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"NÃO SE APAIXONE!"
A MÁSCARA DA FEMINILIDADE CONTEMPORÂNEA
L.t.1JA GUIMARÃES (SALVADOR) (leda.guimaraes@uol.com.br)
A histeria na contemporaneidade
No seminário O osso de uma análise', realizado em Salvador - Bahia, em 1998, Miller
encerrou suas elaborações, dentre as quais sua formulação acerca da vivificação de gozo que
o significante produz no corpo, proferindo no final deste seminário uma frase que merece ser
tomada em toda a sua importância. É uma frase que produziu na audiência uma reação auto
mática de risos, certamente pelo desconcerto que ela provoca no enquadramento da nossa
realidade, pois esta frase inverte inteiramente a perspectiva para a qual nossa histeria atual
nos convoca. Inversão precisa, proferida por Miller, mas feita de forma elegante e gentil, sob o
modo encantador de um convite, para que disso alguma coisa pudesse ser escutada. Falando
en1 non1e dos homens 1 ele nos disse: "senhoras, amem-nos".
Miller encerrou assim com este convite quando falava, nas suas últimas reílexões, que
"há uma dificuldade contemporânea em relação ao amor e que, pelo seu movimento natu
ral, a conquista dos direitos da mulher se traduz por uma dificuldade do lado do amor"5.
Nesse momento ele nos recordou que a desvalorização do amor e a conseqüente promoção
da fantasia, naturalmente com o seu acento fetichista, são fenômenos que estão principal
mente situados do lado macho. Miller então propões que as mulheres ao despertar para os
seus direitos nos can1pos jurídico e econón1ico, fizessem esse despertar de uma boa manei
ra, não como os homens, não deixando de lado a importância que o amor tem nas relações
de parceria.
Este convite de Miller guarda aproximações com uma referência freudiana, do texto "O
Mal-Estar na Civilização", que consiste numa formulação bastante polêmica, principalmente
desde o ponto de vista feminista. Nos diz Freud: ''AI; mulheres representam os interesses da
família e da vida sexual. O trabalho de civilização tomou-se cada vez mais um assunto mascu
lino1 confrontando os homens com tarefas cada vez mais difíceis e compelindo-os a executa
rem sublimações pulsionais de que as mulheres são pouco capazes''.
Segundo o meu ponto de vista, o qual pretendo demonstrar neste trabalho, esta citação
de Freud tem uma grande pertinência, ainda que tenha sido formulada de maneira imprecisa.
A imprecisão se deve ao fato de que não podemos afirmar que as mulheres não são capazes de
executarem sublimações, até mesmo porque a grande possibilidade de investimento libidinal
nessa vicissitude pulsional já foi demonstrado pelas mulheres, a partir das grandes conquistas
que elas já alcançaram na sociedade atual, nos mais diversos campos. Toda a questão é que,
ainda assim, com todas as grandes satisfações que as mulheres podem extrair dessas conquis
tas, ainda centralizam no amor, no campo da parceria amorosa, a localização da função da
exceção para a feminilidade. Se no campo das conquistas sociais, produzidas pelo movimento
feminista, temos possibilidades de satisfações que valem para todas, a função da exceção cen
traliza-se no campo da parceria amorosa em suas duas vertentes paradoxais: no sonho mais
elevado do Ideal inatingível "d'A Mulher" - a única, a especial, a inigualável dentre todas as
outras diante do desejo masculino - como também na outra vertente da exceção pela conse
qüente queda deste sonho, que se traduz no gozo superegóico da devastação relativa ao sen
timento de exclusão.
Segundo cada cultura, em cada momento histórico, esta máscara se transmuda, muitas
vezes numa velocidade alucinante, assim como as histéricas trocam de roupa e adereços to
dos os dias numa corrida vertiginosa atrás de uma Outra mulher, que não é ela mesma. O
interessante é que, nos tempos do Outro que não existe, nos tempos das perdas dos signifi
cantes mestres, da ausência de traços simbólicos que assegurem identificações que valham
para todos, assistimos um fenómeno surpreendente que se ergue sólido e potente em nome
de uma nova identidade feminina, mas que em última instância, é a tradução mesma da más
cara da feminilidade na contemporaneidade:
A mulher multimídia, multi-facetada em suas várias potências, autônoma, independente,
capaz, super-super mulher, que se pretende, muitas vezes, ser até mesmo mais potente do
que os homens. Esta máscara tem várias faces que podem ser assim enunciadas - mas note
mos também que todas esses denominativos se fazem antecedidos pelo artigo definido ''li':
A profissional realizada- em suas competências sublimatórias, sejam científicas, anísti
cas ou técnicas, de tal sorte que o mundo do trabalho já não mais poderá sobreviver sem
as mulheres;
A politizada, culta, intelectual - engajada nas lutas em defesa dos direitos dos excluí
dos, especialmente dos direitos femininos;
A administradora do lar- já não é mais a "dona de casa", ela subiu de posto de comando,
e inclusive como provedora economicamente do lar em proporções cada mais alarmantes;
A mãe psicopedagogizada- especializada nos saberes "psis" sobre o desenvoh>imento infantil;
A malhadora diet - bonita em qualquer idade, e saudável através da contabilização ob
sessiva das calorias e nutrientes,
A amante liberada- especializada nos receituários de inserção do orgasmo clitoriano no
ato sexual.
