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[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ 1964-2014: 50 ANOS DEPOIS, Ano 4, n° 5 | 2014, vol.1


A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO] ISSN [2236-4846]

Ditadura, grandes projetos e colonização no cotidiano da


Transamazônica

César Martins de Souza1


(autor convidado)

Resumo: O anúncio da construção da rodovia Transamazônica, que pretendia integrar os


dois grandes oceanos, Atlântico, em Cabedelo, na Paraíba e o Pacífico, em Lima, no Peru,
foi cercado por ampla propaganda, durante o governo do general-presidente Emílio
Garrastazu Médici. A rodovia pretendia ser o elo de um gigantesco projeto de colonização
que objetivava transferir populações do nordeste e sul do Brasil para os chamados “vazios”
demográficos da Amazônia. A análise de jornais e revistas de circulação nacional
evidencia que a rodovia teve, na memória nacional, metamorfose de significados, passando
de símbolo do auge do governo militar a símbolo do fracasso e megalomania da ditadura
civil-militar brasileira.
Palavras-chave: Transamazônica, colonização, ditadura civil-militar

Abstract: The announcement of the Tranzamazônica highway construction which intended


to unite the two big oceans, Atlantic, and Cabedelo, in Paraíba and the Pacific, in Lima, in
Paru, it was surrounded by extensive propaganda, during the government of the president-
general Emílio Garrastazu Médici. The highway intended to be the link of a gigantic
project of colonization that aimed to transfer populations of the northeast and southeast of
Brazil called “empty” demographics in the Amazon. The analysis of newspapers and
national magazines, shows that the highway had, in the national memory, metamorphosis
of meanings, that changed from the symbol of the success of the military government to
represent the failure of the megalomania and civil-military dictatorship of Brazil.2
Keywords: Transamazônica, colonization, civil-military dictatorship.

1
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense, Professor do Campus de Altamira da
Universidade Federal do Pará.
2
A tradução do resumo e das palavras-chave para a língua inglesa foi gentilmente elaborada pelo professor
Antônio José Bezerra do Nascimento Filho, do Curso de Língua Inglesa/Campus de Altamira/UFPA, ao qual
agradecemos

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A CULTURA AUTORITÁRIA EM QUESTÃO] ISSN [2236-4846]

Em 1986, no segundo ano do mandato presidencial de José Sarney, uma notícia


abalou os noticiários nacionais: o governo federal pretendia investir no asfaltamento da
Transamazônica (BR-230). Diversos setores manifestavam a euforia do final da ditadura e
da implementação do Plano Cruzado que teria reduzido rapidamente a inflação.
A expectativa de um longo período de consolidação da democracia, com uma nova
Constituição Federal, motivavam a crença de que em breve o Brasil reencontraria os
melhores caminhos e poderia viver um outro momento em sua História republicana. Uma
história marcada, no século XX, por golpes de Estado, bem como algumas tentativas e
ameaças de golpes e uma ditadura, governada por generais, que durou vinte anos.
Na mesma matéria que comemorava os resultados considerados positivos da
economia, após dois meses de Plano Cruzado, a revista Veja, demonstra preocupação com
o possível afastamento, devido a um câncer linfático, do Ministro da Fazenda, Dilson
Funaro, negado pelo próprio ministro, que “se desdobra para barrar os inimigos do pacote”
(VEJA, 07 de maio de 1986, p. 21). A matéria faz então diversas considerações sobre os
adversários do Plano Cruzado, denunciando que muitos deles estariam dentro do próprio
governo, agindo em favor de “grupos de pressão” que pretenderiam utilizar os recursos
públicos com objetivos contrários aos “interesses do país”.
Em seguida, a matéria não assinada da Veja, inclui o então Ministro dos
Transportes, José Reinaldo Tavares, como componente deste “grupo de pressão”,
manifesto em seu anunciado objetivo de asfaltar a lendária rodovia:

Trata-se, longe de uma conspiração, de um trabalho diuturno de sapa ao


dinheiro amealhado pelo Estado junto ao contribuinte. Nesta empreitada
contra as regras da boa administração pouco importa a origem da verba,
mas o destino da despesa. É o caso do Ministro dos Transportes, José
Reinaldo Tavares, que quer porque quer asfaltar a Transamazônica – uma
obra que exigiria, a preços de hoje, 1,1 bilhão de cruzados, cifra
equivalente ao dispêndio com o programa através do qual o governo
promete distribuir leite a 1,5 milhão de crianças neste ano. Tavares, que
foi subordinado no governo Médici do então Ministro dos Transportes,
Mário Andreazza, como diretor do DER do Maranhão – época em que
Sarney era governador do Estado –, se irrita quando colocam em causa a
viabilidade do projeto que patrocina. “Por que não é factível?”, indaga.

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“Só porque a Transamazônica foi feita pelo Andreazza”. (VEJA, 07 de


maio de 1986)

No primeiro governo civil, logo após vinte anos de generais-presidentes, o país


parecia assaltado pelo retorno de um símbolo do milagre brasileiro, construído durante o
governo do general, Emílio Garrastazu Médici, considerado uma das maiores obras da
ditadura. O Ministro dos Transportes, permanecia, nas memórias nacionais, associado ao
regime no qual atuara e defendeu o empreendimento, argumentando que as críticas se
deviam ao fato de a Transamazônica ter sido uma das principais obras de Mário Andreazza
e do general-presidente Médici.
Naquele momento, os veículos de comunicação, nas disputas por memórias,
fizeram a crítica à proposta, cuja imagem estava vinculada ao período anterior e que
deveria ser esquecido. Junto com o esquecimento dos anos de chumbo, da repressão,
durante a ditadura, a rodovia Transamazônica também seria esquecida, ou colocada em
outro lugar na memória nacional, como um símbolo do fracasso. Seguindo a notícia,
diversos setores da imprensa, como em uma catarse nacional, rememoravam com olhos
pós-ditadura a estrada que um dia fora espaço dos sonhos do Brasil de conquistar a
Amazônia.

