões tropicais que não os vestígios mais visíveis nos sítios de re-
foram afetadas diretamente pelas glaciações giões frias. Enfim, veremos que os supos-
– como o Brasil – as condições climáticas tos sítios pleistocênicos americanos apre-
vigentes no final do Pleistoceno dificultam sentam vestígios que podem ser atribuídos
a tarefa dos arqueólogos: é provável que o tanto à ação antrópica quanto a fenômenos
litoral da época tenha sido uma rota privi- naturais.
legiada de difusão das populações huma- Com efeito, os homens podem tanto
nas em razão das facilidades de transporte utilizar ferramentas sofisticadas – que ape-
e da riqueza do ambiente em alimentos ao nas eles podem produzir – quanto lançar
longo do ano. Estando agora submersos, os mão de utensílios muito toscos que neces-
sítios da época ficam também fora de aces- sitaram muito pouco investimento – embo-
so; nas regiões interioranas por sua vez, ra sejam também eficientes. Mencionando
fenômenos erosivos decorrentes das fortes apenas os de pedra, já que são os que se
chuvas que caracterizaram a transição en- espera encontrar preservados em sítios tão
tre o Holoceno e o Pleistoceno na maior antigos (a cerâmica não existia nessa época
parte do território brasileiro devem ter remota), o polimento ou o lascamento or-
destruído boa parte dos vestígios ganizado de peças retocadas (bifaces, pon-
pleistocênicos depositados em terraços e tas de projétil bifaciais, instrumentos pla-
em parte dos abrigos. no-convexos ou pelo menos padronizados
e tipologicamente reconhecidos) são carac-
terísticos da ação humana. Em compensa-
Razões arqueológicas ção, pedras utilizadas sem modificação
voluntária, como bigorna, batedor ou
Os sítios arqueológicos são locais onde, moedor; ou toscamente lascadas (como os
por razões específicas (abandono de restos chamados choppers, obtidos com a retira-
resistentes, ausência de perturbações da de algumas lascas para obter-se um cur-
erosivas e deposição rápida de sedimentos; to gume sobre um bloco ou seixo que man-
condições estáveis de umidade...), foram tém a maior parte da sua superfície inicial)
preservados vestígios reconhecíveis da pre- podem resultar de fenômenos naturais.
sença e das atividades do homem. Estando Macacos brasileiros de Goiás utilizam pe-
tais condições raramente reunidas, as dras brutas (batedores e bigornas – infor-
chances de um local de ocupação ser pre- mação fornecida por E. Fogaça) e projetam

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Fotos: André Prous

Esta foto e as
seguintes são
de arte rupestre
do norte de
Minas Gerais
contra os intrusos, desde o topo dos abri- tes como testemunhas da atividade huma-
gos, pedras que podem se lascar ao bater na e também por serem datados por méto-
contra outros blocos no chão. Quedas es- dos físicos bastante confiáveis. No entanto
pontâneas de pedra (em cachoeiras ou a existem fogos naturais, particularmente de
partir da marquise de abrigos naturais), estação seca em regiões de cerrados e cam-
transporte em condutos sob pressão (nas po rupestre. Os arqueólogos desconfiam
galerias subterrâneas de regiões calcárias) obviamente desse processo quando os car-
produzem o mesmo efeito. O pisoteio por vões estão espalhados, mas costuma-se
animais pesados de um chão formado por esquecer que uma árvore atingida pelo raio
blocos e lascas de rochas frágeis (as que pode queimar isoladamente e deixar car-
lascam, fornecendo gumes de pedra) pro- vões concentrados no meio de elementos
voca retoques por vezes bastante sugesti- minerais queimados. Isso deixa uma
vos (pseudo-raspadores côncavos, gumes pseudo-estrutura parecidíssima com uma
supostamente utilizados), semelhante ao fogueira humana, fenômeno que nos foi
resultado de um legítimo trabalho huma- mostrado pelo Pe. Rohr quando das nossas
no; ocorrências desse tipo chegaram a en- escavações na Lapa Vermelha.
ganar até pesquisadores experientes como Outros arranjos de elementos aparente-
L. Leakey, em Calico (Califórnia); no Bra- mente artificiais podem também ser verda-
sil, encontramos casos desse tipo em sítios deiros “ecofactos”; é o caso de círculos de
de São Paulo e de Minas Gerais. pedra situados logo acima ou dentro de
Supostas marcas de trabalho humano camadas pedregosas: raízes de árvores cos-
foram também apontadas em ossos de ani- tumam com efeito mobilizar os elementos
mais fraturados, particularmente no norte minerais maiores, levantando-os acima do
do continente americano; nos anos 70 e 80, seu nível original. Observamos exemplos
muitos estudos se dedicaram a diferenciar típicos nos níveis de seixos visíveis nos
as fraturas resultantes de impactos barrancos do Rio das Velhas, perto de La-
antrópicos e dos dentes dos grandes carní- goa Santa. Obviamente, não se devem es-
voros, mas nem sempre o diagnóstico pode quecer as tocas de animais preenchidas após
ser definitivo. seu abandono e que concentram materiais
Até mesmo os sinais de fogo podem ter alógenos. Enfim, o próprio arqueólogo pode
sua origem discutida. Os carvões, virtual- criar inconscientemente arranjos de pedras
mente indestrutíveis, são muito importan- que são interpretados como resultado da