Para esta lisca1 outras faces poclen1 faciln1ente ser acrescentadas1 mas ... e a amante apaixo
nada, onde está' a mulher que sonha e morre de amores pelo.seu parceiro' - Não faz parte
desta lista, foi exco,nungada.
Esta condição peculiar, da manutenção de vários traços identificatórios na histeria con
temporânea, já havia sido referida por Slavoj Zizek, mas vale ressaltar aqui neste trabalho a
aproximação e a distância que este modo de identificação guarda em relação à identificação
"estrelada" dos melancólicos, como Lacan formula em "Lituraterra"W. Assim como os melan
cólicos, a manutenção em série de vários traços de identificação, referentes a padrões de
conduta social, funciona como uma compensação imaginária para a ausência de significantes
ordenadores centrais. Mas, a diferença estrutural entre a máscara da feminilidade contempo
rânea e a identificação estrelada na melancolia consiste na referência fálica que a máscara da
feminilidade porta em seu centro. Com esta máscara as histéricas querem se fazer o falo para
o desejo masculino. Todo o problema é que a máscara da feminilidade contemporânea não
produz o efeito esperado de fetichização para o desejo masculino. Seu resultado é um tiro
que sai pela culatra. Como denunciam os próprios ditos de mulheres que se nomeiam realiza
das, independentes e liberadas: "cadê os homens'", "não se acha homens'"· ..
Isso porque, a máscara da feminilidade contemporânea não se ergue como o falo mas,
seu estatuto. Mas, na medida em que esta dimensão erótica se mantém latente ou mesmo
recalcada, a vertente do amor, que se institui como o invólucro de cobertura do gozo femini
no, adquire o estatuto de uma exigência insistente, sustentando a demanda incondicional de
amor. Desse modo, a excitação erotomaníaca se traduz sob a fom1a de uma exigência de
amor: · "me ame 1nals, mais, n1ais ainda ... ".
A aceleração do gozo erotomaníaco próprio da paixão na histeria adquire assim facilmente
o estatuto de um imperativo, do qual o sujeito não mais detém o controle. O que denuncia
que a face mortífera do supereu se infiltra rapidamente neste estado de gozo. Disso resulta
que a aceleração de gozo na paixão venha a sustentar o estatuto de um imperativo "Goza",
com todo o seu efeito mortificante, fazendo com que a experimentação de gozo no
apaixonamento histérico rapidamente venha a transmudar-se de um estado de êxtase para
um estado de devastação.
Quais as conseqüências desse estado de gozo nas parcerias amorosas' A presença marcante
do modo de funcionamento do supereu na histeria. Retomo outra frase de Eric Laurent, desta
mesma aula do curso O Outro que não existe" - frase que contém em si mesma uma propo
sição fundamental acerca do estatuto do supereu na histeria:
O paradoxo do supereu
Destaco agora um ponto essencial relativo à economia de gozo do supereu na histeria aí
implicada nesta parceria erótica contemporânea. A navalha afiada do sadismo feminista, que
tende a exercer um movimento como uma guilhotina giratória de castração do "machismo",
não livrou as mulheres modernas do estatuto do supereu na histeria, muito pelo contrário,
pois, efetivamente, a nova máscara da feminilidade só se mantém desde uma íntima articula
ção ao imperativo superegóico. A tradução mais explícita deste imperativo superegóico, con
forme a enunciação que emerge da boca das próprias histéricas, é: "Não se apaixone'", "seja
livre, autônoma, independente, realizada, linda, poderosa, etc. . . , mas 'não se apaixone! "'.
Temos, assim, a enunciação explícita de um imperativo que diz não ao gozo pulsional, que
exige a renúncia da satisfação pulsional, para que a cara do Ideal d'A Mulher super-potente
possa ser supostamente mantido. Mas, se as mulheres na contemporaneidade precisam tanto
deste imperativo "Nãó se apaixone!", para manter o seu sonho de potência, é exatan1ente
porque este sonho está sempre prestes a ruir.
Todo o problema é que o imperativo explícito "Não se apaixone'" já denuncia por si mes
mo sua vertente silenciosa paradoxal, para aqueles que mantém seus ouvidos mais atentos.
Pois, se as mulheres precisam tanto deste impedimento é exatamente porque elas estão sem
pre em vias de cair nas garras da paixão. Num encontro contingencial, diante do objeto olhar
voz, em sua dimensão mais real, encrustrado no semblante do parceiro, uma histérica poderá
facilmente ser capturada na invasão de uma explosiva sensibilidade que se alastra pelo corpo.