A “conquista” da Amazônia?

O ano de 1970 marcaria definitivamente não apenas as memórias de um imenso


pedaço do Brasil, como também permaneceria como um símbolo para as chamadas obras
faraônicas, construídas pelo governo federal. Tudo parece gigantesco quando se fala dos
cenários da Transamazônica: maior município do mundo, maior floresta tropical do
mundo, alguns dos maiores rios do mundo. O futuro e as memórias posteriores diriam se o
então denominado maior projeto de colonização do mundo, através do que viria a ser uma
das maiores rodovias da Terra, poderiam ou não vir a resultar no início de um dos maiores
danos ambientais do planeta e/ou fazer a tão desejada pela população brasileira, integração
e domínio de mais da metade do Brasil.

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A “princesinha do Xingu”, como Altamira era conhecida, assistia com expectativa


e até mesmo uma certa euforia o início das obras da rodovia. Tudo parecia gravações de
filme, um general-presidente, Médici, recebido com emoção e delírios, uma castanheira-
do-pará (Bertholletia excelsa), derrubada como monumento para a rodovia, possíveis
ataques de índios, trabalhadores mortos por animais selvagens e por doenças escondidas no
ventre da floresta, enquanto migrantes eram transpostos de uma região para outra distante.
A “princesinha do Xingu”, foi metamorfoseada em “capital da Transamazônica”, de tal
forma que o rio Xingu e todas as suas histórias é mais associado a São Félix do Xingu-PA,
do que a cidade que um dia se orgulhou de ser sua princesa.
Neste cenário, a revista Manchete noticiava com expectativa positiva a construção
da rodovia, com imagens grandiosas da floresta ao fundo e uma estrada cortando seu
ventre, enquanto migrantes começavam a chegar para ocupar os lotes de terra e o plantio se
iniciava:

Paralelamente à abertura da Transamazônica processa-se o trabalho da


colonização, realizado pelo INCRA (Instituto de Colonização e Reforma
Agrária). As pequenas agrovilas se sucedem de vinte em vinte
quilômetros à margem da estrada, e nos cem hectares que cada colono
recebeu são plantados milho, feijão e arroz. Já no próximo mês começará
a plantação de cana-de-açúcar, cujas primeiras mudas, vindas dos
canaviais de Sertãozinho, em São Paulo acabaram de ser distribuídas.
Jovens agrônomos, recém saídos da universidade, orientam os colonos...
No meio da selva começam a surgir as agrovilas. Vindos de diferentes
regiões do país, os colonos povoam as margens da Transamazônica e
espalham pelo chão virgem o verde disciplinado das culturas pioneiras.
Os pastos da região são excelentes (MANCHETE, 15 de abril de 1972, p.
73).

A Manchete em uma reportagem que exaltava a estrada, traz imagens e textos que
mostravam a alegria das famílias na colheita das safras de arroz e feijão. O nascimento de
crianças e a fartura da colheita são elementos que somados, serviriam de argumento para
afirmar a vitória dos idealizadores e planejadores da estrada que pretendia integrar o país
pelo seu interior, criar uma rota rodoviária entre dois oceanos e levar esperança a
populações que, segundo os discursos, sofriam por décadas devido ao descaso do poder
público.

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Todo o enredo da construção e colonização parecia cenas de filmes de aventura, no


interior da Amazônia, dotado de um certo surrealismo que faz todo o debate sobre a
história da construção da Transamazônica e as memórias da ditadura civil-militar que ela
carrega, parecerem uma lenda. Plantações surgindo no interior da floresta, próximo a
estrada, eram imagens frequentemente utilizadas pela Manchete para enfocar a
grandiosidade e, ao mesmo tempo, o sucesso do empreendimento, cujas primeiras colheitas
começavam a dar resultados.
A estrada cresceu, originou agrovilas de agricultores e municípios, iniciados pelo
governo federal e desenvolvidos pelos próprios migrantes. Um município carrega com
orgulho, em seu nome, Medicilândia, uma homenagem ao general-presidente que ordenou
a construção da Transamazônica. Homenagem, considerada justa por muitos moradores
que vivenciaram aquele momento ou que nasceram às margens da estrada e cresceram
escutando histórias sobre as visitas e o carisma de Médici, reconhecido na historiografia
nacional, como governante do período mais duro da repressão durante a ditadura3.
Moradores de municípios, ao longo da rodovia, como Antenor4, produtor rural, 60
anos, que se tornou um próspero médio agricultor, em Uruará-PA, lembram com orgulho e
emoção as visitas de Médici e o vêm, como um bom presidente que levou conquistas
importantes para o povo da Transamazônica:

O homem era bom, tratava nós tudo [sic] como gente, cheguei aqui sem
nada e consegui o que tenho, que infelizmente o senhor não vai poder
conhecer [as terras dele, distantes cerca de 30 quilômetros do ponto onde
conversávamos, em sua residência na zona urbana], foi graças ao Médici.
Ele perguntava como a gente tava [sic] e investiu, diferente do pessoal
depois dos militar [sic].
...ele mudou para melhor nossas vidas.5

O apoio e/ou concordância de muitos migrantes, em relação ao governo de Médici


manifestam o olhar de pessoas que, dentro de suas realidades, do recebimento de terras e
3
Sobre a repressão e tortura aos opositores, durante o governo de Médici, consultar FICO, 2001 e
GASPARI, 2002.
4
Foram utilizados nomes fictícios para os entrevistados para preservar, a pedido de muitos deles, suas
identidades.
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Antenor, natural de Santa Catarina, possui mais de mil hectares de terra e tem ensino médio completo.
Entrevista realizada pelo autor, em Uruará, em 11 de janeiro de 2010.