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ação dos pré-históricos. Com efeito, du- são respondidas nas revistas ou nos con-
rante a decapagem de um nível com sedi- gressos científicos, fazendo com que os pré-
mento pedregoso, o arqueólogo retira os historiadores estrangeiros acreditem que
elementos mais finos ou considerados não- todos os brasileiros endossam sem restri-
significativos, deixando in loco os blocos ções as teses mais discutíveis.
maiores que poderiam ter sido arrumados; Como as críticas publicadas no exterior
agindo assim – de maneira absolutamente (sobretudo a respeito de sítios norte-ameri-
legítima – executa uma triagem que o leva canos) conseguiram desclassificar facil-
a uma das muitas configurações possíveis mente muitos sítios, reforçou-se a tendên-
ou até a inventar uma estrutura inexistente. cia norte-americana em desconfiar a priori
Apenas uma rigorosa crítica em campo dos achados feitos em contexto pleistocê-
permite reduzir os riscos dessa operação, nico. Obviamente, acrescenta-se a isso o
pois as plantas analisadas em laboratório freqüente menosprezo dos pesquisadores
tendem a ser interpretadas como se fossem ianques pela formação dos latino-america-
a imagem de uma realidade pré-histórica. nos (embora muitos dos campeões da pre-
Enfim, mesmo que os vestígios encon- sença antiga do homem no continente se-
trados sejam claramente de origem humana, jam norte-americanos). Outrossim, a mai-
sua idade estimada pode ser questionada se oria dos norte-americanos não toma conhe-
a posição estratigráfica dos achados ou a cimento das publicações nem da proble-
associação dos mesmos com os materiais mática sul-americana, mantendo até mea-
datados por análise física forem duvidosas. dos dos anos 90 uma sólida relutância em
admitir até a possibilidade de uma ocupa-
ção “pré-Clóvis”. Esse bloqueio mental não
Razões psicológicas existe entre os pré-historiadores europeus,
mas a maioria não se interessa muito pelas
Até poucos anos atrás, as chances de se origens do povoamento americano ou, en-
encontrarem sítios pleistocênicos eram ain- tão, tende a aceitar facilmente demais uma
da diminuídas pelo fato de que poucos ar- cronologia longa para as Américas, já que
queólogos acreditavam numa presença tão está acostumada a uma profundidade tem-
remota do homem nas Américas, e quase poral muito maior (a ocupação humana na
ninguém se atrevia a procurar seu rastro em Europa e no Oriente Próximo ocorre cerca
sedimentos geológicos anteriores a 10.000 de um milhão de anos atrás, sendo ainda
ou 11.000 anos. No entanto, essa barreira mais antiga na África). Isso explica a dife-
psicológica está hoje parcialmente rompi- rença de atitude entre os diversos grupos
da e não é mais possível pensar que ne- pesquisadores estrangeiros ao se debater
nhum sítio inquestionável foi encontrado os sítios sul-americanos.
apenas porque ninguém o procurou.
Em compensação, deve-se reconhecer
que, depois de Ameghino, vários pesquisa-
dores se precipitaram na interpretação de 2 – OS SÍTIOS PLEISTOCÊNICOS
vestígios de origem duvidosa. No Brasil, NA AMÉRICA DO SUL:
particularmente, onde cada arqueólogo CERTEZAS E DÚVIDAS
costuma ser “dono” de um território de
pesquisa e onde não existe uma tradição de
debate aberto e crítica mútua e pública, os Um hominídeo anterior ao
pesquisadores costumam apresentar sobre- Homo sapiens?
tudo relatórios incompletos, fazendo afir-
mações que não são sustentadas pela docu- M. Beltrão, uma pesquisadora que se
mentação e nem podem ser verificadas. destaca desde os anos 70 por procurar iden-
Mesmo as propostas que parecem absur- tificar ocupações antigas, escavou na jazi-
das à comunidade científica geralmente não da paleontológica pleistocênica de Itaboraí