O efeito desta invasão do gozo feminino fará com que, neste momento, o olhar e a voz se
instituam como porta-vozes do sonho idílico da paixão. Sonho presente nos devaneios secre
tos de uma histérica, quando a emergência do gozo feminino faz imperar o impulso de se
entregar a um homem, de se fazer objeto causa do seu desejo, de se deixar invadir por essa
pura sensibilidade, ali onde vigora uma pura ausência de sentido sobre o ser.
Mas, diante do encontro com o objeto olhar-voz, indexado no semblante do parceiro, a
economia de gozo do supereu poderá ser imediatamente disparada, enxertando no gozo fe
minino os efeitos danosos da significação fálica. Diante deste encontro com o objeto olhar
voz um imperativo silencioso poderá se infiltrar no gozo feminino e fazer estremecer o ser de
mulher- ser de mulher que nesse momento aí se institui pela via do objeto. Este imperativo
silencioso, ou talvez subliminar, ou melhor dizendo latente, já que ele pode ser enunciado
segundo a lógica fálica, ainda que de forma sigilosa, como quem conta um segredo, pode ser
assim formulado: - "se entregue a este homem sem medidas, sem pensar, se deixe invadir por
este impulso ao extremo das suas exigências, nem que isto lhe custe a desgraça da sua própria
vida - se deixe morrer de paixão".
Temos, assim, as duas faces do paradoxo do supereu articuladas à máscara da feminilidade
contemporânea. O imperativo "não se apaixone" que eqüivale à presença mesma do seu para
doxo latente: "se apaixone - morra de paixão". O imperativo que diz não ao gozo pulsional
mantém oculta a sua verdadeira face, na qual a verdadeira de exigência do supereu é exigência
de gozo em seu caráter mais mortífero.
O engano
Uma proposição que pretende dar sustentação lógica ao próprio paradoxo do supereu
emerge da fala das histéricas. Trata-se da proposição histérica que anunciei no início desta
conferência. Esta proposição acaba fixando o próprio paradoxo do supereu, na medida em
que pretende ter o valor de uma verdade universalizante relativa à devastação: 'i\. paixão é
uma patologia".
Se acreditamos neste enunciado no exercício da clínica psicanalítica, se damos crédito à
língua autista da neurose histérica como porta-voz de uma verdade universal, estaremos, nada
mais nada menos que fixando, avalizando, fortalecendo, cristalizando, a lógica infernal do
paradoxo do supereu. Concordar com as histéricas, confirmando através do ato analítico que
a paixão é uma patologia, consiste em fortalecer o gozo devastador mortífero que está fixado
na crença nesta proposição. Consiste em afundar a psicanálise no poço mortífero do supereu,
deixando que ela seja aspirada pelo silêncio da pulsão de mone. Por isso é importante, para
Fazer-se mulher
Temos assim como fundamento básico uma disjunção: perguntar o que é ser mulher// fazer
se mulher. Disjunção que sustenta duas posições de gozo radicalmente diferentes em relação à
feminilidade. A partír daí, formulo antecipadamente a minha resposta: não há outra via para
"fazer-se mulher" a não ser através da paixão - através do desejo de fazer-se objeto causa do
desejo masculino; desejo que só advém, com toda a sua potência quando uma mulher é tomada
pela contingência da paixão. Mas, "fazer-se mulher" implica diretamente no consentimento ao
impulso pulsional, no consentimento aos fins de satisfação passivos da pulsão. Tui consentimen
to só é possível na medida em que os dois campos da lógica da sexuação estejam bem delimita
dos na subjetividade de um sujeito: o campo da pergunta //o campo do fazer-se.
No campo da pergunta a feminilidade receberá a incidência de uma interpretação que
advém da lógica fálica. Tal interpretação resultará num juízo de valor acerca da posição de
objeto causa do desejo masculino conforme a série que se segue: castrada, passiva, espancada,
degradada, excluída. Assim, no campo do Todo, a pretensão de responder a pergunta "o que
é ser mulher'" resultará numa resposta que ditfemme, como nos diz Lacan no Seminário
Mais, Ainda", com o jogo homofônico possibilitado pela língua francesa, que significa ao
mesmo tempo: dizer a mulher, dizer dela, mas sob o preço de difamá-la. É este o efeito da
significação fálica do campo do significante sobre a sexualidade feminina. Toda a questão é
que esta interpretação, tão espinhosa e dolorosa para as mulheres e sobre as mulheres, só se
mantém num estatuto de verdade não apenas pela incidência pura e simples do significante.
É preciso considerar que a significação fálica, produzida pelo significante, só mantém uma
fLxação mortificante quando está assentada sobre o lastro de uma economia de gozo. Propo
nho que este lastro mortificante corresponde à economia de gozo do supereu.