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MUNDOS

IMAGINADOS

FREEMAN DYSON








MUNDOS IMAGINADOS
Conferências Jerusalém—Harvard



Tradução
CLÁUDIO WEBER ABRAMO



1ª reimpressão


















Companhia Das Letras



Copyright © 1997 by President and Fellows of Harvard College
Patrocinado pela Universidade Hebraica de Jerusalém
e pela Harvard University Press

Título original
Imagined worlds

Capa
Ângelo Venosa

Índice remissivo
Maria Cláudia Carvalho Mattos

Preparação
Célia Regina Rodrigues de Lima

Revisão
Ana Maria Alvares '
Isabel Jorge Cury

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dyson, Freeman J.
Mundos imaginados: conferências Jerusalém-Harvard/Freeman Dyson; tradução Cláudio Weber
Abramo. — São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Título original: Imagined worlds
Patrocinado pela Universidade Hebraica de Jerusalém e pela Harvard University Press.
Bibliografia.
ISBN 85-7164-831-x
1. Ciência - Filosofia 2. Ciência - História 3. Palestras e conferências norte-americanas i. Título.

98-4606 CDD-081

Índice para catálogo sistemático
1. Conferências norte-americanas 081


2002

Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, Cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone: (11) 3167-0801
Fax:(11)3167-0814
www.companhiadasletras.com.br

SUMARIO







Agradecimentos

Introdução

1. Histórias
2. Ciência
3. Tecnologia
4. Evolução
5. Ética

Notas bibliográficas

Índice remissivo


AGRADECIMENTOS


Este livro desenvolveu-se a partir de uma série de conferências proferidas
em maio de 1995 na Universidade Hebraica de Jerusalém, patrocinadas
conjuntamente pela Universidade Hebraica e pela Harvard University Press. Sou
grato a ambas as instituições por sua generosa hospitalidade e apoio. Agradeço
especialmente a meus anfitriões, Hanoch Gutfreund, então reitor da
Universidade Hebraica, e Dorothy Harman, representante da Harvard University
Press em Jerusalém. Sou também devedor de Michael Fisher, Susan Wallace
Boehmer e Ann Downer-Hazell, meus editores na Harvard University Press, por
sua ajuda e encorajamento na transformação das conferências em livro.
Quinze anos atrás, minha amiga June Goodfield publicou Um mundo
imaginado, a história real de uma mulher notável que combinara as vocações de
poeta e de pesquisadora médica. O livro de June Goodfield e o meu nada têm em
comum além do título. Nossos títulos são adaptados a nossos temas, pois o dela é
singular, enquanto o meu é plural.
Outubro de 1996

INTRODUÇÃO


Onkel Bruno era tio de minha mulher, um médico de família que vivia
numa grande casa em uma aldeia alemã. A casa, ele herdara do pai juntamente
com a clientela, e nela permaneceu por toda a vida. Durante esse tempo, a
Alemanha foi governada por potentados de muitas colorações, imperiais,
republicanos, nacional-socialistas e comunistas. Como o pároco de Bray, (The
vicar of Bray: balada de autoria desconhecida datada do início do século XVIII que descreve a estratégia de
sobrevivência eclesiástica do pároco da aldeia de Bray [à margem do rio Tâmisa]: mudar de credo conforme
as exigências de cada momento - N. T.), Onkel Bruno fazia sua paz com quem estivesse
no poder e seguia com sua profissão. Visitei-o em casa, já perto do fim de sua
vida, quando era cidadão da República Democrática Alemã. Não exprimia
qualquer entusiasmo pela sociedade comunista na qual vivia, mas era grato aos
comunistas por deixá-lo em paz.
Sua casa, e o magnífico jardim em que ficava, eram o orgulho e a alegria
de seus últimos anos. Ao admirar o grande carvalho que se erguia diante da casa,
Onkel Bruno disse, em tom rotineiro: “Tenho que derrubar essa árvore; já passou
do tempo”. Até onde pude perceber, a árvore aparentava boa saúde e não
mostrava sinais de colapso iminente. Perguntei-lhe como tinha coragem de
derrubá-la. Ele respondeu: “É por causa dos netos. Essa árvore vai sobreviver a
mim, mas não a eles. Vou plantar uma árvore que eles possam aproveitar quando
forem tão velhos como sou hoje”. Ele esperava que os netos herdassem o
consultório e vivessem suas vidas naquela casa. Era assim que as coisas
funcionavam no mundo que conhecia. Vivia-se para os filhos e para os netos. Os
horizontes eram distantes, e era normal e natural antecipar cem anos no futuro, o
tempo que um carvalho demora para crescer.
Quando eu estudava em Cambridge, Inglaterra, minha faculdade tomou
uma decisão parecida. A estrada que chegava ao Trinity College, beirando o rio,
atravessava uma magnífica alameda de olmos, plantada no século XVIII. Os
olmos ainda eram belíssimos, mas já declinavam. Da mesma forma que Onkel
Bruno, a faculdade decidiu sacrificar o presente em nome do futuro. A alameda
foi derrubada e substituída por duas fileiras de mudas magricelas. Hoje,
cinquenta anos depois, as mudas atingem a maturidade. A alameda recuperou
sua beleza e atingirá sua plenitude ao longo do século XXI. O Trinity College
tem sido um importante centro de conhecimento desde sua fundação, no século
XVI, e pretende continuar a sê-lo no século XXI.
Em outubro de 1995, assisti a um evento organizado na Eslovênia por
minha filha, o Fórum High-Tech Leste-Oeste. Seu objetivo era promover o
encontro e a troca de ideias entre líderes dos setores de computadores e de
software do Ocidente e do Oriente. Muitos vinham da Rússia e da Europa
oriental, um número igual dos Estados Unidos e da Europa ocidental. Todos
eram prósperos e esperavam melhorar ainda mais. Viajavam pela pista da
esquerda. Os orientais representavam a nova estirpe de empresários surgidos das
cinzas das velhas sociedades comunistas; os ocidentais, empresas progressistas
que entravam nos recém-abertos mercados orientais. Os dois lados
compartilhavam certos pressupostos básicos: acreditavam estar na crista da onda
da história; acreditavam que a vitória da economia de livre-mercado seria
inevitável e que ajudavam a promovê-la; e seus horizontes eram estreitos.
No mundo da informação, ao qual pertencem, cinco anos é um longo
tempo; fortunas se fazem e se perdem em um ou dois anos. Não tem sentido
elaborar planos que vão além de cinco anos, pois o crescimento da tecnologia da
informação é imprevisível e o funcionamento do mercado livre ainda mais
imprevisível. Aqueles jovens capitalistas haviam crescido num mundo de
fracassados planos socialistas de longo prazo, e não viam méritos em qualquer
tipo de planejamento de longo prazo. Nas discussões a que assisti, o século XXI
mal foi mencionado.
Parece que o mundo moderno vem se tornando crescentemente míope
nos últimos tempos, como se o colapso das economias socialistas e as vitórias do
livre-mercado tivessem tornado ilusórias as visões futuras de longo prazo. As
vozes de Onkel Bruno e do Trinity College, tentando preservar pequenas ilhas de
beleza natural para nossos netos, parecem vir do passado, mal audíveis em meio
aos ventos cada vez mais intensos da mudança. Em nossa época, o debate
público é principalmente uma discussão entre economistas do livre-mercado e
conservacionistas, estes tentando preservar o passado, os economistas a
desvalorizar o futuro a uma taxa de desconto de 7% ao ano. Nenhum dos lados
fala em nome do futuro.
Na Idade Moderna, quem alimenta sonhos que vão além do tempo de
vida de nossos netos? Duas vozes falam pelo futuro, a voz da ciência e a voz da
religião. A ciência e a religião são dois grandes empreendimentos humanos, que
perduram ao longo dos séculos e nos ligam a nossos descendentes. Sou um
cientista e, ao tentar neste livro olhar para o futuro, falo com a voz da ciência.
Descrevo o passado e o futuro conforme o ponto de vista científico que me é
familiar. Mas não afirmo que a voz da ciência fale com uma autoridade singular
e única. A religião tem, no mínimo, autoridade igual na definição do destino
humano. A religião fica mais próxima do coração da natureza humana, e tem
mais penetração do que a ciência. Como a natureza humana, a qual reflete, a
religião é muitas vezes cruel e pervertida. Nas ocasiões em que a ciência atingiu
poder igual ao poder da religião, também ela tornou-se cruel e pervertida.
O poeta W. H. Auden, que era cristão, escreveu sobre a importância do
cristianismo para o nascimento da literatura moderna, no fim da Antiguidade:
“Pode-se gostar ou desgostar do cristianismo, mas ninguém pode negar que o
cristianismo e a Bíblia ergueram a literatura ocidental de entre os mortos. Uma
fé que se sustentava sobre o Filho de Deus nascido numa manjedoura, que se
associava a pessoas humildes em uma província desimportante, morrera a morte
de um escravo, e que o fizera para redimir todos os homens, ricos e pobres,
livres e escravos, cidadãos e bárbaros, exigia uma forma completamente nova de
encarar o ser humano; se todos são filhos de Deus e igualmente aptos à salvação,
então todos, independentemente da posição ou do talento, do vício ou da virtude,
merecem a atenção séria do poeta, do escritor e do historiador”.
Com isso, Auden argumentou solidamente em prol do impacto da
religião sobre nossa auto-imagem. Em outro lugar, argumentou de modo
igualmente convincente em favor da importância da ciência: “Como organismos
biológicos feitos de matéria, somos sujeitos às leis da física e da biologia; como
pessoas conscientes, que criam nossa própria história, somos livres para decidir
como essa história deve ser. Sem a ciência não teríamos noção de igualdade; sem
a arte, nenhuma ideia da liberdade”.
Em culturas fora da Europa, outras religiões que não o cristianismo
foram importantes para o desenvolvimento da civilização. Em toda parte, a
religião e a ética associam-se fortemente. A ligação entre a ética e a ciência é um
dos temas principais deste livro. Podemos talvez ter esperanças de que, no
futuro, grupos de cidadãos unidos por preocupações éticas venham a amealhar
força suficiente para moldar a história, como fizeram no passado. Contudo,
considerações éticas só podem prevalecer sobre o autointeresse imediato se à
voz da ciência se juntar a voz da religião. Ambas devem ser ouvidas, caso
queiramos que nossas escolhas éticas sejam ao mesmo tempo racionais e
humanas.
A ciência é um clube internacional amigável, ao qual tenho o privilégio
de pertencer. Cientistas de todo o mundo unem-se numa cultura que dá
esperança de um futuro melhor para todos nós. Mas o cientista que perscruta o
horizonte deve, também, tentar identificar a nuvem, não maior do que a mão de
um homem, que pode crescer num dilúvio. As vozes da ciência e da religião nos
alertam, ambas, de que devemos permanecer vigilantes. Como Adão e Eva
aprenderam ao experimentar o fruto proibido da Árvore do Conhecimento do
Bem e do Mal, o conhecimento é perigoso. Quanto mais soubermos, maior o
poder que daremos para nossos filhos fazerem o bem ou o mal, e maior nossa
responsabilidade em alertá-los em tempo de possíveis desastres.
A ciência é meu território, mas a ficção científica é a paisagem de meus
sonhos. No ano de 1995 transcorreu o centésimo aniversário da publicação de A
máquina do tempo, de H. G. Wells, talvez o retrato mais sombrio do futuro
humano jamais imaginado. Wells empregou uma história dramática para dar a
seus contemporâneos a imagem de um futuro possível. Seu objetivo não era
prever, mas alertar. Ele estava irritado com a espécie humana, por sua insensatez
e fracassos. Estava especialmente irritado com o sistema inglês de classes, sob o
qual havia sofrido pessoalmente, um sistema que dividia as pessoas em ricos
ociosos e pobres explorados, os ricos aproveitando os refinamentos da arte e da
beleza enquanto os pobres eram condenados a uma vida de ignorância e feiura.
Wells avisava seus leitores, em particular seus leitores da classe alta inglesa, de
que a grosseira desigualdade e injustiça de sua sociedade levava-os rumo ao
desastre. Continuem nessa trilha, a história contava, e eis para onde vão, a
humanidade dividida em duas espécies, presas e predadores: os Eloi, cantando e
dançando ao sol, e os Morlocks, fazendo as máquinas funcionarem no subsolo;
os Eloi sem habilidades práticas e intelectuais, perdidas por causa da indolência,
e os Morlocks a pastorear seus primos da superfície como gado, uma fonte
conveniente de carne.
É impossível avaliar qual tenha sido a influência direta da obra de Wells
sobre a história social da Inglaterra. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando
trabalhava como cientista prestando assessoria técnica à Real Força Aérea, meu
chefe, Reuben Smeed, formulou uma regra para dirigir nossos esforços. A Regra
de Smeed afirmava que é possível fazer coisas ou é possível ficar com o crédito
por elas, mas não ambos. Para ter eficácia em influenciar a política ou em mudar
a sociedade, é preciso garantir que pessoas em posições de poder adotem nossas
ideias como se fossem delas. Nunca é possível saber se nossa influência pessoal
foi ou não decisiva. No caso de Wells, sabemos que A máquina do tempo se
tomou um best-seller imediato, e que, por muitos anos, Wells foi o escritor de
temas sociais mais amplamente lido na Grã-Bretanha. Wells e seus
companheiros da Sociedade Fabiana pregavam incansavelmente a causa da
justiça social. Sabemos que, durante os cinquenta anos de sua vida produtiva —
da publicação de A máquina do tempo, em 1895, até sua morte, em 1947 —, as
desigualdades e injustiças sociais da sociedade inglesa foram gradualmente
mitigadas, à medida que a classe dominante inglesa desenvolvia uma
consciência social. E sabemos que, nos cinquenta anos transcorridos desde a sua
morte, a Inglaterra reverteu gradualmente para um sistema de classes com
desigualdades quase tão agudas como aquelas contra as quais ele lutara quando
jovem e satirizara em seus romances. Baseado nessas evidências, julgo que,
apesar da Regra de Smeed, podemos atribuir a Wells algum crédito pelas
melhorias ocorridas na sociedade inglesa durante sua vida.
Wells derramou em A máquina do tempo sua angústia pessoal e seu
distanciamento científico, sua compreensão compassiva da alma humana
individual e sua compreensão impiedosa da espécie humana. Ele não foi o
primeiro romancista a situar seus personagens, com suas personalidades e
paixões individuais, no âmbito mais amplo da evolução biológica. Ele via a
espécie humana como um experimento profundamente comprometido, fadado a
fracassar devido a fraquezas internas, mesmo se não sucumbisse a calamidades
externas. A história trágica do século XX não tomou a visão de Wells menos
plausível.


O romance termina num tom de melancolia filosófica. Uma vez contada
a saga de horror e degeneração do Viajante do Tempo, e depois de ele
desaparecer de nossa vista com sua máquina, o narrador reflete sobre o
significado de sua viagem. “Para mim, o futuro é ainda negro e vazio — é uma
ignorância vasta, iluminada em alguns lugares casuais pela memória de sua
história. E ao meu lado, confortando-me, há duas estranhas flores brancas — já
encarquilhadas e pardas e achatadas e quebradiças — como testemunho de que,
mesmo quando a mente e a força se vão, a gratidão e uma compaixão mútua
ainda sobrevivem no coração do homem.” O epílogo de A máquina do tempo vai
além da violência e do cataclismo dos finais convencionais da ficção científica,
da mesma forma que a cena final do Rei Lear supera as cenas finais repletas de
cadáveres de Macbeth e de Hamlet para atingir uma quietude mais profunda.
Como artista, Wells foi tão prolífico e tão multiforme quanto Shakespeare. Como
Shakespeare, escreveu tragédias e comédias e histórias. Diferentemente de
Shakespeare, começou com tragédias e depois passou a comédias e histórias.
Outras visões desagradáveis do futuro foram escritas por escritores menos
talentosos do que Wells, mas nenhuma se igualou a A máquina do tempo como
obra de arte.
Desde Wells, tivemos mais cem anos de ciência da qual aprender e mais
cem anos de história para contemplar. Uma lição que aprendemos da ciência e da
história é que o futuro é imprevisível. Apesar de sua educação científica como
biólogo, Wells nunca imaginou as descobertas que, pouco depois de sua morte,
dariam origem à nova ciência da biologia molecular e que dominarão a paisagem
da biologia na entrada do novo milênio. Em sua Pequena história do mundo,
Wells chamou os símbolos do nacionalismo de “deuses tribais do século XIX”, e
não imaginava que tais vestígios de lealdade tribal sobreviveriam com virulência
ainda mais intensa até o fim do século XX. Quando Wells tentou prever o futuro,
como frequentemente fez mais para o fim da vida, normalmente errou. Quando
imaginou mundos futuros, empregando sua habilidade de romancista para
alargar nossa visão e nos lembrar de nossas responsabilidades, foi brilhante em
seu sucesso.
Ao olhar para o futuro, escrevo sobre as coisas que me cabe conhecer
melhor — uma pequena porção da ciência e uma parcela ainda menor da
tecnologia. Emprego histórias, tanto imaginadas como reais, para explorar o jogo
da ciência e da tecnologia com a evolução e a ética. Permaneço em silêncio
quanto a temas científicos da moda, como a complexidade e a teoria das cordas,
e problemas ambientais prestigiosos, como o aquecimento global e a
superpopulação, não porque os considere desimportantes mas porque nada tenho
de novo a dizer sobre eles. Ao discutir questões humanas, não busco orientação
na sociologia, mas em estudos de caso e na ficção científica. Para mim, A
máquina do tempo de Wells dá mais insight sobre mundos passados e futuros do
que qualquer análise estatística, pois o insight exige imaginação.

1. HISTÓRIAS


É comum que tecnologias vitoriosas comecem como passatempos.
Jacques Cousteau inventou o aqualung porque gostava de explorar cavernas
subaquáticas. Os irmãos Wright inventaram o avião como forma de escapar à
monotonia de sua atividade normal, de vender e consertar bicicletas. Um pouco
antes, bicicletas e automóveis haviam surgido como veículos de recreação, uma
forma de permitir às pessoas passear pelo campo antes do surgimento de estradas
lisas, que tomassem mais eficiente guiar e pedalar. Em todas essas tecnologias,
os pioneiros gastavam seu dinheiro e arriscavam suas vidas em nome de nada
mais substancial do que o divertimento. Mergulhar é divertido, voar é divertido,
andar de bicicleta e dirigir automóveis é divertido, e o eram especialmente nos
primórdios, quando ninguém mais o fazia. Mesmo hoje, quando esses
passatempos se transformaram em imensas indústrias, e normas e regulamentos
foram definidos para reduzir os riscos ao máximo, o esporte e a recreação ainda
proporcionam boa parte da motivação que impulsiona o avanço das tecnologias.
A história da aviação é um exemplo que se presta bem a um exame
detalhado para se entender a interação entre a tecnologia e os assuntos humanos,
pois duas tecnologias radicalmente diferentes competiam pela sobrevivência —
no início eram chamadas de “mais pesado que o ar” e “mais leve que o ar”. O
avião e o dirigível não eram apenas fisicamente diferentes em forma e tamanho,
mas também sociologicamente diferentes. O avião nasceu de sonhos de aventura
pessoal. O dirigível, de sonhos de império. A imagem na mente dos construtores
de aviões era a de um pássaro. A imagem na mente dos construtores de dirigíveis
era a de um navio de passageiros.
Temos sorte de dispor de uma imagem vívida das fases criativas dessas
tecnologias, escrita por alguém que esteve profundamente envolvido com ambas
e que também foi um escritor talentoso, Nevil Shute Norway. Antes de se tomar
o famoso romancista Nevil Shute — autor de Piedpiper [O flautista], A town like
Alice [Uma cidade como Alice], On the beach [Na praia] e outras histórias
maravilhosas —, ele fora engenheiro aeronáutico, tendo trabalhado
profissionalmente no projeto de aviões e de dirigíveis. Escreveu uma
autobiografia intitulada Slide rule [Régua de cálculo], em que descreve sua vida
como engenheiro.
Norway não começou com qualquer inclinação especial por aviões, em
detrimento de dirigíveis. Trabalhou com ambos com igual dedicação,
orgulhando-se particularmente de seu papel no projeto do dirigível R100.
Trabalhou nele por seis anos, desde o momento de sua concepção, em 1924, até
a entrega, em 1930; nesse ano, participou de sua triunfal viagem inaugural, de
ida e volta, Londres—Montreal. Sob o ponto de vista técnico, os dirigíveis
apresentavam muitas vantagens sobre os aviões, e o RI00 foi um sucesso
técnico. Contudo, Norway viu claramente que o destino dos aviões e dirigíveis
não dependeria apenas de fatores técnicos. Mesmo antes que se tomasse escritor
profissional, interessava-se mais pelas pessoas do que por porcas e parafusos.
Testemunhou e registrou os fatores humanos que fizeram da construção de
aviões um divertimento e a de dirigíveis um pesadelo.
Depois de concluir o R100, Norway fundou sua própria empresa, a
Airspeed Limited. Era uma das centenas de pequenas firmas que inventavam e
construíam e vendiam aviões nos anos 20 e 30. Norway avaliou que, durante
aqueles anos, 100 mil diferentes tipos de aviões foram construídos. Por todo o
mundo, inventores entusiásticos vendiam aviões a pilotos intrépidos e a
companhias de aviação que se formavam. Muitos dos pilotos foram ao chão e
muitas das empresas faliram. Dos 100 mil tipos de aviões, restaram cerca de
cem, que formam a base da aviação moderna. A evolução da aviação foi um
processo estritamente darwinista, em que quase todas as variedades de aviões
fracassaram, da mesma forma que quase todas as espécies de animais se
extinguiram. Devido à seleção rigorosa, os poucos aviões sobreviventes são
extraordinariamente confiáveis, econômicos e seguros.
O processo darwinista é impiedoso, pois se baseia no fracasso.
Funcionou bem na evolução do avião porque esses veículos eram pequenos, as
companhias que os fabricavam eram pequenas e o custo do fracasso era
tolerável, em termos financeiros e de vidas. Aviões caíram, pilotos morreram e
investidores se arruinaram, mas a escala das perdas não foi grande o suficiente
para interromper o processo de evolução. Após cada desastre, surgiam novos
pilotos e novos investidores, com novos sonhos de glória. E, dessa forma, o
processo de seleção continuou eliminando os inadequados, até que os aviões e as
empresas se tomaram tão grandes que o prosseguimento do processo de
eliminação passou a ser oficialmente desencorajado. A empresa de Norway foi
uma das poucas que sobreviveram à extinção e se tornaram comercialmente
lucrativas. Como resultado, foi comprada e se tornou uma divisão da De
Havilland, perdendo a liberdade de tomar suas próprias decisões e de assumir
seus próprios riscos. Mesmo antes de a De Havilland assumir o controle da
companhia, Norway decidira que o negócio não era mais divertido. Parou de
construir aviões e iniciou sua nova carreira de romancista.
A evolução do dirigível foi uma história diferente, dominada por
políticos e não por inventores. Na década de 20, políticos britânicos tinham
aguda consciência de que chegava ao fim a hegemonia mundial britânica de cem
anos, baseada no poder naval. O Império Britânico era, ainda, o maior do
mundo, mas não mais podia sustentar-se sobre a Marinha Real. A maioria das
lideranças políticas, tanto conservadoras como trabalhistas, ainda alimentava
sonhos imperiais. Seus assessores políticos e militares diziam-lhes que, no
mundo moderno, o poder aéreo substituía o poder naval como emblema de
grandeza. De modo que eles buscavam o poder aéreo como a onda do futuro, que
manteria a Grã- Bretanha no topo do mundo. E, nesse contexto, era natural
pensar em dirigíveis, e não em aviões, como os veículos da autoridade imperial.
Superficialmente, dirigíveis pareciam-se com navios — grandes e visualmente
notáveis. Dirigíveis seriam capazes de voar sem escalas de uma ponta do
império à outra. Políticos importantes poderiam viajar de domínios remotos a
Londres, sem ser forçados a negligenciar seu público doméstico durante todo um
mês. Em contraste, aviões eram pequenos, barulhentos e feios, totalmente
inadequados para uma finalidade tão elevada. Naquela época, eles não
conseguiam atravessar rotineiramente oceanos. Não podiam permanecer no ar
por muito tempo e dependiam de bases terrestres por toda parte. Aviões eram
úteis para batalhas locais, mas não para administrar um império global.


Um dos políticos mais obcecados com os dirigíveis era o dignitário
trabalhista Lord Thompson, secretário de Estado para a Aviação nos governos
trabalhistas de 1924 e 1929. Lord Thompson foi a força motriz por trás do
projeto de construir o dirigível R101, na Royal Airship Works, empresa
governamental situada em Cardington. Sendo não só imperialista como também
socialista, ele insistia em que a fábrica estatal assumisse a tarefa. Porém, de
modo a aquietar a oposição conservadora, arranjou para que uma nave-irmã, a
R100, fosse construída na empresa Vickers Limited, privada. OR100 e o R101
deveriam ser as naus capitânias do Império Britânico na nova era. Sendo maior,
o R101 voaria sem escalas de Londres à Índia e, mais tarde, talvez até a
Austrália. O R100, projeto mais modesto, proporcionaria serviço regular através
do Atlântico, entre a Inglaterra e o Canadá. Na qualidade de membro da equipe
de engenheiros que projetava o R100, Norway teve assento na primeira fila para
assistir ao destino de ambos os dirigíveis.
Desde o início, o projeto do R101 foi impulsionado pela ideologia e não
pelo bom senso. O R101 precisaria vir a ser o maior dirigível do mundo, não
importando a que preço, e a que preço fosse deveria estar pronto para voar até a
Índia numa data fixa de outubro de 1930, quando o próprio Lord Thompson
embarcaria em sua viagem inaugural de ida e volta a Carachi, retornando a
tempo de participar da Conferência Imperial, em Londres. Sua chegada
dramática à conferência, a bordo de um dirigível, trazendo flores frescas da
Índia, demonstraria a grandeza da Grã-Bretanha e do Império para um mundo
admirado; incidentalmente, demonstraria a superioridade da indústria socialista e
do próprio Lord Thompson. O enorme tamanho e a data fixada formaram uma
combinação fatal. Os problemas técnicos derivados da necessidade de vedar
enormes compartimentos de gás de modo a não vazarem nunca foram
solucionados. Não havia tempo para submeter o aparelho a voos de teste
exaustivos antes da viagem até a índia. O dirigível partiu finalmente para sua
viagem inaugural, ensopado e sob terrível mau tempo, levando a bordo Lord
Thompson e diversas toneladas de sua bagagem senhorial. O dirigível mal tinha
empuxo suficiente para elevá-lo acima de seu mastro de ancoragem. Oito horas
depois, caiu e se incendiou numa lavoura no norte da França. Das 54 pessoas a
bordo, seis sobreviveram. Lord Thompson não estava entre elas.
Enquanto isso, com a ajuda de Norway, o R100 era construído de uma
forma mais razoável. Seus compartimentos de gás não vazavam e o aparelho
tinha margem de empuxo suficiente para levar sua carga projetada. O R100
completou sua viagem inaugural de ida e volta a Montreal sem desastres, sete
semanas antes que o R101 partisse da Inglaterra. Mas Norway achou que a
viagem esteve longe de ser tranquilizadora. Ele informou que o R100 foi
violentamente agitado numa tempestade local sobre o Canadá, tendo tido sorte
de não se despedaçar. Norway não o considerou seguro o suficiente para prestar
serviços regulares no transporte de passageiros. A questão de saber se o aparelho
seria suficientemente seguro esvaziou-se após o desastre do R101. Depois de tal
desastre, seria improvável que algum passageiro assumisse o risco. O R100 foi
discretamente desmantelado e vendido aos pedaços. A era dos dirigíveis
imperiais chegava ao fim.