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(RJ) uma cascalheira onde selecionou cen- os ossos podem ter viajado por condutos a
tenas de seixos de quartzo apresentando partir de outra entrada; outrossim, um den-
lascamentos e aos quais ela atribui – em te de tigre dente-de-sabre lembra a possibi-
função de alterações superficiais – uma lidade de um grande felino ter trazido car-
idade de mais de 1.000.000 de anos. Sem caças na sua toca. Enfim, o geomorfólogo
entrar no mérito do método de datação, fri- francês que acompanhava a campanha
saremos que todas as peças que pudemos mencionou publicamente a existência de
ver no Museu Nacional poderiam ser cre- perturbações estratigráficas. Dessa forma,
ditadas a processos naturais, opinião nossa é preciso esperar maiores esclarecimentos
confirmada pelo tecnólogo J. Tixier. A tese e, sobretudo, uma publicação detalhada e
de M. Beltrão sobre esse material conclui crítica dos achados para se pronunciar so-
apenas que alguns destes objetos poderiam bre o significado do sítio.
ser artefatos. De qualquer forma, os pesquisadores
M. Beltrão dirige agora uma pesquisa não levam muito a sério a possibilidade de
na região calcária de Central (BA), tendo um homem pré-sapiens nas Américas. As
encontrado na gruta Toca da Esperança um discussões tornam-se mais acirradas quan-
nível fossilífero com megafauna extinta do se aproxima da faixa de existência do
(preguiças gigantes, etc.). Alguns ossos Homo sapiens sapiens (a nossa subespécie),
desses animais foram datados entre 200.000 cuja capacidade adaptativa era muito mai-
e 300.000 anos pelo método 230Th/234U. or, sendo, entre outras coisas, capaz de fa-
Não discutiremos aqui o método, que não bricar embarcações.
é ainda totalmente confiável (datações Th/
U realizadas no México não foram confir-
madas pelo C14, um método mais tradicio- Um imigrante de mais de
nal e confiável), limitando-nos a analisar 20.000 anos?
os vestígios supostamente deixados pelo
homem. Trata-se de algumas lascas e três Dentre os sítios que forneceram
seixos de quartzito toscamente lascados. datações de várias dezenas de milhares de
Esses “artefatos”, de tecnologia simples, anos destaca-se o abrigo peruano de
poderiam ser fabricados pela natureza; no Pikimachay (província de Ayacucho), es-
entanto, M. Beltrão avança um forte argu- cavado nos anos 70 pelo renomado arqueó-
mento pela origem humana: a gruta é for- logo R. McNeish. Três conjuntos de cama-
mada no calcário e o quartzito não existe das apresentaram vestígios pleistocênicos
nas imediações, o que sugere um transpor- atribuídos ao homem. O mais antigo (data-
te pelo homem. Existe no entanto ainda uma do entre 20.200 e 14.700 anos antes do
possibilidade: na estratigrafia regional, o presente) apresenta grandes animais extin-
quartzito se formou acima do calcário. Blo- tos (preguiças gigantes) próximos a obje-
cos de quartzito podem ter sido transporta- tos de pedra toscamente lascados, feitos da
dos pelos condutos calcários depois da ero- mesma rocha vulcânica que forma a gruta.
são da cobertura; durante esse tipo de trans- Infelizmente, o sítio foi muito incompleta-
porte, seria perfeitamente normal que ti- mente divulgado; há dúvidas sobre a ori-
vessem ocorrido alguns lascamentos nas gem antrópica da maioria dos “artefatos” e
zonas mais frágeis. Uma análise dos gumes sobre a posição estratigráfica de outros. As-
para verificar a presença de possíveis ves- sim sendo, a maioria dos arqueólogos que
tígios de utilização (feita com microscopia estuda a pré-história andina questiona a
de varredura) não foi conclusiva. Um últi- realidade de uma ocupação humana nesse
mo argumento a favor da presença humana sítio antes de 11.500 BP.
é que os grandes herbívoros não teriam Outro sítio relevante é o de Monte Ver-
conseguido chegar à gruta, de acesso difí- de (Chile), do qual não falaremos aqui, pois
cil para animais com pouca agilidade. Esse será tratado em outro artigo deste volume.
argumento não convence totalmente, pois No Brasil, o mais forte candidato ao

