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Este artigo tem como principal objetivo focalizar a questão da variação lingüística num
quadro conceitual não comprometido com o projeto político-ideológico de
construção/consolidação ou "defesa" de uma língua nacional, qual seja, o de "integrar a
variação sempre respeitando uma norma unificadora", nos termos de Corbeil ([1983]
2001:201; ênfase nossa). Dito de outra forma, ao invés de focalizar "os princípios
dinâmicos da regulação lingüística" que buscam garantir a estabilidade da língua frente à
potência desagregadora da variação, interessa-nos focalizar os princípios dinâmicos de
desregulamentação de uma dada ordem lingüística, os quais garantem a flexibilidade e a
complexidade dos usos da língua num dado tempo e lugar.
Este artigo faz parte do Projeto "Estudo da apropriação metapragmática da língua por
atores sociais atuando como intermediários em relações de poder. Implicações para a teoria
lingüística", apoiado pela CAPES (processo no. 0524-01-8). Agradeço a Marcos Bagno e
Aldir S. Paula os comentários feitos a uma versão anterior. O conteúdo do artigo é, porém,
de minha inteira responsabilidade.
Não se trata, pois, de negar a existência e muito menos a importância de mecanismos
reguladores nos usos da língua e, consequentemente, nos processos de configuração e
desconfiguração do que é dado/visto/tido como (in)comum, (in)desejável, (i)legítimo,
(in)correto, etc. O foco na desregulamentação permite justamente melhor compreender de
que modo tais mecanismos de controle compõem esses processos de configuração e de
desconfiguração, sem contudo assegurar-lhes uma direção única, ou um desenho preciso,
no sentido de controlável. E esse descontrole, ou "desregramento", como quer Mey (2001:
32), da língua em uso, só pode ser contemplado teoricamente quando ao indeterminado, ao
incerto, ao inacabado, ao processual enfim, se atribuir um estatuto de não resíduo.
Nesse sentido, uma figura que privilegie o movimento em eixos múltiplos e a não
linearidade (em contraposição à representação num contínuo) é mais condizente que a da
tapeçaria. A descrição abaixo, proposta por Deleuze e Guattari, tem o mérito justamente de
realçar essa diferença:
Mesmo única, uma língua ainda é uma efervescência, uma mistura esquizofrênica,
uma roupagem de Arlequim com a qual se realizam funções de linguagem muito
diferentes e se efetivam centros de poder distintos, insuflando o que pode ser dito e
o que não pode ser dito: se fará jogar uma função contra outra, se farão valer os
coeficientes relativos de territorialidade e de desterritorialização. (1975: 48-49;
tradução nossa)
Nessa descrição, além do movimento sugerido pela analogia com a turbulência de uma
fervura, há três outras referências de interesse para a discussão na perspectiva aqui
apresentada. A primeira delas é a referência a uma heterogeneidade variada e difusa ("uma
roupagem de Arlequin"), não necessariamente harmônica, ou racionalmente estruturada
("uma mistura esquizofrênica"), mas fundamental na economia de funcionamento da língua
("com a qual se realizam funções de linguagem muito diferentes e se efetivam centros de
poder distintos"). A segunda referência é a das normas de uso lingüístico, sejam elas
implícitas ou explícitas, de natureza propriamente lingüística ou ideológica, de caráter
institucional ou não ("insuflando o que pode ser dito e o que não pode ser dito"). A terceira
e última referência é a da ação, ou trabalho, do falante/escrevente "jogando" com as
coerções e os recursos daí advindos: deslocamento e embaralhamento de funções,
tensionamento das relações dadas entre formas e sentidos (fazer valer "os coeficientes
relativos de territorialidade e de desterritorialização"). E para ser criativo, esse jogo deve,
segundo os mesmos autores, tensionar, subverter justamente o que se apresenta no uso da
língua como já dado, uno e homogêneo: "Fazer uso do polilinguismo em sua própria
língua"; "Estar em sua própria língua como um estrangeiro" (p. 49).