A finalidade anunciada do R100 era prover um serviço confiável de
passageiros entre a Inglaterra e o Canadá, com partidas e chegadas uma vez por
semana. Após o fracasso do dirigível, Lord Cunard, dono da empresa de
navegação Cunard, perguntou a seus engenheiros o que seria necessário para
proporcionar um serviço semanal através do Atlântico, usando apenas dois
navios. Naquela época, a travessia do Atlântico demorava de sete a oito dias, de
modo que um serviço semanal demandaria ao menos três navios. Fazê-lo com
apenas dois barcos exigiria que a travessia se fizesse em cinco dias, com dois
dias de margem para acomodar o mau tempo, a descarga e a carga. Os
engenheiros da Cunard projetaram o Queen Mary e sua embarcação gêmea,
Queen Elizabeth, para fazer a viagem em cinco dias. De modo a consegui-lo de
forma econômica, devido à maneira como o arrasto da água varia em proporção
à velocidade e ao tamanho, os dois navios teriam que ser substancialmente
maiores do que outros transatlânticos. Lord Cunard confiava em que o negócio
de transporte de passageiros por navios permaneceria lucrativo por mais algumas
décadas e, assim, ordenou a construção de ambos.
Após a interrupção causada pela Segunda Guerra Mundial, os dois navios
passaram a transportar passageiros lucrativamente através do oceano e,
incidentalmente, a quebrar recordes de velocidade. O público britânico
orgulhava-se dos navios, que costumavam ganhar a famosa Faixa Azul,
conferida à travessia mais veloz do Atlântico. O público imaginava que os
navios haviam sido construídos para conquistar a Faixa Azul, mas Lord Cunard
declarou que o público se equivocara completamente quanto à finalidade dos
navios. Disse que seu objetivo sempre fora o de construir os menores e mais
lentos navios capazes de prover um serviço semanal regular. O fato de isso levar
à quebra de recordes constituía um acidente infeliz. Os navios prosseguiram por
muitos anos com suas viagens semanais, até que o Boeing 707 acabou com eles.
Enquanto os navios de passageiros experimentavam seu sucesso antes do
triunfo do Boeing 707, ocorria outra tragédia decorrente do impulsionamento
ideológico da tecnologia. Dessa vez foi a tragédia do jato de passageiros Comet.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a companhia De Havilland construíra
bombardeiros e caças a jato e adquirira apetite por coisas maiores. Após a
guerra, a empresa desencadeou o projeto do Comet, jato comercial capaz de voar
duas vezes mais rápido do que os aviões de transporte a hélice daquela época.
Ao mesmo tempo, o governo britânico fundou a British Overseas Airways
Corporation, monopólio estatal com responsabilidade sobre rotas aéreas de longa
distância. O Império se desintegrava rapidamente, mas ainda restava o bastante
dele para inspirar os planejadores da BOAC com novos sonhos de glória. Seu
sonho era colocar uma frota de Comet em serviço nas rotas imperiais que a BOAC
controlava, partin- do de Londres em direção à África, ao sul, e à índia e à
Austrália, a leste.
O sonho era sedutor, pois significava que a Grã-Bretanha poderia
ingressar na era do jato cinco anos antes dos lentos norte-americanos. Enquanto
a Boeing Company hesitava, os Comet estariam voando. Os Comet mostrariam
ao mundo a superioridade da tecnologia britânica e, incidentalmente,
demonstrariam que o Império, rebatizado de Comunidade, continuava vivo.
Depois que os Comet da BOAC tivessem aberto o caminho, outras companhias
aéreas de todo o mundo correriam para encomendá-los à De Havilland. Os
sonhos que inspiraram o Comet foram os mesmos que haviam inspirado o R101,
vinte anos antes. Os herdeiros de Lord Thompson não aprenderam muito com
sua sina.
O projeto Comet cometeu o mesmo equívoco que o R101, forçando
passagem através de uma tecnologia difícil e exigente por meio de um
cronograma ditado politicamente. A decisão de apressar a entrada em serviço do
Comet em 1952 foi impulsionada pelo imperativo político de permanecer cinco
anos à frente dos norte-americanos. Uma pessoa anteviu o desastre que se
prenunciava. Nevil Shute, a essa altura não mais engenheiro aeronáutico mas um
espectador bem informado, publicou em 1948 um romance com o título No
highway, que descreve o modo como as pressões políticas podem forçar a
entrada em serviço de um avião inseguro. O romance conta a história de um
desastre notavelmente semelhante aos desastres com o Comet, que aconteceriam
quatro anos depois.
O defeito fatal do Comet era uma concentração de tensões nos cantos de
suas janelas. A tensão fazia com que o revestimento metálico do avião rachasse e
abrisse. O rompimento acontecia apenas em altas altitudes, quando o avião se
encontrava completamente pressurizado. O resultado era a desintegração do
aparelho e a dispersão dos escombros por áreas extensas, o que não deixava
evidências claras da causa. Dois aparelhos se destruíram dessa forma, um sobre a
índia e outro sobre a África, matando todos a bordo. Depois do segundo desastre,
os Comet foram tirados de serviço. Nenhum jato comercial foi posto em
operação durante mais cinco anos, até que os norte-americanos aprontassem seu
confiável e exaustivamente testado Boeing 707. Foi preciso que cem pessoas
morressem para dar fim aos voos do Comet, duas vezes mais do que no caso dos
dirigíveis. Se o secretário de Estado para a Aviação estivesse a bordo do
primeiro Comet quando de seu desastre, é possível que o segundo não tivesse
sido necessário.
Nevil Shute explica como se permitiu que o R101 e o Comet levassem
passageiros sem terem sido submetidos a testes de voo adequados. Isso ocorreu
devido ao choque entre duas culturas, a cultura da política e a cultura da
engenharia. Políticos tomaram decisões cruciais sobre assuntos técnicos que não
compreendiam. A tarefa de um político em posição de responsabilidade é tomar
decisões. Decisões políticas são frequentemente tomadas com base em
conhecimento inadequado, e geralmente não causam grande dano. Na cultura
política, um líder ganha respeito ao dizer: “O bastão para aqui”. Arriscar-se a
tomar uma má decisão é melhor do que ser indeciso. A cultura da engenharia é
diferente. Um engenheiro ganha respeito ao dizer: “É melhor prevenir do que
remediar”. Engenheiros são treinados para procurar os pontos fracos de um
projeto — de modo a prevenir desastres potenciais. Quando políticos são
encarregados de um empreendimento de engenharia, as duas culturas se chocam.
Quando o empreendimento envolve máquinas que voam, esse choque tende a
levar ao desastre.
A aviação é o ramo da engenharia menos tolerante a enganos. Mas sob
um ponto de vista mais amplo, a inflexibilidade pode ser uma virtude. Na longa
perspectiva da história, as vítimas do R101 e do Comet não morreram em vão.
Como legado de suas tragédias, deixaram os aviões extraordinariamente seguros
e confiáveis que voam todos os dias através de oceanos e continentes por todo o
mundo. Sem as duras lições trazidas pelo desastre e pela morte, o moderno jato
de passageiros não teria evoluído.
Meu amigo Albert Hirschman descobriu outras situações em que a
inflexibilidade é uma virtude. Ele é um economista que passou boa parte da vida
estudando as sociedades latino-americanas e prestando assessoria a seus
governos. Também assessorou novos Estados africanos recém tornados
independentes. Frequentemente, os líderes de países pobres perguntam-lhe:
“Devemos aplicar nossos recursos limitados em estradas ou em linhas aéreas?”.
Diante dessa pergunta, o impulso natural do economista é responder “estradas”,
pois o dinheiro gasto em estradas cria empregos para a população local e elas
beneficiam todas as classes da sociedade. Em contraste, a montagem de uma
companhia aérea nacional exige a importação de tecnologia externa e a empresa
beneficia apenas uma minoria de cidadãos com renda suficiente para usá-la.
Apesar disso, uma longa experiência na África e na América Latina ensinou a
Hirschman que “estradas” é, normalmente, a resposta errada. No mundo real,
estradas têm diversas desvantagens. O dinheiro direcionado à construção de
estradas tende a cair nas mãos de funcionários públicos corruptos. Estradas são
mais fáceis de construir do que de manter. E, como acontece de modo geral,
quando as novas estradas começam a se deteriorar depois de alguns anos, isso se
dá gradualmente, não criando escândalos de grandes proporções. O resultado
final da construção de estradas é que a vida continua como antes. O economista
que diz “estradas” consegue realizar pouco, exceto um pequeno crescimento da
riqueza e do poder de funcionários públicos.
Contraste-se isso com o efeito real trazido pela construção de uma
empresa aérea nacional. Depois que o dinheiro é gasto, o país mantém em seu
poder alguns aviões caros, alguns aeroportos caros e alguns equipamentos
modernos caros. Os técnicos estrangeiros terão deixado o país, e cidadãos locais
precisam ser treinados para operar o sistema. Diferentemente das estradas, os
aviões não se deterioram em silêncio. Um desastre com avião de passageiros é
um evento visível, trazendo uma perda de prestígio que é inaceitável para os
governantes. As vítimas tendem a ser pessoas ricas e poderosas, e sua morte não
passa despercebida. Os governantes não têm escolha. Dado que têm uma
companhia aérea nas mãos, são compelidos a fazer com que ela seja gerida com
competência. São forçados a criar um corpo de pessoas altamente motivadas
para manter os aparelhos, que comparecem ao trabalho na hora certa e têm
orgulho de sua capacidade técnica. Como resultado, a companhia aérea leva ao
país benefícios indiretos que são maiores do que seu valor econômico direto.
Cria um corpo substancial de cidadãos acostumados a uma disciplina industrial
rigorosa e imbuídos de uma ética de trabalho moderna. Com o tempo, esses
cidadãos descobrirão outras coisas úteis a fazer, além de tomar conta de aviões.
Dessa forma paradoxal, a inflexibilidade da aviação faz dela a melhor escola
para ensinar uma sociedade tradicional a modemizar-se.
Essa não foi a primeira vez que uma tecnologia inflexível transformou o
mundo e forçou sociedades tradicionais a mudar. O papel atual da aviação é
semelhante ao papel dos navios a vela no mundo pré-industrial. O rei Henrique
vm da Inglaterra, o mais brutal e mais inteligente dos monarcas ingleses,
destruidor de mosteiros e fundador de universidades, assassino de esposas e
compositor de madrigais, por cuja alma preces são até hoje ditas no Trinity
College de Cambridge em agradecimento à sua generosidade, compreendeu que
o instrumento mais eficaz para modernizar a Inglaterra era a criação de uma
Marinha Real. Não foi por acidente que a revolução industrial do século XVIII
começou na Inglaterra, na ilha em que a vida cotidiana e a economia haviam
sido dominadas por navios a vela durante trezentos anos. Quando o jovem czar
russo Pedro, o Grande — um espírito semelhante ao de Henrique vm — decidiu
que era tempo de modernizar o império russo, preparou-se para a tarefa indo
trabalhar como aprendiz num estaleiro.
As tragédias do R101 e do Comet são exemplos dos efeitos deletérios da
ideologia, a ideologia sendo, neste caso, o velho imperialismo britânico. Hoje, o
Império Britânico é história antiga, e sua ideologia morreu. Mas tecnologias
levadas por ideologias conduzem provavelmente a problemas mesmo quando as
ideologias não estão fora de moda. Outra ideologia poderosa que levou a
problemas é a da energia nuclear. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a
ideologia da energia nuclear disseminou-se por todo o mundo, levada por um
intenso desejo de criar algo pacífico e útil a partir das ruínas de Hiroshima e de
Nagasáki. Cientistas e políticos e líderes industriais eram igualmente
enfeitiçados pela visão de que aquela nova e poderosa força da natureza, que
matara e mutilara na guerra, poderia agora, na paz, fazer com que desertos
florescessem. A energia nuclear era tão estranha e poderosa que parecia mágica.
Facilmente se acreditaria que tal mágica pudesse trazer riqueza e prosperidade a
pessoas pobres de todo o mundo. De modo que, em todos os países grandes e em
muitos pequenos, em democracias e ditaduras, em sociedades tanto capitalistas
quanto comunistas, criaram-se Agências de Energia Atômica para supervisionar
os milagres que se esperavam da energia nuclear. Vultosos fundos foram
despejados em laboratórios nucleares, na crença confiante de que seriam
investimentos seguros para o futuro.
Durante os primeiros dias do entusiasmo nuclear, visitei Harwell, a
principal instituição britânica de pesquisa nuclear. Seu primeiro diretor foi Sir
John Cockcroft, cientista de primeiro time e um servidor público honesto.
Percorri as instalações com Cockcroft e olhamos as grandes linhas de
transmissão que partiam da usina, por sobre nossas cabeças, e sumiam na
distância. Cockcroft observou: “O público imagina que a eletricidade flui deste
lugar para a rede elétrica nacional. Quando lhes digo que tudo flui na direção
oposta, não me acreditam”.
Nada havia de errado, como nada há de errado em usar a energia nuclear
para gerar eletricidade. Mas as regras do jogo precisam ser justas, de modo que a
energia nuclear possa competir com outras formas de energia e possa fracassar se
não agüentar a competição. Enquanto sujeita ao fracasso, os danos que a energia
nuclear possa causar permanecem limitados. Mas a feição característica de uma
tecnologia impulsionada ideologicamente é que não se permite que fracasse. Foi
por isso que a energia nuclear levou a problemas. A ideologia dizia que a energia
nuclear precisaria vencer. Os promotores da energia nuclear acreditavam, por
uma questão de fé, que seria segura, limpa, barata e uma dádiva para a
humanidade. Quando surgiram evidências em contrário, seus promotores
encontraram modos de ignorá-las. Escreveram as regras do jogo para impedir
que a energia nuclear fracassasse. As regras de contabilidade foram escritas de
modo a fazer com que os custos da eletricidade nuclear não incluíssem os
imensos investimentos públicos feitos para desenvolver a tecnologia e para
fabricar o combustível. As regras de segurança para os reatores foram escritas de
modo a tomar automaticamente seguro o tipo de reator de água leve
desenvolvido originalmente pela Marinha dos Estados Unidos para mover
submarinos. As regras de segurança ambiental foram escritas de modo a eliminar
de consideração o problema de o que fazer com o combustível gasto e com o
maquinário desgastado. Conforme tais regras, a energia nuclear confirmou as
crenças de seus promotores. Vista segundo elas, a energia nuclear era realmente
barata, e limpa, e segura.


As pessoas que escreveram as regras não pretendiam enganar o público.
Enganaram a si próprias e, depois, caíram no hábito de suprimir evidências que
oferecessem contradição a suas crenças, firmemente alimentadas. No fim, a
ideologia da energia nuclear entrou em colapso porque a tecnologia que não se
permitia fracassar estava obviamente fracassando.


Apesar de subsídios governamentais, a eletricidade nuclear não se tomou
significativamente mais barata do que a eletricidade gerada pela queima do
carvão e do petróleo. Não obstante a segurança atribuída aos reatores de água
leve, acidentes aconteciam ocasionalmente. Apesar das vantagens ambientais das
usinas nucleares, o destino dos detritos nucleares permaneceu um problema
irresolvido. No fim, o público reagiu severamente contra a energia nuclear
porque fatos óbvios contradiziam o que seus promotores declaravam.
Quando se permite a uma tecnologia fracassar quando em concorrência
com outras tecnologias, o fracasso faz parte do processo normal de evolução
darwinista, que leva a melhorias e a um possível sucesso posterior. Quando não
se permite à tecnologia falhar, e ainda assim ela falha, o fracasso é muito mais
danoso. Caso se tivesse permitido que a energia nuclear fracassasse no início, ela
poderia muito bem ter evoluído para uma tecnologia melhor, fazendo com que,
hoje, o público confiasse nela e a apoiasse. Nada existe nas leis da Natureza que
nos impeça de construir usinas nucleares melhores. Somos impedidos por uma
profunda e justificada desconfiança por parte do público. O público desconfia
dos especialistas porque estes afirmaram ser infalíveis. O público sabe que o ser
humano é falível. Somente pessoas cegadas pela ideologia caem na armadilha de
acreditar em sua própria infalibilidade.
A tragédia da energia de fissão nuclear já está quase no fim, no que
concerne aos Estados Unidos. Ninguém mais quer construir novos reatores de
fissão. Mas outra tragédia está ainda em andamento, a tragédia da fusão nuclear.
Os promotores da fusão estão cometendo os mesmos erros que os da fissão,
trinta anos atrás. Os promotores não estão mais a experimentar diversos
esquemas de fusão para fazer evoluir uma máquina que possa vencer no
mercado. Muito tempo atrás, decidiram concentrar seus principais esforços num
dispositivo simples, o Tokamak, que, por decreto ideológico, é declarado o
produtor de energia para o século XXI. O Tokamak foi inventado na Rússia, e
seus inventores lhe deram um nome que se translitera eufonicamente em outras
línguas. Todos os países com programas sérios de pesquisa sobre fusão
construíram Tokamaks. Um dos maiores e mais caros fica em Princeton.


A mim se assemelha ao pesadelo de um bombeiro, um denso conglomerado de
canos e espiras sem espaço para que alguém entre, caso seja necessário fazer
algum conserto. Mas as pessoas que o construíram acreditam sinceramente que
se trata de uma resposta para necessidades humanas. Planeja-se que os diversos
programas nacionais de fusão convirjam num imenso Tokamak internacional, a
um custo de muitos bilhões de dólares, o qual viria a ser o protótipo dos
geradores de fusão do futuro. Fazem-se as declarações usuais de que a energia de
fusão será segura e limpa, embora mesmo os promotores tenham deixado de
dizer que será barata. Os programas de fusão existentes interromperam a
evolução de uma nova tecnologia que poderia chegar a cumprir as esperanças
dos promotores. O que o mundo precisa é de tecnologia de fusão pequena,
compacta e flexível, capaz de gerar eletricidade onde e quando necessária. O
programa de fusão existente está levando a uma enorme fonte de poder
centralizado, a um preço que ninguém, exceto governos, pode suportar. É
provável que o atual programa de fusão entre em colapso cedo ou tarde, do
mesmo modo que o programa de fissão entrou em colapso, e podemos apenas
torcer para que alguma forma de tecnologia de fusão mais útil surja dos
escombros.
Minha última história sobre tecnologia conduzida ideologicamente é a
dos tanques de gelo. O principal promotor dos tanques de gelo foi Ted Taylor.
De todos os meus amigos, é ele quem melhor combina a inventividade técnica a
elevados princípios morais. Em sua juventude, foi projetista de armas nucleares
em Los Alamos. Mais tarde, trabalhou no Departamento de Defesa, em
Washington, com responsabilidades sobre a salvaguarda de arsenais nucleares.
Após essa exposição às realidades da política nuclear-industrial, tomou-se
ativista antinuclear, pediu demissão do governo e passou a advogar publicamente
em favor de melhores salvaguardas contra o furto de plutônio e de outros
materiais nucleares. Decidiu devotar o resto de sua vida ao desenvolvimento de
alternativas tecnológicas à energia nuclear. A busca por uma fonte de energia
sustentável e ambientalmente benigna conduziu-o aos tanques de gelo.
Tanques de gelo podem vir a ser uma fonte limpa de energia para a
refrigeração em qualquer região em que as temperaturas noturnas de inverno
desçam abaixo de zero durante pelo menos dez noites por ano. A ideia do tanque
de gelo é armazenar um grande volume de neve por meio ano, de modo que a
neve possa ser produzida no inverno e usada para refrigeração durante o verão. A
neve é produzida no inverno aspergindo-se água numa nuvem fina, com uma
mangueira igual às usadas pelos bombeiros. Desde que a temperatura do ar
esteja abaixo de zero, a nuvem cai no solo na forma de neve, que se acumula no
tanque. A pilha de neve é coberta por uma superfície termicamente isolante. O
tanque comunica-se com o prédio a ser refrigerado por meio de canos de água.
No verão, água fria é extraída do fundo do tanque e água quente retorna ao topo.
Se o tanque é grande e fundo o suficiente, a neve persiste por todo o verão e o
prédio permanece fresco. A energia necessária para produzir a neve e bombear a
água é muito menor do que a energia requerida na refrigeração elétrica
convencional.
O sonho de Taylor era controlar o ciclo natural das estações climáticas
para substituir a eletricidade gerada por usinas elétricas poluentes. Inspirado por
esse sonho, ele construiu um tanque de demonstração na Universidade de
Princeton e usou-o para refrigerar um prédio pequeno. Persuadiu a companhia de
seguros Prudential a instalar um grande tanque de gelo para fornecer
condicionamento de ar a um edifício maior. Convenceu a empresa de queijos
Kutter, no Estado de Nova York, a construir um tanque de gelo para refrigerar
sua fábrica. Convenceu a cidadezinha de Greenport, em Long Island, a construir
um tanque para purificar a água do mar. O tanque de gelo de Greenport usava
água salgada do oceano Atlântico para fazer neve. Em poucas semanas, o sal
escoava pelo fundo do monte de neve e a massa restante era pura o suficiente
para satisfazer às normas de potabilidade do Estado de Nova York.
Tais projetos eram únicos, imaginados para explorar a tecnologia dos
tanques de gelo. Eles encontraram diferentes graus de sucesso. O de Princeton
funcionou bem, mas foi desmantelado depois de dois anos, porque não cumpria
outra finalidade útil senão demonstrar a exequibilidade da ideia. O tanque da
Prudential nunca funcionou satisfatoriamente, pois sua operação foi retirada das
mãos de Taylor e confiada a funcionários da empresa que não entendiam o
sistema. O tanque de Greenport funcionou tecnicamente bem, mas se enredou
em controvérsias políticas locais. Não chegou a ser conectado à rede de água de
Greenport e, finalmente, foi desmantelado por voto de maioria do Conselho da
cidade. Os únicos tanques que sobreviveram foram os da Kutter, os quais
continuam a prestar bons serviços a seus proprietários.


Depois que esses projetos demonstrativos exibiram ao mundo o que os
tanques de gelo são capazes de fazer, Taylor alimentou esperanças de que
poderiam se transformar em produto comercial. Esperava fundar um negócio
lucrativo, fabricando e vendendo tanques de gelo para o público. A ideia era
atrair compradores entre donos de fábricas de processamento de alimentos,
proprietários de edifícios comerciais e empreendedores imobiliários que
constroem conjuntos habitacionais. Os compradores economizariam dinheiro
porque usariam menos eletricidade e, ao mesmo tempo, adquiririam um símbolo
visível de virtude ambiental. Da mesma forma que o painel de energia solar no
teto de uma casa, o tanque de gelo ao seu lado afirmaria discretamente a
preocupação do dono com o equilíbrio da Natureza. Infelizmente, Taylor não
encontrou compradores, e seus tanques de gelo nunca chegaram a se transformar
em produtos estandardizados, que pudessem ser entregues a fregueses a um
preço fixo.
Por que os tanques de gelo fracassaram? Isso aconteceu por muitas
razões. Taylor subestimou as dificuldades práticas de operar um equipamento
pesado ao ar livre durante o inverno. O trabalho de cobrir um enorme monte de
neve com material isolante revelou dificuldades inesperadas. Se o isolamento
não era disposto corretamente, a neve não chegava ao fim do verão. O fracasso
do tanque da Prudential deveu-se, principalmente, a falhas da cobertura. A
manutenção de um tanque de gelo requer atenção constante. Os tanques da
Kutter funcionaram porque os irmãos Kutter, donos da fábrica, eram
experimentadores entusiásticos, e não se importavam em passar longas horas a
cuidar do maquinário, quando acontecia algo de errado. Para usuários menos
aventurosos, que não apreciam trabalhar ao ar livre durante o mau tempo, os
problemas de manutenção constituiriam uma dor de cabeça permanente. Tais
deficiências práticas do tanque de gelo tornavam improvável seu sucesso
comercial.
Contudo, havia um motivo mais fundamental para o fracasso do sonho de
Taylor. Nunca houve uma demanda de mercado para os tanques de gelo; a única
coisa que havia era um impulso ideológico. Tecnologias de sucesso são
impulsionadas pelas necessidades dos compradores, não empurradas pela
ideologia dos vendedores. Taylor violou a primeira regra de um negócio de
sucesso: “Conhece o teu mercado”.
Como o dirigível e a usina nuclear, o tanque de gelo é um exemplo de
tecnologia impulsionada ideologicamente, e fracassou. Mas o fracasso dos
tanques de gelo não foi uma tragédia como as dos dirigíveis e das usinas
nucleares. Os tanques fracassaram rapidamente, causando perdas mínimas para a
sociedade. Gastou-se pouco dinheiro e não se perdeu nenhuma vida. O próprio
Taylor emergiu da débâcle com seu espírito intacto, pronto a iniciar novos
projetos. Seu caso de amor com os tanques de gelo deixou um útil legado de
conhecimento. A tecnologia dos tanques de gelo mantém-se como possibilidade
para o futuro. Um dia, talvez, uma reencarnação mais astuta de Taylor encontrará
um modo de transformar os tanques de gelo num pacote conveniente e amigável,
que materializará as esperanças de Taylor.
A moral da história dos tanques de gelo é que a tecnologia inspirada
ideologicamente não precisa levar ao desastre. Só leva ao desastre se for
protegida da concorrência. Uma vez que se garanta que uma tecnologia seja
exposta ao processo darwinista de seleção, não importa que tenha sido motivada
pela busca do lucro ou pela ideologia. O estímulo ideológico pode ser uma força
positiva para o bem, caso conduza a tecnologias ambientalmente benignas, que
possam ser testadas no mercado. Não lamento os dias felizes que passei com Ted
Taylor e seus estudantes, ajudando-o a construir o tanque de gelo de Princeton.
Tivemos mais sorte do que os construtores de dirigíveis e de usinas nucleares,
pois nos foi permitido fracassar.

2. CIÊNCIA


Se buscamos novos rumos para a ciência, devemos procurar por
revoluções científicas. Quando não há revolução científica em andamento, a
ciência continua a progredir em velhas direções. E impossível prever a
ocorrência de revoluções científicas, mas às vezes pode ser possível imaginar
uma revolução antes que aconteça.
Há dois tipos de revoluções científicas, aquelas impulsionadas por novos
instrumentos e aquelas estimuladas por novos conceitos. Em seu famoso livro A
estrutura das revoluções científicas, Thomas Kuhn referiu-se quase
exclusivamente a conceitos, praticamente não se ocupando de instrumentos. Sua
ideia de revolução científica se baseia num único exemplo, a revolução na física
teórica que ocorreu na década de 20 com o advento da mecânica quântica. Esse
foi um exemplo típico de revolução desencadeada por conceitos. O livro de
Kuhn é escrito de forma tão brilhante que se tornou um clássico instantâneo.
Mas induziu em toda uma geração de estudiosos e historiadores da ciência a
ilusão de que todas as revoluções científicas seriam decorrentes de mudanças
conceituais. As revoluções conceituais são aquelas que mais atraem a atenção e
que têm o maior impacto na consciência pública sobre a ciência, porém na
verdade são comparativamente raras. Nos últimos quinhentos anos, além da
revolução da mecânica quântica usada como modelo por Kuhn, tivemos seis
grandes revoluções conceituais, associadas aos nomes de Copérnico, Newton,
Darwin, Maxwell, Freud e Einstein. No mesmo período houve cerca de vinte
revoluções ligadas a instrumentos, não tão notáveis para o público, mas de igual
importância para o progresso da ciência. Dois exemplos típicos de revoluções
por instrumentos são a revolução galileana, resultante do emprego do telescópio
na astronomia, e a revolução de Watson e Crick, decorrente do uso da difração
de raios X para determinar a estrutura de macromoléculas na biologia.
O efeito de uma revolução conceitual é a explicação de coisas antigas de
maneiras novas. O efeito de uma revolução instrumental é a descoberta de coisas
novas que precisam ser explicadas. Em quase todo ramo da ciência, mas
especialmente na biologia e na astronomia, tem havido uma preponderância de
revoluções instrumentais. Temos tido mais sucesso em descobrir coisas novas do
que em explicar as antigas. Em épocas recentes, meu próprio ramo da física tem
experimentado grande sucesso em criar novos instrumentos, que deram início a
revoluções na biologia e na astronomia. A física tem tido menos sucesso em criar
novos conceitos com os quais compreender suas novas descobertas.
Após a revolução de Watson e Crick, na década de 50, a principal
revolução instrumental que se seguiu foi o advento dos computadores eletrônicos
e dos bancos de memória, nos anos 60. O processamento eletrônico de dados
revolucionou todos os ramos da ciência experimental, ao passo que as
simulações de computador revolucionaram todos os ramos da ciência teórica.
Tanto a revolução de Watson e Crick como a dos computadores derivaram de
instrumentos importados da física.
Incidentalmente, o computador também criou uma revolução na própria
física, aumentando o poder das teorias físicas na interpretação de experimentos e
na previsão de fenômenos. O computador é um exemplo característico de
instrumento intelectual. Não se trata de um conceito, mas de um instrumento
para aclarar o pensamento. Ajuda-nos a pensar mais claramente porque nos
permite efetuar cálculos com mais precisão. O computador tem também um
efeito revolucionário ao estreitar a lacuna entre a matemática moderna e a física
teórica. Ideias matemáticas sofisticadas, que eram estranhas aos físicos de
gerações anteriores, são hoje usadas de modo rotineiro na construção de teorias
físicas.
A revolução do computador iniciou-se com um novo instrumento e,
rapidamente, emergiu como um novo estilo, à medida que os computadores
foram se tomando pequenos, baratos e disseminados. No começo da revolução,
quando John von Neumann construiu seu computador em Princeton, os
computadores eram grandes e caros. O computador de Von Neumann era
dedicado a dois grandes projetos: durante o dia, a previsão do tempo; à noite,
bombas de hidrogênio. Vinte anos mais tarde, quando a revolução se encontrava
a pleno vapor, os computadores tomaram-se pessoais, disponíveis a quem quer
que os desejasse e aplicáveis a uma grande variedade de objetivos. A
administração centralizada foi substituída pela improvisação do faça-você-
mesmo. Hoje, os computadores são tão comuns quanto máquinas de lavar roupa,
sendo empregados indiscriminadamente como instrumentos ou como
brinquedos.
E comum acontecer que uma revolução científica seja acompanhada de
uma mudança de estilo. Gosto de usar os nomes de Napoleão e de Tolstoi para
simbolizar dois estilos contrastantes: a organização e a disciplina rígidas
representadas por Napoleão, o caos e a liberdade criativa representados por
Tolstoi. No mundo dos computadores, Napoleão é o pesado mainframe da IBM;
Tolstoi é o humilde Macintosh. A revolução da informática representou uma
saída das ambições napoleônicas de Von Neumann em direção à anarquia
tolstoiana da Internet. Revoluções futuras trarão outras saídas desse tipo.
Nos últimos anos, tive a oportunidade de visitar dois laboratórios
extraordinários, ambos na Suíça: o laboratório internacional de física de
partículas conhecido como CERN [Centre Européen de Recherches
Scientifiques], em Genebra, e o centro de pesquisas da IBM em Rüschlikon,
perto de Zurique. Acontece que esses são os dois lugares em que se fizeram as
descobertas mais espetaculares da física nos últimos vinte anos — o CERN na
física de partículas e Rüschlikon na física da matéria condensada [estado sólido].
As pessoas do CERN descobriram o maravilhoso mundo das partículas W e Z;
as de Rüschlikon, o microscópio de tunelamento e os supercondutores de alta
temperatura.