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status de mais antigo sítio pré-histórico
conhecido é o Boqueirão da Pedra Furada
(S. Raimundo Nonato, Piauí), escavado nos
anos 80 por N. Guidon e, a seguir, por F.
Parenti. As camadas inferiores desse abri-
go forneceram objetos de pedra lascada,
arranjos de seixos e carvões atribuídos a
uma fase cultural chamada “Pedra Fura-
da”, com datações que remontam a até cer-
ca de 50.000 anos.
De novo, todos os supostos artefatos são
seixos de uma rocha local (quartzo e
quartzito), que costumam cair da marquise
do abrigo durante as enxurradas ou serem
jogados por macacos, desde uma altura de
80 m. Já que são muito toscamente lasca-
dos e sem método, como reconhece o pró-
prio Parenti, levantamos a suspeita de que
os choppers fossem produzidos por essas
quedas. Esse pesquisador teve portanto o
cuidado de analisar os seixos caídos e las-
cados naturalmente nos últimos anos para
de fazer, nenhum dos tecnólogos (inclusi-
diferenciá-los dos que foram encontrados
ve J. Pelegrin, comunicação pessoal) que
nos níveis arqueológicos; dessa forma
examinaram a tecnotipologia das peças
demostrou inclusive que alguns objetos até
líticas se arriscou a afirmar definitivamen-
então considerados de origem antrópica
te uma origem antrópica. Discutimos com
eram produzidos pela natureza. Em com-
F. Parenti a respeito da localização dos
pensação, verificou que alguns blocos pré-
“artefatos”: para este arqueólogo, algumas
históricos apresentavam mais de três cica-
peças, encontradas acima do nível das
trizes de lascamento e retiradas em mais de
uma face, o que não ocorria na cascalheira
recente. Essas características seriam por-
tanto suficientes para discriminar os ver-
dadeiros artefatos. Acreditamos, no entan-
to, que esse argumento não seja totalmente
convincente, pois as observações de Parenti
se aplicam às condições climáticas recen-
tes. O paleontólogo da equipe considera
que o clima no final do Pleistoceno era mais
úmido que o atual; assim sendo, a cachoei-
ra que caía da marquise podia provavel-
mente revirar os blocos já caídos, permi-
tindo seu lascamento em várias faces; ou-
trossim, a passagem da megafauna (as pre-
guiças gigantes terrícolas tinham até 6 m
de comprimento!) que vinha se desalterar
nas depressões cheias de água do abrigo
durante a estação seca deve ter produzido o
mesmo resultado. Embora algumas
raríssimas peças sejam realmente no limite
do que se espera que a natureza seja capaz

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cascalheiras ou atrás da linha de queda, não seria explicável por manipulações pelo
poderiam ter subido lá sozinhas; no entan- homem... Não pretendemos aqui listar to-
to, acreditamos que elas poderiam talvez dos os argumentos e contra-argumentos
ter saltado ao atingir o chão pedregoso; falta possíveis, apenas evidenciar o quanto é
ainda fazer uma experiência soltando sei- difícil interpretar o contexto arqueológico.
xos uns sobre os outros desde uma torre de Outras considerações prejudicam a Pe-
dezenas de metros de altura para verificar dra Furada e os sítios da mesma região na
o comportamento dos blocos (alcance de comunidade científica: são as afirmações
ricocheteamento nos sentidos vertical e precipitadas, e nunca verificadas, feitas por
horizontal) e realizar uma comparação sis- alguns membros da equipe ou, então, as
temática com a planta de distribuição (ain- informações contraditórias de um artigo
da não publicada) dos possíveis artefatos para outro ou até dentro de um mesmo tex-
da Pedra Furada. Finalmente, os céticos to. Por exemplo, quanto à afirmação de uma
estranham o fato de que eventuais homens antigüidade de mais de 17.000 anos ou até
pleistocênicos tenham desdenhado duran- mais de 20.000 anos para pinturas rupestres
te mais de 30.000 anos as calcedônias (uma da Pedra Furada: sempre se fala de um frag-
matéria-prima de melhor qualidade para o mento de parede pintado caído em níveis
lascamento e para a maioria das tarefas) a pleistocênicos, mas nunca se comprovou
poucas centenas de metros; elas foram que os dois “traços” vermelhos nele obser-
amplamente utilizadas pelos homens do vados teriam sido feitos pelo homem (de-
período holocênico. Com efeito, a partir de pósitos naturais de pigmentos ferruginosos
8.000 anos atrás, uma ocupação humana são freqüentes em paredões); uma figura
inquestionável é evidenciada pela abundân- realmente pintada sobre plaqueta foi apre-
cia de instrumentos bem mais complexos e sentada e publicada por vários autores como
pela utilização de recursos trazidos de fora datada de cerca de 10.000 anos, mas a úni-
para dentro do abrigo. ca datação publicada da camada na qual foi
As numerosas “fogueiras” são também encontrada é mais recente. Uma recente
questionáveis. N. Guidon afirma que na nota de G. Martin em seu livro sobre arqueo-
caatinga não ocorrem fogos espontâneos; logia do Nordeste a respeito de um painel
no entanto, vimos que a equipe que traba- rupestre enterrado sob sedimentos arqueo-
lha em S. Raimundo considera que o clima lógicos propõe agora uma idade mais re-
do Pleistoceno final era bem mais úmido cente que a das publicações anteriores – de
que o atual: poderia portanto ter sustentado fato, parece não haver provas definitivas
um cerrado – além de matas galerias – con- de arte rupestre pleistocênica na região.
dizente com a paleofauna encontrada na Quanto às fogueiras, um artigo de Guidon
região. sobre a Toca do Meio informa a presença
A “fogueira” que Parenti considera mais de fogueiras datadas de cerca de 14.000
convincente, datada de 42.400 anos, não anos, protegidas por pequenos blocos; ou-
contém carvões (a datação provém de car- tro texto diz que não havia fogueiras
vões encontrados fora do arranjo de pedras); estruturadas, mas apenas cinzas e carvões
os pequenos seixos queimados estão fora entre blocos caídos... As tentativas siste-
do círculo de pedras que teriam delimitado máticas de apresentar a Pedra Furada como
o fogo; Parenti sugere que os pré-históri- o lugar onde qualquer tipo de vestígio é
cos teriam retirado os blocos para limpar a mais antigo que os de outros lugares mani-
fogueira; é possível, mas não se pode des- festam-se também em relação aos esquele-
cartar outra explicação: não se trata de uma tos humanos: numa reunião em Brasília,
fogueira antrópica! O mesmo autor reforça foram apresentadas fotografias de um crâ-
no entanto sua interpretação pelo fato de nio “de criança” encontrado em contexto
que os indícios de queima (como fraturas muito antigo; verificou-se logo que se tra-
térmicas) estão presentes apenas em alguns tava de um crânio de macaco. De fato, o
dos seixos e não em seus vizinhos, o que só esqueleto mais antigo da região é