2. Língua e nação
de diferenças entre as línguas. São várias as ações de grande impacto empreendidas pelas
políticas lingüísticas de cada movimento, com destaque para a adoção de um alfabeto não
romano para o croata (cirílico) e a arabização e turquização do bósnio. Para que se avalie
melhor a dimensão político-ideológica dessas ações, independentemente de estarem ou não
baseadas em estudos históricos e científicos sobre as línguas em questão, é preciso lembrar
que os falantes das três línguas até recentemente vinham sendo convencidos de que falavam
uma mesma língua, com suas variações.
de um mero conjunto de pressões externas às construções sociais com e sobre a língua, mas
de catalisadores na articulação dessas construções, inclusive as científicas.
Tais eixos, já amplamente descritos pela literatura sobre os movimentos nacionalistas desde
a revolução francesa e a criação dos estados-nação europeus (Hobsbawm, E. (1990);
Balibar, 1987; 1991) até a explosão dos movimentos etno-lingüísticos da segunda metade
desde século (Blommaert, J. & Verschueren, J. (1992), Garde, 1996, Sériot, 1997; Heller
1998, Jaffe 1999; entre outros), estão ancorados na premissa geral de uma correspondência
necessária, ou desejável, entre unidades sobrepostas: uma nação, uma comunidade etno-
lingüística e um território. Essa premissa geral faz com que diferentes agendas nacionalistas
do passado e do presente tenham um vetor estratégico fundamental comum, que é o de
tornar visível a unidade da nação, da comunidade e do território e, ao mesmo tempo, fazer
coincidir essas três "realidades".
A contribuição dos estudos lingüísticos sempre foi e continua sendo crucial para os
processos de estabilização, legitimação e controle das línguas nacionais, seja através do
recorte e descrição de um corpus língüístico de referência para o "nacional" na língua, seja
através da elaboração de metalinguagens e teorias que descrevem e explicam o lingüístico e
seu funcionamento, seja através da elaboração de artefatos que dão visibilidade à língua
enquanto objeto, tais como gramáticas, manuais, dicionários e atlas lingüísticos, por
exemplo. São contribuições inevitavelmente atravessadas (em oposição a influenciadas) por
processos sociais e políticos de luta pela inclusão/exclusão de formas e sentidos, bem como
por confrontos ideológicos e políticos entre os diferentes grupos e instituições que disputam
o controle dos processos constantemente renovados de (re)definição da língua nacional.
Conforme também assinala Thomas, o purismo enquanto "ideologia lingüística que procura
inculcar um conjunto específico de atitudes (ou uma certa consciência lingüística) e um
código específico de comportamento lingüístico numa dada comunidade de fala e sua
descendência futura" (p. 190), passou, então, a ser contemplado pela teoria lingüística como
ingrediente necessário à construção/manutenção de uma língua de prestígio, só que numa
acepção fraca: o purismo controlado por atitudes racionais associadas a valores como
"universalidade, liberdade, e tolerância" (p. 37). Essa mesma idéia de um purismo
racionalmente controlado passou a integrar, segundo o autor, os estudos sociolingüísticos
interessados em ações direcionadas para o cultivo, ou o "desenvolvimento" da língua: "se
se define o planejamento lingüístico como uma intervenção racional, objetiva e organizada
na língua e nas situações sociais nas quais ela funciona, não é difícil ver de que forma o
purismo pode participar disso" (p. 215).
Como produto e veículo da cultura assim compreendida, a língua também é vista de forma
unificada, autônoma e dispondo de coesão interna, sendo compartilhada pelos falantes da
comunidade (a "competência partilhada", de que fala Rey ([1972] 2001: 130) ), mantendo-
se no tempo, independentemente de ser objetivada ou não na escrita. Quando informada
pela sociolingüística interacional (Gumperz 1982; 1996) e pela etnografia (Hymes, 1972), a
antropologia lingüística focaliza mais detidamente a interação social, e vê a língua
simultaneamente como recurso, ou ferramenta herdada/adquirida, e como produto das
práticas interacionais de uma "comunidade de fala", a qual, como lembra Duranti, tanto é
real quanto imaginária e "cujas fronteiras estão constantemente sendo refeitas e negociadas
através de uma miríade de atos de fala" (1997: 6). Nessa perspectiva, é realçado o caráter
dinâmico dos processos sociolingüísticos que garantem a unidade, autonomia e visibilidade
da cultura, da comunidade e da língua como realidades sobrepostas.
a descritiva (de "tipo lingüístico", geralmente relativa a "uma única e mesma variedade") e
a comercial (sujeita a "pressões comerciais") (p.193-194).