Esses laboratórios são bons exemplos dos dois estilos da ciência. Com
suas grandes máquinas e sua administração centralizada, o CERN pertence
firmemente à tradição napoleônica, mesmo que seu novo diretor-geral,
Chistopher Llwellyn-Smith, não envergue a tiara imperial de modo tão
espalhafatoso como seu predecessor, Cario Rubbia. De modo igualmente firme,
o laboratório da IBM em Rüschlikon situa-se na tradição tolstoiana, com uma
estrutura social que se assemelha a uma família estendida, em que ninguém dá
ordens. Os dois estilos são apropriados para as diferentes tarefas a que cada
instituição se dedica. Para se operar com eficácia uma máquina do tamanho e da
complexidade do LEP, Large Electron-Positron Collider [Acelerador de grandes
dimensões para colisões elétrons-pósitrons], (o nome do dispositivo foi escolhido para
resultar na sigla LEP, a qual evoca “lépton”, que designa partículas elementares leves, como é o caso do
elétron e do pósitron. Partículas pesadas, como o nêutron e o próton, são “bárions” - N. T.) a
centralização napoleônica é inevitável. Grandes máquinas exigem grandes egos
para serem construídas e operadas. Cada experimento realizado no LEP se
assemelha a uma campanha militar, com uma logística elaborada e cronogramas
preparados com vários anos de antecedência. Por outro lado, cronogramas
militares seriam completamente deslocados em Rüschlikon, onde não se
antecipam nem se esperam grandes descobertas. Em Rüschlikon, a
administração fornece equipamento excelente para o divertimento de cientistas
talentosos, aos quais dá liberdade.
O futuro trará oportunidades para construir novos instrumentos e fazer
novas descobertas em todas as áreas da ciência, algumas exigindo disciplina
napoleônica, outras Uberdade tolstoiana. Tanto no plano nacional como no
internacional, o financiamento da ciência tende a ser instável. Crescentemente, o
dinheiro para a ciência será espasmódico e imprevisível. Em tal clima, os
empreendimentos napoleônicos serão mal adaptados para a sobrevivência;
iniciativas tolstoianas se darão melhor. Devemos nos preparar para reorientar a
ciência o máximo possível em direção a um estilo de operação tolstoiano. Em
certas ciências, como a microbiologia e a neurobiologia, o que prevalece é o
caos tolstoiano. As duas áreas da ciência em que será mais difícil afastar-se da
rigidez napoleônica são a física de partículas e a ciência espacial. Acontece que
essas são, também, minhas áreas de atuação profissional como cientista.
Quando iniciei minha vida como físico de partículas, cin- qüenta anos
atrás, a maioria das principais descobertas era feita na Europa, por pessoas que
estudavam os raios cósmicos que bombardeiam a Terra vindos do espaço. A
física de partículas se desenvolvia pela observação dos fragmentos produzidos
por raios cósmicos ao atravessarem a atmosfera e o aparato experimental. Esses
fragmentos se constituem de partículas de vida curta e nomes pouco familiares.
Nessa época, a física de partículas se encontrava numa fase tolstoiana. Conversi,
Pancini e Piccioni, três jovens italianos, trabalhando com contadores de
partículas feitos em casa, no caos da Itália do pós-guerra, descobriram que a
partícula mais comum presente nos raios cósmicos, o múon, só participa de
interações fracas com a matéria. Trabalhando com microscópios e chapas
fotográficas em Bristol, Inglaterra, Cecil Powell descobriu uma partícula mais
rara nos raios cósmicos, e que participa de interações mais fortes, o píon. Outras
novas e estranhas partículas foram descobertas em Manchester por Rochester e
Butler, empregando antigas câmaras de bolhas. A nova onda da física de
partículas desenvolveu-se em alguns poucos anos, a partir de experimentos
improvisados e pela observação de partículas fornecidas pela Natureza.
Enquanto isso, norte-americanos sediados em Berkeley e Cornell e
Chicago preparavam-se para construir aceleradores que produziriam partículas
de forma mais abundante e desbancariam os experimentadores europeus de raios
cósmicos. Em cinco anos, os aceleradores triunfaram e a física de partículas
ingressou numa longa fase napoleônica. Por quarenta anos os aceleradores
cresceram em tamanho e preço, e os Napoleões da aceleração de partículas
colecionaram prêmios Nobel, liderando rumo à vitória equipes cada vez maiores
e mais caras.
Hoje, nos Estados Unidos, a física de partículas luta para sobreviver ao
desastre do Superacelerador por Supercondutividade [Superconducting
Supercollider], O Superacelerador era o projeto para um acelerador gigantesco,
cancelado em 1993 depois que cerca de 3 bilhões de dólares já tinham sido
gastos. O cancelamento constituiu uma tragédia pessoal para muitos de meus
amigos, que tinham devotado os melhores anos de suas vidas ao projeto. Mas
quando falo do desastre do Superacelerador, não me refiro ao cancelamento do
projeto. O desastre ocorrera cinco anos antes, quando os promotores do
Superacelerador induziram o Congresso e o público a acreditar que seria
impossível conduzir pesquisa relevante em física de partículas por menos de 5
bilhões de dólares. A crença não era simplesmente falsa, mas imensamente
danosa ao futuro da ciência. O dano seria ainda maior caso se tivesse permitido
que o projeto do Superacelerador prosseguisse.
Toda máquina de grande porte implica uma aposta. Se a aposta tem
sucesso, a máquina produz descobertas importantes. Se a aposta fracassa, a
máquina é uma perda de tempo e de dinheiro. Uma aposta é razoável desde que
se possa suportar perdê-la sem arruinar-se. O Superacelerador não era uma
aposta razoável, pois não podíamos arcar com o custo de perdê-la.
Agora que o Superacelerador morreu, temos a oportunidade de nos
recuperar do desastre. Empregando aceleradores mais antigos, experimentadores
têm demonstrado que se pode conduzir muita física de partículas de boa
qualidade com máquinas que custam menos de 1 bilhão de dólares. No meio
tempo, o Grande Acelerador de Hádrons continuará a dar seguimento à tradição
napoleônica no CERN, numa escala que me parece razoável e apropriada. O
Acelerador de Hádrons fará o mesmo tipo de experimento que o Superacelerador
faria, por cerca de um quinto do custo. Se a Natureza for perversa e não fornecer
coisas novas para o Acelerador de Hádrons descobrir, os europeus terão perdido
a aposta, mas a ciência europeia não se terá arruinado.
Pode ser que os tempos estejam maduros para uma nova fase tolstoiana
na física de partículas. Mesmo cientistas que acreditavam que o Superacelerador
era uma ideia maravilhosa tinham consciência de que os grandes aceleradores de
partículas estavam se deparando com a lei dos retornos declinantes. Cada
patamar na escala dos aceleradores custava mais do que a escala anterior e
levava mais tempo para resultar em novas descobertas. A relação entre a
produção científica e a inversão de recursos financeiros diminuía rapidamente
com o aumento do tamanho. Em algum ponto, num futuro não muito distante, o
crescimento ulterior dos aceleradores estaria fadado a encalhar.
No entretempo, a Natureza continua a fornecer um suprimento gratuito
de raios cósmicos, havendo motivos para crer que também possa fornecer um
suprimento gratuito de partículas exóticas e desconhecidas que permeiam o
Universo. Grupos de cientistas em diversos países estão construindo grandes
detectores situados a grandes profundidades subterrâneas, com o objetivo de
estudar partículas conhecidas emitidas pelo Sol e, incidentalmente, procurar
partículas exóticas. Os detectores subterrâneos observam eventos naturais com
métodos tecnicamente sofisticados, semelhantes aos que são usados para detectar
partículas em experimentos com aceleradores.
Existem hoje em operação seis detectores subterrâneos modernos, dois
nos Estados Unidos, dois no Japão, um na Itália e um na Rússia. Muitos outros
estão sendo construídos e projetados. A nova geração de detectores subterrâneos
tem quatro virtudes. Primeiro, são cerca de dez vezes mais baratos do que os
aceleradores. Segundo, são flexíveis, podendo ser reprogramados facilmente de
modo a investigar novos fenômenos em resposta a novas ideias científicas.
Terceiro, têm mais probabilidade de levar a descobertas inesperadas ou não
imaginadas do que experimentos com aceleradores. Quarto, adaptam-se melhor
do que os aceleradores a um estilo de operação informal e tolstoiano.
Os aceleradores têm virtudes que faltam aos detectores subterrâneos:
medidas de alta precisão, grande abundância de partículas e reprodutibilidade
dos resultados. Se tivermos sorte, técnicas radicalmente novas de aceleração
poderão, no futuro, levar a uma redução drástica de escala e de custos para
aceleradores de dado nível de energia. Minha esperança para o futuro dos
aceleradores é uma revolução impulsionada pelo novo instrumento da tecnologia
laser. Do primeiro ciclotron, de 1930, ao superacele- rador de hoje, todas essas
máquinas fizeram uso de campos eletromagnéticos na região das
radiofrequências para acelerar partículas. A técnica básica de aceleração não
mudou em sessenta anos. E as intensidades de campo que produzem a aceleração
parecem limitadas a cerca de 100 milhões de volts por metro. A tecnologia do
laser, que é uma fonte de luz coerente, permite-nos gerar intensidades de campo
mil vezes maiores, da ordem de 100 bilhões de volts por metro. O problema de
usar campos laser tão intensos em frequências ópticas ainda não foi resolvido.
Caso o problema fosse solucionado, então seria possível construir aceleradores
de alta energia de um tipo novo, imensamente menores e mais baratos do que os
aceleradores de desempenho comparável existentes hoje.
Há muitos obstáculos a suplantar antes que esse sonho se torne realidade;
diversos especialistas proeminentes em projeto de aceleradores decretaram que
isso é impossível. No entanto, acontece que, antes de toda revolução tecnológica,
os experts da tecnologia existente sempre declaram que uma revolução é
impossível. De outro modo, não seria uma revolução. Portanto, ainda há uma
boa chance de que aceleradores radicalmente melhorados venham a ser
inventados. Mesmo que aceleradores a laser não venham a satisfazer as minhas
esperanças, é provável que uma revolução na aceleração de partículas surja de
alguma direção inesperada. A física de partículas continuará a precisar de
aceleradores, bem como de detectores subterrâneos. Mas, no futuro, o equilíbrio
tenderá a pender para o lado dos detectores, e essa é uma tendência alvissareira
para pessoas como eu, tolstoianas incuráveis. Enxergo um futuro brilhante para a
física de partículas quando a era napoleônica terminar.
Durante os últimos trinta anos, o estilo napoleônico tem sido ainda mais
dominante na ciência espacial do que na física de partículas. Missões
ambiciosas, como a expedição das naves Voyager aos planetas exteriores e a
exploração de galáxias distantes pelo Telescópio Espacial Hubble, trouxeram de
volta à Terra um tesouro de conhecimento científico, bem como glória política
aos Napoleões burocráticos da Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço
(NASA). Dentro da NASA, contudo, da mesma forma que na comunidade dos
físicos de partículas, sopram ventos de mudança. Missões de bilhões de dólares
já não estão em moda. No futuro, o financiamento será errático. As melhores
chances de materialização residirão em missões pequenas e baratas.
Recentemente, passei algumas semanas no Jet Propulsion Laboratory, em
Pasadena (Califórnia). Foi o JPL que construiu e operou as missões Voyager. É a
parte mais independente e imaginosa da NASA. Eu estava particularmente
interessado em três missões planetárias que o pessoal do JPL tinha esperanças de
lançar: Cassini, Pluto Express e Neptune Orbiter. A Cassini é a última das
missões pertencentes à tradição napoleônica. O maquinário da Cassini está
guardado numa sala limpa (ambiente em
que a quantidade de
partículas em suspensão no ar é mantida baixa - N. T.) no
JPL, à espera de seu lançamento em 1997, se tudo der certo (a sonda foi lançada com
sucesso em 15 de outubro de 1997, em meio a protestos de organizações ambientalistas que se opunham à
presença de um reator nuclear a bordo - N. T.). Após uma viagem longa e complicada, a
Cassini assumirá uma órbita em torno de Saturno e se aproximará dos anéis e
satélites do planeta, mandando para a Terra muito mais informações do que as
naves Voyager foram capazes de enviar durante sua rápida passagem por ali.
A Cassini se parece com a Voyager. Trata-se de uma espaçonave de
dimensões grandes, com diversos apêndices que levam diferentes tipos de
instrumentos. Estima-se que, incluindo cinco anos de operação no sistema
saturniano, o custo da missão chegue a 3,5 bilhões de dólares. Sob o ponto de
vista científico, a Cassini é uma missão excelente, mas sob a perspectiva política
é altamente vulnerável. Trata-se de um exemplo paradigmático do tipo de missão
que reformistas da NASA e do Congresso gostariam de abolir.
As naves Pluto Express e Neptune Orbiter não estão em salas limpas do
JPL. Ambas existem como ideias nas mentes dos projetistas do JPL. A Pluto
Express completaria a exploração dos planetas exteriores, iniciada pela
exploração das Voyager, tirando fotos de alta resolução, em diversos
comprimentos de onda, de Plutão e de seu grande satélite, Caronte. Depois de
passar por Plutão, prosseguirá até o anel de Kuiper, um conjunto de objetos
menores, descoberto recentemente, que orbita o Sol para além da órbita de
Netuno. O projeto da Pluto Express baseia-se num encolhimento radical dos
instrumentos levados pelas Voyager. Tive nas mãos o protótipo do conjunto de
instrumentos da nova missão. O conjunto pesa sete quilos. Faz o mesmo que os
instrumentos da Voyager, que pesavam mais de cem quilos. Todos os
componentes de hardware — ópticos, mecânicos, estruturais e eletrônicos —
tiveram seu tamanho drasticamente reduzido, sem sacrifício de desempenho.
A Neptune Orbiter é uma ideia ainda mais arrojada. Ainda não foi
aprovada como proposta e, menos ainda, como missão. Foi projetada não apenas
para efetuar uma passagem por Netuno, mas para entrar em órbita em tomo do
planeta e explorá-lo detalhadamente, bem como seus satélites. Netuno é três
vezes mais distante da Terra do que Saturno, e a ideia é que se execute em
Netuno a mesma tarefa que a Cassini fará em Saturno — mas com uma redução
de custos da ordem de dez, por meio do uso de novas tecnologias.


Quatro novas tecnologias são cruciais para a redução de custos. A
primeira é a mesma para a Neptune Orbiter e para a Pluto Express; as outras três
são específicas da Neptune Orbiter. São elas: 1) redução do tamanho de
instrumentos e computadores, sem ' perda de desempenho; 2) desaceleração
atmosférica na rarefeita estratosfera de Netuno, para reduzir a velocidade da
sonda e para que esta assuma uma órbita em tomo do planeta sem que, para isso,
precise gastar grandes quantidades de Gombustível; 3) propulsão eletrossolar; 4)
estruturas infláveis, ativadas no espaço.
Usar propulsão eletrossolar significa empregar a energia do Sol para
gerar eletricidade e usar a eletricidade para acionar um motor de jato iônico. O
jato iônico é feito de xenônio, um gás pesado que pode ser comprimido de modo
conveniente até a densidade da água e transportado em tanques pequenos, sem
necessidade de refrigeração. Quando visitei o JPL, O protótipo do motor iônico
de xenônio passava por testes de resistência num tanque. Ele precisa funcionar
durante dezoito meses sem perda de desempenho, para que se possa considerar
seriamente seu uso numa missão operacional. A fonte de energia da missão é um
par de grandes painéis solares extremamente leves. Os painéis são grandes o
suficiente para fornecer energia para a manutenção da sonda e as comunicações
com a Terra a uma distância enorme como a que nos separa de Netuno.
Estruturas infláveis têm sido amplamente empregadas como cobertura
barata para quadras de tênis e playgrounds. No espaço, seriam usadas para criar
longarinas, membranas e antenas parabólicas de baixo peso. Seriam inicialmente
infladas como balões, pela injeção de gás a baixa pressão, e depois submetidas a
tratamento químico, para que enrijecessem e assumissem sua forma permanente.
Visitei o grupo de estruturas infláveis do JPL. Eles sonham em reduzir por um
fator de cem os custos de todas as estruturas grandes e delgadas, como antenas
de rádio, coletores solares, espelhos ópticos e freios aerodinâmicos. As quatro
novas tecnologias — instrumentos miniaturizados, frenagem atmosférica,
propulsão eletrossolar e estruturas infláveis — estão aparecendo no JPL de
forma tolstoiana, impulsionadas pelo entusiasmo da base e não pelo
gerenciamento vindo de cima.
A Neptune Orbiter é um projeto arrojado, que abre novas vias de
exploração em muitas direções. Exige tecnologia nova e um novo estilo de
gerenciamento. Pode vir a fracassar, caso os administradores não sejam tão
arrojados como os projetistas. Os gerentes podem transformá-lo numa missão
que não seja barata o suficiente para poder ser lançada. Mas a propulsão
eletrossolar abriu as portas para uma nova geração de naves pequenas e
eficientes, que aproveitam ao máximo os enormes progressos que se
conseguiram nos últimos trinta anos na miniaturização de instrumentos e de
computadores. O emprego da propulsão eletrosso- lar mudará a natureza e o
estilo de exploração das missões planetárias. Naves que empreguem a propulsão
eletrossolar poderão vaguear pelo sistema solar, mudando suas trajetórias
conforme as necessidades da ciência. A propulsão eletrossolar lhes dará a
flexibilidade de cuidar de seus afazeres de um modo tolstoiano, e não
napoleônico. Caso a Neptune Orbiter não consiga se materializar, alguma outra
missão ainda mais arrojada encontrará sucesso. Como na física de partículas, o
colapso da velha ordem na- poleônica na ciência espacial abre novas
oportunidades para os espíritos aventurosos.
A astronomia de superfície também se encontra em meio a uma
revolução. A revolução é impulsionada por um novo instrumento de observação,
o Charge Coupled Device [Dispositivo Acoplado de Carga], popularmente
conhecido como CCD. O CCD é o detector que tomou possível a moderna
câmera de TV. Coleta luz simultaneamente em 1 milhão de pontos e transfere os
padrões de intensidade luminosa diretamente para um computador. O CCD está
provocando uma transformação radical na astronomia óptica. Em vez de chamar
essa revolução de revolução do CCD, prefiro denominá-la revolução da
Astronomia Digital. Foi prevista pelo astrônomo suíço Fritz Zwicky, muito antes
da invenção do CCD. Cito da Conferência Halley, proferida por Zwicky em
1948 em Oxford, intitulada “Morphological astronomy” [Astronomia
morfológica]. Zwicky descrevia um sistema para câmeras de televisão chamado
telescópio fotoeletrônico, no qual ele trabalhava junto com seu amigo Vladimir
Zworykin na Rádio Corporation of America (RCA): “O telescópio
fotoeletrônico introduz os seguintes novos recursos. (1) Os elétrons podem ser
acelerados da superfície de imagem para a superfície de gravação e é possível
injetar potência no telescópio, para aumentar a intensidade dos sinais. (2)
Podem-se eliminar fundos uniformes de luz por meio de compensação elétrica.
Desse modo, é possível eliminar o fun-
do celeste. (3) Embora a imagem original seja capaz de mover- se, dançar
ou cintilar devido à instabilidade atmosférica, a imagem refocalizada na
superfície de gravação pode ser estabilizada. Zworykin chegou a construir um tal
estabilizador de imagem. (4) É possível conseguir o direcionamento automático
do telescópio. (5) Imagens obtidas com telescópios fotoeletrônicos podem ser
televisionadas, fazendo com que a busca por novas, supernovas, estrelas
variáveis, cometas, meteoros etc. seja colocada numa escala de produção em
massa, mesmo que os telescópios tenham potência e definição relativamente
limitadas”.
Zworykin havia sido um dos pioneiros no desenvolvimento da televisão.
Ele morava vizinho a mim em Princeton, e era tão brilhante e expansivo quanto
Zwicky. Em 1948, Zwicky esperava que todos os benefícios que mencionara em
sua conferência seriam proporcionados pela câmera de Zworykin. A câmera de
Zworykin não cumpriu as expectativas de Zwicky, mas o CCD moderno faz tudo
o que ele queria. O principal motivo pelo qual o sistema de Zworykin fracassou
foi que ainda dependia de chapas fotográficas para registrar imagens. O principal
motivo pelo qual o CCD tem sucesso é que se associa a uma memória digital em
vez de a uma imagem química registrada numa chapa. A revolução da
astronomia digital teve que esperar pela maturação da tecnologia de
processamento de imagem, com seus microprocessadores poderosos e memórias
digitais capazes de lidar com a abundância de dados fornecida pelo CCD. Hoje a
astronomia é uma simbiose íntima de três culturas: a velha cultura dos
telescópios ópticos, a tecnologia mais recente da eletrônica e a novíssima cultura
da engenharia de software.
A revolução da astronomia digital abrange tanto cientistas profissionais
como astrônomos amadores. Um bom exemplo de astronomia digital no plano
profissional é o Sloan Digital Sky Survey [Levantamento Digital Celeste Sloan],
projeto em que estão envolvidos ativamente muitos dos meus colegas de
Princeton. O Levantamento Sloan é uma versão moderna do Palomar Sky
Survey [Levantamento Celeste Palomar], inventário fotográfico do céu do
hemisfério Norte terminado em 1956, que forneceu aos astrônomos o primeiro
mapa em grande escala do Universo. As chapas do Levantamento Palomar têm
sido imensamente úteis, mas agora estão para ser substituídas por algo melhor. O
Levantamento Sloan proporcionará um mapa celeste fotometricamente preciso
em cinco cores, mais uma coleção de espectros com desvios para o vermelho de
cerca de 1 milhão de galáxias e outros objetos interessantes. Um dos
subprodutos será uma vista tridimensional da estrutura de larga escala do
Universo, abrangendo um volume cem vezes maior do que o coberto pelos
levantamentos existentes.
O produto do levantamento será transmitido em velocidade eletrônica
para qualquer centro astronômico que possua uma memória digital grande o
suficiente para engoli-lo. O tamanho da memória necessária será da ordem de
dezenas de milhares de megabytes. Para interessados que não disponham de
memórias tão gigantescas, existirão diversas versões pré-digeridas dos registros,
em que os dados fotométricos estarão compactados em catálogos de estrelas e de
galáxias, suplementados por imagens de regiões particularmente interessantes. A
diferença essencial entre o Levantamento Sloan e levantamentos anteriores é que
seu produto será quantitativo, consistente de dados numéricos precisos, em vez
de marcas enevoadas em chapas fotográficas. O produto será empacotado de
modo a permitir que lhe sejam aplicados todos os truques do moderno
processamento de dados. O objetivo do levantamento é empregar a tecnologia
digital moderna para dar a todo mundo uma imagem clara do Universo.
O Levantamento Sloan é um projeto cooperativo, em que Princeton é um
entre sete parceiros. Emprega um novo telescópio com 2,5 metros de amplitude
de campo, construído em Apache Point, Novo México, e que permanecerá
dedicado ao projeto por cinco anos. Com sorte, o levantamento estará concluído
por volta do ano 2000. No plano focal do telescópio há um grande arranjo de
detectores CCD. Os componentes de hardware do projeto não forçam os limites
do estado da arte no design de telescópios ou de detectores. A principal novidade
do projeto reside no software, que precisa controlar a sequência de operações,
calibrar os detectores CCD, monitorar a qualidade do céu e aplicar diversos
níveis de compactação de dados ao produto antes da distribuição aos usuários. A
principal parcela dos custos do projeto é financiada pela Fundação Sloan,
seguindo o bom exemplo da National Geographical Society, que cinquenta anos
atrás proporcionou os fundos para o Levantamento Palomar. Estima-se que o
custo total atinja 14 milhões de dólares, incluindo o custo de capital do
telescópio. Isso corresponde a cerca de um quinto do custo de um grande
observatório de superfície e um centésimo do custo do Telescópio Espacial
Hubble.
Uma vez concluído nosso pequeno levantamento, haverá outros, que
registrarão em memória digital mapas mais amplos e profundos do Universo. Há
muitas direções de exploração para levantamentos futuros. Um pode buscar
objetos menos brilhantes e mais distantes, outro pode voltar-se para resoluções
angulares mais altas, outro ainda para resoluções espectrais mais elevadas. A
potência e a velocidade do processamento digital de dados continuará a crescer.
A revolução da astronomia digital continuará a nos fornecer vistas mais amplas
da estrutura de larga escala do Universo. Não haverá limites naturais para o
desenvolvimento dos levantamentos digitais, até que todo fóton vindo do céu
seja processado separadamente e sua direção, comprimento de onda e
polarização precisos sejam registrados.
Paremos por aqui quanto ao impacto da revolução digital sobre a
astronomia profissional. Voltemo-nos agora para os amadores. Já existem
câmeras CCD acessíveis comercialmente aos astrônomos amadores por menos
de mil dólares. Por 5 mil dólares é possível comprar um sistema CCD com
qualidade suficiente para competir com os profissionais. Nos velhos tempos,
quando a astrofotografia se fazia com câmeras fotográficas, os amadores tinham
que se deslocar para lugares afastados das luzes das cidades e esperar por noites
sem lua e de claridade excepcional, antes de tentar tirar fotos de objetos distantes
e apagados. Hoje, munidos de câmeras CCD, amadores são capazes de obter
boas imagens de objetos apagados onde quer que se encontrem, seja nos céus
poluídos de luz de Nova Jersey, seja ao luar, seja mesmo no lusco-fusco. Para o
amador, a vantagem decisiva do CCD é que permite uma subtração precisa do
fundo luminoso do céu. As imagens ainda não são tão boas quanto as de chapas
fotográficas obtidas em condições ideais, mas em condições médias não ideais
são muito melhores. Em alguns anos, com a queda de preço do CCD e com o
aumento da poluição luminosa, todo telescópio amador sério terá a seu lado um
CCD pronto para ser acoplado à sua ocular. Todo amador sério terá adquirido as
habilidades necessárias para usar o CCD com eficiência.
Como resultado da revolução digital, muda também a sociologia da
astronomia amadora. Até recentemente, o típico amador sério era alguém que
adorava lixar e polir espelhos, trabalhando horas a fio até obter uma figura óptica
perfeita. Quando o espelho se tomava tão perfeito quanto possível, era colocado
num telescópio e usado para tirar fotografias de planetas e galáxias. O objetivo
do jogo era obter fotografias belas o suficiente para serem publicadas em Sky
and Telescope. No entanto, a cultura do polimento de espelhos está morrendo.
Hoje, astrônomos amadores sérios são hackers que possuem computadores
pessoais com modems e são familiarizados com software e taxas de transmissão
de dados. Compram espelhos já prontos. Sentem-se mais à vontade com o
processamento eletrônico de dados do que com os detalhes finos da óptica
especular. Hoje, o objetivo do jogo é obter dados científicos quantitativos.
Devido ao fato de o CCD e o computador pessoal permitirem ao amador
fazer muitas coisas que anteriormente se limitavam à província dos profissionais,
estreitou-se a distância entre as comunidades amadora e profissional. Esse é o
terceiro aspecto da revolução digital. Hoje, abrem-se oportunidades para que
astrônomos profissionais e amadores trabalhem juntos no desenvolvimento de
ciência séria. Os profissionais têm muitos recursos que faltam aos amadores —
grandes telescópios, grandes computadores, acesso a fundos governamentais e
conhecimento teórico. Os amadores têm dois recursos que faltam aos
profissionais — instrumentos em abundância e tempo em abundância. Em
qualquer trabalho que seja intensivo em mão-de-obra e exija muitos
instrumentos que operem conjuntamente, os recursos de profissionais e
amadores podem ser combinados de forma útil. Numa conferência que proferi
em 1992 em Oxford, sugeri a astronomia de ocultação como uma área
promissora para a colaboração entre profissionais e amadores. A astronomia de
ocultação dedica-se a encontrar objetos escuros, situados num plano mais
próximo, pela ocultação de objetos brilhantes situados no fundo. O Universo
serve bem a esse tipo de descoberta, pois sabe-se que está repleto de matéria
escura, cuja natureza é um dos grandes mistérios da ciência.
A existência da matéria escura foi demonstrada pela primeira vez em
1930 por Fritz Zwicky. Ele tinha um pequeno telescópio de dezoito polegadas
instalado para seu uso pessoal no monte Palomar, na Califórnia. Com esse
pequeno telescópio ele fotografou todo o céu setentrional e compilou o primeiro
catálogo de galáxias abrangente. Zwicky interessava-se em especial por galáxias
congregadas em aglomerados gigantes. Um aglomerado gigante típico contém
vários milhares de galáxias. Zwicky mediu as velocidades das galáxias desses
aglomerados e descobriu que tais velocidades são consideravelmente maiores do
que deveriam ser caso as galáxias permanecessem associadas exclusivamente
pela atração gravitacional das massas visíveis. Se a atração gra- vitacional fosse
produzida apenas pelas galáxias visíveis, as galáxias se dispersariam. Uma vez
que elas não o fazem, precisam ser mantidas juntas por alguma massa dez ou
vinte vezes maior do que a massa visível. Nos sessenta anos que transcorreram
desde a descoberta de Zwicky, acumularam-se evidências em favor da existência
de uma matéria escura que permeia o Universo, mas ninguém sabe se ela
consiste de objetos sólidos, ou estrelas escuras, ou nuvens de partículas
pertencentes a alguma espécie desconhecida.
A astronomia de ocultação é uma boa técnica para descobrir a matéria
escura, pois há uma enorme quantidade de estrelas no fundo e um número
possivelmente imenso de cometas, planetas e outros corpos opacos mais
próximos. Objetos escuros mais pesados podem ser descobertos do mesmo
modo, prestando-se atenção numa amplificação, e não numa atenuação, dos
objetos do fundo. Objetos pesados criam lentes gravitacionais que defletem e
focalizam a luz de objetos situados diretamente atrás deles. As lentes
gravitacionais fazem com que, em vez de desaparecerem por ocultação, os
objetos do fundo pareçam mais brilhantes do que são. Recentemente, diversos
grupos de astrônomos profissionais têm conseguido observar a ação de lentes
gravitacionais causadas por objetos pesados sobre a luz proveniente de objetos
do fundo. Por enquanto, não há razões para crer que quaisquer dos objetos do
primeiro plano não sejam estrelas comuns. Para descobrir dessa maneira planetas
e outros tipos de objetos escuros, precisamos de mais instrumentos e de mais
pessoas a observar mais frequentemente os efeitos de lentes gravitacionais.
A forma de obter uma boa amostragem estatística de objetos escuros no
espaço é dispor de um grande número de telescópios automatizados, que
observem grandes quantidades de estrelas continuamente e por longos períodos
de tempo, com compartilhamento de dados numa rede de computadores que
correlacionem entre si as informações produzidas pelos telescópios. Para que um
tal sistema consiga operar a um custo razoável, seria extremamente útil poder
contar com manutenção e supervisão dos equipamentos por amadores
familiarizados com computadores. Os profissionais teriam que fornecer a
orientação científica geral, instalações centrais de computação e a análise dos
dados. Se um projeto conduzido nessas linhas lograsse sucesso na detecção de
objetos escuros, teria um grande valor educacional, além de científico. A parte
amadora do empreendimento poderia incorporar alunos de ciências do curso
secundário e pequenos observatórios de faculdades isoladas, bem como clubes e
entusiastas individuais. Além da busca por objetos escuros, muitos outros
programas de pesquisa poderiam ser conduzidos por uma rede internacional de
telescópios automatizados, que produzissem registros digitais. Qualquer
pesquisa que exigisse a monitorização precisa de grandes quantidades de objetos
teria condições de ser realizada de maneira semelhante. Além de novos estilos de
operar, esperamos que os amadores também tragam à astronomia novas ideias.
Na astronomia, como na música, no teatro e em todos os demais ramos da arte,
são os amadores que sustentam a cultura na qual os profissionais florescem.
O mundo da astronomia profissional, o mundo a que pertence o
Levantamento Sloan, ainda está no início da revolução digital e ainda não força
os limites da tecnologia digital. Nosso levantamento usará estações de trabalho
comuns para processar os dados, a uma taxa de cerca de um megabyte por
segundo. Levantamentos posteriores, que venham a empregar
supercomputadores e fibras ópticas para lidar com a produção de dados, poderão
facilmente vir a processar mil megabytes por segundo. Há um longo caminho a
percorrer antes que a revolução digital se esgote. E já vemos outras revoluções
em nosso futuro.
Até hoje, a astronomia tem sido tradicionalmente um esporte de
espectadores, em que os astrônomos observam eventos celestes mas não tentam
influenciar seu desenvolvimento. Nos últimos anos, duas razões fizeram com
que a intervenção ativa deixasse de ser impensável. Primeiro, o público se
conscientizou do fato de que extinções biológicas em massa ocorreram no
passado, podendo ter se associado a impactos de asteroides ou cometas que se
chocaram com a Terra. A mais famosa dessas extinções aconteceu há 65 milhões
de anos, quando os dinossauros desapareceram e, ao mesmo tempo, uma grande
cratera apareceu em Chicxulub, na região mexicana de Yucatán. Segundo, a
colisão do cometa Shoemaker-Levy com Júpiter, em 1994, resultou em
ferimentos naquele planeta que puderam ser vistos por milhões de pessoas, seja
por telescópios, seja pela televisão. O público tomou consciência de que danos
semelhantes à Terra poderiam ter tomado inabitáveis grandes áreas de nosso
planeta. Os choques com Júpiter tornaram claro a todos que é real o perigo de
tais eventos para a Terra. Uma estimativa grosseira indica que, para o ser
humano médio, a probabilidade de ser morto pelo impacto de um cometa ou
asteroide é comparável à probabilidade de ser morto por um terremoto. A
principal diferença entre terremotos e esses choques é que terremotos matam
quantidades pequenas de pessoas com alta probabilidade, ao passo que os
impactos matam grandes quantidades com pequena probabilidade. Tomamos
medidas ativas para reduzir os riscos de terremotos; por que não tomar medidas
ativas para reduzir os riscos de impactos?
O primeiro passo é estabelecer um sistema de vigilância para detectar
objetos que possam se encontrar em curso de colisão com a Terra. É preciso
detectar dois tipos de objetos: em primeiro lugar, aqueles que orbitam na região
interna do sistema solar e cujas trajetórias podem interceptar a da Terra; em
segundo lugar, os cometas de longo período, que vêm de reservatórios remotos
nas regiões mais externas do sistema solar. A busca pelos objetos do primeiro
tipo foi iniciada por Eugene e Carolyn Shoemaker com o mesmo pequeno
telescópio do monte Palomar com que Zwicky descobrira a existência de massas
escondidas em aglomerados de galáxias, cinquenta anos antes. Caso a busca
conte com apoio financeiro modesto, mas constante, será possível, dentro de um
período de vinte anos, obter um inventário completo de objetos de tamanho
substancial que possam vir a cruzar a trajetória da Terra.
Provavelmente, existem alguns milhares de tais objetos, com diâmetros
maiores do que um quilômetro. É improvável que mais de dois ou três deles
venham a ser tão grandes como o objeto de Chicxulub, cujo diâmetro deve ter
sido da ordem de dez quilômetros. Quando o inventário for completado,
saberemos se algum desses objetos se encontra em rota de colisão com a Terra.
Se descobrirmos que um deles está em curso de colisão com a Terra, saberemos
com precisão a data em que o choque acontecerá e o tempo disponível para que
se possam tomar medidas a fim de evitá-lo. Dado que é pequena a probabilidade
de um impacto de grandes proporções ocorrer dentro de 1 milhão de anos, o
tempo de aviso será quase certamente maior do que cem anos. A probabilidade
de que esse tempo seja de apenas um ano é da ordem de apenas uma em 1
milhão.
O problema na detecção de cometas de período longo é mais difícil.
Jamais poderá existir um inventário completo deles, pois cometas de longo
período aparecem esporadicamente, vindos das profundezas do espaço, passam
uma vez pelas regiões internas do sistema solar e raramente são vistos outra vez.
Se um cometa de longo período se encontra em rota de colisão com a Terra, o
tempo de aviso será o tempo que demorará para ele percorrer a distância que o
separa do ponto no qual for detectado e o ponto em que a Terra se encontrará
quando as trajetórias de um e de outra se interceptarem. Com os meios de
detecção de que dispomos hoje, esse tempo será tipicamente de um ou dois anos.
Para conseguir um tempo de cem anos será necessário contar com um sistema de
detecção muito mais poderoso. O que se precisa é de um grande telescópio de
campo largo em órbita, um telescópio em que se combinem o campo largo do
telescópio do Novo México, usado pelo Levantamento Sloan, com a resolução e
a sensibilidade do Telescópio Espacial Hubble.
O telescópio de campo largo em órbita não existe e não pode ser
construído com a presente tecnologia, mas nada impede que venha a ser
construído com as novas tecnologias de espelhos delgados e leves e do controle
óptico ativo de superfícies especulares, as quais se encontram atualmente em
desenvolvimento e estarão disponíveis dentro de vinte anos. Quando tais
tecnologias forem aperfeiçoadas, deverá ser possível construir e lançar um
telescópio de campo largo a um preço muito menor do que o do Telescópio
Hubble. Uma frota de satélites munidos desses telescópios nos permitiria
conduzir um novo Levantamento Digital Celeste com resolução cem vezes maior
do que a do Levantamento Sloan, e atingindo distâncias maiores. Como
subproduto do • novo Levantamento Digital, poderíamos detectar cometas de
período longo e singularizar aqueles que pudessem trazer perigo à Terra, com
antecedência da ordem de cem anos. Telescópios de campo largo no espaço para
vigiar cometas e uma rede de telescópios menores na superfície do planeta para
vigiar objetos em órbitas internas à da Terra nos proporcionariam um alerta de
cem ou mais anos quanto a impactos sérios de ambos os tipos. O custo de manter
e operar um tal sistema de alarme não deveria ser maior do que o custo dos
satélites do Sistema de Observação Terrestre [Earth Observing System — EOS],
que serão lançados durante a próxima década para monitorar a biosfera e o clima
terrestres. Seria razoável que se gastassem quantias iguais tanto para olhar para
dentro como para fora.