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holocênico; quanto à associação entre o de queimadas naturais ocorridas na entra-
homem e a fauna extinta, particularmente da. O autor menciona que seriam associa-
no sítio Barra do Antonião, as publicações dos a lascas de pedra, mas decorridos sete
são também alusivas e contraditórias... Num anos depois da primeira informação curta a
congresso nacional, um machado polido respeito, tão importante achado não foi ain-
datado de cerca de 9.000 anos foi mostrado da publicado, mesmo que parcialmente.
em triunfo para uma antigüidade insuspei- Imaginamos, portanto, que o arqueólogo
ta desta técnica de trabalhar a pedra, esque- não mantém sua interpretação original.
cendo-se a arqueóloga que desde 1956 fo- No abrigo de Santa Elina (MT), escava-
ram encontradas peças polidas da mesma do por A. e D. Vialou nos últimos anos, a
idade nos abrigos de Minas Gerais. Pode- ocupação humana é bem documentada até
ríamos multiplicar os exemplos... Dessa 10.120 anos antes do presente. Uma cama-
forma, mesmo achados que mereceriam da inferior continha carvões (naturais) da-
melhor crédito e um exame criterioso aca- tados entre 22.000 e 23.000 anos, que teri-
bam sendo colocados a priori sob suspeita. am em princípio a mesma idade que ossos
Esperamos que uma publicação crítica e de preguiça gigante e algumas lascas
detalhada venha logo expor objetivamente atípicas de calcário (a rocha local) situados
à comunidade científica o alcance e os li- a alguns metros de lá. Esse material está
mites dos possíveis vestígios pleistocênicos ainda em estudo e precisa-se esperar uma
de S. Raimundo Nonato. Recentes publi- publicação mais detalhada para ter uma
cações de F. Parenti, marcadas por uma opinião sobre essa possível indústria.
reflexão metodológica e discussão dos ar-
gumentos contraditórios, são um grande
avanço nesse sentido. Um homem no final do
Três outros sítios mencionados na bi- Pleistoceno (14.000/10.000 BP)
bliografia apresentam datações por volta
de 20.000 anos atrás, também de significa- Dentro do espaço limitado deste artigo,
do incerto. Na Lapa Vermelha IV (Lagoa não discutiremos em detalhe os três sítios
Santa, MG, escavada por A. Laming- com datações de cerca de 14.000 anos: Alice
Emperaire e pelo autor), as datações do Boer (SP), cuja datação mais antiga foi
componente mais antigo (entre 15.000 e considerada duvidosa pelo próprio labora-
mais de 25.000 anos) foram feitas com tório (a amostra analisada estava insufici-
carvões esparsos que poderiam vir de fo- ente para obter-se um resultado confiável).
gos naturais e um único artefato A Toca do Meio (já citada) no Piauí e a
inquestionável foi encontrado nesta faixa Lapa do Sol do Mato Grosso, sobre a qual
de idade, não havendo como excluir a pos- não se dispõe de informações concretas,
sibilidade de que seja intrusivo. As primei- embora tenha sido escavada nos anos 70.
ras provas incontestáveis da presença hu- Nos anos 60, publicaram-se achados em
mana nesse sítio ocorrem entre 10.000 e terraços do rio Uruguai, datados entre
11.000 anos atrás. Em Coribe (BA), os 10.400 e 12.270 anos antes do presente.
carvões datados entre 21.000 e 43.000 anos Mas uma revisão recente por S. Milder
antes do presente, encontrados com considera os instrumentos duvidosos e sua
caramujos na entrada de uma gruta por A. pretensa associação com fauna extinta não
Barbosa, podem ser vestígios de demonstrada.
enterramento espontâneo de moluscos; com Apenas a partir do período situado en-
efeito, verificamos freqüentemente nos tre 11.000 e 12.000 anos atrás, a presença
abrigos do norte mineiro que os grandes do homem está bem documentada no Bra-
caramujos Strophocheilidae enterram-se sil e particularmente em sítios de Minas
em zonas úmidas perto dos paredões das Gerais (Lapa do Boquete – perto de Januária
grutas, durante a estação seca, logo onde os – e do Dragão – perto de Montalvânia, es-
filetes de água trazem umidade e carvões cavados pelo autor) e num abrigo do estado