4
Por "cultura de padronização", Silverstein se refere aos processos e atitudes relacionados à
padronização lingüística como "mania de correção" que atravessa, segundo já apontava
Drake (1977) algumas décadas antes, a história da integração nacional americana do século
passado e que, neste século, tem se revelado como um fenômeno "persistente e disseminado
no pensamento lingüístico de cidadãos educados e inteligentes dos Estados Unidos" (Drake,
1977: v).
5
Relacionando essa crença da comunidade lingüística à existência de instituições
hegemônicas que estabelecem e mantêem certas práticas lingüísticas valorizadas e toda a
"parafernália" padronizante correspondente, como é o caso das instituições que controlam a
produção e circulação de comunicações lingüísticas modelares, sobretudo escritas,
Silverstein (a partir de Bourdieu) aponta alguns aspectos da "cultura de padronização" que
acreditamos serem comuns a diferentes contextos contemporâneos, ou seja, não restritos ao
visibilidade da norma que garante a da língua, a da comunidade e a do falante na
comunidade, não a modulação e nem o enxerto.
Em sua discussão das "opacidades e ambigüidades ligadas aos termos 'língua' e 'dialeto'",
Haugen ([1966] 2001; referindo-se a Bloomfield) chama a atenção para a natureza relativa
da distinção entre língua e dialeto e para as diferenças de perspectiva na definição desses
constructos pela teoria lingüística. Essas diferenças são agrupadas em função de duas
metáforas não compatíveis, segundo ele: a das "partículas", isto é, estruturas unitárias ou
unificadas com fronteiras definidas; e a das "ondas", isto é, conjuntos de estruturas
parcialmente superpostas sem fronteiras definidas. Aponta três inconvenientes para o
estudo da língua segundo o modelo das partículas, apesar de suas vantagens na "produção
de uma descrição exaustiva e consistente": não contempla "uma grande quantidade de
inconsistências dentro da fala de qualquer informante", a comunicação entre usuários de
códigos diferentes, e nem a indefinição das fronteiras entre as línguas (p.103). Com relação
ao último inconveniente, o autor afirma o seguinte: "ainda não existe nenhum cálculo que
nos permita descrever as diferenças entre as línguas de modo coerente e teoricamente
válido" (p.103).
Para evitar incongruências nos estudos construídos em função da partícula como unidade de
análise, sugere uma divisão do trabalho de descrição lingüística: aos lingüistas a tarefa de
estudar as diferenças estruturais, ou seja, referentes à "língua em si", na definição dessas
unidades, portanto, na definição de constructos como língua e dialeto, por exemplo; aos
sociolinguistas a tarefa de estudar as diferenças funcionais, ou seja, referentes ao uso da
língua na comunicação social em sentido amplo. Assim, a sociolingüística, segundo esse
contexto americano por ele focalizado. São eles: 1) o caráter hegemônico, explicitamente
reconhecido, dessas instituições na definição do padrão lingüístico da comunidade; 2) a
função, adquirida pelo padrão lingüístico, de "emblema unificador" do estado-nação, de
expressão cultural da nacionalidade; 3) a função, adquirida pelo padrão lingüístico, de
instrumento neutro e objetivo de dimensionamento de todos os usos lingüísticos existentes
na comunidade, inclusive os que envolvem outras línguas; 4) a produção constante de uma
"retórica de naturalização" da "cultura de padronização" que racionaliza os processos de
padronização e a realidade sociolingüística decorrente (a padronização como um processo
natural e necessário na evolução da língua e dos falantes; a apropriação do padrão como via
de emancipação profissional, pessoal e até psicológica; o acesso individual ao padrão como
gradual, livre e direto, ou seja, não sujeito a entraves de natureza sócio-política; a
experiência do déficit lingüístico como perturbação remediável); 5) a função icônica
adquirida pelas formas padronizadas (código pragmático do "como" interagir socialmente)
e a consequente mercantilização (commoditization) do padrão e de formas padronizadas de
expressão, como indexicalizadores de identidades socio-econômicas e de valores pessoais:
mercadorias à disposição de todos e de qualquer um (igualdade de condições dos
consumidores cidadãos) no comércio de bens e serviços controlado por experts e sujeito às
leis de mercado); 6) o surgimento do mercado como um novo agente hegemônico de
controle sobre o padrão e a padronização.
autor, vai definir língua e dialeto enquanto unidades funcionalmente hierarquizadas - um
dialeto é uma língua "subdesenvolvida" (p. 104) - no contexto da sociedade nacional
apreendida globalmente em sua coesão sociocultural e lingüística. E essa coesão é expressa
pela ordem funcionalmente convergente dos processos de regulação/normatização e
avaliação dos vernaculares (os dialetos) e do veicular a eles sobreposto (a língua nacional).