O que deveríamos fazer se detectássemos um objeto de grandes
dimensões em curso de colisão com a Terra? Essa é a questão que tem dominado
a discussão pública do problema dos impactos. A resposta que o público tem
ouvido é a de se lançar uma barragem de mísseis nucleares e defletir o objeto
com bombas de hidrogênio. Essa resposta é errada. Bombas de hidrogênio são
tecnicamente inadequadas para a tarefa de defletir um asteroide ou cometa. Para
defletir um objeto pesado é preciso transferir-lhe quantidade de movimento, não
energia. Uma bomba de hidrogênio transfere uma imensa quantidade de energia,
com muito pouca quantidade de movimento. Para transferir quantidade de
movimento com eficácia, é necessário empurrar suave e constantemente e não
dar um sacudão explosivo. Além de serem tecnicamente ineficazes, as bombas
de hidrogênio apresentam outras desvantagens óbvias. O público conclui
acertadamente que, se bombas de hidrogênio são a resposta para o problema dos
impactos, então a cura é pior do que a doença. O público também suspeita que os
donos de bombas de hidrogênio estão usando o problema dos impactos como
pretexto para manter viva a indústria das armas nucleares.
A resposta correta para o problema dos impactos está nos impulsores de
massa. O impulsor de massa é uma máquina inventada por meu amigo Gerard
O’Neill há vinte anos. O’Neill era professor de física na Universidade de
Princeton e, com a ajuda de estudantes de graduação, construiu um impulsor de
massa no porão do Departamento de Física de Princeton. Custou algumas poucas
centenas de dólares e funcionou maravilhosamente. Hoje pertence ao Instituto de
Estudos Espaciais de Princeton, entidade privada de pesquisa fundada por
O’Neill. Consiste em um acelerador magnético que impulsiona pequenos carros
ao longo de trilhos retilíneos. Cada carrinho leva uma pequena carga, que se
pretende acelerar. No fim dos trilhos a carga é ejetada a alta velocidade e o
carrinho vazio volta para o ponto de partida. O peso da carga é ajustado
conforme a potência e a velocidade do acelerador. O impulsor de massa de
Princeton tem apenas um metro de comprimento e acelera cargas a uma
velocidade de cem metros por segundo. Para defletir um cometa, seria necessário
um modelo maior, com talvez cem metros de comprimento, e que acelerasse a
carga a um quilômetro por segundo. A carga se constituiria de material do
cometa, seja gelo ou minerais. A carga seria lançada ao espaço com uma certa
quantidade de movimento e uma quantidade de movimento igual e oposta seria
fornecida ao cometa. O impulsor de massa defletiria o cometa com base na
segunda lei de movimento de Newton: a toda ação corresponde uma reação igual
e oposta. A fonte de energia seria o Sol.
Para fazer o sistema funcionar diversos problemas de engenharia
precisariam ser resolvidos. Seria necessário lançar o impulsor de massa ao
espaço e fazê-lo encontrar-se com o cometa. Seria preciso instalar o dispositivo
no cometa, munido de coletores solares para fornecer-lhe energia elétrica e
escavadeiras para recolher material do cometa. Tudo isso demandaria tempo.
Com cem anos de antecedência, haveria tempo suficiente.
Impulsores de massa constituem uma solução econômica para o
problema do impacto devido a um fato essencial: a potência necessária para
defletir um objeto é diretamente proporcional à massa do objeto e inversamente
proporcional ao quadrado do tempo de aviso. O que torna o problema tratável é
esta última dependência. Para um exemplo numérico, imaginemos um cometa
médio, com diâmetro de um quilômetro. A massa do cometa é de cerca de 1
bilhão de toneladas. Se a velocidade conseguida pelo impulsor de massa é de um
quilômetro por segundo, se a eficiência da conversão da energia solar é de 10% e
se o tempo de aviso é de cem anos, então a potência necessária para fazê-lo
desviar- se da Terra é de dez quilowatts. Essa não é uma potência extravagante
para um coletor solar, mesmo que deva operar longe do Sol. Dez quilowatts é
potência em escala humana, não em escala astronômica. E notável que dez
quilowatts no lugar certo possam salvar 1 bilhão de vidas.
Mesmo se o objeto não fosse um cometa médio, mas um monstro com
massa 10 mil vezes maior, como o objeto que abriu a cratera de Chicxulub e,
possivelmente, extinguiu os dinossauros, a potência necessária para defleti-lo
seria de apenas cem megawatts. Um impulsor de massa de cem megawatts talvez
precisasse de um coletor solar inconvenientemente grande. No caso de um objeto
do tamanho de Chicxulub, que apareceria em curso de colisão com a Terra uma
vez a cada 100 milhões de anos, talvez preferíssemos usar um reator nuclear de
cem megawatts, em vez de energia solar. Um reator de cem megawatts não é
uma bomba de hidrogênio. É pequeno se comparado com os reatores modernos.
Se funcionasse por cem anos, consumiria apenas três toneladas de urânio.
No debate público sobre o problema dos impactos costuma- se supor que
os tempos de aviso serão curtos. Num tempo curto, a única resposta possível
parecem ser as bombas de hidrogênio; é óbvio que impulsores de massa seriam
pequenos demais e não haveria tempo suficiente. No entanto, caso um objeto do
tamanho de Chicxulub aparecesse com um tempo de aviso de um ou dois anos,
tanto impulsores de massa como bombas de hidrogênio seriam igualmente
inúteis. Nada do que pudéssemos fazer evitaria o impacto. Dois anos de
antecedência poderiam nos permitir salvar uma boa parte da humanidade por
meio de medidas passivas de defesa civil — pela armazenagem de alimentos,
remédios, fertilizantes e sementes, de modo a permitir àqueles que
sobrevivessem aos efeitos imediatos do impacto que se recuperassem e
reconstruíssem a nossa civilização. Dois anos de antecedência não seriam inúteis
e poderiam representar a diferença entre o colapso total da civilização e uma
recuperação relativamente rápida. Cem anos seriam muito melhor e permitiriam
que se montasse uma defesa ativa com impulsores de massa sem pressa, a um
custo razoável.
A boa notícia para a humanidade é que um sistema completo de
telescópios de vigilância e de defesas com impulsores de massa poderia ser
montado no próximo século, fornecendo-nos o tempo de cem anos necessário
para resolver com tranquilidade o problema dos objetos que pudessem chocar-se
com a Terra. A boa nova para a astronomia é que os telescópios de vigilância não
apenas descobririam tais objetos mas nos dariam vistas grandemente ampliadas
de todo o Universo visível. A astronomia e a proteção de nosso planeta poderiam
conviver numa simbiose febz.
A ciência dominante no século XXI será a biologia. Em particular, dois
ramos da biologia, a genética e a neurofisiologia, nos apresentam abundantes
problemas fundamentais não resolvidos, que novos instrumentos tecnológicos
nos permitirão abordar. De início, os instrumentos serão emprestados da física e
da química. Mais adiante no século, é provável que novos instrumentos surjam
de tecnologia puramente biológica. Devido ao fato de esses problemas serem
importantes sob o ponto de vista médico, haverá disponibilidade de dinheiro para
aqueles que procurem resolvê-los.
Na genética, um dos problemas fundamentais é compreender o
maquinário que controla o desenvolvimento dos organismos superiores. Os
geneticistas já fazem progressos rápidos na exploração desse maquinário
genético; a arquitetura bioquímica do processo de desenvolvimento é
compreendida em suas linhas gerais. Entender as minúcias dos programas
genéticos que governam o crescimento perfeito das mãos e dos olhos humanos
demandará um pouco mais de tempo. O estudo detalhado da programação
genética do desenvolvimento humano acompanhará o sequenciamento dos
genomas humanos. Após o primeiro genoma humano ser sequenciado, faremos o
mesmo com uma grande variedade de genomas humanos e de outras espécies,
explorando as conexões entre genótipo e fenótipo. A construção de uma
biblioteca de genomas da biosfera terrestre será um empreendimento semelhante
ao levantamento digital do céu. Levantamentos Digitais da Biosfera serão tão
essenciais para o futuro da biologia quanto os Levantamentos Digitais Celestes
serão para a astronomia. Tanto na biologia como na astronomia, os
levantamentos digitais serão instrumentos para conseguirmos uma compreensão
mais profunda de nosso Universo e de sua evolução. O que faremos com esses
instrumentos dependerá de descobertas a serem ainda realizadas. O problema
não resolvido mais profundo da biologia é a origem da vida. Quando, no século
XIX, Darwin apresentou sua teoria evolutiva por seleção natural, evitou
cuidadosamente qualquer declaração de que sua teoria pudesse explicar a origem
da vida. No século XX, propuseram-se diversas teorias para a origem da vida,
descrevendo-se rotas possíveis pelas quais populações de moléculas mortas
poderiam organizar-se em células vivas. Mas essas teorias permaneceram vagas
e especulativas, fora do alcance do teste experimental. No século XXI, é
provável que se descubram instrumentos que tornarão o problema das origens
acessível à experimentação.
Serão necessários instrumentos de muitas áreas científicas diferentes: da
geologia, novas maneiras de encontrar vestígios do início da vida nas rochas
mais antigas; da química, novos modos de analisar microfósseis e recuperar
evidências de sua composição original; da microbiologia, conhecimento exato da
arquitetura dos componentes mais primitivos das células modernas e, em
particular, conhecimento sobre a estrutura atômica dos ribossomos de linhagens
antigas de bactérias.
A invenção biológica chave foi o ribossomo, que permite à informação
genética ser traduzida em estrutura anatômica. A arqueologia do ribossomo será
o campo de testes crucial para teorias sobre a origem da vida. Outros
instrumentos para esse estudo virão da exploração do sistema solar. A química
complexa de cometas, asteroides e meteoritos trará evidências detalhadas sobre a
química da Terra primeva, da qual a vida surgiu. Se tivermos sorte, poderemos
encontrar vestígios de vida em Marte. Se tivermos muita sorte, poderemos
encontrar vida que sobreviva em nichos quentes sob a superfície marciana.
Poderemos mesmo ter a sorte de encontrar vida nos profundos oceanos que,
provavelmente, existem debaixo da superfície gelada da lua jupiteriana de
Europa. O próximo século verá a exploração de todas essas possibilidades. O
lento acúmulo de fatos provindos de muitas disciplinas deslocará a origem da
vida do domínio da conjectura para o domínio da ciência testável. Depois que se
tiverem reunido todas as evidências da geologia, da química, da microbiologia e
da exploração planetária, talvez se tome finalmente possível simular a origem da
vida num computador e reproduzi-la em laboratório.
Os problemas não resolvidos da neurofisiologia são mais difíceis, e o
terreno de progresso menos claro. O problema mais básico é entender os
princípios de organização de um sistema nervoso central. Esse problema não
pode ser atacado diretamente com os instrumentos de que dispomos hoje. São
necessários novos instrumentos, tanto para coletar como para interpretar dados
neurológicos. Para a coleta precisamos de novo hardware, emprestado da física,
de modo a detectar sinais neurais com alta resolução e de forma não invasiva.
Para a interpretação precisamos de novo software, emprestado da ciência da
computação e da matemática, para discriminar sinais significativos num confuso
mar de ruídos. Provavelmente, a neurofisiologia progredirá num ritmo mais lento
do que a genética, mas ambas as disciplinas estão maduras para descobertas
espetaculares que, por sua vez, darão origem a novas ciências.
Quando prevejo que a biologia será a ciência dominante nos próximos
cem anos, isso não significa a exaustão da física. A física também tem seus
problemas fundamentais não resolvidos e está desenvolvendo novos
instrumentos para atacá-los. É provável que a física progrida mais lentamente do
que a biologia, porque os instrumentos de pesquisa da física são mais elaborados
e os problemas irresolvidos são em menor quantidade. Mas a física está longe de
morrer. Apenas parece mover-se lentamente porque não consegue sustentar a
velocidade inédita com que cresceu durante a primeira metade do século XX. No
início do século XX, ocorriam revoluções importantes na física a cada dez anos.
No desenvolvimento futuro da física, revoluções importantes provavelmente
acontecerão como nos séculos XVIII e XIX, isto é, uma vez a cada cinquenta
anos.
Descrevi de modo conservador a ciência do século XXI, na forma de
uma extrapolação linear a partir da ciência atual. Tal extrapolação linear está
fadada a errar no longo prazo, porque mudarão a natureza e os objetivos
fundamentais da ciência. Se tentarmos imaginar o que estará acontecendo na
ciência daqui a mil anos devemos enfrentar a possibilidade de que a ciência
como a conhecemos terá deixado de existir. Os processos de pensamento de
nossos descendentes daqui a mil anos poderão nos parecer tão estranhos quanto
nossas teorias sobre a mecânica quântica e a relatividade geral pareceriam a são
Tomás de Aquino. Tomás de Aquino foi um dos grandes filósofos de sua época,
e nossa ciência descende de sua filosofia, mas nossos modos de pensar
divergiram tanto dos dele nos oitocentos anos que se passaram que ele julgaria
ininteligível a quase totalidade de nosso discurso. Daqui a mil anos ainda haverá
pessoas a explorar de algum modo os segredos da Natureza e é possível que elas
ainda chamem a si próprias de cientistas, porém seus instrumentos e seus
objetivos serão provavelmente tão diferentes dos nossos que dificilmente as
reconheceríamos como colegas em busca dos mesmos fins.

3. TECNOLOGIA


Descobri que a ficção científica é mais esclarecedora do que a ciência
para compreender como a tecnologia é vista por pessoas situadas fora da elite
tecnológica. A ciência proporciona o input técnico para a tecnologia; a ficção
científica nos exibe o output humano.
Começo onde A máquina do tempo de Wells nos deixou, cem anos atrás.
Após Wells, o visionário seguinte a sonhar com o futuro da ciência foi o biólogo
J. B. S. Haldane. Haldane colecionou seus sonhos num livrinho publicado em
1923 na Inglaterra com o título Daedalus, or Science and the future [Dédalo, ou
A ciência e o futuro], O livro correspondia ao texto de uma conferência proferida
ante os Heréticos, um clube fechado de intelectuais da Universidade de
Cambridge. Haldane empregou a figura mitológica de Dédalo como símbolo do
espírito revolucionário da ciência. Como Wells, Haldane era profundamente
cético quanto aos alegados benefícios trazidos ao homem pela ciência. Enquanto
Wells exprimira suas dúvidas por meio da tragédia, Haldane as expressou pelo
uso do humor negro. Ele assim explicou por que Dédalo era adequado à sua
temática:

É com alívio infinito que, em meio a uma pletora de heróis armados de
cabeças de górgonas ou protegidos por batismos estígios, o estudante da
mitologia grega se depara com o primeiro homem moderno. Principiando
como escultor realista (ele foi o primeiro a produzir estátuas com pés
separados), era natural que evoluísse para a construção de uma estátua de
Afrodite cujos membros eram ativados por mercúrio. Depois disso, seu
interesse voltou-se inevitavelmente para problemas biológicos, podendo-
se dizer com segurança que a posteridade jamais igualou seu único
sucesso registrado na genética experimental. Tivessem o abrigo e
alimentação do Minotauro sido menos caros, é provável que Dédalo
houvesse antecipado Mendel. No entanto, na opinião de Minos, um
labirinto e mais um provimento anual de cinquenta mancebos e cinquenta
donzelas eram excessivos como suporte à pesquisa; de modo a escapar de
suas economias impiedosas, Dédalo viu-se forçado a inventar a arte de
voar. Minos perseguiu-o até a Sicília e foi morto lá. Exceto por sua
valiosa invenção da cola, pouco mais se sabe acerca de Dédalo. Contudo,
é da maior significação que, embora tenha sido responsável pela morte de
Minos, filho de Zeus, ele não foi obliterado por um raio, acorrentado a
uma rocha ou perseguido por Fúrias.

A versão de Haldane do mito de Dédalo desvia-se consideravelmente das
fontes clássicas. Não encontramos em fontes gregas qualquer apoio para a
afirmação de Haldane de que o nascimento do Minotauro, resultante da união de
Pasife, mulher de Minos, com um touro branco pertencente ao deus marinho
Posêi- don, tenha sido arquitetado por Dédalo como exercício em genética
experimental. Dédalo aparece nas fontes como inventor, não como geneticista.
Não obstante, a versão do mito apresentada por Haldane se ajusta
admiravelmente à ilustração de sua tese de que o papel histórico do cientista é
fazer o impensável, suplantar crenças e exterminar deuses. O Minotauro é um
símbolo dos choques e horrores que nossos bem-intencionados colegas biólogos
estão prestes a liberar sobre a humanidade.
Meu exemplar de Daedalus pertenceu a Einstein. Infelizmente, ele não
deixou qualquer registro escrito de como reagiu ao livro. A única evidência de
que ele o tenha lido é uma marca a lápis na margem, indicando presumivelmente
uma passagem que tinha ressonância com seu próprio modo de pensar. Está na
página 17 da primeira edição, ao lado da frase na qual Haldane discute os efeitos
de longo alcance da teoria da relatividade sobre a base conceituai da ética: “Na
ética, como na física, há, por assim dizer, quartas e quintas dimensões que se
manifestam por efeitos que, como as perturbações do planeta Mercúrio, são
difíceis de detectar mesmo em uma geração, mas que, mesmo assim, talvez
venham ao longo de eras mostrar-se tão importantes como os fenômenos
tridimensionais”. A teoria de Einstein descreve o espaço-tempo como um
continuam de quatro dimensões. A menção de Haldane a uma quinta dimensão
faz referência a uma versão pentadimensional da relatividade geral inventada por
Theodor Ka- luza em 1921.E a ancestral remota das teorias de supercordas, na
moda 75 anos mais tarde.
Não sabemos quando Einstein entrou de posse de seu exemplar de
Daedalus, nem quando o leu. É improvável que o tenha comprado, pois não
tinha fluência suficiente em inglês para que a leitura nesse idioma lhe causasse
prazer. E mais provável que o livro lhe tenha sido presenteado pelo autor ou pela
editora pouco depois da publicação, em 1923. Haldane alimentava por Einstein
uma reverência que não tinha por mais ninguém, exprimindo-a com as palavras
memoráveis que John Reed aplicara, menos apropriadamente, a Leon Trotsky:
“O maior judeu desde Jesus”. Pelo que sabemos sobre o pensamento de Einstein,
é consistente que ele acreditasse que uma reforma conceituai fundamental fosse
tão necessária na ética como na física. Confiando na evidência da marca de lápis,
Einstein já acreditava nisso no início dos anos 20. Evidentemente, ele entendeu
de imediato a mensagem principal do livro de Haldane, a mensagem de que o
progresso da ciência se destina a trazer enormes confusões e misérias ao ser
humano, a menos que seja acompanhado de progressos na ética. Essa mensagem,
que não era bem-vinda na época de Haldane, é igualmente rejeitada hoje em dia.
Haldane não conhecia muita coisa sobre a física teórica, mas tinha
conhecimento especializado e de primeira mão acerca da guerra e da fisiologia,
os dois assuntos que proporcionam o núcleo de seu argumento. Seu
conhecimento sobre a guerra e sobre a fisiologia não era teórico, mas prático,
conseguido por ter arriscado a vida repetidamente nas trincheiras francesas e nas
minas de carvão de Staffordshire. A educação de Haldane na fisiologia iniciou-se
quando serviu como assistente de seu pai na investigação dos efeitos de gases
nocivos aos quais mineiros e marinheiros se expunham em minas de carvão e em
submarinos. Mais tarde, participou de investigações semelhantes sobre os efeitos
de gases letais sobre soldados que lutaram na Primeira Guerra Mundial. Serviu
com bravura legendária no Fronte Ocidental, como oficial de infantaria.
Podemos ter certeza de que ele registra sua experiência pessoal ao escrever, em
Daedalus: “A morte se retraíra de tal modo para o fundo de nossos pensamentos
normais que, quando viemos a entrar em contato mais ou menos próximo com
ela durante a guerra, muitos de nós falharam por completo em levá-la a sério”.
Daedalus começa com um bombardeio de artilharia no Fronte Ocidental,
em que os obuses aniquilam de modo corriqueiro os protagonistas humanos que,
supostamente, teriam controle sobre a batalha. A cena de abertura é exemplar
quanto ao ponto de vista impiedoso de Haldane sobre a guerra. De modo
semelhante, a cena final — quando em seu laboratório o biólogo, “um
homenzinho desarrumado e mal pago que tateia cegamente pelos labirintos do
ultracósmico”, se transfigura nq figura mítica de Dédalo, “cônscio de sua
horrível missão e orgulhoso dela”—é exemplar da perspectiva impiedosa de
Haldane sobre a ciência. Haldane estava dizendo que o destino do cientista é
transformar o bem no mal, que os horrores da Primeira Guerra Mundial não
haviam constituído um fenômeno isolado, mas apenas um exemplo das
consequências destrutivas que devemos esperar constantemente do progresso da
ciência. Setenta e quatro anos mais tarde, começamos a ver de modo mais claro
o que ele tinha em mente.


A decisão do Congresso dos EUA de descontinuar o projeto do
Superacelerador por Supercondutividade foi um choque para muitos de meus
colegas cientistas, mas não teria causado surpresa a Haldane. Na época em que
Haldane escrevia, nos anos 20, a ciência passava por uma fase de intensa
impopularidade na Inglaterra. Na mente do público, a ciência se identificava
com a carnificina tecnológica da guerra que terminara recentemente. A Primeira
Guerra era encarada como particularmente perversa, pois os organizadores e
promotores da mortandade tinham sido velhos e as vítimas, jovens. O público
culpava os cientistas em geral, e os químicos em particular, pela invenção de
explosivos e de gases venenosos que mataram ou deixaram cicatrizes em toda
uma geração de jovens ingleses. Os cientistas eram vistos como uma casta
privilegiada que, sem remorsos, lucrava com a miséria dosdesvalidos. Nos
Estados Unidos, quarenta anos mais tarde, um ódio semelhante pela ciência
desenvolveu-se na geração de jovens que sofreram as consequências da
tecnologia durante a Guerra do Vietnã e sentiam-se como vítimas.
Hoje, uma vez mais, a ciência transformou o bem em mal. Desta vez o
mal não é uma guerra, mas uma tecnologia civil que, de modo sistemático,
amplia a distância entre ricos e pobres, priva de empregos jovens sem instrução e
deixa grande número de mães jovens e de crianças desesperançadas e sem ter
onde morar. O mal pode ser visto em muitas partes do mundo, especialmente nas
grandes cidades das Américas do Sul e do Norte. Na época do Natal, quando se
caminha pelas ruas de Nova York depois do escurecer, vê-se toda a extensão do
abismo. As vitrinas ' iluminadas feericamente, cheias de brinquedos eletrônicos
hightech para os filhos dos ricos, e poucos metros adiante os cantos escuros das
entradas do metrô repletas dos vultos indistintos dos trapos humanos que a nova
tecnologia deixou para trás. Em toda grande cidade norte-americana tais
contrastes tornaram-se parte do dia-a-dia.
Quando cheguei aos Estados Unidos, cinquenta anos atrás, ricos e pobres
eram menos isolados e menos temerosos uns dos outros, a sensação de pertencer
a uma comunidade era mais intensa, os ricos tinham menos trancas em suas
portas e os pobres possuíam um teto sob o qual morar. Desde aquela época, a
riqueza se acumulou e a sociedade se deteriorou. É como disse Haldane: “A
tendência da ciência aplicada é de amplificar as injustiças até que se tomem
intoleráveis demais para serem suportadas, e o homem comum, que nenhum
profeta ou poeta é capaz de sensibilizar, finalmente se move e extingue o mal em
sua origem”.
Meus colegas cientistas podem, com justeza, protestar e afirmar que as
calamidades da sociedade norte-americana são causadas pelas drogas, ou pela
disseminação de armas, ou pela intolerância racial, ou pelo analfabetismo, ou
pela má qualidade das escolas ou pela dissolução das famílias — e não pela
ciência. E verdade que as causas imediatas da desintegração social são morais e
econômicas, e não técnicas. Contudo, a parcela de responsabilidade por tais
males com que a ciência deve arcar é mais pesada do que a maioria dos
cientistas está disposta a admitir. Quando examinamos os processos históricos
numa escala temporal de cinquenta ou cem anos, a mais poderosa força de
mudança é a ciência. Devido à ciência, máquinas tomaram o lugar de
trabalhadores manuais pouco qualificados e computadores tomaram o lugar de
funcionários administrativos pouco qualificados em todos os ramos da indústria
e do comércio. Devido à ciência, a classe média tradicionalmente conservadora
constituída por operários especializados bem pagos quase deixou de existir.
Devido à ciência, já não existem empregos que paguem o suficiente a jovens
sem educação superior para que estes possam sustentar uma vida confortável
para suas famílias, a menos que sejam dotados de talentos especiais, como
jogadores de beisebol ou estrelas do rock. Devido à ciência, famílias que têm
acesso a computadores e à educação superior tomam-se rapidamente uma casta
hereditária, em que as crianças herdam de seus pais essas vantagens. Devido à
ciência, crianças privadas de oportunidades legítimas de ganhar a vida têm fortes
incentivos econômicos para juntar-se a gangues e tornar-se criminosas.
Em Trenton, a uma distância de poucos quilômetros do oásis acadêmico
de Princeton, onde vivo, muitas das crianças que vivem na cidade agarram sua
primeira oportunidade de obter independência financeira com a idade de nove
anos, quando são recrutadas por traficantes de tóxicos para servir de vigias à
aproximação de batidas policiais. A virada em suas vidas acontece nas férias de
verão, entre a terceira e a quarta séries do primário, quando a gangue toma o
lugar da escola como fonte principal de educação. A mudança tecnológica,
impulsionada pela ciência, tem sido a causa primária dessas revoluções na base
econômica da sociedade. Depois que a mudança tecnológica fecha indústrias e
destrói empregos, o declínio da moralidade e a erosão da disciph- na se seguem
como causas secundárias de esgarçamento social.
Haldane não previu o computador, o agente de mudanças sociais mais
poderoso dos últimos cinquenta anos. Ele imaginava que seu Dédalo, destruidor
de deuses e de homens, seria biólogo.
Em vez disso, o Dédalo deste século foi John von Neumann, o
matemático que, conscientemente, forçou a humanidade a entrar na era da
computação. Von Neumann sabia muito bem o que estava fazendo. Pouco depois
do fim da Segunda Guerra Mundial, deu início ao projeto de computação de
Princeton. Da mesma forma que o Dédalo de Haldane, alimentava sonhos que
iam muito além do instrumento científico que construía em Princeton. Falava e
escrevia muito sobre autômatos. Seus autômatos eram generalizações abstratas
de um computador. O autômato é uma máquina não apenas capaz de computar,
mas de executar ações no mundo real em obediência a uma programação. Von
Neumann percebeu que não haveria limites para a escala e a complexidade das
ações que os autômatos seriam capazes de conduzir. Seu computador era apenas
um pequeno passo no sentido da realização de seu sonho: autômatos conduzidos
pela inteligência artificial.
Para além do autômato inteligente havia outro sonho, o do autômato que
se autorreproduz. Von Neumann demonstrou com rigor matemático a
possibilidade de um autômato que se autorreproduz e enunciou os princípios
abstratos que governariam seu projeto. Ele imaginava que a criação de
autômatos auto-reprodutivos seria uma benesse para a humanidade, levando à
abolição da fome e da pobreza em todo o planeta e nos proporcionando escravos
obedientes para satisfazer nossas necessidades. Autômatos auto-reprodutivos
poderiam construir nossas casas, cozinhar nosso alimento e nos servir à mesa.
No entanto, como o Dédalo de Haldane, Von Neumann estava destinado a
transformar o bem no mal. Um crítico desfavorável talvez dissesse que o
objetivo oculto do sonho de autômatos auto-reprodutivos de Von Neumann era
tomar os seres humanos supérfluos, com exceção dos matemáticos como ele
próprio. No fim das contas, mesmo se inicialmente necessários para projetar os
autômatos, até os matemáticos poderiam também se tomar supérfluos.
Dois desenvolvimentos não previstos por Von Neumann foram o
computador pessoal e a indústria de joguinhos de computador. Esses dois efeitos
colaterais de sua produção expandiram- se com velocidade explosiva. Como
outras mudanças tecnológicas rápidas, trouxeram tanto o bem como o mal. Do
lado bom, nos deram computadores com rosto humano, computadores acessíveis
a pessoas comuns, que os usam para o lucro e como divertimento. Von Neumann
nunca imaginou que os computadores pudessem ser humanizados a ponto de
mães os usarem para imprimir convites e as crianças os empregarem para fazer
suas lições de casa. Do lado mau, a indústria de computadores domésticos
ampliou o abismo entre ricos e pobres. O filho de pais que têm computador se
“alfabetiza” na informática à medida que cresce e é inundado por oportunidades
de ingressar no mundo da educação e da indústria high-tech. A criança sem
acesso a um computador doméstico fica para trás. O analfabetismo informático é
uma barreira adicional que a criança pobre precisa suplantar para ganhar a vida
honestamente.
Haldane encarou sem pestanejar as consequências perversas da ciência,
tanto na guerra como na paz, mas nem por isso podia ser considerado um
pessimista. Ele não acreditava em escuridão ou destino. A mensagem final de
Daedalus não é sombria. Haldane tinha demasiado respeito pelas pessoas
comuns para ser pessimista. Ele admirava a dureza dos soldados rasos que
haviam lutado sob seu comando na França. Amava a índia e escolheu viver lá no
fim da vida, pois tinha uma afinidade natural por pessoas que permanecem
animadas apesar das dificuldades. Quando estava no hospital, recuperando-se de
uma malsucedida operação de câncer, escreveu um poema alegre, intitulado
“Cancer’s a funny thing” [O câncer é uma coisa gozada]. Seu otimismo inato
brilha através do cinismo superficial de Daedalus. Ele considerava que as
consequências da ciência são principalmente más e perigosas, mas, dado que a
ciência nos força a superar essas perversidades e perigos, dizia: “A ciência tem
nas mãos ao menos uma das chaves para o espinhoso e árduo caminho do
progresso moral”. A mensagem final de Daedalus é que as pessoas comuns
podem transformar o mal em bem, caso tenham a coragem necessária e uma
liderança moral. Haldane não tinha dúvidas de que elas têm a coragem, e
pretendia proporcionar-lhes a liderança moral.
Haldane certamente estava certo em esperar que os choques mais
profundos para a sociedade humana viriam da biologia. Ele menciona dois
choques biológicos em particular: micróbios criados por engenharia genética,
que invadiriam os oceanos e substituiriam a agricultura como fonte de alimento,
e a tecnologia da ectogênese, que tomaria o lugar das mães como fonte de bebês.
Nenhum desses choques aconteceu ainda. Embora as tecnologias da engenharia
genética e da ectogênese se desenvolvam rapidamente e, em grau limitado, já
sejam usadas para nos proporcionar novos remédios e a fertilização in vitro, a
agricultura e a maternidade continuam vivas e saudáveis. Hoje não parece
provável que venham a ser substituídas pela biotecnologia durante o próximo
século.
Ainda assim, não deve haver muitas dúvidas de que a engenharia
genética e a ectogênese destinam-se a nos incomodar gravemente, de uma forma
ou de outra. Mais cedo ou mais tarde, a engenharia genética nos permitirá criar
novas espécies de plantas e animais conforme nossa vontade, bem como escolher
o legado genético de nossos filhos. A ectogênese nos permitirá atingir pela
primeira vez a igualdade completa entre os status biológicos de homens e
mulheres. Qualquer dessas inovações trará mudanças mais profundas para a
sociedade humana do que o advento do computador pessoal. E provável que
ambas as inovações venham a agudizar os conflitos sociais entre liberais e
conservadores, entre crentes e descrentes, entre ricos e pobres. Durante algum
tempo, é possível que se consiga opor resistências a ambas as inovações por
meio de restrições legais, proibições religiosas ou violência física. E, a longo
prazo, é provável que ambas as inovações suplantem as forças que se lhes
oponham, ao menos em alguns lugares e em alguns segmentos da sociedade.
Ninguém é capaz de prever quando essas coisas acontecerão. Haldane esperava
que ocorressem antes do fim do século XX. Sua suposição se revelou errada.
Provavelmente, peco pela cautela quando digo que acontecerão antes do fim do
século XXI.
O poder abismante que a engenharia genética colocará um dia em nossas
mãos foi recentemente empalidecido por alguns cientistas experimentais da
Universidade da Basiléia, na Suíça. Walter Gehring e seus estudantes
pesquisavam os efeitos do gene sem olhos, da mosca-das-frutas. O gene tem esse
nome porque sua ausência faz com que as moscas se desenvolvam sem olhos. O
que o gene faz é propiciar o crescimento dos olhos. Gehring e seus estudantes
inseriram o gene em tecidos diversos de moscas embrionárias; os embriões se
desenvolveram em moscas com olhos que saltavam de patas, asas e antenas. Os
olhos supérfluos eram anatomicamente perfeitos. De algum modo, esse gene
comanda todo um exército de diversos milhares de genes subordinados para
produzir o milagre da criação de olhos.


