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In: Bagno, M. (org.) (2002) Lingüística da norma.

São Paulo: Edições Loyola,


p. 93-125.

Por uma teoria da desregulamentação lingüística

Inês Signorini (IEL/UNICAMP)


1. Introdução

Este artigo tem como principal objetivo focalizar a questão da variação lingüística num
quadro conceitual não comprometido com o projeto político-ideológico de
construção/consolidação ou "defesa" de uma língua nacional, qual seja, o de "integrar a
variação sempre respeitando uma norma unificadora", nos termos de Corbeil ([1983]
2001:201; ênfase nossa). Dito de outra forma, ao invés de focalizar "os princípios
dinâmicos da regulação lingüística" que buscam garantir a estabilidade da língua frente à
potência desagregadora da variação, interessa-nos focalizar os princípios dinâmicos de
desregulamentação de uma dada ordem lingüística, os quais garantem a flexibilidade e a
complexidade dos usos da língua num dado tempo e lugar.

Ao invés, pois, da referência ao constructo "língua nacional", ou "língua materna", como


uma objetivação do que nos usos se acredita (ou se projeta) ser comum e compartilhado por
uma comunidade/um povo/uma nação, interessa-nos a referência à multiplicidade das
práticas de uso da língua e o que nelas se constrói como comum e não comum, compatível
e antagônico, legítimo e não legítimo, possível e inaceitável, etc. Dessa forma, ao invés da
referência a um padrão, língua franca, ou norma culta, contrapondo-se a um não-padrão,
língua estigmatizada, ou vernáculo, interessa-nos a noção de ordem lingüística enquanto
configuração sempre transitória do que, no jogo socio-comunicativo e também político e
ideológico das relações sociais, se constrói como divisão, borda, ou fronteira nos usos da
língua.

Da mesma forma, ao invés da referência ao constructo "língua", ou "modelo de língua",


enquanto "o mais alto nível de abstração atingido" pela descrição lingüística de um "núcleo
duro" adaptável, segundo Corbeil, "a todos os falantes, mas a nenhum uso, já que este
implica sempre elementos de variação mais ou menos numerosos ou marcados" (p.198),
interessa-nos a referência às práticas comuns de uso da língua em que a "perturbação"
trazida pela variação é o que permite ao falante/escrevente se constituir enquanto agente
que tanto reproduz formas e sentidos, papéis e identidades, quanto os altera, tensiona, torce,
subverte e produz o novo, seja ele percebido como criativo, revolucionário, ou apenas
descabido, torto, mal enjambrado.

Este artigo faz parte do Projeto "Estudo da apropriação metapragmática da língua por
atores sociais atuando como intermediários em relações de poder. Implicações para a teoria
lingüística", apoiado pela CAPES (processo no. 0524-01-8). Agradeço a Marcos Bagno e
Aldir S. Paula os comentários feitos a uma versão anterior. O conteúdo do artigo é, porém,
de minha inteira responsabilidade.
Não se trata, pois, de negar a existência e muito menos a importância de mecanismos
reguladores nos usos da língua e, consequentemente, nos processos de configuração e
desconfiguração do que é dado/visto/tido como (in)comum, (in)desejável, (i)legítimo,
(in)correto, etc. O foco na desregulamentação permite justamente melhor compreender de
que modo tais mecanismos de controle compõem esses processos de configuração e de
desconfiguração, sem contudo assegurar-lhes uma direção única, ou um desenho preciso,
no sentido de controlável. E esse descontrole, ou "desregramento", como quer Mey (2001:
32), da língua em uso, só pode ser contemplado teoricamente quando ao indeterminado, ao
incerto, ao inacabado, ao processual enfim, se atribuir um estatuto de não resíduo.

E, conforme pretendemos mostrar na seção 2, a seguir, o que poderíamos chamar


problemática da "língua nacional" vai sempre reduzir a questão do processual à de seu
controle, ou seja, à da regulação/regularização do funcionamento da língua como vetor de
estabilização com vistas à autonomia do todo e de suas partes, dispostos linearmente como
numa "rica tapeçaria lingüística", nos termos de Barton e Ivanic (1991). A figura da
tapeçaria é interessante porque realça a importância da composição como um todo feito de
elementos "solidários", mas distintos. Nesse sentido, a problemática da "língua nacional"
tende a confundir-se com a problemática d"a" norma, ou padrão nacional, como querem os
prescritivistas de todos os naipes, ou d"as" normas infra e supraletais, como querem os
descritivistas. Como se verifica a unidade, a estabilidade, a autonomia e a legitimidade da
composição e de seus elementos é a questão fundamental e comum a uns e outros, apesar
das diferenças, também fundamentais, de apreensão da matéria de que é feita essa
composição e de como ela funciona.

Mas como a questão do processual está necessariamente vinculada à dos mecanismos e


condições locais de estabilização/transformação das normas de uso, é preciso deslocar o
posto de observação para que apareçam as zonas de instabilidade, as flutuações, os
deslocamentos, e também os modos de regulação ou calibragem nas ações dos falantes.
Voltando à figura da tapeçaria, são, pois, as zonas de superposição e indefinição do
desenho e, sobretudo, a organização não linear de seus elementos, o que vai ser realçado. O
objeto visado não é mais a organização sustentada do todo e de suas partes, e sim o
movimento de formação e deformação dos modos de organização desses elementos numa
dada ordem, suas divisões, desnivelamentos e sobreposições. Do ponto de vista teórico-
metodológico, ao invés de uma simples passagem do nível macro ao micro, é a
sobreposição dos dois níveis nas práticas comunicativas o que vai ser focalizado.

Nesse sentido, uma figura que privilegie o movimento em eixos múltiplos e a não
linearidade (em contraposição à representação num contínuo) é mais condizente que a da
tapeçaria. A descrição abaixo, proposta por Deleuze e Guattari, tem o mérito justamente de
realçar essa diferença:

Mesmo única, uma língua ainda é uma efervescência, uma mistura esquizofrênica,
uma roupagem de Arlequim com a qual se realizam funções de linguagem muito
diferentes e se efetivam centros de poder distintos, insuflando o que pode ser dito e
o que não pode ser dito: se fará jogar uma função contra outra, se farão valer os
coeficientes relativos de territorialidade e de desterritorialização. (1975: 48-49;
tradução nossa)

Nessa descrição, além do movimento sugerido pela analogia com a turbulência de uma
fervura, há três outras referências de interesse para a discussão na perspectiva aqui
apresentada. A primeira delas é a referência a uma heterogeneidade variada e difusa ("uma
roupagem de Arlequin"), não necessariamente harmônica, ou racionalmente estruturada
("uma mistura esquizofrênica"), mas fundamental na economia de funcionamento da língua
("com a qual se realizam funções de linguagem muito diferentes e se efetivam centros de
poder distintos"). A segunda referência é a das normas de uso lingüístico, sejam elas
implícitas ou explícitas, de natureza propriamente lingüística ou ideológica, de caráter
institucional ou não ("insuflando o que pode ser dito e o que não pode ser dito"). A terceira
e última referência é a da ação, ou trabalho, do falante/escrevente "jogando" com as
coerções e os recursos daí advindos: deslocamento e embaralhamento de funções,
tensionamento das relações dadas entre formas e sentidos (fazer valer "os coeficientes
relativos de territorialidade e de desterritorialização"). E para ser criativo, esse jogo deve,
segundo os mesmos autores, tensionar, subverter justamente o que se apresenta no uso da
língua como já dado, uno e homogêneo: "Fazer uso do polilinguismo em sua própria
língua"; "Estar em sua própria língua como um estrangeiro" (p. 49).