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traslado para outra região, pensam como um benfeitor, o presidente que teria viabilizado
uma transformação considerada por eles como positiva, em suas vidas. Reis (2005) defende
que os anos de chumbo de Médici precisam ser revisitados para que se possamos
compreender melhor o milagre que ocorreu naquele período. Os depoimentos de
moradores da Transamazônica, dificilmente audíveis nos principais espaços de informação
nacionais são, assim, uma das maneiras de revisitar o período que ficou conhecido como os
anos de chumbo e do milagre brasileiro.

As ponderações de Reis, provocam a necessidade de reflexões, pesquisas e outros


olhares sobre a ditadura. Assim, os depoimentos dos migrantes, favoráveis à Médici, são
apenas alguns exemplos de tantos outros ouvidos de maneira formal ou informal ao longo
da Transamazônica, e que expressam uma realidade oculta ao restante do país: de que
muitas pessoas desfavorecidas economicamente, até então sem perspectivas de melhorias
em suas vidas, têm boas recordações daquele período. Não é o grupo dos que veem a
política de longe, mas dos que se incluíram no que foi chamado de epopeia da conquista da
Amazônia.
O presente artigo não pretende mostrar que, a despeito das críticas e das memórias
nacionais, a Transamazônica foi uma obra boa para o país e muito menos que a ditadura
teve aspectos positivos, mas buscar compreender os motivos que levaram muitas pessoas
na Transamazônica a considerarem a ditadura e a estrada como positivos. Um general-
presidente, marco do auge da repressão no Brasil, alçado à condição de líder carismático e
popular, vem a ser um fator não apenas de construção de outra memória. Durante a
construção da rodovia e ao longo da existência da Transamazônica, Médici foi visto com
bons olhos por aqueles que depositaram suas esperanças em sua presença e/ou no retorno
de uma “era de ouro” em que a rodovia recebeu visitas de autoridades federais e também
fortes investimentos no programa de colonização.
As memórias e visões dos transamazônicos, sob vários aspectos diferentes das
consolidadas no país, torna ainda mais enfático que ao se estudar a rodovia, alguns
aspectos desconhecidos do Brasil vêm a tona. A própria estrada, considerada por muitos
como um caminho no meio da selva, aparece sob um outro prisma, quando se considera o
ponto de vista das populações de migrantes que se estabeleceram na região.

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Esta estrada que a partir de 1970, abriu caminhos para visitas de Presidentes,
Ministros de Estado, imprensa nacional e internacional, conflitos entre migrantes e
indígenas, pessoas devoradas por onças, jacarés, sucuris, piranhas e outros animais
selvagens, doenças estranhas, ou descobertas, cujo nome homenageia o município que
tornou epicentro das obras, compunham, um roteiro de cinema, durante a construção e
consolidação da Transamazônica. O cotidiano nunca mais seria o mesmo para ribeirinhos,
indígenas e outros sujeitos da região que viam suas vidas serem bruscamente alteradas pelo
evento que muitos deles agora comemoravam, mas que ainda teriam muitos anos para
avaliar com mais calma se lhes fora realmente vantajoso: a derrubada de uma castanheira-
do-pará, por Emílio Médici, em 10 de outubro de 1970 (MANCHETE, 15 de abril de
1972).
Começava o “milagre de Emílio”, tempos de fantasia, tanto que virou enredo,
personagem e/ou pano-de-fundo para muitas obras literárias publicadas em diversos
Estados do país6. O projeto começava sob a marca da derrubada de uma gigantesca árvore
amazônica e de um general-presidente anunciando que guiaria o povo nordestino da seca
que atravessavam rumo à terra que possui fartura de água e comida, nos supostos “vazios”
da Amazônia, habitados, na verdade, por populações tradicionais.
O milagre seria fazer surgir cidades, com agências bancárias e de correio,
comércio, feiras, prefeituras e populações no meio da floresta. A trajetória da rodovia
começa com a divulgação do início da construção da rodovia, em 10 de outubro de 1970,
como o início da “arrancada para conquistar o gigantesco mundo verde” 7 . Em outros
momentos da História, mas sobretudo durante a construção da ferrovia Madeira-Mamoré
(HARDMAN, 2005) se tornara lendária a floresta amazônica, interpretada pelo noticiário
nacional, como uma personagem com vontade própria que se ergue para enfrentar os
invasores e expulsá-los.