Esse, porém, foi apenas o primeiro milagre. Previamente, o grupo de
Gehring descobrira que o gene sem olhos da mosca-das-frutas apresenta
semelhanças químicas em relação ao gene olhos pequenos, dos camundongos, e
ao gene aniridia, dos seres humanos. A falta do gene olhos pequenos faz com
que os camundongos se desenvolvam com olhos defeituosos; a falta do aniridia
provoca a cegueira em bebês humanos (a íris não se forma - N. T.). O segundo milagre
ocorreu quando Gehring inseriu o gene olhos pequenos do camundongo na pata
de um embrião de mosca-das-frutas. O embrião desenvolveu-se numa mosca em
cuja pata se encontrava um perfeito olho de mosca-das-frutas. De modo que o
mesmíssimo gene olhos pequenos é capaz de governar a criação de um olho de
camundongo nesse bicho e de um olho de mosca na mosca. Isso mostra a
espantosa flexibilidade do poder exercido pelo gene. O projeto básico do olho de
camundongo é totalmente diferente do projeto do olho da mosca-das-frutas. Os
dois olhos são diferentes em todos os detalhes anatômicos. O olho do
camundongo é como o humano, dotado de uma retina na qual o cristalino
focaliza uma imagem. O olho da mosca-das-frutas é um conjunto de centenas de
unidades independentes, em que cada qual detecta a luz vinda de uma
determinada direção, mas sem foco preciso. A experiência mostra que o gene
olhos pequenos não se ocupa da estrutura anatômica, mas de uma função
abstrata. O gene ordena: “Crie-se um olho”, em alguma linguagem abstrata que o
genoma do camundongo é capaz de traduzir em forma de anatomia de
camundongo e que o genoma da mosca-das-frutas traduz em termos de anatomia
de mosca. Demonstra-se, assim, que a linguagem dos genes é muito mais
abstrata e flexível do que qualquer pessoa pudesse imaginar antes que as
experiências fossem feitas.
Outro passo no sentido da compreensão da linguagem genética é descrito
num artigo de três especialistas da Califórnia, Eric Davidson, Kevin Peterson e
Andrew Cameron, em que discutem o processo evolutivo de animais com
estruturas anatômicas bem definidas. Eles examinam os dezesseis principais
grupos (filos) de organismos pluricelulares e observam que doze desses filos
usam um método peculiar no desenvolvimento de criaturas adultas a partir de
larvas embrionárias. O método peculiar é chamado de “desenvolvimento
indireto”, quer dizer, no qual a fase adulta não apresenta semelhanças estruturais
com a fase larval da qual se desenvolve. Os dois filos que nos são mais
familiares, o dos vertebrados (animais com espinha dorsal) e o dos artrópodes
(insetos, crustáceos e aranhas), constituem exceções à regra geral. A
metamorfose de girinos em rãs e de lagartas em borboletas é direta; nesta, na
metamorfose, o adulto retém o projeto corporal básico da larva.
Os doze filos que se desenvolvem de modo indireto são mais primitivos
e, provavelmente, encontram-se mais próximos à raiz da árvore evolutiva do que
as duas exceções familiares. Num ser que se desenvolve indiretamente, a forma
larval é pequena e simples e contém um conjunto de células não diferenciadas,
mantidas em reserva para usos futuros. Depois que se completa o crescimento da
larva, um disjuntor genético liga o desenvolvimento das células de reserva que,
então, se diferenciam e fazem o animal crescer até a forma adulta, seguindo um
plano que não tem relação com a anatomia da larva. A função desta é, apenas,
prover um sistema de sustentação de vida para o adulto durante as fases
vulneráveis de seu início de crescimento.
Após descrever tais fatos a respeito do desenvolvimento embrionário dos
organismos modernos, os três geneticistas da Califórnia prosseguem,
extrapolando os fatos do desenvolvimento embrionário para formar uma
hipótese sobre a evolução remota. Dou à hipótese deles o nome de teoria dos
dois estágios da evolução multicelular. A teoria dos dois estágios afirma que a
evolução de seres pluricelulares ocorreu em dois saltos. O primeiro salto foi a
evolução de uma criatura que, mais tarde, se tomaria a forma larval dos animais
que se desenvolvem indiretamente. O segundo salto foi a evolução de uma
arquitetura genética separada para o desenvolvimento das formas adultas. O
primeiro salto empregou um padrão de controle genético como que por
acionamento de conectores, no qual baterias de genes eram ligadas
sequencialmente de modo a direcionar a divisão e a diferenciação celulares
durante todo o percurso que vai da célula fertilizada única à larva completa. As
formas larvais são pequenas e usualmente contêm uns poucos milhares de
células. É provável que o padrão de controle estrito não funcionasse bem além
desse ponto. De acordo com a teoria, como consequência, a evolução ulterior
teve que esperar até o segundo salto, a invenção de uma linguagem genética
nova e mais abstrata para direcionar a organização das estruturas maiores e mais
elaboradas presentes nas formas adultas. A linguagem genética mais abstrata
contém genes como o sem olhos e o olhos pequenos, capazes de organizar
diferentes estruturas de olhos em espécies disparatadas, como camundongos e
moscas- das-frutas.
A linguagem genética do segundo salto é como a linguagem do software
em um computador. O passo do primeiro para o segundo salto foi como o salto
dos computadores que empregavam instruções transmitidas pela ação de
disjuntores a computadores que usam software. A função do estágio larval na
evolução de organismos que se desenvolvem indiretamente foi proporcionar
sustentação às células responsáveis por conduzir a organização do estágio adulto,
de modo que o aparato genético do estágio adulto pudesse evoluir através de
mudanças rápidas e drásticas de programação sem matar o organismo. A
explosão cambriana — a aparição súbita na Era Cambriana, 540 milhões de anos
atrás, de toda uma diversidade de filos pluricelulares — resultou no sucesso do
segundo salto. Um vez aperfeiçoada a linguagem genética abstrata, em poucos
milhões de anos foi possível programar e promover a evolução, por seleção
natural, de toda uma multiplicidade de configurações corporais alternativas.
Após a época cambriana não apareceu qualquer novo padrão anatômico
radicalmente novo. Nos artrópodes e vertebrados, é provável que o padrão
primitivo de desenvolvimento indireto tenha sido substituído pelo
desenvolvimento direto em algum período posterior, depois que se fixaram as
configurações corporais adultas básicas.
A teoria dos dois estágios descreve o modo como a evolução funciona em
muitas áreas da ciência e da tecnologia. A teoria se aplica à evolução dos
computadores e do software, no século XX, bem como à evolução biológica na
Era Pré-cambriana. É possível perceber outra analogia notável, entre a evolução
em dois estágios de organismos pluricelulares no fim do Pré-cambriano e a
evolução em dois estágios de organismos unicelulares, 1 bilhão de anos antes,
quando, por um processo de fusão celular, células eucariontes com núcleos e
uma estrutura interna elaborada surgiram a partir das menores e mais simples
células procariontes. Lynn Margulis estudou em detalhes a origem das células
eucariontes e argumentou, convincentemente, que elas surgiram de um processo
de dois saltos, começando com a invasão parasitária de um procarionte por
outro, e terminando por uma simbiose completa. Um bilhão de anos antes disso,
a origem da vida pode também ter se dado por meio de um processo de dois
saltos, no qual o metabolismo surgiu no primeiro e a replicação no segundo. No
primeiro salto ter-se-iam desenvolvido moléculas de enzimas e proteínas e, no
segundo, genes e ácidos nucléicos. Mas resisto à tentação de embarcar em mais
digressões sobre modelos evolutivos em dois estágios.
Os experimentos da Basiléia nos deram apenas uma primeira sugestão a
respeito da linguagem genética abstrata. Ainda não temos ideia alguma da
sintaxe e da gramática dessa linguagem, ou dos limites de seus poderes de
expressão. Restam à frente muitos anos de exploração laboriosa, antes que
sejamos capazes de ler essa linguagem e entender suas nuanças. No entanto,
chegará um tempo, provavelmente dentro de algumas décadas, em que seremos
capazes de lê-la com fluência. Os instrumentos de leitura e escrita do ADN são
os analisadores e sintetizadores que já existem em todos os laboratórios em que
se estuda a biologia molecular. Assim que pudermos ler a linguagem, seremos
também capazes de escrever nela. A capacidade de escrever na linguagem do
ADN com plena compreensão de suas sutilezas significará a capacidade de
brincar de Deus, de construir um Parque dos Dinossauros e de enchê-lo com
dinossauros desenhados por nós mesmos.
Assim que a engenharia genética se tomar praticável no plano criativo,
deveremos esperar que se deslocará do laboratório e do hospital para o setor de
entretenimento. Brinquedos e jogos constituem o modo mais rápido de fazer com
que uma nova tecnologia se tome popular e lucrativa. A tecnologia dos
computadores não cresceu de modo explosivo até que tivesse sido incorporada a
jogos. A engenharia genética não crescerá de modo explosivo até que tenha
invadido as lojas de brinquedos e os parques temáticos. É possível que o Parque
dos dinossauros seja uma fantasia, mas a popularidade universal dos dinossauros
é bem real. Pequenos dinossauros obtidos por engenharia genética poderão ser
tão comuns nas vidas de nossos bisnetos como os pequenos dinossauros de
plástico o são nas vidas de nossos filhos e netos. É possível que os ativistas de
direitos dos animais venham a combater a posse privada de dinossauros, mas
será difícil argumentar que dar um dinossauro a uma criança seja mais cruel do
que presenteá-la com um cachorrinho.
Cinquenta anos atrás, o filósofo Olaf Stapledon publicou um romance,
Sirius, que explora um pouco as profundezas de solidão e alienação a que a
engenharia genética pode conduzir. Stapledon nada conhecia sobre o ADN OU
sobre a biologia molecular, mas previu a possibilidade da engenharia genética e
percebeu que propiciaria dilemas graves. Seu herói, Sirius, é um cão cujo
cérebro foi dotado de capacidade humana pela administração, in útero, de doses
de um hormônio de crescimento neurológico. Seu mentor o cria como membro
de sua família, junto com a própria filha. Sirius retém os instintos e lealdades de
um cão, mas pensa como ser humano. Sua irmã adotiva o compreende e se
comunica com ele no plano humano, mas seres humanos que não o conhecem se
amedrontam e o encaram como um monstro assustador. Sua história é uma
mescla de triunfo e tragédia. O triunfo está no insight psicológico que atinge ao
harmonizar as duas faces de sua natureza num todo coerente. Ele compreende os
seres humanos de um modo mais profundo do que qualquer ser humano comum
pode fazer, e aprende a aceitar sua própria sina com distanciamento filosófico. A
tragédia está na impossibilidade de encontrar um lugar para si num mundo de
cães e seres humanos comuns. Sirius não pode ser completamente cão nem
completamente humano. A tragédia se passa no ambiente austero do País de
Gales durante a guerra. Quando sua irmã adotiva é convocada para servir na
guerra, o cão é deixado com sua solidão entre estranhos, e sua vida termina em
desespero e violência.


Hoje em dia, as duas novas tecnologias que viram o mundo de cabeça
para baixo, a tecnologia do computador, lançada por Von Neumann, e a
tecnologia da engenharia genética, lançada por Watson e Crick, percorrem
caminhos separados. A tecnologia da informática nos promete autômatos auto-
reprodutivos, máquinas construídas de metal e semicondutores capazes de
substituir nossas máquinas atuais e de satisfazer nossas necessidades de modo
mais barato e flexível. Um tipo de autômato auto-reprodutivo poderá ser um
empreiteiro inteligente, que criará uma casa sob medida conforme os desejos do
freguês. Outro talvez seja um automóvel inteligente, que nos levará aonde
quisermos evitando colisões e nos liberando do tédio de dirigir. Uma terceira
espécie poderá ser um coletor de energia solar que gerará eletricidade e a injetará
na rede elétrica. Subjacente a todas essas promessas encontra-se a crença de que
uma máquina capaz de se reproduzir a partir de materiais abundantes acabará por
atingir um preço baixo. Se a tecnologia das máquinas auto-reprodutivas for
barata, poderá constituir uma força liberadora para pessoas pobres e países
pobres de todo o mundo. Se a tecnologia for cara, será só mais um brinquedo
para os ricos.
Paralelamente, a tecnologia da engenharia genética faz promessas
semelhantes. Uma bactéria ou fungo obtido por engenharia genética para
cumprir determinada função nada mais é, em essência, do que um autômato
auto-reprodutivo feito de proteínas e ácidos nucléicos em vez de metal e silício.
É provável que autômatos obtidos por engenharia genética venham a ser
particularmente eficazes no negócio do processamento químico. Poderiam ser
programados para metabolizar produtos químicos indeseja- dos que poluem a
terra, a água ou o ar. Poderiam converter poluentes em subprodutos úteis ou
inócuos. “Limpadores” geneticamente projetados poderiam substituir as usinas
de processamento de lixo e as indústrias químicas, ao mesmo tempo em que
máquinas auto-reprodutivas substituiriam as indústrias de construção e de
transportes. As tecnologias dos autômatos e dos organismos competem pelo
papel de liderança na revolução industrial do século XXI. Até agora os
computadores e os autômatos estiveram na frente, mas a biologia molecular e a
genética não se encontram muito atrás.


Não é provável que a genética ou a informática vençam a corrida
sozinhas. A medida que as estruturas físicas do coração do computador moderno
se tornam menores, e ao mesmo tempo em que as estruturas químicas no coração
da engenharia genética se tornam mais versáteis, as duas tecnologias começam a
se superpor e a se mesclar. E provável que o design vitorioso de uma máquina
inteligente de energia solar ou de um coletor de lixo inteligente fará uso de
dispositivos eletrônicos e biológicos que trabalhem em conjunto. A máquina
auto-reprodutiva será em parte feita de genes e de enzimas, enquanto o cérebro e
os músculos desenhados geneticamente serão parcialmente feitos de circuitos
integrados e de motores elétricos. No fim, os componentes físicos e biológicos
estarão de tal modo entrelaçados que seremos incapazes de dizer onde um
começa e o outro termina. Em algum momento antes do fim do século XXI terá
início a revolução industrial baseada na simbiose do metal e do silício com os
nervos e os músculos. Se tudo andar bem, tal revolução trará beleza às paisagens
industriais e riqueza às cidades de todo o planeta. E se, como usualmente
acontece nos assuntos humanos, nem tudo funcionar direito, então a beleza e a
riqueza continuarão a ser distribuídas desigualmente, como antes.
Nove anos depois de Daedalus, Aldous Huxley, que era amigo de
Haldane, publicou seu Admirável mundo novo. Huxley traduziu o ensaio irônico
de Haldane num romance de sucesso, ao qual adicionou algumas ideias novas de
sua própria lavra. A descrição clássica que Huxley faz de uma utopia
biotecnológica fazia empréstimos às tecnologias da engenharia genética e da
ecto- gênese, preconizadas por Haldane. As novidades introduzidas por Huxley
foram a clonagem de grandes quantidades de seres humanos, a distribuição
gratuita de drogas euforizantes sem efeitos colaterais deletérios e a tirania
benevolente de um governo mundial dedicado ao slogan “Comunidade,
Identidade, Estabilidade”.
A história começa com o diretor-assistente da Chocadeira a escoltar um
grupo de jovens técnicos numa visita ao aparato de clonagem e choco de
embriões humanos. As linhas de produção produzem várias qualidades de
embriões, que vão do alfa-mais ao épsilon-menos, cada qual com capacidades
físicas e mentais especializadas nos diferentes papéis que deverão cumprir na
sociedade. Essa cena idílica de burocracia socialista é imaginada acontecer
seiscentos anos à nossa frente. Seiscentos anos é tempo suficiente para que os
problemas sociais de nossa época encontrem solução, para que a história de
disputas divisionistas entre raças e países seja esquecida e para que a centelha de
individualidade humana seja extinta. Daqui a seiscentos anos deveremos ter
atingido o sonho secular da paz perpétua e a máxima felicidade para a máxima
quantidade de gente. O preço de tal realização serão alguns sacrifícios. Teremos
que sacrificar algumas das qualidades humanas que poderiam perturbar a
estabilidade de nossa sociedade. Sacrificaremos a curiosidade intelectual e o
descontentamento político. Sacrificaremos a ambição pessoal, que nos faz
discutir e brigar e que estimula revoluções. Sacrificaremos as três paixões
ingovernáveis que, no passado, nos trouxeram tanto desespero: ciência, arte e
religião.
O herói do Admirável mundo novo é John, um jovem que cresceu numa
reserva indígena no Novo México. A reserva é habitada por povos primitivos e
mantida como atração turística pelo benevolente governo mundial. Existe para
que turistas civilizados possam observar à distância a vida lamentável e
embrutecida de pessoas que têm a desventura de permanecer desprotegidas dos
amortecedores e confortos da tecnologia. Na reserva toleram-se costumes e
religiões tradicionais. John nascera de uma mãe natural, sem a ajuda da
ectogênese. Ele encontrou na reserva um antigo livro que continha as peças de
Shakespeare e, daí, adquiriu gosto pela poesia e uma perspectiva trágica da vida.
O tema do romance é o encontro de John com o mundo civilizado. Ele faz
amigos no mundo civilizado e tenta convertê-los ao seu modo de pensar. O que
lhes pede é se rebelarem contra tudo o que lhes fora ensinado, reivindicarem sua
liberdade individual pelo processo de se desligar de sua sociedade, escolherem a
dor e a solidão como preço para a dignidade humana. Inevitavelmente, falha.
Nenhum de seus amigos o compreende. Para os amigos, a dignidade humana e a
tragédia não têm significado. Para eles, dor e solidão não são trágicas, mas
simplesmente absurdas. De modo que riem de suas ideias antiquadas e, na cena
final, abandonam-no com sua dignidade, balançando ao vento na ponta de uma
corda.
O Admirável mundo novo nos dá uma perspectiva dramática de um
futuro em que a tecnologia, tornada possível pela ciência, faz a ciência estancar.
Tal futuro é consistente com o futuro mais remoto visto pelo Viajante do Tempo
em A máquina do tempo, de Wells. Depois que a influência subversiva da ciência
tenha sido domada pelo triunfo da burocracia e da eugenia, é fácil imaginar que
a sociedade humana encalhe por milhares de séculos no sistema de castas
rigidamente conservador do Admirável mundo novo, até que o lento processo de
mutação e degeneração reduza nossa espécie à condição em que o Viajante do
Tempo encontra os Eloi e os Morlocks no Anno Domini 802701.
As fantasias de Wells e de Huxley baseavam-se na mesma ideia, de que
uma espécie que se adapta de modo demasiadamente perfeito a um nicho
ecológico estático fica condenada à estagnação e, por fim, à extinção. Seus
pesadelos descrevem um futuro possível para a nossa espécie, caso tenhamos
sucesso em construir em tomo de nós um casulo protetor que nos forneça escudo
contra os ventos da mudança, ao mesmo tempo em que nossas faculdades
mentais fenecem. Um futuro de demência senil é tão possível para a espécie
como para o indivíduo.
Apesar disso, quando comparo essas visões de uma humanidade estática
e imóvel com a turbulência real da história humana, sou tentado a exclamar, com
Winston Churchill: “Que tipo de pessoas eles pensam que somos?”. Churchill
dirigiu essa observação ao povo inglês em 1940, quando Hitler nos convidava
generosamente a fazer as pazes com ele após a invasão da França. A mesma
observação se aplica igualmente bem à espécie humana como um todo, quando
doutos especialistas nos declaram condenados a um futuro de estagnação ou
empobrecimento. A espécie humana tem uma tendência profundamente
arraigada de demonstrar que os experts estão errados. Apenas dez anos atrás os
experts diziam que a União Soviética era uma sociedade estável e conservadora.
Hoje, dez anos mais tarde, para o melhor ou para o pior, a União Soviética foi-se
e os experts ainda estão tentando explicar como isso pôde ter acontecido.
Até onde eu saiba, o único escritor que previu corretamente o que
aconteceu às sociedades da Europa oriental não foi um expert profissional, mas
um romancista. Seu nome, Bruce Chatwin; ele publicou sua previsão em 1988,
no romance Utz. Eis a história do que aconteceria em Praga um ano e meio após
a publicação do livro. Seu herói, Utz, vivia em Praga e conhecia algo da história
da Europa central.

Penso que foi Utz quem primeiro me convenceu de que a história é,
sempre, nosso guia para o futuro, e sempre cheia de surpresas
caprichosas. O próprio futuro é uma terra estéril, porque ainda não existe.
Quando um escritor tcheco deseja discorrer sobre as agruras de seu país,
um dos caminhos de que dispõe é usar como metáfora a rebelião hussita
do século xv. Encontrei no Museu de Praga o seguinte texto, que
descreve a derrota dos hussitas frente aos Cavaleiros Teutônicos: “De
repente, à meia-noite, gritos assustados ouviram-se no centro das grandes
forças de Edom, que haviam erguido suas tendas ao longo de quatro
quilômetros perto da cidade de Zatec, na Boêmia, a uma distância de
quinze quilômetros de Cheb. Todos fugiram da espada, brandida apenas
pela voz das folhas que caíam, e não perseguidos por qualquer homem”.
Ao escrever essas linhas em meu caderninho, parecia-me ouvir outra vez
a voz anasalada de Utz a sussurrar-me: “Eles prestam atenção, prestam
atenção, mas... nada ouvem”. Como de hábito, estava certo. A tirania
monta sua própria câmara de eco, um vazio em que sinais confusos
zumbem ao acaso, em que um murmúrio ou uma insinuação causam
pânico. De modo que, no fim das contas, é mais provável que o
maquinário da repressão desapareça não pela guerra ou pela revolução,
mas com um puff, com a voz das folhas que caem.

Na época em que Chatwin ouvia a voz das folhas que caem na floresta de
Zatec, os experts profissionais do Ocidente e do Oriente ainda prestavam atenção
a tudo e nada ouviam. Dois anos após, a voz das folhas que caem foi ouvida
pelos dirigentes de regimes totalitários, não apenas em Praga mas também em
Varsóvia e Berlim e Moscou. A moral da história de Utz é que o melhor modo de
prever o futuro da sociedade humana é estudar o passado. O passado nos mostra
que os seres humanos formam uma multidão ingovernável, adversa à lógica e à
disciplina. É improvável que qualquer regime mundial totalitário futuro, ou que
qualquer sistema de crenças imposto dogmaticamente, dure mais do que as
teocracias utópicas do passado. Em geral, as teocracias utópicas duraram cerca
de vinte anos, o bastante para que uma nova geração de crianças crescesse e se
rebelasse contra o poder dos pais fundadores. A União Soviética durou setenta
anos, mas sua ideologia utópica já se esvanecia após vinte anos.
Na conferência que proferiu ao receber o Prêmio Nobel de Literatura de
1976, Saul Bellow falou sobre o fracasso da literatura moderna em dar crédito às
pessoas comuns em sua resistência aos efeitos homogeneizadores da tecnologia
moderna.

Nós, os escritores, não representamos a humanidade de forma adequada.
Não pensamos bem de nós mesmos. Não pensamos amplamente sobre o
que somos. Ensaio após ensaio, livro após livro, dizem-se as coisas
habituais a respeito da sociedade de massa, da desumanização e assim
por diante. Como estamos cansados deles! Como nos representam mal!
As imagens que oferecem não se parecem mais conosco do que nós nos
parecemos com os répteis reconstruídos e outros monstros de um museu
de paleontologia. Somos muito mais ágeis, versáteis, articulados; há
muito mais em nós; todos sentimos isso.

As crianças humanas que derrotaram os répteis reconstruídos e os
cientistas malignos no best-seller de ficção científica Parque dos dinossauros
nos ensinam a mesma lição que Saul Bellow. Parque dos dinossauros é como o
Admirável mundo novo, outro romance que cria um mito sobre desastres futuros
surgidos da prática da engenharia genética. Mas Parque dos dinossauros é uma
aventura com final feliz, enquanto Admirável mundo novo é uma tragédia.
Mesmo considerando-se que Admirável mundo novo é uma obra de literatura de
porte maior, Parque dos dinossauros chega mais perto de uma afirmação
verdadeira da condição humana. Como todo pai e toda mãe sabem, crianças
humanas nascem rebeldes.
A tecnologia revolucionária que talvez surja após a engenharia genética
será a neurotecnologia, o desenvolvimento de instrumentos de exploração e
manipulação do cérebro humano. A neurotecnologia já existe, mas seus métodos
são rudimentares e seus poderes, limitados. No futuro, ela se desenvolverá de
forma menos rudimentar e mais poderosa. Poderá ou não dar origem a uma
tecnologia de imenso poder, a que dou o nome de rádio telepatia. A rádio
telepatia talvez se revele impossível. Discuto-a aqui como exemplo das muitas
revoluções possíveis a que a neurotecnologia pode conduzir. Caso seja possível,
a rádio telepatia emergirá da ciência da neurofisiologia, da mesma forma que a
engenharia genética se desenvolveu a partir da biologia molecular. Depois que os
princípios da genética foram explorados e compreendidos, abriu-se o caminho
para desenvolver a tecnologia da cisão genética e usá-la com finalidades
práticas. Do mesmo modo, depois que a organização do sistema nervoso central
tiver sido explorada e compreendida, estará aberto o caminho para desenvolver e
usar a tecnologia dos sinais eletromagnéticos cerebrais.