O polilinguismo como estado da língua e recurso do usuário é uma alternativa ao


monolinguismo previsto pela problemática da "língua nacional", citada acima. Mas não no
sentido do multilinguismo promovido pelos planejamentos lingüísticos d"a unidade na
diversidade", pois nesse caso o princípio continua sendo o da normatização e controle das
línguas nacionais segundo a mesma lógica funcional dos estados-nação monolíngües.
Segundo essa lógica, ser bilíngüe, por exemplo, é ser monolíngüe em cada uma das duas
línguas paralelamente, isto é: a) não embaralhar as fronteiras entre elas misturando os
códigos, b) manter separados os domínios de uso de cada uma delas; c) ter o padrão
nacional de cada uma como "a" língua legítima, em detrimento de variedades
intermediárias, mistas ou vernaculares. Na prática, essa ordem é geralmente mantida às
custas de todo um aparato institucional (aparato estatal, escolar, acadêmico, jurídico, etc) de
inculcação, legitimação e monitoramento das fronteiras lingüísticas. É o que se verifica de
forma exemplar em estratégias contemporâneas de revitalização e emancipação de línguas
minoritárias orientadas pela lógica do nacionalismo. A construção desse aparato
institucional é o principal objeto das estratégias de planejamento lingüístico produzidas
pelos movimentos nacionalistas de "defesa", isto é, de legitimação/padronização de línguas
minoritárias1.
1
A esse respeito, ver os estudos sobre as questões lingüísticas eslavas após o
desaparecimento da União Soviética, como, por exemplo, a separação do tcheco e do
eslovaco, o desmembramento da língua servo-croata e as discussões sobre as fronteiras
lingüísticas na Macedônia (Garde, 1996; Seriot, 1997). Desses exemplos, o mais conhecido
é o da antiga Yoguslávia: o desmembramento do servo-croata em três línguas diferentes
(sérvio, croata, bósnio) visando fazer corresponder a cada língua um estado-nação etno-
culturalmente homogêneo e territorialmente distinto. Nesse sentido, o processo de
purificação e homogeneização lingüística é estratégico para os movimentos nacionalistas da
Sérvia, da Croácia e da Bósnia, que buscam identificar e reforçar o maior número possível
A problemática do multilinguismo que escapa a essa lógica da normatização e do controle
das fronteiras é justamente a das práticas comunicativas mais comuns em situações de
contato lingüístico, isto é, a dos diversos tipos de alternância, mistura ou fusão de línguas
e/ou variedades de que lança mão localmente o falante em contextos bi ou multilíngues. O
foco nos modos de combinação e recombinação de elementos lingüísticos dados como
heterogênos é o aspecto mais relevante, pois as formas emergentes desse processo de
combinação e recombinação problematizam, em diferentes níveis e graus, o que a priori era
dado como distinto e estabelecido. Nessas práticas dão-se, pois, processos locais de
desestabilização das fronteiras entre as unidades em contato, não necessariamente
transformadores da ordem lingüística em nível macro, mas que respondem a necessidades
de adaptação do falante e de sua língua a situações, interlocutores e objetivos específicos.
Por essas unidades serem tidas como distintas e raramente em igualdade de condições no
mercado dos bens simbólicos de que fala Bourdieu (1977), acreditamos que tais processos
evidenciem de maneira exemplar os principais mecanismos de desregulamentação
lingüística atuantes em situações em que há alternância ou mistura de formas lingüístico-
discursivas, sejam elas emprestadas a línguas diferentes, ou a variedades, gêneros e estilos
de uma mesma língua.

Conforme pretendemos mostrar na seção 3, mais adiante, a apreensão da variação e da


desregulamentação lingüística como efeitos do polilinguismo numa mesma língua é
incompatível com uma modelização linear de formas "à disposição do falante". Do mesmo
modo, a apreensão do processual na língua como inerente ao exercício do polilinguismo
em diferentes níveis e graus é incompatível com a da normatização lingüística como
processo naturalmente emergente num contínuo de desenvolvimento lingüístico. Isso
porque a noção de polilingüismo que nos interessa está ancorada na complexificação
sistemática da experiência do falante/escrevente com a língua e com os papéis e identidades
construídos na comunicação social.

2. Língua e nação

Estamos entendendo por problemática da língua nacional o conjunto de fatores de ordem


social, política e ideológica, contemplados por um projeto de construção ou consolidação
da nação e da nacionalidade, que fomentam e articulam tanto práticas, atitudes e
representações da língua pelos falantes, quanto modos de reflexão/teorização lingüística de
diferentes agentes institucionais, como cientistas, legisladores e pedagogos, por exemplo.
Não se trata, pois, de um conjunto de fatores internos ao sistema abstrato da língua, e nem

de diferenças entre as línguas. São várias as ações de grande impacto empreendidas pelas
políticas lingüísticas de cada movimento, com destaque para a adoção de um alfabeto não
romano para o croata (cirílico) e a arabização e turquização do bósnio. Para que se avalie
melhor a dimensão político-ideológica dessas ações, independentemente de estarem ou não
baseadas em estudos históricos e científicos sobre as línguas em questão, é preciso lembrar
que os falantes das três línguas até recentemente vinham sendo convencidos de que falavam
uma mesma língua, com suas variações.
de um mero conjunto de pressões externas às construções sociais com e sobre a língua, mas
de catalisadores na articulação dessas construções, inclusive as científicas.

Tais eixos, já amplamente descritos pela literatura sobre os movimentos nacionalistas desde
a revolução francesa e a criação dos estados-nação europeus (Hobsbawm, E. (1990);
Balibar, 1987; 1991) até a explosão dos movimentos etno-lingüísticos da segunda metade
desde século (Blommaert, J. & Verschueren, J. (1992), Garde, 1996, Sériot, 1997; Heller
1998, Jaffe 1999; entre outros), estão ancorados na premissa geral de uma correspondência
necessária, ou desejável, entre unidades sobrepostas: uma nação, uma comunidade etno-
lingüística e um território. Essa premissa geral faz com que diferentes agendas nacionalistas
do passado e do presente tenham um vetor estratégico fundamental comum, que é o de
tornar visível a unidade da nação, da comunidade e do território e, ao mesmo tempo, fazer
coincidir essas três "realidades".

A unidade da comunidade vai se articular primordialmente em torno de uma língua


nacional e, no caso de nações multi-étnicas e plurilíngues, a língua nacional pode ou não
corresponder à "língua materna" de uma das etnias integrantes da comunidade nacional.
Também nesse caso, outros traços unificadores podem ter a mesma função
homogeneizadora, como a religião, por exemplo. No caso de estados-nação já
consolidados, o mesmo vetor estratégico fundamental continua orientando os processos de
afirmação e legitimação do que se projeta como próprio da nação e da nacionalidade em
oposição ao que é próprio do local, ou do estrangeiro, por exemplo.

Em se tratando especificamente da língua nacional, são os processos de codificação e


padronização num primeiro momento e, num segundo momento, os processos de
reprodução/divulgação da língua padronizada e de sua genealogia "respeitável" (Fishman,
1972), o que vai implementar o vetor estratégico, acima descrito, de estabilização,
legitimação e controle da língua enquanto uma realidade unificada, autêntica e visível, tanto
internamente quanto externamente à nação. Nesse sentido é que se pode dizer, como
Haugen, que a nação é uma condição necessária para o "pleno desenvolvimento" de uma
língua: "Qualquer vernáculo é presumivelmente adequado num dado momento para as
necessidades do grupo que o usa. Mas para as necessidades da sociedade muito mais ampla
da nação ele não é adequado, e torna-se necessário suplementar seus recursos para fazer
dele uma língua."([1966] 2001: 111)

E, conforme bem salienta Achard, em seu estudo do "ideal monolíngue" característico da


problemática da língua nacional na França desde o século XVIII, e também da maioria dos
estados-nação da Europa ocidental e da América instituídos desde então, o percurso
histórico das idéias e fatos que consolidaram esse ideal não é fruto da "malignidade" de
nenhum poderoso, mas sim de "uma coerência ideológico-social" (1987: 39) de processos
sociais mais amplos articulados por enciclopedistas e revolucionários franceses em torno da
idéia de uma língua comum para todos os cidadãos esclarecidos. Essa concepção política da
nação está, segundo Sériot, ligada à ideologia jacobina do estado como "uma entidade
política, que dá origem à Nação". Ainda segundo esse autor, o mesmo "ideal monolíngüe"
orienta a concepção étnica da nação, historicamente relacionada ao romantismo alemão e
de maior influência na Europa oriental, segundo a qual a nação precede o Estado e está
ancorada numa "comunidade de linguagem e cultura". Nos termos do autor: "A definição
jacobina francesa de nação é um 'jus soli' (direito do solo), a definição romântica alemã é
um 'jus sanguinis' (direito do sangue)" (Sériot, [1997] 2001: 14). Essas duas definições
orientam muitos dos debates contemporâneos sobre língua e identidade nacional.

