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Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, Professor do Campus de Altamira da
Universidade Federal do Pará.
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A tradução do resumo e das palavras-chave para a língua inglesa foi gentilmente elaborada pelo professor
Antônio José Bezerra do Nascimento Filho, do Curso de Língua Inglesa/Campus de Altamira/UFPA, ao qual
agradecemos
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A “conquista” da Amazônia?
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A Manchete em uma reportagem que exaltava a estrada, traz imagens e textos que
mostravam a alegria das famílias na colheita das safras de arroz e feijão. O nascimento de
crianças e a fartura da colheita são elementos que somados, serviriam de argumento para
afirmar a vitória dos idealizadores e planejadores da estrada que pretendia integrar o país
pelo seu interior, criar uma rota rodoviária entre dois oceanos e levar esperança a
populações que, segundo os discursos, sofriam por décadas devido ao descaso do poder
público.
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O homem era bom, tratava nós tudo [sic] como gente, cheguei aqui sem
nada e consegui o que tenho, que infelizmente o senhor não vai poder
conhecer [as terras dele, distantes cerca de 30 quilômetros do ponto onde
conversávamos, em sua residência na zona urbana], foi graças ao Médici.
Ele perguntava como a gente tava [sic] e investiu, diferente do pessoal
depois dos militar [sic].
...ele mudou para melhor nossas vidas.5
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traslado para outra região, pensam como um benfeitor, o presidente que teria viabilizado
uma transformação considerada por eles como positiva, em suas vidas. Reis (2005) defende
que os anos de chumbo de Médici precisam ser revisitados para que se possamos
compreender melhor o milagre que ocorreu naquele período. Os depoimentos de
moradores da Transamazônica, dificilmente audíveis nos principais espaços de informação
nacionais são, assim, uma das maneiras de revisitar o período que ficou conhecido como os
anos de chumbo e do milagre brasileiro.
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Esta estrada que a partir de 1970, abriu caminhos para visitas de Presidentes,
Ministros de Estado, imprensa nacional e internacional, conflitos entre migrantes e
indígenas, pessoas devoradas por onças, jacarés, sucuris, piranhas e outros animais
selvagens, doenças estranhas, ou descobertas, cujo nome homenageia o município que
tornou epicentro das obras, compunham, um roteiro de cinema, durante a construção e
consolidação da Transamazônica. O cotidiano nunca mais seria o mesmo para ribeirinhos,
indígenas e outros sujeitos da região que viam suas vidas serem bruscamente alteradas pelo
evento que muitos deles agora comemoravam, mas que ainda teriam muitos anos para
avaliar com mais calma se lhes fora realmente vantajoso: a derrubada de uma castanheira-
do-pará, por Emílio Médici, em 10 de outubro de 1970 (MANCHETE, 15 de abril de
1972).
Começava o “milagre de Emílio”, tempos de fantasia, tanto que virou enredo,
personagem e/ou pano-de-fundo para muitas obras literárias publicadas em diversos
Estados do país6. O projeto começava sob a marca da derrubada de uma gigantesca árvore
amazônica e de um general-presidente anunciando que guiaria o povo nordestino da seca
que atravessavam rumo à terra que possui fartura de água e comida, nos supostos “vazios”
da Amazônia, habitados, na verdade, por populações tradicionais.
O milagre seria fazer surgir cidades, com agências bancárias e de correio,
comércio, feiras, prefeituras e populações no meio da floresta. A trajetória da rodovia
começa com a divulgação do início da construção da rodovia, em 10 de outubro de 1970,
como o início da “arrancada para conquistar o gigantesco mundo verde” 7 . Em outros
momentos da História, mas sobretudo durante a construção da ferrovia Madeira-Mamoré
(HARDMAN, 2005) se tornara lendária a floresta amazônica, interpretada pelo noticiário
nacional, como uma personagem com vontade própria que se ergue para enfrentar os
invasores e expulsá-los.