6
Diversas obras literárias, com enredos de aventura, tendo como foco a Transamazônica, foram publicadas
não apenas na década de 1970, como em outras posteriores. Uma destas obras de Odete de Barros Mott
(1973), nacionalmente conhecida escritora infanto-juvenil, busca descrever o cotidiano da rodovia logo após
sua construção.
7
A frase “arrancada para a conquista deste gigantesco mundo verde”, está escrita na placa colocada em um
pedaço de tronco de castanheira-do-pará, a árvore simbolicamente derrubada por Médici, e que se tornou
monumento da construção da rodovia, na entrada de Altamira, conhecido pela população local como “pau do
presidente”. Ao anunciar a cerimônia de inauguração da estrada, a Folha de São Paulo, utilizou esta frase
como título da matéria. Consultar FOLHA DE SÃO PAULO, 10 DE OUTUBRO DE 1970.

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Ao nos depararmos com a leitura dos jornais de 1970, ano do início das obras até
1984 quando do final do Governo Militar, observamos que as preocupações com a temas
como a saúde afloravam nos debates nacionais. Em outros momentos da História em que
se intensificou a migração para a Amazônia, a memória presente nos relatos é do grande
saldo de mortos deixado pela floresta. A floresta aparece então como uma personagem,
provida de vontade própria que se manifesta para expulsar o imigrante, como podemos
perceber em O Estado de São Paulo:

Esse retardamento [das obras de construção da rodovia] poderá ter


repercussões mais graves em uma área extremamente delicada: a da
Saúde. Para construir-se a Transamazônica será preciso sanear o
ambiente e curar o homem para depois lançá-lo mata a dentro, na luta
ingente e pioneira de vencer a selva. Malária, febre amarela, tifo e
amebíase generalizada, eis apenas alguns dos elementos do ambiente
hostil que tudo fará para expulsar o invasor, devolvendo-o à civilização
das cidades iluminadas ou jogando-o na imensidão das caatingas
ressequidas.
Há condições para construir-se a grande rodovia e abrir novamente a
selva ao homem nordestino, mas será preciso adotarem-se já,
imediatamente, com urgência, medidas bem planejadas e imprescindíveis
para que não se repita a tragédia da Madeira-Mamoré deixando, agora,
um morto a cada 500 metros de estrada (TAMER, 26 de julho de 1970).8

Ao expressar tais preocupações, autoridades e articulistas, rememoravam em


quadros macabros a construção da Madeira-Mamoré e apontavam caminhos para que tal
não se repetisse na construção da Transamazônica. Assim, durante a economia da
borracha, na Fordlândia 9 e ao longo da construção da ferrovia Madeira-Mamoré, as
notícias aterrorizavam a população nacional sobre a floresta indomável e mortandade de
operários e migrantes, dizimados por doenças desconhecidas e animais selvagens. As
memórias de milhares de mortos em grandes projetos espontâneos e oficiais na Amazônia,

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O jornalista Alberto Tamer durante o ano de 1970 fez uma série de viagens pelos lugares onde se construía
a Transamazônica, de onde enviou diversas reportagens com análises críticas sobre o assunto que depois
foram reunidas e publicadas sob a forma de livro. Sobre o tema, consultar TAMER, 1971.
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Fordlândia, o sonho de Henri Ford de construir plantações de seringueiras, no Pará, para produzir borracha,
como afirma o historiador estadunidense Greg Gradin, era além de um projeto econômico, um desejo de
civilizar a Amazônia com valores do mundo industrializado, a partir da construção de uma cidade para
abrigar os trabalhadores. A cidade original, situada junto a um município paraense, com o mesmo nome da
planejada por Ford, se encontra abandonada na floresta, como um monumento a megalomania. Sobre o tema,
consultar GRADIN, 2010.

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dominavam o noticiário nacional no momento em que se anunciava o início da construção


da rodovia que também viria a se transformar em lendária.
Temiam os articulistas que os migrantes, que partiriam para a rodovia, segundo
discursos oficiais, para ocupar e integrar a Amazônia ao país, sofressem com doenças
conhecidas e até mesmo desconhecidas e espalhá-las ao restante do país. Tanto jornais
quanto projetos governamentais defendiam a necessidade de “sanear” o migrante para que
este não se tornasse um propagador de doenças e não se produzisse um foco irradiador de
doenças, como a Madeira-Mamoré. “Sanear” o migrante perpassava a aplicação de
vacinas, controle do número de doentes na entrada e na saída da região e higienização de
espaços públicos e privados para que, como discutem Cardoso & Muller, na
Transamazônica, não se “estabelece[sse] mórbido regime de trocas de doenças, contraindo
(os migrantes) alguma que não tinham (malária, febre negra de Lábrea) e transmitindo
outras estranhas ao ambiente (esquistossomose)” (CARDOSO & MULLER, 1978, p. 204).
Os temores expressos pela imprensa e articulistas, apesar de consideráveis, eram
superados pelo otimismo e empolgação de diversos setores, em um período de forte
propaganda oficial, marcado pelos anos de ouro e milagre brasileiro, como uma prova de
que o Brasil caminhava para se tornar uma potência mundial. Apesar dos temores de que a
floresta amazônica expulsasse com doenças e animais selvagens, os operários da
construção da rodovia e os colonos, a obra segundo a setores da imprensa, como a revista
Manchete, triunfava, avançando rapidamente:

Até agora foram escavados 35 milhões de metros cúbicos de terra, e


levantados quatro mil metros de pontes de madeira. O desmatamento se
estendeu por 100 milhões de metros quadrados. Algumas das árvores
abatidas atingiam até 50 metros de altura. O primeiro segmento da
Transamazônica, com seus 1254 quilômetros, uniu os rios Tocantins e
Tapajós e abriu definitivamente à civilização um imenso pedaço do
Brasil. (MANCHETE, 14 de outubro de 1972, p. 8)