A contribuição dos estudos lingüísticos sempre foi e continua sendo crucial para os
processos de estabilização, legitimação e controle das línguas nacionais, seja através do
recorte e descrição de um corpus língüístico de referência para o "nacional" na língua, seja
através da elaboração de metalinguagens e teorias que descrevem e explicam o lingüístico e
seu funcionamento, seja através da elaboração de artefatos que dão visibilidade à língua
enquanto objeto, tais como gramáticas, manuais, dicionários e atlas lingüísticos, por
exemplo. São contribuições inevitavelmente atravessadas (em oposição a influenciadas) por
processos sociais e políticos de luta pela inclusão/exclusão de formas e sentidos, bem como
por confrontos ideológicos e políticos entre os diferentes grupos e instituições que disputam
o controle dos processos constantemente renovados de (re)definição da língua nacional.

Um exemplo significativo na história das línguas européias modernas é a formulação na


década de 40, pelos funcionalistas da Escola Lingüística de Praga, dos quatro princípios
"invioláveis" que devem reger as estratégias de construção/manutenção de um padrão
lingüístico (no sentido de "norma explícita" (Aléong, [1983] 2001)), a saber: elasticidade,
estabilidade, prestígio e polivalência. Conforme salienta Thomas (1991:6), a preocupação
desses teóricos com o cultivo da língua como um meio de se contemplarem esses princípios
e, em função disso, como uma questão lingüística relevante, é fruto dos debates da época
sobre padronização e formas de controle do purismo inerente aos processos de
padronização. Foram os teóricos funcionalistas de Praga que enfatizaram a necessidade
"paradoxal" da língua resistir às mudanças (princípio da estabilidade) e, ao mesmo tempo,
ser capaz de modificar-se (princípio da elasticidade), de maneira a poder desempenhar
todas as funções sociais requeridas (princípio da polivalência) e assegurar seu prestígio (id.
p. 53).

Conforme também assinala Thomas, o purismo enquanto "ideologia lingüística que procura
inculcar um conjunto específico de atitudes (ou uma certa consciência lingüística) e um
código específico de comportamento lingüístico numa dada comunidade de fala e sua
descendência futura" (p. 190), passou, então, a ser contemplado pela teoria lingüística como
ingrediente necessário à construção/manutenção de uma língua de prestígio, só que numa
acepção fraca: o purismo controlado por atitudes racionais associadas a valores como
"universalidade, liberdade, e tolerância" (p. 37). Essa mesma idéia de um purismo
racionalmente controlado passou a integrar, segundo o autor, os estudos sociolingüísticos
interessados em ações direcionadas para o cultivo, ou o "desenvolvimento" da língua: "se
se define o planejamento lingüístico como uma intervenção racional, objetiva e organizada
na língua e nas situações sociais nas quais ela funciona, não é difícil ver de que forma o
purismo pode participar disso" (p. 215).

Na verdade, mesmo quando não direcionada para a definição ou avaliação de políticas


institucionais, a reflexão lingüística ancorada na idéia de uma língua "plenamente
desenvolvida", nos termos de Haugen (op.cit), isto é, unificada, estável e dinâmica ao
mesmo tempo, tende a redefinir esse conceito tradicional mais amplo de purismo,
reduzindo-o ao de prescritivismo estrito e irracional e contrapondo-o ao normativismo de
base científica (descritiva) e racional. Tal redefinição permite a redistribuição, nesses dois
eixos - o do irracional e o do racional - das ações, atitudes e práticas suscitadas e colocadas
em jogo pelos processos de (re)definição da língua nacional2. E em função justamente dessa
redistribuição, são deslocados os confrontos socio-políticos e ideológicos, acima referidos,
para o eixo da confrontação entre razão e não razão, ciência e não ciência, conceito e
preconceito, juízo e atitude, etc.

Uma consequência disso é a dissolução da antiga questão do falante de referência, ou seja,


da "qualidade" do falante (crucial para a discussão parlamentar sobre a língua no Brasil nos
anos 30 e 40, conforme mostra Dias (1996) e também para a de universitários
contemporâneos, conforme mostra Signorini (2001a)) na da língua em si, mais
especificamente nas questões tecno-científicas da gramaticalidade e da adequabilidade das
formas lingüísticas. Desse modo, a escolha da língua das classes ditas cultas como
referência para a normatização, por exemplo, se justifica em função do grau de
"desenvolvimento", ou polivalência, e prestígio dessa variedade em relação às demais, ou
seja, em função de uma "qualidade" vista como não "comprometida", nos termos de
Corbeil, "com o normativo e o purismo militante de uma determinada burguesia" (op.cit, p.
200). A sobreposição da norma culta ao padrão nacional escapa ao lingüístico, pois diz
respeito, segundo esse autor, ao "fenômeno mais geral da coerção social nos grupos
humanos organizados" (id., p.194).

Nesse sentido, a questão da normatização lingüística, assim como a da variação lingüística,


são vistas antes de mais nada como questões de natureza sociológica (diversidade das
condições geográficas, socio-econômicas, culturais, de gênero, de idade, etc) a serem
contempladas pela teoria lingüística num modelo que descreva seus efeitos sobre a língua e
seu funcionamento. Nesse modelo, o vetor estratégico da problemática socio-política e
ideológica da língua nacional, acima descrito, vai ser dissolvido no quadro mais amplo da
noção antropológica de cultura, conforme descrito a seguir.
2
A diferença estabelecida por Rey entre o purismo francês, visto como irracional e
injustificado, e o purismo quebequense, visto como racional e justificado, remete
justamente para essa questão: "Não se pode falar racionalmente de ação normativa no
Canadá francófono como se fala do purismo na França, porque, na América do Norte, trata-
se de uma reação a uma situação socioeconômica global, onde uma comunidade, a do
Quebec, luta por sua individualidade através da imagem que ela tem de seu comportamento
cultural, cuja condição maior é a língua." ([1972] 2001: 141) Nessa perspectiva, as políticas
lingüísticas de purificação, normatização e controle da língua franco-canadense e de suas
fronteiras se justificam, portanto, porque buscam a autonomia cultural e, através dela, a
autonomia socio-econômica do grupo minoritário. Ainda segundo Rey, elas se justificam
porque buscam aproximar a língua minoritária do francês internacional, ou seja, do padrão
nacional da França. No argumento do autor, é o valor da universalidade, acima referido,
que é realçado, e não o apagamento da condição minoritária da variedade franco-canadense
no mercado lingüístico internacional: "O conceito de 'francês universal' - mítico, se o
interpretarmos como norma geográfica única - é motivado e justificado se corresponder à
preservação de um núcleo comum de usos diferentes, núcleo necessário para continuar a
assegurar a transmissão de informações através de todo o domínio francófono." (id. p. 141)
2.1 Língua nacional e normatização lingüística

Tradicionalmente, a antropologia cultural e lingüística tem relacionado as diferentes


construções sociais com e sobre a língua de uma dada comunidade, nacional ou não, através
da noção de cultura. Trata-se de um constructo herdado do estruturalismo saussureano e do
funcionalismo sociológico de Durkheim, ou seja, articulado em função das noções de
estrutura e norma. Desse modo, apesar das diferenças de perspectiva encontradas nas
definições apresentadas pela literatura (para uma revisão, ver Duranti (1997)), a cultura,
nessa tradição, tende a ser vista como um sistema unificado e abstrato de sentidos que
orienta a apreensão da realidade e a organização social. Nesse sentido, funciona como um
princípio organizador e regulador das interpretações que dão sentido e consistência à
experiência vivida pelo indivíduo e pela comunidade. É tida como sendo compartilhada e
contínua ao longo do tempo, mesmo não estando localizada em nenhum signo concreto,
conforme salienta Urban (1991: 1).