Tanto quanto sei, a primeira aparição da ideia da rádio telepatia deu-se no
romance de ficção científica Last and first men [Últimos e primeiros homens],
escrito por Olaf Stapledon em 1931, um ano após a publicação de Admirável
mundo novo e treze anos antes de Sirius. Stapledon imaginou uma forma de vida
do planeta Marte em que as células de um ser pluricelular se comunicam entre si
por meio de campos elétricos e magnéticos em vez de pelo contato físico ou por
trocas químicas. Um marciano é uma nuvem verde composta de minúsculas
gotículas a que Stapledon dá o nome de “unidades subvitais”. As unidades
subvitais transmitem e recebem campos eletromagnéticos. Os campos cumprem
as funções de músculos e nervos, de modo que a nuvem funciona como um
indivíduo coerente. A mesma ideia foi usada mais tarde pelo astrônomo Fred
Hoyle em sua ficção científica A nuvem negra. No entanto, Stapledon levou a
ideia mais longe. Na história imaginária de Stapledon, marcianos e seres
humanos vivem lado a lado na Terra durante milhares de anos num estado de
guerra intermitente que quase leva as duas espécies à destruição. Nesse ponto,
após um longo período de recuperação e de reajustamento, surge uma nova
espécie humana, na qual unidades subvitais marcianas encontram-se
incorporadas aos neurônios na forma de organelas simbióticas. A nova espécie
humana é capaz de se comunicar cérebro a cérebro por meio de ondas de rádio.
Adquiriu o órgão marciano da telepatia num corpo que é humano sob todos os
outros aspectos.
É notável que Stapledon tenha imaginado que as unidades marcianas
invadam células humanas como parasitas e que ali se desenvolvam como
parceiros simbióticos antes que os especialistas em biologia evolutiva tivessem
descoberto que a mitocôndria, presente na célula humana, na verdade evoluiu
precisamente dessa forma, pela invasão de simbiontes por parte de invasores
externos, ou 2 bilhões de anos antes. Os biólogos da época de Stapledon nada
sabiam sobre as evidências moleculares que demonstrariam a origem simbiótica
da mitocôndria.
A história de Stapledon sobre os marcianos telepatas é apenas um mito.
Mas o mito de Stapledon contém aspectos que poderão tornar-se verdadeiros um
dia, caso a ciência da neurofisio- logia avance tão rapidamente no futuro quanto
a ciência da biologia molecular avançou nos últimos cinquenta anos. A principal
barreira ao progresso da neurofisiologia é a falta de instrumentos de observação.
Para entender em profundidade o que acontece no cérebro necessitamos de
instrumentos que possam ser inseridos nos neurônios, ou entre eles, e que
transmitam medidas de eventos neurais para receptores situados do lado de fora.
Precisamos de instrumentos de observação locais, não destrutivos e não inva-
sivos, com resposta rápida, que emitam em alta frequência e com elevada
resolução espacial. Precisamos inventar o equivalente terrestre de uma unidade
subvital marciana.
Não existe na física lei alguma que torne impossível a construção de um
tal instrumento de observação. Sabemos que sinais eletromagnéticos de alta
frequência podem se propagar pelo tecido cerebral por distâncias da ordem de
centímetros. Sabemos que geradores e receptores de radiação eletromagnética de
dimensões microscópicas são possíveis. Sabemos que a tecnologia moderna de
manipulação digital de dados é capaz de registrar e analisar simultaneamente
sinais oriundos de milhões de transmissores minúsculos. O que falta para
transformar essas possibilidades em instrumentos de observação eficazes é só o
equivalente neurológico da tecnologia dos circuitos integrados. Precisamos de
uma tecnologia que nos permita construir e instalar grandes quantidades de
pequenos transmissores no interior de um cérebro vivo, do mesmo modo que a
tecnologia dos circuitos integrados nos permite construir grandes arranjos de
pequenos transistores num chip de silício.
A essa hipotética tecnologia futura para a observação de processos
neurais dentro do cérebro por meio de rádio transmissores instalados localmente
dou o nome de rádio neurologia. Em princípio, a rádio neurologia é apenas uma
extensão da tecnologia já existente do registro de imagens por ressonância
magnética, que também emprega campos magnéticos em frequências de rádio
para observar as estruturas neurais. A rádio neurologia permitiria que a
observação se fizesse com uma resolução muito mais alta, tanto espacial como
temporalmente.
Uma estimativa grosseira, realizada a partir das faixas de frequência
disponíveis, indica que seria possível monitorar 1 milhão de transmissores
através das trilhas da superfície cerebral, cada um deles com tamanho igual à
frequência de rádio. O fator de 1 milhão corresponde à relação entre a faixa de
frequências de rádio, da ordem de centenas de milhões de ciclos por segundo, e a
faixa de frequências de um neurônio, que é da ordem de centenas de ciclos por
segundo. Talvez o aparato da rádio neurologia possa ser desenvolvido do modo
como se desenvolveram os circuitos integrados, ou seja, por meio de um
refinamento constante de técnicas físicas e químicas. Por outro lado, a rádio
neurologia pode tomar partido de órgãos elétricos e magnéticos que já existem
em diversas espécies de enguias, peixes, aves e bactérias magnetotáticas. De
modo a tomar possível a implantação de arranjos de minúsculos transmissores
no cérebro, a engenharia genética de estruturas biológicas poderá constituir um
caminho mais fácil do que a microcirurgia.
Rádio neurologia não é o mesmo que rádio telepatia. Supostamente, a
rádio neurologia é um instrumento científico, que nos ajuda a compreender a
arquitetura dos sistemas nervosos centrais. Traduz informações sobre os
processos neurais em sinais eletromagnéticos que podem ser recebidos e
decodificados fora do cérebro. Trata-se de uma tecnologia para a observação
passiva de processos mentais. No entanto, uma vez que a tecnologia da
observação passiva exista, será fácil estendê-la para incluir a intervenção ativa.
Quando soubermos como inserir no cérebro transmissores que traduzam
processos neurais em sinais de rádio, também saberemos como inserir receptores
capazes de traduzir sinais de rádio em processos neurais. A rádio telepatia é a
tecnologia de transferir informações diretamente de cérebro a cérebro,
empregando uma combinação de transmissores e receptores de rádio. A rádio
neurologia é uma técnica comparativamente inofensiva, útil para a pesquisa
científica e para o diagnóstico médico, mas a rádio telepatia dá origem a
questões éticas agudas.
A rádio telepatia imaginada por Stapledon era uma força que funcionava
tanto para o bem como para o mal. Na espécie marciana, em que se originara, era
uma força maligna, transformando a população marciana numa máquina
totalitária de guerra dedicada à destruição da humanidade. Após a derrota final
dos marcianos, quando a rádio telepatia se espalhou pela espécie humana,
transformou-se numa força benigna, permitindo aos seres humanos entenderem
melhor uns aos outros e possibilitando que acertassem pacificamente suas
diferenças. No futuro real, se a rádio telepatia se revelar possível, constituirá
uma força poderosa, que tanto poderá se voltar para objetivos benignos como
malignos. Do mesmo modo que na engenharia genética, a rádio telepatia será
controvertida, mesmo se aplicada a espécies não humanas, e causará problemas
severos quando aplicada aos humanos.
Leis que regulamentem a rádio telepatia precisarão começar por uma
garantia de privacidade. Toda pessoa capaz de rádio telepatia deverá ser dotada
de um meio confiável de ligar e desligar tanto os transmissores como os
receptores. Tal garantia necessitaria estender-se a proteções ao indivíduo contra a
“escuta” telepática e a coerção. Contudo, não oferecerá proteção suficiente. Da
mesma forma que no caso da aplicação da engenharia genética aos seres
humanos, a aplicação da rádio telepatia levantará as questões mais espinhosas
quando envolver crianças. Se — como é provável — a capacidade de governar a
linguagem da rádio telepatia precisar ser aprendida cedo na infância, como
acontece com o domínio do idioma falado, então o princípio legal do
consentimento informado deixa de ter sentido. Bebês não podem dar
consentimento informado quanto a seu próprio nascimento e modo de criação.
Apenas depois de crescerem poderão olhar para trás e decidir se serão os
pioneiros privilegiados de um novo mundo ou as vítimas infelizes da ambição de
seus pais. Grandes saltos tecnológicos ou evolutivos sempre acarretam custos
incalculáveis.

4. EVOLUÇÃO


O mundo inteiro é um palco
E homens e mulheres, simples atores.
Têm suas saídas e têm suas entradas.
E em seu tempo cada homem desempenha
muitos papéis,
Em atos que são sete idades.
(All the world’s a stage,/ And all the men and women merely players./ They have their
exits and their entrances./ And one man in his time plays many parts,/ His acts being
seven ages).

O tema deste capítulo decorre de uma passagem de Assim é se lhe parece
de Shakespeare. As sete idades de Shakespeare são criança, escolar, amante,
soldado, juiz, pantalão magricela com chinelas (Pantalão: personagem da commedia del
Varte, caracterizado como um velhote com óculos, chinelas e uma combinação de calças justas e meias altas
- N. T.) e segunda infância. Presentemente, desempenho um papel a meio caminho
entre a quinta e a sexta idades, um velho cientista que pretende ser sábio. Se
fosse Shakespeare, já estaria morto há dezessete anos. A imagem que
Shakespeare fazia de homens e mulheres, tropeçando por breve tempo pelo palco
da história e desempenhando papéis que não compreendemos por inteiro, é um
bom resumo da condição humana. Emprego a estrutura fornecida por
Shakespeare para apresentar minha perspectiva sobre a evolução da humanidade.
O fato central de nossa situação é que vivemos em diversas escalas
temporais diferentes. A humanidade sobreviveu no passado e precisa aprender a
sobreviver no futuro, lidando com problemas que ocorrem simultaneamente em
muitas escalas temporais. Minhas sete idades do homem não são as sete partes
de uma vida individual, e sim as sete diferentes escalas de tempo nas quais nossa
espécie se adaptou às exigências da Natureza. Cada escala de tempo pousa
exigências diferentes e, com frequência, as demandas das várias escalas entram
em conflito umas com as outras. Essa é a principal razão das complexidades da
natureza humana. Somos a única espécie que tem consciência da passagem do
tempo e de nossa própria mortalidade, a única espécie que tem noção da
existência do futuro.
Escolho arbitrariamente minhas sete idades do homem como sendo: dez
anos, cem anos, mil anos, 10 mil anos, 100 mil anos, 1 milhão de anos e o
infinito. Escolho esses períodos em particular apenas porque estamos
acostumados a medir o tempo histórico em décadas, séculos, milênios. O fato de
usarmos o sistema decimal para medir o tempo não é essencial. O ponto
essencial é que nossa história é dominada por processos distintos em cada uma
das diferentes escalas temporais. Quando pensamos em nosso futuro, precisamos
primeiro entender que, como o passado, o futuro também tem todas essas escalas
de tempo. Em qualquer discussão sobre o futuro, é importante distinguir
cuidadosamente as escalas temporais em que as coisas acontecem. Somente
depois de termos especificado a escala é que podemos falar de possibilidades
futuras com alguma dose de clareza.
Minha escala mais curta é de dez anos, a mesma extensão de cada um
dos sete períodos da vida de um indivíduo segundo Shakespeare. Essa é uma
escala natural para as atividades humanas. Menos do que isso é o presente e não
o passado, ou o futuro. Escolho 1 milhão de anos para a penúltima escala porque
essa é, aproximadamente, a idade de nossa espécie. O passado e o futuro
abrangem muito mais do que 1 milhão de anos. De modo que incluí a escala
mais longa, o infinito ou a eternidade, que se estende desde o princípio até o fim.
Mais do que 1 milhão de anos em qualquer direção e não somos mais humanos.
No entanto, 1 milhão de anos é um tempo curto na história de nosso planeta.
Além de 1 milhão de anos, tornam-se visíveis os ritmos lentos da evolução
biológica e geológica.
Como Shakespeare sabia, dez anos é o horizonte normal das atividades
humanas, o tempo que demoramos para educar uma criança, desenvolver uma
carreira, instituir um negócio. Essa é a escala temporal em que competimos uns
com os outros enquanto indivíduos, a escala em que nos casamos e formamos
uma família. Dez anos é também o limite extremo da previsibilidade política.
Em dez anos os governos mudam, os líderes políticos ascendem e caem,
impérios desmoronam e revoluções viram o mundo pelo avesso.
A economia e a tecnologia são mais previsíveis do que a política. Numa
escala de dez anos, as forças que governam o desenvolvimento econômico e
tecnológico não mudam radicalmente. A principal causa das tensões econômicas
atuais é a distribuição desigual de riqueza e de capacitação entre países ricos e
pobres e entre segmentos ricos e pobres da sociedade. É provável que os
deslocamentos econômicos se intensifiquem durante os próximos dez anos, à
medida que os países ricos se tornarem mais ricos e os pobres, mais pobres. De
algum modo, esse processo de intensificação das desigualdades precisará ser
revertido, mas o modo de fazê-lo não é ainda visível. Para efetuar essa reversão,
precisaremos de novas instituições políticas, bem como de novas tecnologias.
Para se desenvolverem, novas instituições e novas tecnologias necessitam de
mais do que dez anos.
Enquanto a economia e a tecnologia mudam lentamente, a ciência pura é
veloz. Na ciência, acostumamo-nos a testemunhar mudanças radicais em
períodos de dez anos ou menos. Dez anos é a escala temporal típica das
revoluções científicas. A revolução da astronomia digital, que descrevi no
Capítulo 2, já anda pela metade do caminho. Em algumas décadas disporemos de
levantamentos digitais celestes que nos fornecerão mapas de todo o Universo
observável. Os astrônomos mais jovens hoje em atividade pertencem a uma
geração historicamente singular. Sua geração é a primeira que estudará a
cosmologia com conhecimento detalhado sobre a estrutura do Universo que
procuram explicar.
Outro empreendimento com horizonte de dez anos é o Projeto Genoma
Humano. O Projeto Genoma produzirá um mapa digital preciso de nossos genes
e cromossomos, como os mapas celestes propiciados pelos levantamentos
digitais celestes. Os mapas serão usados de modo semelhante, seja para
identificar objetos particularmente interessantes — genes ou galáxias —, bons
candidatos a uma investigação mais profunda, seja para reunir informações
estatísticas sobre o comportamento de genes ou galáxias em geral.
Levantamentos digitais celestes tomaram-se baratos e realizáveis como resultado
da invenção do CCD. Sem o CCD, os levantamentos resultariam por demais
lentos ou dispendiosos para que pudessem interessar aos astrônomos. O Projeto
Genoma Humano ainda é lento e caro. Não se inventou ainda o equivalente do
CCD para o genoma. Os biólogos ainda vivem numa era pré CCD. O genoma
humano consiste em cerca de 3 bilhões de pares de bases, e os métodos químicos
de sequenciamento custam entre três centavos de dólar e um dólar por par de
base. Empregando os métodos atuais, o sequenciamento de um único genoma
humano exigiria um investimento imenso em tempo e dinheiro, e não se
completaria senão em muitos anos.
É provável que o equivalente biológico do CCD surja dentro em pouco.
Na astronomia, a transição revolucionária das chapas fotográficas para os
detectores CCD correspondeu a uma mudança da tecnologia da química para a
tecnologia da física. Na biologia, a transição da química para a física ainda não
ocorreu. Mas os instrumentos da física melhoram rapidamente e, cedo, serão
aplicados diretamente à tarefa de seqüenciar o ADN. Em teoria, microscópios de
tunelamento eletrônico e microscópios de força atômica já possuem resolução
suficiente para tornar visíveis as sequências de bases numa fibra de ADN. Esses
instrumentos ainda têm que suplantar os enormes problemas práticos implicados
em localizar e preparar o ADN sem destruí-lo. Os obstáculos práticos ao
sequenciamento físico do ADN serão provavelmente superados dentro de dez ou
vinte anos.
Assim que o sequenciamento físico se tomar possível, será mais barato e
mais rápido do que o sequenciamento químico. Em termos de economia e
velocidade, o salto do sequenciamento químico para o físico será tão grande
como o salto das chapas fotográficas para o CCD. Um sequenciador físico
provavelmente lerá pares de bases a uma taxa de uma centena por segundo,
contra as centenas por hora admitidas pelos métodos químicos. Se tais
expectativas forem satisfeitas, uma única máquina colocada sobre a mesa
produzirá um genoma humano completo a cada ano. Com isso, o Projeto
Genoma poderá criar uma biblioteca de sequências de homens e mulheres com
diferentes histórias médicas e genéticas, bem como uma biblioteca de sequências
de outras espécies, de bactérias a chimpanzés e baleias. Primeiro, porém,
precisaremos inventar o equivalente biológico do CCD. Recomendo sua
invenção como projeto para qualquer jovem ambicioso que sonhe em liderar
uma revolução científica.
Numa escala de cem anos, estamos mortos enquanto indivíduos. Numa
escala de cem anos, a sobrevivência significa sobreviver como família, como
país, como escola de ciência ou arte, como empreendimento industrial ou como
comunidade religiosa. Devido ao fato de nossa espécie ter evoluído sendo capaz
de sobreviver numa escala de centenas de anos, mantemos lealdades a essas
unidades mais amplas, que transcendem nossas vidas individuais. As lealdades à
família, à tribo e à instituição são profundamente arraigadas em nossa natureza.
Na ausência dessas lealdades apaixonadas, voltadas para causas maiores do que
nós, não seríamos humanos. Quando olhamos o futuro numa escala temporal de
cem anos, a pergunta central que devemos fazer é: em quais causas nossas
lealdades deverão empenhar-se?
Cem anos é o limite extremo da previsibilidade técnica. Qualquer
tecnologia isolada, como a do carvão, do vapor, da eletricidade, da computação
ou do ADN recombinante, predomina por um máximo de cem anos antes de ser
eclipsada por sua sucessora. Podemos prever com algum grau de segurança quais
serão as tecnologias dominantes nos próximos cinquenta anos. Minhas previsões
para esse período incluem as tecnologias atualmente dominantes do petróleo, dos
computadores e da bioquímica, e mais as duas recém-chegadas, a engenharia
genética e a inteligência artificial. Daqui a cem anos, a engenharia genética e a
inteligência artificial terão amadurecido e estarão prontas para ser suplantadas
por outra coisa, talvez a rádio telepatia. Não podemos prever quais serão as
novas tecnologias para além de cem anos, pois dependerão de descobertas
científicas que ainda não foram realizadas.
É provável que, durante os próximos séculos, nossas batalhas ecológicas
se intensifiquem e passem a dominar a agenda política da humanidade. Durante
esse tempo seremos forçados a nos confrontar com os grandes problemas da
superpopulação humana, da destruição de ecologias naturais e da desigualdade
econômica. Ninguém pode prever, hoje, como tais problemas serão resolvidos,
se é que o serão.


Arrisco apenas duas previsões. Primeiro, soluções vitoriosas serão locais,
e não globais, ajustadas para as necessidades e tradições de populações locais. É
improvável que soluções globais impostas globalmente sejam duráveis. Partes
diferentes do globo têm pontos de vista profundamente divergentes acerca do
equilíbrio adequado entre direitos individuais e obrigações sociais. Pessoas que
tentam impor soluções globais deveriam lembrar-se das palavras do poeta
William Blake: “Haver Uma Só Lei para o Leão e para o Boi e Tirania” (One Law
for the Lion and Ox Is Tyranny - N. T.).
Minha segunda previsão sobre os problemas do próximo século é que a
nova tecnologia da engenharia genética mudará a natureza dos problemas e
tornará possíveis novas soluções. Já vimos, em nosso século, um exemplo
esplêndido de uma invenção biológica isolada, a pílula de controle da natalidade,
que permitiu às populações de muitos países se estabilizarem sem medidas
coercitivas impostas por governos. No próximo século veremos mais desses
exemplos, para o bem ou para o mal. Culturas agrícolas obtidas por engenharia
genética adaptadas a ambientes rigorosos e resistentes a doenças transformarão
as economias de países inteiros. Bebês produzidos por engenharia genética, com
garantia de ausência de defeitos hereditários, estarão disponíveis para pais que
sejam cidadãos de países ricos e para cidadãos ricos de países pobres. Novas
tecnologias médicas, atraentes demais para que sejam proibidas e caras demais
para que se tomem amplamente disponíveis, exacerbarão as desigualdades que
existem hoje entre as sociedades e no interior delas.
Pode-se, com segurança, fazer mais uma previsão. Daqui a cem anos,
nosso planeta não será uma utopia pacífica, em que todos os problemas sociais e
ecológicos terão sido solucionados.
Mesmo que as desigualdades econômicas venham a ser grandemente
reduzidas, as animosidades raciais e religiosas persistirão. A longo prazo, uma
nova tecnologia, a da colonização espacial, poderá permitir que sejam
amenizados os conflitos entre ambições humanas discordantes num planeta que
encolhe. Caso fosse possível exportar excessos de populações e de indústrias
para há- bitats espaciais espalhados pelo sistema solar, a Terra poderia ser
preservada como ambiente natural ou como parque ecológico. Das pessoas que
preferissem ficar na Terra poderia ser exigido que levassem uma vida frugal e
que não ampliassem a invasão sobre o espaço vital de outras espécies. Indústrias
poluidoras poderiam ser banidas permanentemente e as populações humanas
firmemente limitadas. De modo a tomar reais essas visões utópicas, as
tecnologias do transporte e da habitação espacial precisariam tomar-se
radicalmente mais baratas e acessíveis do que são hoje. Viajar e viver no espaço
deveria ser tão barato que pessoas comuns pudessem emigrar da Terra, do
mesmo modo que, hoje, emigram de um país a outro. É possível que persistam
obstáculos políticos e sociais à emigração, mas os obstáculos físicos e
econômicos terão condições de ser superados se a tecnologia for barata o
suficiente.
Não duvido de que, mais cedo ou mais tarde, viagens espaciais baratas se
desenvolverão. A questão a que não consigo responder é quando isso acontecerá.
Qual é a escala de tempo apropriada para a grande migração da Terra? Não há lei
da física ou da química que decrete que as viagens espaciais serão sempre caras.
No que se refere às leis da física, caso se meça o custo de se deslocar no espaço
calculando-se o custo da energia necessária para isso, o custo de lançar uma
pessoa ao espaço não deveria ser maior do que o custo de um vôo comercial de
Nova York a Tóquio. No entanto, para baixar o custo dos lançamentos espaciais
ao nível do custo do transporte aéreo comercial, seria necessário um grande
volume de tráfego. As viagens espaciais somente serão baratas quando milhões
de pessoas puderem fazê-las. E milhões de pessoas só poderão fazê-las quando
houver abundância de hábitats espaciais já construídos, lugares para onde as
pessoas possam ir. Necessariamente, a ampliação dos hábitats espaciais e a
queda dos custos será um processo lento. É possível que se avance bastante em
cem anos, mas não o suficiente para resultar num impacto relevante sobre os
problemas da humanidade terráquea. A expansão em grande escala da vida e da
humanidade pelo espaço não acontecerá em tempo de se solucionar os
problemas de nossos netos.
E provável que, nos próximos cem anos, contemos com assentamentos
humanos na Lua e em alguns asteroides mais próximos. Talvez, mesmo, em
Marte. Veremos plantas e animais alterados por engenharia genética e adaptados
à colonização de vários asteroides e planetas. Por exemplo, poderemos
testemunhar a fixação, em Marte, da batata marciana, variedade de batata que
viverá em lugares em que a água líquida se encontre em grandes profundidades
abaixo do solo congelado; suas raízes resistentes se elevarão até a superfície e
suas folhas aproveitarão o sol do meio-dia do verão marciano. Tais
desenvolvimentos serão precursores necessários da emigração em grande escala,
mas não serão suficientes. Meu palpite é que a emigração em grande escala se
iniciará apenas depois que se tiverem ensaiado muitas tentativas de pequena
escala, algumas coroadas de sucesso, outras não. A emigração em pequena
escala poderá se processar por algumas centenas de anos, antes que a vida se
tome firmemente adaptada e cresça naturalmente na multidão de mundos que
orbitam o Sol. Muito antes que se tenham passado mil anos a vida terá se
espalhado pelo sistema solar. E, a essa altura, nossos descendentes humanos
também terão se espalhado.


Numa escala temporal de mil anos, a política e a tecnologia não são
previsíveis. As únicas unidades políticas que duraram tanto tempo são a China e
o Japão. Mil anos atrás, a Europa era uma península desimportante na fímbria do
mundo árabe, mais avançado e civilizado. As tecnologias atuais seriam
ininteligíveis para nossos ancestrais de há um milênio. As únicas instituições
humanas que retêm suas identidades no curso de mil anos são idiomas, culturas e
religiões. Talvez não seja coincidência que os conflitos humanos mais intratáveis
e as criações artísticas mais perenes estejam arraigados em nossas línguas,
nossas culturas e nossas religiões.
Antecipando o que pode acontecer daqui a mil anos, pode- se prever que
continuará a existir uma diversidade de línguas, culturas e religiões, mesmo que
as variedades dominantes venham a diferir das que prevalecem hoje. A dispersão
dos assentamentos humanos por lugares muito distantes tenderá a preservar
nossa diversidade e, ao mesmo tempo, fazer com que essa diversidade seja
menos perigosa. Numa escala de tempo de mil anos, as diferenças genéticas
entre as populações humanas poderão intensificar-se, devido à seleção natural ou
à engenharia genética. Diferenças genéticas que, na Terra, seriam socialmente
diversionistas e politicamente intoleráveis, talvez se tomem inócuas numa
situação em que as populações desviantes vivam em asteroides distantes. Em mil
anos, nossos descendentes poderão ter se dispersado de tal modo que nenhuma
autoridade central será capaz de regular suas atividades, ou mesmo de saber de
sua existência. A essa altura estará em curso o processo de especiação, ou seja, a
divisão de nossa espécie em diversas variedades com heranças genéticas que se
afastam umas das outras. Na história da vida na Terra, a diversificação das
formas de vida levou à especiação, e esta a uma diversificação ainda maior. À
medida que a humanidade expandir seu espaço vital para fora da Terra, é
provável que o mesmo processo ocorra. Nossa espécie, hoje uma só, tomar-se-á
muitas. Não há motivo que impeça que diferentes espécies inteligentes
preencham nichos ecológicos variados em ambientes físicos diferentes —
algumas adaptadas ao calor, outras ao frio, algumas à gravidade zero, outras a
gravidades elevadas, algumas a altas pressões, outras à vida no vácuo espacial.
A principal diferença entre os processos de especiação natural e a
formação da espécie humana no futuro será uma diferença na escala de tempo.
Na Natureza, a especiação ocorre numa escala da ordem de 1 milhão de anos. A
especiação humana, impulsionada pela engenharia genética, pode dar-se numa
escala temporal de mil anos, ou menos. Comparada ao ritmo lento da evolução
natural, nossa evolução tecnológica é como uma explosão. Estamos
desmontando o mundo estático de nossos ancestrais e substituindo-o por um
mundo novo, que gira mil vezes mais depressa.
Considere-se a simples questão do tamanho. O tamanho de nossa
população, o tamanho de nossos recursos econômicos, o tamanho de nosso
espaço vital, tudo isso cresce a uma taxa média de cerca de 2% ao ano. No que
tange à população humana limitada à Terra, esse crescimento de 2% precisa
interromper-se logo. No entanto, quando a vida e as atividades industriais
tiverem se expandido pelo sistema solar, não haverá motivo forte para que o
crescimento pare. Poderá ocorrer que o crescimento continue a se processar a
uma taxa de 2% ao ano durante mil anos. Com isso, transcorridos mil anos,
nossa população, recursos e espaço vital terão se ampliado por um fator de 500
milhões. Ainda haverá no sistema solar amplas reservas de luz solar, água e
outros materiais essenciais, suficientes para sustentar uma população dessa
magnitude. Não digo que seja necessário ou desejável que os números cresçam
por um fator de 500 milhões. Digo, ape- nas, que isso é possível, e que poderá
ocorrer dentro dos próximos mil anos, caso nada façamos para impedi-lo.
Mais importante do que o crescimento da quantidade de seres humanos é
a possibilidade de mudanças radicais de qualidade. Durante os mil anos
vindouros haverá muitas oportunidades para experiências na reconstrução radical
de seres humanos. É possível que algumas dessas experiências tenham sucesso.
Quando isso acontecer, nossos descendentes nascerão com qualidades mentais
diferentes das nossas. Explorar as possibilidades da experiência mental será um
desafio tão grande quanto a exploração do Universo físico. Devemos antecipar
que ao menos alguns de nossos descendentes ansiarão por experimentar as
delícias da memória coletiva e da consciência coletiva, tornadas possíveis pela
tecnologia da rádio telepatia. As experiências da memória coletiva e da
consciência coletiva alargarão enormemente o escopo da arte, da ciência, da
religião e da história. Outras experiências na consciência coletiva poderão ligar
cérebros humanos aos de golfinhos e baleias, leões e chimpanzés e águias,
derrubando barreiras não apenas entre indivíduos mas também entre espécies.
Aqueles que experimentarem a fusão da memória e da consciência com outros
talvez encontrem dificuldades na comunicação com aqueles que ainda
dependerão da palavra escrita ou falada. Aqueles que tiverem participado de uma
mente grupal imortal poderão julgar difícil a comunicação com os mortais
comuns.
Os conflitos mais sérios dos próximos mil anos serão, provavelmente,
batalhas biológicas travadas entre concepções diferentes a respeito daquilo que
um ser humano deveria ser. Sociedades de mentes coletivas lutarão contra
sociedades de indivíduos à antiga. Grandes cérebros entrarão em batalha contra
pequenos cérebros. Entusiastas da inteligência artificial combaterão entusiastas
do discernimento natural. Tais batalhas poderão levar a guerras genocidas. No
entanto, as vastas regiões que se abrem no espaço além da Terra oferecem um
modo de resolver tais diferenças de forma pacífica. Em mil anos, a vida terá se
espalhado através do sistema solar até os limites externos do anel de cometas de
Kuiper, situado a uma distância do Sol mil vezes maior do que a da Terra.
Sociedades que diferem fundamentalmente quanto ao significado e ao objetivo
da vida poderão concordar em sair da vista umas das outras, por meio da
migração para lugares diametralmente opostos do sistema solar. O espaço é
grande o bastante para acomodar a todos.
Podemos ter esperanças de que se permitirá a uma parte de nossos
descendentes, àqueles que permanecerem presos à nossa herança humana,
àqueles que mantiverem fidelidade à nossa forma natural humana e a nosso
legado genético, que permaneçam como custodiantes de nosso planeta, de modo
a manter valores humanos antigos preservados em seu lugar de origem, enquanto
os que adotarem modelos radicalmente transformados se retirarão para fora da
vista e para fora do alcance.
Se a vida conseguir escapar da Terra e se espalhar pelo Universo, é
possível que os próximos mil anos sejam uma idade dourada para a ciência.
Talvez já se empreendam viagens exploratórias para além do sistema solar, a
distâncias interestelares. E viagens de exploração mental poderão buscar
direções que não conseguimos, ainda, imaginar. Não sabemos sequer os nomes
das novas ciências que poderão surgir e desaparecer no curso de mil anos.
Numa escala temporal de 10 mil anos, a disparidade entre nosso passado
e nosso futuro se tomará ainda mais aguda. Dez mil anos atrás éramos uma só
espécie, sem diferenças físicas e mentais discerníveis em relação às pessoas de
hoje. Vivíamos em sociedades baseadas na caça e na coleta e aprendíamos
lentamente como nos adaptar a um clima mais quente após o fim rápido da
última era glacial. Nossas lealdades fixavam-se na família, na tribo e na cultura
local. Quem sabe o que seremos daqui a dez anos? Na escala de dez mil anos, as
mudanças qualitativas dominam as mudanças quantitativas. O campo de batalha
da evolução humana se deslocará da biologia para a filosofia. A ciência poderá
ou não continuar a existir. Seres que reconheceríamos como humanos tanto
poderão existir como não. Espero que nossa forma humana e nossas antigas
lealdades humanas se preservem em alguma parte de nosso território futuro.
Mesmo que nossos descendentes de outras regiões atinjam a imortalidade, como
poderá muito bem acontecer, seria previdente manter na Terra uma população de
seres humanos mortais, de modo a preservar algum contato com a mortalidade
humana. Como Olaf Stapledon imaginou, nossos descendentes poderão reanimar
seus espíritos num “Culto de Eva- nescência”, forma de criação artística ou
religiosa em que são valorizadas a tragédia e a beleza de seres de vida curta. O
culto da evanescência poderá constituir uma âncora que conecte uma espécie
informatizada e intelectualizada às antigas realidades da vida e da morte.
A longo prazo, o problema central de qualquer espécie inteligente é o
problema da sanidade. Devemos ser livres para escolher nossos valores e nossos
objetivos. Não existirão padrões absolutos para julgar que um conjunto de
valores é certo e outro, errado. Existirá o risco permanente de que a sociedade
recaia num círculo vicioso, aprisionada num mundo onírico de sua própria
concepção, por um sistema de valores que perdeu contato com a realidade. Uma
sociedade aprisionada dessa forma é como um viciado cujo sistema de valores
sofreu curto-circuito por causa das drogas. Para o viciado, a droga é uma força
mais poderosa do que qualquer valor humano normal. Numa sociedade capaz do
controle tecnológico das emoções humanas, poderá ser fatalmente fácil induzir
dependências em relação a experiências emocionais artificiais. Uma sociedade
que desenvolva uma dependência desse tipo em relação a sonhos e sombras terá
perdido sua sanidade. Será um perigo para si e para as demais.
A única cura para sociedades insanas é um contato brutal com a
realidade. A sanidade é a capacidade de viver em harmonia com as leis da
Natureza. Para permanecer sãos, os nossos descendentes precisarão manter
intactas as raízes emocionais de nossa espécie, a fim de preservar o equilíbrio
emocional com que evoluímos ao longo de milhões de anos de uma vida precária
no ambiente natural. Se é que sobreviveremos ao longo de um futuro extenso,
deveremos manter contato com o nosso extenso passado. Não será só por
motivos estéticos que precisaremos preservar a Terra como museu cultural. A
Terra, com seus milhões de espécies, oferecerá a nossos descendentes uma lição
prática na arte de viver. Dar-lhes-á uma medida de realidade de que eles terão
necessidade crescente, à proporção que se afastarem.
Cem mil anos atrás, estávamos aprendendo a ser humanos. Adaptávamo-
nos a um clima frio com invenções engenhosas, linguagem abstrata e
antecipação de eventos. Começávamos a educar nossas crianças. Aprendíamos a
desenvolver uma lealdade acirrada para com a nossa espécie, na concorrência
com nossos primos Neanderthal. Num futuro de cem mil anos nada é previsível.
Nesse tempo, poderemos ter espalhado a vida por toda a galáxia, caso ela já não
esteja, de fato, disseminada. Teremos estabelecido contato com formas de vida
que talvez existam na galáxia. Se tivermos sorte, nossa história poderá se
enriquecer com uma multidão de culturas e tradições alienígenas.
Provavelmente, estas alimentarão ideias sobre o bem e o mal muito diferentes
das nossas. Teremos muito a aprender com elas, e elas conosco.
Numa escala temporal de cem mil anos, o fator dominante na história da
vida talvez seja a adaptação a um Universo de Carroll. Jean-Marc Lévy-Leblond
inventou esse Universo como exercício matemático, mostrando que se inclui
numa pequena quantidade de modelos de universos logicamente auto
consistentes. Físico francês que vive hoje em Nice, Lévy-Leblond batizou seu
Universo com o nome de Lewis Carroll, o matemático inglês que escreveu os
clássicos infantis Alióe no país das maravilhas e Alice no país do espelho. No
mundo especular de Carroll, a Rainha de Copas diz a Alice: “Você precisa correr
o quanto possa para ficar no mesmo lugar”. De modo que, no Universo de
Carroll criado por Lévy-Leblond, não há movimento de coisa alguma de um
lugar a outro. Mesmo a luz tem velocidade zero.
Quando a vida estiver disseminada pela galáxia, estaremos vivendo num
Universo de Carroll, pois as distâncias serão demasiadamente grandes para ser
transpostas numa escala temporal humana. Mesmo mensagens que viajem à
velocidade da luz levarão 50 mil anos para se arrastar através da galáxia. Épocas
históricas inteiras transcorrerão e culturas ascenderão e cairão no tempo
decorrido entre uma chamada telefônica e sua resposta. Cada pedacinho da
galáxia será um mundo em si próprio, isolado das outras partes pela imensidão
do espaço e pela rapidez do tempo. Gozaremos de uma comunicação abundante
com nossos vizinhos do passado, mas nada saberemos sobre os nossos vizinhos
presentes.
Existem dois outros modelos simples do Universo que são mais
familiares do que o Universo de Carroll. Eles são o Universo de Newton e o
Universo de Einstein. No Universo de Einstein, tanto o espaço quanto o tempo
são relativos. No Universo de Newton, o tempo é absoluto e o espaço, relativo.
No Universo de Carroll, o espaço é absoluto e o tempo, relativo. E um paradoxo
curioso que tenhamos vivido durante 100 mil anos num Universo de Carroll e
que, no futuro, viveremos de novo nele, com pequenos intervalos de Newton e
Einstein entre os dois.
No passado, antes da invenção dos barcos e da roda, vivíamos num
Universo de Carroll, porque cada pequena tribo podia deslocar-se por distâncias
pequenas ao longo do tempo de uma vida. Cada tribo era como um ponto no
Universo de Carroll, separado de outros pontos pelo espaço absoluto. Com a
invenção dos barcos e da roda, aprendemos a viajar pelo mundo. Nosso espaço
deixou de ser absoluto e ingressamos num Universo de Newton. Um pouco mais
tarde, inventamos o telégrafo e o rádio, e passamos a um Universo de Einstein.
Permaneceremos por alguns milhares de anos num Universo de Einstein, até que
nos espalhemos por distâncias interestelares ou encontremos alienígenas que já
tenham se disseminado pela galáxia. E então, depois de nos espalharmos,
voltaremos a um Universo de Carroll. O Universo de Carroll nos fez como
somos, uma espécie territorial com lealdades intensas em relação a lugares e
lares. Nos Universos de Newton e Einstein do passado recente e do presente,
essas lealdades se tornaram perigosas e destrutivas, levando-nos a guerras
territoriais e ao extermínio de povos. No Universo de Carroll de nosso futuro,
não seremos mais capazes de atacar nossos vizinhos, e as antigas lealdades
territoriais se tornarão mais uma vez benignas.
Alguns anos atrás, a revista OMNI pediu-me que escrevesse uma
mensagem de no máximo 75 palavras, a ser enviada para alienígenas que
pudessem estar ouvindo. Eis a mensagem que eu mandaria:

Prezados alienígenas, seu silêncio nos envergonha. Por favor, desculpem-
nos por fazer tanto barulho neste lindo Universo que dividimos com
vocês. Por favor, sejam pacientes diante de nossa impaciência, sejam
delicados quando somos grosseiros, sejam sábios quando somos idiotas.
Somos uma espécie jovem, que ainda tem muito a aprender.