A lendária floresta, finalmente, segundo a Manchete, seria vencida para que a


“civilização” conquistasse mais da metade do país. Esse era o discurso presente nas falas
de muitos políticos e veículos de comunicação que consideram a floresta um obstáculo ao
progresso e que, portanto, necessitava ser vencido para que o Brasil pudesse se

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desenvolver. Comemorava-se, assim, as escavações para abrir a rodovia, bem como as


gigantescas árvores derrubadas. A grandiosidade das árvores arrancadas exalta, para a
Manchete, o megaprojeto de engenharia e de colonização que a ditadura implementava no
interior da região.
Neide Gondim (2007), analisa como as obras literárias sobre a Amazônia, ao longo
de décadas, se centralizaram na criação de seres fantásticos, na indolência do homem
amazônico, apequenado pelo meio e no ambiente hostil que oprime seres humanos com
doenças e calor intenso fazendo aflorarem suas mais bestiais características e, por isso
mesmo, seria uma região quase despovoada, com grandes vazios demográficos. Sobre esta
temática, Serge Gruzinski (2008), afirma que o homem europeu e a antropologia europeia
clássica transformaram a Amazônia num “conservatório do pensamento selvagem”, um
lugar que deveria ser exótico e, na imaginação deles, sem carros e prédios.
A Amazônia habitava a imaginação dos brasileiros que, apesar de, geralmente,
demonstrarem desconhecimento concreto sobre a região, contavam uma série de histórias
advindas dela e propostas que enfatizavam a necessidade de ocupá-la efetivamente para
que seu imenso patrimônio, com muitas riquezas minerais não catalogadas, não fosse
perdido para estrangeiros.
Paralelamente, havia uma grande preocupação dos militares em ocupar a
Amazônia, como uma região estrategicamente importante, sobretudo depois da descoberta
de riquíssimas províncias minerais em seu subsolo, pois temia perder parte do território
para incursões de estrangeiros. Nesse sentido:

a rodovia Transamazônica tinha uma atração adicional. Era um desafio


que os engenheiros do Exército poderiam atacar com agrado.
Concentrando-se na estrada, Médici propôs-se uma tarefa formidável mas
não impossível, pois o traçado do grandioso empreendimento tinha
princípio e fim bem definidos. Podia ser visitado, fotografado e descrito.
Como a construção de Brasília e da rodovia Belém-Brasília durante o
governo de Juscelino, a abertura da Transamazônica tinha grande valor
simbólico. Cortar a floresta espessa e construir uma estrada pioneira,
seduzia muitos brasileiros, cuja visão romântica da Amazônia era bem
parecida com a dos norte-americanos e europeus ocidentais
(SKIDMORE, 1988, p.291).

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A Transamazônica simbolizava a grandiosidade do momento, uma estrada que


metaforizava a caminhada do país rumo a glória nacional. Em um clima de euforia, os
jornais começaram então a noticiar cotidianamente a partida e a chegada dos primeiros
migrantes, o começo do plantio, a implantação das igrejas católicas e evangélicas e o
nascimento das primeiras crianças transamazônicas.
Os nordestinos e sulistas poderiam, assim, comemorar a comida farta em suas
próprias terras e ver seus filhos nascerem e crescerem com uma nova identidade, forjada
especificamente no momento histórico por eles vivenciados. Nasciam portanto os
primeiros transamazônicos, uma supra identidade que durante o período de glória da
estrada se superpunha as identidades dos Estados de origem de seus pais e também onde
estivessem vivendo.
É muito comum, durante as caminhadas e viagens pelas cidades da
Transamazônica, ouvir dos moradores, em resposta a pergunta “de onde você é?”, “eu sou
filho de nordestino (ou de sulista), mas me considero mesmo transamazônico”. Ser
transamazônicos, se constitui em algo maior do que ser paraenses, amazonenses ou
maranhenses. Muitos moradores gostam de dizer que foram um dos primeiros a nascer,
depois da estrada.
A estrada se tornou, portanto um elemento de coesão identitária para pessoas que
nasceram em diferentes Estados da união, os quais, apesar de valorizarem bastante suas
práticas culturais, oriundas de seus lugares de origem, veem a Transamazônica como um
marco que os tornam, enquanto sujeitos, agentes de um momento importante da História
do Brasil.

Chegadas e partidas

Muitos migrantes, ao longo dos anos, prosperaram, conseguindo até mesmo


construir um patrimônio considerável. As histórias sobre as dificuldades por eles
enfrentadas é um modo de exaltar a coragem e o pioneirismo para lutar, vencer e se
estabelecer na região. Assim, houve muitos agricultores que conseguiram, a despeito das
dificuldades iniciais, se estabelecer na Transamazônica com bons resultados e até mesmo

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aumentando suas propriedades e perspectivas mas que, por situações inusitadas, foram
obrigados a abandonar e/ou vender suas propriedades e bens para ir embora da região.

Joaquim, o Transamazônico, conhecido em todo o país, porque seu filho recebeu


o nome de Transamazônico e foi considerada a primeira criança a nascer na estrada, o que
lhe rendeu entrevistas e fotos em diversos jornais e revistas, viveu os dois lados da
experiência de colonizar a Amazônia. Enfrentou dificuldades, se estabeleceu, prosperou,
mas depois, no cotidiano, teve de lutar com problemas que não previa e tomou a decisão de
regressar a seu lugar de origem, pois:

suas duas filhas conseguiram ser professoras do INCRA, ajudando a


família. Mas, em outubro de 72, Joaquim vendeu tudo que tinha e voltou
para São Tomé.10 A causa: suas duas filhas prostituíram-se em Altamira.
Hoje, no entanto, ele vai a coordenadoria do INCRA em Natal pedir para
voltar – o que o INCRA não permite (BUARQUE, 04 de fevereiro de
1973).