Como produto e veículo da cultura assim compreendida, a língua também é vista de forma
unificada, autônoma e dispondo de coesão interna, sendo compartilhada pelos falantes da
comunidade (a "competência partilhada", de que fala Rey ([1972] 2001: 130) ), mantendo-
se no tempo, independentemente de ser objetivada ou não na escrita. Quando informada
pela sociolingüística interacional (Gumperz 1982; 1996) e pela etnografia (Hymes, 1972), a
antropologia lingüística focaliza mais detidamente a interação social, e vê a língua
simultaneamente como recurso, ou ferramenta herdada/adquirida, e como produto das
práticas interacionais de uma "comunidade de fala", a qual, como lembra Duranti, tanto é
real quanto imaginária e "cujas fronteiras estão constantemente sendo refeitas e negociadas
através de uma miríade de atos de fala" (1997: 6). Nessa perspectiva, é realçado o caráter
dinâmico dos processos sociolingüísticos que garantem a unidade, autonomia e visibilidade
da cultura, da comunidade e da língua como realidades sobrepostas.

Através das noções de norma sociológica e de norma lingüística, a perspectiva


antropológica no estudo da língua sobrepõe e articula essas três realidades: normas socio-
culturais e lingüísticas são uma pré-condição para o funcionamento da comunidade e da
vida do indivíduo em comunidade. O parentesco entre elas reside no modo de
funcionamento e na função estruturante e reguladora ao mesmo tempo: conforme apontam
Aléong (op. cit.) e Corbeil (op. cit.), são regras que orientam, controlam e dão sentido aos
comportamentos individuais e de grupo. Os conjuntos por elas estruturados e regulados
constituem as unidades hierarquizadas e dispostas em três grandes níveis de um contínuo
do tipo proposto por Corbeil (op. cit., p. 177): supracultura/supragrupo/supraleto,
cultura/grupo/socioleto, infracultura/infragrupo/infraleto. Em cada nível, são identificados
um "modelo real", resultado da atividade dos falantes e um "modelo construído", resultado
da atividade do lingüista. O "núcleo duro" ou sistema abstrato da língua, comum aos três
níveis, é uma modelização do lingüista, o que lhe garante a condição privilegiada de
conhecedor do que é comum e não comum ao todo e às suas partes.

Essa redefinição da norma lingüística em termos de norma de comportamento de natureza


sociocultural informa, portanto, a concepção laboviana de um conjunto unificador de
normas como constitutiva de uma "comunidade de fala" e como dispositivo interno de
controle da variação em toda unidade sociolingüística assim constituída. Segundo a mesma
perspectiva, o "fenômeno" da normatização vai se dar em cada unidade sociolingüística e
em cada nível do contínuo (supraleto, socioleto e infraleto) - a pluralidade das normas de
que fala Rey ([1972] 2001) - podendo ser descrito como resultante de "um equilíbrio
dinâmico consentido entre a liberdade de cada falante e a necessidade de se integrar a uma
sociedade e de se comunicar com seus membros" (Corbeil, op. cit., p. 198-199).

Essa idéia de "um equilíbrio dinâmico consentido" desproblematiza, conforme também


assinala Bagno (2001: 11), os conceitos de norma e de normatização, redefinidos em
termos de "fator de coesão social" (Castilho, 1987: 53), "norma objetiva" (Rey, op. cit.) e
"regulação" (Corbeil, op. cit.), por exemplo, e contrapostos a "dialeto social praticado pela
classe de prestígio" (Castilho, 1987: 53), "norma prescritiva" e "padrão". Com a redefinição
desses conceitos, a normatização lingüística passa a ser uma questão de razão na língua e na
cultura, ou seja, de elaboraçãp do que é comum/compartilhado nesses domínios: um
processo passível de ser descrito em termos de auto-regulação sistêmica, cuja dinâmica de
funcionamento "explica", como quer Corbeil (op. cit., p. 184), "como a variação e a
uniformização lingüística podem se manifestar ao mesmo tempo no mesmo grupo, sem que
haja conflito ou contradição".

Em sendo desfocada a variação e a normatização como concorrência, perturbação ou


conflito na elaboração do que é comum/compartilhado, a definição d "a melhor maneira de
usar a língua entre todas as existentes" deixa de ser polêmica: como assegura o mesmo
autor, a auto-regulação do sistema produz como resultado "a emergência de uma norma
dominante" (p.200). No campo da não razão, ou do não científico, e portanto fora do
modelo de regulação ficam, ainda segundo Corbeil, os discursos "puristas" de natureza
ideológica "visando legitimar 'em si' esse uso dominante, transformá-lo, de simples
resultado de um processo de vida em comum, num objeto dotado duma existência
própria que se impõe a todos por suas virtudes "(p. 200, ênfase nossa).

Conforme descrito na seção anterior, a dicotomização e distribuição da noção de norma em


dois eixos (o do racional: a norma fruto da regulação, descrita pelo discurso científico; e o
do irracional: a norma fruto da regulação, mas apropriada/desnaturada pelo discurso
purista) são deslocados os confrontos socio-políticos e ideológicos que constituem tanto a
norma lingüística quanto os metadiscursos a ela relacionados, e suas interfaces. Sobre essas
interfaces, Corbeil já havia se referido antes no mesmo artigo, nas considerações sobre as
"forças" de regulação lingüística (processos de enculturação, comunicações
institucionalizadas e aparatos de descrição lingüística3), sem contudo integrá-las de fato ao
seu modelo de regulação lingüística.
3
Com relação à enculturação, considerada a principal força de regulação, o autor distingue
três momentos, a saber: "a aprendizagem primária ou familiar, a aprendizagem secundária
ou escolar e a aprendizagem terciária ou contínua" (p. 184). Com relação às comunicações
institucionalizadas, destaca a função modelizadora das comunicações produzidas pelo
sistema de ensino, pela administração pública e comercial, pela mídia e, em alguns casos,
pelas instituições religiosas (p.189-190). Com relação aos aparatos de descrição lingüística,
o autor aponta a função reguladora exercida pelos modelos construídos pela descrição
lingüística, distribuídos em três categorias, a saber: a normativa (de "intenção pedagógica"),
São significativas as implicações desse esvaziamento do social no cultural, entendido como
campo unificado mais amplo e neutro, ou neutralizável. A primeira delas é o
equacionamento da relação entre língua e variação em termos de distribuição de variantes
em função, ou "em volta" de um núcleo representado pela norma dominante de cada
unidade, e ao qual se sobrepõe a norma dominante da comunidade como um todo (a figura
da tapeçaria, mencionada anteriormente). As mudanças no eixo espaço-temporal são
pensadas em termos de desenvolvimento, elaboração, emergência, etc., ou seja, como
resultantes de uma espécie de cristalização ou triagem operada pelos mecanismos
lingüístico-culturais de auto-regulação, o que, inevitavelmente, transforma a variação em
"modulação" ou "enxerto" só de fato contemplada pelo modelo quando já tiver sido
incorporada ao núcleo, ou seja, à norma. Nos termos de Corbeil:

"O conjunto assim organizado (indivíduo-infragrupos-grupo-supragrupo) constitui um


continum ao mesmo tempo lingüístico e cultural formado de um núcleo (o que faz o francês
ser o francês e não o árabe) e de modulações mais ou menos numerosas e importantes
enxertadas sobre o núcleo." (op. cit. p, 177).