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do Amazonas (Lapa do Sol, escavado por 3 – AS EXPECTATIVAS EM
A. Roosevelt). Entre 9.000 e 10.000 anos, RELAÇÃO À ENTRADA
os achados convincentes tornam-se mais DO HOMEM NAS AMÉRICAS
numerosos em todo o Brasil nordestino
(Piauí, Pernambuco, Bahia), central (Goiás, A aceitação de uma presença humana
Minas Gerais, Mato Grosso) e meridional nos EUA – e a fortiori, na América do Sul
(Rio Grande do Sul), o que deve traduzir – cerca de 11.500 anos atrás implica uma
uma densidade de população já razoavel- bem anterior entrada no continente. Mas de
mente grande. Infelizmente, os sítios quanto tempo? Embora “modelos” propos-
pesquisados até agora são sobretudo abri- tos por vários autores tenham tentado dar
gos, o que nos fornece uma visão muito uma aparência de cientificidade ao que não
parcial das culturas pré-históricas, já que a passa de suposições, entramos aqui no do-
maior parte das suas atividades devia ocor- mínio da especulação. As variáveis a se-
rer em sítios a céu aberto. rem consideradas são muitas.
Enquanto os sítios meridionais são ca- A primeira é a densidade demográfica
racterizados por uma indústria de lascas mínima – a ser mantida nos territórios já
finas retocadas e por uma grande quantida- ocupados e a ser conseguida nos espaços
de de pontas trabalhadas bifacialmente, os recém-conquistados – para que os grupos
sítios mais setentrionais dessa época apre- humanos possam assegurar sua reprodu-
sentam poucas – ou nenhuma – pontas ção biológica. Uma colonização de gran-
foliáceas, mas freqüentes instrumentos es- des espaços necessita um aumento
pessos unifacialmente retocados (chama- demográfico contínuo; ora, os exemplos
dos “lesmas”). Instrumentos polidos são etnográficos recentes mostram que os ca-
encontrados apenas excepcionalmente e çadores-coletores mantêm normalmente
não há indícios de fabricação de cerâmica. uma demografia baixa, particularmente
Raros instrumentos de osso, como pontas e quando sua mobilidade é alta. Dessa for-
espátulas, foram também registrados. A não ma, utilizar o exemplo do crescimento
ser com raras exceções (um sítio gaúcho e populacional na ilha de Pitcairn (coloniza-
outro, em Goiás), os vestígios de alimenta- da pelos amotinados ingleses do Bounty e
ção são pouco densos, incluindo raros ani- por mulheres maoris no século XIX), como
mais de porte grande. Alguns abrigos, par- se chegou a fazer, é totalmente absurdo.
ticularmente no estado de Minas Gerais, Outra variável é a velocidade de propa-
passaram a ser utilizados como cemitério gação das populações migratórias sem
entre 9.000 e 8.000 anos atrás, proporcio- tecnologia moderna; esta pode ser muito
nando preciosas informações sobre os ritu- alta para indivíduos, quando dispõem de
ais, a demografia e a patologia das popula- meios de transporte eficientes. Lembremos
ções de então, a mais famosa das quais é a o trenó para os esquimós/inuits, mas isso
“raça de Lagoa Santa”. Alguns esqueletos supõe uma domesticação dos cães que não
isolados foram no entanto encontrados entre é comprovada no final do Pleistoceno e
9.000 e 10.500 anos atrás (Cerca Grande, apenas funciona nas planícies geladas de
Lapa Vermelha, Santana do Riacho e altas latitudes – ou de latitudes médias,
Caieiras em Minas, mas também no Piauí durante o inverno apenas. A partir das aná-
e Rio Grande do Norte). A arte rupestre, lises de matérias-primas, Amick supõe uma
pintada nos paredões ou gravada em blo- mobilidade extrema para os caçadores Cló-
cos abatidos, aparece inquestionavelmente vis, mas dentro de uma exploração cíclica
apenas entre 9.000 e 7.000 anos atrás e não-linear – de territórios complementa-
(Boquete em Minas, Pedra Furada no Piauí), res. Barcos, mesmo que primitivos, são
embora haja evidências da preparação de também muito eficientes quando se trata
pigmentos desde 11.000 anos em vários de descer grandes rios navegáveis e facili-
sítios de Minas Gerais (Santana do Riacho, tariam uma dispersão linear; é bem possí-
Boquete) e Amazonas (Lapa do Sol). vel que os primeiros imigrantes tenham