O INCRA possuía um direcionamento de não aceitar o retorno dos que haviam


abandonado suas propriedades ao longo da rodovia, criando um mecanismo de pressão.
Através deste mecanismo, o INCRA transformava o desafio da Transamazônica na única
chance dos colonos, fazendo com que muitos, ao ouvir notícias como de Joaquim
Transamazônico, refletissem bastante antes de decidir regressar para seus locais de origem.
No cotidiano da região são frequentes as histórias de pessoas que abandonaram o lugar
devido o envolvimento de seus filhos com práticas sexuais não aceitas por seus familiares,
como prostituição, alcoolismo ou narcóticos.

Caminhando na ponte sobre o rio Estreito, que divide os Estados do Maranhão e


Tocantins, interligando os municípios de Estreito e Aguiarnópolis, tive a companhia de um
senhor de cerca de 70 anos. Durante aproximadamente 20 minutos caminhando sobre a
ponte, ele narrou diversas de suas histórias na região, entre as quais a de um vizinho que
teria abandonado Estreito com “terras e tudo o mais”, porque seu filho “virou maconheiro”

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Município do Estado do Rio Grande do Norte.

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e a filha “caiu na vida, dormindo com vários homens, acho que até recebendo dinheiro por
isso”.11

Estes dados mostram que as dificuldades dos colonos não se restringiam às


dificuldades de adaptação à floresta amazônica, mas também devido ao confronto com
realidades sociais não conhecidas por eles até então. As cidades estavam em grande
movimentação de pessoas que chegavam e partiam, trazendo não apenas violência urbana
como também novas perspectivas.

Apesar dos investimentos em educação, em assistência social, psicológica e da


saúde que foram implementados pelo INCRA, em parceria com Estados e municípios, não
se tomou medidas preventivas ante a possibilidade de surgirem problemas familiares, com
a entrada dos filhos e filhas dos colonos em um universo desconhecido. Os próprios
moradores antigos, enfrentavam os mesmos problemas, pois suas localidades nunca
haviam visto tal movimentação de pessoas e, com ela, o agravamento de alguns problemas
sociais e o surgimento de novos.

A prostituição passou a fazer parte do cotidiano da colonização, trazendo em seu


bojo violência física e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Multiplicavam-se os
bordeis ao longo da rodovia, bem como crescia o consumo de álcool e narcóticos, criando
um cenário novo, com problemas que nem os planejadores oficias e muito menos os
colonos e populações tradicionais pareciam preparados para enfrentar.

Joaquim, neste sentido, é emblemático, pois serviu de garoto-propaganda da


rodovia, como Transamazônico, o mesmo nome que dera no auge de sua felicidade com a
vida ao longo da rodovia, ao seu filho que nascera na estrada. Suas filhas estudaram e
foram contratadas pelo INCRA, como professoras, a plantação produzia bons resultados e
a vida melhorara desde que partira de seu lugar de origem. Lutaram contra a natureza até
então indômita, com o clima, aprenderam a viver e construir sua vida na região, mas
justamente no cotidiano, tiveram de lidar com elementos que não estavam preparados.

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Anotação do diário de campo do autor, em 14 de fevereiro de 2010, entre os Estados do Maranhão e
Tocantins.

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Suas filhas teriam se envolvido em diversas relações sociais, vindo, segundo notícias
veiculadas nos jornais, a se tornar prostitutas, em um dos principais municípios da rodovia.
Ele permaneceu, apesar dos animais selvagens, das doenças e das dificuldades
iniciais para plantar, pois tudo era diferente. Muitos outros migrantes enfrentaram as
mesmas dificuldades e desistiram, venderam suas terras e regressaram. Outros como ele,
permaneceram, com orgulho por cada desafio vivenciado. Nos discursos oficiais, tudo
transcorria bem ao longo da Transamazônica e experiências como a de Joaquim serviam
como argumento contra os opositores, mas o mesmo Joaquim abandonou a rodovia, pois
não suportou a pressão de ter os valores em que acreditava, atingidos no interior de sua
família.
Joaquim, em sua própria vida, é emblemático pois sua imagem tanto simbolizou o
sucesso da colonização quanto o fracasso. Posteriormente quis regressar e as fontes então
silenciaram sobre a decisão tomada pelo INCRA que, de um modo geral não subsidiava o
regresso dos que abandonaram, com receio de assim incentivar a partida de muitos
migrantes. Tentando não permitir o retorno, o governo estabeleceria entre os migrantes o
temor de “perder” sua única oportunidade de participar de um momento histórico de
conquista da Amazônia.