A segunda implicação é uma espécie de efeito colateral indesejado: esse modo de


apreensão da norma e da normatização racionaliza os processos de controle da língua
enquanto processsos históricos naturais e inevitáveis no seu desenvolvimento, e que são
realizados por "mãos invisíveis", o que acaba se tornando um ingrediente poderoso da
retórica de naturalização da "cultura de padronização", descrita por Silverstein (1996) 4. Em
seu estudo da cultura "monoglóssica" de valorização do padrão (standard) lingüístico nos
EUA dos anos 80/90, esse autor destaca a importância dessa retórica para a reafirmação da
crença compartilhada pela comunidade lingüística na existência de uma norma
funcionalmente diferenciada para o uso correto e verdadeiro da língua na comunicação em
"contextos interacionais que contam na sociedade" (1996:286), sendo que a apropriação
adequada dessa norma distingue os melhores falantes e marca a condição de membro da
comunidade lingüística5. Nos termos do modelo de auto-regulação proposto por Corbeil, é a

a descritiva (de "tipo lingüístico", geralmente relativa a "uma única e mesma variedade") e
a comercial (sujeita a "pressões comerciais") (p.193-194).
4
Por "cultura de padronização", Silverstein se refere aos processos e atitudes relacionados à
padronização lingüística como "mania de correção" que atravessa, segundo já apontava
Drake (1977) algumas décadas antes, a história da integração nacional americana do século
passado e que, neste século, tem se revelado como um fenômeno "persistente e disseminado
no pensamento lingüístico de cidadãos educados e inteligentes dos Estados Unidos" (Drake,
1977: v).
5
Relacionando essa crença da comunidade lingüística à existência de instituições
hegemônicas que estabelecem e mantêem certas práticas lingüísticas valorizadas e toda a
"parafernália" padronizante correspondente, como é o caso das instituições que controlam a
produção e circulação de comunicações lingüísticas modelares, sobretudo escritas,
Silverstein (a partir de Bourdieu) aponta alguns aspectos da "cultura de padronização" que
acreditamos serem comuns a diferentes contextos contemporâneos, ou seja, não restritos ao
visibilidade da norma que garante a da língua, a da comunidade e a do falante na
comunidade, não a modulação e nem o enxerto.

3. Pluralidade de códigos e comunicação social

Em sua discussão das "opacidades e ambigüidades ligadas aos termos 'língua' e 'dialeto'",
Haugen ([1966] 2001; referindo-se a Bloomfield) chama a atenção para a natureza relativa
da distinção entre língua e dialeto e para as diferenças de perspectiva na definição desses
constructos pela teoria lingüística. Essas diferenças são agrupadas em função de duas
metáforas não compatíveis, segundo ele: a das "partículas", isto é, estruturas unitárias ou
unificadas com fronteiras definidas; e a das "ondas", isto é, conjuntos de estruturas
parcialmente superpostas sem fronteiras definidas. Aponta três inconvenientes para o
estudo da língua segundo o modelo das partículas, apesar de suas vantagens na "produção
de uma descrição exaustiva e consistente": não contempla "uma grande quantidade de
inconsistências dentro da fala de qualquer informante", a comunicação entre usuários de
códigos diferentes, e nem a indefinição das fronteiras entre as línguas (p.103). Com relação
ao último inconveniente, o autor afirma o seguinte: "ainda não existe nenhum cálculo que
nos permita descrever as diferenças entre as línguas de modo coerente e teoricamente
válido" (p.103).

Para evitar incongruências nos estudos construídos em função da partícula como unidade de
análise, sugere uma divisão do trabalho de descrição lingüística: aos lingüistas a tarefa de
estudar as diferenças estruturais, ou seja, referentes à "língua em si", na definição dessas
unidades, portanto, na definição de constructos como língua e dialeto, por exemplo; aos
sociolinguistas a tarefa de estudar as diferenças funcionais, ou seja, referentes ao uso da
língua na comunicação social em sentido amplo. Assim, a sociolingüística, segundo esse

contexto americano por ele focalizado. São eles: 1) o caráter hegemônico, explicitamente
reconhecido, dessas instituições na definição do padrão lingüístico da comunidade; 2) a
função, adquirida pelo padrão lingüístico, de "emblema unificador" do estado-nação, de
expressão cultural da nacionalidade; 3) a função, adquirida pelo padrão lingüístico, de
instrumento neutro e objetivo de dimensionamento de todos os usos lingüísticos existentes
na comunidade, inclusive os que envolvem outras línguas; 4) a produção constante de uma
"retórica de naturalização" da "cultura de padronização" que racionaliza os processos de
padronização e a realidade sociolingüística decorrente (a padronização como um processo
natural e necessário na evolução da língua e dos falantes; a apropriação do padrão como via
de emancipação profissional, pessoal e até psicológica; o acesso individual ao padrão como
gradual, livre e direto, ou seja, não sujeito a entraves de natureza sócio-política; a
experiência do déficit lingüístico como perturbação remediável); 5) a função icônica
adquirida pelas formas padronizadas (código pragmático do "como" interagir socialmente)
e a consequente mercantilização (commoditization) do padrão e de formas padronizadas de
expressão, como indexicalizadores de identidades socio-econômicas e de valores pessoais:
mercadorias à disposição de todos e de qualquer um (igualdade de condições dos
consumidores cidadãos) no comércio de bens e serviços controlado por experts e sujeito às
leis de mercado); 6) o surgimento do mercado como um novo agente hegemônico de
controle sobre o padrão e a padronização.
autor, vai definir língua e dialeto enquanto unidades funcionalmente hierarquizadas - um
dialeto é uma língua "subdesenvolvida" (p. 104) - no contexto da sociedade nacional
apreendida globalmente em sua coesão sociocultural e lingüística. E essa coesão é expressa
pela ordem funcionalmente convergente dos processos de regulação/normatização e
avaliação dos vernaculares (os dialetos) e do veicular a eles sobreposto (a língua nacional).
Transposta para o contexto nacional, está, pois, a noção laboviana clássica de uma
"comunidade de fala", socialmente e linguisticamente estratificada, mas unificada por um
conjunto de normas compartilhadas de avaliação do desempenho lingüístico.

Em função dos mesmos inconvenientes apontados por Haugen, a sociolingüística


interessada no multilinguismo tem justamente questionado a modelização em partículas ou
unidades funcionalmente distribuídas e relacionadas a um núcleo comum. Apoiada nas
contribuições da etnografia, da etnometodologia e da pragmática interacional (Heller, 1988;
Rampton, 1995; Auer 1998a), tem demonstrado o interesse de se eleger como locus de
investigação as práticas comunicativas e não a "língua em si" (categorias estruturais,
sobretudo sintáticas e fonológicas), ou a "comunidade de fala" e a comunicação social em
sentido amplo (macro-categorias sociolingüísticas do tipo grupo/infragrupo, rural/urbano,
culto/não culto, etc).

Retomando e rediscutindo a tradição "interacional/interpretativa" de estudos da


comunicação intercultural (Gumperz, 1982; 1996), esses estudos têm como base empírica
sobretudo interações orais e buscam flagrar o falante em seu papel de agente em processos
comunicativos considerados básicos na engenharia de (re) produção da língua e da
sociedade. Orientam essa busca duas premissas de ordem mais geral. A primeira é a de que
fatores macro-estruturais nunca determinam completamente o uso interacional da língua e
de outros recursos expressivos, o que faz com que boa parte da estrutura conversacional
permaneça em aberto e sujeita aos processos locais de ajuste e seleção de recursos pelos
falantes, daí o "grande número de inconsistências" de que fala Haugen, contradições e até
efeitos de non sense para o analista, que precisa levar em conta também as interpretações
dos participantes da ação verbal em curso. Assim, a visibilidade do falante e dos usos que
faz da língua dá-se também na modulação e no enxerto, nos termos da analogia citada
anteriormente.