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disposto de canoas ou jangadas: os primei- Vemos que avaliar a duração para o pro-
ros Homo sapiens que povoaram a Austrá- cesso de povoamento do continente é uma
lia pelo menos 40.000 anos atrás já usavam tarefa impossível atualmente. Menciona-
embarcações. Assim sendo, o grande eixo remos apenas três modelos. O primeiro, de
norte-sul pelo Mississipi/Missouri pode ter Martin, considera um crescimento médio
desempenhado um papel importante na de 3,45% ao ano (exemplo de Pitcairn) e
propagação humana. No entanto, a veloci- uma velocidade de propagação de 16 km
dade de migração para regiões desconheci- por ano (exemplo zulu) e permitiria coloni-
das não poderia ser constante, mesmo su- zar a América inteira em 1.000 anos ape-
pondo-se uma compulsão psicológica dos nas, mas parece totalmente irrealista. Um
colonos em avançar para novos territórios. segundo modelo, o de Haynes, propõe um
Tal compulsão é, por sinal, bem pouco pro- crescimento demográfico médio de 0,7% e
vável: não se podem utilizar os modelos de propagação de 6,4 km ao ano para os colo-
colonização do oeste americano para o nos; o de Hassan supõe um crescimento de
avanço zulu na África do Sul ao longo do 0,5% e uma expansão de 1 km. Ambos pres-
século XIX; o primeiro se deve a uma so- supõem uma duração de vários milênios
bra demográfica de pessoas aventureiras para o processo e parecem mais realísticos, Desenhos do
dispondo de animais de monta, e que pro- embora nenhum dado concreto venha
autor
curavam fugir das limitações de territórios apoiá-los, na falta de uma cronologia ar-
representando
já superpovoados, o que não era o caso dos queológica segura.
primeiros americanos; os zulus eram pas- Mesmo supondo resolvido o problema encabamentos
tores que entravam em terras já povoadas da velocidade média de avanço, uma data de artefatos
sobre as quais dispunham de informações de entrada inicial ainda teria que ser líticos
precisas e nas quais encontravam colabo-
radores, mesmo que forçados.
Talvez a expansão tupi-guarani do últi-
mo milênio pudesse fornecer um modelo
um pouco mais adequado, sendo até estra-
nho que não tenha sido utilizada por ne-
nhum teórico da penetração no continente
americano. De qualquer forma, ela é bas-
tante ilustrativa dos limites de uma expan-
são acelerada, na medida em que os tupis e
guaranis limitaram-se essencialmente a um
certo tipo de ambiente (o das florestas tro-
picais, que forneciam terras adequadas para
a mandioca que cultivavam). A velocidade
da sua expansão foi certamente facilitada
pela utilização das vias fluviais e da rota
marítima, ao longo da qual encontravam
alimentação farta o ano todo. É bem prová-
vel que as regiões litorâneas tenham de-
sempenhado um papel essencial nesse sen-
tido em todas as Américas. No entanto
encontramos aqui também um fator de li-
mitação de velocidade: por que sair de um
território rico em alimentos? A movimen-
tação tupi-guarani parece justificar-se pelo
menos em parte por razões religiosas (a
busca da terra sem mal), fora do alcance
das técnicas arqueológicas...