A estrada consumida pela floresta

Com muita frequência, em congressos e aulas, não apenas em outras regiões do


país, como também em outras cidades da Amazônia, distantes da Transamazônica, surge a
pergunta, “O que sobrou da estrada depois que foi engolida pela floresta?”. As memórias
da rodovia a fizeram desaparecer no cenário nacional como se não mais existisse.
A notícia de que o Ministro dos Transportes, no governo de José Sarney, referida
neste artigo, pretendia asfaltar a Transamazônica, motivou o envio de cartas para veículos
de comunicação, artigos e manifestações contrários ao retorno de investimentos na estrada.
A resposta do ministro José Reinaldo Tavares, para se contrapor aos opositores “Só porque
foi obra de Andreazza?”, carrega uma forte elemento simbólico sobre as batalhas pelas

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memórias da rodovia. A associação da imagem da rodovia a um dos principais ministros


do general-presidente Médici, Mário Andreazza, por extensão a vincula a ditadura.
O asfaltamento da Transamazônica no governo de Sarney, devido às críticas não foi
levado adiante. A imagem da rodovia vinculada a da ditadura, poderiam também ter
ocasionado o receio em outros presidentes pós-ditadura. A ideia de que a rodovia foi
engolida pela floresta, para enfatizar o fracasso do empreendimento, se tornou mais forte
do que argumentos e depoimentos contrários, levando muitas pessoas a acreditar que a
Transamazônica não mais existe.
Em uma matéria sobre os erros e desvios praticados por parlamentares e pelo Poder
Executivo na distribuição do orçamento federal, a revista Veja criticou os investimentos
“criativos” praticados ao longo da História do Brasil, em obras que não trariam os
resultados divulgados. Ao listar grandes obras, como exemplo de empreendimentos que
consumiram elevadas quantias de dinheiro, sem retorno positivo para a população
brasileira, a revista afirma que:

O Executivo brasileiro tem responsabilidade única e exclusiva pela


Transamazônica, consumida pela floresta, a Ferrovia do Aço, obra
inacabada, e a usina nuclear de Angra do Reis, um vaga-lume de 16
bilhões de dólares. (REVISTA VEJA, 27 de outubro de 1993, p.51)

Ao se afirmar que a BR-230 foi consumida pela floresta, ignora-se milhares de


pessoas que vivem em Estreito, Marabá, Pacajá, Anapu, Altamira, Brasil Novo,
Medicilândia, Itaituba, Humaitá, Lábrea e tantos outros municípios situados ao longo da
estrada. Desaparecem suas práticas culturais, seus desejos e a economia da região, devido
ao anseio por fazer desaparecer, engolida pela floresta, uma das obras mais
propagandeadas da ditadura.
Muitos pioneiros da Transamazônica rememoram como um período áureo, os anos
1970 de construção da rodovia, as visitas de Médici e Andreazza e os recursos investidos,
como um modo de contrapor suas memórias as que assistem no noticiário nacional. As
memórias nacionais os transformam em invisíveis e vedam a possibilidade de maiores
investimentos, por parte dos governos federais, que podem se ver acusados de tentar
restaurar o gigantesco empreendimento da ditadura.

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A visão do jornalista Fernando Morais que viajara, juntamente com Ricardo


Gontijo e Alfredo Rizzutti, em 1970 e em 1974, como enviado especial do Jornal da
Tarde, por todo o trajeto onde se construiria a estrada para escrever uma série de
reportagens era diferente. Em 1974, Morais e Rizzutti regressaram à rodovia, para
conhecer como estava a obra e a vida dos colonos, depois da conclusão dos principais
trechos.
Sua visão não se manifestou positiva, pois considera que a estrada mudou a vida
das populações para pior, devido a problemas como sua trafegabilidade, ser viável,
somente durante os seis meses menos chuvosos do ano. Em meio a descrição da obra e
algumas críticas, em texto escrito em 1974, e republicado, como parte de um livro, em
2003, traz informações que se contrapõem a visão de que a floresta engoliu a estrada:

Nos cem quilômetros iniciais, a partir de Estreito, a Transamazônica é


exatamente igual a qualquer estrada de terceira classe do interior de São
Paulo. Naquele trecho, a misteriosa selva amazônica é apenas um rastro
acinzentado, quase invisível, no horizonte.
A pista é de terra vermelha, cercada por uma vegetação rasteira como as
capoeiras nordestinas e com um movimento de veículos muito intenso.
(MORAIS, 2003, p. 42 e 43)

Depois de tecer considerações sobre a estrada, traçando comparações com


paisagens do Nordeste e também com outras estradas de São Paulo, Fernando Morais
descreve as queimadas na região, responsáveis pelo tom acinzentado das glebas de
produtores rurais, cada vez mais distantes do verde da floresta:

Pouco depois do rio Araguaia vimos uma cena que se repetiria até
Altamira: as queimadas nos terrenos dos colonos, usadas para limpar a
área desmatada e iniciar a semeadura. Às vezes as queimadas davam um
aspecto lúgubre à paisagem: no meio da mata verde-escura, uma gleba
inteira cinzenta, feita de tocos de árvores queimadas, moitas de capim
ainda fumegando. E, no centro desse braseiro, a casa do colono, isolado
com sua mulher e seus filhos.
Meia hora depois, o meu companheiro de viagem, Alfredo Rizzutti, pediu
que eu parasse o carro na beira da estrada, que ele ia fotografar uma
dessas glebas queimadas. Isso se repetiu algumas vezes. (MORAIS,
2003, p. 44)

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Em meio às muitas críticas que Morais faz a estrada, rememorando a viagem de