A segunda premissa é a da não unicidade da cultura e da comunidade lingüística. A cultura


é vista como conjuntos de sentidos e estratégias comuns de interpretação "distribuídos de
maneira complexa através de redes sociais", as quais, segundo Gumperz & Levinson (1996:
12), tanto podem constituir "subculturas", subgrupos culturais, quanto podem atravessar
transversalmente fronteiras sociais, lingüísticas e geográficas, constituindo culturas
especializadas regionais e até globais. O tecido dessas redes, em suas sobreposições e
limites imprecisos, é o que, nas comunidades, define a ordem sociocultural num dado
momento. Em consequência, verifica-se como não necessária a sobreposição entre língua e
cultura, por exemplo: da mesma forma como um grupo culturalmente definido pode não ser
monolíngüe, os falantes de uma mesma língua não compartilham, necessariamente, um
mesmo background cultural. O trânsito do falante em diferentes redes sociais pode
significar, inclusive, identidades socioculturais múltiplas e processuais, ou seja, não dadas a
priori em função da língua, ou da etnia, regiäo, classe social, ou gênero, por exemplo.
Acrescente-se a isso o fato da cultura não ser mais vista como um sistema mental abstrato,
mas como sentidos e estratégias de interpretação veiculados por discursos, metadiscursos e
objetos que circulam na sociedade, isto é, que são acessíveis publicamente (Urban, 1991), o
que faz com que as diferenças de acesso, em função da distribuição desigual através de
redes sociais, determinem diferenças graduais, mais ou menos significativas, no que é tido
como culturalmente comum.

O foco em processos interacionais locais de ajuste e seleção de recursos tem sido


particularmente interessante para o estudo da questão específica da alternância, mistura ou
fusão de línguas e/ou variedades, tradicionalmente designadas pelo termo genérico de
"códigos", em contextos bi ou multilíngues. A perspectiva "interacional/interpretativa", em
suas tentativas de melhor compreender como, porque, quando e com que efeitos se dão as
alternâncias no uso de um ou mais códigos na interação, tem reunido elementos para uma
articulação sistemática entre os fenômenos relacionados à justaposição de formas
lingüisticamente heterogêneas e os fenômenos relacionados à variação e mudança
lingüísticas (Auer, 1998c)6. E, ao fazê-lo, tem também colocando em cheque categorias e
modelos lingüísticos e sociolingüísticos concebidos em função de contextos monolíngues
urbanos unificados pela hegemonia de um padrão lingüístico7.

6
Auer (1998c) propõe três modos prototípicos de justaposição de línguas e/ou variedades
na fala bilíngüe, os quais balizariam um contínuo de fenômenos resultantes do contato entre
línguas. Tal contínuo representaria um processo mais amplo de sedimentação estrutural ou
gramaticalização, isto é, de transformação estrutural das formas resultantes do contato
lingüístico. Nos dois extremos desse contínuo estariam o uso alternado de códigos (code-
switching) e a fusão lingüística (fused lects), sendo que no meio, como uma categoria
intermediária, estaria a mixagem (language mixing). Haveria uso alternado de códigos,
segundo o autor, quando a justaposição das línguas e/ou variedades fosse interacionalmente
saliente e relevante; haveria mixagem quando a fronteira entre elas só fosse significativa
para os falantes em nível mais global, e não em nível interacional local; e haveria fusão em
caso de estabilização de variedades mistas. Na passagem da mixagem para a fusão haveria
redução da variação e progressiva normatização de regularidades estruturais. Não há
obrigatoriedade no desenvolvimento de todo o processo, pois, segundo o autor, em
diferentes comunidades bilïngües verificam-se estabilizações em diferentes pontos do
contínuo. Um aspecto relevante nessa abordagem, e que a diferencia de outras centradas na
estrutura lingüística, é que o sentido interacional da justaposição de códigos é um
parâmetro fundamental a ser considerado pelo analista.

7
Essa questão também foi levantada por LePage & Tabouret-Keller (1985), em seu estudo
sobre língua crioula e identidade étnica. No caso dos contextos caribenhos focalizados por
esses autores, nem todos os falantes são orientados por um padrão único de prestígio e nem
compartilham normas consistentes de avaliação de variantes lingüísticas, o que invalida
critérios tradicionais de classificação desses falantes em macro-categorias discretas como as
de agrupamento dialetal, geográfico, socio-econômico, étnico, etc. Convencidos da
importância do modo de percepção da língua e da comunicação pelo falante, de suas
motivações e estratégias de identificação e de desidentificação, os autores enfatizam nesse
estudo a construção de novas etnicidades na comunicação social.
Segundo esses modelos, toda mistura de códigos é sempre um fenômeno periférico no
conjunto dos usos "normais" da língua, da mesma forma que o comportamento lingüístico
do falante que mistura os códigos é sempre anômalo em relação aos comportamentos
"normais" de falantes "competentes" em cada uma das línguas envolvidas. No estudo de
formas misturadas, cabe ao analista recuperar as fronteiras, separar e identificar as partes
(identificar a "língua da interação" ou o(s) "substrato(s)" de referência, por exemplo),
verificar as leis gerais que regem a mistura (identificar os condicionadores sintáticos da
mudança de código, por exemplo), e situar o falante e sua fala numa ordem sociolingüística
dada, organizada em maior ou menor grau por uma "lógica diglóssica" (Jaffe, 1999: 30), ou
seja, por uma polarização de domínios e critérios de uso da língua (dicotomias do tipo
padrão/não padrão, culto/não culto, dialeto/pidgin, por exemplo). Tal polarização é típica
da "cultura de padronização", acima descrita.

Conforme sugerem Auer (1998b), Alvarez-Cáccamo (1998), Franceschini (1998) e


Meeuwis & Blommaert (1998), o estudo de práticas comunicativas reais em contextos
multilíngües subverte, justamente, os parâmetros de definição do "normal" na
comunicação lingüística e, consequentemente, toda tipologia, mapa ou modelo ancorado
nos mesmos parâmetros. Nesses contextos, cada vez mais comuns em todas as partes do
mundo, a alternância, mistura ou fusão de códigos lingüísticos e paralingüísticos em
diferentes graus se impõe ao analista como fenômeno central e não periférico, sobretudo
pelas funções que adquire no que se poderia chamar micro-política interacional, ou seja, na
produção de sentidos, posições e identidades pelo falante envolvido na ação verbal em
curso na interação.

O que é mostrado nesses estudos é que a mistura de códigos tem caráter histórico e
dinâmico, pois se dá no micro-contexto interacional mas está relacionada à distribuição dos
recursos linguísticos na comunidade (as redes de que falam Gumperz & Levinson), ou seja,
à existência de fronteiras socioculturais e políticas que determinam os repertórios
lingüístico-discursivos individuais e que tanto podem ser ratificadas quanto embaralhadas
localmente na interação. Está também relacionada às construções identitárias (étnicas, de
gênero, de idade, etc) em relação às quais se situam os participantes da interação. Nesse
sentido é que se pode dizer que a macro-política das línguas e populações em contato
(relações hegemônicas, de dominação, de concorrência, etc) também vai estar indexada na
micro-política interacional, mas de forma opaca e complexa. Nesse sentido, a questão que
se coloca para o analista, segundo Heller (2001: 139), é a de focalizar "processos locais
empiricamente observáveis" e, ao mesmo tempo, buscar uma "narrativa mais ampla na qual
as práticas lingüísticas são compreendidas enquanto processos políticos e elementos
estruturadores [da realidade social]".

A hipótese, no caso do uso dos recursos lingüísticos e paralingüísticos, é a de uma


mobilização, pelo falante bilíngüe, de repertórios integrados com vistas a objetivos
interacionais específicos. Desse modo, a mistura de códigos é um fenômeno que pode ou
não ocorrer regularmente na fala individual ou de um grupo. Quando ocorre, não se dá
apenas em nível intra- ou inter-frástico, mas também em unidades maiores da conversação,
como turnos, pares conversacionais e blocos intonacionais (Auer, 1998b: 3), podendo ser
funcionalmente relevante para as mudanças na perspectiva de enquadramento (footing) do
que está sendo dito. Pode ainda não ocorrer da mesma forma em diferentes situações e com
diferentes interlocutores, ser relevante e estratégica em dada interação e não visível e,
portanto, não significativa enquanto tal, em outra. Outro fato a ser considerado é que a
alternância de códigos não implica, necessariamente, a atualização local de valores sociais e
simbólicos (relacionados a prestígio, status, identidade, estereótipo, etc) atribuídos pela
comunidade ou instituição hegemônica a cada uma das línguas ou variedades
separadamente. São significativas a esse respeito as variações no grau de prestígio e status
atribuídos a uma língua ou dialeto, quando se passa de um contexto para outro,
notadamente do nacional para o local, ou do público para o privado, como verificado de
forma particularmente significativa na Córsega, com o francês e os dialetos da língua corsa
(Jaffe, 1999) e na Suíça de fala alemã, com o alemão padrão e as variedades do suíço-
alemão (Watts, 1999), por exemplo.