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Diversas obras literárias, com enredos de aventura, tendo como foco a Transamazônica, foram publicadas
não apenas na década de 1970, como em outras posteriores. Uma destas obras de Odete de Barros Mott
(1973), nacionalmente conhecida escritora infanto-juvenil, busca descrever o cotidiano da rodovia logo após
sua construção.
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A frase “arrancada para a conquista deste gigantesco mundo verde”, está escrita na placa colocada em um
pedaço de tronco de castanheira-do-pará, a árvore simbolicamente derrubada por Médici, e que se tornou
monumento da construção da rodovia, na entrada de Altamira, conhecido pela população local como “pau do
presidente”. Ao anunciar a cerimônia de inauguração da estrada, a Folha de São Paulo, utilizou esta frase
como título da matéria. Consultar FOLHA DE SÃO PAULO, 10 DE OUTUBRO DE 1970.
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Ao nos depararmos com a leitura dos jornais de 1970, ano do início das obras até
1984 quando do final do Governo Militar, observamos que as preocupações com a temas
como a saúde afloravam nos debates nacionais. Em outros momentos da História em que
se intensificou a migração para a Amazônia, a memória presente nos relatos é do grande
saldo de mortos deixado pela floresta. A floresta aparece então como uma personagem,
provida de vontade própria que se manifesta para expulsar o imigrante, como podemos
perceber em O Estado de São Paulo:
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O jornalista Alberto Tamer durante o ano de 1970 fez uma série de viagens pelos lugares onde se construía
a Transamazônica, de onde enviou diversas reportagens com análises críticas sobre o assunto que depois
foram reunidas e publicadas sob a forma de livro. Sobre o tema, consultar TAMER, 1971.
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Fordlândia, o sonho de Henri Ford de construir plantações de seringueiras, no Pará, para produzir borracha,
como afirma o historiador estadunidense Greg Gradin, era além de um projeto econômico, um desejo de
civilizar a Amazônia com valores do mundo industrializado, a partir da construção de uma cidade para
abrigar os trabalhadores. A cidade original, situada junto a um município paraense, com o mesmo nome da
planejada por Ford, se encontra abandonada na floresta, como um monumento a megalomania. Sobre o tema,
consultar GRADIN, 2010.
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Chegadas e partidas
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aumentando suas propriedades e perspectivas mas que, por situações inusitadas, foram
obrigados a abandonar e/ou vender suas propriedades e bens para ir embora da região.
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Município do Estado do Rio Grande do Norte.
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e a filha “caiu na vida, dormindo com vários homens, acho que até recebendo dinheiro por
isso”.11
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Anotação do diário de campo do autor, em 14 de fevereiro de 2010, entre os Estados do Maranhão e
Tocantins.
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Suas filhas teriam se envolvido em diversas relações sociais, vindo, segundo notícias
veiculadas nos jornais, a se tornar prostitutas, em um dos principais municípios da rodovia.
Ele permaneceu, apesar dos animais selvagens, das doenças e das dificuldades
iniciais para plantar, pois tudo era diferente. Muitos outros migrantes enfrentaram as
mesmas dificuldades e desistiram, venderam suas terras e regressaram. Outros como ele,
permaneceram, com orgulho por cada desafio vivenciado. Nos discursos oficiais, tudo
transcorria bem ao longo da Transamazônica e experiências como a de Joaquim serviam
como argumento contra os opositores, mas o mesmo Joaquim abandonou a rodovia, pois
não suportou a pressão de ter os valores em que acreditava, atingidos no interior de sua
família.
Joaquim, em sua própria vida, é emblemático pois sua imagem tanto simbolizou o
sucesso da colonização quanto o fracasso. Posteriormente quis regressar e as fontes então
silenciaram sobre a decisão tomada pelo INCRA que, de um modo geral não subsidiava o
regresso dos que abandonaram, com receio de assim incentivar a partida de muitos
migrantes. Tentando não permitir o retorno, o governo estabeleceria entre os migrantes o
temor de “perder” sua única oportunidade de participar de um momento histórico de
conquista da Amazônia.