Transposta para o contexto nacional, está, pois, a noção laboviana clássica de uma
"comunidade de fala", socialmente e linguisticamente estratificada, mas unificada por um
conjunto de normas compartilhadas de avaliação do desempenho lingüístico.
6
Auer (1998c) propõe três modos prototípicos de justaposição de línguas e/ou variedades
na fala bilíngüe, os quais balizariam um contínuo de fenômenos resultantes do contato entre
línguas. Tal contínuo representaria um processo mais amplo de sedimentação estrutural ou
gramaticalização, isto é, de transformação estrutural das formas resultantes do contato
lingüístico. Nos dois extremos desse contínuo estariam o uso alternado de códigos (code-
switching) e a fusão lingüística (fused lects), sendo que no meio, como uma categoria
intermediária, estaria a mixagem (language mixing). Haveria uso alternado de códigos,
segundo o autor, quando a justaposição das línguas e/ou variedades fosse interacionalmente
saliente e relevante; haveria mixagem quando a fronteira entre elas só fosse significativa
para os falantes em nível mais global, e não em nível interacional local; e haveria fusão em
caso de estabilização de variedades mistas. Na passagem da mixagem para a fusão haveria
redução da variação e progressiva normatização de regularidades estruturais. Não há
obrigatoriedade no desenvolvimento de todo o processo, pois, segundo o autor, em
diferentes comunidades bilïngües verificam-se estabilizações em diferentes pontos do
contínuo. Um aspecto relevante nessa abordagem, e que a diferencia de outras centradas na
estrutura lingüística, é que o sentido interacional da justaposição de códigos é um
parâmetro fundamental a ser considerado pelo analista.
7
Essa questão também foi levantada por LePage & Tabouret-Keller (1985), em seu estudo
sobre língua crioula e identidade étnica. No caso dos contextos caribenhos focalizados por
esses autores, nem todos os falantes são orientados por um padrão único de prestígio e nem
compartilham normas consistentes de avaliação de variantes lingüísticas, o que invalida
critérios tradicionais de classificação desses falantes em macro-categorias discretas como as
de agrupamento dialetal, geográfico, socio-econômico, étnico, etc. Convencidos da
importância do modo de percepção da língua e da comunicação pelo falante, de suas
motivações e estratégias de identificação e de desidentificação, os autores enfatizam nesse
estudo a construção de novas etnicidades na comunicação social.
Segundo esses modelos, toda mistura de códigos é sempre um fenômeno periférico no
conjunto dos usos "normais" da língua, da mesma forma que o comportamento lingüístico
do falante que mistura os códigos é sempre anômalo em relação aos comportamentos
"normais" de falantes "competentes" em cada uma das línguas envolvidas. No estudo de
formas misturadas, cabe ao analista recuperar as fronteiras, separar e identificar as partes
(identificar a "língua da interação" ou o(s) "substrato(s)" de referência, por exemplo),
verificar as leis gerais que regem a mistura (identificar os condicionadores sintáticos da
mudança de código, por exemplo), e situar o falante e sua fala numa ordem sociolingüística
dada, organizada em maior ou menor grau por uma "lógica diglóssica" (Jaffe, 1999: 30), ou
seja, por uma polarização de domínios e critérios de uso da língua (dicotomias do tipo
padrão/não padrão, culto/não culto, dialeto/pidgin, por exemplo). Tal polarização é típica
da "cultura de padronização", acima descrita.