Quanto ao grau de visibilidade e relevância na produção de sentidos interacionais,


compare-se, por exemplo, a função estratégica da alternância de códigos na comunicação
entre bilíngües franco e anglo-canadenses descrita por Heller em contextos profissionais
(1994) e escolares (1998) e a ausência dessa função nas interações entre adolescentes
suíços de descendência italiana focalizados por Franceschini (1998). Segundo essa autora, a
justaposição de códigos (alemão e italiano) na fala bilíngüe desses adolescentes de Zurique
é um estilo que marca uma identidade de grupo, um modo de vida, e que é apreendido - e
aprendido também - como um só código, não sendo necessário ao falante ser igualmente
"competente" nas duas línguas de partida. No caso canadense, a alternância de códigos
exige diferentes tipos e graus de competência nas duas línguas. Nas situações estudadas,
Heller aponta a criação de uma "ambigüidade estratégica", necessária à negociação de
espaços e identidades, tidos como distintos e excludentes, e à minimização das tensões
entre os dois grupos etno-lingüísticos. No caso suíço, conforme afirma Franceschini, foi
justamente o afrouxamento das pressões sociopolíticas para manutenção das fronteiras entre
as línguas e as populações que permitiram o surgimento do "italo-schwyz" por ela
analisado. A valorização social do estilo de vida indexado por essa fala mista explica,
segundo a autora, o fato de falantes do grupo majoritário (de fala alemã) se apropriarem
desse estilo típico do grupo minoritário.

Outro exemplo interessante é o do uso de formas lingüísticas e paralingüísticas próprias de


línguas minoritárias e estigmatizadas, no caso o inglês asiático, o crioulo caribenho e o
panjabi, por adolescentes ingleses em interações multiculturais. Conforme mostra Rampton
(1995), esses usos não constituem um estilo misto do tipo do dos adolescentes suíços, mas
são apropriações localmente relevantes e relacionadas à suspensão de rotinas lingüísticas e
interacionais através do cruzamento (crossing) de fronteiras etno-lingüísticas muito bem
definidas. Tais apropriações não implicam a competência do falante na língua minoritária e
nem alinhamentos étnicos. O que é mais importante, segundo o autor, é que ora atualizam e
reforçam fronteiras étnicas e atitudes racistas, ora "desnaturalizam", questionam e deslocam
essas fronteiras e atitudes, criando possibilidades não previstas pela ordem socio-política e
lingüística dominante. Rampton enfatiza o caráter potencialmente transformador dessas
desestabilizações locais da dinâmica prevista pela ordem dominante.

Em termos gerais, conforme ilustram esses exemplos, a perspectiva


"interacional/interpretativa" tem mostrado que tanto a fronteira entre as línguas (ou
variedades de uma língua) quanto as relações entre elas, estabelecidas em nível macro,
podem ou não ser atualizadas no âmbito da interação, o que faz com que se tornem uma
questão em suspenso para o analista, não mais um pressuposto dado. Do mesmo modo,
buscar a coerência no comportamento do falante de modo a construir padrões válidos para o
grupo ou "comunidade de fala" deixa de ser o principal vetor da análise, sob pena de se
manterem fora de foco os alinhamentos e desalinhamentos com que opera localmente o
falante, e também a variação e a mudança no uso da(s) língua(s). Em consequência, a
questão da adequação metapragmática da fala bilíngüe deixa de estar atrelada à dos graus
de pureza/integridade ou prestígio das línguas e/ou variedades de partida e aos graus de
competência do falante no uso desses códigos separadamente.

Na verdade, conforme defende Alvarez-Cáccamo (1998), em seu estudo da alternância de


formas do galego-português e do espanhol, seria teoricamente produtiva uma redefinição do
constructo "código" de modo a melhor se descreverem tanto as situações em que as
fronteiras entre línguas e/ou variedades muito próximas têm relevância interacional, apesar
do número reduzido de traços descontínuos sinalizadores, quanto as situações em que essas
fronteiras não têm nenhuma visibilidade interacional, como em mixagens do tipo da "fala
galega em espanhol" por ele focalizada, ou ainda o estilo misto estudado por Franceschini
(op. cit.), por exemplo. A proposta do autor é a de não se confundirem as noções de
"código" e de língua ou variedade, compreendidas como material lingüístico de um mesmo
sistema estruturalmente definido.

Retomando a noção de "código comunicativo" da teoria jakobsoniana e associando-a à de


"pistas contextualizadoras", de Gumperz (1982), ele propõe que se associe a "código" a
função contextualizadora de intenções e identidades, função essa atuante nos processos de
codificação e de interpretação em curso na interação. Nesse sentido, códigos são conjuntos
correlacionados (conglomerados) de signos lingüísticos e não lingüísticos (sistemas
cinésicos e proxêmicos) (re) construídos pelos agentes interacionais, e também pelo
analista, em sua atividade de natureza inferencial, dinâmica e multi-processual de associar
intenções, interpretações e formas de linguagem. Assim compreendidos, os códigos são de
natureza retórica (e não lingüística), não têm realidade objetiva fora dos processos de
codificação/interpretação, são polissêmicos e operam em vários níveis de organização da
fala conversacional. São também históricos e dinâmicos, pois estão relacionados aos
repertórios lingüístico-discursivos individuais e, portanto, à distribuição dos recursos
lingüísticos e culturais na comunidade. Segundo Alvarez-Cáccamo, o conjunto de formas
do sistema de uma língua ou variedade são materiais interacionalmente organizados em
função de códigos comunicativos diversos e, portanto, associados com outros recursos,
inclusive com formas de outros sistemas lingüísticos, como no caso específico da interação
bilíngüe.

A ênfase no caráter contrastivo dos códigos comunicativos faz com que se abandone a idéia
de uma correspondência necessária entre a alternância, mistura ou fusão de línguas e/ou
variedades e a alternância, mistura ou fusão de códigos. Assim, em falas mistas, por
exemplo, nas quais as fronteiras entre as línguas e/ou variedades não têm visibilidade
interacional, não se produz, segundo Alvarez-Cáccamo (v. também Franceschini, op. cit.),
mudança de código. Por outro lado, uma única pista contextualizadora de natureza
lingüística (nível fonológico, morfossintático, léxico, conversacional) pode simbolizar toda
uma variedade socialmente reconhecida e produzir a alternância de código na interação. O
analista não tem, pois, como identificar essa alternância independentemente da dinâmica
interacional e da ação interpretativa dos falantes.

3.1 Polilinguismo numa mesma língua

Os resultados do estudo da comunicação bilíngüe na perspectiva acima descrita nos


parecem de grande interesse para uma reflexão sobre os processos mais gerais de
regulação/desregulamentação lingüística. Em primeiro lugar, porque nos dão elementos
teóricos e metodológicos para uma investigação de como esses processos tornam-se
empiricamente observáveis na dinâmica das interações individuais e de grupo, ou seja, em
nível sócio-pragmático e não só propriamente lingüístico. Assim, o escopo da análise vai
além da sobreposição de modelos e mapeamentos que situam a fala produzida em suas
características estruturais (identificação de "normas variáveis" reproduzidas localmente), e
o falante em suas condições socio-culturais e econômicas e suas posições socio-
comunicativas (identificação de posições individuais numa dada ecologia sociolingüística).