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compatibilizada com as possibilidades de aceitável. Quanto às datações da América
ordem climática. Considerando-se sempre do Sul com mais de 30.000 ou 40.000 anos,
uma chegada pela Beríngia, uma passagem implicam, seja uma migração transpacífica,
terrestre supõe ao mesmo tempo um perío- seja a possibilidade de uma entrada de uma
do frio (com rebaixamento do oceano sufi- humanidade pré-sapiens sapiens. Esta su-
ciente para provocar a emersão do istmo) posição é abertamente sustentada por M.
mas não um auge glacial (porque, nesse Beltrão. No entanto, é arqueologicamente
caso, toda via terrestre seria ocupada por improvável, pois o povoamento da
gelo, não havendo mamíferos terrestres para Polinésia é muito recente e uma emigração
“guiar” os caçadores e permitir a sobrevi- transpacífica antiga deveria ter deixado
vência). Infelizmente, os geólogos não es- vestígios nas ilhas intermediárias. Mesmo
tão totalmente de acordo sobre a data des- assim, a existência de parasitas tropicais
ses momentos “ideais”, embora haja um originários do Velho Mundo em popula-
certo consenso a respeito dos dois últimos, ções pré-históricas é um argumento a favor
cerca de 27.000 e 12.000 anos atrás. Nesse de um contato transpacífico – não seria
caso, a aceitação das datações de mais de necessariamente muito antigo.
11.000 anos na América do Sul implicaria
uma entrada anterior à abertura de 12.000
anos, empurrando para trás os primórdios
da colonização em mais de 15.000 anos. A 4 – CONCLUSÕES
existência de culturas pré-Clóvis não po-
deria ser mais recusada. A ausência de evi- As discussões sobre o início do povo-
dências “típicas” da atividade humana de- amento das Américas se parecem ainda
veria ser creditada à insuficiência das pes- freqüentemente com um debate entre
quisas, à raridade de sítios deixados por “crentes” e “incrédulos” que se digladiam
uma população esparsa e ao fato de que a diante dos olhos perplexos dos que apenas
cultura material destas seria caracterizada procuram pesar os argumentos. Não há
por instrumentos líticos extremamente tos- dúvida de que, apesar dos progressos das
cos. Haveria, portanto, que considerar com pesquisas nas áreas biológica, lingüística,
menos ceticismo a priori os supostos acha- etc., é ainda da arqueologia que se espe-
dos pleistocênicos (o que não significa ram resultados conclusivos. Modelos teó-
aceitá-los automaticamente). ricos não adiantam muito se não se apoi-
Infelizmente, mesmo a possibilidade de arem numa matéria-prima adequada que
uma passagem por mar não pode ser total- só pode ser fornecida por sítios apropria-
mente descartada durante oscilações favo- damente escavados e interpretados. Não é
ráveis da glaciação do Wisconsin, que re- de se estranhar que as exigências para que
duzissem parcialmente as línguas de gelo. a comunidade científica aceite uma de-
Com efeito, a maior fonte de alimentação monstração de presença humana muito
eram os mamíferos marinhos do litoral, e recuada sejam maiores que para propos-
podia se procurar seus refúgios também por tas com implicações menos importantes.
barco em distâncias limitadas, já que se sabe Como as evidências das atividades
da capacidade do Homo sapiens em nave- antrópicas que se conservam são essenci-
gar nos mares do sul desde um período re- almente artefatos de pedra, é compreensí-
moto. Embora o Oceano Ártico, gelado e vel que sobre estes se concentrem as mai-
tempestuoso, requeresse uma tecnologia ores discussões. Nada impede que os pri-
apurada para ser navegado, a sobrevivên- meiros “americanos” tenham utilizado nos
cia em terras árticas também supõe uma abrigos apenas choppers e lascas simples,
adaptação bastante adiantada. nem que tenham evitado fazer neles fo-
Ao se aceitarem os achados norte-ame- gueiras estruturadas mas, nesse caso, de-
ricanos datados de cerca de 20.000 anos, a vemos aceitar que haja dúvidas sobre a
data mínima de 27.000 anos seria a mais presença humana. Será mais sadio que

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negar ou acreditar a priori. Quem quiser vários séculos ou milênios é grande, já que
trabalhar o problema das origens do ho- a probabilidade de que o local mais antigo
mem nas Américas deverá procurar novos de instalação humana numa região seja
locais que ofereçam condições melhores preservado e encontrado pelos arqueólo- Objetos talhados
para a interpretação, ou descobrir novos gos é praticamente nula. lascados
métodos para resolver as dúvidas surgidas
nos “velhos” sítios. São frustrantes o tem-
po e os esforços despendidos para tentar
obter, nas mesmas condições, resultados
sempre duvidosos. A ênfase deve ser na
melhoria qualitativa e não na multiplica-
ção quantitativa das pesquisas.
De qualquer forma, a opinião arqueoló-
gica internacional começa a aceitar a idéia
de que existiram no hemisfério sul popula-
ções pelo menos tão antigas quanto as de
Clóvis; precisa agora tornar esta aceitação
irreversível publicando detalhada e criti-
camente os achados – freqüentemente, ain-
da, nos limitamos a publicar notas prévias
ou artigos muito punctuais que não permi-
tem convencer os leitores mais críticos.
Comprovada uma antigüidade de mais de
11.000 anos na América do Sul, não haverá
como negar a existência de culturas pré-
Clóvis, pelo menos no hemisfério norte. As
novas gerações de pesquisadores serão
então incentivadas a desenvolver novas
abordagens capazes de superar as limita-
ções dos sítios e as nossas dificuldades de
interpretar os seus vestígios.
Obviamente, se tivermos vestígios
inquestionáveis datados entre 11.000 e
12.000 anos no Brasil, isso significa que a
ocupação pioneira que os antecedeu em

BIBLIOGRAFIA

Este artigo, escrito para não arqueólogos, não comporta uma bibliografia especializada. Por isso,
citaremos apenas três títulos em português: dois livros mais abrangentes e as atas de um congres-
so especialmente relevante para o tema.

ANAIS DA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE O POVOAMENTO DAS AMÉRICAS,


Rev. Fund. Museu do Homem Americano, 1 (1), S. Raimundo Nonato, 1996 (artigos de Beltrão,
Guidon, Meltzer, Parenti...).
MARTIN, G. Pré-História do Nordeste do Brasil. Recife, UFPe, 1996.
PROUS, A. Arqueologia Brasileira. Brasília, UnB, 1992.

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