O que é mostrado nesses estudos é que a mistura de códigos tem caráter histórico e
dinâmico, pois se dá no micro-contexto interacional mas está relacionada à distribuição dos
recursos linguísticos na comunidade (as redes de que falam Gumperz & Levinson), ou seja,
à existência de fronteiras socioculturais e políticas que determinam os repertórios
lingüístico-discursivos individuais e que tanto podem ser ratificadas quanto embaralhadas
localmente na interação. Está também relacionada às construções identitárias (étnicas, de
gênero, de idade, etc) em relação às quais se situam os participantes da interação. Nesse
sentido é que se pode dizer que a macro-política das línguas e populações em contato
(relações hegemônicas, de dominação, de concorrência, etc) também vai estar indexada na
micro-política interacional, mas de forma opaca e complexa. Nesse sentido, a questão que
se coloca para o analista, segundo Heller (2001: 139), é a de focalizar "processos locais
empiricamente observáveis" e, ao mesmo tempo, buscar uma "narrativa mais ampla na qual
as práticas lingüísticas são compreendidas enquanto processos políticos e elementos
estruturadores [da realidade social]".
A ênfase no caráter contrastivo dos códigos comunicativos faz com que se abandone a idéia
de uma correspondência necessária entre a alternância, mistura ou fusão de línguas e/ou
variedades e a alternância, mistura ou fusão de códigos. Assim, em falas mistas, por
exemplo, nas quais as fronteiras entre as línguas e/ou variedades não têm visibilidade
interacional, não se produz, segundo Alvarez-Cáccamo (v. também Franceschini, op. cit.),
mudança de código. Por outro lado, uma única pista contextualizadora de natureza
lingüística (nível fonológico, morfossintático, léxico, conversacional) pode simbolizar toda
uma variedade socialmente reconhecida e produzir a alternância de código na interação. O
analista não tem, pois, como identificar essa alternância independentemente da dinâmica
interacional e da ação interpretativa dos falantes.
No que se refere às formas de pressão sobre o falante, quanto mais forte a "cultura de
padronização", nos termos de Silverstein (1996), maior a polarização diglóssica entre
domínios de uso e funções, e entre formas e códigos comunicativos (sobre essa polarização
na escrita, ver também Signorini, 1999 e 2001b); em consequência, maior é a "perturbação"
trazida pelo polilinguismo à ordem lingüística assim estabelecida. Mas, conforme também
ilustram os estudos do bilinguismo, acima referidos, e da urbanização de dialetos rurais
numa cidade satélite de Brasília (Bortoni-Ricardo, 1985), as metapragmáticas
institucionalizadas, isto é, os metadiscursos hegemônicos sobre o certo e o errado no uso da
língua, são conhecidos e interpretados diferentemente em função das redes sociais em que
transita o falante, o que faz com que não componham sempre da mesma forma os processos
locais de regulação/desregulamentação lingüística. Nesse sentido é que se pode dizer que
são mecanismos extremamente eficazes na manutenção e naturalização de fronteiras
socioculturais e políticas de controle do acesso individual aos repertórios lingüístico-
discursivos valorizados, mas não são suficientes para padronizar os usos da língua. Dito de
outra forma, tais metadiscursos são instrumentos políticos de estruturação do campo
sociocultural (hierarquização e legitimação de uma dada ordem sociolingüística) e não
propriamente de unificação da língua. E essa é a falácia embutida nos discursos sobre
normatização comprometidos com o que chamamos "problemática da língua nacional".
4. Considerações finais
Neste trabalho nos propusemos a reunir elementos para uma teoria da desregulamentação
lingüística na comunicação social. Definimos a desregulamentação como efeito da variação
em três níveis interrelacionados: o dos usos da língua em códigos comunicativos diversos,
o da contextualização/interpretação desses usos, e o dos modos de incidência da
normatização nos dois níveis anteriores. Através da noção de polilinguismo numa mesma
língua, relacionamos a desregulamentação assim compreendida aos processos de
alternância, mistura e fusão de códigos, verificados na fala bilíngüe pela sociolingüística
"interacional/interpretativa", e aos processos de alternância, mistura e fusão de formas
emprestadas a códigos comunicativos diversos e heterogêneos em produções monolíngües.
A hipótese que sustenta a relação entre esses processos é a do polilinguismo como estado
da língua e recurso do falante, ou seja, a da não unicidade da língua e da cultura e a do
caráter processual e contingente das ações do falante na comunicação. Defendemos a idéia
de que o foco na desregulamentação lingüística a partir de um quadro conceitual não
comprometido com o que denominamos problemática da língua nacional pode contribuir
para uma melhor compreensão do "miúdo recruzado"8 de que são realmente feitos os usos
da língua.
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