A perspectiva "interacional/interpretativa" permite a identificação de zonas intersticiais


relevantes, seja no campo do uso das formas lingüísticas, seja no campo das contruções
identitárias, como no caso da alternância, mistura ou fusão de formas associadas a códigos
comunicativos diversos, no sentido proposto por Alvarez-Cáccamo. E, o mais importante,
essa perspectiva permite que se verifique, conforme também assinala Franceschini (op.
cit.), que a justaposição de formas tidas como heterogêneas, e os processos de
reterritorialização (normalização) ou de desterritorialização (desregulamentação) daí
decorrentes não se dão apenas na/pela ação verbal de grupos socioculturalmente marginais
(jovens e artistas, por exemplo), ou marginalizados (classes baixas, por exemplo), ou
fortemente marcados por algum traço identificador (identidade de grupos minoritários, por
exemplo), e nem são necessariamente relacionadas à falta de competência do falante no uso
da forma adequada. Assim como os processos de estabilização das normas de uso não se
dão só na reprodução adequada, ou "correta" do que se apresenta como normal ou
normatizado, os de desestabilização não são apenas resultado de uma reprodução
equivocada, ou "incorreta" do que já se construiu como código comunicativo para o falante.
Nos termos propostos na introdução deste trabalho, a variação nos usos da língua é inerente
ao polilinguismo compreendido como o estado da língua em uso, em suas múltiplas
camadas de conglomerados de formas estratificadas, que tanto se sobrepõem, se mesclam,
se "contaminam" mutuamente, quanto se contrastam, se separam e se redefinem
continuamente na/pela ação verbal dos falantes.

Enquanto recurso do usuário da língua, o polilinguismo se verifica por um lado nos


múltiplos códigos comunicativos pré-existentes e interpretáveis (no sentido de produtores
de sentido) pelo falante num dado tempo e lugar e, por outro, no resultado das ações verbais
de reprodução, reconfiguração e recombinação desses códigos pelo falante em situações e
eventos interacionais específicos. Nesse sentido é que se pode dizer, por exemplo, que
tanto o camelô que combina postura, intonação e algumas estruturas típicas da fala de
locutores de rádio em sua tentativa de chamar a atenção e vender, quanto o universitário
que combina esses mesmos recursos para introduzir na narrativa oral o personagem de um
locutor de rádio ou um elemento contextual relevante na estória, estão fazendo igualmente
uso do polilinguismo. Uma questão em aberto é se efeitos de verossimilhança e
legitimação, ou ironia e deslegitimação, por exemplo, se verificam localmente nas
interações onde se dão essas falas. Em função do interlocutor e da ação verbal em curso,
tanto a fala de um quanto a fala do outro podem parecer mais ou menos coerentes,
adequadas e criativas; ou mais ou menos inconsistentes, inadequadas e caricaturais, por
exemplo.

Outra questão em aberto é se a combinação desses recursos na fala de cada um produziu,


para o interlocutor na interação focalizada, o efeito contrastivo da mudança de código. No
caso da fala do camelô, por exemplo, não basta ao analista identificar eventuais traços de
duas "normas variáveis" diferentes nas formas emprestadas ao estilo radiofônico e no
restante da fala produzida, pois essa diferença pode não ser visível e, portanto, não
significativa na interação. A não ser que se mantenha fora do foco de análise toda
construção mista, no sentido descrito na seção anterior, ou seja, toda justaposição de
heterogeneidades tidas como incompatíveis ou excludentes na ordem lingüística das
variedades da língua e suas normas de uso. Da mesma forma, se na fala do universitário não
são identificados traços lingüísticos diferenciadores da fala do locutor de rádio em relação à
fala do narrador da estória, esse não contraste pode não ser visível na interação e outros
traços, como os paralingüísticos, podem produzir a mudança de código e os efeitos de
sentido a ela relacionados, no caso a contextualização de um estilo radiofônico em contraste
com o estilo do narrador. Como bem lembra Rampton (1995), são as estilizações midiáticas
e as performances artísticas que melhor exibem e exploram os efeitos de sentido produzidos
pela alternância de códigos, inclusive os de desnaturalização e de crítica da ordem social.

O foco no que chamamos micro-política interacional evidencia, portanto, as relações entre a


variação no uso das formas lingüísticas, a variação na interpretação/recontextualização
dessas formas por diferentes agentes sociais, inclusive o analista, e a variação nas zonas de
influência dos "centros de poder", de que falam Deleuze & Guattari, "insuflando o que pode
ser dito e o que não pode ser dito", notadamente os de base institucional. E é nas relações
entre esses três aspectos que se verificam as convergências, as contradições e os conflitos
entre processos socioculturais e políticos mais amplos e processos locais de
construção/descontrução da realidade sociolingüística. Conforme ilustram os estudos do
bilinguismo citados na seção anterior, os processos de normatização e de
construção/manutenção de fronteiras entre formas e domínios de uso da língua, controlados
pelos "centros de poder" de base institucional, exercem maior ou menor pressão sobre o
falante num dado tempo e lugar, mas estão sempre compondo (em oposição a
determinando) as condições locais de regulação ou calibragem no uso da língua e de
interpretação/avaliação do que está sendo dito.

No que se refere às formas de pressão sobre o falante, quanto mais forte a "cultura de
padronização", nos termos de Silverstein (1996), maior a polarização diglóssica entre
domínios de uso e funções, e entre formas e códigos comunicativos (sobre essa polarização
na escrita, ver também Signorini, 1999 e 2001b); em consequência, maior é a "perturbação"
trazida pelo polilinguismo à ordem lingüística assim estabelecida. Mas, conforme também
ilustram os estudos do bilinguismo, acima referidos, e da urbanização de dialetos rurais
numa cidade satélite de Brasília (Bortoni-Ricardo, 1985), as metapragmáticas
institucionalizadas, isto é, os metadiscursos hegemônicos sobre o certo e o errado no uso da
língua, são conhecidos e interpretados diferentemente em função das redes sociais em que
transita o falante, o que faz com que não componham sempre da mesma forma os processos
locais de regulação/desregulamentação lingüística. Nesse sentido é que se pode dizer que
são mecanismos extremamente eficazes na manutenção e naturalização de fronteiras
socioculturais e políticas de controle do acesso individual aos repertórios lingüístico-
discursivos valorizados, mas não são suficientes para padronizar os usos da língua. Dito de
outra forma, tais metadiscursos são instrumentos políticos de estruturação do campo
sociocultural (hierarquização e legitimação de uma dada ordem sociolingüística) e não
propriamente de unificação da língua. E essa é a falácia embutida nos discursos sobre
normatização comprometidos com o que chamamos "problemática da língua nacional".

4. Considerações finais

Neste trabalho nos propusemos a reunir elementos para uma teoria da desregulamentação
lingüística na comunicação social. Definimos a desregulamentação como efeito da variação
em três níveis interrelacionados: o dos usos da língua em códigos comunicativos diversos,
o da contextualização/interpretação desses usos, e o dos modos de incidência da
normatização nos dois níveis anteriores. Através da noção de polilinguismo numa mesma
língua, relacionamos a desregulamentação assim compreendida aos processos de
alternância, mistura e fusão de códigos, verificados na fala bilíngüe pela sociolingüística
"interacional/interpretativa", e aos processos de alternância, mistura e fusão de formas
emprestadas a códigos comunicativos diversos e heterogêneos em produções monolíngües.
A hipótese que sustenta a relação entre esses processos é a do polilinguismo como estado
da língua e recurso do falante, ou seja, a da não unicidade da língua e da cultura e a do
caráter processual e contingente das ações do falante na comunicação. Defendemos a idéia
de que o foco na desregulamentação lingüística a partir de um quadro conceitual não
comprometido com o que denominamos problemática da língua nacional pode contribuir
para uma melhor compreensão do "miúdo recruzado"8 de que são realmente feitos os usos
da língua.

Do ponto de vista metodológico, esse enfoque vai exigir do analista a articulação e o


refinamento de instrumentos de análise conversacional e contextual etnográfica com vistas
à identificação e análise dos processos e convenções de (re) contextualização de materiais
lingüísticos e paralingüísticos relevantes na interação. Isso porque o estudo de aspectos
fonológicos, sintáticos e semânticos das frases e expressões efetivamente produzidas pelos
falantes na interação é uma condição necessária mas não suficiente para a abordagem de
tais processos e convenções, notadamente quando se quer estar atento para a alternância,
mistura e fusão de formas e seus efeitos na produção de sentidos para os falantes na
situação focalizada.

5. Referências bibliográficas

8
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