Um milhão de anos no passado nos leva ao início de nossa espécie.
Durante esse milhão de anos, realizamos todas as grandes invenções que nos
marcam como humanos. A linguagem, o compartilhamento de nossas alegrias e
tristezas, nossos pensamentos e nossas habilidades. Os avós, a terceira geração
que juntamos à família mamífera, para nos dar tempo de educar crianças e contar
histórias em torno do fogo, enquanto os pais se ocupam da caça e da coleta de
alimentos. Consciência sobre a morte, para alargar nossos horizontes temporais e
revelar nosso papel como elos de uma cadeia existencial, para reverenciar nossos
antepassados e para cuidar de nossos descendentes. O riso, para permitir que
aproveitemos o absurdo de nossa situação. O amor pelo sol, pelos rios, pelas
árvores e pela terra. Respeito e lealdade, não apenas para com nossa própria
tribo mas também para com outras espécies e para com a Natureza como um
todo. A religião, que traz uma dimensão mística que dá significado a nossos
esforços. E, finalmente, entre outras divindades, a Deusa Terrestre Gaia, que
simboliza o poder nutridor e protetor de nosso planeta.
Daqui a 1 milhão de anos, teremos realizado novas invenções, no mínimo
tão profundas e revolucionárias como as que fizemos no passado. Não podemos,
hoje, fazer ideia da natureza de nossas invenções futuras. As preocupações de
nossos descendentes daqui a 1 milhão de anos serão provavelmente tão
ininteligíveis para nós como as equações diferenciais ou a astrofísica seriam para
os primeiros hominídeos que percorriam as planícies africanas. Tudo o que
possamos dizer sobre como será o futuro daqui a 1 milhão de anos é quantitativo
e não qualitativo. Não temos condições de descrever a qualidade da vida de
nossos descendentes, mas podemos prever muito aproximadamente onde eles
estarão. Eles estarão espalhados por toda a galáxia e já procurarão atingir outras
galáxias. Eles terão consciência direta, num nível de compreensão que não
podemos imaginar, da totalidade da história da parte do Universo que estiver no
âmbito de seu horizonte passado. Estarão enviando comunicações aos vizinhos
remotos que estiverem na parte do Universo situada no âmbito de seu horizonte
futuro. Num Universo de Carroll, a lacuna entre os horizontes passado e futuro é
muito ampla. Mesmo para um vizinho situado numa galáxia próxima como a
M31, a lacuna entre os dois horizontes, a lacuna entre o passado comunicável e o
futuro comunicável, é de vários milhões de anos. É isso o que significa viver
num Universo de Carroll. Daqui a 1 milhão de anos, nossos descendentes e seus
vizinhos em outras galáxias estarão talvez se preparando para uma intervenção
inteligente da vida na evolução do Universo como um todo. Essa é uma aventura
sobre cujo início podemos conjecturar, mas a partir de onde nos encontramos
está fora do alcance.
Antes de 1 milhão de anos atrás não éramos humanos. Mas a vida tem
uma história que remonta a 3 bilhões de anos, e essa história é também nossa.
Não tentarei, aqui, traçar um esboço detalhado da história da vida. Menciono um
único aspecto dessa história, que é relevante para o futuro da vida a longo prazo:
o conceito de Gaia. Gaia não é apenas o nome de uma antiga deusa grega, é
também o nome de uma teoria científica que nada tem a ver com religião ou
misticismo. A Gaia científica é uma teoria sobre a história da vida na Terra,
proposta pela primeira vez por James Lovelock. A teoria afirma que a química e
a ecologia da Terra ligam-se num sistema unificado, que mantém o ambiente do
planeta dentro de limites toleráveis para a vida. Gaia significa simplesmente o
sistema de controle que liga as ações da vida e do ambiente. Não sou especialista
em ciência planetária, mas julgo plausível a teoria de Gaia. Ela descreve como a
Terra e seus habitantes interagem. Não pretende explicar como as interações
funcionam.
Como exemplo para ilustrar as evidências científicas em favor de Gaia,
escolho a concentração de sal na água do mar. Lovelock reuniu evidências
geológicas que mostram que o sal dissolvido nos oceanos se manteve numa
concentração relativamente constante durante os últimos 2 bilhões de anos. Por
outro lado, as quantidades de sal depositadas nos oceanos pelos rios seriam
suficientes para dobrar a concentração salina em cerca de 100 milhões de anos.
Se algum processo de regulação não mantivesse essa concentração constante, os
oceanos estariam hoje tão saturados de sal quanto o mar Morto, e quase todas as
formas de vida marinha teriam se extinguido. Por meio de algum mecanismo que
ainda não se conhece, o sistema que Lovelock denomina Gaia tem limitado a
concentração de sal e mantido os mares frescos o suficiente para constituírem
um abrigo confortável para peixes e outros seres. Um dos mecanismos de
remoção de sal dos mares é a deposição em lagoas rasas. No entanto, ninguém
entende ainda como tal processo é regulado de modo a manter o sal dissolvido
constante ao longo de 2 bilhões de anos.
Embora os processos de regulação não sejam compreendidos, sabemos
que, de algum modo, Gaia manteve este planeta propício à vida durante 3
bilhões de anos, apesar das muitas mudanças climáticas e alterações geológicas
que atravessou. Sabemos que, se desejarmos continuar a viver na Terra com
saúde e conforto, deveremos também manter Gaia saudável. Nosso futuro na
Terra depende de compreendermos e preservarmos Gaia. Mesmo antes que nos
tomássemos humanos, nossos corpos e mentes evoluíram para viver em
equilíbrio com Gaia. No futuro para além de 1 milhão de anos, depois que
deixarmos de ser humanos, e caso sobrevivamos, precisaremos continuar a viver
em equilíbrio com Gaia.
Além de 1 milhão de anos, a vida prosseguirá, mas não podemos esperar
entender o que ela estará fazendo, tanto quanto um dinossauro não entenderia o
que fazemos hoje. Podemos ter esperança de que, à medida que a vida se
expanda pela galáxia e pelo Universo, Gaia também se expandirá. O processo de
disse- minar o verde pela galáxia, bem como pelo Universo, será lento, e
acompanhará os ritmos lentos de Gaia e não os ritmos nervosos de seres
humanos impacientes. A medida que se expandir, a vida precisará levar consigo
os mecanismos de auto-regulação que a protegem de um crescimento
descontrolado e da autodestruição. A expansão da vida deverá carregar consigo
os condicionantes de Gaia. Podemos imaginar que, no fim, uma Gaia universal
regulará a vida em todos os cantos do cosmo.
Uma de minhas histórias de ficção científica favoritas é “Dragon’s egg”
[Ovo de dragão], de autoria de Robert Forward, um engenheiro de sucesso e
escritor talentoso. “Dragon’s egg” é a história do encontro entre duas sociedades
que vivem em escalas temporais distintas — a sociedade humana terráquea e
uma sociedade de seres alienígenas, que se autodenominam Cheelas, e que
vivem na superfície de uma estrela de nêutrons. A vida dos Cheelas é mil vezes
mais veloz do que a nossa. Um dia de seu tempo corresponde a um minuto do
nosso. Um dia de nosso tempo corresponde a vários anos do deles. A história se
trava em torno da questão: como podem se comunicar duas sociedades que
vivem em escalas temporais tão diferentes? Na história, a comunicação dá-se
uma só vez, de modo muito fugaz, após o que as duas sociedades seguem cada
qual em seu caminho. Essa não é uma resposta satisfatória para a questão. Na
verdade, como a história toma claro, não sabemos como responder a ela.
Enfrentamos a mesma questão quando consideramos o futuro da
sociedade humana na Terra. A história de Robert Forward pode ser lida como
alegoria da situação dos seres humanos, com sua vida curta, tendo de lidar com
uma Gaia longeva. Precisamos aprender a ajustar nossas vidas e nossos destinos
à vida e ao destino de Gaia. A dificuldade fundamental aqui é a diferença de
escalas temporais — os dez ou cem anos das escalas de tempo dos seres
humanos e o milhão ou bilhão de anos das escalas de Gaia. De algum modo,
precisaremos coexistir com Gaia e cooperar com ela através dessa imensa
barreira de escalas temporais.
Nosso problema é semelhante ao problema dos Cheelas. Sob o ponto de
vista dos Cheelas, os seres humanos são difusos e mal definidos. Também somos
bobos e lentos. Somos de tal modo lentos que deixamos os Cheelas loucos de
impaciência. Sob o ponto de vista humano, Gaia é difusa, mal definida, boba e
lenta. Sua lentidão nos deixa loucos. Esse é um dos fatos centrais da condição
humana. Precisamos aprender a viver na escala temporal de Gaia, bem como na
nossa.
Não podemos prever a evolução da vida para além de 1 milhão de anos.
Podemos apenas estudar os limites impostos às potencialidades da vida pelas leis
da física e da teoria da informação. Quinze anos atrás, publiquei um estudo desse
tipo, supondo como base de cálculo um modelo de Universo de densidade sub-
crítica. Densidade subcrítica significa que o Universo contém menos matéria do
que seria necessário para interromper o processo de expansão. Num Universo
subcrítico, as galáxias continuam a se afastar umas das outras para sempre, a
velocidades constantes. Consegui mostrar que, num Universo subcrítico, embora
as reservas de matéria e energia disponíveis em cada galáxia sejam finitas, as leis
da física e da teoria da informação permitiriam que a vida sobrevivesse para
sempre utilizando um suprimento finito de energia.
Há duas alternativas possíveis ao Universo subcrítico. Sua densidade
pode ser supercrítica ou precisamente crítica. Num Universo supercrítico, a
densidade de matéria é grande o suficiente para reverter o processo de expansão
universal em tempo finito; passada mais uma certa quantidade de tempo, o
Universo contrai- se para um estado de densidade infinita. O Universo, que
iniciou sua existência num Big Bang, terminaria num Big Crunch. Num
Universo supercrítico, a história da vida termina numa elevação rápida de
temperaturas, pouco antes do Big Crunch. Uma perspectiva lúgubre, sobre a qual
não falarei mais.
Felizmente, existe também a possibilidade de que nosso Universo seja
precisamente crítico. Num Universo precisamente crítico, a expansão universal
nunca sofre reversão, mas as galáxias distantes se afastam de nós de modo cada
vez mais lento à medida que o tempo passa. Stephen Frautschi publicou um
estudo sobre o futuro remoto da vida num Universo exatamente crítico. O
Universo crítico é muito mais amistoso em relação à vida do que o Universo
subcrítico. No Universo subcrítico, cada galáxia se encontra por fim só,
dependente de seus próprios recursos, comunicando-se apenas por rádio com
vizinhas que se afastam rapidamente. No Universo crítico pode-se estender a
mão e tocar as vizinhas. As galáxias vizinhas movem-se tão devagar que é
possível visitá-las e trocar recursos materiais, bem como informações. Pode-se
cooperar com os vizinhos em projetos de engenharia de larga escala, de modo a
manter o Universo em bom estado e resguardar as condições ótimas para a
manutenção da vida. Num Universo crítico, a Gaia universal tem um terreno
muito maior para as suas atividades.
Seguimos a evolução da vida em sete diferentes escalas temporais,
começando nos dez anos e chegando ao infinito. O tema comum ao longo de
toda a história é que a vida traz drama e estimulação a um Universo que, sem
ela, seria morto e enfadonho. No fim, percebemos que o drama da vida só atinge
escala universal num Universo crítico, um Universo que permanece para sempre
equilibrado no limite entre a expansão e o colapso. Caso se mostre que o
Universo em que vivemos é de fato crítico, isso constituiria uma evidência forte
em apoio ao princípio filosófico a que dou o nome de princípio da diversidade
máxima.
O princípio da diversidade máxima afirma que as leis da Natureza se
constituem de modo a fazer com que o Universo seja o mais interessante
possível. A maioria das novas descobertas da ciência durante a minha vida
fortaleceu minha crença de que esse princípio é verdadeiro. Mas as evidências
em favor de um Universo crítico não são tão fortes quanto gostaríamos que
fossem. Presentemente, as evidências tendem a favorecer um Universo
subcrítico. Como cientista, posso desejar um Universo crítico, mas não me é
permitido confundir desejos com fatos.

5. ÉTICA


Um de meus monumentos favoritos é uma estátua de Samuel Gompers
perto do forte do Álamo, em San Antonio, Texas. Ao pé da estátua há uma
citação tirada de um discurso de Gompers:

O que quer o trabalho?
Queremos mais escolas e menos cadeias,
Mais livros e menos armas,
Mais conhecimento e menos vícios,
Mais lazer e menos ambição,
Mais justiça e menos vingança,
Queremos mais oportunidades para cultivar o que há de melhor em nossa
natureza.

Àqueles que fazem
Inaugurada em 6 de setembro de 1982
Bette Jean Alden, escultora.

Não sei quantos dos milhares de turistas que visitam San Antonio todos
os anos para prestar homenagem a Davy Crocket e aos demais heróis do Álamo
dedicam um pouco de seu tempo para ouvir Samuel Gompers. Espero que, como
eu, alguns encarem as palavras pacíficas de Gompers como antídoto ao culto à
loucura militar simbolizado pelo Álamo. É uma surpresa agradável ouvir a voz
serena da razão tão próxima ao coração do Texas, tão próxima ao santuário do
orgulho patriótico.
Samuel Gompers foi o fundador e primeiro presidente da American
Federation of Labor. Foi grandemente responsável por afastar o movimento
trabalhista norte-americano do europeu, dominado pela ideologia de Karl Marx.
Os líderes trabalhistas europeus sonhavam com uma revolução proletária.
Gompers entendeu que os trabalhadores norte-americanos não estavam
interessados em revolução, e que sonhavam principalmente com altos salários e
segurança econômica. Gompers foi o paladino do pragmatismo em oposição à
ideologia. Como regra geral, tecnologias impulsionadas pelo pragmatismo
funcionam bem, enquanto tecnologias impulsionadas por ideologias funcionam
mal. A vida de Gom- pers ilustra outra regra geral, a de que a justiça social
combina melhor com o pragmatismo do que com a ideologia.


E um fato histórico irônico que hoje, setenta anos após a sua morte, as
ideias de Gompers tenham triunfado na Europa e fracassado nos Estados Unidos.
Na época de Gompers, os ideólogos revolucionários da Europa conduziram seus
sindicatos a um desastre atrás do outro, o maior deles a ditadura do proletariado
na Rússia de 1917. Enquanto isso, Gompers fundava nos EUA a tradição da
barganha prática entre o trabalho e a administração, que levou os sindicatos a
uma era de crescimento e prosperidade. Depois, com as devastações da Segunda
Guerra Mundial, as posições dos dois lados do Atlântico aos poucos se
inverteram. Os europeus reconheceram o acerto de Gompers e reconstruíram
suas sociedades numa base não ideológica, em que os sindicatos compartilham o
poder e a responsabilidade das decisões econômicas.
Enquanto isso, os Estados Unidos se esqueceram de Gompers e
abraçaram uma ideologia de capitalismo doutrinário de livre-mercado. Os
sindicatos norte-americanos minguaram, enquanto os sonhos de Gompers —
mais livros e menos armas, mais lazer e menos ambição, mais escolas e menos
cadeias — foram tacitamente abandonados. Numa sociedade sem justiça social e
com uma ideologia de livre-mercado, as armas, a ambição e as cadeias estão
fadadas a vencer.
Este livro pretende tratar de tecnologia e não de justiça social, mas não é
possível dizer qual tecnologia é boa e qual é má sem prestar alguma atenção à
justiça social. Quando eu era estudante de matemática na Inglaterra, cinquenta
anos atrás, um de meus professores era o grande G. H. Hardy, que escrevera um
livrinho, A mathematician’s apology [A desculpa de um matemático], em que
explicava ao público o que um matemático faz. Hardy proclamava com orgulho
que sua vida tinha sido devotada à criação de obras de arte abstrata totalmente
inúteis, sem qualquer aplicação prática possível. Ele mantinha opiniões fortes a
respeito da tecnologia, que resumia com a declaração: “Diz-se de uma ciência
que é útil se seu desenvolvimento tende a acentuar as desigualdades existentes
na distribuição da riqueza, ou se promove mais diretamente a destruição da vida
humana”. Escreveu essas linhas enquanto a guerra criava devastação em tomo
dele. Ainda assim, a perspectiva de Hardy sobre a tecnologia tem méritos,
mesmo em épocas de paz. Muitas das tecnologias que avançam mais
rapidamente hoje em dia, substituindo trabalhadores em fábricas, tornando
acionistas mais ricos e operários mais pobres, de fato tendem a acentuar as
desigualdades de distribuição de riqueza. E as tecnologias de força letal
continuam a ser tão lucrativas como eram na época de Hardy. O mercado julga
as tecnologias por sua eficácia prática, determinando se são vitoriosas ou
fracassam em fazer aquilo que são projetadas para fazer. Contudo, mesmo para
as tecnologias com os sucessos mais brilhantes, uma questão ética sempre
permanece no fundo, a questão de saber se a tarefa que o projeto da tecnologia
pretende cumprir vale de fato a pena.
As tecnologias que levantam os menores problemas éticos são aquelas
que funcionam na escala humana, melhorando a vida de pessoas individuais. Em
toda geração, indivíduos afortunados encontram tecnologias apropriadas a suas
necessidades. Noventa anos atrás, para meu pai, a tecnologia era uma
motocicleta. Ele era um músico empobrecido, que crescera na Inglaterra dos
anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, e a motocicleta representou
para ele uma libertação. Ele era um rapaz da classe trabalhadora num país ainda
dominado pelo esnobismo da classe social e da pronúncia. Aprendeu a falar
como um cavalheiro, mas não pertencia ao mundo dos cavalheiros. A
motocicleta era uma grande equalizadora. Em sua moto, ele se igualava aos
cavalheiros. Podia fazer o grande tour europeu sem ter herdado uma renda de
classe alta. Ele e três amigos compraram motocicletas e, com elas, percorreram a
Europa.
Meu pai se apaixonou por sua motocicleta e pela engenhosidade técnica
que exigia. Sessenta anos antes que Robert Pirsig escrevesse Zen e a arte da
manutenção de motocicletas ele entendeu a qualidade espiritual da motocicleta.
Nos dias de meu pai, as estradas eram ruins e as oficinas poucas e muito
espaçadas. Caso se pretendesse viajar por grandes distâncias, era necessário
levar uma caixa de ferramentas e peças de reposição e estar preparado para
desmontar a máquina e remontá-la de novo. A quebra da máquina num lugar
remoto costumava exigir uma cirurgia de grandes proporções. Era essencial para
o motociclista entender a anatomia e a fisiologia da motocicleta, do mesmo
modo que é essencial para um cirurgião compreender a anatomia e a fisiologia
de seus pacientes. As vezes ocorria de meu pai e seus amigos chegarem a uma
cidadezinha em que ninguém jamais havia visto uma motocicleta. Quando isso
acontecia, eles passeavam com as crianças do local, com a esperança de serem
recompensados com um jantar grátis na estalagem. Sob a forma da motocicleta,
a tecnologia significava companheirismo e liberdade.
Cinquenta anos depois de meu pai, descobri uma tecnologia divertida na
forma de um reator de fissão nuclear. Foi em 1956, durante os primeiros e
inebriantes dias da energia nuclear pacífica, quando a tecnologia dos reatores
nucleares emergiu de repente do estado de segredo de guerra e o público era
convidado a visitá-la e brincar com ela. Era um convite que eu não podia recusar.
Naquela época, parecia que a energia nuclear poderia ser a grande equalizadora,
proporcionando energia barata e abundante tanto para os ricos como para os
pobres, do mesmo modo que, na sociedade de classes inglesa de cinquenta anos
antes, a motocicleta dera mobilidade aos ricos e aos pobres.
Entrei para a General Atomic Company, de San Diego, onde meus
amigos brincavam com a nova tecnologia. Inventamos e construímos um
pequeno reator a que demos o nome de TRIGA, projetado para ser
inerentemente seguro. Segurança inerente significa que não se comportaria mal
mesmo que as pessoas que o operassem fossem vastamente incompetentes. A
empresa fabricou e vendeu reatores TRIGA durante quarenta anos, e ainda os
vende hoje, principalmente para hospitais e centros médicos que os empregam
na produção de isótopos de vida curta usados para fins de diagnóstico. Nunca se
comportaram mal nem causaram algum dano às pessoas que trabalham com eles.
Só enfrentaram dificuldades em alguns poucos lugares, onde vizinhos objetaram
quanto a sua presença por motivos ideológicos, não importando o quão seguros
fossem. Tivemos sucesso com o TRIGA porque ele foi projetado para cumprir
uma tarefa útil, a um preço que um grande hospital podia suportar. Em 1956, seu
preço era de 250 mil dólares. Nosso trabalho com o TRIGA era divertido porque
nós o terminamos rapidamente, antes que a tecnologia se enredasse com a
política e com a burocracia, antes que se tomasse claro que a energia nuclear não
era, e nunca poderia ser, a grande equalizadora.