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Pouco depois do rio Araguaia vimos uma cena que se repetiria até
Altamira: as queimadas nos terrenos dos colonos, usadas para limpar a
área desmatada e iniciar a semeadura. Às vezes as queimadas davam um
aspecto lúgubre à paisagem: no meio da mata verde-escura, uma gleba
inteira cinzenta, feita de tocos de árvores queimadas, moitas de capim
ainda fumegando. E, no centro desse braseiro, a casa do colono, isolado
com sua mulher e seus filhos.
Meia hora depois, o meu companheiro de viagem, Alfredo Rizzutti, pediu
que eu parasse o carro na beira da estrada, que ele ia fotografar uma
dessas glebas queimadas. Isso se repetiu algumas vezes. (MORAIS,
2003, p. 44)
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Faltou apenas chegar a cidade seguinte, depois de Humaitá, Lábrea-AM, a última da BR-230, devido às
dificuldades de transporte na época do ano em que lá estive, conhecida como inverno amazônico, o período
mais chuvoso do ano.
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Houve conflitos e crescentes temores entre os diferentes sujeitos envolvidos, alguns dos
quais lutam por reparações pelos danos sofridos com a construção da rodovia.
A rodovia que motivou debates nacionais, foi epicentro de propagandas oficiais e
de anseio pela conquista da Amazônia.13 Uma conquista que pretendia vencer a floresta e,
a despeito de muitos acreditarem que a floresta venceu, para o bem e para o mal, uma
viagem em pesquisa de campo, mostra o oposto. A lendária região amazônica, que teria,
vencido ferrovias e outros empreendimentos, se vê cada vez mais ferida pela estrada da
ditadura, e pelas milhares de pessoas que para ali foram conduzidas e que até hoje
reivindicam melhorias na rodovia, associada ao período mais duro da repressão no Brasil.
Fontes
Jornais e revistas
BUARQUE, Sérgio. “Trans-AM, 2 anos depois – 1: a epopeia mal saiu dos planos”. O
Estado de São Paulo. São Paulo, 04 de fevereiro de 1973.
FOLHA DE SÃO PAULO. Arrancada para conquistar o gigantesco mundo verde. São
Paulo, 10 de outubro de 1970.
REVISTA VEJA. “A reação de Funaro”. São Paulo, Abril, Edição 922, 07 de maio de
1986, p. 20-22 Acervo digital da Revista Veja. Disponível em
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acessado em 20.03.2010.
REVISTA VEJA. “O menor guichê”. São Paulo, Abril, Edição 1311, 27 de outubro de
1993, p. 50-51 Acervo digital da Revista Veja. Disponível em
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acessado em 15.04.2010.
REVISTA MANCHETE. “Transamazônica – estrada que liga o Atlântico ao Pacífico”.
Rio de Janeiro, Ano 20, No. 1043, 15 de abril de 1972, p. 63-77.
REVISTA MANCHETE. “Sinal verde para a Transamazônica”. Rio de Janeiro, Ano 20,
No. 1069, 14 de outubro de 1972, p. 04-17.
TAMER, Alberto. “Primeiro será preciso sobreviver”. O Estado de São Paulo. São Paulo,
26 de julho de 1970.
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Sobre as propagandas da ditadura, consultar FICO, 1997.
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Referências bibliográficas
CARDOSO, Fernando Henrique & MÜLLER Geraldo. Amazônia: expansão do
capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1978.
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no
Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997.
FICO, Carlos. Como eles agiam - os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e
política. Rio de Janeiro: Record, 2001.
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GONDIM, Neide. A invenção de Amazônia. Manaus: Valer, 2007.
GRADIN, Greg. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henri Ford na
selva. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
GRUZINSKI, Serge. “Amazônias” In: O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a
modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
REIS, Daniel. Ditadura militares, esquerdas e sociedade. Rio de janeiro: Jorge Zahar,
2005.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988
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