1970 que resultou em reportagens, reunidas em um livro (MORAIS, GONTIJO &
RIZZUTTI, 1970), relata o intenso movimento de veículos e também às queimadas, para
abertura de glebas de agricultores. O cenário por ele descrito é diferente da
“Transamazônica, consumida pela floresta”, na matéria da Veja e na memória nacional.
Durante a pesquisa, tive a oportunidade de viajar por quase toda a estrada
construída pela ditadura, de Estreito-MA a Humaitá-AM,12 e o cenário visto, ao contrário
das memórias consolidadas no Brasil, é de uma estrada que progressivamente, engole a
floresta. Quarenta anos depois da viagem de Fernando Morais, as queimadas aumentaram.
Cresce o volume de áreas de floresta derrubadas para extração de madeira e abertura de
novas áreas para pastos e agricultura.
Às margens da rodovia se pode observar imensas áreas de vegetação secundária,
conhecidas como capoeira, até onde praticamente a visão alcança. Do mesmo modo ao se
viajar pela Transamazônica, observa-se grandes áreas de floresta transformadas em pasto.
O asfaltamento, apesar de todas as críticas que suscitou em diversos momentos avançou
silenciosamente em muitos trechos da rodovia e, com ele, o desmatamento e a chegada de
novos migrantes. A migração se consolidou na região como parte integrante de seu
cotidiano, de chegadas e partidas e também de enraizamento de famílias inteiras que
passaram a ter na Transamazônica, um recomeço para suas vidas.
Muitos, conforme, já problematizado neste texto, não aguentaram as muitas
dificuldades enfrentadas, sobretudo na década de 1970, quando da construção da rodovia e
partiram, para nunca mais regressar, outros retornaram e se estabeleceram. Muitos
pioneiros que lá permaneceram viram suas famílias cresceram com uma nova identidade: a
de pioneiros da Transamazônica.
A estrada de Mário Andreazza e Médici, um dos maiores empreendimentos da
ditadura, que pretendia integrar dois oceanos, a maior floresta tropical do mundo e
possibilitar uma nova vida para migrantes nordestinos e sulistas, se constituiu em pesadelo
para muitas populações amazônicas tradicionais, como povos indígenas e ribeirinhos.

12
Faltou apenas chegar a cidade seguinte, depois de Humaitá, Lábrea-AM, a última da BR-230, devido às
dificuldades de transporte na época do ano em que lá estive, conhecida como inverno amazônico, o período
mais chuvoso do ano.

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Houve conflitos e crescentes temores entre os diferentes sujeitos envolvidos, alguns dos
quais lutam por reparações pelos danos sofridos com a construção da rodovia.
A rodovia que motivou debates nacionais, foi epicentro de propagandas oficiais e
de anseio pela conquista da Amazônia.13 Uma conquista que pretendia vencer a floresta e,
a despeito de muitos acreditarem que a floresta venceu, para o bem e para o mal, uma
viagem em pesquisa de campo, mostra o oposto. A lendária região amazônica, que teria,
vencido ferrovias e outros empreendimentos, se vê cada vez mais ferida pela estrada da
ditadura, e pelas milhares de pessoas que para ali foram conduzidas e que até hoje
reivindicam melhorias na rodovia, associada ao período mais duro da repressão no Brasil.

Fontes
Jornais e revistas
BUARQUE, Sérgio. “Trans-AM, 2 anos depois – 1: a epopeia mal saiu dos planos”. O
Estado de São Paulo. São Paulo, 04 de fevereiro de 1973.
FOLHA DE SÃO PAULO. Arrancada para conquistar o gigantesco mundo verde. São
Paulo, 10 de outubro de 1970.
REVISTA VEJA. “A reação de Funaro”. São Paulo, Abril, Edição 922, 07 de maio de
1986, p. 20-22 Acervo digital da Revista Veja. Disponível em
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acessado em 20.03.2010.
REVISTA VEJA. “O menor guichê”. São Paulo, Abril, Edição 1311, 27 de outubro de
1993, p. 50-51 Acervo digital da Revista Veja. Disponível em
http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acessado em 15.04.2010.
REVISTA MANCHETE. “Transamazônica – estrada que liga o Atlântico ao Pacífico”.
Rio de Janeiro, Ano 20, No. 1043, 15 de abril de 1972, p. 63-77.
REVISTA MANCHETE. “Sinal verde para a Transamazônica”. Rio de Janeiro, Ano 20,
No. 1069, 14 de outubro de 1972, p. 04-17.
TAMER, Alberto. “Primeiro será preciso sobreviver”. O Estado de São Paulo. São Paulo,
26 de julho de 1970.

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Sobre as propagandas da ditadura, consultar FICO, 1997.

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Obras literárias e de jornalistas


MOTT, Odette de Barros. A Transa-amazônica. São Paulo: Brasiliense, 1973.
MORAIS, Fernando; GONTIJO, Ricardo & CAMPOS, Roberto de Oliveira.
Transamazônica. São Paulo: Brasiliense, 1970.
TAMER, Alberto. Transamazônica – solução para 2001. Rio de Janeiro: APEC, 1971
MORAIS, Fernando. “O sonho da Transamazônica acabou”. In: Cem quilos de ouro [e
outras histórias de um repórter]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 37-80.

Referências bibliográficas
CARDOSO, Fernando Henrique & MÜLLER Geraldo. Amazônia: expansão do
capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1978.
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no
Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997.
FICO, Carlos. Como eles agiam - os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e
política. Rio de Janeiro: Record, 2001.
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GONDIM, Neide. A invenção de Amazônia. Manaus: Valer, 2007.
GRADIN, Greg. Fordlândia: ascensão e queda da cidade esquecida de Henri Ford na
selva. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
GRUZINSKI, Serge. “Amazônias” In: O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a
modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
REIS, Daniel. Ditadura militares, esquerdas e sociedade. Rio de janeiro: Jorge Zahar,
2005.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988

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