Quarenta anos depois da invenção do TRIGA, meu filho George
encontrou outra tecnologia útil e divertida, a tecnologia do CAD-CAM, projeto e
manufatura assistidos por computador [computer-aided design, computer-aided
manufacturing]. O CAD-CAM é a tecnologia da geração pós-nuclear, a
tecnologia que teve sucesso após o fracasso da energia nuclear. George constrói
barcos. Ele projeta caiaques marinhos. Usa materiais modernos para reconstruir
a antiga arte dos aleutas, que aperfeiçoaram seus barcos por tentativa e erro ao
longo de milhares de anos e os usavam para percorrer distâncias prodigiosas
através do Pacífico Norte. Seus barcos são velozes, robustos e adequados ao mar.
Quando ele se iniciou nessa atividade, 25 anos atrás, era um nômade, viajando
incessantemente ao longo da costa do Pacífico Norte, procurando viver como um
aleuta e tentando construir barcos como um aleu- ta — moldando e costurando
com as próprias mãos todas as partes dos barcos. Naqueles dias ele era um filho
da Natureza, apaixonado pela vida silvestre e revoltado contra a sociedade
urbana na qual havia crescido. Construía barcos para seu uso e de seus amigos, e
não como negócio comercial.
Com o passar dos anos, George fez uma transição tranquila do papel de
adolescente revoltado para o papel de cidadão responsável. Casou-se, criou uma
filha, comprou uma casa na cidade de Bellingham e transformou uma taverna
abandonada à beira d’água numa bem equipada oficina para seus barcos. Os
barcos são, hoje, um negócio, e ele descobriu as alegrias do CAD-CAM.
Em sua oficina existem atualmente mais computadores e software do que
agulhas e ferramentas manuais. Foi-se o tempo em que ele construía seus barcos
a mão. Hoje, traduz seus projetos diretamente em software de CAD-CAM e os
transmite eletronicamente para um fabricante que produz os componentes.
George os recolhe e os vende por reembolso postal à sua clientela, juntamente
com instruções para montá-los e formar um barco. Apenas raramente, quando
um freguês rico está disposto a pagar, ele monta um barco em sua oficina. O
negócio dos barcos ocupa apenas parte de seu tempo. George também dirige uma
sociedade histórica dedicada à história e à etnografia do Pacífico Norte. A
tecnologia do CAD-CAM deu a George recursos e lazer, de modo que ele pode
visitar os aleutas em suas ilhas e reapresentar aos ilhéus jovens a arte esquecida
de seus ancestrais.
Daqui a quarenta anos, quais serão as tecnologias divertidas que
enriquecerão as vidas de nossos netos? Talvez eles projetem seus próprios cães e
gatos. Da mesma forma que a tecnologia do CAD-CAM começou nas linhas de
produção de grandes empresas industriais e depois se tomou acessível a cidadãos
individuais como George, a tecnologia da engenharia genética poderá, em pouco
tempo, difundir-se a partir das companhias de biotecnologia e das indústrias
agrícolas e se tomar acessível a nossos netos. Projetar cães e gatos na
privacidade de casa pode se tornar tão fácil como projetar barcos numa oficina.
Em lugar do CAD-CAM, poderemos ter o CAS-CAR, seleção e
reprodução assistidas por computador [computer-aided selection, computer-
aided reproduction]. No software de CAS-CAR começa- se por programar o
padrão de cores e de comportamento do bicho e depois se transmite o programa
eletronicamente ao laboratório de fertilização artificial, para ser materializado.
Doze semanas depois o animal nasce, e a satisfação é garantida pela empresa de
software. Recentemente, quando descrevi essa possibilidade numa conferência
pública num museu infantil de Vermont, fui agredido verbalmente por uma moça
da audiência. Ela me acusou de violar os direitos dos animais. Disse que eu sou
um cientista típico, uma dessas pessoas malvadas que passam a vida a torturar
bichos, só por divertimento. Em vão, tentei aplacar sua ira, dizendo que falava
apenas de possibilidades, e que não me ocupava do projeto de cães e gatos. Devo
admitir que sua reclamação era legítima. Projetar cachorros e gatos é algo
eticamente duvidoso. Não é tão inocente quanto projetar barcos.
Quando chegar o tempo, e o software de CAS-CAR estiver disponível,
quando qualquer pessoa com acesso ao software puder encomendar um cachorro
com bolinhas roxas e cor-de-rosa e que cante como um galo, será necessário
tomar algumas decisões duras. Deveremos permitir que qualquer cidadão crie
cães que serão alvo de desprezo e ridículo, incapazes de assumir um lugar
respeitável na sociedade dos cães? Em caso contrário, onde deveremos traçar os
limites entre a criação legítima de animais e a criação ilegítima de monstros?
Essas são questões difíceis, que nossos netos terão que responder. Em Vermont,
talvez eu devesse ter falado ao público sobre projetar rosas e orquídeas, e não
cães e gatos. Ninguém parece importar-se tão profundamente com a dignidade
de rosas e orquídeas. Parece que vegetais não têm direitos. Cães e gatos parecem
humanos demais. Eles têm sentimentos como os nossos. Caso se permita a
nossos netos que projetem seus próprios cães e gatos, o próximo passo será o uso
do software de CAS-CAR no projeto de bebês. Antes de dar esse passo, eles
precisarão pensar cuidadosamente nas consequências.
O software para o projeto de bebês é ainda uma pequena nuvem num
horizonte distante. Ela pode muito bem dissipar-se e desaparecer, antes que
venha a perturbar nossa paz. Enquanto isso, temos questões mais urgentes a
responder. O que se deverá fazer para interromper a destruição de florestas e a
extinção de espécies? O que deve ser feito para interromper o crescimento não
sustentável das populações humanas? O que se deverá fazer para eliminar as
dezenas de milhares de armas nucleares que ainda conspurcam o nosso planeta
após o fim da Guerra Fria? Não tenho respostas para essas perguntas. As
respostas terão mais a ver com a ética e com a política do que com a ciência e a
tecnologia. Só tenho conhecimento especializado quanto a uma dessas perguntas,
o problema das armas nucleares. Alguns anos atrás, entrei numa sala onde havia
42 bombas de hidrogênio espalhadas pelo chão, nem sequer acorrentadas, cada
qual dez vezes mais potente do que a bomba que destruiu Hiroshima. Essa
experiência constituiu um lembrete agudo a respeito da precariedade da condição
humana. Encorajou-me a pensar detidamente sobre os meios de melhorar as
chances de sobrevivência de meus netos. Como disse George Kennan, as armas
nucleares continuam a ser o perigo mais sério para a humanidade e o insulto
mais sério a Deus.
Nos quatro primeiros capítulos deste livro, quase não se mencionaram
armas nucleares. O desaparecimento das armas nucleares de nosso pensamento
sobre o futuro foi uma mudança histórica em relação à qual devemos ser
profundamente gratos. Desde cinquenta anos atrás, e durante muitos anos, as
armas nucleares dominaram o panorama de nossos medos. A corrida nuclear era
o problema ético central de nossa era. Discussões sobre o dilema ético dos
cientistas centravam-se nas bombas e nos mísseis de longo alcance. A face má da
ciência era personificada pelo projetista de bombas nucleares. Hoje, silenciosa e
inesperadamente, as bombas sumiram de nossa vista. Mas elas não deixaram de
existir. O perigo representado para a humanidade por enormes arsenais em mãos
não confiáveis continua tão real como sempre foi. No entanto, as bombas não
são mencionadas em nossas visões do futuro. Como isso pôde ter acontecido?
No verão de 1995, participei de um estudo técnico sobre o futuro do
arsenal nuclear dos Estados Unidos. O estudo foi realizado por um grupo de
cientistas acadêmicos, juntamente com um grupo de projetistas profissionais de
bombas vindos dos laboratórios de armas. O objetivo do estudo era responder a
uma pergunta: seria tecnicamente factível manter para sempre um arsenal de
armas nucleares confiáveis, construídas de acordo com os projetos existentes,
sem que fosse necessário realizar mais testes nucleares? O estudo não abordava
as questões políticas subjacentes, ou seja, se armas nucleares confiáveis seriam
sempre necessárias e se mais testes nucleares seriam para sempre indesejáveis.
Cada um de nós tinha suas opiniões sobre as questões políticas, mas a política
não era o assunto de nosso estudo. Consideramos como ponto de partida para o
estudo que as armas no arsenal permanente precisariam ser consertadas e
fabricadas sem mudança de projeto, à medida que seus componentes se
deteriorassem e se estragassem. Pressupusemos que os novos componentes
difeririam dos antigos quando as substituições se tornassem necessárias, porque
as fábricas responsáveis pelos antigos teriam, haveria muito, deixado de existir.
Examinamos detalhadamente cada tipo de arma e verificamos que seu
funcionamento é robusto o suficiente para que mudanças secundárias em
componentes não provoquem falhas. Concluímos nosso estudo em um relatório
unânime, em que se afirmava ser possível manter um arsenal nuclear
permanente, sem testes nucleares. A unanimidade era essencial.
A unanimidade tornou-se possível devido à objetividade e integridade
pessoal dos quatro projetistas de armas que trabalharam lado a lado conosco
durante sete semanas: John Richter e John Kammerdiener, de Los Alamos,
Seymour Sack, de Livermore, e Robert Peurifoy, da Sandia. São pessoas
notáveis, mestres-artesãos de uma tecnologia exigente. Gastaram a melhor
parcela de suas vidas no planejamento e na execução de testes de bombas.
Lembram-se de todos os testes, se fracassaram ou tiveram sucesso. Sabem por
que cada teste foi realizado e o que se aprendeu com seu fracasso ou sucesso.
Sua presença era essencial para nosso trabalho, e a presença de seus nomes no
relatório deu credibilidade a nossas conclusões. Eles são sobreviventes de uma
cultura que desaparece. Viveram durante a idade heroica da construção de armas.
Eles não serão substituídos, e nem poderiam. Ao trabalhar em nosso estudo, eles
ajudaram altruisticamen- te nosso país [os EUA] a transitar com segurança para
um mundo em que pessoas com as qualidades e os talentos especiais desses
quatro indivíduos não serão mais necessárias.
A conclusão de nosso estudo constituiu um marco histórico, que
comemorou o fato de a corrida nuclear ter chegado ao fim. A corrida nuclear
transcorreu em fúria total por apenas vinte anos, durante as décadas de 40 e 50.
A partir daí, reduziu-se aos poucos durante os trinta anos seguintes, em três
estágios. A corrida científica cessou nos anos 60, depois do desenvolvimento de
bombas de hidrogênio altamente eficientes. Com isso, as armas nucleares
deixaram de constituir um desafio científico. A corrida militar cessou nos anos
70, após o desenvolvimento de mísseis e submarinos confiáveis e invulneráveis.
Isso fez com que, num conflito real, as armas nucleares deixassem de conferir
vantagens militares a seus controladores. A corrida política cessou nos anos 80,
depois que se tornou claro a todos que grandes indústrias de armas nucleares são
desastrosas, tanto do ponto de vista ecológico como do econômico. O tamanho
do arsenal nuclear deixou, então, de constituir um símbolo de status político. Em
cada estágio assinaram-se tratados de limitação nuclear que ratificavam
solenemente a cessação gradual da corrida. A proibição de testes atmosféricos
ratificou o fim da corrida científica, os tratados ABM E SALT ratificaram o fim
da corrida militar e os tratados START ratificaram o fim da corrida política.
Como podemos extrapolar essa história para o mundo dos anos 90 e para
o futuro? Hoje, a segurança e o poder militar dos Estados Unidos dependem
principalmente de forças não nucleares. Hoje, as armas nucleares pesam do lado
das desvantagens, não das vantagens. A segurança dos Estados Unidos será
incrementada caso os suprimentos de armas nucleares, incluindo as nossas [isto
é, dos norte-americanos], sejam reduzidos gradualmente a zero. Durante os
próximos cinquenta anos, deveremos tentar fazer com que a corrida nuclear
passe a se dar em marcha à ré, persuadindo nossos aliados e nossos inimigos de
que as armas nucleares mais criam problemas do que valem a pena. Os lances
mais eficazes nesse sentido serão renúncias unilaterais a essas armas. O lance
que assinalou a mudança histórica de trajetória da corrida nuclear foi a retirada
unilateral das armas nucleares táticas baseadas em terra e no mar, pelo presidente
Bush, em 1991. O secretário-geral Gorbachev respondeu rapidamente, com
retiradas maciças de armas soviéticas. A moratória sobre testes de 1992 foi outro
passo eficaz na mesma direção.
Para acelerar ainda mais a corrida nuclear em marcha à ré, deveremos
perseguir três objetivos de longo alcance: neutralização e destruição de armas
em âmbito mundial, cessação completa de testes nucleares e um mundo aberto,
em que as atividades nucleares de todos os países sejam, em alguma medida,
transparentes. Na perseguição desses objetivos, iniciativas unilaterais costumam
ser mais persuasivas do que tratados. Iniciativas unilaterais tendem a criar
confiança, enquanto a negociação de tratados muitas vezes cria suspeitas.
Nosso arsenal nuclear ajustou-se bem ao contexto da corrida em marcha
à ré. O objetivo do estudo era conseguir uma estabilização técnica de nosso
arsenal, esclarecer o que precisaria ser feito para manter indefinidamente uma
variedade limitada de armas sem realizar testes. A estabilização é um pré-
requisito essencial para permitir que as armas desapareçam elegantemente. Uma
vez que se estabeleça um regime estável de manutenção de arsenais, as armas
atrairão menos atenção, tanto no plano nacional como no internacional.
Assumirão as qualidades que uma força nuclear de dissuasão deveria apresentar:
respeito, distanciamento, silêncio. Gradualmente, com o passar das décadas do
século XXI, tais armas se tomarão cada vez menos relevantes para os problemas
da ordem internacional, num mundo faminto e turbulento. Poderá chegar o
tempo em que as armas nucleares serão vistas como relíquias inúteis de uma era
extinta, como os cavalos de regimentos aristocráticos de cavalaria, mantidos
apenas para finalidades cerimoniais. Quando as armas nucleares forem
amplamente consideradas como absurdas e irrelevantes, talvez tenha chegado o
tempo em que se tomará possível livrar-se delas de vez.
O tempo em que poderemos dizer adeus para sempre às armas nucleares
é ainda muito distante, distante demais para que possa ser delineado com clareza,
talvez distante cem anos. Até que esse tempo chegue, precisaremos viver com
nossas armas do modo mais responsável e tranquilo que pudermos. Era esse o
ob- jetivo de nosso estudo sobre os arsenais, assegurar que nossas armas fossem
mantidas com um máximo de competência profissional e um mínimo de ruído e
excitação, até que o tempo faça com que deixem de ser consideradas necessárias.
No entretempo, os dilemas éticos a respeito das armas não nucleares e da guerra
não nuclear permanecem não resolvidos.
A abolição da guerra é um objetivo final, mais remoto do que a abolição
das armas nucleares. A ideia exposta no início da era nuclear por Robert
Oppenheimer, de que a existência de armas nucleares levaria à abolição da
guerra, mostrou-se ilusória. A abolição da guerra é um exemplo típico de
problema ético que a ciência é impotente para resolver. As armas da guerra não
nuclear — fuzis e tanques e navios e aviões — são disponíveis no mercado
aberto para quem quer que possua o dinheiro necessário para pagar por elas. A
ciência não pode fazer com que essas armas desapareçam. A contribuição mais
útil que a ciência pode dar para a abolição da guerra nada tem a ver com
tecnologia. A comunidade internacional de cientistas pode ajudar a abolir a
guerra dando ao mundo um exemplo de cooperação prática que se estende
através das barreiras da nacionalidade, da linguagem e da cultura.
Passaram-se 74 anos desde a publicação de Daedalus, de Haldane, e os
acontecimentos mostraram que eram acertadas suas advertências de que a
ciência transforma o bem em mal. A principal questão levantada no livro de
Haldane era saber como se poderia reverter o destino que ele atribuiu a Dédalo.
O que podemos fazer hoje, no mundo em que vivemos neste fim do século XX,
para transformar os males da tecnologia em bem? São muitos e variados os
modos pelos quais a ciência pode trabalhar em direção ao bem e ao mal na
sociedade humana. Como regra geral, para a qual existem muitas exceções, a
ciência trabalha para o mal quando seu efeito é proporcionar brinquedos para os
ricos; trabalha para o bem quando seu efeito é satisfazer as necessidades dos
pobres. O preço baixo é uma virtude essencial. A motocicleta trabalhou para o
bem porque era tão barata que um professor primário pobre podia comprá-la. A
energia nuclear funcionou principalmente para o mal, porque permaneceu um
brinquedo para governos ricos e empresas ricas. “Brinquedos para os ricos” não
significa apenas brinquedos no sentido literal, mas conveniências tecnológicas
que são disponíveis para uma minoria e fazem com que seja mais difícil para os
excluídos participarem da vida econômica e cultural da comunidade.
“Necessidades dos pobres” incluem não apenas alimento e abrigo, mas também
serviços de saúde pública adequados, transporte público adequado e acesso à
educação e empregos decentes.
Os progressos científicos do século XIX e da primeira metade do século
XX foram em geral benéficos para a sociedade como um todo, distribuindo
riqueza tanto para os ricos como para os pobres, com algum grau de equidade.
Luz elétrica, telefone, refrigerador, rádio, televisão, tecidos sintéticos,
antibióticos, vitaminas e vacinas foram equalizadores sociais, tornando a vida
mais segura e confortável para quase todo mundo, tendendo a estreitar a
distância entre ricos e pobres, em vez de ampliá-la. Foi apenas na segunda
metade do nosso século que o balanço das vantagens se alterou. Durante os
últimos quarenta anos, os esforços mais intensos da ciência pura concentraram-
se em terrenos altamente esotéricos, muito afastados do contato com os
problemas cotidianos. A física de partículas, a física de baixas temperaturas e a
astronomia extragaláctica são exemplos de ciências puras que se afastam cada
vez mais de suas origens. A exploração intensiva dessas ciências não provoca
muitos malefícios, ou muitos benefícios, seja para os ricos, seja para os pobres.
O principal benefício social proporcionado pela ciência pura em terrenos
esotéricos é funcionar como programa de previdência para cientistas e
engenheiros.
Ao mesmo tempo, os esforços mais fortes da ciência aplicada têm se
concentrado em produtos que possam ser vendidos com bom lucro. Como se
espera dos ricos que possam pagar mais do que os pobres por produtos novos, a
ciência aplicada impulsionada pelo mercado resulta usualmente na invenção de
brinquedos para os ricos. O computador laptop e o telefone celular são os
últimos brinquedos desse tipo. Hoje, quando uma grande parte dos empregos
bem pagos é anunciada na Internet, pessoas excluídas da Internet são também
excluídas do acesso a empregos. O fracasso da ciência em produzir benefícios
para os pobres nas últimas décadas se deve a dois fatores que funcionam em
combinação: a ciência ficou mais desligada das necessidades mundanas da
humanidade, e os cientistas aplicados ligaram-se mais à lucratividade imediata.
Embora possa parecer que as ciências pura e aplicada se movem em
direções opostas, existe uma causa subjacente única, que afeta a ambas. A causa
é o poder dos comitês na administração e financiamento da ciência. No caso da
ciência pura, os comitês são compostos por cientistas especializados, que
cumprem os rituais da arbitragem por pares. Como os comitês de cientistas
especializados selecionam projetos de pesquisa por voto de maioria, projetos em
terrenos da moda são apoiados em detrimento de projetos em terrenos pouco
glamorosos. Nas últimas décadas, os terrenos da moda enfronharam-se cada vez
mais em áreas especializadas, distanciadas do contato com coisas que possamos
ver e tocar. No caso da ciência aplicada, os comitês são constituídos de
executivos de empresas e administradores. Pessoas como essas costumam apoiar
produtos que pessoas afluentes como elas próprias podem comprar. Só alguém
saliente como Henry Ford, que tinha poderes ditatoriais sobre sua empresa,
podia atrever-se a criar um mercado de massa para automóveis, fazendo-o pelo
processo de estipular arbitrariamente preços baixos o suficiente e salários altos o
bastante para permitir que seus operários comprassem seu produto. No entanto,
na ciência pura e na ciência aplicada, o governo dos comitês desencoraja
iniciativas arrojadas e desviantes. Para conseguir uma mudança real de
prioridades, cientistas e empresários precisariam afirmar sua liberdade de
promover novas tecnologias que fossem mais amigáveis do que as antigas em
relação às pessoas e aos países pobres. Os padrões éticos dos cientistas precisam
mudar, acompanhando as mudanças de escopo do bem e do mal causadas pela
ciência. Como disseram Haldane e Einstein, a longo prazo o progresso ético é a
única cura para o dano causado pelo progresso científico.
A corrida nuclear terminou, mas resta o problema ético provocado pela
tecnologia não nuclear. O problema ético surge de três “novas eras” que inundam
a sociedade humana como maremotos. Primeiro, a Era da Informação, que já
chegou, e para ficar, impulsionada por computadores e memórias digitais.
Segundo, a Era Biotecnológica, que deve chegar com força total no início do
século XXI, impulsionada pelo sequenciamento do ADN e pela engenharia
genética. Terceiro, a Era Neurotecnológica, que provavelmente chegará mais
para o fím do século XXI, impulsionada por sensores neurais, e que exporá à
manipulação o funcionamento íntimo da emoção e da personalidade humanas.
Essas três novas tecnologias são profundamente transformadoras. Elas oferecem
uma liberação do tédio da fábrica, da fazenda e do escritório. Oferecem a cura
para doenças antigas, tanto do corpo como da mente. Oferecem riqueza e poder
às pessoas que possuírem a capacitação para entendê-las e controlá-las. Elas
destroem setores baseados em tecnologias mais velhas e tomam inúteis as
pessoas treinadas nas velhas tecnologias. Provavelmente, evitarão os pobres e
recompensarão os ricos. Como disse Hardy oitenta anos atrás, elas tenderão a
acentuar as desigualdades na distribuição da riqueza, mesmo que não venham a
promover mais diretamente a destruição da vida humana, como a tecnologia
nuclear.
A metade mais pobre da humanidade tem necessidade de habitação
barata, assistência médica barata e educação barata, acessíveis a todos, com alta
qualidade e padrões estéticos elevados. O problema fundamental da sociedade
humana no próximo século será o descompasso entre as três novas ondas
tecnológicas e as três necessidades básicas dos pobres. A lacuna entre a
tecnologia e as necessidades é ampla, e está crescendo. Caso a tecnologia siga na
trilha atual, ignorando as necessidades dos pobres e cumulando os ricos de
benefícios, mais cedo ou mais tarde os pobres se rebelarão contra a tirania da
tecnologia e recorrerão a soluções irracionais e violentas. No futuro, assim como
no passado, a revolta dos pobres provavelmente resultará no empobrecimento
tanto de ricos como de pobres.


A lacuna crescente entre a tecnologia e as necessidades humanas só pode
ser preenchida pela ética. Nos últimos trinta anos, vimos muitos exemplos do
poder da ética. O movimento ambientalista mundial, que baseia seu poder na
persuasão ética, conseguiu muitas vitórias sobre a riqueza industrial e a
arrogância tecnológica. A vitória mais espetacular dos ambientalistas foi a
derrocada da indústria nuclear nos Estados Unidos e em muitos outros países,
primeiro no terreno da energia nuclear e, mais recentemente, no terreno das
armas. Foi o movimento ambientalista que fechou fábricas de armas nucleares
nos Estados Unidos, desde as instalações para produção de plutônio de Hanford
à fábrica de ogivas de Rocky Flats. A ética pode constituir uma força mais
poderosa do que a política e a economia. Infelizmente, até agora o movimento
ambientalista tem concentrado sua atenção sobre os males causados pela
tecnologia, e não sobre os benefícios que ela deixou de trazer. Tenho esperanças
de que, no próximo século, a atenção dos Verdes se desvie do negativo e se volte
para o positivo. Vitórias éticas que dêem fim a aberrações tecnológicas não são o
suficiente. Precisamos de vitórias éticas de outro tipo, que comprometam
positivamente o poder da tecnologia com a busca da justiça social.
Se concordamos com Thomas Jefferson em que as seguintes verdades
são auto-evidentes, que todos os homens nascem iguais, que são detentores de
determinados direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a
busca da felicidade, então também deveria ser auto-evidente que, nas sociedades
modernas, o abandono de milhões de pessoas ao desemprego e à miséria
constitui uma conspurcação da Terra pior do que as usinas de energia nuclear. Se
a força ética do movimento ambientalista foi capaz de derrotar os fabricantes de
usinas nucleares, a mesma força deveria ser capaz de estimular o
desenvolvimento de tecnologias que supram as necessidades de seres humanos
empobrecidos a um custo que eles possam enfrentar. Essa é a grande tarefa da
tecnologia no próximo século. Por si só, o livre-mercado não produzirá
tecnologia amigável aos pobres. Isso só poderá ser feito por uma tecnologia
dirigida positivamente pela ética. O poder da ética deve ser exercido pelo
movimento ambientalista e por cientistas, educadores e empresários conscientes,
trabalhando em conjunto. Se formos sábios, deveremos também alistar o poder
perene da religião em favor da causa comum da justiça social. No passado, a
religião contribuiu enormemente para muitas causas meritórias, desde a
construção de catedrais até a educação infantil e a abolição da escravidão. No
futuro, a religião continuará a ser uma força de magnitude igual à da ciência e,
como esta, comprometida com a melhoria da condição humana.
Ao longo dos séculos, houve no mundo da religião profetas do apocalipse
e profetas da esperança; estes últimos predominaram. A ciência também emite
alertas de apocalipse e promessas de esperança, mas na ciência os dois não
podem ser separados. Todo profeta científico honesto precisa mesclar as boas
novas com as más novas. Haldane era um profeta honesto, exibindo-nos o mal
realizado pela ciência não como destino inescapável, mas como desafio a ser
suplantado. Em 1923, escreveu em Daedalus: “Hoje, temos quase completa
ignorância sobre a biologia, fato que frequentemente escapa à atenção dos
biólogos e os faz demasiadamente presunçosos em suas avaliações a respeito da
situação atual de sua ciência e excessivamente modestos em suas antecipações
do futuro”. Desde 1923, a biologia conseguiu progressos espantosos, mas a
afirmação de Haldane continua verdadeira. Ainda sabemos pouco acerca dos
processos biológicos que afetam mais intimamente os seres humanos — o
desenvolvimento da fala e dos comportamentos sociais na infância, o
intercâmbio entre emoções e sentimentos e entendimento e conhecimento em
crianças e adultos, a incidência do envelhecimento e da deterioração mental no
fim da vida. Nenhum desses processos será compreendido dentro da próxima
década, mas todos serão desvendados durante o próximo século. O entendimento
levará, então, a novas tecnologias que proporcionarão a esperança de prevenir
tragédias e de melhorar a condição humana. Poucas pessoas ainda acreditam no
sonho romântico de que os seres humanos podem ser tornados perfeitos. Mas a
maioria de nós ainda acredita que os seres humanos podem ser melhorados.
A ideia de que é possível melhorar a raça humana por meios artificiais é
amplamente condenada em discussões públicas sobre a biotecnologia. A ideia é
repugnante porque traz à mente a visão de médicos nazistas a esterilizar judeus e
a sacrificar crianças deficientes. Há razões muito boas para condenar a eutanásia
e a esterilização forçada. No entanto, o melhoramento artificial dos seres
humanos acontecerá, quer o desejemos quer não, assim que o progresso do
entendimento biológico o tornar possível. Quando se oferecerem às pessoas os
meios técnicos de melhorar a si próprias e a seus filhos, independentemente do
que possam considerar como melhoria, a oferta será aceita. Melhorias podem
significar uma saúde melhor, uma vida mais longa, uma disposição mais alegre,
um coração mais forte, um cérebro mais sagaz, a capacidade de ganhar mais
dinheiro como estrela de rock, ou jogador de beisebol, ou executivo de empresa.
A tecnologia da melhoria poderá ser cerceada ou atrasada por regulamentações,
mas não poderá ser suprimida de modo permanente. Como acontece hoje com o
aborto, a melhoria humana será desaprovada oficialmente e desencorajada ou
proibida legalmente, porém será praticada de forma ampla. Será encarada por
milhões de pessoas como uma liberação em relação a limitações e injustiças
passadas. Sua liberdade de escolha não poderá ser negada para sempre.


Duzentos anos atrás, William Blake realizou as gravuras de The gates
ofParadise [Os portões do Paraíso], um livrinho com versos e ilustrações. Um
dos desenhos, intitulado “Velha Ignorância”, mostra um ancião com óculos
profissionais e uma grande tesoura nas mãos. A sua frente, uma criança nua e
alada corre à luz do sol nascente. O velho senta-se de costas para o sol. Com ar
satisfeito, abre a tesoura e apara as asas da criança. Junto com a imagem, um
pequeno poema:

Afogado no Oceano do Tempo,
Imerso em Velha Ignorância,
Sagrado e frio, cortei as Asas
De todas as Coisas Sublunares.
(In Time’s Ocean falling drown’d,/ In Aged Ignorance profound,/ Holy and cold, I clip’d the
Wings/ Of all Sublunary Things)

O desenho corresponde a uma imagem da condição humana na era que se
inicia. O sol nascente é a ciência biológica, lançando luz de intensidade
crescente sobre os processos pelos quais vivemos, sentimos e pensamos. A
criança alada é a vida humana, que pela primeira vez se toma consciente de si
mesma e de suas potencialidades à luz da ciência. O velho é a sociedade humana
presente, moldada por eras de ignorância passada. Nossas leis, nossas lealdades,
nossos temores e ódios, nossas injustiças sociais e econômicas, tudo isso cresceu
lentamente e se encontra profundamente arraigado no passado. É inevitável que
o avanço do conhecimento biológico provoque choques entre instituições velhas
e novos desejos humanos por automelhoria. As velhas instituições cortarão as
asas dos novos desejos. Até certo ponto, a cautela se justifica, tomando
necessários condicionantes sociais. As novas tecnologias serão a um tempo
perigosas e liberadoras. Mas, a longo prazo, as limitações sociais precisarão
curvar-se às novas realidades. A humanidade não pode viver para sempre com
asas cortadas. A visão de automelhoria, que William Blake e Samuel Gompers
desenharam a partir de pontos de vista diferentes, não desaparecerá da Terra.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS



June Goodfield, An imagined world: a story of scientific discovery (Nova
York: Harper and Row, 1981).

INTRODUÇÃO

A primeira citação de Auden é do ensaio “The fall of Rome”, escrito em
1966 mas inédito até 1995. Foi publicado com introdução de Glen Bowersock
em Auden Studies 3 (Nova York: Oxford University Press, 1995), pp. 111-37. A
passagem citada está na página 130. Sou grato ao professor Bowersock por
trazê-la à minha atenção.
A segunda citação de Auden é tirada do capítulo “Auden and the
liposome”, em Gerald Weissmann, The woods hole cantata (Nova York: Dodd,
Mead and Company, 1985), p. 81. Weissmann dá como referência W. H. Auden,
em A. W. K. Tiselius e S. Nilsson, The place of value in a world of facts: 14th
Nobel symposium (Nova York: John Wiley Interscience, 1970). De modo
incomum em se tratando de um poeta, Auden tinha um forte e bem informado
interesse na ciência e na religião. De modo incomum em se tratando de um
cientista, Weissmann tem um forte e bem-informado interesse na poesia e na
arte.
H. G. Wells, The time machine, ed. Frank D. McConnell (Nova York:
Oxford University Press, 1977), p. 104. O romance foi publicado pela primeira
vez em 1895.
Nota sobre a história subseqüente do carvalho de Onkel Bruno. Em 1996,
a árvore continuava de pé. Ele não seguiu com seu plano de substituí-la antes de
morrer e, hoje, é um monumento histórico protegido oficialmente. Após a
unificação da Alemanha, seu filho transferiu o consultório médico da família da
aldeia para uma cidade vizinha, mais próspera. O filho vive hoje numa casa
moderna, construída no jardim ao lado da velha casa. Os netos aproveitam o
carvalho, mas não do modo imaginado por Onkel Bruno.

1. HISTÓRIAS

James Leasor, The millionth chance: the story of the R101 (Nova York:
Reynal and Co., 1957). O título se refere a uma declaração de Lord Thompson
antes de embarcar para a viagem fatídica do R101: “É seguro como uma casa,
exceto por uma chance em 1 milhão”.
Nevil Shute, Slide rule: the autobiography of an engineer (Londres:
Heinemann, 1954). A história do R100 e do R101 ocupa o terço médio do livro,
pp. 53-134. O romance No highway, de Shute, foi publicado em 1948.
John McPhee, The curve of binding energy (Nova York: Farrar, Straus
and Giroux, 1974), descreve a vida e a obra de Ted Taylor.
Para um relato mais detalhado dos primórdios dos projetos de tanque de
gelo de Taylor, ver F. J. Dyson, Infinite in all directions (Nova York: Harper and
Row, 1988), cap. 8, pp. 149-55.

2. CIÊNCIA

Minha conferência em Oxford sobre astronomia de ocultação foi
publicada em F. J. Dyson, Quarterly Journal of the Royal Astronomical Society
33 (1992): 45-57. A conferência será reproduzida com um adendo que a atualize
no volume The Milne lectures, 1977-1996 (Londres: Oxford University Press,
1996).
James E. Gunn e David H. Weinberg, “The Sloan digital sky survey”,
preprint IASSNS—AST 94/64, Institute for Advanced Study, Princeton, NJ (1994).
A aparecer em Wide-field spectroscopy and the distant Universe, ed. S. J.
Maddox e A. Aragón-Salamanca (Cingapura: World Scientific).
A conferência Halley de Fritz Zwicky, “Morphological astronomy”, foi
publicada em The Observatory, 68 (1948): 121-43. Ver as pp. 126-7.

3. TECNOLOGIA

J. B. S. Haldane, Daedalus, or Science and the future (Londres: Kegan
Paul, 1923). A descrição de Dédalo está nas pp. 46-8, a observação sobre a teoria
da relatividade, na p. 11, e o comentário sobre o acirramento das injustiças por
parte da ciência aplicada, na p. 85.
A experiência no uso de um gene de camundongo para criar olhos de
mosca-das-frutas é relatada por Georg Haider, Patrick Callaerts e Walter Gehring
em “Induction of ectopic eyes by targeted expression of the eyeless gene in
Drosophila”, Science, 267 (1995): 1788-92. Nessa fonte encontram-se
referências a pesquisas anteriores do grupo de Gehring.
A teoria de que a explosão das formas superiores de vida no cambriano
se tomou possível após a evolução de um padrão de dois estágios no
desenvolvimento morfológico é proposta por Eric H. Davidson, Kevin Peterson
e R. Andrew Cameron em “Origin of bilaterian body plans: evolution of
developmental regulatory mechanisms”, Science, 270 (1995): 1319-25.
Quanto à evolução das células eucariontes, ver Lynn Margulis, Symbiosis
in cell evolution (San Francisco: Freeman and Co., 1981).
Quanto à teoria dos dois estágios para a origem da vida, ver F. J. Dyson,
Origins of life (Cambridge: Cambridge University Press, 1985).
Olaf Stapledon, Last and first men (Nova York: Dover Publications,
1968) foi publicado originalmente em 1931. Sirius (Nova York: Dover
Publications, 1972) foi publicado originalmente em 1944.
Aldous Huxley, Brave new world (Londres: Chatto and Windus, 1938).
Bmce Chatwin, Utz (Londres: Viking-Penguin Books, 1988).
Saul Bellow, Conferência Nobel, 1976. Devo a citação a Clara Park, “No
time for comedy”, Hudson Review, 32 (1979): 191-200.

4. EVOLUÇÃO

Robert Forward, Dragon’s egg (Nova York: Ballantine Books, 1980).
O “Culto da Evanescência” é descrito por Stapledon no capítulo 12 de
Last and first men.
O Universo de Carroll é descrito em J. M. Lévy-Leblond, “Une nouvelle
limite non-relativiste du groupe de Poincaré”, Annales Inst. Henri Poincaré, 3
(1965): 1.
Minha especulação sobre a possibilidade de a vida sobreviver para
sempre num Universo em expansão foi publicada em F. J. Dyson, Reviews of
Modem Physics, 51 (1979): 447-60. O caso de um Universo com densidade
crítica foi examinado por Steven Frautschi, Science, 217 (1982): 593-9.
A respeito de Gaia, ver James Lovelock, The ages of Gaia: a biography
of our living Earth (Nova York: Norton, 1988).

5. ÉTICA

A inscrição no monumento de Gompers foi extraída de um discurso
proferido na Conferência Internacional do Trabalho de Chicago, em 1893. Ver
The papers of Samuel Gompers, vol. 3, ed. Stuart B. Kaufman e outros (Urbana:
University of Illinois Press, 1989), pp. 388-96. Sou grato ao professor Joseph
McElrath, da Universidade do Estado da Flórida, por esta referência.
A citação de Hardy encontra-se na página 60 de A mathematician’s
apology (Cambridge: Cambridge University Press, 1940).
George F. Kennan, The nuclear delusion (Nova York: Pantheon Books,
1982), pp. 201-7.
O leitor atento observará que omiti da declaração de Jefferson as palavras
“pelo Criador”. Podemos concordar a respeito dos direitos inalienáveis, mesmo
que não acreditemos num Criador pessoal.
A observação de Haldane sobre nossa ignorância quanto à biologia
encontra-se na página 50 de Daedalus (ver as notas ao Capítulo 3).
The gates of Paradise, de William Blake, foi publicado em duas versões,
a primeira “Para crianças”, em 1793, a segunda “Para os sexos”, em 1810. Os
versos citados aqui estão presentes apenas na segunda versão. Ver The portable
Blake, ed. Alfred Kazin (Nova.York: Viking Press, 1946), pp. 273, 277, 697,
698.



















ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELO ESTÚDIO O.L.M. EM TIMES, TEVE SEUS FILMES GERADOS
NO BUREAU 34 E FOI IMPRESSA PELA GEOGRÁFICA EM OFFSET SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT
DA COMPANHIA SUZANO PARA A EDITORA SCHWARCZ EM FEVEREIRO DE 2002.

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